editorial Encerramos o ano de 2009 com um crescimento de 75% no total de submissões recebidas (717) em relação a 2008. Esta evolução exigiu um grande esforço do corpo editorial no julgamento de mérito científico dos manuscritos frente aos limites de publicação de nosso periódico. A despeito disto, temos conseguido reduzir o tempo decorrido entre submissão e publicação, em função tanto da adoção de pré-avaliação de todas as submissões recebidas, quanto pelo uso do sistema Scielo Submission de gerenciamento eletrônico dos processos. A pré-avaliação imprimiu, também, maior agilidade no processo de avaliação com a redução do volume de artigos em julgamento. Buscando aprimorar nosso trabalho editorial, no próximo ano Interface iniciará a pré-publicação (ahead of print) dos manuscritos já aprovados na biblioteca SciELO, permitindo uma maior difusão junto à comunidade científica e, com a atribuição de um número doi, o imediato e correto registro das citações recebidas. Ainda como iniciativa para ampliar o acesso, especialmente o internacional, os autores cujos artigos aprovados foram submetidos em português ou espanhol serão convidados a apresentar o texto em inglês para publicação na versão eletrônica da revista. Esses manuscritos também serão incluídos na Biblioteca Scielo Social Sciences, como tem sido feito desde 2006. É interessante informar que, recentemente, artigo publicado pela Interface dentro da Scielo Social Sciences foi convidado a integrar coletânea publicada em inglês por editora universitária da Índia, que tomou conhecimento do mesmo nessa Biblioteca, o que reforça a relevância deste espaço de difusão internacional de nossos periódicos. O aumento das submissões e publicação de artigos de autores vinculados a instituições estrangeiras (6% do total de artigos publicados em 2009) é, também, resultado da visibilidade alcançada pelas Biblioteca Scielo Brasil e Scielo Social Sciences. Visando dar continuidade ao esforço de internacionalização de nosso periódico, para o próximo ano buscaremos conquistar a indexação de Interface em novas bases de dados. Todas essas informações indicam que 2010 será mais um ano de muito trabalho para o Corpo Editorial da revista e todos os nossos colaboradores! E, esperamos, de novas conquistas! Os editores
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We close the year of 2009 with a 75% increase in the total number of submitted papers (717) received compared to 2008. This evolution demanded a great effort of the editorial body concerning the appraisal of scientific merit of the manuscripts in view of our journal’s publication limits. In spite of this, we have been able to reduce the time elapsed between submission and publication, as a result both of the adoption of the pre-evaluation of all the submitted papers and of the use of the Scielo Submission system of electronic management of the processes. The pre-evaluation has also accelerated the process due to the reduction in the volume of papers under appraisal. Aiming to improve our editorial work, in the next year Interface will begin the pre-publication (ahead of print) of the approved manuscripts in the SciELO library, promoting greater dissemination in the scientific community and, with the assignment of a doi number, the immediate and correct register of the received quotations. Also as an initiative to extend the access, especially the international one, the authors whose approved papers were submitted in Portuguese or Spanish will be invited to present the text in English for publication in the journal’s electronic version. These manuscripts will also be included in the Scielo Social Sciences Library, as has been occurring since 2006. It is interesting to inform that, recently, a paper published by Interface in Scielo Social Sciences was invited to integrate a collection published in English by a university press from India, which came to know about it in this Library. This stresses the relevance of this international dissemination space of our journals. The increase in submissions and publication of papers by authors from foreign institutions (6% of the total number of papers published in 2009) is also a result of the visibility reached by the Libraries Scielo Brasil and Scielo Social Sciences. Aiming to continue with the process of internationalization of our journal, in the next year we will strive to promote Interface’s indexation in new databases. All these data indicate that 2010 will be another very busy year for the journal’s Editorial Body and all our collaborators! And, we hope, a year of new achievements! The editors
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artigos
Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral
Francisco Ortega1
ORTEGA, F. Neurosciences, neuroculture and cerebral self-help. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.247-60, out./dez. 2009.
The aim of this paper was to analyze the phenomenon called neuroascesis or cerebral self-help, within the context of increasing impact of the neurosciences and the emergence of neuroculture and the cerebral subject. In order to accomplish this, it is important to understand the sociocultural context of neuroascesis, which corresponds to what is being called somatic culture or biosociality. The purpose of the article was to explore how a reductionistic form of subjectivity, the cerebral subject, enables the appearance of cerebral practices of the self, i.e. practices of how to act on the brain in order to maximize its performance. Such practices lead to the formation of new types of sociality.
Este artigo pretende analisar o fenômeno denominado de neuroascese, ou autoajuda cerebral no contexto do crescente impacto das neurociências e do surgimento da neurocultura e do sujeito cerebral. Para tanto, é importante compreender o âmbito sóciocultural mais amplo no qual a neuroascese se insere e que corresponde ao que vem se chamando de ‘cultura somática’ ou, mais especificamente, de biossociabilidade. O objetivo do artigo é explorar como uma forma de subjetividade reducionista, o sujeito cerebral, dá lugar à aparição de práticas de si cerebrais, isto é, práticas de como agir sobre o cérebro para maximizar a sua performance, que levam a formação de novas formas de sociabilidade.
Keywords: Neurosciences. Cerebral subject. Neuroculture. Cerebral self-help.
Palavras-chave: Neurociências. Sujeito cerebral. Neurocultura. Autoajuda cerebral.
1 Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E. Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900 fjortega2@gmail.com
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NEUROCIÊNCIAS, NEUROCULTURA E AUTOAJUDA CEREBRAL
Da bioascese à neuroascese Este texto pretende analisar o fenômeno que denomino neuroascese, ou autoajuda cerebral no contexto do crescente impacto das neurociências e do surgimento da neurocultura e do sujeito cerebral. Para tanto, é importante compreender o âmbito sociocultural mais amplo no qual a neuroascese se insere na nossa cultura contemporânea, e que corresponde ao que vem se chamando de ‘cultura somática’ (Ortega, 2008), ‘indivíduos somáticos’2 ou, mais especificamente, de biossociabilidade. Neste trabalho, vou me servir desse conceito em um sentido mais amplo que o de Paul Rabinow (1996), que o cunhou para analisar as implicações socioculturais e políticas da genética e do projeto Genoma. Para o antropólogo americano, a genética deixará de ser apenas uma metáfora biológica para descrever o social, levando à formação de identidades e práticas sociais. No texto, uso esse conceito de Rabinow, sublinhando o elemento dos processos de subjetivação, mas sem limitá-lo especificamente à genética, estendendo o uso a diferentes formas de subjetividade biológica ou somática presentes nas sociedades contemporâneas, incluindo o sujeito cerebral, ao qual me refiro mais adiante. Entendo por biossociabilidade uma forma de sociabilidade ou de coletividade constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamento tradicional como classe, estamento, orientação política, como acontecia na biopolítica clássica analisada por Foucault3, mas segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas, estatuto genético compartilhado por outros indivíduos, longevidade, entre outros. Narrativas de experiência de doenças e performances do sofrimento que aparecem na mídia, bem como a disseminação e moralização do vocabulário médico-fisicalista baseado em constantes biológicas, taxas de colesterol, tono muscular, desempenho físico ou capacidade aeróbica fornecem os critérios de avaliação individual e destacam a existência corporal do self como lugar privilegiado de construção de relações consigo e com os outros nas sociedades biomédicas contemporâneas (Ortega, 2008; Rose, 2007). Coletividades organizadas em torno de classificações biomédicas ocupam cada vez mais espaço, podendo reivindicar uma influência maior na tomada de decisões acerca de terapias apropriadas para doenças específicas; obter fundos para a pesquisa, ou marcar distância da própria investigação biomédica e contestar o estatuto nosológico de determinadas doenças, como vemos no caso do autismo. Em sociedades fortemente marcadas pelas teorias e práticas psicanalíticas, como o caso do Brasil e dos EUA durante as sete primeiras décadas do século passado, era frequente que os indivíduos se descrevessem como habitados por um espaço interior e psicológico, fonte de desejos e lugar de escrutínio de todos os transtornos psíquicos, avaliando a si mesmo e aos outros e agindo sobre si mesmo com base nessa crença. Os discursos psicológicos possibilitaram formas de relacionar-se consigo mesmo em termos de neuroses, desejos inconscientes, trauma, e repressão, dando uma centralidade à sexualidade na definição da vida psíquica. Nas últimas décadas, porém, esse espaço interno característico da cultura psicológica fortemente influenciada pela psicanálise vem sendo achatado e, em alguns casos, deslocado por uma localização de doenças e transtornos no corpo e no cérebro (Ortega, 2008). Sirva, como exemplo, o caso do alcoolismo: Segundo os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos (AA), deixar de beber corresponde a uma transformação interior. O alcoolismo é visto como uma fraqueza moral e da vontade, uma falha localizada no interior do self – o indivíduo deve reconhecer que é, e sempre será, um alcoolista e que deve trabalhar para estabelecer níveis de introspecção e disciplina que permitam deixar o vício de maneira definitiva. Nas 248
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2 Nikolas Rose (2007, p.26) define os ‘indivíduos somáticos’ como “aqueles seres cuja individualidade é, em parte pelo menos, localizada na nossa existência carnal, corporal e que experienciam, articulam, julgam e agem sobre si mesmos em parte na linguagem da biomedicina”.
O biopoder clássico, descrito por Foucault, se articulava como uma anátomopolítica do corpo e uma biopolítica das populações. A biopolítica foucaultiana (1999, 1997, 1976) enfatizava, especialmente, as noções de sexualidade, raça e degenerescência, cujo objetivo era a otimização da qualidade biológica das populações e estava vinculada à afirmação da burguesia como classe social e ao fortalecimento do Estado Nacional. Diversos autores têm estendido o uso do bipoder e biopolítica para o contexto contemporâneo. Neste artigo uso o termo biossociabilidade para frisar as descontinuidades com o biopoder clássico. Para uma importante crítica do uso do conceito de bipoder em autores como Negri e Agamben, ver Rabinow e Rose (2006). Para o uso do termo biossociabilidade em diferentes contextos empíricos, incluindo uma reflexão atualizada de Rabinow, ver a interessante coletânea de Gibbon e Novas (2008). 3
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artigos
descrições neurocientíficas do alcoolismo, em contrapartida, o objetivo das intervenções é o estado neuroquímico do cérebro. A bebida ativa o sistema de recompensas no cérebro, mas, em alguns indivíduos, o cérebro recompensaria a bebida de uma maneira desmesurada provocando desejos intensos pelo álcool. Trata-se de um sistema endorfínico superestimulado. As complexas práticas confessionais dos rituais dos AA são substituídas por simples decisões acerca de tomar ou não a medicação (Vrecko, 2006). Esse é um exemplo emblemático do deslocamento de explicações centradas na vida psíquica para as baseadas em parâmetros cerebrais. No processo de descrição da individualidade e subjetividade em termos corporais, o cérebro ocupa um lugar privilegiado. O espetacular progresso das tecnologias neurocientíficas, o intenso processo de popularização, pela mídia, de imagens e informações que associam a atividade cerebral a praticamente todos os aspectos da vida, e certas características estruturais da sociedade atual vêm produzindo, no imaginário social, uma crescente percepção do cérebro como detentor das propriedades e autor das ações que definem o que é ser alguém. Ele responde, cada vez mais, por tudo aquilo que outrora nos acostumamos a atribuir à pessoa, ao indivíduo, ao sujeito. Inteiro ou em partes, o cérebro surgiu como o único órgão verdadeiramente indispensável para a existência do self e para definir a individualidade. Crenças, desejos e comportamentos são frequentemente descritos em um vocabulário cerebral ou neuroquímico. Nikolas Rose (2007) define este processo usando o termo ‘self neuroquímico’ (neurochemical self), isto é, a formação neuroquímica da pessoa. A emergência de ‘neuroessencialismo’, ‘neurorrealismo’ e ‘neuropolítica’ vem sendo ressaltada nas interpretações populares da neurociência (Racine, Bar-Ilan, Illes, 2005), resultando em um ‘entusiasmo aparentemente acrítico’ (Illes, Racine, 2005) diante dos avanços neurocientíficos. Acredito que a noção de “sujeito cerebral” (Vidal, 2009; Ortega, Vidal, 2007; Ehrenberg, 2004) resume adequadamente a redução da pessoa humana ao cérebro, que perpassa diferentes análises críticas da neurocultura contemporânea: a crença de que o cérebro é a parte do corpo necessária para sermos nós mesmos, no qual se encontra a essência do ser humano, ou seja, a identidade pessoal entendida como identidade cerebral. Uso o termo ‘sujeito cerebral’ como uma derivação da noção de sujeito que Foucault (1984a, 1984b, 1976) analisa em sua história da subjetividade. Trata-se de uma categoria histórica e cuja ênfase recai precisamente nas formas e nos processos de subjetivação e nas tecnologias do self usadas pelos indivíduos para a formação de diferentes “subjetividades”. Existiriam, assim, diferentes formas de subjetividade, tipos de “sujeito” na história da subjetividade, entre elas, o “sujeito cerebral” das sociedades contemporâneas. O sujeito cerebral não possui uma realidade prévia a suas corporificações performativas. Em outras palavras, o processo de subjetivação tem uma preeminência ontológica e, por isso, a ênfase recai nas noções, práticas e contextos pelos quais os seres humanos se tornam sujeitos cerebrais. Sujeitos cerebrais se formam e são formados mediante tecnologias do self sustentadas, em parte, pelo conhecimento especializado e sua divulgação pela mídia e pela cultura popular. Deve ser observado, porém, que o sujeito cerebral não é uma figura antropológica nem monolítica, nem hegemônica, e que os indivíduos não se subjetivam de uma única maneira. Existe uma coexistência entre ontologias cotidianas, que faz com que as pessoas mudem os registros na sua forma de agir, experienciar, pensar e falar de si mesmo e dos outros. Em determinados contextos podem recorrer a um vocabulário psicológico, em outros, ao cerebral ou neuroquímico. Diferentes ontologias do self, da psicanalítica à cerebral, convivem de maneira mais ou menos harmônica quando falamos de nós mesmos e vivemos nossas vidas. No âmbito da biossociabilidade, o sujeito cerebral dá lugar à aparição de práticas de si cerebrais, as neuroasceses, isto é, discursos e práticas de como agir sobre o cérebro para maximizar a sua performance, que levam à formação do que vou chamar de neurossociabilidades e neuroidentidades. Elas constituem formas de “selves objetivos”, de “autoconstituição objetiva” (objective self-fashioning), usando a expressão de Joseph Dumit (2004) para se referir ao processo de formação de um self objetivo, ou seja, uma categoria de pessoa desenvolvida mediante conhecimento especializado. É um processo duplo: por um lado, as práticas da ciência da medicina e da tecnologia formam selves mediante a experimentação científica, os exercícios de taxonomia médica, entre outros. Isto é, produzem “fatos” que definem objetivamente quem somos; por outro, os indivíduos formam seus próprios modelos de self a partir dos fatos científicos. A noção de self objetivo remete a uma 249
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compreensão da subjetividade que tem, como ponto de partida, discursos técnicos, científicos e médicos sobre a objetividade, ou seja, uma subjetividade objetivada, uma forma de self, na qual a perspectiva fenomenológica e subjetiva da primeira pessoa é reduzida à perspectiva em terceira pessoa expressa mediante as tecnologias médicas e os discursos e as práticas objetivantes. Os indivíduos constituem a si mesmos objetivamente a partir da incorporação em suas vidas de “fatos” sobre si mesmos - seus corpos, mentes, cérebros. São “fatos objetivos” veiculados pela mídia, que são incorporados nas descrições de nós mesmos. Os jornais e as revistas de divulgação científica, a televisão e o cinema difundem continuamente imagens que insistem na associação entre o cérebro e a mente, sendo a mente localizada no cérebro. A mídia capitaliza precisamente a potente familiaridade e a transparência das imagens. O risco é grande, os limites entre as imagens entendidas como representações de correlações ou de relações causais entre estados mentais e estruturas cerebrais é ultrapassado com frequência, sendo essas imagens interpretadas como registros objetivos de estados emocionais e mentais.
Neurocultura e neurossociabilidade Na cultura somática da biossociabilidade, a neurossociabilidade está ocupando cada vez um espaço maior. Podemos compreender a neurossociabilidade como uma especificação da biossociabilidade que diz respeito a formas de identidade, sociabilidade, cidadania e autoadvocacia4, que têm os saberes e práticas neurocientíficas como referência. Encontramos, por um lado, todo um mercado crescente de produtos que incluem: best-sellers de autoajuda cerebral, aos quais me referirei mais adiante, softwares e programas de ‘fitness cerebral’ para o computador, que constituem verdadeiras ‘academias para o cérebro’ (brain gyms), vitaminas e todo tipo de suportes alimentares para aprimorar a performance cerebral (Brownlee, 2006a, 2006b; CBS, 2006; Singer, 2005). Por outro lado, o sujeito cerebral está se tornando um critério biossocial de agrupamento, como podemos constatar no surgimento de: a) Grupos que se reúnem para testar as performances cerebrais, como se depreende da existência de ‘clubes do cérebro’, ‘Campeonatos Mundiais de Memória’ e ‘Olimpíadas de esportes da mente’, promovidas pelo empresário Tony Buzan, criador dos mapas mentais e autor de numerosos best-sellers de autoajuda cerebral (<www.buzanworld.com>; ver, também, “Tony Buzan” em Wikipedia). Neles, os cérebros são submetidos a verdadeiras competições mentais, que incluem desde jogos mentais clássicos a exercícios para medir pensamento criativo, velocidade de leitura ou cálculos mentais e de memória. b) Neurocomunidades, como a Braingle Community5, orientada para um público adolescente, e que abrangem fóruns de discussão, ‘talk boxes’ permitindo conversas privadas, e serviço de ‘live chat’. Os neurousuários podem fazer observações sobre assuntos cerebrais, comentar os novos jogos, quebra-cabeças e ‘Brain Teasers’ para promover a atividade cerebral. Ao mesmo tempo, a comunidade tem acesso a todo um ‘mercado’ cerebral. Uma indústria ‘neuro’ está surgindo para compras on-line que não só inclui livros, jogos, videogames, mas também camisetas, bonés, canecas, mousepads, neurocalendários, entre outros, que ajudam a delinear a identidade coletiva das novas neurocomunidades. Nesse sentido, os recursos para crianças são descomunais, como se pode constatar ao digitar as palavras ‘neuroscience for kids’ em qualquer mecanismo de busca na internet. c) Grupos de apoio para portadores de diferentes doenças e transtornos neurodegenerativos e seus familiares, tais como: Alzheimer, esquizofrenia, 250
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Do inglês self-advocacy. O termo representa o envolvimento da pessoa com deficiência mental na defesa de seus direitos e na expressão de suas necessidades, no intuito de oferecer a elas a possibilidade de gerenciar suas vidas, fazer valer suas opiniões e decisões que lhe dizem respeito e que, na grande maioria das vezes, determinarão sua cidadania. 4
5 Disponível em: <http:/ /www.braingle.com/ community/index.php>. Acesso em: 5 jun. 2006.
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artigos
Parkinson, esclerose múltipla, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), demência Frontotemporal (Frontotemporal Dementia - FTD), Doença de Huntington (Hungtinton Disease), entre outros. As funções e objetivos desses grupos são diferentes, atendendo também as especificidades das diferenças doenças e transtornos, contemplando atividades que vão desde palestras e troca de informação e experiências até exercícios, serviços religiosos ou ajuda psicológica. Intervenções psicossociais diversas e troca de experiências podem acontecer em encontros regulares ou por meios virtuais, como internet, com o uso de videoconferências, comunidades no Yahoo, orkut, blogs e outros (A lista de organizações e de grupos de autoajuda nos diferentes países e continentes é enorme. Basta procurar em qualquer mecanismo de busca na internet). d) O movimento da neurodiversidade: Os participantes desse movimento acreditam que uma conexão neurológica atípica não é uma doença que deva ser tratada, e sim uma diferença humana que deve ser respeitada. Indivíduos diagnosticados com autismo de ‘alto-funcionamento’ (geralmente associado com a chamada Síndrome de Asperger) impulsionam o movimento. Para eles, o autismo é uma parte constitutiva de sua identidade. Uma ‘cultura autista’ vem sendo desenvolvida segundo modelos de pensamento e estilos de vida considerados autistas, como se depreende dos numerosos websites existentes na internet sobre o tema. Neles encontramos desde dicas de literatura que trata de autismo até listas de organizações de apoio a autistas e potenciais parceiros para casamento autistas. A noção de neurossociabilidade permite compreender como o sujeito cerebral se torna um critério de agrupamento, isto é, como dá lugar à formação de diversos grupos, sejam eles de portadores de alguma doença neurodegenerativa e seus familiares, ou de indivíduos que se reúnem para testar a sua performance cerebral, ou de grupos de autistas que usam o critério cerebral para reclamar um acesso à cidadania que o modelo biomédico lhes tinha negado. Um modelo de “subjetivade-objetiva”, como em um oxímoro, que surgiu a partir de uma ideologia reducionista e solipsista da compreensão da subjetividade e da vida social, serve paradoxalmente para criar novas formas de subjetividade e de sociabilidade que têm no cérebro a sua âncora. Obviamente, existe uma diferença do ponto de vista do significado sociopolítico entre grupos de apoio a portadores de doenças e transtornos específicos, grupos pró e anticura, que aparecem no debate em torno do autismo, por um lado, e neurocomunidades de adolescentes, clubes do cérebro e empresários dos neuronegócios, pelo outro. Ambos os grupos têm o cérebro como referência. Todavia, enquanto os primeiros poderiam ser comprendidos como formas de resistência a um tipo de racionalidade política neoliberal aparelhada com tecnologias neurocientíficas, os segundos se enquadram plenamente nos objetivos dessa racionalidade política. Enfim, o mapeamento da neurossociabilidade está apenas começando e é um terreno em constante expansão. Vou me concentrar, a seguir, no resto do texto, em alguns aspectos dessa neurossociabilidade e das práticas de si cerebrais.
Plasticidade cerebral e neuronegócios Convém, em primeiro lugar, fazer uma pequena referência ao conceito de plasticidade cerebral (Schwartz, Begley, 2002; Jones, 2000), tomado como ponto de partida pelas diversas práticas neuroascéticas. Tornou-se senso comum falar de plasticidade cerebral. Já, em 1890, no capítulo dedicado ao ‘Hábito’ em The Principles of Psychology, William James observou que o hábito era produzido pela plasticidade cerebral: os hábitos deixariam marcas, sulcos na estrutura neural dos indivíduos. A nossa experiência deixa marcas no cérebro (James, 1952). O achado do filósofo americano foi comprovado empiricamente por Graham Brown e Charles Sherrington (1912) ao descobrirem, pesquisando com macacos, que as representações corticais dos movimentos não são inatas e refletem a história do uso do sistema motor. Trabalhos como os de Ivory Franz (1915) e de Karl Lashey (1923) contribuíram para que, por volta de 1950, existisse um corpo de evidência razoável de que o córtex cerebral é dinâmico, remodelado continuamente pela experiência. Apesar das evidências, o paradigma do cérebro ‘imutável’ tornou-se predominante, relegando ao esquecimento os achados de Sherrington, Frank e Lashey, entre outros. A partir da década de 1990, surge um número crescente de trabalhos que pretendem demonstrar como a experiência produz COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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alterações no cérebro (Merzenich, Jenkins, 1994). Tenta-se comprovar as alterações cerebrais causadas por hábitos, decisões conscientes, atos de vontade, práticas de atenção, exercício físico, alimentação, práticas de meditação, entre outros. Cada vez mais pesquisadores relatam a descoberta (que já foi apontada por James no final do século XIX) de que, ao contrário do que se acreditava, as conexões entre células nervosas do cérebro criadas na infância não se mantêm inalteradas durante toda a vida adulta do indivíduo. Tornou-se um ‘dado empírico’ (como se depreende da avalanche de artigos sobre o tema) que a estrutura e o funcionamento do cérebro pode modificar-se até idade bem avançada, e novos neurônios são criados (Schwartz, Begley, 2002; Jones 2000; Weiller, Rijntjes, 1999). É na base desse conhecimento empírico que tem acontecido um verdadeiro ‘boom’ de práticas neuroascéticas na última década, que deram lugar a um florescente mercado de neurobusiness em constante expansão (Woldbring, 2007). Por exemplo, pesquisadores descobriram recentemente que as atividades aeróbicas possuem benefícios importantes, para além dos cardiovasculares e da utilidade no tratamento da depressão, já conhecidos desde algum tempo. O exercício encoraja os cérebros saudáveis a funcionarem a níveis ótimos, permitindo aumentar sua performance e promovendo a plasticidade cerebral. Também promete retardar a progressão da Alzheimer e os sintomas do Parkinson. Os mesmos efeitos foram constatados recentemente em relação à alimentação saudável, com baixo teor de gorduras saturadas e rica em Ômega 3 (Brownlee, 2006a; Cotman e Berchtold, 2002). A idéia básica por trás dessas pesquisas é muito simples, “cuidando de seu corpo, seu cérebro também se beneficia”, observa Carol Greenwood (apud Brownlee, 2006a), pesquisadora em nutrição e envelhecimento da Universidade de Toronto. Essa afirmação exemplifica a tendência recorrente de um ‘neurosolipsismo’ que leva a confundir ou reduzir o todo às partes, o corpo ao cérebro: embora as práticas treinem o corpo, se afirma que é o cérebro que está sendo visado. Tomando como base os novos conhecimentos sobre a plasticidade cerebral, surgiu, em San Francisco, a partir do trabalho pioneiro do Dr. Michael Mezenich, membro da academia das ciências e neurocientista renomado, a empresa Posit Science Corporation, uma das diversas empresas que estão aparecendo no ramo dos neuronegócios (Lynch, 2004). O objetivo de Posit Science é “ajudar as pessoas a prosperar ao longo de suas vidas. Fazemos isso fornecendo ferramentas efetivas e não invasivas que comprometam a plasticidade natural do cérebro na tarefa de melhorar a saúde cerebral” (Teichert, 2005). O programa de fitness cerebral de Posit Science focaliza no aperfeiçoamento da velocidade, precisão e intensidade com as quais nosso cérebro recebe, registra e lembra aquilo que ouvimos. O programa cerebral é o primeiro passo; a empresa planeja oferecer uma ‘academia cerebral’ (brain gym) completa para treinar os diferentes sistemas cognitivos: visão, controle executivo, equilíbrio, mobilidade. A publicidade da empresa lembra a do marketing de produtos de beleza: o programa de neuroascese promete ‘rejuvenescer’ a plasticidade ‘natural’ do cérebro, adiando o ‘declínio’ mental até em dez anos. Não por acaso, o principal alvo de Posit Science é a população idosa. Mesmo que o ‘Brain Gym’ não represente a fonte da juventude, Mezernich afirma que é “parte da solução”, pois terá um grande impacto não apenas na qualidade de vida dos idosos. E, o que é mais importante, promete “manter a vitalidade, o vigor das pessoas”. Vitalidade e vigor necessários para que a ‘longevidade cerebral’ (brainspan) possa acompanhar a longevidade corporal (lifespan) em constante aumento (Anônimo, 2006). Da mesma maneira que a fitness corporal, a fitness cerebral exige uma grande dose de disciplina, vontade e automotivação. A recompensa é grande, nos promete “inverter o processo de envelhecimento cerebral” (Olney, 2006). Por outro lado, os neuronegócios são promissórios. Posit Science prevê um potencial de venda enorme considerando que a metade dos norte-americanos que atingirem 85 anos sofrerão de alguma forma de demência. E os preços são salgados, começando em torno dos U$ 500 (Olney, 2006).
Autoajuda cerebral As descobertas da neuroplasticidade têm dado lugar a um mercado de best-sellers de ginástica e autoajuda cerebral com embasamento científico diverso. Eles prometem desenvolver determinadas regiões do cérebro (especialmente o hemisfério direito, tradicionalmente reprimido e negligenciado), 252
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permitindo desde aumentar a performance do raciocínio e da memória, combater depressão, ansiedade, adições e compulsões diversas, até melhorar a performance sexual, atingir a felicidade ou estabelecer um contato direto com Deus. Essa literatura constitui uma amálgama de trabalhos diversos que inclui: estudos mais sérios de neurocientistas, psicólogos cognitivos e psiquiatras renomados que, baseados nas novas descobertas, oferecem um programa de exercícios para aumentar a performance e o poder cerebral, prevenindo a decadência mental e combatendo demências. Habilidades tais como percepção, memória de curto e longo tempo, habilidades lógicas, verbais e visuoespaciais podem ser desenvolvidas com a ajuda das práticas neuroascéticas (Goldberg, 2001; Chafetz, 1992; Goldman, Klatz, Berger, 1991; Mark, Mark, 1991; Winter, Winter, 1987). Outros best-sellers, escritos geralmente por autores de autoajuda que descobriram o filão da neuroascese, vão muito mais longe nos resultados atingíveis com seus programas de autoajuda cerebral, apesar de afirmarem possuir embasamento científico. Eles prometem: identificar significados ocultos nas conversas das pessoas; absorver fatos como esponjas e reproduzi-los palavra por palavra anos depois; ler e compreender um livro em trinta minutos; ou gravar, na memória, fatos, imagens e até livros completos. Entre eles, os mais voltados para movimentos de New Age, e usando um vocabulário científico e um linguajar técnico, acreditam poder manipular o cérebro para atingir qualquer resultado desejável. Esses autores recorrem, com frequência, a simplificações ‘chulas’ da mecânica quântica para afirmar que a realidade é uma ilusão criada por nosso cérebro e que o “universo é a mente e a mente é o universo” (Spotts, Atkins, 1999, p.80). Os exercícios garantem promover estados alterados da consciência capazes de conectar o cérebro com as forças do universo e com uma inteligência superior, a Mente cósmica ou Divina. O que resulta surpreendente desses últimos best-sellers é que reproduzem todos os tópicos da literatura da autoajuda tradicional usando um vocabulário cientificista e coisificador. A partir da segunda metade da década de 1980, autores como Antonhy “Tony” Robbins recuperam o credo básico da tradição da clássica Self-Help americana, dos movimentos oitocentistas de New Thought, e da Christian Science (Fuller, 2001). Isto é, a ideia do poder da mente sobre a matéria, chamada doravante de Mind-Power e que pressupõe o poder do cérebro sobre a mente. Essa visão do self é retraduzida em uma linguagem pseudocientífica, como um self cibernético que pode ser reprogramado para obter a máxima performance pessoal (McGee, 2005). Já no início dos anos sessenta, o cirurgião plástico nova-iorquino Maxwell Maltz descobriu um filão ao vender o velho Mind-Power oitocentista com uma roupagem cibernética, dotando-o de legitimidade científica. O resultado, chamado de “programação neurolinguística” (neurolinguistic programming), propunha que crenças e desejos seriam uma espécie de software que pode ser instalado no hardware, o cérebro humano. A receita foi vendida, em 1960, como Psycho-Cybernetics, vendendo até a atualidade mais de trinta milhões de exemplares no mundo inteiro (McGee, 2005; Maltz, 1960). Mesmo autores como Shirley McLaine lançam mão de um vocabulário cientificista e, na busca de legitimidade, falam de forças, vibrações, eletromagnetismo, hemisférios cerebrais (Fuller, 2001; Green, 1992). “A novidade” da autoajuda cerebral, escreve Rüdiger (1995, p.120), “é o estágio avançado de reificação da subjetividade, que se transferiu dos mecanismos do subconsciente para as circunvoluções do córtex cerebral”. Todos os lugares comuns da autoajuda tradicional estão presentes numa roupagem cientificista e cerebralizada. Vale mencionar: a ênfase na criatividade que engendra a realidade; a ideia de um ‘eu interior’ que pode ser cultivado e promovido pela manipulação cerebral; a insistência na autonomia e autocontrole de nossos destinos e até da própria realidade, atingida agora com práticas neuroascéticas. A absoluta irredutibilidade da categoria de responsabilidade e autonomia individual, enfatizando controle e autodomínio, bem como a redutibilidade total da realidade aos desígnios do pensamento são também realçadas na autoajuda cerebral. Finalmente, a total obsolescência do outro, do ambiente social e cultural no eu cerebral construído pelas práticas neuroascéticas. Se na autoajuda tradicional era a mente o centro definidor do sujeito, e seu poder permitia mudar a vida, realizar nosso desejo e monitorar nosso desempenho, agora, o cérebro ocupa esse lugar reservado outrora à mente. O velho slogan “você é o que for sua mente”, aparece agora em uma versão cerebralizada: “você é o que for seu cérebro”. Um tópico importante da autoajuda tradicional, a ideia da mente dividida e em luta - em que uma parte é insubmissa e deve ser controlada, ou é subutilizada - remete à tradição do cérebro duplo de 253
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Arthur Wigan e outros, tal como descrita pela historiadora das neurociências Anne Harrington (1987). Na época pós-Broca, isto é, na época posterior à descoberta da localização da faculdade da linguagem no hemisfério esquerdo do cérebro pelo neurologista francês, Paul Broca, o hemisfério esquerdo era considerado superior, ao ser responsável pelas atividades intelectuais e civilizadas, predominando em homens, brancos e europeus. O direito, em contrapartida, preponderava em mulheres, criminosos, índios, negros, loucos e homossexuais (Harrington, 1987). Os best-sellers de autoajuda cerebral reproduzem e exploram o ‘boom’ do cérebro direito, que tem lugar a partir dos anos 60 (invertendo a tradicional valorização do hemisfério esquerdo), no contexto da contracultura e das pesquisas sobre o ‘cérebro dividido’ (split-brain) de Bogen, Gazzaniga e Sperry, entre outros (Harrington, 1987; Gazzaniga, 2005, 1985, 1973; Harris, 1985, 1980; Blakeslee, 1980; Bogen, 1977, 1973; Gazzaniga, Bogen, Sperry, 1962). Boa parte dos bestsellers de autoajuda cerebral embarca na esteira da reabilitação do hemisfério direito. Um marco importante nessa tendência é a publicação, em 1972, do clássico frequentemente citado The Psychology of consciousness de Robert Ornstein (1972). Nele, o racionalismo e tecnificismo da sociedade ocidental, com sua ênfase na lógica e na linguagem, patente no predomínio do hemisfério esquerdo, teria reprimido as tendências holísticas e místicas do direito, mais próximo do pensamento oriental6. O mercado de autoajuda é inundado por uma enxurrada de títulos ligando o hemisfério direito aos mais bizarros fenômenos, desde a tipificação de artistas, músicos, políticos e ditadores, segundo sua ‘orientação’ cerebral, até a sexualidade tântrica, a capacidade mediúnica e outras atividades paranormais próprias do cérebro direito (Capacchione, 2001; Spotts, Atkins, 1999; Wells, 1989; Ehrenwald, 1984). Especialmente na pedagogia aparece, desde finais dos anos 60, toda uma moda neuroeducativa que insiste nas inúmeras vantagens escolares do treinamento do cérebro direito, repudiando o sistema educativo tradicional baseado no hemisfério esquerdo (Herman, 1981; Edwards, 1979; Gainer, Gainer, 1977; Hunter, 1976). Os novos neuroeducadores propõem como solução um equilíbrio hemisférico no currículo que compense os excessos da educação baseada no hemisfério esquerdo com seus fracassos educativos: Os estudantes que não acham a escola muito empolgante talvez possuam uma orientação cerebral esquerda. Para eles, muitas tarefas para o cérebro esquerdo não fazem sentido. Existem evidências de que os pobres nas grandes cidades tendem a possuir uma orientação cerebral direita, enquanto que indivíduos de classe média são mais orientados para o hemisfério esquerdo. Se isso for verdade, explicaria por que muitos pobres nas cidades não têm sucesso nas escolas e por que consideram irrelevantes muitas tarefas exigidas na escola. (apud Ornstein, 1997, p.92)
Os educadores não aprenderam novos desenvolvimentos a partir da literatura primária, mas predominantemente de livros e revistas que popularizam esse conhecimento, simplificam e reconstroem muitos dos achados científicos, conduzindo a uma visão simplificada, tosca, e idealizada (Harris, 1985). No contexto de uma genealogia das práticas de si cerebrais, não se trata de separar o joio do trigo, as evidências científicas da charlatanice e das afirmações e propostas disparatadas, por mais importante que seja essa tarefa7. Mais relevante é mostrar como as práticas neuroascéticas reproduzem a lógica do sujeito cerebral e da autoajuda tradicional com uma roupagem cientificista. Ao nível das práticas de 254
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Em um livro de 1997, The Right Brain: Making sense of the Hemispheres, Ornstein faz uma certa mea-culpa ao se perguntar em relação aos estudos sobre o hemisfério direito: “Como é possível que as coisas escaparam do controle? Como é possível que todas essas pessoas tão bem intencionadas se afastaram tanto da evidência e inclusive do trabalho científico? Tudo começou com boas idéias, boas intenções e bons trabalhos” (Ornstein, 1997, p.88). 6
7 Os próprios usuários dos diversos programas de brain-fitness não parecem se preocupar pelo seu embasamento científico. “Surpreende-me que as pessoas não se preocupem mais com a ciência”, observa Torkel Klinberg, professor de neurociência cognitiva do Instituto Karolinska de Estocolmo, “que não perguntem, ‘onde está a evidência de que esses programas funcionam?’” (Lawton, 2008, p.29).
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si, muitos motivos são recuperados da tradição neuroeducativa da frenologia e da autoajuda tradicional do século XIX. É surpreendente constatar como os programas neuroascéticos dos best-sellers contemporâneos repetem recomendações sobre exercícios cerebrais e sobre a importância do exercício físico, da dieta equilibrada e do efeito de álcool, drogas e outras toxinas no cérebro de autores oitocentistas, tais como John Harvey Kellog, no seu First Book in Physiology and Hygiene (1887). Mas os contextos socioculturais e a finalidade das práticas são diferentes. No fim do século XIX, o cérebro ‘azeitado’ de Kellog remete a um contexto de debilitamento e deslegitimação das regras sociais e da ordem moral, no qual o corpo físico, social e político estava fora de controle, só recuperável pela vontade individual e pelas práticas bio - e neuroascéticas. A fitness cerebral destinava-se a recuperar a retidão moral e garantir a ordem sociomoral erodida pela perda da legitimidade da autoridade tradicional (Gunsfield, 1992). Hoje, em contrapartida, o sujeito cerebral não pretende restaurar ou legitimar formas tradicionais de autoridade, e sim, inserir-se nas demandas da maximização da performance corporal da cultura somática na govermentalidade neoliberal. No entanto, mesmo existindo descontinuidades nos contextos socioculturais e nos objetivos dessas práticas, no nível das práticas de si, isto é, da (neuro)ascese, existem assombrosas semelhanças. Trata-se dos mesmos exercícios, da mesma dietética cerebral, de maneiras semelhantes de potencializar a performance cerebral, embora com finalidades diversas. Em ambos os casos, as práticas neuroascéticas redundam na formação de ‘selves objetivos’. Para não cair em anacronismos e postular uma continuidade direta (o que, sem dúvida, seria ingênuo), é necessário, no entanto, guardar a devida distância entre os dois momentos históricos e levar em consideração diferentes fatores na formação de ‘selves objetivos’, a partir da segunda metade do século XX, que não existiam na época da frenologia e dos movimentos de Self-Help e de New Thought, tais como: o papel desempenhado pela mídia, as tecnologias de visualização médica, a indústria de psicofármacos, entre outros (Rose, 2007; Ehrenberg, 2004; Healy, 2002).
Ginástica cerebral na cultura somática A genealogia da neuroascese permite constatar também como os discursos e práticas dos bestsellers de fitness cerebral repetem as metáforas e os discursos da fitness corporal predominantes na cultura somática da biossociabilidade. Já a própria ideia de ‘fitness cerebral’ ou ‘neuróbica’, presente no título da maioria desses livros (Cohen, Goldsmith, 2002; Eiffert, 1999; Dennison, Dennison, 1994, 1989; Goldman, Klatz, Berger, 1991; Mark, Mark, 1991; Winter, Winter, 1987), remete a essa analogia. Assim, “da mesma maneira que o levantamento de peso na academia ou a corrida fortalecem um determinado grupo de músculos, os exercícios mentais parecem fortalecer e aprimorar as funções cognitivas por longo tempo” (Tannen, 2005). Os diversos livros e programas falam de “academia cerebral” (Brain Gym)” e de “levantamento de peso mental” (mental weight lifting), (CBS, 2006). Os “músculos cerebrais” (Goldberg, 2001, p.255) devem ser treinados sem excesso para não causar “câimbras cerebrais” (brain cramps) (Chafetz, 1992, p.72). Os livros nos ensinam alguns “alongamentos cerebrais” (brain stretches) que “queimam algumas calorias sinápticas” (synaptic calories) para não nos tornarmos “batatas de sofá mentais” (mental couch potatoes) (Parlette, 1997, p.16), apesar de podermos usufruir da TV, verdadeiro “chiclete para o cérebro” (bubble gum for the brain) (Parlette, 1997, p.152-3). Diversos autores distinguem entre diferentes níveis de façanhas cerebrais, pois “você não precisa atingir o equivalente cerebral do nível de fitness física de Steffi Graf ou de Michael Jordan para ser mais rápido na conversa, melhor na resolução de problemas, possuir lembranças mais ricas e associações mais vivas” (Chafetz, 1992, p.23). Outros insistem em planejar um programa de treinamento cerebral sistemático, “para aqueles que desejam exercitar o cérebro sistematicamente como um atleta exercitaria vários grupos musculares” (Goldberg, 2001, p.252-3; Chafetz, 1992, p.213). Esse treinamento deve permitir que os diversos músculos cerebrais sejam exercitados alternadamente e de modo equilibrado. Para tanto, é importante ter um “marathon trainer” e manter “diários de malhação cerebral” (brain workout diaries) (Chafetz, 1992, p.213-4). Goldberg reconhece que a neuroascese “é uma extensão natural e lógica do exercício físico. A ‘aptidão ou boa forma física’ tornou-se um termo caseiro. A “aptidão ou boa forma cognitiva está a caminho de tornar-se a próxima tendência na cultura popular” (Goldberg, 2001, p.253). O sujeito cerebral transpôs o vocabulário da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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fitness corporal para o cérebro. Na cultura somática, fitness corporal e cerebral andam lado a lado. Na autoajuda cerebral os principais motivos da autoajuda tradicional aparecem em nova roupagem cientificista, temperados com o jargão da cultura somática e das academias de ginástica.
Conclusão: sujeito cerebral, neuroascese e govermentalidade neoliberal É importante frisar que não podemos reduzir o surgimento e popularização das práticas de neuroascese descritas neste texto aos avanços dos conhecimentos neurofisiológicos, especialmente da plasticidade cerebral. Fazendo assim, negligenciamos o papel da ontologia do sujeito cerebral e da neurossociabilidade - e da cultura somática da biossociabilidade, em um sentido mais amplo. O sujeito cerebral implica formas de subjetivação, isto é, relações consigo e com os outros enquanto sujeitos cerebrais. Este fato remete a visões reducionistas e empobrecidas da vida subjetiva e relacional, segundo as quais o cérebro responde por tudo o que outrora costumávamos atribuir ao indivíduo, ao ambiente e à sociedade, com consequências severas em diversas esferas socioculturais e clínicas. Entre elas, o perigo das políticas identitárias reducionistas e as explicações da depressão e de outros transtornos e doenças mentais em termos exclusivamente cerebrais, fornecidas pela psiquiatria biológica aliada à indústria farmacêutica, ignorando-se os fatores ambientais e sociais. É preciso saber se queremos pagar esse preço. A autoajuda cerebral deve ser inserida no contexto da genealogia da autoajuda, como foi sublinhado no texto. Trata-se de tecnologias de governamentalidade, de autogoverno. Na governamentalidade neoliberal, cada indivíduo é um empresário que deve administrar sua própria vida (Dean, 1999). Trata-se de uma forma de governo que demanda uma cidadania ativa e indivíduos capazes de monitorar e controlar a si mesmos. O sujeito autônomo, responsável e gestor dos próprios riscos, deve se adaptar e aprimorar suas capacidades e habilidades para atingir as demandas de um mercado cada vez mais competitivo. Nesse contexto, medidas neuroeducativas, aprimoramento cognitivo e outros tipos de práticas neuroascéticas se tornam moeda corrente, atingindo um caráter de quase obrigatoriedade numa sociedade que favorece selves ativos e emprendedores. A autoajuda cerebral se torna uma oferta e uma obrigação para o bem individual e da comunidade. Ela contribui na produção de cidadãos capazes e responsáveis por governar a si mesmo e aos outros. Ao mesmo tempo, práticas neuroascéticas contribuem para colocar essas subjetividades normativas no centro da sociedade neoliberal, permitindo ao estado e a outros atores governarem a distância e governarem mediante a liberdade dos indivíduos (Maasen et al., 2007). Se, segundo Foucault, todo dispositivo de saber-poder é um mecanismo de assujeitamento, mas, ao mesmo tempo, abre possibilidades da resistência, cabe a nós apostarmos em alternativas para esta ideologia simplificadora da vida subjetiva e relacional que não sejam epifenômenos do sujeito cerebral.
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ORTEGA, F. Neurociencias, neuro-cultura y auto-ayuda cerebral. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.247-60, out./dez. 2009. Este artículo pretende analizar el fenómeno denominado neuro-ascesis o auto-ayuda cerebral en el contexto del creciente impacto de las neurociencias y del aparecimiento de la neuro-cultura y del sujeto creberal. Para tanto, es importante comprender el ámbito socio-cultural más amplio en el que la neuro-ascesis se inserta y que corresponde a lo que se viene llamando “cultura somática” o, más específicamente, bio-sociabilidad. El objeto del artículo es el de explorar como una forma de subjetividad reduccionista, el sujeto cerebral, da lugar a la aparición de prácticas de sí cerebrales; esto es, prácticas de como actuar sobre el cerebro para maximizar su actuación, que llevan a la formación de nuevas formas de sociabilidad.
Palabras clave: Neurociencias. Sujeto cerebral. Neuro-cultura. Auto-ayuda cerebral. Recebido em 25/09/08. Aprovado em 13/05/09.
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Currículos disciplinares na área de saúde: ensaio sobre saber e poder*
Verônica Santos Albuquerque1 Rodrigo Siqueira Batista2 Suzelaine Tanji3 Edneia Tayt-Sohn Martuchelli Moço4
ALBUQUERQUE, V.S. et al. Discipline curricula in the health area: an essay on knowledge and power. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.261-72, out./dez. 2009.
The present paper provides a historical review regarding knowledge and power construction, taking disciplinary organization as the basis for the discussion about the confinement of knowledge to disciplines in health professionals’ education, and its consequences to the ways of delivering healthcare. Interdisciplinarity, transdisciplinarity and complex thought are proposed as theoretical principles to overcome the disciplinary logic.
O presente artigo traz uma revisão histórica sobre a construção do conhecimento e do poder a partir da organização disciplinar como base para a discussão do confinamento do saber em disciplinas na formação dos profissionais de saúde e suas consequências nos modos de produzir atenção à saúde. Ato contínuo, propõe a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade e o pensamento complexo como referenciais teóricos para ultrapassagem da lógica disciplinar.
Keywords: Interdisciplinarity. Transdisciplinarity. Complexity. Curriculum. Health personnel. Knowledge.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Transdisciplinaridade. Complexidade. Currículo. Profissionais de saúde. Conhecimento.
Artigo original, com base ensaio em puramente teórico, sem qualquer envolvimento de dados gerados a partir de pesquisa com seres humanos. Por isso, não foi submetido a parecer de Comitê de Ética em Pesquisa. 1 Curso de graduação em Enfermagem, Centro Universitário Serra dos Órgãos (UNIFESO). Avenida Alberto Torres, 111/5º andar, Alto, Teresópolis, RJ, Brasil. 25.964-004 veronicatere@gmail.com 2 Curso de graduação em Medicina, UNIFESO. 3 Curso de graduação em Enfermagem, UNIFESO. 4 Centro de Ciências da Saúde, UNIFESO. *
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Considerações iniciais A formação superior dos profissionais de saúde foi, de modo geral, historicamente construída sobre a fragmentação de conteúdos e organizada em torno de relações de poder, as quais conferiram ao professor especialista uma posição de centralidade no processo de ensino-aprendizagem. Essa construção - entre outros aspectos, tais como o enfoque privilegiado nos determinantes biológicos, na doença e no trabalho hospitalar - vinculou-se à excessiva especialização e ao distanciamento dos conteúdos curriculares necessários à formação de um profissional de saúde com perfil capaz de responder às necessidades da população (Feuerwerker, 2002). Tal dificuldade relaciona-se com o perfil dos egressos, fruto de uma formação que, por um longo tempo, privilegiou a especialização, o uso intensivo de tecnologia e os procedimentos de alto custo, enquanto acumulavam-se as necessidades básicas de saúde de grande parte da população brasileira. Neste âmbito, abordagens que se referem à ética, à humanização e ao cuidado são colocadas em segundo plano (Rêgo et al., 2007). Estas questões se intensificaram ainda mais nas últimas décadas, justificando o esforço do Ministério da Saúde no sentido de reorganizar a atenção à saúde - na lógica da integralidade do cuidado -, o qual tem sido obstaculizado pela precária disponibilidade de profissionais com formação generalista, dotados de visão humanística e preparados para prestar cuidados contínuos e resolutivos às pessoas (Brasil, 2005). Dentre os inúmeros fatores que contribuem para o descompasso entre a formação em saúde e as necessidades de saúde brasileiras, surgem três aspectos cruciais: (1) A falta de integração entre o ensino básico e o profissionalizante, (2) a formação de profissionais cada vez mais especializados e despreparados para uma atenção generalista, e (3) o ensino fragmentado em inúmeras disciplinas, que tantas vezes induz precocemente à formação profissional especializada (Rodrigues, Reis, 2002). Frente a esse cenário, experiências transformadoras, desenvolvidas em algumas instituições de Ensino Superior brasileiras, vislumbram a formação do profissional de saúde capaz de prestar cuidado integral a indivíduos e coletividades, entendido como aquele que considera a capacidade de escuta, acolhimento, construção de vínculos e responsabilização (Pinheiro, Mattos, 2006). As novas maneiras de organizar a prestação de serviços e formação em saúde precisam levar em conta as necessidades dos usuários. Assim, a compreensão do ser humano e do processo saúde-doença passa necessariamente por uma abordagem interdisciplinar - e, mesmo, transdisciplinar - na construção dos conhecimentos. Essa abordagem interdisciplinar implica a ultrapassagem das fronteiras entre as disciplinas - espaços de confinamento por excelência - e a articulação dos processos de ensino-aprendizagem ao trabalho e à pesquisa. Com efeito, várias são as estratégias adotadas pelos cursos de graduação na área da saúde que optaram por transformar seus currículos, cabendo mencionar: (1) A ruptura com as “grades” disciplinares, (2) a opção por estruturas modulares integradas, (3) o desenvolvimento de atividades transversais, e (4) as experiências de práticas interdisciplinares, dentre outras (Albuquerque et al., 2007; Rezende et al., 2006; Dellaroza, Vanucchi, 2005; Lima, Komatsu, Padilha, 2003; Feuerwerker, 2003). Considerando essas experiências, surge a necessidade de se refletir sobre a lógica da organização disciplinar dos currículos para as graduações na área da saúde, como modo de criticá-la e transpô-la, na perspectiva de se desenharem novos sentidos para a formação. Tal é a proposta do presente ensaio, organizado em torno da reflexão histórico-conceitual acerca da disciplina - delimitando-se, especialmente, seu emprego em termos educacionais na formação do trabalhador de saúde -, bem como das possibilidades de superação de sua lógica na formação em saúde.
A histórica construção do conhecimento e do poder a partir da organização disciplinar O vocábulo ‘disciplina’ tem díspares acepções possíveis. De fato, de acordo com Houaiss (2001, p.653), pode ser definida como: (1) ensino e educação que um discípulo recebia do mestre; (2) obediência às regras e aos superiores; (3) regulamento sobre a conduta dos diversos membros de uma coletividade, imposto ou aceito democraticamente, que tem por finalidade o bem-estar dos membros e o
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bom andamento dos trabalhos; (4) ordem, bom comportamento; (5) obediência a regras de cunho interior; firmeza, constância; (6) castigo, penitência, mortificação; (7) ramo do conhecimento; ciência, matéria.
Ainda que o sentido apresentado no item “7” seja aquele usualmente empregado nas discussões de cunho educacional, as conotações expostas nos itens “3” e “4” têm particular importância ao se reconhecer a disciplina como um modo segundo o qual se organiza a sociedade. De fato, em concordância com Foucault e Deleuze, a constituição de uma sociedade disciplinar é sucessora das sociedades de soberania, instituída após Napoleão ter “operado” a grande conversão de uma a outra (Deleuze, 1992). A emergência da sociedade disciplinar diz respeito à própria evolução do capitalismo, estando em profunda interseção com os modos de produção estabelecidos no período ulterior à Revolução Industrial, a qual é marcada pela organização em termos de espaços de confinamento - cujo projeto ideal pode ser reconhecido na fábrica (Siqueira-Batista, 2007): concentrar, distribuir no espaço, ordenar no tempo, compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares -, nos quais a disciplina é exercida de forma institucionalizada, em espaços fechados, havendo necessidade de se passar de um para o outro ao longo da vida: O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. (Deleuze, 1992, p.219)
A organização da sociedade disciplinar articula-se ao entendimento de que o sujeito, ao longo de sua vida e sua história, encontra-se submetido a espaços de confinamento, sendo alvo de discursos institucionalizados, sobretudo por meio da educação formal, a qual se constitui como normalizadora e homogeneizadora por excelência, onde a disciplina faz sustentar um tipo específico de conduta esperado pela sociedade por intermédio da organização de sua rotina e do estabelecimento de relações hierárquicas. Com efeito, os confinamentos são moldes, nos quais se estabelecem relações de poder em diferentes domínios (Siqueira-Batista, Siqueira-Batista, 2009). De fato, Foucault reconhece que o poder sobre a vida nas sociedades modernas se estabelece em dois polos - anátomo-política do corpo e biopolítica das populações -, os quais são interconectados por múltiplas redes de relações (Foucault, 1977). A anátomo-política do corpo diz respeito ao desvendamento e produção de discursos e práticas sobre o corpo humano - abordado como máquina a ser otimizada, disciplinada em sua docilidade e produtividade - ao passo que a biopolítica das populações é dirigida aos elementos biológicos e sociais, tais como reprodução, nascimento e morte. Ambas as dimensões - o indivíduo (anátomo-política do corpo) e a massa (biopolítica das populações) - são dispositivos, compatíveis entre si, da organização disciplinar. Esses ordenamentos foram bastante propícios ao desenvolvimento da especialização de caráter disciplinar em concordância com o desenvolvimento da ciência e da técnica experimentados a partir do século XIX. Tal enfoque disciplinar - como fruto típico do racionalismo científico -, dividiu a universidade em três grandes áreas - a tecnológica, a biológica e a humana - as quais, por sua vez, se estilhaçaram em dezenas de sub-ramos e especializações. Sobre esse aspecto, Crema (1993) chama a atenção para o desenvolvimento do método analítico de Descartes na superação do paradigma escolástico aristotélicotomista medieval da época: Para aquele momento, o resgate da razão e da objetividade científica foi saudável e as especializações foram criadas na tentativa de acompanhar o acúmulo crescente do saber-efazer humano, que acabaram por sepultar o ‘homem pluriapto’ ou ‘homem total’. Assim, nos últimos quatro séculos, passou-se à especialização das mentes. Surgiram os ‘experts nas partes’, os ‘videntes do mínimo’, que no início cumpriram uma função sócio-cultural necessária e fundamental. Mais tarde, entretanto, o movimento passou a ocorrer por puro
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condicionamento dissociativo. Ser especialista adquiriu status, mas a desconexão cada vez maior da visão global, tornou-o um sofisticado ‘prisioneiro das frações’. (Crema, 1993, p.138)
Com efeito, se, no campo epistemológico, a disciplina se caracteriza por cada um dos ramos (especializações) do conhecimento, no domínio pedagógico o termo disciplina indica as atividades de ensino ou o ensino de uma área do conhecimento, instaurando a ênfase em informações isoladas que passam a valer por elas mesmas, e não por sua capacidade de ajudar o homem a compreender o mundo, sua realidade e a posicionar-se diante de seus problemas vitais e sociais (Luck, 2001). Com base nas presentes considerações, pode-se inferir que o campo das relações entre poder e organização disciplinar da construção do conhecimento apresenta muitas variáveis. Tantas são elas e de tal força que a proposta de ultrapassar as disciplinas demanda uma profunda reflexão social, histórica e coletiva, de maneira a sair do contexto da escola para o contexto da vida, da forma como os sujeitos se relacionam e de como este modo de operar pode ser (re)contextualizado.
Estrutura disciplinar, fragmentação do saber e especialização na formação em saúde Uma vez realizada a reflexão sobre as concepções de ‘disciplina’ e a relação entre organização educacional, hierarquia e poder, torna-se factível analisar a estrutura dos currículos formadores de profissionais da saúde, majoritariamente, baseados em grades disciplinares. A formação superior dos profissionais de saúde, parte integrante do sistema educacional brasileiro, tem sua inspiração no modelo industrial, que, segundo Mosé (2008), é como uma linha de montagem de uma fábrica: as diversas disciplinas, sem conexão umas com as outras, são partes de um mundo que está distante do estudante. Assim, a vida e o contexto ficam afastados dos espaços formadores, que mais parecem um presídio de alunos. Com esta configuração, a educação é essencialmente passiva, fundada no acúmulo de dados e os espaços de formação que, além de isolados do mundo e da vida, nomeiam de “grade” o currículo e de “disciplina” os conteúdos. A maior parte dos currículos dos cursos de graduação na área da saúde se organiza, ainda hoje, em uma estrutura disciplinar, na qual os ciclos básicos e profissionais são completamente separados. As disciplinas são fragmentadas e estanques e, geralmente, incapazes de aproveitar as referências correlatas entre algumas delas. Nestes termos, as disciplinas são pensadas nos planos dos saberes e dos conteúdos. Assim, os currículos por disciplinas ordenam as ações dos corpos - onde se deve estar, fazendo o quê, em que momento, com quem - tornando o mundo uma disciplinar ‘colcha de retalhos’ (Veiga Neto, 2002). Outro fenômeno de grande importância nesta análise diz respeito à atribuição de valor às diferentes disciplinas. Em geral, as disciplinas que lidam com os aspectos biológicos e com as intervenções no corpo, mediadas por procedimentos, são espaços que recebem maior investimento por parte da comunidade acadêmica. Pouca atenção está voltada àquelas que propõem reflexões e ações no campo da ética, das humanidades, do ambiente, das relações interpessoais, intrapsíquicas e das interações sociais. Assim sendo, a seleção e o modo de operar os conteúdos, calcados nas disciplinas, explicam por que os profissionais de saúde, uma vez formados, (1) direcionam sua prática às especializações, (2) dedicam mais atenção aos problemas de saúde individuais do que aos coletivos, e (3) deixam em segundo plano os fatores psíquicos, afetivos, históricos, culturais e ecológicos do adoecer humano, muitas vezes negando-os como elementos centrais na construção das alternativas de cuidado (Siqueira-Batista et al., 2009; Saippa-Oliveira, Koifman, Pinheiro, 2006). Nesse cenário o que se observa é que cada disciplina confina seus saberes e compartimentaliza os conteúdos, impossibilitando, na maioria vezes, o exercício da conexão entre os conhecimentos por parte do profissional de saúde em formação. Isso impacta no perfil do profissional, que se constrói naturalmente a partir de um paradigma reducionista e fragmentado. Implica, certamente, a conformação da sua visão do mundo e as suas práticas de atenção à saúde das pessoas. Saippa-Oliveira, Koifman e Pinheiro (2006) concordam que as disciplinas pensadas de modo compartimentalizado conferem caráter unidimensional aos conhecimentos, criando uma visão reduzida e recortada de determinada temática. 264
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Esse modelo linear, cuja organização prevê o domínio de cada disciplina como requisito para estudantes e professores - e também como conjunto de rituais, rotinas e linguagens criado entre estes atores -, contribui decisivamente para a definição e legitimação daquilo que é considerado saber autêntico e aceitável. Dessa forma, as disciplinas tornam-se as principais maneiras de se analisar e intervir na realidade. Em geral, poucos são os estudantes que conseguem vislumbrar algo que permita unir ou integrar os conteúdos ou os trabalhos das diferentes disciplinas, uma vez que estas se apresentam claramente separadas umas das outras, fragmentando e isolando os conteúdos. O conhecimento tão somente acadêmico e informativo é priorizado, permitindo que os saberes surjam de modo descontextualizado e aparentemente desprovido de qualquer ideologia (Santomé, 1998). Essa compartimentalização - a qual entende os campos de conhecimento como dimensão desconectada das realidades de saúde da população -, impacta na relação da universidade com a sociedade, como aponta Santos (1997) ao dizer que a universidade não poderá promover a criação de comunidades interpretativas na sociedade se não as souber criar no seu interior, entre docentes, estudantes e funcionários. Para isso é preciso impor, às barreiras disciplinares e organizativas, uma pressão constante, buscando, no fundo, subvertê-las. Contrariando essa ideia de confinamento disciplinar dos saberes, a segunda metade do século XX e o alvorecer do século XXI têm mostrado que o conhecimento deve receber tratamento multidimensional, ao se reconhecer a complexidade da sociedade contemporânea e a existência de diferentes valores, presentes nas questões humanas, científicas e sociais. A relação mais estreita entre os conteúdos que são trabalhados nos currículos e as necessidades dos estudantes é desejada, de maneira que possam ser empregadas em diferentes contextos e situações profissionais cotidianas. Na atualidade, reitera-se, com intensidade, a posição central ocupada pela disciplinaridade, tornando necessária a construção de processos mediatizados pela subjetivação, em um novo formato, que considere a abertura da academia aos movimentos de passagem de uma estrutura disciplinar para alternativas mais abertas, matizadas pela flexibilização e pela rediscussão das relações de poder, as quais permitam repensar a formação de profissionais para atuar, de modo mais fecundo, no tempo e no espaço vigentes (Veiga Neto, 2005).
Ultrapassagem da lógica disciplinar na formação em saúde: interseções e resistência Como visto anteriormente, a organização disciplinar na formação em saúde apresenta os conhecimentos fragmentados e fora de contexto, induz a uma formação reducionista, recortada e procedimento-centrada dos profissionais de saúde, além de favorecer o pensamento unidimensional. Com base nesses aspectos, optou-se por refletir sobre a ultrapassagem da lógica disciplinar com base em dois referenciais: (1) a inter/trans/metadisciplinaridade e (2) a complexidade.
Interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e metadisciplinaridade Os termos interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são extremamente polissêmicos. Para delimitar-se melhor tais elementos, cabe distingui-los entre si - e também em relação à multidisciplinaridade: [...] a abordagem multidisciplinar é o olhar de várias disciplinas específicas sobre um mesmo problema, isto é, pontos de vista diferentes que produzem objetos teóricos diferentes. A interdisciplinaridade é a utilização de vários pontos de vista, mas com a finalidade cooperativa de construir um objeto teórico comum. Por fim, a transdisciplinaridade é o atravessamento das fronteiras disciplinares, consideradas limitadas para dar conta do problema. (Schramm, 2002, p.38)
Com efeito, a interdisciplinaridade se dispõe como configuração de modos de trabalhar com encontros, diálogos e conexões entre os saberes (Pombo, 2005). Assim, a discussão de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.261-72, out./dez. 2009
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interdisciplinaridade no campo de formação em saúde exige um referencial mais próximo à ideia de atitude, como apresenta Fazenda (2003): atitude de buscar alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de reciprocidade que impele à troca, ao diálogo com pares idênticos, com pares distintos ou consigo mesmo; atitude de humildade diante da limitação do próprio saber; atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvelar novos saberes; atitude de desafio diante do novo; atitude de responsabilidade, envolvimento e comprometimento com os projetos e as pessoas. Considerando a compreensão proposta para interdisciplinaridade, a ultrapassagem da lógica disciplinar de estruturação curricular - que passa a integrar não só os conteúdos das diversas áreas do saber, mas, também, os diferentes profissionais da saúde -, se entrelaça às discussões sobre as práticas e os “atos” corporativos: Vive-se um momento histórico em que as corporações das profissões da saúde empreendem um movimento conservador em relação às suas competências específicas. No entanto, a interdisciplinaridade exige um debate sério e honesto, sobretudo quando se parte do princípio da integralidade como eixo nuclear nas mudanças na formação e nos modelos de atenção à saúde. Embora a experiência de ultrapassar o modelo disciplinar traga conflito e desconforto, ao desestabilizar dispositivos de segurança e relações de poder, possibilita a recondução ao prazer da descoberta, a ampliação da visão de mundo e novas possibilidades de atuação, tanto na esfera do ensino, quanto do trabalho em saúde. Esse movimento de tornar cada vez mais tênues as fronteiras entre as disciplinas faz emergir conceitos, como o de transdisciplinaridade. Japiassu (2006, p.13) apresenta esse conceito como “a abordagem científica, cultural, espiritual e social dizendo respeito ao que está entre as disciplinas, através das disciplinas e além de toda disciplina”. A atitude transdisciplinar apresenta-se no grau máximo de relações na integração de disciplinas, que permitem a interconexão dos conteúdos no sentido de auxiliar na unificação dos conhecimentos e compreensão da realidade. Essa atitude “transgride a dualidade que se opõe ao binário simplificador e é capaz de articular sujeito/objeto, subjetividade/objetividade, matéria/consciência, simplicidade/ complexidade, unidade/diversidade ou masculino/feminino” (Moraes, 2004, p.215). A transdisciplinaridade torna-se, pois, uma resposta adequada à globalidade, à contextualização e à necessidade de resposta a problemas complexos e fundamentais da existência: Donde a necessidade e a urgência, nos dias de hoje, para uma reforma do pensamento e da educação, não somente de procurarmos integrar e religar as diversas disciplinas de nosso saber em quadros de pensamento suscetíveis de corresponder aos grandes problemas que nos colocamos e que nos desafiam, mas de valorizarmos os conhecimentos multi e interdisciplinares e promovermos o desenvolvimento no ensino e na pesquisa, de um espírito ou mentalidade propriamente transdisciplinar. Porque num mundo em que ninguém parece entender ninguém, torna-se imprescindível que abandonemos a rotinização e as falsas seguranças de que ainda se vangloriam nossas disciplinas isoladas e nos entreguemos ao sonho da aventura transdisciplinar apresentando-se como um meio de compensar as lacunas do pensamento científico mutilado pela especialização e exigindo a restauração de um pensamento globalizante em busca da unidade, por mais utópica que possa parecer. (Japiassu, 2006, p.17)
Cabe ressaltar que a proposta inter/transdisciplinar não significa negar cegamente as disciplinas, nem ser contrário às especializações. Nesse sentido, Crema (1993, p.140) propõe uma reflexão sobre a transdisciplinaridade como uma “abertura do especialista ao todo que o envolve e à dialogicidade com outras formas de conhecimento e visões do real, visando a complementaridade”. Postula-se a motivação e a disponibilidade para o desafio da convivência com a diversidade e do trabalho em equipe. A proposta é transmutar o especialista fechado na especialidade, transformá-lo num construtor de pontes, consciente da dinâmica do ‘todo’ e das ‘partes’, que seja capaz, além de fracionar, de vincular e de restaurar. Nestes termos, a transdisciplinaridade “nasce e é construída da necessidade, interna ao desenvolvimento científico, de religação dos saberes, sem o que se torna impossível conhecer e entender os fenômenos que se revelam campos complexos, de múltiplos fatores e interações” (Severino, 2002, p.29). 266
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Em recente estudo, Zaballa acrescenta ao debate o conceito de metadisciplinaridade, o qual tem como ponto de apoio a superação da visão disciplinar. Nessa proposição, as disciplinas não são, em nenhum momento, o objeto de estudo, mas instrumentos ou meios para se alcançarem objetivos pretendidos. Na universidade, a metadisciplina deve ser entendida como “a ação de se aproximar dos objetos de estudo a partir de uma ótica global que tenta reconhecer sua essência e na qual as disciplinas não são o ponto de partida, mas sim o meio que dispomos para conhecer uma realidade que é global e holística” (Zaballa, 2002, p.34). De um modo prático, podemos vivenciar essa transposição da lógica disciplinar por meio de currículos que operem com módulos integrados com o processo de trabalho e a construção de cidadania do profissional de saúde em formação (Albuquerque et al., 2008; Rôças, Monteiro, Siqueira-Batista, 2008). Outra proposta apresentada por Etges (2004) encontra, na pesquisa, um caminho para a interdisciplinaridade desejada: professores de determinada especialidade devem trabalhar diretamente com outros professores de outro ramo do saber. Esse trânsito deve ser permitido para grandes projetos de pesquisa. A formação de redes põe todos os pesquisadores em condições de igualdade, entendendo-se que um dos princípios fundamentais de organização deverá ser a liberdade. Portanto, a estrutura departamental, burocrática e basicamente autoritária por estrutura, deverá ser necessariamente abolida. A formação dos graduandos se dará por meio de projetos interdisciplinares. Sua formação será rigorosa, mas não bitolada para uma única atividade profissional, característica de uma fase do capitalismo que já passou. Na atualidade, a departamentalização e a organização disciplinar não dão conta da formação profissional adequada nem para o mundo, nem para a trajetória de vida dos indivíduos. A interdisciplinaridade aponta saídas viáveis e extremamente fecundas para uma universidade composta por pessoas livres, capazes de atuar como sujeitos perante o saber que constroem, como sujeitos capazes de comunicar esse saber de forma que sua responsabilidade perante a sociedade esteja sempre presente e atuante (Etges, 2004). Esse processo de mudança na formação traz elementos de contraposição à visão irreal de fragmentação dos saberes apresentados nos currículos disciplinares. Para Behrens (2006), a visão globalizadora exige um pensamento complexo para produzir conhecimento crítico, transformador, significativo e relevante. É nesse ponto que o paradigma da complexidade fundamenta a proposta de ruptura com o modelo de ensino-aprendizagem por disciplinas, como apresentar-se-á a seguir.
Complexidade As especializações disciplinares apresentam progressos dispersos, fragmentando os contextos, as globalidades e as complexidades (Morin, 1991). Nessa perspectiva, cada dimensão do humano e do planeta é separada e encerrada nos vários departamentos das ciências. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento das responsabilidades (já que cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa específica) e da solidariedade (os vínculos entre os cidadãos são recalcados). A especialização extrai um objeto do seu contexto, rejeita os laços e suas intercomunicações com o meio e sua característica de multidimensionalidade. Tendo em vista tais pressupostos, a fim de trazer o referencial da complexidade para o debate na formação em saúde, é mister relacioná-lo com a produção de conhecimento na sociedade moderna: O paradigma da ciência moderna, assentado na razão, na divisão/análise e na máxima “conhecer para controlar” reduziu os problemas e suas respostas a modelos para a ação transformadora sobre a natureza e controladora da sociedade, produzindo conhecimentos disciplinares e com alto nível de especialização. Separar e reduzir têm sido máximas do paradigma moderno. Entretanto, natureza e sociedade nunca deixaram de ser complexas e o mundo atual é a expressão dessa complexidade – os problemas que nos apresentam são multidimensionais e as contradições se avolumam. O ser humano – alienado por suas próprias mãos – da natureza, passou a ameaçá-la de forma perigosa para sua própria espécie e todas as outras. Os laços de solidariedade humana se fragilizam, desfazem e contradições irredutíveis emergem no cotidiano natural e social. (Baumgarten, 2006, p.16) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.261-72, out./dez. 2009
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Rever essa forma de produção do conhecimento e de cuidado consigo, com o outro e com a natureza deve ser o pressuposto máximo das mudanças curriculares na saúde. Nesse contexto, deslocarse para além da lógica disciplinar é apenas um movimento coerente com a proposta de desenvolvimento em termos de complexidade do saber-fazer em saúde (Siqueira-Batista, Aleksandrowicz, 2006; Tarride, 1998). Para tal, utilizamos o referencial do pensamento complexo que, segundo Morin, Ciurana e Motta (2007, p.52), aborda um problema lógico e geral: “A complexidade diz respeito não apenas à ciência, mas também à sociedade, à ética e à política”. A complexidade, confrontada com a mera simplificação - a qual esta não exclui, mas reposiciona - é um pensamento que postula a dialogicidade, a recursividade, a hologramaticidade (pressuposto que implica um elemento básico de um conjunto que pode conter quase a totalidade da informação sobre um fenômeno maior) e a holoscópica como seus princípios mais pertinentes. Trata-se de um espaço mental no qual não se obstaculiza, mas se revela e se desvela a incerteza. E isso porque o pensamento complexo conhece os limites epistemológicos introduzidos pela ciência contemporânea. O pensamento complexo reconhece, então, que o movimento e a imprecisão são mais potentes do que um pensamento que os exclui e os desconsidera (Morin, Ciurana, Motta, 2007; Vasconcelos, 2002). A complexidade não pressupõe um pensamento completo - esta não pode sê-lo, porque é um pensamento multidimensional e que articula. A ambiguidade do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os domínios disciplinares fraturados pelo pensamento desagregador (Morin, Ciurana, Motta, 2007). No domínio do pensamento complexo reconhece-se a existência de dois tipos de ignorância: aquela que não sabe e quer aprender, e aquela (mais perigosa) que acredita que o conhecimento é um processo linear, cumulativo, que avança trazendo a luz ali onde antes havia escuridão, desconsiderando que toda luz também produz sombras como efeito. Por isso, é preciso partir da extinção das falsas clarezas. Não podemos partir metodicamente para o conhecimento impulsionados pela confiança no claro e distinto, mas, pelo contrário, temos de aprender a caminhar na escuridão e na incerteza (Morin, Ciurana, Motta, 2007). A complexidade, evidentemente, não despreza o simples, mas critica a simplificação. Nesse sentido, a complexidade não é a simplificação colocada às avessas, nem a eliminação do simples. Diferentemente dos pensamentos simplificadores, que partem de um ponto inicial e conduzem a um ponto terminal, o pensamento daquilo que é complexo é um pensamento rotativo, espiral (Morin, Ciurana, Motta, 2007). A partir desta breve contextualização das características do pensamento complexo, é possível encontrar coerência com a proposta de formar profissionais de saúde com base na construção de conhecimentos e práticas que integrem as dimensões biológica, psíquica, social e ecológica da vida, da mente, da sociedade e do ambiente, incluindo o desenvolvimento do que Capra (2002, p.13) chama de “uma maneira coerente e sistêmica de encarar algumas das questões mais críticas da nossa época”. Nestes termos, uma organização curricular que se disponha a ultrapassar o “cárcere” disciplinar pode ser uma proposta contra-hegemônica àquelas orientadas por uma visão maximizadora de recursos e restritiva do ponto de vista da cidadania, da integralidade e da equidade que o trabalho em saúde pode produzir (Saippa-Oliveira, Koiffman, 2004). A partir desse ponto de vista, é factível avançar na perspectiva de ultrapassar o confinamento disciplinar e apostar em desenhos curriculares para a área da saúde, alicerçados na inter/transdisciplinaridade e no pensamento complexo.
Considerações finais A disciplina está em crise - anúncio vociferado por Foucault e Deleuze -, marca deste tempo, nos diferentes domínios da vida, incluída a educação. As instabilidades vigentes, mais do que eventos isolados, se inscrevem no âmbito de uma profunda mutação social, em direção a novas modalidades de organização (Chevitarese, Pedro, 2005), pautadas no novo “monstro” de Burroughs (Deleuze, 1992), o controle:
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O controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro. (Deleuze, 1992, p.5)
Nestes termos, cabem as interrogações sobre os caminhos que ora se constroem em nome da ultrapassagem disciplinar: (1) A quais interesses servem? (2) A que lógica pertencem? (3) Em nome de quais dispositivos de poder se instituem? Colocar-se tais questões - mais do que respondê-las, desta ou daquela maneira - é o que se impõe, sob pena de se deixar capturar em modulações (controle) enquanto se luta para se desvencilhar dos moldes (disciplinares).Nesta perspectiva, a reflexão inter/transdisciplinar e a complexidade podem ser antídotos, na medida em que ampliam possibilidades de pensar acerca dos enredamentos de técnica e poder, os quais são particularmente pregnantes na saúde. Tal é a responsabilidade das instituições formadoras: ultrapassar a disciplina em prol de um ensinoaprendizagem mais fecundo e generoso, mas sem deslizar para as artimanhas do controle, sob pena de que se descubra, não sem sofrimento e dor, qual dos regimes, definidos por Deleuze (1992), é o mais duro: os buracos da toupeira ou os anéis da serpente.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
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ALBUQUERQUE, V.S. et al. Currículos disciplinarios en el área de salud: ensayo sobre saber y poder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.261-72, out./dez. 2009. El presente artículo ofrece una revisión histórica sobre la construcción del conocimiento y del poder a partir de la organización disciplinaria como base para la discusión del confinamiento del saber en disciplinas en la formación de los profesionales de salud y sus consecuencias en los modos de producir atención a la salud. Acto contínuo propone la interdisciplinariedad, la trans-disciplinariedad y el pensamiento complejo como referenciales teóricos para ultrapasar la lógica disciplinaria.
Palabras clave: Interdisciplinaridad. Transdisciplinaridad. Complejidad. Curriculum. Personal de salud. Conocimiento. Recebido em 19/11/08. Aprovado em 02/07/09.
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Três considerações sobre a “má medicina”
Charles Dalcanale Tesser1
TESSER, C.D. Three considerations about “bad medicine”. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.273-86, out./dez. 2009.
Some considerations are made about “bad medicine”: a set of individual and collective phenomena regarding the usual disharmony, dissatisfaction and disappointment experienced by sick people in the doctorpatient relationship. The purpose is to contribute to a better understanding of such “bad medicine”, taking its complexity into account, and also to collaborate with its improvement. We disagree with the common sense that summarizes such failed encounters as “bad medical practice”. We argue that some of its typical aspects, such as authoritarianism, arrogance, coldness, excessive control, belligerency, and the feelings of omnipotence and omniscience of so many physicians are intertwined with historical-epistemological, social-political and sub-cultural factors of these professionals; for instance, the political victory of Science and its ethnocentrism, biomedicine’s official monopoly of cure, the current expansion of the biomechanical paradigm, the authoritarian culture in the hospital setting, the unquestioned adoption of a scientific prejudice against non-science, among others, besides wider and more complex processes like social medicalization.
Realizamos algumas considerações sobre a “má medicina”: um grupo de fenômenos individuais e coletivos referentes à comum desarmonia, insatisfação e frustração no encontro médico-paciente vividos pelos doentes. Visamos contribuir para uma melhor compreensão dessa “má medicina”, considerando sua complexidade, e para a sua melhoria. Divergimos do senso comum e douto que resume tais desencontros como “má prática” médica. Argumentamos que alguns de seus aspectos típicos, como autoritarismo, arrogância, frieza, controlismo, beligerância, sensação de onipotência e onisciência de muitos médicos estão entrelaçados com forças ou fatores histórico-epistemológicos, sóciopolíticos e subculturais desses profissionais, como a vitória política da Ciência e seu etnocentrismo, o monopólio oficial da cura pela biomedicina, a vigência e expansão nela de um paradigma biomecânico, a cultura autoritária hospitalar, a adoção cega do preconceito científico com a não-ciência, dentre outros fatores, além de processos mais amplos e complexos como a medicalização social.
Keywords: Medicine. Physician-patient relations. Professional misconduct. Sociology. Anthropology.
Palavras-chave: Medicina. Relações médico-paciente. Má conduta profissional. Sociologia. Antropologia.
Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Rua Laureano, 970, Campeche, Florianópolis, SC, Brasil. 88065-040 charlestesser@ccs.ufsc.br 1
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Introdução Não é raro acontecer de pessoas procurarem ajuda médica e encontrarem profissionais pouco acolhedores, mais ou menos arrogantes, ríspidos, pouco amigáveis, indelicados, alguns até grosseiros em certa medida, que não “olham na cara”. Em tais encontros, frequentemente há aumento da insegurança, insatisfação e frustração nos doentes, denotando uma desarmonia relativamente comum nessa relação. Tomamos, como objeto de reflexão, esse fenômeno designado no título como “má medicina”, plagiando o jargão profissional que fala em “má prática”. Nossa hipótese é que a má medicina não pode ser resumida à chamada má prática. Sendo mais do que a corrupção de uma suposta boa prática, ela é fomentada por um conjunto de aspectos constitutivos da biomedicina. Não se trata de contrapor uma boa a uma má prática médica, mas sim de explorar a complexidade de aspectos histórico-epistemológicos, culturais, pedagógicos e sociopolíticos envolvidos na biomedicina, que alimentam a má medicina. Esse fenômeno é facilmente reconhecível a partir da vivência dos doentes e, também, a partir do ponto de vista de certo saber/fazer acadêmico/artístico especializado, que contribui para sua compreensão - como em Kloetzel (1999) e Stewart et al. (1995) - e que permite reconhecer uma “boa medicina”, a qual, entretanto, não será objeto de nossa atenção. De fato, a literatura médica e da Saúde Pública, há muito tempo e persistentemente, debruça-se sobre os problemas da relação médico-paciente e da atividade médica - Balint (1988), Illich (1981), Clavreul (1983), e, no Brasil, mais recentemente, por exemplo: Caprara e Franco (1999), Camargo Jr. (2003), Caprara e Rodrigues (2004), Guedes, Nogueira e Camargo Jr. (2006), Camargo Jr. (2008). Não é necessário definir ou precisar a má medicina, dado que não se trata de um novo objeto ou categoria a ser bem delineada. Poder-se-ia, talvez, dizer que se trata do problema da “relação ruim médico-paciente”, apenas por conveniência chamado de má medicina, à falta de um termo melhor e sintético. Mas esta expressão, relação médico-paciente, embora consagrada, pode remeter a dicotomias que nos esforçamos por evitar (por exemplo, saber versus prática), e tende a reduzir, de certo modo, o problema, induzindo a desvinculá-lo de outras dimensões que justamente pretendemos explorar. Há um senso comum e certo senso douto que atribuem essas experiências, desarmonias e frustrações, no encontro clínico, à má prática médica. Essa visão preza a separação entre os “aspectos contextuais”, muito influentes sobre a prática da biomedicina2, e um núcleo conceitual da mesma, que teria seus “fundamentos teóricos” alhures, na Ciência, aos quais não caberia crítica (Pires, 1998), pois pouco envolvimento teriam com a má prática. Neste ensaio partimos de uma perspectiva diversa, baseada em Latour (2001, 2000a, 2000b), na qual essa separação entre núcleo conceitual e contexto sócio-histórico é indesejável porque dificulta a compreensão da complexidade do fenômeno, que é intrinsecamente híbrido (envolvendo saberes, poderes, histórias, culturas, afetos, técnicas, tecnologias etc). Nossa abordagem trata conjuntamente alguns destes aspectos da rede sociotécnica (Latour, 2000b) constitutiva da medicina moderna, e considera esta inseparabilidade como necessária e estratégica para uma compreensão, sempre parcial, das complexidades envolvidas, com vistas à melhoria de sua prática cuidadora. A proposta é uma reflexão de inspiração genealógica e sócio-histórica sobre alguns aspectos e forças envolvidos na atividade médica e seu saber fomentadores da má medicina, que atravessam tanto dimensões individuais e práticas como sociais, corporativas e epistemológicas. O método genealógico busca explorar 274
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2 Usamos o termo biomedicina para designar a medicina ocidental contemporânea, que abarca dois conjuntos que, para nossos objetivos de compreensão da má medicina, devem ser considerados integradamente: o primeiro é o grosso da prática profissional dos médicos do ocidente, que apresenta impressionante homogeneidade frente a tradições e práticas curadoras de origem não científica ou não acadêmica. Portanto, esse primeiro significado do termo pode ser resumido como “a biomedicina é o que os médicos fazem”. O segundo significado do termo refere-se ao conjunto de saberes, valores e técnicas que informam a prática social designada pelo primeiro significado, de cunho cada vez mais científico e especializado, em mudança permanente (mas também com relativa homogeneidade e continuidade ao longo das últimas décadas, sobretudo nos seus aspectos aplicáveis e aplicados ao cuidado, à prática clínica).
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redes e origens (valores, emoções, forças, desejos, interesses, poderes) que orientam, influenciam e constrangem culturas, práticas sociais e saberes (Martins, 2004). A reflexão não se propõe a realizar uma genealogia propriamente dita, mas refletir sobre elementos genealógicos associados a outros fatores envolvidos com a má medicina, ensaiando algumas hipóteses interpretativas a respeito. Abordaremos a má medicina sob alguns poucos ângulos, como aspectos da iniciação dos profissionais, do saber e da ação médica, com ênfase condutual e emocional: a arrogância e o autoritarismo, a beligerância e o controlismo, a missão imaginária do herói solitário e o peso dessa missão impossível. Esse três pares de “características”, comumente criticadas e presentes na má medicina, são interligadas entre si e vinculadas com forças das mais diversas naturezas. Neste ensaio propomos reflexões e especulações que se destinam a contribuir para o incremento da compreensão da complexidade nelas embutida, bem como de sua persistência na prática e no ensino médicos. Embora muito denunciada e, por vezes, considerado esgotado o seu debate, a consideração e análise da má medicina são relativamente dispersas e pouco sistematizadas na literatura. Parece-nos relevante sua abordagem para uma melhor avaliação das dificuldades de formação dos médicos e dos desafios da reforma dessa prática profissional. Isso é ainda mais importante para gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) e para profissionais da atenção primária à saúde, em época de expansão dessa última, via Estratégia Saúde da Família e de intensa medicalização social da vida e dos riscos individuais e coletivos. Nesse ambiente que clama por uma “clínica ampliada”, uma educação em saúde “empoderadora” e mais integralidade nos serviços e nos profissionais, é relevante relembrar a grande dimensão do problema (Caprara, Rodrigues, 2004) e investigar origens e complexidades do mesmo.
Arrogância e autoritarismo
3 Hoje, com as etnociências, há que modular essa afirmação, ressaltando o fato de que os especialistas tradicionais exóticos (curadores, no caso da saúde) são considerados portadores de saber empírico relevante como indício valioso a orientar a pesquisa científica, mas não mais que isso.
O senso comum e a ciência nasceram juntos. Segundo Santos (2000), o senso comum foi o nome dado às formas de conhecimento que não correspondessem aos critérios epistemológicos estabelecidos pela ciência para si própria. A diferenciação epistemológica pretendida pela Ciência em relação ao senso comum foi precisa: tratou-se de erigir uma instância acima e supostamente desvinculada das tradições e religiões, que seria o critério supremo de avaliação do que é e do que não é verdadeiro, a Ciência. A construção do senso comum igualou tudo aquilo que ficou fora da Ciência: um conjunto heterogêneo de práticas e saberes (populares e especializados) que ficou sendo considerado homogêneo e pobre do ponto de vista epistemológico3 e, também, agregado num conluio político-cultural que mantinha os homens presos na obscuridade, de caráter conservador e indesejável. Assim, a ciência moderna considera o senso comum superficial, ilusório e falso (Santos, 2006). Essa desconfiança básica, se é um dos motores da ciência para a mesma fazer sua primeira ruptura epistemológica (Santos, 1982) na construção do conhecimento científico, hoje se revela problemática pelo seu lado destrutivo e dominador de outros saberes, assim como pela sua arrogância e preconceito, que, todavia, não são exclusividade da ciência e nem foram inaugurados por esta. Nossa hipótese é que certa arrogância preconceituosa e etnocêntrica da ciência encontra afinidades eletivas ou mesmo antecedentes histórico-culturais anteriores à modernidade. Numa perspectiva macrocultural e histórica, encontramos traços de uma arrogância etnocêntrica na antiga cultura religiosa judaico-cristã, desenvolvida na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.273-86, out./dez. 2009
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Europa com o cristianismo e exportada para o planeta a partir da expansão européia após o século XV. Joseph Campbell (1993) ilustra esse etnocentrismo comentando a peculiaridade da religião judaica perante o grosso das religiões do mundo, politeístas. Segundo o autor, na maior parte destas últimas, os deuses principais eram universalistas e os deuses bairristas ou tribalistas eram secundários, invocados para proteção do povo em períodos de guerra. Ao fim das batalhas, era possível a construção de sincretismos e era comum um relativo respeito pela cultura dos perdedores, devido às equivalências que se podiam fazer entre as divindades dos diferentes povos. Com isso, os diferentes mitos, deuses, verdades, ciências e sabedorias podiam ser reconhecidas e se entrecruzar, se transformavam ao mesmo tempo em que se preservavam. Porém, essa possibilidade ficou dificultada quando a cultura e a religião dos vencedores eram tribalistas e monoteístas, seu Deus era único: o que foi o caso da religião judaico-cristã. Iavé é o Deus único, os demais são demônios, e os mitos, saberes e culturas dos povos “pagãos” perdem respeito e sabedoria, ficam dignos apenas de combate e desqualificação. Resumindo a história, poderíamos dizer que uma religião tribalista e monoteísta misturou-se com a cultura beligerante e dominadora européia que se expandiu pelo mundo. Quando essa cultura derruba seu próprio deus e o substitui pela Ciência, como única instituição social produtora de verdades, em posição mitológica (Feyerabend, 1991), esta, que já nascia com uma proposta nada modesta - revelar as verdades - ficou embebida e reconstruiu essa arrogância etnocêntrica que desqualifica tudo o que não é ela mesma. A digressão acima prepara o terreno para chegarmos à área da saúde-doença e à profissão médica, em que desdobramentos subculturais, emocionais e políticos da vitória da guerra da ciência foram provavelmente relevantes, e a hipótese aqui trabalhada é de que sejam mais importantes do que se imagina, atingindo os interstícios atuais da técnica, da clínica e do relacionamento com os doentes. Não é necessário traçar detalhes e complexidades desses desdobramentos no Ocidente, basta marcar o que é mais relevante para nossa reflexão: a oficialização dos médicos nos séculos recentes, como únicos curadores legítimos, representantes da Ciência, portadores da verdade, legitimados pelos Estados4 (Adam, Herzlich, 2001). A autonomização da profissão perante a sociedade foi a pedra de toque culminante da trajetória política da medicina. Tal trajetória possivelmente ajudou a veicular uma tradição de arrogância e etnocentrismo científicos para o interior desses especialistas oficiais em saúde-doença. De modo que a arrogância em sentido geral pode não ser fruto de característica pessoal ou circunstancial da má prática médica. Uma parte relevante dela poderia ser remetida à herança cultural científica. Herdeira dessa luta e dessa conquista política, a biomedicina está, por um lado, impune e assegurada na posição de poder, o que facilita a arrogância; e, por outro lado, “sente-se” permanentemente ameaçada pela miríade de tradições, técnicas, saberes, práticas e curadores que sobrevivem socialmente, diferentes dela mesma e, paradoxalmente, cada vez mais procurados (Le Fanu, 2000). Mas como se infiltraram, na mentalidade, na cultura clínica e no cotidiano de razoável número de médicos, essa arrogância e esse autoritarismo? O nascimento da clínica e seu aprendizado no hospital, bem como seu desenvolvimento históricoepistemológico apoiado no “paradigma biomecânico”5 (estabilizado e detalhado no século XX, em pleno vigor no século XXI com a biologia molecular e a genética), facilitam uma compreensão parcial desse processo, associados à arrogância proveniente da Ciência e à agressividade política das suas lutas iniciais contra a Igreja, dentre outras forças importantes (inclusive de ordem político-econômica). Os médicos aprendem biomedicina eminentemente no hospital. O comum autoritarismo médico pode ser interpretado como uma herança cultural e 276
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4 Posteriormente acompanhados por outras profissões da saúde que foram se regulamentando oficialmente.
5 Pode-se dizer que o paradigma biomecânico envolve um concepção ontológico-localista e mecânico-causal das doenças, em que estas são vistas como coisas concretas, defeitos ou disfunções do organismo físico, relacionadas a lesões materiais, a serem investigadas no interior do corpo físico e corrigidas com alguma intervenção concreta (medicamentos e cirurgias) (Camargo Jr., 2003). O uso do termo kuhniano “paradigma” aqui é em sentido estendido ao saber e à atividade médica, baseado na sua semelhança com o conceito de estilo de pensamento, de Ludwik Fleck (1986), conceituado de forma mais genérica e aplicável a um coletivo de pensamento portador de uma formação especializada com interesses e atividades específicos (Tesser, 2008).
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psicossocial enraizada no proceder médico, talvez amplificada pela subcultura médica do hospital, o qual é, nitidamente, autoritário desde seu nascimento enquanto instituição médica. Para Foucault (1980), essa característica é historicamente herdada da instituição militar, e fez o hospital ser considerado como uma instituição quase-total, a exemplo dos manicômios, conventos e prisões (Goffmann, 1974). O autoritarismo no hospital é aceito e, relativamente, não causa muitos problemas. Ali, o paciente delega o poder para os profissionais. Discussão ou recusa de uma conduta médica, num hospital, é coisa rara, estranha, e, muitas vezes, significa alta a pedido. Desnecessário enfatizar que o autoritarismo não é tema de discussão no hospital. É vivido e praticado no ambiente, nas regras, nas relações e está embutido no imaginário social hospitalar, cristalizado em regras e normas inflexíveis. O médico, ao prescrever num hospital, não tem o paciente à sua frente, não fala com ele, não precisa explicar os diagnósticos e as condutas. Estas explicações, quando ocorrem, são rápidas e realizadas em momento à parte, muitas vezes apenas com um familiar, geralmente separadas da decisão e prescrição terapêutica. Feita a prescrição, ela será automaticamente executada sobre um doente paciente e submisso, que receberá, da enfermagem, uma curta resposta às suas perguntas sobre o tratamento: é para a dor, é contra a infecção. O tempo do contato terapêutico no hospital é pequeno e os critérios de internação e alta definem os objetivos dos profissionais e o tempo de contato com o doente, além de constrangimentos outros institucionais e sociais - filas para internação etc. Estes critérios e estes tempos produzem expectativas, prioridades e certa sensação de eficácia, os quais estão pautados pelo diagnóstico e intervenção na doença, sendo referidos à sua cura ou controle, com a saída do doente da situação de gravidade geradora da internação. Por isso mesmo, a intervenção é e deve ser sempre rápida, seu efeito e sua eficácia devem ser sentidos rapidamente, para o que não se poupa tecnologia investigativa e terapêutica “duras”. Dentro do hospital a percepção dos danos (iatrogenias) é muito menor, não só pelo pouco tempo de contato, como pela naturalização de alguns deles. Além disso, dada a situação clínica de alta gravidade e de extrema assimetria de poder, a tolerância dos pacientes internados aos danos é muito grande. A atenção hospitalar é voltada para o risco biológico, e pouco tem a ver com a vida do doente préinternação ou pós-alta. A gravidade da situação orgânica no hospital permite que o aspecto biológico se destaque, fornecendo uma sensação de suficiência do saber biomédico (Cunha, 2005). Nos hospitais, bem como na biomedicina em geral, há a tendência para a fragmentação do cuidado por especialidades, de forma que, na medida em que aparecem outras doenças, estas vão sendo distribuídas pelas especialidades que se responsabilizam por patologias específicas, submetendo o doente a um esquartejamento epistemológico irreversível (Tesser, 2004). Esse mergulho no hospital permite compreender quão comuns são os problemas quando muitos médicos se defrontam com a imensa maioria de pacientes independentes, que esperam acolhimento emocional, explicações que lhes façam sentido, acalmem e preparem para a terapêutica, e terapêuticas compreensíveis e factíveis. Ou seja, a maior parte da vida profissional do médico é ambulatorial (exceção feita a algumas especialidades), em que quase nenhuma daquelas condições especiais de autoridade, controle, rapidez, eficácia, objetividade e necessidade de intervenção imediata controlada aparecem. E, obviamente, muitos não foram preparados adequadamente para lidar com os doentes independentes em suas condições reais de existência, mesmo supondo “ótimas” ou “ideais” condições socioinstitucionais para a prática médica. O aprendizado da clínica, no hospital, pelos profissionais foi e continua sendo provavelmente uma força importante no processo pedagógico-iniciático: vários anos de formação (pelo menos seis; oito ou mais anos considerando as residências médicas) numa instituição autoritária são essenciais para a introjeção da arrogância e do autoritarismo em muitos médicos. Adicionalmente, o desvio da atenção para o “olhar as lesões” (em detrimento do escutar o doente), marcador do nascimento da clínica (Foucault,1980), fantasticamente hipertrofiado com o desenvolvimento tecnológico diagnóstico recente, certamente ajudou e fortaleceu esse processo. Esse desvio do olhar, que vê tendencialmente as pessoas doentes como portadores de “doenças” e, recentemente, riscos, que passam a ser os objetos principais da atenção do médico (Camargo Jr, 2003; Mendes Gonçalves, 1994), foi desenvolvido a tal ponto que talvez seja por si mesmo outro dos fatores importantes para a compreensão de tantos desencontros entre médicos e doentes. Assim, a arrogância e o autoritarismo biomédicos podem ser relacionados a uma característica cultural e histórica geral do ocidente europeu, possivelmente reforçada na subcultura da corporação 277
TRÊS CONSIDERAÇÕES SOBRE A “MÁ MEDICINA”
médica, aprendidos na prática e pelo seu lado “interno” no locus formador - o hospital -, e pela sua relação “externa” com a sociedade, como fruto de sua vitória política associada à Ciência, que colocou esta em um lugar seguro, garantido e com o poder de dizer a “verdade”. Tal trajetória de relacionamento da biomedicina com a sociedade torna plausível a hipótese de que haja uma forte influência do ambiente macropolítico para o ambiente microssocial da clínica, por meio do processo que permite a manutenção permanente e renovada da arrogância-autoritarismo, atualizando essa característica e sustentando um habitus profissional em parte da corporação, no sentido de Bourdieu (1994). Tal processo pode ser resumido em poucas palavras: a impunidade gerada pelo monopólio oficial do exercício da atividade curadora na sociedade e a legitimidade daí decorrente, garantidas no “atacado”, foram afastando as técnicas relacionais e a percepção ética, emocional e cotidiana da necessidade da legitimação dos profissionais e da relação de cura no “varejo”, no cotidiano do contato com os doentes. Ou seja, a posição social do médico enquanto curador é estável e está garantida: ele pode, e essa possibilidade é coerente com o que vem acontecendo com parte dos profissionais, “descuidar-se” de se legitimar como curador no dia-a-dia (Tesser, Luz, 2008). Adicionalmente, tal processo é facilitado pelas características do saber médico que permitem e alimentam o ideário de que uma eficácia e uma correção técnicas podem se dar à revelia da ancestral relação curador-doente, ideário de origem eminentemente científica. A promessa iluminista e positivista científica de eficácia dada pela elucidação dos mecanismos da doença e pela intervenção material específica sobre eles certamente alimentou e alimenta a crença (dificilmente assumida) de que se poderia prescindir do nebuloso emaranhado psicossocial da relação curador-doente. Porque os médicos seriam honestos, científicos e eficazes, poderiam dispensar esses meandros subjetivos e sacerdotais da relação de cura, cuja “eficácia simbólica” (ou efeito placebo) foi atribuída aos curadores pré-científicos, não sem projetar neles uma dose de charlatanismo, como ilustrado por Lévi-Strauss (1976) na história famosa de Quesalid. A associação entre herança político-cultural, hospitalar e epistemológica talvez seja forte o suficiente para que, mesmo em locais de trabalho onde supostamente a reconstrução dessa relação ancestral de cura interessa direta e economicamente ao médico, como na medicina privada, não é raro que vários profissionais tenham se mantido muitas vezes arrogantes, pouco comunicativos e frustrantes para seus pacientes. Tais heranças se fundem e cristalizam, levando à perda da legitimidade no varejo e à indiferença frente a essa perda, ao não-aprendizado prático da necessidade da continuada reconstrução da legitimidade, com a consequente fragilização da harmonia emocional e relacional entre curadordoente, abalando de forma profunda “a relação de cura”, na prática, de parcela dos profissionais em muitas situações.
Beligerância e obsessão pelo controle Outra característica da má medicina é a beligerância e a obsessão por controle. Sintetizamos, nessas palavras, várias características, valores e posturas da prática biomédica: intervencionismo, agressividade, pressa, controlismo, desconfiança, tensão emocional etc. Já antecipada acima indiretamente, a beligerância biomédica também pode ser perscrutada na histórica luta da Ciência com a natureza em geral, como explicitada por Francis Bacon nos seus primórdios, e mesmo antes do nascimento da ciência, na cultura geral da Europa. Para Turner (1990), o ocidente europeu vive, há muito tempo, uma tensa e belicosa relação com a natureza, particularmente acirrada após o rompimento com a cosmovisão mítica e o nascimento de uma perspectiva religiosa histórica: a religião cristã que se espalhou na Europa. O autor descreve, em detalhes cruentos, essa relação, quando dos primeiros anos da expansão Européia, no século XV, na colonização do novo mundo americano. Analisa a transformação dos nativos em seres da natureza (quase por oposição a seres humanos) e a incapacidade dos Europeus de perceberem, relacionarem-se de forma não agressiva e respeitarem as riquezas culturais e naturais que transbordavam neste então lugar continental paradisíaco, porém totalmente diferente e “selvagem” em relação à Europa “civilizada”. Adicionalmente, na história européia e da medicina ali, durante a Idade Média e o nascimento da modernidade, as repetidas guerras e grandes epidemias que assolaram o continente contribuíram 278
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também, de certa forma, para a construção de um “estado de espírito” cultural tenso e beligerante quanto à saúde-doença. Particularmente com relação ao saber científico biomédico nascente dos séculos XVI a XX, o medo e a agressividade referentes às doenças e à própria natureza, a ser dominada pela Ciência em formação e, depois, consolidação, promoveram uma mentalidade beligerante perfeitamente em consonância com a arrogância e o autoritarismo. Como resultado dessa história, podemos sintetizar que, em geral, a relação do homem moderno e, em especial, a do médico para com a natureza, por um lado, é de desconfiança hostil e medo e, por outro lado, é de otimismo intervencionista quanto ao poder da tecnologia científica. A outra face desse otimismo intervencionista é um claro pessimismo quanto às potencialidades curadoras autóctones dos doentes e as possibilidades de estímulo a elas, geralmente pouco exploradas pela pesquisa, pelo saber e pela prática médica (exceção feita, sobretudo, às tecnologias preventivas de imunização). A subjetividade, o “estado de espírito” ensinado aos praticantes da tradição biomédica, é um misto de alerta, agressividade defensiva, atenção para os mínimos indícios dos inimigos mortais (as doenças graves), frieza, tendência interventora e vigilância controladora. Grosso modo, é como uma inimiga que a ciência biomédica vê a natureza. Após analisá-la, a reconstrói como modelo ideal, reduzida às partes materiais passíveis de manuseio, senão agora, no futuro. Assim, a Ciência conhece, a seu modo, parte da natureza, aquela parte que ela concebe e reconstrói em seus modelos, mas essa é uma natureza reconstruída e dominada, tecnicamente feita, desprovida de qualquer interioridade e vida, reduzida a um mecanismo complicado (Müller, 1996). Muitas culturas consideraram a natureza como uma aconchegante e dadivosa mãe, ainda que tivesse seus momentos de fúria e desequilíbrio (intempéries, doenças etc). Viram-na com caráter predominante de doação e nutrição generosa, sábia, maternal, amistosa e poderosa. Todavia, para a modernidade e muitos de seus médicos, ela é uma permanente ameaça que deve ser controlada, monitorizada e vigiada. As doenças, legitimadas e objetivadas pela construção científica das entidades nosológicas (e dos riscos), converteram-se em inimigos naturais e, como se tivessem vida própria, parecem estar, a cada paciente, sintoma e/ou exame, prestes a atacar. Assim, a saúde humana parece frágil e carece de vigilância profissional, tecnológica, contínua, intensiva ou periódica. Algo similar a uma “paranóia” está em vigor alertando muitos médicos sobre o perigo da imensa lista de doenças graves que estão sempre por perto e que podem se travestir de sintomas aparentemente banais ou comuns. No hospital, local de doentes graves, onde essas patologias se fazem presentes de forma acentuada, o perigo de vida e o medo da morte estão na sua expressão e intensidade máximas. A guerra no hospital é declarada e, muitas vezes, real. As capacidades próprias dos doentes estão quase sempre insuficientes e fracassadas, a gravidade é grande, o belicismo é aceito, a intervenção agressiva, precoce e controladora é, muitas vezes, necessária e salvadora. O fato de, no mundo extra-hospitalar, os adoecimentos serem muito diferentes, na sua maioria benignos (outros tantos se instalam e evoluem lentamente, com idas e vindas), e as curas e convalescenças se darem por múltiplos e complexos, inclusive autóctones, poderes, não altera a mentalidade, os automatismos emocionais, os medos e as posturas que muitos médicos aprenderam no hospital: o “filme de terror” aprendido nas aulas, as doenças graves e, mesmo, as trágicas histórias reais de pacientes, acompanhados nos anos de formação nos hospitais, marcarão por muito tempo as mentes e os corações de boa parte desses curadores. A beligerância e o controle para com a natureza e, na saúde, em relação às doenças e, mesmo, aos doentes, são quase que indissociáveis. O controle pode ser considerado uma parte da beligerância, mas desdobrou-se de tal forma nos procedimentos científicos e biomédicos, bem como na sua subcultura profissional, que merece tratamento mais detido. Ele é a forma operacional pela qual a beligerância se expressa e se concretiza nas práticas e nos saberes científicos e biomédicos. Além disso, o controle configurou-se como um dos pontos centrais da racionalidade científica moderna, ocupando lugar central em disputas envolvidas nas discussões epistemológicas e metodológicas da biociência sobre os saberes e intervenções terapêuticas (Tesser, 2007). A ciência é permeada por outros valores além dos chamados cognitivos - como adequação empírica, consistência, simplicidade, fecundidade, poder explicativo e verdade. Os valores cognitivos são defendidos, em geral, como os únicos e essenciais, tanto descritivamente como prescritivamente, para caracterizar e orientar a Ciência. Lacey (1998) aceita que os valores cognitivos prestigiados pela ciência 279
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moderna possam ser separados relativamente dos demais valores sociais e que sejam cruciais na pesquisa científica, mas ressalta que “sua interpretação é sempre estruturada por alguns valores sociais, e o apoio à sua expressão é ligado à expressão de certos valores sociais” (Lacey, 1998, p.177). O controle está visivelmente associado a valores cognitivos como preditibilidade e reprodutibilidade, e pode ser considerado o valor central na empreitada científica (Lacey, 1998), de fundo simultaneamente político, social e psicológico. Ele dirige-se inicialmente à natureza e, mais especificamente, ao controle dos objetos materiais. Esse enfoque constitui-se na maior e mais bem-sucedida (em termos de hegemonia social na comunidade científica) estratégia de restrição e seleção de dados e fenômenos como base empírica para teorias e, posteriormente, como mundo a ser controlado. Tal estratégia de seleção e restrição de dados é chamada, por Lacey (1998), de “estratégia materialista”. Para esse autor, a maior vantagem da estratégia materialista é justamente o fato de ela ser possivelmente a melhor para propiciar o controle. Seria disso que decorre o sucesso da ciência, e não da proeminência dos valores cognitivos nela. Na saúde, a razão biomédica é interventora, controladora e dominadora, coerentemente com as características da racionalidade científica moderna em geral: “racionalismo, mecanicismo, dualismo, fragmentarismo, metodologismo, quantitativismo, materialismo” (Luz, 1988, p.117). Com isso, busca controlar o corpo, eliminar ou controlar doenças, fazer a gestão dos riscos, regulamentar modos de vida. A biomedicina adotou, de forma hegemônica, a metafísica materialista, o que induz e aprofunda a afinidade eletiva entre o esquema de valor do controle na sociedade moderna e na ciência médica. Essa metafísica afirma que o mundo “realmente é” tal e qual todos os objetos presentes nele (inclusive os seres humanos) são inteiramente caracterizáveis por propriedades e relações materialistas (talvez, em última análise, fisicalistas): todos os fenômenos são inteiramente caracterizáveis sob o aspecto de sua produção pelas estruturas, processos e leis subjacentes, e as possibilidades das coisas são exauridas por suas possibilidades materiais. Então, a adesão às estratégias materialistas poderia conduzir-nos a uma explicação completa do mundo (Lacey, 1998). O entendimento do mundo é obtido, aí, por um tipo de conhecimento específico da ciência: as teorias. Estas, em geral restritas pela estratégia materialista5, representam os fenômenos em termos de sua concordância com leis da natureza (física e biológica), e apresentam uma imagem do mundo em termos de leis e quantidades. Os fenômenos são abstraídos de qualquer inserção na experiência humana, nas atividades práticas e sociais. As teorias deixam inexploradas, na maior parte, tanto as condições (mesmo as sociais) que criam e mantêm os espaços a respeito dos quais elas fornecem entendimento, quanto os efeitos e consequências dos acontecimentos de tais espaços nos ambientes naturais, humanos e sociais (Santos, 2000; Lacey, 1998). Em outras palavras, diz-se que as teorias científicas produzem conhecimento “extensivo”, isto é, relacionam muitos acontecimentos aparentemente desconectados e diferentes. Conectam, por exemplo, o movimento de uma flecha ao movimento dos planetas e dos corpos em queda. Na ciência, a extensividade é um valor cognitivo prestigiado: tanto melhor uma teoria quanto mais fenômenos ela interligar e explicar, e assim, subliminarmente, permitir previsão e mecanismos de controle. Todavia, as teorias científicas não produzem conhecimento “completo”. Se a ciência pode prever com boa aproximação a trajetória da flecha, não relaciona a flecha ao arqueiro, à vitima, ao fabricante de arcos, à matéria-prima usada na sua confecção, ao contexto social e ao objetivo do tiro 280
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6 Existem outras teorias com outras estratégias de seleção de dados, mesmo na biomedicina, como, por exemplo, a psicanálise. São de localização e difusão suficientemente pequena e marginal na profissão médica para confirmarem a regra.
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Um exemplo trivial é o conceito de inflamação, que unifica os mais distintos e variados fenômenos corporais e mórbidos, sem dúvida de forma precária, mas permite seu controle relativo por meio dos anti-inflamatórios (hormonais e nãohormonais), base de boa parte das terapêuticas biomédicas. Eles são potentes como sintomáticos, mas pouco duradouros e apresentam relevante iatrogenia. 7
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(uma guerra? uma caçada? um esporte?). Um conhecimento completo envolveria essas finalidades, sujeitos, histórias e suas relações. Se a extensividade do conhecimento científico encanta e seduz, gerando o avanço tecnológico, a sua incompletude, na área da saúde, tem desdobramentos sérios, raramente discutidos. Na relação da sociedade com a ciência e a tecnologia, a incompletude já exige atenção, é motivo de algum debate público, de legislação específica e de interesse dos cidadãos, devido, sobretudo, à crise ecológica e ambiental global. Na saúde, a nossa hipótese é de que a percepção da incompletude do saber científico se manifesta pela fuga para outras medicinas, mas permanece fora da ciência e da corporação médica. Para além da má prática, isso remete aos dilemas e cegueiras paradigmáticas na diagnose e na ação terapêutica, em que o conhecimento científico parece ser pobre em completude e está, a toda hora, se debatendo com a complexidade e integração dos aspectos e partes das pessoas e seus adoecimentos, sendo que essa complexidade e integração não são abrangidas ou são excessivamente reduzidas pela extensividade das teorias biomédicas atuais e suas tecnologias correlatas7. O baixo teor de “integralidade” dessa medicina (Tesser, Luz, 2008) está enraizado nessa desproporção extensividade-completude, em que o controle tem papel fundamental. Entender o papel e o valor do controle na ciência prepara o terreno para entendermos o controle no saber médico e na biomedicina. Se ele já está hipertrofiado pela tradição hospitalar, pela luta contra a natureza e as doenças e pelo autoritarismo, atinge o ápice quando da cientificização progressiva da medicina, que o sacraliza. Assim, há que compreender a poderosa e agressiva tendência controlista que permeia a biomedicina e se infiltra em grande parte da subjetividade médica, contribuindo para a má medicina, de certo modo afastando a solidariedade, diminuindo o empoderamento e a autoconfiança dos pacientes, dificultando a harmonia e a efetividade das práticas profissionais nos seus aspectos relacionais, de comunicação e educação. Todavia, pouco há além do império do controle como valor social, político e científico que justifique a sua exportação como valor principal para clínica, exceto, é claro, a noção disseminada de que ele tem utilidade pragmática imediata, levada ingenuamente, contraprodutivamente e perigosamente até as últimas consequências. Ao contrário, pode-se pensar que talvez a obsessão pelo controle seja justamente um empecilho para a clínica, para sua missão “curadora” (Tesser, 2007), para o aprendizado do cuidado em meio à incerteza. O controle como pivô da ação médica deve também ser levado em conta na consideração de sua ação alimentadora da medicalização social, geradora, por um lado, de dependência excessiva do cuidado médico-profissional (Illich, 1981), e, por outro, de disciplinarização dos comportamentos (Foucault, 1988, 1980) e dos cuidados com a saúde, introjetada até ser incorporada obsessivamente pela cultura geral e pelas pessoas (Nogueira, 2003), gerando o que Nogueira (2001) chamou de “higiomania”. Assim, a beligerante obsessão por controle que permeia a biomedicina e parte dos profissionais médicos vem de muitos “lados”: das teorias e dos métodos científicos biomédicos; das tecnologias científicas; dos valores sociais, hospitalares e epistemológicos; dos interesses econômicos da indústria farmacêutica e de equipamentos; das lutas políticas científicas; da medicalização social. Uma tensão controlista atrapalha o relacionamento de parte dos médicos com os doentes, minando corações e mentes desses curadores, que reproduzem a beligerância controladora que aprenderam.
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A ilusão do heroísmo solitário e sua missão impossível Como já mencionado, a biomedicina contemporânea trava uma batalha contra a doença e o sofrimento, num mundo supostamente hostil. Luta pelo controle do envelhecimento e da morte, das doenças do corpo (“orgânicas”), dos sintomas dos sofredores “não orgânicos”, “mentais” e, recentemente, luta pelo controle dos riscos. Uma batalha contínua que pode ser considerada como heroica. As práticas hospitalares formadoras dos médicos, já discutidas, são fortes geradores da sensação de heroísmo. Também as dificuldades da cura nãohospitalar contribuem para concretizar algo dessa sensação, pois suas tecnologias típicas deveriam operar com eficácia para os adoecimentos e dores ambulatoriais, mas deixam a desejar. Boa parte dos médicos vive o que pode ser ilustrado metaforicamente como uma saga de heróis, algo como uma missão imaginária, ou uma característica subcultural, que tem desdobramentos no cotidiano profissional. Um desses desdobramentos relaciona-se a que bem pouco das promessas da modernidade e da ciência esse “herói” consegue realizar. Além disso, o processo de medicalização social progressiva ensina os doentes a cobrarem de seus médicos curas rápidas e certeiras por meio de exames, comprimidos e cirurgias. A precariedade, a incompletude e os limites do saber médico para a abordagem de boa parte dos adoecimentos do cotidiano ambulatorial frustram a ambos, supondo acesso aos recursos de diagnose. As tecnologias terapêuticas mais valorizadas, quimioterápicos e cirurgias, também são frustrantes em boa medida, além de muitas vezes iatrogênicas - ressalvada, é claro, sua eficácia em casos específicos, como traumas e infecções graves. Vale lembrar que há grande coerência dos procedimentos mais valorizados pela cultura, pela mídia, pelos pacientes e pelos profissionais com a adoção da estratégia materialista na biociência: se o que explica o mundo e as doenças são as relações estruturais e quantitativas entre os elementos materiais do corpo, nada mais lógico que intervenções deste tipo (como comprimidos e cirurgias) devam ser os potentes remédios para os consertos na biomáquina. Ocorre que a maior parte da busca por atenção à saúde constitui-se de situações de gravidade baixa e média, muito diferentes da clientela e da morbidade hospitalar. Apresenta uma grande variedade de queixas e sintomas sobretudo dores -, sendo que apenas uma parcela deles consegue ser interpretada e enquadrada pelo saber biomédico na sua nosografia, ficando grande parte desconsiderada ou sem interpretação (Caprara, Rodrigues, 2004; Camargo Jr., 2003), travestida de um sinônimo técnico, em geral descritivo, que desemboca na prescrição de uma avalanche de sintomáticos. Como já dizia Balint (1988), os médicos valorizam mais as doenças físicas diagnosticáveis, às quais dão importância, tendendo a subvalorizar aspectos subjetivos, emocionais e sociais (para o que seu saber é limitado e incompleto, relativamente incompetente), o que alimenta a medicalização. Esse descompasso e limitação ajudam a criar a sensação de missão heroica, seja na ânsia de concretizar diagnósticos além de sindrômicos e descritivos, seja na ânsia de aliviar sofrimentos via quimioterapia8, seja, ainda, numa resignação incômoda na posição frequente de desenganar os pacientes e/ou desqualificar ou ignorar suas queixas. Por outro lado, a biomedicina herdou também uma suposta solidão da ciência, como única e solitária instituição no mundo moderno a produzir verdades confiáveis. O heroísmo passa a ser solitário, uma vez que os curadores científicos estariam sozinhos, únicos especialistas sociais a resolverem os problemas de saúde das pessoas. E, com isso, alimenta-se a ilusão de uma missão impossível de onisciência e onipotência a cobrar dos médicos e de sua tecnologia “dura” 282
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8 Essa tendência é muito forte devido à redução progressiva, no saber médico, do umbral terapêutico para muitas doenças, riscos e condições, com redução dos pontos de corte (como para hipertensão e diabetes), criação de categorias medicalizadoras (exemplo: préhipertensão, fibromialgia) e expansão e flexibilização de critérios diagnósticos que ficam mais abrangentes, que vão medicalizando e criando rótulos de doenças para vivências e sofrimentos os mais diversos da vida, para os quais a indústria farmacêutica gera incessantemente drogas controladoras sintomaticamente eficazes (exemplo: antidepressivos). Mas essa é uma questão complexa que transcende o escopo deste texto.
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poderes e curas quase milagrosos para todos os adoecimentos e padecimentos, acirrada com a medicalização social. Adicionalmente, os médicos estão cada vez mais restritos na sua competência e autonomia epistemológica, reduzidos progressivamente a aplicadores de saberes e tecnologias investigativas (algoritmos diagnósticos) e terapêuticas institucionalizadas na biomedicina; perdendo sua identidade de curadores, que vai sendo substituída pela de técnicos obcecados por diagnósticos, administradores de tratamentos padronizados para doenças específicas. Eles tendem a ficar menos envolvidos, portanto, com a produção de compreensão e tratamento de seres individuais únicos sofrendo, com a vida e a saúde em crise (Dalmaso, 1998; Sayd, 1998; Luz, 1996). Obviamente, tudo isso facilita a má medicina, estando inserido na complexidade da atividade médica em geral. Assim, alguns aspectos do cotidiano comum da má medicina podem ser interpretados como contendo influência da arrogância relacional e epistemológica desses curadores que se sentem heróis solitários; como, por exemplo, quando um médico diz para um paciente que sua doença “não tem cura” (mas tem controle, tratamento), situação cada vez mais comum – asma, rinite, hipertensão, reumatismos, diabetes, osteoartrites, dermatites, alergias, doenças ou transtornos mentais etc. Há aí uma conjunção de fatores: o monopólio institucional dessa corporação de curandeiros atribui aos mesmos certos poderes microssociais (institucionais) e reforça a arrogância e o autoritarismo aprendidos no hospital; a solidão social faz com que se sintam os únicos portadores “da” verdade; e, por último, a cegueira paradigmática alimenta a incapacidade de muitos praticantes de relativizar as verdades de seu saber, o que os induz a universalizá-las, tornando absolutas as verdades e limites biomédicos sobre as doenças, lançadas aos doentes como veredictos finais. Isso gera problemas e sofrimentos, para os doentes “desenganados” e “incuráveis”, de crise de relacionamento, para os rebeldes e os não enquadráveis (que “não têm nada”), de desconfianças e de transtornos para todos. Pairando única a produzir verdades sobre saúde-doença, não haveria sentido em reconhecer limites próprios à biomedicina e relativizar as más notícias, pois não existiria, nessa visão, nenhuma outra notícia a ser dada por nenhuma outra “tradição curadora” digna de crédito. Sem conseguir localizar os limites de seu saber, parte dos profissionais médicos muitas vezes “desenganam” os pacientes. Como consolo, a mídia promete, para breve, vários avanços tecnológicos e terapêuticos, pelos quais médicos e doentes devem esperar. Esses profissionais debatem-se, então, entre a precariedade dos recursos atuais e as promessas exageradas, vivendo como podem o mito do herói com sua “missão” solitária impossível de onisciência e onipotência. Uma dessas possibilidades de vivência, então, é rechaçar a missão impossível e, ao fazê-lo, negar o difícil compromisso e missão ético-sociais de curador, negar os aspectos profundamente humanos e “sacerdotais” do manejo do sofrimento, da doença e da morte, encarando a medicina como simplesmente mais uma profissão, o que pode resultar em indiferença e frieza para com o adoecimento e sofrimento, que passam a ser problemas técnico-profissionais regrados por condutas protocolares. Por outro lado, talvez apenas alguns emergencistas usufruam, com alguma frequência, da sensação de dever de herói cumprido ao saírem de seus plantões. Mas esses momentos são uma pequena minoria das atividades médicas.
Considerações finais Compreender parcialmente desencontros vividos na medicina e na má medicina exige consideração de variáveis insólitas contextuais (como trabalhar após uma noite em claro num plantão agitado) e fatores complexos epistemológicos, subculturais, filosóficos, pedagógicos, históricos, políticos. Muitos desses fatores, aqui não abordados (como a busca de status social e poder econômico, a relação com a estrutura social mais geral, o medo do erro e dos processos, dentre outros), necessitam análise e consideração para a composição de um quadro compreensivo mais amplo da má medicina. As ideias aqui sintetizadas são apenas uma reflexão parcial sobre o tema. Mesmo assim podemos ter deixado uma impressão talvez excessivamente negativa da biomedicina, para além da má medicina. Há que corrigi-la: os médicos não são todos assim, sua medicina não é ruim e seus saberes e tecnologias muitas vezes são maravilhosos. Simplesmente não abordamos o lado luminoso, das virtudes e potências, das sabedorias, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.273-86, out./dez. 2009
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da dedicação, da vocação, da criatividade, do aprendizado, das alegrias e experiências intensamente humanas que fazem crescer e enriquecer as vidas de médicos e doentes, também presente na prática médica. O objetivo era abordar poucos aspectos problemáticos e complexos envolvidos na má medicina, inerentes à própria biomedicina. A análise deles e de outros fatores parece-nos necessária de ser mais desenvolvida para que se possa trabalhar na formação médica e na sua educação permanente de modo a minimizar a má medicina e fomentar a boa medicina.
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TESSER, C.D. Tres consideraciones sabre la “mala medicina”. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.273-86, out./dez. 2009. Realizamos algunas consideraciones sabre la “mala medicina”: un grupo de fenómenos individuales y colectivos referentes a la falta de armonía común, insatisfacción y frustración, en el encuentro médico-paciente vividos por los enfermos. Con la intención de contribuir para una mejor comprensión de esta “mala medicina”, consideramos su complejidad para llegar a sua mejoría. Divergimos del sentido común y docto que resume tales desencuentros como “mala práctica” médica. Argumentamos que algunos de sus aspectos típicos como autoritarismo arrogancia, frieza, actitud de control, beligerancia, sensación de omnipotencia y omnisciencia de muchos médicos, están entrelazados con fuerzas factores histórico-epistemológicos, socio-políticos y subculturales de estos profesionales, como la victoria política de la Ciencia y su etnocentrismo, el monopolio oficial de la curación por la biomedicina, la vigencia y expapsión en ella de un paradigma biomecánico, la cultura autoritaria hospitalaria, la adopción ciega del preconcepto científico con la no-ciencia, entre otros factores; además de procesos más amplios y complejos como la medicación social.
Palabras clave: Medicina. Relaciones médico-paciente. Mala conducta profesional. Sociología. Antropología. Recebido em 18/12/08. Aprovado em 16/06/09.
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Violência contra a mulher: percepção dos médicos das unidades básicas de saúde da cidade de Ribeirão Preto, São Paulo*
Fernanda Garbelini De Ferrante1 Manoel Antônio dos Santos2 Elisabeth Meloni Vieira3
DE FERRANTE, F.G.; SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M. Violence against women: perceptions of medical doctors from primary healthcare units in the city of Ribeirão Preto, São Paulo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.287-99, out./dez. 2009. Violence against women is a complex and highly prevalent phenomenon that is considered a public health problem. The affected women generally search for healthcare services in order to treat associated symptoms. This qualitative study aimed to verify the perception of doctors working at primary healthcare units of Ribeirão Preto, state of São Paulo, on violence against women perpetrated by intimate partners. Data were collected through interviews with 14 gynecologists and general practitioners. The use of content analysis allowed us to define the following themes: knowledge of the types and severity of violence, perception regarding who the affected woman is, medical practice in the violence situation, intervention possibilities and barriers to access the services. As the medical doctors feel unprepared to approach the subject, they handle it with gender and social class prejudices, transferring the responsibility for occasional failures to “others”, such as the services, the network and the women.
Keywords: Violence against women. Physicians. Health professional. Primary healthcare. Women’s health.
Violência contra a mulher é um fenômeno complexo e altamente prevalente, considerado problema de saúde pública. Comumente, as mulheres afetadas buscam serviços de saúde para tratar sintomas associados. Este estudo, de abordagem qualitativa, teve por objetivo verificar a percepção dos médicos das unidades básicas de saúde de Ribeirão Preto-SP sobre violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo. Os dados foram levantados por meio de entrevistas com 14 médicos ginecologistas-obstetras e clínicos gerais. A análise de conteúdo permitiu definir os seguintes temas: conhecimento sobre tipos e gravidade de violência, percepções acerca de quem é a mulher acometida, prática médica frente à situação de violência, possibilidades de intervenções e barreiras de acesso ao serviço. Os médicos, por se sentirem despreparados para abordar o tema, o enfrentam com muitos preconceitos de classe social e gênero, transferindo a responsabilidade, por eventuais falhas no atendimento, aos “outros”: os serviços, a rede e as mulheres.
Palavras-chave: Violência contra a mulher. Médicos. Profissional de saúde. Atenção primária à saúde. Saúde da mulher.
Elaborado com base em De Ferrante (2008), pesquisa financiada pelo CNPq (processo 403103/05-3) e Fapesp (processo 2006/61922). 1 Hospital Nossa Senhora da Luz, Aliança Saúde. Rua Brigadeiro Franco, 3226, apto. 21, Água Verde. Curitiba, PR, Brasil. 80.250-030 fernandadeferrante@ hotmail.com 2 Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. 3 Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
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Introdução A violência doméstica contra a mulher, também designada violência de gênero ou violência por parceiro íntimo, é um fenômeno complexo e de alta prevalência no Brasil. Foi reconhecida como um problema de saúde pública por afetar a integridade física e a saúde mental da mulher. Como tal, pode ser identificada, assistida e encaminhada nos serviços de saúde (World Health Organization, 1997), embora vários estudos (Marinheiro, 2004; Pedrosa, 2003; Schraiber et al., 2003; Sugg, Inui, 1992) afirmem que os profissionais de saúde apresentam dificuldades em lidar com essa problemática.
A violência contra a mulher em foco Para Angulo-Tuesta (1997) é difícil definir o termo mais adequado para designar o fenômeno. Na literatura especializada destacam-se as variantes: violência contra a mulher, violência intrafamiliar, violência conjugal, violência doméstica contra a mulher e violência de gênero. Essa enorme variedade de termos, que resulta da inexistência de uma denominação única, deve-se à complexidade do fenômeno estudado, sua amplitude e operacionalização. Dependendo da área do conhecimento em que se coloca o problema, define-se sua conceitualização. Como buscamos compreender o fenômeno da violência contra a mulher com base na ótica da saúde pública, enfatizamos os aspectos relacionados à saúde da mulher. De forma que, seguindo tendência observada na literatura, utilizaremos ora o termo violência de gênero, ora violência doméstica contra a mulher, ora violência contra a mulher, ou, ainda, violência perpetrada pelo parceiro íntimo, todos como sinônimos. Segundo a Organização das Nações Unidas (1993), a violência contra a mulher é definida como qualquer ato de violência baseado em gênero, que efetivamente resulte ou possa resultar em agravo ou lesão física, sexual ou psicológica ou em sofrimento da mulher. Também é considerada violência a ameaça de cometer esses atos, a coerção ou privação arbitrária de liberdade, tanto na vida pública como privada. A violência cometida contra as mulheres por seus parceiros íntimos no ambiente privado é reconhecida como um problema mundial presente em todas as classes sociais e etnias, independentemente da cor, idade, nível socioeconômico e status educacional (Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, 2001). Intensos esforços têm sido feitos para melhor conhecer esse tipo de violência. Estudos realizados têm dimensionado a magnitude, a prevalência, os fatores de risco e suas consequências (Garcia-Moreno et al., 2005). Segundo esses autores, os dados obtidos são alarmantes e mostram que foram agredidas física e sexualmente por seus parceiros entre 30% a 60% das mulheres em todo o mundo, ao menos uma vez na vida. No Brasil, 27% das mulheres na cidade de São Paulo e 34% na Zona da Mata pernambucana relataram ter sofrido algum episódio de violência física cometida por parceiro ou ex-parceiro ao menos uma vez na vida. Azevedo (1985) aponta para um aspecto importante da violência, baseando-se nas relações de gênero. Afirma que esse fenômeno tende a ser visto pela sociedade como uma forma de manifestação normal da masculinidade, para coibir a suposta perda da feminilidade da mulher. Para Schraiber e D’Oliveira (1999), a mulher é vista na sociedade como um sujeito dependente e infantilizado, com necessidade de ser protegida, sendo constantemente educada por meio de atitudes corretivas, punições e agressões. Desse ponto de vista, a violência praticada contra a mulher seria exercida pelo homem como uma atitude corretiva de comportamentos não aprovados, ou seja, teria caráter disciplinar. A violência apresenta-se como uma forma de legitimação de poder do homem sobre a mulher, sendo por isso denominada de violência de gênero. Nessa acepção, pode ser interpretada como educativa e punitiva, pois assume um caráter exemplar. Dessa forma, é fundamental compreendermos o conceito de gênero, tal como proposto por Scott (1988), que o define como uma categoria teórica fundamentada em duas proposições. A primeira proposição é a de que o gênero seria um elemento das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, permeadas por quatro elementos distintos, mas relacionados entre si, que operam simultaneamente: os símbolos culturais, os conceitos normativos, as instituições sociais e políticas, e as organizações, bem como a formação da identidade subjetiva. Em sua segunda proposição, Scott destaca que o gênero é uma forma primária de relação de 288
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artigos
poder, que designa à mulher o papel de sexo frágil, permitindo, assim, o controle sobre ela, ao impedir sua participação na vida política, social e econômica, de modo a consolidar o poder e naturalizar as posições masculinas e femininas como desiguais. Por conseguinte, gênero é um conceito-chave para analisar a relação de subordinação das mulheres e a mudança social e política. Corresponde a uma categoria histórica e, por essa razão, é passível de ser modificada. Segundo Chauí (1984) a violência é capaz de alienar o sujeito, mantendo-o na relação sem que este perceba que suas vontades e ações estão à mercê do dominador. O sujeito não percebe sua perda de autonomia. A perda de autonomia, a alienação e sujeição da vontade aos caprichos do outro, configuram violação dos direitos humanos, que são utilizados como parâmetros na definição de violência, compreendendo-a como todo ato capaz de violá-los (Saffioti, 2004). Por violência física entende-se todo e qualquer ato que objetive causar dano cometido por meio do uso de força física ou utilizando algum tipo de arma ou instrumento que possa causar lesões internas, externas ou ambas. A violência psicológica inclui toda ação ou omissão que causa ou destina-se a causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. A violência sexual é toda ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga outra à realização de práticas sexuais, mediante força física, influência psicológica ou uso de armas ou drogas (Day et al., 2003). Podemos observar que as violências cometidas contra a mulher assumem várias formas e, ainda, que o lar é um fator de risco para a violência (Azevedo, 1985). As mulheres vítimas da violência doméstica, segundo mostram os registros da Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo, em 60% dos casos continuam vivendo com seus agressores depois de registrada a queixa (Verardo, 1997). Esses dados denunciam que eventos violentos ocorridos no ambiente familiar não são nomeados como violência. Ainda que muitas mulheres descaracterizam ou não percebem o que lhes ocorre como violência, mesmo que muitas vezes a situação doméstica seja extremamente conturbada e as hostilidades perpetradas pelo parceiro íntimo sejam reiteradas, existe uma tendência a negar a violência, o que contribui para manter a invisibilidade do problema (Schraiber et al., 2002). Para compreendermos o fenômeno da violência de gênero devemos descartar as posições deterministas e reducionistas, que apresentam a mulher como passiva e vítima de uma situação imposta. Gregori (1993) afirma que a violência entre parceiros íntimos é determinada por um conflito entre as partes envolvidas, ocorre em uma relação entre gêneros, sendo a agressão uma forma enviesada de comunicação resultante de uma negociação malsucedida por diversas motivações. Destaca que as mulheres participam ativamente desse processo e sustenta que as agressões seriam novas formas de relacionamento, isentas de acordos, entendimentos ou negociações. O reconhecimento da participação ativa da mulher no desencadeamento da violência não significa afirmar que ambos encontram-se na mesma posição em relação ao gênero, ou seja, homens e mulheres não detêm o poder de maneira igualitária. A mulher participa da relação violenta, podendo até desencadeá-la, porém é mais penalizada do que seu parceiro nessa relação (Saffioti, 2004). A incorporação da violência contra a mulher como objeto do campo da saúde é recente. Segundo apontam Schraiber e D´Oliveira (1999), a partir da década de 1980, por meio do movimento feminista, a violência doméstica contra a mulher começou a ganhar visibilidade na esfera pública, alocando-se inicialmente nos âmbitos jurídico e policial. Devido às dificuldades percebidas na década de 1990, buscaram-se novas estratégias para se abordar a violência perpetrada pelo parceiro íntimo a partir de três campos: a saúde, os direitos humanos e o desenvolvimento social, pelo prestígio reconhecido na agenda internacional e por disponibilizarem ferramentas práticas e teóricas para o manejo da violência. Considerando ser este um problema de saúde pública, os profissionais de saúde e as usuárias dos serviços são atores que protagonizam esse cenário. No presente estudo voltaremos nossa atenção ao papel dos profissionais de saúde, buscando apreender suas percepções quanto à problemática e ao papel que desempenham perante essas mulheres.
A perspectiva dos profissionais de saúde Nos últimos anos a maioria dos países vem tentando modificar a resposta dos serviços de saúde em relação à violência. No Brasil, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher inclui o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.287-99, out./dez. 2009
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atendimento das mulheres em situação de violência (Brasil, 2004). Entretanto, sabe-se que os profissionais não identificam ou não registram a violência nos prontuários médicos como parte do atendimento realizado (Garcia-Moreno et al., 2005; Kiss, 2004). Apesar dos números chocantes apontados pelas estatísticas, estudos referem que muitas mulheres procuram atendimento nos serviços de saúde para tratar de seus sintomas físicos, mas não relatam aos profissionais como eles foram desencadeados, omitindo a violência doméstica (Marinheiro, 2004). Pedrosa (2003) corrobora essa suspeita após entrevistar profissionais de saúde em Ribeirão Preto-SP, que relataram não ter capacitação suficiente, nem contar com um ambiente de trabalho que promova uma estrutura adequada para lidar com situações de violência, embora soubessem da importância da escuta e do acolhimento. Sugg e Innui (1992) detectaram algumas barreiras para a atuação eficaz dos médicos diante da violência, tais como: falta de tempo; probabilidade de se identificarem com seus pacientes, o que dificulta a visibilidade dos casos de violência doméstica, por não acreditarem que pessoas, assim como eles, possam pertencer a um grupo de risco; medo de ofender os pacientes, por acreditarem que se trata de um assunto privado; sentimento de impotência diante dos abusos cometidos e da perda de controle, pois se decepcionam ao depararem com a inabilidade dos pacientes em controlar suas vidas, e também ficam desapontados com sua própria impossibilidade de controlar os comportamentos dos pacientes. Rodríguez-Bolaños, Márquez-Serrano e Kageyama-Escobar (2005) destacam outras barreiras, que impedem a identificação e encaminhamento dos casos de violência. Para esses autores, os médicos temem por sua segurança pessoal, não querem se envolver com questões judiciais, desconhecem locais para encaminhar as mulheres e não acreditam que o serviço de saúde seja um local adequado para tratar casos de violência. Além disso, os profissionais tendem a desconfiar que as mulheres estejam realmente falando a verdade e acreditam que suas atitudes podem não contribuir para solucionar o problema. Existem também barreiras institucionais, considerando que a instituição não oferece suporte ao atendimento, nem espaços privados para realizar a consulta, sem contar a falta de capacitação profissional. Destaca-se também que não estão sendo completamente cumpridas as normas de atenção estabelecidas, que contemplam identificação, valorização do risco, fortalecimento, orientação, referência e registro. Para Schraiber et al. (2003), o fato de a linguagem entre profissionais e usuárias ser muito diferente é um aspecto fundamental na dificuldade de se trabalhar com o tema. Há um hiato entre o que os profissionais entendem como sendo um problema de saúde e o que as usuárias buscam nos serviços. Por essas razões, as demandas trazidas pelas usuárias não têm lugar reconhecido entre os profissionais, pois não existem canais de expressão ou de comunicação entre eles, por falta de códigos de linguagem em comum e consenso em relação às nomeações próprias a respeito dessa questão. A dinâmica dominante na situação é: a mulher não fala e os profissionais não perguntam, denunciando a dificuldade da comunicação, o silêncio e a invisibilidade do problema como consequências de sentimentos de medo, vergonha, preconceito ou descrédito de ambas as partes. Portanto, ao constatarmos a importância do processo de comunicação para o atendimento das mulheres em situação de violência, consideramos o médico locado nas unidades de saúde como agente mediador e interlocutor, que, no contato com as usuárias, torna-se peça-chave para acolher, desenvolver possíveis intervenções e encaminhamentos. Sendo assim, acreditamos que um passo importante a ser dado é compreender a percepção desses profissionais sobre a violência de gênero, além de identificar quais os procedimentos e intervenções adotados para investigar sua ocorrência. Dessa forma, este estudo teve por objetivo investigar a percepção dos médicos que atuam nas unidades básicas de saúde de Ribeirão Preto-SP sobre a violência praticada contra mulheres por parceiros íntimos.
Trajetória metodológica Em virtude da natureza do fenômeno, optamos por realizar uma pesquisa de cunho qualitativo, uma vez que este método volta-se para os aspectos subjetivos, que possibilitam um aprofundamento nas 290
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artigos
redes de significações das ações e relações humanas, buscando-se compreender a realidade vivenciada por esses profissionais (Minayo, 2001). Para termos acesso aos significados que os profissionais constroem acerca da violência contra a mulher, elegemos, como instrumento, a entrevista semiestruturada. Um roteiro temático foi elaborado com o intuito de contemplar os seguintes tópicos: percepção sobre a violência doméstica contra a mulher, atuação profissional diante da violência doméstica, e conhecimentos teóricos e práticos para possíveis encaminhamentos. Elegemos, como critérios de inclusão, que os médicos trabalhassem nas unidades básicas de saúde de Ribeirão Preto-SP, localizadas nos cinco distritos sanitários do município; fossem clínicos gerais (CG) ou ginecologistas-obstetras (GO); atendessem mulheres em sua prática profissional; e concordassem em participar da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com as normas preconizadas pela resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Obtida a autorização institucional e após a aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, realizamos pré-teste do instrumento para ajustar o roteiro. A aplicação-piloto abrangeu cinco entrevistas com profissionais que preenchiam os critérios de seleção e que não foram incluídos no estudo. Além disso, realizamos uma aproximação com o campo, com o intuito de nos ambientarmos e nos aculturarmos no contexto. Selecionamos os entrevistados conforme os critérios definidos e realizamos 14 entrevistas com o auxílio do gravador, no período de junho a agosto de 2007. O critério de saturação foi utilizado para interromper a coleta de dados. No processo de coleta de dados, deparamo-nos com dificuldades que estenderam nossa permanência no trabalho de campo – entre elas, em vinte das visitas que realizamos nas unidades de saúde, não foi possível falar pessoalmente com os médicos por razões diversas: não estavam presentes nas unidades, alegaram que não tinham tempo ou que não estavam disponíveis para conceder a entrevista. Nesse caso, as enfermeiras ou os responsáveis pelo serviço sugeriam-nos que retornássemos em outros dias e em horários diferentes, o que poderia favorecer a realização da coleta. Além disso, cinco médicos negaram-se prontamente a colaborar com o estudo, alegando que não tinham tempo, nem interesse em contribuir com a pesquisa. Tanto as recusas frontais, como as sutis – que se materializaram em esquivas apoiadas em pretextos banais, embora compreensíveis, como “falta de tempo” – são comportamentos que sinalizam uma predisposição negativa em relação à temática abordada no estudo ou, mais genericamente, uma indisposição em colaborar com investigação científica na qual não se vislumbra um interesse ou oportunidade de obter benefício imediato. Por outro lado, é preciso considerar que tais recusas, além das dificuldades no agendamento das entrevistas com os outros médicos, podem resultar em um viés de seleção, pois os informantes que se recusaram poderiam ser ainda mais avessos à temática do que aqueles que aceitaram participar. O perfil dos participantes foi delineado conforme os dados obtidos nas entrevistas. Dentre os 14 entrevistados figuram: oito homens e seis mulheres com idades variando entre 29 a 57 anos; 12 viviam com parceiro fixo e dois eram solteiros; quanto às suas especialidades médicas, nove eram GO e cinco CG; em relação à distribuição por local de trabalho, três atuavam no distrito leste, dois no sul, três no oeste, dois no norte e quatro no distrito central; o tempo de formação dos profissionais variou entre quatro e 36 anos; e, por fim, o tempo de atuação na Secretaria Municipal de Saúde variou entre um a 25 anos. Para garantir o anonimato dos participantes, optamos por descrevê-los com base em algumas características, tais como: especialidade, sexo e idade. As entrevistas foram transcritas na íntegra e literalmente. Para sistematizar os resultados utilizamos o método de análise de conteúdo temático proposto por Bardin (1977), o que nos possibilitou identificar os núcleos de sentido que emanavam dos discursos dos médicos entrevistados. Para tanto, realizamos uma primeira leitura flutuante do material transcrito para nos aproximarmos dos conteúdos abordados pelos entrevistados, o que permitiu que nos familiarizássemos com suas impressões. Várias releituras exaustivas foram realizadas e possibilitaram um aprofundamento no exame dos relatos, assim como destacar eixos norteadores para a interpretação. Seguimos a análise organizando os dados de acordo com os temas utilizados para elaboração do roteiro de entrevista. Concluída essa etapa do processo, elaboramos uma classificação dos conteúdos por meio do desmembramento dos relatos, para identificar as ideias principais, assim como as estruturas relevantes abordadas pelos entrevistados. Sendo assim, 291
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destacamos alguns temas que se consolidaram a partir da comparação dos eixos norteadores do roteiro de entrevista com o material que emergiu dos discursos dos participantes. Como referencial teórico para dar suporte à análise de conteúdo, utilizamos as noções de gênero abordadas anteriormente. Entendemos que esse fundamento teórico é capaz de nos proporcionar a compreensão das representações dos profissionais de saúde, tanto a partir de sua inserção como sujeitos sociais quanto a partir do que eles destacam acerca de suas representações das relações estabelecidas entre homens e mulheres. Partimos do pressuposto de que essas representações são as pautas orientadoras para sua atuação profissional diante da violência contra a mulher.
Resultados e discussão Para a construção dos resultados analisamos os eixos norteadores: conhecimentos sobre os tipos e gravidade da violência de gênero; percepções acerca de quem é a mulher que se encontra em situação de violência; a prática médica frente a essa situação; as possibilidades de intervenção profissional e percepção de barreiras para o atendimento. Outras temáticas que emergiram no decorrer das entrevistas não serão abordadas neste estudo. No que diz respeito ao conhecimento sobre os tipos e gravidade da violência de gênero, todos os médicos afirmam conhecer a violência física e psicológica. Alguns denominam esta última de violência verbal. A violência sexual foi a menos mencionada nos discursos. Além do destaque dado à violência física, percebemos, a partir dos relatos coligidos, que os médicos reconhecem que privar a mulher de frequentar o espaço público, impedi-la de trabalhar e depreciar o desempenho de suas atividades domésticas são expressões de violência, assim como manter relação sexual sem o consentimento da parceira. Outra ideia abordada pelos profissionais foi a de que a violência surge a partir do momento em que há transgressão do respeito pela individualidade da mulher. Dois médicos destacaram que, em se tratando de violência psicológica, a mulher também participa ao depreciar o trabalho e outros aspectos relacionados à vida do homem. Esses achados estão de acordo com Gregori (1993), que destaca a participação ativa da mulher na situação de violência. Em relação às percepções da gravidade da violência presentes nas falas dos profissionais, a maior parte acredita que a violência psicológica é a mais grave, pois a própria mulher apresenta dificuldade em reconhecê-la como algo prejudicial à sua saúde, a ponto de, frequentemente, permanecer exposta à situação durante anos a fio. Além disso, a constatação do agravo torna a tarefa mais árdua, uma vez que implica mobilizar recursos para superar a situação. Outra ideia que surgiu nos relatos é a de que, por ser mais difícil o profissional detectar a violência e a própria mulher reconhecê-la como tal, os médicos sentem-se limitados para abordá-la ou aplicar qualquer tipo de intervenção. Destaca-se a fala de profissionais que afirmam que a violência psíquica causa dependência emocional da mulher em relação ao homem, dando margem para o surgimento das violências física e sexual. As passagens a seguir ilustram essas idéias: “[...] eu acho que a pior em termos, até para diagnosticar, para pessoa perceber que está passando, eu acho que é a violência emocional, aquela um pouco ligada à dependência [...] difícil às vezes você quebrar isto, eu acho que é a pior, a pior. Até porque, junto com ela, vem a dependência emocional, vem, futuramente, às vezes uma violência física, uma violência sexual, eu acho que é a pior”. (GO2, mulher, 37 anos) “[...] mais grave mesmo, do ponto de vista existencial, é a violência psíquica. Por quê? Porque ela é suportável. Então fica aquele casal se suportando anos [...] anos, né. Especialmente a mulher suportando o homem. Mas a mulher também… evidentemente que ela… é bilateral essa revolta. E… é… a violência física de um modo geral, ela permite a definição mais rápida da situação”. (CG5, homem, 57 anos)
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Esses discursos remetem-nos à definição de violência abordada por Chauí (1984), ao propor que os agressores buscam manter a parceria e estabelecer relações hierárquicas, tornando desiguais as diferenças, visando dominar, explorar e oprimir, contudo sem que o indivíduo perceba-se imerso nessa situação, alienando-o, impedindo o exercício de sua autonomia e sujeitando-o à humilhação e opressão. A violência psicológica provoca feridas na alma, muitas vezes mais difíceis de curar do que as marcas físicas, e é constantemente acompanhada por outras formas de violências (Saffioti, 2004). Outro ponto que constatamos refere-se às percepções acerca de quem é a mulher que se encontra em situação de violência. De acordo com os profissionais, a permanência das usuárias em um relacionamento marcado pela violência deve-se a múltiplos fatores, destacando-se, sobretudo: o medo de represália do parceiro, a dependência financeira e emocional, e o medo de perder os filhos. Esses aspectos estão diretamente relacionados às questões de gênero, ou seja, a posição social “inferior” ocupada pela mulher justifica e naturaliza a violência, que tende a se perpetuar. O relato a seguir apresenta essas considerações: “Porque a situação de vida dessas mulheres é muito complicada. Elas dependem do marido financeiramente, né… não têm coragem de largar por causa dos filhos… porque ele que banca a casa. [...] É educacional, as famílias são muito ignorantes, sem instrução nenhuma, muito broncas… foram criadas assim, como uma mulher muito subjugada. Como é que você vai mudar isso na cabeça de uma pessoa, né? Fazer a mulher entender que ela é igual ao marido dela. Que ela tem que se posicionar com ele de igual pra igual. Mas não adianta, ela não foi criada assim. O cara não vê ela assim, ela não se vê assim, entendeu?”. (GO5, mulher, 30 anos)
Chama a atenção o preconceito de classe dos profissionais, que frequentemente desqualificam as mulheres, com expressões como “as famílias são muito ignorantes”. Essa visão desqualificadora das usuárias põe em relevo a assimetria que marca as relações de poder, tanto na hierarquia de gênero como na estrutura de classes. É preciso lembrar que a medicina científica, desde sua origem no projeto de medicalização do corpo feminino, se afirma como uma profissão “masculina” e misógina (Vieira, 2002). Ainda hoje constitui um nicho de poder masculino, o que vale também para as mulheres médicas, submetidas à mesma ordem do discurso. Para Piscitelli (2002), devido à construção social do papel da mulher – ou seja, quando se trata do feminino social, o gênero – a mulher ocupa uma posição de dependência em relação ao homem, que seria o provedor de suas necessidades materiais. À mulher é destinado o espaço privado, ou seja, a responsabilidade pelo desempenho das tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos, naturalizando-se as relações de gênero. Seu perímetro de domínio é delimitado pelo lar, e a possibilidade de perder suas funções tradicionais significaria abrir mão de suas conquistas e de sua relevância social. Seguindo-se essa linha de raciocínio, a mulher permanece na relação por não ser capaz de visualizar outras possibilidades para sua vida, o que contribui para a cronicidade da violência, destacada por Oliveira (2001) e Saffioti (2004), que afirmam que esta se desenvolve em um ciclo vicioso e, com o passar dos anos, tende a se tornar mais grave e intensa. Nos deparamos, assim, com as questões de gênero na gênese da violência perpetrada por parceiro íntimo. Por meio da hierarquia de gênero, a mulher é designada como dócil, submissa, emotiva, resignada e cuidadora, enquanto o homem deve ser agressivo, corajoso, destemido, arrojado e provedor. Essas noções manifestam-se no discurso dos médicos ao destacarem que as mulheres, mesmo reconhecendo a situação de violência a que estão expostas, aceitam-na como algo natural e inevitável, portanto, inquestionável e imutável. No que se refere à prática médica frente à situação de violência, pudemos depreender dos discursos que os profissionais são capazes de identificar usuárias que sofrem agressão, seja devido às marcas físicas deixadas em seus corpos ou aos sintomas associados, tais como: somatizações, queixas infundadas e desconfortos difusos, angústia, depressão, dispaurenia (dores ao manter relação sexual), entre outras manifestações. Outro elemento que contribui para a identificação da violência é o relato produzido pelas mulheres, ao serem questionadas, conforme podemos verificar nas passagens a seguir:
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“[...] a gente percebe (silêncio). Percebe como? Primeiro, pode ser pelas lesões que ela tem. E ela fala assim: “Ah. Eu escorreguei e bati o olho.” Mas a gente percebe, quando tem um hematoma. “Ah. Eu escorreguei e bati o olho.” Esse hematoma, não é que escorregou... é claro que ela levou um soco do marido, só que ela não quer falar. A gente percebe assim, às vezes conversando um pouco... [...] Às vezes eu fico 15, vinte minutos conversando com ela, tento ganhar confiança dela ... para ver se ela conversa alguma coisa, se ela faz alguma coisa”. (GO3, homem, 52 anos) “Eu já tive pacientes que me revelaram, mas elas não vieram com essa queixa, entendeu? Isso foi uma coisa que... a gente começa retirando conforme a gente vai colhendo a história. [...] Normalmente porque tá tendo dor pra tudo quanto é lado. E tá vivendo com angústia, são os casos de depressão”. (CG1, mulher, 36 anos)
As diferenças de classe se expressam em um olhar de “estranhamento” e suspeição que o profissional dirige às mulheres atendidas na rede pública. O médico não hesita em lançar mão dos estereótipos de gênero para interpretar as várias situações de violência. Desse modo, sua percepção sobre essas mulheres parece estar calcada nas diferenças de situação socioeconômica e educacional das pacientes assistidas na rede pública, que é complementada por uma visão de gênero. Esta se evidencia quando se pressupõe que as mulheres “querem” permanecer nessa situação, aceitam ser subjugadas e inferiorizadas, ou mentem deliberadamente para proteger seus parceiros violentos. Essa visão é ancorada em preceitos que reforçam o estereótipo de gênero sobre a condição feminina em nossa sociedade. Outro estudo encontrou resultados semelhantes (Kiss, 2004). Os relatos sugerem que as mulheres em situação de violência não necessariamente buscam as unidades de saúde para tratar das lesões, mas chegam aos serviços com as mais variadas demandas. Foi possível identificar no discurso de vários entrevistados que a relação estabelecida entre médico e paciente promove um sentimento de confiança, que viabiliza a abertura de um canal de comunicação da mulher com o profissional. Os médicos conseguem identificar que essas queixas, mesmo quando a mulher nega a situação de violência – tais como dores difusas, muitas vezes sem explicações físicas que as justifiquem –, podem estar relacionadas a outros determinantes. Algumas vezes, por meio do diálogo estabelecido com essas mulheres, eles terminam por confirmar a exposição à situação de violência. As entrevistas indicam que, apesar de essas mulheres chegarem aos serviços com queixas diversas, que à primeira vista não são necessariamente relacionadas à violência, os profissionais são capazes de identificar essa conexão. Assim, ao estabelecerem uma relação de confiança e intimidade com suas pacientes, possibilitam que a violência doméstica perca sua aura de invisibilidade. Os profissionais reconhecem também que existem casos que eles não são capazes de identificar, tal como mostra o relato a seguir: “A mulher… eu acho que muito mais do que a gente estima… que a maioria das pacientes eu acho que nem falam, né. E se a gente não percebe… pelo o que ela falou, se não tem nenhuma marca no corpo… a gente não fica sabendo, né”. (GO5, mulher, 30 anos)
Frente à identificação dos casos de violência, os médicos lançam mão de uma gama diversificada de possibilidades de intervenções profissionais, conforme cada caso, tais como: tratar ferimentos; dar apoio moral; orientar e esclarecer a usuária de que aquela situação lhe é prejudicial e que existem recursos para alterar aquele panorama; notificar; encaminhar para os mais variados serviços multidisciplinares. Selecionamos dois relatos que retratam as atitudes dos profissionais ao serem questionados sobre como agir frente a uma mulher que se encontra em situação de violência: “Eu acho que a primeira coisa é identificar, né. Você tentar identificar o problema. Aí, tentar... ah... falei assim, tentar achar uma maneira de tentar ajudar, mandar, encaminhar pro psicólogo, mesmo que seja difícil, tentar ir abordando de forma... devagar pra conseguir encaminhar a paciente”. (GO4, mulher, 29 anos) 294
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“Eu acho que é isso… fazer isso… é… orientar: “o senhor acha que eu devo… o senhor acha que eu devo denunciar?” [...] “Eu acho que deve”. Dar força nesse aspecto… eu acho que esclarecer, esclarecer, né [...] mas, pelo menos orientar e achar o que é mais lógico de se fazer. Deixar assim… alertar, orientar… mostrar que não é desse jeito. Principalmente quando você tem confiança, né… de ela poder te dizer isso, elas confiam, né… não vão dizer pra qualquer um. Chegar no ponto de falar com o médico, né. Eu acho que é isso”. (CG4, homem, 47 anos)
Schraiber et al. (2002), ao destacarem a importância dos serviços de saúde para o enfrentamento da violência, afirmam que esses locais são portas de entrada para mulheres, sendo, portanto, necessário identificar os casos por meio do diálogo, para que ocorra o acolhimento e o encaminhamento adequados, estratégia condizente com as necessidades do cuidado integral. Carreira e Pandjiarjian (2003), ao apoiarem a criação de uma rede intra e intersetorial para lidar com a violência de gênero, destacam que é fundamental uma visão integrada, que inclua a prevenção-identificação para um correto encaminhamento-atendimento dessas mulheres. Pautados nesses autores, enfatizamos que o encaminhamento, para além da dimensão do acolhimento, seria uma alternativa eficaz de dar prosseguimento à assistência a uma situação de combate à violência, visando um melhor prognóstico para a usuária. Para os médicos que trabalham nas unidades de saúde, os locais mais referidos para se encaminhar uma mulher em situação de violência doméstica foram: a Delegacia de Defesa da Mulher, nos casos de violência física, e, nos casos de agressão sexual, o Hospital das Clínicas, por possuir um serviço especializado para tratar desse tipo de violência. Outra alternativa de encaminhamento que surgiu nos relatos foram os serviços de saúde mental, por disponibilizarem terapia de casal. Além disso, pudemos constatar que parte dos entrevistados desconhece os recursos comunitários disponíveis para possíveis encaminhamentos dessas usuárias, delegando ao serviço de enfermagem tal função. Houve ainda uma parcela de profissionais que afirmou não conhecer os procedimentos adequados para dar andamento aos casos de agressão: “Então… porque eu atendo aqui… daí eu preencho esse protocolo e passo pra enfermeira. Daí a enfermeira que vai… então eu não sei te falar… pra onde ir. A enfermeira que vai tomar essas providências. Então eu não sei pra onde eu mando a mulher, não sei”. (GO6, homem, 41 anos) “Eu não sei quais os passos certinho, assim… a gente fala: “oh, procura a delegacia”… Mas também não sei dizer com detalhes, não. Não sei se tem algum serviço de apoio psicológico, não sei”. (GO5, mulher, 30 anos)
Essas passagens acabam por denunciar uma situação preocupante, também apontada por Pedrosa (2003) ao referir que os médicos não estão capacitados para lidar com usuárias que chegam aos serviços de saúde em situação de violência a que estão expostas muitas vezes cronicamente. A falta de capacitação é destacada pelos participantes como uma barreira para o atendimento dessas mulheres, uma vez que muitos deles reforçam a necessidade de um treinamento voltado especificamente para os casos de violência de gênero. Esse achado é congruente com outros estudos, como os de Rodríguez-Bolaños et al. (2005), Schraiber et al. (2003, 2002) e Schraiber e D’Oliveira (1999). Além dessas, outras barreiras institucionais são referidas nos discursos dos profissionais, tais como: a falta de tempo para abordar a paciente; a falta de estrutura do sistema, que não disponibiliza profissionais suficientes e, ainda, a falta de capacitação de outros órgãos envolvidos na rede de apoio e assistência, sobretudo a polícia, a qual, segundo os médicos, não faz nada. Essas barreiras institucionais são destacadas nos relatos a seguir: “Ai... na verdade o que eu tô fazendo é muito pouco. Porque você começa... você esbarra em tantas dificuldades aqui.... primeiro que cê quase não tem tempo... você acaba tendo que... eu... é 15 minutos a consulta, mas pra você fazer uma orientação sexual mesmo, você tem
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que... ou, então, de agressão, de conversar com a mulher, é muito mais que isso, então esse é um obstáculo”. (GO4, mulher, 29 anos) “Também, como ajudar ela? Eu dou os conselhos, tudo bem. Tem mulher que quer sair desta situação, só que não acha um lugar onde ela pode ser ajudada. Onde poderiam ajudar? É a polícia, só que a polícia não faz nada. Tem a Delegacia da Mulher, que ela disse que fez vários BOs, só que a polícia também não faz nada. E ela continua apanhando”. (GO3, homem, 52 anos) “[...] Eu acho que essa é uma inadequação do serviço público. Por exemplo, né… quê que adianta eu estar detectando e não conseguir trabalhar o quê que aquela violência pode estar fazendo na vida da pessoa, até pra que ela tenha condições de mudança ou de enfrentar a situação de outra forma? Eu não tenho tempo… eu não tenho formação pra isso… e não tenho o que fazer, pra onde encaminhar”. (GO7, mulher, 48 anos)
Chama a atenção que vários profissionais partem do pressuposto de que não há nada a ser feito, uma vez que as mulheres e/ou os serviços e/ou as delegacias de polícia não colaboram. Desse modo, subestimam a importância da detecção e encaminhamento, bem como o trabalho em rede. Além das barreiras institucionais, encontramos, no relato dos médicos, barreiras pessoais, que muitas vezes os impedem de agir adequadamente frente a uma situação de violência. Entre elas, destacam-se: os médicos sentem-se impotentes frente às atitudes que a mulher possa vir a tomar, mesmo depois de orientada; afirmam que temem tomar qualquer atitude por medo da reação do agressor. Podemos inferir essas dificuldades nos relatos a seguir: “Que ela veio uma vez com espancamento... e, assim... ela foi muito espancada, tava com marcas no pescoço. Aí eu falei pra ela procurar a Delegacia, fazer queixa... ir atrás. Aí o marido... ela... ela voltou com o marido e o marido veio aqui tirar satisfação: por que eu mandei ela fazer queixa? É uma situação complicada. Mas a gente tem que orientar sempre... é obrigação nossa orientar pra procurar a delegacia”. (GO4, mulher, 29 anos)
Esses resultados são convergentes com diversos estudos realizados sobre a violência de gênero (Rodríguez-Bolaños et al., 2005; Kiss, 2004), no que diz respeito às barreiras destacadas pelos profissionais de saúde para identificar e lidar com casos de violência. Frente a isso, Schraiber et al. (2002) propõem algumas estratégias: a comunicação, a capacitação e a implicação das instituições com o fenômeno abordado seriam os meios pelos quais a violência doméstica poderia finalmente ter seu espaço reservado na agenda do sistema público de saúde. Além disso, deveria ser mais desenvolvida uma rede de apoio multidisciplinar, que integrasse as áreas de saúde, segurança pública, educação, assistência psicossocial, entre outras, contribuindo para a prevenção e o combate da violência doméstica contra a mulher (Carreira, Pandjiarjian, 2003).
Conclusão O presente estudo explora um tema relevante e atual para a área da saúde pública, visto sob a ótica dos profissionais. Os resultados revelaram que os médicos detêm alguns conhecimentos acerca dos tipos de violência de gênero e são capazes de identificar e, muitas vezes, acolher as mulheres que estão expostas à situação. Contudo, destacam uma série de dificuldades para atuarem frente a uma usuária que apresenta essa problemática, e reconhecem a falta de capacitação profissional, além de outras barreiras pessoais e institucionais, que limitam sua atuação, tanto em nível preventivo como interventivo. Algumas características da interação médico-paciente também se mostraram úteis para a compreensão do fenômeno investigado. A percepção dos médicos sobre a violência perpetrada por 296
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parceiro íntimo é influenciada pela condição social da mulher assistida no Sistema Único de Saúde, que é fortemente desqualificada. A essa dimensão dos preconceitos de classe dos profissionais se acopla a das relações de gênero, o que implica que a hierarquia de classe e a hierarquia de gênero se complementam e potencializam, atualizando, no interior da relação médico-paciente, a subordinação histórica das mulheres. Frente aos resultados obtidos, podemos questionar se as dificuldades e barreiras destacadas pelos médicos não estariam denunciando que a violência, além de ser invisível – como abordada em estudos anteriores – não seria por vezes ignorada e negligenciada, visto que muitos profissionais não se sentem seguros, nem capacitados para lidar com mulheres expostas à situação de violência. Será que não poderíamos falar em uma invisibilidade institucional, uma vez que os profissionais não são preparados para as mais variadas situações que possam surgir em seu cotidiano, além do fato de a rede pública não disponibilizar uma estrutura capaz de dar suporte permanente a essas demandas? Ao apontarem a singularidade da percepção dos médicos, os resultados sugerem a necessidade de um trabalho integrado e em rede, que ofereça uma resposta efetiva para o problema da violência de gênero. Além disso, é preciso investir na qualificação dos outros profissionais de saúde, além dos médicos, para que se viabilize um atendimento multidisciplinar. Nessa vertente, apontamos a importância de haver outros profissionais mais capacitados para a escuta, que não necessariamente o médico, uma vez que este dispõe de apenas 15 minutos para a consulta. Como apontam outros estudos, também é preciso oferecer supervisão interdisciplinar, para possibilitar que a rede seja capaz de oferecer uma infraestrutura que dê suporte a essa demanda. Finalmente, é preciso dar atenção para as questões de gênero e de classe que atravessam as percepções que os profissionais têm em relação ao fenômeno da violência doméstica e às mulheres acometidas, para que os serviços de saúde se constituam em espaços de acolhimento e apoio, integrando-se efetivamente à rede de atendimento.
Colaboradores Fernanda Garbelini De Ferrante coletou e analisou os dados e redigiu este artigo sob supervisão de Elisabeth Meloni Vieira, que desenhou e orientou o estudo. Manoel Antônio dos Santos participou da análise dos dados e da redação final do manuscrito. Referências ANGULO-TUESTA, A.J. Gênero e violência no âmbito doméstico: a perspectiva dos profissionais de saúde. 1997. Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 1997. AZEVEDO, M.A. Mulheres espancadas: a violência denunciada. São Paulo: Cortez, 1985. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Press Universitaires de France, 1977. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CARREIRA, D.; PANDJIARJIAN, V. Vem pra roda! Vem pra rede!: guia de apoio à construção de redes de serviços para o enfrentamento da violência contra a mulher. São Paulo: Rede Mulher de Educação, 2003. CHAUÍ, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: FRANCHETTO, B.; CAVALCANTI, M. L.V.C.; HEILBORN, M.L. (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. v.4. p.23-62.
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Palabras clave: Violencia contra la mujer. Médicos. Personal de salud. Atención primaria de salud. Salud de la mujer. Recebido em 10/10/08. Aprovado em 19/07/09.
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Trabalho em saúde e a implantação do acolhimento na atenção primária à saúde: afeto, empatia ou alteridade? Alessandro da Silva Scholze1 Carlos Francisco Duarte Junior2 Yolanda Flores e Silva3
SCHOLZE, A.S.; DUARTE JUNIOR, C.F.; FLORES E SILVA, Y. Health work and the implementation of user embracement in primary healthcare: affection, empathy or alterity?. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.303-14, out./dez. 2009. We conducted a theoretical reflection on the work of primary healthcare professionals in the scope of user embracement, searching for possibilities to overcome alienation in their production process, based on experience reports regarding user embracement implementation in primary healthcare services. We identified the following theoretical perspectives which we consider useful in order to enhance humanization in the work in the health area and also to foster subjectivity in interpersonal relationships: affection, empathy and alterity. Although they are closely related to each other, we believe alterity is the theoretical perspective that is able to give the health worker conditions to develop user embracement while ensuring his/her own humanization. Alterity opens possibilities to cope with everyday situations in the healthcare services, providing health professionals with the conditions to work without restricting themselves to a biomedical point of view and, at the same time, preserving their own health.
Desenvolvemos uma reflexão teórica sobre o trabalho na Atenção Primária à Saúde (APS) na diretriz do acolhimento, buscando possibilidades de superar a alienação em seu processo produtivo, a partir de relatos de experiência da implantação do acolhimento em serviços de APS. Identificamos as seguintes perspectivas teóricas nas relações interpessoais nos serviços, com indicadores de avanços na humanização do trabalho em saúde e de uma aproximação com a subjetividade: afeto, empatia e alteridade. Ainda que todas sejam adequadas e mesmo complementares entre si, fazemos nossa opção pela alteridade como perspectiva teórica capaz de instrumentalizar o trabalhador da saúde para desenvolver o acolhimento, sem deixar de garantir sua própria humanização. Esta abre possibilidades de enfrentamento das situações do cotidiano dos serviços de saúde, oferecendo aos profissionais condições de construírem seu trabalho sem limitá-lo à perspectiva biomédica e preservando sua própria saúde.
Keywords: User embracement. Healthcare services. Primary healthcare. Interdisciplinary research.
Palavras-chave: Acolhimento. Serviços de saúde. Atenção primária à saúde. Pesquisa interdisciplinar.
1 Curso de Medicina, Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Rua 3050, 300, apto. 101, Centro. Balneário Camboriú, SC, Brasil. 88.330-308. alessandroscholze@univali.br 2 Curso de Medicina, UNIVALI. 3 Mestrado Profissional em Saúde da Família e Gestão do Trabalho, UNIVALI.
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Introdução A Política Nacional de Humanização (PNH) da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde, chamada Humaniza SUS, foi desenvolvida de modo a qualificar o SUS e estabelecer, na prática, suas diretrizes. Essa política foi uma resposta às evidências do despreparo dos profissionais da saúde para lidar com a dimensão subjetiva do cuidado, juntamente com a persistência de modelos de gestão centralizados e verticais, que desapropriam o trabalhador de seu processo de trabalho (Brasil, 2006a). A PNH definiu como humanização “a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores” (Brasil, 2006a, p.10). Esta deve ser implementada com base nos seguintes princípios: transversalidade, qualificando a comunicação no sistema; indissociabilidade entre atenção e gestão, garantindo a integralidade do cuidado ao identificá-lo com os processos de trabalho e produção de saúde; protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos. Este último relaciona-se diretamente com o entendimento do trabalho como forma de produção de sujeitos, assumindo que a autonomia destes nos processos de gestão e cuidado garante maior efetividade nas mudanças do sistema de saúde. O acolhimento é uma das diretrizes da PNH e tem se tornado sua face mais visível, especialmente na Atenção Primária à Saúde (APS), pelas consequências diretas que pode determinar no acesso dos usuários como uma mudança no processo de trabalho, a fim de atender todos aqueles que buscarem o serviço de saúde. Desse modo, o princípio da universalidade é estabelecido de forma qualitativa, não apenas pelo aumento no número de unidades ou profissionais na rede de saúde, mas pela inclusão de toda a equipe de saúde no processo de atenção, aproveitando a capacidade clínica de profissionais que apenas serviam de intermediários para a consulta médica. Esses profissionais devem criar espaços no serviço de saúde que permitam uma escuta qualificada, conduzindo à responsabilização pelo problema do usuário e dando-lhe uma resposta adequada (Brasil, 2006a; Silveira, 2004; Malta et al., 1998). A PNH propõe o acolhimento como processo constitutivo das práticas de produção e promoção da saúde, preocupando-se em incluir a saúde do trabalhador em saúde como parte das metas do SUS e de seus parâmetros de avaliação. Porém, as propostas da PNH conduzem tanto a possibilidades de humanização do trabalho no SUS como a novas exigências, capazes de sobrecarregar ainda mais os profissionais de saúde, caso estes não estejam instrumentalizados para lidar com o aumento de demanda gerado na ampliação qualitativa da universalidade e pela qual devem se responsabilizar. Nesse caso, ainda que bem intencionada, a proposta da humanização com base no acolhimento gera condições adicionais para o surgimento da Síndrome de burnout do trabalhador em saúde. Reconhecida como uma das principais doenças nos Estados Unidos e na Europa, o burnout é um risco ocupacional para pessoas envolvidas nos cuidados em saúde, iniciado com excessivos e prolongados estados de tensão no trabalho, atingindo mais intensamente os não especialistas, como as auxiliares de enfermagem. Suas manifestações incluem: exaustão emocional, perda de interesse em práticas profissionais inovadoras e sintomas físicos diversos, com consequente perda de qualidade no trabalho e distanciamento nas relações pessoais (Trigo; Teng, Hallak , 2007). O sofrimento no trabalho pode ainda ser mantido pelo desenvolvimento de estratégias defensivas que garantem a normalidade aparente e insensibilizam contra o que faz sofrer, como as demandas lançadas ao trabalhador em saúde para construir um ambiente de humanização e acolhimento dentro de um sistema que nega a subjetividade do trabalhador e do usuário. Esse trabalhador protege sua saúde mental, de modo a tornar tolerável o sofrimento ético que experimenta ao infligir um sofrimento indevido ao outro, objetificando-o e a si mesmo num processo de produção de procedimentos, e não de saúde (Dejours, 1999). Diante disso, construímos este artigo a partir de uma pesquisa de natureza bibliográfica/teórica sobre o trabalho dos profissionais de saúde na perspectiva do acolhimento na APS no Brasil, com base nas categorias afeto, empatia e alteridade, apontadas como possibilidades teóricas para superar a alienação em seu processo produtivo (Mayema, 2007; Brasil, 2006a, 2006b; Teixeira, 2005, 2004). Inspirando-nos em Minayo (2007), relacionamos tais possibilidades bibliográficas/teóricas com relatos de situações práticas de implantação do acolhimento na APS, coletados em artigos científicos identificados nas bases de dados da Bireme com a temática “acolhimento”, especificando-se “serviços de saúde”, de 1998 a 304
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2008, e considerando a descrição das primeiras experiências até as mais atuais. O resultado dessa busca indicou 13 textos, dos quais apenas três descreviam experiências. Considerando o número de textos disponíveis para análise, escolhemos “acolhimento” e “APS” como nossos novos descritores de busca e selecionamos outros nove trabalhos. A análise e a interpretação do material disponível resultaram da leitura compreensiva dos textos selecionados, problematização das ideias aí contidas sobre implantação do acolhimento e humanização do trabalho, conduzindo-se um diálogo com as categorias previamente identificadas para elaborarmos uma síntese interpretativa.
Trabalho e cuidado na saúde Segundo Zarifian (2002, p.10), “todo trabalho caracterizado profissionalmente pode ser definido nos seguintes termos: conduzir um devir, mobilizando a experiência passada e antecipando o porvir”. A hegemonia do capitalismo industrial tornou-se viável pela instituição da autodisciplina na organização do tempo que passou a permear toda a atividade social, organizada e reforçada pela disciplina industrial. A existência de um tempo homogêneo, caracterizando o tempo do porvir, permitiu comparar e controlar trabalhos heterogêneos, relacionando-os com um padrão comum, ou seja, o tempo necessário para produzir uma unidade de mercadoria. E, num aspecto mais amplo, possibilitou organizar os acontecimentos, relações sociais e fazer previsões nesse tempo espacializado em torno de um referencial comum, rigorosamente homogêneo, que contabiliza a passagem de minutos, dias ou anos. Dotado de tanta utilidade social, o tempo espacializado não tem sentido próprio nem valor ético, mas foi incorporado na organização taylorista do trabalho, definindo cada gesto e movimento do trabalhador, sempre repetidos da mesma forma no presente. Já, quando atualmente aplicada aos prazos para realização de certa tarefa, a pressão do tempo pode ser simplesmente transferida do gesto do trabalhador para a impaciência do cliente ou, alternativamente, ser negociada numa interação entre trabalhadores e clientes, determinada pela qualidade concreta do serviço, e não pela ditadura abstrata do tempo homogêneo. Assim, o trabalho volta-se para o tempo do devir, simultaneamente objetivo e subjetivo, integrando as memórias e as experiências do passado em um presente que apenas serve ao fluxo das transformações que conduzem às diferentes possibilidades do futuro (Zarifian, 2002). Também na saúde, o trabalho coletivo costuma ser organizado de forma taylorista, fragmentando-se a atividade produtiva em diferentes parcelas executadas por trabalhadores especializados em cada uma das ações necessárias ao cumprimento da tarefa. Tal divisão técnica do trabalho em saúde é característica do sistema de produção capitalista, determinando a padronização das tarefas de forma hierarquizada e afastando o profissional da saúde do controle do processo de cuidado, com isso há perda da autonomia e alienação desse profissional. O foco do trabalho passa a ser a execução de procedimentos repetitivos, em um tempo espacializado que exclui o trabalhador do processo criativo e das decisões sobre o cuidar (Pires, 2006a, 2006b; Campos, 1998). Essa característica excludente foi definida por Boff (1999) como um dos modos de ser-no-mundo: o trabalho, em oposição ao modo-de-ser cuidado. A partir desses modos possíveis, o ser humano desenvolve seus processos de construção da realidade. O trabalho surgiu como interação do homem com a natureza, evoluindo para uma relação progressivamente mais intervencionista em seu meio, formando culturas que modelaram a natureza e os próprios humanos. Isso foi possível somente adotando certo distanciamento da natureza, a fim de analisá-la e dominar seus processos. Assim, a lógica do ser-no-mundo trabalho é antropocêntrica, negando as conexões do humano com a natureza. Por extensão, essa lógica do trabalho aplicada na própria sociedade humana pode acabar por objetificar e subjugar também as pessoas, como fins para atingir objetivos de produção e consumo. Já o modo-de-ser cuidado seria a essência do ser humano, que não se opõe necessariamente ao modo-de-ser trabalho, mas dele diferencia-se por manter uma relação de convivência sujeito-sujeito com a natureza e entre os seres humanos. Desse modo, a intervenção sobre um objeto é substituída pelo acolhimento e pelo respeito, com os quais o humano dirige-se aos elementos da natureza e da sociedade por seu valor intrínseco e não utilitário. O cuidado, na visão de Boff (1999), é sistêmico, existe na relação entre os elementos do mundo, bem como na relação entre os elementos do próprio ser humano. Exige-se, então, uma integralidade no cuidado com o humano que passa pelo ambiente no COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.303-14, out./dez. 2009
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qual vive, a sociedade na qual convive com outros seres humanos, até suas próprias individualidades físicas, espirituais e mentais. Por sua vez, Maturana (1997) definiu o humano a partir da linguagem que surgiu da intimidade na vida dos antepassados do homem que coordenavam suas ações ao compartilharem alimentos, participarem da criação dos filhos, exercerem sua sensualidade na vida cotidiana. Essas condutas consensuais coordenadas nos pequenos grupos eram, por sua vez, coordenadas pela linguagem, a qual tem uma base emocional; sem esta, a convivência não seria possível. O linguajar e a capacidade de se emocionar reúnem-se para constituir uma forma específica de diálogo ou conversação, definindo o modo de viver do grupo humano considerado. A convivência nos grupos humanos se dá por interações recorrentes. Quando essas interações “recorrem” de forma espontânea, levando à coexistência dos elementos do grupo em aceitação mútua, identifica-se o amor como fenômeno biológico. O amor expressa uma congruência estrutural entre sistemas vivos que, no caso humano, pode acontecer nas diferentes formas possíveis de viver juntos, mais próximas ou mais casuais, desde que baseadas na aceitação mútua. A emoção do amor origina o fenômeno social. Assim, um sistema social humano existe quando seres humanos coordenam suas ações no viver em aceitação mútua, sem a qual o sistema não se define como social. Por outro lado, não são sistemas sociais os sistemas de trabalho, voltados para a realização de uma tarefa, o que exige o compromisso com a emoção que constitui esse espaço de relações. Da mesma forma, os sistemas hierárquicos, “que são [...] constituídos sob a emoção que configura as ações de autonegação e negação do outro na aceitação da submissão própria ou da do outro [...] não são sistemas sociais” (Maturana, 1997, p.177). Nesse sentido, os serviços de saúde aproximam-se mais da definição de aparelhos do que daquela de redes, entendendo-se aparelhos como organizações de agentes sociais caracterizados por dirigirem suas ações a um público, ou seja, o conjunto de indivíduos com o qual mantém uma relação de exterioridade, destinando a ele sua produção, enquanto estabelece internamente sua estrutura e processos de regulação. Já as redes definem-se por não terem um público e, independentemente de quais formas assumam, todas estabelecem estruturas fracamente hierarquizadas e muito mais flexíveis em relação aos aparelhos, sendo constituídas por entidades relativamente autônomas, a partir de um princípio dinâmico de autorregulação. Os aparelhos na sociedade moderna frequentemente agem de forma a excluir o interesse dos usuários, assumindo um paradigma produtivista centrado não nas relações produtor-usuário, mas no produto, ou procedimento, em si mesmo (Godbout, 2004). Assim, alguns recursos utilizados pelas pessoas doentes, nos seus itinerários em busca de cura e cuidado, encontram-se imersos em sistemas sociais como a família; enquanto outros, incluídos no sistema de saúde formal ou profissional, mobilizam sistemas de trabalho. No primeiro caso, partimos do pressuposto de que neste sistema existe aceitação mútua e, consequentemente, a responsabilização e o desvelo necessários ao cuidado devem estar presentes. Os sistemas de trabalho, entretanto, prescindem da aceitação mútua, expondo os doentes à possibilidade de serem subjugados pelo modo-de-ser trabalho, como meros objetos de procedimentos ou consumidores de health commodities (Scholze, Silva, 2005; Helman, 2003). Diante desses intercâmbios possíveis, nas redes do indivíduo ao longo de seus itinerários de cura e cuidado, e da expectativa que os serviços de saúde contribuam para a cura e o cuidado, cabe o questionamento: de que forma os serviços de saúde, estabelecidos como sistemas de trabalho, podem estar aptos a produzirem cuidado de forma integral? Também cabe a nós perguntarmos o que é este ‘cuidado integral’, para não chegarmos a um conceito semelhante ao de ‘saúde’, vinculado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nas décadas de 1970 e 1980, que sofreu tantas críticas entre profissionais da área. Neste momento, considerando a alteridade dos seres humanos, podemos inferir que um ‘cuidado integral’ é tão amplo e tão distinto quanto as culturas humanas existentes, e que para cada ser humano existe um cuidado necessário segundo seus problemas de saúde, aceitação do cuidado e o ‘olhar’ cultural que esta pessoa lançará sobre o ‘cuidador’ e sobre as terapêuticas (ou ‘atos em Saúde’) que este indicará em seu itinerário de cura e cuidado. Mehry (1998) considerou que o trabalho em saúde tem como produto os “atos em Saúde”, cuja finalidade seria intervir nos problemas de saúde, pressupondo um impacto positivo sobre as 306
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necessidades em saúde dos usuários dos serviços. Porém, o foco de seu trabalho pode ser esse usuário ou a produção de procedimentos, sendo que, neste último caso, a produção de atos em Saúde esgotase na produção do procedimento, independentemente de seu impacto sobre a saúde de uma pessoa ou população. O autor entendeu que os usuários se voltam para os serviços de saúde menos em busca de procedimentos do que esperando encontrar espaços que disponibilizem acolhimento, responsabilização e vínculo. Porém isso não limita o foco do trabalho em saúde apenas na produção dessas relações, sendo necessária também a competência para responder aos problemas de saúde, sejam ou não disfunções biológicas. O autor reconheceu, ainda, uma dimensão cuidadora, envolvendo os núcleos de saber característicos de cada profissão da saúde, a ser explorada juntamente com os conhecimentos técnico-científicos para desenvolver o acolhimento e a responsabilização, buscando aumentar a resolutividade da atenção em saúde e autonomizar o usuário. Concomitantemente, a interpretação exclusivamente biomédica das doenças deveria ser ampliada para incluir as diferentes práticas de cura existentes na sociedade e as experiências dos pacientes que não se enquadram nos diagnósticos preestabelecidos do instrumental teórico biomédico vigente. A partir dessas mudanças no modelo de atenção à saúde, é possível vislumbrar uma assistência que se destine ao cuidado integral à saúde, de forma que o modo-de-ser trabalho esteja subordinado ao modo-de-ser cuidado (Tesser, Luz, 2002; Merhy, 1998). Para que seja possível ampliar o instrumental de ação dos profissionais da Saúde, as mudanças nos serviços deveriam incluir a discussão sistemática do modo-de-ser de trabalho versus modo-de-ser do cuidado, em diversas perspectivas, incluindo-se aí a inserção de estudos antropológicos, sociológicos, geográficos, históricos, éticos e de relações humanas, entre outras possibilidades. Importante enfatizar que estes conhecimentos são oferecidos em muitos cursos de graduação e pós-graduação, contudo a superficialidade dos mesmos, a entrega destes conteúdos a pessoas sem experiência na saúde e a ideia de que estas disciplinas apenas servem para confirmar as horas obrigatórias do Ministério da Educação comprometem em muito o interesse dos profissionais pelos conteúdos ministrados.
Experiências no acolhimento Nesse contexto teórico, o acolhimento constitui-se em um elemento da mudança no processo de trabalho em saúde, com potencial de ampliar as práticas de cuidado envolvidas nas ações dos profissionais de saúde, porém esse potencial pode ser restringido pelo contexto prático no qual o acolhimento será estabelecido. O contexto do trabalho em saúde hegemônico na atualidade é aquele do modo-de-ser trabalho, voltado para a produção de procedimentos e muito bem adaptado à estrutura dos serviços de saúde organizados como aparelhos. As diferentes experiências na implantação do acolhimento já desenvolvidas estiveram voltadas para implementar uma escuta ampliada, capaz de identificar os motivos que levaram o usuário a buscar o serviço, identificando suas necessidades e dando encaminhamento para a solução de seus problemas. Em algumas propostas foram criadas equipes de acolhimento, compostas por diferentes profissionais, enquanto outras se centraram especialmente nos auxiliares de enfermagem, os quais recorreriam a outros membros da equipe de saúde quando necessário. Porém, eventualmente, estes auxiliares encontravam-se em unidades sem locais adequados para a escuta do paciente e sem o envolvimento do restante da equipe, não sendo eles mesmos acolhidos (Mayema, 2007; Campos, Carpintero, Bueno, 2001; Costeira, s/d). As dificuldades iniciais na experiência com acolhimento costumavam envolver o temor diante das novas iniciativas, exacerbadas pela ênfase que o acolhimento dava a problemas já existentes, mas não percebidos, criando uma falsa noção da Unidade Básica de Saúde (UBS) como pronto-atendimento (Franco, Bueno, Merhy, 1999). Essa percepção foi corroborada quando os usuários relacionavam o acolhimento diretamente com a pontualidade dos médicos e a rapidez no atendimento da recepção, em unidades que preservavam um trabalho na forma médico-centrada, a partir da distribuição de fichas (Ramos, Lima, 2003). Esta mesma óptica foi mantida pelos próprios membros da ESF, que relacionavam a organização do processo de trabalho da equipe com a falta de acesso ao atendimento clínico, e percebiam a Estratégia Saúde da Família como dirigida aos excluídos. Considerando esta premissa, não COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.303-14, out./dez. 2009
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viam necessidades de maiores investimentos, mas viam como correta (e, muitas vezes, como a assistência mais adequada) a atuação de auxiliares de enfermagem na recepção, ainda que orientada por opções limitadas de encaminhamento, utilizando a referência ao pronto-atendimento de acordo com a organização do trabalho, em lugar da necessidade do usuário. Com isto, o que verificamos foi a ampliação de um sistema de distribuição de senhas e preservação do não acesso à disputada agenda médica (Schimith, Lima, 2004). Equipes com atividade docente-assistencial vivenciaram essa situação diante de populações diversas daquelas originalmente abrangidas, ao receberem moradores de rua, moradores de favela e profissionais do sexo, entre outros, para os quais as rotinas programáticas não se mostravam adequadas. Desse modo, estabeleceu-se um acolhimento não apenas de caráter pontual, mas, a partir da identificação de situações de vulnerabilidade, no qual a organização do processo de trabalho foi modificada para resgatar a cidadania dos usuários, na perspectiva da equidade e de uma discriminação positiva (Romano, 2008; Carneiro, Silveira, 2003). Diferentes formas de organização do acolhimento em diferentes centros de saúde foram relatadas por Takemoto e Silva (2007), sendo que, em três das unidades estudadas, o auxiliar de enfermagem conduzia uma triagem qualificada, que levava a uma primeira consulta com o médico, favorecendo somente o atendimento a queixas agudas numa modalidade de pronto-atendimento. Assim, não houve ampliação da resolutividade dos outros profissionais, ao contrário de outra unidade pesquisada, em que o acolhimento foi entendido como postura, buscando dar resposta às necessidades do usuário, ainda que não fossem clínicas. Esse tipo de vínculo é capaz de gerar satisfação e segurança, sendo fruto de um atendimento baseado na escuta e no bom desempenho dos profissionais, influenciando inclusive o acesso geográfico, pois o atendimento com resolutividade promove a procura por determinadas unidades, mesmo implicando maior deslocamento do usuário (Tresse, 2008; Lima et al., 2007). Porém, mesmo que a implantação do acolhimento conduza os profissionais à prática dessa diretriz operacional, o deslocamento de algumas decisões - antes centradas no médico, para outros profissionais, como técnicos e auxiliares de enfermagem - pode não ser bem compreendido pelos usuários. Os possíveis conflitos entre as propostas de descentrar o trabalho da figura do médico e a concepção de atendimento em saúde trazida pelos usuários podem dificultar os esforços de comunicação, especialmente pela desvalorização dos profissionais que conduzem o acolhimento, gerando sobrecarga nas equipes de saúde, caso estas não sejam também acolhidas (Oliveira, Tunin, Silva, 2008; Pinafo, Lima, Baduy, 2008; Souza et al., 2008). Uma forma de responder às possíveis resistências à implantação do acolhimento ou a sua implantação em formatos que têm pouco impacto no processo de trabalho é entendê-lo concomitantemente como postura dos profissionais e como técnica, objetivando a ampliação e a qualificação do acesso dos usuários. Para isso, contribui também uma implantação participativa do processo, com colegiados locais e o apoio de representantes do nível central. Assim, possibilita-se um aumento quantitativo do rendimento dos profissionais envolvidos e faz-se com que estes percebam uma maior qualificação no seu trabalho e na produção do cuidado, qualificando o vínculo com a comunidade e fortalecendo as equipes por meio da educação permanente (Alves et al., 2008; Oliveira et al., 2008; Solla, 2005; Panizzi, Franco, 2004).
Possibilidades teóricas da humanização do trabalho no acolhimento Verificamos que a maior potencialidade das experiências do Acolhimento na APS tem sido a redução da demanda reprimida na rede básica, geralmente estabelecendo equipes de acolhimento centradas nos auxiliares de enfermagem. Porém, o acolhimento também pode ser explorado pelo enfoque de uma tecnologia do encontro trabalhador/usuário que, se adequada, permite desencadear um processo de mudança nas práticas de saúde, direcionando-as a partir das tecnologias leves (Carvalho; Cunha , 2006; Teixeira, 2004; Mehry, 1998). Nesse sentido, os estudos consultados utilizaram diferentes termos para abordar os aspectos subjetivos das relações profissional-usuário, sendo identificáveis alguns marcos teóricos a partir dos quais os profissionais poderiam desenvolver suas práticas de saúde, de modo a qualificar sua interação com os 308
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sujeitos e coletivos, considerando-os em suas singularidades. Assim, buscaremos definir três desses possíveis marcos teóricos - afeto, empatia e alteridade - e analisar suas relações com o processo de trabalho em saúde como “maneiras adequadas de receber os distintos modos como a população busca ajuda nos serviços de saúde, respeitando o momento existencial de cada um sem abrir mão de pôr limites necessários” (Andrade, Barreto, Bezerra, 2008, p.821). O termo afeto deriva originalmente da literatura psicanalítica, na qual se tentava descrever o tipo de sentimento que acompanhava ideias ou representações mentais de objetos externos, enquanto o humor seria a soma dos afetos. Manley (1999) sugeriu que se abandonasse a distinção de humor como um estado emocional prevalente em longo prazo, enquanto o afeto seria mais flutuante, buscando-se descrever os componentes objetivo e subjetivo da expressão emocional separadamente, podendo estes inclusive serem discordantes. Normalmente, verificadas nas variações da expressão facial, tom de voz e gestos, as manifestações externamente direcionadas do afeto podem permitir classificá-lo como: alegre, triste, embotado, expansivo, lábil, inapropriado, variando também na intensidade com que a emoção é expressa (Cordioli, Zimmermann, Keller, 2004; Sadock, 1999). Teixeira (2004) utilizou o termo afeto ao definir o acolhimento dialogado como uma técnica de conversa, conduzida por determinadas emoções e afetos, de modo que as redes de trabalho em saúde formam extensas redes de conversações que podem ser pensadas como redes de trabalho afetivo, dedicadas a criar e a manipular afetos. Esse afeto estaria limitado, porém, à situação apriorística de aceitação do outro como um legítimo outro, no mesmo sentido que Maturana (1997) utilizou o termo “amor”, sendo que aquele autor identificou esse afeto como acolhimento. A capacidade de identificar os afetos no outro, por meio de sutis pistas sociais, é denominada empatia, uma habilidade baseada na autoconsciência emocional, fundamental para a efetividade interpessoal e citada como parte do processo de acolhimento (Demeneck, 2008). É uma das cinco áreas básicas que relacionam as habilidades definidoras da Inteligência Emocional, permitindo manifestar reações emocionais apropriadas a partir da autoconsciência. A raiz da palavra latina emoção é motere: “mover”, implicando, com o prefixo “e”, a conotação de mover para longe, ou seja, uma tendência de ação está implícita em cada emoção (Goleman , 1999). Emoção se refere a um sentimento e aos pensamentos, estados psicológicos e fisiológicos, e toda a gama de impulsos para agir ligados a esse sentimento. Algumas são consideradas universais: raiva, tristeza, medo, alegria, amor, surpresa, desgosto, vergonha (Goleman, 1999). Também a palavra empatia denomina um sentimento que nos permite considerar uma perspectiva diferente da nossa própria, fazendo com que olhemos o sofrimento alheio com o olhar de quem sofre, apreciando a situação como se estivéssemos no lugar da pessoa que a experimenta. Na sua ausência, existe desconsideração pela pessoa do outro, seus valores, crenças e desejos (Goldim, 2006). Isso nos remete à definição de Boff (1999) do modo-de-ser cuidado, inviável sem o sentimento de empatia, que também é um dos atributos essenciais na relação médico-paciente e qualquer outra relação profissional na saúde em que se pense o cuidado como uma responsabilidade ética e moral do outro em um momento de fragilidade emocional e física (Morinaga et al., 2002). Por sua vez, alteridade é um conceito central da Antropologia, ciência que nasceu do estudo das populações distantes, demandando o desenvolvimento de ferramentas, como a observação participante, para conduzir suas investigações. Ao longo de suas diferentes vertentes, a Antropologia preservou suas noções de distanciamento, seja no sentido de aproximar o que é longínquo, seja no de assumir um distanciamento da realidade próxima que permita um “estranhamento” desta, de modo a ver, como culturais, elementos de nossa própria sociedade que, por sua presença cotidiana, parecem-nos naturais. O olhar antropológico é voltado para o outro, para a alteridade. Essa alteridade incorpora a noção de humanidade plural, negando a existência de um centro do mundo ou de um centro do saber, e aceitando a diversidade de culturas que carregam suas próprias complexidades e maturidade (Laplantine, 2000). A ideia é não apenas a observação de diferentes realidades culturais, mas também adotar o ponto de vista do outro, buscando experimentar a realidade cultural alheia, a partir da própria alteridade (Helman, 1996). Dessa forma, reconhecemos o outro não apenas como objeto, mas também como um sujeito relacional em sua singularidade (Brasil, 2006a). O nível de incorporação da alteridade no trabalho em saúde, ou competência cultural do profissional, pode variar da aceitação incondicional ao puro escárnio, considerando-se que, se não 309
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exploradas e comunicadas, as diferenças culturais no encontro entre profissional e usuário podem inviabilizar o cuidado (Betancourt, 2004). Ainda que não seja uma panaceia, a competência cultural desenvolvida a partir de uma postura de alteridade é necessária para garantir a qualidade das práticas de saúde, evitando assumir o usuário como passivo e ignorante diante dos profissionais de saúde, que seriam responsáveis absolutos pelo cuidado, quando, na verdade, é o primeiro que detém o poder de escolha quanto a que orientações seguir ou não (Oliveira, 2002). O acolhimento, portanto, não se limita a um espaço físico disponível ou a uma postura dos profissionais em seu trabalho na saúde, mas depende de uma organização multidisciplinar no serviço de saúde que exige pessoal disposto para ir além da reflexão e problematização dos processos de trabalho, com garantia de tempo disponível e boa remuneração, além de uma infraestrutura que permita a eficácia do atendimento clínico. Tais condições são possíveis em uma cultura institucional aberta e flexível, na qual o poder seja intensamente delegado a gestores e a equipes técnicas qualificadas (Serrano, Benito, Giordani-Serrano, 2007). Neste momento, percebemos que o sistema oficial de saúde, representado pelo Ministério da Saúde, ao tratar da saúde do ‘outro’ usuário, esquece-se do ‘outro’ funcionário deste sistema. Demonstra, desta forma, que a sua ‘vontade’ de humanizar os serviços baseia-se em ações para se ‘ver’ em estatísticas de assistência e muito pouco para realmente atuar numa perspectiva humanizadora que inclui o cuidado a todos: usuários diretos do sistema e trabalhadores deste mesmo sistema. Nesse sentido, nos últimos anos, a Antropologia vem se deparando com um dilema em suas ações: a necessidade de intervenção do antropólogo, e não apenas a observação, descrição e interpretação do que descobre em suas pesquisas, sobretudo na área da saúde. O dilema maior está em como oferecer as ferramentas de ação para outras áreas do conhecimento agirem, sem que estas, ao utilizarem as mesmas, não produzam os problemas descritos anteriormente. Do que falamos exatamente? Quando fornecemos aos dirigentes dos serviços de saúde respostas a suas indagações sobre como assistir melhor ao usuário considerando sua cultura e alteridade, proporcionamos meios que incluem ações diferenciadas que exigem dos trabalhadores da saúde maior disponibilidade de tempo, maior envolvimento emocional, físico e espiritual com o usuário, sem que este receba em igual volume condições para atuar nessa perspectiva. Olhando desta forma, o que temos são serviços superficiais que continuarão a ignorar o ser humano, visto que ignorar o trabalhador que atua na rede de saúde é tão grave quanto ignorar o usuário.
Considerações finais No curso de sua breve história, o SUS promoveu claros avanços, ainda que, em geral, estes avanços não tenham revertido em amplo reconhecimento e apoio para sua efetivação, dada sua condição de movimento contra-hegemônico. Em vez disso, encontramos, de forma recorrente, tentativas de se construírem pontos de apoio para novos avanços, alguns sólidos e bem-sucedidos, outros de aspecto artificial e ignorando a existência de conhecimentos prévios ricos em potencialidades, em prol de novas nomenclaturas que correm o risco de se tornarem apenas novas vestes para antigas práticas. O acolhimento pode se tornar apenas outra denominação de pronto-atendimento, caso o trabalhador da saúde não seja também acolhido. Os profissionais envolvidos nessa empreitada precisam desenvolver conceitos claros em relação a seu trabalho, evitando a sobrecarga, assumindo a participação nas decisões organizacionais e definindo claramente seus papéis como cuidadores, com comunicação clara e sem superenvolvimento que ameace sua integridade pessoal. Assim, esta reflexão foge às pretensões de firmar respostas, limitando-se a construir algumas possibilidades teóricas em torno da humanização e do acolhimento, nas quais obtivemos mais claramente alguns pontos de partida para novos questionamentos do que fórmulas exatas para sua implantação. No entanto, isso é coerente com a perspectiva de redes de conversação fluidas, constantemente co-construindo as práticas nas interações entre os sujeitos que buscam ou oferecem apoio em meio ao processo saúde-doença. Identificamos os marcos teóricos: afeto, empatia e alteridade como maneiras adequadas de atuar no acolhimento na APS, facultando também, aos profissionais de saúde, seus próprios avanços na 310
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humanização do seu trabalho. Esses marcos teóricos abrem possibilidades de releitura dessas relações, permitindo abordar as práticas em saúde na óptica do modo-de-ser cuidado, e mesmo relativizar a estrutura de aparelhos dos serviços de saúde, entendendo sua emoção fundamental não como a aceitação mútua incondicional do amor, mas que a emoção do compromisso fundamenta esse sistema de trabalho, voltando-se para a produção de saúde, não para o consumo de serviços ou produtos do complexo médico-industrial. Mas, ainda que adequados e mesmo complementares entre si, fazemos nossa opção pela alteridade, como marco teórico capaz de instrumentalizar o trabalhador da saúde para desenvolver o acolhimento, sem deixar de garantir sua própria humanização. Essa opção se deve à caracterização do afeto não como apenas positivo nas relações humanas, mas trazendo em seu bojo todas as possibilidades emocionais, desde a alegria até a tristeza, devendo sempre ser compreendido, não apenas expressado, mesmo porque as responsabilidades éticas do profissional da saúde impedem-no de se guiar apenas emocionalmente, tanto quanto de ignorar as emoções do outro e suas próprias nos encontros desenvolvidos nas práticas em saúde. A compreensão dos afetos alheios deve-se, então, à empatia do profissional, cujo desenvolvimento demanda autoconhecimento e a capacidade de identificar as manifestações verbais ou não verbais, explícitas ou contraditórias, do sofrimento de outrem. Ainda assim, essas manifestações de afeto não seriam inconfundíveis ou exclusivas, pois sempre acabam por serem moduladas culturalmente. A alteridade abre, então, possibilidades de enfrentamento das situações do cotidiano dos serviços de saúde, acolhendo o outro como sujeito em seu sofrimento, em lugar de constituir-se em torno da doença como objeto. Ao mesmo tempo, o profissional tem condições de construir seu trabalho a partir da alteridade, evitando ser etnocêntrico na perspectiva biomédica e preservando sua saúde mental, de modo a responsabilizar-se por seus esforços em conjunto com o outro, sem sofrer por inevitáveis insucessos decorrentes daquilo que não domina, os quais podem sempre ser encarados como oportunidades de aprendizagem. Tais oportunidades são enriquecidas quando se assume o distanciamento proposto pela alteridade em relação à realidade dos serviços de saúde, estranhando-a de modo a produzir mudanças, e superando a naturalização das situações que promovem o sofrimento do trabalhador e sua alienação.
Colaboradores Os autores Alessandro da Silva Scholze e Carlos Francisco Duarte Junior participaram da elaboração do projeto, revisão da literatura, redação e revisão do texto. A autora Yolanda Flores e Silva participou da redação e revisão do manuscrito.
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Palabras clave: Acogimiento. Servicios de salud. Atención primaria de salud. Investigación interdisciplinaria.
Recebido em 58/12/08. Aprovado em 22/07/09.
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Acolhimento coletivo: um desafio instituinte de novas formas de produzir o cuidado
João Batista Cavalcante Filho1 Elisângela Maria da Silva Vasconcelos2 Ricardo Burg Ceccim3 Luciano Bezerra Gomes4
CAVALCANTE FILHO, J.B. et al. Collective welcoming: a challenge instigating new ways of producing care. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.315-28, out./dez. 2009. Within the challenge of implementing a form of welcome in which the team of healthcare workers would be made comprehensive, and would be thus in relation to users, a team of professionals from the family health program has proposed collective welcoming. This is a meeting space between workers and users that is focused on their health needs. Within this creative space, active work becomes stronger in relation to normative acts and, through communicative acts, transforms tension into understandings. There is a search for a metastable balance in which work is reconstituted in the light of each new challenge, thereby building relationships of greater solidity and providing learning for new ways of producing care.
No desafio de implementar uma forma de acolhimento que integralizasse a equipe de trabalhadores de saúde e estes com os usuários, uma equipe de profissionais do programa de saúde da família propõe o acolhimento coletivo, um espaço de encontro entre os trabalhadores e usuários, tendo por objeto as necessidades de saúde destes. Neste espaço criador o trabalho vivo ganha força na sua relação com os atos normativos, e por meio de atos comunicacionais transforma tensionamentos em entendimentos. Há a busca de um equilíbrio metaestável onde o trabalho se reconfigura diante de cada novo desafio, construindo relações mais solidárias e proporcionando aprendizado de novas formas de produção de cuidado.
Keywords: User embracement. Interdisciplinary healthcare team. Brazilian national health system. Primary healthcare.
Palavras-chave: Acolhimento. Equipe interdisciplinar de saúde. Sistema Único de Saúde. Atenção primária à saúde.
1
Coordenação do Núcleo de Promoção da Saúde, Secretaria de Saúde do Estado de Sergipe. Rua Francisco Rabelo Leite Neto, 670, apto. 202. Atalaia, Aracaju, SE, Brasil. 49.037–240 joaoaracaju27@ hotmail.com 2 Secretaria Municipal de Saúde de Recife. 3 Departamento de Ensino e Currículo, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4 Departamento de Promoção da Saúde, Universidade Federal da Paraíba.
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Introdução O Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído no Brasil pela Constituição Federal de 1988, após um processo histórico de lutas organizadas em torno do movimento de reforma sanitária, sintetizado pela defesa de que “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Desde então, o SUS vem sendo construído na busca de implementar princípios tais como: universalidade do acesso, equidade e integralidade da atenção à saúde, descentralização da gestão setorial, regionalização e hierarquização da rede de serviços e participação popular com papel de controle social. A proposição do Programa de Saúde da Família (PSF) como estratégia de consolidação do SUS aconteceu a partir de dezembro de 1993 e foi eleita como prioritária para a reorientação do modelo de atenção à saúde, no sentido de reverter modelos de assistência centrados na produção de procedimentos que se destinam à cura de doenças e têm como local privilegiado o hospital, para modelos centrados no cuidado dos indivíduos, considerando seu contexto socioeconômico e cultural e tendo, como local privilegiado de atuação, o território em que se encontram. A estratégia de gestão do setor da saúde em implementação no município de Aracaju foi denominada Saúde Todo Dia e está em construção desde 2001. Em seu modelo teórico orientador, o Saúde Todo Dia tem, por objeto de suas politicas, as necessidades de saúde dos indivíduos e coletividades; e considera o trabalho em saúde como um encontro entre usuários e trabalhadores onde há o reconhecimento, pelo trabalhador, das necessidades dos usuários, como direito à saúde. A natureza do encontro entre usuários que têm necessidades de saúde e trabalhadores que reconhecem estas necessidades é o da produção de um processo onde há o acolhimento do outro, compreensão e significação de suas singularidades e oferta dos saberes em saúde que venham permitir ao profissional intervenções continuadas (vínculo) e responsabilização pelo resultado destas intervenções. O desenho tecnoassistencial do Saúde Todo Dia pode ser apresentado pelo diagrama da Figura 1.
Produtos do encontro entre trabalhador e usuário na saúde Acolher necessidades
Compreender, significar
Corresponsabilizar-se
Intervir com vínculo
Produzir autonomia
Figura 1. Diagrama Saúde Todo Dia. Fonte: Aracaju, 2003.
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artigos
No projeto Saúde Todo Dia, encontramos que a implantação do acolhimento foi a primeira intervenção sobre o processo de trabalho. Esta intervenção estava dirigida fundamentalmente para a rede básica de atenção à saúde. A proposta do acolhimento documentada no projeto era de ampliar o acesso da população por meio da substituição do critério “fila” pelo da “necessidade devidamente qualificada por profissionais de saúde”. Segundo o projeto, a partir do acolhimento, os usuários devem ter acesso a um conjunto de ações que sejam mais adequadas para as suas necessidades em saúde. Desde sua implementação, vários formatos de acolhimento têm sido experienciados pelos profissionais de saúde do município de Aracaju. Uma equipe de saúde lançou-se ao desafio de implementar uma forma de acolhimento onde todos os seus integrantes contribuíssem com seus olhares, visando acolher às necessidades de saúde da população adscrita e fazendo emergir projetos terapêuticos sem fronteiras disciplinares ou meritocráticas, trabalhando numa perspectiva entre-disciplinar (Ceccim, 2006). Este ensaio configura um estudo de caso com enfoque de análise qualitativa sobre a prática desta equipe de saúde enfrentando esse desafio no bojo do PSF, escolhendo o acolhimento coletivo como formato desse processo de trabalho. Nós - o médico e a enfermeira dessa equipe - utilizamos a observação participante e a realização de grupos focais com a equipe, usuários e estudantes de medicina vinculados à equipe em seu processo de formação. Acreditamos ser o grupo focal o meio de fazer emergir pontos de vista e processos emocionais, permitindo a captação de significados difíceis de serem captados com outros meios. Na interação, percepções e significados são construídos em grupo, o que não seriam em entrevistas individuais (Gatti, 2005). Os participantes, esclarecidos dos métodos e objetivos da pesquisa e sobre a garantia do caráter voluntário de sua participação, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, permitindo a utilização das informações desde que fosse garantido o anonimato. Para este estudo, realizamos três grupos focais: um com usuários (G1), outro com estudantes (G2), e o último com profissionais da equipe de saúde (G3). Foram transcritas aproximadamente três horas e vinte minutos de diálogo. Os nomes, quando citados, foram trocados propositalmente por nomes fictícios. Para o G1, realizamos escolha aleatória de dois usuários presentes no acolhimento coletivo convidados em cada dia da semana, totalizando dez usuários convidados, dos quais compareceram seis ao grupo. Do G2 participaram as quatro estudantes de Medicina que tomaram parte do acolhimento coletivo em seu processo de formação, como parte do estágio de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Sergipe. Do G3 participaram componentes da equipe: médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e quatro agentes comunitários de saúde. Nos grupos realizados, assumimos o papel de mediadores e participantes do grupo. Longe de sermos imparciais, acreditamos que, fazendo parte daquele coletivo de trabalhadores de saúde, não poderíamos deixar de participar da sua reflexão e construção de sínteses. Por meio da revisão bibliográfica, buscamos uma aproximação aos conceitos de acolhimento e ferramentas para avaliação de seu caráter cuidador, com o intuito de ampliar/qualificar a capacidade de reflexão sobre nossa realidade e de estruturação de experiência como um agir militante, em busca de contribuir com a defesa da vida e implementação real do SUS.
O que é acolhimento? Para a análise do acolhimento coletivo, é necessária uma aproximação ao que já foi produzido intelectualmente sobre acolhimento. Com um grande aporte teórico recente e os variados fazeres em unidades de saúde, a palavra acolhimento termina por ser portadora de uma polissemia, adquirindo inúmeros significados, “almas”, sentidos. Não é nosso objetivo encontrar uma definição para o acolhimento, uma vez que as reflexões sobre o tema, quando compatibilizadas, acabam por ser complementares e, em conjunto, são essenciais para a estruturação da nossa práxis. Em aula proferida no curso de especialização em Saúde Coletiva do Centro de Educação Permanente em Saúde de Aracaju e Universidade Federal de Sergipe em 2005, Emerson Merhy abordou o acolhimento como um “não-lugar”, mas o encontro entre o trabalhador de saúde e o usuário, onde este COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.315-28, out./dez. 2009
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último tensiona a entrada na rede de saúde, tentando mostrar que merece ser cuidado. Há um apelo por meio de atos comunicativos para que determinada necessidade seja considerada (Merhy, 2005). Um profissional de saúde sofre a influência de vários atos normativos, mas a convivência entre estes atos normativos e os comunicativos não é resolvida no plano das regras ou protocolos assistenciais. Requer colocar em análise certos territórios, como o do poder e o das relações comunicativas. Uma das saídas seria burocratizar essa relação5 consagrando as regras, o que pode abrir ou fechar os espaços públicos aos usuários, como pode permitir ou impedir a realização de atos comunicativos, e, assim, negar ou ofertar uma forma de cuidado. Teixeira (2005), em uma discussão sobre a questão da integralidade, encara o acolhimento como uma rede de conversações. O autor afirma que as diferentes concepções de integralidade dependem do que os diferentes projetos tecnopolíticos pretendem integrar, no sentido de tornar inteiro. Esta problemática teria como foco “a relação trabalhador-usuário que se dá nos serviços, para o qual se dirigem os mais fortes desejos de integração” (Teixeira, 2005, p.91). Seria necessário integrar a voz do outro nesse processo, superar o monopólio do diagnóstico das necessidades do outro pelos profissionais ou determinadas profissões de saúde. Teixeira afirma ainda que a substância do trabalho em saúde é a conversa, onde se trabalha com um objeto necessariamente relacional, partilhado por todos os atores presentes. Entende, assim, a rede de atenção como uma rede de conversações que permeia todos os momentos do encontro trabalhadores-usuários e os fluxos da atenção. Defende, então, a compreensão do acolhimento-diálogo ou do acolhimento dialogado como sendo atitude central no trabalho vivo, em ato, devendo ser orientado por posições morais e cognitivas que considerem a alteridade, a insuficiência real dos diferentes atores e a necessidade da integração dos saberes presentes. Para Merhy et al. (2004), o encontro entre o trabalhador e o usuário dá inicio a um processo relacional onde opera o trabalho vivo, em ato. O encontro dispara um processo de intervenção tecnológica implicada com a manutenção/ recuperação/alteração de certo modo de andar a vida. O acolhimento permite ainda arguir sobre o processo de produção da relação usuário-serviço sob o olhar da acessibilidade. Teria a potência de: construir vínculo e responsabilização, de provocar ruídos sobre os momentos nos quais o serviço recepciona o seu usuário e evidenciar as dinâmicas e os critérios de acessibilidade a que os usuários estão submetidos; pode produzir novas dinâmicas, instituintes de novas linhas de possibilidades para a produção do cuidado. É uma chance de modificar o serviço para uma forma usuário-centrada, reduzindo a centralidade das consultas médicas e utilizando melhor os potenciais de outros profissionais. Silva Júnior e Mascarenhas (2006) colocam que o acolhimento possui três dimensões: da postura, da técnica e dos princípios de reorientação dos serviços. No acolhimento pesam as questões da subjetividade e individualidade, a busca de significados e de não-ditos. O acolhimento requer a mobilização de saberes para dar respostas, levando a uma postura de enriquecimento do arsenal terapêutico, buscando enriquecer as intervenções. O trabalho em equipe entra neste arsenal, mas busca a sua articulação, e não sua alienação. O acolhimento abre um espaço dialógico para extirpar a alienação, respeita o sujeito, negocia necessidades e rearticula os serviços. De nossa leitura e vivência, destacamos o acolhimento como dispositivo para ampliar a acessibilidade aos serviços de saúde; como estruturante do processo de trabalho centrado nas necessidades de saúde; com potencial instituinte de novas 318
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5 Merhy (2005), acessando a teoria da ação comunicativa de Habermas, afirma que isto seria a captura de um espaço que deveria defender a vida pela lógica instrumental. O ato comunicativo, que opera na relação, em uma postura dialógica, seria a oportunidade de tensionar a razão instrumental, onde dominam as regras externas ao sujeito, os atos normativos.
CAVALCANTE FILHO, J.B. et al.
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formas de produzir o cuidado; como espaço de integração da voz do usuário na construção de projetos terapêuticos, e como integração dos profissionais e seus saberes na busca de cuidar da população que assistem, numa perspectiva entre-disciplinar, como aquela que propõe Ceccim (2006).
A produção do cuidado e o trabalho em equipe Longe de tentar esgotar a discussão sobre o trabalho em saúde, partimos de uma análise que extrapola a dimensão mais operativa, enquanto uma atividade, mas, antes de tudo, “uma práxis que expõe a relação homem/mundo em um processo de mútua produção” (Merhy, 1997, p.81). Ao problematizarmos o trabalho em saúde como produção de saúde, poderíamos perguntar o que o trabalhador em saúde produz. Genericamente, poderíamos responder que produz atos de saúde, mas a pergunta a ser respondida é: qual o seu objeto de ação? A maneira como o trabalhador de saúde constrói seu objeto de ação se torna central para sua produção de atos de saúde. Defendemos, como Merhy (2005), que uma das competências necessárias dos profissionais de saúde é a de estar atento para a “negociação” das necessidades. A negociação é entendida como um diálogo ou “saldo” da rede de conversações entre os referenciais técnicos e experiências vividas que definem ou distinguem as necessidades de saúde. Acolher uma necessidade como uma necessidade de saúde dependerá dos atores em cena, da construção do objeto de ação, da forma como este processo se realiza e das possibilidades de negociação. Não existe resposta simples para esta situação complexa. Não se pode gerir este processo apelando simplesmente para a boa consciência dos profissionais, pois cairíamos no revés de estabelecer o que seria essa boa consciência e, ainda, encontrar uma forma de selecionar os bons profissionais. O que se deve tentar e se pode garantir é a construção de espaços públicos para a negociação de necessidades, garantindo a disputa dos sentidos do objeto de ação dos profissionais. Todo encontro provoca tensão para o espaço público de negociação, há um apelo por meio de atos comunicativos para que determinada necessidade seja considerada. Se o profissional de saúde ficar preso à ação burocratizada, ficar preso ao ato normativo, não considerará como sua competência o reconhecimento deste espaço para o diálogo público, que abre novos sentidos para sua relação com o usuário. Se o trabalhador não significar esta competência, de reconhecer o movimento de construção social das necessidades de saúde, não conseguirá acolhê-las, independentemente dos atos normativos e dos modelos. Se o trabalhador de saúde produz atos de saúde e seu objeto de ação é o cuidado, então, a produção do cuidado assume o caráter de afirmação da defesa da vida, em detrimento da produção de procedimentos, tão necessária à reprodução do capital presente no complexo médico-industrial, mas distinta da aceitação da complexidade e fragilidade da vida. Vários trabalhos (Pinheiro, 2006; Merhy, 1997) apontam para a crise do modelo que sustenta o complexo médico-industrial, o modelo biomédico. A submissão dos usuários à vontade do profissional, o caráter medicalizante, a valorização dos aspectos biológicos, a atenção impessoal e o abuso dos exames complementares são alguns dos fatores que apontariam para o alicerce dessa crise. “Parece que o modelo explicativo para os problemas de saúde apresentados pela população não possui similaridades com os modelos utilizados para elucidar as doenças – ao mesmo tempo em que esta constitui o elemento central da racionalidade da pratica médica, que é hegemonicamente exercida nos serviços de saúde” (Pinheiro, 2006, p.78). O trabalho médico-hegemônico, por também ser o detentor da determinação da produção dos procedimentos, assume o centro da reprodução do capital em detrimento da defesa da vida. Ideologicamente, o consumo de procedimentos passa a ser encarado, inclusive pela própria população, como capaz de produzir o cuidado, potência esta que existe apenas no campo da ideação. Há um “reducionismo da prática clinica simplificando a idéia da produção e do cuidado em saúde” (Franco, Merhy, 2005, p.185). Os processos de trabalho se voltam para a lógica instrumental, em detrimento das abordagens mais relacionais. A realidade complexa acaba por tensionar por linhas de fuga da lógica instrumental. Merhy (2002) diz que se o processo de trabalho está sempre aberto à presença do trabalho vivo em ato, é porque ele COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.315-28, out./dez. 2009
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pode ser sempre atravessado por distintas lógicas que o trabalho vivo pode comportar. A partir do momento em que se abre um espaço público para a negociação das necessidades em saúde, uma das lógicas que pode tentar tensionar o instituído é a lógica do usuário. Os atos comunicativos podem preencher o espaço do encontro entre trabalhadores e usuários, fazendo emergir deste encontro um projeto terapêutico dialogado, que faz uso dos saberes de ambos os atores e de múltiplas tecnologias disponíveis no espaço, usando a criatividade, e, somente assim, produzindo o cuidado. Franco e Merhy (2005) colocam que o desafio posto aos que trabalham com saúde é o de construir processos de produção de saúde que sejam capazes de se firmar com novas referências para os usuários, dando a estes a segurança de que um modelo centrado nas tecnologias leves, mais relacionais, tem a potência de cuidar tal como imaginam ou desejam. Outro dado relevante de assumir é o de que nenhum profissional possui todas as ferramentas necessárias para exercer o cuidado. É necessário trabalho em equipe. Para Ceccim (2006, p. 262), “todo profissional de saúde, pela condição de terapeuta, deve ter, com apropriação e acurácia, recursos e instrumentos de intervenção clinica”, mas esta somente pode ser exercida na perspectiva sob compartilhamento e matriciamento. Merhy (2002) considera vital compreender que o conjunto dos trabalhadores de saúde apresenta potenciais de intervenção nos processos de produção do cuidado. Esses potenciais estão marcados pelos núcleos específicos de competência de cada profissão ou ocupação profissional, “associados à dimensão de cuidador que qualquer profissional de saúde detém, seja médico, enfermeiro ou um (vigilante) da porta de um estabelecimento de saúde” (p.123). A perda dessa dimensão cuidadora pode ser apontada como outra causa da grave crise atual do modelo médico-hegemônico. Acreditamos existir e estarmos participando de um movimento de mudança, de resposta à crise do modelo biomédico. São novos fatores da clínica na contemporaneidade: a necessidade de integrar o outro no seu projeto terapêutico individual, de conhecer o significado de seu adoecer, de integrar seu agir e seus referenciais de explicação sobre o que sente e os processos que experimenta, de atuar junto dele buscando autonomia e felicidade. A integração do outro atravessa, também, a integração no interior das equipes de saúde. Profissionais alienados do processo de produção do cuidado, em um modelo médico-centrado e procedimento-centrado, dificilmente se reconhecerão como realizadores de atos de saúde, dificilmente reconhecerão seu potencial cuidador. Ao invés de enxergarem seu papel, realizam um ato simplesmente reprodutivo, desvinculado da produção do valor de uso do produto saúde (no caso, atos de saúde), com prejuízo para sua transformação pelo trabalho, para sua satisfação como autores do processo de trabalho, como realizadores de uma obra de trabalho (Campos, 2000). Ceccim (2006) defende a entre-disciplinaridade para que se reconfigurem as relações em equipe permanentemente ante a complexidade do enfrentamento do mundo real das necessidades em saúde disputando serem reconhecidas e cuidadas. O autor propõe a entre-disciplinaridade como forma de compreender o trabalho multiprofissional e interdisciplinar, “um lugar de sensibilidade e equilíbrio metaestável6, em que a prática terapêutica emergiria em clínica mestiça ou clínica nômade; em que todos os potenciais seguiriam se atualizando e o equilíbrio não seria outro que não a transformação permanente de si, dos entornos, do trabalho” (Ceccim, 2006, p.265). Essa transformação permanente rompe com as lógicas das agendas fechadas e programáticas. Desafia o instituído, as resistências. Atos comunicativos 320
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6 Entendemos equilíbrio metaestável como um equilíbrio “em acontecendo”, um instituído que abre tranquilamente suas portas ao instituinte que emana das relações com o outro, e com a realidade complexa que teima em fugir das capturas. E, por isso mesmo, se movimenta, modifica, abraça, integra, acolhe, cuida. O compromisso é a defesa da vida, a felicidade e emancipação do homem.
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criativamente complexificam o olhar para as necessidades referidas, por vezes com muito mais de nãoditos e pedidos de cuidado (Cecílio, 2006). Não basta compor as equipes com profissionais de várias áreas. É necessário que os saberes, tecnologias, circulem em benefício do cuidado. Colocar o potencial cuidador, o saber e o fazer de cada profissional que compõe a equipe de saúde em um espaço de acolhimento de necessidades de saúde, com o objetivo de integrar este trabalho, é um dos desafios do acolhimento coletivo. Desalienar o papel de cada um na produção do cuidado, fazendo emergir projetos terapêuticos entre-disciplinares, circulando olhares e desejos, é um modo de tornar o nosso trabalho obra criativa cotidiana. Neste movimento de integração, integrando também os usuários, estamos nos aproximando do espaço onde o acolhimento coletivo ocorre.
O acolhimento coletivo O desenho da Figura 2 é uma representação gráfica que busca exibir os caminhos para a produção de projetos terapêuticos cuidadores utilizando o acolhimento coletivo. Seria este o momento do encontro, um espaço criador.
FORMULADORES DA POLÍTICA DE SAÚDE T
MODELO TECNOASSISTENCIAL ADOTADO
Espaço criador: acolhimento coletivo
T
T
ATOS NORMATIVOS (macropolítica)
T
TRABALHO VIVO (micropolítica)
ATO COMUNICACIONAL
Necessidade de integrar o outro (usuário) e integrar a equipe T
T
TENSIONAMENTO
ENTENDIMENTO
Espaço instituinte de novas formas de produzir cuidado Metaestabilidade
Tecnologias leves operando no trabalho vivo em ato T
PROJETOS TERAPÊUTICOS; PRODUÇÃO DO CUIDADO; PRODUÇÃO DE EQUIPE
Figura 2. Diagrama do acolhimento coletivo.
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Os usuários vão chegando à Unidade de Saúde. Mesmo com as explicações diárias da equipe da não necessidade de chegarem após a abertura da Unidade, às sete horas da manhã, para alguns é difícil não considerar o histórico de acesso aos serviços por ordem de chegada. Sentamos em roda na sala de reuniões da unidade, todos os trabalhadores da equipe (médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde) e usuários. Os olhares e expectativas se cruzam. Explicamos o funcionamento da Unidade Básica de Saúde (UBS) e conversamos um pouco sobre algum problema considerado de saúde pela equipe ou trazido pelos usuários naquele momento. Não há pautas. Discutimos desde o aumento da violência no bairro ao controle da hipertensão, desde o diabetes ao problema das fossas abertas que causam tantos transtornos a alguns moradores. A palavra é facultada para quem dela quiser fazer uso. É aberto um espaço público para a negociação/conversação das necessidades de saúde. Tentamos, de todas as formas, transformar as tensões trazidas em entendimento. Há, neste espaço intercessor, a necessidade de integrar o outro, equipe e profissionais. Nessa teia de comunicações ocorrem os atos comunicativos, que movimentam necessidades antes não vistas para a categoria de necessidades de saúde, que fazem ver para além da demanda trazida. Após um debate que dura entre trinta e 45 minutos, dependendo da quantidade e participação dos usuários, a abordagem passa então a ser individual, ali mesmo naquela sala. Cada profissional acolhe uma pessoa por vez. A equipe toda vai lidando com estes casos e aprendendo a cada dia, pois com as conversações abertas, um profissional tira dúvidas e propõe resposta junto a outro, profissional ou usuário. Os mais variados problemas são conversados, as mais variadas intervenções e as mais variadas articulações entre os trabalhos de cada profissional são propostas. Nem sempre a resposta ou o caminho proposto para o “andar a vida” do usuário está previsto em protocolos. Encontramos aí um desafio instituinte, ver e agir para além das normas, instituindo novas formas de cuidar. Os casos considerados mais graves recebem atenção imediata na sala de observação da unidade (por vezes, antes mesmo de iniciar o diálogo), onde estão presentes recursos para atendimento de emergência. Os casos considerados agudos são aqueles que passarão por uma consulta médica ou de enfermagem naquele mesmo turno, pois sem uma atenção em 24 horas podem se tornar mais graves. Orientações são dadas para as mais variadas dúvidas e podem representar um resto do dia mais tranquilo ou uma intervenção imediata. É garantido o espaço para quem quiser uma conversa fora da sala de reuniões, em uma das salas da unidade. As agendas da equipe, com suas ofertas estruturadas, são de livre acesso para qualquer de seus profissionais. Cada usuário tem o início de seu projeto terapêutico singular no acolhimento, podendo ser incluído em qualquer das ofertas, sejam elas consultas dos profissionais de nível superior, visitas domiciliares, ações programáticas. No decorrer de aproximadamente uma hora, com todos os profissionais acolhendo, os usuários já estão com seus projetos iniciados ou em continuidade. Inicia-se, então, o atendimento, pelo médico e enfermeira, de casos agudos e, posteriormente, dos casos agendados. Segundo Tesser, Poli Neto e Campos (2007), [...] quanto mais flexíveis e versáteis os profissionais quanto mais diversificadas e pouco ritualizadas suas ações, quanto mais misturadas e trabalhando juntas as pessoas, quanto mais aberto e acessível o serviço a todos os tipos de demanda, maior a possibilidade de a equipe imergir no mundo sócio-cultural de sua área de abrangência, de trocar saberes pessoais e profissionais, de realizar melhor o acolhimento e garantir o acesso.
Médico, enfermeira e auxiliar, em conjunto com outra equipe de saúde que divide a mesma unidade, garantem o acolhimento individual aberto durante todo o dia. Porém é sabido que, culturalmente, a população da área adscrita busca, em sua maioria, o atendimento nas primeiras horas da manhã. Há uma articulação entre a agenda dos profissionais no intuito de garantir, findo o acolhimento coletivo: as consultas programadas, atuações relativas a cada núcleo, reuniões de equipe, visitas domiciliares, educação em saúde, distribuídas na semana de trabalho das equipes. Há também certa flexibilidade dessa configuração para garantir ações conjuntas entre os núcleos profissionais. 322
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“Estou aqui me reportando à primeira capacitação que a gente fez sobre acolhimento. Naquele momento, no Centro de Educação Permanente de Saúde, o acolhimento era uma ruptura, uma ruptura naquele chegar do usuário de saúde que era aquela fila, chegar de madrugada... esse novo sistema permitiu que as pessoas saíssem da unidade de saúde tendo sofrido algum tipo de escuta [...]. Eu participei do acolhimento individual e do coletivo [...]. Num nível do acolher a demanda do paciente, hoje os profissionais já se assenhoraram mais do que seria o acolher. Mas outro nível seria abraçar essa família para fazer esse acolhimento. Eu considero o acolhimento individual mais eficiente no sentido de acolher a demanda do paciente. E considero o acolhimento coletivo, este que estou participando pela primeira vez, mais eficiente no acolher como um todo [...]. Estou vendo de uma maneira boa, é eficiente, pois o acolhimento coletivo enxuga muito o acolhimento, dá mais resolutividade”. (Auxiliar de enfermagem)
O acolhimento destina-se a garantir a universalidade com escuta qualificada de todos que chegam à unidade de saúde. Que a necessidade defina a configuração das ofertas, e não o contrário. Que a responsabilização com o usuário oriente o processo de trabalho, e não interesses outros, como os corporativos. Garantir o acolhimento individual durante e após a realização do acolhimento coletivo obedece a esse preceito, pois nem todos os problemas devem ser partilhados, independente dos motivos. Além desse papel, o acolhimento individual dentro do processo de trabalho da equipe tem a perspectiva de vínculo com os usuários que buscam a unidade em outros horários, ainda que a unidade funcione somente em horário comercial, em que pese isto dificultar o acesso da classe trabalhadora. Com a dificuldade de acesso provocada pela limitação de fichas, os usuários, para tentar garantir o atendimento, tinham de chegar à fila muito cedo, sob o risco de não conseguirem ser um dos que seriam atendidos. Poder ser ouvido com mais rapidez pelo fato de toda equipe acolher, e não ter mais que chegar durante a madrugada à Unidade, é algo muito valorizado: “A gente ia, marcava ficha e ficava lá até altas horas, às vezes a gente tinha que chegar até 5 horas da manhã. De uns três meses para cá começou esse negócio de acolhimento na sala [o acolhimento coletivo], para mim, eu não tenho nada contra, no caso, a gente chega lá, você pergunta o que é que está acontecendo, devido ao problema a pessoa já é logo atendida, não espera até 12 horas [meio dia]”. (Usuária) “Eu acho que aumenta a auto-estima [do usuário]. Existe aquela imagem de por que eu sou pobre tenho que chegar às 5 da manhã e ser atendido às 8... Agora eu chego às 8, sou atendido e a depender do meu caso, 9 horas já estou em casa. Isso aumenta auto-estima, mais qualidade de vida e ainda dá tempo botar feijão no fogo!” (Estudante de medicina)
A agilidade do acolhimento se dá pelo fato de toda equipe fazer a escuta. Como todos serão ouvidos de acordo com a sua necessidade, melhora o fluxo dos usuários. A sobrecarga da porta de entrada logo pela manhã, antes de responsabilidade somente da enfermeira, agora é dividida com os outros membros da equipe: “Outro fator nessa forma de acolhimento é que a gente está compartilhando também um pouco dessa carga. Não é só a enfermeira que está atendendo sozinha uma fila de quarenta. Quando o acolhimento é feito de forma individual, quando chega no vigésimo, o enfermeiro, é claro que está saturado e não atende o 21º como ele atendeu o primeiro. Quando a gente vê o acolhimento com muitas pessoas, a gente [equipe de saúde] se olha e sabe que vai dividir aquilo”. (Enfermeira) “Você chega à fila do acolhimento e tem uma enfermeira que vai atender. Aquela enfermeira é quem vai decidir se você vai para aquilo que você quer consumir. O que esta população mais quer consumir? Culturalmente, a consulta médica porque nosso modelo sempre foi
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centrado no médico. Naquele espaço a gente tem a oportunidade de dizer: agora o acolhimento é da equipe. Tira do médico. Eu [o usuário] vou buscar o acolhimento. Essa equipe de saúde junto comigo é que vai decidir o que resolve o problema [...]. Eu vejo mais um trabalho de equipe, sai daquele negócio de passar só pela enfermeira. Pois o que pode acontecer também é a enfermeira ficar de malvada na história, eu não fui ao médico porque a enfermeira não me mandou para o médico”. (Médico)
A tentativa do acolhimento coletivo em transformar o modelo, retirar a centralidade das consultas médicas e ampliar as potencialidades dos profissionais que compõem a equipe é bem explorada por Merhy et al. (2004), que enfatizam a mudança radical que o acolhimento provoca no processo de trabalho de uma Unidade de Saúde. A Equipe de Acolhimento passa a ser o centro das atividades no atendimento aos usuários e “os profissionais não médicos passam a usar todo o seu arsenal tecnológico, o conhecimento para a assistência, na escuta e solução de problemas de saúde, trazidos pela população usuária dos serviços de saúde da Unidade” (Merhy et al., 2004, p.45). A construção social do médico como o detentor do conhecimento que será transmitido para a cura do usuário é uma das barreiras a ser vencida para substituir o consumo das consultas por projetos terapêuticos cuidadores entre-disciplinares. O status social e econômico e o biologicismo da formação em saúde desigualam o diálogo e não o favorecem. A visão da saúde enquanto mercadoria, e não como um direito, reforça ideologicamente a valorização da especialização na saúde (produto mais caro) e da realização de exames, muitas vezes desnecessários (procedimentos mais caros), além da medicalização. O diálogo não é considerado terapêutico, não possuidor de resolutividade. Isto perpassa toda a formação em saúde, e encontra-se bastante forte na formação médica: “Se houvesse a agenda para consulta para todo mundo não haveria necessidade de acolhimento coletivo”. (Estudante de medicina) “Acho que em alguns momentos ele [acolhimento coletivo] é terapêutico, em outros ele é só um paliativo. Se todos os pacientes forem encaminhados para consultas não haverá tempo”. (Estudante de medicina) “Não gosto da Dra. Silvia por conta de eu ter pedido uns exames e ela perguntou se eu achava que precisava. Ora, meu filho só gosta de peito [leite materno]. Não gosta nem de danone [iogurte]. A criança não pega [come] nada. Ela passou os exames amarrada. E depois, se ele estava com alguma doença grave?” (Usuária) Trazer à tona estas e outras concepções facilita o diálogo. Escutar um paciente, orientá-lo quanto às doenças autolimitadas, e agendar o retorno para ver sua resolução, pode ter um caráter terapêutico e vinculador maior que nossos atuais meios de investigação consigam capturar. A inclusão do outro, sua voz, a sensação de envolvimento no processo, a desterritorialização dos profissionais de saúde para a roda, circula, além de conhecimento, poder, com reflexos na construção de autonomia. O acolhimento coletivo se torna uma fuga da imagem ideologicamente construída do profissional de saúde, sobretudo de nível superior, como detentor do conhecimento a ser transmitido em lugar de compartilhado: “Os médicos antes só eram vistos no momento da consulta. Era um pop star [risos]. Entrava pelo fundo do posto saia pelo fundo do posto, só era visto no momento da consulta. Só isso [estar presente na roda do acolhimento] já é um diferencial muito grande para a população”. (Auxiliar de enfermagem) “[Os profissionais de saúde] tratam a gente bem, perguntam o que a gente está sentindo, falam com a gente com educação, se a gente está com uma dor vai logo ser atendido, está bastante melhor. Antes era tão ruim, a gente ficava esperando lá fora, esperando...”. (Usuária) 324
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O espaço do diálogo, sua compreensão como um lugar de trocas e entendimentos, por vezes não é percebido como tal. A escassez de espaços públicos de negociação, a distância do saber técnico em relação ao saber popular, as diferenças de classes, a valorização de uma cultura em detrimento de outra, a exclusão social, são aspectos que, por vezes, não são superados e prejudicam o diálogo. A resposta dada pela equipe é garantir o espaço de reterritorialização - o profissional, o usuário, a sala - verbalmente, no acolhimento coletivo. Além do fato de o acolhimento individual ficar aberto, pela equipe, durante todo o horário da unidade. “Preocupo-me com o nível cultural das pessoas, que por vezes querem esse atendimento diferenciado [individual, na sala] e não expressam na roda”. (Estudante de medicina) “Muita gente se sente à vontade, mas muita gente se sente acuado, com medo de falar errado. Sabe como é, gente de uma classe mais [...] mas no meu ponto de vista a gente tem mais é que falar. Tem tanta gente que é formada e fala errado [...] Uns não gostam de falar porque se sentem tímidos, tem medo. Mas a gente tem que falar mesmo o que sente”. (Usuária) “Quando há necessidade, ele [o usuário] grita, ele fala. É a minoria que fica calado. Se não tiver gostando ele abre a boca e diz. O pessoal aqui tem uma liberdade muito grande de dizer o que pensa, muitas vezes, nem que machuque outra pessoa”. (ACS) “Mas quando a gente fala que quem quiser falar em particular é só se manifestar, isso intimida também. O povo pode pensar que estou com coisa braba da pega [doença grave]. Ele prefere marcar uma consulta e esperar”. (Auxiliar de enfermagem)
A população reunida pode fazer perceber necessidades do coletivo, além das novas vozes integradas na produção do cuidado. Os novos projetos terapêuticos nos fazem aprender com as novas práticas de enfrentamento de desafios. Vêm à tona, além de mais necessidades, visões, preconceitos e concepções. “Às vezes a pessoa vem só marcar uma consulta e a gente mesmo pode pegar a agenda da enfermeira e fazer isso. Se a pessoa quer falar com o médico, a gente fala com ela: espera um pouquinho. E como tá todo mundo junto [...] antigamente o médico e enfermeira não ficavam juntos com o usuário, todo mundo falando [...]. Mesmo se ele tiver com uma coisa de mais sigilo, eles não contam e contam individualmente e vai ser atendido de acordo com as necessidades dele. O mais rápido que der. A minha área [região de adscrição] está gostando muito e eu espero que tão cedo não mude”. (ACS) “E a gente aprende um com o outro. Tem paciente que tem um problema que não quer dizer para a gente, e a gente diz: diga mais ou menos como é que é, espere um pouquinho que eu vou falar com o médico”. (ACS) “Já tá agindo mesmo como um médico, já [Risos]”. (ACS, após a fala anterior) “A gente já sabe mais ou menos qual o caso que o médico que atende, qual o caso que é a enfermeira. Quando não dá para mim que eu já passo para ele. A gente se desenvolve muito”. (ACS) “Eles [os usuários] opinam sobre o que está acontecendo, se é bom ou se é ruim para eles em relação à unidade e a comunidade. Ali é uma oportunidade maior, mesmo para aqueles que têm vergonha de falar”. (Estudante de medicina)
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“No acolhimento coletivo, um problema da população fica mais a olhos vistos. Se você vê muitas adolescentes grávidas no acolhimento coletivo, você vai trabalhar a educação sexual. Essa acolhida então não fica só a cargo do agente de saúde, vai para toda a equipe”. (Estudante de medicina)
Necessidades em saúde determinando o agir da equipe. Movimento e vida a serem defendidos na construção de projetos terapêuticos cuidadores, integradores, construindo autonomia. A busca de um Sistema de Saúde includente e de um processo de trabalho que traga também a realização profissional dos membros da equipe de saúde.
Síntese provisória O acolhimento coletivo como proposta de organização do processo de trabalho da equipe de saúde se faz inovador, por ser um espaço de integração do outro, usuários e trabalhadores, além dos saberes. O diálogo horizontal com os usuários e a relevância dada às suas opiniões e desejos trazem à unidade um perfil de espaço terapêutico e cuidado integral à saúde, proporcionando, também, maior aproximação do profissional ao modo de viver e sentir as necessidades trazidas ao espaço pela população. O maior desafio de se colocar em um espaço público de negociação é a sensação de segurança perdida que ocorre na busca de um equilíbrio metaestável. A busca deste equilíbrio, este desafio instituinte, traz consigo novas formas de produzir e ser feliz no trabalho. Mesmo considerando o viés da gratidão no grupo focal de usuários, onde há quase unanimidade quanto à realização do acolhimento coletivo, sente-se diminuição das tensões no dia-a-dia da unidade, antes tão frequentes, relacionadas, certamente, à falta de conversações. A escuta coletiva realizada no formato estudado de acolhimento traz mais um lugar de identificação de necessidades de saúde. Defendemos que é a necessidade de saúde que deve definir/instituir as ofertas de um serviço. Instituir nem sempre é substituir. Há necessidades e negociações que só surgem na abordagem individual e mais privada que o acolhimento coletivo pode dar. Os acolhimentos coletivo e individual tornam-se, então, complementares na escuta qualificada de necessidades de saúde. O acolhimento coletivo requer unidades com bom espaço físico, o que nem sempre é uma realidade de nosso sistema de saúde. Exige também profissionais que ampliem a dimensão cuidadora do seu fazer e flexibilizem esse fazer de acordo com as necessidades de saúde. A formação hospitalocêntrica e biologicista na saúde não vem preparando profissionais com a competência de criar espaços públicos de negociação, de trabalhar em equipe ou de reconhecer, respeitar e integrar o outro. A defesa da vida e do Sistema Único de Saúde passa por mudanças na formação destes profissionais. O acolhimento coletivo não é uma triagem. Extrapola a classificação de riscos que determina a sequência de ações em prol da recuperação da saúde. Não é uma sala de espera. É um espaço de encontro onde o conhecimento circula e não somente é transmitido dos sabidos para os ignorantes. Não é uma pré-consulta. É a integração de trabalhadores e usuários para a construção de projetos terapêuticos individuais e coletivos considerando expectativas, referenciais teóricos, desejos, sentimentos e experiências. Espaços como estes não são tão comuns em nossas unidades de saúde. Ainda há muito que desconstruir/construir em nossos ideários para que seja permitido romper os empecilhos ao diálogo e para que esta busca do equilíbrio seja produtora de relações mais solidárias e humanas. Compartilhar isso com usuários e trabalhadores tem um valor imensurável. Refletir sobre a nossa prática traz mais clareza e satisfação com o caminho que percorremos. Sistematizar e dividir esta experiência por meio deste trabalho traz consigo a esperança de provocar entendimentos e mais reflexões sobre o fazer cotidiano dos trabalhadores militantes, companheiros espalhados pelo Brasil.
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Colaboradores João Batista Cavalcante Filho e Elisângela Maria da Silva Vasconcelos responsabilizaram-se por todas as etapas da produção do artigo. Ricardo Burg Ceccim e Luciano Bezerra Gomes responsabilizaram-se pela discussão e redação do artigo. Referências ARACAJU. Secretaria Municipal de Saúde. Projeto Saúde Todo Dia. Aracaju, SE, 2003. BOUFLEUER, J.P. Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas. 3.ed. Ijuí: Unijuí, 2001. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. CECCIM, R.B. Equipe de saúde: perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3.ed. Rio de Janeiro: IMS/Uerj/Abrasco, 2006. p.259-78. CECÍLIO, L.C.O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 4.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/Uerj/IMS/Abrasco, 2006. p.113-26. FRANCO, T.B.; MERHY, E.E. A produção imaginária da demanda e o processo de trabalho em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATOS, R.A. (Orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Cepesc/Uerj/Abrasco, 2005. p.181-93. GATTI, B.A. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Líber Livro, 2005. MERHY, E.E. Aula da especialização em Saúde Coletiva. Aracaju: Universidade Estadual de Sergipe, 2005. (Videoteca do Centro de Educação Permanente da Saúde, 12 ago. 2005). ______. Saúde: cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. MERHY, E.E. et al. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2004. MERHY, E.E.; ONOCKO, R. (Orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. PINHEIRO, R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 4.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/Uerj/IMS/Abrasco, 2006. p.65-112. SILVA JÚNIOR, A.G.; MASCARENHAS, M.T.M. Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3.ed. Rio de Janeiro: IMS/Uerj /Abrasco, 2006. p.241-57. TEIXEIRA, R.R. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. (Orgs.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. 3.ed. Rio de Janeiro: IMS/Uerj/Abrasco, 2005. p.89-111. TESSER, C.D.; POLI NETO, P.; CAMPOS, G.W.S. Acolhimento e (des)medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família. Cienc. Saude Colet. [periódico na internet], 2007. Disponível em: <http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br>. Acesso em: 22 dez. 2008.
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ACOLHIMENTO COLETIVO: UM DESAFIO ...
CAVALCANTE FILHO, J.B. et al. Acogida colectiva: un desafio instituente de nuevas formas de producir el cuidado. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.315-28, out./dez. 2009. Ante el desafio de implementar una forma de acogida que integre el equipo de trabajadores de salud y estos con los usuarios, un equipo de profesionales del programa de salud de la familia propone la acogida colectiva; un espacio de encuentro entre trabajadores y usuarios, teniendo por objeto las necesidades de los usuarios. En este espacio creativo el trabajo vivo gana fuerza en su relación con los actos normativos. Por medio de actos comunicantes transforma tensiones en entendimientos. Hay la busca de un equilibrio meta-estable donde el trabajo se re-configura delante de cada nuevo desafío, construyendo relaciones más solidarias y proporcionando aprendizaje de nuevas formas de producción de cuidado.
Palabras clave: Acogida. Equipo interdisciplinario de Salud. Sistema Único de Salud. Atención primaria a la salud. Recebido em 09/09/08. Aprovado em 17/03/09.
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Agir comunicativo, redes de conversação e coordenação em serviços de saúde: uma perspectiva teórico-metodológica *
Juliano de Carvalho Lima1 Francisco Javier Uribe Rivera2
LIMA, M.C.; RIVERA, F.J.U. Communicative action, networks of conversation and coordination in healthcare services: a theoretical and methodological perspective. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.329-42, out./dez. 2009. This paper discusses a theoretical and methodological approach for studies within the field of integration of healthcare services. The intersubjective aspects of the coordination processes are emphasized. The discussion starts from the assumption that the coordination of healthcare actions and services, which is a process central to integration, is essentially a communicative action. Among the methodological aspects, the potential of conversation analysis is highlighted as a tool for analyzing the interactions that are established within the processes of coordinating healthcare actions and services.
Keywords: Coordination. Communication. Integration of healthcare services. Conversation analysis. Intersetorial action.
Neste artigo discute-se uma abordagem teórico-metodológica para estudos na área da integração de serviços de saúde, destacando o aspecto intersubjetivo dos processos de coordenação. Parte-se do pressuposto de que a coordenação de ações e serviços de saúde, processo central da integração, é essencialmente uma ação comunicativa. Entre os aspectos metodológicos destacam-se as potencialidades da Análise de Conversações (AC) enquanto ferramenta para analisar as interações que se estabelecem nos processos de coordenação de ações e serviços de saúde.
Palavras-chave: Coordenação. Comunicação. Integração de serviços de saúde. Análise de conversação. Ação intersetorial.
* Elaborado com base em Lima (2002), tese que contou com financiamento da Capes. O trabalho seguiu as normas estabelecidas pela Resolução CNS 196/96, tendo o projeto de pesquisa sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (parecer 0098.0.031.000-07). 1 Fundação Oswaldo Cruz. Rua Senador Vergueiro, 238/1201. Flamengo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.230-001 Juliano@fiocruz.br 2 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.
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Introdução Embora tenha sido criado com vistas à constituição de redes de serviços capazes de permitir o acesso de qualidade a todos, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda é caracterizado como um sistema fragmentado, com distribuição desigual dos recursos e articulação insuficiente entre os serviços. Em face dos problemas de fragmentação das ações assistenciais, Hartz e Contandriopoulos (2004) consideram que a integração dos serviços aparece como um atributo inerente às reformas de políticas públicas e torna-se eixo prioritário de investigação e avaliação dos serviços e sistemas de saúde. É com base nessa compreensão que se discute, neste trabalho, uma perspectiva teóricometodológica para estudos na área de integração de serviços de saúde, tendo como pressuposto a ideia de que a coordenação das ações de saúde é essencialmente uma ação comunicativa. O ponto de partida é uma revisão sobre integração em sistemas de serviços de saúde, onde se busca uma aproximação conceitual entre coordenação, integralidade e comunicação. Nesta revisão enfatiza-se a emergência de uma visão relacional e dialógica da coordenação. A partir de então, faz-se uma reconstrução comunicativa da coordenação, utilizando-se elementos da Teoria do Agir Comunicativo (Habermas, 2002a, 2002b, 2001), da Teoria dos Atos de Fala (Austin, 1965) e da Teoria da Conversação (Echeverria, 1997). Propõe-se que estudos baseados na análise de Redes de Conversação são potentes para esclarecer aspectos importantes destes processos e orientar sobre novas formas de coordenar serviços de saúde. Como conclusão, apontam-se perspectivas metodológicas para a realização de estudos baseados neste enfoque.
Coordenação, integração e comunicação em sistemas de serviços de saúde Para Longest e Klingensmith (1988), a coordenação representa o principal instrumento pelo qual os gerentes articulam e integram as várias pessoas e unidades dentro das organizações e integram suas organizações com outras. “Se as ligações não são efetivas, as organizações podem se tornar fragmentadas, fracionadas e isoladas, com concomitante declínio da performance” (Longest, Klingensmith, 1988, p.235). Para os autores, o conceito-chave para se discutir a questão da coordenação é a interdependência, caracterizada em função das relações entre unidades e indivíduos. Na discussão sobre mecanismos de coordenação interorganizacional, os autores destacam que “organizações de atenção à saúde vivenciam experiências de interdependências com outras organizações de saúde ou com outros elementos no seu ambiente externo, como, por exemplo, distintos níveis de governo, fornecedores, pagadores e assim por diante” (Longest, Klingensmith, 1988, p.245). Mitchell e Shortell (2000) definem coordenação como o gerenciamento de um sistema de intercâmbios. Para os autores, um adequado grau de coordenação pode ampliar e melhorar a comunicação, reduzir incertezas e evitar conflitos. Embora os conflitos sejam parte inerente a qualquer organização social, eles surgem, sobretudo, quando diversas organizações com interesses diversos tentam trabalhar juntas. Hartz e Contandriopoulos (2004, p.332) veem a coordenação como o propósito principal dos processos de integração de serviços de saúde. “Num sentido mais amplo, a integração em saúde é um processo que consiste em criar e manter uma governança comum de atores e organizações autônomas, com o propósito de coordenar sua interdependência, permitindo-lhes cooperar para a realização de um projeto (clínico) coletivo”. Ao pensar-se o sistema de serviços de saúde como uma rede coordenada capaz de garantir o acesso e a continuidade do cuidado, é importante ter em conta que as ligações entre os nós desta rede somente podem ocorrer mediante o estabelecimento de uma rede intrincada de interações entre: aqueles responsáveis pela organização do sistema (gestores), os responsáveis pela organização e produção dos serviços (prestadores e profissionais) e os cidadãos, que podem ser considerados como os três sujeitos genéricos da coordenação/ integração em sistemas de serviços de saúde. Entende-se, assim, que as formas de organizar a atenção à saúde são expressão das relações e das interações entre estes três atores centrais. A gestão é entendida neste trabalho como um processo político de produzir contratualidades entre os diferentes atores sociais com vistas à organização das ações de saúde. 330
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Segundo Feuerwerker et al. (2000, p.10), “apesar de nesse processo [constituição de redes de serviços de saúde] estarem envolvidas instituições e projetos, são sempre pessoas que se articulam e conectam. São sempre pessoas que constroem vínculos. É a unidade básica do vínculo, a relação entre sujeitos, que vai conformar uma rede”. Rovere (1998, p.30) também reforça a concepção acima. Redes são redes de pessoas, se conectam ou vinculam pessoas, ainda que esta pessoa seja o diretor da instituição e se relacione com seu cargo incluído, porém não se conectam cargos entre si, não se conectam instituições entre si, não se conectam computadores entre si, se conectam pessoas. Por isto é que se diz que rede é a linguagem dos vínculos.
Assim, as relações interorganizacionais, sempre enfatizadas nas discussões sobre sistemas integrados, somente se dão, na prática, a partir de relações interpessoais. Mas apesar desta constatação, são poucos os estudos que buscam apreender o modo como se dão estas interações. Predominam análises voltadas para medir a integração em termos de troca de recursos, de encaminhamentos de pacientes, de protocolos, mas poucos são os estudos voltados para a análise do papel da comunicação interpessoal e do modo como ela atua no interior do sistema. Estudos recentes no campo da saúde têm enfatizado a emergência de uma perspectiva diferente na análise de processos de coordenação intra e interorganizacionais. Safran, Miller e Beckman (2005) chamam a atenção para o que denominam dimensões organizacionais de cuidados centrados no relacionamento. Tal perspectiva enfatiza a importância das relações interpessoais e da cultura de solidariedade para o sucesso organizacional e, especialmente, o papel de redes de conversações colaborativas. Gittel (2002a, 2002b) e Gittel e Weiss (2004) enfatizam, em seus estudos sobre a microdinâmica da coordenação entre serviços de saúde, que o desenho de certos mecanismos podem facilitar a coordenação, mas esta é fundamentalmente um processo de interação entre os participantes. Embora a coordenação possa se dar por meio de uma grande variedade de mecanismos, tais como programação de tarefas, padronização e estabelecimento de rotinas, estes são mais apropriados a interdependências do tipo sequencial ou linear, mas não são suficientes em áreas onde prevalecem atividades que são reciprocamente interdependentes, onde há elevado grau de incerteza e onde o tempo é escasso, como é o caso da provisão de serviços de saúde. Para dar conta deste padrão de interdependências, Gittel tem advogado por uma determinada perspectiva da coordenação, a qual denomina coordenação relacional (relational coordination). Esta forma de coordenação diferencia-se de outras identificadas na teoria organizacional por referir-se mais às interações entre os participantes do que aos mecanismos que dão suporte a estas interações. Segundo essa abordagem, a comunicação possui um papel preponderante. A coordenação relacional reflete o papel que a comunicação frequente, oportuna, precisa e centrada na solução de problema tem nos processos de coordenação (Gittel, 2002a). Resultados de seus estudos mostraram que rotinas, gerenciamento de casos, reuniões de equipe e coordenação relacional têm efeitos positivos na eficácia dos serviços. Mas, além disso, os autores concluem que os mecanismos formais de coordenação melhoram a performance do serviço pelo incremento do nível de coordenação relacional, ou seja, dos processos de interação. Em outro estudo com foco nas relações entre prestadores de serviços no cuidado pós-cirúrgico e utilizando as mesmas dimensões da coordenação relacional, Gittel (2002b) testou duas hipóteses: 1) a coordenação relacional entre prestadores de serviços aumenta a satisfação dos usuários, independente dos efeitos diretos da relação usuário-provedor; b) a coordenação relacional entre prestadores aumenta a intenção dos usuários de recomendar o serviço a outros, independente dos efeitos diretos da relação usuário-provedor. Os resultados do estudo mostraram que fortes relações entre provedores de serviços de saúde têm efeito direto no incremento da satisfação dos usuários e na sua fidelidade aos serviços, devido ao recebimento de um tratamento mais coordenado. Além disso, relações entre os prestadores ajudam os serviços a desenvolverem relações mais efetivas com os próprios usuários, contribuindo assim para a satisfação. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.329-42, out./dez. 2009
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Com base em um estudo realizado em um centro de atendimento ao trauma nos Estados Unidos, Faraj e Xiao (2006) argumentam que, diferente de outras situações, as organizações de resposta rápida (fast-response organizations), como as emergências hospitalares, operam com elevado grau de incerteza e com processos rápidos de tomada de decisão. Para essas organizações, os autores desenvolvem uma abordagem que enfatiza o que denominam coordenação da expertise e coordenação dialógica, uma vez que essas organizações são menos dependentes de arranjos estruturais de coordenação e são mais contingentes na integração do conhecimento. Entre as práticas de coordenação da expertise, Faraj e Xiao (2006) incluem mecanismos como: elaboração de protocolos, arranjos flexíveis de composição de equipes (ora em função de um paciente, ora em função de um procedimento, ora em função do plantão), formação de comunidades de práticas e mecanismos de compartilhamento de conhecimento, como estudos de casos, seminários, entre outros. Já a coordenação dialógica entraria em cena, sobretudo, como respostas situadas a trajetórias inesperadas dos pacientes. Na coordenação dialógica, são quatro as práticas principais: 1) a geração de consenso, que ocorre especialmente quando a equipe se vê obrigada a se reunir e discutir determinado caso que não está seguindo a trajetória esperada; 2) a intervenção “transfronteira”, que ocorre geralmente quando a segurança de um paciente está comprometida, o que permite a intervenção de profissionais de outras áreas no trabalho sob responsabilidade de outros; 3) a contestação epistêmica, que diz respeito a conversações que emergem entre as várias comunidades de prática quando da diferença de opinião acerca de determinada situação; 4) a quebra de protocolos como uma prática de coordenação, sobretudo em situações especiais e de grande risco. O aspecto mais relevante do trabalho de Faraj e Xiao (2006) é a conclusão de que, em determinadas organizações, onde o conhecimento, a incerteza e a interdependência variável são características, as abordagens que enfatizam o desenvolvimento de mecanismos de coordenação pré-especificados não são adequadas. Nestas organizações os mecanismos de coordenação não são facilmente especificados e são altamente contingentes. Os estudos de Faraj e Xiao (2006) dão suporte para uma conceituação relacional da coordenação como um fenômeno emergente. Também para Franco (2006), a organização da atenção à saúde se dá fundamentalmente pelas relações, pelas conexões que se estabelecem entre pessoas que estão em situação e se formam em linhas de fluxos horizontais por dentro das organizações. Ao observarmos o funcionamento das redes de cuidado do SUS, verificamos que, entre as diversas unidades, seja da equipe de saúde da família, unidades básicas, serviços de especialidades, rede hospitalar e mesmo o atendimento pré-hospitalar, trabalham comunicando-se mutuamente, em um processo que de longe pode se verificar que é um funcionamento em rede. (Franco, 2006, p.130)
Para Franco (2006), as redes de serviços de saúde e as redes de produção de cuidados seriam sistemas abertos de conexão, cuja produção se dá sem que haja um eixo estruturado sobre o qual se organiza. São as relações que vão construindo o meio social em que se inserem os atores. A produção da atenção à saúde se dá, nesta perspectiva, a partir de múltiplas conexões e fluxos, que criam linhas de contato entre atores sociais que são a fonte de produção da atenção. Artmann (2002) e Artmann e Rivera (2003), ao olharem para a rede de serviços hospitalares, buscam identificar instrumentos que possibilitem estruturar esta rede a partir dos custos de oportunidade, da comunicação e da solidariedade. A proposta de planificação apresentada pelos autores, a démarche stratégique, é um sistema de análise da missão dos serviços hospitalares que valoriza as sinergias e parcerias. Parte de um olhar abrangente sobre a rede, o que inclui a realização de um diagnóstico administrativo e epidemiológico da área onde o hospital está inserido. Assim como em autores discutidos anteriormente, a proposta justifica-se pelo elevado grau de interdependência nos processos de atenção. Para Artmann (2002), a diversificação crescente dos processos de atenção, o seu caráter transversal e o amplo e crescente número de atores mobilizados neste processo de trabalho demonstram o elevado grau de interdependência que apresenta o sistema. 332
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O importante a se destacar em relação à abordagem proposta é que ela se opõe a uma perspectiva normativa e tecnocrática de definição de diretrizes e estratégias hospitalares, apostando no desenvolvimento de processos comunicativos e de negociação externos ao hospital que redundem em acordos relativos aos projetos assistenciais pertinentes à rede de serviços. Nesta perspectiva, Artmann e Rivera (2003) se aproximam de Franco (2006), para quem as linhas assistenciais e os projetos assistenciais inseridos nelas são resultantes de um pacto produzido a partir do desejo, da adesão ao projeto, de vontade política, recursos cognitivos e materiais, e que constitui o centro nervoso de viabilização da proposta. A revisão realizada acima traz, para o debate, importantes elementos no que diz respeito à tentativa de aproximar as ideias de coordenação, integração e comunicação. Como visto, a coordenação está no centro das discussões recentes sobre a constituição de sistemas integrados de serviços de saúde. As várias abordagens ao tema, incluindo as várias denominações e experiências, como constituição de redes, gerenciamento de casos, continuidade do cuidado, integração clínica, têm em comum o objetivo de tentar lidar com as interdependências do sistema. Interdependência é a questão-chave, pois se não há interdependência, não há nada a ser coordenado. Esta deve, portanto, ser analisada em termos de atores que desenvolvem tarefas interdependentes e que requerem recursos de vários tipos. Assim, os atores em uma organização se deparam com problemas de coordenação que surgem das dependências, que dificultam o desempenho das atividades A coordenação é abordada como um meio para incrementar alguns dos objetivos do sistema de saúde, dos quais destacam-se a integração dos serviços e a integralidade da atenção. A seguir, apontamos alguns dos resultados esperados em sistemas de serviços com elevado grau de coordenação: garantir o acesso e a continuidade; evitar a sujeição do paciente a procedimentos desnecessários; evitar a duplicação de procedimentos ou exames, e agilizar o atendimento. São muitas as abordagens e as metodologias voltadas para a análise da coordenação em sistemas de serviços de saúde. Boa parte dos estudos assume uma perspectiva estrutural-funcionalista, destacando as relações interorganizacionais e enfatizando a modificação das fronteiras das organizações. Uma abordagem feita exclusivamente sob esta perspectiva termina por apagar ou ocultar as relações entre os sujeitos em interação que, em último caso, é o que produz de fato a coordenação das ações. No entanto, recentemente, uma série de trabalhos tem reconhecido cada vez mais o caráter relacional, micropolítico e dialógico, da organização de redes de serviços de saúde. É possível falar, parafraseando Habermas, em uma “guinada para a comunicação”, a partir do momento em que temas como integralidade e coordenação passam a se constituir elementos essenciais para a criação de novas possibilidades para o campo da saúde. A construção da integralidade passa pela instituição de estruturas e mecanismos reguladores dos fluxos de usuários entre os serviços, mas passa fundamentalmente pela mudança nos modos de interação entre profissionais e usuários e entre as equipes de profissionais e gestores. Como essa interação se dá, fundamentalmente, por meio da linguagem, isso exige novos processos de comunicação. Neste sentido, busca-se, a seguir, fundamentar uma abordagem comunicativa para análise da coordenação, tomando por base elementos da Teoria do Agir Comunicativo, da Teoria dos Atos de Fala e da Teoria da Conversação.
Comunicação e coordenação de ações Segundo Maturana (2001), é possível falar em consenso ou condutas consensuais toda vez que se faz referência a condutas ou coordenações de condutas que se estabelecem como resultado do fato de as pessoas estarem juntas, em interações recorrentes. A coordenação de ações tem um caráter eminentemente comunicativo. “A linguagem é um modo de viver juntos num fluir de coordenação consensual de coordenações consensuais de comportamentos, e é como tal um domínio de coordenações de coordenações de ações” (Maturana, 2001, p.178).
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Teoria do Agir Comunicativo e coordenação de ações Habermas (2002a) afirma que é possível entender uma interação como a solução do problema de como os planos de ação de diversos atores podem ser coordenados de modo que as ações de um possam ser “ligadas” às ações do outro. A necessidade de ligação decorre do interesse que cada ator possa ter de cumprir seu plano de ação. “O problema de coordenação da ação verifica-se logo que um agente consiga materializar o seu plano de uma forma apenas interativa, ou seja, com a ajuda da ação de pelo menos um outro agente (ou da sua opção de se abster de agir)” (Habermas, 2002a, p.110). Nos sistemas de saúde, essa é justamente a situação. O adequado atendimento às necessidades da população somente é possível na medida em que as várias pessoas que atuam nos serviços (gestores, prestadores, profissionais e usuários) interajam umas com as outras. Segundo Habermas (2001, 2002a), os mecanismos de coordenação de ação utilizados distinguem dois tipos de interação, segundo o uso que é feito da linguagem. Quando a linguagem é utilizada apenas como meio de transmissão de informação com vistas a um fim, fala-se em ação estratégica. Já quando ela é utilizada como fonte de integração social, fala-se em ação comunicativa. No caso da ação comunicativa, “a força consensual dos processos lingüísticos de se obter entendimento, ou seja, as energias vinculativas da própria linguagem – torna-se eficaz para a coordenação de ações” (Habermas, 2002a, p.110). Já no primeiro caso, o da ação estratégica, o efeito coordenador é dependente da influência exercida pelos atores em interação, não apenas sobre a situação da ação, mas também sobre o outro. Na ação comunicativa, pressupõe-se a existência de uma base de pretensões de validade mutuamente reconhecidas. Os agentes participantes tentam adequar os seus respectivos planos cooperativamente, dentro do horizonte de um mundo da vida partilhado e com base em interpretações comuns de situação. O agir comunicativo impele os indivíduos a abandonarem o egocentrismo de um cálculo orientado exclusivamente para o seu próprio sucesso. Sob o aspecto funcional de entendimento, a ação comunicativa serve à tradição e à renovação da cultura; sob o aspecto da socialização, serve à formação das personalidades individuais; e sob o aspecto da coordenação da ação, serve à integração social e à criação de solidariedade. A integração social, mediada pela linguagem, cuida que as ações sejam coordenadas através de relações interpessoais legitimamente reguladas e da continuidade da identidade dos grupos em um grau que baste à prática comunicativa cotidiana. A coordenação das ações e a estabilização das identidades de grupo têm aqui sua medida na solidariedade dos membros. (Habermas, 2001, p.200)
O agir comunicativo distingue-se do agir estratégico porque uma coordenação da ação bemsucedida não depende da racionalidade teleológica das orientações da ação, mas da força racionalmente motivadora de realizações de entendimento, isto é, de uma racionalidade que se manifesta nas condições para um consenso obtido comunicativamente (Aragão, 2002). Para uma efetiva coordenação da ação, é necessário um agir baseado na busca do entendimento (agir comunicativo), assentado na capacidade de os participantes da interação produzirem um consenso fundamentado argumentativamente sobre pretensões de validez criticáveis, que irá motivar suas ações e promover a emancipação frente à dominação política e a liberação do homem para a reflexão crítica. Tal perspectiva não elimina e nem pretende eliminar o conflito. Busca sua solução via uma interação dialógica baseada em argumentos. Voltando o olhar para os sistemas de serviços de saúde, compreende-se que a superação da fragmentação e a ampliação do acesso dependem de uma integração social por meio de valores, normas e processos de entendimento entre os implicados na provisão de serviços de saúde. Tendo em vista as atuais discussões sobre a integração de serviços no Brasil, em especial as que advogam a
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necessidade de uma perspectiva solidária de regionalização, deduz-se que as relações intergestores têm se dado mais com base na competição por recursos escassos e na disputa pelo poder (agir estratégico). A Teoria da Ação Comunicativa apresenta um caminho para pensar a transformação da prática cotidiana, inclusive nos pequenos espaços institucionais, como um sistema de serviços de saúde, onde se evoluiria de uma perspectiva autoritária, fragmentada e individualista para uma visão democrática, integrada, baseada no trabalho coletivo, na solidariedade, na comunicação, no confronto de argumentações e na busca do consenso. As reflexões trazidas pela Teoria do Agir Comunicativo fornecem uma base de compreensão dos processos de coordenação baseados na interação linguística que se dá entre sujeitos que, para materializarem seus planos, precisam da ação (ou não ação) de outro. Assim, a construção de um modelo teórico capaz de orientar a análise da coordenação em sistemas de saúde, exige um aprofundamento sobre a questão de como se dão, cotidianamente, os diálogos e como esses são utilizados nos processos de coordenação. Nesse sentido, algumas ideias como atos de fala (Austin, 1965) e conversação (Echeverria, 1997, 2000) são úteis para a análise das atividades de coordenação.
Atos de fala, conversação e coordenação Flores (1989) e Echeverria (1997, 2000) analisam as organizações enquanto fenômenos linguísticos. Esta visão das organizações e do papel central das conversações decorre do papel gerativo da linguagem. Quando um sujeito fala, não apenas descreve a realidade pura e simplesmente; ele gera realidade. A concepção de linguagem como ação supera a visão de que ela seria algo passivo, descritivo, onde a realidade viria primeiro e a linguagem serviria para descrevê-la. Segundo Austin (1965), distinguem-se dois tipos de proferimentos: os constatativos e os performativos. Os primeiros são aqueles que descrevem ou relatam um estado ou uma situação, e que, por isso, se submetem ao critério de verificabilidade, isto é, podem ser rotulados de verdadeiros ou falsos. Já os enunciados performativos, são proferimentos que realizam uma ação, executam atos. Um Ato de Fala é, pois, um proferimento linguístico realizativo. Dentro dessa perspectiva de linguagem como ação, Echeverria (1997), adaptando a classificação original de Austin (1965), distingue três categorias de enunciados de fala: as afirmações, as declarações e as promessas. No caso das afirmações, a palavra adequa-se ao mundo. Geralmente, as afirmações correspondem a descrições da realidade. Tratam-se de proposições acerca das observações feitas por alguém sobre algo no mundo objetivo. Quando alguém diz: “essa caneta é vermelha”, está fazendo uma afirmação. Já as declarações são bem distintas das afirmações. “Quando fazemos declarações não falamos sobre o mundo, geramos um novo mundo para nós” (Echeverria, 1997, p.75). Quando um juiz diz “Inocente”, ou quando o gerente diz “Você está despedido”, os sujeitos não estão se referindo a algo que passa no mundo, mas estão criando uma nova realidade, onde um suspeito se torna livre e um trabalhador desempregado. Por fim, as promessas implicam um compromisso manifesto mútuo. Este compromisso constitutivo de uma promessa não é apenas um compromisso individual, mas também social. A realização desses três atos de fala básicos apresenta relação com as pretensões de validade levantadas por um sujeito em comunicação com outros. Quando se faz uma afirmação, o falante compromete-se com a veracidade do que diz. Ao fazer uma declaração, compromete-se com a validez do que foi declarado, o que está em relação com as normas sociais construídas pela sociedade. Por fim, quando se faz uma promessa, compromete-se com a sinceridade da promessa e com a competência para cumpri-la. O segundo conceito importante para a abordagem comunicativa da coordenação é o de conversação. Esta é, segundo Flores (1989), a unidade mínima de interação social orientada para a execução com êxito de ações. Para Marcuschi (2005), a conversação é uma interação verbal centrada,
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que se desenvolve durante o tempo em que, pelo menos, dois interlocutores voltam sua atenção visual e cognitiva para uma tarefa comum. Deste modo, os atos de fala são subcomponentes da conversação. Ou seja, uma conversação envolve vários proferimentos linguísticos aceitos por dois ou mais interlocutores em uma interação voltada para uma atividade comum. Para Echeverria (1997), a conversação é o gênero básico da interação humana e sua característica importante advém do fato de ela incluir não apenas o falar, mas também o escutar. Está-se diante de uma conversação quando o escutar e o falar estão “interatuando” juntos. Em uma conversação, a escuta é ativa, na medida em que cada interlocutor interpreta os Atos de Fala a sua maneira. Por isso, é possível dizer que a escuta valida a fala, sendo, portanto, uma precondição da fala efetiva. Echeverria (1997) traz uma tipologia que contempla quatro tipos de conversações: a conversação de juízos pessoais; a conversação para a coordenação de ações; a conversação para possíveis ações; e a conversação para possíveis conversações. Na conversação de juízos pessoais, entra-se numa cadeia de juízos por meio dos quais busca-se interpretar o que ocorreu e as consequências derivadas do fato. Trata-se de uma ação que se destina a dar sentido aos acontecimentos, trata-se de uma ação reflexiva. Já as conversações para coordenação de ações são aquelas que levam as pessoas a atuarem sobre os problemas buscando superá-los. Não se trata de uma ação puramente reflexiva, portanto, mas sim de uma ação gerativa. As conversações para possíveis ações não estão orientadas para enfrentar os problemas em questão, mas sim para a ação de especular e explorar novas ações possíveis, novas possibilidades que podem ou não levar à coordenação da ação. E, por fim, as conversações para possíveis conversações são aquelas que ocorrem quando se julga não ser possível conversar diretamente com alguém acerca de algo. Ao atribuir-se à coordenação um caráter preponderantemente comunicacional, conforme defendido até aqui, as conversações e seus subcomponentes, os atos de fala, passam a ter papel fundamental na construção de um modelo de análise de processos de coordenação e integração em serviços de saúde. Segundo Echeverria (2000, p.75): “Se examinamos agora as atividades de coordenação, constatamos que estas são também estritamente conversacionais. E mais, a linguagem é a grande ferramenta que possuem os seres humanos para coordenar ações entre si e para coordenar inclusive a forma como se coordenam ações”. Interessa particularmente a noção de conversação para coordenação de ações. O objetivo deste tipo de conversação é fazer com que algo aconteça, é intervir sobre o estado atual das coisas. O fundamental nestas conversações é a tentativa de modificar aquilo que produziu o problema ou dar conta de suas consequências. Nesse sentido, os atos de fala do tipo declaração e, sobretudo, promessa, cumprem um papel central. “As promessas são, por excelência, aqueles atos linguìsticos que nos permitem coordenar ações com outros. Quando alguém faz uma promessa, ele ou ela se compromete perante o outro a executar alguma ação no futuro” (Echeverria, 1997, p.92). Segundo Echeverria (1997), são as declarações e as promessas que permitem que surjam novas realidades. Um dos pontos mais importantes tratados pelo referido autor diz respeito à ideia de que esse tipo de ação reveste-se de especial importância e é o modo por meio do qual se faz possível a resolução de problemas coletivos. “No mundo de hoje não é possível viver na completa autosuficiência. Somos dependentes uns dos outros. Temos que aprender, portanto, a colaborar com os outros, a apoiarmos mutuamente, a coordenar ações juntos” (Echeverria, 1997, p.237). É a capacidade de as pessoas em interação realizarem, aceitarem e cumprirem com os compromissos que dá a possibilidade de ampliação de coordenação das ações. Pelo caráter fortemente realizativo das declarações, estas cumprem papel primordial na coordenação na medida em que se traduz imediatamente em ação concreta de mudança da realidade. A seguir, busca-se ilustrar uma rápida conversação com vistas à coordenação de ações em serviços de saúde.
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A: “Tenho um paciente grave e preciso de uma vaga em UTI” (Afirmação) B: “Vou verificar junto ao Hospital X” (Oferta de promessa) A: “OK” (Aceite da promessa) B: “A vaga de UTI no Hospital X é sua” (Declaração/efetivação da promessa)
Esta breve conversação mostra o papel desempenhado por cada ato de fala para coordenar ações com vistas ao bem-estar do hipotético paciente. Neste sentido, surge outro conceito importante para uma abordagem comunicativa da coordenação. Trata-se do conceito de competência conversacional (Habermas, 2001; Echeverria, 2000, 1997). Ao reconhecer-se o caráter gerativo da linguagem, percebe-se quanto o comunicar pode ser mais ou menos efetivo de acordo com “como” se dá a comunicação. A precariedade da comunicação pode resultar em desentendimento, em desconfiança, em distorção de ideias, em resultados insatisfatórios em relação ao um acordo e em situações de dominação. Por competência comunicativa, Habermas (2001) entende a capacidade de um falante orientado para o entendimento, de forma a conceber uma frase corretamente formulada em relação à realidade. Isso implica o cumprimento das seguintes condições: . Atender às exigências de inteligibilidade da frase proferida. . Cumprir com as condições de verdade da proposição ou com os pressupostos existenciais do conteúdo proposicional. . Expressar as suas intenções de modo que a expressão linguística apresentada represente de fato aquilo que se pretende. . Desempenhar o ato de fala em conformidade com as formas reconhecidas ou com as imagens aceites de nós-próprios (de forma a que o ouvinte possa confiar no falante). Já Echeverria (2000, p.144) depreende, do conjunto de atos de fala, um conjunto de competências correspondentes. “Cada um dos atos de linguagem pode realizar-se de diversas maneiras e com graus de competência distintos”. As competências conversacionais têm um caráter potencializador em relação a competências específicas. Muitas dessas últimas dependem da eficiência das competências conversacionais. Por fim, as competências conversacionais possuem outros dois processos conversacionais complementares: o processo de aprendizagem e o processo de reflexão prática. Esses processos conversacionais estão na base da capacidade humana para adquirir qualquer outro tipo de competência e de melhorar aquelas que já possuem. Sob a ideia de conversações para coordenação de ações e competências conversacionais, há um grande potencial para se pensar a questão da coordenação em sistemas e serviços de saúde, uma vez que, como se tem sustentado até aqui, a coordenação da ação é uma atividade essencialmente linguística e se faz por meio dos atos de fala que se estabelecem nos processos de interação com vistas a gerenciar atividades interdependentes.
Redes de conversação, coordenação e integração de sistemas/serviços de saúde Com base nas contribuições da Teoria do Agir Comunicativo, da Teoria dos Atos de Fala e da Teoria da Conversação, alguns elementos podem ser apreendidos no sentido de conformar um modelo teórico que privilegie os processos de interação entre os sujeitos envolvidos na coordenação de ações em sistemas de serviços de saúde. A partir da perspectiva de sistemas integrados de Hartz e Contandriopoulos (2004), que apresenta cinco dimensões inter-relacionadas - integração dos cuidados, integração da equipe clínica, integração funcional, integração normativa e integração sistêmica - é possível representar processos que envolvem múltiplos atores que necessitam coordenar atividades que são interdependentes, focando a análise nas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.329-42, out./dez. 2009
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interações que se dão entre eles. Como são os processos comunicacionais que sustentam essas interações, é possível analisá-las no conjunto das dimensões apresentadas ou em cada uma separadamente. Cada uma dessas dimensões apresenta atividades interdependentes que demandam mecanismos e processos eficazes de coordenação. É o modo de funcionamento destes mecanismos e processos que irá garantir ou não a integração em cada uma das dimensões e, consequentemente, no sistema de serviços de saúde como um todo. Com base nas discussões feitas anteriormente, depreende-se que, no interior de cada uma daquelas dimensões dos sistemas integrados, operam mecanismos e processos de coordenação que estão ancorados, sobretudo, em conversações que se estabelecem entre os distintos atores. Desse modo, para cada dimensão de um sistema integrado de saúde, pode-se adotar um modelo de análise baseado na inter-relação entre interdependência, coordenação e integração, cujo eixo estruturante é uma dinâmica rede de conversações. Ou seja, é a rede de conversações que se estabelece entre os atores em situação, gestores, prestadores/ profissionais e usuários, que garante o vínculo entre a interdependência, a coordenação e a integração (Figura 1).
COORDENAÇÃO
INTERDEPENDÊNCIA
(Arranjos de coordenação e coordenação dialógica)
REDES DE CONVERSAÇÕES PRODUZIDAS POR GESTORES, PROFISSIONAIS E USUÁRIOS Atos de fala Organização da interação Competências conversacionais Compromissos
INTEGRAÇÃO
Figura 1. Compreensão comunicativa da inter-relação entre interdependência, coordenação e integração.
A noção de rede traz, no plano técnico-operacional, a ideia de fluxo, de circulação, como, por exemplo, as redes de transportes, de água e esgoto, de telecomunicações e de pacientes. No plano estrutural-organizacional, remete a uma configuração policêntrica, constituída por nós ou nódulos e por vínculos, relações, que os inter-relacionam. A idéia de rede de conversações remete a um conjunto de relações ou interações cujas ligações são mediadas pela conversa entre atores envolvidos em um contexto compartilhado. No âmbito específico de um sistema de serviços de saúde, trata-se de um conjunto de relações não hierárquicas e interdependentes, vinculando gestores, profissionais/ prestadores e usuários mediante a Conversação para concretizar seus diversos interesses e promover a integração dos serviços.
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Nesta rede de conversação, não transitam apenas informações, mas sim atos de fala, que comprometem aqueles que os efetuam frente a si mesmos e aos outros. Pedidos e compromissos, ofertas e promessas, assentimentos e recusas, consultas e resoluções se entrecruzam e se modificam de forma recorrente na rede. Em particular, as promessas devem ser mantidas. Segundo Teixeira (2003), em uma perspectiva de rede, o trabalho dos gestores e dos gerentes consiste não apenas em tomar decisões e resolver problemas sozinhos, mas, sobretudo, em animar e manter a rede de conversas onde são trocados os compromissos. Ele coordena as ações. Irá, sobretudo, tentar discernir, durante sua atividade comunicativa, as novas possibilidades que poderiam abrir-se à comunidade e ameaçariam reorientar algumas de suas finalidades, gerando assim novos circuitos de conversa. A ideia é a de que uma rede integrada de serviços de saúde é operacionalizada por uma intensa rede de conversações, e sua análise constitui, portanto, um caminho possível para se compreender o funcionamento da rede de serviços. Os nós da rede de serviços são unidos pelas conversações que se travam durante as interações. Esta rede de conversações é composta de distintos pontos de conversação interligados, passíveis de serem mapeados e analisados. Em síntese, de acordo com esse modelo, a integração dos serviços envolve atores, organizações e ações que são interdependentes. Essas interdependências são gerenciadas por mecanismos e processos de coordenação. Para coordenar suas ações, as pessoas se comunicam e, durante essa comunicação (conversação para coordenação de ações), decisões são tomadas e compromissos são gerados e negociados (promessas e declarações). A coordenação surge a partir dos compromissos originados das comunicações realizadas entre os participantes. A comunicação está no centro da análise, pois uma abordagem exclusivamente estruturalfuncionalista realiza uma exclusão da (inter)subjetividade envolvida nos processos de coordenação. Além disso, conforme a Teoria dos Atos de Fala, a comunicação é ação. Assim, as conversações e os atos de fala nelas implicados tornam-se objeto privilegiado de análise da coordenação de ações entre serviços de saúde. O interesse está centrado nas interações verbais, ou seja, nas formas concretas em que se manifestam as estratégias discursivas, construídas “interacionalmente” pelos participantes. Nesta perspectiva, os procedimentos metodológicos devem seguir uma abordagem pragmática, pois o interesse específico não é exatamente sobre a linguagem ou a definição dos significados fixos de palavras e enunciados, mas, sim, o uso dos enunciados implicados em uma interação comunicativa e nas condições de sua adequação. O modelo de compreensão comunicativa da inter-relação entre comunicação, coordenação e integração corresponde ao que Max Weber chamou de “tipos ideais”. Trata-se de uma abstração, uma ferramenta cognitiva usada para analisar a realidade. Ou seja, o modelo proposto não corresponde a uma descrição da realidade, mas serve para analisá-la. É uma ferramenta que, ao iluminar certos aspectos da realidade (no caso, a partir de uma compreensão comunicativa da coordenação), deixa outros aspectos desta mesma realidade de fora. Estas ferramentas são importantes nos esforços para tornar inteligível o pensamento e possibilitar uma narrativa coerente das evidências desordenadas da experiência social. Para analisar as interações verbais que se dão nesta intrincada rede de conversações, a técnica de Análise de Conversação (AC) apresenta-se com uma ferramenta potente para se apreenderem aspectos centrais destas interações. A AC é uma prática que pertence à tradição anglo-saxã de Análise do Discurso (AD) e traz a ideia de que o analista pode observar a interação verbal e fazer interpretações justamente sobre aquilo que a linguagem está fazendo (Iñiguez, 2004). A AC é um método de análise que estuda a ordem e a organização da ação social cotidiana por meio da análise rigorosa das conversações; analisa como os participantes organizam a interação de momento a momento. Está centrada na análise da linguagem na prática; lida com o discurso oral no contexto em que ocorre. Assim, não são desconsiderados os momentos reais da fala. Por meio da AC, busca-se captar o que dizem, contam ou fazem as pessoas e tudo o mais que é produzido pelos participantes em conversação.
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A rigor, a AC é uma tentativa de responder a questões do tipo: como é que as pessoas se entendem ao conversar? Como sabem que estão se entendendo? Como sabem que estão agindo coordenada e cooperativamente? Como usam seus conhecimentos lingüísticos e outros para criar condições adequadas à compreensão mútua? Como criam, desenvolvem e resolvem conflitos interacionais? (Marcuschi, 2005, p.7)
Na AC, são cinco as características básicas constitutivas, que devem ser objeto de observação: Interação entre, pelo menos, dois falantes. Ocorrência de, pelo menos, uma troca de falantes. Presença de uma sequência de ações coordenadas. Execução numa identidade temporal. Envolvimento numa “interação centrada”.
. . . . .
Considerações finais A integração em sistemas de serviços de saúde depende da qualidade dos processos de coordenação, e estes, por sua vez, dependem da eficácia dos processos comunicativos instaurados entre as pessoas no interior do sistema. Acredita-se que falhas na coordenação de serviços organizados de forma regionalizada podem ser devidas a deficiências dos processos comunicacionais e, portanto, novas práticas, baseadas no agir comunicativo, podem ser fundantes de novos patamares de efetividade da coordenação. Acredita-se também que a análise das redes de conversações possibilita a identificação e explicação de falhas existentes na rede de serviços de saúde. A observação dos processos “interacionais” pelos quais se dá a coordenação de ações em sistemas de serviços de saúde pode representar uma opção para o desenho de estudos nesta área. A análise, por meio da AC, dos atos de fala predominantes nas redes de conversação e dos modos pelos quais as pessoas envolvidas em processos de coordenação organizam as interações é um caminho frutífero. A escolha dos elementos e dos espaços de conversação a serem analisados dependerá do objeto e do escopo de cada pesquisa. Um trabalho empírico dentro desta perspectiva, realizado no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro (SAMU Metro II/RJ), por exemplo, focou sua observação exclusivamente nas dimensões “sistema clínico” e “governança”. A AC, voltada para a análise das interações intergestores e interserviços e das dificuldades de comunicação e suas implicações para os processos de coordenação, foi aplicada junto a dois arranjos constituídos dentro do SAMU Metro II/RJ, encarados como espaços centrais dos processos de coordenação: o colegiado de coordenadores e a central de regulação. Os resultados desta pesquisa trouxeram novos elementos para estudos sobre a coordenação em sistemas de serviços de saúde, que serão apresentados em outro artigo.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
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LIMA, M.C.; RIVERA, F.J.U. Actuación comunicativa, redes de conversación y coordinación en servicios de salud: una perspectiva teórico-metodológica. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.329-42, out./dez. 2009. En este artículo se discute un planteamiento teórico-metodológico para estudios en el área de la integración de servicios de salud, destacando el aspecto inter-subjetivo de los procesos de coordinación. Se parte del supuesto de que la coordinación de acciones y servicios de salud, proceso central de la integración, es esencialmente una acción comunicativa. Entre los aspectos metodológicos se destacan las potencialidades del Análisis de Conversaciones (AC) como herramienta para analizar las interacciones que se establecen en los procesos de coordinación de acciones y servicios de salud.
Palabras clave: Coordinación. Comunicación. Integración de servicios de salud. Análisis de conversación. Acción intersectorial. Recebido em 12/11/08. Aprovado em 14/07/09.
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Avaliação de quarta geração contribuições metodológicas para avaliação de serviços de saúde mental
Luciane Prado Kantorski1 Christine Wetzel2 Agnes Olschowsky3 Vanda Maria da Rosa Jardim4 Valquiria de Lurdes Machado Bielemann5 Jacó Fernando Schneider6
KANTORSKI, L.P. et al. Fourth-generation evaluation – methodological contributions for evaluating mental health services. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.343-55, out./dez. 2009. This paper reports on the theoreticalmethodological course of the evaluation of Psychosocial Care Centers in southern Brazil, developed starting from fourthgeneration evaluation. The data collection was carried out through observations and interviews among users, family members and the team. The first stage in the analysis took place alongside data collection, thereby allowing the results to be presented to the study subjects at the end of data collection, in negotiation workshops. In the second stage, workshops were held with the researchers, with the aim of constructing a collective data analysis process. Among the contributions towards fourthgeneration evaluation, we highlight its participative nature and formative dimension. This makes it possible for interest groups to have better-qualified capacity for data analysis and intervention, to improve the service. As a limitation, we highlight the great volume of data obtained in the process and the need to prioritize questions through negotiation with interest groups.
Keywords: Health evaluation. Healthcare services. Mental health. Qualitative research.
Este artigo relata o percurso teóricometodológico da avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da região sul do Brasil, desenvolvida a partir da Avaliação de Quarta Geração. A coleta de dados foi realizada por meio da observação e de entrevistas com usuários, familiares e equipe; e a primeira etapa de análise ocorreu concomitante à coleta, permitindo que os resultados fossem apresentados ao final da mesma aos sujeitos do estudo em oficinas de negociação. Na segunda etapa, foram realizadas oficinas com os pesquisadores, visando construir um processo coletivo de análise de dados. Como contribuições da Avaliação de Quarta Geração, destacamos o seu caráter participativo e a sua dimensão formativa, possibilitando aos grupos de interesse uma capacidade de análise e de intervenção mais qualificada para a melhoria do serviço. Como limite, destacamos o grande volume de dados obtidos no processo e a necessidade de priorização de questões mediante a negociação com os grupos de interesse.
Palavras-chave: Avaliação em saúde. Serviços de saúde. Saúde mental. Pesquisa qualitativa.
Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia, Universidade Federal de Pelotas. Rua XV de Novembro, 209, Pelotas, RS, Brasil. 96.020-250 kantorski@uol.com.br 2,3,6 Departamento de Assistência e Orientação Profissional, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 4,5 Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia, Universidade Federal de Pelotas. 1
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AVALIAÇÃO DE QUARTA GERAÇÃO ...
Introdução Este artigo tem como objetivo descrever o percurso metodológico de um processo de avaliação qualitativa de serviços, desde as concepções teóricas iniciais, passando pelo delineamento, trabalho de campo e processo de análise de dados da pesquisa de Avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da região sul do Brasil, conhecido como CAPSUL. O projeto CAPSUL foi apoiado financeiramente pelo MCT-CNPq e Ministério da Saúde por meio do Edital MCT-CNPq 07/2005. Os CAPS, serviços estratégicos, integram a rede de serviços substitutivos implementados a partir da transformação da assistência em saúde mental no Brasil. Essas transformações tiveram maior visibilidade a partir da década de 1980, tendo como ator principal o denominado Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, que, no cenário de um país em processo de democratização e de reformulação no sistema de saúde, questionava os saberes e práticas psiquiátricas e o espaço do hospital psiquiátrico como o lócus do tratamento. Esse movimento foi protagonizado por diferentes atores, e o tema, até então discutido por experts, sobretudo na sua dimensão teórico-técnica, passou a introduzir questões da esfera político-ideológica, entre as quais cidadania, direitos e ética. O Movimento Nacional de Luta Antimanicomial destinou-se à transformação do modelo hospitalocêntrico de atenção, substituindo-o por uma rede de atenção integral à saúde mental; conferiu-lhe maior resolubilidade, reduzindo a necessidade de internação, intervindo nas situações que produzem exclusão, promovendo a inclusão social dos portadores de sofrimento psíquico e qualificando a sua existência. Os novos dispositivos de atenção em saúde mental, segundo Rottelli et al. (1990), propõem tirar o foco da doença, e o objeto passa a ser a existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social. Esse enfoque não busca meramente modernizar as tecnologias de atenção psiquiátrica e difundilas, mas “redescrever, reconstruir as relações entre a sociedade e seus loucos. Não se trata de secundarizar a questão técnica, assistencial, mas de redefinir seu lugar numa estratégia mais ampla de ação” (Bezerra Júnior, 1994, p.181). No Brasil, segundo Desviat (1999), o Ministério da Saúde procura utilizar tanto o financiamento federal quanto sua capacidade normativa para modificar esse cenário da atenção a saúde mental. Surgem, então, os CAPS como proposta de espaços de cuidado mais adequados aos princípios e diretrizes explicitados. Esses serviços, formalmente definidos como unidades locais/regionalizadas, contam com uma população adscrita definida pelo nível local e oferecem atendimento por equipe multiprofissional, prioritariamente, a pacientes com transtornos mentais severos e persistentes (Brasil, 2004). De acordo com Carvalho e Amarante (1996), esses serviços encontram-se incorporados como política pública de saúde mental de referência para todo o país, e se inscrevem em um contexto que pretende desenvolver novas tecnologias em saúde mental que respeitem o usuário no seu direito de cidadania e que se diferenciem do modelo manicomial excludente dominante. Os direitos de cidadania correspondem, sobretudo, a uma mudança de posição dos usuários, que deixam de ser um objeto dessas tecnologias e passam a ter respeitados seus desejos, sua palavra, sua liberdade de ir e vir, de posicionar-se e de participar das decisões sobre sua própria vida. A expansão da rede de CAPS indica a capacidade do Ministério da Saúde, enquanto indutor de mudança das práticas, por meio da implantação de novos serviços e a institucionalização dos mecanismos de pagamento por produção, de recursos de manutenção e pela mobilização de forças locais do movimento antimanicomial. Mediante as transformações práticas produzidas a partir da expansão dos CAPS, entendemos que elas têm potencial para impactar as realidades locais, configurando-se como um dos equipamentos centrais na implantação do Sistema Local de Saúde Mental. Por outro lado, as diversidades contextuais não permitem que esse processo ocorra de forma linear e homogênea, sendo condicionada a sua implementação por fatores técnicos, políticos, econômicos, culturais, entre outros. Os CAPS surgem no interior de um modelo de atenção em saúde mental que busca uma abordagem integral dos indivíduos e de suas famílias. A mudança do enfoque discutida anteriormente exige a implantação de uma diversidade de serviços que respondam aos diferentes momentos e necessidades da
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pessoa. Nessa direção, um processo avaliativo deve considerar a política de gestão, tendo em vista que o desejável e o esperado de um equipamento variam conforme os valores por ela delineados.
Trajetória teórico-metodológica do estudo de avaliação qualitativa de CAPS Há certa relação histórica entre o desenvolvimento da avaliação enquanto campo de investigação científica e o desenvolvimento das políticas públicas de saúde, educação e bem-estar social que surgiram nos Estados Unidos logo após a Segunda Guerra Mundial. Naquele contexto, surgiu o conceito de avaliação dos programas públicos, em que pesquisadores dedicaram-se à tarefa de comprovar o sucesso desses programas, verificando a eficácia do uso de recursos do Estado (Contandriopoulos et al., 2000; Denis, Champagne, 2000; Patton, 1997). Observa-se uma grande diversidade de abordagens e modalidades classificatórias no campo da avaliação, tendo em vista seu interesse prático: de acordo com o momento, com a função, com a procedência dos avaliadores e com os aspectos do programa que são objeto da avaliação (Aguilar, Ander-Egg, 1994). Contandriopoulos et al. (2000), em relação a essa diversidade conceitual e metodológica, afirmam que não é possível estabelecer uma definição absoluta e universal da avaliação, mas definem, como objeto de um amplo consenso, o fato de que avaliar consiste em fazer um julgamento de valor a respeito de uma intervenção ou sobre qualquer um de seus componentes, com o objetivo de ajudar na tomada de decisões. Guba e Lincoln (1989) dividem a história da avaliação em quatro gerações, das quais três estão descritas a seguir: 1ª geração - da mensuração, na qual o papel do avaliador era o de um técnico que tinha de saber construir e usar os instrumentos, de modo que qualquer variável a ser investigada pudesse ser medida; 2ª geração - da descrição, em que o enfoque estava na descrição do processo, e não somente na medição dos resultados, como na geração anterior; 3ª geração - do julgamento, na qual o avaliador assumia o papel de juiz, mesmo retendo a função técnica e descritiva anterior. As três gerações representaram avanços, mas também apresentam limitações: a tendência à supremacia da visão gerencial; a incapacidade de acomodar o pluralismo de valores; a hegemonia do paradigma positivista; a desconsideração com o contexto; a grande dependência de medições quantitativas, eliminando caminhos alternativos para se pensar o objeto da avaliação; e a nãoresponsabilização moral e ética do avaliador, pois nenhuma das três primeiras gerações torna o avaliador responsável pelo que emerge da avaliação ou pelo uso dos seus resultados (Guba, Lincoln, 1989). A Avaliação de Quarta Geração, desenvolvida por Guba e Lincoln (1989, 1988), adaptada por Wetzel (2005), norteou o processo teórico-metodológico da pesquisa. A Avaliação de Quarta Geração é proposta como alternativa às avaliações anteriores, sendo implementada por meio dos pressupostos metodológicos do paradigma construtivista. Trata-se de uma avaliação responsiva, em que as reivindicações, preocupações e questões dos grupos de interesse servem como foco organizacional (a base para determinar que informação seja necessária). Nos modelos tradicionais, os parâmetros e limites são definidos a priori e a avaliação responsiva os determina por intermédio de um processo interativo e de negociação que envolve grupos de interesse (Guba, Lincoln, 1989). O termo grupos de interesse designa organizações, grupos ou indivíduos potencialmente vítimas ou beneficiários do processo avaliativo. Esses grupos são formados por pessoas com características comuns, que têm algum interesse no desempenho, no produto ou no impacto do objeto da avaliação - estão, de alguma maneira, envolvidos ou potencialmente afetados pelo serviço e pelas eventuais consequências do processo avaliativo (Guba, Lincoln, 1988). Existem diferentes grupos de interesse. Guba e Lincoln (1988) identificaram três: os agentes - as pessoas envolvidas em produzir e implementar o serviço; os beneficiários - todas as pessoas que se beneficiam, de alguma forma, com o uso do serviço; as vítimas - as pessoas que são afetadas negativamente pelo serviço. De acordo com a classificação apresentada por Guba e Lincoln (1989), entende-se que os componentes da equipe são os agentes. Quanto aos usuários e familiares, podem ser tanto beneficiários
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AVALIAÇÃO DE QUARTA GERAÇÃO ...
quanto vítimas, pois, mesmo estando inseridos no serviço com vistas ao seu benefício, na dinâmica do cotidiano podem sofrer efeitos negativos; tanto no que se refere ao atendimento propriamente dito – pela forma como o serviço se organiza – ou, ainda, por ocuparem uma posição de pouco poder. Neste estudo, o envolvimento dos grupos de interesse teve tanto o objetivo de buscar questões mais pertinentes dentro do contexto do serviço e que tivessem significado para eles, como de potencializar a possibilidade de que o processo aumentasse e aprimorasse a capacidade de ação desses grupos. Essa dimensão formativa destina-se a aumentar o poder de contratualidade dos grupos diretamente envolvidos no serviço, potencializando a ação de usuários, familiares e equipe na esfera política. Os instrumentos de coleta de dados foram entrevistas com os grupos de interesse (equipe, usuários e familiares) e observação, tendo por objetivo apreender a dinâmica do serviço, a forma com que os atores interagem e os sentidos que constroem em sua relação com a prática. A avaliação qualitativa do CAPSUL emergiu de uma pesquisa do tipo estudo de caso, cujas características, conforme Lüdke e André (1986), são: buscar a descoberta; enfatizar a interpretação do contexto; buscar retratar a realidade de forma completa e profunda; usar uma variedade de fontes de informação; revelar experiências de vida e permitir generalizações naturalísticas; procurar representar os diferentes e, às vezes, conflitantes pontos de vista presentes em uma situação social; utilizar uma linguagem e uma forma mais acessível do que os outros relatórios de pesquisa. A importância dos estudos de caso na pesquisa avaliativa evidencia sua potencialidade em descrever o contexto real em que ocorre a intervenção e a sua capacidade em explorar situações específicas, permitindo a identificação, na realidade estudada, de inter-relações entre pressupostos e práticas concretas (Yin, 2005). O projeto CAPSUL foi encaminhado ao Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina/ Universidade Federal de Pelotas, tendo parecer favorável Of. 074/05 de 11 de novembro de 2005. A preparação para o trabalho de campo iniciou em julho de 2006, ao se realizar uma oficina de capacitação para o estudo qualitativo, perfazendo quarenta horas, sendo dez horas de estudo e trinta horas presenciais, com seminários, discussões em grupo, exercícios práticos e debates em plenária. A capacitação - da qual participaram todos os pesquisadores que foram a campo, além de bolsistas de iniciação científica - focalizou a metodologia de Avaliação de Quarta Geração, os principais conceitos, os métodos de coleta e análise de dados. Durante essa oficina, definiram-se as estratégias de operacionalização do trabalho de campo e, na sequência, elaborou-se um manual que detalhava as principais orientações relacionadas a: contato prévio com o campo, cronograma de trabalho, apresentação da proposta de trabalho aos sujeitos, roteiro de observação e entrevista, registro em diário de campo, identificação dos informantes, condução das entrevistas, sistematização dos dados e organização para apresentação nas oficinas de negociação. Em uma escolha intencional, foram selecionados cinco CAPS, tendo como parâmetro os dados obtidos na primeira etapa da pesquisa CAPSUL, que consistiu no estudo quantitativo de abordagem epidemiológica, no qual se obtiveram dados referentes à estrutura, ao processo e ao resultado da atenção em trinta CAPS da região sul do Brasil. A seleção desses CAPS partiu dos seguintes critérios: tempo de funcionamento do serviço; disponibilidade dos grupos de interesse em aderir à proposta de avaliação; adequação à normatização definida na Portaria 336/2002; incluir um CAPS da capital de um dos estados; ser CAPS de referência no sul do Brasil, e um CAPS em processo de consolidação. Atendidos esses critérios, avaliaram-se os CAPS de: Alegrete (RS), Joinville (SC), São Lourenço do Sul (RS), Porto Alegre (RS), Foz do Iguaçu (PR). A coleta de dados realizou-se no segundo semestre de 2006, por uma equipe de três a cinco pesquisadores com experiência prévia em trabalho de campo em estudos qualitativos, que permaneceu quatro semanas nesses municípios. Guba e Lincoln (1989) propõem o processo hermenêutico dialético como um caminho para a realização de uma avaliação com enfoque construtivista e responsivo. É hermenêutico porque tem caráter interpretativo, e dialético porque implica comparação e contraste de diferentes pontos de vista, objetivando alto nível de síntese. Os autores afirmam que a proposta desse processo não é justificar uma determinada construção ou atacar as fraquezas de outras, mas construir uma forma de conexão que leve à exploração mútua de todas as partes. O objetivo é alcançar um consenso, quando possível; 346
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quando não, expor e esclarecer as diferentes visões. Caso o processo tenha êxito, é porque todas as partes (incluindo o pesquisador) reconstruíram as construções iniciais, permitindo o desenvolvimento e aprimoramento de todos os envolvidos no processo avaliativo. Nessa direção, os procedimentos práticos adotados para a coleta de dados envolveram os seguintes passos: 1 Contato com o campo: contato com as equipes dos CAPS, sendo apresentada e discutida a proposta da pesquisa, momento em que os grupos optaram pela participação. Essa etapa foi (e é) fundamental em uma avaliação participativa, pois os sujeitos negociaram a sua inclusão, a qual não foi demandada e/ou decidida por gestores, coordenadores ou outras pessoas que ocupem cargos de poder junto ao serviço. 2 Organização da avaliação: a principal tarefa foi ganhar o direito de entrada, o que envolveu, sobretudo, a construção de uma relação de confiança. Em uma avaliação em que se espera que os interessados falem sobre seus problemas, é necessário que o avaliador interaja com eles. A primeira semana do trabalho de campo foi dedicada à observação de todas as atividades desenvolvidas pelo serviço. Essa fase propiciou aos avaliadores a vivência e experiência do contexto do serviço, sem, ainda, estarem engajados nas atividades de avaliação, o que Guba e Lincoln (1989) denominam de etnografia prévia. 3 Identificação dos grupos de interesse: esta etapa também foi desenvolvida durante a primeira semana, na qual foram incluídos três grupos de interesse: equipe, usuários e familiares. Os sujeitos que compuseram cada grupo de interesse foram definidos com base nos seguintes critérios: - Equipe: trabalhadores com vínculo empregatício com o serviço (enfermeiro, assistente social, psicólogo, professor de educação física, técnico de enfermagem, pessoal da recepção, da portaria, pessoal da limpeza, dentre outros), procurando diversificar ao máximo a composição deste grupo, incluindo, no mínimo, um sujeito de cada profissão. - Usuários: tempo de frequência no serviço de mais de seis meses; boas condições de comunicação; bom vínculo com o serviço e com vínculo ruim ou sem adesão. - Familiares: boa e má inserção no serviço, incluir familiares de usuários com e sem adesão ao serviço e familiares considerados “difíceis” pela equipe, aqueles que “não colaboram”. 4 Desenvolvendo construções conjuntas: a segunda e a terceira semanas do trabalho de campo foram dedicadas à realização das entrevistas, com a aplicação do círculo hermenêutico-dialético (Figura 1) nos três grupos de interesse, mantendo-se uma observação mais pontual de aspectos do funcionamento do serviço, que ainda precisavam ser compreendidos. Iniciou-se com a seleção de um respondente inicial (R1), sendo realizada uma entrevista aberta, pedindo que descrevesse o atendimento do CAPS, incluindo observações sobre os aspectos positivos e negativos do serviço (as questões geradoras encontram-se detalhadas no Quadro 1). Os temas centrais, conceitos, ideias, valores, problemas e questões propostas por R1 foram analisados pelos pesquisadores, em uma formulação inicial da sua construção, designada C1. A seguir, um segundo respondente (R2) foi convidado a responder as questões da entrevista aberta. Após, introduziram-se os temas da análise de R1, e R2 foi convidado a comentá-los. A entrevista com R2 produziu informações não apenas sobre R2, mas, também, críticas às demandas e construções de R1. O pesquisador completou a segunda análise (C2), surgindo construções baseadas em duas fontes. O processo foi repetido por meio da adição de novos informantes, sendo entrevistados todos os componentes de determinado grupo de interesse. Deste modo, a análise dos dados ocorreu concomitante à coleta. 5 Ampliando as construções conjuntas: mediante a aplicação do círculo hermenêutico-dialético, emergiram construções conjuntas de determinado grupo de interesse, desenvolvidas a partir das construções originais dos participantes individuais do círculo. Outras informações podem ter impacto sobre essas construções, sendo proposta dessa etapa introduzir sistematicamente tal material. As informações adicionais partiram das seguintes fontes: observações de campo – levaram questões para a entrevista e, da mesma forma, informações originárias das entrevistas levaram a observações produtivas; literatura profissional – o conhecimento já produzido influenciou as construções existentes. Teve-se o cuidado de não tomá-lo como verdade a ser generalizada, mas, sim, como mais um conhecimento a ser considerado de forma crítica em relação ao contexto daquele serviço; a construção ética do avaliador – seria ingênuo pensar que o avaliador não tem conhecimento prévio e opiniões sobre o serviço e o seu 347
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T
contexto. Teve-se, contudo, o cuidado de introduzi-las após a etnografia prévia, quando já se havia alcançado uma boa inserção no campo, de forma que a fala dos pesquisadores se somava à dos demais, sofrendo as mesmas críticas.
T R1
TR TN
T C1
T
CN
T
T
INFORMAÇÕES INTRODUZIDAS NO CÍRCULO
T R2
OUTROS CÍRCULOS
T
MAIOR ABRANGÊNCIA T
C3
T
TT R4
T
T
C4
T
C5
T
ARTICULAÇÃO
T
TT
R6
MENOR
TT R3 T
C T6
R = RESPONDENTE C = CONSTRUÇÃO
SELEÇÃO
ESTRUTURA
T
R7 T
T
TEMPO
T
C7
T C2
DOCUMENTOS LITERATURA OBSERVAÇÕES A CONSTRUÇÃO ÉTICA DO PESQUISADOR
T
T R5
Figura 1. Círculo Hermenêutico Dialético.
Nos Quadros 1, 2 e 3 apresentam-se as questões norteadoras iniciais e as questões desdobradas na sequência de entrevistas em cada grupo de interesse por estudo de caso. 6 Preparação da negociação: essa etapa consistiu na organização das construções oriundas de cada grupo de interesse, objetivando a sua apresentação para que usuários, familiares e equipe pudessem ter acesso à totalidade das informações de seu grupo e tivessem a oportunidade de modificá-las ou afirmar a sua credibilidade. Trata-se de uma sessão de negociação, representando um grande arranjo dos participantes, e a sua preparação envolveu as seguintes atividades por parte dos avaliadores: - Definição de cada núcleo temático nos termos do grupo de interesse que o trouxe à tona, utilizando exemplos, para torná-lo o mais claro possível para todos os envolvidos no momento da negociação; - Organização do material na forma de um texto, com cópia para cada participante do grupo, de modo que todos pudessem ter acesso a essas informações; - Preparação do material para exposição ao grupo, mediante a utilização de recursos audiovisuais (projetor multimídia com apresentação em PowerPoint); - Negociação do dia, horário e local do encontro com todos os participantes. 7 Realização da negociação: para a negociação, realizada mediante a utilização da técnica grupal, convidaram-se todos os entrevistados de determinado círculo, apresentando-lhes o resultado final (provisório) da pré-análise dos dados. Essa etapa ocorreu no final da quarta semana do trabalho de campo. Os encontros ocorreram em salas com privacidade, para que todos se sentissem tranquilos ao expor suas opiniões. Em cada grupo, um dos pesquisadores se encarregou da apresentação do material organizado na etapa anterior e dois pesquisadores atuaram como observadores. Os observadores realizaram o registro do que foi discutido no grupo e, quando necessário, lançavam questões que pudessem esclarecer determinado ponto. 348
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Quadro 1. Construções do Círculo Hermenêutico Dialético da equipe.
Questões desdobradas
Questões iniciais
Caso 1
Caso 2
Caso 4
Caso 3
Caso 5
1. Fale sobre o atendimento no serviço. 2. Que fatores podem estar contribuindo para o melhor funcionamento do serviço? 3. Fale sobre a gestão da política municipal de saúde mental em relação à política da Secretaria Municipal de Saúde versus Coordenação de Saúde Mental e a relação CAPS versus Secretaria Municipal de Saúde. 4. Como o projeto terapêutico orienta o trabalho do CAPS? 1. Situações de risco de agressão por parte dos pacientes graves no dia-a-dia do trabalho no CAPS. 2. Trabalho com familiares dos usuários do CAPS. 3. Preconceito para com os usuários na comunidade. 4. Participação nas decisões sobre o funcionamento do CAPS.
1. Burocratização do serviço. 2. Como os profissionais lidam com o inesperado e com as situações de crise
1. Atendimento ambulatorial no CAPS. 2. Proposta de mudança no atendimento dos médicos e dos psicólogos do modo individual para grupal. 3. Tensionamento por atestados. 4. Organização do serviço por meio da estratégia do técnico do dia. 5. Cuidado com os usuários que não participam das oficinas. 6. A saúde do trabalhador do CAPS. 7. Serviço social como principal responsável pela atenção à família. 8. Proposta de coordenação descentralizada na secretaria de saúde por meio da criação dos conselhos gestores de saúde.
1. Planejamento estratégico. 2. Fornecimento de psicofármacos. 3. Investimento na rede e no serviço pelo gestor. 4. Necessidade de um trabalhador do sexo masculino na enfermagem. 5. Sistemática de acolhimento no serviço. 6. Espaço de supervisão e capacitação da equipe. 7. Atendimento à população de rua. 8. Atendimento de saúde mental nas unidades básicas. 9. Ato Médico como um complicador no serviço. 10. Laços do serviço com a cultura
1. Oficinas terapêuticas. 2. Atendimento individual aos usuários. 3. Capacitação da equipe. 4. Vínculo empregatício dos trabalhadores.
Quadro 2. Construções do Círculo Hermenêutico Dialético dos familiares.
Questões desdobradas
Questões iniciais
Caso 1
Caso 2
Caso 3
Caso 4
Caso 5
1. Fale do atendimento no serviço. 2. Que fatores podem estar contribuindo para melhor funcionamento do serviço? 3. Fale sobre a gestão da Política Municipal de Saúde Mental com relação a política da Secretaria Municipal de Saúde versus Coordenação de Saúde Mental e a relação CAPS versus Secretaria Municipal de Saúde. 1. Relacionamento dos usuários com os familiares dos outros usuários. 2. Apoio ao familiar. 3. Sobrecarga do familiar. 4. Ações que visem a minimizar o preconceito.
1. Sobrecarga do familiar. 2. Atividades realizadas pelo usuário fora do CAPS.
1. Grupo para cuidar do cuidador. 2. Tratamento oferecido pelo CAPS comparado aos hospitais psiquiátricos. 3. Preconceito em relação à loucura. 4. Pressão da equipe para que a família participe do serviço.
1. Agendamento dos atendimentos no serviço. 2. Presença de residentes e estagiários no CAPS. 3. Atendimento aos moradores de rua no CAPS
1. Falta de material para trabalho nas oficinas. 2. Necessidade de mais profissionais. 3. Possibilidade de que os profissionais consigam dar atenção para todos.
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Quadro 3. Construções do Círculo Hermenêutico Dialético dos usuários.
Questões desdobradas
Questões iniciais
Caso 1
Caso 2
Caso 3
Caso 4
Caso 5
1. Fale sobre o atendimento no serviço. 2. Que fatores podem estar contribuindo para melhor funcionamento do serviço? 3. Fale sobre a gestão da Política Municipal de Saúde Mental com relação a política da Secretaria Municipal de Saúde versus Coordenação de Saúde Mental e a relação CAPS versus Secretaria Municipal de Saúde. 1. Atividades físicas, higiene dos usuários, alimentação e medicação. 2. Manejo de crise. 3. Dedicação dos profissionais
1. Preconceito por ser usuário do Serviço. 2. Atendimento na UBS aos usuários do CAPS. 3. Suporte do serviço ao familiar.
1. Grupo de família como um espaço que favorece a comunicação entre familiar e equipe. 2. Liberdade de escolha no dia-a-dia no CAPS. 3. Interferência dos efeitos da medicação na vida do usuário. 4. Convivência do usuário com o CAPS mudando sua visão sobre o transtorno mental.
1. Reforma Psiquiátrica. 2. Higienização dos usuários. 3. CAPS com atendimento 24h. 4. Presença de residentes e estagiários no CAPS. 5. Atendimento na UBS aos usuários do CAPS.
1. Diferença do tratamento do CAPS para outro serviço de Saúde Mental. 2. Inserção do trabalho nas atividades do CAPS. 3. Manejo da agressividade entre os usuários no CAPS.
Nessa etapa, apresentaram-se os dados refinados na etapa anterior aos respectivos grupos, dando-lhes acesso à totalidade das informações e a oportunidade de modificá-las ou afirmar a sua credibilidade. Os eixos temáticos identificados e apresentados na negociação foram os seguintes: - Grupo de familiares: o cuidado em saúde mental aos usuários (abordando aspectos relacionados ao atendimento à saúde mental no CAPS, na unidade psiquiátrica do hospital geral e em outros serviços de saúde da rede); o cuidado em saúde mental aos familiares (questões sobre o adoecimento e sobrecarga familiar, autonomia e comunicação do CAPS com os familiares); necessidades de melhorias (medicação, usuários que não aderem ao serviço, maior atenção aos usuários pelos profissionais, risco de agressão aos profissionais, atendimento em horários em que o CAPS não funciona, desconstrução de preconceitos); um modelo de atenção ao usuário “em liberdade” (discussões sobre o tratamento fora do hospital e convívio com a diversidade). - Grupo de usuários: O cuidado em saúde mental aos usuários (pontos em que o CAPS tem se destacado como referência de cuidado em saúde mental, atendimento à saúde mental no CAPS, estrutura do CAPS e gestão). - Grupo da equipe: atenção psicossocial (discussão sobre redefinição de conceitos e modos de cuidar, movimento interno e externo, cuidado integral e processo de trabalho); gestão (questões relacionadas ao planejamento, avaliação e processo de trabalho). Ao final da negociação, encerrou-se o trabalho de campo e iniciou-se a análise final dos dados para se elaborar o relatório da pesquisa que envolveu as seguintes atividades: transcrição dos dados empíricos, organização do banco de dados, por estudo de caso, e organização e análise dos dados. Foram realizadas três oficinas com todos os pesquisadores do CAPSUL, tendo o objetivo de capacitar o grupo para construir um processo coletivo, construtivista e formativo de análise de dados empíricos. Esse processo foi desenvolvido do seguinte modo: Primeira oficina - 29/09/2007 – os pesquisadores foram divididos em grupos de trabalho por cores, conforme o grupo de interesse: usuários, familiares e equipe; e por um número correspondente à cidade estudada. A partir disso, os pesquisadores de cada grupo organizaram-se em duplas, recebendo duas entrevistas, tendo como tarefa identificar e fazer uma síntese das unidades de informação, organizando-as em eixos temáticos. Em seguida, as duplas com cores iguais se reuniam, fazendo uma nova síntese das informações de cada dupla, delimitando o conjunto de informações relacionadas a determinado grupo de interesse. 350
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No final da oficina, uma síntese parcial por grupo de interesse foi apresentada em plenária, conforme exemplifica o Quadro 4.
Quadro 4. Grupo de interesse - usuários. Estudos de caso
Eixo temático
Unidades de informação
Fragmentos das entrevistas
Caso 1 Caso 2 Caso 3 Caso 4 Caso 5
Estabeleceu-se, então, a tarefa para a próxima oficina. Cada dupla de pesquisadores trabalharia com a totalidade de entrevistas do seu grupo de interesse e caso (ex: todas as entrevistas de usuários do caso 1) e traria quadros com unidades de informação, eixos temáticos e respectivas falas sistematizadas. Segunda oficina - 20/10/2007 - Em plenária, os integrantes das oficinas se reuniram e cada dupla apresentou o quadro com as unidades de informação extraídas a partir das entrevistas (de usuários, familiares e equipe) de cada caso. Essa apresentação possibilitou a delimitação de unidades temáticas mais abrangentes e a elaboração de uma síntese, exemplificada no Quadro 5.
Quadro 5. Unidades temáticas e de informação (exemplo: Usuários do caso 1). Unidades temáticas Instrumentos de gestão do cuidado e organização interna do serviço
Unidades de informação Atendimento no serviço - O atendimento é bom; - Os usuários recebem bastante atenção por parte dos profissionais do serviço.
Falas O atendimento lá acho bom, [..] ele se sente bem, estão bem direitinho, arrumadinho, alimentado, banhado [...] São bem atendidos, eles tratam bem. [...] Até que eles têm bastante atenção lá dentro.
Foram compostos coletivamente os quadros dos grupos de interesse, por cidade, e definidas as unidades de informação e núcleos temáticos centrais da análise da avaliação qualitativa, gerando um conjunto inicial de marcadores internos e externos. Como tarefa para a próxima oficina, os grupos de pesquisadores desenvolveram estudos e grupos de discussão sobre os marcadores de avaliação. Buscouse fundamentar teoricamente cada marcador para, na terceira oficina, se estabelecerem as dimensões a serem avaliadas em cada um deles. Terceira oficina – 30/11 e 01/12/2007: no primeiro dia foi apresentada e discutida a conceituação de cada marcador, sendo estabelecido que as análises seguiriam a orientação teórica já utilizada na etapa da avaliação quantitativa da pesquisa CAPSUL, enfocando a estrutura, o processo e os resultados, conforme Donabedian (1984, 1988). A partir desta orientação teórica mais ampla foram desdobrados os marcadores do Quadro 6. Definiu-se, como marcadores, determinada categoria abstraída dos dados empíricos e que tem a capacidade explicativa de indicar determinado parâmetro de avaliação. Por exemplo: no marcador ambiência, pretende-se que, na realidade de determinado CAPS estudado, se identifiquem quais aspectos (privacidade, cor, som) da ambiência no serviço podem ser evidenciados, qualificando, assim, o cuidado em saúde mental. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.343-55, out./dez. 2009
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Quadro 6. Marcadores internos e externos. Marcadores externos
Marcadores internos Estrutura: - Ambiência;
- Políticas públicas, gestão e articulação da rede de saúde;
Processo de Trabalho: - Atividades como suporte terapêutico; - Equipe, características e organização do trabalho; - Plasticidade do serviço; - Inserção da família.
- Relação da sociedade com o fenômeno da loucura.
Resultado - Resultado da atenção psicossocial.
No segundo dia da terceira oficina, os pesquisadores foram distribuídos em cinco grupos, por cidade/ estudo de caso, nos quais se aglutinaram as duplas que trabalharam os dados dos usuários, familiares e equipe, em cada caso. Cada grupo recebeu: os dados gerais do município (dados demográficos, de saúde da população, mapa, entre outros); o quadro resumo do município, contendo as unidades de informação dos grupos de interesse (usuários, familiares e equipe); o quadro de entrevistas (dos usuários, familiares e equipe) elaborado na primeira oficina e organizado conforme as unidades de informação; os marcadores da avaliação nos diferentes grupos de interesse e as categorias de análise; a íntegra das entrevistas transcritas; e o diário de campo com o registro dos observadores. A partir dessa oficina, cada grupo de trabalho retomou todo o material pertinente ao caso estudado (entrevistas, diários de campo, documentos, sínteses das oficinas, banco de referências bibliográficas) e procedeu à elaboração escrita do relatório do estudo de caso. O processo desenvolvido ao longo das oficinas, no intervalo entre elas e seu segmento na elaboração do relatório, seguiu rigorosamente a metodologia de Avaliação de Quarta Geração, configurando-se um processo formativo, responsivo e construtivista. Apresenta-se uma síntese do desenho metodológico da pesquisa CAPSUL no Quadro 7. Quadro 7. Síntese do desenho metodológico do estudo de avaliação qualitativa. Objetivos Objetivo geral Avaliar qualitativamente Centros de Atenção Psicossocial localizados na região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná). Objetivos específicos - Realizar um processo avaliativo participativo em Centros de Atenção Psicossocial que possibilite a compreensão do objeto avaliado e a construção dos sujeitos envolvidos; - Apreender a dinâmica de funcionamento de Centros de Atenção Psicossocial, as relações, contradições e subjetividades dos envolvidos; - Propiciar subsídios para mudanças e transformações, a partir dos dados gerados pela participação dos grupos de interesse envolvidos na avaliação; - Capacitar os grupos de interesse envolvidos na avaliação, aumentando a sua capacidade de análise, para se constituírem sujeitos do processo de mudança.
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Marcadores da avaliação
Estudo de caso
Instrumentos
Marcadores internos Estrutura: Ambiência; Processo de trabalho: Atividades como suporte terapêutico; Equipe, características e organização do trabalho; Plasticidade do serviço; Inserção da família; Resultado: Resultado da atenção psicossocial; Marcadores externos Políticas públicas, gestão e articulação da rede de saúde; Relação da sociedade com o fenômeno da loucura.
Caso 1
Observação: Diário de campo dos três pesquisadores, totalizando 390 horas. entrevistas: 11 usuários; 14 familiares; 26 trabalhadores
Caso 2
Observação: Diário de campo dos três pesquisadores, totalizando 282 horas. entrevistas: 10 usuários; 10 familiares; 18 trabalhadores
Caso 3
Observação: Diário de campo dos cinco pesquisadores, totalizando 650 horas. entrevistas: 12 usuários; 12 familiares; 21 trabalhadores
Caso 4
Observação: Diário de campo dos quatro pesquisadores, totalizando 368 horas. entrevistas: 13 usuários; 13 familiares; 13 trabalhadores
Caso 5
Observação: Diário de campo dos três pesquisadores, totalizando 297 horas. entrevistas: 11 usuários; 11 familiares; 10 trabalhadores
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KANTORSKI, L.P. et al.
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Considerações finais Neste artigo, apresentou-se o detalhamento da construção metodológica de uma pesquisa de avaliação qualitativa mediante a utilização do referencial teórico-metodológico da Avaliação de Quarta Geração, com a realização de cinco estudos de caso, abrangendo os CAPS da região sul do Brasil. A avaliação de quarta geração fundamenta-se no referencial construtivista, com enfoque responsivo e formativo, trazendo, como contribuição, um delineamento teórico-metodológico sistemático, estruturado em passos que se desenham com base na lógica dialética e da interpretação hermenêutica. Justamente por isto, esse delineamento não é rígido, possuindo flexibilidade suficiente para incorporar novas mudanças, novos sujeitos e novos cenários. Consiste numa avaliação focada mais no processo do que propriamente nos resultados, diferenciando-se de outras abordagens de avaliação participativa. O nível de participação na avaliação de quarta geração merece destaque em relação a outras abordagens, já que extrapola a consulta a informantes e a coleta e análise das informações obtidas, propondo que o avaliador “ganhe o direito de entrada” no campo empírico por meio de uma etnografia prévia e, a partir de então, estabeleça compromissos éticos e pactuações que garantam a participação dos sujeitos nos diferentes momentos da avaliação (no estabelecimento das questões/eixos/marcadores/indicadores e na negociação em relação ao que, como e para que mudar a realidade). Propicia ainda que os sujeitos partilhem decisões, exerçam controle sobre o projeto de avaliação, se apropriem dos diferentes passos da avaliação e que tenham honradas suas participações por intermédio da interpretação hermenêutica e da compreensão dialética que busca trabalhar os conflitos e gerar os consensos possíveis. O caráter formativo desse processo, a busca pela qualificação das informações e o empoderamento dos grupos de interesse destacam-se como contribuições relevantes na avaliação de quarta geração, consistindo em eixos contemplados na sua sistematização. Esses, apesar de também serem importantes em outras abordagens de avaliação participativa, em algumas situações são pouco garantidos na aplicação prática dessas avaliações. Considera-se que a Avaliação de Quarta Geração propiciou um processo avaliativo participativo, dando voz aos usuários dos serviços, seus familiares e trabalhadores dos CAPS. O processo de transformação atual preconiza o fortalecimento do poder de contratualidade do indivíduo em sofrimento psíquico no cotidiano das práticas dos serviços substitutivos ao manicômio, e que carece de metodologias de pesquisa coerentes com essa demanda, como a detalhada no presente artigo. O trabalho de campo possibilitou constatar uma forte adesão ao método de Avaliação de Quarta Geração por parte dos grupos de interesse, o qual enfatizou o empoderamento dos familiares, usuários e equipe enquanto protagonistas do processo avaliativo. Já a etapa de negociação dos dados possibilitou momentos de reflexão e debates sobre as questões mais críticas em relação ao modo de atenção psicossocial. Também estabeleceu um espaço de discussão frente às mudanças necessárias para se promoverem avanços nos serviços, reforçando as contribuições da proposta metodológica da Avaliação de Quarta Geração. Enquanto limitações da metodologia, uma delas refere-se ao fato de que o processo hermenêuticodialético, que é aberto e não estabelece o foco da avaliação a priori, permitiu que emergisse um grande volume de dados, não sendo possível que todos fossem contemplados devido aos limites de tempo e recursos, inerentes a qualquer pesquisa. Outra está relacionada ao fato de que a qualificação do processo avaliativo de quarta geração exige que seja desenvolvida a dimensão formativa, de modo que tanto avaliadores como grupos de interesse possam aprimorar sua capacidade de análise, possibilitando o aprofundamento na discussão e delimitação dos temas oriundos da avaliação. Nesse sentido, essa dimensão teve seus limites atrelados não apenas aos recursos e ao tempo da pesquisa, mas também à pouca tradição que equipe, usuários e familiares têm em discutirem seus problemas e dificuldades de forma coletiva no cotidiano dos serviços. Onde existiam dispositivos de participação - como reuniões, assembléias, conselho gestor local, associações de usuários, entre outros percebemos maior facilidade dos grupos no levantamento de problemas da sua realidade, discutindo e problematizando os mesmos à luz do paradigma psicossocial.
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AVALIAÇÃO DE QUARTA GERAÇÃO ...
A Avaliação de Quarta Geração constitui-se como uma importante possibilidade metodológica no campo da avaliação de serviços e programas de saúde, na medida em que possibilita que sejam acessadas dimensões pouco passíveis de serem apreendidas por medições e indicadores e que, no entanto, têm grande influência no que se refere ao seu bom ou mau funcionamento. Além disso, uma metodologia participativa permite um controle do processo e dos resultados da avaliação compartilhados pelos avaliadores e pelos grupos de interesse. Isso acaba por aumentar a possibilidade e o compromisso de utilização desses resultados com vistas à transformação, o que, no campo da saúde mental, exige que um processo avaliativo de quarta geração esteja atrelado, ética e politicamente, à consolidação da transformação do modelo de atenção.
Colaboradores Luciane Prado Kantorski, Christine Wetzel, Agnes Olschowsky e Vanda Maria da Rosa Jardim trabalharam na concepção teórica, coleta e análise dos dados, elaboração e redação final do texto. Valquiria de Lurdes Machado Bielemann e Jacó Fernando Schneider trabalharam na coleta e análise dos dados, elaboração e redação final do manuscrito. Referências AGUILAR, M.J.; ANDER-EGG, E. Avaliação de serviços e programas sociais. Petrópolis: Vozes, 1994. BEZERRA JÚNIOR, B. De médico, de louco e de todo mundo um pouco: o campo psiquiátrico no Brasil dos anos 80. In: GUIMARÃES, R.; TAVARES, R.A.W. (Orgs.). Saúde e sociedade no Brasil: anos 80. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.171-91. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Legislação em saúde mental 1990 – 2004. 5.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CARVALHO, A.L.L.; AMARANTE, P. Avaliação de qualidade dos novos serviços de saúde mental: em busca de novos parâmetros. Saúde em Debate, n.52, p.74-82, 1996. CONTANDRIOPOULOS, A-P. et al. A avaliação na área da saúde: conceitos e métodos. In: HARTZ, Z.M.A. (Org.). Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. p.29-48. DENIS, J-L.; CHAMPAGNE, F. Análise da implantação. In: HARTZ, Z.M.A. (Org.). Avaliação em Saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. p.49-88. DESVIAT, M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. DONABEDIAN, A. La calidad de la atención medica: definición y metodos de evaluación. México: Ediciones cientificas La Prensa Medica Mexicana, 1984. ______. The quality of care: how can it be assessed? JAMA, v.260, n.12, p.1743-8, 1988. GUBA, E.; LINCOLN, Y. Effective evalution. San Francisco: Jossey Bass Publishers, 1988. ______. Fourth generation evaluation. Newbury Park: Sage Publications, 1989.
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KANTORSKI, L.P. et al.
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KANTORSKI, L.P. et al. Evaluación de cuarta generación - contribuciones metodológicas para evaluación de servicios de salud mental. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.343-55, out./dez. 2009. Este artículo relata el trayecto teórico-metodológico de la evaluación de los Centros de Atención Psico-social de la región sur de Brasil, desarrollada a partir de la Evaluación de Cuarta Generación. La recolección de datos se ha realizado a través de la observación y de entrevistas con usuarios, familiares y equipo; y la primera etapa de análisis ocurrió concomitante a la recolección, permitiendo que los resultados se presentaran luego a los sujetos de estudio en talleres de negociación. En una segunda etapa se realizaron talleres con los investigadores con vistas a construir un proceso colectivo de análisis de datos. Como contribuciones de la Evaluación de Cuarta Generación destacamos su carácter participativo y su dimensión formativa, posibilitando a los grupos de interés una capacidad de análisis y de intervención más calificada para la mejora del servicio. Como límite destacamos el gran volumen de datos obtenidos en el proceso y la necesidad de prioridad de cuestiones a través de la negociación con los grupos de interés.
Palabras clave: Evaluaoión en salud. Servicios de salud. Salud mental. Investigación cualitativa. Recebido em 29/09/08. Aprovado em 08/03/09.
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A integralidade nas ações da equipe de saúde de uma unidade de internação pediátrica Débora Luíza dos Santos1 José Luís Guedes dos Santos2 Adelina Giacomelli Prochnow3 Maria de Lourdes Rodrigues Pedroso4 Maria Alice Dias da Silva Lima5
SANTOS, D.L. et al. Comprehensiveness of the actions of the healthcare team in a pediatrics ward. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.359-68, out./dez. 2009. The notion of comprehensiveness encompasses three sets of meanings: the practices of healthcare professionals, the attributes of the service organization and the government responses to health-related problems. This study had the aim of analyzing and discussing the meanings relating to comprehensiveness of the actions of the healthcare team in a pediatrics ward of a university hospital in the interior of the state of Rio Grande do Sul. This was a qualitative study in which data were collected through interviews and analyzed through thematic analysis. The comprehensiveness of professionals’ practices is focused on the dimension relating to professional action, in which they seek to associate assistance and prevention, considering the hospitalized children within their social and economic contexts. The importance of team work is highlighted, but difficulties in making this effective were found. These difficulties impair the interlinking of actions towards comprehensive healthcare.
A noção de integralidade engloba três conjuntos de sentidos: a prática dos profissionais de saúde, os atributos da organização do serviço e as respostas governamentais aos problemas de saúde. Este estudo teve como objetivo analisar e discutir os sentidos relacionados à integralidade nas ações da equipe de saúde de uma unidade de internação pediátrica de um hospital universitário no interior do estado do Rio Grande do Sul. Trata-se de uma pesquisa qualitativa cujos dados foram coletados a partir de entrevistas e analisados mediante análise temática. A integralidade na prática dos profissionais está centrada na dimensão relativa à atuação profissional, em que eles buscam associar assistência e prevenção, vislumbrando a criança hospitalizada no seu contexto econômico e social. Apontam a importância do trabalho em equipe, mas encontram dificuldades em efetivá-lo, o que prejudica a articulação das ações em prol de uma atenção integral.
Keywords: Comprehensive healthcare. Patient caret. Professional practice. Hospital services. Pediatrics.
Palavras-chave: Assistência integral à saúde. Equipe de assistência ao paciente. Prática profissional. Serviços hospitalares. Pediatria.
Hospital Universitário de Santa Maria, Universidade Federal de Santa Maria (HUSM/UFSM). Avenida Roraima, s/n. Camobi, Santa Maria, RS, Brasil. 97.118-000 deboralui@yahoo.com.br 2,4 Mestrandos, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3 Departamento de Enfermagem, UFSM. 5 Escola de Enfermagem, UFRGS.
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Introdução A Constituição Federal, promulgada em 1988, define saúde como um dever do Estado e um direito da população, e estabelece que as ações e os serviços de saúde têm importância pública e devem ser promovidos por um Sistema Único de Saúde (SUS), organizado em torno dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. No entanto, a promulgação desses direitos constitucionais e as políticas públicas de saúde não impactaram mudanças efetivas no modo de produzir saúde, de tal forma que um dos principais desafios no cotidiano atual dos serviços de saúde é a produção de práticas de saúde segundo os preceitos do SUS (Pinho, Siqueira, Pinho, 2006). Muitos esforços têm sido empregados na busca da reestruturação dos serviços e das ações em saúde por meio de políticas públicas, de forma a fazer com que os profissionais atuem sob uma lógica de atenção voltada para a integralidade da assistência. No entanto, a modificação da estrutura e das formas de organização dos serviços não assegura mudanças nos modelos assistenciais e suas micropolíticas instituídas, pois os comportamentos e valores dos profissionais de saúde influenciam o modo como se processam essas modificações (Franco, Merhy, 2004). Logo, estratégias que busquem viabilizar arranjos diferenciados para os serviços de saúde são necessárias para a construção de uma lógica diferenciada de atenção, assim como a discussão do trabalho em saúde voltado para a integralidade da assistência e responsabilização dos profissionais com a produção de saúde que valorize e oportunize maior autonomia ao usuário. Nessa ótica, cabe ressaltar que as características de determinado processo de trabalho são, muitas vezes, determinadas pelo autogoverno do trabalhador de saúde sobre o modo de fazer a assistência. Durante a realização das suas atividades, ele pode agir como um dispositivo gerador de mudanças e modificação dos processos ante a organização dos serviços de saúde, tendo em vista que a realização do trabalho vivo em ato pressupõe a possibilidade da criatividade, a qual pode ser utilizada para inventar novos processos de trabalho (Marques, Lima, 2008; Merhy, 1997). Portanto, a organização do processo de trabalho em saúde tanto contribui para a manutenção do modelo hegemônico, como constitui um campo profícuo para a construção de dispositivos de mudança com relação à lógica instituída na produção de cuidados de saúde. Tal fato baliza a importância da compreensão dos significados relacionados à integralidade no trabalho em saúde para os profissionais que o executam, no intuito de suscitar a discussão acerca dos mecanismos necessários à construção e efetivação das práticas de integralidade no interior dos serviços de saúde em seus diferentes níveis de complexidade. A noção de integralidade nos serviços de saúde engloba três conjuntos de sentidos distintos, mas complementares: a prática dos profissionais de saúde, os atributos da organização do serviço e as respostas governamentais aos problemas de saúde. O primeiro sentido está relacionado à postura do profissional, a qual deve buscar apreender o contexto de vida dos pacientes, considerando-os muito mais que lesões ou disfunções a serem tratadas, para isso é necessário associar assistência com prevenção. No que tange à organização dos serviços, aponta-se que o modo de organizar deve ser aberto a assimilar as necessidades dos usuários e pautado no diálogo entre os diferentes sujeitos que compõem o processo de trabalho em saúde. Quanto às respostas governamentais, elas devem considerar as especificidades dos grupos atingidos pelos problemas de saúde, a partir da contextualização dos sujeitos sobre os quais as políticas incidem (Mattos, 2004, 2001). Partindo da dimensão das práticas de integralidade enquanto norteadoras das ações dos trabalhadores em saúde, compreende-se o acolhimento, a desfragmentação do atendimento prestado e a integralidade como um processo de construção social, permeado de uma maior horizontalidade nas relações entre os seus participantes, incorporando continuamente novos conhecimentos a partir das práticas dos sujeitos envolvidos na produção do cuidado em saúde (Pinheiro, Mattos, 2006). No entanto, na saúde em geral e, mais especificamente, na saúde da criança, são muitos os obstáculos a serem enfrentados para que sejam implementadas ações com vistas a um novo paradigma que não aquele que prioriza somente a doença, introduzindo conceitos e ações facilitadores de promoção da saúde, como a integralidade.
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Na atenção à saúde da criança, há estreita relação entre a educação e a promoção da saúde, visto que as ações implementadas em todos os níveis de atenção, além de tratar e/ou prevenir agravos, destinam-se, também, a promover o crescimento e desenvolvimento infantil, numa perspectiva de qualidade de vida. As ações de promoção da saúde devem ser acionadas por meio de estratégias que envolvam a coletividade em geral e a família, a qual é responsável pela criança e possuidora de um saber que não deve ser descartado, mas aperfeiçoado e/ou adaptado ao saber científico dos profissionais (Queiroz, Jorge, 2006). Além disso, existem algumas particularidades do atendimento infantil que não contemplam o princípio da integralidade, dentre as quais se destaca o papel reservado às crianças nos serviços de saúde. Mesmo quando elas têm condições de opinar sobre seu estado de saúde e participar de decisões sobre seu tratamento, suas manifestações são, constantemente, mediadas pelos adultos responsáveis ou checadas com eles. Médicos, por exemplo, solicitam às crianças que descrevam os seus sintomas, mas tendem a excluí-las das informações referentes ao diagnóstico e à terapêutica, restringindo sua interação ao afetivo/lúdico no intuito de agradá-las. Entretanto, uma maior participação da criança é fundamental para a satisfação e adesão ao tratamento, possibilitando um melhor prognóstico (Perosa, Ranzani, 2008; Perosa, Gabarra, 2004). Ressalta-se que a integralidade é um dos princípios que norteia não apenas as práticas realizadas nas unidades de saúde, mas toda a produção do cuidado nas instâncias do SUS. Assim, justifica-se a relevância de se investigar a integralidade com base na visão de profissionais de saúde que atuam no contexto hospitalar, tendo em vista que a maioria dos estudos relacionados a essa temática têm sido realizados no âmbito da atenção primária. Desse modo, este estudo teve como objetivo analisar e discutir os sentidos relacionados à integralidade nas ações dos profissionais da equipe de saúde de uma unidade de internação pediátrica de um hospital universitário.
Metodologia Trata-se de um estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa, que buscou entender a relação entre o trabalho de profissionais de saúde no contexto hospitalar e os sentidos da integralidade presentes em suas ações. O método qualitativo permite estudar os significados que as pessoas atribuem a um dado fenômeno, em torno dos quais elas organizam de certa forma suas vidas e atitudes em relação à saúde (Turato, 2003). O cenário de estudo foi uma unidade de internação pediátrica de um hospital universitário localizado no interior do estado do Rio Grande do Sul (RS), o qual integra a rede pública de saúde enquanto hospital de referência em nível terciário para toda a região centro-oeste do estado. Esse cenário foi escolhido para o desenvolvimento da pesquisa tendo em vista a importância da integralidade nas ações dos profissionais de saúde na atenção às especificidades que envolvem o cuidado à criança hospitalizada, como: o atendimento de suas necessidades sociais, intelectuais, emocionais e recreacionais durante a internação, bem como a atenção dispensada aos pais e familiares durante esse processo. Os sujeitos da pesquisa foram selecionados de forma intencional, tendo em vista as atividades laborais que desenvolviam no cenário do estudo. Assim, participaram da investigação seis trabalhadores de saúde de nível superior, sendo: dois enfermeiros, dois médicos, psicólogo e nutricionista. A amostra foi constituída de forma a compor um universo multiprofissional, objetivando a identificação dos significados da integralidade nas ações em saúde sob diferentes olhares dentro de um mesmo universo de práticas, sem predominância de uma categoria profissional em relação à outra. Salienta-se que os profissionais fisioterapeutas não participaram do estudo em virtude da incompatibilidade de horários entre esses trabalhadores e os pesquisadores no período em que a pesquisa foi realizada. Para a coleta de dados, optou-se pela técnica da entrevista semiestruturada, na qual os participantes do estudo foram convidados a responder sete questões, as quais exploravam as suas percepções quanto
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à relação saúde e doença, o processo de trabalho e os sentidos da integralidade nas práticas que eles desenvolviam no seu cotidiano laboral em pediatria. Salienta-se que, no intuito de garantir maior autonomia e anonimato aos entrevistados, as entrevistas foram realizadas por dois acadêmicos de enfermagem, os quais não possuíam vínculo com a unidade e os profissionais. As entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente, sendo identificadas por meio de códigos compostos pela sigla “Prof.”, referente a profissional, associada a letras do alfabeto atribuídas segundo a ordem na qual os depoimentos foram coletados (Prof. A, Prof. B,...). Para analisar os dados, fez-se uso da análise temática, que se constitui de três etapas: ordenação, classificação dos dados e análise final (Minayo, 2007). Os dados foram organizados e discutidos de acordo com os três conjuntos de sentidos da integralidade propostos por Mattos (2004, 2001). Com relação às questões éticas, ressalta-se que o presente estudo foi aprovado pela Direção de Ensino, Pesquisa e Extensão do hospital em que a pesquisa foi realizada e pelo Comitê de Ética da universidade à qual essa instituição está vinculada academicamente (Parecer nº 0163.0.243.000.06). Além disso, foi solicitada a autorização dos participantes do estudo para sua inclusão na pesquisa, mediante apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996).
Apresentação e discussão dos resultados Para analisar os significados da integralidade, enquanto princípio das ações em saúde, primeiro partiu-se da identificação do conceito de saúde como produto das ações desenvolvidas pelos profissionais de saúde entrevistados, e do significado do termo integralidade no universo das práticas desenvolvidas no cenário investigado. Considerando-se a noção de integralidade pautada em três conjuntos de sentidos distintos, com base na análise e interpretação das ações relatadas pelos profissionais evidenciou-se que o conceito de integralidade é mais facilmente associado à dimensão relativa à atuação profissional da equipe de saúde. Os entrevistados definiram saúde de forma ampla, como sendo não apenas a ausência de doença, mas uma relação equilibrada entre diversos fatores - como alimentação, atividade física, condições adequadas de saneamento básico, assim como aspectos mentais e sociais - os quais, em conjunto, são capazes de proporcionar qualidade de vida, bem-estar e, consequentemente, saúde ao indivíduo: “É o bem-estar físico, social, cultural da pessoa, o mais abrangente possível.” (Prof. A) “Bem-estar conjunto, não é apenas ausência de patologia, envolve também o ambiente em que a pessoa vive.” (Prof. B)
Esses conceitos apresentados vão ao encontro da definição de saúde expressa pela Organização Mundial de Saúde e sustentam a problematização das ações segundo uma abordagem pautada na integralidade. Com relação às finalidades do trabalho, os profissionais relataram o desenvolvimento de ações que vão além das atividades de recuperação no âmbito hospitalar, apontando para a amplitude das necessidades de saúde dos usuários, o que demonstra que a noção de integralidade está presente nas práticas que eles desenvolvem: “Procurar o bem-estar, qualidade de vida, procurar não contribuir apenas no hospital.” (Prof. C) “[...] proporcionar conforto ao paciente que está internado na unidade, tentar que ele saia daqui totalmente recuperado e orientar os pais quanto aos cuidados após a alta também.” (Prof. D)
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“Procurar promover saúde, buscar os aspectos que envolvem a saúde, o bem estar não só físico, mas em todos os aspectos.” (Prof. F)
Os profissionais tanto referiram, na base conceitual de suas práticas como nas suas finalidades, a integralidade enquanto fundamento norteador, a partir da articulação de ações de assistência e prevenção. De forma semelhante, enfermeiras de unidades de saúde de Goiânia entrevistadas em relação às suas percepções quanto à integralidade apontaram que a prática integral consiste no atendimento globalizado e holístico dos pacientes (Pinho, Siqueira, Pinho, 2006). Quanto às práticas nas quais conceitos e objetivos de integralidade são efetivados, encontrou-se a procura por ações que extrapolem o contexto hospitalar e busquem situar o usuário no seu contexto social mais amplo: “[...] Quando avaliamos o paciente na pediatria, queremos saber onde é que ele mora, como é que é a casa, quais pessoas que moram na casa, a vida social desse paciente, alimentação, enfim, tudo. Na pediatria, nós olhamos todo o paciente, e na medida do possível tentamos melhorar essas deficiências, até encaminhar ele para o serviço que ele precisa.” (Prof. E) “Inclui esta inter-relação, esta troca permanente, questionamentos com outros profissionais sobre crianças negligenciadas, problemas sociais, não basta apenas tratar a doença, sem investigar o que a determinou.” (Prof. F)
A contextualização social da criança, entendida como a investigação do ambiente familiar e estrutural em que vive, foi apontada como uma estratégia fundamental à continuidade do tratamento prescrito e orientado no contexto hospitalar. De acordo com os entrevistados, a partir dela, podem-se captar as necessidades dos pacientes que nem sempre estão explícitas, interferindo sobre elas ou realizando os encaminhamentos necessários. Nesse sentido, salienta-se a necessidade do estabelecimento de projetos terapêuticos baseados no diálogo entre trabalhadores de saúde e usuários, no qual os profissionais devem se esforçar no sentido de buscar os elementos centrais de cada encontro, tanto com base no seu conhecimento como nos saberes trazidos pelo usuário, e pelo seu contexto específico (Mattos, 2004). Seguindo essa linha reflexiva, com relação à comunicação entre os profissionais de saúde e os usuários do serviço de internação infantil em que o estudo foi realizado, salienta-se que, na falas dos depoentes, predominam menções à busca de informações com os familiares, de maneira que o processo interativo com a criança hospitalizada parece estar em segundo plano. Entretanto, a hospitalização representa uma situação estressante e, muitas vezes, geradora de sofrimento e medo às crianças, o que as faz desejar informações acerca: do seu estado de saúde, dos procedimentos diagnósticos aos quais são submetidas, de quem são os profissionais que cuidam delas, e de qual efeito terão as ações terapêuticas desempenhadas em prol da sua recuperação (Ribeiro, Angelo, 2005; Soares, Vieira, 2004). Analisando o enfoque do trabalho em equipe nas práticas de integralidade, questionaram-se os profissionais quanto à forma como eles atuavam cotidianamente. Nas respostas, eles revelaram dificuldade de interação na unidade, apontando, como obstáculos, a ausência de construções coletivas diárias e as barreiras de comunicação entre os diferentes profissionais, como, por exemplo, médicos e enfermeiros no que tange à realização de procedimentos e transferência ou alta dos pacientes. Além disso, evidenciou-se que as ações descritas por eles como trabalho em equipe, ao serem analisadas, configuraram-se como um trabalho coletivo, realizado a partir da união de práticas isoladas: “A psicóloga, às vezes, chama a atenção para aspectos que são importantes para aquela criança, como a perda dos pais, maus tratos, pois os médicos nem sempre têm tais informações.” (Prof. D)
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“Aqui a gente tem apoio bastante da nutrição e da psicologia, a gente pede e elas vão de imediato já avaliar e ajudar. E da enfermagem também, a gente tem bastante contato, e a secretária também, que ajuda e muito.” (Prof. E)
Reforça-se, portanto, a percepção de que os profissionais buscam, de forma isolada, uma assistência integral à criança hospitalizada. Cada um desenvolve suas ações no seu campo de atuação, com o apoio dos demais profissionais em suas respectivas áreas sem, entretanto, efetivar um trabalho de discussão, planejamento e execução de atividades de forma articulada e pautadas na interdisciplinaridade. Entretanto, Menossi, Lima e Correia (2008) asseveram que a prática interdisciplinar com base na articulação dos diversos saberes, em torno de um projeto comum, é essencial para que sejam contempladas as múltiplas dimensões que envolvem o cuidado à criança e ao adolescente hospitalizado. Nesse sentido, o trabalho realizado em equipe, de forma articulada, pautado na interação entre os profissionais, pode favorecer a atenção integral à saúde da criança. O trabalho em equipe refere-se à relação entre trabalho e interação de agentes técnicos distintos, mas sujeitos iguais. Por interação entende-se a construção de consensos quanto aos objetivos e resultados a serem alcançados pelo conjunto dos profissionais. A partir dessa prática comunicativa, os profissionais elaboram e executam um projeto comum que contempla as necessidades de saúde dos usuários (Peduzzi, 2001). O trabalho integrado só foi evidenciado em momentos típicos de emergência, no qual apresenta-se certa quebra da dificuldade de interação dos profissionais, em que a equipe atua de forma solidária, como pode ser constatado na seguinte fala: “Nós estávamos com uma criança ruim e daí toda equipe parou: era um chamando médico, um administrando medicação, um verificando sinais, todos agiram junto como uma equipe mesmo.” (Prof. B)
A situação acima foi descrita pelo profissional com o intuito de exemplificar o trabalho em equipe destinado ao atendimento integral a uma criança durante o atendimento a uma emergência clínica. No entanto, destaca-se que a interação à qual a fala remete está centrada na realização de procedimentos técnicos de forma articulada. Sabe-se que, durante o atendimento a uma emergência, a aferição dos sinais vitais e a administração de medicamentos são extremamente importantes; no entanto, trabalhar em equipe pressupõe não só a realização conjunta de atividades técnicas, mas também, e sobretudo, a discussão dos problemas e das necessidades da equipe e dos pacientes atendidos na busca de consensos coletivos. Nesse sentido, constata-se que o processo de trabalho, no contexto hospitalar, está pautado basicamente em atividades assistenciais, diferenciadas de acordo com cada grupo profissional, as quais, do ponto de vista do cuidado à saúde, articulam-se em uma rotina de trabalho coletivo, constituindo-se em ações fragmentadas, realizadas de maneira conjunta (Martins, 2004). Apesar do exposto, quando questionados acerca dos elementos capazes de tornar mais eficaz e integral o seu trabalho, os profissionais salientaram a importância da interdisciplinaridade e atuação em equipe, assim como da comunicação no ambiente de trabalho: “Integração entre profissionais de diferentes áreas, comunicação, colaboração destes profissionais, instrumentos de trabalho e um bom relacionamento com a equipe e paciente.” (Prof. C) “[...] comunicação entre a equipe, ‘mensagem uniforme’ ou seja, todos os profissionais precisam passar a mesma mensagem [...].” (Prof. D) “Eu acho que é questão do relacionamento interdisciplinar, multiprofissional, importantíssima a questão da comunicação [...].” (Prof. F)
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Assim, percebe-se que as limitações em relação ao trabalho em equipe estão mais relacionadas aos mecanismos para efetivar essa interação, do que à crença na importância de tais ações. Um dos fatores que pode estar interferindo na integração entre os profissionais é a atuação transitória de um grande número de estudantes de graduação e pós-graduação que desenvolvem atividades profissionalizantes no cenário do estudo, tendo em vista que a instituição configura-se como um hospital universitário. A alta rotatividade de profissionais foi apontada por Colomé e Lima (2006) como um dos principais desafios para a efetivação do trabalho em equipe, pois as idas e vindas de profissionais dificulta a integração e construção de vínculo entre eles, assim como a consecução de objetivos comuns capazes de solucionar os problemas de saúde de forma integral. A operacionalização da integralidade na organização da assistência esbarra nos limites da transposição do conceito para novas práticas, o que limita a integralidade à justaposição de ações de caráter preventivo ou coletivo com as de cunho curativo individual, sem o rearranjo terapêutico e tecnológico necessário à efetivação concreta da integralidade na produção do cuidado (Pinheiro, Mattos, 2006). Para superação dessa dicotomia, é necessário repensar a formação dos profissionais de saúde. Os entrevistados, ao relacionarem situações práticas à conceituação de integralidade, corroboraram a necessidade de a formação do profissional de saúde contemplar os princípios que regem o sistema de saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção integral à saúde. Quanto mais ampla for sua compreensão acerca da organização da rede de atenção, e mais dimensões da integralidade os profissionais incorporarem na sua base teórica, melhor elas serão refletidas nas suas práticas cotidianas (Ceccim, Feuerwerker, 2005). Apenas dois profissionais apontaram a integralidade segundo dimensões múltiplas, ou seja, abordando a organização do serviço e sua articulação na rede de assistência: “Há várias coisas: ver a saúde como um todo, dar condições de saúde, moradia, resgate da saúde, em um patamar mais abrangente que a doença, dar condições para alcançar o bem estar. Abrange o sistema de saúde. Todos os profissionais vendo o ser humano como um todo.” (Prof. A) “Integralidade eu acho que é uma integração entre a saúde, a saúde da comunidade que seria os postos de saúde, os hospitais, teria que ter um conjunto bom, mas na verdade não temos uma assistência de saúde comunitária boa para essas crianças, eu acho que não tem muito.” (Prof. B)
Apesar disso, conforme Cecílio (1997, p.301), esse aspecto é de fundamental importância, tendo em vista que os hospitais estão inseridos em uma ampla rede de assistência, atuando como “um local para promoção de saúde e defesa da vida e da cidadania, com suas equipes colaborando ativamente na construção de novas relações dentro do sistema de saúde”. A terceira dimensão da integralidade, caracterizada pelas políticas públicas de saúde e iniciativas governamentais com vistas à integralidade, foi identificada em apenas uma das falas dos profissionais, o que remete, mais uma vez, ao enfoque nas ações cotidianas. Todavia, os profissionais mencionaram a relevância e necessidade de ações ao nível governamental para viabilização de práticas de integralidade, presente nos elementos elencados como indispensáveis à atuação profissional pelos respondentes: “[...] são necessárias melhores condições de infra-estrutura, maior quantitativo de pessoal, isso faz com que tenhamos um serviço mais qualificado.” (Prof. F)
Nesse sentido, a dimensão das políticas governamentais está relacionada à organização do sistema de saúde, com destaque para novas proposições e desenvolvimento de práticas de gestão democráticas e descentralizadas, a partir da participação dos sistemas locais de saúde e inserção da população na elaboração de políticas e práticas em saúde (Pinheiro, Ferla, Silva Junior, 2007).
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Por esse meandro, observa-se que, conforme Ayres (2001), os serviços de saúde configuram-se como espaços públicos onde se encontram sujeitos coletivos, os quais são produtos de suas subjetividades, no entanto ainda carentes de um agir político, socializado, ciente e comprometido com o seu papel social no contexto das práticas de saúde. Dessa forma, os profissionais entrevistados associam a integralidade mais facilmente à dimensão relativa à sua atuação, buscando desenvolver práticas que englobem não só a assistência, mas também a prevenção e promoção de saúde de acordo com o contexto socioeconômico da criança atendida no âmbito hospitalar. Pontua-se que, para a materialização da integralidade no cotidiano dos serviços de saúde, é necessário maior diálogo entre os atores que participam da produção do cuidado, buscando o aprimoramento das práticas de gestão e de organização do trabalho em saúde.
Considerações finais Constatou-se que a integralidade está presente na base conceitual e nas finalidades que norteiam as práticas dos profissionais da equipe pesquisada, a partir da busca pela articulação de ações destinadas tanto à assistência como à prevenção de agravos e/ou complicações decorrentes do processo patológico que ocasionou a internação. Entretanto, identificou-se que os profissionais buscam isoladamente uma abordagem integral à criança hospitalizada, o que limita suas ações ao seu campo de atuação, não efetivando um trabalho de discussão, planejamento e execução de ações de forma articulada. A interação no trabalho em equipe só foi evidenciada no atendimento a casos de emergência, quando os profissionais atuam de forma integrada em prol de uma assistência eficaz e resolutiva, mas de forma restrita à dimensão técnica. Com relação aos três conjuntos de sentidos da integralidade, as ações relatadas pelos profissionais estão centradas na dimensão relativa à atuação profissional. No entanto, para a construção e efetivação das práticas de integralidade nos serviços de saúde, independente do nível de atenção, é necessário que os profissionais, além de pautar suas condutas na busca de uma atenção integral, desenvolvam sua competência política de forma responsável e comprometida com a reorganização dos processos de trabalho, buscando a superação do modelo hegemônico de atenção à saúde. Especificamente no contexto do trabalho em uma unidade de internação pediátrica, é necessário que os profissionais, ao desenvolverem práticas de cuidado destinadas à integralidade, estejam mais atentos aos anseios e manifestações da criança enquanto indivíduo que deseja ser ouvido e é capaz de expressar sua subjetividade. A hospitalização pode ser um momento ímpar no desenvolvimento emocional e cognitivo da criança, a partir da realização de atividades de educação em saúde, de acordo com sua maturidade compreensiva, buscando situá-la no contexto da ocorrência de doença que está vivenciando e das estratégias de autocuidado que pode desenvolver com a ajuda e/ou supervisão dos seus familiares cuidadores. Assim, com esta pesquisa, pretendeu-se ampliar a discussão acerca dos caminhos para efetivação do SUS, por meio da análise e discussão das práticas de integralidade desenvolvidas por uma equipe de profissionais da saúde de uma unidade de internação pediátrica. Os resultados encontrados, mesmo relacionados especificamente a uma unidade de internação pediátrica, potencializam importantes reflexões com relação ao trabalho em saúde, ao trabalho em equipe e à integralidade nos serviços de saúde, podendo conduzir a um repensar das práticas e posturas profissionais. Aponta-se a necessidade de que outras investigações sejam realizadas acerca das diretrizes do SUS e as práticas desenvolvidas no contexto hospitalar, uma vez que os seus princípios devem orientar a produção do cuidado em todos os níveis de atenção à saúde.
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Colaboradores Os autores Débora Luiza dos Santos e José Luís Guedes dos Santos realizaram a coleta dos dados, análise e discussão dos resultados, escrita e formatação do texto. Maria de Lourdes Rodrigues Pedroso participou da elaboração e revisão do artigo. Adelina Giacomelli Prochnow orientou todas as etapas do estudo, e Maria Alice Dias da Silva Lima participou da revisão e aprovação final do manuscrito.
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SANTOS, D.L. et al. La integración en las acciones del equipo de salud de una unidad de internación pediátrica. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.359-68, out./dez. 2009. La noción de integración engloba tres conjuntos de sentidos: la práctica de los profesionales de salud, los atributos de la organización del servicio y las respuestas gubernamentales a los problemas de salud. Este estudio ha tenido como objetivo analizar y discutir los sentidos relacionados a la integración en las acciones del equipo de salud de una unidad de internación pediátrica de un hospital universitario en el interior del estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Se trata de una investigación cualitativa cuyos datos se recogieron a partir de entrevistas y analizados mediante análisis temático. La integración en la práctica de los profesionales se centra en la dimensión relativa a la actuación profesional en la que tratan de asociar asistencia y prevención, vislumbrando al niño hospitalizado en su contexto económico y social. Señalan la importancia del trabajo de equipo pero encuentran dificultades al efectivarlo, lo que perjudica la articulación de las acciones en pro de una atención integral.
Palabras clave: Asistencia integral a la salud. Equipo de asistencia al paciente. Práctica profesional. Servicios del hospital. Pediatría. Recebido em 06/10/08. Aprovado em 17/07/09.
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Evaluación sobre las características del proceso de envejecimiento a través de relatos de vida* Margarita Pino1 Maria Carmen Ricoy2 Julio Portela3
PINO, M.; RICOY, M.C.; PORTELA, J. Assesment of the process of ageing through life reports of elder people. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.369-82, out./dez. 2009. In this paper, we assess elderly people’s perception of the factors that influence their health and their vital development as a starting point to improve their quality of life. We analyze 147 life stories of patients aged between 65 and 90, in an evaluative research with a biographical-narrative approach. As results and conclusions, we emphasize that the elderly reconciled their work in the industrial or services sectors with ploughing. The most common activities they perform in their free time are sewing for women and card games and watching sports on TV for men. They are satisfied with the medical assistance they receive, although they demand new specialty services and health education. Most of the patients face the deterioration of their health in a positive way.
Keywords: Self-perception of health. Quality of life. Elderly. Life stories.
En esta investigación se evalúa la percepción que presentan los mayores sobre los factores que influyen en su salud y el desarrollo vital a través del tiempo como punto de partida para mejorar su calidad de vida. Se analizan 147 relatos de vida de pacientes con edades comprendidas entre los 65 y 90 años. Se aborda una investigación evaluativa desde un enfoque biográficonarrativo. Como resultados y conclusiones hay que destacar que las personas mayores compaginaron su trabajo en el sector industrial o servicios con las labores del campo. En cuanto a las actividades que realizan en su tiempo libre destacan para las mujeres coser y para los varones los juegos de cartas y seguir los deportes por televisión. Están satisfechos con la asistencia sanitaria que reciben, aunque demandan nuevos servicios de especialidad y formación en educación para la salud. En general los pacientes se enfrentan positivamente al deterioro de la salud.
Palabras clave: Autopercepción de la salud. Calidad de vida. Personas mayores. Historias de vida.
* Este artículo se integra dentro del proyecto de investigación titulado: “Diseño de programas de intervención socioeducativa para la promoción de hábitos de salud y calidad de vida en personas mayores” (referencia: HP20050086), subvencionado por el Ministerio de Ciencia y Tecnología español. 1 Facultad de Ciencias de la Educación, Universidad de Vigo. Campus A Xunqueira, 36005 Pontevedra, España. mpino@uvigo.es 2 Facultad de Ciencias de la Educación, Universidad de Vigo, España. 3 Centro de Salud de Porriño, Pontevedra, España.
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Introducción El envejecimiento supone un proceso dinámico que se desarrolla a lo largo de la vida. A su vez, es un proceso individual: cada persona envejece a distinta velocidad y de manera diferente. De ahí, que este proceso no se produzca por igual ni de forma uniforme para todos, ni que envejezcan en la misma persona a idéntica velocidad los distintos componentes de su organismo. Las personas mayores pueden ser victimas de marginación social ya que pertenecen a un colectivo susceptible de exclusión (Subirats i Humet, Brugué, Gomá, 2002). Para evitar el riesgo de exclusión es necesario conocer los cambios que se producen durante este proceso vital. Los logros de la medicina, de la educación y de la ciencia en general han contribuido a que el proceso de envejecimiento tarde más en aparecer y que sea más saludable. Estos avances, que aumentan la esperanza de vida y el menor índice de natalidad en las sociedades industrializadas provocan un progresivo aumento de la población mayor de 65 años (Ribera Casado, Cruz Jentoft, 1997). El envejecimiento es en los países industrializados el acontecimiento demográfico más importante de la época actual. Los índices de envejecimiento han crecido y continúan haciéndolo de forma vertiginosa. Estos hechos, generan una importante repercusión a nivel social y sanitario no sólo para la persona, sino también para la comunidad en la que se encuentra inmersa; lo que, lleva a pensar que este sector de la población será uno de los que demandará más servicios en los próximos años. Por eso, debemos conocer la percepción que tiene este colectivo de su propia realidad, sus carencias y necesidades con el objetivo de mejorar su calidad de vida y evitar, en lo posible, factores de riesgo (Vita, Hubert, Fries, 1998). En el caso de España, las problemáticas referidas a la vejez son bastante recientes, ya que en 1960 sólo el 8% de la población correspondía a personas mayores de 65 años y este porcentaje ha ido creciendo de forma ininterrumpida pasando a constituir el 15,7% en 1997 y se prevé que ascienda hasta el 17,9% en el 2010 y al 20,3% en el 2015. El proceso de envejecimiento varía por las distintas circunstancias que configuran la vida de cada persona: salud, ingresos económicos, familia, personalidad, tipo de trabajo, etc. La naturaleza real del proceso de envejecimiento hace difícil definir y medir cuándo una persona es anciana (Beaver, Miller, 1998). Este proceso, está influido por factores derivados de las enfermedades y padecimientos acumulados a lo largo de la vida. Todos estos elementos, así como los acontecimientos estresantes a los que ha sido sometida la persona mayor van dejando huellas a las que el organismo se tiene que adaptar (Montorio, Izal, 2000). Si nos centramos en la perspectiva de las propias personas mayores debemos tener en cuenta que consideran que sus problemas son, por este orden: económicos, médicos, de soledad, rechazo familiar y afectivos (Vega, 1990). Su ruptura de las relaciones sociales se agrava por la pérdida de la pareja o de familiares próximos, del poder adquisitivo, la jubilación, dificultades físicas, etc. Otras carencias importantes ligadas a la vejez son la escasez de fuentes de información que manejan. Además las personas mayores que mantienen relaciones sociales, cubren sus necesidades afectivas y emocionales, ofrecen seguridad y bienestar, acudiendo menos a la consulta médica y cuando están enfermas tienen más fuerzas y ganas de curarse (Gallo et al., 2006). En el deterioro de la calidad de vida influyen las vivencias de desarraigo y la carencia de expectativas, la soledad, el aburrimiento, el sentimiento de inutilidad y la frustración afectiva; todas estas variables pueden conducir a estados depresivos y de angustia. La soledad está relacionada con el abuso de los servicios médicos y farmacológicos, consumo de alcohol, aumento de los índices de suicidios, de la sintomatología de enfermedades físicas, del incremento de peticiones de ayuda terapéutica y social (García Pérez, Tous Ral, 1992). Desde la preocupación social e interés profesional que produce la temática abordada y dentro de las múltiples formas de actuación existentes (sanitaria, social, educativa etc.) con la tercera edad, consideramos relevante la educación para la salud, entendida ésta como un medio para contribuir a la formación permanente de las personas mayores, abarcando los tres niveles de intervención: primaria, secundaria y terciaria. Los programas de educación gerontológica se convierten en una herramienta básica para desarrollar experiencias de aprendizaje con las personas mayores, con la finalidad de aminorar el deterioro de su 370
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calidad de vida y para dar a conocer los riesgos de hábitos y conductas no saludables; así como de prácticas que mejoren o reduzcan los síntomas de determinados problemas de salud, promoviendo una implicación más activa. La promoción de la salud empieza con las personas que están básicamente bien, ayudándoles a adoptar estilos de vida que les permitan mantener y conservar un estado aceptable de bienestar y lograr un envejecimiento lo más óptimo posible; pero también con aquellas que cuentan con factores de riesgo o que ya padecen algún tipo de enfermedad para contribuir a la mejora de su proceso terapéutico. Desde la inquietud que nos genera la temática planteada, en este trabajo desarrollamos una investigación de carácter evaluativo para detectar las circunstancias que rodearon a un grupo de personas mayores y los efectos que originó en ellas el paso del tiempo. Analizamos la percepción que tienen los propios implicados sobre el deterioro de su salud y avance existencial, como punto de partida para el diseño de programas de educación para la salud con el objeto de contribuir a mejorar la calidad de vida del colectivo.
Metodología Se trata de una investigación evaluativa en su modalidad descriptivo-comprensiva desde una consideración valorativa (Pérez Juste, 2006) y está desarrollada mediante el enfoque biográfico narrativo. Aunque son pocos los trabajos publicados sobre la temática abordada desde un planteamiento cualitativo (Mercado-Martínez et al., 2008) queremos sumarnos a esta iniciativa, dada la relevancia que le atribuimos a este tipo de estudios al permitirnos profundizar en peculiaridades acuciantes que rodean al colectivo objeto de análisis con el fin de describir, interpretar y comprender esta unidad contextual. Diferentes autores defienden que la presentación sistemática del enfoque biográfico narrativo, sin limitarla a la mera metodología de recogida/análisis de datos, permite construir conocimiento científico (Bolívar, 2002; Bolívar, Domingo, Fernández, 2001), visión a la que nos adherimos. Los relatos de vida que hemos recogido son narraciones autobiográficas sobre experiencias personales que poseen un interés profundo y duradero para los narradores y están contadas a través de sus propias voces (Chase, 1995); aportan evidencias fundamentalmente de carácter cualitativo sobre la percepción que tienen las personas mayores acerca de la problemática que estudiamos. Las historias de vida propician el conocimiento sobre el contenido emocional de la experiencia humana que puede quedar ocultado por los llamados métodos objetivos. De ahí, que la investigación biográfica y narrativa se asiente, dentro del “giro hermenéutico” en una perspectiva interpretativa, en la cual las vivencias y experiencias de los participantes se convierten en el foco central de la investigación (Booth, 1996). La narrativa, por una parte, recoge la experiencia percibida y expuesta como relato por los participantes; y por otra (como enfoque de investigación), pone las pautas y formas para construir sentido a partir de acciones temporales y personales, por medio de la descripción y análisis de la información biográfica. La narración es una reconstrucción de la experiencia, por la que, mediante un proceso reflexivo, se da significado a los hechos y vivencias (Ricoeur, 1995). Como modalidad para interpretar los materiales biográficos utilizamos los relatos producidos por un grupo de personas mayores, que como investigadores analizamos sin poner en duda su veracidad o autenticidad, con el propósito de ampliar la comprensión de la realidad examinada (Denzin, 1989). Los métodos narrativos permiten el acercamiento a las experiencias de grupos con dificultad de acceso al lograr que sus voces sean escuchadas sin subordinar la realidad de estas personas a la búsqueda de la generalización (Hornillo Araujo, Sánchez Serrano, 2003). Por tanto, entendemos que las historias de vida que hemos analizado aunque hacen referencia a una singularidad son un referente importante para este tipo de colectivos, que aunque situados en otros contextos se identifiquen de algún modo con lo sucedido. Esta investigación narrativa en su diseño se acomete desde un estudio de caso, con el objeto de describir, interpretar y comprender la singularidad del colectivo de personas mayores analizado (Merriam, 1998). Pretendemos entender y conocer sus experiencias y vivencias desde el microcontexto estudiado, con el fin de encontrarle significado a lo largo de un recorrido vital (Rodríguez, Gil, García, 1999). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.369-82, out./dez. 2009
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Participantes Los participantes objeto de estudio se concentraron en los centros de salud de las localidades de Porriño y Tomiño, situadas en el área norte de Atención Primaria de la Provincia de Pontevedra (España). En estos centros, desde el año 2002, se realiza un esfuerzo considerable por poner en marcha programas de educación para la salud destinados a personas igual o mayores de 65 años, con el fin de mejorar su estilo de vida (Pino, 2004). En la selección se tuvieron en cuenta a las personas de 65 años y con edad superior que acudían a consulta, al menos, durante un mes y que mostraron su disponibilidad para colaborar voluntariamente en esta investigación. En total, participaron en el estudio 147 personas mayores comprendidas entre los 65 y 90 años. A todos los pacientes se les solicitó el consentimiento para recopilar y estudiar sus relatos, informándoles de la finalidad de la investigación. Con relación a la edad, han participado en el estudio personas comprendidas entre los 65-70 años (56 mayores), de 71 a 75 años (48), entre los 76 y los 80 (31) y un pequeño grupo (12) con más de 81 años. En general (140 participantes), han vivido en algún momento de su vida en el medio rural y otros lo han hecho en núcleos urbanos en calidad de emigrante en Europa (Alemania, Suiza y Francia) o Latinoamérica (Argentina, México, Brasil y Venezuela). En cuanto al sexo de estos participantes la distribución ha sido bastante equitativa entre las mujeres (79) y los varones (68). Por lo tanto, solamente se pensó en hacer referencia a las diferencias con relación al sexo cuando los porcentajes encontrados marquen una elevada preponderancia, en los demás casos se realizarán comentarios de modo colectivo. Una parte importante de estas personas mayores están casadas (52 mujeres y 49 hombres) y las demás se encuentran viudas (18 mujeres y 13 hombres) o solteras (9 mujeres y 6 hombres).
Procedimientos de análisis Para la recogida de información, no se ha establecido con anterioridad el número de sujetos participantes; éste se dejó abierto estimando la suficiencia de los datos a lo largo del proceso de análisis, en base a la saturación de la información obtenida. La toma de datos se simultaneó con el análisis de los mismos en un proceso interactivo y cíclico, para así determinar la conclusión de la fase de recogida de información (Marcelo, 1992). El análisis de contenido aplicado a los relatos producidos por las personas mayores que han participado en el estudio se inicia a partir de la grabación en audio y trascripción literal de la información recogida. El análisis de esta información se desarrolló a partir del despliegue y depuración inicial, reduciendo los datos en unidades categoriales de significado para el estudio (Hernández Pina, 2001). Las categorías de análisis definidas, que se presentan en el apartado de resultados, emergen de la información recogida focalizada en el objetivo central de la investigación. El análisis de contenido de los relatos se aborda a través de una categorización general (primaria) que aglutina en su desarrollo las distintas categorías específicas fruto de la información recabada. Las categorías definidas se determinaron a través de procedimientos de análisis cualitativos y se derivan de una concepción naturalista que aflora de los propios datos (Goetz, Lecompte, 1998). Para reforzar la validez interna del significado, en la categorización, hemos constituido los núcleos de análisis (categorías) teniendo en cuenta su consistencia a través de la configuración de elementos comunes, singulares y creíbles (Fleet, Cambourne, 1984). La fiabilidad de la codificación de las categorías fue definida por el grupo de investigadores responsables del estudio previo diálogo con los miembros del equipo de recogida de información. Éstos, habían recibido las directrices oportunas para realizar la recogida de información y guardar el anonimato de los participantes. El recuento del porcentaje de las categorías específicas, que realizamos, no tiene como finalidad la cuantificación ni la generalización de resultados sino orientar sobre la preponderancia o singularidad de las mismas permitiendo, así mismo, profundizar en el análisis. A su vez, este recuento posibilita tener una visión general de la distribución de las categorías específicas. Además, se ofrecen al lector fragmentos ilustrativos extraídos de diferentes relatos, en el apartado de resultados, con el objeto de brindar evidencias que posibiliten ahondar en la reflexión, análisis y conclusiones. 372
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Resultados En este apartado exponemos los datos obtenidos con el estudio en función de las categorías analizadas. A continuación, introducimos los respectivos subepígrafes con la categorización general (primaria) para profundizar en la interpretación de los resultados obtenidos a través de las respectivas categorías específicas.
Nivel socio-económico En un entorno agrícola como lo es el gallego, los centros de salud se encuentran ligados geográficamente al campo, de ahí que la mayoría de las personas mayores estén vinculadas al hábitat rural y continúen desarrollando alguna tipo de labor agrícola: “Vivíamos en el campo, trabajando mucho. Éramos seis hermanos”. (Relato 45, mujer) “Cuando era pequeña éramos cinco en casa, yo estaba con mis abuelos, vivíamos en el campo, en la aldea”. (Relato 142, mujer)
Entre los participantes destaca el bajo nivel económico del que disponen durante su infancia, lo que marcó de forma determinante sus vidas ya que no pudieron estudiar y comenzaron a trabajar muy jóvenes para poder ayudar económicamente a sus familias. Por lo tanto, el nivel de estudios de estas personas mayores es precario (21,8%), apenas saben leer y escribir; muchas de ellas (70,1 %) han realizado algún curso en los estudios primarios, aunque gran parte no ha finalizado la escolaridad obligatoria; unos pocos (8,1 %) tienen estudios secundarios y solamente uno de ellos es licenciado. Los siguientes fragmentos ilustran estos hechos: “El nivel económico era bajo, muy bajo. Yo empecé a trabajar a los trece años en una fábrica de madera”. (Relato 15, hombre) “Un nivel económico bajo, pero bajo del todo ¡eh! Al no haber sueldos buenos. El campo no da para muchas cosas”. (Relato 102, mujer)
Normalmente las mujeres son amas de casa (83 %) y compatibilizan este trabajo con las tareas agrícolas; mientras que los varones trabajan en el campo (45 %), en el sector servicios (27,9%) y en el sector secundario (15%); unos pocos (10%) no menciona nada al respecto. En general, no consideran que sus condiciones de trabajo fuesen precarias y relatan que sus circunstancias existenciales eran aceptables. La ayuda de los menores en las tareas del campo y del hogar convertía el absentismo escolar en una lacra sociocultural como se ilustra con el siguiente fragmento de uno de los relatos recogidos: “No fui a la escuela, sólo unos días pero nada, tenía que ir al campo más que a otra cosa”. (Relato 35) “Fui a la escuela. Antes se iba muy tarde, a los siete años se empezaba y hasta los trece continuábamos. No iba todo el día porque a veces tenía que trabajar en el campo algo, ir a la hierba o hacer cosas de casa: lavar la ropa, ... y a lo mejor iba medio día”. (Relato 32, mujer)
Como podemos observar era habitual que dejasen de ir a la escuela para ayudar a sus padres en las labores domésticas o del campo, lo que repercutió en su formación y salidas profesionales. Con una formación tan precaria, su actividad laboral estuvo centrada en tareas poco cualificadas y dispusieron de escasas posibilidades de promocionar dentro de la empresa.
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Su vida laboral activa fue intensa y dura, la mayor parte de ellos salieron de su pueblo natal e incluso emigraron a otros países para realizar distintos tipos de trabajos: “El primer oficio fue de panadero, de aprendiz, y allí me quedé, con gran esfuerzo, hasta que hice el servicio militar. Vine y después marche a Alemania. En Alemania trabaje en una fábrica de neumáticos cerca de cuarenta años y así, ahora estoy jubilado”. (Relato 87, hombre) “Hasta los veintidós años trabajé en el campo, en casa. Después me casé y me fui para Argentina. Allí estuve de ayudante de mecánica para los barcos y luego quedamos en la calle y me fui para un taller metalúrgico. Estuve allí siete años. Tuve un negocio por mi cuenta cuando salí de navales, un mercadito. Después un amigo me dijo si quería ir con él para un bar y fui. Bien de principio, pero después mal. Vendió su parte a unos chicos. Después estuve un par de años y volví. Me dediqué a jardinero también. Después falleció la señora y fui al consulado y vi que había pasajes para el que quisiera y llevara mucho tiempo allá, se pudiera ir a España y me anote para venirme a España. Ya traía jubilación de allá”. (Relato 74, hombre)
Muchas de estas personas mayores han trabajado en diversas empresas y sectores y se jubilaron al llegar a los 65 años (46,9%), otras (29,3%) lo hacen de manera forzosa a causa de una enfermedad y un pequeño grupo (12,2 %) expresa que aún no se ha jubilado porque no tiene derecho a pensión contributiva. En general, los participantes (46,3%) se alegran de jubilarse porque en este momento de sus vidas disfrutan de cosas que hasta ahora no habían podido hacer: “Después de jubilarme bien, estoy muy contenta. Ahora debía de tener de nuevo diez años por lo menos. Muy bien porque la pensión de jubilación no es grande pero no tengo que estar trabajando y lo vamos repartiendo y vamos viviendo tranquilos”. (Relato 79, mujer)
Sin embargo, un grupo (34%) señala haber pasado momentos de tristeza al llegar la jubilación y al resto le resultó indiferente. “Muy mal, lo lleve muy mal. Eché un año... no me pasaba el día, estaba acostumbrado a moverme y quedarme parado... era algo anormal”. (Relato 56, hombre)
Otros participantes han pasado por un periodo de transición: “Los primeros meses mal, porque estaba hecho a trabajar en el bar y todo, pero después bien. Después estuve en casa, bien, bien, bien”. (Relato 38, hombre)
Hemos de señalar que las personas que hablan directamente de la jubilación son varones. Los momentos duros los relacionan fundamentalmente con la pérdida de actividad, de relaciones sociales y en otros casos con la convivencia en el hogar. Muchos emigrantes dejaban aquí a sus familias y cuando se produce el regreso se encuentran con un núcleo familiar que casi desconocen. De hecho, algunas mujeres relatan el abandono y la soledad sufrida e incluso la vida dura que han padecido al lado de su marido. Con todo, lo asumen como si se tratase de algo normal, como si fuese un simple problema familiar: “Eran cosas que pasaban, casarte era la meta de todas, el marido podía hacer lo que quisiera, salir, entrar, emborracharse o lo que se le antojase”. (Relato 50, mujer)
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Actividades de la vida diaria Muchas de las personas mayores (73,5%) no señalan ningún acontecimiento que haya marcado sus vidas; esto se debe a que consideran normal la pérdida de algún hijo en abortos naturales o en los primeros días de vida. La totalidad de las mujeres manifiestan que tuvieron a sus hijos en el domicilio ayudadas por la partera del lugar o sus madres. En cuanto a las actividades que realizan en su tiempo libre, destacan para las mujeres coser (25%) y para los hombres los juegos de cartas y ver los deportes en TV (15%). Ambos grupos utilizan su tiempo libre, en la actualidad, para realizar algún trabajó menor en el campo y en dar paseos (19,5%), bailar y acudir a fiestas populares (15,7%) y, en menor medida, para hacer salidas o excursiones y cocinar, entre otras actividades. Aquellos que no pueden desarrollar las actividades, que hemos referido anteriormente, manifiestan sentimientos de tristeza (28,6%), resignación (13,6%), impotencia (6,8%), malestar (6,8%), alegría (29,3%) y un pequeño grupo (15%) ni las menciona. Llama la atención, notoriamente, la respuesta de alegría que dan algunas personas al no poder realizar actividades cotidianas; esto puede deberse a que asuman con tolerancia y resignación su realidad y, por lo tanto, acepten las consecuencias que se derivan del envejecimiento; o que ésta sea una forma de evadir o esquivar el problema que representa su incapacidad. Aquellos que no pueden trabajar en el campo señalan que les gustaría hacerlo y sienten añoranza de las labores que desarrollaron años atrás: “Me sienta muy mal no poder ir al campo, y cuando llevo a otro (jornalero) pues es aún peor porque no lo hace como yo quería”. (Relato 78, hombre)
Los momentos más felices que manifiestan los participantes siempre giran alrededor de sus años de juventud (o pudiera ser una revelación de la añoranza que sienten por el tiempo pasado) y en torno a acontecimientos familiares: “Pues, los momentos más felices... mi juventud a pesar de ser así fue muy feliz porque a mi me gusta mucho la naturaleza y yo disfruto con la naturaleza, y soy muy manitas y claro gozaba. Además la franqueza que había antes, el compañerismo, antes palabra era palabra, ahora por mucho que digas... ni por escrito. Ahora todo es egoísmo, no puedes confiar en nadie”. (Relato 61, hombre) “Lo más alegre... tener los hijos y tener nietos como tengo, y alegría y tener un marido como tengo que es un sol”. (Relato 41, mujer)
Una información que llama la atención, es que nuestros mayores pocas veces nombran como personas allegadas a ellos aquellas que no pertenecen a su núcleo familiar; pero, sin embargo, al comentar con quien realizan las actividades de ocio observamos que normalmente lo hacen con personas con las que no les une ningún parentesco, fundamentalmente con vecinos y amigos.
Cuidados y atención sanitaria En la actualidad, muchos de los mayores que participan en el estudio (46,9%) manifiestan que se enfrentan positivamente al deterioro de la salud; otros (36,7 %) indican que lo afrontaron negativamente, con paciencia (15%) o con nerviosismo y ansiedad (1,4 %). En general, las enfermedades que padecen están relacionadas con una degeneración ósea, hipertensión, hiperlipemia, diabetes o tabaquismo en los varones. Gran parte de los mayores echan de menos el apoyo familiar sobre todo cuando sufren alguna enfermedad:
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“Tengo a mis hijos trabajando todos, y aunque no viven lejos no vienen por aquí a no ser que uno esté muy mal”. (Relato 122, mujer)
Otros participantes están unidos a sus vecinos para evitar la soledad: “Los vecinos están para todo, para llevarte al médico, para echar una parrafada, para lo que sea, Yo le tengo muy buenos vecinos la verdad”. (Relato 34, mujer)
En otros casos, acuden directamente al centro de salud: “Desde que tenemos el centro de salud, todo está mucho mejor. Puedes acudir allí si tienes algún problema. Son muy amables y ayudan en todo lo que pueden”. (Relato 145, hombre)
Encontramos que los momentos más tristes para las personas mayores son consecuencia de diferentes episodios ligados a las desgracias personales o familiares, enfermedades que padecen, pérdidas familiares etc.: “Triste es que mi mujer está bastante mal, en fin, bebe algo”. (Relato 55, hombre) “Cuando mi mujer murió, me quede sólo, mis hijos fuera. Yo no sabía hacer nada sin ella, ni ir al banco”. (Relato 126, hombre) “Los momentos más tristes son cuando me pongo enfermo, nunca me encuentro como debo de encontrarme”. (Relato 98, hombre)
En general (80%), nuestros mayores están muy satisfechos con el sistema sanitario del que disponen y con los servicios que le ofrece actualmente; y un pequeño grupo manifiesta una menor complacencia. Algunos mayores reivindican nuevos servicios para sus centros de salud, sobre todo de especialidad médica: “Que hubiera un médico que mirara todo. Un especialista que fuera bueno”. (Relato 56, mujer) “Me gustaría que hubiese radiología, por ejemplo, y la rehabilitación también porque no creo que sea tan difícil ni tan costoso”. (Relato 46, mujer) “Tenía que haber todos los servicios para no tener que trasladarse. También que hubiera charlas, cosas relacionadas con la salud para nosotras... me gustaría mucho. Yo participaría”. (Relato 58, mujer)
Las personas mayores (95,2%), están contentas con la función que desarrolla el personal sanitario y el trato que se le da en los centros de salud públicos. En sus relatos, las personas mayores también manifiestan que les gustaría implicarse en actividades promovidas por los centros de salud para mejorar su calidad de vida (83%). A pesar de que la utilización que realizan los participantes de los servicios sanitarios es excesiva, hemos de precisar que la mayoría de las visitas no se deben a patológicas, sino para resolver problemas burocráticos (recetas en el caso de enfermos crónicos, documentos para tramitar la pensión, anotarse a las excursiones organizadas por el Instituto de Servicios Sociales y para acudir a los balnearios subvencionados), problemas sociales (soledad, abandono y pobreza), problemas psicológicos (angustia y depresión) o problemas educativos (por no saber utilizar correctamente su medicación, no seguir las pautas de alimentación de acuerdo con su enfermedad o desconocer que actividades físicas pueden practicar).
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Autopercepción de la salud Un grupo de personas mayores (49%) considera que su salud es regular; mientras otro la perciben como buena (32,4 %); y una minoría como muy buena (5,9 %), muy mala (2%) o mala (10, 8 %). Algunos mayores manifiestan que sienten dolor casi todos los días (34,4 %), mientras otros indican que no sufren dolor (37,3 %) y unos pocos expresan que lo padecen algún día por semana. En general, en los relatos lo más revelador, sí no existen enfermedades muy graves, es que la etapa de la jubilación es la más apacible de su vida. “Esta es la mejor época de nuestra vida. Podemos hacer lo que queramos y tenemos muchas oportunidades: bailes, excursiones, los amigos. Además tenemos todo el tiempo. A mejorado mucho la cosa, nuestros padres no pudieron disfrutar nada de esto”. (Relato 59, mujer)
Esta percepción positiva sobre la salud tiene relación con el nivel de independencia física, y también económica con el que cuentan, gracias a las pensiones, a la ausencia de enfermedades invalidantes y al apoyo social, sobre todo de la familia. De su vejez valoran fundamentalmente la libertad de la que disponen para realizar muchas cosas para las que antes no tenían tiempo, aunque sus años más felices los relacionan con la juventud. “Ahora las cosas van mucho mejor, si estamos bien podemos salir y hacer muchas actividades en el ayuntamiento, en el centro de salud, y también en el centro social. La cuestión es no perder la cabeza y poder andar bien”. (Relato 76, hombre)
De los relatos recogidos, se deduce que los participantes consideran su bienestar, más como una postura ante la vida que la consecuencia de su estado físico. Se aprecia una percepción positiva ante la vida cuando mantienen sus relaciones sociales, sienten el apoyo familiar y también de los amigos, y poseen una independencia económica que les facilita tomar decisiones libremente sobre su ocio. En algunos casos (13%), denuncian su malestar por la imagen negativa que tiene de ellos la sociedad: “Piensan que no servimos para nada. Mis nietos si digo algo ni me oyen, les parece que ya no sirve y lo que digo son tonterías”. (Relato 53, hombre)
Una valoración negativa ante la vida, como es natural, es más acuciante en los participantes cuyas enfermedades les producen un dolor pronunciado o en los que han perdido a su conyugue después de muchos años de convivencia. Las personas mayores a pesar de considerar que poseen buena salud para la edad que tienen, en general, utilizan los servicios sanitarios como mínimo dos veces al mes. Este hecho, lo justifican señalando que deben de ir a recoger las recetas de medicamentos debido a enfermedades crónicas que padecen, por vacunaciones; curiosamente en algunos casos señalan el centro de salud como lugar de encuentro y conversación. “Ya quedamos los martes para ir al centro de salud y así nos acercamos al mercado y ya volvemos juntos en el taxi. Además si llueve o hace frío allí hay calefacción y se está bien”. (Relato 137, mujer)
Descubrimos con las manifestaciones de los participantes, a través de los relatos, que aquellas personas que tienen menos relaciones sociales visitan más al médico que las que desarrollan diferentes actividades y, por lo tanto, su red social suele ser más amplia y mantienen el tiempo ocupado. En concreto, visitan más al médico los que no realizan actividades de ocio, no viven con familiares directos y en algunos casos hasta se llevan mal con los vecinos (4 casos). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.369-82, out./dez. 2009
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Los participantes, en muchos casos, no acuden al médico para buscar un diagnóstico, sino más bien para pedir consejo: “A veces voy porque estoy que no respiro, que me falta el aire, y no sé que hacer. Voy allí y el doctor me dice lo que tengo que hacer con mi hija y mis nietos que solo me dan disgustos. Si no le hiciera caso. Cada uno es como es”. (Relato 82, mujer)
Algunas personas mayores tienen la falsa creencia de que los avances científicos actuales pueden dar solución a cualquier problema de salud: “Ahora con los avances nuevos que hay se puede vivir mucho mejor. Si en el centro de salud no hay técnicas nos mandan al hospital que hay de todo y te arreglan lo que haga falta. Y si tienes que morir te mueres. Si te viene un cáncer no hay nada que hacer”. (Relato 112, hombre)
Conclusiones y discusión Las personas mayores consideran aceptables las condiciones duras de vida, que han padecido, desde su juventud a pesar de las penurias sufridas porque en el entorno en que vivían estaban normalizadas, ya que todos soportaban calamidades. Algunos estudios ponen de manifiesto que las memorias acumulativas de un lugar permiten a las personas mantener una autoimagen favorable a pesar de las contingencias de su vida posterior (Taylor, 2001). De hecho, se ha detectado en otro estudio una tendencia del anciano por sentirse satisfecho con la propia historia de vida (Molina Sena, Meléndez Moral, 2007), aunque ésta también puede ser una forma engañosa de autoconsuelo o desahogo. El trabajo en el campo continúa formando parte de la vida de nuestros mayores, incluso como ocio, y lo compatibilizan con otras actividades como excursiones, juegos, bailes, etc. Normalmente estas actividades las realizan con amigos, familiares o vecinos. Sin embargo, se constata que la mayoría de las relaciones sociales se producen con los vecinos. En otra investigación encuentran que los mayores sienten la obligación de incluir a familiares en su red social (Piñón Paya, 1999); de hecho integran parientes con los que apenas mantuvieron contacto y presentan reticencia a incorporar personas con las que frecuentemente pasaban muchas horas. Las personas mayores consideran que tienen buena salud y sólo les angustia la falta de autonomía y el deterioro de la capacidad cognitiva. De hecho, la percepción positiva de la salud parece estar más relacionada con el mantenimiento de una red de apoyo social o una independencia económica que con el estado físico. Resulta evidente en el estudio la importancia de mantener las relaciones sociales basadas fundamentalmente en sus familiares directos, pero también en sus vecinos y amigos. En algunas investigaciones se observó una correlación inversa entre apoyo familiar y número de enfermedades (Salgado de Zinder, 2005). La percepción negativa que tienen sobre su salud algunas personas mayores parece estar asociada al padecimiento de enfermedades que producen un dolor importante o a la pérdida de las relaciones sociales. De hecho, algunos estudios señalan que la calidad de vida en la vejez se supedita a disponer de salud porque supone independencia, funcionalidad y además redes de apoyo familiar y social (Ors, Laguna, 1997). A través de otro estudio cualitativo se ha llegado a la conclusión de que entre las variables generadoras de bienestar destacan los elementos familiares y sociales como las categorías más satisfactorias, frente a los elementos de seguridad como los más insatisfactorios (Molina Sena, Meléndez Moral, 2007). Además, es relevante indicar que la soledad tiene una posición prevalente en las mujeres frente a los varones. Tradicionalmente, era en el ámbito familiar y privado donde la persona mayor encontraba cobijo y amparo gracias a la labor en el hogar de la mujer, actualmente con su incorporación al mercado laboral disminuye la dedicación (Pascual Monzó, 2001). Otro aspecto a tener en cuenta con
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personas mayores de 65 años es la visión que tienen sobre su salud, dado que el riesgo de mortalidad se reduce en las optimistas (Van Doorn, 1999).
Algunas sugerencias Con el apoyo pertinente de los organismos públicos y/o privados adelantamos como ejes pedagógicos asociados a la promoción de la calidad de vida con personas mayores algunas líneas de actuación: - Mantener, ampliar y dinamizar la red de apoyo social con el fin de que se sientan útiles en su comunidad y mantengan los vínculos de unión que le permitan considerarse miembro de la misma, para evitar el desarraigo y la soledad. Para ello, es importante identificar, mediante un protocolo de actuación los problemas más característicos sobre la salud de la población mayor. - Crear cauces de participación comunitaria, para las personas mayores, que tengan como meta organizar y movilizar a este colectivo, desde el propio coprotagonismo de los mayores: adquiriendo sentido de responsabilidad sobre su propio bienestar y el del colectivo; tomando parte en las deliberaciones y decisiones de problemáticas que afecten a la comunidad; participando en iniciativas sobre planes y adopción de medidas para atender a sus necesidades y expectativas, así como a la evaluación sobre el grado de satisfacción y resultados. - Favorecer la conservación de la capacidad funcional, ya que incide de forma determinante en su autonomía e independencia, así como la integridad psicológica con programas de estimulación cognitiva; y actividades de mantenimiento físico y motriz aprovechando las rutinas cotidianas de las personas mayores. Por ejemplo, memorizar la lista de la compra, realizar otras tareas sencillas en el hogar, retener o aprender la letra de sus canciones favoritas o pasear a diario en grupo. - Proporcionar nuevas ofertas de actividades para el tiempo libre. Es un hecho la repercusión negativa que sobre la salud y el bienestar de las personas mayores tiene el disponer de mucho tiempo de ocio sin utilidad alguna (Auer, 1997); señalándose que éste puede ser consecuencia de la falta de estímulos adecuados (Laforest, 1991). En este punto, consideramos que los programas de tiempo libre deben partir de las necesidades contextuales en las que se encuentran inmersos los mayores, sus intereses y posibilidades, integrando armónicamente sus dificultades con las potencialidades que presentan (Ricoy, 2004). - Diseñar planes para la intervención preventiva primaria mediante estrategias educativas que favorezcan la adopción de hábitos saludables. Estos programas pueden llevarse a cabo en los centros educativos o de salud, en las asociaciones culturales u otros organismos mediante diferentes técnicas participativas: encuentros, intercambios, charlas, cursos, talleres etc.
Colaboradores Margarita Pino y Maria Carmen Ricoy, han sido responsables y colaboraron conjuntamente en el desarrollo de la totalidad del artículo elaborado. Julio Portela, colaboró en el asesoramiento médico.
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PINO, M.; RICOY, M.C.; PORTELA, J. Avaliação sobre as características do processo de envelhecimento por meio de histórias de vida. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.369-82, out./dez. 2009. Avalia-se a percepção que apresentam as pessoas idosas sobre os fatores que influenciam sua saúde e seu desenvolvimento vital como ponto de partida para melhorar sua qualidade de vida. São analisadas 147 histórias de vida dos pacientes com idades entre 65 e noventa anos, em uma investigação avaliativa com abordagem biográficonarrativa. Como resultados e conclusões, ressalta-se que as pessoas idosas conciliaram seu trabalho no setor industrial, ou de serviços, com a lavoura no campo. Quanto às atividades que realizam no seu tempo livre, destacam-se a costura para as mulheres e os jogos de cartas e a programação desportiva da televisão para os homens. Estão satisfeitos com a assistência que recebem na saúde, embora demandem novos serviços de especialidade e formação na educação para a saúde. De um modo geral, os pacientes defrontam-se com a deterioração da saúde positivamente.
Palavras-chave: Autopercepção da saúde. Qualidade de vida. Pessoas idosas. Histórias de vida. Recebido em 23/10/08. Aprovado em 19/07/09.
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A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites*
Edna Maria de Araújo1 Maria da Conceição Nascimento Costa2 Vijaya Krishna Hogan3 Tânia Maria de Araújo4 Acácia Batista Dias5 Lúcio Otávio Alves Oliveira6
ARAÚJO, E.M. et al. The use of the variable of race/color within Public Health: possibilities and limits. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.383-94, out./dez. 2009. This study aimed to discuss the use of the variable of race/color as a determining factor for social inequalities and social exposure to the risk of illness and death. This was a reflection on the present production of national and international literature within the field of Public Health and Epidemiology. Forty-seven original articles and reviews produced between 1990 and 2005 were included in this study. It was observed that international studies have sought to debate and find a basis for using the variable of race/color within the healthcare field. In Brazil, the use of this variable is still at an initial stage, but among the few investigations undertaken, differentials have been shown and further production of research along these lines has been encouraged. Investigations on the role of race/color in producing health differentials may produce information capable of contributing towards drawing up policies aimed at reducing healthcare inequalities. Keywords: Social inequity. Health. Race/ color. Public Health.
Propôs-se discutir o uso da variável raça/ cor como fator determinante de desigualdades sociais e de exposição social ao risco de adoecimento e morte. Trata-se de uma reflexão sobre a produção atual da literatura nacional e internacional da área de Saúde Pública/ Epidemiologia. Foram incluídos no estudo 47 artigos originais e de revisão no período de 1990 a 2005. Observou-se que os estudos internacionais procuram debater e fundamentar o uso da variável raça/cor no campo da saúde. No Brasil, a utilização dessa variável em estudos de desigualdade em saúde é ainda incipiente, mas, entre as poucas investigações realizadas, têm sido evidenciados diferenciais que instigam maior produção de pesquisas nessa direção. Investigações sobre o papel da raça/cor na produção de diferenciais em saúde poderão produzir informações capazes de contribuir para a elaboração de políticas destinadas a reduzir desigualdades em saúde.
Palavras-chave: Desigualdade social. Saúde. Raça/cor. Saúde Coletiva.
1 Núcleo de Epidemiologia, Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana. Av. Transnordestina, s/n. Novo Horizonte, BA, Brasil. 44.031-460 ednakam@gmail.com 2 Instituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia. 3 Universidade da Carolina do Norte. 4 Núcleo de Epidemiologia, Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana. 5 Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Estadual de Feira de Santana. 6 Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia, Região 03 (Bahia/ Sergipe)
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Introdução O tratamento diferenciado dado aos diversos segmentos sociais, no Brasil, tem contribuído para que o mesmo seja classificado como de elevado desenvolvimento quando são considerados os indicadores sociais da população branca, e de muito baixo desenvolvimento quando estes indicadores se referem à população negra (Paixão, 2000). É notório que, embora o Brasil possua a maior concentração de população negra fora da África (Silva, 2000), este grupo social está desproporcionalmente representado em posições de poder e, do ponto de vista econômico e social, é mais pobre e menos instruído, em termos educacionais, que o restante da população brasileira (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - FIBGE, 2002). A população negra ocupa posições menos qualificadas e de pior remuneração no mercado de trabalho; reside em áreas com ausência ou baixa disponibilidade de serviços de infraestrutura básica; sofre maiores restrições no acesso a serviços de saúde e, estes, quando disponibilizados, são de pior qualidade e menor resolutividade (FIBGE, 2004; Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA, 2003; Paixão, 2000; DIEESE, 2000). Ainda assim, até recentemente, verificava-se forte resistência à compreensão de que essas disparidades poderiam ser atribuídas, pelo menos em parte, ao preconceito racial existente na sociedade brasileira. Somente a partir dos anos noventa, o Brasil passou a reconhecer a existência de diferença racial como um dos fatores de desigualdade social. A despeito de serem escassos os estudos nacionais, da área da saúde, que utilizam a variável raça/ cor da pele e, embora alguns deles sinalizem para a elevada ocorrência de adoecimento e morte da população negra (Araújo, 2007; Batista, Escuder, Pereira, 2004; Barros, Victora, Horta, 2001), a explicação apresentada para este fato apoia-se na inserção socioeconômica das vítimas. Deste modo, a raça/cor tem sido pouco abordada de modo a explicitar como a maneira preconceituosa e discriminatória como a sociedade trata os seus segmentos leva às desigualdades econômicas e sociais, e estrutura desvantagens que determinam posição de menor valor para os grupos discriminados. Nessa direção, raça/cor deve ser compreendida, não do ponto de vista biológico, mas como variável social que traz em si a carga das construções históricas e culturais, representando um importante determinante da falta de equidade em saúde entre grupos raciais. Em outros contextos sociais, como nos Estados Unidos, por exemplo, a variável “raça/cor” tem se revelado como importante preditor do estado de saúde de populações concretas, quando analisada em investigações médicas e de saúde pública que se destinam a quantificar diferencial nas condições de saúde. Considerando que já se encontra estabelecido que as variações genéticas entre as raças humanas não são capazes de explicar os diferenciais em saúde por grupos de cor (Pearce et al., 2004; Cooper, 1984), alguns pesquisadores têm buscado esclarecer tais diferenças fundamentando-se na teoria de determinação social, segundo a qual é a posição ocupada pelos indivíduos e grupos no espaço social, ou seja, as formas como os homens relacionam-se entre si, com a natureza e no processo de trabalho, que desempenham o principal papel na determinação da doença e de sua desigual distribuição na população (Sant’anna, 2003; Hasenbalg, 1992). O presente ensaio, ancorado nas premissas do modelo de determinação social, objetiva discutir aspectos do uso da variável raça/cor da pele enquanto determinante de desigualdades sociais e fator de exposição ao risco de adoecimento e mortalidade.
Metodologia As reflexões apresentadas aqui se baseiam na análise da produção da literatura brasileira, norteamericana (Estados Unidos) e inglesa da área da Saúde Pública/Epidemiologia, publicada no período de 1990 a 2005. Foram levantadas e analisadas publicações relacionadas ao tema de interesse em Revistas indexadas pelas bases de dados Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências Sociais), Medline (base de dados da literatura internacional da área médica e biomédica, produzida pela National Library of Medicine, USA) e SciELO (biblioteca científica eletrônica). Os descritores selecionados foram: desigualdade social, desigualdade em saúde, raça/cor, raça/etnia; condições de saúde; saúde pública (em português); e health inequalities, race/color, race/ethnicity, health status or public health (em inglês). 384
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Foram encontrados 118 trabalhos entre artigos originais completos e de revisão, editoriais, comentários e perspectivas publicados em português e em inglês. Estes foram identificados por descritor separadamente e utilizando-se a técnica de combinação booleana, ou seja, busca na base de dados inserindo-se vários descritores ao mesmo tempo. Foram selecionados, para esse estudo, somente 47 artigos originais e de revisão.
Desigualdades sociais e saúde Para entender a origem das desigualdades em saúde ou em qualquer área, faz-se necessário buscar os princípios estruturantes da desigualdade em sua gênese. Rousseau (1754) concebia, na espécie humana, dois tipos de desigualdade: a natural, estabelecida pela própria natureza, e a moral ou política, que depende de uma espécie de convenção estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. A primeira delas refere-se à diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma. A segunda consiste dos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo de outros, como ser mais rico, mais poderoso do que os outros, ou mesmo fazer-se obedecer. Para esse autor, não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural porque a resposta se encontraria enunciada na simples definição da palavra. Ainda menos pode-se procurar saber se haveria alguma ligação essencial entre as duas desigualdades, pois isso equivaleria a perguntar, em outras palavras, se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo e do espírito, a sabedoria ou a virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do poder ou da riqueza. Enguita (1998) ressalta que a desigualdade, como a sabedoria popular destaca, é tão velha quanto a própria vida, mas, enquanto fenômeno natural, não causa preocupação. O que é preocupante é a desigualdade produzida socialmente, porque nela está implícito que as vantagens obtidas por uns implicam desvantagens para outros. Entretanto, aproximar-se dessa problemática requer: o estudo das condições de vida, expressão das condições materiais de grupos humanos de determinada sociedade (Castellanos, 1997), dos processos de reprodução social da vida cotidiana, incorporando heterogeneidades contextuais, subjetivas e qualitativas, questionando sistemas simbólicos, analisando diferenças nas situações de saúde de grupos étnicos, gênero, reprodução, ambiente social familiar e, paralelamente, relações entre classes. Nesse sentido, compete indagar em que medida as diferenças enquanto expressão de diversidade entre ser branco ou ser negro, ser menino ou ser menina, ter ou não ter uma necessidade especial, ser rico ou ser pobre, ser do norte ou ser do sul, ser índio ou não, morar em área urbana ou rural - se tornam motivo de desigualdades e injustiças (Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef, 2000). É a partir dessa realidade que se aplica o princípio da equidade, que se traduz no reconhecimento de que é preciso tratar de maneira distinta aqueles que não se encontram em condições de igualdade, para que se alcancem relações mais justas (Vianna, 2001). Sendo assim, lutar pela equidade significa atentar para as diferenças que geram situações de vulnerabilidade, promovem desvantagens e se transformam em injustiças. Particularizando-se a questão das diferenças raciais no Brasil, constata-se que os indicadores sociais, marcadores da condição de vida dos segmentos sociais, têm demonstrado que a população negra apresenta pior nível de educação, saúde, renda, habitação, maior adoecimento, inclusive psíquico; maior mortalidade; reside em áreas desprovidas de infraestrutura básica, e tem pior acesso aos serviços de saúde (IPEA, 2002). Mulheres e homens negros são duas vezes mais pobres e vivem 2,6 vezes mais em situação de indigência quando comparados com homens e mulheres brancas, tendo sido essa uma tendência crescente. Além disso, os negros brasileiros apresentam as mais altas taxas de analfabetismo, e, entre a população alfabetizada, estes são 12% menos alfabetizados em comparação com a população branca (Sant’anna, 2003; Hasenbalg, 1992). Mesmo quando os negros conseguem estudar mais, seus salários são menores e também são mínimas as chances de ascensão e mobilidade social (IPEA, 2002; Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial - INSPIR, 1999). A distribuição desses indicadores brasileiros tem representado um importante papel na negação da “democracia racial”, haja vista as profundas diferenças observadas nas condições de vida dos segmentos populacionais. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.383-94, out./dez. 2009
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Por sua vez, têm sido apontados mecanismos pelos quais as desigualdades sociais e econômicas poderiam afetar a saúde, destacando-se, entre elas: as diferenças no acesso às oportunidades na vida (Kaplan, 2002), aumento da exclusão social, conflitos e desgaste da coesão social (Kawachi, 2000), falta de controle e perda do respeito (Wilkinson, 2003), diferentes possibilidades de controle e participação na vida social por meio do status, hierarquia e poder (Marmot, 1999). Esses achados têm instigado a realização de investigações que explorem a relação entre ambiente social e saúde. Estudos realizados em países industrializados, como, por exemplo, The Whitehall Study, têm revelado um gradiente social nas taxas de mortalidade, mesmo entre pessoas que não são pobres. Segundo esses estudos, tal gradiente é influenciado por fatores tais como: posição social, participação social e controle (Marmot, 2003). De acordo com este autor, é errônea a ideia de que saúde e doença estão relacionadas diretamente com poder econômico e pobreza, respectivamente, já que existem países relativamente pobres, como Índia e Costa Rica, onde se observam baixas taxas de mortalidade. Segundo Evans (1994, p.3), “o status de saúde está também correlacionado com status social”. Essas evidências se constituem em espaços abertos para se investigar outros fatores também importantes na determinação do processo saúde - doença.
Raça/cor versus fatores biológicos em pesquisas na área de saúde Grande parte da literatura envolvendo a relação entre raça e saúde enfatiza a falta de evidência científica ao se atribuírem, primariamente, a fatores biológicos, as diferenças raciais observadas em diversas doenças, assim como tem sido apontada, nos estudos sobre o tema, a necessidade de se considerarem fatores históricos e estruturais. Portanto, em pesquisas médicas e epidemiológicas a variável “raça” deve ser utilizada enquanto construto social, mais relacionada a fatores ambientais do que genéticos, haja vista a determinação genética explicar apenas uma parte ínfima do adoecimento e mortalidade das populações (Pearce et al., 2004). De acordo com alguns autores, o termo “raça” favorece ambiguidade conceitual (Lopes, 1997; Jones, 1991) já que o seu sentido, mesmo em pesquisas na área de saúde, tanto pode expressar uma perspectiva de construção social como, também, biológica. Isso se deve à imprecisão ou polissemia do conceito de raça e etnia, além da inexistência de características que permitam definir de forma inquestionável a raça de uma pessoa, já que aspectos políticos, étnicos e sociais podem desempenhar papel crucial na sua definição (Chor et al., 2005; Krieger, 2000a; Jones, 1991). Nesse sentido, Pearce et al. (2004, p.16) salientam que a concepção de que genótipo determina fenótipo é errônea, pois, embora fatores genéticos tenham influência sobre a saúde, eles são “apenas uma peça de uma conjuntura mais ampla”. A constante interação entre genes e ambiente indica que poucas doenças são puramente hereditárias, mesmo se elas forem genéticas. Estudos realizados por esses pesquisadores na Nova Zelândia evidenciaram que doenças hereditárias puramente genéticas são muito raras - a exemplo de Fibrose Cística (1/2.300 nascimentos), Distrofia Muscular de Duchenne (1/3000) e Doença de Huntington (1/10.000) - e representam uma pequena proporção da carga total de doenças. Desse modo, a suposição de que doenças são genéticas porque elas ocorrem em pessoas de uma mesma família, pode, na realidade, estar refletindo muito mais um ambiente e estilo de vida comum do que uma influência genética (Pearce et al., 2004). Estudos têm evidenciado que fatores genéticos têm menos importância na determinação de adoecimento e mortalidade da população do que fatores ambientais. Por exemplo, tendências observadas nas taxas de mortalidade fornecem evidências de que fatores genéticos são insuficientes para explicar diferenças raciais em saúde, haja vista que a melhoria das condições de vida se relaciona com a redução de muitas doenças, sugerindo fortemente que elas não são, sobretudo, genéticas (Pearce et al., 2004). O uso da variável raça/cor da pele, em Saúde Pública, como um significado de identidade da origem geográfica das pessoas ou como marcador genético não tem sentido porque a ciência já demonstrou que, do ponto de vista das ciências biológicas, há maior variação genética entre indivíduos com características fenotípicas semelhantes do que entre aqueles com fenótipos diferentes (Southern Education Foundation - SEF, 2001). Portanto, do ponto de vista genético: “a única coisa certa é que um
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indivíduo é um ser humano” (Torres, 2001, p.189). Dessa forma, todos os seres humanos pertencem a uma mesma espécie, o que derruba a ideia de raças geográficas (SEF, 2001). O consenso que há entre os autores é que o uso da variável raça/cor poderá ser útil apenas como marcador do risco de discriminação ou de exposições sociais. Por outro lado, Travassos e Williams (2004) chamam a atenção para as limitações dos estudos que analisam a raça/cor na área de Saúde Pública e, em especial, destacam os seguintes problemas: não conceituação e justificativa da utilização da variável raça/cor nos estudos de desigualdades em saúde; a utilização desta variável sem que a mesma esteja acompanhada por uma ou mais variáveis de estratificação social para evitar erro de especificação do complexo de riscos; e interpretações e conclusões simplistas que podem levar à ênfase espúria na explicação dessas desigualdades. Chor e Lima (2005, p.8) chamam a atenção para os métodos classificatórios de raça/cor. A combinação de autoclassificação e classificação por terceiros, embora seja considerada como método padrão-ouro, deve ser aplicada de acordo com o objeto de estudo, já que, sendo raça/etnia entendida como uma “construção sociocultural, o conceito de “padrão-ouro” não parece ser adequado”.
Desigualdades em saúde e raça/cor em países desenvolvidos A relação entre raça/cor e saúde vem sendo investigada em países desenvolvidos, como Estados Unidos e Inglaterra, trazendo à tona a importância da reflexão sobre o problema. Têm-se verificado também esforços para construção de propostas metodológicas nesta perspectiva (Krieger, 2000a), que vêm servindo de referência para outras nações. Pesquisadores americanos têm observado que doenças crônicas que incidem entre negros e brancos acometem, de forma mais contundente, os indivíduos de nível socioeconômico mais baixo. Essa constatação tem levado epidemiologistas norte-americanos, que estudam desigualdade em saúde determinada por raça e gênero, a tratarem nível socioeconômico como possível variável de confusão da associação entre raça e doença (Williams, 1996; Osborne, 1992). Entretanto, há controvérsias quanto às diferenças residuais encontradas na comparação dos resultados de saúde entre negros e brancos. Essas podem ser atribuídas a fatores genéticos ou a fatores socioambientais (Pearce et al., 2004; Osborne, 1992), a depender da ideologia de quem as observa (Krieger, 2000a). No entanto, para Cooper (1984) não faz sentido tratar nível socioeconômico como variável confundidora na associação entre raça e doença, uma vez que a raça é um dos fatores determinantes do status socioeconômico. Nos Estados Unidos, a partir da década de 1990, foi estimulado o estudo de aspectos de desigualdades sociais que, além da condição socioeconômica, ressaltassem o papel da raça/cor e gênero na produção de resultados negativos em saúde (Krieger, 2000b; Williams, 1996; Krieger, 1994; Williams, 1994). Naquele país, raça e gênero são usados extensivamente na literatura médica e de Saúde Pública para quantificar diferenças raciais no tratamento e nos resultados em saúde, e o emprego desta abordagem tem aumentado recentemente. Os estudos que relacionam raça com disparidades sociais nos resultados de saúde demonstram que essa variável é um importante preditor do status de saúde, haja vista negros estarem em desvantagem quando comparados com brancos, na maioria dos indicadores de status econômico e de saúde. Está bastante documentado pela literatura que pobreza está associada com risco elevado de baixo peso ao nascer entre afros e brancos americanos. Na revisão de literatura conduzida por Dressler et al. (2005), foi observado que pesquisas sobre baixo peso ao nascer e pressão arterial também evidenciaram piores resultados para a população negra. Entretanto, embora o ajustamento por pobreza reduza substancialmente, não elimina o excesso de risco na população afro-americana (Krieger, 2000b; Rowley, 1993). Em 1996, uma publicação do Instituto de Medicina norte-americano também evidenciou que existem grandes diferenças raciais na qualidade e intensidade do tratamento médico, mesmo após ajustamento por fatores de acesso, condição socioeconômica e severidade da doença (Williams, 1996). Portanto, raça tende a predizer riscos aumentados de saúde independentemente da condição econômica, pois, apesar de essas duas variáveis estarem correlacionadas, elas não são idênticas (Lovell, 1998). Nessa perspectiva, raça/cor é uma dimensão particular da estratificação social, que define
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diferenças no acesso para bens e serviços que poderiam ser atribuídas à classe social. No entanto, ambos os conceitos carregam significados construídos socialmente. A raça/cor está baseada nas características físicas dos indivíduos, enquanto classe social é um produto das relações sociais.
Desigualdades em saúde e raça/cor no Brasil Embora, no Brasil, as desigualdades sociais entre negros e brancos sejam gritantes, a falta de equidade determinada pela raça é tema pouco explorado na literatura da área de saúde (Chor, Lima, 2005; Travassos, 2004; Cunha, 2001). É ínfima a produção acadêmica sobre o tema, e as justificativas para esse fato, possivelmente, estão circunscritas ao mito da “democracia racial” cultivado ao longo dos anos. A ideia, difundida nacionalmente por Freyre (2004), ganhou notoriedade internacional e criou a ilusão, até mesmo entre a população negra, de igualdade de tratamento entre segmentos de cor. Essa pode ser uma das razões pelas quais raça/cor é uma das variáveis menos utilizadas nos estudos sobre desigualdades em saúde, não obstante sua grande relevância como marcador das discrepâncias entre grupos, em termos de condições de vida. Essa falsa “democracia” se desvela cada vez mais por meio das diferenças evidenciadas pelos indicadores socioeconômicos, educacionais e culturais e, também, já pelos resultados evidenciados em estudos sobre desigualdades em saúde. Na década de 1990, alguns autores, objetivando dar visibilidade aos diferenciais em saúde entre subgrupos, passaram a utilizar o conceito de vulnerabilidade, definido como “conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados ao grau e modo de exposição a uma dada situação e, de modo indissociável, ao maior ou menor acesso a recursos adequados para se proteger das consequências indesejáveis daquela situação” (Lopes, 2003, p.12). De acordo com esse conceito, a exclusão social que é destinada aos negros configura a vulnerabilidade social, e o inadequado atendimento às suas necessidades jurídicas, de saúde, lazer, trabalho e habitação, dentre outras, constitui a vulnerabilidade programática que os expõe à condição de maior risco (Batista, 2003; Mann, 1999). Esse conceito se relaciona com a produção de desigualdades que se refletem nas condições de inserção social, econômica, cultural e ambiental da população e que, por sua vez, determina a falta de equidade que leva os grupos, em desvantagem na sociedade, a sofrerem as consequências negativas de tal inserção. Em que pese a escassez, no país, de estudos mais robustos sobre as diferenças existentes entre segmentos de cor, os indicadores sociais têm apontado pior situação de vida para a população negra, o que contribui para sua maior exposição a sofrer danos e riscos. A esse respeito, cabe destacar que a incorporação dessa questão na agenda política e social, e até mesmo o surgimento de pesquisas voltadas à análise das desigualdades raciais em saúde, se deve à pressão exercida pelos movimentos sociais, nacionais e internacionais. Nesse sentido também merece destaque a pressão exercida pela produção acadêmica internacional sobre essa temática desde a década de 1990. Nos poucos estudos que tratam das desigualdades sociais no Brasil, têm se destacado, prioritariamente, diferenças de classes e regiões (Vianna, 2001; Szwarcwald, 1998; Souza, 1995; Minayo, 1993). Somente recentemente é que alguns autores têm relacionado a inserção social dos negros com os resultados em saúde, evidenciando diferenciais entre grupos segundo a raça/cor. Dentre as investigações brasileiras que abordam diferenciais em saúde segundo a raça/cor, destacam-se, na literatura, os estudos brevemente descritos a seguir: Martins e Tanaka (2000), utilizando dados do Comitê de Mortalidade Materna do Estado do Paraná, evidenciaram grandes diferenças no risco de morrer devido a causas maternas, que desproporcionalmente afetaram mulheres negras e amarelas. Entretanto, a mortalidade materna, não diferiu entre pardas e brancas. Estudo sobre mortalidade infantil e de mulheres adultas, conduzido por Cunha (2001), evidenciou sobremortalidade de filhos menores de um ano de mães negras e de mulheres adultas negras em relação aos de brancas, mesmo quando foram controlados condicionantes sociais e econômicos da mortalidade, como: nível de instrução da mãe, categoria sócio-ocupacional e renda média mensal do chefe da família. Barros, Victora e Horta (2001), utilizando dados longitudinais sobre saúde, evidenciaram piores resultados em saúde para crianças negras no Sul do Brasil, mesmo após ajustamento por condição socioeconômica e outras variáveis (estado civil, idade materna, paridade, planejamento de gravidez, suporte social, fumo, 388
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trabalho durante a gravidez e cuidados pré-natais). O ajustamento por estas variáveis reduziu a magnitude das associações segundo raça, mas não as eliminou. Os resultados também sugeriram que mães negras recebiam assistência à saúde de pior qualidade quando comparadas com mães brancas. Segundo Goodman (2000), no Brasil, as desigualdades raciais são mais comuns no tratamento do que no acesso aos serviços de assistência à saúde. Essa afirmação é corroborada por Chor e Lima (2005) ao evidenciarem que, em 2001, a proporção de óbitos sem assistência médica, entre os indígenas, foi de 9,0%, comparada à de 6,0% entre brancos. Essas autoras fazem referência a um estudo longitudinal realizado no Rio de Janeiro com funcionários de uma universidade onde se observou que, dentre outros aspectos, a assistência médica discriminatória poderia dificultar o diagnóstico e o controle da hipertensão arterial. Essas evidências têm contribuído para que o Ministério da Saúde, no documento “A Saúde da População Negra e o SUS”, em suas proposições, tenha dado um enfoque de equidade considerando tanto as necessidades específicas em Saúde da População Negra, quanto as desigualdades que afetam esse segmento, em termos do acesso aos serviços e assistência prestada a essa população. Por outro lado, não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes por raça/cor, na condição de saúde autoavaliada, em análise conduzida por Dachs (2002), após ajustar por educação e nível de renda, tendo como fonte os dados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar de 1998 (PNAD). No Estado de São Paulo, estudo conduzido por Batista (2003), com base em dados provenientes de declarações de óbito de 1999, com o objetivo de descrever o perfil da mortalidade de homens e mulheres pretos residentes no Estado de São Paulo, com enfoque nas desigualdades de gênero e raça/cor, evidenciou as mais altas taxas brutas de mortalidade para homens e mulheres negras. Kilsztajn et al. (2005) também observaram maior taxa bruta de mortalidade por homicídio para negros na região metropolitana de São Paulo, embora raça não tenha sido significativa quando ajustada pelas variáveis anos de estudo, sexo e idade. Lopes (2005, p.5), no entanto, considera que os estudos sobre desigualdades, disparidades ou iniquidades em saúde devem transpor a barreira dos números, indo além da comparação de dados estatísticos, uma vez que o racismo nem sempre se mostra “de forma explicita e mensurável nas interações sociais”. Cardoso et al. (2005) analisaram a consistência dos Sistemas de Informações sobre Mortalidade (SIM) e sobre Nascidos Vivos (SINASC) como fontes de dados para a avaliação de desigualdades em raça/cor em saúde no Brasil no período de 1999-2002, e observaram significativa redução do número de óbitos e de registros de nascidos vivos, de raça/cor não informada nesse período. Leal, Gama e Cunha (2005) analisaram as desigualdades sociais e no acesso e utilização dos serviços de saúde em relação à cor da pele em amostra representativa de puérperas que demandaram atenção hospitalar ao parto, no município do Rio de Janeiro, de 1999 a 2001, e observaram persistente situação desfavorável das mulheres de pele preta e parda em relação às brancas. Chor e Lima (2005) destacaram que a discriminação racial, projetada nas diferenças socioeconômicas que se acumulam ao longo da vida de sucessivas gerações, encontram-se na origem de grande parte das desigualdades étnico-raciais em saúde. Apesar das pesquisas supracitadas terem utilizado metodologias distintas - o que dificulta o estabelecimento de comparação mais consistente entre elas - é possível observar que os estudos sobre desigualdades raciais em saúde produzidos no Brasil, até aqui, têm: debatido raça/cor enquanto construção social; levantado evidências sobre a falta de equidade em saúde segundo essa variável; avaliado a disponibilidade e qualidade da informação sobre raça/cor em sistemas de registros oficiais; chamado a atenção para os problemas e limitações referentes aos métodos de classificação racial, e contribuído para desmistificar a ideia de “democracia racial” no Brasil.
Considerações finais Neste estudo foram destacados: o papel das desigualdades sociais na produção de diferenciais em saúde segundo segmentos de cor; a emergência do conceito de raça como campo fértil para acessar indicadores de desigualdades, e as possibilidades e limites da utilização da variável raça/cor na área da Saúde Pública. Os estudos mostraram que, a despeito das limitações em seu uso, essa variável pode captar as desigualdades em saúde às quais grupos sociais estão expostos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.383-94, out./dez. 2009
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Os artigos da literatura internacional deram maior ênfase à fundamentação do uso da variável raça/ cor, proposição de metodologias e apontaram a necessidade de superação das limitações destacadas pela literatura, dando a impressão de que o foco nesses aspectos representa uma fase posterior à das denúncias simplesmente. Já os estudos brasileiros deram maior destaque aos diferenciais em saúde segundo raça/cor, pontuando aspectos sobre o uso de métodos classificatórios e avaliando a qualidade e disponibilidade de dados sobre raça/cor, o que poderia traduzir fase mais incipiente, em estudos sobre a temática, em relação aos estudos da literatura internacional. Entretanto, mesmo que ainda incipiente, a produção de pesquisas no Brasil, aliada ao que tem sido demandado pelos movimentos sociais, tem contribuído para a elaboração de políticas públicas com vistas à redução de desigualdades raciais em saúde. Prova disso é que, apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS), em seu planejamento, ter considerado a população brasileira “supostamente homogênea deixando de considerar os diferentes danos e riscos a que estão sujeitos distintamente os subgrupos da população” (Paim, 2003, p.184), algumas medidas têm sido tomadas para que este equívoco seja revisto. Dentre estas, merece destaque o documento produzido pelo Ministério da Saúde (MS) intitulado “A Saúde da População Negra e o SUS”, onde está estabelecido que: as desigualdades étnicoraciais em saúde deverão ocupar um papel mais expressivo na agenda de pesquisas epidemiológicas no país, a fim de preencher importante lacuna no conhecimento das condições de saúde da população; a inclusão do campo raça/cor deverá ser ampliada para outros bancos de dados nacionais, além do SIM e SINASC; pactuação junto ao CNPq para inclusão do recorte raça/cor como requisito metodológico nos editais de pesquisas financiados com recursos do MS, sendo essa ação equitativa definida pelo comprometimento, tanto de gestores e técnicos da saúde como pela participação ativa das organizações da sociedade civil. Os recentes editais para financiamento de pesquisas sobre desigualdades sociais em saúde, com enfoque na saúde da população negra, por instituições de fomento, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é um indício de que começa haver consenso em torno dessa questão, e essa possibilidade já está sendo colocada como pauta na agenda governamental na perspectiva acima anunciada. Pesquisas que considerem as limitações relacionadas aos estudos de desigualdades sociais em saúde segundo raça/cor, no sentido de superá-las, poderão representar uma grande contribuição para a Saúde Pública e para a desconstrução das disparidades em saúde, ao fomentarem a criação de políticas e intervenções específicas. Além disso, esse investimento constitui uma oportunidade para que a produção acadêmica no campo da Saúde Pública se revigore ao ser demandada pela necessidade social, e estimule a realização de outras investigações que contribuam para dar visibilidade à real situação de saúde dos diferentes grupos sociais.
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ARAÚJO, E.M. et al.
artigos
Colaboradores Edna Maria de Araújo concebeu o estudo, planejou, executou e redigiu relatório final; Maria da Conceição Nascimento Costa colaborou na redação e revisão do texto; Vijaya Krishna Hogan colaborou na redação e revisão; Tânia Maria de Araújo participou da organização e redação; Acácia Batista Dias participou da redação e revisão; e Lúcio Otávio Alves Oliveira participou do planejamento e levantamento dos artigos nas bases de dados, revisou e contribuiu na organização das referências bibliográficas. Agradecimentos Aos alunos de Iniciação Científica Cristiane dos Santos Silva, Cicilia Marques Gonçalves, Felipe Souza Nery e Mariana Rabelo Gomes, que contribuíram na formatação do texto e organização das referências bibliográficas. Ao CNPq/DECIT, pelo apoio financeiro recebido (Edital 026/2006) e FAPESB (Processo n.148/2007 PPSUS-BA).
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ARAÚJO, E.M. et al. La utilización de la variable raza/color en Salud Pública: posibilidades y límites. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.383-94, out./dez. 2009. Se propone discutir el uso de la variable raza/color como factor determinante de desigualdades sociales y de exposición social al riesgo de adolecer y de muerte. Se trata de una reflexión sobre la producción actual de la literatura brasileña e internacional del área de Salud Pública/Epidemiología. Se incluyen en el estudio 47 artículos originales y de revisión en el periodo de 1990 a 2005. Se observa que los estudios internacionales tratan de debater y fundamentar el uso de la variable raza/color en el campo de la salud. En Brasil la utilización de esta variable en estudios de desigualdad en salud es todavía incipiente, pero entre las pocas investigaciones realizadas se han evidenciado diferenciales que instigan mayor producción de investigaciones en esta dirección. Investigaciones sobre el papel de la raza/color en la producción de diferenciales en salud podrán producir informaciones capaces de contribuir a la elaboración de políticas destinadas a reducir desigualdades en salud.
Palabras clave: Inequidad social. Salud. Raza/color. Salud Colectiva. Recebido em 20/07/08. Aprovado em 18/05/09.
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O trabalho de enfermeiras e guardas municipais: identidade, gênero e poder
Eduardo Pinto e Silva1 Márcia Regina Cangiani Fabbro2 Roberto Heloani3
PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R. The work of nurses and municipal guards: identity, gender and power. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.395-407, out./dez. 2009. This paper aimed to analyze points in common in the work of women in two professional categories: nurses and municipal guards. This analysis was done by rereading the authors’ previous studies. The methodology was based on comparing the characteristics of the dayto-day routines, such as anxiety, tension, risk to life and fear. Concepts like identity, power, gender and defensive ideology were dealt with. It was seen that work forms a constitutive element of identity, influenced by gender and power relations. These are historically constituted and have relational characteristics. It was argued that professional activities involving situations of anxiety, tension and risk promote the construction of defensive ideologies of denial of fear. This stimulates lifesaving ideals, heroic attitudes and ambivalent feelings. It was concluded that work situations in both of these professions, along with the management and organizational characteristics of the work give rise to psychological distress, stress and identity conflicts.
Keywords: Working women. Identity. Gender. Nurses. Municipal guards.
O objetivo deste artigo é analisar aspectos comuns do trabalho da mulher em duas categorias profissionais: enfermeiras e guardas municipais. A análise realizou-se a partir de uma releitura de pesquisas anteriores dos autores. A metodologia baseou-se na comparação de aspectos do cotidiano de trabalho, tais como: ansiedade, tensão, risco de vida e medo. Foram abordados os conceitos de identidade, poder, gênero e ideologia defensiva. Apontou-se que o trabalho configura-se como elemento constitutivo da identidade, sendo perpassado pelas relações de gênero e de poder, historicamente constituídas e de caráter relacional. Argumentou-se que atividades profissionais que envolvem as situações de ansiedade, tensão e risco favorecem a constituição de ideologias defensivas de negação do medo e mobilizam o ideal de salvar vidas, atitudes heroicas e sentimentos ambivalentes. Concluiu-se que as situações de trabalho em ambas as profissões e as características da gestão e organização do trabalho propiciam sofrimento psíquico, estresse e conflitos identitários.
Palavras-chave: Trabalho feminino. Identidade. Gênero. Enfermeira. Guardas municipais.
1 Departamento de Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Rua Honduras, 296, São Carlos, SP, Brasil. 13.566-760 dups@ig.com.br 2 Departamento de Enfermagem, UFSCAR. 3 Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.
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Introdução O trabalho é um dos fundamentos do ser social e elemento constitutivo da identidade (Lessa, 2002). Trabalho e identidade, conforme nos argumenta Jacques (1995), configuram uma articulação indispensável. A identidade, constituída e metamorfoseada nos processos de socialização e na vida laboral (Ciampa, 1991; 1990; Berger, Luckmann, 1978), é determinada e determina as configurações historicamente constituídas das relações de gênero em nossa sociedade (Scott, 1995). Tais relações, inevitavelmente imbricadas aos dispositivos de poder (Foucault, 1994, 1992), nos exigem a explicitação e a análise crítica das particularidades que assumem o trabalho feminino, assim como as consequências destas em termos de inúmeros aspectos, dentre os quais destacamos: os conflitos identitários, o sofrimento psíquico (Dejours, 2004b, 1992) e o desgaste (Seligmann-Silva, 1994; Laurell, Noriega, 1989). O objetivo deste artigo é analisar aspectos em comum do trabalho da mulher em duas categorias profissionais distintas: enfermeiras e guardas municipais. Inicialmente, discutimos os conceitos de identidade, poder e gênero. Em seguida, apresentamos algumas considerações sobre os aspectos metodológicos relativos a este artigo e às pesquisas realizadas pelos autores, que embasaram a presente discussão (Silva, 2005; Fabbro, 1996). A releitura dos dados destas pesquisas nos possibilitou apresentar novas reflexões que subsidiaram a análise dos aspectos em comum do trabalho da mulher nas referidas categorias profissionais. Apontamos para a existência de sofrimento psíquico, estresse e conflitos identitários no trabalho da mulher, e para o seu caráter social e histórico, perpassado pelas definições normativas de feminilidade e masculinidade e pelas relações de poder a elas subjacentes (Kergoat, 2002; Scott, 1995).
A trama de conceitos: identidade, poder e gênero Para compreendermos a identidade da guarda municipal e da enfermeira e, de tal modo, melhor entendermos quem são esses profissionais, é necessário discutir o conceito de identidade, compreender o que é identidade pessoal e social para, então, refletirmos sobre a identidade profissional. O conceito de identidade é complexo e possui diferentes concepções na Antropologia, Sociologia, Filosofia e Psicologia. Para efeitos do presente artigo, o conceito de identidade será tomado em sua dimensão profissional, concebida como um dos aspectos da identidade do sujeito (Dubar, 2005; Jacques, 1995). Assim, fomos buscar fundamentos teóricos em alguns autores, como Berger e Luckmann (1978), Ciampa (1991, 1990), Dubar (2005) e Habermas (1983), que concebem a identidade pessoal e profissional como resultado de um contínuo processo de socialização, isto é, a identidade se estrutura mediante intersubjetividades. Consideram também que a estrutura psíquica de cada pessoa codetermina a construção da identidade. Porém, não deixam de destacar o meio social como forte fonte de influência em tal construção. Na constituição da identidade, o outro é peça fundamental. No processo de socialização, o indivíduo a ele se identifica, assim como interioriza os submundos das instituições sociais (Berger, Luckmann, 1978). A identidade pode se modificar ao longo da história de vida da pessoa, de acordo com sua interrelação com o meio social. Nesse sentido, não é posta ou estática, mas sim movimento contínuo, metamorfose (Ciampa, 1991, 1990). A formação da identidade profissional se dá a partir da identidade social, ou, ainda, da identificação com a classe e grupo de pertença. À medida que guardas municipais e enfermeiras exercem suas atividades laborais, constituem as suas identidades por meio do “fazer” e “ser” profissional. Contudo, tanto o “fazer” quanto o “ser” são heranças da realidade objetiva, indissociavelmente articulada à realidade subjetiva, por meio dos processos sociais e históricos de interiorização, exteriorização e objetivação que, pela sua natureza dialética, não podem ser pensados como ocorrendo em sequência temporal (Berger, Luckmann, 1978). Portanto, o processo de socialização secundária, no qual se dá a formação tecnicoprofissional, carrega consigo referenciais de identificação outorgados pela população.
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PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R.
artigos
Acrescentamos às considerações de Berger e Luckmann (1978), acerca da dialética ou indissociabilidade entre realidade objetiva e realidade subjetiva, as noções de identidade subjetivamente apropriada e de identidade socialmente atribuída, noções estas que, quando retomadas por Ciampa (1990), nos permitem diferenciar a noção habermesiana de papel social da noção de personagem (Ciampa, 1990). Na perspectiva de Habermas (1983), o papel social relaciona-se ao socialmente instituído, ao mundo sistêmico. Destacaremos aqui somente sua referência à identidade-papel, ou seja, àquela presa aos predeterminismos sociais, às normas e regras que sustentam a reprodução e que impedem a autonomia do sujeito. Ciampa (1990), ao lançar mão da noção de personagem, a relaciona à concretude e singularidade das experiências na biografia do indivíduo, ressaltando-se que tal singularidade não se divorcia da dimensão social e coletiva, mas estabelece com ela uma relação indissociável e de influência mútua e recíproca. Em tal interjogo dialético entre o individual e o social, podem emergir o que poderíamos adjetivar como identidades estereotipadas ou inautênticas. Goffman (1990, 1988), ao abordar os conceitos de estigma e de identidade deteriorada, o faz a partir da análise das instituições totais (manicômios, conventos e prisões) e das relações de poder nelas presentes. A identidade deteriorada é relacionada à coisificação do humano e à estigmatização de determinados estereótipos e atributos. Tal estigmatização confere normalidade aos que ocupam posições de poder nas instituições. Tais considerações sobre o conceito de identidade nos remetem, portanto, à discussão do conceito de poder e de seu aspecto relacional. Na perspectiva de Foucault (1994, 1992), o poder também se relaciona à noção de movimento. O poder circula, se inscreve nos discursos, nas relações sociais, no cotidiano, e não somente na dimensão institucional (Estado, escolas, hospitais, polícia). Sua grande contribuição, que avança em relação ao marxismo, é em relação ao micropoder e à superação da dicotomia dominantes-dominados. Ademais, Foucault relaciona poder e saber, de modo a evidenciar o discurso científico como dispositivo de poder. A perspectiva dos estudos sobre gênero também contribui para a discussão sobre o poder, visto que propõe a compreensão do masculino e do feminino tomando como ponto de referência a construção social e cultural dos papéis desempenhados por homens e mulheres, assim como denuncia a desigualdade de gênero decorrente das diferenças sexuais sem, no entanto, cair no reducionismo da dicotomia dominantes-dominados, sobretudo nos trabalhos de perspectiva histórica e relacional (Kergoat, 2002; Scott, 1995). Por fim, consideramos que a questão da identidade profissional nos remete não somente aos conceitos acima referidos, mas também aos pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2004a, 2004b, 1992). Em tal perspectiva, o trabalho inclui as dimensões do prazer e do sofrimento e pode se caracterizar como patogênico, relacionado a conflitos identitários que rompem o equilíbrio psicossomático, ou, ainda, sublimatório, estruturante da identidade profissional e pessoal (Dejours, 2004b). Segundo tal perspectiva, os trabalhadores, em face dos modos de gestão e organização do trabalho, desenvolvem estratégias defensivas. Estas podem configurar uma adaptação estereotipada e/ ou patogênica às adversidades no trabalho ou um anteparo aos processos de sofrimento psíquico e/ou adoecimento propriamente dito.
Aspectos metodológicos A análise do trabalho das enfermeiras e guardas municipais realizadas neste artigo é resultado de uma releitura, respectivamente, das pesquisas de dissertação de mestrado de Fabbro (1996) e de doutorado de Silva (2005), a partir dos autores supracitados e de trabalhos em coautoria com Heloani (Silva, Heloani, 2006; Fabbro, Heloani, 2004). A pesquisa de Fabbro (1996) se constituiu em um estudo de caso realizado em hospital-escola de grande porte. Foram realizadas 25 entrevistas em profundidade com vários profissionais (diretora e supervisora do Centro Obstétrico, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, diretor clínico e médicos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.395-407, out./dez. 2009
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residentes) com o objetivo de investigar o processo de formação da identidade da enfermeira no contexto hospitalar com base nas relações de trabalho com a equipe de enfermagem4 e médica. Os dados das entrevistas foram categorizados e analisados vertical e horizontalmente de acordo com os pressupostos da análise de conteúdo (Bardin, 1977) e da pesquisa qualitativa (Minayo, 1996). A pesquisa de Silva (2005) abordou o trabalho dos guardas municipais a partir das relações entre gestão organizacional e estresse. Foram aplicados 238 questionários sobre a saúde, trabalho e vida familiar em um total de 26 equipes, todas submetidas a entrevistas grupais semiestruturadas; 42 entrevistas individuais semiabertas foram realizadas com guardas municipais identificados como estressados. A identificação do estresse e de suas fases (alarme, resistência e exaustão) deu-se por intermédio do Inventário de Sintomas de Estresse (Lipp, Guevara, 1994). A categorização e análise vertical e horizontal das entrevistas também seguiram os pressupostos da análise de conteúdo (Bardin, 1977) e da pesquisa qualitativa (Minayo, 1996). Verificou-se um total de 31,93% guardas municipais estressados. Nas equipes nas quais o contingente feminino era de aproximadamente 100% (equipes administrativas e equipes do Comando Operacional ou telefonia), havia, respectivamente, 71,42% e 77,77% de sujeitos estressados, porcentagem esta distinta das verificadas nas equipes de apoio5 (18,75%), integralmente compostas por trabalhadores homens (Silva, 2005). Ambas as atividades profissionais, comumente exercidas em turnos alternados, são passíveis de engendrar adoecimento, desgaste (fadiga, estresse, tensão) e/ou sofrimento psíquico. Ademais, o cotidiano de trabalho é marcado pelo enfrentamento de situações ansiógenas e angustiantes, que envolvem a questão da vida e da morte, de modo que se constituem como atividades penosas e insalubres que implicam conflitos e tensões fundamentais da vida humana e tendem a repercutir negativamente na saúde destas trabalhadoras. Outro aspecto a salientar é que tais situações, geradoras de sentimentos de ambivalência, envolvem atividades de repressão/controle e de proteção/cuidado. Tendo em vista subsidiar a abordagem dos aspectos comuns do trabalho de enfermeiras e guardas municipais, apresentaremos, a seguir, algumas breves reflexões sobre alguns pontos de análise originalmente considerados nas mencionadas pesquisas.
A instituição hospitalar e o poder-saber: relações de trabalho da enfermeira com a equipe de enfermagem e médica No seu cotidiano de trabalho, a enfermeira é inscrita nas redes da submissão e da cultura hospitalar (Moreira, 1999) e tende a assumir o que conceituamos como a identidade-papel (Habermas, 1983), uma vez que, na sua relação com o podersaber médico (Foucault, 1992), tende a reproduzir estereótipos do gênero feminino e atitudes de submissão ou de dedicação máxima à imagem de supermulher, personagem-herói que se responsabiliza por todos os problemas. Porém, contraditoriamente, rotula-se de subumana, justamente por conviver com a submissão frente à equipe médica e à própria instituição (Fabbro, 1996). Assim, permanecem resquícios no imaginário sociocultural e institucional de que a enfermeira seja meramente uma auxiliar do médico e, tal como consideram Gastaldo e Meyer (1989), reforça-se o doméstico como espaço feminino e a enfermagem como extensão do lar. As relações da enfermeira com a equipe de enfermagem nos revelam outras facetas das relações de poder. Existe uma hierarquia hospitalar explícita nos 398
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4 A equipe de enfermagem era composta por: diretora, supervisora, enfermeira, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e atendente de enfermagem (atualmente extinta), hierarquicamente subordinados.
Denominavam-se equipes de apoio aquelas que, mais bem preparadas tecnicamente e compostas por quatro guardas, auxiliavam as viaturas do patrulhamento de rua nas ocorrências de maior complexidade ou risco.
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regimentos do hospital, que determinam os cargos e atribuições de cada membro da equipe, a partir dos quais se estabelecem relações de poder. Contudo, se fazem presentes outras formas de hierarquia entre os trabalhadores de enfermagem, legitimadas pelo saber tácito (antiguidade e experiência prática), que desenham atividades distintas das prescritas. As enfermeiras, quando alvo dos dispositivos de poder e discursos que as impingem tanto à docilidade política em relação aos superiores hierárquicos como à utilidade econômica em prol da organização hospitalar (Foucault, 1994), reproduzem a identidade-papel socialmente atribuída. Por outro lado, experienciam, no jogo das correlações de forças e da circularidade do poder (Foucault, 1992), enfrentamentos desta identidade-papel, assumindo uma atitude política que nos revela que a competência política é tão ou mais importante que a competência técnica para o exercício do seu ofício. Nas relações da enfermeira com a equipe de enfermagem, verificam-se posturas diversas. Por vezes evidenciam-se atitudes autoritárias da primeira com suas subordinadas, nas quais se reproduz o estereótipo masculino de comando presente em suas relações com o poder-saber médico. Em outros momentos, verifica-se o poder-saber tácito das que possuem maior antiguidade e experiência prática, configurando uma relação de poder não correspondente à hierarquia formal da divisão técnica e administrativa do trabalho (ex: casos de conluio entre atendentes mais experientes e médicos, em detrimento do poder formal da enfermeira-chefe). Não obstante, em tais casos, também se corrobora o poder-saber médico, as relações de gênero como elemento que o legitima, a submissão e dedicação na prática laboral. O estudo de Santos e Barreira (2008) analisa a profissionalização da mulher e da enfermeira no Brasil no período da ditadura de 1930 a 1940, e evidencia o caráter histórico das questões de gênero no trabalho. As autoras apontam para uma marcante divisão material e simbólica do mundo social, que se reflete de forma explícita na divisão social do trabalho das enfermeiras e na evocação de atributos femininos às suas atividades profissionais. As autoras consideram que a persistência da divisão dos papéis sexuais se revela no cuidado discreto, silencioso, caridoso e abnegado praticado no cotidiano de trabalho da enfermeira. A dominação masculina manifesta-se por meio de divisões entre os espaços femininos e masculinos, de forma a constituir um estado de dependência simbólica das mulheres, que tendem a ser condicionadas pelas expectativas masculinas e, por extensão, a elas se subordinar e submeter. Tais aspectos, que argumentamos serem atuais, ainda que de formas não tão explícitas, são também abordados em estudos clássicos em gênero, saúde e enfermagem (Lopes, Meyer, Waldow, 1996).
O estresse e a identidade no trabalho das guardas municipais As trabalhadoras das equipes administrativas e de telefonia eram responsáveis pelo trabalho assistencial ou de apoio, no qual tendia a se reproduzir o estereótipo de gênero e a identidade-papel normatizada e preestabelecida. Tal tipo de trabalho era desvalorizado pela cultura organizacional, em contraposição ao “trabalho de rua”, desempenhado predominantemente pelos homens. Este era permeado pelos signos da bravura, força e poder, e construía uma imagem fetichizada e masculinizada da identidade policial (Silva, Heloani, 2006; Silva, 2005). O estresse das trabalhadoras relaciona-se, assim, às relações de poder e de gênero vigentes na realidade socioinstitucional, assim como à dialética entre vida familiar, laboral e social (Silva, 2005). O trabalho policial geralmente acarreta uma perturbação do balanço normal da vida e, consequentemente, da vida familiar. As mulheres policiais, além de sujeitaram-se aos aspectos patogênicos da atividade profissional, ficam encarregadas do trabalho doméstico e do apoio aos problemas familiares, o que intensifica as adversidades psicossociais com as quais se defrontam em seu cotidiano (Silva, 2005; Farmer, 1990).
O trabalho das guardas municipais e das enfermeiras: sofrimento psíquico e ideologias defensivas Dejours (1992) analisa ideologias defensivas de coletivos de trabalhadores de diversas áreas que se estruturam como formas de evitar o sofrimento psíquico ou adoecimento. A ideologia defensiva da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.395-407, out./dez. 2009
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negação do medo é abordada nos casos de trabalhadores da indústria petroquímica, da construção civil e de pilotos de avião de caça. Nas duas primeiras categorias, o trabalho é caracterizado como patogênico. A ideologia defensiva, de natureza estereotipada, não exerce sua função protetora a contento. A negação do medo se estrutura apoiada em estereótipos de gênero, adjetivada por Dejours (1999) como defesa viril, além de serem situações de trabalho cujo domínio técnico ou controle sob a situação de risco (explosões na indústria química e acidentes na construção civil) são muito restritos (Dejours, 1992). Na indústria petroquímica, brincadeiras de criar situações de perigo, jogando óleo no chão para o colega escorregar, funcionam como uma tentativa simbólica de enfrentar os riscos que não são controláveis pelo conhecimento técnico dos engenheiros. Tal defesa, por vezes, evita, temporariamente, o adoecimento. Porém, não evita o sofrimento psíquico, que permanece latente ou oculto em relação ao agir manifesto e que, insidioso e crônico, associa-se à exploração da gestão e organização do trabalho. Esta se utiliza das estratégias defensivas de negação do medo dos trabalhadores e da necessidade autoafirmativa da “virilidade”, força e coragem, como instrumento para incutir a busca “espontânea” ao trabalho árduo, intenso, maximizando a produtividade por meio da exploração do sofrimento, gerando adoecimento ou desequilíbrio psicossomático (Dejours, 1992). No caso da construção civil, a negação implica recusa de uso de equipamentos de segurança, visto como símbolo de fragilidade. Muitos trabalhadores que não aderem à ideologia defensiva desistem do trabalho, quando não são dele praticamente expulsos pela pressão do coletivo (Dejours, 1992). Já o caso do trabalho do piloto de avião de caça, caracterizado como sublimatório, envolve um alto grau de conhecimento técnico do trabalhador e níveis elevados de exigência e avaliação, sendo a negação do medo uma atitude psicológica fundamental para o enfrentamento da tarefa de alto risco, para a qual já está tecnicamente preparado por longo processo de desenvolvimento profissional. Neste caso, a defesa, adaptativa, necessária e útil à tarefa, é mantenedora do equilíbrio psíquico e da autoimagem positiva (Dejours, 1992). As estratégias defensivas de negação do medo são também utilizadas por enfermeiras e guardas municipais, mas não os imunizam do adoecimento e/ou sofrimento psíquico, e podem ser relacionadas aos conflitos identitários e às relações de gênero e de poder, que se constroem no interior da natureza dialética e contraditória do processo histórico e das suas relações sociais e de trabalho. No caso da enfermagem, a natureza da atividade profissional evoca forte senso de responsabilidade (Menzies, 1970). No caso do trabalho hospitalar, há situações de alto risco e de morte de pacientes. O alto grau de responsabilidade, permeado por aspectos de gênero e imagens idealizadas da profissão, redundavam na configuração de um trabalho patogênico (Fabbro, 1996). No trabalho hospitalar, verifica-se um considerável risco de a enfermeira ser invadida por medo e ansiedade em face das situações de vida e morte com que se depara e que lhe fogem ao controle (Menzies, 1970). Elas vivenciam um considerável custo pessoal, de saúde e de desgaste de energia somatopsíquica. A responsabilidade e o ideal de salvar vidas, ao invés de agirem no sentido da sublimação (Dejours, 2004a, 2004b), convertem-se em um cotidiano marcado por pressões e cobranças, externas (instituição, equipe de enfermagem e médica, e pacientes) e internas, ambas permeadas pelas relações de poder-saber, identidades de papéis e relações de gênero (Fabbro, 1996). As cobranças e pressões internas não são meramente subjetivas ou pertencentes a uma dimensão psíquica isolada do todo social e organizacional. Compreendemos que, no cotidiano social e laboral, há uma inevitável dialética entre o objetivo e subjetivo, o que significa que há uma relação de influência mútua e recíproca entre um determinado perfil exigido para a prática profissional - perfil socialmente construído e moldado tanto na formação como em tal prática - e a sua introjeção. Neste sentido, o perfil (pessoal e profissional; individual e coletivo), marcadamente revestido pelo ideal/idealização de salvar/cuidar vidas, é fruto da referida dialética, do jogo de influências entre identidade socialmente atribuída e subjetivamente apropriada (Berger, Luckmann, 1978). No trabalho da enfermeira, por questões objetivas e subjetivas que se articulam de forma contraditória e dialética, a ansiedade e medo não podem se manifestar. O medo suscitado na atividade profissional não encontra escape de expressão e de elaboração psíquica e grupal. Assim, produzem-se estratégias defensivas coletivas de negação do medo que, embora eficazes num primeiro momento, são 400
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fugazes, não sustentáveis a longo prazo. O conflito psíquico não eliminado pela negação do medo persiste de forma latente e tende a eclodir nas relações de trabalho em forma de agressividade. Fabbro (1996) aponta que algumas situações de emergência geram angústias excessivas e alto nível de estresse em todos os profissionais. Verifica-se, por vezes, certo imobilismo de alguns (ex: auxiliar de enfermagem ou a própria enfermeira) frente às demandas constantes e agitadas da equipe médica nesta situação. Tal imobilismo tende a ser visto como incompetência técnica e/ou inadaptação pessoal à profissão, mobilizando agressões verbais e conflitos interprofissionais, de modo a intensificar a tensão da situação. Em outras palavras, medos coletivos e individuais, incitados por situações reais acopladas à dimensão do imaginário, geram ansiedade; produzem-se estratégias defensivas ansiogênicas que retroalimentam tensões e receios que se inscrevem nos indivíduos, grupos e clima organizacional. Conclui-se que a estratégia defensiva, efêmera e contraproducente, não se sustenta e adquire uma natureza patogênica. O conflito psíquico converte-se em conflitos interpessoais, que se tornam explícitos nas relações de trabalho. O medo e a ansiedade que são negados (individual e coletivamente) nas situações-limite ressurgem nas relações de trabalho por meio do mecanismo defensivo da projeção, suscitando agressividade entre os pares. Trata-se de uma dinâmica psíquica abordada pela Psicanálise, na qual o que é expulso do ego e projetado no outro acaba por se configurar como objeto ameaçador ao próprio ego, produzindo a ansiedade persecutória e consequente hostilidade (Freud, 1987). Tal dinâmica se dá no contexto organizacional e do trabalho nos quais as questões de gênero e de poder, antes referidas, são fundamentais para mobilizar o processo defensivo, ou seja, este não é fruto de uma psicodinâmica ou subjetividade particular, mas de uma unidade dialética e contraditória, a unidade sujeito-objeto. Assim, as enfermeiras tendem a se queixar de que as auxiliares sejam incompetentes e/ou irresponsáveis. A diretoria de enfermagem se queixa de que o grupo de enfermeiras não assume com responsabilidade a coordenação do grupo, culpabilizando-as por rotinas não cumpridas. As enfermeiras reagem e queixam-se de que a direção impõe uma disciplina rígida, senão repressiva, e as trata como se não tivessem senso de responsabilidade. Daí resulta a cobrança mútua e excessiva. As cobranças perdem sentido ou força simbólica (Fabbro, 1996). Deixam de ser indicativas de uma eventualidade e passam a representar a normalização da vigilância e da punição (Foucault, 1994), na qual o habitual passa a ser a cobrança sem sentido definido, sem meta, simplesmente cobrar por cobrar. Assim, a pressão inerente das situações-limite (risco de vida de pacientes) associa-se a um contexto de cobranças e pressões interpessoais e engendra competitividade na busca do aval do poder-saber médico simbólica e hegemonicamente masculino. Portanto, enfermeiras e auxiliares desgastam-se e tornam-se ambas vulneráveis ao estresse e ao desequilíbrio psicossomático. Desse modo, analogamente ao caso dos trabalhadores da construção civil, analisados por Dejours (1992), a ideologia defensiva, no caso das enfermeiras, induz à atitude de participação de todos na mesma. Aquele que não contribui ou que não partilha do conteúdo desta ideologia defensiva ocupacional é, cedo ou tarde, excluído, seja por meio de demissão, seja por intermédio de um sistema que “marca” o funcionário. Tal aspecto reengendra a ênfase na coletivização das responsabilidades, de modo a formar ciclos viciosos, caracterizados por estratégias defensivas estereotipadas, formas rígidas de gestão e organização do trabalho, e processos de sofrimento psíquico e de adoecimento (Fabbro, Heloani, 2004; Dejours, 1992). Vale ainda mencionar que a questão da coletivização das responsabilidades, apoiada no discurso de colaboração com o serviço, por nós compreendida como dispositivo de poder da instituição, induz as trabalhadoras a se submeterem às horas-extras e à intensificação do ritmo de trabalho. Tal fato é agravado por uma condição concreta do trabalho: o atendimento de alta demanda com número reduzido de funcionários. Tal colaboração induzida, segundo Meyer (1995), traduz-se numa disponibilidade integral para assumir atividades, ainda que a contragosto, e forjadas pelo poder médico-institucional. No trabalho dos guardas municipais, a negação do medo e a ideologia defensiva também se manifestam, apresentando caminhos e particularidades específicas no caso de serem trabalhadores ou trabalhadoras. Cavassani (1998) considera que a fragilidade psíquica não tem espaço na organização policial, sendo interpretada como “loucura”. Do nosso ponto de vista, dadas as condições socioculturais da construção 401
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do masculino e do feminino, as mulheres policiais são alvos privilegiados de tais interpretações estigmatizantes. Sampaio e Carneiro (1997, p.313) também identificaram, em estudo clínico de uma policial militar, que toda e qualquer fragilidade era negada ou indesejada pela ideologia organizacional. Esta valorizava “o ser forte”, assim como o “auto-controle, esperteza e prontidão defensiva”. Cruz (1989) aborda a frágil identidade heroica do policial militar. A atividade de trabalho que possibilita a criação do imaginário do herói é a relacionada ao trabalho de rua, executado predominantemente pelos trabalhadores. Observa-se, na valorização da identidade heroica, uma negação da fragilidade humana, ou seja, os trabalhadores tendem a desenvolver uma ideologia profissional defensiva (Dejours, 1992), de natureza estereotipada, que tende a colocar a policial trabalhadora, ou ainda, a feminilidade, numa condição de inferioridade, de forma a reproduzir as referidas definições normativas, historicamente constituídas, acerca do feminino e do masculino (Scott, 1995). As metáforas “caçador” e “caça”, presentes no discurso dos guardas municipais em referência ao “trabalho de rua” e ao embate policial-infrator, indicam-nos que a posição ativa (“caçador”), que no imaginário sociocultural apresentava-se como essencialmente masculina, era altamente valorizada; ao passo que a posição passiva (“caça”), vista como essencialmente feminina, era temida e rejeitada, além de configurar-se como incompatível à identidade profissional desejada. Em tal posição, o trabalho era vivenciado como fator de estresse ou desgaste (Silva, 2005). As posições ativas e passivas diante do medo e/ou ansiedade na atividade de trabalho redundam em configurações opostas, a saber: trabalho patogênico e trabalho sublimatório. Nas equipes de apoio, predominantemente masculinas, a ansiedade era “administrada” de forma ativa pelo trabalhador, de modo que o trabalho tendia a ser sublimatório. Já no trabalho das equipes de telefonia, predominantemente femininas, a ansiedade não podia ser ativamente “administrada”, pois apenas solicitavam aos “parceiros” do “trabalho de rua” que atendessem às ocorrências policiais e ficavam sem saber o que de fato ocorria, configurando um trabalho patogênico (Silva, 2005). Este trabalho era menos valorizado, rotinizado e mais controlado pela chefia, e envolvia imprevisibilidade e sentimento de impotência que gerava significativa ansiedade. Já nas equipes de apoio, a imprevisibilidade era experienciada com a valoração positiva de atividade não rotinizada, além de ser condizente com uma identidade profissional libidinalmente investida e valorizada pela cultura organizacional e pelos próprios trabalhadores. Assim, no grupo feminino, as situações de risco e imprevisibilidade configuravam-se como prejudiciais à saúde e, no masculino, eram vivenciadas positivamente ou como fonte de orgulho profissional. As atividades das trabalhadoras não geravam a sensação de “autenticidade” do trabalho policial e dissociavam-se dos símbolos de força e coragem, valorizados pelos dispositivos de poder (Foucault, 1992) presentes nos discursos acerca das relações de gênero, quer seja no nível micro, quer seja no plano mais amplo da ideologia e cultura organizacionais (Silva, 2005). As trabalhadoras das equipes de patrulhamento eram geralmente tratadas com desdém e desrespeito por parte da população, dos guardas homens, dos responsáveis pela gestão e infratores (Silva, 2005). Não obstante, verificamos um outro lado desta questão no caso de uma das entrevistadas, considerada “operacional” e valorizada pelos parceiros homens pelas suas habilidades relacionadas aos símbolos de força e bravura. Por ser mulher e ser vista como menos capaz e frágil, sua ação era geralmente inesperada e, não raramente, mais eficaz, em função do que se denominava “fator surpresa” (Silva, 2005, p.276), o que favorecia o sucesso na abordagem das ocorrências policiais. Esta situação exemplifica o caráter relacional da construção social de gênero (Scott, 1995), assim como a noção foucaultiana de circularidade do poder (Foucault, 1992), ambos anteriormente referidos. Neste caso, o fato de ser mulher não teve repercussões subjetivas ou de autoimagem negativas, ou, ainda, não impediu que ela exercesse o trabalho com competência. Este exemplo demonstra que as questões de poder e de gênero não são totalmente intransponíveis. Por outro lado, é importante salientar que o sucesso de suas ações, muitas vezes, era favorecido pelo fato de infratores a verem sob uma perspectiva sexista, de modo que geralmente não esperavam tamanha agilidade e domínio técnico provindos de uma mulher. Conforme exposto, podemos afirmar que a ideologia defensiva no trabalho dos guardas é ora adaptativa, de modo a possibilitar o enfrentamento ativo do medo/risco, a realização da tarefa e a 402
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constituição de uma identidade profissional condizente às aspirações dos trabalhadores; ora é estereotipada e/ou patogênica, quando o medo/risco é meramente negado, dificultando a ação profissional e reproduzindo a identidade-mito (Ciampa, 1990), baseada na frágil e ilusória identidade heroica do policial (Cruz, 1989). Podemos afirmar, assim, que as questões de poder e de gênero na instituição policial acarretam uma divisão sexual do trabalho, uma vez que as trabalhadoras, que tendem a não aderir à ideologia defensiva, são conduzidas ao trabalho assistencial, mais próximo à da condição estereotipada de trabalho feminino e, portanto, desvalorizado social e institucionalmente (Maia, 1993). Na pesquisa também se evidenciou que o papel do cuidado, da dedicação e do respaldo afetivo na família era predominantemente exercido pelas trabalhadoras. Portanto, verificou-se que a condição feminina no trabalho policial, dada a realidade institucional e sociocultural e os papéis sociais e familiares predeterminados (cuidadora do lar, dos problemas de saúde familiar, dos problemas escolares e pessoais dos filhos etc), era fator significativamente favorável ao desgaste ou estresse, de modo que as adversidades vivenciadas no trabalho e na família tendiam a colocar as mulheres em condição de maior vulnerabilidade ao estresse (Silva, 2005).
Considerações finais A análise do trabalho de enfermeiras e guardas revela pontos em comum e algumas peculiaridades ou distinções. Os trabalhos hospitalar e policial apresentam-se como atividades propícias ao sofrimento psíquico, estresse e conflitos identitários, sendo as trabalhadoras alvos privilegiados, dadas as relações entre identidade, poder e gênero na realidade socioinstitucional. As atividades profissionais envolvem situações de risco e favorecem a constituição de ideologias defensivas de negação do medo. Elas também mobilizam o ideal de salvar vidas, atitudes heroicas e sentimentos de ambivalência. Em ambos os casos, se fazem presentes, no trabalho, a proteção e o cuidado ao lado da repressão e do controle. As personagens heroicas identificadas nas análises de Fabbro (1996) e Silva (2005) revelaram estratégias defensivas de negação do medo e formas específicas de lidar com a ansiedade. Identificouse que as trabalhadoras apresentam necessidade de se mostrarem fortes e tentativas pouco eficazes de contraporem-se ao sofrimento psíquico, às normatizações sociais e às relações de gênero e de poder (Scott, 1995; Foucault, 1992). A instituição tende a utilizar-se da imagem heroica interiorizada, quer seja para uma maior intensificação e exploração do trabalho (hospital), quer seja para possibilitar maior eficácia na realização do trabalho de rua (policiais homens), o que, no entanto, nem sempre ocorre, dado que, em algumas situações reais, tal imagem não se sustenta, até mesmo por não ser respaldada por uma condição de formação técnica de excelência, tal como no caso dos pilotos de aviação de caça analisados por Dejours (1992). No caso da maioria das policiais, embora haja um investimento (consciente ou inconsciente) na imagem heroica, elas geralmente não enfrentam de fato ou ativamente as situações de risco/medo, de forma que tal imagem não as poupa do sofrimento no trabalho; pelo contrário, tende a intensificá-lo, produzindo a condição de estresse. No trabalho da enfermagem, a ansiedade, intrínseca à atividade de cuidado da doença/doente e intensificada pela própria organização do trabalho, dilui-se coletivamente, sendo socializada pela equipe. Porém, esta socialização apresenta-se como patogênica. A equipe é induzida ao trabalho intenso, à fadiga e aos conflitos interpessoais. No caso da enfermeira que assume a personagem responsável-portudo, o trabalho se intensifica, implicando não somente a fadiga, mas também os conflitos, uma vez que ela apresenta dificuldades de delegar tarefas e, na medida em que interioriza tal personagem de forma radical, apresenta dificuldade de valorizar o trabalho do outro que, do ponto de vista subjetivo, se apresenta como incompleto, senão ineficaz. No trabalho policial, verificamos que a ansiedade se dá em níveis e condições distintas, conforme o posto de trabalho, sendo mais intensa e patogênica para aqueles que lidam com ela de forma passiva (telefonia) do que para os que lidam de forma mais ativa (trabalho de rua). As mulheres, em função da divisão sexual do trabalho, geralmente ocupavam os postos de trabalho nos quais predominavam formas passivas de lidar com a ansiedade. No caso específico da policial “operacional”, que exercia o trabalho COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.395-407, out./dez. 2009
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de rua, a imagem heroica, ao contrário do que ocorria com a maioria das trabalhadoras (telefonia), era elemento que tendia a auxiliar a realização da tarefa, ainda que, tal como no caso dos trabalhadores, a assunção de tal imagem não fosse garantia de sucesso na ocorrência policial. A análise efetuada por Fabbro (1996) permitiu apontar que o conflito identitário da enfermeira relaciona-se a uma dificuldade em assegurar sua ação singular, o saber que lhe é próprio, o seu espaço no exercício profissional, sendo as relações de gênero e de poder um fator de peso na construção social da figura da enfermeira submissa e despolitizada. Não obstante, Fabbro (1996) ressalva que a enfermeira, apesar de ainda dependente da identidadepapel, está insatisfeita com o que vive. Tal insatisfação pode ser compreendida como um esboço de uma consciência. Fabbro (1996) argumenta que buscar o entendimento dessa consciência é, antes de tudo, revelar os vários níveis de submissão/opressão aos quais está sujeita. A recusa de rótulos e estereótipos, como “empregadinha-de-médico”, “toca-serviço” e “responsável-por-tudo”, conduz a enfermeira a perceber que não basta a competência técnica e que a competência política é tão ou mais importante para o exercício de seu ofício. Esta competência se manifesta em pequenas, discretas e transitórias formas de resistência. A análise de Silva (2005) revelou que os conflitos identitários e nas relações de trabalho e familiares são vividos de forma mais intensa pelas trabalhadoras e, consequentemente, estas tendem a ser mais vulneráveis ao estresse em comparação aos trabalhadores. O lugar institucional da atividade laboral é marcado pelo estigma da inferioridade e pela desvalorização. Com base nas pesquisas acima consideradas e dos pontos de articulação entre as mesmas na temática identidade, poder e gênero, é possível afirmar que a gestão e organização do trabalho e as adversidades socioculturais e organizacionais, perpassadas tanto pelas relações de gênero conservadoras como pelos dispositivos de poder, configuram-se como determinantes fundamentais do sofrimento, adoecimento e conflitos identitários das trabalhadoras. Concluímos que o desgaste da realidade socioinstitucional (Silva, Heloani, 2006; Seligmann-Silva, 1994; Laurell, Noriega, 1989), o bloqueio da relação homem-organização do trabalho (Dejours, 1992), a desumanização das relações de trabalho e os processos de adoecimento e/ou sofrimento psíquico, constituem-se como aspectos a serem corajosamente enfrentados, tendo em vista os objetivos de um trabalho mais saudável, livre, criativo e autônomo. Tal desafio, posto em relação ao mundo do trabalho, à vida privada e às relações neles constituídas, não pode prescindir da análise das estratégias defensivas dos trabalhadores, assim como da análise crítica acerca das relações de gênero e da compreensão destas enquanto históricas, relacionais e socialmente construídas (Kergoat, 2002; Scott, 1995). Esperamos que, por meio das reflexões presentes neste artigo, tenhamos contribuído para o adensamento da dimensão teórica acerca das relações entre trabalho e saúde, de forma a propiciar maior diretividade e objetividade às ações práticas em prol da saúde das trabalhadoras, em particular, e dos trabalhadores, de modo geral.
Colaboradores Eduardo Pinto e Silva e Márcia Regina Cangiani Fabbro foram os responsáveis pela elaboração da primeira versão do artigo, revisada, antes do envio, com base em comentários e sugestões de Roberto Heloani. A segunda versão foi elaborada por Eduardo Pinto e Silva e Márcia Regina Cangiani Fabbro, após as sugestões dos pareceristas e novos comentários de Roberto Heloani.
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PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R.
PINTO E SILVA, E.; FABBRO, M.R.C.; HELOANI, R. El trabajo de enfermeras y guardias municipales: identidad, género y poder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.395-407, out./dez. 2009. El objetivo de este artículo es el de analizar aspectos comunes del trabajo de la mujer en dos categorias profesionales: enfermeras y guardias municipales. El análisis se ha realizado a partir de releer investigaciones anteriores de los autores. Da metodologia se ha basado en la compatación de aspectos del trabajo cotidiano tales como ansiedad, tensión, riesgo de vida y miedo. Se abordan los conceptos de identidad, poder, género e ideologia defensiva. Queda resaltado que el trabajo se configura como elemento constitutivo de la identidad, siendo sobrepasado por las relaciones de género y de poder históricamente constituidas y de carácter relacional. Se argumenta que las actividades profesionales que integran las situaciones de ansiedad, tensión y riesgo favorecen la constitución de ideologias defensivas de negación del miedo y movilizan el ideal de salvar vidas, actitudes heróicas y sentimientos ambivalentes. Se concluye que las situaciones de trabajo en ambas profesiones y las característioas de la gestión y organización del trabajo propician sufrimiento psíquico, estrés y conflictos de identidad.
Palabras clave: Trabajo de mujeres. Identidad. Género. Enfermera. Guardias municipales. Recebido em 22/08/08. Aprovado em 22/04/09.
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Processos reflexivos e competências envolvidos na prática docente universitária: um estudo de caso
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Caetano da Costa1 Lisete Diniz Ribas Casagrande2 Julieta Ueta3
COSTA, C.; CASAGRANDE, L.D.R.; UETA, J. Reflective processes and competencies involved in the teaching practice at university: a case study. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.409-22, out./dez. 2009. Founded on practical rationality, this qualitative case study aimed to explore the teaching practice at university, focusing on teacher’s reflection and competencies. To this end, the study described, analyzed, and interpreted the teaching practices which, in the interaction with students of a course in the pharmacy program, brought about dilemma situations and opportunities to learn problem-solving and decisionmaking skills. Throughout the study, students were encouraged to use knowledge-in-action, reflection-inaction, and reflection-on-action, processes that were also experienced by the teacher. Analysis of the records from classroom observation and of the interviews with students and the teacher showed the fundamental role of such reflective processes, which led to the attainment of the intended objectives. In this sense, the teacher’s reflective practice was essential to support the execution of each curricular component of the course.
Com base na racionalidade prática, este estudo de caso qualitativo objetivou explorar a prática docente universitária, focalizando a reflexão e as competências do professor. Para tanto, foram descritas, analisadas e interpretadas as práticas que, na interação com os alunos em uma disciplina do curso de farmácia, criassem situações dilemáticas e oportunidades de aprendizagem das habilidades de solução de problemas e tomada de decisão. Ao longo do estudo, os alunos foram estimulados a utilizar os processos de conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação e reflexão-sobre-a-ação, também vivenciados pelo professor. A análise dos registros de observação em sala de aula e de entrevistas com alunos e o professor evidenciou a importância desses processos reflexivos, que nortearam a consecução dos objetivos pretendidos. Nesse sentido, a reflexão docente sobre a própria prática foi fundamental para subsidiar a aplicação de cada componente curricular da disciplina.
Keywords: Higher education. Faculty. Professional competence. Case studies.
Palavras-chave: Educação superior. Docentes. Competência profissional. Estudos de casos.
* Elaborado com base em Costa (2004), com apoio científico e financeiro da Fapesp, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e sem conflitos de interesse. 1 Curso de Medicina, Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp). Avenida Costábile Romano, 2201, Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14.096-900 caedacosta@yahoo.com.br 2 Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. 3 Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
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Introdução O presente trabalho descreve a essência da pesquisa desenvolvida no doutorado de um dos autores (Costa, 2004). Como o referencial teórico utilizado é o da prática docente reflexiva, o texto apresenta, inicialmente, recortes teóricos para ilustrar os conceitos trabalhados e contextualizar o estudo, o qual se desenvolve no cenário do Ensino Superior. Dessa forma, o texto começa com um cotejamento entre a racionalidade técnica e a racionalidade prática, e uma caracterização da prática reflexiva. Assim, os processos reflexivos são apresentados seguidos de uma breve descrição do cenário pós-moderno e suas características, que trazem novas atribuições e responsabilidades para os professores. Ao final da introdução, há uma caracterização das práticas reflexivas e das competências docentes. Como resultado de um trabalho de pesquisa, após os recortes introdutórios, o texto apresenta: os objetivos, a metodologia, os resultados e sua discussão, e as considerações finais.
Educação superior: fundamentos epistemológicos A educação moderna de nível superior é sustentada por uma raiz positivista, na forma epistemológica denominada racionalidade técnica (Schön, 1983). Essa visão constitui a base da cultura tradicional dos professores universitários. Deste ponto de vista, há uma nítida separação entre teoria e prática: somente após o contato com as verdades cientificamente comprovadas (o chamado núcleo básico) é que os alunos estarão aptos a aplicar o conhecimento adquirido (Pedroso, Cunha, 2008). Ao investigar a relação entre os tipos de conhecimento respeitados na universidade e os tipos de competência valorizados na prática profissional, Schön (1983) demonstrou que a instituição universitária está comprometida com a racionalidade técnica, ao passo que o exercício profissional requeria uma nova epistemologia da prática, a racionalidade prática, baseada na ação e na reflexão conjuntas, em um processo denominado prática reflexiva (Kinsella, 2006). A racionalidade prática propõe um aprendizado que não desvincula a razão (teoria/conhecimento) da ação (prática), evidenciando a importância da reflexão na educação. Dessa forma, além do conhecimento teórico, existe também um conhecimento que se origina na própria prática, e esse conhecimento pode ser útil para se reinventar saberes, criar novas técnicas e reavaliar a prática (Alarcão, 1996). Portanto, há um valor de caráter construtivista na prática, que pode ser usado para modificar ou melhorar regras e processos avalizados pela ciência (racionalidade técnica).
Processos reflexivos De acordo com Schön (1987, 1983), a prática reflexiva está centrada em três processos: o conhecimento-na-ação, a reflexão-na-ação e a reflexão-sobre-a-ação. O conhecimento-na-ação é um tipo de conhecimento que não é derivado de nenhuma operação intelectual, encontra-se embutido na própria ação. A reflexão-na-ação é desencadeada em situação de dúvida, quando se enfrentam situações inesperadas. Posteriormente, uma vez finalizada a ação, pode-se pensar sobre o que ocorreu e como tal ação foi realizada, um processo avaliatório denominado reflexão-sobre-a-ação. Para Schön, pois, o foco é a prática profissional, ou seja, o modo como os profissionais atuam em situações reais, e as formas como podem ser auxiliados no desenvolvimento de seus processos reflexivos, pela ação de um educador - a tutoria (coaching). No contexto do presente trabalho, o sistema de tutoria utilizado por Schön para o estudo daqueles processos (em geral, um tutor por aluno) foi adaptado para a realidade brasileira - o professor universitário frente a uma sala de aula com dezenas de alunos (Faria, 2003; Cunha et al., 2001; Mezzaroba, 2000; Rozendo et al., 1999). Portanto, o foco é o das práticas de um professor universitário, e o modo como os seus processos reflexivos influem na estrutura curricular e no ensino em sala de aula.
Educação superior: cenário pós-moderno Nas quatro últimas décadas do século XX, a sociedade moderna ou industrial testemunhou o 410
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aparecimento gradual da chamada sociedade pós-industrial, pós-moderna ou sociedade da informação. A disponibilidade do conhecimento pela rede mundial (Abreu, Nicolaci-da-Costa, 2003), aliada à velocidade de renovação das informações na era pós-moderna, vêm desafiando a universalidade do conhecimento, postulada pelos ideais positivistas. Assim, os problemas reais apresentam-se cada vez mais com características novas, interativas, incertas, polêmicas e polissêmicas, inclusive na área de farmácia (Chaud, Gremião, Freitas, 2004), focalizada neste estudo. Tal quadro contrasta com a estrutura curricular vigente na universidade (Lima, Castro, Carvalho, 2000), na medida em que esta compartimentaliza e cristaliza o saber em disciplinas. Portanto, as situações que serão enfrentadas pelos estudantes tornam imperativo o aprendizado de como adaptar-se a novos contextos (Ketzer, 2007; Tavares, Alarcão, 2001) e, em consequência, de como estruturar e contextualizar situações problemáticas. Dessa forma, há maior possibilidade de esclarecer os objetivos a serem atingidos e selecionar, dentre a diversidade de meios, os mais adequados para se cumprir tais objetivos.
Novos papéis para o professor Diante do exposto, cabe ao professor não mais apenas transferir conteúdos, mas, sobretudo, habilitar seus alunos ao uso e articulação do conhecimento, selecionando-o e aplicando-o corretamente na solução do problema proposto. Saber resolver problemas é apenas uma das características essenciais para o ingresso no atual mercado de trabalho, que também exige pessoas que saibam se comunicar, tomar decisões e trabalhar em grupo (Petit, Foriers, Rombaut, 2008a, 2008b). Para que os alunos atinjam tais objetivos que requerem o desenvolvimento de capacidades complexas, como solucionar problemas e atuar em cooperação com outras pessoas, o professor deve desenvolver competências que lhe permitam planejar e aplicar com sucesso os componentes curriculares. Por exemplo, definir com clareza os seus objetivos, os conteúdos a serem explorados e quais serão excluídos, as suas estratégias metodológicas e avaliatórias (Zabalza, 2004; Zabala, 1998). Para tanto, é fundamental manter atitudes e hábitos de reflexão sobre a prática em sala de aula.
Prática docente reflexiva e competências docentes Uma das vertentes da educação pós-moderna é a educação reflexiva (Sockman, Sharma, 2008; Cronin, Connolly, 2007; Gomes, Casagrande, 2002; Pereira, 1998), que valoriza as práticas docentes estimuladoras da reflexão do próprio professor e de seus alunos. A produção incessante de novas informações requer que professor e aluno desenvolvam uma consciência crítica (Freire, 1997), aprendam a pensar, a refletir sobre o que aprendem e sobre o que fazem na prática. Os processos reflexivos de conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação e reflexão-sobre-a-ação manifestam-se nos professores (ou tutores, como são chamados por Schön, 1983), e nos alunos, e podem ser estimulados por meio do enfrentamento de situações dilemáticas. Na visão de Zabalza (1994, p.61), dilema é “todo o conjunto de situações bipolares ou multipolares que se apresentam ao professor no desenrolar da sua atividade profissional”. Bipolares ou multipolares porque, no primeiro caso, um dilema pode apresentarse como duas opções claramente opostas, ou, no segundo caso, como uma gama de alternativas. Portanto, no cotidiano de sala de aula, o dilema apresenta-se, na verdade, como dilemas ou situações dilemáticas, situações concretas caracterizadas pela necessidade de decisões imediatas num contexto imprevisível, como é o da sala de aula. Para realizar um ensino reflexivo, o professor deve ter uma série de conhecimentos e atitudes, como mentalidade aberta, responsabilidade intelectual e entusiasmo (Marcelo García, 1992), além de respeitar os saberes dos alunos, aceitar o novo, rejeitar discriminação de qualquer tipo, ser humilde, tolerante, demonstrar competência profissional e comprometimento (Freire, 1997). Competência é um termo polissêmico, de difícil definição (Lima, 2005; Perrenoud, 2001; Rios, 1999). Contudo, existe um certo consenso entre os autores de que o referido termo envolve a mobilização correta de aspectos cognitivos, afetivos e, às vezes, psicomotores (Perrenoud, 2002). Nesse quadro, Masetto (2003) aponta algumas competências consideradas como específicas para o professor universitário: i) domínio atualizado do saber básico (por meio da pesquisa) e experiência de campo em COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.409-22, out./dez. 2009
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sua área de atuação; ii) domínio dos diversos aspectos da área pedagógica; iii) exercício da docência como cidadão e político. As práticas reflexivas constituem pré-requisitos sobre os quais o docente universitário pode desenvolver determinadas competências para (re)pensar os componentes curriculares de uma disciplina, estimulando processos reflexivos nos alunos e nutrindo a disposição para (re)avaliar seus objetivos, os quais norteiam os demais componentes curriculares. Dessa forma, entende-se que a prática reflexiva evita a acomodação, e estimula o frequente aperfeiçoamento da atividade docente. Apesar dessas considerações, alguns autores (Luz, 2008; Pimenta, 2002; Valadares, 2002; Campos, Pessoa, 1998) tecem críticas à teoria de Donald Schön no que diz respeito à questão da prática reflexiva, sobretudo quanto ao conceito de “professor reflexivo”: i) o fato de Schön considerar a reflexão como um processo individual (e não levar em conta a reflexão como atividade coletiva); ii) como corolário da crítica anterior, Schön não amplia a sua teoria para as condições institucionais, e assim explora pouco o contexto social da atividade reflexiva; iii) falta de discussão do papel da formação teórica do professor. As críticas apontadas são pertinentes; contudo, as ideias de Schön para a docência não perdem seu valor. Os relatos orais e escritos da reflexão-na-ação e da reflexão-sobre-a-ação são importantes para aperfeiçoar a prática em sala de aula, além de enriquecer a produção e a divulgação de pesquisas. Ainda, a reflexão coletiva entre professores é uma questão de hábito, de treino da troca de experiências por meio de reuniões, que podem ser o ponto de partida para mudanças institucionais. Além disso, a questão da teoria na formação docente é parte integrante do currículo, e enfoca aspectos da relação professor-aluno, do ensino e da aprendizagem.
Objetivos Esta pesquisa explora a atuação docente por meio do estudo do papel da reflexão e das competências necessárias para tornar o currículo de uma disciplina um meio de aprimorar a aprendizagem dos alunos. Mais concretamente, o trabalho buscou descrever as práticas docentes e os processos reflexivos a elas associados que fortalecessem as competências necessárias para o professor universitário delinear a estruturação curricular com base nos objetivos de ensino, objetivando maximizar as oportunidades de aprendizagem de seus alunos. Uma vez que as exigências atuais do cargo docente só têm aumentado (Vasconcellos, Oliveira, Berbel, 2006), focalizar práticas docentes diferenciadas pode enriquecer a discussão sobre um ensino universitário de melhor qualidade. Dessa forma, a meta deste trabalho é contribuir para a reflexão sobre a forma de atuação do professor em sala de aula, por meio do estudo dos processos reflexivos e competências que norteiam as práticas docentes.
Metodologia A estratégia de pesquisa utilizada é o estudo de caso do tipo qualitativo (Bogdan, Biklen, 1994; Lüdke, André, 1986). Tal abordagem foi escolhida porque ela fornece dados que geram interpretações mais significativas que os dados obtidos em um estudo quantitativo, o qual aponta, por exemplo, um bom ou mau desempenho, mas não é capaz de prover interpretações que revelem o(s) porquê(s) do sucesso ou fracasso. Tendo em vista os objetivos propostos, foi selecionado um professor que apresentasse indícios de uma prática docente diferenciada. A seleção foi feita com base em um encontro sobre experiências de ensino, ocorrido em uma universidade pública, no curso de farmácia. Nesse evento, vários docentes expuseram ações inovadoras, buscando a melhoria do ensino e da aprendizagem dos estudantes; assim, foi possível tomar contato com disciplinas que valorizam a reflexão e o pensamento crítico. Após a definição do docente, foram descritas, analisadas e interpretadas as práticas desse professor que, na interação com os alunos, criassem situações dilemáticas e oportunidades de treinar a solução de problemas e a tomada criteriosa de decisão, por meio do registro e observação dos processos reflexivos 412
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de conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação e reflexão-sobre-a-ação, que ocorreram ao longo das atividades acompanhadas. O professor selecionado ministra uma disciplina profissionalizante para o penúltimo ano do curso de graduação em farmácia. Os métodos de coleta de dados utilizados foram: a observação, a análise documental e a entrevista. A coleta de dados iniciou-se com a observação em sala de aula, ocorrida de agosto a outubro de 2000, totalizando aproximadamente 45 horas de observação. Em todos os dias observados, foram verificadas as formas concretas de realização das atividades pelos alunos, sendo registradas, por escrito, as atividades que o professor propunha e que pudessem estimular a reflexão. Durante a observação, os alunos e o professor estavam cientes de que o observador acompanharia as aulas, mas que não se envolveria nas atividades (Minayo, 1999), de forma que pudesse ficar livre para efetuar registros por escrito. Os sujeitos do estudo foram o professor da disciplina e os 32 alunos matriculados na disciplina. A análise documental incidiu sobre os questionários iniciais de avaliação e sobre um exercício proposto pelo professor, baseado na prova, para que os alunos tomassem conhecimento sobre como seria desenvolvida a avaliação final. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o professor da disciplina e com três alunos. Os alunos foram selecionados com base em informações fornecidas pelos colegas, do tipo “é um bom aluno”, e também com base nas observações em sala de aula, pela percepção de que tal aluno seria fonte de informações consistentes. A seleção de três indivíduos em um universo de 32 alunos é coerente com a abordagem qualitativa por não seguir a lógica da amostragem, que seria inadequada para cobrir todas as variáveis relevantes para o caso em estudo (Yin, 1994). Assim, o número de entrevistados é compensado qualitativamente pela elaboração de um roteiro de perguntas que, por serem abertas, permitem profundidade nas respostas. Os roteiros de entrevista foram elaborados para se buscar informações discentes sobre práticas docentes que facilitassem ou dificultassem a reflexão. As mesmas informações foram solicitadas ao professor, com o objetivo de triangulação dos dados. As falas foram gravadas em fita cassete, transcritas e confirmadas pelos sujeitos, aos quais foi garantido o anonimato. Na análise temática dos dados (Minayo, 1999), o primeiro passo foi realizar uma leitura em profundidade dos relatos de observações e transcrição das entrevistas e, a partir dela, iniciou-se a seleção de trechos significativos e a criação de códigos. Tais códigos foram elaborados com base nos aspectos que mais chamaram a atenção ao longo das aulas observadas, particularmente as técnicas de ensino utilizadas e a dinâmica dos processos reflexivos dos alunos e do professor. Uma vez estabelecidos os códigos (Tabela 1), o passo seguinte foi agrupar códigos semelhantes em temas (correspondentes aos componentes curriculares da disciplina) e, a seguir, em categorias (Tabela 2), para então proceder à interpretação dos dados, à luz do quadro teórico adotado: o da educação reflexiva. Apesar de gerar dados significativos, a abordagem de estudo de caso apresenta certas limitações. Alguns autores (Stake, 1995; Walker, 1983; Miles, 1979) apontam aspectos desfavoráveis, como o enorme custo em termos de tempo, dinheiro e esforço pessoal. Além disso, os riscos éticos associados à pesquisa qualitativa em educação são consideráveis, pois envolvem pessoas, colocando a privacidade sempre em risco. Tradicionalmente, os positivistas apontam ausência de rigor na pesquisa, despreparo do pesquisador, influência da subjetividade; porém, são argumentos falaciosos e refutáveis. A maior preocupação da pesquisa educacional é justamente com o rigor no preparo e na condução da pesquisa, de modo a maximizar a validade das conclusões. Aliás, a subjetividade tem seu papel reconhecido e valorizado; diferente do senso comum, é direcionada e assentada em rigorosa atitude de pesquisa (Lüdke, André, 1986).
Resultados e discussão Os processos reflexivos e as práticas docentes foram analisados e discutidos em conjunto com as competências docentes destacadas e, dessa forma, tencionou-se evidenciar as estratégias que propiciaram condições para o desenvolvimento dos processos reflexivos nos alunos, ao mesmo tempo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.409-22, out./dez. 2009
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em que se obtinham dados que permitissem inferências sobre a reflexão do professor. Os códigos que emergiram da leitura em profundidade dos dados - tendo em vista a interação do professor com os alunos, e a categorização dos dados - privilegiaram a interpretação de que se trata de ações voltadas para a criação de oportunidades de aprendizagem das habilidades de solução de problemas e tomada de decisão. Com o objetivo de organizar o grande volume de informações, os dados coletados foram agrupados com base nos componentes curriculares da disciplina (Tabela 2). Os trechos significativos (oriundos dos registros de observação em sala de aula e das transcrições de entrevistas) que originaram os códigos, temas e categorias estão resumidos nas Tabelas 1 e 2. Tabela 1. Resumo dos trechos significativos e atribuição de códigos. Resumo
Código
Informações relacionadas aos objetivos da disciplina
1 - Disciplina
Situações propostas pelo professor que envolviam os alunos em posicionamentos e decisões
2 - Situações dilemáticas
Momentos em que os alunos mobilizaram e integraram conhecimentos de outras disciplinas
3 - Conhecimento-na-ação
Uso, pelo professor, de exemplos relacionados ao cotidiano extrauniversitário dos alunos
4 - Cotidiano
Reflexão-na-ação dos estudantes, a partir de perguntas desafiadoras e questões propostas pelo professor
5 - Reflexão-na-ação
Proposição, pelo professor, de problemas que envolvem o levantamento e o teste de hipóteses de solução com decisão fundamentada
6 - Solução de problemas e tomada de decisão
Estímulo à formação de grupos, solução conjunta de problemas e cooperação
7 - Trabalho em grupo
Situações de feedback do professor para os alunos
8 - Tutoria (coaching)
Feedback dos alunos para o professor
9 - Feedback para o professor
Tomada de consciência e refazer da trajetória percorrida
10 - Reflexão-sobre-a-ação
Tabela 2. Apresentação dos códigos, temas e categorias. Temas
Códigos
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Categorias
Disciplina
Objetivos
Competência 1: propor e verificar a consecução de objetivos de ensino voltados ao desenvolvimento do pensamento crítico
Situações dilemáticas Conhecimento-na-ação Cotidiano
Conteúdo
Competência 2: selecionar e organizar o conteúdo programático da disciplina direcionando-o à prática profissional
Reflexão-na-ação Solução de problemas e tomada de decisão Trabalho em grupo
Métodos
Competência 3: selecionar e executar as estratégias de ensino que propiciam processos reflexivos
Tutoria (coaching) Feedback para o professor Reflexão-sobre-a-ação
Avaliação
Competência 4: avaliar a aprendizagem discente e dar feedback da avaliação aos alunos
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Competência 1: propor e verificar a consecução de objetivos de ensino voltados ao desenvolvimento do pensamento crítico Em relação aos objetivos de ensino, o professor afirmou que a disciplina é uma ferramenta para: i) estimular o raciocínio e a desenvoltura de comunicação de ideias (oral e escrita); ii) exercitar o trabalho em grupo; iii) exercitar o papel social e de cidadão - como profissional, selecionar um problema e seu contexto e propor possíveis soluções. Tais objetivos (Tabela 1, código 1) têm caráter de macro-objetivos (Giroux, 1997), objetivos nãotradicionais que extrapolam a mera circunscrição da disciplina (Masetto, 2004): “Acho que o objetivo é tentar mostrar para o aluno que existe uma realidade onde ele pode [...] ser parte, inclusive como profissional, modificando, melhorando o ambiente. [...] o conhecimento dele pode fazer com que ele seja elemento transformador. [...] é alguém que precisa ter uma opinião sólida a respeito de determinado assunto e que isso vai ter influência na opinião pública, sim. Eu gosto de imaginar que ele tem condições de estar decidindo coisas, trabalhando em cima de processos de decisão para participar de políticas municipais, da cidade de onde ele vem ou onde está, acho que isso é extremamente importante”. (Entrevista professor)
O professor preocupa-se com a questão da verdade científica, com o modo determinista com que as informações são transmitidas. O papel maior da disciplina é fazer o aluno pensar (usando os conhecimentos obtidos em disciplinas básicas), refletir a respeito do conhecimento científico como algo provisório, e não definitivo. Para ele, o aluno proveniente da universidade na qual se insere o curso em estudo deve adotar uma postura ativa, ser formador de opinião (Saupe et al., 2005), saber se posicionar com fundamentação sobre questões polêmicas, como os alimentos transgênicos, a quebra ou registro de patentes etc. Para isso, o aluno precisa desenvolver a capacidade de pensar, de demonstrar senso crítico, uma habilidade pouco treinada na vida escolar tradicional. Os objetivos levantados pelo docente são significativos, pois revelam a preocupação com a aprendizagem, ao propor exercícios de reflexão e de situações práticas que simulam a realidade da vida profissional que o estudante enfrentará. Para isso, foram criadas algumas situações (Tabela 1, código 2) que estimulassem o aluno a pensar sobre a sua futura ação profissional: trabalho em grupos e estímulo à reflexão por meio da resolução de problemas específicos que simulam realidades possíveis, como na discussão e resolução de questões da prova, e na redação de uma proposta fundamentada de apoio financeiro para projeto sobre processos fermentativos ao futuro prefeito (no ano 2000, época do estudo, houve eleição para prefeito e vereadores).
Competência 2: selecionar e organizar o conteúdo programático da disciplina direcionando-o à prática profissional Nesta categoria, destaca-se o estabelecimento de pontes entre o conteúdo da disciplina e o mundo profissional. Assim, o professor criava situações que ligavam o conteúdo ministrado com a realidade da profissão (Tabela 1, código 4). Por exemplo, discutiam-se questões a respeito de patentes, procedimentos de cultivo de microrganismos etc. Foram usadas situações cotidianas para ilustrar o mundo profissional (megafusões de empresas do ramo alimentício e farmacêutico, biodiversidade microbiana, produtos de fermentação). É notável que o professor teve êxito em transformar um assunto técnico (fermentações) em um tema agradável e acessível aos estudantes. O que torna isso ainda mais surpreendente é o fato de que, no Brasil, a própria profissão farmacêutica ainda é essencialmente técnica. Alguns trechos evidenciam a relação do conteúdo da disciplina com o cotidiano dos alunos: 16h26 - O professor passa entre os alunos uma caixinha com produtos de fermentação (pão e queijo com bolor) e mostra um conjunto de substâncias e produtos (vinagre, vinho, frutose, antibióticos, aminoácidos, vitaminas, shampoos, Aji-no-moto®, Danone®, Omo®
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etc.) relacionados de alguma forma ao processo de fermentação e de tecnologia farmacêutica. (14/08/00 - Observação em sala de aula) 17h07 - O professor mostra uma reportagem de jornal (O Estado de São Paulo, 27/06/00) sobre a compra da Nabisco® pela Philip Morris®. Com essa aquisição, a Philip Morris® passou a ser a segunda maior indústria de alimentos do mundo (a primeira é a Nestlé®). (28/08/00 - Observação em sala de aula) O principal problema da nossa região com relação ao tratamento de efluentes é o ‘garapão’, que hoje está mais controlado, mas em outros tempos deixava um cheiro horrível no ar. (05/ 09/00 - Observação em sala de aula)
Em coerência com a subordinação dos conteúdos aos objetivos pretendidos, a seleção do conteúdo não segue uma programação rígida, sendo variável de acordo com os fatos noticiados no Brasil e no mundo, no semestre em que a disciplina está sendo oferecida. Por exemplo, ao explicar como seria a avaliação, o professor deixou clara sua visão inter e transdisciplinar (Saupe et al., 2005): 16h39 - [Na avaliação]... serão quatro problemas que envolvem os tópicos vistos. Os problemas podem estar interligados, e os assuntos podem contemplar dados de outras disciplinas. [O professor] enfatizou que não é para o aluno pegar os cadernos antigos e estudar, é apenas um treino para olhar para fora - outras disciplinas, local onde se vive, olhar para fora da faculdade. (25/09/00 - Observação em sala de aula)
Competência 3: selecionar e executar as estratégias de ensino que propiciam processos reflexivos Aqui evidenciam-se quais estratégias ou métodos de ensino foram utilizados e, fundamentalmente, como o professor empregou essas estratégias. Uma estratégia amplamente utilizada foi a formação de grupos de oposição para defender pontos de vista conflitantes, em assuntos polêmicos como o direito (ou não) de patentear uma nova espécie de microrganismo. Por exemplo, o professor tentou fazer grupos de oposição com a classe, perguntando sobre a posição dos alunos frente a um tema e pedindo que justificassem a escolha (Tabela 1, códigos 3, 5 e 6). Tal estratégia permite aprimorar o conhecimento-na-ação e aprender a refletir-na-ação, além de treinar a tomada de decisão. Foram também criadas algumas situações que estimulassem os alunos ao trabalho em grupo (Tabela 1, código 7), além da proposição de exercícios que valorizam a capacidade de expressão escrita, habilidade fundamental para a formação de profissionais em qualquer área do conhecimento. Ao propor atividades de treino da escrita, o professor estimulou a capacidade discente de refletir-sobre-a-ação. É necessário enfatizar que esse processo de refletir-sobre-a-ação não é um mero exercício de memória, mas envolve a operação intelectual de recordar com um propósito, que é o de avaliar como foi realizada a ação e de que modo se pode agir para melhorar o próximo desempenho (Tabela 1, código 10). Dentre as situações criadas que estimularam os alunos ao trabalho em grupos, destacam-se os exercícios para treinar para a prova e as atividades nas aulas práticas. A seguir, um depoimento que ilustra um momento do trabalho docente em uma aula prática: “Na aula prática o que a gente mais discutia era como fazer o que ele [o professor] estava propondo... Porque ele não colocava ‘Vocês façam dessa forma’, ele falava ‘Vocês tem que fazer isso; como, vocês descubram’. Então, nessa hora todo mundo começava a discutir, tinha que fazer e como, por que não fazer de um jeito e fazer de outro jeito, então, tinha toda uma série de questionamentos, de tomadas de decisão... que acho muito importante... Porque é assim que a gente vai ter que trabalhar daqui para a frente”. (Entrevista aluna)
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Fica evidente a preocupação do professor em não fornecer respostas prontas ou receitas que valham em qualquer situação (Masetto, 2004), mas sim estimular a troca de ideias entre os estudantes a fim de torná-los aprendizes autônomos, pensadores independentes.
Competência 4: avaliar a aprendizagem e dar feedback da avaliação aos alunos Nesta categoria, destaca-se o papel do professor em conhecer as características individuais do público-alvo e adaptar as práticas docentes a essas características. Desse ponto de vista, o professor foi ético, na medida em que respeita e considera diferenças individuais entre os estudantes e procura pautar sua avaliação com base nesse contexto, valorizando o estilo de aprendizagem de cada aluno. Tal comportamento docente contrasta diretamente com o modelo da racionalidade técnica, o qual nega a noção de que os estudantes têm histórias de vida diferentes, ou seja, vivenciam, desenvolvem e incorporam - de maneira única - experiências, culturas e talentos. Assim, o professor inicia a disciplina com uma avaliação diagnóstica, que consiste no levantamento do conhecimento prévio e das opiniões dos alunos a respeito do conteúdo da disciplina. Assim, o professor obtém um feedback preliminar (Tabela 1, código 9). A seguir, exemplos de questões elaboradas para avaliação diagnóstica: 3 - Você já ouviu falar a respeito de biotecnologia através de palestras, conferências, diversos meios de comunicação. Defina biotecnologia e descreva a sua importância para a humanidade. / 5 - Você receberá em breve o grau de farmacêutico. Que conhecimentos você espera adquirir com a disciplina de [nome da disciplina] que possam contribuir para a sua graduação? (14/08/00 - Observação em sala de aula/Questionário inicial)
Os dados revelam ainda a preocupação do docente com o retorno (feedback) aos alunos, ao procurar identificar os estudantes que têm mais dificuldade e oferecer apoio (Tabela 1, código 8). Dessa forma, o professor consegue fazer uma avaliação formativa. A avaliação somativa é representada por uma prova escrita, realizada em duplas e com consulta. Essa modalidade de prova, com questões abertas e permissão para consultar materiais, também apresenta um componente formativo, sendo considerada uma prática de avaliação positiva (Vasconcellos, Oliveira, Berbel, 2006), e despertou a atenção dos alunos: “As aulas, em geral, sempre despertaram o espírito crítico, o professor gosta bastante de ‘cutucar’ a gente... Mas o que mais me despertou o espírito crítico, o que mais me interessou foi a prova, uma prova inteligente, difícil, não foi nada fácil... mas foi uma prova que despertou muito o espírito crítico, fez com que os alunos discutissem entre si o que estava acontecendo, o processo, tudo... E foi muito vantajoso esse tipo de prova, eu gostei muito. Na minha opinião, foi esse o ponto melhor da matéria”. (Entrevista aluno)
Quanto ao feedback para os alunos, os seguintes trechos são ilustrativos: O professor disse que é impossível ignorar as diferenças individuais em turmas pequenas [frisou que em turmas grandes é muito mais difícil dar atenção individual]. (22/08/00 Observação em sala de aula) O professor disse que deixa os alunos conversarem de propósito, desde que cada um entregue suas próprias respostas. Ele sabe que eles irão chamá-lo para tirar dúvidas. Dessa maneira, identifica os pontos fracos de cada aluno, e pode dar posteriormente um reforço para aqueles que ainda não compreenderam o assunto. (28/08/00 - Observação em sala de aula)
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Este depoimento vai ao encontro da fala de um dos professores entrevistados no estudo desenvolvido por Vasconcellos, Oliveira e Berbel (2006), e demonstra o espírito de valorização do aluno como pessoa. A crença do professor na potencialidade dos seus alunos é flagrante: “Eu acho que é você quem tem que criar a experiência. Como é que você vai lidar com um aluno acostumado a ser inteligente, ter boas notas, quer dizer, ele é inteligente nas boas notas. Então você precisa saber que tipo de desafio ele vai lançar, se ele vai lançar algum, se ele vai se esconder, quem é ele. Não dá muito tempo para você fazer ‘garimpagem’, a hora que você olha um aluno você tem que saber que pedra preciosa ele é, você tem que saber logo, não dá muito tempo. Primeiro que você tem que considerar cada um deles uma pedra preciosa, [...] a ‘garimpagem’ tem que ser rápida, você tem que achar alguma coisa para identificar e isso tem que ser uma coisa sentida, de ‘pele’, sabe. Então, com o tempo você acaba aprendendo a fazer isso daí. Eu acho que esse é o grande desafio”. (Entrevista professor)
Na visão do professor, o conteúdo adquire um caráter secundário (Pedroso, Cunha, 2008), sendo variável de acordo com o desenvolvimento de objetivos superiores: “Não é uma coisa repetitiva, todo ano é uma coisa totalmente nova, diferente. Por isso eu disse que o conteúdo não importa muito, você trabalha os outros aspectos”. (Entrevista professor)
Considerações finais Este trabalho objetivou explorar um caso de prática docente diferenciada, com destaque para o papel da reflexão e de competências necessárias para o professor universitário (re)pensar a organização curricular de uma disciplina, de modo a maximizar as oportunidades de aprendizagem de solução de problemas e tomada de decisões pelos alunos. Os resultados mostraram, em diversos momentos, o papel fundamental dos processos de reflexãona-ação e reflexão-sobre-a-ação, estimulados (e vividos) pelo professor, os quais permitiram o direcionamento curricular para a consecução dos objetivos pretendidos. Nesse sentido, cabe destacar o trabalho desenvolvido por Pedroso e Cunha (2008) em um curso de nutrição, cujo relato de experiências docentes inovadoras traz informações valiosas que reforçam muitas das conclusões deste estudo. Conforme discutido anteriormente, vive-se hoje uma crise de paradigmas na educação superior (Masetto, 2004). Caem por terra pressupostos modernos da estabilidade do conhecimento e do mundo do trabalho, e mudam as perspectivas de formação e atuação dos professores (Pedroso, Cunha, 2008; Chaud, Gremião, Freitas, 2004; Tavares, Alarcão, 2001). Nesse contexto de instabilidade, refletir sobre a própria prática é condição fundamental para que deixemos a esfera das certezas proferidas por terceiros para atingirmos outros patamares (Zabalza, 1994), contemplando a tomada de decisões fundamentadas, o debate criativo, a aprendizagem que valoriza o erro e a dúvida (Ketzer, 2007), e a coragem de propor novas soluções. Os melhores professores são mais conscientes de suas práticas, e tal nível de consciência depende da reflexão sobre as intervenções no complexo processo de ensino. De acordo com os objetivos deste trabalho, destacam-se aspectos essenciais da ação docente, balizada por processos reflexivos e envolvida pelas competências descritas: 1) Capacidade de prover condições para os estudantes refletirem-na-ação e treinarem as habilidades de solucionar problemas e tomar decisões com base em critérios claros, de acordo com a orientação dos objetivos da disciplina; 2) Capacidade de utilizar o conteúdo como elemento motivacional e como ponto de apoio para a consecução de objetivos mais complexos: i) mobilização do conhecimento-na-ação (buscar e integrar conhecimentos de outras disciplinas); ii) relação com o cotidiano e a futura profissão dos estudantes; iii) seleção variável de conteúdo;
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3) Uso de situações dilemáticas para estimular os processos reflexivos: i) grupos de oposição, perguntas norteadoras, exercícios de simulação de situações profissionais (trabalho em grupo), técnicas de ensino que permitem utilizar o conhecimento-na-ação e a reflexão-na-ação; ii) exercícios com uso da expressão escrita, oportunidades para se treinar a reflexão-sobre-a-ação; 4) Iniciativa em conhecer as características individuais do público-alvo e adaptar as práticas a essas características (feedback para os alunos); 5) Atitudes favoráveis ao ensino reflexivo: mentalidade aberta (receptividade a novas ideias, cujo maior exemplo foi o fato de o professor ter concordado integralmente em relação à inclusão de sua disciplina na pesquisa), responsabilidade intelectual (postura ética) e entusiasmo; 6) Prática docente coerente com a racionalidade prática: ênfase na importância da teoria vinculada à prática, e nunca dissociada desta; ação apoiada e realimentada pela teoria, que é a essência da verdadeira práxis (continuum ação-reflexão-ação). Dada a complexidade dos aspectos relatados da prática docente e o provável impacto destes na formação pessoal e profissional dos alunos, espera-se que este estudo contribua para a valorização de práticas docentes que resultem em melhores condições de aprendizagem para os estudantes.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ABREU, R.A.S.; NICOLACI-DA-COSTA, A.M. Internet: um novo desafio para os educadores. Cad. Psicol. Educ. Paidéia, v.13, n.25, p.27-40, 2003. ALARCÃO, I. Reflexão crítica sobre o pensamento de D. Schön e os programas de formação de professores. In: ______ (Org.). Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto: Editora Porto, 1996. p.9-39. BOGDAN, R.C.; BIKLEN, S.K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Editora Porto, 1994. CAMPOS, S.; PESSOA, V.I.F. Discutindo a formação de professoras e de professores com Donald Schön. In: GERALDI, C.M.G.; FIORENTINI, D.; PEREIRA, E.M.A. (Orgs.). Cartografias do trabalho docente: professor(a)-pesquisador(a). Campinas: Mercado de Letras, 1998. p.183-206. CHAUD, M.V.; GREMIÃO, M.P.D.; FREITAS, O. Reflexão sobre o ensino farmacêutico. Rev. Ciênc. Farm., v.25, n.1, p.65-8, 2004. COSTA, C. Os processos reflexivos e as competências do professor universitário no planejamento e aplicação dos componentes curriculares: um estudo de caso. 2004. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. 2004. CRONIN, M.; CONNOLLY, C. Exploring the use of experiential learning workshops and reflective practice within professional practice development for post-graduate health promotion students. Health Educ. J., v.66, n.3, p.286-303, 2007. CUNHA, M.I. et al. Inovações pedagógicas na formação inicial de professores. In: FERNANDES, C.M.B.; GRILLO, M. (Orgs.). Educação superior: travessias e atravessamentos. Canoas: Ulbra, 2001. p.33-90. FARIA, J.I.L. Prática docente reflexiva na disciplina de Administração em Enfermagem Hospitalar: uma experiência de desenvolvimento profissional de professorespesquisadores. 2003. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. 2003.
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COSTA, C.; CASAGRANDE, L.D.R.; UETA, J. Procesos reflexivos y competencias implicados en la práctica docente universitaria: un estudio de caso . Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.409-22, out./dez. 2009. Con base en la racionalidad práctica, este estudio de caso cualitativo objetivó explorar la práctica docente universitaria, enfocando la reflexión y las competencias del profesor. Para tal se ban descrito, analizado e interpretado las prácticas que, en la interacción con los alumnos en una disciplina del curso de farmacia, puedan crear situaciones de dilema y oportunidades de aprendizado de las habilidades, de solución de problemas y de decisiones. A lo largo del estudio, se ha estimulado a los alumnos a utilizar los procesos de conocimiento-en-la-acción, reflexión-en-la-acción y reflexión-sobre-la-acción vividos también por el profesor. El análisis de los registros de observación en clase y de las entrevistas con alumnos y con el profesor ha puesto en evidencia la importancia de estos procesos reflexivos que nortearon la consecución de los objetivos pretendidos. En este sentido la reflexión docente sobre la propia práctica ha sido fundamental para subsidiar la aplicación de cada componente curricular de la disciplina.
Palabras clave: Educación superior. Docentes. Competencia profesional. Estudios de casos.
Recebido em 14/11/08. Aprovado em 07/05/09.
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O uso da imagem fotográfica no campo da sociologia da saúde: uma experiência na formação de alunos do curso de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Itamar de Morais Nobre1 Vânia de Vasconcelos Gico2
Introdução Quando o ser humano ainda não conhecia os mecanismos de utilização da fala, já desenvolvia o olhar para observar e compreender a relação com o seu meio. Por intermédio do olhar, o ser humano podia delinear seus espaços, tendo o olho como instrumento e como fronteira móvel entre o sujeito e o mundo externo (Bosi, 1998). Assim, a imagem já estava presente nos primórdios da humanidade, sendo as superfícies refletoras de luminosidade, reveladoras do mundo. A imagem seria um dos primeiros canais de percepção do cenário humano, antecedente de outros signos para construção das idéias, um dos elementos do qual se serve a nossa mente para compreender a cultura, permanentemente em retroalimentação. Nesta direção, a linguagem primitiva antecedeu a linguagem articulada e pode ter sido constituída por signos, movimentos corporais, objetos naturalmente relacionados com as idéias (Kristeva, 1999). Assim, ideias, significados e imagens, culturalmente, constituem uma relação imanente ao ser humano, criando o mundo das imagens, no qual os elementos que o compõem traduzem-se em representações visuais e mentais. Conforme Santaella (1999, p.15) o mundo das imagens se divide em dois domínios [...] o das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas [...]. Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual. [...]. E o domínio imaterial das imagens na nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas [...], são as representações mentais.
Se as representações mentais e visuais estão ligadas em sua gênese, é possível pensar que o uso das imagens pode ser o suporte para pensar, expor, contar, relatar, dizer algo, memorizar, historiar, registrar, enfim, compreender e interpretar as informações adquiridas e internalizadas no cotidiano. Assim, a linguagem imagética serviu de fonte para a narrativa, registrando preciosidades do cotidiano desse cenário social, o que nos põe em conexão com os primórdios da nossa existência.
1 Departamento de Comunicação Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Campus Universitário, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (Azulão) Av. Senador Salgado Filho, 3000, BR 101. Lagoa Nova , Natal, RN, Brasil. 59.072-970 nobre@ufrnet.br 2 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFRN.
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O USO DA IMAGEM FOTOGRÁFICA NO CAMPO ...
Com o aperfeiçoamento da arte de representar uma imagem por outra, surgiram várias técnicas precedentes à fotografia, mas foi a câmara obscura3 que, após ser utilizada durante muito tempo pelos artistas, veio a ser a técnica precursora do processo fotográfico. “A imagem dos objetos do mundo visível, formando-se no interior da câmera, podia ser delineada e, de fato, viajantes, cientistas e artistas fizeram uso do aparelho, obtendo, sobre papel, esboços e desenhos da natureza” (Kossoy, 1989, p.21). Porém, foi no contexto da Revolução Industrial, que surgiu uma nova maneira de ver o mundo e de ver a si mesmo. Isso ocorreu a partir de 1826, quando Joseph Nicéphore Niépce produziu a primeira imagem, utilizando a luz solar. A técnica foi aprimorada por Jacques Mandé Daguerre, mas, apenas em 15 de agosto de 1839, ganhou publicidade, quando o Estado francês adquiriu a invenção em uma sessão da Academia das Ciências, liberando-a à iniciativa da exploração popular, tornando o uso do processo fotográfico de domínio público. A fotografia passava a ser de uso geral, ganhava importância social. Hoje, pode-se dizer que a fotografia tem importância nos diversos setores da sociedade, sendo um dos meios capazes de conformar ideias e influenciar comportamentos (Freund, 1995), estando inserida no cotidiano sociocultural, ganhando dimensões ilimitadas. Salvaguardando o documento fotográfico das interferências da tecnologia, Dubois (1999) considera a fotografia um documento fotográfico que presta contas do mundo com fidelidade. Essa qualidade fidedigna da fotografia lhe concede um valor imanente à imagem representada, por narrar um acontecimento no espaço e no tempo, bem como um lugar no contexto das narrativas, sendo uma representação visual, capaz de representar ideias, crenças, conhecimentos e valores. A narrativa, diz Aumont (1995, p.244), é definida [...] como conjunto organizado de significantes, cujos significados constituem uma história. Além disso, esse conjunto de significantes - que veicula um conteúdo, a história, que deve se desenrolar no tempo - tem, pelo menos na concepção tradicional, duração própria, uma vez que a narrativa também se desenrola no tempo.
Assim, a imagem fotográfica caracteriza-se por conter, na sua composição, códigos culturais selecionados e organizados pelo fotógrafo e captados do cenário sociocultural representado, o que lhe atribui um caráter de fonte detentora de informação, tanto pelo seu conjunto de significados, como pelo seu poder de indicação da existência do que foi fotografado, considerando-se fonte de interpretação da cultura. Contudo, a informação fotográfica necessita do auxílio de outros tipos de linguagem para difundir-se e ser compreendida, ser interpretada, que são, sobretudo, o oral e o escrito. Para Barthes (1984) a fotografia refere-se sempre a algo ou a alguém. Esta afirmativa corrobora com o fato de a fotografia possuir estreita ligação com o seu referente, o que lhe confere um significado proeminente por consistir em uma fonte de informação, uma narrativa, e não uma mera ilustração. E, sendo a fotografia um signo composto por imagens de outros signos, é possível anunciar que o conhecimento também pode ser apreendido por meio dela, como fonte reveladora e instrumento de disseminação do saber e da cultura.
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3 A luz proveniente de um objeto era refletida para dentro de uma caixa praticamente toda fechada, passando apenas através de um orifício que funcionava como o diafragma, hoje utilizado pelas câmeras fotográficas. A imagem incidente na parede da câmera oposta à que entrava a luz era desenhada em um papel. Essa imagem chegava de forma invertida. Com o aperfeiçoamento, foi introduzido um espelho para inverter a imagem e o papel foi substituído pela película sensibilizada quimicamente, formando a imagem.
NOBRE, I.M.; GICO, V.V.
4 Para a discussão da incorporação na formação de pedagogos de conteúdos que discutam o campo e a pedagogia da imagem, ver Barros (1998) e Alves (2004, 2003).
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Daí, a potencialidade informativa da fotografia enquanto narrativa, geradora de interesses pela sua interpretação e pelo que esta contém e comporta, seja o espantamento com o que vemos; seja admiração com o desempenho do fotógrafo, como pensa Barthes (1984). Assim, pensamos ser possível discutir a relação entre a imagem fotográfica e a aquisição do conhecimento para o entendimento da sociedade e da cultura, e numa pedagogia da imagem poder delimitar e indicar de qual conhecimento estamos falando: a educação do olhar, como pensa Nunes (1996, p.5): “trata-se de conduzir, ensinar, desvendar, numa estratégia de educação dos sentidos [...], um olhar educado, capaz de ver tanto as coisas que se oferecem de imediato à sua percepção como as que lhe escapam”. A imagem na pedagogia sugere, pois, o uso de diferentes suportes imagéticos “lócus, do ambiente e manipulação de imagens ou de material visual, em sentido mais amplo, designados pela sua destinação ou pela sua constituição” (Nunes, 1996, p.5). Assim, há um campo aberto para essa reflexão na história da educação, especialmente no tocante à utilização de imagens como fonte de pesquisa, por revelarem o contexto social no qual foram captadas (Alves, 2004, 2003; Gico, 2000; Vidal, 1998; Câmara, 1996; Demartini, 1996; Leite, 1996); e a discussão do assunto poderá se dar nos campos disciplinares da semiótica, da história, da sociologia e da antropologia, entre outros, os quais podem se religar nos processos de observação da ciência e da arte, complementando-se em olhares cruzados. Entretanto os professores, por sua vez, ainda apresentam dificuldades em lidar com as imagens fotográficas na educação. Foram educados prioritariamente para lidar com textos escritos4, e não com a linguagem verbovisual (Barros, 1998). Nesse exercício dispensam pouca atenção à interpretação das práticas visuais, embora não se devam esquecer as questões críticas que as mesmas comportam, mas remeter-se a uma teoria da imagem fotográfica que amplie e incentive o trânsito entre as linguagens; motive uma visão contra-hegemônica (Santos, 2006) dos paradigmas educacionais, valendo-se da imagem fotográfica como mediadora da aprendizagem. A abordagem da questão imagética na escola, no contexto ensinoaprendizagem, foi discutido por Alves (2004, p.9), quando procurou elucidar a “possibilidade de as crianças, em situações formais de ensino, produzirem saberes, a partir da formação conceitual, mediados pela imagem fotográfica”. A investigação considerou que a fotografia deve ser agenciada no espaço escolar não apenas como “suporte metodológico, mas como campo expressivo gerador de conhecimentos que devem ser (re)apropriados pela criança na constituição interativa de sua subjetividade e do entendimento da realidade social, na qual está inserida, estabelecendo articulações intersemióticas não apenas com a linguagem verbal” (Alves, 2004, p.28). Nesse contexto, trazemos para discussão uma experiência de estímulo ao conhecimento por meio da imagem fotográfica, efetivada numa sala de aula do Ensino Superior. Tal experiência deu-se na área da saúde, objetivando discutir conteúdos do universo social dos alunos, à luz dos conceitos da sociologia da saúde. Partindo do conteúdo programático, assegurou-se que o conhecimento de um universo sociocultural distante de nós é possível por intermédio da fotografia, bem como religar conceitos epistemológicos relacionados à cultura, à saúde, à educação, à sociedade, e aos modos de vida (Nobre, 2005), hábitos, práticas e costumes sociais.
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Material e método O cenário da experiência foi uma sala de aula com trinta alunos do primeiro período, cursando a disciplina Sociologia da Saúde, no Curso de Enfermagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte5, oferecida pelo Departamento de Ciências Sociais. A disciplina propunha-se a: mostrar aos alunos as relações entre sociedade, cultura e instituições no processo saúde-doença, promover a compreensão deste processo no contexto da divisão social do trabalho e das classes sociais; conhecer as interfaces sociais do processo saúde-doença nos aspectos da transdisciplinaridade e da humanização em saúde, por meio da religação dos saberes, além de discutir a doença enquanto iatrogênese social. Propusemo-nos a estimular a compreensão dos alunos, discutindo os conceitos de sociedade, de cultura, de fato social em Emile Durkheim; ação social em Max Weber e as relações de classes sociais em Karl Marx, focando a discussão na relação doença/saúde/sociedade/cultura. Promovemos discussões acerca dos conceitos citados, em seminários, tendo, como mediação da aprendizagem, fotografias publicadas em revistas da atualidade, ilustrando, em seu contexto, aspectos do cotidiano social, especificamente, imagens do povo brasileiro. A organização dos seminários foi preparada por cinco grupos, cada um composto por seis alunos, que planejaram, em sala, as apresentações dos conceitos apreendidos por meio da interpretação das imagens recortadas das revistas e coladas em cartolinas, sob a supervisão do professor, da seguinte maneira: imagens que representavam o conceito de fato social6 foram expostas a partir de uma explicação do grupo relacionando-as ao conceito e, por conseguinte, foram apresentadas as imagens relacionadas aos conceitos de ação social7, classes sociais8 e cultura9. O seminário teve a finalidade de reforçar os conceitos que antes foram discutidos, preparando o olhar do aluno para a percepção do mundo por intermédio do exercício da contemplação e interpretação da fotografia para a aquisição do conhecimento sobre saúde, cultura e sociedade e o reconhecimento do espaço social em discussão, além da análise das representações sociais dos personagens envolvidos, concordando com Câmara (1996, p.228), quando afirma que o “desafio do olhar é de ver em profundidade o visível, é de penetrar em sua essência, buscando desvestir o habitual, o senso comum. No ato de ver, o sujeito procura conhecer o objeto do desejo em todas suas nuanças e sentidos”. No decorrer das discussões posteriores, ampliamos a experiência, exercitando em cada um deles um olhar investigador, característico de um leitor social, disposto a decifrar detalhes da constituição social, um olhar sensível sobre um mundo carente de profissionais humanizados na área da saúde. Para uma efetivação do exercício e construção do olhar, dispusemos 158 fotografias dimensionadas em 20 cm X 40 cm, montadas em passe-partout, cartonagem de face preta, durante quatro horas, por toda a sala de aula. Os alunos circularam livremente pelo espaço, observando as fotografias, a fim de que pudessem penetrar no contexto sociocultural. Tínhamos a pretensão de promover uma viagem virtual dos observadores ao universo retratado na fotografia, uma comunidade pesqueira nomeada Diogo Lopes, situada a duzentos quilômetros da capital - Natal -, no litoral norte do Rio Grande do Norte, região Nordeste do Brasil. As fotografias narravam ocorrências socioculturais de aspectos do cotidiano daquela comunidade, representavam imagens-fragmentos de momentos peculiares, mas agrupadas e associadas, contextualizavam um quadro de informações visuais gerais, como fotografias-chave representativas do todo. Para auxiliar no entendimento das fotografias e correlacionar os objetivos da atividade com os objetivos da disciplina, os alunos foram orientados pela seguinte questão: 428
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5 Situada em Natal, na capital do estado potiguar, região Nordeste do Brasil.
6 Para Durkheim (1987), o fato social é uma norma coletiva com independência e poder de coerção sobre o indivíduo. 7 Para Weber (Thomazi et al., 1993), a ação social refere-se a qualquer ação que leva em conta ações ou reações de outros indivíduos. 8 Para Marx (1984), só existem duas classes sociais, a capitalista, possuidora dos meios de produção, e a proletária, que vende sua força de trabalho para os capitalistas; assim as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes. 9 Examinando-se o pensamento de Edgar Morin sobre cultura, concebe-se cultura como o capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, dos saberes, fazeres apreendidos, das crenças míticas de uma sociedade (Morin, 1992).
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Os fatores culturais e sociais influem na saúde e na doença e como a compreensão dos mesmos pode melhorar o atendimento médico e a educação para a saúde (ver Helman, 2003). 10
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INTERPRETAÇÃO SOCIAL DE FOTOGRAFIAS. Observe as fotografias expostas e descreva o ambiente sociocultural no qual estão inseridos os atores sociais mostrados. Faça relações das imagens com os conceitos estudados em sala de aula, como “fato social” (Durkheim), “ação social” (Weber) e “classe social” (Marx). Observe o indivíduo, a sociedade, o meio ambiente visto nas imagens, tecendo comentários sobre o seu modo de vida, sua qualidade de vida, sua saúde e sua cultura.
A expectativa gerada entre os alunos desencadeou inquietação em todos eles. Notava-se uma grande preocupação em não conseguir redigir um texto, cuja origem fosse uma provocação imagética. Eram alunos oriundos de um Ensino Médio, em geral, massificante, no qual os alunos estão habituados a avaliações tradicionais, exploratória de questões objetivas e sintéticas, tendo encontrado esse mesmo modelo nas demais disciplinas, simultaneamente, oferecidas pelo seu Curso naquele período letivo. Este quadro configurava-se, para aqueles discentes, como uma iniciação às interpretações sociais de imagens fotográficas, o passo inicial para sua formação enquanto profissional da saúde, capaz de desenvolver os princípios deste mesmo olhar, mas de uma forma presencial, em um quadro vivo, em situações cujo calor do profissional estivesse em contato com o calor dos observados, carentes de uma avaliação proponente de soluções para os seus possíveis problemas de doenças sociais10. Nesse exercício, contudo, não nos limitamos apenas a uma descrição dos problemas sociais da expropriação da saúde, mas também a uma reflexão, estimulando o processo cognitivo mediado pela imagem, conforme Leite (1996, p.83 ): o trabalho com imagens tem grandes implicações cognitivas: aumenta a intensidade do olhar, mas também a qualidade da imaginação, reveladora da realidade semi-imaginária do homem. A descoberta do significado da imagem não existe independente do espectador e a cautelosa tarefa do professor consiste em não impor interpretações, mas em favorecer comparações e diálogos.
Análise e interpretação dos dados Trabalhar com narrativas fotográficas em sala de aula, na perspectiva de uma pedagogia da imagem para a observação e reflexão de um contexto social, por futuros profissionais da saúde, pode ser um processo desencadeador da preconcepção visual de comportamentos e modos de vida dos referentes. Nesse sentido, a fotografia auxilia na antevisão do mundo, do quadro social que espera este profissional, familiarizando-o e preparando o seu olhar para os exercícios práticos, observatórios, sobretudo, considerando que esses exercícios, de um modo geral, não constam dos objetivos das disciplinas oferecidas para os iniciantes dos cursos da área da saúde. A maioria dos alunos, quiçá, terá esta oportunidade caso venham a se envolver em projetos de pesquisa ou extensão universitária. Diante das fotografias expostas, mesmo tendo como referência o enunciado patente, surge um desafio para os alunos: como começar a escrever a sua narrativa, mediante aquelas fotografias? A mediação do professor foi fundamental nesse momento, como orientador de uma observação de fora para dentro do cenário representado na fotografia, aparentemente distante do aluno, cujo espaço observado está delimitado por bordas demarcadoras do quadro fotográfico. O rompimento do desafio de escrever é favorecido pela magia da imagem, pela percepção que vem de fora: “quando mergulhamos profundamente em uma imagem percebemos que ali COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.425-36, out./dez. 2009
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não existe um mero registro da realidade, mas sim uma cumplicidade do autor com o objeto fotografado” (Andrade, 2002, p.47). Ao caminharem diante das fotografias, os alunos paravam, investigavam, aproximavam-se, concentravam o olhar em pontos que lhes chamavam a atenção. Suas narrativas, de um modo geral, constaram de descrições físicas do ambiente mostrado, relacionadas com as atividades cotidianas do lugar, refletindo sobre os conceitos propostos no enunciado, na maioria das vezes sem fazer referência às pessoas expostas nas imagens fotográficas. Embora alunos do primeiro período do curso de enfermagem, já parecem incorporar uma tendência persistente na área: a falta de humanização em saúde, priorizando-se as técnicas. Observamos, ainda, que a falta do hábito de escrever torna-se um dos principais empecilhos para o desenvolvimento de uma reflexão com uma linguagem mais apurada, sobressaindo-se o vocabulário comum, coloquial, em detrimento de uma articulação acadêmico-científica. Mesmo assim, o trabalho desenvolvido em sala de aula alcançou o objetivo desejado, considerando o exercício do olhar e a reflexão sobre a imagem, podendo-se evidenciar alguns exemplos, como trechos das narrativas desenvolvidas pelos alunos ao observarem as imagens fotográficas para interpretação do espaço sociocultural: “Ao observarmos essa cultura vemos tantas riquezas, como costumes, seus ricos conhecimentos sobre o mar, crustáceos, peixes e toda a tradição marítima. A sua forte religiosidade apresentada na foto em que o homem, tratando do peixe, tem em sua casa um sinal de uma cruz [Foto 1]; a arte e a habilidade da pesca, o manuseio de todos os instrumentos utilizados na pesca, o seu modo simples de viver, não obstante, as influências de outras culturas. Mas em meio a tudo isso existe também a calamidade da saúde, a falta de higiene do trato dos peixes e crustáceos, na sujeira observada em algumas casas, e até na própria alimentação, como crianças comendo sentadas no chão. Isso tudo acarreta várias doenças que se não forem logo cuidadas podem levar as pessoas a situações graves. Em algumas fotos vemos famílias que mostram a presença do pai, mãe e filhos todos realizando um trabalho algo que até já foi passado de geração em geração, em que os filhos realizam sem nem mesmo saber quem condicionou esse trabalho, mas o fazem porque vivem da necessidade do mesmo. Temos nesta observação um fato social. Nisso, vê-se também a ação recíproca, os pescadores trabalham todos juntos, quer seja pescando, ou seja, tratando peixe. Homens, mulheres e crianças, todos realizam algum trabalho com uma mesma finalidade: a obtenção de um bom produto. Nisso temos a ação social”. (Trecho extraído de uma avaliação, escrito pela aluna A11) Foto 1. Preparação do peixe fresco para cozimento.
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Nas nossas citações utilizaremos os codinomes, a exemplo de “aluna(o) A/B...”, para substituir os nomes verdadeiros dos alunos envolvidos na experiência.
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12 A avaliação da aprendizagem para a maioria das escolas e professores é uma oportunidade de punição (Vasconcelos, 1998).
13 Quer dizer: da execução de algum tipo de trabalho que gere renda.
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Nota-se, na leitura da aluna “A”, que ela percebeu como os atores sociais presentes na fotografia estavam voltados ao cumprimento de suas atividades sociais cotidianas, imagens do cenário social que trazem à tona o conteúdo da disciplina Sociologia da Saúde e estimulam a aluna a compreender com mais clareza a divisão social do trabalho, o lazer e a família, tendo em vista que a fotografia retrata tais temas. Vê-se, contudo, que, sem uma visão crítica e uma educação do olhar, desenvolve-se o raciocínio com o pensamento subordinado à ideologia dominante a partir da leitura das imagens. Por outro lado, a sintetização dos textos foi uma das características da escrita dos alunos quando estiveram diante da situação de avaliação12, cujo tempo para finalização era delimitado. Essa característica pode ser observada no trecho a seguir, escrito pelo aluno B, quando se refere à cultura, ao trabalho e à religião como fatos sociais, à divisão do trabalho por sexo, condições físicas e idade, observados nas fotografias: “As fotos nos apresentam uma comunidade pesqueira, onde há uma nítida falta de recursos, o que leva jovens e deficientes a participarem de alguma forma de renda13. O trabalho infantil [Foto 2], do idoso e dos deficientes [Foto 3] está incluso em sua cultura, assim como a religiosidade [Foto 1]. O primeiro não por uma escolha do povo, mas por uma necessidade, quase como uma lei (a lei da sobrevivência). A divisão do trabalho é bem nítida: alguns trabalham na pesca com barco, outros com jangadas [Foto 4], com tarrafas e até com as próprias mãos (caça ao caranguejo) as mulheres e crianças trabalhando na limpeza do pescado. Poderíamos dividir a população naqueles que possuem os barcos e naqueles que não os possuem, seria um belo exemplo de duas classes distintas”. (Aluno B)
Foto 2. Criança participa do trabalho de tratamento do peixe sardinha.
Foto 3. Catador de caranguejo prepara crustáceos para o comércio.
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Foto 4. Arrastão na Restinga Ponta do Tubarão.
Foto 5. Mulheres expõem peixes-voadores para secarem ao sol.
Verifica-se que a noção sobre os conceitos discutidos pode ser melhor assimilada quando a imagem visual serve de amparo para o desenvolvimento do raciocínio e elemento conectivo entre os conceitos e os atos representativos. Os alunos veem a imagem representativa da religiosidade, do trabalho e as conectam com o conceito de fato social; veem procedimentos referentes à cultura e fazem conexão com este conceito; observam pessoas do sexo feminino, pessoas com aspectos físicos e idades, não condizentes com o desenvolvimento de atividades manuais pesadas e concluem, por presenciarem na fotografia, que desenvolver atividades mais leves é característica natural atribuídas às mulheres, às crianças e aos idosos, dentro da divisão social do trabalho da comunidade. A imagem fotográfica auxilia os alunos a incorporarem os conceitos no campo do conhecimento, armazenando-os na memória como dados imagéticos associados a dados conceituais. Embora as intenções do fotógrafo sejam codificar conceitos imageticamente, utilizando o aparelho fotográfico, fazendo com que as imagens sirvam de modelo para outras pessoas (Flusser, 1998), algumas vezes, a imagem interpretada conduziu os alunos a fazerem suposições, quando estes se basearam na sua capacidade de abstração. Ressignificaram os dados conforme o seu ponto de vista, seguindo os seus impulsos íntimos no ato do scanning14. Nesse sentido, temos exemplo na interpretação das alunas A e C. Destacamos ainda o que vem em parte da narrativa a seguir: “As figuras retratam uma comunidade com hábitos de vida ‘primitivos’, que tem como fonte de renda e de alimentação a pescaria. Uma comunidade na qual crianças com pouca idade [Foto 2] já trabalham para ajudar seus pais na manutenção do lar. São pessoas humildes que trabalham ao ar livre, seguindo uma hierarquia nas suas tarefas. Enquanto uns pescam, outros limpam o peixe e outros os colocam para secar [Foto 5]. Dessa forma, são pessoas com hábitos de vida saudáveis, acordam cedo para a primeira puxada de rede e, por ser uma comunidade pesqueira, as crianças crescem comendo peixes e não balas e doces. No entanto, esta sociedade não é por completo alheia à vida moderna. As casas, mesmo humildes, possuem televisão e aparelhos de som que, de certa forma, influenciam no modo de vida das pessoas. Existe um menino que veste uma camisa do time Flamengo. Há um homem fumando um cigarro [Foto 1], este, certamente sentiu-se seduzido por algum comercial e saiu em busca
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Grifo do autor. O scanning é o ato de vaguear pela superfície da imagem. “O traçado do scanning segue a estrutura da imagem, mas, também, os impulsos íntimos do observador” (Flusser, 1998, p.28).
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15 Neste caso, o produtor-fotógrafo foi o professor da disciplina; e os consumidores da imagem fotográfica, os alunos, provenientes de classes sociais diversas.
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do produto. Vê-se, também, que, embora existam mulheres trabalhando, ajudando nas tarefas, predomina o trabalho do homem, pois estes estão na maioria das figuras. É uma comunidade que sabe assimilar uma vida comum; há um deficiente trabalhando [Foto 2], mostrando que não é inútil como se costuma pensar. É uma comunidade. [...] em que as pessoas parecem felizes e as crianças dão continuidade ao trabalho de seus pais”. (Aluna C)
A Aluna C presume que todas as crianças da comunidade já trabalham para ajudar os seus pais na manutenção do lar, que crescem comendo peixes, e não balas e doces; que, pelo fato de as casas possuírem televisão e equipamentos de som, esta comunidade não é por completo alheia à vida moderna, sendo uma comunidade primitiva, sem serem primitivos. Convém lembrar, conforme Berger (1999), que os conhecimentos do interpretante podem ser decisivos no momento da decodificação de uma imagem, pois, aquilo que sabemos e em que acreditamos influencia na maneira como vemos as coisas. Dessa maneira, é preciso que o professor esteja atento para um aprofundamento das discussões sobre a temática da cultura, anteriormente ao desenvolvimento do exercício, considerando que o conceito de cultura é um dos conceitos que estavam sendo observados nas fotografias pelos alunos/interpretantes. Na avaliação final, realizada pelos alunos sobre a disciplina e os recursos didáticos/métodos empregados, foram evidenciadas as experiências cuja finalidade era a interpretação social da fotografia. A análise da experiência mostrou a possibilidade do exercício da transdisciplinaridade, em sala de aula, religando conceitos da história dos trabalhadores, da estrutura social, acatados pela sociologia; e do conceito de cultura, central para a antropologia, bem como da dimensão do simbólico na interpretação das diversas práticas cotidianas, associadas a uma perspectiva sociológica que revela o papel da ideologia na construção social das imagens, sem descartar a avaliação do circuito social da fotografia envolvendo produtores15 e consumidores da imagem fotográfica. A análise das interpretações dos alunos, ao demandar conceitos de outras disciplinas, estabelece a religação dos seus conceitos, essência da visão transdisciplinar do conhecimento; além do mais, as imagens fotográficas dialogam com a “realidade e a representação dessa realidade – as imagens são observações estéticas e documentais da realidade”, como quer Achutti (2004), embora não possamos mais considerá-la como documento apenas, prova do acontecido, mas como representação cultural da sociedade. Assim, não só podemos traçar paralelos entre a antropologia e a fotografia, mas aproximar cultura-sociedade, homem-natureza. Nesta experiência, religamos a sociologia dos modos de vida, a antropologia cultural e a educação, visto que as cenas das fotografias eram dos modos de vida dos brasileiros escolhidos, e as fotos eram sensíveis às afinidades com as abordagens da vida cotidiana próprias à antropologia cultural, para um exercício da aprendizagem. De um lado, foi importante para esses alunos que não possuem, no currículo do curso, a antropologia e a didática em enfermagem, e de outro, exercitarmos mais uma vez a religação antropologia, fotografia, educação, sociologia. Assim, aproximou-se a Sociologia da Antropologia Cultural estudandose as práticas cotidianas que sustentam a vida social. Destaque-se a importância da formação diversificada dos professores envolvidos na experiência – comunicólogo, pedagogo, sociólogo e enfermeira –, o que tornou possível o interesse comum pelas imagens fotográficas nas interpretações e estudos da sociologia da saúde, priorizando uma linguagem verbovisual, associando texto-imagem/realidade social-formação profissional, religando, inicialmente, fotografia e educação. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.31, p.425-36, out./dez. 2009
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Conclusão A experiência de estímulo ao conhecimento por meio da imagem fotográfica, efetivada numa sala de aula do Ensino Superior, vem corroborar a possibilidade da compreensão de ambientes socioculturais por intermédio da interpretação de fotografias. O uso da imagem fotográfica em sala de aula requer levar em consideração os signos contidos na imagem, para que o interpretante faça uso dos seus significados, a fim de compreender o meio social mostrado, correlacionando-o com o conhecimento apreendido durante a sua socialização. Asseguramos, inicialmente, que a imagem fotográfica facilita a aquisição do conhecimento em sala de aula por conter um teor lúdico, corroborando com a humanização deste interpretante e futuro profissional, o que poderá facilitar ações mais humanizadas nesta área da saúde, além de possibilitar uma educação do olhar, incentivando um olhar crítico para o mundo, o que pensamos ter experienciado. A fotografia funciona como um atrativo para o interpretante, fazendo-o deslocar-se de um mundo de formalidades para um de informalidade no campo do aprendizado. Quando utilizada como mediadora da aprendizagem nos processos educacionais da escola, a fotografia desmistifica este espaço como sendo exclusivamente de intervenção textual, e nesse processo insere o aluno na alfabetização imagética, conduzindo-o a um conhecimento de outros referenciais além dos seus. Nesse contexto, a sala de aula é um espaço conveniente para este exercício, sobretudo por ser institucional e, conforme Alves (2003), ser um espaço privilegiado para o exercício do olhar. A experiência do aluno/interpretante nessa investigação poderá ter repercussão no seu imaginário, permitindo a este vislumbrar o universo no qual poderá, um dia, intervir social ou profissionalmente, além de poder influenciar a sua maneira de observar o mundo. Concluímos ainda que a experiência foi um desafio, tanto por discutirmos uma experiência do uso da imagem fotográfica no campo da sociologia da saúde na área da enfermagem, área na qual predominam os conhecimentos técnicos especializados, quanto por acreditarmos que imagens fotográficas são reveladoras de um universo sociocultural. Assim, o cenário à mostra era diferente daquele conhecido pelo aluno, mas o seu conteúdo foi revelado pelos signos nela contidos, o que supomos ter enriquecido a experiência das interpretações e evidenciado a possibilidade de interpretação e discussão da fotografia em educação como mediação para o conhecimento e a aprendizagem.
Colaboradores Itamar de Morais Nobre e Vânia de Vasconcelos trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Itamar de Morais Nobre é o responsável pelas imagens fotográficas.
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Discute-se o uso da imagem fotográfica em sala de aula conferindo-lhe a qualidade de fonte de informação para a interpretação do contexto sociocultural do qual foi captada, refletindo-se sobre a compreensão do seu significado para a educação. A experiência que nos serviu como argumento para esta discussão foi realizada em uma sala de aula com trinta alunos do curso de Enfermagem, na disciplina de Sociologia da Saúde, oferecida pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no ano de 2006. Os dados foram coletados a partir da observação das fotografias em sala de aula, dos seminários promovidos e das avaliações utilizando a imagem fotográfica como mediação da aprendizagem no ensino superior da área da saúde.
Palavras-chave: Educação e saúde. Educação, saúde e sociedade. Imagem fotográfica e educação. Estudantes de enfermagem. The use of photographic images within the field of healthcare sociology: an experience during the training of nursing students at the Federal University of Rio Grande do Norte, Brazil This paper discusses the use of photographic images inside the classroom as an information source for interpreting the sociocultural context from where it was taken, and it reflects on the comprehension of their meaning for education. The experience that served as the argument for this discussion was obtained in a classroom with 30 nursing students at the Federal University of Rio Grande do Norte, within the subject of Healthcare Sociology, provided by Social Science Department in the year 2006. The data were collected through observation of the photographs in the classroom, through seminars and evaluations, using the images as a mediator for learning within higher education for healthcare.
Keywords: Education and health. Education, health and society. Photographic image and education. Nursing students. El uso de la imagen fotográfica en el campo de la sociología de la salud: una experiencia en la formación de alumnos del curso de Enfermería de la Universidad Federal de Rio Grande do arte, Brasil Se discute el uso de la imagen fotográfica en sala de aula confiriéndole la cualidad de fuente de información para la interpretación del contexto sociocultural del cual se capta, reflejándose sobre la comprensión de su significado para la educación. La experiencia que nos ha servido como argumento para esta discusión se realizó en una sala de aula con 30 alumnos del curso de Enfermería, en la disciplina de Sociología de la Salud ofrecida por el Departamento de Ciencias Sociales de la Universidad Federal de Rio Grande do Norte en el año 2006. Los datos se colectaron a partir de la observación de fotografías en sala de aula de los seminarios promovidos y de las evaluaciones utilizando la imagen fotográfica como mediación del aprendizaje en la enseñanza superior del área de la salud.
Palabras clave: Educación y salud. Educación, salud y sociedad. Imagen fotográfioa y educación. Estudiantes de enfermería.
Recebido em 05/03/08. Aprovado em 07/10/08.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Uma experiência em comunicação e saúde
Marina Ruiz de Matos1 Luiz Carlos Meneguetti2 Ana Luisa Zaniboni Gomes3
Introdução Nas sociedades contemporâneas, uma rede diversificada e complexa de discursos e mensagens circula em velocidade cada vez maior. Todas as instituições, independente da natureza de seus fins, todos os movimentos sociais e grupos de interesse usam estratégias de comunicação que tentam garantir visibilidade diante da avalanche de conteúdos, informações e símbolos dos outros setores. O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão Participativa, contatou universidades brasileiras com o interesse de desenvolver alternativas de comunicação em saúde direcionadas às rádios comunitárias. A proposta foi a criação de cursos que ampliassem a informação disponível a esse segmento. Conforme Pitta e Oliveira (1996), no caso da saúde, por meio da racionalidade do discurso técnico, têm sido buscadas alternativas de comunicação para moldar os comportamentos das camadas populares. Os autores apontam que, com a constitucionalidade adquirida em 1988, os canais de expressão dos Conselhos de Unidades Básicas, Distritais, Municipais e Estaduais abrem-se à possibilidade de incorporar um modelo menos normativo. Nessa perspectiva, a ideia norteadora do projeto foi a troca de conhecimentos, experiências e sentimentos entre funcionários dos serviços de saúde e comunicadores das rádios comunitárias que gerasse como resultado uma união de esforços na comunicação em saúde com a comunidade. Conforme Valla (1998), para que a comunicação se estabeleça, é necessário construir pontes entre serviço e usuários que permitam chegar a um conhecimento resultante da troca entre vivências desiguais. O projeto foi elaborado por técnicos do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, da Secretaria de Saúde do Município de Guarulhos, da Hemeroteca Sindical Brasileira e Oboré Projetos Especiais em Comunicações e Artes. Teve como local escolhido o município de Guarulhos, componente da área conhecida como Grande São Paulo. Formado por volta de 1560, por iniciativa dos padres da Companhia de Jesus, teve sua denominação atual assumida em 6 de novembro de 1906. Segundo dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – SEADE, atualmente possui cerca de um milhão e duzentos mil habitantes,
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SUCEN). Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, 457/121, São Paulo, SP, Brasil. 04.014-011 marina.matos@unifesp.br 2 Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. 3 Oboré Projetos Especiais. 1
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98% dos quais em área urbana. O coeficiente de mortalidade infantil registrado em 2006 foi de 13,99, e a taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais era de 6,3% (dados do Censo Demográfico de 2000). A distribuição de água e coleta de lixo situava-se em patamares acima de 95%, enquanto o serviço de esgoto estava disponível a 77% dos moradores.
Metodologia Definição de estratégias Uma das preocupações centrais foi evitar a repetição do modelo pedagógico linear e unidirecional, em que os temas que viessem a ser tratados fossem “ensinados” pelos técnicos aos radialistas. Para isso, optou-se em tratá-los no espaço de vida das pessoas, em seu cotidiano. Domingues (2003), ao recuperar as diferentes correntes teóricas que tratam da vida cotidiana, aborda as dimensões simbólica, material e de poder que ela apresenta e cujas interações se dão em processos, muito específicos e, ao mesmo tempo, abrangentes. No dia-a-dia estão expressos a lógica e os parâmetros utilizados pelos sujeitos para explicarem a si mesmos e as situações que os cercam, com valores compartilhados pelos diferentes segmentos sociais. Buscou-se um formato de trabalho que desse aos participantes a possibilidade de trazer seus significados para a doença e a saúde e a oportunidade de trocar conhecimentos, afetos e estados de ânimo (Engelmann, 1978). A criação de uma novela permitiu esta junção. Baseada no encontro semanal de duas famílias, “O Almoço de Domingo” permitiu colocar a mesma questão sob o ponto de vista de dois extratos da população. Por meio da fala dos personagens, possibilitou trazer à tona: os problemas da assistência, as normalizações e regras de funcionamento do sistema de saúde, a “compreensão” (tradução) do discurso técnico, o que facilitou a discussão. A novela foi gravada e distribuída para reprodução nas unidades e rádios, acompanhando o material oferecido aos participantes. Escolheu-se o formato de oficinas, por encaixar-se melhor no processo informação/troca/reflexão/discussão/ação. Decidiu-se por 13 encontros de quatro horas, com os temas dos oito primeiros definidos pela coordenação, outros quatro escolhidos pelos participantes e o último para avaliação (Anexo I). Elaborou-se material de apoio que, além da radionovela, contou com: excertos de textos acadêmicos, pinturas, charges, caricaturas, músicas, poesias, mensagens, cordéis ou parábolas relacionadas ao tema.
Organização das oficinas Seleção dos participantes Dos Serviços de Saúde: funcionários de diversas funções (médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos, administrativos e agentes comunitários) dos 33 serviços classificados entre as Unidades Básicas, Unidades de Saúde da Família, Prontos Atendimentos e Unidades Especializadas. Das Emissoras: 1ª etapa - Recuperação, no site do Ministério das Comunicações, da lista de rádios autorizadas a funcionarem no município e dos pedidos de autorização que aguardavam decisão. O sistema Radcom (Rádios Comunitárias) daquele Ministério acusava, entre os dias 3 e 25 de junho de 2005, a existência de nove emissoras autorizadas e 19 em processo de avaliação; 2ª etapa – Elaboração de um banco de dados, com base nessa listagem, de 438
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informações complementares de dois comunicadores locais conhecidos e da lista telefônica. No final dessa etapa, foram identificadas 19 entidades, conseguiu-se contatar dez (53%) mais uma localizada durante os contatos realizados; 3ª etapa - Visita às rádios, após prévia marcação, nos dias 19 e 20 de julho de 2005. Onze rádios comprometeram-se a enviar um ou dois radiocomunicadores para participar. Territorialização: Foram plotadas, no mapa municipal, as áreas de abrangência das rádios e dos serviços de saúde. A formação dos grupos de trabalho foi feita com base no território comum a ambos, o que os integraria geograficamente e os inseriria na mesma realidade social. Ademais, permitiria que fossem criados embriões para eventual elaboração de projetos educativos conjuntos (Anexo II). Descrição das oficinas Iniciavam-se com uma conversa acerca das relações entre a pintura, charge ou caricatura escolhida e o tema. Em seguida, divididos em cinco grupos de cerca de dez pessoas participantes, acompanhados de monitores que circulavam alternadamente entre eles, tinham como tarefa ler o capítulo da novela e o excerto do texto acadêmico, anteriormente programado como leitura complementar. Para que os textos representassem mais que simples informação, solicitou-se a elaboração de argumentos pró e contra as posições ali expressas. Esse mecanismo colaborou na percepção das diferenças de entendimento entre eles e naquelas presentes no momento da relação funcionários/comunidade. Terminada a leitura, abria-se um tempo para: homogeneização do entendimento, identificação de dúvidas, elaboração dos argumentos (pró e contra sobre o texto), a possível relação entre a novela e o dia-a-dia, e a apresentação da plenária. Após um intervalo, os trabalhos reiniciavam com a leitura da poesia, da parábola ou audição da música. A plenária compunha-se das apresentações, seguida de discussões mediadas por um dos coordenadores. Ao longo das oficinas, eram feitas avaliações dialogadas, a fim de permitir correções do processo. No encontro final, optou-se por formalizar a avaliação por meio de um questionário ordenado em três núcleos: Material e organização das oficinas; aprendizagem; diálogo e participação.
Avaliação A avaliação contou com questões abertas sobre as oficinas, seu material e a incorporação de conhecimentos. A estratégia para reunir as observações, por critérios de sentido, foi a análise de conteúdo, utilizada em pesquisas qualitativas. Bardin (1979) aponta que se trata de um conjunto de técnicas de análise de comunicação destinadas a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. Do ponto de vista operacional, a análise de conteúdo relaciona as estruturas semânticas gerais do texto (significantes) com a estrutura dos significados, menos evidente, obtida pela compreensão dos fatores psicossociais, culturais e sociais em que a mensagem foi produzida. No questionário foi utilizada, basicamente, a análise de expressão. Trabalhou-se, também, com a perspectiva que Bordieu (1972) deu à noção de “habitus”, ligada à escolha do conceito do cotidiano como nexo do trabalho, e segundo a qual a identidade de condições de existência tende a produzir sistemas de avaliações semelhantes. Desta forma, cada pessoa, ainda que não saiba ou não queira, tem suas ações produzidas dentro de um contexto social, do qual não é a produtora isolada nem possui domínio completo. Avaliação dos participantes As respostas estratificadas, segundo os critérios apontados, demonstraram - salvo algumas especificidades ligadas à natureza do trabalho -, o amálgama de significados compartilhados. Desta forma não houve possibilidade de recuperar, na maior parte das respostas, as distinções iniciais entre radialistas e servidores.
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Núcleo 1 - Material e Organização das Oficinas Novela: Dois aspectos foram os mais citados: - similaridade da linguagem e da ação dos usuários dos serviços: “... os fatos são como realmente acontece no dia-a-dia”, “é como a maioria das pessoas que atendemos realmente pensa”; - papel na aprendizagem: “é boa e de fácil compreensão, melhor ainda quando se ouve o Cd, parece estar vivendo a radionovela”, “de ótima qualidade e linguagem de fácil entendimento”, “Foi uma forma ótima de passar informações,... para um processo educativo...”. Além disso, foram apontadas sugestões como - aumento da história de forma que não “ficasse só entre duas famílias”. Uma observação destacou-se das demais: “não dá para perceber muita diferenciação de linguagem entre as famílias”. A crítica explicitou uma das intenções desse material, qual seja buscar demonstrar que, apesar de estilos de vida diferentes, ao discutir-se saúde, algumas posturas são semelhantes. Textos científicos: buscaram homogeneizar o conhecimento técnico. Foram organizados excertos de trabalhos acadêmicos. Seu papel ficou ilustrado em frases como: “fáceis de ler e entender”, “atuais e de boa qualidade”, “... gostosos de ler e reler”. Músicas, poesias e pinturas: Propunham-se a expressar os temas em outras esferas da manifestação humana. A música foi a arte mais próxima e de mais fácil acesso: “falam da realidade em linguagem popular”, “... a música alegra nossa vida e nos deixa mais animados”. Uma (das) participante(s) elaborou paródias para os demais temas a partir da oficina sobre aids, que eram apresentadas no final dos encontros e foram gravadas em estúdio para eventual utilização em trabalhos com a comunidade. As canções apresentadas eram de vários estilos: “... as antigas têm mais qualidade”, “bem escolhidas principalmente O Pulso”, “a Marvada Pinga!!! Foi a melhor!!!!”. Dois outros registros indicam a penetração da escolha: “poderia ter mais”, “ótimas, acredito que podem ser utilizadas por nós em grupos de orientação pacientes/cuidadores”. Quanto às poesias, as referências foram ao lirismo e beleza. Por exemplo, frases como: “... capaz de transmitir a idéia, por mais dura que seja, com suavidade...”; “são lindas.... nos ensinam a viver melhor”, “...utilizando uma linguagem metafórica, traduz de forma mais suave (ou não) o que podemos estar comunicando...”. Algumas manifestações identificaram a conexão com o tema: “bem escolhidas, relatando fatos do cotidiano, fazendo ligações com o texto informativo e a radionovela”, “bem escolhidas aprofundando o entendimento dos temas abordados”. Poucas registraram problemas, como: “algumas muito eruditas demais... poesia tem que tocar a alma”. Em relação às pinturas, caricaturas e charges, preponderaram respostas sobre o impacto visual causado. Um pequeno número de pessoas comentou: “... em primeira mão rodei o livro para ver as pinturas, me impressionou a capa”, “um simples desenho que nos faz viajar no pensamento”. Poucas estabeleceram conexão com o temário: “... de acordo com os assuntos...”, “lindas, de acordo com o tema”. Trabalho em grupos e plenárias: Abrigaram os momentos de interação. Os participantes da Secretaria valorizaram a descoberta de parceiros internos: “bom porque a gente se conhece mais e percebe as idéias de cada um...”, “percebi que todos enfrentamos problemas diários e juntos poderemos fazer a diferença...”, “profissionais de vários setores, falando de igual para igual o mesmo assunto”. Registraram a possibilidade de discordar sem gerar impasses: “Foram ricas e democráticas, todos nós tivemos oportunidade de expor nossas convicções e a troca de idéias é fundamental para o crescimento humano”, “... temos opiniões diferentes mas pudemos chegar a um finalmente”. Outro aspecto abordado: “foi um aprendizado...”, “foram de muita ajuda no sentido de ampliar meus conhecimentos”. Referências críticas estiveram presentes: “os temas envolvidos foram bem colocados, mas com pouco tempo para uma discussão mais profunda...”, “no início do trabalho, achei que estávamos meio sem rumo...”, “os textos já deveriam ser lidos em casa e trazidos com anotações para discutir em grupo. Ganharíamos tempo para mais discussão e plenária mais elaborada”. Carga horária: As observações foram majoritariamente a favor de sua ampliação: “... poderia ser o dia todo”, “precisaria ser aumentada para que nos aprofundássemos mais em cada tema...”. Estrutura: As respostas versaram sobre: a distância, próxima para alguns, “fora de mão” para a maioria; o espaço “local com salas mais apropriadas”; acerca dos equipamentos “maior apoio em relação a material, micro, datashow, som etc.”, e a indicação de falhas relacionadas ao café: “... poderia 440
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ser melhor o local e o lanche”. A melhora no lanche foi obtida com o compartilhamento de sanduíches, bolachas e bolos trazidos de casa. Essa alternativa indicou, à coordenação, relação positiva com os objetivos do projeto. Temas: “ligados a realidade das rádios comunitárias, a comunidade pobre...”, “pertinentes à nossa realidade”, “envolver também temas sociais, pois encontramos isso dentro das UBS”. Núcleo 2 - Aprendizagem Este núcleo tratou da aquisição de conhecimentos ou habilidades e sobre as possibilidades de sua utilização no cotidiano. Na pergunta – sobre o que foi mais importante para o aprendizado, identificaramse: - respostas que valorizaram o contato (“ver que em outros locais tem gente que pensa como você...”, “o intercâmbio com as rádios comunitárias, numa linguagem comum a todos”); - a possibilidade de troca nos grupos e plenárias (“... a oportunidade de expor minhas idéias à análise dos colegas e de ouvir o pensamento alheio que mesmo que seja contrário sempre acrescenta algo valioso”, “pude expressar melhor meu pensamento”); - as lacunas de informação (“... para mim tudo foi aprendizado muito bom, deu para tirar muitas dúvidas...”, “tudo tirou muitas dúvidas sobre o SUS e várias doenças...”, “... receber novas diretrizes para argumentar sobre certos assuntos com os usuários...”). Quanto à contribuição das oficinas para o dia-a-dia, a intenção foi contemplar os interesses do gestor e apreender o que Morin (2003) denominou de conhecimento pertinente. Algumas das respostas: “... já mudaram a forma em que me expresso nos grupos com a comunidade onde trabalho”, “a forma de transmitir uma informação à população, respeitando sempre a cultura de cada um”, “passar meus aprendizados para meus amigos de trabalho, para meus clientes, familiares e colocar de maneira descontraída, com conversas diárias sobre prevenção, conscientização...”. Uma exceção apontou: “... no meu local de trabalho é muito difícil colocar as idéias que tenho (projetos) em prática. Ninguém quer... ter que quebrar a rotina, muito menos ser cobrado, dialogar, planejar...”. Núcleo 3 - Diálogo e participação Comunicação: Parte das respostas indicou uma necessidade a ser contornada (“só pode vingar no momento em que a chefia e a unidade como um todo se proponham...”, “penso em convencer a minha chefe...”, “discutir frente à chefia e estudar um meio de passar para os usuários...”). Registrouse a possível dificuldade da nova abordagem: “acho que no início como todo trabalho vai ser bem difícil, mas depois que todos sentirem firmeza no nosso serviço...”. Outros sugeriram criar novos espaços de comunicação e ampliar a relação com as rádios: “Conhecer uma rádio próxima do trabalho... levando pacientes para fazer depoimentos”, “em parceria com a rádio comunitária, abordando temas e pesquisas (sugestão dos ouvintes) com horário estipulado”. Ocorreram manifestações relacionadas às equipes, rádios e comunidade (“promovendo encontros entre equipes de saúde e rádio, visitas de uma ao outro...”, “nas unidades e comunidades através de um calendário comum com assuntos diversos...”). A utilização da radionovela teve destaque: “escolher um tema e montar uma radionovela, com atores do nosso grupo como personagens, gravar e enviar para rádio...”. Houve interesse de uma dentista em criar um capítulo sobre saúde bucal. Conselho Gestor: Como a formação dos Conselhos era recente, existiam muitas dúvidas sobre seu papel. A visão genérica predominou: “ainda não sabemos muito sobre o Conselho Gestor...”, “... não que a proposta não seja ótima, mas... ainda tem muita coisa para mudar...”. Poucos valorizaram sua existência: “são meios de intercâmbio entre a comunidade e os gestores de saúde, são canais importantes de diálogo e reivindicação”, Por fim, foram estimulados a comentar a frase de Rubem Alves (Alves, Dimenstein, 2003, s/p): Comunicar é a arte de fazer que uma idéia tenha vida. Depois de plantada na cabeça de uma pessoa ela desce para o coração e começa a procriar. Só procriamos idéias que são amadas. E o que elas procriam são novas relações.
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Explicitaram-se os sentimentos despertados pelo trabalho: “as novas relações procriam... penso que as amadas também podem procriar...”, “... a partir do momento em que a idéia é aceita, ela começa a fazer parte da vida do indivíduo... e quando isso acontece o corpo e mente absorve...”. Em relação entre ideias e ação: “... que sejam úteis precisam ser passadas à frente, informadas a outras pessoas, multiplicadas”, “... no meu modo de ver temos que agir, fazendo com que as pessoas tenham idéias positivas em relação à saúde...”; “uma semente, bem semeada, cultivada...tenho muito orgulho de ser essa semente”, ou ainda “ reflete toda nossa vivência neste curso... Para trazer o melhor de nosso conhecimento para quem não os tem e aprender com quem nos pode ensinar....”. Avaliação da coordenação Sobre as oficinas e a participação A diversidade de materiais (o estímulo à manifestação,), a valorização do relato de experiências e a garantia da palavra criaram, nas oficinas, um clima favorável às trocas, ao aprendizado e entrosamento, impressão corroborada pela opinião dos participantes. Uma observação que respalda a afirmação acima foi a percepção de que o diálogo, nem sempre fácil entre pessoas de níveis diferentes de escolaridade, foi possível pela oportunidade de se utilizar a fala de “terceiros”, os personagens. Um grande “nó” foi a inconstância na participação dos radiocomunicadores, que dificultou a formação dos grupos de trabalho, com decorrências negativas para o processo educativo com a comunidade. Dentre os fatores que podem explicá-la e devem ser considerados em futuras experiências, destaque-se: coincidência de horário com outros vínculos de trabalho dos radialistas; falta de ajuda de custo para o deslocamento; receio de exposição, tendo em vista a perseguição da Anatel às emissoras da Grande São Paulo, especialmente as de Guarulhos, pela localização próxima do aeroporto, entre outros. Enquanto isso, os funcionários da saúde, liberados do ponto, assumiram compromisso com a presença e envolvimento com o projeto, como ilustra a disposição em contatarem as rádios faltantes, para que, mesmo sem a presença nas oficinas, pudessem engajar-se nas propostas de trabalho com a comunidade. As primeiras oficinas serviram para que a equipe de coordenação percebesse a necessidade de introduzir conceitos, tanto de disciplinas sociais como da área médica, o que foi feito pelo mediador da plenária com a finalidade de facilitar o processo de comunicação.
Sobre o projeto e suas possibilidades O desenho do projeto considerou o caráter ampliado do conceito de saúde e o potencial articulador desenhado pelo SUS. Sua contribuição considerou a ideia de que todo prestador de serviço presente num mesmo território possa se relacionar, formando redes institucionais que interajam com a comunidade de forma técnica, ao mesmo tempo, amigável, respeitosa aos saberes de outra origem e solidária com os movimentos de construção da cidadania. Segundo Teixeira (1997), espera-se que, como instrumento de transparência e participação popular, as práticas de comunicação em saúde gerem um comportamento participativo pelo qual se daria o controle social do sistema. Buscando uma nova forma de conceituar a possibilidade de abertura de diálogo proporcionado por esta visão de comunicação, o autor aponta que a participação não se restringe apenas aos aspectos quantitativos do consumo, cuja multiplicação e distribuição adequada garantiriam a satisfação das necessidades de saúde, mas também nos aspectos qualitativos que embasam os atos técnicos, as definições gerenciais frente às escolhas técnicas e o caráter circunstancial e histórico das ações e das necessidades de saúde. A metodologia permitiu que não se caminhasse na direção da normalização da vida, o que parece ter gerado uma maior possibilidade de aproximação entre os dois grupos e (mesmo) com a coordenação. Pareceu adequar-se ao que escreveu Cora Coralina: “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”. Outra preocupação que também pareceu ter sido superada foi a da aparente dicotomia entre informação técnica e possibilidade de ação no dia-a-dia. Buscou-se, ao longo do trabalho, mostrar que a divisão entre a prática - usada como o fazer utilitário, sem reflexão -, e a teoria - definida como um 442
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conjunto de abstrações compreendidas por poucos - unem-se no exercício da práxis, esta podendo ser entendida como ações orientadas por uma interpretação do mundo (teoria) que gera, no fazer, uma intencionalidade capaz de produzir mudanças (Vasquez, 1978). Dentre os objetivos aparentemente não atingidos e de grande importância na conquista de resultados, pode-se citar a inexistência de mecanismos para a manutenção da relação servidores-radialistas. Movimentos como estes precisam de retaguarda e proteção institucional (no caso dos serviços de saúde) e confiança nas ações governamentais (no caso das rádios comunitárias). Já que estes tinham dificuldade em compreender um poder público que, por um lado, chama e respeita, enquanto, por outro, lacra e sequestra os equipamentos. O projeto demonstrou potencial para contribuir com o processo de educação e participação popular, e duas frases expressam essa dimensão: uma de Pierre Levy - “A verdadeira inteligência do homem consiste em tornar sua sociedade inteligente. Ela se exprime nas mensagens (que se endereçam a outros), linguagens (cuja natureza é a de ser um laço), nas ferramentas (suscetíveis de transmissão, de melhoria, de combinação e de utilização coletiva), nas instituições (que concernem ao coletivo ou o organizam). A inteligência humana trabalha na conexão” (Levy, 2000, p.37); a outra, de um dos participantes: “Mobilização e conscientização sobre a saúde”. A maior parte dos comentários está identificada com verbos que indicam uma avaliação positiva do trabalho, o que pode ser fruto de análise temporalmente concomitante ao seu encerramento; mas um importante aviso deve ser registrado: o desenvolvimento e a efetividade de projetos como este exigem o compromisso dos gestores.
Colaboradores Os autores participaram igualmente da elaboração e redação do manuscrito.
Referências ALVES, R.; DIMENSTEIN, G. Fomos maus alunos. 3.ed. São Paulo: Papirus, 2003. (contracapa) BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. BOURDIEU, P. Esquisse de une théorie de la pratique. Paris: Librairie Droz, 1972. DOMINGUES, J.M. Vida cotidiana, história e movimentos sociais. Dados - Rev. Cienc. Soc., v.46, n.3, p.461-90, 2003. LEVY, P. A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: Editora 34, 2000. MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez/ Unesco, 2003. PITTA, A.M.R.; OLIVEIRA, V.C. Estratégias de comunicação frente ao desafio do Aedes aegypti no Brasil. Cienc. Saude Colet., v.1, n.1, p.137-46, 1996. TEIXEIRA, R.R. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.1, n.1, p.7-40, 1997. VALLA, V.V. Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva. Cad. Saude Publica, v.14, supl.2, p.7-18, 1998. VÁSQUEZ, A.S. Filosofia da praxis. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1978.
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Este trabalho refere-se à experiência desenvolvida no município de Guarulhos, sob o patrocínio do Ministério da Saúde, com o objetivo de envolver radiocomunicadores no processo educativo em saúde. Organizaram-se oficinas de trabalho com a participação de funcionários dos serviços municipais de saúde e de radialistas das rádios comunitárias das mesmas áreas de abrangência, para reflexão, discussão e elaboração de ações conjuntas sobre temas de saúde. Desenvolveu-se metodologia que articulou, além de textos acadêmicos, outros tipos de linguagem como pintura, música, radionovela, poesia etc., na abordagem dos assuntos. A avaliação final constou de um questionário preenchido pelos participantes e a análise das respostas indicou tratar-se de uma metodologia compatível com os objetivos de alcançar envolvimento e desenvolver parcerias entre comunicadores, serviços de saúde e comunidade.
Palavras-chave: Comunicação. Saúde. Rádios comunitárias. Educação. An experience in communication and health This paper reports on an experience developed in the municipality of Guarulhos, under the sponsorship of the Ministry of Health, in which the aim was to involve radio broadcasters in the health education process. Workshops on health subjects were organized with the participation of municipal healthcare service employees and community radio broadcasters with the same area of coverage, for reflection, discussion and elaboration of joint actions. The methodology developed brought together not only academic texts but also other types of language such as painting, music, radio serials, poetry, etc, to deal with these subjects. The final evaluation consisted of a questionnaire filled out by the participants. Analysis on the responses indicated that this methodology was compatible with the aims of achieving involvement and developing partnerships between communicators, healthcare services and the community.
Keywords: Communication. Health. Community radio stations. Education. Una experiencia en comunicación y salud Este trabajo se refiere a la experiencia desarrollada en el municipio de Guarulhos, estado de Sao Paulo, Brasil, bajo el patrocinio del Ministerio de la Salud, con objeto de involucrar a radiocomunicadores en el proceso educativo en salud. Se organizaron oficinas de trabajo con la participación de funcionarios de los servicios municipales de salud y de profesionales de las radios comunitarias de las mismas áreas que comprenden reflexión, discusión y elaboración de acciones conjuntas sobre temas de salud. Se ha desarrollado una metodología que articula, además de textos aoadémicos, otros tipos de lenguaje como pintura, música, radionovela, poesía etc en el planteamiento de los asuntos. La evaluación final consistió en un cuestionario respondido por los participantes; y el análisis de las respuestas indicó que se trata de una metologia compatible con los objetivos de obtener adhesión y desarrollar asociación entre comunicadores, servicios de salud y comunidad.
Palabras clave: Comunicación. Salud. Radios comunitarias. Educación. Recebido em 27/02/08. Aprovado em 07/10/08.
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MATOS, M.R.; MENEGUETTI, L.C.; GOMES, A.L.Z.
ANEXO I - Programação geral das Oficinas
Oficina
Data indicativa
Horário sugerido
Tema
Suportes/Conteúdos
Oficina de abertura e reconhecimento dos grupos 01
16 /09
8h30 às12h30
SUS, Saúde e Comunicação
Pintura - A escola de Atenas (Rafael) Crônica: O menino do dedo roxo (Lourenço Diaféria) Textos: 1- Balanço de experiências de controle social, para além dos Conselhos e Conferências do Sistema Único de Saúde brasileiro: construindo a possibilidade de participação dos usuários (Côrtes, S.M.V.) 2- Trechos da Lei nº 8080 3- Trechos da Lei nº 8142 4 - 12ª Conferência Nacional de Saúde Eixo Temático X – Comunicação e Informação em Saúde Música - Boas vindas (Caetano Veloso)
Pintura - Vida e morte (Gustav Klimt ) Radionovela: Almoço de domingo - cap.1 (Luiz Meneguetti) Textos: 1- A doença (Berlinguer, G.) 2- Saúde-doença: uma concepção popular de etiologia. Mynaio, M.C.S. Música – Pulso - Titãs
Oficinas de interação e aprofundamento 02
21/09
8h30 às12h30
Saúdedoença
03
30/09
8h30 às12h30
Atenção à saúde
04
05/10
8h30 às12h30
Modelos de atenção
Pintura - Tem cabeça, mãos, pés e coração (Paul Klee) Radionovela: Almoço de domingo - cap.3 (Luiz Meneguetti) Texto: Modelos de atenção voltados para a qualidade, efetividade, equidade e necessidades prioritárias de saúde (Teixeira, C.F.) Poesia - Mãos dadas (Carlos Drummond de Andrade)
Pintura - Abraço (Egon Schiele) Radionovela: Almoço de domingo - cap.4 (Luiz Meneguetti). Textos: 1- AIDS - Manual de Sobrevivência (http:// openlink.br.inter.net/aids2- www.unaids.org/wad2004/ report.htm; 3- www.aids.gov.br4; www.crt.saude.sp.gov.br) Cordel - Paródia do mijador com mijador - CD Radialistas contra AIDS
Pintura - Enfermaria do Hospital de Arles (Van Gogh) Radionovela: Almoço de domingo - cap.2 (Luiz Meneguetti) Texto: A gestão dos serviços públicos de saúde: características e exigências ( Dussault, G.) Poesia - Ode às muletas (Cora Coralina)
Oficinas temáticas 05
14/10
8h30 às12h30
DST e Aids
06
19/10
8h30 às12h30
Tuberculose
Pintura - Grupo do homem doente (Cândido Portinari) Radionovela: Almoço de domingo - cap.5 (Luiz Meneguetti) Texto: A tuberculose ao longo dos tempos (Gonçalves,H.) Poesia - Pneumotórax (Manuel Bandeira)
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UMA EXPERIÊNCIA EM COMUNICAÇÃO E SAÚDE
Oficina
Data indicativa
Horário sugerido
Tema
Suportes/Conteúdos
Oficinas temáticas 07
26/10
8h30 às12h30
Hipertensão
Pintura - Mulher chorando (Pablo Picasso) Radionovela: Almoço de domingo - cap.6 (Luiz Meneguetti) Textos: 1 - Cultura, Saúde & Doenças (Helman, C.G.) 2 - Gestão de saúde: curso de aperfeiçoamento para dirigentes municipais de saúde: programa de educação a distância (Fiocruz) 3 - www.manuais de cardiologia.med.br/hás Poesia – Não comerei do alface a verde pétala... (Vinicius de Moraes)
08
09/11
8h30 às12h30
Diabetes
Charge sem título de João Bosco de Azevedo Radionovela: Almoço de domingo - cap.7 (Luiz Meneguetti) Texto: Consenso Diabetes (http//www.diabetes.org.br) Parábola: O discurso e a prática (Org. Alexandre Rangel. Ed. Leittura - 2002)
09
11/11
8h30 às12h30
Vacinação
Ilustração do acervo da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (A Revolta da Vacina da Varíola às Campanhas de Imunização (Rio de Janeiro, 1994). Radionovela: Almoço de domingo - cap.8 - Luiz Meneguetti Texto: Qual a cobertura vacinal real? Informe Unifesp Moraes, J.C. et al. Mensagem: Betinho - A criança é coisa séria
10
16/11
8h30 às12h30
Gravidez na adolescência
Madona - ilustração de Reginaldo Fortuna Radionovela: Almoço de domingo - cap.9 (Luiz Meneguetti) Textos: 1 - Gravidez de adolescência: uma questão social (Souza, I.F.) 2 - Gravidez na adolescência (Paulics, V.) Música: Ligeiramente grávida (Rita Lee)
11
18/11
8h30 às12h30
Álcool e drogas
Ilustração de Luís Eugênio Quintão Guerra Radionovela: Almoço de domingo - cap.10 (Luiz Meneguetti) Texto: A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas (2003) Música: Marvada pinga (Rolando Boldrin)
12
23/11
8h30 às12h30
Acolhimento no SUS
8h30 às 12h30
Avaliações
Ilustração do cartunista Laerte Radionovela: Almoço de domingo - cap.11 (Luiz Meneguetti) Texto: Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva (Valla, V.V.) Poema: A arte de ser feliz (Cecília Meireles)
Oficina de encerramento 13
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25/11
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.13, n.31, p.437-47, out./dez. 2009
espaço aberto
MATOS, M.R.; MENEGUETTI, L.C.; GOMES, A.L.Z.
ANEXO II - Mapa da cidade de Guarulhos com a indicação das 11 rádios comunitárias do município que manifestaram interesse em participar das oficinas do projeto.
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Promoção da amamentação por crianças do Ensino Fundamental Aida Victoria Garcia Montrone1 Cássia Irene Spinelli Arantes2 Nathalia de Moraes Lébeis3 Talita de Azevedo Coelho Furquim Pereira4
Introdução Sabe-se que o leite materno é o melhor alimento para o bebê, pois contém todos os nutrientes necessários e atende necessidades físico-químicas, imunológicas e fisiológicas do lactente (Nobrega, 2006; Almeida, 2004, 1999). Para a mãe, é um fator de proteção de câncer de mama e de ovário, auxilia na recuperação pós-parto, no intervalo interpartal, e, possivelmente, tem resultados positivos em relação à artrite reumatóide e à depleção mineral óssea (Teruya, Coutinho, 2006; Rea, 2004). Amamentar propicia o estabelecimento dos vínculos afetivos e é reconhecido que o contato direto mãe-bebê e a participação paterna durante o processo de lactação favorecem o desenvolvimento afetivo-emocional e social na infância (Carvalho, Pamplona, 2001). Economicamente, o aleitamento materno é vantajoso para a família, estabelecimentos de saúde e para a sociedade, pois reduz gastos com leites artificiais e mamadeiras, reduz episódios de doenças nas crianças e, consequentemente, as faltas ao trabalho dos pais por doença da criança (Giugliani, 2002). Um outro benefício é o ecológico, já que amamentar não polui, não precisa de embalagem e não há desperdício, sendo de grande importância para a preservação da natureza. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, a cada ano, um milhão e meio de mortes poderiam ser evitadas por meio da prática do aleitamento materno. Entretanto, a duração do aleitamento materno exclusivo5 é menor que o proposto pela OMS em praticamente todos os países do mundo (Nakamura et al., 2003). No Brasil estudos vêm mostrando um aumento nas taxas de prevalência do aleitamento materno. A duração mediana da amamentação elevou-se de 5,5 meses em 1989 para sete meses em 1996, sendo este aumento mais acentuado na área urbana e nas regiões centro-oeste e sudeste (Venâncio, 2003; Venâncio, Monteiro, 1998; Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, 1997; Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição, 1989). Na cidade de São Carlos, SP, a porcentagem de crianças menores de quatro meses em aleitamento materno exclusivo foi de 37,8%, bem distante dos 100% preconizados pela OMS (Montrone, Arantes 2000). O Instituto de Saúde de São Paulo vem coordenando inquérito sobre a prática de alimentação infantil desde 1998, nos municípios do estado de SP,
1 Departamento de Metodologia de Ensino, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Rodovia Washington Luís, Km. 235, São Carlos, SP, Brasil. 13565-905 montrone@ufscar.br 2 Departamento de Enfermagem, UFSCar. 3 Graduanda de Licenciatura e Bacharelado em Enfermagem, UFSCar. Bolsista PIBIC/CNPq. 4 Graduanda de Enfermagem, UFSCar. Bolsista ProEx/UFSCar.
Amamentação exclusiva: aleitamento materno como único alimento, podendo o lactente receber, também, vitaminas, minerais ou medicamentos; recomendada até seis meses. Amamentação: recebe leite materno, independente do consumo de qualquer complemento, lácteo ou não; recomendada, pelo menos, até os dois anos (Brasil, 2002; OMS, 1991).
5
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PROMOÇÃO DA AMAMENTAÇÃO POR CRIANÇAS ...
mostrando que tem ocorrido uma melhora na evolução dos índices de aleitamento materno exclusivo (Instituto de Saúde de São Paulo, 2008). Diante disto, vemos que é necessário ampliar as ações de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno nas cidades brasileiras, de maneira a adequar os programas de amamentação às necessidades e realidades de cada região. A decisão materna de amamentar ou não, e por quanto tempo, é regida por múltiplos componentes, tais como: motivação, apoio familiar, apoio cultural, educação pré e pós-natal, e conhecimentos e habilidades específicos sobre como amamentar. A educação na promoção da amamentação deve, portanto, considerar todos estes aspectos bem como a formação de uma cultura favorável à amamentação que pode ser iniciada bem antes da mulher engravidar ou do homem descobrir que será “papai”. Segundo Nakamura et al. (2003, p.182), “se desde a escola as crianças recebessem informações adequadas sobre o aleitamento materno, quando chegassem a serem mães, as meninas possivelmente estariam mais motivadas a amamentar e, no caso dos meninos, mais aptos a apoiar a decisão materna”. A implementação de ações educativas para a promoção da amamentação em escola do Ensino Fundamental favorece o interesse e desperta as crianças para a temática (Montrone et al., 2003). As crianças trazem conhecimentos sobre a prática de amamentar, advindos do convívio e experiências na família e nas comunidades em que vivem, que devem ser considerados no processo de ensinar e aprender. Neste sentido, Paulo Freire (1992) nos alerta sobre a diferença do momento vivido pelo(a) educador(a) e o momento vivido pelo(a) educando(a). É preciso que o(a) educador(a) saiba que o seu “aqui” e o seu “agora” são quase sempre o “lá” do educando. [...] tem que partir do “aqui” do educando e não do seu. [...] Isto significa, em última análise, que não é possível ao(à) educador(a) desconhecer, subestimar ou negar os “saberes de experiências feitos” com que os educandos chegam à escola. (Freire, 1992, p.59)
Nos processos educativos na promoção da amamentação, o diálogo pode contribuir para a desconstrução de mitos e construção de novos conhecimentos e atitudes positivas frente à amamentação. Neste sentido, a pergunta é fundamental. Ao contrário da educação bancária, em que ela responde o conteúdo programático, a educação dialógica pressupõe “a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada” (Freire, 1987, p.84). No ato de educar, a palavra não é para os educandos, e sim com os educandos, mediatizados pelo mundo. Se não sei escutar e não dou testemunho aos educandos da palavra verdadeira através da minha exposição à palavra deles, termino discursando “para” eles. Falar e discursar “para” termina sempre em falar “sobre”, que necessariamente significa “contra”. Viver apaixonadamente a palavra e o silêncio significa falar “com” os educandos, para que também eles falem “com” a gente. (Freire, 1985, p.1)
Desta forma, falando-se “com” as crianças e compartilhando conhecimentos e experiências sobre a prática de amamentar, pode-se contribuir para que elas venham a ser agentes de promoção da amamentação nas suas comunidades e auxiliar na melhoria dos índices de aleitamento materno. Tendo como referência a educação pautada nos pressupostos de Paulo Freire, 1985, 1987, o objetivo deste estudo foi descrever e analisar processos educativos envolvidos no desenvolvimento e implementação de propostas educativas elaboradas por crianças do Ensino Fundamental para a promoção da amamentação na comunidade escolar.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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MONTRONE, A.V.G. et al.
espaço aberto
Metodologia Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem qualitativa de análise de dados. A população de estudo se constituiu de 38 crianças, vinte meninas e 18 meninos, com idade entre nove e 11 anos, do Ensino Fundamental da Escola Estadual Bento da Silva César, São Carlos, SP. O trabalho de campo foi realizado em cinco etapas: Etapa 1 - Aproximação da Escola de Ensino Fundamental: foi contatada a direção da escola que aprovou o desenvolvimento do trabalho. O projeto foi apresentado para a professora da quarta série e seus/suas alunos/as, convidando-os/as a participar desta pesquisa. Etapa 2 - Inserção no grupo de crianças participantes: as pesquisadoras se inseriram no grupo de crianças por meio do convívio nas atividades realizadas e em momentos escolares e de recreação. Etapa 3 - Entrevistas: foram realizadas entrevistas grupais com as crianças, na escola, seguindo um roteiro com as seguintes questões: Como vocês acham que devem ser alimentados os bebês? Vocês acham que amamentar no peito é bom ou ruim para a mãe? Por quê? Até que idade vocês acham que o bebê precisa mamar só no peito? Por que vocês acham que algumas mães não conseguem amamentar seus bebês? O que vocês acham que a mãe tem de fazer para ter bastante leite? O que vocês ouviram falar sobre: por que algumas mães param de amamentar? O que vocês acham que é necessário fazer para ajudar as mães a amamentarem? Também foram entrevistadas algumas professoras, e a pergunta foi: O que você acha da promoção da amamentação na escola, por alunos/as de quarta série? Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas para análise e interpretação dos dados. Etapa 4 - Programa de ensino: com base nos dados das entrevistas grupais e da dinâmica para levantamento de dados com as crianças sobre conhecimentos, atitudes, dúvidas e curiosidades em relação à prática de amamentar, foi elaborado e implementado o programa de ensino. Etapa 5 - Promoção da amamentação: as crianças propuseram as ações educativas, elaboraram materiais de divulgação e realizaram as atividades de promoção da amamentação na escola. Estas atividades foram desenvolvidas com todas as crianças e professores das terceiras séries em um dia, no final do período letivo. Os registros sobre todas as atividades desenvolvidas foram realizados por meio de notas de campo organizadas pelo grupo de pesquisadoras. Para análise temática dos dados, foram seguidos os passos propostos por Minayo (2004). Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (Proc. nº 216/05).
Resultados e discussão Na análise dos dados, emergiram as seguintes categorias temáticas: percepção e conhecimentos sobre a prática de amamentar; ensinar e aprender sobre amamentação; crianças na promoção da amamentação.
Percepção e conhecimentos sobre a prática de amamentar Constatou-se que as crianças trazem conhecimentos adquiridos em suas próprias casas, na vivência com seus familiares e no convívio na sua comunidade. Durante a primeira entrevista, quando perguntadas como devem ser alimentados os bebês, elas referiram que os bebês devem ser alimentados com o leite da mãe e com a papinha, mas não souberam explicitar até que idade deveriam mamar só no peito e quando poderiam começar a comer outros tipos de alimentos, como mostra a fala a seguir: “Minha mãe e minha tia, falou que tem que dar mamar até quando conseguir.”
Conhecem, ainda, que a amamentação é importante para o bebê:
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PROMOÇÃO DA AMAMENTAÇÃO POR CRIANÇAS ...
“Porque o leite já tem proteína, vitamina e sais minerais, e quando nasce ele só precisa daquele leite.”
A partir destes resultados, foram incluídos, no programa de ensino, conteúdos sobre duração e tipos de amamentação, seguindo a recomendação da OMS e do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil, 2002; OMS, 1991). Quando as crianças foram indagadas sobre os benefícios de amamentar para a mulher, as respostas se relacionaram à amamentação com dor, julgando ser ruim para a mãe, ou como um benefício que ela deve outorgar para seu filho, ou seja, um dever da mãe. Para algumas crianças, amamentar gera satisfação e felicidade da mãe ao ver seu filho saudável. As falas a seguir ilustram estes dados. “Eu acho que é ruim. Não sei por que, mas minha mãe fala que nunca gostou de amamentar no peito.” “É bom porque o bebê cresce saudável e a mãe fica feliz.”
De acordo com o levantamento desses conhecimentos, foram propostas atividades para analisar os benefícios do aleitamento materno, não só para o bebê, mas também para a mãe, família e sociedade. Em relação às dificuldades do aleitamento materno, as crianças apontaram: “Acho difícil para trabalhar, né. Ela tem que deixar o bebê.” “Porque o leite empedra.”
Assim, foram elaboradas as atividades sobre dificuldades na amamentação (como leite empedrado, ingurgitamento mamário, pega correta do bebê etc.) e suas resoluções (ordenha manual, passar o próprio leite na aréola etc.). Foi elaborada, também, uma atividade sobre legislação, abordando licençamaternidade e paternidade e direitos maternos na volta ao trabalho. As crianças comentaram dificuldades que podem ocorrer no processo de lactação e apresentaram os mesmos mitos que pessoas adultas, provavelmente porque ouvem seus pais, amigos e familiares conversando sobre o assunto. “Tem mãe que não tem leite, o leite seca.” “Tem mãe que tem leite fraco” “Se o bico rachar, tem que passar pomada.”
Para tratamento de lesões mamilares, seguiu-se a recomendação atual de tratamento úmido (Giugliani, 2004), com a utilização do próprio leite materno, a fim de formar uma camada úmida de proteção e evitar a desidratação. Trabalhar com as crianças cada um destes conhecimentos e mitos quanto a sua veracidade, com base na experiência científica, possibilita a desconstrução de mitos e a construção de conhecimentos corretos para a resolução de dificuldades. Tentamos, nesta forma de trabalho, utilizar habilidades do enfoque de aconselhamento usado na abordagem às mães (Bueno, Teruya, 2004).
Ensinar e aprender sobre amamentação O ensinar e aprender se deu de forma contínua e coletiva, por meio do qual crianças e educadoras puderam trocar conhecimentos, saberes e experiências, permitindo que todos participassem do processo de construção do conhecimento. A seguir, descrevemos algumas atividades que exemplificam este resultado. 452
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espaço aberto
No início da atividade sobre composição do leite materno, perguntou-se às crianças se elas sabiam como os alimentos são classificados, para, posteriormente, falar sobre a composição do leite. Foi utilizada a dinâmica “tempestade de palavras”, em que as crianças falavam quaisquer alimentos que lembrassem, os quais eram escritos numa metade da lousa; na outra metade, havia três colunas: alimentos construtores, reguladores e energéticos. Após esta classificação, foi colocado que o leite materno possui todas essas propriedades, além de água e anticorpos. Todos ficaram surpresos quando foi dito que existe água no leite materno: “Ah, então é por isso que o bebê não precisa beber água?” Podemos verificar, na fala desta menina, como ocorreu o processo de aprendizagem, as relações que ela fez entre o que acabou de aprender e sua conclusão sobre por que os bebês não precisam ingerir outros alimentos ou líquidos além do leite materno até os seis meses. Quando foi abordado que, no leite materno, havia anticorpos, houve uma agitação geral, pois as crianças não sabiam o que isso significava. Então foi explicado que eram “soldadinhos de defesa”, que protegem nosso organismo contra doenças e infecções. Esta forma de apresentar este conteúdo favoreceu a aprendizagem das crianças. Ela se mostrou motivadora e despertou a curiosidade e a criticidade das crianças. Neste sentido, Freire aponta: “Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que nós fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos” (Freire, 2004, p.32). Para as crianças, esse conhecimento foi novo e o fato de se utilizar uma linguagem mais próxima da realidade delas possivelmente contribuiu para que entendessem melhor, incentivando-as para a construção de novos conhecimentos. Após essa primeira atividade e a posterior discussão sobre a composição do leite materno, a maioria das crianças soube responder qual era a composição do leite materno. Um outro tema abordado foi sobre o tempo recomendado de amamentação. Foi discutido com elas que o leite materno é um alimento completo que contém tudo o que bebê precisa para crescer saudável e, por isso, recomenda-se a amamentação exclusiva até seis meses. A partir dessa idade, inicia-se a alimentação complementar, continuando a amamentar até dois anos ou mais. As crianças ficaram interessadas e relacionaram estes conhecimentos às experiências feitas, construindo novos saberes. O educador, segundo Freire (1992, p.59): “não pode negar ou subestimar os saberes e experiências feitos com que os educandos chegam à escola”; para isto foi necessário que se ouvisse com atenção o que cada um tinha a dizer, de forma a facilitar a construção individual e coletiva dos conhecimentos. Para abordar os benefícios do aleitamento materno, as crianças foram divididas em grupos e cada uma recebeu uma folha com várias frases sobre os benefícios da amamentação. Escreveu-se na lousa: “mãe, família, bebê e mundo”; as crianças fizeram o mesmo em suas folhas, formando quatro colunas. Cada grupo tinha de relacionar o benefício ao beneficiado. As crianças demonstraram conhecimentos, como: “amamentar é bom porque o bebê fica forte” e “o leite da mãe é o melhor alimento para o bebê que acabou de nascer”. Porém, quando foi perguntado a elas se sabiam para quem era bom amamentar, a maioria das respostas estava relacionada somente a vantagens para o bebê. No decorrer das atividades, elas relacionaram o benefício ao beneficiado (bebê, mãe, família e mundo). As atividades sobre a temática anatomia e fisiologia da lactação tiveram início perguntando-se às crianças se elas sabiam onde e como é produzido o leite materno. Elas responderam: “Ah, Deus manda.” “Vem do leite que a mãe bebe.”
A seguir, as crianças foram divididas em grupos e cada uma recebeu massas de modelar e um perfil de uma mama feita com folha emborrachada (EVA). As crianças aprenderam sobre os alvéolos (“fabriquinhas” que produzem o leite), ductos lactíferos (“estradinhas” que levam o leite até as ampolas) e ampolas/seios lactíferos (“mercadinhos” onde o leite fica armazenado até o bebê mamar). No final da atividade, as crianças reconheciam o nome das estruturas e suas funções (Figura 1).
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PROMOÇÃO DA AMAMENTAÇÃO POR CRIANÇAS ...
Figura 1. Material confeccionado pelas crianças durante atividade educativa sobre anatomia das mamas e fisiologia da lactação
O ensino sobre a ordenha manual e a conservação do leite materno foi feito utilizando-se: um modelo de mamas, para demonstrar como se realiza a ordenha manual; um vidro de maionese vazio, para ensinar o armazenamento do leite ordenhado, e um copo para mostrar como pode ser oferecido o leite materno ao bebê. Uma menina destacou a utilidade da ordenha na continuidade da amamentação para as mães trabalhadoras: “Se a mãe for trabalhar, ela pode fazer a ordenha e alguém pode dar o leite pro neném assim no copinho, né, daí ela pode trabalhar e amamentar seu bebê também”. Também o conteúdo sobre legislação foi apresentado às crianças, por meio de uma conversa na qual elas aprenderam os direitos da mulher gestante, da mulher puérpera e do pai. Na discussão sobre por que a mama da mulher fica diferente após a gestação, uma criança disse: “Minha mãe disse que amamentar faz o peito cair”. Este é um mito muito difundido na sociedade e, para trabalhá-lo, foi realizada uma discussão e análise com as crianças sobre o desenvolvimento mamário até a gestação, período em que se completa o desenvolvimento. Para facilitar a compreensão das crianças, foi realizada a seguinte atividade: na lousa, foram desenhados perfis da glândula mamária feminina na infância, adolescência, idade adulta e gestação, demonstrando o desenvolvimento mamário das mulheres. Segundo Freire (1992, p.81), “[...] ensinar não é a simples transmissão do conhecimento em torno do objeto ou conteúdo”. O educando precisa aprender a razão de ser do conteúdo. Neste caso, as crianças entenderam por que é um mito “o peito cai com a amamentação”; elas compreenderam o desenvolvimento mamário durante a gestação e entenderam que as mudanças ocorrem nas mamas, independente de a mulher amamentar. Ao se abordarem as dificuldades na amamentação, as crianças discutiram sobre o leite empedrado (ingurgitamento mamário): “O que eu tenho que fazer se o leite empedrar?”. A outra criança respondeu: “Coloca na água quente e faz massagem, minha tia fazia isso quando ela teve bebê”. Foi discutido com as crianças que colocar água quente nas mamas vai aumentar ainda mais a produção de leite e que leite empedrado é acúmulo de leite, por esse motivo, a solução é a retirada deste acúmulo, por meio da ordenha manual.
Crianças na promoção da amamentação Para a promoção da amamentação na escola, as crianças propuseram e confeccionaram diversos jogos, modelos anatômicos de mama e música. Elas demonstraram muita criatividade e responsabilidade na construção destes materiais. A elaboração desses materiais educativos aponta que as crianças, quando incentivadas a criarem seus próprios meios de ensinar, não optam pela maneira expositiva, como são ministradas as aulas dos professores no dia-a-dia. Durante a entrevista com a professora da quarta série, ela também destacou a importância da utilização de outros materiais para ensinar: 454
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“O material que vocês usaram foi muito bom, posso dizer, surpreendente. É um material simples, objetivo, prático, mas que chega ao interesse do aluno...”
No dia da promoção da amamentação na escola, todas as crianças estavam ansiosas para o início das atividades. A primeira atividade foi o rap da amamentação, que foi criado e apresentado por uma dupla (Figura 2).
AMAMENTE SEU FILHO
DICA DA GENTE
Amamentação é coisa boa. É um poder que a gente tem de amamentar o filho pra fazer o bem!
Esse é o rap da amamentação. Fique ligado, concentração! Se você quiser que o bebê cresça forte e saudável, preste muita atenção.
Amamentação! Preste muita atenção! Amamente seu filho. No seu leite tem sais minerais e também muito mais!
Esse é o rap da amamentação. Amamente seu filho exclusivamente. Essa é uma dica da gente! O leite faz bem para a mãe também e muito forte pode ficar seu neném. É uma opção! Termina por aqui Mais um rap da amamentação. Se liga aí, meu irmão!
Figura 2. Letras de dois raps elaborados pelas crianças.
Duas meninas ensinaram sobre a anatomia e fisiologia da lactação e destacaram a importância da pega correta (Figura 3).
Figura 3. Modelo anatômico de mamas confeccionado pelas crianças com massa de modelar, isopor, tintas e papel cartão.
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Um grupo de meninos trabalhou a promoção da amamentação com um jogo de dama: em cada casa do tabuleiro havia uma pergunta e a peça só era movida se a resposta estivesse correta (Figura 4).
Figura 4. Jogo de dama da amamentação: tabuleiro, peças e caixinha com perguntas.
Estes resultados mostram que crianças podem ser promotoras da amamentação. Neste sentido, Montrone (2002) aponta que a promoção da amamentação pode ser realizada não somente por profissionais da saúde, como também por outros membros das comunidades, neste caso, crianças de escola de Ensino Fundamental. A professora da quarta série também destacou a importância da atividade na promoção da amamentação pelas crianças: “Ensinam para as mães, para as irmãs, porque aqui são famílias de muitos filhos... Muitos aqui tiveram irmãozinho [...] E eles falavam pra mim: ‘professora, minha mãe teve bebê, ela está amamentando’ [...] a criança leva a informação para casa, com certeza.”
Para as crianças, realizar as atividades de promoção possibilita que elas utilizem sua criatividade e conhecimentos ao terem oportunidade de ensinar o que aprenderam a outras crianças e às suas famílias: “Sempre que eu chego em casa eu conto pra minha mãe tudo que aprendi, ela até me faz perguntas...eu começo a contar, e ela acredita em mim.”
Estes resultados indicam que crianças de quarta série do Ensino Fundamental podem ser agentes de mudança em sua comunidade escolar, levando conhecimentos e atitudes favoráveis à prática de amamentação.
Conclusões Em relação à percepção e conhecimentos sobre a prática de amamentar, verificou-se que o aleitamento materno faz parte do cotidiano das crianças, seja na convivência, seja na participação da gestação de suas mães, tias ou vizinhas, ou na alimentação de bebês na família ou comunidade. E, neste cotidiano, as crianças constroem saberes e atitudes sobre a prática de amamentar. 456
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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MONTRONE, A.V.G. et al.
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Foi constatado que crianças da quarta série do Ensino Fundamental apresentam os mesmos mitos presentes na população adulta: “leite fraco”, “o peito cai”, “amamentar só faz bem para o bebê” e outros. Na temática ensinar e aprender sobre amamentação, a metodologia utilizada no desenvolvimento do programa de ensino mostrou-se adequada, pois favoreceu a criatividade, a curiosidade, a criticidade e a construção de conhecimentos e atitudes favoráveis ao aleitamento materno. As atividades desenvolvidas incentivaram professores a discutirem esta temática, assim como a repensarem a metodologia utilizada no ensino das disciplinas curriculares. Na promoção da amamentação na comunidade escolar, as crianças apresentaram iniciativa, empenho, responsabilidade e criatividade ao proporem e confeccionarem jogos, brincadeiras, modelos anatômicos e músicas, instigando as crianças de outras classes, professores e funcionários da escola a participarem da promoção. Os materiais criados e utilizados se mostraram apropriados para se trabalhar esta temática junto à comunidade escolar. Assim, crianças de quarta série do Ensino Fundamental podem ser agentes de mudança em sua comunidade escolar. Os depoimentos das crianças e das professoras evidenciam que as crianças também podem ser interlocutoras na promoção da amamentação em suas famílias e na comunidade em que vivem, ao ensinarem sobre a prática de amamentar. Além da formação de uma cultura favorável à amamentação em diversas comunidades, a experiência propiciada por este trabalho passa a fazer parte da vida dessas crianças, que, quando forem pais e mães, possivelmente terão atitudes de valorização da prática de amamentar. Esta é uma experiência inovadora e de grande relevância para a valorização social e promoção de uma cultura favorável à prática da amamentação, mostrando que a formação de crianças para a promoção da amamentação contribui para a promoção da prática de amamentar nas comunidades.
Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas do manuscrito. Referências ALMEIDA, J.A.G. Amamentação: a relação entre o biológico e o social. In: ______. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p.15-23. ALMEIDA, J.A.G.; NOVAK, F.R. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. J. Pediatr., v.80, n.5, supl., p.119-25, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan Americana da Saúde. Guia alimentar para crianças menores de dois anos. Normas e manuais técnicos. Série A, n.107. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.opas.org.br/sistema/arquivos/ Guiaaliment.pdf>. Acesso em: 31 out. 2007. BUENO, L.G.S.; TERUYA, K.M. Aconselhamento em amamentação e sua prática. J. Pediatr., v.80, n.5, supl., p.126-30, 2004. CARVALHO, M.R.; PAMPLONA, V. Pós-parto e amamentação: dicas e anotações. São Paulo: Agora, 2001. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. ______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 11.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
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O objetivo deste estudo foi descrever e analisar processos educativos envolvidos no desenvolvimento e implementação de propostas educativas elaboradas por crianças do Ensino Fundamental para a promoção da amamentação na comunidade escolar. Trata-se de um estudo descritivo com análise qualitativa dos dados. Participaram 38 crianças de uma escola pública de São Carlos-SP. Os resultados mostraram que as crianças possuem conhecimentos, atitudes e mitos sobre a prática da amamentação oriundos da observação e da convivência com a família e pessoas das comunidades às quais pertencem. Elas tiveram criatividade e responsabilidade na proposição e confecção de jogos, brincadeiras, modelos anatômicos e músicas para promover a amamentação na comunidade escolar, incentivando crianças, professores/as e funcionários à participação nas atividades propostas. Conclui-se que a promoção da amamentação por crianças do Ensino Fundamental contribui para a formação de conhecimentos, atitudes positivas e uma cultura favorável frente à prática de amamentar.
Palavras-chave: Amamentação. Promoção da saúde. Crianças. Processos educativos. Breastfeeding promotion by children within Elementary Education The objective of this study was to describe and analyze the educational processes involved in developing and implementing educational proposals elaborated by children within elementary education to promote breastfeeding within the school’s community. This was a descriptive study with qualitative data analysis. Thirty-eight children from a public school in São Carlos, SP, Brazil participated. The results indicated that the children had knowledge, attitudes and myths regarding breastfeeding practice arising from observations of their families and closeness of living with them and people from their community. They were creative and responsible in proposing and preparing games, activities, anatomical models and music in order to promote breastfeeding within the school’s community, thus encouraging children, teachers and school employees to participate in the activities. It was concluded that promotion of breastfeeding by children within elementary education contributes towards creating knowledge, positive attitudes and a culture favorable to the practice of breastfeeding.
Keywords: Breastfeeding. Health promotion. Children. Educational processes. Promoción del amamantamiento por niños de la Enseñanza Fundamental El objeto de este estudio ha sido el de describir y analizar procesos educativos concernientes al desarrollo e implementación de propuestas educativas elaboradas por niños de la Enseñanza Fundamental para la promoción del amamantamiento en la comunidad escolar. Se trata de un estudio descriptivo con análisis cualitativa de los datos. Han participado 38 niños de una eecuela pública de São Carlos, estado de São Paulo, Brasil. Los resultados muestran que los niños poseen conocimientos, actitudes y mitos sobre la práctica del amamantamiento oriundos de la observación y del convívio con la familia y personas de las comunidades a las que pertenecen. Ellos han tenido creatividad y responsabilidad en la propuesta y confección de juegos, bromas, modelos anatómicos y Músicas para promover el amamantamiento en la comunidad escolar, incentivando a niños, profesoras, profesores y funcionarios hacia la participación en las actividades que se han propuesto. Se concluye que la promoción del amamantamiento por niños de la Enseñanza Fundamental contribuye a la formación de conocimientos, act itudes posit ivas y una cultura favorable frente a la práctica del amamantamiento.
Palabras clave: Amamantamiento. Promoción de la salud. Niños. Procesos educativos. Recebido em 26/05/08. Aprovado em 07/10/08.
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Entre a academia e a rua: Victor Vincent Valla (1937-2009)
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Desde a experiência inicial em Angicos, nos primeiros meses de 1963 (Lyra, 1997), a educação popular formulada por Paulo Freire consistiu num método de educação de adultos como parte de um programa mais amplo de mobilização popular. Este método de construção de uma nova consciência social implicava solidariamente educadores e educandos num processo educativo e político, de tal modo que o homem do povo pudesse assumir-se enquanto sujeito da transformação de sua vida e, portanto, da sociedade que, em parte, a determinava. Mas, no Brasil, depois do golpe militar e do exílio do autor, em virtude da repressão dos movimentos de educação popular, substituídos pela ditadura com o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), a “[...] educação popular mudou de um trabalho político junto ao povo, através da alfabetização, para um trabalho político com o povo, sem a alfabetização” (Brandão, 2006, p.90). Essa mudança se deu na segunda metade dos anos 1970, nas cidades e no campo, com a emergência das primeiras manifestações de oposição popular à ditadura militar. As próprias instituições acadêmicas abriram-se para se pensarem essas manifestações e abrigaram intelectuais e pesquisadores de oposição. É nesse contexto que Victor Vincent Valla, então um recém doutor em História Social, ingressou na Universidade Federal Fluminense. Isso aconteceu em 1975. Dois anos depois, transformava a educação popular – denominada “não-formal e extraescolar” – em objeto de pesquisa no Instituto Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas (IESAE-FGV), “dentro de uma perspectiva histórica” e reconhecendo que lidava com as formas de educação para ou com as “camadas populares”, conforme suas próprias palavras (Valla, 1986, p.11). Estabelece-se nesse momento o elo vital entre a academia e a rua, que iria caracterizar a trajetória desse professor e pesquisador de origem americana, aportado em terras brasileiras imediatamente após o golpe de 1964. Isso porque, em 1977, ao lado de seu trabalho como pesquisador do IESAE, Valla atuava como professor de ensino supletivo numa favela em Santa Teresa e colaborador da reconstrução da Federação de Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro - FAFERJ. Para ele, a educação popular numa perspectiva de transformação social, como o método de Paulo Freire, era uma contraproposta inserida “num campo previamente delimitado pela expansão e consolidação do capitalismo” (Valla, 1986, p.18). Em outros termos, Valla acentuava a importância tanto das determinações estruturais, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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como das tentativas de superá-las. A influência do marxismo, recebida de seus próprios alunos de língua inglesa no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos, onde trabalhou entre 1967 e 1973, e a formação como historiador nos cursos de mestrado e doutorado em História Social da USP (Especial Victor Valla, 2006), na qual se destaca a leitura de Edward Carr (O que é História?), o conduziram ao permanente exame das práticas sociais nos contextos sociais em certo momento histórico. É notável, em tais análises, a perspectiva de cientistas sociais como José Álvaro Moisés e Lucio Kowarick, preocupados em entender o papel das políticas públicas na dinâmica do desenvolvimento capitalista e na reprodução da força de trabalho em países periféricos como o Brasil. A primeira sistematização desse estudo em Educação e favela já contém o leitmotiv de sua pesquisa. É interessante neste sentido assinalar que Valla parafraseou o urbanista inglês John Turner, quando de sua visita a conjuntos habitacionais e a favelas cariocas, em 1968. Naquela ocasião, disse: “Mostraram-me soluções que são problemas e problemas que são soluções” (Silva, Tângari, 2003). Para Valla, favela era uma solução de um problema. A pobreza, sim, era (e continua a ser) o problema. A abordagem da pobreza se deu por meio da Educação e Saúde, um campo interdisciplinar no qual se manteve até o final da vida, na qualidade de professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). A opção de Valla nos processos de intervenção social foi a de entender a educação como “finalidade” e a saúde como “meio”, uma diferença importante identificada por Antonio Ivo de Carvalho e que Estrella Bohadana classificava em duas vertentes: uma caracterizada pelos projetos autônomos, orientados para a mobilização e organização das comunidades, apoiados pelas comunidades eclesiais de base; e a segunda, por privilegiar a extensão da assistência médica, sobretudo sob a influência do Partido Comunista Brasileiro, dava maior peso ao papel do Estado. A escolha de uma ou outra forma de intervenção trazia “implícita a problemática da manutenção ou da mudança social” (Stotz, 2005, p.15-6). A vinculação à primeira vertente era anterior ao ingresso de Valla na ENSP, em 1984. Contudo, na interlocução com os colegas da ENSP, ao se debater com a importância atribuída ao papel do estado no combate da doença, dado o tecnicismo e autoritarismo entranhados na cultura e práticas institucionais do setor saúde, viu-se na contingência de reelaborar a concepção anterior. Como não podia deixar de ser, por representar o resultado de uma aprendizagem na intervenção social, a abordagem da educação popular elaborada por Valla no setor da saúde acompanhou as possibilidades e limites desse processo do ponto de vista conjuntural e institucional. Carvalho, Acioli e Stotz (2001) denominam esta abordagem de construção compartilhada de conhecimento em saúde, uma metodologia que tem uma “história” cujo sentido geral é, no seu entendimento, o de incorporar a experiência e o saber das classes populares em suas demandas junto ao Estado, de modo a favorecer-lhes maior poder e intervenção sobre as condições de suas vidas. É importante destacar o caráter coletivo da construção desta abordagem, com a criação do Núcleo de Educação, Saúde e Cidadania (NESC) da ENSP (1986-2004), estruturado em torno do projeto de título homônimo e, sobretudo, do Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina (CEPEL), entidade não governamental com atuação nas favelas da Penha (1988-2006) que teve como presidente Vitor Valla e uma grande equipe de pesquisadores oriundos dos cursos de pós-graduação nos quais Valla atuava como orientador acadêmico. Eram pesquisadores comprometidos, de diferentes formas, com os movimentos populares e a luta contra a opressão social (Valla, Stotz, 1993). O projeto Educação, Saúde e Cidadania tinha um objetivo especificamente político, a saber: buscava oferecer subsídios tanto às organizações civis de caráter popular, para dar consistência técnica às suas reivindicações, como aos planejadores do setor saúde, de modo a promover a adequação dos serviços ao atendimento das necessidades da população e a “implementação de propostas oriundas do movimento social” (Carvalho, Acioli, Stotz, 2001, p.105). O CEPEL materializou o elo da academia (NESC) com a rua por meio de um instrumento periódico, o boletim trimestral “Se liga no sinal”. O boletim surgiu como uma decorrência do movimento “Se liga Leopoldina, o dengue está aí”, defesa civil popular em resposta à negativa das autoridades sanitárias em admitirem e enfrentarem a epidemia de dengue na região, especialmente nas favelas da Leopoldina, no final de 1990. É interessante lembrar que o boletim apropriou-se da ideia do jornal como um “organizador coletivo”, formulada por Lênin para dar ao Iskra (“A Centelha”), o primeiro periódico 462
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político marxista ilegal de toda a Rússia, a tarefa de unificar, entre 1900 e 1903, os círculos operários mediante a recepção de denúncias e sua análise pelo grupo redator. De fato, a pauta do boletim era discutida, pela equipe do CEPEL, com participantes de entidades populares, sobretudo das mulheres do grupo Sementinha, que faziam a distribuição do jornal nas favelas e captavam os sinais das dificuldades da vida e de sua lida pelas classes populares. De seu lado, elas também avaliavam a recepção do boletim, contribuindo para adequá-lo à experiência do mundo daquelas classes. A metodologia da construção compartilhada do conhecimento – de que a elaboração do boletim foi uma expressão amadurecida ao longo de vários anos – supunha a possibilidade de reduzir a hierarquia dos saberes cientifico-técnico e popular ao mínimo, mas nunca teve a pretensão de superar a desigualdade vigente na sociedade, reverberada no interior, até mesmo, de uma organização como o CEPEL. Pode-se dizer que o agravamento da pobreza no contexto do desemprego e da violência generalizada nas favelas da região da Leopoldina, onde esta entidade atuava, ao longo dos anos 90, ao trazer à tona o fenômeno do crescimento do pentecostalismo, obrigou a criar novos procedimentos metodológicos. A necessidade advinha da tentativa de responder a pergunta: “por que os pobres vão à Igreja?” - com o que já se admitia a religiosidade como um caminho para resolver problemas sociais apontados, particularmente desorganizadores em situações de pobreza, com o sofrimento difuso daí decorrente (Lima, Valla, 2003). Sem deixar de identificar os determinantes mais amplos dessa situação de pobreza e o impacto das políticas neoliberais no Brasil (Valla, 1995), ele pressupôs que, para entender em profundidade o significado do fenômeno, seria necessário dispor de uma observação participativa no fenômeno, com a invenção de novos métodos. A proposta e o funcionamento da Rede de Solidariedade da Leopoldina, sustentada do ponto de vista organizativo pelo CEPEL e pelo Núcleo de Estudos Locais em Saúde (ELOS) da ENSP, a partir de 2000, acabou por tomar forma no projeto “Vigilância civil da saúde: uma proposta de Ouvidoria Coletiva”, experiência que inclusive recebeu o Prêmio Antonio Sérgio Arouca de gestão participativa (Guimarães et al., 2008; Lima, Stotz, 2009). Aliás, a Ouvidoria Coletiva foi a proposta de Valla para a Rede de Educação Popular e Saúde quando esta organização se dispôs, em março de 2003, a apoiar o novo Ministério da Saúde no primeiro governo de Luis Inácio (Lula) da Silva. A separação entre a sociedade civil e as práticas populares - notável no esvaziamento das associações de moradores como consequência da nova conjuntura, também percebida por Valla e o grupo de pesquisadores nucleados em torno do novo projeto - foi interpretada nos termos de uma “crise de compreensão” entre profissionais dos serviços públicos de educação e saúde e as pessoas das classes populares. O ponto central dessa crise era a incapacidade de os profissionais relativizarem seu ponto de vista prévio ao admitirem que essas pessoas fossem capazes de construir um conhecimento e, pois, de entenderem e agirem sobre sua própria realidade, inclusive no tocante ao processo de adoecimento e cura. A sistematização dessas reflexões e iniciativas deu origem ao livro “Para compreender a pobreza no Brasil”, o primeiro de uma coleção denominada “A academia e a rua”. A pobreza nunca foi vista exclusivamente como uma situação ou condição decorrente do desenvolvimento capitalista periférico no Brasil. A situação de pobreza era entendida como ponto de partida de uma “lida” que, numa conjuntura de mobilização popular, favorecera a ação coletiva e a ampliação da sociedade civil de caráter popular, noutra, de descenso e de fragmentação, reconduzira ao estreito caminho por onde historicamente as pessoas comuns do povo sempre passaram: o mundo da religiosidade, da fé baseada na solidariedade e na resistência, ainda que nos limites do campo religioso. Todo esse processo sempre foi visto em sua dimensão educativa, como um modo de ensino e de aprendizagem não-formal e, portanto, como uma forma de conhecimento social. Pois uma “lida” requer necessariamente saber, e sua aplicação e/ou revisão nas circunstâncias tem de contemplar de alguma forma uma visão sobre a sociedade e seu funcionamento, para se identificarem as possibilidades de se superar a pobreza e de se aprenderem os sentidos das tentativas bem ou malsucedidas. Valla esclareceu que a opção de estudar o pentecostalismo – era necessário defender-se das incompreensões, sobretudo de que estaria interessado, do ponto de vista acadêmico, na espiritualidade – advinha do “entendimento de que é nesse movimento religioso que a centralidade da pobreza se dá de 463
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forma mais radical”, de onde decorria também a importância atribuída ao termo “conversão” (Vasconcelos, Algebaile, Valla, 2008, p.331). Sua análise, baseada em Cesar e Shaull (1999), o conduziu a compreender a conversão pentecostal de pessoas, em sua maioria anteriormente católicas ou participantes de cultos afrobrasileiros, como parte do enfrentamento da questão da pobreza. A contribuição trazida pelo teólogo Richard Schaull para o equacionamento desta questão no âmbito da Educação Popular consistia na “idéia de que a conversão é um movimento de descentramento”, válido principalmente para as classes médias, “habituadas a entender, sua experiência como central, e a deduzir disso, de um lado, sua autoridade e capacidade de dispor sobre os problemas do mundo, e, de outro, a permanente minoridade política e cultural das classes populares para disporem sobre as questões que afetam suas vidas” (Vasconcelos, Algebaile, Valla, 2008, p.332). Para fortalecer seu ponto de vista, incorporou tanto a reflexão de Milton Santos (1996) “sobre o conjunto de saberes práticos e valores produzidos às margens dos padrões de vida das classes médias, pelos imensos segmentos da população submetidos à experiência da escassez” (Vasconcelos, Algebaile, Valla, 2008, p332), como a de Simone Weil, ao trazer a fadiga e, pois, o trabalho, como um tema central para se entender o comportamento das classes populares (Valla, 1995). Ficava em aberto, como um limite da teoria dada pela realidade brasileira em que ainda vivemos, o problema da politização dessa nova experiência humana para além dos limites da dominação burguesa e das tentativas de conciliação de classes. A problematização do termo ‘conversão’ a partir do campo religioso não foi o último texto escrito em vida, no meio da esperançosa luta e ilusão fecunda por retomar os movimentos do corpo atingido pelo acidente vascular cerebral em 2001. Dedicava-se, inclusive, a finalizar uma coletânea de seus trabalhos com o apoio de Eveline Algebaile, quando faleceu, no dia 7 de setembro de 2009. O título provisório desta publicação póstuma define o sentido da vida de Victor Vincent Valla: “Para compreender as classes populares no Brasil”.
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Trata-se de uma publicação póstuma que pontua os principais momentos da trajetória do professor e pesquisador Victor Vincent Valla. Ao resgatar projetos e experiências que marcaram essa trajetória, ressalta-se o elo vital que Valla construiu entre a academia e a rua e a sua contribuição e envolvimento com os movimentos populares no Brasil, em particular por meio da Educação e Saúde, campo interdisciplinar no qual se manteve até o final da vida, como professor e pesquisador do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP).
Palavras-chave: Educação popular. Educação e saúde. Transformação social. Between academia and the street: Victor Vincent Valla (1937-2009) It is a posthumous publication that presents the main moments of the trajectory of the teacher and researcher Victor Vincent Valla. By rescuing projects and experiences that marked this trajectory, the vital link that Valla built between academia and the street is highlighted, as well as his contribution to and involvement with popular movements in Brazil, particularly by means of Education and Health, an interdisciplinary field in which he acted until the end of his life, as a teacher and researcher with the Postgraduate Program in Education of Universidade Federal Fluminense (UFF) and Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP).
Keywords: Popular education. Education and health. Social change. Entre la academia y la calle: Victor Vincent Valla (1937-2009) Se trata de una publicación póstuma que apunta los principales momentos de la trayectoria del profesor e investigador Victor Vincent Valla. Al rescatar proyectos y experiencias que marcaron su trayectoria se resalta el eslabón vital que Valla construyó entre la academia y la calle y su contribución y compromisso con los movimientos populares en Brasil, particularmente por medio de la Educación y Salud, campo interdisciplinario en el que se mantuvo hasta el fin de su vida como profesor e investigador del Programa de Posgraduación en Educación de la Universidade Federal Fluminenense (UFF) y de la Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) de Brasil.
Palabras clave: Educación popular. Educación and salud. Transformación social.
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livros
SALLES, S. Homeopatia, universidade e SUS: resistências e aproximações. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2008.
Charles Dalcanale Tesser1
Homeopatia no SUS e na formação médica A pesquisa de Sandra Salles, um trabalho de doutorado no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, traz significativo avanço no desenvolvimento de um tema relativamente pouco valorizado na saúde pública brasileira, no Sistema Único de Saúde (SUS) e nas escolas de medicina do país. Trata-se da relação de docentes de escolas médicas e profissionais médicos não-homeopatas do SUS e seus gestores com a homeopatia. É desnecessário comentar a relevância dessa temática num momento de grande movimento de investigação e revalorização mundial das chamadas medicinas e terapias alternativas e complementares, desencadeado com mais vigor a partir da década de 1990, quando estudos em países ricos revelaram procura e valorização acentuada, pelas populações, dessas práticas (Eisenberg et al., 1993). Lembremos que, pelo menos desde o fim da década de 1970, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a pesquisa e oferta das mesmas nos sistemas públicos de
saúde. No seu último texto oficial, a OMS (2002) justifica essa recomendação pela adequação cultural e acesso fácil das populações a esse tipo de cuidado nos países pobres e pela procura crescente e consistente dessas terapias e práticas pelas populações dos países ricos. Inserindo-se num momento de estímulo para a oferta dessas práticas no SUS, por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC-SUS) (Brasil, 2006), a pesquisa descrita nesse livro traz novos dados e contribui com análises e reflexões sobre o complexo processo de convivência da biomedicina com a medicina homeopática. O foco da pesquisa foi a interface homeopatia-alopatia na sua existência real e social, do ponto de vista dos profissionais não-homeopatas que convivem com a homeopatia no SUS, em locais em que ela está presente. O livro é estruturado num formato acadêmico enxuto, introduzindo, no início, o contexto da pesquisa, seu objetivo, referenciais teóricos, métodos e procedimentos, apresentados com objetividade e concisão. Em seguida, apresenta mais detidamente os resultados da pesquisa e análises dos mesmos, separadamente para cada tipo
Departamento Saúde de Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Rua Laureano, 970, Campeche, Florianópolis, SC, Brasil. 88065-040 charlestesser@ccs.ufsc.br
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de informante (docentes, gestores e médicos, respectivamente). A autora reconhece um movimento recente de aproximação entre a homeopatia e a biomedicina, em paralelo a suas históricas oposições. Seu objetivo se dirigiu à relação dos entrevistados com a homeopatia em termos: da caracterização dos movimentos de aproximação e oposição ou resistência entre essas duas medicinas; da introdução e presença da homeopatia nessas instituições, e das regras de relações entre homeopatas e nãohomeopatas. Para responder essas questões, a pesquisadora lançou mão, por um lado, de referências teórico-conceituais pertinentes, como: o conceito de “campo científico”, de Pierre Bourdieu, a produção de Madel Luz sobre a história da homeopatia no Brasil e a categoria “racionalidade médica” desenvolvida por esta autora, além de outros estudos sobre a constituição do mercado de trabalho médico e modelos de prática ou assistência, de pesquisadores como Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, Lilia Schraiber (sua orientadora) e Cecília Donângelo. Com isso, a autora assume uma perspectiva crítica, sociológica e histórica condizente com a complexidade do tema e, assim, afastase da ingenuidade positivista ainda típica do campo biomédico, que pensaria o problema investigado, talvez, como uma questão apenas de comprovação de eficácia da homeopatia pela comunidade médico-científica. Por outro lado, Sandra Salles realizou uma ampla pesquisa de campo, partindo do panorama atual da homeopatia no SUS e nas escolas médicas brasileiras. Escolheu locais e experiências com maior consistência histórica e assistencial de presença da homeopatia nos anos recentes e selecionou intencionalmente um elenco de médicos, gestores e professores universitários não-homeopatas, com contato com a homeopatia, para participarem da pesquisa, totalizando 470
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um grupo de 49 entrevistados. Os 12 médicos e 17 gestores desse grupo atuavam em algum dos seis municípios com maior produção de consultas homeopáticas (Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Brasília, Dourados e Juiz de Fora, em ordem decrescente de produção) no período 2003-2005 – em que apenas 109 municípios brasileiros referiram consultas em homeopatia realizadas pelo SUS, a maior parte deles no sudeste (totalizando 74,4% das consultas). Ainda segundo os dados do SUS levantados na pesquisa, os estados com maior número de municípios com consultas desse tipo foram São Paulo (38), Rio de Janeiro (29) e Minas Gerais (11), sendo que sete estados do nortenordeste não acusaram nenhuma consulta homeopática no SUS nesse tempo. Das 115 escolas de medicina do Brasil (em 2005), 23 não puderam ser contactadas, e a pesquisadora conseguiu obter retorno de 46 delas e, dentre estas, identificar 19 escolas com alguma atividade ligada à homeopatia, das quais 11 forneceram vinte docentes que foram entrevistados. A pesquisa mostrou vários aspectos da situação atual da interface investigada. Revelou que a tímida presença, na academia e no SUS, de oferta, ensino e pesquisa de homeopatia devem-se, na quase totalidade dos casos, a iniciativas de profissionais homeopatas. Isso denota a imensa fragilidade institucional e o protagonismo quase pessoal ainda necessário para que essa medicina se faça presente nas academias e nos serviços. Os depoimentos também reafirmaram a intensidade e a permanência tanto de desconhecimento quanto de preconceitos, resistências e desconfianças dos entrevistados em relação à homeopatia e suas potencialidades, seja ela vista apenas enquanto especialidade médica que deveria especificar para que serve (denotando, de certo modo, maior desconhecimento da mesma), seja enquanto medicina distinta (como racionalidade médica estruturada2) que tem pontos fortes e pontos fracos.
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Segundo Luz (2000), uma “racionalidade médica” constitui-se de um conjunto de práticas e saberes existentes socialmente, organizados e estruturados, que comportam uma morfologia do homem (anatomia, na biomedicina), uma dinâmica vital (fisiologia), um sistema de diagnose, um sistema terapêutico e uma doutrina médica (explicações sobre o adoecimento e a cura), embasados em uma cosmologia (implícita ou explícita). A presença de todas estas dimensões em uma medicina ou sistema médico caracteriza uma racionalidade médica, o que permite distinguir sistemas médicos complexos, como a biomedicina, a homeopatia ou a medicina ayurvédica, de terapias ou métodos diagnósticos, como os florais de Bach, a iridologia, o reiki, entre outros.
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que sintomáticos químicos, alguns significativamente iatrogênicos. Daí os alopatas considerarem muitas queixas e sintomas como adoecimentos “simples”, já que não reconhecem neles doenças ou patologias descritas na sua nosografia. Também pode ser aceito que a medicina homeopática, no geral, tem boa sensibilidade e eficácia (empiricamente falando) para grande parte desses sintomas, vivências e queixas, integrando-os numa terapêutica voltada ao sujeito em desequilíbrio e facilitando um processo de autoconhecimento (como, de resto, outras medicinas e práticas complementares), produzindo, com isso, uma abordagem mais rica da experiência do adoecimento e do cuidado (Andrade, 2006). Mas isso não significa que a homeopatia esgote suas potencialidades nesse tipo de situação, apenas realça algumas de suas virtudes. Por outro lado, essa visão faz pensar que o local por excelência da medicina homeopática deve ser a atenção primária à saúde, denotando subliminarmente uma visão ainda persistente da atenção primária como serviço para os adoecimentos “simples” e “banais”. Em que pesem as dificuldades reais, históricas e políticas da organização do SUS e da atenção primária brasileira (da Estratégia Saúde da Família), parece desnecessário comentar que a clínica generalista da atenção básica envolve grandes complexidades, tanto clínicas quanto psicológicas, culturais e sociais. Daí que a atenção primária deveria ser chamada “atenção fundamental”, para fazer justiça ao significado do original primary care e devido à sua importância na organização do SUS. Confirmando os achados da pesquisa e a tendência atual de pequena presença da homeopatia no SUS, a atenção fundamental ou primária deve ser o local por excelência desta medicina, como da própria alopatia, já que deve concentrar a maior parte do cuidado médico. Todavia, não há por que não abrir as emergências e hospitais para a homeopatia, quase nada conhecida nesses ambientes no Brasil, para expô-la e testá-la (e às suas virtudes e limites). A pesquisa revela certas reticências dos entrevistados quanto a esta proposta, por eles considerarem a homeopatia “insegura” ou “menos segura” (o que provavelmente associa-se aos preconceitos e desconhecimentos, por eles mesmos assumidos, e à referência à biomedicina, conhecida e aceita como mais segura). O livro também revela que um passo importante está em curso no ambiente dos profissionais investigados, a ser comemorado, não fosse pela lentidão em que ocorre: a existência de um processo de questionamento da desumanização da medicina, do excesso de tecnicismo e cientificismo em prejuízo dos aspectos relacionais e artísticos da prática médica, dos problemas de iatrogenia clínica3 e
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A pesquisa detectou nos entrevistados a já tradicional resistência ideológica, paradigmática e cultural à homeopatia: o problema da ação terapêutica das grandes diluições homeopáticas, que a ciência ainda não consegue explicar. Também mostrou a presença dos preconceitos populares mais comuns presentes fortemente nesses profissionais, gestores e docentes: de que o tratamento é demorado, de que a homeopatia serve para certos tipos de problemas caracterizados como crônicos e/ou pouco graves clinicamente, e de que não é eficaz em casos agudos. Preconceitos estes, em parte, decorrentes da pouca socialização dessa medicina e dos problemas de organização e inserção da prática homeopática no SUS. Quando ela se faz presente, em regra, pouco viabiliza o acesso para os pacientes agudos (mesmo já em tratamento) ao cuidado homeopático, bem como quase nunca está disponível em unidades de urgência ou atendimento hospitalar. Uma das questões bem apontadas e analisadas pela autora é decorrência desses preconceitos e da precária incorporação da homeopatia pelo SUS, que se retroalimentam: a consideração da mesma como uma medicina simples e barata, para problemas banais, clinicamente sem gravidade, embora relevantes para os pacientes (psicossomáticos, alergias etc.) e de grande prevalência na população. Ela seria, pois, uma medicina para o trivial. É fato que a biomedicina é pouco sensível e eficaz para uma miríade de queixas, vivências, sensações e sintomas envolvidos nos adoecimentos, que não são úteis para o estabelecimento de diagnósticos biomédicos, por vezes a maior parte do relato dos doentes. Comumente o médico alopata desqualifica, ignora ou simplesmente aborta tais relatos que, quando ouvidos, não recebem mais
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Vale lembrar que a iatrogenia (aí incluídos os erros médicos) chegou a ser, recentemente, a terceira causa de morte nos Estados Unidos da América (Starfield, 2000).
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simbólica, e de medicalização excessiva em vigor na biomedicina contemporânea, dos limites paradigmáticos da especialização médica, que perde de vista o indivíduo como um todo e centra a terapêutica em patologias específicas desvinculadas desse todo. Em outras palavras, os problemas da integralidade ou da falta dela na alopatia (Tesser, Luz, 2008), mesmo supondo fácil acesso, quando necessário, aos especialistas e às tecnologias diagnósticas e terapêuticas. A pesquisa também mostrou a existência do progressivo reconhecimento de que o saber/prática alopático (adequado e suficiente no ambiente hospitalar e nos casos de maior gravidade clínica, aos olhos dos entrevistados) é insuficiente e inadequado no ambiente da medicina ambulatorial, sobretudo da atenção primária. Isso se relaciona à já antiga e problemática necessidade de reforma do ensino médico, centrado até agora no ambiente hospitalar. Os processos de reformas curriculares nas escolas de medicina foram apontados como elementos facilitadores da introdução de conteúdos relacionados à homeopatia e a outras práticas terapêuticas nas academias. O reconhecimento de limites e problemas na prática, na formação e no saber biomédicos abre espaço para a homeopatia, ao mesmo tempo em que a biomedicina pode também ser enriquecida e estimulada pela medicina homeopática quando ambas mantêm convívio. Essa mão dupla sinérgica ocorre devido ao fato de a homeopatia proporcionar, em suas práticas e saberes: uma abordagem mais integral e holística, menos iatrogênica, mais acolhedora, com maior capacidade de escuta, com maior individualização da terapêutica, melhor valorização de aspectos psicológicos e sociais dos adoecimentos, e menos medicalização. A percepção de tais “virtudes”, pelos entrevistados na pesquisa, indica que os homeopatas, ainda que em
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pequeno número no SUS, têm praticado uma homeopatia preservando suas características conceituais, técnicas e teóricas (que induzem e demandam as virtuosidades mencionadas), derivadas dos preceitos vitalistas e técnicos fundamentais que a caracterizam como racionalidade médica distinta. Tais características da racionalidade médica homeopática, também presentes em outras racionalidades médicas vitalistas, fazem dela uma medicina forte em aspectos em que a biomedicina é reconhecidamente fraca, além de tornála uma abordagem que converge com os valores e ideais do SUS, como promoção da saúde e integralidade, indo inclusive além dos limites conceituais biomédicos, quando a homeopatia se volta, por exemplo, para o equilíbrio energético e dinâmico dos pacientes (Tesser, Barros, 2008). Isso tudo gera uma série de percepções, aproximações e resistências nos entrevistados, que ora lamentam sua própria ignorância, solicitando maior interação e aproximação, e ora mostram reticências e descréditos, levantando pequenos problemas práticos de convívio (como a não compreensão das terapêuticas por desconhecimento, dificuldades para encaminhamento, reivindicações de protocolos, restrição à atenção primária etc.). A pesquisadora chama a atenção para uma demanda explícita dos entrevistados: que os homeopatas e suas instituições venham com mais vigor a público, aos serviços, à academia e ao encontro de seus pares alopatas para debater, mostrar, ensinar, pesquisar e socializar os saberes e técnicas homeopáticas, saindo de uma posição retraída e tímida, em que talvez tenham se isolado como resultado dos preconceitos e oposições à homeopatia na academia e na história social da medicina no ocidente e no Brasil. Pode-se também considerar, ressaltando esse último achado da pesquisa, que os homeopatas brasileiros acabaram restringindo-se ao ambiente
impliquem o perigo de restrição das potencialidades da homeopatia, encarada como medicina barata4 e simples, lenta, para problemas banais, mas com grande prevalência na atenção primária. Parece que somente a socialização progressiva dessa medicina nas instituições de ensino, no SUS e na sociedade em geral será capaz de superar certos preconceitos: apenas disseminando sua prática e teoria em assistência, ensino e pesquisa, a homeopatia poderá dar o seu potencial de contribuições para o cuidado à saúde no SUS. O medo da descaracterização da medicina homeopática diante do imediatismo sintomático da cultura contemporânea e da hegemonia da alopatia não se sustenta frente aos achados da pesquisa. E como as dificuldades são reais, culturais, ideológicas, políticas e de grande ordem, envolvendo inclusive variáveis macropolíticas ligadas à produção e reprodução do saber científico e terapêutico (em que a produção artesanal e barata dos medicamentos homeopáticos é um perigo potencial de concorrência para o chamado “complexo médico industrial”), parece ser recomendável que os homeopatas e suas instituições, os gestores do SUS e as academias amplifiquem as experiências de oferta, estudo e pesquisa dessa medicina. Considerando a pequenez da presença e da institucionalização da homeopatia no SUS e nas academias e o longo caminho a percorrer para a sua maior socialização, bem como a de outras terapias complementares, cabe recomendar a leitura desse livro, na esperança de que ele possa muito contribuir para o crescimento desse pequeno, mas consistente e promissor, movimento de aproximação tensa da homeopatia e da alopatia, documentado e analisado pela pesquisa de Sandra Salles.
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da medicina privada após seu reconhecimento como especialidade e um certo boom de procura por eles nas décadas de 1980 e início de 1990. Isso reforça seu isolamento e pouca socialização, já que, em pelo menos um ponto, sua cultura tende a convergir com o restante das especialidades focais alopáticas: no aspecto ideológico relativo ao ideário liberal de trabalhar em consultório privado. Mesmo destruído pela realidade do campo profissional e do mercado de trabalho no país, este talvez ainda seja o sonho básico de atividade profissional dos homeopatas. Como sua formação, salvo exceção, é realizada fora das academias e serviços públicos de saúde, em associações de homeopatas com cursos reconhecidos, por professores cuja prática é privada parcial ou totalmente, esse ideário talvez fique reforçado, de modo que os homeopatas que trabalham no SUS continuam marginais e tendem a se fechar em seus consultórios (também pelas diferenças teórico-práticas e culturais de sua medicina e pelas dificuldades de organização do serviço, voltado para a prática alopática). Entretanto, deve ser ressaltado outro dado revelado pela pesquisa: o convívio entre homeopatas e alopatas tem acontecido em uma relativa harmonia e parceria, num espírito de complementaridade em prol da busca de melhores terapias para os doentes, menor iatrogenia e melhor cuidado, em função de limites da alopatia progressivamente reconhecidos e criticados, diferentemente de tempos atrás, quando eram mais comuns posturas extremas de negação mútua e de oposição de ambas as partes. Apesar dos preconceitos e ignorâncias, o estabelecimento desse clima de parceria e complementaridade deve ser saudado com satisfação e otimismo, mesmo que as tensões existentes e a hegemonia da biomedicina no campo
4 O lado barato da homeopatia revela-se no uso parcimonioso do arsenal diagnóstico biomédico, sabidamente caro (os homeopatas solicitam bem menos exames complementares, segundo os gestores entrevistados – o que todo médico deveria fazer), e na terapêutica, já que os medicamentos homeopáticos são, no conjunto, provavelmente mais baratos que os alopáticos, em função de suas características de produção, reprodução e uso.
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Referências ANDRADE, J.T. Medicina alternativa e complementar: experiência, corporeidade e transformação. Salvador: UFBA, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC-SUS). Brasília: Ministério da Saúde, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde). Disponível em: <http://dtr2004.saude.gov.br/dab/docs/ publicacoes/geral/pnpic.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2009. EISENBERG, D.M. et al. Links unconventional medicine in the United States: prevalence, costs, and patterns of use. New Engl. J. Med., v.328, n.4, p.246-52, 1993. LUZ, M.T. Medicina e racionalidades médicas: estudo comparativo da medicina ocidental contemporânea, homeopática, chinesa e ayurvédica. In: CANESQUI, A.M. (Org.). Ciências sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2000. p.181-200. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE - OMS. Estratégia de la OMS sobre medicina tradicional 2002-2005. Genebra: OMS, 2002. STARFIELD, B. Is US health really the best in the world? J. Am. Med. Assoc., v.284, n.4, p.83-5, 2000. TESSER, C.D.; BARROS, N.F. Medicalização social e medicina alternativa e complementar: pluralização terapêutica do Sistema Único de Saúde. Rev. Saude Publica, v.42, n.5, p.914-20, 2008. TESSER C.D.; LUZ, M.T. Racionalidades médicas e integralidade. Cienc. Saude Colet., v.13, n.1, p.195206, 2008.
Recebido em 04/02/2009. Aprovado em 09/03/2009.
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teses
Humanização nas práticas de saúde: o discurso coletivo dos trabalhadores, gestores e usuários de um estabelecimento assistencial de saúde hospitalar (EASH) Humanization of health care practices: the collective discourse of workers, mangers, and users of a hospital health care establishment (EASH) Humanización en las prácticas de salud: el discurso colectivo de los trabajadores, gestores y usuarios de un establecimiento asistencial de salud hospitalar (EASH)
Neste estudo, defendemos a tese de que a inclusão do outro (trabalhador/gestor/usuário) nas práticas de saúde, tendo por base os princípios e diretrizes da Política Nacional de Humanização (PNH), encaminha-nos a práticas de humanização da atenção à saúde desenvolvida nos Estabelecimentos Assistenciais de Saúde Hospitalar (EASH). Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa, que teve como objetivo geral compreender como ocorre a inclusão do outro na atenção em saúde desenvolvida em EASH. Utilizou-se o método da Roda e os dispositivos, as diretrizes e ferramentas da PNH como recursos metodológicos. A abordagem metodológica teve como objeto a fala dos trabalhadores, gestores e usuários, que produzem e recebem cuidados em saúde no hospital. O cenário escolhido para operacionalizar esta pesquisa foi um EASH de média complexidade, localizado em um município da Grande Florianópolis. Os atores sociais deste estudo foram nove trabalhadores da saúde, oito gestores e oito usuários, do SUS, que recebem e produzem o cuidado em saúde no cenário de investigação. Após a seleção inicial, foram constituídos três grupos com esses atores - um grupo com os usuários, um grupo com os trabalhadores e um grupo com os gestores. A coleta de dados foi realizada no período de novembro de 2007 a março de 2008. No modelo Paidéia, algumas etapas são essenciais. Nesta investigação foram adotadas as seguintes: construir vínculos e contratos entre trabalhadores da saúde, gestores e usuários; definir os temas, e construir projeto de intervenção. O referencial metodológico do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) foi utilizado para análise dos dados, após
sistematização, sendo identificados os seguintes temas nos grupos: PNH, humanização nas práticas de saúde, processo de trabalho e tecnologias relacionais. Finalizadas essas etapas, seguiu-se a elaboração do desenho de intervenção, construído coletivamente por meio dos dados coletados nos três grupos. A inclusão dos atores permitiu conhecer as mais variadas situações que permeiam o processo de produção do cuidado em saúde. Construir coletivamente uma proposta de intervenção baseada nos discursos dos envolvidos possibilita o protagonismo desses sujeitos, pois problematiza o vivido no seu cotidiano. Colocá-los na cena e em cena favorece conhecer a diversidade de opiniões, os diversos olhares, contemplar realidades diferentes que permeiam o processo de trabalho em saúde em um EASH e, assim, apontar as possibilidades para que o cuidado em saúde seja humanizado, de acordo com o que preconiza a PNH. Josiane de Jesus Martins Tese (Doutorado), 2008 Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Área de Concentração: Filosofia, Saúde e Sociedade. Universidade Federal de Santa Catarina josiane.jesus@gmail.com Palavras-chave: Políticas públicas. Instituições de saúde. Humaniação da assistência. Tecnologia. Keywords: Public policies. Health care institutions. Humanization of assistance. Technology. Palabras clave: Políticas públicas. Instituciones de salud. Humanización de la atención. Tecnología.
Texto na íntegra disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/PNFR0611-T.pdf>
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A tessitura da rede: entre pontos e espaços. Políticas e programas sociais de atenção à juventude - a situação de rua em Campinas, SP The weaving of the network: among points and spaces. Policies and social programs on youth caring the street situation in Campinas, Sao Paulo State La tesitura de la red entre puntos y espacios. Políticas y programas sociales de atención a la juventud la situación de calle en Campinas, SP
A temática da juventude tem sido construída como categoria sociológica e abre o debate sobre a necessidade da criação de políticas sociais que se direcionem para a promoção de acesso aos direitos de crianças, adolescentes e jovens, destacando-se aqueles provenientes de grupos populares. As políticas sociais, entendidas como um conjunto de ações articuladas e reconhecidas como “necessidades humanas”, realizam intervenções consoantes ou distantes dos ideários estabelecidos. Propõe-se descrever um dos programas do Plano Municipal para a Infância e Juventude, implementado em Campinas, SP, durante a gestão 2001-2004. O Plano era composto de dez programas temáticos, sendo analisado o “Criando Rede de Esperança”, o qual tinha meninos e meninas em situação de rua como população-alvo. Investiga-se a rede de serviços componente do Programa no período de 2001 a 2006, questionando-se o estabelecimento efetivo de inovações sociopolíticas e a produção de mudanças na vida de seus usuários. Os procedimentos de investigação foram: entrevistas semidirigidas com gestores das diferentes Secretarias componentes da rede, coordenadores e técnicos dos serviços, e os meninos e as meninas; grupos de atividades com os adolescentes nas instituições; e observação participante no equipamento da Saúde. Lançou-se mão ainda do acompanhamento de alguns adolescentes nas ruas. Foram utilizadas trajetórias de vida de cinco jovens para a apresentação dos serviços e temáticas que as perpassavam. Observou-se que a dinâmica entre os atores configura-se sob uma tensão com compreensões nem sempre congruentes entre os objetivos
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institucionais e de seus usuários, gerando pouco avanço na produção de direitos para esse grupo populacional. Aponta-se que as políticas sociais concentram limites nas ações desenvolvidas, marcados pela estrutura política neoliberal do Estado democrático capitalista, bem como evidenciados pela execução de ações que se dirigem para a individualização de problemas e pouco progresso na compreensão e enfrentamento coletivos. Todavia, produzem também um nível de cuidado e atenção que se constitui como pontos de apoio para essa população. As políticas sociais armazenam as possibilidades de consolidar efetivamente inovações sociopolíticas e caminham para a promoção dos direitos dos jovens brasileiros de grupos populares. Para tanto, demarca-se o desafio de as ações sociais - entre elas as de saúde pública -, estabelecerem práticas inovadoras e efetivas para a promoção de direitos. Ana Paula Serrata Malfitano Tese (Doutorado), 2008 Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. anamalfitano@ufscar.br
Palavras-chave: Adolescente. Juventude de rua. Política social. Defesa da criança e do adolescente. Estado. Keywords: Adolescent. Homeless youth. Public policy. Child advocacy. State. Palabras clave: Adolescente. Jóvenes sin hogar. Políticas públicas. Defensa del niño. Estado. Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.usp.br teses/disponiveis/6/6136/tde-10032009-214921/
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criação
Um médico em transformação...: os álbuns de formatura nos anos 1960
André Mota1
Com o final da II Guerra Mundial em 1945, mesmo sob a ameaça da Guerra Fria, lembra Hobsbawm (1995, p.254) “que muita gente sabia que os tempos de fato tinham melhorado”. No plano social, novas demandas vindas de uma classe média em ascensão fortaleciam ações sociopolíticas para se estenderem os benefícios materiais sobretudo para aqueles que não tinham entrado no desenvolvimento e na modernização (Oliveira, 2002). Nesse contexto, a medicina e seu aparato tecnológico – educacional e prático – foram alargando seu espaço de atuação; os hospitais se expandiam e a saúde foi integrando, cada vez mais, a pauta das novas políticas a serem testadas e desenvolvidas (Mota et al., 2004). Em suas apreciações sobre o período, Dalmaso mostrou que ocorreria uma expansão da oferta de cuidados médicos e uma crescente produção, vindas da Europa e América do Norte, de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares. Somam-se ao incremento desses recursos: a simplificação do acesso aos serviços e especialistas, a expansão da cobertura a uma maior parte da população e a constituição da saúde em mercado de prestação de serviços (Dalmaso, 1998). Entre as inovações paradigmáticas propostas para a medicina e a saúde, deramse postulações preventivistas como capazes de enfrentar as novas pendências sociais (Donnangelo, Pereira, 2003; Schraiber, 1989). Em 1952, realizou-se, em Colorado Springs, um congresso com os principais representantes das escolas médicas norte-americanas, destinado a iniciar uma ampla reforma curricular dos cursos médicos, privilegiando as teorias preventivistas. A repercussão dessa nova política educacional médica levou a um movimento internacional: em Nancy (França), 1952; em Gotemburgo (Suécia), 1953; patrocinado pela OMS em Viña del Mar (Chile), 1955, e em Tehuacán (México), em 1956. Organizava-se, assim, um movimento de articulação das abordagens interdisciplinares no campo médico e de saúde. As demandas sociais entravam em pauta, num diálogo com campos até então estranhos aos assuntos médicos e sanitários, tais como os estudos antropológicos do processo saúde-doença. Em São Paulo, a Faculdade de Medicina da USP dava novos direcionamentos ao campo do ensino e da pesquisa em seu Hospital das Clínicas, que se ampliava velozmente, como resultado do desenvolvimento das tecnologias médicas empregadas e das demandas sociais, fruto do próprio crescimento da cidade de São Paulo, já que, “uma nova conjuntura econômica, cultural e política promoveria na
1 Museu Histórico, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 4. andar, Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil. amota@museu.fm.usp.br
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CRIAÇÃO
década de 1960 um reordenamento profundo da sociedade brasileira, do qual evidentemente a Faculdade de Medicina não seria poupada” (Marinho, 2006, p.108). Já sobre a produção iconográfica dessas transformações, bastante divulgada em diversos aspectos, podemos sempre encontrar uma documentação ainda não publicada e em aberto ao pesquisador. Nesse sentido, o “Álbum de Formatura” do corpo discente dos médicos, mesmo se apresentando em sua forma fechada e hermética, pode ser reveladora do campo profissional e do momento vivido pela sociedade em que está inserida. Segundo Kossoy (1993), a fotografia é plena de ambiguidades, portadora de significados não explícitos e de omissões pensadas, calculadas, que aguardam pela competente decifração. Sob a guarda do Museu Histórico “Carlos da Silva Lacaz” da FMUSP, essas séries de imagens iconográficas, dos anos 1960, compreendidas como “vetores para a investigação de aspectos relevantes na organização, funcionamento e transformação de uma sociedade” (Menezes, 20063, p.34), oferecem uma representação até então desconhecida dos “novos médicos”. Nesse sentido, o resgate histórico dessas séries pode aprimorar nosso olhar sobre o passado, ao mesmo tempo em que abre espaço para o conhecimento de seus significados mais intrincados. Tais imagens passaram a receber uma configuração atualizada, deixando as vestes talares de outrora, para a divulgação de um profissional em ação, dentro de seu campo de atuação. Eficiência e um certo desprendimento invadiram as posturas, os sorrisos e as atitudes do esculápio. A tradição investia-se de um novo corpo simbólico, adaptando-se aos tempos modernos, mesmo que pudessem conservar, em muitos aspectos, velhos costumes.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.13, n.31, p.477-8, out./dez. 2009
Errata Na edição v.13, n.30, p.79, onde se lê: 2 Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia, UFRGS., o correto é 2, 3 Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia, UFRGS.