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apresentação

Relações de saúde e relações de doença

Caso existisse algo como “a saúde” de forma individualizada e singular, a sua descrição talvez pudesse ser realizada como a de um objeto transcendente e universal, contraposto a um substantivo tal como “a doença”, mas que, por sua inexistência, também não pode ser considerado. A historicidade das relações de saúde e das relações de doença que as coletividades vivenciam nega, contudo, a possibilidade de se entender, descrever ou interferir, fora de uma perspectiva de conjunto, de reciprocidade e de movimento, o que venha ser o estado sadio ou insalubre. Em nenhum destes dois casos, nem um entendimento dualista, nem um simples relativismo, ou porventura um culturalismo obstinado, servem para explicar por que, frente aos avanços da produção nas ciências da saúde, as estruturas hospitalares e ambulatoriais de caráter público continuam ineficientes. Não se nega aqui o esforço de muitos profissionais, técnicos, intelectuais, gestores e alguns políticos, porém também não é possível negar que os objetivos que se tentam perseguir estão bem longe do que se vê realizado. O volume e a qualidade dos atendimentos não são compatíveis com os conhecimentos disciplinares localmente adquiridos e com a proposta de visão integral do paciente. A expectativa de algo a fazer que não se completa, a perspectiva de dificuldades insuperáveis, mascaram as possibilidades que a interação de conhecimentos disciplinares diferentes pode permitir. As divisões disciplinares só existem se insistirmos em não vê-las como constructos artificiais, pois, no atacado da produção de conhecimentos científicos, o que é unicamente biológico ou psicológico, o que é somente história ou estatística, se faz porque precisamos preencher formulários, porque necessitamos escrever livros e artigos, razões entre outras que configuram as divisões profissionais nas sociedades modernas. Esta introdução vem em razão dos textos, que aqui formam um dossiê unido pelos temas da saúde e educação, amalgamados por diferentes aspectos do que se entende comumente por divulgação ou disseminação pública de conhecimentos científicos. Cada um dos três artigos abaixo traz entendimentos sobre processos históricos capazes de ajudar a pensar e, com algum esforço, quem sabe, construir práticas de saúde por caminhos mais inclusivos. O artigo de André Mota, “Higienizando a raça pelas mãos da educação ruralista: o caso do Grupo Escolar Rural do Butantan nos anos 1930”, discute um conjunto de propostas de ensino levadas adiante em pleno governo Vargas, em sua tentativa de construção de um estado forte e, ao mesmo tempo, de uma nação civilizada. Daí a junção entre a infância - ponto central das ações educativas - e o estímulo a preceitos sanitários e morais que auxiliassem na proposta de moldar as populações originárias do campo. Ao discutir trajetórias e limites de tal projeto, Mota fala de um período específico e traz argumentos para uma discussão que compreende dimensões etnográficas, se quisermos olhar a educação também pelo seu viés de difusão de conhecimentos técnicos aliados à natureza abstrata do que é dado transmitir. É exatamente este aspecto, o da expressão descritiva sobre os percursos históricos da educação e saúde brasileiras, que o segundo estudo “Educação sanitária em 16 mm: Memória audiovisual do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP”, de Maria Cristina Soares Guimarães et al., vem expor. O artigo dá notícia sobre o importante trabalho de resgate de acervos e sua conservação. Apresenta um conjunto de filmes produzidos, a partir dos anos 40, com auxílio da Fundação Rockefeller, especialmente para a divulgação de conhecimentos sobre saúde, como forma de educar a coletividade sobre diversos tipos de moléstias, sobretudo em continentes tropicais como África, Ásia e América Latina. O cinema educativo, embora ainda pouco explorado como fonte de estudos, é uma possibilidade de entendimento bastante diversificada. Auxilia tanto na compreensão das concepções de ciência, sociedade, público, de um determinado período e lugar, quanto fornece pistas sobre a formação das estruturas que definem nossas concepções de saúde e doença como coisas estanques e individualizadas. Nisto dialoga intimamente com as formas ocidentais de impor educação, de instituir conhecimentos e determinar “visões de mundo”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O terceiro e último artigo deste conjunto de trabalhos é o texto intitulado “Acervo de materiais educativos sobre hanseníase: um dispositivo da memória e das práticas comunicativas”, de Adriana Kelly-Santos, Simone Souza Monteiro e Ana Paula Goulart Ribeiro. Ao descrever e analisar diversos tipos de suportes cujo objetivo foi disseminar informações sobre uma doença específica, a hanseníase, entre os anos 1975 e 2008, o artigo traz à tona um debate que fecha este pequeno ciclo de discussão. As importantes conclusões do artigo apontam para a insistente desconexão entre práticas de educação e de divulgação. Traça o escasso acompanhamento sobre a “efetividade das estratégias adotadas”, frente às políticas de informação a que públicos diferenciados (pacientes, acompanhantes e categorias vulneráveis) estão sujeitos. Ao mesmo tempo, fornece indícios de procedimentos e ações capazes de diminuir as distâncias entre o público e os serviços de saúde, quando as atividades educativas deveriam deixar de ser “verticais, unilaterais e lineares”. As questões levantadas pelos artigos apresentados nos inclinam a formular alguns entendimentos. De maneira geral, querer a aplicação única e exclusiva de conhecimentos técnicos sobre a complexidade das relações de saúde e doença, em relação ao lugar social do paciente e ao poder do médico ou do educador, por exemplo, pode não ser plenamente eficaz. Em segundo lugar, a associação entre cientistas das chamadas ciências humanas e aqueles responsáveis pela produção de conhecimentos biológicos pode permitir vislumbrar entendimentos que gerem associações mais vantajosas para todos os que se dedicam ao campo, inclusive pacientes. Por fim, poderíamos procurar estudar as redes de relações de modo a explicar como, com quais custos e a que grupos interessam a manutenção da defasagem entre qualidade da produção de conhecimentos científicos em saúde e a insuficiência do atendimento dos serviços oferecidos ao público no Brasil. Márcia Regina Barros da Silva Universidade Federal de São Paulo

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presentation

Health relationships and disease relationships

If something like “health” existed in an individualized and singular manner, it could perhaps be described in the form of a transcendent and universal object that would contrast with a noun like “disease”; except that, because this does not exist, it also cannot be considered. The historicity of health relationships and disease relationships that the population experience nonetheless rejects the possibility of reaching understandings, describing or interfering in what may come to be a state of healthiness or unhealthiness, outside of a perspective of togetherness, reciprocity and movement. In neither of these two cases can either dualist understandings or simple relativism, or even possibly obstinate culturalism, serve to explain why, in the light of the advances in production within the health sciences, the hospital and outpatient clinic structures of public nature continue to be inefficient. The efforts made by many professionals, technicians, intellectuals and managers, and by some politicians, are undeniable, but it also cannot be denied that the objectives that have attemptedly been pursued are far from being achieved. The volume and quality of attendance are not compatible with the academic knowledge that has been acquired locally, or with the proposal to take a comprehensive view of patients. The expectation of something to be done that is incomplete and the perspective of insuperable difficulties have masked the possibilities that interactions with knowledge from different disciplines might allow. Divisions between academic disciplines only exist if we insist on not regarding them as artificial constructs: at the “wholesale” stage of the production of scientific knowledge, matters that are solely biological or psychological, or matters that are solely historical or statistical, become so because we need to fill out forms and because we need to write books and papers, among other reasons that establish professional divisions in modern societies. This introduction has the purpose of presenting texts that here form a dossier united by topics within healthcare and education, bringing together different aspects of what is commonly understood to be public disclosure or dissemination of scientific knowledge. Each of the three papers described below brings out understandings regarding historical processes with the capacity to help in thinking and, with some effort, who knows, in building up healthcare practices through routes that are more inclusive. The paper by André Mota, “Cleaning up the race through the hands of ruralist education: the case of the Butantan Rural School Group in the 1930s”, discusses a set of educational proposals put forward during the time of the Vargas government, within its attempts to construct a strong state and, at the same time, a civilized nation. Hence, a link was made between childhood (the central point of educational actions) and stimulation of sanitary and moral concepts that would aid in molding populations originating in rural areas. In discussing the path taken by this project and its limits, Mota writes about a specific period and brings out arguments for a discussion that includes ethnographic dimensions, if we also wish to look at education through its bias of diffusion of technical knowledge, allied with the abstract nature of what is transmitted. This is precisely the issue, of descriptive expression regarding the historical paths followed by Brazilian education and health, that is presented by the second study “Health education in 16 mm: audiovisual memory of the Special Public Health Service (SESP)”, by Maria Cristina Soares Guimarães et al. This paper provides news regarding the important work of recovering film collections and conserving them. It presents a set of films that were specially produced in the 1940s, with the aid of the Rockefeller Foundation, for disseminating healthcare knowledge, as a means of educating the public about various types of disease, particularly on tropical continents like Africa, Asia and Latin America. Although educational movies remain little explored as source material for studies, they provide possibilities for achieving very diverse understandings. They assist both in comprehending the concepts of science, society and the public within a given period and place, and in furnishing clues regarding the COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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formation of structures that define our notions of health and disease as delimited and individualized matters. This has a close relationship with the Western manner of imposing education, instituting knowledge and determining “worldviews”. The third and final paper in this set of studies is a text with the title “Collection of educational materials on Hansen’s disease: a tool for memory and communicative practices”, by Adriana KellySantos, Simone Souza Monteiro and Ana Paula Goulart Ribeiro. Through describing and analyzing various types of support that had the aim of disseminating information on one specific disease, i.e. Hansen’s disease, between 1975 and 2008, the paper brings out a debate that closes this small discussion cycle. The important conclusion indicated by this paper is that there is a persistent disconnection between educational practices and dissemination. The paper outlines the scarcity of follow-up regarding the “effectiveness of the strategies adopted”, in light of the information policies to which different publics (patients, accompanying persons and vulnerable categories) are subject. At the same time, it provides indications of procedures and actions that have the capacity to diminish the distance between the public and the healthcare services when educational activities cease to be “vertical, unilateral and linear”. The questions raised by these papers lead us towards formulating certain understandings. In a general manner, a desire for sole and exclusive application of technical knowledge to the complexity of health and disease relationships, for example in relation to patients’ social position and to the power of physicians or educators, may not be fully effective. Secondly, associations between scientists within the so-called human sciences and scientists responsible for production of biological knowledge may make it possible to discern understandings that generate associations that are more advantageous for everyone who is dedicated to this field, including patients. Finally, we could seek to study the network of relationships in such a way as to explain how, and with what costs and for which groups, it is of interest to maintain the discrepancy between the quality of production of scientific knowledge within healthcare and the insufficiency of the attendance provided by public services in Brazil. Márcia Regina Barros da Silva Federal University of São Paulo

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dossiê

Higienizando a raça pelas mãos da educação ruralista: o caso do Grupo Escolar Rural do Butantan em 1930*

André Mota1

Mota, A. Cleaning up the race through the hands of ruralist education: the case of the Butantan Rural School Group in the 1930s. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.9-22, jan./mar. 2010.

This paper presents the experience of the Butantan Rural School Group, in the city of São Paulo, in the 1930s. This was regarded as one of the few schools in Brazil with pedagogical aims based essentially on rural themes. The undertaking was due mainly to the efforts of Noêmia Mattos Cruz, who was an advocate of developing ruralist ideology, starting from an educational plan based on hygienism, at a time when republicanism was bringing in many contentions regarding the purpose of education and teachers’ “mission”. The School Group matured in the 1930s, when government care centered on childhood, and it gained space and the federal authorities’ attention through linking country matters to sanitary education, to produce “eugenically well formatted” Brazilian citizens. For this reason, the historicity of its construction and practices, implying adherence to a political project of public health and education aimed at rural settings, needs to be considered.

Keywords: Education. Health. History of education. Hygienism.

Este artigo apresenta a experiência do Grupo Escolar Rural do Butantan, na cidade de São Paulo, nos anos 1930. Considerada uma das únicas escolas no país cujo projeto pedagógico se respaldava essencialmente em temas rurais, a empreitada se deveu, sobretudo, ao esforço de Noêmia Mattos Cruz, defensora do desenvolvimento de uma ideologia ruralista, partindo do plano educacional de base higienista, num momento em que o republicanismo trouxe inúmeras contendas sobre as finalidades do ensino e a “missão” dos professores. Aprofundado na década de 1930, quando a infância era o centro dos cuidados governamentais, o Grupo Escolar ganhou fôlego e a atenção das autoridades federais ao atrelar assuntos do campo à educação sanitária, para produzir cidadãos brasileiros “eugenicamente bem formatados”. Para isso, deve-se considerar a historicidade de sua elaboração e prática, que implicaram na adesão de um projeto político de saúde pública e educação voltado para o meio rural.

Palavras-chave: Educação. Saúde. História da educação. Higienismo.

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*Elaborado com base em pesquisa de pósdoutoramento realizada no departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, entre 2006-2008, com bolsa Fapesp. 1 Museu Histórico “Carlos da Silva Lacaz”, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 4o andar, Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. amota@museu.fm.usp.br

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Introdução As modificações trazidas pelo republicanismo em 1889, com o surgimento dos municípios e de suas instituições representantes, configuraram, no Estado de São Paulo, uma sistemática disputa entre as forças políticas municipais e estaduais. O processo de urbanização, o desenvolvimento dos meios de comunicação e todos os elementos modernizantes que deveriam gerar laços de interligação e interdependência, acabaram provocando a intensidade desses choques de interesses entre comunidades (Telarolli, 1981), tendo, na raiz dessa pendência, uma dicotomia entre o interior e a capital, entre pequenos centros rurais e cidades mais populosas. Ao analisar os elementos que erigiram os novos emblemas de cunho liberal-agrário-exportador, inspirados na transição do trabalho escravo para o trabalho livre na economia cafeeira, Sérgio Buarque de Holanda localizou duas mudanças que vinham ocorrendo: uma que tendia a alargar a ação das comunidades urbanas, e outra que restringia a influência dos centros rurais, reduzidos, ao fim e ao cabo, a meras fontes abastecedoras, a colônias das cidades (Holanda, 1996). Diante dessa tensão, as elites interioranas acusavam o mundo urbano e seus habitantes de atravancarem o desenvolvimento de suas regiões. Em estudo sobre a oligarquia paulista e suas ideologias, Elias Thomé Saliba (1981) observa um pensamento ruralista dicotômico entre campo e cidade, para quem a produção cafeeira identificava-se com os interesses nacionais e o camponês era o produtor. Numa posição contrária ao mundo da produção e do trabalho, as classes urbanas teriam o único papel de “consumidoras” e eram reduzidas, por generalização, a “parasitárias”, por dependerem do trabalho do campo (Telarolli, 1981, p.46), e por conceberem “a população das cidades como ‘classes perigosas’, e a cidade como lócus da desordem social e política e da improdutividade econômica” (Ribeiro; Cardoso, 1996, p.58). Por isso, defendia-se o aprofundamento de uma ideologia ruralista para o país, partindo do plano educacional, num momento em que o republicanismo trouxe uma série de contendas sobre as finalidades do ensino e a “missão” de seus professores. Aprofundada na década de 1930, sob um debate em que a infância era o centro das atenções governamentais, Getúlio Vargas fez circular aos interventores de todo o país, no ano de 1932, as questões envolvendo a infância, entre elas a educação como prioridade, porque: [...] a condição para construir uma nação composta de cidadãos fortes e capazes e assim concretizar o próprio projeto nacionalista consistia em zelar pela saúde e o desenvolvimento físico e mental das gerações futuras, meta social que o poder público devia procurar atingir com a cooperação da iniciativa particular. (Sousa, 2000, p.223)

Resultados puderam ser constatados numa série de medidas na área educacional, com a inauguração do Ministério da Educação e Saúde Pública em 1930, a Reforma Francisco Campos em 1931, o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e da nova Constituição Federal em 1934 (Demartini, 2002). Nessa perspectiva, conceituar aquilo que se designava por “educação rural” exige considerar tal historicidade em sua elaboração e prática, pois essa operação envolveu uma adesão a um projeto político e econômico voltado para o meio rural: [...] implicando uma visão de realidade a ser transformada em que o “homem do campo” é o objeto principal das considerações, abrangendo também uma visão sobre a importância da escola na consecução de objetivos e fins cujos determinantes já estão implícitos na proposta do projeto político-econômico. (Demartini, 2002, p.856)

Para os propugnadores do ensino ruralista, havia a necessidade de se afinarem as vozes em torno de um projeto pedagógico capaz de servir de base à reestruturação do mundo agrário brasileiro (Abrão, 1982), contrapondo-se ao mundo das cidades e a suas instituições educacionais urbano-

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Mota, A.

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industriais. Na tentativa de divulgar e implantar o ensino proposto, em sua obra “Escola Rural”, William Wilson Coelho de Souza fez questão de lembrar, no ano de 1936, como havia uma “vontade nacional” pela fundação dessa nova pedagogia: No Amazonas encontrei o apoio de tais ideias junto a André Araújo, então Diretor da Instrução Pública, espírito brilhante de educador; no Maranhão, Luiz Vianna, que acompanhou com vivo interesse o curso que ministrei na Escola Normal sobre agricultura, foi entusiasta pela realização do empreendimento; no Estado do Rio, Celso Kelly pediu-me sugestões sobre a matéria, e em São Paulo, Sud Menucci, outro paladino denodado do Ensino da agricultura, pela Escola Primária, autor vibrante e comunicativo de obras, artigos e conferências sobre o tema, encorajou-me a publicar o presente livro. (Souza, 1936, p.4)

Duas finalidades eram defendidas como prioritárias na consecução desse plano. A primeira seria uma educação capaz de criar vínculos entre o homem do campo e suas origens, evitando-se o êxodo rural: “o ruralismo pedagógico defendia um ensino especificamente rural, com extensão, qualidade, organização, programas e métodos diferentes do ensino ministrado nas cidades” (Pires, 1996, p.68). A outra finalidade concernia ao plano abstrato da felicidade do homem que vivia no campo, resgatando um “tempo pretérito e original”, onde estaria a chave para os problemas que afligiam o homem do interior, sobretudo o “desviante” que foi para a cidade. Esse seria o tempo mitológico da terra benfazeja, o mito “em se plantando, tudo dá”, que acompanha ou faz parte desse “tempo perdido” que só alguns poucos conseguiriam desvendar (Abrão, 1982, p.18). Contudo, diziam existir uma pendência fundamental, capaz de impedir a implantação desse modelo de ensino: a formação dos professores. Ao observar o currículo formador, notou o professor Carneiro Leão quanto a cultura urbana se contrapunha à rural e uma imagem de “civilidade” à de “barbárie”. Essa seria a mentalidade do professor urbano ao chegar às zonas rurais do país, “despeitado, insulado dentro de si mesmo, alheio ao ambiente natural, cultural e social que julga inferior”. Era por esse motivo que esse profissional se mostraria “incapaz de se fazer útil na solução do menor problema da vida de seus alunos, de suas necessidades econômicas ou sociais” (Leão, 1939, p.283). Entre aqueles que debatiam sobre a educação paulista e brasileira, o ruralismo pedagógico foi largamente apregoado pelo educador, escritor e político Sud Mennucci. Professor desde 1910, assumiu seu cargo numa escola rural de Cravinhos, no interior de São Paulo. Já com essa experiência educacional rural, em 1925 foi professor secundarista no Liceu Franco Brasileiro e, já em 1930, ajudou a criar o Ginásio Paulistano. Durante o governo Vargas, assumiu três vezes o cargo de diretor do Departamento de Educação, por intermédio do qual instituiu: 18 delegacias de ensino, 104 grupos escolares, 23 ginásios, 15 colégios e dez escolas normais. Para orientar o ensino rural, procurou criar a Assistência Técnica do Ensino Rural (Moura, 2004). Sua crítica ao mundo urbano se evidenciava ao notar como os governos cuidavam das cidades e apenas delas: [...] dedicando-lhes todo o carinho de que eram capazes e todas as verbas orçamentárias, como se não existisse a interminável campanha brasileira, como se os oito e meio milhões de quilômetros quadrados do território nacional fossem cobertos inteiramente de casas e de ruas e de largos e praças, ou como se a nossa roça continuasse a ser habitada unicamente pelos escravos, que dela haviam fugido vinte anos antes. (Mennucci, 1935, p.21)

Segundo Sud Mennucci, o ensino rural tinha efetivamente, “na ignorância do professor” a respeito do universo rural, seu maior problema, pois a formação urbana e seus propósitos profissionais distanciavam-no de um programa específico a ser implementado. Mais do que isso, não se dava a esse profissional a oportunidade de adquirir os conhecimentos de um ensino essencialmente rural: Onde é que os professores iam aprender as cousas novas que o governo lhes estava a exigir? Sim, para ensinar nossas culturas, criação de animais úteis, conhecimento dos animais e vegetais nocivos, moléstias dos animais e vegetais, noções práticas de aboricultura, horticultura e

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jardinagem, é preciso saber agricultura geral e especial, zootecnia, veterinária. E, para ensinar utilmente um pouco − é axioma velho em pedagogia − é preciso saber muito. Onde iam os professores aprender essas novidades? Nas Escolas Normais Urbanas de onde tinham provindo, de nada disso se cuidara. Nas Normais Urbanas não só é proibido, mas motivo de ridículo falar em agricultura e em zootecnia. (Mennucci, 1935, p.39)

Pendências dessa natureza, atreladas a outros limites dessa concepção, foram responsáveis pelas tímidas ações no sentido de se implantar, como projeto amplo de Estado, o ensino ruralista. Por isso, naquele momento em São Paulo as iniciativas puderam ser resumidas às escolas-modelo rurais, “no estilo que os administradores denominavam de movimento renovador”. Eram elas: a criação da Escola Normal de Piracicaba; a organização da Sociedade de Amigos de Alberto Torres e da Sociedade Luiz Pereira Barreto, ambas atuando na divulgação do ruralismo; a criação de Clubes de Trabalho pela Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio; e a ampliação de algumas experiências de ensino rural, como a da Escola Rural da Fazenda da Barra, em Casabranca, e a do Grupo Escolar do Butantan (Porto, 1994, p.93). Contudo, esse também foi um momento em que a Saúde Pública, por meio de seus preceitos higiênicos e eugênicos, serviu como um dos motes no sentido de fortalecer os laços com esse mundo rural abandonado. No caso paulista, particularmente, imbuído do espírito construtor desse novo Brasil rural, foi Monteiro Lobato que reconheceu que “a raça do Jeca era a mesma dos bandeirantes, apenas enfraquecida por um rol de pestilência que se vinha perpetuando de pai para filho. Essa fé pueril, que o escritor compartilhava com boa parte dos sanitaristas, levou-o a confessar que “respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório dá-nos o argumento por que ansiávamos. Firmados nele, contraporemos ‘a condenação sociológica de Le Bon à voz mais alta da biologia’” (Luca, 1999, p.215). Na prática, entre as ações de medidas sanitárias que vinham se dando desde a criação do Serviço Sanitário em 1892, foi Geraldo Horácio de Paula Souza e seus contatos com membros da Fundação Rockefeller, a partir de 1925 (Marinho, 2003), que o levaram à conclusão de que a chamada “Educação Sanitária” seria o único modelo capaz de trazer avanços para todo o território. Instruir a população local, rural e urbana, com base nos moldes higienistas, deixaria de colocar em risco a saúde coletiva da população, ao mesmo tempo que civilizaria a nação (Campos, 2006). Para isso diversas instituições de São Paulo foram chamadas a implementar tais ideias e ações, sendo a escola uma das prioritárias.

Educação e Higiene: bases de uma escola rural na metrópole Em 8 de fevereiro de 1945, o jornal O Diário de São Paulo festejava os dez anos de ruralização do Grupo Escolar do Butantan. Por decreto de 3 de julho de 1935, sob a assinatura do Secretário da Educação Cantídio de Moura Campos, ruralizou-se o Grupo Escolar, então sob a direção da professora Dinorah Círio Chacon. Tal concepção de ruralização pedagógica vinha sendo efetuada havia dois anos, pela professora Noêmia Saraiva Matos Cruz, que, no Congresso de Ensino Regional realizado na Bahia, impressionava os congressistas com o relato e o documentário de suas atividades educacionais. Ao assumir a direção da escola, em setembro de 1935, essa educadora pôs em marcha seu projeto, até 1943, quando foi nomeada Inspetora do Ensino Rural do Governo Federal. Para o Diário de São Paulo, a saída de Noêmia Cruz não desanimou as professoras, que continuaram no Grupo Escolar desenvolvendo os ensinamentos ruralistas da antiga diretora: [...] a professora Laudicena Colaço, que lhe sucedeu, traçou diretrizes seguras para o desenvolvimento de suas atividades. Duas professoras – Maria Josefina Kuhlmann e Dinah Caconde de Freitas – que já possuíam bagagem de conhecimento e prática adquiridos no próprio grupo, foram alunas mais capazes do Curso de Especialização de Pinhal, de onde voltaram com a orientação segura para as lides do ensino rural. (Diário de São Paulo, 1945, p.6)

Até 1932, a região do Butantã tinha alguns núcleos escolares, inclusive o Grupo Escolar do Butantan, sediado na fazenda onde ficava o já famoso Instituto Butantan. Em 1933, Afranio do 12

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Mota, A.

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Amaral, diretor do Instituto e incentivador do projeto, viu na criação de uma escola de cunho rural a possibilidade de um centro formador para seus futuros funcionários: A fim de atender as suas urgentes necessidades de preparar pessoal técnico habilitado sob orientação definida desde os bancos escolares e dentro de uma atmosfera de disciplina e de amor ao trabalho, esta diretoria prosseguiu no seu plano de facilitar as atividades do Grupo Escolar que, de acordo com a Diretoria Geral de Ensino, instalou em um de seus prédios e onde recebem instrução primária cerca de 400 crianças, cuja maioria pertence às famílias de funcionários do Instituto. (Amaral, 1933, p.16)

Nascida em 21 de setembro de 1894, na Fazenda Santa Rosa, em Rio Claro, diplomou-se pela Escola Normal Secundária da Praça da República e foi professora do Grupo Escolar da cidade de Pedreira e, na capital, do Grupo Escolar do Arouche até 1920, quando mudou-se para o Rio de Janeiro. Voltou para São Paulo no início dos anos trinta. 2

Coube ao governo permitir a efetivação do ensino rural ao Grupo Escolar do Butantan, através das disposições do Decreto no 6.047, de 19 de agosto de 1933 (Campos, 2006). Segundo a professora Noêmia Cruz, houve um convite para que ela fosse “trabalhar no novo Grupo Escolar de Butantan, criado especialmente para nele se instalar a Escola Primária Rural”. Esse chamado veio do Diretor de Ensino, Sud Mennucci, aconselhando “nas suas obras magníficas de educação e sociologia, a importância do ensino rural em São Paulo” (Cruz, 1936, p.21). Como a maior entusiasta, Noêmia Cruz2 mobilizou-se no sentido de ganhar profissionalmente os dotes educativos e científicos para a formação de um “verdadeiro” professor de escola rural, o que lhe valeu uma carreira meteórica − em 1932, era professora primária; em 1934, ativa participante do 1º Congresso de Ensino Regional na Bahia; em 1935, diretora da Escola Rural do Butantan, e em 1939, era já representante do Estado de São Paulo no Congresso de Ensino de Minas Gerais. Foi ali que recebeu o desafio de organizar o ensino rural de Juiz de Fora, o que lhe valeu o cargo federal de Inspetora do Ensino Rural. Ainda assumiu a chefia da Assistência Técnica do Ensino Rural e a Superintendência da Escola Profissional e Agrícola, onde requereu sua aposentadoria. No registro de suas aulas, vê-se que criava uma complexa rede de temas e posturas que articulavam conhecimento do mundo do trabalho rural, patriotismo e higiene eugênica, dando sentido prático às representações de sua formação, com ênfase em seu aspecto moral e regenerador (Mota, Schraiber, 2009). Exemplarmente, as atitudes dos alunos deveriam ser enfeixadas numa série de posturas envolvendo uma moral do homem do campo atrelada aos preceitos da higiene do homem urbano, como lavar as mãos e os alimentos, a maneira de mastigar, de sentar, falar etc. A sua formação pela Escola Normal em São Paulo foi marcada pelo ensino enciclopédico, pela presença das ciências naturais e por um saber técnico centrado no exercício prático, tidos como capazes de nortear o saber-fazer dos futuros professores (Silva, 1999). O discurso e a meta da professora Noêmia, por essa visão, era construir rigorosamente o modelo escolar rural, edificando, consequentemente, uma nobre missão que o republicanismo lhe havia dado, ou seja, o cultivo de espírito do povo e sua elevação moral e de caráter. Ao fim e ao cabo, os resultados apresentados pela professora reforçavam o argumento de que não estava em jogo apenas uma tática pedagógica a ser implementada, mas uma visão de mundo em que os conhecimentos de técnicas agrícolas e higiene deveriam acarretar a própria redenção da nação brasileira. Nesse contexto, podemos acompanhar alguns de seus movimentos na busca da legitimidade e do nível esperado de um professor tão especial. Sobre o início dessa formação, ela mesma lembrou: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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[...] não havendo em São Paulo organizado um curso especial onde eu pudesse aprender tudo de que precisava, para transmitir aos meus alunos, procurei eu mesma, traçar um plano de aprendizado, não só teórico, mas, sobretudo prático e in loco, nos diversos departamentos paulistas da Secretaria da Agricultura, que passei a frequentar. (Cruz, 1936, p.22)

Assim, Noêmia Cruz foi aluna e observadora do Curso de Criadores, de Avicultura, de Apicultura e Laticínios no Instituto Biológico. Logo depois, matriculou-se, por meio da Diretoria de Indústria Animal do Parque da Água Branca, no Curso de Capatazes, onde cursou as matérias de Laticínios, Apicultura, Sericultura, Piscicultura, Zootecnia Geral e Veterinária. Ainda fez vários estágios: no Instituto Biológico, nas seções de Entomologia, Fitopatologia e Botânica; na Escola Agrícola Luiz de Queiroz em Piracicaba; no Instituto Agronômico de Campinas e na Fazenda Santa Elisa, onde adquiriu conhecimento e conselhos na área de Agricultura. O Instituto de Higiene de São Paulo foi a instituição responsável por formalizar e organizar, conjuntamente com o Serviço Sanitário, dentro dos preceitos da higiene, núcleos de pesquisa e intervenção em diversas áreas, rurais e urbanas, sendo proclamadas a criança paulista e a escola como pontos centrais na construção de um Estado e país mais salubre, higiênico e elevado racialmente. Desde 1921, como nos mostra em sua análise Heloísa Helena Pimenta Rocha, o Instituto tentava ampliar e redefinir sua estrutura organizacional, deixando de oferecer um curso voltado, apenas, aos estudantes da Faculdade de Medicina, passando a oferecer cursos especiais. Entre eles, uma pósgraduação em profilaxia da malária e ancilostomose, um curso intensivo de Higiene Rural e instrução para as alunas da Escola Normal (Rocha, 2001). O auge desta empreitada esteve no Curso de Educação Sanitária, iniciado em 1924, mas com ações práticas em 1925, a partir das novas orientações trazidas com a chamada Reforma Paula Souza, buscando estender os números dos Centros de Saúde, bem como transformar professoras primárias e auxiliares dos serviços sanitários em agentes de divulgação da higiene, formando uma “consciência sanitária”: [...] a atuação das educadoras sanitárias formadas pelo Instituto de Higiene explicita as ideias, presentes na sociedade brasileira, sobre a necessidade da formação e da melhoria da raça, temperada por princípios eugênicos, pela seleção de tipos ideais e pelo papel da higiene na formação de trabalhadores sadios e ordeiros, questão ainda mais candente na cidade de São Paulo onde a presença de imigrantes se fazia sentir com mais intensidade. (Vasconcelos, 1995, p.40)

Para o Instituto de Higiene, a popularização dos preceitos sanitários e higiênicos deveria ser divulgada para as instituições de educação, oferecendo cursos para as normalistas com exercícios práticos e manuais de higiene e puericultura, com o objetivo de sanear física, mental e moralmente os grupos populares. Todas essas investidas, quer no campo rural, quer no meio urbano, eram devidamente fotografadas e documentadas, demonstrando quanto as teorias e práticas ligadas à educação sanitária estariam na base formadora de todas as educadoras formadas em São Paulo. Segundo estudo desenvolvido por Marques, “a Inspetoria de Educação Sanitária possuía tanto em nível central quanto nos centros de saúde educadores - professores - em maior número que outros profissionais, mesmo em se tratando de médicos, em clara alusão aos objetivos de ‘educar o povo’” (Marques, 1994, p.117). Nesse sentido, higienistas e eugenistas se encontravam no serviço sanitário, nos serviços de inspeção escolar, como também nas diversas instituições da sociedade, onde a saúde e a educação fossem áreas de atuação. No caso das escolas, a higiene começaria no próprio prédio, prática corrente desde quando as medidas sanitárias passaram a reordenar espaços urbanos. Noêmia Cruz formou-se como educadora sanitária sob tais preceitos, tendo passado pelos seguintes cursos: Puericultura, Alimentação, Enfermagem, Epidemiologia e Socorros de Urgência. Sublinhe-se que o Instituto visava estimular campanhas sanitárias nas escolas e coletividades, com o manifesto projeto de regeneração racial (Mota, 2003) com base em ações educativas e higienistas em áreas consideradas rurais. Esse projeto ia ao encontro das pretensões ruralistas da professora Noêmia, pois sua cruzada sanitária e educativa se aproximava do ideal de remodelação do homem do sertão e 14

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de sua comunidade. O futuro promissor expresso no emblema estampado no diploma das educadoras sanitárias foi de grande valor para seus fins, e dizia: “A educação sanitária semeia, a raça colherá seus frutos”. Para Rocha, essa máxima simbolizava: [...] a farta colheita de uma raça redimida do pecado da miscigenação. Sob o brilhante e resplandecente sol da saúde, cabia às educadoras sanitárias, qual jardineiras, preparar terreno e semear a consciência sanitária, regenerando para o trabalho um povo que, como Jeca Tatu, mourejava, vítima da própria ignorância e incúria. (Rocha, 2001, p.184)

Como se depreende facilmente, Noêmia Cruz esperava de toda essa formação a inversão dos conhecimentos didáticos oficiais até então aplicados nas escolas rurais, desenvolvendo uma metodologia ruralista própria e, por mais que se tentasse negá-lo, pautada em técnicas urbanas e higienistas. Higiene que era considerada como uma disciplina científica de base biológica, com atributos morais e que tinha nas intervenções sociais sua maior área de atuação (Marques, 1994). Se nas cidades os êxitos já eram apresentados nas mais diversas formas (livros, teses, artigos, propagandas etc), o mundo rural ainda era um grande desafio a ser enfrentado. Para o Dicionário de Educadores no Brasil, Noêmia Cruz teria sido capaz, justamente, de se projetar “pela experiência inovadora que desenvolveu com base nas propostas do ruralismo pedagógico. Mulher da cidade grande, Noêmia se dizia de ‘alma ruralista’” (Demartini, 2002, p.856). Em seu próprio livro, escrito com a intenção de “ensinar” sobre o dia-a-dia de uma escola rural, ideias, concepções, estratégias didáticas e de cunho higienista mesclam-se à sua classe social original e à sua visão política sobre quem eram o Brasil e o brasileiro ideais. Entre as diversas atividades desenvolvidas no Grupo Escolar do Butantan, algumas são particularmente significativas dos objetivos traçados para o ensino rural. Longe de abrangermos tantas dimensões, vamos apenas flagrar alguns aspectos dignos de atenção, como a chegada da professora Noêmia Cruz à quarta série. Inspirada no modelo norte-americano dos clubes de jovens agricultores e criadores, ela imprimiu mudanças importantes na história da instituição, fundando, já em 19 de novembro de 1933, o Clube Agrícola Escolar. Esse Clube facilitou a implementação das primeiras diretrizes pedagógicas do ruralismo, sem interferir nas práticas pedagógicas do ensino urbano ainda existentes. Para Noêmia Cruz, “esse clube teria o fim especial de propagar o amor à natureza e de ensinar aos sócios atividades agropecuárias nos terrenos do Grupo” (Cruz, 1936, p.27). Por meio dele, ela organizou os alunos-sócios e as atividades a serem realizadas. Um pouco mais tarde, como diretora do Grupo Escolar, incorporou todos os alunos a essas atividades, ao mesmo tempo em que suprimiu as “disciplinas urbanas”. O aprendizado viria da prática agrícola e de suas necessidades − do português à matemática, da história à geografia: [...] não basta alfabetizar, ensinar a dizer que o Brasil foi descoberto por acaso [...] que tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados, que é maior que este ou aquele país [...] Não basta decorar lições, histórias e teorias, deixando a criança presumida, árida e indefesa. Não! O Brasil não deve ser um “vasto hospital”, como o chamou um dos nossos higienistas, nem um país de incapazes e teóricos. Mas, sim, um grande país com educação, organização, habitado por homens fortes que cultuem seu amor, semeando e colhendo, tornando rica, livre e feliz a sua pátria – não só nas cidades, mas principalmente no campo, na roça, de onde nos vem tudo! (Cruz, 1936, p.82-3)

Foi assim que a professora pôs em pauta as atividades rurais a se desenvolverem, primeiro, pelos membros do Clube e, mais tarde, por todos os alunos do Grupo Escolar: horticultura, floricultura, avicultura, cunicultura, apicultura, roças de milho, feijão, soja, trigo, arroz, aveia, centeio e cevada. Também se desenvolveram técnicas em pomicultura, silvicultura, plantas medicinais, ornamentais e forradeiras. Os “alunos-produtores” eram avaliados pelas atividades desenvolvidas e os resultados de sua produção. Na carteirinha do Clube, “de cartolina amarela e escrita de verde (cores nacionais), os alunos que mais se destacavam tinham o seu retrato na carteira” (Cruz, 1936, p.42). Para os ganhadores de concursos e gincanas, a professora registrava em sua câmera fotográfica o “instante do campeão”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Mas, entre as atividades práticas, outras estratégias pedagógicas buscavam suprir as necessidades formativas dos alunos. Dos raros materiais didáticos adequados aos propósitos do ensino ruralista, havia um livro de leitura obrigatória − Saudade, um didático escrito em 1920 por Thales de Andrade3 −, em que se elogiava abertamente a vida campesina, que se considerava superior à urbana: “o pobre da roça era um nababo comparado com o pobre da cidade” (Mennucci, 1935, p.45). Para a professora Noêmia, esse era um manual de grande ajuda para a prática de leitura e o aprendizado dos valores ruralistas, por isso seus alunos logo receberam exemplares. Em 231 páginas, o autor narra a história de Mário, um menino que viu com tristeza sua família vender a fazenda onde morava para ter “a boa vida” da cidade. No entanto, ao contrário do que se esperava, a vida da cidade começou a empobrecê-los e, com o tempo, o sr. Raimundo, pai de Mário, vai trabalhar num escritório com um pequeno salário. Esse “desvio de conduta” − como se apresenta − ligava-se ao argumento ruralista que partia do princípio de que o homem do campo é um desajustado num sistema incapaz de colocar a terra como fator essencial de sustentação de riqueza para si, sua família e seu país, aos trabalhadores rurais, que “não souberam” extrair da terra as oportunidades de seu “progresso e riqueza” (Porto, 1994, p.49). Foi a partir dessa constatação que o sr. Raimundo resolveu voltar com sua família para o campo, comprando um sítio em Capão Bonito, e Mário foi para uma escola rural (Andrade, 1920). Esse homem bucólico, descrito tão caprichosamente, revela um outro elemento mitológico na construção da imagem do homem da roça: “o homem que vive no e do campo se realiza melhor como ser humano do que aquele que vive na cidade.” Finalmente, a escola agrícola, segundo a narrativa, mesmo não levando ao Ensino Superior, ajudaria aqueles que quisessem se especializar “nas coisas do campo”, sendo considerada uma alternativa plausível. A Escola Agrícola Luiz de Queiroz era citada como a instituição-modelo, lugar em que Mário finalizaria sua formação e ganharia seu futuro. Exemplos como os apresentados eram emblemáticos para o esforço da educadora em tentar equacionar o “grande problema nacional” - a vida do homem do campo e sua formação. Em seus objetivos originais, o Grupo Escolar Rural do Butantan prepararia o aluno “para a vida, educando seu coração no amor a Deus, à Pátria e aos seus semelhantes”, introduzindo uma “nova mentalidade nacionalista e rural” e, finalmente, contrapondo-se aos “decadentes” valores urbanos. “Tenho posto minha dedicação sincera a serviço duma causa que julgo patriótica e de largos benefícios para a nacionalidade” – afirmava Noêmia Cruz, quando já era considerada uma referência em sua área.

Os limites da educação rural Buscando conhecer a vida da “naçãozinha rural do Butantan” em outras fontes (Kaló, 1997; Therrien, 1993), notaremos que as demandas de um espaço escolar ruralizado em plena cidade de São Paulo acarretaram dinâmicas nem sempre referidas pela professora ou seus apoiadores. Primeiramente, as ações destinadas a concretizar o projeto educacional ruralista obtiveram parcos resultados, até que as mudanças ocorridas em 1952 estenderam o tema ao âmbito nacional (Barreiro, 1997). Aproximando-se das escolas primárias no Estado de São Paulo, inclusive as rurais, a historiadora Circe Bittencourt constatou um quadro precário de ensino nas décadas de 1920 e 1930. Exemplarmente, a partir de 1928, os grupos escolares funcionavam em três períodos, como solução 16

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Além desse, escrito para os 3o e 4o anos, encontramos, em sua produção: a cartilha Ler brincando, os livros de leitura para o 2o ano do Grupo Escolar, Vida na roça e Espelho e, para o 3o ano, Trabalho. 3


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de emergência, alegadamente em função dos “altos custos das construções escolares, acabando o governo por optar, em nome de um atendimento mais extensivo, por medidas que comprometiam as propostas pedagógicas anunciadas pelos programas de ensino” (Bittencourt, 1990, p.98). No caso das escolas rurais, a situação era muito mais problemática. Em 1936, segundo o Diretor Geral de Ensino, Amadeu Mendes, eram setecentas mil crianças em idade escolar que habitavam a zona rural e cento e trinta mil as que podiam se matricular. Segundo Bittencourt, não eram todas as cento e trinta mil crianças que estavam matriculadas oficialmente, mas apenas algo em torno de setenta mil, sem se considerarem os índices de evasão e repetência, sobretudo devido ao trabalho infantil, expediente usual nas áreas rurais. Mesmo proibido pela lei de 1934, esse tipo de trabalho era comum e pouco fiscalizado. O resultado era a acusação de professores e diretores aos pais, como os únicos responsáveis pela exploração do trabalho infantil. Embora sem ações efetivas, essa realidade era discutida com referências à organização regional do trabalho e à agenda escolar, ficando pendências cada vez mais intensas e preocupantes para as autoridades educacionais (Bittencourt, 1990). Em estudo realizado pela Diretoria de Ensino do Estado em 1936, o número de crianças em período escolar no Butantan era de 1943, o que acusava a falta de 28 salas de aula. Quando surgiu, o Grupo Escolar do Butantan falava em quatrocentas crianças matriculadas, o que supunha que a grande maioria estivesse fora do projeto escolar e ruralizador. Esse número se completa no próprio balanço da Diretoria de Ensino sobre as crianças sem escola em toda a capital: Só na cidade de São Paulo, calculamos em 18.000 o número de crianças em idade escolar que não conseguem matrícula nos estabelecimentos de ensino primário, quer públicos, quer particulares. Nas cidades e distritos do estado todo, haverá aproximadamente 100 mil crianças em iguais condições. (São Paulo, 1936, p.18)

Além de não conseguir atingir sua meta civilizatória para todas as crianças em idade escolar, o Grupo Escolar do Butantan enfrentava outras questões em seu dia-a-dia, que interferiam em suas ações educativas de maneira profunda e, às vezes, determinante. Apesar de não se notarem esses percalços nos relatórios, artigos e fotografias de Noêmia Cruz, eles se diluem entre os sorrisos dos alunos sempre perfilados, representando um grupo regenerado pelas mãos puras da natureza e por aqueles que trabalhavam diretamente com ela. Um caso muito particular foi a relação estabelecida entre a escola e o Instituto Butantan. Aquela encontrava-se nos domínios e na esfera institucional deste, confundindo-se suas expectativas e necessidades. O projeto da escola de arborização do Butantan foi expressivo. Em seu caderno de anotações, a professora Noêmia Cruz registra “o recebimento de algumas enxadas velhas do Instituto, o que levou a pedir emprestadas para os pais dos alunos, e o recebimento do Horto Florestal de 263 mudas”, revelando que seu projeto inicial era fazer arborizar a região da Fazenda Butantan pelos membros do Clube Agrícola Escolar, que receberiam material suficiente e as plantariam nos quintais e terrenos baldios. Porém, logo abaixo de sua relação de mudas, ela faz uma observação que parece frustrar-lhe planos: “a pedido do dr. Waldemar Pecholt, botânico do Instituto, foram ofertadas ao Instituto 116 mudas” (Cruz, 1934). O recebimento de cada uma das 147 mudas restantes foi documentado e assinado por cada um dos 129 alunos do Clube. Foi também dela o pedido feito, com a intervenção do sr. Rafael Xavier, do Ministério da Agricultura, ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, de sementes de diversas árvores e plantas medicinais. Foram enviados 25 tipos de sementes de diversas espécies e, “a pedido”, entregaram-se 15 tipos ao Instituto, com a observação: “atendendo ao pedido do sr. Waldemar Pecholt, da seção de Botânica (plantas medicinais) do Instituto, foram ofertadas as sementes de abio, ipê, pau d’arco, abricó do Pará, pérola vegetal, pau rei, malvácea, hernandia guayensis, bacopari, imburi, arica, anda-assu, cumaru, évea brasilense, óleo-vermelho” (Cruz, 1934). Fosse por uma mudança de planos ou pela redução de um projeto mais abrangente, o fato era que a execução do projeto educacional ruralista tinha limites bem claros. A “civilização rural” que se tentava construir não se podia esconder em seu “tempo mitológico da terra benfazeja”, sobretudo com um Instituto de pesquisa que vivia nos anos trinta dias turbulentos e que afetavam a escola direta e indiretamente. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Entre 1936 e 1937, a idealização nascida das fotografias ou narrativas realizadas pela professora Noêmia escondia um outro quadro, mais dramático e perturbador, cuja compreensão exige que se acompanhe um debate na Assembleia Legislativa de São Paulo - uma série de denúncias de ordem administrava, financeira e moral contra Afranio do Amaral, diretor do Instituto, afastado pelo governador do Estado em 1937. Entre os fatos arrolados, alguns envolviam o Grupo Escolar Rural do Butantan. O primeiro deles referia-se à construção de um pavilhão especial para trabalhos com o tifo exantemático, uma doença infecto-contagiosa, onde o dr. Amaral teria feito congregarem-se outras atividades, pondo em risco os que frequentavam o local. Segundo o deputado: Ainda no porão desse mesmo pavilhão, onde se esteriliza material contaminado de vírus de tifo exantemático, Afranio do Amaral ordenou a instalação da seção de botânica médica, de fotografia e gabinete dentário para o uso das crianças do Grupo Escolar do Butantan, sujeitando todo esse pessoal aos riscos de uma contaminação, além do perigo da intoxicação pelo gás dos aparelhos de esterilização ali instalados sem requisitos técnicos. (Abreu, 1936, p.30)

Outra denúncia tratava do relato de alguns funcionários, que dizia ser uma prática do diretor encarcerar “pessoas não desejáveis”, como forma de punição: [...] existe no Butantan um grupo de celas para a fermentação de lixo (esterqueiras). Aproveitou-as o dr. Afranio para a prisão de vítimas de seus ódios pessoais. Nelas encarcerou uma demente moradora nas vizinhanças do Instituto e o mesmo praticou depois com outros indefesos moradores dos arredores. (Abreu, 1936, p.42)

No mesmo capítulo, mencionam-se os alunos do Grupo Escolar: [...] prosseguindo em tais arbitrariedades, prendeu mais tarde, nas mesmas câmaras de fermentação, três filhos menores do funcionário Francisco Campos, tendo sido, por esse motivo, ameaçado de morte pelo progenitor dos referidos menores. (Abreu, 1936, p.42)

O livro de registro de atividades do Clube Agrícola de d. Noêmia continha os nomes e endereços de todos os alunos, inclusive os de dois filhos do sr. Francisco Campos − Eunice César Campos e Paulo Isidoro César Campos. Em outro caso narrado na Assembleia Legislativa, confirmam-se as atitudes punitivas de Afranio do Amaral, ao “castigar, da mesma forma, um filho de outro funcionário, A. Theophilo Martins”. No entanto, diante da atitude de ameaça do funcionário, o diretor do Instituto não teria levado sua ação às últimas consequências (Abreu, 1936, p.42). De alguma maneira, esse fato chegou ao conhecimento de d. Noêmia, pois constava em seu “livro de registros” o nome de Arthur Teófilo Martins, matriculado na 4a série e sócio do Clube Agrícola do Grupo Escolar. Todos esses “casos” envolvendo o cotidiano escolar obstavam às aspirações de trazer “os tempos áureos do mundo rural” a uma escola com esse perfil, colocando as suas próprias habilidades profissionais em suspenso. Mesmo sendo uma escola especial e para poucos, era obrigada a dialogar com o mundo urbano e as instituições ligadas à capital e, mais que isso, a dar respostas que o momento exigia no plano educacional brasileiro, mas o ruralismo não possuía as respostas. Mesmo com limites, Noêmia Cruz usou de um novo expediente para dar visibilidade aos seus propósitos educacionais, aproximando-se do governo federal e unindo-se aos seus ideais nacionalistas. Para isso, usou suas imagens e relatos como forma de narrativa de seu trabalho, mostrando um “pequeno exército” de meninos e meninas de “todas as raças”, construtores de uma nova mentalidade rural, higiênica, civilizada e patriótica. Ao perceber, nas imagens enviadas, os símbolos de uma “nova nacionalidade”, os órgãos oficiais do governo getulista ajudaram a divulgar o agora Grupo Escolar “Rural” do Butantan, como representativo da elevação da pátria e de como cuidar das coisas do campo por meio da disciplina, da saúde e do trabalho. Em 1939, a escola era um exemplo nacional de uma escola rural das aspirações estadonovistas. No balanço do professor Carneiro Leão sobre a 18

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educação no meio rural, o Brasil possuiria apenas três escolas rurais funcionando dentro dos “critérios ruralistas”: a Escola Regional de Meriti, estabelecimento-modelo fundado e mantido pelo esforço de Amanda Álvaro Alberto, a Escola Rural Alberto Torres, em Pernambuco, e o Grupo Escolar do Butantan, em São Paulo (Leão, 1939, p.290). A partir de uma carta enviada por Noêmia Cruz, a revista Nossa Terra, então vinculada ao Ministério da Agricultura, publicou uma matéria divulgando o trabalho realizado na Escola Rural do Butantan. O conteúdo da carta ganhou um tratamento especial com as imagens que ilustraram o texto da revista, todas tiradas dos álbuns da própria d. Noêmia. Assim se exaltavam a escola e o trabalho da diretora: [...] tal como fez em seu último número em relação ao Grupo Escolar de Batatais, São Paulo, divulga Nossa Terra, agora, interessantes fotografias tomadas em torno das fainas agrícolas a que se entregam os alunos do Grupo Escolar do Butantan, no mesmo Estado, e cuja direção se acha confiada à professora Dona Noêmia Saraiva Mattos Cruz. São alguns quadros verdadeiramente empolgantes. (Revista Nossa Terra, 1939b, p.8)

O impacto das imagens e do teor da carta de d. Noêmia valeram-lhe uma outra inserção na Revista: Novas fotografias interessantíssimas estampam no presente número de Nossa Terra relativamente à educação agrícola pela escola rural. São diferentes aspectos de cultivos e criações feitos pelos alunos do Grupo Escolar Rural do Butantan, no Estado de São Paulo, e dos quais já nos temos ocupado em números anteriores. (Revista Nossa Terra, 1939a, p.13)

E também uma carta do Ministro da Agricultura, Fernando Costa: [...] tenho a grata satisfação de acusar o recebimento de sua atenciosa remissiva, acompanhada de interessantes fotografias tiradas no Grupo Escolar Rural do Butantan do qual V.S. é digníssima diretora. As referidas fotografias, que mandarei publicar na revista deste ministério, Nossa Terra, provam que o espírito feminino, usando da influência que exerce sobre as crianças, ensinando-as de maneira interessante e divertida, contribui eficientemente para o fim que almejamos. Satisfeito por ver em V.S. uma adepta fervorosa do censo rural no Brasil, faço votos para que o Grupo Escolar do Butantan continue no seu propósito de preparar o espírito dos futuros homens que irão trabalhar para o engrandecimento do país. Prevaleço-me do ensejo para apresentar a V.S. os meus protestos de consideração e apreço. − Fernando Costa. (Revista Nossa Terra, 1939, p.13)

Como vimos, o Grupo Escolar Rural do Butantan alçou um lugar de importância indiscutível na defesa de um ensino ruralista no Brasil, numa tentativa de barrar valores urbanos cada vez mais dominantes, sobretudo em São Paulo. A trajetória de Noêmia Saraiva Mattos Cruz, em sua incansável luta pela implementação de tal concepção, foi reconhecida pelo governo getulista como capaz de congregar os valores rurais higiênicos e nacionalistas impetrados pelo Estado. A “alma ruralista” dessa professora, responsável pela concretização de suas intenções profissionais, esteve profundamente marcada por tecnologias urbanas e modernizantes, atreladas a uma ideologia nacionalista, com técnicas de melhoramento racial de aves e plantas mescladas às medidas higiênicas em que deveriam estar submetidos seus alunos. Isso porque sua visão aliava-se às das elites agrárias, e não aos grupos pauperizados do campo, inclusive, reprovando sua forma de vida, qualificando-os como “avarentos, desconfiados e supersticiosos”, redundando num homem inábil à vida civil: “a escola rural pode eliminar ou, pelo menos, atenuar certos vícios desses habitantes do campo” – afirmava Noêmia Cruz – “refazendo o seu nível moral, em condições mais elevadas e nobres, concorrendo para a sua felicidade e para o futuro da sua pátria (Cruz, 1936, p.159). Por essa narrativa, sua “paulistanidade” era inconteste, na medida em que abraçou um projeto nacional a partir de sua “formação paulista”, cristalizada, inclusive, por uma mitologia bandeirantista, que dava um lugar de predominância geográfica e racial para o Estado, um êxito em suas ações sanitárias de cunho higienista e eugênico, colocando em andamento seu projeto pedagógico capaz de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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afirmar uma vocação ruralista do Brasil. Como uma “bandeirante da educação”, elaborou e projetou, em seu trabalho, o mundo rural com seus jardins, animais e insetos, ensinando a “noção das coisas”, entre elas, o sentimento de que o homem é parte do torrão natal, que é um membro de alto valor no campo e uma prometida força no conjunto da nação. Bastaria educação, a educação higiênica pelas mãos, e o futuro do país estaria assegurado. Essa era a boa nova anunciada, de um tempo cheio de abundância e felicidade para homens e mulheres, que ainda eram retratados na versão lobatiana como soturnos urupês humanos: incapazes de ação, incapazes de progresso, incapazes de vontade.

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Mota, A.

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Higienizando a raça pelas mãos da educação ruralista:...

Mota, A. Higienizando la raza por las manos de la educación rural: el caso del Grupo Escolar Rural de Butantan en 1930. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.922, jan./mar. 2010. Este artículo presenta la experiencia Del Grupo Escolar Rural de Butantan em la ciudad de São Paulo, Brasil, em 1930. Considerada una de las únicas escuelas brasileñas cuyo proyecto pedagógico se respaldaba esencialmente en temas rurales, la iniciativa se debió sobre todo al esfuerzo de Noêmia Mattos Cruz, defensora del desarrollo de una ideología rural partiendo del plan educacional de base higienista en un momento en que el republicanismo trajo numerosas contiendas sobre las finalidades de la enseñanza y la “misión” de los profesores. Centrado en la década de 1930, cuando la infancia prevalecía entre los cuidados gubernamentales, el Grupo Escolar se destacó en la atención de las autoridades federales al relacionar asuntos del campo a la educación sanitaria, para producir cuidados brasileños “eugenésicamente bien formatados”. Para tal ha de considerarse la historicidad de su elaboración y práctica que implicaron la adhesión de un proyecto político de salud pública y educación dirigido al medio rural.

Palabras clave: Educación. Salud. Historia de la educación. Higienismo. Recebido em 18/09/2009. Aprovado em 22/01/2010.

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Educação sanitária em 16mm:

memória audiovisual do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP*

Maria Cristina Soares Guimarães1 Cícera Henrique da Silva2 Rosinalva Alves de Souza3 Rosemary Teixeira dos Santos4 Luiza Rosângela da Silva5

GUIMARÃES, M.C.S. et al. Health education in 16mm: audiovisual memory of the Special Office of Public Health – SESP. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.23-34, jan./mar. 2010.

Health education movies are witnesses to history, pieces of social memory and valuable sources for producing knowledge in different fields. They still await rescue and promotion as a research subject. Within the scope of Brazil-USA cooperation that originated the Special Public Health Service (SESP) in 1942, the Rockefeller Foundation brought to Brazil its previous experience in producing and using these movies for health education actions. The present project had the aim of recovering a set of 16 mm films from the SESP collection that, over decades, had become buried, rotting away and lost in dark corners of the national bureaucracy. The objectives were to physically restore the films and to describe and thematically organize them, in order to put them into an institutional digital memory repository, with a view to subsequently making them available and socializing them, among researchers and society in general, through a virtual space on the internet.

Keywords: Health education. Instruction. Health memory. SESP. Rockefeller Foundation.

Testemunho da história, peça da memória social, fonte valiosa para produção de conhecimento em várias áreas, o filme educativo em saúde ainda espera por seu resgate e promoção como objeto de pesquisa. No âmbito da colaboração Brasil-Estados Unidos da América, que redundou na criação do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP, em 1942, a Fundação Rockefeller trouxe para o país sua experiência prévia na produção e uso desses filmes para ações de educação em saúde. Este projeto destinou-se à recuperação de um conjunto de filmes em 16mm pertencente ao acervo SESP que, por décadas, jazeu e avinagrou perdido nos cantos escuros da burocracia nacional. Seus objetivos foram a recuperação física das películas, sua descrição e organização temática para alimentação de um repositório institucional de memória digital, com vistas à posterior disponibilização e à socialização para pesquisadores e a sociedade em geral por meio de um espaço virtual na internet.

Palavras-chave: Educação em saúde. Filmes e vídeos educativos. Memória em saúde. SESP. Fundação Rockefeller.

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Artigo inédito, resultante do projeto “A imagem da saúde no discurso oficial do Estado Novo Recuperação do acervo cinematográfico da Fundação Nacional de Saúde” (Souza, 2008). 1 Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (Labcities, Icict, Fiocruz). Av. Brasil, 3865, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. cguima@icict.fiocruz.br 2, 3, 4, 5 Labcities, Icict, Fiocruz. *

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Educação sanitária em 16mm:...

[...] O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido... irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente sem que esse presente se sinta visado por ela. (Benjamin, 1985, p.224)

Introdução A longínqua Paris do final do século XIX foi palco de dois eventos que delimitam um marco importante para um pensar “moderno” sobre saúde pública. Os experimentos de Louis Pasteur e o nascimento do cinema possibilitaram à ciência reorganizar a concepção do corpo humano vivo e estabelecer uma nova lógica para o processo de adoecimento. Do espaço privado do laboratório para o espaço público da saúde, a lente do microscópio ganha vida na lente da câmera, que isola e amplifica germes e micróbios e acaba por instaurar uma nova lógica causal para a doença. As autoridades de saúde encontraram, nessa tecnologia, um mecanismo potente para educar e disciplinar corpos. A educação sanitária, instrumento vital para uma saúde que precisava ser-fazer pública e coletiva, incorpora assim uma nova mídia que tem duplo papel: “representa” um processo de inoculação de agentes patógenos que deve ser evitado e “fomenta” a inoculação de novas ideias sobre saúde a incorporar nas práticas sociais. À Fundação Rockefeller (FR) é creditado um papel de destaque na grande rede de agenciamentos que possibilitou, nas primeiras décadas do século XX, que o cinema educativo em saúde rompesse as fronteiras nacionais dos Estados Unidos e ganhasse, inicialmente, a África e a Ásia e, mais tarde, a América Latina6. Seguindo o rastro da “ideologia democrática norte-americana”, especialmente nas colônias e nos “teatros de guerra” inóspitos e endêmicos dos países tropicais, o cinema educativo criou “provas visuais” tanto dos perigos microbianos como dos desvios sociais. Foram exibidos em escolas, teatros, praças públicas e instalações militares os filmes educativos que, para tratar de temas desde a opilação e a malária até a doença venérea, usavam linguagens entre o didático e o sensacionalista (Stein, 2006). Da ordem estimada de várias centenas de filmes educativos em saúde produzidos tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha no período citado, muito pouco foi objeto de pesquisa. A falta de documentação, quando não a perda e deterioração da própria película, são apontadas como os principais fatores para o silêncio acadêmico que paira sobre o tema. Do melhor do conhecimento disponível, não há registro de pesquisas que tenham se debruçado sobre a produção e uso desses filmes educativos em saúde sob a chancela da FR. A exceção é o filme Malaria, finalizado em 1925 (Fedunkiw, 2003). Um dos grandes desafios apontados é a ausência de documentação que possa responder a questões básicas como: quem decidiu pela linguagem, pelo roteiro final e pelas cenas escolhidas? A apresentação do filme foi acompanhada por outras atividades educativas? Qual foi a audiência? Como foi (é) possível analisar a efetividade do filme como instrumento de saúde pública? Fedunkiw (2003) especula que a ausência de documentação pode ser atribuída a uma visão do próprio filme como “documento”. Ou, ainda, à necessidade de produzir filmes rapidamente, especialmente durante a Segunda Guerra, que excedeu em muito o cuidado de documentá-los para futuros estudos. Brookes (2006) é taxativa ao registrar que a “única análise séria” sobre o papel do filme educativo na construção do campo da saúde pública foi aquela 24

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Para conhecer o profundo envolvimento da Fundação Rockfeller com as mídias de massa, especialmente o cinema e o rádio, ver Hiltzik et al. (2006).

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7 Por estarem temporalmente situados no período do Estado Novo, em meio à Segunda Guerra Mundial, muito facilmente a discussão sobre esses filmes educativos poderia ser conduzida simplesmente pela ótica da propaganda política, tão em voga no período. A interpretação do conteúdo dos filmes será deixada para os especialistas da área que, certamente, saberão melhor analisá-los.

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empreendida por Ulf Schmidt (2002) em Medical Films, Ethics and Euthanasia in Nazi Germany: The History of Medical Research and Teaching Films of the Reich Office for Educational Films/Reich Institute for Films in Science and Education, 1933–1945. Aqui, o acaso favoreceu a ciência. Segundo Brookes (2006), o livro de Schmidt relata que crianças, brincando no subúrbio de Berlim, em 1993, encontraram por acaso fragmentos de filmes 35mm, os quais, mais tarde, foram identificados como tendo sido produzidos pelo Reich Office for Educational Films, durante o Terceiro Reich. Os experts, inicialmente, apresentaram os filmes como “material apolítico de educação científica” – interpretação refutada por Schmidt, que questionou a neutralidade dos filmes educativos. Testemunho da história, peça da memória social, fonte valiosa para produção de conhecimento em várias áreas, o filme educativo em saúde espera ainda por seu resgate e promoção como objetivo de pesquisa. O Brasil guarda uma surpreendente e pouco conhecida faceta de sua história da saúde pública: aquela que retrata o esforço e investimento realizados na produção e distribuição de filmes educativos em saúde. No âmbito da colaboração Brasil-Estados Unidos da América, que redundou na criação da Secretaria Especial de Saúde Pública – SESP em 1942, a Fundação Rockefeller trouxe para o país sua experiência prévia na produção e uso desses filmes para ações de educação em saúde. Longe de quaisquer discussões legítimas, necessárias e bem-vindas sobre uma possível (ou real) ideologia por trás dessa iniciativa7, o que aqui vai ser relatado diz respeito a um projeto de pesquisa, destinado à recuperação de um conjunto de 32 filmes em 16mm do acervo SESP que, por décadas, jazeu e avinagrou perdido nos cantos escuros da burocracia nacional. O total de filmes no acervo SESP era 68, tendo-se optado por tratar, em nível piloto, de 20% deles. Era o final dos anos 80 do século passado, quando a paixão acadêmica e o voluntarismo de uma então pesquisadora do atual Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde – Icict, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, iniciou as negociações que permitiram que esses filmes viessem de Brasília (DF) para a guarda da instituição, no Rio de Janeiro. Do acervo de 68 filmes, foram recuperados 18 com recursos do projeto original e 14 com recursos do projeto Memória das Políticas de Saúde Pública no Brasil Contemporâneo, financiado pela Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e coordenado por Maria Tereza V. B. de Mello, da Casa de Oswaldo Cruz – COC/Fiocruz. Entretanto, há perda de conteúdo em algumas das películas, não sendo possível nem sequer conhecer-lhes os créditos. Contingências diversas fizeram com que os filmes ainda permanecessem adormecidos até 2007, quando condições mais favoráveis possibilitaram o estabelecimento da pesquisa em questão. O projeto aqui relatado teve por objetivo a recuperação física das películas, a descrição e organização temática, e consequente alimentação de um repositório institucional de memória digital. Na última etapa - a de divulgação do acervo - amostras de cenas dos filmes já podem ser assistidas na internet, mediante inscrição gratuita (http://www2.fiocruz.br/comunidadefiocruz), mas a disponibilização da íntegra dos conteúdos fílmicos para a sociedade ainda está em discussão, por especialistas em direitos autorais. Outras ações de divulgação do acervo e do projeto envolvem edições da mostra A imagem da saúde no discurso oficial do Estado Novo: recuperação e disponibilização de acervo cinematográfico do SESP, em eventos especializados em informação em saúde, saúde coletiva e áreas correlatas. Até o momento de publicação do artigo, a mostra já integrou o VIII Congresso Regional de Informação em Ciências da Saúde (Fiocruz – BIREME/ 25


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OPAS/OMS) e o Seminário SUS 20 Anos (Icict/Fiocruz), ambos no Rio de Janeiro, em 2008, e o congresso da Abrasco, em 2009. As mostras conjugam sessões dos próprios filmes, diapositivos e desenhos animados restaurados, em DVD, com uma miniexposição que explica o desenvolvimento do acervo tendo como pano de fundo a geopolítica durante e após a Segunda Guerra, a história da saúde pública e a ação ampla do SESP no Brasil, usando seus Boletins, cartazes, fotos e outros materiais reunidos pelo grupo de pesquisa. Trata-se, assim, e antes, de um projeto que se destina a auxiliar a construção da memória em saúde pública no Brasil, preenchendo uma lacuna que, para muitos, nem sequer existia. O texto que se segue procura contextualizar as relações entre saúde, educação e cinema, arcabouço indispensável para se refletir sobre o acervo em mãos e para situá-lo, ainda que de forma tentativa e sumária, em uma complexa rede de ações e estratégias de construção do campo da saúde pública no Brasil.

Anotações iniciais: construindo o cenário Cinquenta anos antes que o cinematógrafo dos irmãos Lumière viesse a público, em 1895, as projeções luminosas da lanterna mágica já tinham se transformado em um privilegiado instrumento pedagógico. Segundo Dá-Rin (2006), naquele mesmo ano, a Liga de Ensino francesa distribuiu na França cerca de 477 lanternas mágicas. Em 1927, é publicado o primeiro livro que discorria sobre o potencial do filme como instrumento de política pública de saúde. Escrito por um médico e uma enfermeira britânicos, Popular Education in Public Health dedicou um capítulo, The Film and Broadcasting in Health Teaching, para enaltecer o filme como instrumento educativo, especialmente para um público que não detinha conhecimentos técnicos adequados para entender conceitos complexos de saúde: Modern science has put two powerful weapons in the hands of doctors and nurses in their agelong warfare against disease in the new discoveries of cinematography and broadcasting [...]. The film has the great advantage of showing cause and effect, often powerfully emphasised, within the space of a pleasantly occupied half-hour. (Daley, Viney, 1927 apud Fedunkiw, 2003, p.1047)

Segundo a mesma autora, a partir daí a produção de filmes educativos em saúde floresceu, especialmente pela disponibilidade de equipamentos de 16mm, mais baratos e fáceis de operar que os de 35mm (Buxton, 2001). As alianças entre saúde pública, cinema e educação emergiram inicialmente no continente europeu, palco de um projeto de “desenvolvimento e modernização” das nações. “Modernidade” era tomada como sinônimo de “desenvolvimento”: sem educação não há progresso; sem saúde, não há mãode-obra para o progresso. A industrialização trouxe a urbanização e uma nova organização espaçotemporal. O espaço público forjou a coletivização da saúde, “saúde pública”, que encontrou, nos meios de comunicação de massa, seu principal instrumento de ordenação. A educação da “massa de incultos” que acorreu às cidades quando da Revolução Industrial encontrou na mídia de massa, e especialmente no cinema, um aliado de peso tanto no aspecto da reprodução (baixo custo e amplo alcance de audiência), como no seu potencial de imaginação fabuladora (de caráter social e coletivo): aquela que cria mitos, lendas, imagens simbólicas para o bem e o mal, valores, crenças religiosas, políticas e ideologias (Chauí, 1995). O que foi uma estratégia local se tornou global, parte do discurso que deu corpo ao movimento da World Health, especialmente no período pós-Segunda Guerra Mundial, articulada pelo expansionismo norte-americano. Estudiosos apontam que não só existem ligações importantes entre a história da saúde pública e a história do cinema, mas que ambas são constitutivas de um campo culturalmente dominante (ainda que, por vezes, contraditório) no processo de modernização da sociedade, com o surgimento do movimento sanitário. Para Ostherr (2002), o uso de imagens móveis para representar um padrão de contágio invisível é, ao mesmo tempo, um discurso de saúde pública e um discurso 26

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cinematográfico, quando procura representar a presença da doença como um processo de troca (indivíduo-ambiente) característico da cultura de consumo da Modernidade. De forma clara, o cinema e seu potencial de “reprodução técnica em massa” abrem-se a uma leitura ideológica. Citando Walter Benjamim, em Sobre a Fotografia e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Barbosa (2000) aponta para o cinema como “reprodução das massas sociais”, que culminava nas estratégias de controle e dominação daquele período. O cinema como técnica de (re)produção de imagens se inscrevia num momento onde os imensos cortejos, as manifestações de rua, a encenação do Estado e a própria barbárie da guerra tornavam-se espetáculos grandiosos de realização da hegemonia ideológica e cultural das classes dominantes. A estetização da política tinha como suporte de realização a reprodução técnica em massa de imagens audiovisuais que fazia do cinema um espaço espetacular de representação de ideologias. (Barbosa, 2000, p.79)

O cinema, especialmente o filme educativo, encontra aqui sua melhor expressão de “pedagogia afirmativa” (Reia-Batista, 1995), com sua característica fundamental de enfocar os dogmas vigentes, criando e repetindo estruturas narrativas que reforçam uma visão de mundo. Como agente de socialização, o cinema possibilita encontros de várias naturezas: de pessoas com pessoas na sala de exibição, das pessoas com elas mesmas, das pessoas com as narrativas nos filmes, das pessoas com as culturas nas diversas representações fílmicas e das pessoas com imaginários múltiplos. O filme possibilita, assim, a afirmação de domínios culturais, ainda que discutíveis (Fantin, 2000). Leandro (2001) alerta que, embora faça parte da nossa formação cultural, a imagem no processo pedagógico ainda não se constitui como um objeto de estudo em si. A escola se apropria do cinema não como quem se aproxima de uma arte capaz de pensar novas relações de/e no mundo, mas como quem busca um aditivo tecnológico para incrementar processos educativos em andamento, desencadeados por ciências já consolidadas. Enquanto simples ilustração, referência a um discurso que a precede, prevalece a “pedagogia do transporte”, da “mensagem a ser transmitida”. No clássico Imagem e Pedagogia, de 1977, Jaquinot-Delaunay alerta para uma “inquietante desproporção” entre a riqueza técnica das soluções de produção, estocagem e difusão de mensagens audiovisuais e a pobreza de nosso saber sobre o que são essas mensagens e como elas funcionam em um filme didático. A leitura de uma mensagem fílmica didática faz-se não só por referência ao mundo que ele apresenta, mas também por referência a um horizonte pedagógico simultaneamente definido pelo universo do especialista e pelo universo da turma. (Jaquinot-Delaunay, 2006, p.52)

A imagem pensa e faz pensar, e é nesse sentido que ela contém uma pedagogia intrínseca: “Uma imagem ensina na medida em que ela, tanto do ponto de vista formal quanto de conteúdo, veicula um pensamento, encorajando assim o pensamento no espectador” (Leandro, 2001, p.7). Em busca de veicular e formar uma “ideia de Nação”, o governo que se instaurou no Brasil no pós-1930 viu no cinema um instrumento capaz de operar modificações objetivas no funcionamento da sociedade, especialmente no que dizia respeito à consolidação de uma “identidade nacional” e à aculturação das massas (Alegria, Duarte, 2005). Nos anos 1940, a política nacional alinha-se à internacional, em luta contra o nazismo. Nessa lógica modernizadora, o círculo doença-pobreza deveria ser rompido pela ação sanitária. Segundo Cardoso (2001, p.81), [...] essas idéias não só sustentaram toda uma pedagogia da saúde de viés modernizador, abrindo o campo para o consumo das inovações tecnológicas geradas nos países centrais, como situaram a comunicação no cerne desse projeto de desenvolvimento.

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Complementa Oliveira (2003, p.26): “Com o projeto de saúde organizado pelo Estado voltado para o aumento da capacidade produtiva da força de trabalho, inicia-se também o período áureo da educação sanitária”. O SESP foi o porta-voz do modelo norte-americano de educação sanitária e a FR desempenhou papel central nessa empreitada.

O SESP e a educação sanitária em 16mm: pistas para uma memória a ser construída A pesquisa seminal de Campos (2006), “Políticas Internacionais de Saúde na Era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960”, é reconhecida internacionalmente pela singularidade da “perspectiva saúde” no âmbito da denominada Política da Boa Vizinhança, especialmente no que tange às ações do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA) no Brasil. O autor informa que, como parte integrante do acordo com os Estados Unidos, o SESP foi criado, em 1942, com o objetivo de instalar a infraestrutura médico-sanitária no país, especialmente na Amazônia e no Vale do Rio do Doce - regiões estratégicas de produção de borracha e exploração mineral, respectivamente, e de localização das bases militares norte-americanas. Cueto (2006, 168), ao recuperar o discurso do diretor médico da United Fruit Company, proferido no Fourth International Congress on Tropical Medicine and Malaria, no final dos anos 40, dá pistas para entender o papel do SESP: “Philanthropy is not only a virtue; it is a basic law of survival ... health is an important investment for the stabilization of the labor force and the continuity of economic production”. Com o SESP foram sendo introduzidas, no interior do país, inovações metodológicas e novas técnicas de educação sanitária - a educação de grupos, o uso de recursos audiovisuais e o desenvolvimento comunitário (Melo, 1984). Fundada na concepção de que a doença era um fenômeno individual, tornava-se necessário vencer as barreiras sociais, econômicas, culturais e até psicológicas que as “populações atrasadas” ofereciam às necessidades de modernização da sociedade. Com a preocupação de educar o homem rural e do interior e outros marginalizados, a educação ganha uma nova dimensão: a educação de adultos. Uma vasta literatura científica nacional registra, em suas várias dimensões, a evolução da educação sanitária no Brasil no período (Bastos, 1995; Oshiro, 1988; Canesqui, 1984; Melo, 1984), lembrando, de forma recorrente, o uso de recursos audiovisuais no âmbito das “novas técnicas de educação sanitária” implementadas pelo SESP (especialmente filmes 16mm e os chamados slide sounds ou diafilmes). Segundo o próprio SESP, [...] Slide sounds foram chamados como lanterna mágica falada, apontada como inovadora no Brasil e mesmo nos Estados Unidos da América, onde embora o próprio Walt Disney tenha mobilizado a técnica de seus estúdios para a confecção de filmes sobre saúde publica, nunca se recorreu a esse processo simples e eficiente. Diafilme é uma série de diapositivos reunidos numa mesma tira de filme de 35 mm. A projeção dos diapositivos é acompanhada de música e texto sincronicamente gravados em disco (em inglês, slide sound). O aparelho de projeção é feito de tal modo que os diapositivos são projetados consecutivamente, à vontade do operador, por meio de um botão de controle. Em média, um diafilme tem 60 cenas diferentes. A estória deve ser escrita antes, e depois tomadas as fotografias que, em seguida, são passadas para o filme cinematográfico na seqüência desejada. O custo, cerca de 10% dos filmes. (Boletim do SESP, 1945, p.5)

Entretanto, do melhor do conhecimento disponível, inexistem pesquisas prévias sobre o tema específico, de tal forma que possibilitem a contextualização do acervo objeto do projeto de pesquisa aqui relatado. Campos (2006, p.233), por exemplo, observa:

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O uso do cinema no âmbito da Política da Boa Vizinhança rendeu também uma série de filmes comerciais, envolvendo personagens como Carmem Miranda e Zé Carioca, tema que vem sendo bastante explorado na literatura acadêmica. Esse período acolhe ainda toda uma discussão teórica sobre o nascimento do cinema nacional e a influência norte-americana na Era Vargas. Ver, por exemplo, Tomaim (2006). 8

O Boletim do SESP foi lançado em dezembro de 1943, e foi definido por George Dunham, da direção do Serviço, como “um jornal de família”, que “[...] nasceu do desejo de fazer com que todos tenham sempre presente ao espírito que mesmo nos postos mais distantes ... todos são parte de uma grande organização” (Boletim SESP, 1943, p.1). O Boletim faz parte do Fundo SESP, mantido pela COC/Fiocruz. 9

Além de incompleta, a coleção do Boletim SESP apresenta algumas irregularidades na numeração original de seus fascículos. Neste trabalho, optou-se por respeitar os dados constantes das capas dos documentos originais. 10

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[...] o cinema educativo, com filmes produzidos pelo estúdio Walt Disney ... mostrou-se mais adequado ao público urbano que ao rural ... no Brasil rural [a mais eficaz resposta] foi obtida com o uso de diapositivos sonoros produzidos por técnicos brasileiros, utilizando-se de música e imagens regionais.

O autor cita que foram encomendados, ao estúdio Walt Disney, dez filmes educativos, mas não os identifica. Buxton (2001) corrobora e registra que a Motion Picture Division, em cooperação com os grandes estúdios de Hollywood (inclusive Walt Disney), e vários pequenos produtores espalhados pelos Estados Unidos, foram mobilizados para produzir uma série de filmes 16mm para serem usados em campanhas de informação no norte e sul do Brasil8, mas não fornece nenhuma pista adicional sobre os mesmos. Bastos (1995) fornece as pistas mais seguras, quando aponta para um catálogo (FSESP, 1976), constante do Fundo SESP da COC, que relaciona os filmes disponíveis à época. Por sua natureza referencial, sem indicação do ano de produção e demais dados técnicos, o catálogo auxilia pouco na contextualização. De fato, o livro 1942 - Evolução histórica – 1991, de Bastos (1995), dedica um capítulo à análise dos programas de educação sanitária no âmbito do SESP (Abordagem da educação nos programas de saúde), e especificamente o uso dos meios de comunicação de massa. O Boletim do SESP é fonte de grande parte da informação usada pelo autor, que foi funcionário da Fundação durante 41 anos, e exerceu, inclusive, o cargo de Superintendente do SESP no período de 1969 a 19709. Embora a coleção esteja incompleta10, para o projeto, o “Boletim” se tornou a principal fonte de informação para buscar contextualizar a produção e uso desses filmes educativos na estratégia de educação sanitária no período. Fragmentos do que pôde ser recuperado são descritos na próxima e final sessão.

Os diafilmes e as imagens móveis na educação sanitária: fragmentos da visão SESP Desde sua criação, era reconhecido que o sucesso do SESP e de todo o programa de saúde e saneamento desenhado para o Brasil dependeria da aceitação popular dos programas em si e da divulgação de conhecimentos sanitários. A comunicação de massa era, portanto, fundamental. Histórias ilustradas em jornais, programas de rádio, cartazes, panfletos, calendários, preleções e demonstrações, projeções luminosas fixas e cinematográficas eram estratégias a serem perseguidas para contar a história de uma saúde melhor. O Boletim do SESP, n.68, p.6, 1949, registra a existência de uma série de dez fitas de desenhos animados e falados em português e espanhol, preparadas com o objetivo de ensinar os fatos fundamentais sobre o controle de doenças e higiene individual a pessoas com pouca ou nenhuma educação regular. Bastos (1995) registrou que o cinema educativo era “[...] incontestavelmente um dos maiores veículos de difusão de cultura e educação do povo e tornou-se a técnica auxiliar visual mais perfeita posta ao alcance do ensino” (Boletim do SESP, 1951, p.6). O mesmo autor explica a inserção dos filmes no conjunto das ações de educação sanitária: [...] embora seja o cinema o melhor processo de apresentação de imagens, ainda não exclui a necessidade da palavra para descrição das coisas concretas e também de comentários para ajustá-lo às peculiares disposições psíquicas da classe interessada. (Bastos, 1995, p.348) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Em viagem aos Estados Unidos em 1946, Charles Wagley, coordenador do Programa de Educação Sanitária, prestou as seguintes declarações, que foram reproduzidas no Boletim do SESP de 1946: Atualmente, estão sendo envidados conseqüentes esforços no sentido de proporcionar educação sanitária às populações atrazadas das áreas rurais, que não podem ser doutrinadas através da palavra escrita. Nesse particular, o SESP vem lançando mão de um método eficaz e pouco dispendioso. Relativamente novo no campo da pedagogia, esse método consiste de uma serie de filmes sem movimentos projetados em sincronização com diálogos em gramofone. Para maior efeito de persuasão, o SESP emprega linguagem e motivos locais. (Boletim do SESP, 1946, p.9)

No mesmo texto há ainda o registro de que, à época, estavam disponíveis 12 diafilmes ou slide sounds, dos quais não se citam os títulos, produzidos por técnicos norte-americanos em parceria com educadores e escritores brasileiros, que versavam sobre temas como: combate às moscas, nutrição, cuidados pré-natais (sic), malária e vermes. É citado ainda que um conjunto de mais 20 programas estava em fase de produção, em proporção de duas unidades por mês. Ainda segundo Wagley, os diafilmes combinavam “entretenimento com úteis advertências” e foram muito bem aceitos pelas comunidades rurais, onde a audiência às exibições alcançava “até 80 por cento dos moradores dos locais visitados”. Essa estratégia, invariavelmente articulada com outras atividades como visitas domiciliares feitas por auxiliares de enfermeiras, mostrou-se eficaz, já que, em seguida, ocorria um rápido aumento da afluência pública às instituições de saúde da comunidade visitada (Boletim do SESP, 1946, p.9). O processo de produção desses diafilmes é explicado pelo assistente técnico da divisão de Educação Sanitária, Dr. Orlando José da Silva, em entrevista ao Boletim, em 1945: [...] as cenas são fotografadas ou constituídas por desenhos feitos em nosso escritório ... Matem a Mosca foi feito de desenhos em branco sobre fundo preto, o que proporciona excelente projeção, Malária é todo em fotografias. Às vezes as fotografias e os desenhos são usados alternadamente... A grande vantagem dessas histórias, apresentadas com muita singeleza, é que elas podem ser compreendidas pela totalidade da população rural, pois não há legendas escritas, apenas a imagem projetada na tela e o som gravado em disco. (Boletim do SESP, 1945, p.10)

A entrevista dá conta de que os seguintes diafilmes já tinham sido preparados: Malária, Protegendo Nossos Filhos, Alimentação, Opilação, Saúde Pública Rural, Maria Pernalonga, Evitando Doenças, Enfermeiras Registradas e Matem a Mosca. A mais detalhada descrição do uso e receptividade dos diafilmes está presente no Boletim do SESP n.24, de julho de 1945. O SESP publicou, em seu Boletim n.24, uma avaliação sobre a utilização dos slide sounds na Amazônia. A matéria inicia registrando que o primeiro slide sound produzido pela Divisão de Educação Sanitária foi Opilação, ou ancilostomíase, também conhecida como amarelão. Juntamente com a malária, são apontadas por pesquisadores como as doenças que fundaram a agenda sanitária no país, no início do século XX (ver, por exemplo, Ferreira, 1999). Gilberto Freyre, em matéria publicada em O Jornal, em 1942, registra os debates da época: [...] Pedro Tito Regis, cuja tese médica sobre O clima e as molestias que acometem mais frequentemente os habitantes da Baía - trabalho publicado em 1845 - versa o problema da chamada “opilação” da gente de cor, tão debatido pelos médicos brasileiros da época. Eram muitos os pobres que morriam ou adoeciam de “opilação”. Fosse se indagar o motivo de tanta morte; o motivo de tanto negro e mulato se tornar exalviçado, o preto da pele acizentada, no rosto, uma feia palidez, os beiços esbranquiçados, o apetite pervertido em vontade de comer terra, barro, carvão - e na opinião dos médicos se dividiam em mil e um pareceres contraditorios. Tito Regis apontou, embora timidamente, para as más condições de habitação - sem pisos, o chão crú - e para a deficiencia de alimentação na zona de gente mais pobre da Baía como a causa principal da “opilação” que ali se generalizava de modo alarmante. 30

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Romancista, Dalcídio Jurandir (1909-1979) pertence à segunda fase modernista e deixou como legado a maior obra literária da Amazônia.

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É dito que o filme consumiu meses de experiências, de estudos e de discussões. Entretanto, não existem referências sobre datas. Responsável pela produção estava George Fanto, “[...] elemento que trouxe para esse ramo especializado a experiência adquirida na sua carreira em Hollywood e outros grandes centros cinematográficos do mundo” (Boletim do SESP, 1945, p.3). Fanto foi um renomado diretor de fotografia, que veio para o Brasil junto com Orson Welles para as filmagens de It’s all true (É tudo verdade), obra inacabada de 1942. É importante lembrar que Welles veio trabalhar no Brasil a convite de Nelson Rockefeller. Relata o texto que o diafilme Opilação foi exibido inicialmente para médicos, professores e intelectuais, que aplaudiram a iniciativa. A partir daí decidiu-se executar um programa mínimo de slide sounds. A série de filmes Opilação, Malária, Maria Pernalonga e Protegendo nossos filhos foi levada, por Charles Wagley e Cattete Pinheiro, ao interior do Pará para apresentação e teste de aceitação pública. Em um texto longo de linguagem romanceada, fez-se o relato da viagem desde a partida dos profissionais do porto de Belém, em junho de 1945, a bordo da lancha Paraguassu. A equipe era formada pelos referidos médicos e pelo escritor Dalcídio Jurandir11, que embarcou todo o equipamento necessário à exibição. Foram visitadas as cidades de Abaetetuba, Cameta e Guarupá. Registrouse que, só em Abaetetuba, mais de mil pessoas prestigiaram as exibições. O prefeito, o médico e as visitadoras se revezavam para ajudar na montagem dos equipamentos. Durante a exibição “[...] os personagens parecem de toda vila, e o ‘Luar do Sertão’ derramava poesia na noite enquanto a voz do médico ensinava o povo a lutar contra a malária.” (Boletim do SESP, 1945, p.2). A personagem Maria Pernalonga foi apontada como a que mais ficou gravada na mente das pessoas: seu lado lúdico e engraçado teria agradado a adultos e crianças. Reside na perspectiva educativa a desvantagem mais curiosa do cinema frente ao diafilme. Na visão do SESP: o caboclo da Amazônia não teria a habilidade e o treinamento necessários para acompanhar a passagem rápida das cenas, nem raciocinava com a devida rapidez: “[...] ri com facilidade de cenas que aos nossos olhos estão destituídas de qualquer comicidade [...] as gargalhadas chegam a abafar a voz do locutor, prejudicando a exibição” (Pinheiro, p.923). O consenso era de que os filmes divertiam, mas não atingiam suas finalidades educativas: “Foi o que se verificou nas zonas rurais com os magníficos filmes de Walt Disney. Divertiam, mas não educavam” (Boletim do SESP, 1949, p.5). A orientação, portanto, era que os diafilmes sonorizados fossem produzidos de forma a divulgar conhecimento que a população pudesse colocar em prática, com exposição clara dos temas, sem detalhes, com participação de pessoas ou fatos locais, com tempo de exibição máximo de 15 minutos, sem incluir cenas cômicas nem muito trágicas (Boletim do SESP, 1949). O trabalho em educação sanitária ganhou projeção internacional: os diafilmes foram traduzidos para vários idiomas, distribuídos na América Latina e até na Índia. Na Unesco, ganhou uma exposição, em 1949 (Boletim do SESP, 1949). A partir de 1951, a SESP se autodenominou “produtor de filmes”, e deu início à comercialização desses diafilmes, “[...] no intuito de cooperar com outras entidades.” (Boletim do SESP, 1951, p.2). Os primeiros filmes produzidos, em 16mm, foram: Dentes, Maneco o Sabido, O que se deve saber sobre a raiva, e Limpeza e Saúde. É lícito supor, portanto, que outras instituições nacionais podem ainda ter em seus arquivos cópias desse material.

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Retorno à memória: a etapa final do projeto Das 68 latas de filmes que chegaram ao Icict no começo dos anos 1990, menos de 50% apresentavam condições técnicas para recuperação e telecinagem em 2007. De algumas foram perdidos os créditos e restaram apenas fragmentos, o que dificultou sobremaneira a descrição e tratamento técnico dos mesmos. A etapa seguinte dedicou-se à preparação e versão das mídias para formato adequado à alimentação de um repositório de memória digital, que se destina a assegurar àquelas obras um espaço no contexto da memória da saúde pública no Brasil. Cumpridas as etapas de recuperação física das películas e duplicação para mídia digital; identificação do conteúdo dos filmes e sua integração na base de dados da VideoSaúde/Fiocruz, a última etapa do projeto envolveu o lançamento do catálogo dos filmes e, como explicado na Introdução deste artigo, a montagem de uma Mostra com filmes e exposição com formato itinerante, e a disponibilização, na internet, de amostras dos filmes recuperados12. Por fim, solucionadas as questões de direitos autorais, serão disponibilizados os filmes na íntegra para o público em geral, via espaço virtual na internet construído com este propósito. A expectativa é gerar uma visibilidade tal que fomente o interesse de historiadores, outros pesquisadores e profissionais diversos, e que se possa dar início a uma vertente investigativa sobre os filmes educativos no campo da saúde pública. Voltando a Walter Benjamin (1985, p.224): “[...] o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido... irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente sem que esse presente se sinta visado por ela”.

8º Congresso Regional de Informação em Ciências da Saúde – CRICS, realizado no Rio de Janeiro, de 15 a 19 de setembro de 2008, e o seminário SUS 20 anos, realizado nos dias 10 e 11 de novembro de 2008.

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Colaboradores Maria Cristina Soares Guimarães e Cícera Henrique da Silva foram responsáveis pela coordenação do projeto, redação do artigo e pesquisa documental. Rosinalva Alves de Souza pela busca bibliográfica, recuperação e tratamento das imagens; Rosemary Teixeira dos Santos pelo tratamento de representação do conteúdo dos filmes na base de dados, e Luiza Rosangela da Silva pela socialização dos resultados do projeto e revisão final do manuscrito.

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GUIMARÃES, M.C.S. et al. Educación sanitaria en 16mm: memoria audiovisual del Servicio Especial de Salud Pública (SESP). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.2334, jan./mar. 2010. Testimonio de la historia, pieza de la memoria social, fuente valiosa para producción de conocimiento en varias áreas, el filme educativo en salud todavía espera su rescate y promoción como objeto de investigación. En el àmbito de la colaboración Brasil-Estados Unidos de América, que redundó en cración del Servicio Especial de Salud Pública (SESP) en 1942, la Fundación Rockefeller llevó al país su experiencia previa en producción y uso de esos filmes para acciones de educación en salud. Este proyecto se destinó a la recuperación de un conjunto de filmes en 16 mm perteneciente al acervo SESP que, durante décadas, yació y se avinagró, perdido en los rincones oscuros de la burocracia nacional. Sus objetivos fueran la recuperación física de las películas, su descripción y organización temática para alimentación de un repositorio institucional de memoria digital con vistas a posterior disponibilidad y a la socialización con investigadores y la sociedad en general por medio de un espacio virtual en la internet.

Palabras clave: Educación en Salud. Películas educativas. Memoria en salud. SESP. Fundación Rockefeller. Recebido em 03/06/2009. Aprovado em 26/10/2009.

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Acervo de materiais educativos sobre hanseníase: um dispositivo da memória e das práticas comunicativas *

Adriana Kelly-Santos1 Simone Souza Monteiro2 Ana Paula Goulart Ribeiro3

KELLY-SANTOS, A.; MONTEIRO, S.S.; RIBEIRO, A.P.G. Collection of educational materials on Hansen’s disease: a tool for memory and communicative practices. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.37-51, jan./mar. 2010.

Educational materials form part of the guidelines for Hansen’s disease control programs. The aims of the present study were to describe the process of creating a database for 276 educational materials on Hansen’s disease that were produced by public and non-governmental institutions between 1972 and 2008, and to analyze the type, target public and objectives. The database was set up electronically and contained a descriptive and thematic analysis and a link to the complete document containing the materials. The materials were targeted at the general public (75%), healthcare professionals (12%), children and adolescents (6%), individuals with Hansen’s disease (3%), and others (4%). Pamphlets (26%), leaflets (24%) and posters (23%) predominated, followed by primers (15%), flipbooks (3%) and others (9%). They aimed to increase self-awareness and case detection and to publicize healthcare services. Biomedical discourse using technical-prescriptive language and hierarchical relationships between enunciator and target predominated.

Os materiais educativos integram as diretrizes de Programas de Controle de Hanseníase. Neste trabalho objetivase: descrever o processo de elaboração de um banco de 276 materiais sobre hanseníase produzidos por instituições públicas e não-governamentais, entre 1972-2008; analisar o tipo, o público e os objetivos. O banco foi elaborado numa base eletrônica de dados, contendo a análise descritiva e temática e um link para o documento completo dos materiais. Os materiais destinam-se ao público em geral (75%), profissionais de saúde (12%), público infanto-juvenil (6%), portadores de hanseníase (3%) e outros (4%). Predominam panfletos (26%), folhetos (24%), cartazes (23%), seguidos de cartilhas (15%), álbuns seriados (3%) e outros (9%). Objetivam aumentar a autossuspeição, detecção de casos e divulgar os serviços de saúde. Predomina o discurso biomédico, a linguagem técnicaprescritiva e as relações hierarquizadas entre enunciador-destinatário.

Palavras-chave: Materiais educativos. Hanseníase. Comunicação.

Keywords: Educational materials. Hansen’s disease. Communication.

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*Elaborado com base em Kelly-Santos (2009), com financiamento do CNPq. 1 Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.045-900. adrianakellyminas@ hotmail.com 2 Laboratório de Educação, Saúde e Ambiente do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz - Leas/ IOC/Fiocruz. 3 Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Acervo de materiais educativos sobre hanseníase:...

Introdução A hanseníase persiste como um grave problema de saúde pública no Brasil que, em 2006, foi o segundo país no mundo com maior número de casos novos (44.436). Além disso, existe um expressivo contingente de menores de 15 anos (3.513) e de casos novos com incapacidades físicas instaladas (2.106). Esses dados indicam a manutenção da cadeia de transmissão da doença e o diagnóstico tardio (World Health Organization, 2007). Os Programas de Controle de Hanseníase (PCH), nos níveis federal, estadual e municipal, investem na descentralização do diagnóstico, do tratamento e das ações preventivas na rede básica de saúde. Em relação a estas últimas, está previsto o incremento do exame de contatos e das atividades de educação e comunicação, destinadas ao esclarecimento dos sinais e sintomas da doença junto à população (Brasil, 2006). Tal perspectiva, historicamente, recorre ao uso de propagandas publicitárias destinadas à promoção da saúde e ao esclarecimento de doenças, com vistas a fomentar a procura pelos serviços de saúde pública pela população (Araújo, Cardoso, 2007). No âmbito das práticas comunicativas, dos serviços de saúde, os materiais de divulgação, nos formatos de cartazes, cartilhas, folhetos etc. - convencionalmente denominados de materiais educativos (Monteiro, Vargas, 2006) - fazem parte destas iniciativas e assumem um importante papel na mediação entre profissionais e a população. Na medida em que, no contexto da saúde, estes suportes são utilizados na transmissão de informações e na promoção de mudanças de comportamentos junto à população. Pesquisas relativas à avaliação de materiais no campo da saúde pública revelam que, mesmo diante do potencial educativo destes recursos, ainda existe uma acentuada tendência, por parte dos profissionais, a utilizá-los de forma instrumental junto à população. Este enfoque está em consonância com as atividades educativas verticais, unilaterais e lineares, marcadas pela fragmentação dos processos comunicativos - que privilegiam o saber do técnico de saúde e excluem o destinatário das etapas de produção (Kelly-Santos, Rosemberg, Monteiro, 2009; Araújo, Cardoso, 2007; Luz, Pimenta, Schall, 2003; Vasconcellos-Silva, Riviera, Rozemberg, 2003). Devido ao uso corrente de materiais educativos por diferentes atores nas práticas preventivas, considera-se que a sistematização, análise, recuperação, preservação e documentação destes possibilitam compreender e aprofundar as nuanças do processo de produção-circulação-consumo das atividades comunicativas vigentes na hanseníase. Nesta direção, parte-se da premissa que os materiais educativos são dispositivos que legitimam e socializam os saberes e as práticas realizadas na hanseníase, bem como demarcam os lugares de poder de cada um dos sujeitos no processo comunicativo. Nessa dinâmica, compreende-se que o discurso é produzido pelos diferentes saberes - científico, político, popular, literário etc. – na imanência das práticas cotidianas. O jogo de forças entre os saberes possibilita que um determinado discurso se estabeleça como verdadeiro em relação a outros. A verdade é fruto das relações de poder entre os saberes; portanto, ela é considerada uma construção histórica (Foucault, 2001). Tendo em vista essas questões, este artigo objetiva descrever o processo de elaboração de um banco de materiais educativos sobre hanseníase; mapear os materiais deste acervo quanto ao formato, objetivo, público, contexto de produção e de uso, às instituições produtoras; bem como analisar as regularidades e raridades que delimitam as relações entre produtores-destinatários no processo comunicativo da hanseníase.

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KELLY-SANTOS, A.; MONTEIRO, S.S.; RIBEIRO, A.P.G.

4 Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Ensp/Fiocruz (CAAE.0120.0.031.00007).

5 Sublinha-se que a inserção da primeira autora no Programa Nacional de Controle de Hanseníase, como assessora técnica nas áreas de comunicação e educação, no período de julho de 2007 a maio de 2008, favoreceu a aplicação das técnicas adotadas e o refinamento e análise dos dados. Além de contribuir para um maior conhecimento e aproximação com a realidade dos programas de hanseníase das diversas regiões do país.

6 Este encontro foi denominado I Oficina de Comunicação e Educação na Macro-reginal Nordeste, realizada em Recife/PE.

Os formatos do acervo foram classificados pela sua estrutura física e citados no texto indicando-se o tipo seguido do número em ordem crescente. Os formatos classificados por folheto apresenta dobras contendo no máximo seis faces; panfleto apresenta frente e verso; cartaz apresenta uma face; cartilha apresenta várias páginas. 7

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Procedimentos metodológicos Trata-se de uma investigação qualitativa4, realizada no período de 2003 a 2008, junto a diferentes instituições governamentais e não-governamentais (ONG) que atuam no campo da hanseníase. A diversidade e a dispersão na produção de materiais educativos e o não arquivamento destes recursos exigiram a utilização de variadas estratégias de coleta (Monteiro, Vargas, 2006). Foi adotada a triangulação metodológica (Minayo et al., 2005), que consistiu na combinação de técnicas distintas e complementares, visando à coleta e análise dos materiais educativos sobre hanseníase e a compreensão do contexto de produção dos mesmos. Para tanto, foram entrevistados diferentes atores (gestores e representantes de ONGs), observadas atividades educativas desenvolvidas em um serviço de saúde e coletados materiais educativos durante eventos científicos e visitas institucionais5, detalhadas a seguir. 1 Entrevistas semiestruturadas: foram realizadas 12 entrevistas com profissionais que atuam na gestão e na assistência de Programas de Controle de Hanseníase (nos níveis federal, estadual e municipal), situados nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, no período de 2004 a 2008. Foram também entrevistados seis representantes de ONG que atuam na produção de materiais educativos – três do Movimento de Reabilitação das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), um da Federação Internacional de Associações AntiHanseníase (ILEP), um do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (IBISS), um da Fundação Paulista de Combate à Hanseníase. Nesta etapa, foram coletados os materiais produzidos por essas instituições e levantou-se o histórico da produção de materiais e o seu contexto de uso. 2 Observação: foram observadas as atividades de campanhas, salas de espera, os grupos de ajuda mútua e as consultas (médica, da enfermagem e da terapia ocupacional) ambos destinados aos pacientes de hanseníase, atendidos em um posto de saúde da Atenção Básica, situado em uma área endêmica na zona oeste do município do Rio de Janeiro. Também foi observado um treinamento técnico sobre comunicação e educação - para gestores de Programas6, promovido pelo Programa Nacional de Controle da Hanseníase (PNCH). Esta etapa, realizada nos anos de 2004, 2007 e 2008, permitiu perceber se os profissionais utilizavam materiais educativos, em que situação o faziam e de que maneira, bem como analisar a interação entre a equipe de saúde e os usuários dos programas. 3 Participação em eventos científicos: a participação nos congressos promovidos pela Sociedade Brasileira de Hansenologia em 2003 e 2007, no Seminário de Hansenologia e Dermatologia organizado pela Secretaria Estadual de Saúde de Tocantins, em 2007, e no Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, ocorrido em 2006, viabilizou a coleta de parte dos materiais educativos que compõem a amostra deste estudo. A partir das estratégias metodológicas descritas, foi possível reunir um acervo de 276 materiais educativos, constituído de folhetos, cartazes, panfletos, cartilhas, álbum seriado, periódicos, jogos, calendário, cartão-postal, cartão telefônico, imã de geladeira, adesivo, CD-ROM de músicas7. Esse acervo foi convertido em um “Banco de materiais educativos sobre hanseníase”, com o objetivo de divulgar e fomentar pesquisas sobre os materiais produzidos. O banco foi construído no formato html e hospedado na plataforma wordpress, por meio de uma ferramenta de geração de conteúdo denominada weblog ou blog, como é popularmente referida, o que permite transportá-lo gratuitamente para diferentes website institucionais.

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Para a sistematização e análise dos materiais, foram adotadas as normas biblioteconômicas de organização de documentos8 e a política de indexação utilizada pelo Laboratório de Educação, Ambiente e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz - LEAS/IOC (Monteiro, Vargas, 2006), que permitiram atender as especificidades do material do acervo. O processo empregado de classificação e documentação resultou na elaboração de uma tabela que contém os diferentes campos de informação resultante da análise temática e descritiva. Na análise temática, foram classificados os tipos dos materiais (formatos) e categorizados o público, os objetivos e os temas. Para estes últimos foi estabelecido um vocabulário controlado, também denominado de descritores, os quais estruturam os índices por assuntos. Essa estrutura favorece as combinações para buscas préestabelecidas e a indexação de novos materiais. Os descritores foram divididos em primários (principais assuntos) e secundários (termos qualificadores dos assuntos principais). Na análise descritiva, dedicouse à apresentação física do material (autor, editor, estado, região, ano, página, recursos visuais e uma síntese dos conteúdos abordados). O acervo de materiais educativos estará disponível na Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz, que se responsabilizará pela preservação física, pelo arquivamento e pelo recebimento de novos materiais, assegurando a continuidade deste processo de documentação; além de hospedá-lo em sua página principal. O acervo eletrônico também estará on line no Portal da Fiocruz. Esta iniciativa visa democratizar o acesso aos materiais e as suas informações por diferentes grupos sociais (público leigo; portadores de hanseníase, familiares e amigos; profissionais de saúde, educadores, comunicólogos e jornalistas, líderes religiosos, pesquisadores, entre outros). Com o propósito de analisar as características do banco de materiais quanto às variáveis descritores primários e secundários, Estados e entidades produtoras, objetivos, tipos dos documentos e público, foi elaborado outro banco de dados utilizando-se o programa Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 13.0. Estas variáveis foram cruzadas e analisadas tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo. A análise qualitativa fundamentou-se no referencial teóricometodológico da Semiologia dos Discursos Sociais - SDS, que se ocupa dos fenômenos sociais como processos de construção de sentidos, considerando os contextos sócio-históricos em que as relações sociais são produzidas (Pinto, 1999; Ribeiro, 1995). Nesta investigação, busca-se elucidar como, no processo comunicativo da hanseníase, se produzem os sentidos sobre a doença e como, ao mesmo tempo, se produzem as relações de saber e poder entre os enunciadores e os destinatários. Os materiais educativos são tomados como “dispositivos de enunciação”, cuja análise pressupõe a ruptura da univocidade e linearidade dos sentidos, e busca entender os modos como os sujeitos concebem discursivamente as relações entre si (Verón, 2004). Os sentidos são constituídos pelo que é dito pelos sujeitos (o enunciado), mas, sobretudo, na maneira como os sujeitos dizem e no modo como constroem os vínculos entre si (enunciação). Neste dispositivo, enunciador e destinatários não são entendidos como sujeitos empíricos, mas são compreendidos como “entidades discursivas”. A cada situação discursiva, o produtor real pode construir a imagem de enunciadores e destinatários de maneiras diferentes, bem como estabelecer determinadas relações simbólicas entre eles (Verón, 2004).

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Agradecemos a Leonardo de Melo, bolsista contratado para a elaboração da base eletrônica do banco de materiais, bem como para a digitação e digitalização dos materiais. A Gilson Machado, da VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz/ ICICT, que fotografou e digitalizou os cartazes e álbuns seriados para serem inseridos na base eletrônica.

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Resultados e discussão No rastro da dispersão: mapeamento dos materiais educativos

9 As experiências das ONGs IBISS e da Fundação Paulista Contra a Hanseníase na produção e avaliação de materiais, contaram com a participação de profissionais de saúde, portadores de hanseníase e grupos específicos.

Instituições produtoras O processo de coleta dos materiais evidenciou que a preservação e a documentação não são desenvolvidas pelos programas de modo sistemático. A produção de materiais tende a ser associada a novas campanhas, nas quais não se avalia a efetividade das estratégias comunicativas adotadas. A avaliação dos materiais educativos, no que diz respeito à análise do produto (conteúdos, diagramação, formatos e sua adequação aos públicos) e do processo (atores envolvidos, estratégias de circulação e dos usos), também é uma prática escassa no campo da hanseníase9. Esse fato não é, aliás, uma particularidade desta área, sendo comum a outros Programas de Saúde (Monteiro, Vargas, 2006; Kelly-Santos, Rozemberg, 2005; Luz, Pimenta, Schall, 2003; Rozemberg, 1994). A criação do acervo de materiais educativos sobre hanseníase representa, assim, um passo importante na criação de uma memória das práticas comunicativas nesta área, em nosso país. Embora esse acervo não represente a totalidade de recursos produzidos, ele reúne grande parte da produção deste campo, no qual estão representados 24 Estados brasileiros e as iniciativas da sociedade civil organizada. Quanto ao período histórico, o acervo abarca os últimos 36 anos (1972-2008). Todavia essa análise é limitada, haja visto que a maioria dos materiais não é datada. A ausência desta informação sugere que os produtores tendem a conceber as ações programáticas independentemente do contexto histórico-social no qual estão inseridas (Kelly-Santos, Rozemberg, 2005). Também revela a pouca ênfase nos estudos de avaliação do uso destes recursos ao longo do tempo. Verificou-se que, dos 276 materiais, 56% resultam da parceria entre os Programas de Controle e as ONGs, sendo a maioria desta produção articulada com as ONGs da ILEP, com o Morhan e com o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Os gestores entrevistados relataram que as ONGs são as principais financiadoras das ações de educação e comunicação, viabilizando seu desenvolvimento e continuidade. Embora haja um maior investimento na produção de materiais educativos, foram citadas outras estratégias de mobilização popular, tais como: teatro de fantoches nos serviços de saúde e escolas, uso de pernasde-pau com banda de música, ciranda, capacitação de professores do Ensino Fundamental, palestras com grupos específicos (presidiários e menores infratores) e outras formas de mobilização social (Teixeira, Galiciolli, Rosélia, 2008). Ainda no que diz respeito às parcerias, constatou-se o papel estratégico do Morhan na definição de políticas governamentais que beneficiem os portadores de hanseníase, bem como as tensões decorrentes das diferentes visões sobre as ações de controle e prevenção propostas pelos representantes dos órgãos governamentais e da sociedade civil organizada. Este dado indica o poder dos movimentos sociais de provocar transformações nas relações institucionais e de redimensionar os lugares dos sujeitos na sociedade (Martín-Barbero, 2003). Outra parceria identificada refere-se à articulação entre os programas e as empresas privadas, presente em 8% dos materiais. Apesar das parcerias existentes, nota-se que os gestores exploram pouco o potencial do setor privado como um corresponsável nas ações de mobilização social. Entretanto, constata-se o poder de articulação que o Morhan apresenta junto às instituições privadas, o que indica a sua capilaridade nos diferentes setores da sociedade. Citam-se como exemplos das parceiras do Morhan: Febrafarma, Unimed, Rede Globo, entre outros.

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Considera-se que a mobilização de diversos parceiros aumenta a circulação dos conhecimentos sobre a hanseníase para os diferentes segmentos sociais, de modo a integrá-la no senso comum e contribuir para a modificação da identidade social dos portadores da doença. Há que se considerar também que a participação de diferentes atores e setores sociais no controle da endemia fortalece a prática intersetorial e interinstitucional preconizada pelo Sistema Único de Saúde. Objetivos e formatos No que se refere à definição dos objetivos (explícitos e implícitos) dos materiais, identificou-se que a maioria está relacionada aos formatos e aos públicos para os quais se destinam, além de apresentar mais de um objetivo. Para fins de classificação, optou-se por agrupar os objetivos em cinco eixos, quais sejam: 1 Suspeição e detecção: divulgar informações sobre sinais e sintomas, tratamento e cura; estimular a autossuspeição; mobilizar a procura pelo serviço de saúde e aumentar a detecção de casos novos. 2 Orientação ao profissional de saúde: diagnosticar a doença e os quadros reacionais; realizar exames de contato; promover ações educativas; avaliar as alterações neurológicas que levam às incapacidades físicas; prescrever medicamentos (poliquimioterapira – PQT, a talidomida e corticóides); ensinar ao portador de hanseníase como fazer os exercícios para o autocuidado e para a prevenção de incapacidades físicas; estruturar as atividades desenvolvidas no programa de hanseníase; conhecer a Norma Operacional de Atenção à Saúde (Noas) e atuar na descentralização das ações do programa. 3 Dimensões socioculturais: diminuir o preconceito relacionado com a doença; informar sobre os direitos previdenciários e orientar os portadores de hanseníase sobre condutas destinadas à integração social. 4 Orientação ao portador de hanseníase: usar os medicamentos, fazer exercícios de prevenção de incapacidades físicas e levar os comunicantes para o exame no Posto de Saúde. 5 Divulgação institucional: divulgar o endereço, os projetos e as atividades promovidas pelas instituições; bem como campanhas realizadas pelos serviços de saúde. Entre os objetivos sistematizados, predominam aqueles orientados à suspeição e à detecção de casos. Essa tendência encontra-se alinhada com a prática campanhista vigente na hanseníase (KellySantos, Rosemberg, Monteiro, 2009). Tal fato torna-se mais evidente ao se correlacionar com a análise dos formatos, cuja maioria dos materiais é de panfletos (26%), seguida de folhetos (24%) e de cartazes (23%). A lógica panfletária focada na disseminação maciça de informação perpetua a vigência de modelos verticais, unilaterais e lineares de comunicação (Araújo, Cardoso, 2007). Na tentativa de construir um vínculo mais próximo e direto com a recepção, o produtor lança mão de uma variedade de formatos: cartilhas (15%); seguidas de álbuns seriados (3%); adesivos (2%) e diversos souvenirs (7%). No conjunto destes materiais, chamam a atenção o cartão-postal, jogos, adesivos, calendários (de bolso e parede), cartões telefônicos, imã calendário, cordéis, a fotonovela e as histórias em quadrinhos. Estes formatos, embora minoritários, destacam-se tanto pelo gênero adotado como pela possibilidade de circulação junto aos diferentes segmentos sociais. Destinatários e contexto de uso Quanto aos destinatários, entre os 276 materiais do acervo, predomina a categoria público em geral (75%); seguida dos profissionais de saúde (12%); e do público infanto-juvenil (6%). Os portadores de hanseníase estão representados em 3% da amostra. Apenas 1% dos materiais é destinado ao público escolar. Destaca-se ainda que 3% dos materiais são dirigidos a mais de um público simultaneamente, portadores de hanseníase, profissional de saúde, população em geral e público escolar. Constatou-se que o objetivo do material, aliado ao contexto de circulação e de uso, determina a definição do público e dos formatos. As campanhas e as palestras (em escolas, empresas, associação de moradores e igrejas) são atividades privilegiadas para abordar o público em geral, o público escolar e infanto-juvenil. Nessas abordagens, predomina o uso de folhetos, panfletos e cartilhas com conteúdos que visam estimular a autossuspeição e detecção de casos na população. Para os portadores de hanseníase a distribuição de materiais é precária, acontece durante os atendimentos nos serviços de saúde, com vistas a auxiliar na compreensão da doença e na realização dos exercícios de prevenção de incapacidades. No caso dos profissionais de saúde, as cartilhas e os álbuns seriados são usados nos treinamentos técnicos (diagnóstico e tratamento), enquanto os folhetos e cartazes, nas atividades extramuros. 42

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Na definição dos públicos, avalia-se que a compreensão da situação epidemiológica da doença auxilia no conhecimento de quem são as pessoas e/ou grupos sociais susceptíveis e como eles vivem. A identificação dos elementos - sexo, idade, etnia, hábitos alimentares, acesso a educação, saúde, tipo de ocupação, lazer, religião, rede social, meios de comunicação mais utilizados, preferências - permite especificar os temas, o público e os formatos dos materiais, mas, sobretudo, planejar e definir que estratégia comunicativa é mais efetiva para alcançar determinados grupos.

As relações entre enunciador-destinatário: modos de dizer e mostrar A dimensão assimétrica e a prática normalizadora-curativa Nas observações de campo no posto de saúde investigado e nas entrevistas com profissionais de saúde e representantes de ONG que atuam na hanseníase, verificou-se que os sujeitos ocupam posições assimétricas no processo comunicativo. O poder de transmitir informações, tratar, educar e oferecer modelos de atitudes é conferido à equipe de saúde. Aos portadores de hanseníase cabe ouvir passivamente as recomendações e colocá-las em prática. A construção dessa relação acontece por meio do que se denomina prática normalizadora-curativa da saúde. Tais práticas são compreendidas como um conjunto de normas e técnicas (diagnóstico, condutas terapêuticas, busca de contatos, ações educativas, entre outras) delineadas e executadas pelo dispositivo médico-sanitário, com vistas à promoção de medidas preventivas e curativas junto à população. A função social desse dispositivo é normalizar a vida para promover a saúde. Propõe uma série de regras e disciplinas aos sujeitos, cuja finalidade é “endireitar” o que escapa ao funcionamento normal do organismo e dos espaços sociais. A concepção que orienta esta prática é a da saúde como ausência de doença, como a capacidade do organismo de manter o estado de equilíbrio estável com o meio social (Canguilhem, 2007, 2005). Conforme explicita o texto de um dos materiais, “O micróbio da hanseníase ataca os nervos, o que dificulta os movimentos das mãos, dos pés e dos olhos e causa amortecimentos.” (Folheto 41); “As manchas dormentes ou que não coçam [...] Elas têm cura” (Panfleto 54). A cura é vista como a possibilidade de restabelecer as funções normais do organismo, tal como antes do adoecimento. Canguilhen (2005) denomina essa visão como “pedagogia da cura”. Para atingir esse ideal, o saber médico-sanitário lança mão de cuidados universalistas, atuando em prol da “pedagogia da cura”. Os enunciados dos materiais evidenciam essa premissa: “O diagnóstico precoce é o melhor remédio” (Panfleto 35); “Todos que conviveram com quem teve a doença devem ser examinados (Folheto 41); “O tratamento é chamado PQT [...] é o mesmo em qualquer lugar do mundo [...] o único que cura hanseníase” (Folheto 14). Ao se constatar essa visão não se quer diminuir a importância dessas atividades, mas ampliar a compreensão do que está instituído como verdadeiro e legítimo no cuidado à saúde. A prática normalizadora-curativa é recorrente nos materiais educativos e demarca o lugar dos sujeitos no processo comunicativo. As relações entre produtor-destinatário são estabelecidas pelo modo como o enunciador (sujeito que fala no texto) constrói a sua imagem e a do “suposto” destinatário, marcando o lugar de fala de cada um desses atores. A imagem do sujeito da enunciação é construída como aquele que tem o poder de mostrar e fazer o outro crer na informação oferecida; contrapondo-se à imagem do “sujeito falado” (destinatário), que aparece como um sujeito “opaco” (sem rosto, sem voz) e “carente” de capacidade interpretativa. Do ponto de vista enunciativo, os textos - “Fique atento! [...] Você sabe o que é hanseníase? [...] Fique sabendo – o tratamento é gratuito”(Panfleto 26); “Procure uma unidade de saúde mais próxima de sua casa [...] (Panfleto 49)” - expressam que o sujeito da enunciação detém a autoridade ao narrar o fato - ele é dotado de saber. Isso fica evidente pelo uso do imperativo na construção dos enunciados. Nestas operações, entra em cena a imagem do “enunciador pedagógico” (Verón, 2004) que explica, orienta, prescreve o que o leitor deve aprender e conhecer sobre a hanseníase por meio do uso de perguntas e respostas e frases afirmativas. O conhecimento biomédico é adotado como um recurso pedagógico para criar um código comum sobre os conteúdos a serem transmitidos e assimilados. Conforme explicitado, “A tomada correta de medicamentos previne a evolução da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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doença, garantindo a cura” (Folheto 49). Neste enunciado adota-se a linguagem técnica-prescritiva, relativa ao uso de termos médicos e à indicação de medidas sanitárias de cuidado com a saúde. Essa modalização expressa o modo como o enunciador se faz ouvir e confere credibilidade as suas palavras. Essa operação se distingue radicalmente nos enunciados “Como posso suspeitar que estou com hanseníase?” (Panfleto 17) e “Onde procurar ajuda? (Panfleto 49)”, nos quais o sujeito da enunciação se coloca no lugar do destinatário para se dirigir a ele. Pressupõe, por parte de quem fala, um saber menos totalizante, uma atitude de compartilhar com o interlocutor o acontecimento narrado. Esse deslocamento pode ser meramente retórico, mas ele existe. Indica o uso de estratégias diferentes para buscar a adesão do receptor baseada na construção de certa cumplicidade. Mediante o exposto, compreende-se que a prática normalizadora-curativa da saúde aliada ao uso de frases afirmativas, imperativas e de perguntas e respostas compõem as regularidades na produção dos discursos da hanseníase. Essas marcas enunciativas determinam os vínculos entre enunciadordestinatário, bem como legitima o saber médico-sanitário como dominante na produção dos significados, valores e representações sobre a doença. A partir destas operações, os materiais educativos atuam como uma mediação modificando a realidade e sendo modificados por ela (Fausto-Neto,1999, p.16). Os sentidos e as práticas sobre a hanseníase são gradativamente construídos pela produçãorecepção em cada ato enunciativo. A delimitação do público por categorias representa uma maneira que o produtor real encontrou de transmitir valores e dialogar com os destinatários. Esta caracterização é válida e necessária para instaurar o diálogo entre esses atores, porém ainda predomina a distância nas relações entre os sujeitos do processo comunicativo. Na categoria “público em geral”, o destinatário é representado na maioria das vezes por imagens de partes do corpo humano (tórax, braços, pernas, nádegas, rosto de perfil etc) com lesões características da doença, conforme apresentado no Panfleto 43 (Figura 1). O sujeito aparece sem rosto, sem voz – ele é representado por corpos fragmentos e com lesões. Nessa modalização, o público é tratado como uma “massa atomatizada” (Fausto-Neto, 1995). A noção de “público em geral” é inespecífica e abrangente, própria à concepção universalista de sujeito presente na Saúde Coletiva, a qual ignora marcas de pertencimento dos indivíduos a determinados grupos sociais.

Figura 1. Panfleto 43.

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A identidade e o lugar de cada sujeito na sociedade estão diretamente relacionados com as características socioculturais, intrinsecamente atravessadas por questões referentes ao sexo/gênero, à classe social, etnia, cor/raça, idade. Contudo, os enunciados (textos e imagem) dos materiais ao se referirem a esses marcadores o fazem sem contextualizarem e caracterizarem os indivíduos e as populações susceptíveis. O enunciado “toda e qualquer pessoa pode pegar hanseníase independente de idade, sexo, cor, nacionalidade ou classe social” (Folheto 17) denota esta comunicação genérica, na qual o destinatário é representado sem nenhuma identidade sociocultural. Também desconsidera a localização geográfica e a situação epidemiológica da doença. Nas categorias “público infanto-juvenil” e “público escolar”, o produtor recorre ao uso de ilustrações de crianças e adolescentes e ao gênero história em quadrinhos para estabelecer uma comunicação próxima à realidade desses públicos. Apesar da tentativa bem intencionada e adequada aos destinatários, identificou-se que a ênfase na linguagem técnica-prescritiva privilegia o saber biomédico demarcando quem tem o poder de fala no processo comunicativo. No caso dos professores, a imagem do destinatário equipara-se à do profissional de saúde, sendo representados como atores ativos e dotados de saber acerca da doença. Já as crianças e os adolescentes ocupam um lugar menos qualificado neste processo, com exceção de alguns materiais que recorrem ao uso de mascotes - o “Previninho” (Folheto 34) e a “Ana Melo” (Cartilha 10) ou de personagens como “Geninho e Leo” (Cartilhas 32,33) e “Masinho” (Cartilha 29) - que constroem a imagem da criança/ adolescente revestida de um certo heroísmo e poder. Nesses casos, esses personagens assumem a função social de educadores na transmissão de informações a seus familiares e amigos. Na categoria “profissional de saúde”, o destinatário, majoritariamente, é representado pelo médico ou pelo enfermeiro, realizando atividades do seu cotidiano (consultas, orientações, palestras) junto aos usuários dos serviços de saúde. A imagem do profissional é investida pelo saber normalizadorcurativo, na medida em que ele é treinado para procurar o agente causal da doença, tomando o corpo como objeto de escrutínio do olhar médico-sanitário: “o exame dermato-neurológico consiste em observar toda a superfície corporal [...], realizar testes de sensibilidade em áreas suspeitas (manchas, placas ou áreas dormentes) e palpar os troncos nervosos mais acometidos na doença” (Folheto 28). O espaço social também é tido como objeto de intervenção sanitária: “Examine todos os comunicantes do paciente e encaminhe para a vacinação com BCG-ID” (Folheto 31). Prioritariamente, o profissional de saúde é representado como aquele que está apto a examinar para diagnosticar e tratar para eliminar, sendo o tratamento medicamentoso a condição para a cura e o alvo dos dispositivos sanitários, como exemplificado no Folheto 09 (Figura 2).

Figura 2. Folheto 9.

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Já o Agente Comunitário de Saúde (ACS) é representado como aquele que vai mediar a relação entre a população e a equipe de saúde. A atuação dos agentes é supervalorizada, por vezes até vista como um ato heróico e missionário: Abençoado ser ciente de sua cidadania, que se dispõe dia a dia a prestar esclarecimentos e descobrir as mazelas de sua comunidade. [...] Esse ser incansável que desconhece as condições de transportes ou dos perigos dele decorrido, encara sua tarefa como se fosse uma missão divina. É graças a ele que estamos conseguindo ganhar batalhas importantes na área da saúde. (Cartilha 11)

Na categoria “portador de hanseníase”, o destinatário é convocado a assumir a responsabilidade na condução do seu tratamento: “a eficácia do tratamento requer atenção e disciplina do paciente e dos familiares” (Panfleto 09). Contudo, ele é representado como um sujeito subserviente ao cuidado normalizador-curativo da equipe de saúde, que deve “ensiná-lo” como agir para restabelecer sua saúde e levar uma vida normal, conforme os enunciados: “O paciente em tratamento pode conviver com a família, no trabalho e na sociedade sem qualquer restrição” (Panfleto 08); “Numa comemoração, o paciente pode até beber um pouco (sem exageros) e comer de tudo, mas nunca deixar de tomar o remédio” (Cartilha 03). Já no texto “O Senhor não precisa se assustar. Nós vamos tratá-lo e tudo vai dar certo” (Cartilha 23), observa-se a busca pela proximidade com o paciente. Apesar do enunciador recorrer a um tom paternal e representar o profissional de saúde como um conselheiro, cuja fala não é autoritária, identifica-se a sua superioridade na relação com o leitor – ele sempre ocupa o lugar daquele que detém o poder e saber no processo comunicativo. Os enunciados “A cura também depende de você!”, associado à imagem de São Francisco (Folheto 65), e “Se você começou e não completou o tratamento volte ao posto de saúde. Sua cura também depende de você” (Folheto 32) convocam à responsabilidade do leitor com os cuidados necessários a sua saúde, além de explicitar a cumplicidade entre enunciador-destinatário nesse processo. Apesar de esses textos forjarem a imagem do enunciador cúmplice-cuidador, o que também se pode evidenciar é o discurso da culpabilização do sujeito. Implicitamente a fala do enunciador aponta tanto para a ideia do necessário envolvimento do sujeito no processo do tratamento, quanto chama a sua atenção pelo descumprimento das normas e dos cuidados médicos provedores de seu bem-estar. O discurso da culpabilização do sujeito por sua doença é recorrente na comunicação de programas de saúde, demonstrando a hegemonia do saber biomédico, em detrimento da valorização dos aspectos subjetivos e dos determinantes socioculturais no processo saúde-doença. O uso de mediações sociais: espaços de negociação e diálogos entre os sujeitos No conjunto de materiais, cabe destacar aqueles que apresentam diferenças no modo como o produtor constrói a relação com o destinatário e a imagem que faz deste. Nessa comunicação, o produtor utiliza elementos que fazem parte do cotidiano das pessoas, de modo a buscar uma interlocução com o destinatário de forma mais direta e personalizada. Um dos recursos refere-se ao uso da mediação “familiaridade” (Martín-Barbero, 2003), cuja estratégia foi a de veicular fotografias do rosto de pessoas sem lesões ou deformidades, de diferentes idades, cor/raça, sexo e segmentos sociais associadas a uma pergunta dirigida ao leitor: “Você diria que eu já tive hanseníase?” (Cartaz 14). Tal mensagem constrói a imagem do leitor representada por pessoas que têm rosto, voz e gestos (sorrisos, olhar atento) e indica que a hanseníase pode afetar qualquer um, sendo esta uma das condições de emergência dos discursos da hanseníase (Rotberg, 1975). Ademais, o que está em jogo nesta abordagem é a possibilidade de restituir a auto-estima do portador de hanseníase e promover um deslocamento no imaginário social, colocando em xeque as imagens terrificantes da lepra – uma doença que mutila e cai pedaços. Nesta mesma direção, destaca-se a associação entre a “familiaridade” e a “lógica testemunhal” (Verón, 2004) evidenciada nos materiais que trazem fotografias de ex-portadores de hanseníase (homem e mulher), associadas às frases “Eu tive hanseníase. Tratei e estou curada” (Cartão Telefônico 02 e 03). O uso complementar entre a fotografia das pessoas e seus depoimentos atuam como elementos de

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10 O artista Ney Matogrosso autorizou a revelação de sua identidade, caso o seu depoimento fosse citado no estudo.

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reconhecimento e confere um status de verdade à informação veiculada - em especial as relacionadas com o tratamento e a cura, por serem conceitos que dialetizam com o preconceito e o estigma relacionado com a doença. O modo como estes enunciados (imagens e frases) foram construídos revela uma tendência à relação simétrica entre enunciador-destinatário. O destinatário é representado na imagem de uma pessoa que tem rosto, voz, gestos, afetos e saber, semelhante ao enunciador-produtor. O enunciador compartilha com o destinatário o poder da ação, ao considerá-lo um sujeito ativo dotado de capacidade interpretativa: “Hanseníase temos que saber reconhecer.” (Cartão Telefônico 02, 03). Nessa frase, o enunciador busca a cumplicidade com o destinatário. Entre os materiais, verificou-se ainda o uso da imagem de artistas associada à hanseníase, entre eles: Ney Matogrosso, Elke Maravilha, Nelson Freitas, Patrícia Pilar. Esta estratégia adota a mediação “cultura”, com vistas a construir vínculos com o destinatário por meio de sua projeção e identificação com as imagens das celebridades. A exploração da imagem de artistas como produtos-personagens pelos meios de comunicação tem normalmente a função estratégica de provocar a venda e/ou inserção de determinadas mercadorias na vida social (Fausto-Neto, 1991). Na entrevista com o cantor Ney Matogrosso10, um dos voluntários do Morhan, observa-se como este elemento de mediação atua na realidade. [...] existe muita curiosidade a meu respeito. Então quando eu estou ligado a um assunto como esse, nós temos assim, às portas da mídia totalmente abertas, eu já fiz muitas campanhas Estaduais [...] realmente nós conseguimos chamar muita atenção para essa doença, que era uma doença complemente ignorada, que sequer publicavam essa palavra em jornal.

Outra mediação cultural refere-se ao saber religioso, presente nos folhetos e panfletos que associam as informações sobre a doença às imagens de Santo Antônio, Padre Cícero e São Francisco de Assis. Esses materiais destacam-se devido ao uso das mediações “cotidianidade”, “familiaridade” e “cultura” (Mártin-Barbero, 2003), as quais mobilizam o interesse e a curiosidade sobre o tema, bem como potencializam o uso e a interação com estes recursos em diferentes contextos. Um dos entrevistados do Morhan relatou que a utilização do folheto de Pe. Cícero foi uma estratégia que surtiu um ótimo efeito, segundo ele, “as pessoas liam o ‘folheto do santinho’ e o levavam para casa, colocando-o na sala de visita junto a outras imagens de santos”. Um dos materiais produzidos pelo Sefras, Folheto 16 (Figura 3), utiliza a imagem de São Francisco segurando um leproso, remetendo à memória social da doença. Tal imagem é associada a enunciados sobre as implicações do preconceito e do estigma da lepra, conforme evidenciado nas mensagens “Na verdade, esta motivação [de atuar na hanseníase] já vem desde o tempo de nosso fundador, São Francisco de Assis, no encontro que teve com o ‘leproso’ e o levou à superação do seu próprio preconceito em relação à doença” (Panfleto 61) [...] [São Francisco], “tinha um grande amor pelos ‘leprosos’. Ajude a vencer o medo e o preconceito da Hanseníase, contribuindo para aumentar o conhecimento dos sinais e sintomas da doença” (Folheto 65). Essa estratégia mobiliza o olhar do leitor e desperta sua compaixão, na medida em que evoca representações ligadas ao abandono social vivido pelos leprosos e ao ideário da assistência “caridosa”, “compassiva” e “piedosa” prestada pelos religiosos (Caponi, 2000).

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Figura 3. Folheto 16.

Nesta modalização, o destinatário é representado como aquele que se compadece com a dor e o sofrimento alheio, ou seja, a ele é atribuído o poder de compartilhar com o enunciador a prática da compaixão piedosa. Estas marcas enunciativas expressam o poder do saber religioso na formação dos conceitos, valores e subjetividade dos sujeitos. Por um lado, a interpenetração entre os saberes religioso e médico opera na construção de um código comum sobre os conteúdos a serem transmitidos ao leitor, deslocando as representações arcaicas e estigmatizantes relacionadas à lepra bíblica. Por outro, ainda é presente no contexto das práticas religiosas o apelo ao discurso culpabilizador no modo como qualificam a doença - como algo impuro, ligada ao pecado e punição divina, cujo efeito é a perpetuação de conceitos ligados ao medo do contágio, à segregação social e às imagens de pessoas mutiladas (Claro, 1995).

Considerações finais Os achados deste estudo indicam que, apesar de algumas exceções, há o predomínio de uma comunicação universalista e genérica na divulgação da hanseníase junto ao público. Essa situação indica a precariedade das ações de comunicação e educação vigentes nos programas de controle, além da falta de uma política específica para essa área. A lógica atual concebe atividades comunicativas de maneira pontual, vertical e centralizadas na produção-distribuição de materiais educativos. Esta abordagem fica evidente na produção maciça de panfletos, folhetos e cartazes destinados ao “público em geral”, amplamente distribuídos nas campanhas e palestras focadas no aumento da autossuspeição e detecção de casos. 48

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KELLY-SANTOS, A.; MONTEIRO, S.S.; RIBEIRO, A.P.G.

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O pouco investimento em ações continuadas de comunicação-educação e na avaliação das atividades realizadas, aliada à baixa mobilização dos diversos segmentos sociais para o enfrentamento da endemia, representa um dos pontos críticos das ações de vigilância na hanseníase. Mediante este cenário, considera-se que o controle da doença deve ser encarado não de forma isolada e restrita à área de saúde, mas como uma política de governo, o que requer o fortalecimento das intervenções intersetoriais e interinstitucionais. Essa perspectiva implica em romper com a concepção médico-centralizadora hegemônica na gestão e na assistência da hanseníase, em prol da participação de diferentes grupos sociais nas atividades dos programas, entre elas nas práticas comunicativas. Araújo e Cardoso (2007) discutem que experiências na descentralização das ações de comunicação têm sido minoritárias, mas, quando implementadas, trazem avanços relativos ao empoderamento dos atores sociais, ao surgimento e ampliação de canais de expressão e escuta, à administração e redistribuição de recursos de forma equitativa e contextualizada com as demandas locais. Este processo propicia, em última instância, a participação dos atores sociais nas decisões sobre que “comunicação fazer, para quê, para quem e de que forma” (Araújo, Cardoso, 2007, p.79). Os resultados de nossa pesquisa indicaram que as iniciativas de estabelecer uma comunicação personalizada e atenta às diversidades socioculturais dos destinatários, em geral, envolveram parceiros variados. Esta produção representa uma minoria dos materiais, os quais conciliam diferentes formatos, gêneros e mediações para criar o vínculo e o reconhecimento com o leitor. No desenvolvimento de estratégias comunicativas é imprescindível levar em conta os dados epidemiológicos, os marcadores socioculturais, bem como os diversos atores como protagonistas de todo o processo. A valorização da dimensão dialógica da comunicação, que se pauta na construção da alteridade e no interesse por compartilhar (Bakhtin, 2006), é intrínseca às práticas éticas de cuidado. Tal condição é imperiosa para se formarem os vínculos e os afetos entre os sujeitos, por conseguinte, para se pensar a vida, a saúde e o corpo. Ao se levar em conta a comunicação como um espaço dialógico-afetivo e de reconhecimento do sujeito, será possível avançar na passagem da assistência “compassiva” e “piedosa” para uma assistência orientada pela “ética da solidariedade”, que prima por “ações que beneficiem os outros, a partir do reconhecimento do outro como um sujeito autônomo capaz de tomar decisões e de fazer escolhas, isto é, aceitar essas ações” (Caponi, 2000, p.45). Em consonância com essas premissas em nossas investigações, defende-se o uso de materiais educativos como uma mediação na relação entre a equipe de saúde e os usuários dos serviços, como uma forma de potencializar os espaços dialógicos e afetivos, a troca de conhecimentos, valores e significados atribuídos à doença. Ademais, essa dimensão contribui para que a produção de materiais educativos seja participativa, ancorada em necessidades reais, e seja incluída como um componente estratégico no planejamento das ações de controle dos programas e não apenas como um apêndice um paliativo informativo-instrucional.

Colaboradores Adriana Kelly Santos realizou as atividades de campo, análise dos dados, estruturação e redação do artigo. Simone Monteiro e Ana Paula Goulart participaram das etapas de estruturação, redação e revisão final do manuscrito. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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KELLY-SANTOS, A.; MONTEIRO, S.S.; RIBEIRO, A.P.G.

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KELLY-SANTOS, A.; MONTEIRO, S.S.; RIBEIRO, A.P.G. Acervo de materiales educativos sobre enfermedad de Hansen: un dispositivo de la memoria y de las prácticas comunicativas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.37-51, jan./mar. 2010. Los materiales educativos integran las directrices de los Programas de Control de la enfermedad de Hansen. Este trabajo se objetiva: describir el proceso de elaboración de un banco de 276 materiales sobre dicha enfermedad producidos por instituciones públicas y no gobernativas entre 1972 y 2008; analizar el tipo, el público y los objetivos. El banco se elaboró en una base electrónica de datos conteniendo el análisis descriptivo y temático y un link para el documento completo e los materiales. Los materiales se destinan a un público geral (75%), profesionales de salud (12%), público infantil y juvenil (6%), portadores de la enfermedad de Hansen (3%) y otros (4%). Predominan panfletos (26%), folletos (24%); carteles (23%), seguido de cartillas (15%), álbumes seriados (3%) y otros (9%). Objetivan aumentar la auto-suspección, detección de casos y divulgar los servicios de salud. Predomina el discurso biomédico, el lenguaje técnico-prescriptivo y las relaciones jerarquizadas entre enunciador y destinatario.

Palabras clave: Materiales educativos. “Hanseniase”. Comunicación. Recebido em 26/03/2009. Aprovado em 10/08/2009.

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artigos

Trajetórias da docência universitária em um programa de pós-graduação em Saúde Coletiva* Marinalva Lopes Ribeiro1 Maria Isabel da Cunha2

RIBEIRO, M.L., CUNHA, M.I. University teaching pathways in a postgraduate public health program. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.55-68, jan./mar. 2010.

The aim of this study was to analyze representations of teaching and pedagogical training within the pedagogical policy project of a master’s course on public health. The study was based on a qualitative research perspective and involved students, former students and teachers, using document analysis and semistructured interviews as instruments. Contributions from Bourdieu, Sousa Santos, Anastasiou, Pimenta, Cunha and Lucarelli provided the theoretical framework for data interpretation through content analysis. It was concluded that even though the participants expected that their professional action would consist of teaching, there was little of this dimension in the curricular proposals. There were discrepancies between their motivations and the training proposals. This could be an indication of fragility of the field of scientific education and of universitylevel pedagogy within this context. The conclusions signal issues such as higher education quality in Brazil, challenges to teaching and misunderstandings caused by linearity between research and teaching.

Keywords: University teaching. Higher education. Teacher training. University pedagogy. Public health.

O intuito deste estudo foi analisar as representações de docência e formação pedagógica presentes no Projeto PolíticoPedagógico de um Curso de Mestrado em Saúde Coletiva. Baseado na perspectiva qualitativa de pesquisa, envolveu alunos, ex-alunos e professores, utilizando a análise documental e a entrevista semiestruturada como instrumentos. Contribuições de Bourdieu, Sousa Santos, Anastasiou, Pimenta, Cunha e Lucarelli deram a principal sustentação teórica para a interpretação dos dados mediante a análise de conteúdo. Concluiu-se que os participantes, mesmo tendo a docência como expectativa de ação profissional, pouco encontram nas propostas curriculares essa dimensão, havendo discrepância entre as suas motivações e a proposta de formação. Esta discrepância pode estar indicando a fragilidade do campo científico da educação e da pedagogia universitária nesse contexto. As conclusões alertam para a questão da qualidade da educação superior no Brasil, os desafios impostos à docência e os equívocos provocados pela linearidade entre pesquisa e ensino.

Palavras-chave: Docência universitária. Educacão superior. Formação de professores. Pedagogia universitária. Saúde coletiva.

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* Texto inédito, elaborado com base em Ribeiro (2008); pesquisa sem financiamento e conflito de interesse, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa/CEP-UEFS (Prot. 002/2008 - CAAE 0001.059.000-08). 1 Departamento de Educação, Universidade Estadual de Feira de Santana. Rua Presidente Lincoln, 62. Feira de Santana, Ba, Brasil. 44.003-186. marinalva_ biodanza@hotmail.com 2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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Introdução A recuperação das trajetórias da docência tem se constituído num interessante modo investigativo no campo da educação, sobretudo quando se tomam os princípios da pesquisa qualitativa como válidos. Neste estudo, elegemos como preferencial a recuperação de trajetórias de formação de professores em um Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Nossa intenção foi compreender se esse espaço corresponde a um lugar de formação que tem a docência como meta. Nosso questionamento se dirige ao professor universitário, com a pretensão de compreendermos como se dá a sua formação num contexto de crise de paradigmas. Abordamos, em especial, a docência dos professores da área de saúde, por entendermos que são dois campos científicos muito atingidos pelas novas demandas sociais e culturais.

A formação do professor universitário num contexto de crise de paradigmas Caracterizada como uma mudança conceitual, ou na forma de ver o mundo, em consequência da insatisfação com os modelos explicativos que vigoravam anteriormente, uma crise de paradigmas pode conduzir a mudanças e, de forma mais radical, pode levar ao que Marcondes (2007) denomina revoluções científicas. Muitos estudiosos caracterizam o momento que estamos vivendo como de crise paradigmática, pois não existem ideias incontestáveis para fundamentar a nossa prática, nem perspectivas salvadoras. Questionam-se: as compreensões sobre o corpo humano como uma máquina, o universo como um sistema mecânico, a vida em sociedade como luta competitiva pela existência, o progresso material ilimitado, a inferioridade da mulher, a neutralidade do conhecimento, dentre outras, que têm atingido a ciência e sua produção, na contemporaneidade (Coelho apud Garcia, 2007; Capra, 1996). Esse fenômeno tem tido repercussão em variados campos. Influencia, por exemplo: as políticas educativas que envolvem a forma de conceber e desenvolver a pesquisa e o ensino, o papel dos professores e sua relação com os alunos, os saberes que necessitam para agir na sala de aula, na sua formação, dentre outros aspectos. Marques (2003, p.45), analisando a questão, afirma que tanto quanto a escola, o lugar do professor também se encontra em crise. Saberes e competências, antes validados, são agora destituídos, considerados obsoletos, fragmentários, inconsistentes e na maioria das vezes, são vistos como ineficazes para o imediatismo e o consumismo do mundo contemporâneo. Para o professor, na atualidade, não basta mais a memória informativa, cristalizada sobre conhecimentos supostamente duradouros. As exigências e demandas atuais apontam para um rompimento das concepções com que a profissão foi organizada no passado.

Só recentemente se tem discutido a respeito das influências paradigmáticas da ciência sobre a profissionalidade e sobre a prática pedagógica dos professores universitários. Essa envolve valores, percepções e visões que alteram as práticas tradicionais porque a pedagogia corresponde a uma epistemologia, na medida em que a compreensão de conhecimento é definidora das suas formas de distribuição (Cunha, Leite, 1996). No âmbito dessas discussões, tem-se evidenciado um conjunto de problemas cujas soluções escapam à compreensão teórica e às competências necessárias para geri-los, dando origem a distorções que ameaçam o sucesso dos estudantes e a autoimagem dos professores. Para responder às novas demandas sociais e aos questionamentos sobre a qualidade das práticas educativas, urge que se desenvolvam novos estudos e experiências, que avancem no sentido de melhor responder às demandas e exigências contemporâneas. Parece fundamental, para alcançar tal objetivo, que se dê a necessária atenção aos saberes pedagógicos, compreendidos como chave nos processos de formação. Não é mais admissível que as práticas pedagógicas se assentem meramente nos processos históricos e tradicionais de ensinar e aprender, presentes nas trajetórias dos que almejam a docência na Educação Superior, em geral sustentadas por saberes do senso comum.

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artigos

Cunha (2005a) e Behrens (2003), abordando essa temática, destacam dois modelos que se opõem e se aproximam em constante oscilação: o primeiro – conservador – no qual prepondera a reprodução do conhecimento; o segundo – emergente – no qual o conhecimento é concebido como processo de produção que enfatiza a dúvida e a incerteza como embrião do conhecimento. Estudos recentes (Martins, Leon, Silva, 2006; Cunha, 2005a) mostram contradições na prática educativa de professores universitários na medida em que esses utilizam, concomitantemente, práticas educativas baseadas em modelos emergentes (emancipatórios) e em modelos conservadores (tradicionais), sobretudo no quesito avaliação da aprendizagem, evidenciando a crise paradigmática à qual nos estamos referindo. A alteração desse quadro requer uma outra profissionalidade para o docente universitário, pois não se concebem professores universitários improvisando aulas, sem uma condição profissional de exercício. Enguita (1991), em estudo sobre a sociologia das profissões, afirma que uma profissão só se constitui quando há o reconhecimento de saberes que lhe são próprios. Esses, certamente, exigem uma formação fundamentada e uma licença para seu exercício. No caso da docência universitária, essa condição não se realiza. Grande parte dos profissionais que exercem o magistério universitário não tem a devida formação para a docência. Muitos são profissionais de sucesso na área específica do seu curso de bacharelado, mas não dominam o referencial pedagógico necessário ao desempenho da sua ação na sala de aula (Rosa, 2003; Sacramento, 2003). Agem com base em seus modelos históricos que contêm elementos universais válidos, mas carecem de uma reflexão teórica capaz de tornar consequente uma tomada de decisões. Em geral, os professores ensinam conforme o modo como foram ensinados, distantes da compreensão teórica das consequências de suas práticas. Exercitam saberes e, muitas vezes, têm êxito no que fazem, mas não são produtores de conhecimento sobre sua profissão. Dentro dessa lógica, conforme Chamlian (2003), o ensino e a formação profissional de boa qualidade nem sempre se concretizam. Se a condição da boa prática profissional pode ser importante para os professores universitários, ela não é garantia do desenvolvimento de um ensino que gere, nos estudantes, aprendizagens significativas. É provável que os impasses das atividades de ensino sejam, em boa parte, tributários da falta de formação dos professores para a docência. As pesquisas são unânimes em apontar, como um dos maiores problemas encontrados no ensino, a precária formação dos professores (Silva, 2003). No final da década de 1960, como parte do processo de institucionalização da Pós-Graduação no Brasil, os órgãos de fomento à pesquisa e os planos de cargos e salários incentivaram os docentes universitários a buscarem a titulação pós-graduada (Melo, 2008). A partir da década de 1980, ampliaram-se os debates sobre a profissionalização do professor e o exercício do ensino como uma atividade profissionalizada, que estaria a exigir uma ruptura com as representações cristalizadas de como ser professor. Montero (2001) refere que a profissionalização tem se constituído numa aspiração prioritária dos sistemas educativos na busca pela qualidade dos processos e dos resultados da educação. Nessa perspectiva, alguns aspectos desses debates foram incorporados à Constituição Federal de 1988, a exemplo do resgate do concurso público e da garantia do padrão de qualidade como princípio da educação (Weber, 2003). É possível detectar algumas evidências que decorreram da compreensão inequívoca de que a qualidade da Educação Superior estaria dependente da relação de indissociabilidade do ensino com a pesquisa e dessas duas dimensões com a extensão. Para tal, o lugar da formação para o exercício do magistério superior seria a pós-graduação stricto sensu. Sem nenhum grau de contestação dessa premissa, o equívoco está em assumir que os saberes da pesquisa seriam suficientes para garantir um ensino de qualidade. E os Programas de Pós-Graduação se identificaram, exclusivamente, com a dimensão da pesquisa, valorizando a produção do conhecimento em detrimento da sua socialização por meio das novas gerações de estudantes. Estabeleceu-se uma profunda dicotomia entre graduação e pós-graduação, enfatizando o prestígio dessa última que, além de merecer uma formação exclusiva, qualifica, com seus insumos, a carreira do professor. Essa condição tem levado a situações complexas. O debate sobre a dimensão do ensinar, do aprender e dos processos e as estratégias de atuação dos docentes do Ensino Superior em sala de aula foram silenciados durante muito tempo no âmbito da universidade. As “cotas percentuais” de 57


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mestres e doutores, definidas para as instituições de Ensino Superior que queiram adquirir ou manter o status de universidade, provocaram uma corrida pelas titulações e indicaram ser esses percentuais a manifestação da qualidade, vinculando a progressão salarial aos índices de titulação. Os processos de avaliação externa, especialmente com o advento do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), representaram uma leve oscilação nesse movimento, à medida que inseriram alguns indicadores de qualidade dos processos de ensinar e aprender, em seus instrumentos. Dado o desafio de desenvolver uma avaliação complexa num sistema de Educação Superior tão diversificado como o brasileiro, o que se percebe é que continuam a preponderar indicadores quantitativos ligados a produtos, muito mais do que aos processos. Não se conseguiu fazer valer uma forma de profissionalização docente próxima da natureza primeira dessa profissão, ou seja, das habilidades de fazer os alunos aprenderem e gerirem seus processos de formação. A Lei de Diretrizes e Bases n.9.394/96, no seu artigo 52, preceitua “a preparação” do professor universitário em nível de pós-graduação stricto sensu sem, contudo, explicitar em que consiste esse conceito, nem a necessidade de formação pedagógica como requisito de ingresso na carreira (Cunha, 2005a; Morosini, 2001a, 2001b). Deve ser essa uma das razões para os cursos de pós-graduação stricto sensu se tornarem o principal lugar de formação dos docentes universitários, sem enfatizarem, nos seus projetos pedagógicos e currículos, a formação para a docência, privilegiando, exclusivamente, os saberes relativos à pesquisa (Ramalho, 2007; Cunha, 2005a). Zabalza (2004) assinala que não é de se estranhar a tendência dos professores universitários em construir a identidade profissional com base na produção científica e nas atividades produtivas que geram mérito acadêmico e que, consequentemente, trazem benefícios econômicos e profissionais. A importância da pesquisa científica para possibilitar o desenvolvimento econômico desejável é inconteste. Na opinião de Morosini (2001a), a inovação e a pesquisa agregam valor a uma economia baseada no conhecimento, e a Educação Superior desempenha um papel fundamental para esse desenvolvimento. Mas, tal valor, muitas vezes, significou uma burocratização da pesquisa e uma desvalorização da atividade docente que, mais do que nunca, requer uma abordagem múltipla e complexa do processo ensino-aprendizagem (Chamlian, 2003; Grígoli, 1990). Para minorar esse problema, a Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (Capes), em 2002, determinou a obrigatoriedade do estágio supervisionado na docência, como parte das atividades dos bolsistas de Mestrado e de Doutorado sob a sua tutela. Em que pesem as orientações legais para tal, investigações têm demonstrado (Forster et al., 2008) que há uma diluição intensa nos procedimentos que regem essa experiência, por parte das universidades e programas, nem sempre cumprindo os objetivos previstos para ela. Ficando a cargo dos Programas e dos orientadores, essas atividades continuam muito ligadas à pesquisa e, não raras vezes, o pós-graduando entra na sala de aula apenas para relatar o andamento de sua investigação. Em raras oportunidades, esse estágio os aproxima das condições objetivas da docência e seus desdobramentos na graduação. Em algumas universidades (USP, UNIVALE, UFCSPA, como exemplo) localizam-se processos de atenção à docência universitária, que se expressam mediante a introdução de uma política de qualificação permanente dos docentes da carreira do magistério superior e a criação da função de Assessoria Pedagógica (Chamlian, 2003; Pimenta, Anastasiou, 2002; Assis, 2001). Alguns cursos de Pós-Graduação lato sensu ou stricto sensu vêm incluindo, em seus currículos, a disciplina Didática do Ensino Superior ou Metodologia do Ensino Superior que objetiva capacitar docentes para o Magistério Superior. Essa iniciativa tem sido rara, localizada em alguns Programas, no país. Sequer há um peso para sua valorização nos quesitos da avaliação externa realizada pela Capes. Os cursos da área de saúde, mobilizados pelas reformas que os atingiram a partir dos movimentos do Ministério da Saúde, vêm percebendo a necessidade de investir na formação dos professores e estudantes para ampliar as competências relacionadas à disseminação do conhecimento e à educação em geral, tendo em vista a ênfase na saúde pública. Alguns deles já demonstram essa preocupação desde a graduação. Outros, por necessidade de redirecionar seus currículos frente às atuais Diretrizes Curriculares, têm considerado a importância desses saberes provocando os professores a desenvolverem competências até então pouco valorizadas, se cotejadas com os conhecimentos técnicos da área. Não obstante, ainda são incipientes as iniciativas e muito dependentes de contextos locais. 58

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RIBEIRO, M.L., CUNHA, M.I.

artigos

Nesse cenário de mudanças, os docentes universitários devem sentir-se estimulados a participarem de programas de educação inicial e continuada, de modo a construírem e ampliarem os saberes necessários à docência. Percebe-se, cada vez com mais clareza, que o domínio dos conhecimentos das especificidades científicas é importante, mas insuficiente para responder à complexidade dos problemas que emergem na prática cotidiana de sala de aula. Com o intuito de perceber se os professores e o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva trazem as inquietações relativas ao campo pedagógico para o centro do debate e da renovação educativa com vistas à qualidade acadêmica, realizamos um estudo sobre a trajetória de formação dos docentes universitários.

A formação dos professores universitários da área de saúde As investigações referentes à docência universitária no campo da saúde ainda são escassas. Alguns estudos, porém, têm feito avançar as reflexões na área. É o caso da pesquisa de Pedroso (2008) que, estudando docentes da área da Nutrição, confirmou que eles se reconhecem pela sua profissão de origem e se identificam pelo título de doutor outorgado pela instituição que lhes concedeu esse diploma sem, entretanto, valorizar uma formação para o exercício do magistério. Dentro dessa lógica, o poder e o prestígio social provêm do campo específico, e não do saber pedagógico da docência universitária. Num estudo realizado por Toassi (2008) com docentes de Odontologia, essa condição se reafirma, mesmo quando os docentes verbalizam que a formação científica não é suficiente para as tarefas de ensino que precisam realizar. A autora refere, porém, que a Odontologia, embora tenha se pautado num modelo de ensino técnico, tem buscado alternativas de mudanças em vários aspectos, inclusive no ensino, em atendimento à necessidade de rever a prática pedagógica dos seus professores. Essa afirmação tem guarida nos estudos realizados por Filkenstein, Lucarelli e Donatto (2008) e pela equipe de pesquisa que coordenam na Universidade de Buenos Aires, onde analisam, detalhadamente, os procedimentos de ensino nas cátedras de Odontologia Pediátrica e de Próteses do Curso de Odontologia. Também os estudos de Selbach (2007) e Rieguel (2008) se aliam a outros preocupados com as práticas pedagógicas nos Cursos de Enfermagem e exploram a cultura acadêmica desses espaços e as contradições vividas entre a formação pós-graduada dos docentes e os desafios que encontram nas suas trajetórias no magistério. Urtiaga (2001), analisando as representações dos estudantes de um Curso de Medicina, aponta a necessidade de melhor explorá-las junto aos docentes, provocando, nesses, a reflexão sobre sua formação e as práticas de ensinar, inclusive adentrando a questão dos valores éticos do profissional da saúde. Essas pesquisas têm sido um interessante espaço de produção de conhecimento, oferecendo à área importantes dados para a reflexão. Ainda há poucos indicadores do aproveitamento desses estudos, expressando a falta de uma política de valorização dos mesmos e de aproveitamento de seus resultados para efetivas mudanças.

O desvelamento das trajetórias no percurso da pesquisa Para alcançar os objetivos propostos, resolvemos cotejar os depoimentos escritos de 16 interlocutores: alunos, ex-alunos e professores dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu em Saúde Coletiva de uma universidade brasileira. Escolhemos, como abordagem de pesquisa, o estudo de caso de natureza qualitativa. Para operacionalizar o percurso da investigação, recorremos à análise documental e à entrevista semiestruturada, tanto de forma direta, como por meio do recurso on line, de modo a fazer uma triangulação entre os dados obtidos. A análise documental focou: os textos legais que tratam da formação do professor universitário no Brasil; os projetos pedagógicos dos Programas e Cursos, seus currículos e as revistas publicadas pelo Programa. Optamos pela análise de conteúdo para compreender, criticamente, o sentido das comunicações mediante o conteúdo manifesto ou latente (Bardin, 1977). Classificamos todo o material segundo categorias descritivas, que procuravam contemplar: as motivações para participar do Curso e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Programa de Pós-Graduação; a formação dos professores para a docência, e as aprendizagens por eles construídas no Programa.

Questões pedagógicas motivam os professores e alunos de programas de pósgraduação na área da saúde? Dentre as motivações dos participantes da pesquisa para buscarem o Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, destacamos três principais: o desejo de se iniciarem como docentes do Ensino Superior; a necessidade de ampliarem os conhecimentos em pesquisa, e a necessidade de aprofundarem e atualizarem os conhecimentos no campo da saúde coletiva: “O que mais me motivou a procurar o Programa foi o meu interesse pela educação uma vez que iniciei minha vida profissional nesta área, a necessidade de me atualizar e o desejo de iniciar na pesquisa. Passei muito tempo da minha vida profissional trabalhando na assistência à saúde em contato direto com o usuário”. (P2)

Esse depoimento é revelador da posição da maioria dos respondentes e coincide com a visão da professora de Didática. Essa percebe que eles demonstram interesse no Ensino Superior, na medida em que muitos já ensinam, sobretudo, em instituições da rede privada. Causa impacto compreender que uma das grandes motivações reveladas pelos participantes é ingressar na carreira docente. Ora, se a docência se constitui num campo de conhecimentos específicos, parece não haver sintonia entre formação de docentes e a proposta curricular do Programa, uma vez que a disciplina Didática conta com apenas trinta horas de aula. Como proporcionar, aos docentes universitários, a fundamentação teórica e prática aprofundada do conhecimento pedagógico, para que esses profissionais possam construir os saberes indispensáveis à profissão de professor? Certamente seria desejável um aprofundamento para o docente analisar, compreender e tomar decisões sobre: o que ensinar, por que ensinar, como ensinar, a quem ensinar, ou seja, sobre os aspectos relacionados com a epistemologia da prática, a organização didática, o planejamento das aulas, a definição de prioridades, o desenvolvimento das atividades em grupos, as condições e recursos, dentre outras. Montero (2001) refere que a Didática é um campo de intersecção de diversas disciplinas sociológicas, psicológicas e pedagógicas, o que justifica a sua importância para a formação dos professores universitários. Que razões levaram a esse enxugamento de carga horária? O que revela ele, em termos de Projeto de Curso? O aprofundamento dos conhecimentos na área da saúde se impõe na hora da escolha do Programa por grande parte dos sujeitos. Nas entrelinhas, podemos ler a necessidade da competência técnica, política e social para impulsionar a transformação da sociedade: “Aprofundar os meus conhecimentos, me disciplinar para estudar em prol de um objetivo definido, ampliar a minha qualificação para melhor agir em prol de contribuir para transformar a sociedade civil brasileira superando a ótica individualista e concorrencial em prol de uma que priorize o coletivo e a solidariedade”. (P3) “[...] as constantes queixas que chegavam sobre as condições de atendimento a esses usuários na atenção básica sob o controle do município”. (P5)

Nas vozes dos participantes, manifesta-se certa frustração, no que diz respeito ao trabalho exclusivo com a área assistencial, inclusive pelas condições objetivas desse espaço de trabalho. Gostariam de ver um maior investimento em políticas públicas de inclusão social e de formação profissional. Desejariam ser não apenas técnicos que repetem soluções já imaginadas por outros, mas profissionais com perfil crítico, reflexivo, humano e comprometido, a fim de programarem as mudanças necessárias na área da Saúde Pública, atendendo às demandas da sociedade: 60

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“Era o que sempre quis, frustrei-me com a área da assistência, sinto que posso colaborar para a formação de profissionais mais comprometidos com o SUS e implantação da UFRB na cidade onde resido”. (P1)

Percebe-se que os alunos-profissionais da saúde reagem a essa situação, indo ao encontro do que afirma March (2006, p.308), quando diz que “torna-se fundamental, em tempos de avanço mundial da mercantilização da educação, da saúde e dos mais diversos espaços da vida humana, resistir às diversas formas de ‘coisificação’ e “desumanização”. Para tal, Martins, Leon e Silva (2006, p.2) defendem que a formação em educação constitui-se numa significativa possibilidade: Especificamente em relação à formação de formadores, é preciso que se forneçam subsídios aos docentes para repensarem e modificarem sua Prática Educativa, considerando a necessidade de formar formadores capazes de produzir sujeitos críticos, reflexivos e questionadores, em resposta às necessidades sociais da Saúde.

A expectativa é de que a educação aliada à saúde possa melhor responder aos questionamentos desse campo, compreendendo as contradições dos espaços em que atuam. Outro fator importante na motivação dos alunos da Pós-Graduação em Saúde Coletiva revelase como a possibilidade de ampliar os saberes da pesquisa, a busca e crescimento como pesquisador (P7). Essa aspiração encontra guarida nas representações da identidade da pós-graduação como sendo um espaço de ensino para a pesquisa. A pesquisa, ao desenvolver as capacidades inventiva e criativa provocadas pelo conhecimento, pode beneficiar a docência, possibilitando que esse alcance um nível de alta qualidade. Entretanto, é sabido que não há uma relação linear entre os conhecimentos requeridos para a pesquisa e os que são necessários para o ensino. Mas nenhum dos respondentes fez alusão ao papel da pesquisa para qualificar o ensino; a preocupação foi com a atividade investigativa em si. Outro argumento que se evidenciou entre os participantes foi de natureza pragmática ligado à possibilidade de oportunidades no mundo do trabalho, “buscar qualificação, iniciar minha formação enquanto pesquisador e aumentar as perspectivas no mercado de trabalho” (P15). Essa posição se mescla, no entanto, com as razões mais valorativas, ligadas à dimensão política do fazer profissional. Na visão de um participante, alguns mestrandos revelam “o interesse em aprofundar um certo olhar crítico sobre a realidade, um desejo de entender melhor a estruturação do processo de saúde e doença das populações e as formas de enfrentar os problemas existentes. Ou seja, analisar criticamente os contextos, entendendoos como socialmente construídos, e colaborar para as formas de intervir sobre esse contexto, a partir das ferramentas adquiridas ao longo do curso [...] a vinculação com os problemas regionais e locais também pode ser vista nos interesses dos alunos. Algumas turmas são mais engajadas e motivadas na perspectiva de envolvimento social (crescimento científico associado ao desenvolvimento da qualidade de vida das pessoas com as quais interagimos no processo de construção dos projetos de pesquisa), outras menos; mas esse sentido sempre está presente”. (P16)

Essa manifestação contém uma postura crítica e de sentido pedagógico da formação. Mas não há muita clareza quanto à relação dessa posição com a preparação para a docência. É certo que, sendo um Programa de Saúde Coletiva, nem sempre a motivação dos estudantes que nele ingressam se dá pelas questões educativas. Entretanto, como a maioria já é professor universitário ou deseja ser, havia a expectativa de que fosse mais evidente o interesse com os temas pedagógicos.

Docência universitária: há necessidade de formação? Grande parcela dos docentes do Ensino Superior não foi formada para ser educadores, não dispõe dos saberes decorrentes da teoria pedagógica. Aprenderam a ensinar, ensinando, baseados no COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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princípio de que sua competência advém do domínio da área de conhecimento na qual atuam. Essa ideia é confirmada pelos sujeitos deste estudo: “Na universidade temos vários profissionais, mas certamente poucos se qualificaram ou se capacitaram para exercer a atividade docente. Isto é verdadeiro, sobretudo, para os docentes em saúde: entre esses profissionais, a docência foi construída, salvo raras exceções, nas salas de aula; no próprio exercício profissional”. (P5)

Diante dessa realidade, parecem reconhecer a necessidade de políticas de formação específica para o exercício da docência: “Acho que há necessidade de melhoria na formação do professor, podendo ser uma responsabilidade da IES no exercício da prática docente, promovendo cursos, atualizações, debates, avaliações[...]”. (P8)

Esse depoimento encontra guarida em experiências de algumas instituições que vêm, inclusive, criando a figura do Assessor Pedagógico voltado, sobretudo, para a capacitação docente em serviço, assessoramento e apoio à inovação da prática educativa. Todavia, ele manifesta, também, que os conhecimentos profissionais para a docência superior não requerem uma formação inicial consistente. Certamente essa posição decorre da condição cultural do magistério na universidade, onde se naturalizou a ideia de quem sabe fazer, sabe ensinar. De qualquer forma, já representa um avanço o reconhecimento da importância da formação continuada, que se dá no espaço de trabalho, e que essa é uma responsabilidade tanto dos professores como das instituições e do poder público. Na visão dos respondentes, trata-se de uma formação que deveria extrapolar o domínio dos conhecimentos das especificidades científicas de cada profissional, de modo a contemplar: “uma preparação sobre os aspectos da Didática em sala de aula, utilização de diferentes instrumentos de educação. Precisa-se de uma discussão aprofundada sobre o que é educação, sobre papel do docente; reflexões sobre avaliação, incluindo, ainda, aspectos formais como planejamento etc”. (P8)

Os participantes verbalizaram a importância dos conhecimentos sobre as Ciências da Educação e os processos de humanização dos sujeitos. Infelizmente, as políticas públicas e a universidade ainda não perceberam totalmente essa dimensão. Roldão (2007, p.97) vem denunciando esse fato e enfatiza que o conhecimento profissional do professor, o que o distingue das outras profissões, tem sido o “elo mais fraco” na cadeia da formação. Desse modo, importa investir na formação profissional enquanto “alavanca capaz de reverter o descrédito, o desânimo, o escasso reconhecimento”. Nos depoimentos, foi evidenciado que “os cursos de mestrado deveriam ter essa OBRIGAÇÃO, mas não a contemplam! Acho que TODAS as graduações, independente de serem licenciaturas ou não, precisam inserir em suas matrizes curriculares discussões sobre educação, principalmente, na área de saúde. Afinal, como fazer promoção em saúde sem discutir o processo de ensino-aprendizado? O mestrado deve cumprir o papel de formar melhor futuros professores/educadores. Para isso precisa redimensionar as disciplinas ofertadas, aliás, cada professor de mestrado precisaria fazer uma disciplina que discutisse educação e avaliação para rever sua própria postura, ou para valorizar quem já faz diferente”. (P8)

Depoimentos como esse acendem uma centelha de esperança. É estimulante perceber que muitos dos envolvidos têm a percepção da necessidade de construir os saberes pedagógicos ou de aperfeiçoar os que já possuem. Até porque os desafios a que está exposta a Educação Superior não serão adequadamente enfrentados sem a ampliação dos saberes profissionais docentes. 62

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Que aprendizagens são significativas nos programas de pósgraduação em saúde? Nos depoimentos dos sujeitos pesquisados, ficam evidentes as aprendizagens ampliadas e consolidadas em metodologia da pesquisa. Chama a atenção certa ênfase na pesquisa qualitativa, e essa condição pode estar representando uma mudança paradigmática, para alguns. Um deles declarou que aprendeu, sobretudo, “a fazer pesquisa e preparar artigos” (P5). Desde quando a ciência goza de status hegemônico na contemporaneidade, constituindo-se “a força produtiva mais importante da história” (Minayo, 2006, p.48), as pessoas expressam o desejo de fazer parte desse mundo. Mesmo reconhecendo a importância da pesquisa quantitativa para a análise de determinados tipos de fenômenos, Minayo (2006) propõe que a hegemonia desse método deixe à sombra os significados, como, também, os sentidos que os fatos e as coisas representam para os sujeitos pesquisados. Apesar dos profícuos diálogos entre os defensores dos diversos paradigmas que orientam as pesquisas, parece ainda forte a oposição entre os métodos quantitativos e os métodos qualitativos no imaginário dos docentes. Um participante queixou-se da falta de objetividade do nosso instrumento de pesquisa, deixando, nas entrelinhas, a ideia de que existe apenas uma verdade sobre um determinado fenômeno e, consequentemente, não se pode deixar o instrumento aberto a outras perspectivas possíveis: “Não gostei de preencher este questionário, pois me pareceu pouco objetivo e lança o trabalho da pesquisadora sobre os professores, que já são sobrecarregados de atividades”. (P11)

De fato, parece ter procedência a queixa do depoente, quanto à sobrecarga dos professores. Mas pode ser questionada a sua posição sobre a pretensa objetividade dos dados. A compreensão das precárias condições de trabalho encontrou ressonância em outro integrante da pesquisa, o qual afirmou que “o processo de construção e consolidação de um programa de pós-graduação em um sistema de ensino superior nos últimos anos, intensificou assustadoramente o trabalho, ao mesmo tempo que o precarizou” (P5). Autores como Day (2001) referem que a imposição externa do currículo, as inovações administrativas e os sistemas externos de controle e de avaliação têm conduzido à intensificação do trabalho dos professores. Na manifestação de nosso respondente, é possível localizar uma posição epistemológica que, certamente, incidirá sobre sua docência. Essas são as questões que ligam ensino e pesquisa e que mereceriam ser discutidas e aprofundadas no âmbito da pós-graduação. Para outros participantes da pesquisa, essa necessidade é clara: “A formação do professor da educação superior deveria contemplar disciplinas como Didática, Psicologia da Educação, que oferecessem subsídios para o docente em sua relação com os alunos, na elaboração de currículos, planos de curso, estratégias e técnicas que transformem sua prática em sala de aula na direção dos novos paradigmas da educação”. (P2)

Mas essa parece ser, ainda, uma posição minoritária, pois os respondentes acreditam que a maior contribuição do curso “foi o exercício da docência e para atividade de pesquisa” (P7). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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São expressões e constatações como essa que instigam os pesquisadores da Educação Superior. Parece que há muito o que fazer a partir da análise dessas concepções e no aprofundamento das relações entre ensino e pesquisa. García (1999) refere que, dentre as funções do professor universitário, destacam-se, historicamente, a docência e a investigação. No entanto, o prestígio profissional é decorrente, de modo exclusivo, das atividades de investigação e de produção científica, de modo que é compreensível essa motivação. Ainda em relação ao ensino, os participantes avaliaram a fragilidade da formação por ter características teóricas e deixar de preencher as demandas dos estudantes. García (1999) defende que o caráter excessivamente teórico de um curso de formação traz como consequência a escassa possibilidade de ter impacto na prática dos professores. Roldão (2007) vem complementar essa ideia quando afirma que não basta ao professor conhecer as teorias pedagógico-didáticas; necessário se faz que transforme esse corpo teórico numa ação transformadora, o que parece não ter acontecido com os envolvidos nesta pesquisa: “acho que o mestrado não nos prepara para o magistério superior, fica muito a desejar” (P8); “O PPG em Saúde Coletiva deixou a desejar na formação docente. Tive que procurar disciplinas de outros PPGs para complementar minha formação” (P14). Desde que o Programa em Saúde Coletiva “deixou a desejar na formação docente”, fica evidente que os egressos se utilizam dos saberes experienciais, como afirma Tardif (2002), para realizar as suas ações na sala de aula. O depoimento em seguida vem corroborar as ideias de Cunha (2005b) ao defender a sala de aula como espaço que possibilita não apenas a docência, mas a aprendizagem, a troca, a descoberta e a experimentação. Ali, não somente o estudante, mas, também, o professor aprende, aprende a tornar-se professor: “Aprendi ou tenho aprendido o exercício da docência na prática cotidiana (o que considero normal). Contudo sinto falta de alguns elementos teóricos que poderiam me ajudar na prática. Acredito que um mestrado em Saúde Coletiva precisa tratar a educação com muita ênfase. Também acredito que a universidade tem sido palco de grande dificuldade de mudança ou de práticas tradicionais e autoritárias, pois muitos professores não têm uma formação específica. Afinal, quem forma o professor de ensino superior para ensinar?”. (P8)

Apesar da fragilidade em relação ao preparo do docente para o Ensino Superior, é evidente que o Curso ampliou os conhecimentos gerais e específicos e estendeu a capacidade crítica dos estudantes, de modo a contribuir para a sua formação pessoal e profissional: “O Curso me deu mais segurança para discutir os conteúdos estudados, melhorou a minha visão crítica sobre a situação de saúde e da sociedade de forma geral, aguçou o meu interesse pela pesquisa” (P2). Como afirma Gadotti (1978, p.10), parece ter havido “o papel de inquietar, de incomodar, de perturbar”, de ativar conflitos para a sua superação. Poderemos tomá-los como estimulador de novos passos na formação desses professores?

Tecendo considerações finais: o que suscitou o estudo? Na avaliação dos aspectos que acabamos de destacar, chegamos a algumas conclusões. Em relação às motivações que conduziram os participantes do estudo ao ingresso no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, ficou evidente o desejo de se iniciarem como docentes do Ensino Superior, de ampliarem os conhecimentos em pesquisa e de aprofundarem e atualizarem os conhecimentos no campo da Saúde Coletiva, redundando no desenvolvimento da competência técnica, política e social para impulsionar a transformação da sociedade. A educação aliada à saúde pode responder aos questionamentos desse campo, pensam os estudantes e professores. No entanto, a concretização da expectativa de se constituírem docentes é expressa de forma vaga, na medida em que a reivindicação dos saberes pedagógicos ainda é distante da maioria. Mas, fica implícita a busca de uma certificação exigida para o recrutamento de 64

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docentes pelas instituições de Ensino Superior. Para nossos interlocutores, grande parte dos professores universitários da área de saúde ensina com base na experiência, o que faz com que eles reconheçam a necessidade de uma formação que extrapole o domínio dos conhecimentos das especificidades científicas de cada profissional. Quanto às aprendizagens construídas no Programa, percebe-se um significativo consenso entre os sujeitos do estudo, no que concerne às aprendizagens em metodologia da pesquisa. Enquanto a maioria dos participantes considera importantes os conhecimentos sobre as Ciências da Educação e os processos de humanização dos sujeitos, as políticas públicas de pós-graduação, os Programas e as Universidades, responsáveis por essa formação, parecem ainda não perceberem com a mesma intensidade essa demanda. Apesar dessa fragilidade em relação ao preparo do docente para o Ensino Superior, foi evidente que o Programa ampliou os conhecimentos gerais e específicos e a capacidade crítica dos estudantes, de modo a contribuir para a sua formação pessoal e profissional. Entretanto, os resultados favorecem o questionamento sobre o lugar da formação dos professores do Ensino Superior na Universidade e a interpelação dos cursos de Pós-Graduação stricto sensu, em particular. Eles se constituem espaço privilegiado para a pesquisa e para o aprofundamento dos saberes específicos do campo da saúde, mas a consolidação dos saberes da prática educativa fica em segundo plano. Mantém-se a compreensão de que é no espaço do trabalho, mediante a experiência do docente no cotidiano da sala de aula, que se dá a aprendizagem da docência. Essa, sem reflexões sistematizadas com o auxílio da teoria, tende a reproduzir os modelos históricos, que cada vez mais se distanciam da realidade atual dos alunos. Talvez esse seja o desafio que ainda é obscuro na academia. O desafio que se impõe aos Programas, nessa conjuntura, é quebrar o modelo que prestigia unicamente a competência em pesquisa no seu campo específico de formação, e incluir as preocupações com a dimensão pedagógica de seu fazer, especialmente a docência que acontece “nas salas de aula e no próprio exercício profissional” (P5). Enfim, é aprofundar, de forma mais coerente e consequente, a relação entre ensino e pesquisa.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ASSIS, M.A. Formação pedagógica numa instituição de ensino superior: impasses e desafios. Governador Valadares. 2001. Dissertação (Mestrado) - Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba. 2001. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BEHRENS, M. O paradigma emergente e a prática pedagógica. Curitiba: Champgnat, 2003. BOLZAN, D. Pedagogia universitária e processos formativos: a construção do conhecimento pedagógico compartilhado. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 14., 2008, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PUCRS, 2008. p.102-20. CAPRA, F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996. CHAMLIAN, H. Docência na universidade: professores inovadores na USP. Cad. Pesqui., n.118, p.41-64, 2003.

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RIBEIRO, M.L., CUNHA, M.I. Trayectorias de la docencia universitaria en un programa de pós-graduación en salud colectiva. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.5568,jan./mar. 2010. El intúito de este estudio ha sido el de analizar las representaciones de docencia y formación pedagógica presente en el Proyecto Político-Pedagógico de un Curso de Magisterio en Salud Colectiva. Basado en la perspectiva cualitativa de investigación, incluyó a alumnos, ex-alumnos y profesores, utilizando el análisis documental y la entrevista semiestructurada como instrumentos. Contribuciones de Bourdieu, Sousa Santos, Anastasiou, Pimenta, Cunha y Lucarelli dieron el principal sustento teórico para la interpretación de los datos mediante el análisis de contenido. Se concluye que los participantes, aunque teniendo a la docencia como expectativa de acción profesional, poco encuentran esta dimensión en las propuestas curriculares, habiendo discrepancia puede indicar fragilidad del campo científico de la educación y de la pedagogía universitaria en tal contexto. Las conclusiones alertan para la cuestión de la calidad de la educación superior en Brasil, los desafíos impuestos la docencia y los equívocos provocados por la línea directa entre investigación y enseñanza.

Palabras clave: Docencia universitaria. Educación superior. Formación de profesores. Pedagogía universitaria. Salud colectiva. Recebido em 13/04/2009. Aprovado em 02/08/2009.

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artigos

Práticas de ensino-aprendizagem com base em cenários reais* Suzely Adas Saliba Moimaz1 Nemre Adas Saliba2 Lívia Guimarães Zina3 Orlando Saliba4 Cléa Adas Saliba Garbin5

Moimaz, S.A.S. et al. Teaching-learning practices based on real scenarios. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.69-79, jan./mar. 2010.

The teaching-research-extension process carried out with immersion of subjects in real scenarios enables university-community integration, thereby increasing social insertion. The aim of this study was to present the experience from a project conducted in five Brazilian municipalities, with participation of teachers and postgraduate and undergraduate students, in partnership with municipal authorities and healthcare workers as a scenario for teaching-research within the Brazilian health system. Workshops and training courses were conducted among healthcare teams, managers and health counselors, and technical visits were made to the municipalities for situational assessments, activity supervision, user satisfaction evaluations and formation of popular leaderships. Improvements in service organization and stimulation of strengthened links between users and service providers were observed. This experience served as a learning and research laboratory: science was conducted from in situ experience of health system realities, thereby contributing towards better humanitarian professional training based on real scenarios.

Keywords: National Health System. Teaching. Academies and institutes. Health manpower. Health service research.

O processo ensino-pesquisa-extensão realizado com a imersão dos sujeitos em cenários reais possibilita a integração universidade-comunidade, ampliando a inserção social. O objetivo deste trabalho foi apresentar a experiência de um projeto conduzido em cinco municípios brasileiros, com a participação de docentes, pósgraduandos e acadêmicos, em parceria com prefeituras municipais e trabalhadores de saúde como cenário de ensino-pesquisa no SUS. Foram realizadas oficinas e cursos de capacitação com as equipes de saúde, gestores e conselheiros de saúde, visitas técnicas aos municípios para avaliação situacional e supervisão das atividades, avaliação da satisfação dos usuários e formação de lideranças populares. Observou-se a melhoria na organização dos serviços e estímulo ao fortalecimento do vínculo entre os usuários e prestadores de serviços. Essa experiência serviu como laboratório de aprendizagem e pesquisa, fazendo-se ciência a partir da vivência in loco da realidade do SUS e contribuindo para uma formação professional mais humanitária baseada em cenários reais.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Ensino. Academias e Institutos. Recursos humanos em saúde. Pesquisa sobre serviços de saúde.

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*Texto inédito, financiado pela Fapesp (Proc. 03/07175-9). Este trabalho recebeu o Prêmio Mário Covas, categoria Gestão de Recursos Humanos, pelo Governo do Estado de São Paulo, em 2007. Não apresenta conflitos de interesse. Projeto aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Odontologia de Araçatuba – Unesp (Proc. 2005-02187). 1 Departamento de Odontologia Infantil e Social, Faculdade de Odontologia de Araçatuba, Universidade Estadual Paulista (Unesp). Rua José Bonifácio, 1193, Vila Mendonça, Araçatuba, SP, Brasil. 16.015-050. sasaliba@ foa.unesp.br 2,3,4,5 Departamento de Odontologia Infantil e Social, Faculdade de Odontologia de Araçatuba, Unesp.

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Práticas de ensino-aprendizagem com base em cenários reais

Introdução O modelo de atenção à saúde centrado na doença não conseguiu responder às necessidades de saúde das populações. O movimento de reforma sanitária lutou para que não fossem mais importados modelos de atenção à saúde, e sugeriu uma ampla reforma na estrutura deste setor (González, 2001). No Brasil, a partir da versão mais recente da Constituição Federal de 1988, ficou determinada a criação de um novo sistema de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como base a descentralização e fortalecimento do poder municipal, além do estabelecimento da participação da sociedade organizada na administração do setor saúde e o controle social, visando a formulação, implantação, controle e avaliação das políticas de saúde (Escorel et al., 2007). Em 1990, foram publicadas as leis 8080/90 (Brasil, 1990a) e 8142/90 (Brasil, 1990b) que institucionalizaram e regulamentaram a participação popular e o controle social na gestão da saúde, tendo como instâncias legalmente instituídas as Conferências e os Conselhos de Saúde. Estes são descritos como órgãos permanentes, deliberativos e normativos do Sistema Único de Saúde no âmbito municipal, que tem por competência formular estratégias e controlar a execução da política de saúde do município, inclusive nos seus aspectos econômicos e financeiros (Brasil, 2006). As diretrizes do novo sistema de saúde serviram de base para estruturar as mudanças necessárias no setor saúde, favorecendo a descentralização das ações, de forma que cada município passasse a gerir as ações em saúde conforme as necessidades locais. Visando a consolidação do sistema de saúde, o Ministério da Saúde propôs aos municípios, em 1994, o Programa Saúde da Família (PSF) – posteriormente denominado como Estratégia Saúde da Família (ESF) - com o objetivo de reorganizar a prática de cuidado à saúde em novas bases (Escorel et al., 2007). Uma das demandas da ESF é o retorno da inclusão da família como partícipe do processo saúde-doença e em cujo espaço busca-se o desenvolvimento de ações preventivas, curativas e de reabilitação (Oliveira, Spiri, 2006). Segundo as diretrizes dessa estratégia, a equipe de saúde da família deve estar preparada: para o conhecimento da realidade das famílias pelas quais é responsável; para a identificação dos problemas de saúde mais prevalentes e das situações de risco às quais a população está exposta; para a elaboração de um plano, com a participação da comunidade, que se destine ao enfrentamento dos determinantes do processo saúde-doença; para a prestação de assistência integral e para o desenvolvimento de ações educativas. A saúde bucal foi introduzida na ESF a partir do ano 2000, sendo que, em muitos municípios brasileiros, ainda está em fase de implantação (Souza, Roncalli, 2007). Nesse mesmo momento, o Ministério da Educação deliberou sobre as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação da área de saúde, nas quais ficou evidente a preocupação com o estabelecimento de uma articulação entre a Educação Superior e a saúde, objetivando a formação de profissionais com ênfase na promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do SUS. Estes movimentos indutores de mudanças, calcados no planejamento estratégico em saúde, passaram a ocupar um espaço importante nos setores saúde e educação, possibilitando o diálogo que permite a construção conjunta de mudanças requeridas pelo quadro epidemiológico e pelas necessidades de reordenação da formação profissional em saúde (Matos, Tomita, 2004). Assim, com o intuito de realizar a análise situacional das condições de gerenciamento, planejamento e execução de ações de saúde municipais dentro da ESF, foi realizado um projetopiloto pela Faculdade de Odontologia de Araçatuba – Unesp, em um município de pequeno porte da região Noroeste do Estado de São Paulo (Saliba, Moimaz, Garbin, 2007). Foram levantados dados quantitativos e qualitativos a respeito do acesso da população aos serviços de saúde, das características socioeconômicas e culturais dos usuários, do perfil do serviço de saúde local, e um levantamento epidemiológico das condições de saúde bucal da população rural do município. A partir deste estudo foi possível verificar a falta de informações por parte dos usuários sobre o SUS, sobre o direito à saúde e a Estratégia Saúde da Família, bem como a necessidade de conscientização da população sobre a importância do estabelecimento do controle social como uma das estratégias para o fortalecimento do sistema local de saúde. Observou-se também que existiam dificuldades dos municípios em capacitar os recursos humanos para elaborarem ações de saúde, apesar de muitos servidores já terem participado dos Polos de Educação Permanente em Saúde, de responsabilidade do governo estadual. Os resultados 70

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encontrados destacaram a necessidade de adequação do município aos objetivos e princípios básicos da ESF. Observou-se como a instituição de ensino poderia ser útil ao contribuir para a melhoria da gestão, para a capacitação e atualização dos recursos humanos e gestores da saúde, ao atuar de duas formas: 1) na prestação de serviços aos municípios e 2) na inserção do aluno de graduação e pós-graduação na realidade local por meio de sua participação em projetos na comunidade. Além disso, também o serviço de saúde poderia ser útil à academia, como contrapartida às discussões sobre a formação de recursos humanos, apresentando as qualidades, as deficiências e as necessidades in loco que devem ser levadas em consideração no estabelecimento de uma formação humanística e eficiente, e ao fornecer subsídios para a elaboração de projetos de reestruturação de cursos na área da saúde, como no caso da Odontologia. Assim, é de extrema importância a realização de parcerias entre Universidade e municípios, a fim de fortalecer o sistema de saúde local e também contribuir para a formação acadêmica de profissionais capacitados a atuarem dentro dos princípios do sistema de saúde (Kim, Ross, 2008; Garbin, Saliba, Moimaz, 2006). O processo ensino-pesquisa-extensão realizado com a imersão dos sujeitos em cenários reais possibilita a integração universidade-comunidade, ampliando a inserção social. Os resultados obtidos com o projeto-piloto permitiram verificar que havia necessidade de se estender o estudo para os municípios adjacentes, na tentativa de subsidiar o planejamento de ações concretas para melhoria das condições de saúde da população da microrregião. Os municípios apresentavam dificuldades para a organização de seus serviços de saúde, seja por falta de recursos financeiros ou recursos humanos tecnicamente capacitados, seja pela participação pouco efetiva da população no processo decisório das ações de saúde e, até mesmo, pela falta de colaboração dessa mesma população às atividades desenvolvidas devido ao desconhecimento sobre o seu sistema de saúde. Assim, foi proposta a realização de um amplo projeto envolvendo cinco municípios localizados na região noroeste do estado São Paulo, que apresentavam baixo índice de desenvolvimento humano e população estimada entre dois a seis mil habitantes. O objetivo deste trabalho foi apresentar a experiência deste projeto acadêmico como cenário de ensino-pesquisa no SUS.

Métodos Este estudo de intervenção foi desenvolvido durante 2003-2006, com a participação de: docentes, alunos de pós-graduação, acadêmicos e técnicos da área da saúde, lideranças das comunidades, prefeitos, secretários municipais de saúde, secretários municipais de educação, membros dos Conselhos Municipais de Saúde e demais servidores do setor saúde dos municípios envolvidos. O projeto foi financiado pela agência de fomento paulista Fapesp. Foram objetivos deste projeto: 1 Realizar entrevistas para verificar a satisfação da população residente na área urbana como usuária do sistema de saúde, seu conhecimento a respeito da ESF e sua participação no processo decisório das políticas públicas de saúde, com o objetivo de obter dados necessários para a elaboração de diagnóstico situacional (social, ocupacional, econômico e educacional). 2 Realizar um trabalho educativo, domiciliar, com intuito de transferir conhecimentos e conscientizar os membros das famílias moradoras dos municípios participantes a respeito da ESF e da dinâmica de funcionamento do serviço de saúde local, bem como do direito à participação no processo decisório das políticas públicas de saúde (Conselho Municipal de Saúde, Conferência Municipal de Saúde). 3 Capacitar os membros das equipes da ESF para: • atuarem nas áreas de abrangência das unidades de atendimento; • construírem uma rede de informação situacional (social, ocupacional, econômica, educacional) destinada a identificar as necessidades reais da população residente nos municípios e sua interação com as condições de saúde bucal. 4 Avaliar os modelos de atenção à saúde implantados nos municípios, de forma que os mesmos atuem no processo de reorganização de seus modelos de atenção.

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5 Capacitar os cirurgiões-dentistas das equipes de saúde para realizarem estudos epidemiológicos das condições de saúde bucal, buscando a construção de um Sistema de Informação em Saúde Bucal da população dos municípios em questão, para planejamento e avaliação das ações do setor saúde. 6 Capacitar os membros dos Conselhos Municipais de Saúde para atuarem de forma mais eficaz e efetiva na construção do sistema municipal de saúde. Foram contemplados cinco municípios de pequeno porte da Noroeste Paulista. A equipe executora responsável pelo projeto, representada pela universidade, foi dividida em quatro subáreas principais: 1 controle social, por meio do trabalho junto aos Conselhos Municipais de Saúde, 2 avaliação do serviço por meio da ótica do usuário, 3 gestão da saúde, e 4 Estratégia Saúde da Família - permitindo uma melhor organização das atividades e execução da agenda. Inicialmente, foi feito contato com autoridades locais e com as equipes dos Programas de Saúde por meio de reuniões e visitas aos municípios envolvidos, buscando formalizar as parcerias para execução do projeto. Foram realizadas diversas visitas técnicas de membros da equipe proponente às equipes da ESF para o acompanhamento da rotina diária do serviço e realização de um relatório preliminar que objetivou conhecer as realidades de cada município. Para a coleta dos dados, análise preliminar da situação e avaliação das mudanças ocorridas após as medidas de intervenção, foram realizadas: pesquisa observacional - utilizando-se diários de campo para anotação da percepção do pesquisador quanto à rotina do serviço - e atividades desenvolvidas; entrevistas semiestruturadas com as equipes da ESF e gestores da saúde para avaliação da organização do serviço, e participação na rotina de atendimento. Também foram realizadas análises documentais, por meio da avaliação crítica dos Planos Municipais de Saúde e dados referentes à gestão. Uma amostra da população foi entrevistada em domicílio e questionada quanto à sua participação como usuária dos serviços de saúde municipais. Para isso, foi realizado o cálculo da amostra baseado no número total de habitantes do município, considerando uma margem de erro igual a 10%, sendo suficiente para que se fizesse inferência estatística dos dados. Também os conselheiros municipais de saúde foram entrevistados sobre a sua participação e as ações realizadas nos Conselhos Municipais de Saúde. Os dados foram analisados quantiqualitativamente e apresentados em publicações prévias (Santos et al., 2008; Saliba, 2007). Neste artigo foram descritos os principais resultados encontrados com o foco na integração ensino-pesquisa. Este projeto foi aprovado pelo Cômite de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Odontologia de Araçatuba – Unesp, seguindo os ditames éticos da Declaração de Helsinque. Foi obtido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de cada participante.

Resultados e discussão A partir das atividades e intervenções executadas (Quadro 1), diversos resultados foram encontrados. A gestão foi dinamizada, o usuário tornou-se mais consciente de seus deveres e direitos, a equipe de saúde foi capacitada e os Conselhos Municipais passaram por reformulações. A integração do município com a Universidade se deu por meio da assessoria da academia na resolução dos nós críticos vivenciados pelos serviços locais de saúde, e pela adequação da formação universitária por meio da contribuição do serviço de saúde.

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Atividades e intervenções

Sujeitos envolvidos

Análise observacional da realização das atividades nas unidades de atendimento Análise dos Planos Municipais de Saúde e gestão Readequação dos Planos Municipais de Saúde

Gestores da saúde, equipes de saúde e usuários

Oficinas com as equipes de saúde geral e saúde bucal do PSF para análise das atividades desenvolvidas nas unidades de atendimento Elaboração do material didático para capacitação dos membros do PSF Curso de capacitação dos membros das equipes de saúde geral e saúde bucal do PSF

Equipes de saúde

Elaboração do manual para Conselheiros Municipais de Saúde Curso de capacitação dos Conselheiros Municipais de Saúde

Conselhos Municipais de Saúde

Entrevistas com os usuários dos serviços de saúde para verificar o seu grau de satisfação em relação aos serviços Elaboração do manual dos usuários do Sistema Único de Saúde. Entrega do manual em todos os domicílios e realização de trabalho educativo, com a participação dos agentes comunitários de saúde, após capacitação. Avaliação do conhecimento e satisfação dos usuários após entrega do manual

Usuários de Saúde

Oficinas para avaliação global do projeto: equipe proponente, participantes dos municípios, usuários do Sistema de Saúde e gestores Reunião com os gestores e administradores municipais para avaliação do projeto e divulgação dos resultados obtidos para a população atendida Planejamento das ações futuras a serem desenvolvidas pelos serviços de saúde de cada município

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artigos

Quadro 1. Atividades e intervenções desenvolvidas no projeto. Brasil, 2003-2006.

A participação dos acadêmicos se deu por meio de estágio de observação e participação nas atividades de campo. Foram discutidos intensivamente os aspectos relacionados à dinâmica do serviço de saúde, princípios e doutrina do SUS, permitindo ao aluno trabalhar os conceitos teóricos na prática. A partir de subprojetos inseridos no projeto principal, iniciações científicas foram desenvolvidas e obtiveram financiamento de agências de fomento. Este projeto contribuiu com a ampliação dos espaços de intervenção em saúde para a intensificação de canais de integração entre os pares envolvidos – universidade, serviços e comunidade - suportados pelos princípios doutrinários e organizativos do sistema de saúde. A participação da Universidade como incentivadora e promotora dessas ações mostra o papel social da academia como construtora da realidade à qual pertence (Muñoz, Cabieses, 2008). Seguem abaixo os resultados referentes às quatro subáreas principais:

Gestão da saúde Por meio da análise documental, avaliação das atividades de rotina dos serviços e entrevistas com funcionários e gestores, foi verificada a inadequação dos planos municipais de saúde diante dos regulamentos oficiais; problemas no referenciamento dos pacientes para ações de média e alta complexidade, no desenvolvimento de ações intersetoriais, nas estratégias de programação (diagnóstico epidemiológico e avaliação das ações), na infraestrutura e na falta de estabelecimento de objetivos exequíveis aos serviços de saúde. Além disso, muitas unidades de atendimento estavam desorganizadas, sem uma lógica de priorização de atendimento dos pacientes. Muitas delas apresentaram problemas na infraestrutura, como falta de sala de espera e/ou consultório para atendimento ou ambientes pequenos e inapropriados, situação esta observada em outros locais do país (Souza, Roncalli, 2007). Após as oficinas com gestores e equipes de saúde, utilizandose dos mesmos métodos de análise, verificou-se a adequação dos serviços de saúde por meio da reorganização da demanda e a construção e atualização dos mapas territoriais das áreas de abrangência da ESF.

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Práticas de ensino-aprendizagem com base em cenários reais

Uma administração eficaz e interativa dos serviços de saúde, que considere as habilidades individuais de cada servidor, as especificades do local e as expectativas e necessidades dos usuários, leva ao sucesso no planejamento e execução de ações nos serviços de saúde. Diante das transformações ocorridas nos modelos assistenciais em saúde, em nível nacional e internacional, temse discutido a necessidade de se criarem novas definições das responsabilidades dos órgãos gestores federais, estaduais e municipais e da população local, a busca por soluções mais adequadas à resolução dos problemas de acesso e de efetividade da atenção prestada, e de maior impacto sobre os níveis de saúde da população. A divulgação de projetos na área de saúde pública que discutam esses aspectos é de extrema importância, pois permite compartilhar experiências de sucesso e adaptar os métodos utilizados em diferentes ambientes e contextos, possibilitando o avanço epidemiológico e a promoção de ações efetivas em serviços de saúde (Scochi et al., 2008).

Capacitação dos membros da Estratégia Saúde da Família Foi realizada uma oficina com todos os membros das equipes da ESF, procedendo-se à análise documental dos relatórios mensais de produtividade e dos planos de trabalho. Esta fase teve como objetivo avaliar o plano de trabalho e verificar a sua rotina e o impacto destas ações sobre os indicadores de saúde da população. Foi preparado um curso de capacitação dos membros das equipes da ESF com atividades de dispersão e concentração, atividades teóricas e práticas, incluindo: temas relativos à política de saúde, mudança de paradigma no modelo de atenção à saúde, a família como núcleo, organização dos serviços de saúde, humanização do atendimento, sistemas de informação e atenção ao usuário do serviço de saúde. Os membros das equipes da ESF participaram de oficinas para análise crítica do modelo de atenção à saúde vigente em cada município e formulação de novas propostas de ações. Os membros das equipes de Saúde Bucal, em especial, participaram de um curso teórico para sensibilizá-los sobre a importância do planejamento das ações de saúde, com base em dados da população adscrita, além de serem capacitados para elaborarem estudos epidemiológicos das principais doenças que acometem a cavidade bucal. Foram realizadas reuniões com as equipes para análise e avaliação dos dados e elaboração de um documento oficial apresentado aos gestores e administradores municipais com o intuito de avaliar os resultados encontrados e discutir novas estratégias de ação em saúde bucal, buscando um acompanhamento continuado e permanente das atividades implantadas. Os alunos de pós-graduação, responsáveis pelas atividades ministradas nos cursos juntamente com os docentes, tiveram a oportunidade de aperfeiçoar suas potencialidades como futuros professores. A ESF constitui-se de equipes multiprofissionais que devem atuar em uma perspectiva interdisciplinar. Estudos têm mostrado como os membros da equipe articulam suas práticas e saberes no enfrentamento de cada situação identificada para proporem soluções conjuntamente e intervir de maneira adequada (Oliveira, Spiri, 2006). A integração entre as equipes deve ser permanentemente estimulada, e a capacitação e atualização constantes permitem a valorização e aperfeiçoamento do grupo. O contexto da reforma do setor saúde e as transformações vertiginosas na área da saúde tornam a capacitação de recursos humanos em saúde um desafio mediante a reconhecida transitoriedade do saber e das marcantes mudanças no mundo do trabalho em saúde. Em 1996, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; todavia, sua implementação implica grande desafio na direção de formar profissionais da saúde com competência técnica e política, com compromisso com os princípios da Reforma Sanitária Brasileira e do SUS. As novas diretrizes curriculares na área da saúde explicitam a necessidade de uma metodologia de ensino-aprendizagem que favoreça a integração docente-assistencial, a formação crítica e reflexiva, a responsabilidade compartilhada pelo professor e estudante e a integração entre as instituições de Ensino Superior e os serviços de saúde. A integração docente-assistencial pode ser compreendida como um caminho de aproximação da universidade com os serviços de saúde, sendo esses, nos anos 80 e começo dos anos 90, restritos aos hospitais de ensino; e a partir da 10º Conferência Nacional de Saúde revela-se a necessidade de ampliação do campo de ensino englobando todas as unidades do SUS. Mais tarde, em 2005, o PRÓ-SAÚDE retoma essa modalidade, explicitando-a como um vetor importante durante todo o processo de ensino74

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aprendizagem, com integração da orientação teórica com a prática assistencial e com boa articulação entre as atividades teórico-assistenciais em nível individual e coletivo. Assim, a Constituição Nacional atribuiu ao sistema de saúde a responsabilidade de ordenar a formação profissional na área da saúde. A portaria 198/2004 instituiu a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) como estratégia do SUS para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor da saúde (Brasil, 2004). Neste contexto, a condução locorregional da PNEPS deu-se por meio de um colegiado de gestão configurado como Polo de Educação Permanente em Saúde para o SUS, que funciona como o espaço de articulação de uma ou mais entidades voltado para a formação e educação permanente de recursos humanos em saúde. Essas entidades são vinculadas às universidades ou instituições de Ensino Superior e se integram com as secretarias estaduais e municipais de saúde para implementarem programas de capacitação destinados aos profissionais de Saúde da Família. Os polos de capacitação vêm trabalhando em duplo sentido para o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias à nova concepção de trabalho, de forma a preparar os profissionais já formados ou em fase de formação para o enfrentamento de situações e problemas no cotidiano das comunidades. Apesar disso, existem dificuldades que interferem no andamento desses polos, relacionadas com: as deficiências no acompanhamento e avaliação dos processos de capacitação; a inexistência de um banco de dados; a falta de apoio para estudos e pesquisas dos órgãos financiadores, e as falhas na comunicação, entre outras. Tais instrumentos de poder e de articulação dos quais dispõe o sistema para orientar o processo de formação e a distribuição dos recursos humanos, além de não serem suficientes, não têm sido utilizados na sua totalidade (Almeida, Ferraz, 2008, p. 35). A capacitação dos recursos humanos neste projeto, referente tanto à formação acadêmica do aluno quanto à capacitação e atualização do servidor de saúde, foi realizada com o intuito de colaborar com os polos, agindo como um multiplicador de suas ações, e, ao mesmo tempo, promovendo a integração ensino-serviço.

Capacitação dos membros dos Conselhos Municipais de Saúde Foram realizadas atividades práticas destinadas à coleta de dados relativa aos Conselhos Municipais de Saúde. O curso de capacitação para os Conselheiros Municipais de Saúde, com módulos de concentração e dispersão, foi preparado pela equipe e conduzido nos cinco municípios. Como resultado, além da formação e conscientização dos participantes, foram observadas mudanças nas leis do regimento interno dos Conselhos Municipais de Saúde, avaliadas por meio de análise documental, em concordância com a legislação nacional, colocando em prática o controle social. Muitos membros dos Conselhos não tinham preparo para executar a sua função dentro do comitê. Isso se deve à falta de capacitação e instrução quando aqueles iniciaram a sua participação como conselheiros. O clientelismo e o paternalismo ainda são características marcantes nas relações entre o governo e os grupos de interesse no Brasil, especialmente nas cidades pequenas e nas áreas rurais menos industrializadas do país. Embora os Conselhos de Saúde possam contribuir para a consolidação de formas mais democráticas na representação de interesses, eles têm seu o funcionamento limitado e condicionado pela realidade concreta das instâncias e da cultura política dos municípios brasileiros (Matos, Tomita, 2004). O papel do cidadão que participa dos Conselhos Municipais de Saúde é de representar a sua comunidade e lutar pela preservação e melhoria das condições de saúde e dos serviços ligados a ela. Na perspectiva da gestão participativa, devem ser evitadas dinâmicas dicotômicas entre Sociedade Civil e Estado, promovendo efetivamente espaços dialógicos e de corresponsabilização no processo democrático de construção de políticas públicas de saúde. O envolvimento de representantes dos movimentos sociais organizados não deve estar restrito à apresentação de demandas, sendo fundamental a criação de espaços acolhedores em que as lideranças sociais encontrem um campo em que seja possível propor alternativas de intervenção, e não apenas demandar do governo respostas ou soluções diante dos problemas existentes (Costa, Lionço, 2006). O esforço do projeto em capacitar os conselheiros e também usuários de saúde foi para auxiliar na garantia do controle social de forma efetiva em âmbito municipal, o que gera resultados positivos em um nível estadual e federal. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Práticas de ensino-aprendizagem com base em cenários reais

As práticas e mecanismos de participação social no campo da saúde constituem referências para a democracia participativa no Brasil. A universalidade do direito à saúde, na perspectiva da integralidade da atenção e do cuidado e da participação social na gestão das políticas de saúde, conforma um patrimônio da sociedade em seu processo de democratização (Cortes, 2002, p. 19). Considerando que a participação social e a democracia participativa atuam na qualificação da gestão publica, é de grande relevância a organização e atuação dos Conselhos Municipais de Saúde.

Avaliação do serviço pelos usuários Por meio de oficinas, foram capacitados os profissionais das equipes da ESF a fim de que estes elaborassem os instrumentos necessários para verificar a satisfação dos usuários do Sistema Municipal de Saúde. Os profissionais foram capacitados para preparar a coleta dos dados, definir o número amostral e as estratégias de abordagem dos indivíduos. Foram realizadas entrevistas domiciliares em todos os municípios com a participação das equipes de saúde e proponentes do projeto. Com base nos resultados obtidos, foi possível constatar a falta de conhecimento dos usuários sobre o serviço de saúde que utilizam, além do desinterese ou ignorância quanto aos seus direitos e deveres. Quanto maior o nível de informação do usuário sobre objetivos, atividades e regras de funcionamento da ESF, maior o grau de satisfação em relação à estratégia. O nível de informação está condicionado pelo grau de escolaridade do usuário e a eficácia das estratégias de comunicação e informação em saúde utilizada pela equipe (Trad et al., 2002). Isto fica bem evidente ao se constatar o baixo nível socioeconômico e educacional da população avaliada. Assim, foi determinado o estabelecimento de ações que permitissem aos usuários a conscientização de seu papel como participante ativo na construção de seus serviços de saúde. Foram realizadas reuniões com o intuito de elaborar um manual com informações básicas sobre o Sistema Único de Saúde direcionadas aos usuários. A partir destas, foi confeccionado o Manual do Usuário, distribuído para todos os habitantes dos municípios envolvidos. A medida de satisfação do usuário é uma avaliação pessoal dos cuidados e serviços de saúde que são dispensados. Isso implica um julgamento sobre a qualidade dos serviços ofertados como medida de otimização das ações (Ware et al., 1983). A perspectiva do usuário fornece informação essencial para se completar e equilibrar a qualidade dos serviços (Emmi, Barroso, 2008; van Stralen et al., 2008). Alguns autores consideram que todas as pesquisas no âmbito da satisfação do usuário devem propiciar aperfeiçoamento para o cotidiano dos serviços de saúde e avanços significativos para a gestão dos mesmos (Esperidião, Trad, 2005). Ao final de cada etapa do projeto, foram aplicadas avaliações qualitativas com o intuito de medir o grau de aprendizado e corrigir eventuais barreiras na geração e transmissão de conhecimentos. No final, fez-se uma análise global do projeto, avaliando-se a equipe proponente, os usuários do sistema de saúde, os gestores e os diversos segmentos do setor saúde que participaram das atividades e ações desenvolvidas. O projeto descrito neste trabalho permitiu auxiliar os serviços de saúde na organização de suas atividades, na adequação às diretrizes do sistema de saúde nacional e na implementação correta da Estratégia Saúde da Família. A atuação participativa dos acadêmicos e alunos de pós-graduação, profissionais de saúde, conselheiros e usuários demonstrou a eficiência e o alcance dos objetivos do projeto. Os serviços de saúde colaboraram de forma importante na discussão sobre a formação de recursos humanos, indicando deficiências na formação universitária e permitindo que mudanças e adaptações nos conteúdos curriculares fossem realizadas. Foi uma importante ferramenta para os municípios e a Universidade, na medida em que capacitou e deu suporte aos gestores e demais servidores, e promoveu aprendizagem aos acadêmicos e pós-graduandos. A academia cumpriu seu papel social de prestação de serviço e apoio à comunidade, de modo direto e indireto. De acordo com as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em Odontologia (Brasil, 2002), o cirurgião-dentista necessita ser sujeito de um processo de qualificação profissional, visando integrar uma equipe e desenvolver ações programáticas inseridas nesta estratégia

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de intervenção populacional baseada no território com vistas à efetivação do SUS (Matos, Tomita, 2004, p. 1538). A inserção do aluno no processo de desenvolvimento e execução do projeto permitiu a vivência da realidade do serviço como sujeito ativo, de forma que fossem estimulados o senso crítico, habilidades cognitivas, capacidade de resolução e adaptação. Em todas as vertentes do projeto, o acadêmico e pós-graduando foram atuantes, participando desde o planejamento, trabalho de campo até a análise dos resultados. A vivência destas atividades serviu como laboratório de aprendizagem, permitindo aos alunos um conhecimento mais fidedigno, e mais consciente, das ações de políticas públicas. O projeto proporcionou o estreitamento do vínculo dos acadêmicos e pós-graduandos com os docentes, os serviços de saúde e usuários do SUS, assim como contribuiu para uma formação profissional mais humanitária. A literatura apresenta diversos estudos voltados apara a administração de serviços públicos realizada de forma inteligente e direcionada às necessidades locais. Na Bolívia, foram alcançados resultados satisfatórios com a implementação de projetos destinados à melhoria da qualidade dos serviços de saúde, por meio da capacidade de resolução das medidas propostas; da avaliação de problemas relacionados à administração dos serviços de saúde; do uso de técnicas simples e modernas adaptadas ao conhecimento local, e do treinamento de recursos humanos durante a execução do projeto (Ferrelli et al., 1997). Ao comparar os projetos, fica fácil perceber a similaridade de situações e de resultados. De uma maneira ampla, as dificuldades e carências entre os países, em especial na América Latina, são as mesmas, havendo a necessidade de se discutirem os problemas para que propostas sejam compartilhadas de forma a se encontrarem soluções inteligentes, eficazes e de baixo custo. Todo trabalho de campo não é fácil de ser conduzido. É necessário planejar antecipadamente, de um modo seguro e realista, as atividades a serem realizadas. Mesmo com um rigoroso plano a priori, dificuldades serão encontradas, havendo, muitas vezes, a necessidade de mudanças e alterações dos planos estabelecidos. Tal fato aconteceu diversas vezes durante a execução deste projeto, e para isso foi necessário o controle dos objetivos definidos para a intervenção, e a avaliação permanente dos resultados obtidos. Também o auxílio financeiro é necessário, pois os custos são elevados. Alguns pontos foram extremamente importantes para o desenvolvimento das ações: o estabelecimento de uma agenda, com atualização constante das atividades a serem realizadas; controle do material utilizado em campo, como as fichas de entrevistas; e organização e hierarquização da equipe, com distribuição de tarefas para subgrupos de participantes. Como fatores críticos que contribuíram para o sucesso da iniciativa, podem ser citados: a parceria da instituição de ensino com as prefeituras, por meio da contrapartida destas nas atividades desenvolvidas, como, por exemplo, a disponibilização de transporte e alimentação para a equipe. Do mesmo modo, a recepção dos pesquisadores pelos usuários foi extremamente positiva. Como principal dificuldade destacou-se a falta de cooperação de um gestor e o transporte entre os municípios. Embora as distâncias não fossem tão grandes, foi difícil conseguir os meios de transporte, apesar dos esforços da instituição de ensino e prefeituras que, na medida do possível, cederam os seus carros para a equipe.

Conclusão Essa experiência serviu como laboratório de aprendizagem e de pesquisa, fazendo-se ciência a partir da vivência in loco da realidade do SUS e contribuindo para uma formação profissional mais humanitária baseada em cenários reais. O projeto também alcançou resultados positivos ao favorecer a melhoria da gestão em saúde, por meio de ações conjuntas entre Universidade e serviços públicos de saúde. Diante da atual conjectura nacional, o projeto ganhou destaque por contribuir com o fortalecimento e consolidação das políticas públicas de saúde.

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Práticas de ensino-aprendizagem com base em cenários reais

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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Moimaz, S.A.S. et al.

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SALIBA, N.A.; MOIMAZ, S.A.S.; GARBIN, C.A.S. Parceria pela saúde - projeto desenvolvido no interior do estado de São Paulo, financiado pela Fapesp, integra instituições educacionais da área da saúde, governo e sociedade civil. Sp. Gov., v.4, p.3437, 2007. SANTOS, K.T. et al. Agente comunitário de saúde: perfil adequado a realidade do Programa Saúde da Família?. Cienc. Saude Colet. (online), 2008. Disponível em: <http://www.abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/artigos/artigo_int.php?id_ artigo=2104>. Acesso em: 2 set. 2009. Scochi, M.J. et al. Capacitação das equipes locais como estratégia para a institucionalização da avaliação em saúde. Cad. Saude Publica, v.24, supl.1, p.S183-92, 2008. Souza, T.M.S.; RoncallI, A.G. Saúde Bucal no Programa Saúde da Família: uma avaliação do modelo assistencial. Cad. Saude Publica, v.23, n.11, p.2727-39, 2007. Trad, L.A.B. et al. Estudo etnográfico da satisfação do usuário do Programa de Saúde da Família (PSF) na Bahia. Cienc. Saude Colet., v.7, n.3, p.581–9, 2002. van Stralen, C.J. et al. Percepção dos usuários e profissionais de saúde sobre atenção básica: comparação entre unidades com e sem saúde da família na Região Centro-Oeste do Brasil. Cad. Saude Publica, v.24, supl.1, p.S148-58, 2008. Ware, J.E. et al. Defining and measuring patient satisfaction with medical care. Evaluation Program Planning, v.6, n.3-4, p.247-63, 1983.

Moimaz, S.A.S. et al. Prácticas en la enseñanza-aprendizaje con base en escenarios reales. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.69-79, jan./mar. 2010. El proceso enseñanza-investigación-extensión realizado con la inmersión de los sujetos en escenarios reales posibilita la integración universidad-comunidad ampliando la inserción social. El objetivo de este trabajo ha sido de presentar la experiencia de un proyecto conducido en cinco municipios brasileños con la participación de docentes, pos-graduandos y académicos con la cooperación de alcaldías y trabajadores de salud como escenario de enseñanza-investigación del Sistema Único de Salud. Se han realizado talleres y cursos de capacitación con los equipos de salud, gestores y consejeros de salud, visitas técnicas a los municipios para evaluación de situación y supervisión de actividades, evaluación de la satisfacción de los usuarios y formación de jefaturas populares. Se observa mejoría en la organización de los servicios y estímulo al fortalecimiento del vínculo entre los usuarios y los prestadores de servicios. Esta experiencia ha servido como laboratorio para aprendizaje y investigación, haciéndose ciencia a partir de la vivencia in loco de la realidad del Sistema Único de Salud y contribuyendo para una formación profesional más humanitaria basada en escenarios reales.

Palabras clave: Sistema Único de Salud. Enseñanza. Academias e Institutos. Recursos humanos en salud. Investigación sobre servicios de salud. Recebido em 30/03/2009. Aprovado em 23/08/2009.

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artigos

Violência: conceito e vivência entre acadêmicos da área da saúde

Rosiléia Rosa1 Antonio Fernando Boing2 Lilia Blima Schraiber3 Elza Berger Salema Coelho4

ROSA, R. et al. Violence: concept and experience among health sciences undergraduate students. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.81-90, jan./mar. 2010.

The investigation analyzed the concept and experience of violence among the last year academics of the courses of graduation in nursing, medicine and dentistry of the Federal University of Santa Catarina. It was an exploratory descriptive research with quali-quantitative boarding, developed with 175 academics. The proposal was identify what are the academics understanding about violence, which are their personal experiences on the subject and what kind of boarding was given to this question during the undergraduate course. The violence definitions are hardly related to a technique sight and prioritize the suffered physical damages. Faced with a violence situation the students had reproduced the feelings of fear, impotence, anger and indignation; they did not react when witnessing such acts and showed that the health professional does not identify situations of violence when providing superficial assistance to victims; concluding, they consider that the issue is not sufficiently discussed during the academic course.

Keywords: Violence. Health. Higher education. Professional formation.

Trata-se de uma investigação sobre conceitos e vivências sobre violência de acadêmicos do último ano dos cursos de graduação em Enfermagem, Medicina e Odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Caracterizada como uma pesquisa descritiva exploratória com abordagem qualiquantitativa com 175 acadêmicos, a proposta foi compreender qual a definição de violência para os acadêmicos, quais suas vivências sobre o tema e qual a inserção que o tema violência teve durante a formação acadêmica. As definições sobre violência estiveram fortemente relacionadas a uma visão técnica e priorizaram os danos físicos sofridos pelas pessoas agredidas. Diante de uma situação de violência os acadêmicos reproduziram sentimentos de medo, impotência, raiva e indignação e não reagiram ao presenciar tais atos; evidenciaram que o profissional de saúde não identifica situações de violência quando presta assistência de forma superficial às vítimas; e que a formação acadêmica não discute o tema suficientemente.

Palavras-chave: Violência. Saúde. Ensino superior. Formação profissional.

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Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Rua General Estilac Leal, 129, 301/A, Coqueiros. Florianópolis, SC, Brasil. 88.080-760. rosileia.rosa@hotmail.com 2,4 Departamento de Saúde Pública, UFSC. 3 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

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Introdução Violência, para a Organização Mundial de Saúde, caracteriza-se pelo uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha a possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (Krug et al., 2002). Pelo elevado número de vítimas que acarreta e pela magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, a violência configura-se no início do século XXI como grave problema de saúde pública em diversos países. Em todo o mundo, a cada ano mais de um milhão de pessoas perdem a vida e muitas outras sofrem ferimentos não fatais resultantes de autoagressões, de agressões interpessoais ou de violência coletiva, estimando-se que a violência seja uma das principais causas de morte de pessoas entre 15 e 44 anos em todo o mundo (Dahlberg, Krug, 2002). No Brasil, desde o ano 2000 as causas externas ocupam a terceira posição na causa de óbitos no país, além de englobarem expressiva quantidade de internações hospitalares (Brasil, 2007; Jorge, Koizumi, 2004). Num recorte para as agressões interpessoais, destacam-se os atos de violência impetrados no âmbito doméstico e, em específico, contra mulheres, idosos e crianças. Estudos conduzidos em serviços de saúde sobre a violência contra a mulher demonstraram sua elevada prevalência, variando de 30% a 60% a proporção de mulheres que relataram terem sido vítimas de violência doméstica de natureza emocional, física ou sexual ao menos uma vez na vida (Schraiber et al., 2007; Kronbauer, Meneghel, 2005; Marinheiro, Vieira, Souza, 2006); Silva, 2003; Schraiber et al., 2002). Já em relação à infância, no estado do Rio de Janeiro verificou-se que no início da década de 1990 cerca de 70% dos homicídios de crianças de zero a 11 anos foram perpetrados pela própria família (Soares, 1997). A violência contra o idoso também é intensa e disseminada nas sociedades. Minayo (2003) destacou que, apesar de muitas vezes naturalizados na sociedade e nas relações familiares, os casos de abusos físicos, sexuais, psicológicos e financeiros contra idosos são abrangentes no país. Diante desse contexto de alta magnitude da violência e a alta mortalidade por causas violentas, vários estudos têm destacado a importância da atuação dos serviços de saúde no reconhecimento e no enfrentamento desse problema, em particular nos casos de violência doméstica (Schraiber et al., 2005; García-Moreno, 2002). No entanto, apesar de os serviços de saúde representarem um campo de assistência e acolhimento de vítimas de violência, os usuários deparam-se com respostas inadequadas dos profissionais de saúde, barreiras do próprio serviço para que o usuário exponha sua situação e a não confiança no profissional para relatar o problema enfrentado (Robinson, Spilsbury, 2008). Historicamente, o setor saúde olhou para o fenômeno da violência enquanto expectador ou contador de eventos (Minayo, Souza, 1999) e atualmente os profissionais de saúde acabam se confrontando com esta realidade em sua prática cotidiana, porém nem sempre preparados para assumir tais atribuições (Gomes, 2002). Uma das dificuldades do profissional de saúde pode estar relacionada ao fato de a maior parte dos processos de formação estar fundamentada em um modelo disciplinar centrado na racionalidade biomédica, remetendo alunos e professores a uma redução drástica dos processos de saúde-doença à sua dimensão biológica e dos sujeitos/pacientes à sua doença (Almeida, Feuerwerker, Llanos, 1999). Além disso, os currículos das universidades brasileiras, salvo experiências pontuais, têm demonstrado inadequações de conteúdo e de práticas pedagógicas para o exercício de atividades que envolvam a pluralidade das necessidades do sistema de saúde (Brasil, 2006), inclusive na temática da violência. Diante dessa realidade, e considerando-se que a formação universitária se refletirá na assistência prestada e no acolhimento da população usuária dos serviços de saúde, o presente estudo objetivou investigar os conceitos sobre violência presentes entre acadêmicos dos cursos de Enfermagem, Medicina e Odontologia, quais suas vivências pessoais sobre o tema e que abordagem foi dada a essa questão durante a formação acadêmica nos três cursos.

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Metodologia Trata-se de um estudo descritivo exploratório com abordagem qualiquantitativa. Empregaram-se questionários autoaplicáveis contendo questões abertas e fechadas, permitindo, assim, aproximação tanto qualitativa como quantitativa das respostas dos sujeitos entrevistados. O questionário construído para o presente estudo foi estruturado em três partes. A primeira englobou o perfil dos entrevistados (curso e fase de graduação, sexo, idade e estado civil); a segunda tratou das definições dos acadêmicos sobre violência e suas vivências com episódios de violência; na terceira parte, as perguntas estiveram voltadas a compreender que abordagem foi dada à violência durante a formação acadêmica nos três cursos pesquisados. Os sujeitos entrevistados foram acadêmicos regularmente matriculados no último ano dos cursos de Enfermagem, Medicina e Odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Para solicitar autorização da pesquisa, os autores realizaram encontros com as coordenações e professores dos cursos envolvidos, tendo tal momento também a finalidade de apresentar os objetivos e procedimentos do presente estudo. Os dados foram coletados em sala de aula durante períodos liberados por professores no decorrer das disciplinas específicas do último ano de cada curso. A participação dos acadêmicos foi voluntária e o convite foi realizado na hora da aplicação dos questionários, cujo preenchimento durou, em média, cinquenta minutos. Dos 237 acadêmicos matriculados, 175 (73,8%) participaram do estudo, sendo 41 do curso de Enfermagem, 65 de Medicina e 69 de Odontologia. Nesses cursos, o último ano de faculdade tem grande carga horária, ou até mesmo a sua totalidade, destinada a estágios com atividades práticas. Como a universidade permite que as mesmas sejam realizadas em outras instituições nacionais ou internacionais, parte das perdas foi devida a essa saída temporária de acadêmicos da universidade pesquisada. Os demais não foram entrevistados por terem faltado às aulas em que os dados foram coletados. Todos os acadêmicos que estavam presentes nas salas de aula durante a pesquisa concordaram em participar dela. Os dados foram analisados a partir de eixos de discussão dos relatos dos acadêmicos, abrangendo elementos e aspectos com características comuns ou que se relacionaram entre si, segundo análise de conteúdo proposta por Bardin (1979). Definiram-se dois eixos de análise: Eixo 1: A violência enquanto conceito entre os acadêmicos - que apresenta as conceituações e os tipos de violência evidenciados pelos mesmos - e Eixo 2: A invisibilidade da violência – que se constitui por aspectos relacionados à formação acadêmica e à atuação do profissional de saúde. Os dados quantitativos foram registrados no programa EpiData 3.1, obtendo-se as medidas de frequência e de dispersão. No intuito de garantir o anonimato dos sujeitos da pesquisa, os relatos foram identificados pelas abreviaturas E (acadêmicos de enfermagem), M (medicina) e O (odontologia), seguidas pela fase do curso. Os pesquisadores, inclusive a que aplicou os questionários, não possuíam vínculo com os acadêmicos, tampouco havia conflitos de interesses envolvidos no estudo. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina sob o parecer no277/2007, atendendo à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussão Eixo 1: A violência enquanto conceito entre os acadêmicos Dos acadêmicos entrevistados, 64% eram do sexo feminino (cujas idades variaram de vinte a 32 anos) e 36% do sexo masculino (entre 22 e 35 anos). Quanto ao estado civil, 90,9% eram solteiros e 9,1% viviam com parceiros. Quando questionados sobre o que é violência, os acadêmicos relataram que ela se configura sobretudo por atos de violência física, psicológica ou que infrinjam a liberdade de alguém. A maioria dos pesquisados relatou que violência pode ser a junção dessas expressões, no entanto, a violência

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física foi a que apareceu com mais frequência (56,5%), seguida da psicológica (28,0%). A violência sexual foi a menos referenciada, sendo citada em apenas 4,5% das respostas. Evidenciou-se, assim, que, para mais da metade dos entrevistados, os conceitos sobre violência estão relacionadas aos danos físicos provocados à vítima, como nos exemplos: “é uma maneira de agredir fisicamente; qualquer tipo de agressão à integridade física” (O-8ªf; M-11ªf). O conceito de violência lembrado como ato de violência psicológica foi compreendido como xingamento que gera sofrimento; pressão; atos de desprezo (E-7ªf; M-11ªf; O-9ªf). Outra conceituação relevante, que alcançou 20,5% das respostas, não foi classificada nem como violência física nem psicológica, mas como ato que possa “infringir a liberdade do próximo; ultrapassar os limites, não respeitar a vida, as escolhas do outro; tudo o que fere nossos direitos” (M-11af; M-11af; E-7af). Esses últimos relatos vão ao encontro do que afirma Araújo (2002) quando aponta que, se tomamos a liberdade como uma capacidade e um direito fundamental do ser humano, podemos dizer que a violência é uma violação do direito de liberdade, do direito de ser sujeito constituinte da própria história. Quando solicitado que identificassem conceitos para violência física, psicológica e sexual, a violência física foi compreendida como “agressão física, lesão corporal ou contato físico” por 75% dos acadêmicos; a violência psicológica foi percebida enquanto “danos à mente e emocionais representadas por atos de discriminação, rejeição, humilhação, constrangimento, ameaça ou pressão” para 48,5% deles; e a violência sexual foi reconhecida como “forçar relação sexual” para 32% dos pesquisados. O estupro foi lembrado como violência sexual somente por 17,0% no curso de Enfermagem, 14,5% no de Odontologia e 10,7% no de Medicina. Considerando que as mulheres são frequentemente as maiores vítimas de violência sexual e que 64% dos pesquisados eram do sexo feminino, surpreende os baixos índices de reconhecimento deste tipo de violência, como ainda a referência sobre o estupro. O Relatório Mundial sobre Saúde e Violência (Krug, 2002) definiu que a violência sexual compreende uma variedade de atos ou de tentativas de relação sexual sob coação ou fisicamente forçada, podendo ser no casamento ou em outros relacionamentos (Cavalcanti, Gomes, Minayo, 2006), sendo lembrada no casamento por apenas um entrevistado que definiu violência sexual como “forçar relação mesmo sendo casados, ter qualquer aproximação dita sexual [...]” (E-7ª f). Entre os relatos sobre as definições de violência, chama a atenção os que afirmam que: “[....] violência serve para danos maiores ou violência física que quase sempre considero violência; penso mais na violência física, que acho mais marcante e mais importante... outros tipos de violência ficariam muito abrangentes e menos importantes” (M-12ª f; O-9ª f). Diante da afirmação, cabe questionar: é possível considerar que outros tipos de violência sejam menos importantes, principalmente enquanto futuros profissionais da área da saúde? Como reconhecer a violência no serviço de saúde quando o olhar pode estar direcionado somente para a violência física? É provável que os acadêmicos entrevistados vivenciarão contextos de violência nas suas atividades profissionais e se considerarem que ela existe quando a vítima traz consigo apenas danos físicos, outras formas de violência podem ser subestimadas, reforçando-se assim a importância desta temática nas discussões acadêmicas. A predominância da violência enquanto ação física pode, ainda, conforme apontado por Guimarães e Campos (2007), destituí-la do lugar da excepcionalidade para tornar-se uma marca do cotidiano, apresentando-se como “comuns” ou “banais”. Sobre as vivências pessoais sobre violência e o que sentiram, a maior parte dos acadêmicos (74,8%) relatou que já vivenciou situações de violência. Os sentimentos predominantes nos relatos foram medo e impotência, conforme relatos a seguir: “tive uma sensação de impotência; senti medo; impotência por não poder fazer nada e medo” (M-11ªf; O-8ªf; E-8ªf). Essa sensação de incapacidade foi evidenciada no estudo de Schraiber et al. (2003), apresentando profissionais que atenderam casos de violência doméstica e sentiram impotência para lidar com os casos. Sentimentos contraditórios diante da violência também foram relatados, como ”medo e revolta, indignação e compaixão, impotência e revolta, raiva do agressor e sentimento de vingança” (O-9ªf; M-12ªf; E-8ªf). O desejo de revidar o ato de violência também foi encontrado por Schraiber et al. (2005), onde a vontade de revanche contra o agressor esteve presente. Mesmo diante desses

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sentimentos que sugerem atitude, os acadêmicos não relataram providências frente à violência experimentada, permanecendo na “vontade de reação”. Sabe-se que a fragilidade nestas situações é inegável e nem sempre o auxílio é a primeira atitude. No entanto, torna-se oportuno pensar se tais dificuldades no enfrentamento do vivenciado podem refletir nas ações enquanto profissional e, segundo apontado por Dal’ri (2007), representar atitudes cúmplices ou ocultadoras da violência. Chama a atenção que os acadêmicos que vivenciaram situações de violência não diferiram em suas opiniões e definições dos demais entrevistados. Em decorrência desse aspecto, deve-se assinalar a distância que se registra entre pessoal e profissional, ainda que na presente investigação esta questão não tenha sido aprofundada, merecendo pesquisas futuras.

Eixo 2 - A invisibilidade da violência Para os acadêmicos, a dificuldade do profissional de saúde em identificar vítimas de violência no desempenho de suas atividades está vinculada a ele mesmo (87,4%), ao paciente (33,1%) e à formação acadêmica (22,8%) como os principais fatores que contribuem para a invisibilidade da violência (os acadêmicos poderiam se referir a mais de uma opção), reiterando nesses aspectos o estudo de Kiss (2004). Foi referenciada a invisibilidade da violência perante o profissional, destacando-se o distanciamento entre profissional e paciente (44,5%) e a ausência da concepção de integralidade na assistência pelo profissional (37,7%). Quanto ao paciente, justificaram que eles escondem os fatos quando estes estão relacionados à violência (26,8%) e que têm vergonha da violência sofrida (5,7%). Sobre a formação acadêmica, destacaram que as informações sobre violência são insuficientes na universidade (15,4%) e que o tema é abordado superficialmente (7,4%). As dificuldades relacionadas ao profissional na identificação das vítimas de violência, para os acadêmicos, se dão pela falta de sensibilidade e escuta que poderiam contribuir para a percepção do fenômeno e apontar possibilidades de intervenção neste processo. Para Maldonado (1998), ouvir com atenção, consideração e sensibilidade amplia a capacidade de escuta sensível, sendo possível entender o que está por trás das palavras, na linguagem do corpo e dos atos. As falas, a seguir, evidenciam a afirmação: “a falta de sensibilidade, de ouvir o paciente e vê-lo como uma pessoa; o pouco interesse do profissional em dar mais tempo para ouvir o paciente” (E-7ªf; O-9ªf). As afirmações apresentam o distanciamento do profissional diante dos problemas sociais a que a população está exposta, contribuindo para que atos de violência não sejam percebidos e, conforme afirma Morin (2004), oportunizar a invisibilidade dos problemas, impedindo de se ver a realidade. Os acadêmicos apontaram, ainda, que “na maioria das vezes o paciente não é tratado como um todo, ou seja, o profissional só se preocupa com a sua especialidade. Onde o dentista só se importa com a boca; os profissionais de saúde, em sua grande maioria, olham e cuidam da patologia e não do paciente no seu todo” (O-8ª f; E-7ª f). Schraiber et al. (2003), em estudo sobre a violência contra a mulher, apontaram que há ausência de linguagem apropriada e comum aos profissionais para abordálas, posto que eles dialogam somente na linguagem da doença, o que torna a comunicação dos fatos ainda mais difícil. Kaplan (2005) reforçou que é preciso usar habilidade conceitual para se ver o todo, o significado em si. Desta forma, estando o olhar do profissional direcionado unicamente para a queixa, corre-se o risco de não se analisarem outros agravantes. Foi reconhecida por parte dos entrevistados a importância do diálogo na relação entre profissional de saúde e paciente, uma vez que a vítima de violência não traz consigo somente o ferimento físico, mas também a angústia, o medo, o constrangimento. Neste sentido, a necessidade do “olhar para o todo”, termo recorrentemente citado pelos pesquisados, reforça que o profissional não deve mediar seu atendimento pautado no distanciamento e na frieza emocional, mas sim que tenha a capacidade de colocar-se no lugar da vítima e percebê-la integralmente, agindo em prol da sua saúde. Ao se colocarem na posição de profissionais, os acadêmicos afirmaram que “a classe médica, infelizmente, não faz uma história adequada do paciente. A pressa, a falta de vontade da nossa parte, principalmente em atendimentos dos serviços públicos, impede de nos aprofundarmos nas queixas do paciente; muitas vezes nós profissionais não questionamos” (M-11ªf; M-11ªf). Nestes relatos,

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os acadêmicos se posicionaram como profissionais de saúde, sugerindo que já exercem as mesmas condutas que criticam, e que, dessa forma, poderão ser os perpetuadores do ocultamento de situações de violência, mesmo diante da consciência de que esses atos não são os esperados do profissional de saúde. No modelo centrado apenas na doença, Sucupira (2007) aponta que o atendimento prestado resume-se a dar uma resposta imediata, visando dispensar o mais depressa possível a clientela em função do acúmulo de demanda. Assim, quando o foco passa a ser a doença e não o indivíduo, as chances para que o paciente retorne aos serviços aumentam, assim como a demanda dos mesmos. Os problemas relacionados ao paciente referem-se, na visão dos acadêmicos, ao fato de que este “mascara, esconde e mente quando questionado; talvez porque no caso de crianças os pais omitam e inventam histórias bem boladas; porque as vítimas de violência escondem isto da sociedade, muitas vezes por medo da violência ocorrer novamente” (E-7ªf; M-11ªf; O-9ªf). Essas reações, quando existentes, podem estar relacionadas com a atitude do profissional de saúde, quando este não estabelece a comunicação necessária, o vínculo devido e centraliza suas ações na doença, ou conforme apontado pelos acadêmicos, as mantêm ancoradas em especialidades. Nestes casos, o diálogo com os pacientes é pautado predominantemente pela exploração dos sinais, sintomas e manifestações laboratoriais dos agravos; realiza-se uma prática repetitiva, sem dar conta das singularidades inerentes (Coelho Filho, 2007). Neste sentido, a pessoa que sofreu violência não passaria, necessariamente, a esconder do profissional de saúde que foi vítima de violência, mas sim, demonstraria “constrangimento, dificuldade para se expressar” (M-11ª f). Atualmente, demandam aos consultórios novas questões da sociedade, como a violência, o alcoolismo, questões relacionadas ao casamento, ao emprego, às dificuldades na vida escolar, entre outras, exigindo do profissional habilidade como escuta e comunicação, que vão além dos conhecimentos estritamente biomédicos (Sucupira, 2007). Nestes casos, o profissional precisa desenvolver uma forma eficaz para se aproximar da pessoa agredida, criando um clima propício para que essa dificuldade de expressão possa ser superada. Outro fator a ser considerado, segundo os acadêmicos, é que “os violentados não falam, muito menos para pessoas estranhas; é quase impossível diagnosticar um tipo de violência que quase não causou dano físico e também quando o mesmo não abre a situação de forma sincera” (E-8ª f; M-11ªf). Para Gomes (1998), de fato em alguns casos o profissional de saúde pode ter maiores dificuldades para abertura, interferindo numa melhor atuação do mesmo, tornando mais difícil a interação no espaço privado da vítima, porém, a falta de informações passa a ser tão violenta quanto os crimes praticados. Chama a atenção, por outro lado, que os entrevistados não comentam o fato de os profissionais raramente investigarem situações de violência e esperam que o paciente seja um interlocutor ativo. Isto contrasta, por exemplo, com a anamnese clínica e seu interrogatório, quando os profissionais tendem a ser ativos na busca dos diagnósticos, e, de outro lado, contrastam e contradizem seus depoimentos de quão difícil é, para a vítima, por medo, culpa ou vergonha, ser ativa para relatar a violência sofrida. A invisibilidade da violência relacionada com a formação refere-se a “ser pouco discutida no meio acadêmico; o estudante depende de sua sensibilidade e não de sua formação (incompleta) para fazer o diagnóstico; há despreparo na graduação, não é um assunto muito discutido” (O-9ª f; M-11ª f; E-7ª f). Sobre os momentos em que o tema violência foi abordado durante o curso de graduação, 73,2% dos acadêmicos da Enfermagem referiram a disciplina “Sociedade, Saúde e Violência”, ministrada na quinta fase do curso; 98,5% da Medicina mencionaram ter estudado o tema em mais de uma disciplina, sendo majoritariamente em Pediatria (69,2%) e Medicina Legal (29,2%). Situação diferenciada apontaram os acadêmicos da Odontologia, sendo que 65,2% responderam que o tema violência jamais foi abordado; os demais referiram predominantemente as disciplinas de Cirurgia e Traumatologia e Endodontia. No entanto, quandoperguntado sobre a necessidade de abordar a violência na formação acadêmica, a contra a criança foi apontada por (66,3%) dos acadêmicos, como assunto de maior necessidade e urgência, seguida da contra a mulher (14,3%), o idoso (6,8%) e o adolescente (2,8%). Estes dados apontam, para os acadêmicos, a necessidade da abordagem do tema na formação e a vulnerabilidade destes públicos em contexto de violência, reconhecem ainda, em especial, a fragilidade 86

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artigos

da criança, enquanto vítima de violência. Mesmo quando o tema violência esteve presente na formação acadêmica, as informações sugerem ter sido esporádica e superficial, fazendo com que os profissionais sintam-se despreparados para abordar esse contexto. Mesmo com a pouca inserção do tema violência nos seus currículos, quando perguntados sobre qual profissional estaria mais preparado para lidar com situações de violência, os acadêmicos de Odontologia e de Medicina citaram predominantemente o médico, seguido do enfermeiro. Para a Enfermagem, são os enfermeiros, seguidos pelos médicos, os mais preparados. Ainda assim, 100% da Enfermagem, 98,5% da Medicina e 92,8% da Odontologia acreditam que podem auxiliar as vítimas de violência. Relativamente aos que consideram o médico o principal profissional envolvido com a violência, pode-se afirmar que nesta visão os acadêmicos reforçam a pesquisa de Marques (2007), em que a centralidade do profissional médico evidencia que o tratamento dos usuários hospitalizados por agressão segue as especialidades médicas como único critério de indicação para a unidade de internação. Quando perguntados quais seriam as ações dos acadêmicos diante de uma possível vítima de violência, foram apontados procedimentos de orientações e encaminhamentos dos casos. As orientações estariam relacionadas ao diálogo que instrui o paciente, aconselha e educa sobre o tema (82,3%); e os encaminhamentos seriam para a troca de auxílio com outros profissionais, buscando, sobretudo, apoio psicológico, realizações do diagnóstico por alguma especialidade médica e tratamento específico (17,7%). A importância destes encaminhamentos é justificada por: “diariamente temos contato com pessoas que sofreram algum tipo de violência. Devemos saber agir corretamente nesses casos. Também quando desconfiamos de que alguma criança seja vítima de violência, como denunciar” (M-11ª f; E-8ª f). Já os encaminhamentos a serem dados para as vítimas de violência, segundo os entrevistados, deveriam, primeiramente ser para a polícia/delegacia (48,0%), seguida do hospital (26,8%), centros de saúde (10,8%) e serviço social (4,5%). Ficou evidente que no currículo não se discute sobre protocolos de atendimento às vítimas de violência, pois, conforme aponta Njaine et al. (1997), o serviço de saúde não detecta os casos e, quando o faz, não encaminha ou não sabe que atitude adotar, ou, ainda, prefere ignorar seu compromisso e age negligentemente em relação à violência. Da mesma forma, Ferreira e Schramm (2000), apontaram a dificuldade dos profissionais ao confrontaremse com alguns procedimentos específicos, como a notificação dos casos ao sistema legal. Além disso, esses achados reforçam o apontado por Krug et al. (2002), de que a violência ainda é vista, sobretudo, como questão de justiça ou de segurança, mas não necessariamente de saúde. A compreensão da violência enquanto problema de saúde precisa contar com o aporte da universidade, uma vez que o espaço da formação contribui para o direcionamento das ações profissionais, que precisam estar ancoradas nos problemas vividos pela sociedade. Além disso, cabe lembrar que a área da saúde deve aprofundar as questões e as formas de atuação na promoção da saúde e que a violência deve ser um dos temas-chave nas discussões sobre integralidade. O presente estudo apresentou como limitação o fato de descrever conceitos e vivências sobre violência relativas ao universo de apenas três cursos de graduação de uma universidade do sul do Brasil, prejudicando generalizações. O questionário autoaplicável foi construído e aplicado de maneira a permitir o posicionamento dos sujeitos de pesquisa sem constrangimento, e novas pesquisas com outras abordagens metodológicas – como grupos focais, por exemplo - são importantes para se aprofundarem os resultados oriundos do presente estudo. A inexistência de qualquer relação de dependência ou vínculo dos graduandos em relação aos pesquisadores também contribuiu para a qualidade dos dados coletados.

Considerações finais Os acadêmicos de Enfermagem, Medicina e Odontologia, em sua maioria, já vivenciaram alguma situação de violência, porém as definições que possuem sobre o tema parecem não incorporar essa vivência, mas se ancoram em abordagens técnicas, em que os danos físicos são priorizados enquanto COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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violência. Sentimentos de reação, como a raiva e a indignação, foram evidenciados, no entanto, em nenhuma situação os acadêmicos mostraram outras formas de lidar com a violência, expressando imobilidade diante dela. Ainda assim, esperam que os pacientes atuem de modo bem diverso, sendo ativos na procura de ajuda. Mesmo que reconheçam a necessidade de uma abordagem integral por parte dos pacientes, enquanto ideal de prática futura, ao arrolarem as dificuldades no reconhecimento de situações de violência por profissionais, não conseguem avançar nessa proposição de integralidade, também se atendo a questões segmentadas, com destaque sempre à dimensão de uma competência mais técnica para poderem agir ou dependente da iniciativa dos pacientes, e não de suas relações com eles. É preciso que a violência seja objeto de estudo em muitas interfaces científicas e objeto de discussão permanente por parte da sociedade para que se definam programas e políticas públicas adequadas e eficazes para o seu enfrentamento, assim como a elaboração de propostas e estratégias de ensino voltadas para as diversas expressões concretas da violência e seus diferentes contextos.

Colaboradores A autora Rosiléia Rosa trabalhou na concepção, análise, interpretação dos dados e redação final do texto. Elza Berger Salema Coelho trabalhou na concepção, supervisão geral e redação final do texto. Antonio Fernando Boing trabalhou na metodologia, revisão crítica e redação final do texto. E Lilia Blima Schraiber trabalhou na revisão crítica e redação final do manuscrito. Referências ALMEIDA, M.; FEUERWERKER, L.; LLANOS, M. (Orgs.). A educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec, 1999. ARAÚJO, M.F. Violência e abuso sexual na família. Psicol. Estud., v.7, n.2, p.3-11, 2002. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de informações sobre mortalidade. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obtuf.def>. Acesso em: 20 maio 2007. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Dinâmica das graduações em Saúde no Brasil: subsídios para uma política de recursos humanos. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. CAVALCANTI, L.F.; GOMES, R.; MINAYO, M.C.S. Representações sociais de profissionais de saúde sobre violência sexual contra a mulher: estudo em três maternidades públicas municipais do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saude Publica, v.22, n.1, p.31-9, 2006. COELHO FILHO, J.M. Relação médico-paciente: a essência perdida. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.11, n.23, p.631-3, 2007. DAHLBERG, L.L.; KRUG, E.G. Violence: a global public health problem. World Report on Violence and Health. Geneve: World Health Organization, 2002. DAL’RI, M. Representações sociais de profissionais de saúde sobre a violência contra a mulher. 2007. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2007. FERREIRA, A.L.; SCHRAMM, F.R. Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissionais de saúde. Rev. Saude Publica, v.34, n.6, p.659-65, 2000.

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ROSA, R. et al. Violencia: concepto y experiencia entre los académicos de atención en salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.81-90,jan./mar. 2010. Se desarrolló una investigación descriptiva exploratoria con enfoque cualitativo y cuantitativo, con 175 alumnos del último año de los cursos de Enfermería, Medicina y Odontología, de la Universidad Federal de Santa Catarina. El objetivo fue entender qué definición de violencia tienen estos alumnos, cuales son sus experiencias sobre el tema y que inserción tuvo la temática de la violencia durante su formación académica. Las definiciones están fuertemente vinculadas con una visión técnica que prioriza los daños físicos sufridos por las personas golpeadas. Frente a una situación de violencia los estudiantes reproducen sentimientos de miedo, impotencia, ira e indignación, sin reaccionar al presenciar estos actos; el estudio demostró que los profesionales de salud no identifican situaciones de violencia cuando atienden a las víctimas de manera superficial; y que en la formación académica no se discute el tema suficientemente.

Palabras clave: Violencia. Salud. Educación superior. Entrenamiento profesional. Recebido em 13/01/2009. Aprovado em 17/06/2009.

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artigos

Agentes comunitários de saúde:

a reconstrução do conceito de risco no nível local

Vera Joana Bornstein1 Helena Maria Scherlowski Leal David2 José Wellington Gomes de Araújo3

Bornstein, V.J.; DAVID, H.M.S.L.; ARAÚJO, J.W.G. Community health agents: reconstruction of the risk concept at local level. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.93-101, jan./mar. 2010.

The risk concept and its limits are discussed as a technical-scientific construct for representing reality and as a support device for social intervention. The historical evolution of epidemiology and the risk concept is related to the idea of social arbitration among population groups. The possibility of appropriating this concept for expanding perceptions and strengthening social responses to life and health situations is examined in the light of pedagogical experience based on the perspective of popular health education using community health agents in a peripheral urban locality. It is argued that participatory educational processes increase the sharing of knowledge and the capacity to critically analyze the multiple relationships between health problems and local-general contexts of life. The issue of social arbitration in response to limiting situations is brought out again.

Keywords: Community health agents. Concept formation. Health education. Risk.

Discute-se o conceito de risco e seus limites como constructo técnico-científico de representação da realidade e dispositivo de apoio à intervenção social. A evolução histórica da epidemiologia e do conceito de risco é relacionada à ideia de arbitragem social junto aos grupos populacionais, examinando-se a possibilidade de apropriação desse conceito para a ampliação da percepção e o fortalecimento das respostas sociais às situações de saúde e vida, à luz de uma experiência pedagógica baseada na perspectiva da educação popular e saúde, com agentes comunitários de saúde de uma localidade urbana periférica. Defende-se que os processos educativos participativos ampliam o compartilhamento de saberes e a capacidade de analisar criticamente as múltiplas relações entre os problemas de saúde e os contextos de vida local e global, recolocando a questão da arbitragem social nas respostas às situações-limite.

Palavras-chave: Agentes comunitários de saúde. Formação de conceito. Educação em saúde. Risco.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Av. Brasil 4365, sala 311,Rio de Janeiro - RJ, Brasil. 21040-900. vejoana@fiocruz.br 2 Departamento de Enfermagem de Saúde Pública, Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 3 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz.

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AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE:...

Introdução O agente comunitário de saúde (ACS) ocupa posição singular e contraditória no trabalho em saúde na atenção básica: por um lado, é membro da comunidade-alvo e, como tal, também usuário dos serviços públicos de saúde; portanto, conhece e enfrenta, como membro da classe trabalhadora, as mesmas dificuldades de acesso e de resolutividade que perpassam o sistema público de saúde. Por outro, torna-se integrante, nem sempre legitimado, de uma equipe de saúde cujo processo de trabalho tende a reproduzir, de forma igualmente contraditória, a divisão social do trabalho e as disputas em torno dos projetos terapêuticos (Nunes, 1998; Merhy, 1997). Com seu processo de profissionalização marcado pelo debate ideológico e político, o ACS constitui-se hoje em força de trabalho expressiva, com mais de duzentos mil profissionais atuando em todo o país. Entre as atribuições específicas dos ACS, estabelecidas na portaria n. 648, Anexo I (Brasil, 2006), consta o desenvolvimento de atividades classificadas como de promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos, e vigilância à saúde. Dentre as ações citadas, estão visitas domiciliares e ações individuais e coletivas tanto nos domicílios como na comunidade. Há um destaque para a recomendação de que o ACS mantenha a equipe de saúde informada sobre as famílias, “principalmente a respeito daquelas em situação de risco” (p.71). No que tange à formação, o referencial curricular nacional do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde elaborado pelo Ministério da Educação e pelo Ministério da Saúde, em 2004, prevê um itinerário formativo composto por três etapas, sendo que, na terceira, o “desenvolvimento de competências no âmbito da promoção, prevenção e monitoramento das situações de risco ambiental e sanitário” constitui seu eixo central (Brasil, 2004, p.21). Estes documentos destacam a importância do conceito de risco, referindo-se a fatores e situações de risco como um dos componentes fundamentais no processo de trabalho a ser realizado pelos ACS, cuja ênfase é dirigida à prevenção de doenças, ao controle de sua transmissão e/ou ao seu agravamento, a fatores ambientais e aos chamados riscos sociais - que são listados: pobreza, violência, migrações, entre outros. Não há explicação ou discussão sobre o conceito de risco. A definição de fator de risco que norteia o trabalho desses agentes é, de modo geral, preestabelecida pelas instituições de saúde, e reflete uma forte influência do modelo ecológico, que remete aos elos da cadeia epidemiológica, com foco na causalidade por um agente biológico, ou do modelo socioecológico, que passa a incluir os fatores comportamentais e relativos aos hábitos individuais (Nunes, 1998). Esta orientação manifesta-se na composição dos dados colhidos pelo Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), cujo destaque recai sobre a informação vinculada às diretrizes programáticas do Ministério da Saúde. No nível local, o desdobramento desta concepção é a exigência de preenchimento das fichas para acompanhamento domiciliar de gestantes, hipertensos, diabéticos, tuberculosos e hansenianos, assim como de crianças. Este artigo discute o conceito de risco, problematizando seu limite como constructo técnicocientífico de representação da realidade e como dispositivo de apoio à intervenção social, contrapondo-o à organização do processo de trabalho em saúde com base em metodologias pedagógicas participativas, a partir das situações de vida e dos processos saúde-doença da população local. Apoia-se em uma experiência pedagógica desenvolvida com ACS na Unidade Básica de Saúde da Vila do João, Complexo da Maré, Rio de Janeiro, em 2002. Inicia-se com uma revisão sobre o conceito de risco como instrumento para a arbitragem social (Mitjavila, 2002), passando ao relato da construção coletiva do conceito de risco tomando, como eixo, o trabalho cotidiano das ACS e a problematização das condições de vida e saúde no local. Nas conclusões, são debatidos alguns princípios pedagógicos referentes à educação popular e saúde (EP&S), como perspectiva capaz de contribuir nos processos participativos para a construção de diagnósticos comunitários de saúde (Stotz et al., 2005).

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Bornstein, V.J.; DAVID, H.M.S.L.; ARAÚJO, J.W.G.

artigos

O conceito de risco e as mudanças na arbitragem social Os valores positivos associados à saúde, a higidez e a longevidade, parecem ser os mais pujantes da contemporaneidade. Talvez signifiquem a atualização do mito da imortalidade ou, pelo menos, a possibilidade de uma morte retardada, indefinida (Araújo, 2004). A disparidade nas condições de vida entre os diversos grupos da população discrimina o acesso aos bens que proporcionam a saúde. Nesse caso, pode-se dizer que Hygeia (entre os gregos antigos, mantenedora da saúde, da higidez) seria a deusa da saúde para os aquinhoados, enquanto Panacéia (que recupera a saúde) seria a deusa dos despossuídos. Em todo caso, se é verdade que a higidez e a longevidade são valores efetivamente positivos, eles só podem ser alcançados mediante um duro programa que objetiva, a todo custo, driblar os riscos prementes e permanentes de adoecer e de morrer, conferindo ao conceito de risco uma valoração claramente negativa. Deborah Lupton (1999) refere-se a mudanças no significado de risco que se deram a partir do século XVII, sobretudo no XVIII, com o desenvolvimento da ciência e do pensamento racional, o qual supõe que o mundo social e natural segue leis que podem ser medidas, calculadas e, portanto, previstas. Por volta do século XIX, a noção de risco teria sido ampliada, abrangendo não só os fatores ligados à natureza, mas também os relacionados ao ser humano, presentes na sua conduta, na sua liberdade, nas suas relações e na própria sociedade. No campo da saúde, o risco é um conceito probabilístico, oriundo e sustentado pela assim denominada epidemiologia moderna. De acordo com a lógica inferencial da estatística, as probabilidades contêm, necessariamente, um princípio de incerteza, de tal forma que nenhum resultado pode ser atribuído a um indivíduo em particular, senão ao grupo ao qual pertence. Outra consideração é a de que certo risco epidemiológico pode ser maior ou menor para determinado grupo ou situação. Isso implica que um risco pode ter uma probabilidade baixa ou remota: pode até ser possível (no sentido de que tudo é, em tese, possível), mas não ser plausível. Na divulgação desse conceito, sobretudo pelos meios de comunicação de massa, foi inevitável a polissemia com a noção de risco presente no senso comum (Araújo, 2004). Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a noção de risco e de arriscado é comumente usada tanto no discurso popular como no discurso técnico. No que se refere ao entendimento popular, a noção de risco tende a ser usada para se referir a ameaça, perigo, prejuízo, e com a conotação de algo mais negativo do que propriamente desastroso. No discurso técnico, são usadas expressões como análise de risco, avaliação de risco e administração de risco, em áreas como medicina e saúde pública, finanças, direito, negócios e indústria (Lupton, 1999). A noção de risco difundida pela educação sanitária e pelos meios de comunicação costuma trazer, de forma implícita ou explícita, a ideia da culpabilização dos indivíduos pelos seus males presentes ou futuros (Valla, 1993). A epidemiologia – de onde emana essa noção – teve seu nascedouro na Inglaterra, em plena era vitoriana. Dessa forma, a disciplina seria perpassada pelos valores do puritanismo anglo-saxão, sendo a epidemiologia dos fatores de risco a atualização científica daqueles valores. Para contornar os fatores de risco, que estão todo o tempo em todo lugar, seria necessário uma severa e continuada educação dos prazeres (Castiel, 1998). Mas a ideia de risco não é uma invenção epidemiológica, evidentemente. Segundo Mitjavila (2002), o risco é uma construção móvel, passível de circulação abrangente em termos de código para os perigos e ameaças que caracterizam a vida nas sociedades contemporâneas. Construção social relacionada de forma complexa com o conhecimento tecnocientífico, é, portanto, um dispositivo de conhecimento e poder, instrumento de arbitragem para os problemas sociais. Para Lupton (1999), o conceito de risco ganhou importância ultimamente devido ao aumento da influência das decisões com relação ao futuro da sociedade. O efeito paradoxal é que, na busca por controlar o risco, conhece-se, cada vez mais, a imprevisibilidade. A importância do risco como recurso para a arbitragem social, na medida em que diversos agentes institucionais necessitam tomar decisões que, muitas vezes, apresentam-se como alternativas dicotômicas, é abordada por Mitjavila (2002, p.130):

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AGENTES COMUNITÁRIOS DE SAÚDE:...

Sem ser o único mecanismo envolvido, o risco parece permear cada vez com maior força os discursos e as práticas que agem no coração de muitas das circunstâncias de arbitragem social. Cada vez mais decisões de tipo arbitral parecem ser tomadas em nome da exposição a algum tipo de risco ou riscos que afetam tanto os indivíduos como as organizações [...].

No entanto, o risco como recurso para a arbitragem social pode refletir uma leitura parcial da situação social, já que atribui a causa dos problemas a algumas variáveis, geralmente limitadas pela busca do fator principal de risco. No setor saúde, essas variáveis costumam ser aquelas passíveis de intervenção médica, contrapondo, assim, a racionalidade científica (Bachelard, 1985) às concretas condições de produção da vida e da saúde. Enquanto dispositivo biopolítico, o risco pode ser consentâneo com novas formas de exclusão social, não redutíveis às categorias clássicas de dominação e exploração. Seu discurso não nega as desigualdades sociais, mas estas são frequentemente redefinidas no sentido da individualização dos riscos sociais. Então, “exige-se dos indivíduos mais desestabilizados que ajam como sujeitos autônomos” (Mitjavila, 2002, p.136). As políticas de integração são substituídas por políticas de inserção. Nesse caso, o risco é o principal fundamento para a provisão seletiva de serviços sociais. Direcionada aos setores em situação de miséria, a focalização é uma das funções arbitrais do risco. Mas o risco não é um recurso que se presta apenas à arbitragem social da miséria focalizada. Vivemos em uma sociedade de riscos, e essa noção/conceito perpassa todas as atividades humanas, das operações financeiras ao ato de atravessar a rua (Caponi, 2003; Lupton, 1999). No nível das microrrelações, o risco passa a fazer parte da identidade dos indivíduos, uma vez que se mencionam os estilos de vida como seu locus privilegiado (Castiel, 1998). No nível macrossocial, são apontadas críticas às abordagens parciais do problema (Santos, 1979), quando se atribui a “crise urbana” a fatores como explosão demográfica, êxodo rural ou, ainda, ao subemprego, selecionando aspectos da realidade como se existissem setores autônomos na sociedade e esquecendo, portanto, de analisar suas interdependências. Da mesma forma, ao se focalizarem determinados grupos e categorias, individualizam-se os riscos sociais, e, ao se perceberem os problemas sociais em função de disposições psicológicas e familiares, acaba-se por limitar a análise da situação de conjunto e de sua dinâmica (Araújo, 2004). Um reflexo deste enfoque relacionado ao grupo familiar é abordado por Eymard Vasconcelos (1999, p. 11), que se refere aos estudos e publicações sobre a família brasileira e aos trabalhos sociais direcionados a ela, onde se ressalta a existência de algumas famílias nas classes populares que vivem situações especiais de risco e que, por isso, necessitam atenção diferenciada do Estado para, de certa forma, “garantir” os direitos de cidadania. Telles (2001, p.158) refere-se ao caráter compensatório e ao perfil seletivo e focalizado desse tipo de programa social, substituindo, frequentemente, a produção de direitos pelo atendimento de “necessidades”. O enfoque do risco como dispositivo arbitral para a provisão de serviços pode, portanto, deslocar a análise da situação e dos problemas existentes para a análise daquilo que tem probabilidade de acontecer, no futuro. São priorizadas as situações que podem vir a causar problemas, em detrimento das necessidades, direitos ou demandas presentes e imediatamente observáveis (Araújo, 2004). Ainda assim, Mitjavila (2002) reconhece a importância de se identificarem os perigos e incertezas da vida, como forma de organizar a percepção e as respostas sociais perante esses riscos, entendidos como situações-limite diante da vida que produzem esforços pela superação de determinada realidade (Freire, 1970). Este é o foco principal na perspectiva da educação popular e saúde, que tentamos desenvolver a seguir.

A construção do conceito de risco com ACS no nível local A experiência que apoia esta discussão foi desenvolvida em 2002, em um projeto de integração ensino-serviço-pesquisa do qual participaram o Posto de Saúde da Vila do João, o Departamento de 96

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Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Núcleo de Estudos Locais em Saúde (Elos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Posto de Saúde da Vila do João está vinculado à Área Programática 3.1 (AP 3.1.) da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ), que é uma das áreas de mais alta densidade demográfica do município. A Vila do João fica no Complexo da Maré, 30º Região Administrativa, e a população adscrita a esta unidade de saúde era de aproximadamente vinte mil habitantes. No começo da década de 1980, o Posto de Saúde da Vila do João era vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi fechado no início da década de 1990 devido a incidentes de violência que ocorreram no local. Em 1998, a unidade de saúde foi reativada, com a contratação de uma equipe constituída por uma enfermeira, uma assistente social e 13 agentes de saúde. A partir de novembro de 1998, foram feitos: o levantamento da história e o mapeamento da comunidade, o cadastramento das famílias, visitas domiciliares de rotina, acompanhamento das famílias em situação de risco e trabalho educativo nas instituições locais, tais como escolas e creches. Inicialmente, as ACS realizavam o cadastramento das famílias de suas microáreas em formulários próprios da Área Programática 3.1. Em folhas anexas, registravam livremente as informações relevantes e as observações realizadas durante as visitas domiciliares. Com a perspectiva de oficialização do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) em 2001, foi feito o recadastramento das famílias da área, e introduzida a Ficha A do Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB), que substituiria o formulário utilizado anteriormente. Nas várias oportunidades de formação promovidas pela equipe local, havia sido enfatizado o conceito amplo de saúde e a importância das múltiplas determinações do processo saúde-doença. Havia também a orientação de que, nas visitas domiciliares, os ACS fizessem o registro de observações que servissem de subsídio para toda a equipe no acompanhamento da população. Nesse sentido, as agentes faziam o relato da sua percepção sobre as condições e modos de vida da população, as dificuldades encontradas e, inclusive, a satisfação em relação ao serviço de saúde. No entanto, não havia uma orientação sistematizada quanto ao tipo de informações que seriam de relevância para o trabalho e, portanto, esta definição dependia da forma como cada ACS compreendia a relação entre o processo saúde-doença e os acontecimentos e condições de vida da população. Não tendo sido previamente estimulados a refletir e a exercitar formas de sistematizar as visitas, os ACS tendiam à reprodução mecânica do registro das situações encontradas durante suas visitas, utilizando terminologias desgastadas e empobrecidas, sendo comum, por exemplo, o uso da expressão “tudo bem” para o registro de uma visita durante a qual não tivesse sido trazida ou discutida alguma condição de doença ou problema patológico. Havia o entendimento de que não se tratava de definir mais um pacote de informações a serem colhidas pelos ACS. A equipe da unidade de saúde havia identificado a necessidade de se manter uma relação pedagógica sistemática entre todos os profissionais e destes com a comunidade, de maneira a permitir a construção compartilhada do conhecimento. Entendia-se que os agentes de saúde eram capazes de identificar situações e condições que não chegavam ao posto de saúde, mas que era preciso aperfeiçoar a organização do registro de informações. Tendo a educação popular e saúde como referência metodológica (Stotz et al., 2005) e o conceito de ambientação pedagógica como norteador da prática educativa em serviço (Núcleo de Estudos Locais em Saúde, 1997), foram organizados vários encontros que culminariam com a construção de um roteiro para registro das informações. Ambientação pedagógica é um conceito que se refere ao reconhecimento dos serviços e ações de saúde como espaço de construção coletiva e de aprendizado compartilhado sobre a realidade de saúde local, e para o desenho de alternativas para enfrentar os problemas e questões identificados. Constitui uma práxis perpassada pela educação problematizadora e supõe um sistema local de informação que envolva a comunidade. Desenvolveu-se durante a experiência do Elos com o Programa de Residência Coletiva da Escola Nacional de Saúde Pública. Entendido como o esforço para superar a fragmentação de saberes e processos de trabalho no nível local, corresponde a uma formação continuada efetivamente interativa com a comunidade e suas necessidades de saúde, e aproxima-se do que, posteriormente, consolidou-se no conceito de educação permanente (Ceccim, 2005). 97


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Foram realizados vários encontros com o grupo de agentes de saúde partindo da proposta pedagógica de Paulo Freire (1993, 1970), na qual a problematização da realidade representa o ponto de partida para o processo de aprendizagem, tanto por despertar no educando o desejo do conhecimento, como por possibilitar a continuidade do processo de aprendizagem com a apropriação de novas ideias e conceitos. A reflexão crítica com base nas experiências anteriores deveria ser também uma fonte estimuladora de autonomia e decisão frente a situações-limite vivenciadas no cotidiano do trabalho. A problematização da realidade é, assim, mais que um método educativo, um processo de construção dialógica de conhecimentos, confrontados e compartilhados, que provoca os sujeitos a trazerem suas perspectivas e olhares na descrição e explicação de situações para as quais as respostas não estão imediatamente disponíveis. Buscava-se partir da experiência dos agentes comunitários, como moradores da comunidade e como profissionais de saúde, e, junto com eles, identificar os fatores relevantes para a construção de indicadores baseados em um conceito crítico de risco que orientasse a priorização de suas atividades. Os passos desenvolvidos durante os encontros incluíram o levantamento exaustivo de problemas encontrados durante as visitas domiciliares, mediante a livre expressão de ideias pelas participantes e a narrativa por escrito de casos familiares típicos, baseados nas experiências com os moradores da área. O levantamento de problemas deu-se por meio de círculos de debates com os ACS, alternados com discussões em grupos menores, mediados pelos pesquisadores do Elos e por profissionais do posto de saúde, cuja participação tinha dois objetivos: facilitar e provocar a participação de todos os ACS no debate e sistematizar de forma escrita este processo, com a devolução e o confronto das interpretações elaboradas para verificação, apurando-se, no decorrer das oficinas, um conjunto de problemas categorizados segundo sua natureza. O processo de categorização manteve certa aderência aos conceitos já utilizados nas abordagens programáticas da saúde, recuperando categorias como “problemas ambientais” ou “problemas de saúde mental”, mas abrindo-se a possibilidade de inclusão de questões referentes ao contexto local, cuja identificação e compreensão dependiam do conhecimento prático das ACS, construído na atividade de trabalho. Um dos casos relatava a situação de uma família de sete pessoas. A frente da casa era um ferrovelho que se expandia para dentro da moradia. O chão era de terra e havia ratos e baratas. Devido à sujeira, um bebê de oito meses ficava o dia todo no carrinho, pois não podia ser colocado no chão. O dono da casa era alcoólatra, passava mais tempo bêbado do que sóbrio. Ninguém na casa trabalhava. Dois meninos, de nove e onze anos, não estavam estudando porque, segundo a mãe, fugiam constantemente da escola. A filha de dezenove anos já era mãe de dois filhos. A mãe estava triste e deprimida por causa dos problemas. Esta é uma situação que dificilmente seria apreendida na unidade de saúde durante a consulta de algum integrante da família, e nesse sentido o registro feito pela ACS era fundamental para que a equipe entendesse o quadro. Em outro momento, evidenciou-se a importância de se discutirem as condições de vida impostas à população como uma questão que não se dissocia do processo de trabalho do ACS e da equipe. A grandeza da problemática, a falta de perspectiva da população, a presença limitada do Estado, tanto em termos de resposta por parte dos serviços, como em relação ao cumprimento justo das regras estabelecidas pela sociedade, sufocam aqueles que lidam com a situação. O sofrimento vivenciado pelas ACS, originado nestas percepções, foi por elas expressado em uma das atividades de avaliação, já que, muitas vezes, sentiam-se sobrecarregadas com a problemática abordada durante as visitas domiciliares. Como disse uma ACS, referindo-se ao seu trabalho: “Ouvir faz bem às pessoas, desabafam...”. Mas, por outro lado, o ACS envolve-se nas situações, leva problemas dos clientes para casa, como expressou nesta outra fala: “Está lavando a louça e lembra de um problema, sonha com os problemas dos clientes. ACS deveria ter acesso a psicólogo”. Após as oficinas de levantamento de questões, passou-se à sistematização dos problemas registrados. Com base no saber experiente das agentes de saúde e no saber técnico dos especialistas envolvidos, foram surgindo propostas para a classificação dos riscos encontrados. Como resultado desta atividade, foi elaborada uma “tabela de riscos”, relacionados ao meio, à habitação, às condições de vida da família, ao modo de vida dos componentes da família, e à relação com os serviços de saúde.

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O processo terminou com a construção do roteiro para registro de informação, com base nos procedimentos anteriores. O objetivo do roteiro era guiar a observação da realidade vivenciada pela população e facilitar sua sistematização, por meio do registro de problemas que poderiam ser relevantes para o trabalho em saúde e que não estavam previstos nos formulários do SIAB. O roteiro contemplava informações relativas aos indivíduos, família, moradia, ambiente da comunidade e serviços de saúde. Em seguida à construção do roteiro, foi realizada uma oficina com as agentes de saúde, em que foram relatados casos que haviam sido observados nas visitas domiciliares e nos quais o roteiro tinha servido como instrumento norteador das anotações. Situações complexas de famílias com problemas relacionados ao alcoolismo, violência doméstica ou suspeita de doenças, que não apareceriam em um registro que levasse em conta somente o formulário do SIAB, foram registrados nas anotações das agentes. Os relatos de caso possibilitaram o exercício de elaboração de textos e, ao mesmo tempo, permitiram a discussão dos fatores envolvidos em cada situação. O novo instrumento de registro das visitas domiciliares foi aprovado nesta oficina e agregado à rotina de trabalho das agentes, para os casos em que as ACS percebessem que a ficha de cadastro do SIAB não contemplasse as necessidades de registro de uma determinada situação. Os problemas levantados durante os encontros continham, em grande parte, situações que interferem na saúde dos indivíduos e da família, mas que, na maioria das vezes, estão fora do âmbito de resolução dos serviços de saúde e apresentam-se como questões para as quais não estão disponíveis respostas imediatas, situações-limite (Freire, 1970). Segundo uma agente de saúde, “existem muitas situações em que a população pede ajuda ao ACS, mas este não pode fazer nada. Às vezes não tem a ver com saúde.” Nesse sentido, procurando não incidir no reducionismo do risco focal, buscou-se um critério classificatório para as diversas situações que pudessem orientar a ação dos ACS. Seria possível concluir que os problemas das famílias podem ser classificados segundo três níveis de intervenção: a) problemas passíveis de resolução com os meios disponíveis no serviço de saúde; b) problemas passíveis de resolução com os meios disponíveis na comunidade, dependendo de ação intersetorial; c) problemas não solucionáveis no nível local, que dependem de articulações externas ou mesmo de políticas públicas.

Conclusão A atividade educativa desenvolvida com as ACS permitiu a organização de percepções sobre a complexidade do cotidiano da população, também vivenciado pelas próprias agentes enquanto moradoras da comunidade, e sobre as limitações de lidar com a problemática das famílias de maneira focalizada. O conceito de risco, reconfigurado a partir da percepção coletiva e da leitura das condições concretas de produção e reprodução da vida (Freire, 1970), é apropriado pelos ACS como ferramenta conceitual orientadora de sua atividade de trabalho. Desloca-se o peso do processo decisório sobre o que fazer com as situações identificadas, uma vez que, na reflexão-ação, em lugar de restringir-se a nomeá-las como “de risco”, os ACS já vão apontando as saídas e estratégias para enfrentá-las. Na perspectiva da educação popular e saúde, no entanto, a saída é coletiva (Stotz et al., 2005; Freire, 1993, 1970). Referindo-se à pobreza, Santos (1979, p.10) menciona que “o assunto exige um tratamento dinâmico, no qual todo o conjunto de fatores é levado em conta – pois do contrário haverá ênfase em soluções parciais que são mutuamente contraditórias”. Alerta ainda para a importância de que também o processo de análise se dê em bases coletivas, em uma estrutura analítica que considere o contexto concreto onde se produzem as questões em foco. O conceito de risco construído é, assim, dinâmico, e se desenvolve a partir do compartilhamento de saberes e do desvelamento das múltiplas relações que os diversos problemas estabelecem com o contexto local e global (Carvalho, Accioli, Stotz, 2001). Do ponto de vista do trabalho das ACS, espera-se que as expectativas destas agentes com relação à resolubilidade do seu trabalho adquiram maior racionalidade em relação à sua efetividade operacional, na medida em que se aprofunda a compreensão sobre o contexto dos problemas encontrados. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A problematização de situações-limite recoloca a questão da arbitragem social (Mitjavila, 2002), no sentido de indagar a quem cabe dar respostas para estas situações, e evidencia quão limitado é intervir com base apenas em uma compreensão individualizada sobre risco. Esta compreensão individualizada transparece na orientação dada ao ACS para visitar (ou vigiar?) sobretudo as chamadas “famílias de risco”. Na perspectiva crítica da educação popular, entende-se o processo educativo como a própria construção, também coletiva, da resposta possível, do inédito-viável (Carvalho, Accioli, Stotz, 2001; Freire, 1970). A capacidade de estabelecer laços orgânicos no apoio às estratégias de enfrentamento das situações vivenciadas pela população, e com a organização política de sua comunidade, aliados ao seu potencial engajamento em práticas e movimentos sociais, evidenciam a importância do ACS como ator fundamental para o avanço da mudança desejada, direcionada para um modelo assistencial capaz de contemplar a equidade, a integralidade, a humanização e a participação popular.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

Referências ARAÚJO, J.W.G. Saúde pública, epidemiologia e senso comum: epidemia de meningite como evento social. 2004. Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2004. BACHELARD, G. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.648, de 28 de março de 2006. Dispõe sobre a aprovação da Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família e o Programa Agentes Comunitários de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n.61, seção 1, p.71, 29 mar. 2006. ______. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Referencial curricular para curso técnico de agente comunitário de saúde: área profissional saúde. Brasília, 2004. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/referencial_Curricular_ACS. pdf>. Acesso em: 22 maio 2007. CAPONI, S. A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C.M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendência. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p.5577. CARVALHO, M.A.P.; ACIOLI, S.; STOTZ, E.N. O processo de construção compartilhada do conhecimento: uma experiência de investigação científica do ponto de vista popular. In: VASCONCELOS, E.M. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. São Paulo: Hucitec, 2001. p.101-14. CASTIEL, L.D. Metáforas para uma epidemiologia mestiça. In: ALMEIDA FILHO, N. et al. (Orgs.). Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces e tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p.225-55. CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.16, p.161-8, 2005.

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artigos

ELOS. NÚCLEO DE ESTUDOS LOCAIS EM SAÚDE. Escola Nacional de Saúde Pública. Investigação, ensino, serviços de saúde e sociedade civil: uma proposta de construção compartilhada do conhecimento no nível local. Relatório de atividades: biênio 1995-1996. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. (Mimeogr.) FREIRE, P. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1993. ______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. LUPTON, D. Risk. London: Routledge, 1999. MEHRY, E.E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: MEHRY, E.E.; ONOCKO, R. (Orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p.71-112. MITJAVILA, M. O risco como recurso para a arbitragem social. Tempo Soc., v.14, n.2, p.129-45, 2002. NUNES, E.D. Saúde coletiva: história e paradigmas. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.3, p.106-16, 1998. SANTOS, M. Pobreza urbana. São Paulo: Hucitec, 1979. STOTZ, E.N.; DAVID, H.M.S.L.; WONG UN, J.A. Educação popular e saúde: trajetória, expressões e desafios de um movimento social. Rev. APS, v.8, n.1, p.49-60, 2005. TELLES, V.S. A “nova questão social” brasileira: ou como as figuras de nosso atraso viraram símbolo de modernidade. In: ______. (Org.). Pobreza e cidadania. São Paulo: Ed. 34, 2001. p.139-65. VALLA, V.V. A construção desigual do conhecimento e o controle social dos serviços públicos de educação e saúde. In: VALLA, V.V.; STOTZ, E.N. (Orgs.). Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. p.43-56. VASCONCELOS, E.M. A priorização da família nas políticas de saúde. Saúde em Debate, v.23, n.53, p.6-19, 1999.

Bornstein, V.J.; DAVID, H.M.S.L.; ARAÚJO, J.W.G. Agentes comunitarios de salud: la reconstrucción del concepto de riesgo a nivel local. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.93-101, jan./mar. 2010. Se discute el concepto de riesgo y sus límites como constructivo técnico-científico de representación de la realidad y dispositivo de apoyo a la intervención social. La evolución histórica de la epidemiología y del concepto de riesgo se relaciona a la idea de arbitraje social junto a los grupos populacionales, examinándose la posibilidad de apropiación de este concepto para la ampliación de la percepción y el fortalecimiento de las respuestas sociales a las situaciones de salud y vida, a la luz de una experiencia pedagógica basada en la perspectiva de la educación popular y de la salud con agentes comunitarios de salud de una localidad urbana periférica. Se defiende que los procesos educativos participativos amplían la participación de saberes y la capacidad de analizar críticamente las múltiples relaciones entre los problemas de salud y los contextos de vida local y global, recolocando la cuestión del arbitraje social en las respuestas a las situaciones límite.

Palabras clave: Agentes comunitarios de salud. Formación de concepto. Educación en salud. Riesgo. Recebido em 03/02/2009. Aprovado em 06/09/2009.

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Reforma psiquiátrica, trabalhadores de saúde mental e a “parceria” da família: o discurso do distanciamento *

Leandro Barbosa de Pinho1 Antonio Miguel Bañon Hernández2 Luciane Prado Kantorski3

PINHO, L.B.; HERNÁNDEZ, A.M.B.; KANTORSKI, L.P. Psychiatric reform, mental health workers and the family’s “partnership”: the discourse of distancing. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.103-13, jan./mar. 2010.

This study analyzed the discourse of mental health workers regarding family participation in treatment. The corpus consisted of interviews applied to 17 of the 25 professionals working in a substitutive service in a city in southern Brazil. The theoretical-philosophical framework was critical discourse analysis. The methodological device that supported the systematization of the data was the “axiological-discursive diagram”. It was found that the workers expressed the importance of the family in treating user, but with representation still based on assigning responsibility and blame when the family moves away from the treatment. Gradually, the “partnership” gives way to “distancing” as a care dimension within the mental health services. It is hoped that this study will support continuing reflection on the role of families in mental health, which is an important issue in rethinking knowledge and practices relating to lunatics and madness, and their relationship within the context of psychiatric reform.

Keywords: Language studies. Mental health. Mental health services.

Este estudo analisou o discurso de trabalhadores de saúde mental sobre a participação da família no tratamento. O corpus foi composto por entrevistas aplicadas a 17 dos 25 profissionais que trabalham em um serviço substitutivo de uma cidade da região Sul do Brasil. O referencial teórico-filosófico foi a Análise Crítica do Discurso. O dispositivo metodológico que subsidiou a sistematização dos dados foi o “diagrama axiológico-discursivo”. Verificou-se que os trabalhadores manifestam a importância da família no tratamento do usuário, entretanto, representação ainda pautada na responsabilização e culpabilização, quando a família se afasta do tratamento. Aos poucos, a “parceria” vai dando espaço ao “distanciamento”, como dimensão cuidadora nos serviços de saúde mental. Espera-se que este estudo subsidie a constante reflexão sobre o papel das famílias em saúde mental, temática importante para repensar saberes e práticas sobre o louco, a loucura e suas relações no contexto da reforma psiquiátrica.

Palavras-chave: Estudos de linguagem. Saúde mental. Serviços de saúde mental.

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* Elaborado com base em Pinho (2009), doutorado aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da UFPel. 1 Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas. Rua XV de Novembro, 209. Pelotas, RS, Brasil. 96.015-000. Lbpinho@uol.com.br 2 Departamento de Filologia, Universidad de Almería (Espanha). 3 Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas.

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Reforma psiquiátrica, trabalhadores de saúde mental...

Introdução A reforma psiquiátrica compreende um movimento jurídico, político, social e cultural, que busca reorientar determinados saberes e fazeres conflituosos, ao longo de anos, sobre o fenômeno da loucura. Mais especificamente, procura superar um modelo que ganhou força com o advento da medicina científica na era moderna, quando a loucura é elevada à categoria de doença mental e deveria, por isso, ser afastada com o subterfúgio do discurso de tratamento e internada em instituições especializadas (Luz, 2008). No modelo asilar, de herança pineliana, o louco era considerado um indivíduo perigoso, desarrazoado pela sua própria condição de doente, o qual deveria ser contido em espaços hospitalares psiquiátricos para livrar-se dos vícios de sua razão delirante. Nesse sentido, o modelo asilar preconizava o afastamento do doente de seus vínculos, já que a reaprendizagem social viria pela dedicação integral e submissão às regras e rotinas da instituição manicomial (Costa-Rosa, 2000). Nesse sentido, testemunhou-se uma ênfase generalizada na família como aquela cúmplice resignada e grata pela internação do paciente. Isso porque a família não era vista como parceira, mas como um sistema doente, fragilizado, sendo parcialmente culpabilizada pela doença de seu parente. Em prol da recuperação, o doente deveria ser afastado do convívio com a família, pois somente assim era possível resgatar o indivíduo e restabelecer sua razão desviada pelos vícios oriundos da situação de doença mental (Saraceno, 2001). Se no contexto manicomial a família é deslocada para fora do tratamento, no contexto da reforma psiquiátrica ela passa a ser entendida como o cenário fundamental da recuperação do sujeito em sofrimento mental. Isso porque a família é a conexão desse indivíduo com a sua comunidade e, mesmo que também esteja doente, ela deve ser incluída, acolhida, tratada e cuidada no interior dos serviços, como protagonista do tratamento (Lobosque, 2007). Assim, a família é retomada não como cúmplice, mas como parceira; não como agente etiológico, mas como uma rede de relações, um suporte para o indivíduo enfrentar condições de adversidade em sua vida. A família é uma extensão dos laços afetivos, possui seu próprio sistema de crenças, costumes, experiências e vínculos sociais, assim como um modo peculiar de organização na sociedade. Portanto, a família vai além do elo de parentesco para ser elevada à condição de aliada na luta contra o sofrimento imposto pelo transtorno mental. No entanto, entendemos que inserir o círculo de relações do louco durante o tratamento vai além das expectativas depositadas pela própria potência do movimento no contexto brasileiro. Já há alguns estudos (Oliveira, Alessi, 2005; Arejano, 2002) que discutem a interlocução de determinados saberes e fazeres “antirreformistas” em pleno seio de transformações, quando os trabalhadores deslocam objetos de trabalho centrado no sujeito para desenvolver instrumentos voltados para o tratamento da doença. Também é possível analisar certas práticas direcionadas para o estabelecimento de relações de tutela e culpabilização das famílias, como resquícios de uma atenção normalizadora e concentrada no poder disciplinar. Nesse sentido, a tarefa de inserir os vínculos afetivos dos usuários no tratamento parece esbarrar em determinados vieses manicomiais, os quais reproduzem discursos em que a retórica da verdade passa a ser o saber que pouco liberta e muito exclui. Isso também é responsável por perpetuar estereótipos sociais que enxergam a loucura como um potencial limitante da vida e um perigo social, um problema que a família não está preparada para resolver e deve se afastar para permitir o tratamento. Este estudo, portanto, pretende analisar o discurso de trabalhadores de saúde mental de um serviço substitutivo sobre a participação da família no tratamento. Procurou-se identificar contradições, manifestações e conflitos presentes nos discursos, de modo evidenciar os movimentos de aproximação e distanciamento que se deslocam dialeticamente no espaço social de cuidados.

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PINHO, L.B.; HERNÁNDEZ, A.M.B.; KANTORSKI, L.P.

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Metodologia Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. O corpus deste trabalho é composto por entrevistas aplicadas a 17 dos 25 profissionais de saúde mental que trabalham em um serviço substitutivo de uma cidade da Região Sul do Brasil e que se dispuseram a participar da pesquisa. Foram aplicadas três perguntas-chave, a saber: 1 Fale sobre o atendimento no serviço; 2 Fale sobre os fatores que podem contribuir para um melhor funcionamento do serviço, e 3 Fale sobre sua prática em saúde mental nesse CAPS. As entrevistas foram gravadas em fitas cassete e, depois de concluídas, encaminhadas a dois digitadores diferentes, responsáveis pela transliteração das gravações. Nos estudos do discurso, a transcrição concentra-se na descrição detalhada de todos os fenômenos semióticos envolvidos nas conversações, como: pausas, entonações, corte de sílabas ou sinais verbais/ não verbais. No caso da transliteração, compreende-se a transcrição dos signos linguísticos, mas utilizando-se uma ortografia convencional para descrever apenas os enunciados produzidos pelos falantes, sendo o nível mais comum de representação de todos os corpus orais (Llisteri, 2008). O referencial teórico-metodológico que orientou a análise foi a Análise Crítica de Discurso (Fairclough, 2006). Os dados foram organizados conforme o dispositivo chamado de “Diagrama Axiológico-Discursivo” (Pinho, 2009). Essa metodologia foi desenvolvida no intuito de encontrar certo padrão discursivo nos informantes, ou seja, um “discurso prototípico”, que, por ser naturalmente valorativo, já que agrega juízos de valor a comportamentos ou ações humanas, está inserido no âmbito da axiologia. No caso das famílias, a aplicação do dispositivo revelou que o discurso dos trabalhadores sobre elas está voltado para o “distanciamento”. E também mostrou o padrão ideológico do trabalhador sobre a família, vista como um sistema que deposita suas responsabilidades no serviço e se afasta, quando deveria estar participando ativamente do tratamento. Como o objetivo era poder encontrar um padrão discursivo que revelasse a intenção de todos os informantes, não é necessário reproduzir fragmentos discursivos de todos eles. Optamos por apresentar apenas o discurso mais representativo da dimensão axiológica analisada e alguns fragmentos do mesmo, que possam contemplar a representação do distanciamento. O projeto foi submetido previamente a avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal e Pelotas (UFPel), obtendo parecer favorável ao seu desenvolvimento. Foi, também, garantido o anonimato dos sujeitos do estudo e respeitados todos os preceitos ético-legais que regem a pesquisa com seres humanos, como é preconizado pelo Ministério da Saúde (Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde) e Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem.

Resultados e discussões Qualquer situação de adoecimento ou sofrimento pode alterar a nossa percepção do mundo. A doença é um processo que faz parte do contexto da vida, sendo, por isso, impossível dissociá-la como uma entidade independente. A doença às vezes limita, é ansiogênica, prejudica o desenvolvimento das atividades cotidianas e, também, traz influências na constituição das relações entre os sujeitos. A doença altera nossa maneira de viver coletivamente, a nossa relação com o mundo e, mais intimamente, a nossa família. Uma situação de enfermidade crônica gera um impacto psicossocial importante na família. No entanto, toda a situação eminentemente progressiva pode ajudar na consolidação dos vínculos emocionais entre os familiares, pois dá à família mais tempo para preparar-se para as mudanças antecipadas. Em especial, vai proporcionando a todos um reajustamento temporal, além de uma aprendizagem significativa sobre o problema clínico, a administração dos momentos de crise e a alternância de papéis (Rolland, 2001). Nesse sentido, entendemos que qualquer situação de adversidade pode ajudar na descoberta de novos potenciais e novos vínculos afetivos dentro do grupo familial. Isso quer dizer que o agente estressor até pode provocar alterações no modo de vida da família, mas também ajuda no processo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de readaptação ao momento, fortalecendo os laços de amizade, o respeito, a solidariedade e a convivência pacífica entre os membros do grupo. A família é a célula-mestra da sociedade contemporânea, atuando não somente na constituição existencial dos indivíduos, como também na proteção e socialização de seus membros (Romagnoli, 2006). Em situações potencialmente estressoras, como no processo de adoecimento, todo o contexto familial é afetado. Isso porque a família é uma continuidade da vida do sujeito, ela possui suas crenças, seus costumes, inclusive pode sofrer, juntamente com seu parente, as experiências limitantes causadas pela doença. O serviço de saúde que consegue adaptar-se ao modo de operar centrado no sujeito e passa a incluir a família como parceira em seus cuidados ajuda no fortalecimento de vínculos, na maior integração entre os indivíduos e no desenvolvimento integral do ser humano (Pulido, Monari, Rossi, 2008). Em se tratando de serviços substitutivos, um dos objetivos é incentivar a família a participar da melhor forma possível e viável do cotidiano assistencial dos serviços. Os familiares, muitas vezes, são o elo mais próximo que os usuários têm com o mundo, sendo, por isso, um sistema muito importante para o trabalho dos CAPS. A inclusão da família como copartícipe do tratamento vai além do mero incentivo ao usuário, mas sobretudo pela participação direta nas atividades do serviço, tanto internas como externas (Brasil, 2004). Os trabalhadores têm consciência da importância da família no tratamento do usuário. Fato este traduzido no desenvolvimento de atividades voltadas para ela. O fragmento abaixo discute um pouco a proposta inclusiva do serviço em relação ao familiar: Investigador – “[...] Inicialmente eu queria que tu comentasses sobre o atendimento no serviço. É claro que a gente já vem comentando informalmente, mas eu gostaria que tu pudesses comentar alguma coisa pra ficar registrado”. Trabalhador – “Bom o atendimento é... pra pessoas com transtornos mentais graves, né? A gente atende é... os usuários acima de 16 anos, é um trabalho direcionado pro usuário, pro usuário que ta apresentando esse transtorno mental né, grave, ta na sua fase evolutiva, a gente retoma, então a gente prioriza os que são mais graves, vamos dizer assim, né, que tão com sintomas mais exacerbados e existe também o atendimento voltado pro familiar, né? Que ele seria um, uma retaguarda também pro familiar no atendimento, desse, além de estar, é, recebendo também um atendimento, mas a gente vê que esse, ah, 50% vamos dizer assim, do atendimento, da eficácia vai depender também da participação desse familiar, né, pra ele ta inserido nesse tratamento né, colaborando também com esse tratamento né? É... o atendimento diário, das 7 as 18hs, é...a gente ta cadastrado como CAPS II, por causa até da questão do município ter uma população acima de 200.000, a gente ta com 480.000 habitantes, né...é...eu vejo que um atendimento na área de saúde mental diferenciado, né, nós temos um atendimento de, pra transtornos mentais na rede básica de saúde e esse atendimento que está hoje no, é considerado da rede básica, é uma referência, é dentro do serviço de referência. Acho que é isso”.

No contexto de transformações da assistência psiquiátrica, uma instituição que se propõe a inserir a família dentro do plantel de práticas está responsabilizando-se por ela como se fosse uma extensão das relações sociais dos usuários. Em outras palavras, quando atendemos o usuário, devemos pensar que, por trás dele, existe um sistema que pode ou não estar vivenciando uma situação de sofrimento. Atendê-lo, acolhê-lo e incluí-lo pode, nesse sentido, ser o primeiro passo em direção ao redimensionamento do cuidado psiquiátrico no interior dos serviços. Existe uma expressão gramatical que possibilita pensar em quanto o serviço está preocupado em atender as demandas da família. Nessa construção, o recurso linguístico utilizado se trata de um conector aditivo (“e”). Logo após o sujeito discorrer sobre o atendimento com base no perfil da clientela (já discutido anteriormente), o trabalhador se utiliza desse conector para mostrar que também existe atendimento ao grupo familial, como um evento paralelo e complementar ao do indivíduo em sofrimento mental. 106

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O fato de os trabalhadores lembrarem-se da família dentro das práticas do serviço já revela uma ampliação teórica e técnica da dimensão do cuidado em saúde mental, compatível com as prerrogativas de um modelo de atendimento que luta pela inclusão de um sistema naturalmente excluído do contexto de tratamento. Entretanto, no momento em que o trabalhador afirma que “também existe atendimento ao familiar”, ele chama a atenção para a própria concepção institucional de família assumida pelo serviço, que parece incerta. Ao dizer que também existe atendimento ao familiar, ele tanto pode estar pensando na família como um coletivo singular para o qual o serviço está atento, como também pode não ter a percepção suficiente de que a família é um sistema que faz parte do contexto de vida do usuário. Nesse contexto, há uma palavra que, de certa maneira, ajuda no esclarecimento dessas incertezas. A família parece ser lembrada no discurso do trabalhador como alguém que precisa de “retaguarda”. Do ponto de vista discursivo, essa é uma das primeiras representações dos trabalhadores em relação ao atendimento ao grupo familial. A palavra “retaguarda” aqui está deslocada de seu contexto original (o contexto militar), no entanto, parece ter seu sentido preservado. Nesse caso, ela participa do rol de linguagens trópicas, sendo aqui utilizada como metáfora. A metáfora faz parte do uso figurativo da linguagem, como parte do rol de conhecimentos retóricos que buscam modificar a forma de recepção da mensagem ao interlocutor. A essência da metáfora está relacionada à possibilidade de se conhecerem e experimentarem determinados conceitos no lugar de outros, uma vez que a metáfora apenas sobrevive se existirem pessoas dentro do sistema conceitual. É dizer que uma metáfora pode servir de veículo para a compreensão das coisas apenas pela força de sua base experiencial (Lakoff, 1980). No contexto militar, quando oferecemos retaguarda a alguém, quer dizer que estamos fornecendo a esta pessoa proteção, segurança e confiança contra um momento de adversidade (uma guerra, por exemplo). No caso da saúde mental, a retaguarda à família significa que o serviço está atento às dificuldades da família e procura dar um suporte responsável, dinâmico e efetivo à desestabilização proporcionada pelo sofrimento mental. Quer dizer que, além do suporte e do apoio psicoemocional, os trabalhadores parecem estar preocupados com a inserção da família no tratamento, sobretudo quando esta (totalmente ou em parte) vivencia diariamente as circunstâncias limitantes do sofrimento, suas manifestações nem sempre espontâneas, bem como os cuidados, que exigem tempo e disponibilidade. Nesse caso, parece que os trabalhadores vêm buscando continuamente formas e estratégias para compartilhar, incluir e acolher suas demandas como parte do projeto terapêutico. De outro lado, a questão do atendimento como uma “retaguarda” pode pressupor o desenvolvimento de diferentes reações entre os agentes do processo. Primeiro, podemos pensar numa consolidação de laços afetivos e de confiança emocional com a família, fundamentais num contexto em que se preconiza o vínculo contratual como instrumento genuíno de cuidado contemporâneo em saúde mental. Em segundo lugar, podemos perceber que a “retaguarda” pode enviesar esse mesmo cuidado e transformá-lo numa relação de dependência da família em relação ao serviço. Ou, em terceiro lugar, quando a “retaguarda” oferecida para a família passa a não ser correspondida, ou seja, quando a família resiste ao acompanhamento sistemático no serviço ou se afasta, sobretudo com o subterfúgio de aliviar as suas demandas psicoemocionais. Nesses dois últimos casos, pode ser que o vínculo entre profissionais e famílias esteja mediado por alguns conflitos na comunicação, cada um deles projetando, no outro, sucessos, desafios e impotências no decorrer do tratamento do usuário. Em certo sentido, compreendemos que a participação da família é fundamental para a recuperação do indivíduo em sofrimento mental, justamente pelo fato de ela ser uma fonte de capitalização de forças que gera conforto, sensação de amparo e estabilidade. Contudo, uma família que vivencia uma situação de sofrimento mental também está sujeita a desenvolver uma série de sentimentos contraditórios em relação ao tratamento. Se, por um lado, o sofrimento já é um evento culturalmente estigmatizado, do qual a família tenta se proteger, por outro, ela busca um refúgio no serviço para que este lide com as questões mais complexas que envolvem o comportamento de seu parente. Nesse caso, é possível que a família delegue a responsabilidade do cuidado ao serviço como uma saída para o alívio da sobrecarga físico-emocional gerada pelo sofrimento mental.

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A família que vivencia uma situação de sofrimento mental está sujeita a passar por três tipos de sobrecarga. A primeira diz respeito à sobrecarga financeira, especialmente quando o indivíduo em sofrimento mental apresenta um conjunto de manifestações comportamentais que exigem atenção integral da família, comprometendo sua inserção no mercado de trabalho. Na segunda situação, ocorre a sobrecarga de cuidado, em que a família se situa entre a prestação de um cuidado zeloso e preocupado com o outro, mas que se desgasta pela necessidade contínua de readequação de suas atividades da vida cotidiana em função dos encargos gerados pelo sofrimento mental. Por último, temos a sobrecarga físico-emocional, com o aparecimento de problemas orgânicos ou psicológicos derivados do cuidado intensivo ao portador de sofrimento mental, como problemas gastrintestinais, privação do sono e esgotamento emocional (Borba, Schwartz, Kantorski, 2008). Para a família de um parente com transtorno mental, o fardo que gera a sobrecarga é causado por uma série de determinantes físicos, emocionais e sociais. A família, geralmente, é responsável por prover toda a atenção e o acolhimento necessários ao parente doente. Isso cria uma demanda que extrapola as relações mais subjetivas, pois altera sua percepção sobre a conduta humana em sociedade, seus hábitos de vida diários (dormir, comer, entre outros), suas rotinas domésticas e externas, inclusive sua organização para enfrentar as dificuldades econômicas impostas pelo sofrimento, nem sempre de curto prazo. Com a readaptação das tarefas internas, algumas pessoas podem ficar mais sobrecarregadas que outras, e isso exige que a família busque constantemente estratégias de flexibilização, que demandam mais esforço e esgotamento por parte dela (Koga, Furegato, 2002). No caso da saúde mental, todos os afetos (positivos ou negativos) sentidos pelos trabalhadores podem ser um sinal de como o relacionamento deles com as famílias ainda parece marcado mais pela responsabilização que pelo comprometimento genuíno. Por exemplo, no discurso anterior, é possível constatar a necessidade de participação da família durante o tratamento de seu parente, que, estando suficientemente envolvida na mesma medida que o serviço, potencializa o processo de intervenções no campo psicossocial. No entanto, se o sucesso do tratamento “vai depender” do envolvimento da família, é o mesmo que dizer que os trabalhadores se comprometem, mas que não parecem se responsabilizar por completo pelo tratamento. Assim, pode-se abrir uma lacuna entre o “dizer” do trabalhador – sobre o cuidado solidário, interessado pelo contexto da família – e o “fazer” – transportado para o terreno da responsabilização pelo não-envolvimento integral dela. Assim, parece haver uma controvérsia no discurso dos trabalhadores com relação à inclusão da família, já que esta é lembrada como parceira do tratamento – o que a aproxima –, ao mesmo tempo em que há dificuldades de livrar-se de padrões discursivos, os quais impedem a superação dos modelos tradicionais de responsabilização e culpabilização do grupo familial – que distanciam. O discurso abaixo é um reflexo dessa realidade: Investigador – “Então eu gostaria que tu me comentasse, né? Que tu me falasse sobre os fatores que possam contribuir para o melhor funcionamento do serviço”. Trabalhador – “Acho que uma coisa, uma capacitação geral de funcionários”. Investigador – “[[Uhum::]]”. Trabalhador – “[[Um]] aumento assim, investir em capacitação, e nisso nossa secretaria de saúde é bem:: devagar... né? Eu acho que se poderia se investir mais na nossa capacitação... poderia melhorar os recursos, né? Verba, recurso financeiro, né? Poderia ser melhor pra gente poder fazer mais coisas, que nem, vai fazer uma festa junina e a gente acaba tendo de fazer::, tirar dinheiro do bolso pra comprar brinde pra poder fazer a festa.... então assim até o nosso carro que:: agora que a gente ta com essa ambulância ali, mas chegou uma época da gente andar com um carro sem fundo...que não tinha freio então você tem que andar com um carro que não tinha freio ...então assim, coisas bem precárias, então assim quando fala de saúde mental, eles mandam tudo que é resto que vai pra saúde mental (( rindo ))”. Investigador – “Uhum::. Então tu acha assim que a saúde mental nesse momento:::né? Hoje como ela esta sendo vista, ela fica meio que desacreditada [[no]] município, [[ é isso?]]”.

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Trabalhador – “[[Aham]] [[bem]] eu acho que falta até que esteja um... aí lá a assembléia na câmara como é que é o nome? De lá partiu prum fórum, mas pensa num debate [[né]]?”. Investigador – “[[Aham:]]”. Trabalhador – “E o que eu vi assim:: meu, tinha a Tânia que é vereadora, mas assim pouquíssimos vereadores, e ficaram o que, meia hora e foram embora, então um negócio assim, só foram pra consultar... tipo assim faltou interesse mesmo da nossa parte política, eu pensei assim que eles se interessassem mais... até mesmo a população, porque foi convidado os familiares, foi mandado convite pra quase tudo, e foi uma minoria de familiar, uma minoria de gente... então assim o povo não: se interessa muito”. Investigador – “Tu acha que a população também não se [[mobiliza]]?”. Trabalhador – “[[Não, não]]”. Investigador – “Normalmente a secretaria não se mobiliza:: pra ajudar a saúde mental e acreditar mais na saúde mental, a população [[também]]”. Trabalhador – “[[A população também]] não... mesmo porque a população assim ela:: falta orientar, se vê que é haver muito do cultural isso... mas é bem assim:, saúde mental é uma coisa marginalizada, né? Então assim paciente mental, ele não dá voto... E assim os que tão ali procurando é familiar que tem alguém com transtorno né? Que ta passando por essa dali é aquele que sim, né? Porque senão a maioria... e muitas vezes assim, o, por exemplo, o paciente mental, dificilmente ele tem família né? Que a família se afasta... [[e]]”.

Inicialmente, ao discutir o (des) apoio da gestão municipal de saúde mental, o trabalhador comenta que falta interesse por parte dos familiares para participar das discussões. Essa relação de desinteresse foi explicada tendo por base o envio de convites que, no entanto, foram pouco correspondidos. Para explicar as relações existentes entre a ausência da família e o desinteresse do ponto de vista do trabalhador, existem duas estruturas linguísticas a serem destacadas: uma delas diz respeito à hipérbole e a outra se refere ao uso de alguns marcadores discursivos. A hipérbole é a modalidade figurativa da linguagem em que há novamente o emprego da subjetividade, desta vez de maneira exageradamente intencional (tanto pra cima como para baixo). Com as hipérboles, o foco desvia-se da palavra propriamente dita para acentuar, de forma relativamente “dramática”, aquilo que se quer dizer, transmitindo uma imagem ampliada da realidade. O que determina o poder da hipérbole nas inscrições enunciativas não é o conteúdo informacional da sequência, mas a sua orientação argumentativa em relação ao contexto em que aparece (Charaudeau, Maingueneau, 2006). A hipérbole inscreve uma funcionalidade na linguagem diferente de outras estruturas linguísticas. Por ser flexível a ponto de aumentar ou diminuir a expressividade de determinadas relações semânticas, a hipérbole sobrevive não por causa do exagero em si que provoca nos contextos conversacionais, mas por causa da compreensão exagerada que tem o interlocutor sobre esse contexto. No caso da saúde mental, no momento em que o trabalhador afirma que o serviço convidou os familiares dos usuários para participarem das reuniões, a contestação do convite veio na forma de uma “minoria de familiar”, uma “minoria de gente”. Como o diminutivo “minoria” aqui está funcionando como uma figura hiperbólica, ele dá a impressão de que o serviço fez um chamamento especial para praticamente toda a comunidade de Joinville (“quase tudo”), sendo, contudo, correspondido com uma pequena ou “quase insignificante” parte dela (“minoria de gente”). Assim, os trabalhadores se justificam, colocando-se numa posição resignada de que “fizeram o que podiam” e transferindo a responsabilidade pelos problemas internos durante o tratamento para a família. Entendemos que esse juízo negativo de valor é pouco compatível com a imagem positiva do compromisso e da preocupação anteriormente demonstrada. Há um advérbio com seu adjetivo subsequente que está funcionando como marcador discursivo e que, também, permite realizar essa inferência (“dificilmente”). Na ocasião, o advérbio está intensificando uma atitude valorativa excludente (e equivocada) por parte do trabalhador, já que este parece referir-se ao usuário como se ele fosse um “ser sem vínculos”. Isso quer dizer que o indivíduo, quando se transforma em usuário do serviço, ficaria sem família, já que o serviço COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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convoca, oferece atendimento e ela não comparece. Fica aqui um jogo truncado de “transferência de responsabilidades”, como se a família responsabilizasse o serviço pelo cuidado, por ser sua obrigação, e o serviço responsabilizasse a família pelo afastamento do tratamento. Claro que o trabalhador procura argumentos convincentes para o fato do distanciamento da família no tratamento. Seu discurso se volta para o estabelecimento de certas relações de implicação, todas elas transferindo graus de responsabilidades para o grupo familial (valorações negativas do ponto de vista de juízos de valor). Por exemplo, ao ser convidada e não comparecer, isso dá margem para o trabalhador imaginar que a família está afastada. Agora, se ela está afastada porque transfere o cuidado para os trabalhadores, é porque ela está desinteressada pelo tratamento. E se ela está desinteressada é porque desconhece o fenômeno da loucura e a sua própria importância como copartícipe do tratamento. O interessante nessa implicação é que existe uma intenção de transferir responsabilidades para a família, quando, na verdade, forma-se um circuito que se inicia e termina na equipe, pois ela responsabiliza a família (pelo afastamento), mas fica responsabilizada implicitamente (pelo desconhecimento da família). A expressão atenuante “não se interessa muito” complementa essas implicações. Na verdade, quando dizemos que alguém “não se interessa muito”, isto assemelha-se a dizer que essa pessoa “se interessa quase nada”. O trabalhador não quer ser ameaçador no contexto conversacional, o que poderia dar margem ao interlocutor pensar que os trabalhadores preferem responsabilizar a família a assumi-la como parte de um projeto terapêutico institucional. Isso seria um equívoco importante para um serviço que nasceu pela reinvenção das coisas e que preconiza a inclusão como premissa fundamental de sua prática. Esse conjunto de manifestações atitudinais, que agregam juízo de valor aos eventos discursivos, servem para avaliar positiva ou negativamente o comportamento humano, sempre levando-se em consideração o conjunto de normas institucionalizadas pela sociedade. Essas normas que estão em jogo revelam regramentos, responsabilidades ou expectativas sociais, sendo, por isso, possível avaliar se o comportamento do sujeito está sendo moral, imoral, legal ou ilegal, socialmente aceitável ou não, normal ou anormal, e assim por diante (White, 2008). Nesse sentido, em se tratando de processos enunciativos, o falante pode governar as condições contextuais e sintáticas necessárias para transmitir aquilo que obviamente quer transmitir. Tal justificativa se deve ao fato de que o enunciador se serve da linguagem para influenciar, em maior ou menor grau, o comportamento daquele que enuncia. Por exemplo, numa condição de interrogação, o enunciador pode querer suscitar uma “resposta”; quando afirma com muita certeza um fato, está na verdade promovendo uma “intimação” (uma ordem, um chamado). Essas relações revelam o potencial dialógico do discurso, as quais podem buscar, na materialidade da linguagem, sempre novas caracterizações para os mesmos eventos (Benveniste, 1999). No caso da saúde mental, durante séculos sustentou-se a tese de que o fechamento da família sobre si mesma - às vezes associado à supervalorização, à idealização de uma família nuclear perfeita e à intensificação dos pensamentos de que a família não deve se dissociar ainda mais na situação de doença - contribuía para a constituição de um longo processo de culpabilização do grupo familial. Para mudar isso, é necessário repensar o lugar da família no tratamento, de preferência sem a formação de estereótipos que mais reforçam o isolamento do que o vínculo. A família precisa expandir, expressar sua singularização, problematizar a loucura para que possa ser re-significada enquanto parceira, e não como cúmplice ou vítima do processo de adoecimento psíquico (Melman, 2006). No contexto do relacionamento interpessoal, é comum se agregarem juízos de valor aos comportamentos humanos. Representando a família como um grupo “desinteressado”, por estar “afastado” do serviço, ou seja, culpabilizando esta por um evento relativamente discutível, o trabalhador vai transformando a “aliada” em “vilã” do tratamento. De um lado, fica o trabalhador que acolhe, mas responsabiliza; de outro, encontra-se a família, que se afasta porque quer, pode ou porque só necessita de um tempo para reorganizar-se e cuidar de suas outras demandas, muitas vezes esquecidas pelos encargos do sofrimento mental. Logo, com a falta de relacionamento dialógico, fica difícil envolver um grupo que já foi penalizado culturalmente por não saber “controlar o seu louco” perante a comunidade. Uma das características mais marcantes da sociedade moderna está na construção de todo um 110

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sistema de culpabilização. Nesse sistema, os atores vão desenvolvendo mecanismos que servem de imagem de referência a fatos ou experiências vividas, que impõem certo grau de comparabilidade às ações humanas. A sociedade vai se condicionando ao enquadre de situações complexas da vida em grandes categorias unificadoras e redutoras, o que bloqueia o desenvolvimento da criatividade, da inovação e da transformação (Guattari, Rolnik, 2005). Sendo assim, para re-significar o atendimento à família, não basta dizer que acolhemos para depois cobrarmos por esse acolhimento. Deve-se ter a consciência de que é preciso entendê-la como coletivo singularizado que se organiza como pode para participar do processo de reabilitação psicossocial. O cuidado dos trabalhadores, livre dos juízos de valor negativo (afasta-se, nega, não aceita, desconhece), deve encarar a família como uma aliada no processo de tratamento do usuário. Independente de conhecer ou não, aceitar ou não, afastar-se ou não, inclusão implica valorização das subjetividades e protagonismo. Um protagonismo que é construído na convivência recíproca do cotidiano, quando serviço e família se entendem como parceiras, compartilham as dificuldades e propõem alternativas. Famílias e serviço, juntos, constroem relações genuínas, onde os juízos de valor moral que não agregam crescimento humano dão lugar à flexibilidade, à autonomia e à participação horizontal.

Considerações finais Este estudo apresentou algumas das representações discursivas dos trabalhadores de saúde mental sobre a participação da família no tratamento do seu parente. Evidencia-se uma ênfase na culpabilização e na responsabilização do grupo familial, como se ele fosse responsável pelo seu afastamento do tratamento, quando, na verdade, não parece haver um movimento contrário que descubra os reais motivos para isso. É claro que o fato de a família ser lembrada como copartícipe do tratamento é um avanço importante no contexto da reforma psiquiátrica brasileira. No entanto, é preciso repensar, no cotidiano da prática, sobre as estratégias de negociação com as famílias, para evitar que a parceria se transforme em responsabilização, assim como a contratualidade se transforme em culpabilização. Dimensões valorativas na prática que pouco auxiliam na ressignificação da loucura como fenômeno da existência, tampouco a sua inclusão no contexto da comunidade. Esperamos que este estudo sirva de subsídio para promover a constante reflexão sobre o papel das famílias em saúde mental, temática importante para redimensionar saberes e práticas sobre o louco, a loucura e suas relações no contexto da reforma psiquiátrica.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AREJANO, C.B. Reforma psiquiátrica: uma analítica das relações de poder nos serviços de atenção à saúde mental. 2002. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2002. BENVENISTE, E. Problemas de lingüística general II. 15.ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 1999. BORBA, L.O.; SCHWARTZ, E; KANTORSKI, L.P. A sobrecarga da família que convive com a realidade do transtorno mental. Acta Paul. Enferm., v.21, n.4, p.588-94, 2008.

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PINHO, L.B.; HERNÁNDEZ, A.M.B.; KANTORSKI, L.P.

PINHO, L.B.; HERNÁNDEZ, A.M.B.; KANTORSKI, L.P. Reforma psiquiátrica, trabajadores de salud mental y la cooperación de la familia: el discurso del distanciamiento. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.103-13, jan./mar. 2010. Este estudio ha analizado el discurso de los trabajadores de salud mental sobre la participación de la familia en tratamiento. El corpus se compone de entrevistas aplicadas a 17 de los 25 profesionales que trabajan en un servicio substitutivo de una ciudad de la región Sur de Brasil. El referencial teórico-filosófico ha sido el Análisis Crítico del Discurso. El dispositivo metodológico que ha subsidiado la sistematización de los datos es el “diagrama axiológico-discursivo”. Se verifica que los trabajadores manifiestan la importancia de la familia en el tratamiento del usuario; sin embrago representación aún pautada en la responsabilización y culpabilización, cuado la familia se aparta del tratamiento. Poco a poco la cooperación va dando espacio al distanciamiento como dimensión cuidadora en los servicios de salud mental. Se espera que este estudio pueda subsidiar la constante reflexión sobre el papel de las familias en salud mental, temática importante para repensar saberes y prácticas sobre lo loco, la locura y sus relaciones en el contexto de la reforma psiquiátrica.

Palabras clave: Estudios del lenguaje. Salud mental. Servicios de salud mental. Recebido em 21/03/2009. Aprovado em 17/07/2009.

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“Riesgo”, “peligrosidad” e “implicacion subjetiva”:

un analisis de las decisiones de internacion psiquiatrica en la ciudad de Buenos Aires*

María Jimena Mantilla1

MANTILLA, M.J. “Risk”, “dangerousness” and “subjective implication”: an analysis from psychiatric hospitalization decisions in the city of Buenos Aires. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.115-26, jan./mar. 2010.

This paper describes and analyzes the decision-making process for psychiatric hospitalization using an ethnographic approach. It concentrates on the issue of dangerousness and risk, which are the conditions that define hospitalization criteria from a psychiatric perspective. It analyzes the psychoanalytical arguments regarding hospitalization as a therapeutic strategy. The results from the analysis show that decision on whether to hospitalize an individual are made through the practical, situational and contextual knowledge presented on each occasion. The professional’s institutional position and membership of a specialty, the theoretical readings of the patient’s situation and, finally, the availability of alternative resources are factors involved in such decisions.

O artigo descreve e analisa os processos de decisão de hospitalização psiquiátrica a partir de uma aproximação etnográfica. Concentra-se na questão da periculosidade e do risco, condições que definem o critério de internação desde uma perspectiva psiquiátrica. Analisa os argumentos psicanalíticos sobre as hospitalizações como estratégia terapêutica. Os resultados da análise mostram que internar ou não internar a uma pessoa é decidido mediante um saber prático, situacional e contextual posto em jogo em cada momento. Nessa decisão operam o lugar institucional do professional, a pertencimento a uma especialidade, as leituras teóricas sobre a situação do paciente e finalmente, a disponibilidade de recursos alternativos.

Palavras-chave: Hospitalização. Periculosidade. Psiquiatria. Psicanálises.

Keywords: Hospitalization. Dangerousness. Psychiatry. Psychoanalysis.

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*Este artículo es producto del análisis de los resultados de mi tesis de maestría “Prácticas y discursos “psi” en torno a las internaciones. Etnografía de un hospital psiquiátrico de la ciudad de Buenos Aires. 1 Maestría en investigación en Ciencias Sociales. Universidad de Buenos Aires, Argentina. Instituto de Investigaciones Gino Germani, Comisión Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas. Calle Penna, 705, 1º C. Vicente López. Buenos Aires, Argentina. jimenamantilla@yahoo. com.ar

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Introducción En la actualidad el sistema de salud mental argentino se caracteriza por ser básicamente asilar, la internación psiquiátrica constituye una de las pocas herramientas terapéuticas para aliviar las situaciones de padecimiento mental. La demanda de internación supera en algunos casos la capacidad de los servicios. No obstante, en las últimas décadas asistimos a un progresivo cuestionamiento de la institución manicomial impulsado por debates legislativos, proyectos políticos de reforma psiquiátrica y experiencias desmanicomializadoras concretas en distintas partes del país. En este contexto, resulta necesario examinar no sólo las condiciones sociales, económicas y culturales que favorecen la ocurrencia de las internaciones psiquiátricas sino también las modalidades, los actores y los criterios que conforman los procesos de decisión/clasificación que anteceden a las internaciones psiquiátricas. En el campo de la psicopatología las investigaciones buscan establecer relaciones estadísticas entre la internación psiquiátrica, las características sociodemográficas, el diagnóstico de los pacientes y el grado de peligrosidad (Glover, Arts, Suresh, 2006; Folino, Franklin 2004; Rabinowitz, Massad, Fennig, 1995; Slagg, 1993; Somoza, Somoza, 1993; Appelbaum, Hamm, 1982). Los aspectos vinculados con los criterios de decisión son poco estudiados. En este sentido, las internaciones psiquiátricas son usualmente investigadas desde la epidemiología psiquiátrica. Estas investigaciones hacen una discriminación por diagnóstico psiquiátrico y deterioro cognitivo y social como variables centrales para explicar las causas de múltiples internaciones en la trayectoria de un mismo paciente (Strejilevich, 2001). La mayoría de los trabajos en esta línea intenta determinar factores predictivos de rehospitalización. (Gunnel et al., 2008; Bindman, Reid, Szmukler, 2005; Bergen, 1998; Daniels, 1998; Appleby, 1996; Figuerido, 1995; Laessle, 1987). Otras investigaciones expresan que el número de reingresos ha ido aumentando en los últimos años y que el costo de las reinternaciones es un factor central para que el tema se instale en la investigación (Agrest et al., 1993). Los trabajos mencionados, sin embargo, no indagan en las bases en que se apoyan las decisiones de internación. Asimismo, en los abordajes de las ciencias sociales acerca de la problemática de la salud mental, estos aspectos son poco explorados. Para comprender cómo se estructuran - en base a que tipo de indicadores y criterios - las decisiones de internación, se requiere un abordaje etnográfico que permita documentar in situ dichos procesos. El objetivo de este artículo es examinar las decisiones de internación psiquiátrica a partir de cómo los saberes psiquiátricos y psicoanalíticos interpretan y definen las nociones de “peligrosidad”, “riesgo” e “implicación” o “responsabilidad subjetiva”. En primer lugar describo la noción de peligrosidad, condición médica-legal de internación psiquiátrica. Analizo el concepto de “riesgo para sí y para terceros”, criterio a través del cual se evalúa la peligrosidad. Asimismo planteo como tensión inherente al análisis de la peligrosidad, la posibilidad de sobreestimar o subestimar la ocurrencia del riesgo para sí o para terceros. En segundo lugar, examino los argumentos psicoanalíticos acerca de la pertinencia y el significado de la internación más allá del criterio de peligrosidad. A lo largo de estas páginas muestro cómo las decisiones de internación se producen a partir de una serie de factores que no responden necesariamente a los discursos y prácticas “psi” en tanto saberes objetivos. Internar o no internar se resuelve a través de un saber práctico, situacional y contextual que se pone en juego en cada momento.

Notas metodológicas Este trabajo se inscribe en un proyecto de investigación más amplio que tiene por objetivo analizar los discursos y prácticas en torno a las internaciones psiquiátricas desde una perspectiva etnográfica en un hospital de emergencias psiquiátricas. Ajustándose a los criterios metodológicos cualitativos, he realizado entrevistas en profundidad, observación participante, y conversaciones informales con los pacientes, profesionales y familiares. La mayoría del material presentado en este artículo proviene de observaciones en la guardia del hospital y entrevistas en profundidad realizadas a profesionales psiquiatras y psicólogos de distintos sectores del hospital. 116

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2 Convención de los derechos de las personas con discapacidad. Organización de las Naciones Unidas (2006), Principios para la protección de los enfermos mentales y el mejoramiento de la atención en salud mental, A. G. res 46/119, 46 U. N GAOR Supp. (n.49) p.189, ONU DOc. A/46/49 (1991) y las recomendaciones del Informe de Salud Mundial 2001: Salud Mental: Nuevos Conocimientos, Nuevas Esperanzas (OMS).

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El discurso de la peligrosidad y la internación psiquiátrica En Argentina la noción de peligrosidad constituye el criterio médico-legal de internación psiquiátrica. La noción de peligrosidad nace de la mano de la teoría penal y su origen se remonta al siglo XIX, momento en el cual se conforma el modelo asilar que sustenta la institución psiquiátrica tradicional (Foucault, 2000). La asociación entre locura y peligrosidad instaura la superposición entre punición y tratamiento, tutela y locura, dando por resultado la restricción de derechos y deberes y la vinculación, así más no sea implícita, con las conductas delictivas. El concepto de peligrosidad se articula también con el modelo correccional propuesto por el alienismo entre fines del siglo XIX y comienzos del siglo XX. El modelo correccional se conforma por instituciones de secuestro cuyo objetivo es propiciar la defensa social (Murillo, 1999). La noción de corrección se liga con un estado peligroso que es preciso modificar a través de dispositivos de encierro como el manicomio y la cárcel. Por ello, la evaluación de la peligrosidad social se convierte en un instrumento que pretende establecer los riesgos y diagnosticar las virtualidades del comportamiento. La internación psiquiátrica adquiere sentido en este paradigma y la función de la psiquiatría es delimitar el grado de peligrosidad de un individuo y evitar un retorno prematuro a la sociedad cuando sea susceptible de poner en peligro a uno de sus miembros. En esta dinámica, la noción de peligrosidad articula el discurso psiquiátrico, el jurídico y el institucional. Se convierte en un término polisémico que si bien remite a los orígenes de la psiquiatría aún funciona en la actualidad como criterio de internación psiquiátrica, pese a las controversias y dificultades en su definición. En términos generales, los profesionales acuerdan en considerar necesaria una internación siempre y cuando “haya peligrosidad”, la dificultad radica en su definición. La noción de peligrosidad se enmarca en una tensión inherente a sí misma. Oscila entre el riesgo de sobreestimarla y subestimarla como un dilema imposible de evitar, no se trata de un error en su evaluación sino que forma parte de la imposibilidad de establecer un juicio libre de incertidumbre. Actualmente en el campo de los derechos humanos y la salud mental se apunta a una revisión de la noción de peligrosidad acorde con las recomendaciones de la Organización Mundial de la Salud y la Organización de las Naciones Unidas2. Los análisis críticos de la peligrosidad plantean dejar de considerarla como una propiedad individual de cada paciente para situarla en un conjunto complejo de relaciones (Diaz Usandivaras et al., 2001). Estas posturas críticas proponen invalidar la noción de “paciente peligroso” a fin de contemplar las situaciones puntuales de riesgo, respecto de quiénes y bajo qué circunstancias concretas pueden manifestarse conductas peligrosas. Asimismo, aún pese a una evaluación positiva de la peligrosidad, estos autores sugieren considerar otras opciones de tratamiento - control ambulatorio, hospital de día, cuidado familiar, etcétera - y no recurrir a la internación en todos los casos. Sin embargo, los estándares legales establecidos en el Código Civil respecto a la internación psiquiátrica son extremadamente generales y ambiguos, y permiten la detención de personas en instituciones psiquiátricas bajo una gama amplia de circunstancias. Más allá de experiencias desmanicomializadoras concretas a lo largo de todo el país, no existen planes de salud mental a nivel nacional. Tal como afirman Larrobla y Botega (2000) en su investigación acerca de la situación de la salud mental en América del Sur, un dato que caracteriza a la Argentina es la desigualdad en materia de políticas y programas de atención en las diferentes jurisdicciones, como también la escasez de datos estadísticos y epidemiológicos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Asimismo, las consecuencias de la última dictadura militar son referidos como uno de los obstáculos para la transformación del sistema manicomial. A partir de la década del 50’ hasta el golpe militar del 76’ un grupo de psiquiatras influenciados por el psicoanálisis y el movimiento de salud mental y soportados tanto por gobiernos militares como civiles comenzaron un proceso de transformación de la psiquiatría con la intención de reemplazar los manicomios por salas de internaciones en hospitales generales, hospitales de día, comunidades terapéuticas, entre otros dispositivos (Carpintero, Vainer, 2005; Lakoff, 2005; Ablard, 2003). La interrupción de las prácticas innovadoras durante la dictadura, pese a la restauración democrática del 83’ y las recomendaciones de los organismos internacionales, es aún un objetivo pendiente. Ahora bien, la peligrosidad se inscribe en una noción de riesgo para sí o para terceros, el paciente es susceptible de hacerse daño a sí mismo o de hacerle daño a otro: “una autoagresión o heteroagresión”. En general refiere a un daño físico, aunque también se trata de daños motivados por el comportamiento impropio del paciente. Las nociones de peligrosidad y riesgo se convierten en categorías que estigmatizan a los pacientes psiquiátricos en tanto refuerzan la asociación - poco comprobada - entre la enfermedad mental y la violencia. Llevado al campo “psi”, el análisis del riesgo obliga a una constante evaluación de las acciones e intenciones de los pacientes. La prevención de un comportamiento riesgoso constituye un elemento ineludible de la justificación de una internación. Se trata de un análisis especulativo en tanto responde a la virtualidad del comportamiento, más allá de que se apoya en determinadas situaciones concretas. A su vez, la evaluación del riesgo procura ordenar en las confusas situaciones que traen los pacientes y sus familias a la guardia psiquiátrica, una suerte de distribución de las responsabilidades respecto de quienes generan situaciones de riesgo. ¿Es el paciente el responsable de sus propios actos riesgosos? ¿Es la familia la que impulsa conductas peligrosas? De una u otra forma, el dispositivo “psi”, con el respaldo de los saberes que intervienen, sanciona y distribuye responsabilidades, expresadas - a veces como culpas hacia los pacientes cuando no cumplen con sus deberes y obligaciones en tanto enfermos (Parsons, 1984) o hacia la familia en tanto productora de enfermedad mental. Considerar los diferentes riesgos, pero no de los pacientes, sino hacia los pacientes, es decir los riesgos que sufren los pacientes durante las internaciones: violencia y abusos sexuales, pérdida de personalidad, entre otros (Quirk, Lelliot, Seale, 2004; Goffman, 1984, Rosenhan, 1974) contribuiría, en la medida de lo posible, a evitar la internación psiquiátrica como estrategia de tratamiento.

Riesgo para sí “A veces es una cuestión de disminuir el riesgo en el cual se está exponiendo un paciente, sea un riesgo suicida, un riesgo más por las conductas... paranoides, entonces irá a ver a todos los juzgados, todos los lugares CGP, buscando hacerle juicio a todo el mundo, digamos, que es una situación de riesgo porque cada vez eso genera más tensión, más nerviosismo, más reacciones psicóticas. Y otras veces se trata de disminuir el riesgo suicida del paciente, quizás en internación no se termina de resolver, pero por lo menos permite que se pueda seguir de a poco con un tratamiento ambulatorio”. (Psiquiatra residente)

¿Cuáles son las situaciones que se clasifican como de “riesgo para sí”? En primer lugar, los intentos de suicidio. Si una persona cometió un atentado contra su vida es casi evidencia suficiente para indicar una internación. Se plantea la siguiente hipótesis: si fue capaz de hacerlo una vez, es muy probable que lo vuelva a repetir. No obstante se evalúan determinadas condiciones: si la persona está deprimida, si posee contención familiar, si se encuentra bajo una descompensación psicótica, entre otros aspectos que influyen en la decisión. Para establecer el riesgo de suicidio se utilizan diferentes instrumentos clínicos: el diagnóstico, si hubo o no intentos previos, los antecedentes familiares y la intensidad de la “ideación suicida” o las “ideas de muerte”, como suelen llamarla. También existen tests y cuestionarios mediante los cuales se completa la evaluación psiquiátrica. La evaluación del riesgo suicida constituye un eje de la práctica

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psiquiátrica desde el cual se efectúan otro tipo de intervenciones más allá de la internación: el ajuste de la medicación, la periodicidad en las consultas, la indicación de control familiar, entre otras. Pese a los intentos por perfeccionar los instrumentos clínicos, la evaluación del suicidio, se enfrenta a la imposibilidad de determinar a priori su ocurrencia. No obstante, la responsabilidad legal y la genuina preocupación por la vida de los pacientes presionan a los psiquiatras a llegar a una definición. Además del riesgo suicida, existen otros factores que configuran el riesgo “para sí”, uno de ellos son los estados depresivos severos. En especial, algunos pacientes que suspenden actividades básicas para la supervivencia como la ingestión de alimentos. En este sentido, el cuerpo interviene en la evaluación de la peligrosidad y el riesgo: la negación a comer, la sobreingesta de medicación (ingerir altas dosis de fármacos con la intención de quitarse la vida), los cortes (mutilaciones), dan cuenta de la relación estrecha entre cuerpo y riesgo. El riesgo cristalizado en el cuerpo constituye una señal de alarma. Librada de dobles sentidos - a diferencia de la perspectiva psicoanalítica - una sobreingesta o cualquier otro tipo de intento de autoagresión es interpretado a partir de su gravedad física. Es decir, de cuán cerca estuvo o no de ocasionar muerte. El indicador resultante dará la pauta de alarma para una internación. Por último, los estados maníacos y paranoides constituyen también “riesgo para sí” en tanto en ese tipo de situaciones los pacientes son susceptibles de estropear sus vínculos, perder sus trabajos, posesiones, gastar dinero en forma desenfrenada a partir de interpretar la realidad en forma errónea. Muchas veces cuando las creencias de los pacientes apuntan a un daño severo que un familiar pretendería hacerles, suelen coincidir con relaciones con cierto nivel de hostilidad o dependencia aunque no respondan a la creencia del paciente. Estas vivencias cargadas de ansiedad, angustia y desesperación, los exponen al riesgo. En estos casos, la peligrosidad deja de constituirse en un riesgo físico para el paciente y se convierte en un riesgo moral. Se trata de prevenir las faltas o desviaciones respecto de determinado orden familiar, laboral, comunitario. Mediante la operación psiquiátrica de clasificación del riesgo, las dimensiones morales de la vida de los pacientes se reconstituyen médicamente. El paciente es juzgado en sus conductas traducidas en síntomas de enfermedad mental. Este tipo de riesgo moral confluye con algunas representaciones sobre la locura que se deslizan en la práctica “psi”. Las asociaciones con el exceso, la impredicibilidad de los comportamientos, la disrupción y el quiebre, entre otras. Mitos, realidades, miedos, responsabilidades profesionales, tal es la diversidad de aspectos que se ponen en juego a la hora de clasificar la peligrosidad.

Riesgo para terceros Los procesos de categorización del “riesgo para terceros” implican la evaluación de conductas que atenten contra otras personas. En general se trata de conductas paranoides, ya que se considera que el paciente podría hacerle daño a quienes en su delirio son sus agresores, es decir se convierte en un paciente violento, y por ende peligroso. Pese a la existencia de algunos hechos puntuales de violencia y de situaciones concretas de riesgo para terceros, identifico cierta predisposición “psi” a clasificar conductas de los pacientes como paranoides. Las observaciones etnográficas sugieren que ante cualquier señal de queja, crítica o conflicto con algún familiar, amigo o conocido, se produce la sospecha de que el paciente “está paranoide”. Dicha clasificación es a veces apresurada si se tiene en cuenta el lugar desvalorizado que ocupa el paciente psiquiátrico en la dinámica de sus relaciones cercanas, y por consiguiente su lógica predisposición a una actitud de desconfianza hacia los demás. Las intervenciones “psi” actúan bajo una presunción de anormalidad que tiñe la mirada hacia la mayoría de las acciones de los pacientes. El caso de Silvia ilustra una experiencia de descrédito hacia el discurso del paciente. Silvia, 40 años, casada con tres hijos, estuvo internadas en la sala de mujeres, con el diagnóstico presuntivo de trastorno bipolar. A causa de una crisis económica había perdido su casa y vivía junto con su esposo y sus hijos en la casa de sus suegros. Desde el inicio de la internación denunciaba escenas de violencia tanto de parte de su esposo como de su suegra. Aún pese a la frecuencia de las denuncias, el psiquiatra no las consideraba. Desde su mirada formaban parte de los síntomas

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paranoicos de Silvia, quien, en medio de su período maníaco - y como reacción frente a la decisión de internación - se mostraba querellante. Tuvo que pasar un tiempo para que se dé intervención al servicio de violencia familiar y solo ocurrió en tanto el esposo reconoció explícitamente haberle pegado alguna vez. El caso de Silvia, da cuenta de la dificultad en reconocer que esos discursos “querellantes” y “paranoicos” tengan alguna conexión con situaciones reales de conflictos, violencias y abusos. En tanto la palabra del paciente psiquiátrico, por su condición de enfermo mental se encuentra cuestionada, la primera lectura “psi” es la de un síntoma delirante o al menos un signo patológico. Esto no implica que las internaciones - y otras decisiones terapéuticas - se decidan sólo a partir de esas impresiones como únicos elementos de juicio, sino que se trata de una “disposición a” que subyace a las decisiones. En todo caso, las interpretaciones terapéuticas oscilarán en considerar a los pacientes como más o menos delirantes en función de múltiples elementos. Sin embargo, en múltiples historias de pacientes, el delirio y la realidad se entremezclan, mostrando de manera difusa la separación construida entre uno y otro.

Entre subestimar y sobreestimar la peligrosidad La evaluación de la peligrosidad atraviesa las distintas instancias de tratamiento: hospital de día, ambulatorio, consultas a la guardia. Cuando los profesionales tienen dudas acerca de si el paciente está desorientado, descompensado, o si abandonó la medicación, se ven obligados a analizar la peligrosidad y a evaluar la pertinencia de una internación. Sin embargo, no siempre les resulta fácil definir el riesgo. Tal como señala Doménech (2006), la evaluación de la peligrosidad entraña en sí misma un doble riesgo: el de sobreestimarla y el de subestimarla. Algunas decisiones de internación están más relacionadas con un temor del profesional a que ocurra algo en un futuro incierto que con una situación concreta de riesgo. Algunos profesionales reconocen que sus propios miedos se ven involucrados en las decisiones. Otros reconocen que no siempre tienen la suficiente aptitud para ocuparse de pacientes graves en el contexto de un tratamiento ambulatorio. “[…] También creo que se interna por demás, en este hospital a veces se interna por demás para cuidarse uno porque es mas cómodo también para el profesional, no nos olvidemos de eso, es más seguro tener un paciente internado que bancarte la incertidumbre y la angustia”. (Psicóloga residente)

La angustia, la seguridad que implica una internación, la preocupación diaria por la vida de un paciente, son algunas de las dimensiones que influyen en la sobreestimación de la peligrosidad. La responsabilidad por un suicidio (sea o no fundada) actúa como un criterio que subyace a la decisión de internar. La responsabilidad legal y el temor a los juicios de mala praxis, no surgen en forma directa. Por el contrario, el miedo a “que se me mate un paciente” se encuentra vinculado a una cuestión humanitaria propia del compromiso corporal y emocional que les genera el trabajo en un hospital psiquiátrico. La siguiente cita es parte del relato de una psicóloga acerca de una paciente que había comenzado a atender en tratamiento ambulatorio. El comentario apunta a mirar críticamente hacia el tratamiento anterior de la paciente, donde se ve reflejada una actitud profesional proclive a la internación. A veces, en el contexto de respuestas posibles a los problemas de salud mental, la internación resulta ser la única alternativa en la medida que no se conciben otras estrategias terapéuticas. “Hoy me cuenta que la semana pasada vino con el bolso armado para que la internaran porque cada vez que le decían que tenía ganas de matarse la internaban. No es que la paciente está pidiendo la internación, aunque tampoco fueron compulsivas, pero de algún modo se estableció algo que frente a que ella diga que se quiere matar la respuesta es la internación. Porque, realmente la internaban porque decía que se quería matar, era la única posibilidad de trabajar sobre esas ideas”. (Psicóloga de planta) 120

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En la otra cara del asunto se encuentra la posibilidad de subestimar el riesgo. Es el caso de una paciente que en una oportunidad llegó al hospital diciendo que quería matarse, algo que si bien repetía de tanto en tanto no derivaba en ningún intento. El psiquiatra la atendía desde tiempo atrás y por eso no se sorprendió con este anuncio. Desde la perspectiva del médico, la situación formaba parte de un modo común de actuar de la paciente. Sin embargo, al día siguiente se tiró bajo las vías del tren. ¿Fue posible determinar a priori la ocurrencia de este hecho? No trato de profundizar un análisis sobre el suicidio sino de reflexionar sobre su articulación con la peligrosidad en tanto criterio de internación. Desde el campo de la salud mental se puede argüir infinidad de cuestiones que tal vez fallaron al interior del tratamiento: un inadecuado seguimiento psiquiátrico de la paciente, ausencia de control farmacológico, de contención psicológica, entre otros. Más allá de las prácticas terapéuticas insuficientes o inadecuadas, es la propia noción de peligrosidad la que plantea dificultades al momento de su evaluación. La oscilación entre exagerar y subestimar el riesgo se convierte una tensión insoslayable en tanto se trata de cálculos estimativos y no de certezas absolutas.

La peligrosidad según quien la evalúe “Los criterios de internación también son muy al ojo de cada uno”. (Psiquiatra de planta)

Una primera cuestión a tener en cuenta es cuál es la posición institucional del profesional que indica una internación. En el hospital son los profesionales que pertenecen al servicio de guardia quienes deciden formalmente la internación. Los profesionales de los otros servicios (consultorios externos, hospital de día, salas de internación) derivan a la guardia con indicación de internación, pero en última instancia la decisión pertenece a la guardia. Las observaciones en la guardia dan cuenta que la capacidad de decisión varía si se trata de un miembro de planta o residencia. Estos últimos, al ser profesionales en formación tienen menor capacidad de decisión. Hay que considerar que no siempre hay camas en el hospital (lugares para internar), por lo tanto no se interna por ausencia de disponibilidad de recursos, más allá de si el paciente tiene o no criterio de internación. En esos casos se deriva a otros nosocomios aún con el riesgo de que la situación sea similar. Es decir, los recursos informales, las estrategias de negociación y las condiciones institucionales forman parte de las contingencias de la decisión de internación. Por otro lado, al examinar los procesos que anteceden a las internaciones es factible encontrar diferentes opiniones profesionales frente a un mismo paciente. En primer lugar, con los pacientes de consultorios externos que son derivados a la guardia con indicación de internación puede ocurrir que para el equipo tratante de consultorios externos, la decisión de internar derive de un proceso al que llegan convencidos. El problema se genera cuando acuden a la guardia junto con el paciente y se encuentra con dos tipos de obstáculos: o no hay camas (es decir no hay lugar para alojar al paciente, lo cual se convierte en un obstáculo institucional frecuente) o los psiquiatras de guardia no consideran que amerite una internación: “no tiene criterio de internación”. Frente a estas cuestiones, los profesionales de consultorios externos se ven envueltos en una actitud de preocupación constante, diversas idas y venidas a la guardia a fin de lograr que “le internen al paciente”. Como consecuencia, la evaluación del riesgo se convierte en una actividad casi diaria, y al no lograr la internación se ven obligados a juzgar a cada momento las condiciones psicopatológicas del paciente. Como indican los datos etnográficos, el criterio de internación se modifica con el transcurso de las horas en tanto las evaluaciones “psi” e incluso el mismo paciente, cambian. Si el paciente está más tranquilo, el sufrimiento es menos intenso, o la ideación delirante se haya controlada se modifica el criterio de internación. En este punto, el hecho de considerar oportuna la internación de un paciente y no poder efectivizarla, muestra los aspectos relativos y cambiantes de dicha decisión. No se trata de ausencia de idoneidad profesional sino de los aspectos dinámicos de las situaciones de padecimiento en que se encuentran los pacientes y las formas en las que se comunican e interpretan dichos padecimientos en el marco de las relaciones terapéuticas.

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Respecto de las diferencias de criterios, los profesionales de consultorios externos afirman que es mayor el conocimiento que tienen de la historia del paciente en comparación con sus colegas de la guardia. Agregan que los profesionales de la guardia sólo observan una situación particular, un episodio tal vez no grave en sí mismo, pero sí en el contexto de una historia de vida. Los distintos puntos de vista acerca de un mismo paciente entre la guardia y consultorios externos muestran al criterio de peligrosidad como una cuestión singular, vinculada - entre otros aspectos - a diferencias en cuanto a la interpretación del padecimiento del paciente. En segundo lugar, también hay diferencias de opinión entre los profesionales de distintas disciplinas. Es decir, psiquiatra y psicólogo, como miembros del equipo tratante, pueden no coincidir en la clasificación de la peligrosidad y el criterio de internación. En esos casos se discute, se negocia, a veces se impone el criterio psiquiátrico en tanto se reconoce a la internación como un acto de mayor responsabilidad médica. Las situaciones no siempre son de riesgo evidente y admiten diferentes lecturas entre los miembros del equipo tratante. En resumen, la evaluación de la peligrosidad es un proceso relativo al punto de vista de cada profesional, la disciplina a la que pertenece y la posición institucional que ocupa (es decir el servicio en el que desarrolla sus tareas y el nivel jerárquico de su posición). Matices al paradigma de la peligrosidad. El psicoanálisis y las decisiones de internación En esta sección examino los argumentos psicoanalíticos que los profesionales construyen acerca de la pertinencia y el significado de la internación en tanto estrategia terapéutica. Se trata de otras formas de entender la necesidad de internación, más allá del paradigma de la peligrosidad. En el contexto de tratamientos ambulatorios prolongados, los psicoanalistas afirman que la necesidad de internación surge como un momento en que es preciso establecer otro tipo de intervención. En estos casos, el criterio de internación se sustenta en una certeza producto del devenir del tratamiento. La mayoría de los psicoanalistas pone el énfasis en la cuestión del “desenganche” del tratamiento ambulatorio como una causa que conduce a las internaciones. El objetivo de la internación apunta a “producir un movimiento subjetivo”, modificar el lugar del sujeto en tanto lugar simbólico. Se trata de una noción en el discurso de los psicólogos a la que hacen referencia diariamente aludiendo a un supuesto significado común de la misma. Asimismo, afirman que “el sujeto es responsable de su síntoma”. Por ello, la alusión a la “responsabilidad subjetiva” orienta las decisiones de internación. Mediante ésta pretenden “instalar cierta inscripción de lo que la motivó, de la posición que el paciente tenía en la escena que provocó la internación”. De este modo el paciente podría “modificar su posición”. No obstante, en el caso que este tipo de implicación no se produce, es decir “el paciente no hace ningún movimiento”, el psicoanalista puede interpretarlo como una falla en el tratamiento, producto de intervenciones inadecuadas o como una actitud poco favorable del paciente en tanto ausencia de disposición a “trabajar”3. En este proceso de búsqueda de implicación subjetiva, se desdibujan los escenarios sociales en los que ocurren las internaciones. Situaciones de violencia, de vulnerabilidad, de abandonos y carencias afectivas son el marco que precede a la internación. El llamado a la implicación subjetiva por fuera de determinismos socioculturales - o más bien más allá de los mismos - es propio de una concepción individualista del sujeto que subyace a los discursos “psi”. 122

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La noción de “trabajar” alude al trabajo psíquico, el cual se motiva a partir de la técnica psicoanalítica de la asociación libre que insta al paciente a que se abandone a sus pensamientos espontáneos. En las situaciones etnográficas, los pacientes que producen recuerdos, asociaciones entre los hechos de su vida y la infancia, reflexiones en tanto a sus si mismos, son quienes se consideran “buenos pacientes”. La noción de “trabajar” se asemeja en la perspectiva psiquiátrica con la del paciente que tiene “conciencia de enfermedad” y “adherencia al tratamiento”. 3


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Con la internación buscan propiciar “una marca”, un antes y después que permita “trabajar” con el paciente: “Tal vez, con algunos pacientes, no con todos, la verdad es que no podría generalizarlo, con algunos pacientes me parece que se pudo como armar cierta inscripción distinta de lo que había motivado la internación. Como pasar de una pura actuación, o un puro así movimiento corporal de no entender porqué estaban internados y qué es lo que había pasado, como si se inscribiera cierta marca de lo que motivó la internación. Cierta marca de la posición que el paciente tenía en esa escena que motivó la internación o en esa coyuntura. Me parece que ahí se puede establecer como cierto corte”. (Psicólogo de planta)

Durante el transcurso de la internación pretenden que el paciente “se apropie” de la misma, es decir que se involucre activamente con su internación, especialmente con las causas o hechos que antecedieron a la misma. Se trata de que “ubique las coordenadas de su descompensación” y la “posición que tenía en la escena de la internación”. La eficacia de las intervenciones es evaluada a partir de los dichos de los pacientes: “necesitaba un corte”, “necesitaba parar”, son interpretados como señales de eficacia terapéutica. No obstante, en este gesto se iguala la interpretación del paciente con la del psicoanalista. Los pacientes suelen reconocer que a veces durante la internación obtienen alivio de sus sufrimientos, sin embargo, ello no siempre supone una revisión de la “posición subjetiva”. Asimismo, desde la perspectiva psicoanalítica la interpretación del “riesgo para sí” difiere de la perspectiva psiquiátrica. Una sobreingesta de medicación no necesariamente implica criterio de internación. En todo caso, la gravedad del hecho va a depender del significado que adquiere a partir de comprender “a quién estuvo dirigida” la sobreingesta, el marco en el que se produce, el momento del tratamiento, entre otras preguntas a las que se pretende responder. Como lo expresa la cita siguiente, existen al menos dos formas de interpretar el hecho. La primera es a partir del devenir del tratamiento, especialmente la relación terapéutica y el funcionamiento de la “transferencia”. La segunda - más allá del tratamiento - mediante un análisis de “la dirección” del hecho. “Hacia quienes está dirigido” como metáfora de un pedido de ayuda, un reclamo, una muestra de desesperación, etc. “[…] una paciente que atendí casi dos años en ambulatorio, mucho tiempo… dos años en tratamiento y acompañé la idea de una internación, sólo cuando pude concluir que se había roto el compromiso transferencial entre la paciente y yo, que algo de la confianza de la paciente hacia el tratamiento conmigo se había roto... por la vía de una sobreingesta. Pero te digo esto, no es que una sobreingesta me llevó a internarla, es que se venía hablando del tema, y fue una, una traición completa a lo que ella venía diciendo en transferencia conmigo. Con lo cual yo no tenía modo de pensar que nada de lo que ocurría en mi espacio podría ser una salvaguarda, un espacio de contención [...] P: ¿Fue una sobreingesta con riesgo para sí, o...? R: En ese momento no. Le hicieron un lavaje de estómago, pero no. había tomado todo un blister de risperidona, pero no es que se fuera a morir, era complicado que lo hubiera hecho, porque lo había hecho con el fin de matarse, no recuerdo si la dosis era letal o no... P: No, bueno, digo si era grave o... R: Si fue, fue grave, pero por eso te digo, otras pacientes que en tratamiento se tomaron un blister de otra medicación o que se cortaron, qué se yo.. no, no, no digo yo se que, podía leer ahí un llamado, una... una actuación que admitía ciertas lecturas, que estaba dirigido, digo, había ciertos lazos que se preservaban, pese al riesgo que había implicado esa conducta […] Ahora cuando esa paciente hizo esta sobreingesta y de algún modo se soltó del tratamiento, no se refirió más a mi, a mi herramienta, ella estaba en un cuadro muy depresivo, muy desesperanzada, digamos la desesperanza era en ella, no había nada que la pudiera ayudar, en ese punto si. Fue la primera internación”. (Psicólogo residente, el énfasis es mío)

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“Riesgo”, “peligrosidad” e “implicacion subjetiva”:...

Cómo expresa la cita, la sobreingesta se lee como una señal de que la paciente se desconectó del tratamiento. La confianza surge como un elemento clave del tratamiento, necesario para que éste tenga efectividad. Subyace a este pedido cierta exigencia de compromiso con la búsqueda de la verdad sobre el sujeto que ofrece el dispositivo psicoanalítico. El contenido de las sesiones, lo que el paciente fue diciendo a lo largo del tiempo, los cambios en sus dichos, son interpretados no como metáforas de una situación de interacción asimétrica y sobre todo de construcción conjunta entre terapeuta y paciente sino como verdades ocultas que salen a la luz mediante el procedimiento analítico. “[…] yo creo que lo veníamos, por eso te digo que, yo lo leí como una traición a sus propios dichos, un desconocimiento de los propios compromisos que ella había asumido, ¿no? esa libertad bajo palabra que uno instituye en un tratamiento, este “sos libre pero vamos a tener lo que usted diga” lo veníamos hablando, las últimas tres o cuatro entrevistas cuando ella estaba muy mal, se venía hablando del tema, como una posibilidad […] Fue una internación corta esa, creo que fue menos de un mes. P: ¿ la atendiste vos, en la internación? R: No, yo decidí no volver a verla, esto se lo comuniqué, en función de lo que había pasado yo no iba a continuar el tratamiento […]”. (Psicólogo residente, el énfasis es mío)

Por otro lado, uno de los argumentos frecuentes que llevan a la decisión de internación es que el paciente con sus acciones “había traicionado con sus dichos el contrato de palabra que el tratamiento había establecido”. La alusión al contrato de palabra como marco que regula la relación terapéutica es uno de los ejes de las intervenciones psicoanalíticas “nos vamos a atener a lo que usted dice”. Cuando ese contrato se quiebra, se produce un cambio en la orientación del tratamiento. En algunos casos -según muestra la información etnográfica - ese cambio es vivido por el paciente como algo incomprensible que incluso le perjudica, ya sea por pasar de un tratamiento ambulatorio a una internación o por perder el vínculo con el terapeuta. La “responsabilidad subjetiva” o los intentos por producir un “movimiento” o “una marca” mediante la internación, resumen la mirada psicoanalítica de las internaciones. La efectividad de estas pretensiones y lo asequible o no por los pacientes ameritan más de un interrogante. Al respecto son válidas las palabras de una psicóloga distante del psicoanálisis: “Muchas veces en pacientes que están en externos, se dice que la internación es para hacer una marca, generar un corte y me parece que eso no es así, me parece mucho más auténtico decir: esto es un desborde hay que internarlo porque ya no sabemos que hacer. Si eso deja una marca lo sabremos después”. (Psicóloga residente)

Por último, las lecturas psicoanalíticas acerca de la pertinencia de una internación se conjugan con las lecturas de la peligrosidad en una serie de prácticas e intervenciones que no hacen distinción entre psicoanalistas y psiquiatras. Por el contrario, se trata de lecturas que se dan entremezcladas y que se producen en situaciones y contextos específicos.

Consideraciones finales En este artículo describí y analicé los criterios de internación psiquiátrica a partir de las perspectivas psiquiátricas y psicoanalíticas. Ya sea para lograr un cambio de posición subjetiva o como consecuencia de un análisis sobre la peligrosidad, la internación adquiere un sentido particular a los saberes que conforman el paradigma “psi”. No obstante, como fue señalado, las decisiones de internación se producen a partir de una serie de factores que no responden necesariamente a los discursos y prácticas “psi” en tanto saberes objetivos. Internar o no internar se resuelve a través de un saber práctico, situacional y contextual que se pone en juego en cada momento, donde la posición institucional del 124

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profesional, la pertenencia a tal o cual disciplina, las lecturas teóricas sobre la situación del paciente, las interacciones con pacientes, familiares y otros actores y por último, la disponibilidad de recursos alternativos, se dan cita en una misma decisión. El riesgo, la urgencia, el sufrimiento y la ausencia de recursos de integración social se encuentran en cada decisión de internación. Los profesionales “psi” se ven obligados a dar respuestas a situaciones que los exceden en su posibilidad de intervención y para las que cuentan con teorías y herramientas que no siempre son pertinentes. Finalmente, a partir de los aspectos analizados surgen interrogantes para futuras investigaciones: ¿Cómo se diferencian y articulan las dimensiones del riesgo en un contexto social de vulnerabilidad y sufrimiento social como el actual?, es decir ¿cómo es posible establecer parámetros de riesgo cuando las situaciones de pacientes y familias son en general de incertidumbre, violencia y daño? Asimismo, ¿cuál será el lugar de la internación psiquiátrica, en un futuro contexto de reforma psiquiátrica?

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MANTILLA, M.J. “Riesgo”, “peligrosidad” e “implicación subjetiva”: un análisis de las decisiones de internación psiquiátrica en la ciudad de Buenos Aires. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.115-26, jan./mar. 2010. Este artículo describe y analiza los procesos de decisión de internación psiquiátrica a partir de una aproximación etnográfica. Se concentra en la cuestión de la peligrosidad y el riesgo; condiciones que definen el criterio de internación desde una perspectiva psiquiátrica. Analiza los argumentos psicoanalíticos sobre la hospitalización como estrategia terapéutica. Los resultados del análisis muestran que internar o no internar a una persona se decide mediante un saber práctico, situacional y contextual puesto en juego a cada momento. En esta decisión operan el lugar institucional del profesional, la pertenencia a una especialidad, las lecturas teóricas sobre la situación del paciente y la finalmente la disponibilidad de recursos alternativos.

Palabras clave: Hospitalización o internación psiquiátrica. Peligrosidad. Psiquiatría. Psicoanálisis. Recebido em 06/01/2009. Aprovado em 18/06/2009.

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Cuidado em saúde mental por meio de grupos terapêuticos de um hospital-dia: perspectivas dos trabalhadores de saúde *

Daisyanne Soares Benevides1 Antonio Germane Alves Pinto2 Cinthia Mendonça Cavalcante3 Maria Salete Bessa Jorge4

BENEVIDES, D.S. et al. Mental healthcare through therapeutic groups in a day hospital: the healthcare workers’ point of view. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.12738, jan./mar. 2010.

The objective of this study was to understand the practices and knowledge involved in group therapeutic approaches and their linkages with mental healthcare provision in a day hospital (DH) in the city of Fortaleza, Ceará. This was a descriptive study with a qualitative approach. To gather data, semi-structured interviews were conducted by 14 professionals at the DH, along with systematic observation of practices. In the critical reflective analysis, convergences and divergences in the professionals’ discourse and field observations were sought. From this analysis, the group therapeutic practices developed at the DH were important for individuals’ psychosocial rehabilitation. The team at the DH used care provision devices such as linkage, reception, creation of coresponsibility and autonomy. In caring for subjects, the team sought to understand their complexity and subjectivity. The care provision at the DH included participation by patients’ families, and this permeated the entire therapeutic project.

Keywords: Day hospital. Mental health. Therapeutic group and care.

O objetivo deste trabalho foi compreender as práticas e os saberes envolvidos nas abordagens terapêuticas grupais e suas articulações com a produção do cuidado em saúde mental em um Hospital-Dia (HD) da cidade de Fortaleza-CE, por meio de pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa. Para coleta de dados, realizou-se entrevista semiestruturada com 14 profissionais do HD, além da observação sistemática das práticas. Na análise crítica e reflexiva, buscaram-se convergências e divergências entre as falas dos profissionais e as observações no campo. De acordo com essa análise, as práticas terapêuticas grupais desenvolvidas no HD são importantes para a reabilitação psicossocial dos sujeitos e a equipe do HD utiliza dispositivos para a produção do cuidado, tais como: vínculo, acolhimento, corresponsabilização e autonomia. Ao cuidar do sujeito, a equipe procura entender sua complexidade e subjetividade. A produção do cuidado no HD inclui a participação da família do paciente e perpassa todo o projeto terapêutico.

Palavras-chave: Hospital-dia. Saúde mental. Grupo terapêutico e cuidado.

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*Texto inédito, elaborado com base em Jorge (2009); pesquisa com seres humanos aprovada por Comitê de Ética da área (Processo: 06378681-8) e financiada pela FUNCAP/ PPSUS/MS. 1 Discente, curso de graduação em Medicina, bolsista CNPq. Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual do Ceará. Rua Eduardo Novaes, 505, Água Fria. Fortaleza, CE, Brasil. 60.834-030. daisyanne1@hotmail.com 2,3 Doutorando em Saúde Coletiva, UECE/ Universidade Federal do Ceará (Associação Ampla IES). 4 Pesquisadora CNPq, Universidade Estadual do Ceará.

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Cuidado em saúde mental por meio de grupos...

Introdução A atenção psicossocial direciona suas ações para a construção da cidadania, da autoestima e da interação do indivíduo com a sociedade. Nesta realidade, a reprodução social do sujeito em sofrimento psíquico perpassa a prática clínica e constitui um processo complexo. Assim, a prática clínica exercida na rede de atendimento requer instrumentos e estratégias para a efetivação de ações resolutivas. Nesse sentido, o desenvolvimento das abordagens terapêuticas no trabalho em saúde mental ocorre com vistas a melhorar o enfrentamento do transtorno psíquico (Amarante, 2007; Oliveira, Ataíde, Silva, 2004). No Brasil, a prática de psicoterapia de grupo expandiu-se a partir do contexto da Reforma Psiquiátrica (Guanaes, Japur, 2001). Nesse contexto da desinstitucionalização, fez-se necessária a elaboração de novas abordagens terapêuticas que vislumbrassem a dimensão psicossocial do sofrimento e que levassem em consideração a subjetividade humana e a inclusão social, por meio da cidadania e da autonomia. As novas abordagens constituem uma tentativa de compreender a doença mental de forma diferente, com ênfase na pessoa doente, na sua forma de vida, na realidade em que está inserida, e não na doença em si, diferentemente da prática constante nos últimos séculos (Amarante, 1996). O grupo terapêutico potencializa as trocas dialógicas, o compartilhamento de experiências e a melhoria na adaptação ao modo de vida individual e coletivo. Para Cardoso e Seminotti (2006), o grupo é entendido pelos usuários como um lugar onde ocorre o debate sobre a necessidade de ajuda de todos. No desenvolvimento das atividades, os participantes fazem questionamentos sobre as alternativas de apoio e suporte emocional. Contudo, alguns pacientes sentem dificuldade de interagir com o grupo, sobretudo por estarem diante de pessoas desconhecidas; apesar desse entrave, acham importante ouvir as experiências de vida dos colegas e aprender com os relatos (Peluso, Baruzzi, Blay, 2001). Nessa estratégia de promoção do sujeito, estão incluídos os grupos terapêuticos. Ao tomarem parte desses grupos, os participantes relatam: melhora nas relações sociais, nos níveis de conhecimento sobre questões discutidas no grupo, na capacidade para lidar com situações inerentes ao transtorno sofrido, na confiança, além de alívio emocional (Guanaes, Japur, 2001; Contel, Villas-Boas, 1999). Quando o paciente tem melhor compreensão da própria subjetividade, sua autoimagem pode ser remodelada. Desse modo, ele pode obter uma melhor relação consigo mesmo e, consequentemente, com a sociedade (Bechelli, Santos, 2006). Do tratamento do sujeito fazem parte a consulta e a medicação. Além disso, ele precisa de espaços de convivência e criação onde possa expressar opiniões e escolhas. No grupo terapêutico, ele desenvolve laços de cuidado consigo mesmo e compartilha experiências com os demais (Mendonça, 2005). Como mostra a literatura, a terapia psicossocial proporciona diversas formas de atividades, como as atividades motoras (esportes, trabalhos em madeira e couro), sociais (comemorações festivas, teatros e cinema) e autoexpressivas (atividades espontâneas como cerâmica, pintura e dança). Essas práticas ampliam a habilidade e a autonomia do sujeito ao permitirem a ele o desenvolvimento do potencial da criatividade e da expressão. Os espaços terapêuticos trabalham as relações interpessoais dos sujeitos aliadas ao reconhecimento e ao respeito das diversidades existentes no grupo. São espaços de comunicação e integração (Valladares et al., 2003). No tratamento do portador de transtorno mental também é fundamental o apoio da família e da comunidade. Ao compreenderem a terapêutica e colaborarem com seu desenvolvimento, essas pessoas estarão mais aptas a cuidar, de forma adequada, do sujeito (Jorge et al., 2006). Diante do contexto, delineou-se como objetivo operacional da pesquisa: compreender práticas e saberes envolvidos nas abordagens terapêuticas grupais e sua articulação com a produção do cuidado em saúde mental em um Hospital-Dia localizado na cidade de Fortaleza-CE.

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Metodologia Natureza da pesquisa Trata-se de pesquisa crítica e reflexiva, com abordagem qualitativa, por coincidir com a configuração contextual do objeto de estudo assim como por constituir uma discussão aprofundada sobre a realidade social a partir de um referencial teórico-ideológico, no caso, a Reforma Psiquiátrica brasileira e a atenção psicossocial. Para Minayo (2008, p.57), a pesquisa qualitativa [...] além de permitir desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos referentes a grupos particulares, propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação. Caracteriza-se pela empiria e pela sistematização progressiva de conhecimento até a compreensão lógica interna do grupo ou do processo em estudo.

A pesquisa qualitativa aplica-se a grupos e seguimentos delimitados, em busca da compreensão das relações sociais existentes, levando-se em consideração o subjetivo e o simbólico difundidos no meio social. Nesse tipo de pesquisa, a objetivação assume decisiva importância para ajudar o pesquisador a ter uma visão crítica de seu trabalho, além de proporcionar um meio mais eficiente para atingir a finalidade do seu estudo (Minayo, 2008).

Campo empírico da pesquisa Segundo mencionado, o campo da pesquisa foi o Hospital-Dia localizado nas proximidades de um hospital psiquiátrico na cidade de Fortaleza-CE. O HD constitui um anexo do Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM). É um serviço substitutivo intermediário entre a internação no hospital psiquiátrico e a prática ambulatorial, cujo objetivo é atender os sujeitos com transtornos mentais, com vistas à melhor relação sociofamiliar, no intuito de reduzir o número de internações e favorecer a abordagem psicossocial. Como um serviço de atenção terciária que desenvolve ações de cuidado intensivo desempenhadas por equipe multidisciplinar, tem como principais atividades as seguintes: realização de triagem, de avaliação, de diagnóstico e de plano terapêutico; atendimentos individuais ao usuário e aos familiares; atendimento nuclear de família; grupos psicoterapêuticos, educativos, expressivos, sociofamiliar, de cidadania; visitas domiciliares e comunitárias; oficinas de terapia ocupacional; oficinas socioeducativas nas comunidades e atividades socioterápicas.

Participantes da pesquisa Foram entrevistados 14 trabalhadores de saúde mental da instituição pesquisada, dentre eles: três médicos, uma psicóloga, uma enfermeira, uma socióloga, uma terapeuta ocupacional, uma assistente social, uma auxiliar de enfermagem, uma agente de administração, duas colaboradoras em saúde mental, uma jardineira, uma copeira. Dos entrevistados, a maioria (92,85%) é do sexo feminino e a faixa etária dos trabalhadores estende-se de 23 a 68 anos. Também a maioria dos trabalhadores de nível superior possui especialização e/ou aperfeiçoamento e/ou extensão na área de saúde pública (88,88%).

Técnicas e instrumentos de coleta das informações Para a coleta de dados qualitativos, foram utilizadas duas técnicas: a entrevista semiestruturada e a observação sistemática das práticas no Hospital-Dia. A entrevista semiestruturada baseia-se na comunicação verbal, que articula perguntas abertas e fechadas, pois, desse modo, o entrevistado tem mais liberdade para discorrer sobre as questões abordadas. É uma técnica na qual a subjetividade pode

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ser bem analisada (Minayo, 2008). Quanto à observação sistemática, foi orientada pelo mesmo roteiro da entrevista, para possibilitar o confronto com os dados apreendidos entre a representação (fala/ depoimento) e a prática concreta no serviço de saúde mental. Tais observações ocorreram no momento de interação entre trabalhadores de saúde do HD e os usuários, nos diversos locais de atendimento terapêutico, no consultório, na área externa, no refeitório ou nas salas de grupo.

Análise e interpretação Na análise do material empírico das entrevistas e das observações, para o melhor entendimento das questões deste estudo, tomou-se como base Minayo (2008), segundo a qual o objeto de análise é a práxis social. No primeiro contato com os dados brutos, realizou-se a transcrição do material gravado em audiodigital. Houve leitura do material e criação de núcleos de sentido. Em seguida, esses núcleos de sentido foram agrupados em categorias e procedeu-se à organização dos dados contemplados nas entrevistas e nas observações, com o intuito de buscar convergências e divergências extraídas entre as falas dos participantes e entre estas e as observações. Surgiram, então, as seguintes categorias: Da Clínica Oficial à Clínica Psicossocial e Produção do Cuidado e o Trabalho em Equipe. A seguir, fez-se a interpretação à luz da literatura pertinente. Essa análise foi ilustrada com os discursos dos participantes da investigação. As ilustrações dispõem à reflexão que sintetiza o grupo de convergência, divergência e complementaridade de cada discurso dos sujeitos pesquisados, com a finalidade de ampliar a compreensão do fenômeno.

Questões éticas De acordo com o exigido, o projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Após o parecer favorável do CEP/UECE, iniciou-se a pesquisa de campo. Ainda como exigido, a coleta de dados foi autorizada por escrito pela instituição pesquisada. Para a realização de cada técnica de coleta, o participante foi informado sobre os procedimentos do estudo e teve acesso ao termo de consentimento livre e esclarecido, em atendimento aos princípios éticos, conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2000). Garantiu-se que a pesquisa não traria prejuízo na qualidade e condição de vida e trabalho dos participantes, salientando que as informações seriam sigilosas e que não haveria divulgação personalizada. Foi esclarecido que os dados e as informações coletadas seriam utilizados para compor os resultados da investigação, possibilitando o benefício de ampliar a visão dos gestores de saúde, com a finalidade de criar políticas públicas que melhorassem a qualidade dos serviços.

Resultados Da clínica oficial à psicossocial No HD, os profissionais organizam grupos terapêuticos dentro da área na qual atuam. Por exemplo, a socióloga realiza um grupo com os usuários abordando o resgate da cidadania dessas pessoas. Os participantes se dispõem numa roda na perspectiva de evitar uma relação de hierarquia entre profissional e usuários e os temas escolhidos giram em torno da frase “o que é cidadania?”, procurando-se enfatizar a realidade local. Em outro momento, há distribuição de revistas, cartazes, cola e pincel para que o grupo possa, por meio da arte, discutir sobre os direitos e deveres do cidadão. Nesse processo, a psicóloga desempenha um trabalho de musicoterapia ativa, para o qual ela leva vários instrumentos que são tocados pelos usuários e funcionam como um intermediário na comunicação. Funcionam como outras formas de linguagem, diferentes da linguagem verbal. Ao final de

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cada reunião, eles pedem uma música e, depois de tocada, a psicóloga pergunta o motivo da escolha, tentando compreender as vivências de cada usuário e permeando o universo de cada um deles. “Quando eu vou encerrar um grupo, cada um escolhe uma música, eu peço ‘você escolhe alguma música que lhe dê segurança, que você se sinta bem, que lhe identifique, que fale um pouco de você’. [...] Então eu procuro ver o universo deles, a vivência deles”. (Trabalhador 14)

Tal como a psicóloga, a enfermeira também possui sua estratégia de trabalho. Para isto, estrutura um grupo educativo, com ênfase em esclarecimentos sobre doenças e sobre o cuidado com a higienização. A exemplo destas duas profissionais, a fisioterapeuta começou a formar um grupo envolvendo atividades físicas, trabalhando o relaxamento muscular. Mas como ela é coordenadora do HD, suas obrigações demandam muito tempo, e esse grupo não é tão ativo. Outra profissional atuante é a psiquiatra. Ela desenvolve um grupo de psicoeducação, no qual discorre sobre o processo saúde/doença, conscientizando os usuários sobre seus transtornos e esclarecendo dúvidas pertinentes. “[...] eles querem entender um pouco da doença deles. [...] o que é uma alucinação, o que é um delírio, e eles perguntam e eu vou respondendo de acordo com o que eles querem saber. [...] eles trocam informações e depois o coordenador e os observadores vão falar algo do que surgiu naquele momento”. (Trabalhador 4)

A educação em saúde pode efetivar mudanças do comportamento e da subjetividade de agrupamentos, ao ampliar a intervenção das pessoas sobre sua própria realidade, modificando seu contexto de vida (Campos, 2007). Com esta finalidade, o psicólogo tem um grupo de teatro, no qual os usuários escolhem o que querem dramatizar e fazem a sinopse. Nesse grupo, uma interação muito forte é percebida entre os participantes. Mesmo pacientes que já receberam alta hospitalar, pedem autorização para permanecer no grupo. “[...] ele [psicólogo] tá fazendo um teatro com eles [usuários] e eles adoram. Então tem aqueles pacientes que já saíram daqui e que pedem pra retornar pra ficar no teatro. É um momento que eles interagem mesmo”. (Trabalhador 1)

Peluso, Baruzzi e Blay (2001) discorrem sobre o desfecho clínico da psicoterapia em que os pacientes relatam a sensação de alívio, clarificação, modificação de alguns padrões de comportamento e redução do isolamento social. A trajetória terapêutica desses pacientes destaca-se pela elevada frequência e pela continuidade à psicoterapia, até mesmo nos que não perceberam mudanças com a intervenção. Há também grupos que envolvem mais de um profissional. No grupo sociofamiliar, psicólogo, médico, assistente social e enfermeira participam desse momento e contribuem para um melhor relacionamento dos familiares com os usuários. Nesse grupo, os familiares são estimulados a falar das principais dificuldades enfrentadas na produção do cuidado aos pacientes. Quando ocorre diálogo entre familiares, há a percepção da possibilidade de ajuda mútua em virtude de problemas semelhantes. O sentimento de não estarem sós nessa luta por uma melhor qualidade de vida dentro da família transcende as dificuldades impostas e fortalece o cuidado ao sujeito. “O acolhimento é bom: eles chegam, são acolhidos por toda a equipe, que é a reunião de família. A família é acolhida pela equipe nas necessidades do paciente, qualquer necessidade que a família tenha, [...] tem todo um esclarecimento [...], eles são acolhidos de uma forma bem terapêutica”. (Trabalhador 9)

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“E o projeto do serviço social é sempre a questão da inclusão da família no processo de tratamento”. (Trabalhador 13)

Trabalhar em equipe não significa abdicar das particularidades de cada profissão, mas utilizar a cogestão para assegurar saúde de qualidade para quem necessita (Campos, 2007). De modo geral, o grupo terapêutico possibilita o compartilhamento de experiências entre os participantes, propicia escuta, orientação e construção de projetos terapêuticos condizentes com as necessidades dos sujeitos. Ao mesmo tempo, a vivência em grupo favorece maior capacidade resolutiva, por possuir vários olhares direcionados para um problema em comum (Schrank, Olschowsky, 2008). Essa vivência enseja a construção de novas visões e sentidos capazes de proporcionar mudanças significativas na percepção de vida de seus integrantes (Guanaes, Japur, 2005). Existe também o grupo de acolhimento, às segundas-feiras, cuja finalidade é escutar o usuário sobre seu final de semana; além do grupo de avaliação da semana, às sextas-feiras, no qual os usuários podem fazer uma reflexão sobre as atividades desenvolvidas durante a semana. Conforme se percebe, os usuários têm a possibilidade de questionarem sobre o tratamento que estão recebendo no HD: “E na sexta eles têm um grupo de avaliação da semana [...] aí eles podem reclamar, reivindicar ou agradecer, seja o que for”. (Trabalhador 2) “Como foi o final de semana? Se eles passearam? Se eles se divertiram? Se eles tomaram banho? Se eles comeram bem? Tudo isso elas [trabalhadoras] perguntam. É um grupo muito bom, elas dão umas explicações muito boas. Eles gostam. Eles gostam muito”. (Trabalhador 12)

O acolhimento desenvolvido pela equipe multidisciplinar compromete-se com a escuta do sujeito, empenha-se na resolução de seus problemas. Tem a finalidade de qualificar a relação entre equipe e usuário, com vistas à integralidade do atendimento ao sujeito. De acordo com determinados autores, a intensificação de práticas acolhedoras é um passo fundamental para se alcançar a efetivação da produção do cuidado, contribuindo para uma clínica mais humana e cidadã (Santos et al., 2007; Franco, Bueno, Merhy, 2006). “[...] eles são acolhidos aqui e são muito bem tratados aqui”. (Trabalhador 11)

Desse modo, pode-se chegar à integralidade, a se iniciar na organização do processo de trabalho, que envolve uma assistência desenvolvida pela interdisciplinaridade da equipe e conta com acolhimento e vínculo, além da responsabilização do cuidado (Franco, Magalhães Júnior, 2006). Tal como outras iniciativas, as oficinas terapêuticas também são realizadas dentro de um contexto grupal. São atividades desenvolvidas pelos profissionais da terapia ocupacional e incluem: pintura, colagem, modelagem, trabalhos com sucata, papel reciclado e carpintaria. Complementarmente, com o auxílio dos profissionais da nutrição, os usuários se reúnem para fazer saladas de frutas. Há também o cuidado com a horta, além de momentos de descontração, quando eles participam de bingos, jogos, assistem à televisão e ouvem músicas. Pelas narrativas dos profissionais, percebe-se que as atividades terapêuticas grupais desenvolvidas no HD proporcionam um sentimento de prazer, de entusiasmo e de satisfação para os usuários. Ao se observarem as práticas, evidenciam-se a satisfação e a interação de alguns usuários; outros já não são tão ativos, mas dão sua contribuição na dinâmica grupal. Essas atividades desempenham um papel importantíssimo para a reabilitação do paciente. “[...] eles adoram por sinal [...] todos eles gostam! Mas a música mexe muito com eles [...]. Então eles adoram, eles interagem, eles cantam, eles colocam as emoções pra fora, sabe? É uma coisa assim tão interessante [...] eu via assim uma interação, uma liberação, assim, um envolvimento”. (Trabalhador 1)

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“[...] até mesmo final de semana que eles vão pra casa ‘aí eu queria tanto que esse tivesse passado rápido pra vir pra cá’. Quer dizer, eles gostam daqui, eles gostam do ambiente”. (Trabalhador 3)

Com relação às atividades individuais, nota-se a predominância de consultas com médicos e psicólogos para avaliar se o paciente está aderindo ao tratamento e se está se relacionando bem com a família. As entrevistas com os médicos ocorrem três vezes por semana e, caso haja necessidade, também são feitas visitas domiciliares. No desempenho do seu trabalho, a equipe do HD está constantemente em busca do melhor para os pacientes. Mesmo diante de resultados satisfatórios na recuperação destes, a equipe do HD se reúne para discutir sobre as perspectivas de novas abordagens terapêuticas passíveis de proporcionar maior qualidade de vida aos usuários.

Produção do cuidado e o trabalho em equipe Após receberem alta do HD, muitos usuários pedem para permanecer no serviço, motivados pela satisfação em participar dos grupos terapêuticos. Outra justificativa para isto pode ser a falta de assistência fora do HD. Como mostra a realidade, as necessidades de saúde não se limitam aos transtornos mentais: elas são bem maiores e envolvem questões financeiras, sociais e culturais. Dentro do HD, essas necessidades são amenizadas: há alimentação, interação com as outras pessoas, acolhimento, vínculo. Fora do HD, os usuários ainda enfrentam fome, desprezo e preconceito. “[...] muitas vezes eles querem até ser alienados pra poder receber o benefício que é a estratégia de sobrevivência”. (Trabalhador 2)

Neste sentido, as práticas, os procedimentos e as orientações da clínica oficial são insuficientes para abordar toda a variedade de dimensões que compõem as demandas e as necessidades de saúde das pessoas. Para ir além, por conseguinte, é essencial instrumentalizar-se de ações coletivas fortalecidas pela intersetorialidade e pela rede de referência e contrarreferência eficiente (Fracolli, Zoboli, 2004). A equipe multidisciplinar do HD trabalha em sintonia. Nas reuniões semanais, toda ela discute sobre o projeto terapêutico de cada usuário e interfere no decorrer de todo o tratamento. “[...] todos os profissionais daqui têm essa concepção de que eles, além do transtorno, eles são seres humanos que precisam da equipe, e a gente tem muita atenção, muito carinho [...] é uma equipe muito envolvida. A gente tem que estar preocupada com o bem-estar deles. [...] Assim eu acho tão envolvente esse trabalho daqui, eu acho tão bom, é uma coisa tão boa que às vezes a gente tem até pena de dizer um não porque eles sentem essa necessidade”. (Trabalhador 1)

Inegavelmente, o trabalho em equipe traz novas possibilidades de atuação, sobretudo por contribuir para uma melhor qualidade do serviço, pois atua no planejamento de ações mais efetivas, estabelecendo prioridades na realização das práticas, além de intervenções mais criativas no processo de trabalho (Pinho, 2006). Segundo Pinto (2008), o desenvolvimento do projeto terapêutico deve procurar respeitar a singularidade de cada sujeito. Produzir cuidado não é atuar de forma burocrática e mecanicista, e sim perceber que o caráter individual do sujeito tem importante relevância no dinamismo do cuidado. Com vistas a ações integrais e efetivas, muitas vezes é preciso criatividade do profissional, além de uma boa comunicação tanto com o usuário, quanto com os demais profissionais da equipe. Um bom profissional deve saber que angústias não são padronizadas e que pessoas não são fragmentadas. Portanto, as práticas e os saberes de toda a equipe serão mais resolutivos do que a individualização do conhecimento (Ciuffo, Ribeiro, 2008).

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No projeto terapêutico, a responsabilidade cabe não apenas à equipe, mas também ao usuário e à família. Embora a família, às vezes, deseje a internação do paciente, a equipe do HD tenta dissuadi-la e conscientizá-la de sua importância no tratamento dentro de casa, no cuidado ao paciente. Como sujeitos do processo, os pacientes são esclarecidos sobre sua doença e têm autonomia para aderir ou não ao projeto terapêutico proposto. “[...] a gente tenta conscientizar a família de que se o paciente não tem o apoio familiar, ele não vai ter uma resposta tão satisfatória. [...] Pra ele ser reintegrado na sociedade é uma coisa muito difícil. [...] a gente percebeu que a família queria se livrar do problema”. (Trabalhador 1) “[...] a gente procura saber, conversar, saber como foi o dia do paciente, se ele tomou a medicação realmente. [...] não só com o paciente, a gente também tenta conversar com a família”. (Trabalhador 8)

Para que o paciente permaneça integrado ao serviço, ele precisa participar das atividades sugeridas no projeto terapêutico. Apesar disso, quando o paciente não está disposto a participar de todas as atividades, sua liberdade é respeitada. Existe um vínculo muito forte entre os usuários e a equipe do HD. No Hospital-Dia eles são tratados como seres humanos dignos de respeito e atenção. Há uma interação entre os profissionais e os usuários, e os sentimentos de afeto são mútuos. A família também está envolvida e vinculada à produção do cuidado. “[...] eles recebem alta e ficam voltando cá, ficam querendo ficar aqui. Abraçam a gente, conversam muito com a gente, todo dia eles querem um atendimento da gente porque se sentem bem”. (Trabalhador 3) “Aqui a gente tem um vínculo muito grande com o usuário e com a família. A gente tenta de todo jeito ajudar o paciente”. (Trabalhador 7)

Para Campos (2007), o vínculo se constitui na troca entre a oferta do serviço de saúde dos trabalhadores e a demanda da resolução do sofrimento do usuário. É uma troca de afetos, na qual a equipe e o usuário precisam acreditar na resolubilidade do tratamento para que esse vínculo não se torne “paternalista”. Deve-se estimular o usuário a também participar da resolução de seus problemas, ou seja, deve haver corresponsabilização no projeto terapêutico. Segundo o autor, “a prática de uma clínica com qualidade é o fortalecimento de vínculos entre paciente, famílias e comunidade com a equipe e com alguns profissionais específicos que lhes sirvam de referência” (Campos, 2007, p.68). O vínculo permite o compartilhamento de saberes e vivências entre equipe e usuário, ampliando as potencialidades dessas pessoas. Permite o desenvolvimento de corresponsabilização do projeto terapêutico, para que esse projeto não seja desenvolvido de forma única e absoluta pelo profissional, nem movido apenas pelas vontades e anseios dos usuários (Santos et al., 2008). Como propõe a literatura, a adoção de práticas e processos voltados para a saúde mental requisita elementos da subjetividade e condição humana, e, para se obter um estado de equilíbrio sistêmico e psicológico, a corresponsabilização terapêutica e os momentos de escuta e diálogo entre o terapeuta e o paciente são necessários (Bechelli, Santos, 2006; Campos, 2006). No HD, o acolhimento diário propicia à equipe multiprofissional manter-se a par do ocorrido com o paciente nos cenários extra-hospitalares. A família também é acolhida nas reuniões de grupo: dúvidas e angústias são ouvidas, esclarecimentos e confortos são prestados a essas pessoas. Embora parcialmente, as atividades desenvolvidas no HD proporcionam resolubilidade aos problemas dos usuários, pois a maior interação desses sujeitos com as famílias, com a equipe e com a comunidade permite convivência social, elevação na autoestima e melhor qualidade de vida. No HD, esses usuários são tratados com respeito e com dignidade. Por meio do projeto terapêutico

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desenvolvido, há visível redução no número de internações, com menor dependência dos usuários aos serviços de saúde e, consequentemente, maior autonomia. É visível, também, o envolvimento social e laboral de alguns usuários, que voltam a trabalhar, a ter maior liberdade e melhor relacionamento social. Outros não alcançam a plenitude desse retorno social, mas conseguem uma melhor relação com os familiares. Para essa melhoria na qualidade de vida, a família tem importância fundamental: ao entender a doença e lidar devidamente com ela, as chances de recuperação são bem maiores. “[...] eles [usuários] falam que adoram o hospital, que aqui tem gente como eles. [...] o paciente se sente útil. O paciente tem contato com outros pacientes, tem contado com a equipe, tem aquela integralização com a família, reunião de grupo com a família também, e eu acho que isso aqui evita sim o número de novos internamentos. [...] a gente vê que aqui no hospital-dia o paciente já tem uma funcionalidade melhor. Eu acho importantíssimo”. (Trabalhador 5) “[...] a gente vê que em parte o diferencial do hospital é que tem essas outras atividades de até (re) socialização mesmo”. (Trabalhador 6) “[...] quando sai do internamento que vem pra cá, se sente melhor ainda, porque ele não se sente preso. [...] além de ele ter liberdade, ter liberdade de tudo, ter os passeios dele, ter essas atividades, ter bingo, essas coisas assim, ele se sente melhor, se sente bem, se sente acolhido e se sente como uma pessoa mesmo”. (Trabalhador 11)

Pelos serviços prestados, o HD recebe elogios, mas os profissionais questionam sobre os motivos desses elogios: “A gente recebe elogios, mas aí tem que ver porque foi: será que é porque tá dando um alívio à família durante esse período? [...] Então essa história da resolutividade é muito difícil de falar”. (Trabalhador 2)

De modo geral, as famílias não podem acompanhar rotineiramente as atividades do HD, fato que compromete o projeto terapêutico. Além disso, o processo de alta hospitalar administrativa, que obedece às normas institucionais, dificulta a recuperação daqueles pacientes com problemas mais graves, que demandam mais tempo de recuperação. Alguns usuários não têm acesso ao projeto terapêutico adequado ou não participam conforme devido. Desse modo, retornam ao hospital psiquiátrico. “[...] muitos se recuperam, mas muitos a gente chega no pavilhão [do hospital psiquiátrico HSMM] e já tá de volta. É uma tristeza, mas é verdade”. (Trabalhador 10)

Diante desta situação, salienta-se: a questão social é muito complexa, e a resolubilidade não depende só do HD. Apesar de os profissionais se esforçarem com vistas ao resgate da cidadania do usuário, a contribuição da família e da comunidade neste processo é essencial. Ressalta-se, também, o preconceito social sofrido pelos usuários, o qual vai de encontro às propostas reabilitadoras dos serviços de saúde mental, interessadas em proporcionar espaços de convivência salutar, onde a integração e o envolvimento se façam presentes. Esse preconceito compromete a resolubilidade (Pinto, 2008). No HD, a produção do cuidado em saúde mental perpassa todo o processo terapêutico do indivíduo. Ao cuidar do sujeito, deve-se levar em consideração sua autonomia, seus valores e sua subjetividade. Com o trabalho em equipe (envolvendo trabalhador, usuário e família), percebe-se uma integração na busca de melhorias de vida para esses sujeitos.

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Como observado, os espaços terapêuticos possibilitados pela expansão da rede de saúde mental promovem a aplicação das atividades interdisciplinares com o propósito direto de favorecer a reabilitação psicossocial. O HD está inserido nessa perspectiva e tenta oferecer um cuidado integral ao sujeito mediante participação da equipe e da família no projeto terapêutico. Devido à organização administrativa dos serviços de saúde mental no município de Fortaleza-CE, o HD está sob gestão estadual, enquanto a rede de atenção à saúde mental municipal mantém o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), unidades de internação em hospital geral e serviços residenciais terapêuticos. Tal realidade dificulta algumas estratégias de interlocução entre estes dispositivos institucionais. A despeito dos avanços, o HD ainda está desprovido da diretriz referente à perspectiva territorial do cuidado (Brasil, 2003), do ponto de vista sócio-histórico, representa um espaço de transformação de práticas e um dispositivo para (re) construção da rede de atenção psicossocial, desde que as relações entre os diversos serviços sejam continuamente efetivadas no Sistema Único de Saúde (SUS).

Considerações finais Segundo revelou a análise das entrevistas e das observações no campo, as práticas terapêuticas grupais desenvolvidas no HD são importantes para a reabilitação psicossocial, e a equipe do HD utiliza dispositivos para a produção do cuidado, tais como: vínculo, acolhimento, corresponsabilização e autonomia. Ao cuidar do paciente, a equipe busca entender sua complexidade e subjetividade. Trabalha em sintonia e procura ter uma visão integral de cada caso. A produção do cuidado no HD inclui a participação da família do paciente e perpassa todo o projeto terapêutico. Portanto, o cuidado produzido pela relação entre equipe e usuário não se restringe à administração de psicofármacos nem à realização de psicoterapias; vai além e constrói novas possibilidades de vida. Diante dos resultados, enfatiza-se o seguinte: no presente trabalho, abordou-se a produção do cuidado por meio de grupos terapêuticos em apenas um Hospital-Dia. Assim, não se podem generalizar as abordagens terapêuticas realizadas nesse serviço para os demais serviços da rede de Fortaleza-CE. Além disso, como as entrevistas foram direcionadas somente aos trabalhadores de saúde mental, recomenda-se desenvolver outros estudos com usuários e familiares para confronto dos resultados de análise. A utilização das terapias grupais na abordagem aos usuários possibilita a atuação interdisciplinar condizente com a prática clínica humana, equânime e resolutiva. Diante desta justificativa, o trabalho com grupos terapêuticos deve ganhar espaço nos serviços e instituições da rede de atenção à saúde, pois se trata de uma ação relevante no planejamento de intervenções clínicas, já que apresenta resultados positivos no acompanhamento de diversos agravos e doenças. Muitos limites ainda devem ser superados no processo de transformação desse cenário. Para haver mudança, é essencial a participação e a mobilização de todos na construção de novos espaços, estratégias e soluções. Mas, inegavelmente, o crescimento teórico e a intensificação da habilidade prática proporcionam aos profissionais uma chance de ampliarem a relação com os usuários pelos dispositivos da produção do cuidado.

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artigos

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. ______. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. BECHELLI, L.P.C.; SANTOS, M.A. Transferência e psicoterapia de grupo. Rev. Latino-am. Enferm., v.14, n.1, p.110-7, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Geral de Saúde Mental. Coordenação de Gestão da Atenção Básica. Saúde mental e a atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília: MS, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Geral de Saúde Mental. Coordenação de Gestão da Atenção Básica. Normas para pesquisa envolvendo seres humanos (Res. CNS 196/96 e outras). Brasília: Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP, 2000. (Série Cadernos Técnicos). CAMPOS, G.W.S. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec, 2007. CAMPOS, R.O. A promoção à saúde e a clínica: o dilema “promocionista”. In: CASTRO, A.; MALO, M. (Orgs.). SUS: ressignificando a promoção da saúde. São Paulo: Hucitec/ OPAS, 2006. p.62-74. CARDOSO, C.; SEMINOTTI, N. O grupo psicoterapêutico no Caps. Cienc. Saude Colet., v.11, n.3, p.775-83, 2006. CIUFFO, R.S.; RIBEIRO, V.M.B. Sistema Único de Saúde e a formação dos médicos: um diálogo possível?. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.12, n.24, p.125-40, 2008. CONTEL, J.O.B.; VILLAS-BOAS, M.A. Psicoterapia de grupo de apoio multifamiliar (PGA) em hospital-dia (HD) psiquiátrico. Rev. Bras. Psiquiatr., v.21, n.4, p.225-30, 1999. FRACOLLI, L.A.; ZOBOLI, E.L.C.P. Descrição e análise do acolhimento: uma contribuição para o programa de saúde da família. Rev. Esc. Enferm. USP., v.2, n.38, p.143-51, 2004. FRANCO, T.B.; BUENO, W.S.; MERHY, E.E. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso em Betim (MG). In: MERHY, E.E. et al. (Orgs.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2006. p.37-54. FRANCO, T.B.; MAGALHÃES JÚNIOR, H.M. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas de cuidado. In: MERHY, E.E. et al. (Orgs.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2006. p.125-32. GUANAES, C.; JAPUR, M. Sentidos de doença mental em um grupo terapêutico e suas implicações. Psicol.: Teor. Pesqui., v.21, n.2, p.227-35, 2005. ______. Grupo de apoio com pacientes psiquiátricos ambulatoriais em contexto institucional: análise do manejo terapêutico. Psicol. Reflex. Crit., v.14, n.1, p.191-99, 2001. JORGE, M.S.B. Práticas de abordagens terapêuticas grupais dos trabalhadores de saúde na produção do cuidado em saúde mental, Fortaleza/CE. Relatório final da pesquisa. Fortaleza: GRUPSFE-UECE, 2009. JORGE, M.S.B. et al. Reabilitação psicossocial: visão da equipe de saúde mental. Rev. Bras. Enferm., v.59, n.6, p.734-9, 2006.

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MENDONÇA, T.C.P. As oficinas na saúde mental: relato de uma experiência na internação. Psicol. Cienc. Prof., v.25, n.4, p.626-35, 2005. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2008. OLIVEIRA, A.G.B.; ATAIDE, I.F.C.; SILVA, M.A. A invisibilidade dos problemas de saúde mental na atenção primária: o trabalho da enfermeira construindo caminhos junto às equipes de saúde da família. Texto Contexto Enferm., v.13, n.4, p.618-24, 2004. PELUSO, É.T.P.; BARUZZI, M.; BLAY, S.L. A experiência de usuários do serviço público em psicoterapia de grupo: estudo qualitativo. Rev. Saude Publica, v.35, n.4, p.341-8, 2001. PINHO, M.C. Trabalho em equipe de saúde: limites e possibilidades de atuação eficaz. Cienc. Cognição, v.8, p.68-87, 2006. PINTO, A.G.A. Produção do cuidado em saúde mental: significados e sentidos da prática clínica em centro de atenção psicossocial. 2008. Dissertação (Mestrado) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. 2008. SANTOS, A. M. et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Rev. Saude Publica, v.42, n.3, p.464-70, 2008. ______. Linhas de tensões no processo de acolhimento das equipes de saúde bucal do Programa Saúde da Família: o caso de Alagoinhas, Bahia, Brasil. Cad. Saude Publica, v.23, n.1, p.75-85, 2007. SCHRANK, G.; OLSCHOWSKY, A. O Centro de Atenção Psicossocial e as estratégias para inserção da família. Rev. Esc. Enferm. USP, v.42, n.1, p.127-34, 2008. VALLADARES, A.C.A. et al. Reabilitação psicossocial através das oficinas terapêuticas e/ou cooperativas sociais. Rev. Eletron. Enferm., v.5, n.1, p.4-9, 2003.

BENEVIDES, D.S. et al. Cuidado en salud mental por medio de grupos terapéuticos de un hospital-día: perspectivas de los trabajadores de salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.127-38, jan./mar. 2010. El objetivo de este trabajo ha sido comprender las prácticas y los saberes comprendidos en los planteamientos terapéuticos grupales y sus articulaciones con la producción del cuidado en salud mental en un Hospital-Día (HD) de la ciudad de Fortaleza, Ceará, Brasil, por medio de investigación descriptiva con planteamiento cualitativo. Para la colecta de datos se ha realizado entrevista semi-estructurada con 14 profesionales del HD, además de la observación sistemática de las prácticas. En el análisis crítico y reflexivo se han buscado convergencias y divergencias entre las manifestaciones de los profesionales y las observaciones en campo. De acuerdo con este análisis las prácticas terapéuticas grupales desarrolladas en el HD son importantes para la re-habilitación psico-social de los sujetos; y el equipo del HD utiliza dispositivos para la producción del cuidado tales como vínculo, acogida, co-responsabilización y autonomía. Al cuidar del sujeto, el equipo trata de entender su complejidad y subjetividad. La producción del cuidado en el HD incluye la participación de la familia del paciente y adelanta todo el proyecto terapéutico.

Palabras clave: Hospital-día. Salud mental. Grupo terapéutico y cuidado. Recebido em 26/03/2009. Aprovado em 10/08/2009.

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artigos

Acupuntura e promoção de saúde: possibilidades no serviço público de saúde*

Maria Elisa Rizzi Cintra1 Regina Figueiredo2

CINTRA, M.E.R.; FIGUEIREDO, R. Acupuncture and health promotion: possibilities in public health services. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.139-54, jan./mar. 2010.

The objective of the present study was to analyze the possible contributions of acupuncture applied within public health services in the municipality of São Paulo, for health promotion. A qualitative research approach was used, with in-depth interviews. The results showed that acupuncture practiced within the public health services enabled interdisciplinarity, thereby integrating individuals’ self-perception and their perception of context and allowing changes in the primary causes of diseases. Thus, contact with acupuncture as practiced in the health services of the municipal network of São Paulo may be able to contribute towards developing health promotion actions.

Keywords: Acupuncture. Health promotion. Single Health System.

O presente estudo objetivou analisar as possíveis contribuições da Acupuntura aplicada nos serviços públicos de saúde do município de São Paulo para a Promoção da Saúde. Foi utilizada a abordagem qualitativa de pesquisa, com uso de entrevistas em profundidade. Os resultados apontam que a Acupuntura praticada nos serviços públicos permite um trânsito interdisciplinar integrando a percepção do indivíduo sobre si mesmo e seu contexto, possibilitando mudanças nas causas primárias das doenças. Assim, o contato com a Acupuntura praticada nos serviços de saúde da rede municipal de São Paulo mostra-se passível de contribuir para o desenvolvimento de ações de Promoção de Saúde.

Palavras-chave: Acupuntura. Promoção de saúde. Sistema Único de Saúde.

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*Texto inédito, com aprovação do Comitê de Ética/ Sisnep CAAE0046.0.162.253-07. 1 Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo. Rua dos Pinheiros, 1474, apto. 604. São Paulo, SP, Brasil. 05.422-002. elisa.rizzi@hotmail.com 2 Instituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

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Acupuntura e Promoção de Saúde:...

Introdução Em especial após a década de 1960, o movimento internacional de contracultura vem agregando ao imaginário brasileiro tradições provenientes de culturas orientais. Tal movimento sugeria um novo estilo de vida às pessoas, incorporando tendências naturalistas e de afinidade com as civilizações do Oriente. No âmbito econômico, em sentido contrário à industrialização e consumos desenfreados, o movimento preconizava os conceitos de desenvolvimento sustentável e de qualidade de vida como uma forma mais equilibrada de interação com o meio social e ambiental, pressupondo a valorização do corpo, da saúde, da natureza, do prazer e, especialmente, das emoções positivas (Queiroz, 2006). A maior parte destas tradições adota uma postura “vitalista” diante do corpo, da saúde e da doença, que tem, como aspecto teórico fundamental, a ideia de que a “energia” organiza a matéria, e não vice-versa, com ênfase no estado geral do doente e não mais na doença; numa perspectiva integradora e nãoorganicista, que interpreta a doença como um desequilíbrio interno, e não como resultado de invasões de agentes patogênicos (Queiroz, 2000). A doença, assim, representa as manifestações sintomáticas de desequilíbrio, que são vistas como sintomas necessários, provenientes de causas mais profundas, que abrangem o indivíduo e seu modo de vida em sua totalidade. Assim, as propostas de saúde influenciadas pelo contato com o Oriente se caracterizam por serem, não intervencionistas, mas focadas no indivíduo, seu meio ambiente e sua experiência de vida (Queiroz, 2006). Dentre elas está a Medicina Tradicional Chinesa-MTC3. A Acupuntura é uma técnica de intervenção terapêutica da MTC que adota essa postura vitalista, uma vez que se fundamenta no primado da energia sobre a matéria, do doente sobre a doença, e na ideia de “tipos constitucionais humanos”, características de pessoas com determinados padrões físicos, estruturais, psicológicos e de comportamento (Hicks, Hicks, Mole, 2007). No Brasil, a prática da Acupuntura foi introduzida na tabela do Sistema de Informação Ambulatorial - SIA/SUS em 1999, através da Portaria nº 1230/GM (Brasil, 1999), e sua prática reforçada pela Portaria 971, publicada pelo Ministério da Saúde em 2006, que aprovou a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde. Este último documento define que a mesma pode ser aplicada junto aos sistemas médicos complexos. Esse documento define que, no SUS - Sistema único de Saúde, sejam integrados abordagens e recursos que busquem estimular os mecanismos naturais de prevenção de agravos e de recuperação da saúde, sobretudo, os com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e com a sociedade (Brasil, 2006). Tal determinação legal permitiu que alguns serviços de saúde pública brasileiros integrassem a prática da Acupuntura (Nascimento, 2006). No município de São Paulo, isso vem ocorrendo, mais amplamente, desde 2000, por iniciativa de profissionais do Hospital do Servidor Público Municipal, do Hospital e Maternidade Escola da Vila Nova Cachoeirinha, da Unidade Básica de Saúde da Vila Progresso, na Brasilândia, dos Centros de Referência da Saúde do Trabalhador de Santo Amaro e da Freguesia do Ó e do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Saúde Pública. Em 2001, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, com o objetivo de difundir suas distintas modalidades em todos os serviços públicos de saúde do município, criou a Área Técnica das Medicinas Tradicionais e Práticas Integrativas em Saúde. Até o final de 2004, mais de mil funcionários passaram por processos de capacitação, resultando na integração de, pelo menos, uma modalidade de 140

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A partir desta ocorrência, o termo Medicina Tradicional Chinesa aparecerá no texto com a sigla MTC.

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prática integrativa oriunda da MTC (entre elas TÀI JÍ QUÀN4, LIANG GONG, meditação, TUÍ-NA e Acupuntura), em cerca de trezentas unidades de saúde do município de São Paulo. Desse total de serviços, sessenta integraram especificamente o recurso da Acupuntura (Brasil, 2002), número que, no entanto, sofreu uma regressão até os dias atuais. O estudo aqui apresentado teve como objetivo analisar as possíveis contribuições da Acupuntura aplicada nos serviços públicos de saúde do município de São Paulo para a Promoção da Saúde. Para sua execução foi utilizada a abordagem qualitativa de pesquisa, com uso de entrevistas em profundidade.

artigos

Mais popularmente conhecido no Brasil, na Grafia Wade-Giles, por “Tai Chi Chuan”. Este artigo adotará a padronização dos termos chineses na grafia Pin Yin. 4

Medicina tradicional chinesa, Acupuntura e promoção de saúde Dentre os autores do Ocidente Contemporâneo que estudaram a fundo as tradições, a sociedade, a filosofia e história chinesa, destacam-se: Marcel Granet e Paul Unschuld. Granet foi um dos primeiros etnólogos a estudar a China pelos métodos sociológicos, a partir de textos clássicou chineses. Deixando um legado de tratados minuciosos sobre a civilização e o pensamento chineses: As idéias conjuntas de Ordem, Totalidade e Eficácia dominam o pensamento dos chineses. Eles não se preocupam em distinguir reinos da natureza. Toda realidade é total em si. Todo universo é como o Universo. A matéria e o espírito não aparecem como dois mundos opostos. Não confere ao homem um lugar à parte [...] a não ser na medida em que, possuindo uma posição na sociedade, é digno de colaborar na manutenção da ordem social, fundamento e modelo da ordem universal. [...]. Essas idéias coadunam-se com uma representação do mundo que se caracteriza não pelo antropocentrismo, mas pela predominância da noção de autoridade social. (Granet, 1997, p.211)

5 As referências de tempo nos estudos sobre a China são usualmente feitas através das dinastias (Souza, 2008).

Unschuld (1985) aponta a visão não-linear e plural dos sistemas de saúde chineses. Preocupado com as distorções frequentemente encontradas nas traduções da literatura em MTC, ele sugere uma abordagem histórica e sistemática baseada em fontes antigas disponíveis na China. Ao apresentar o modelo de evolução da Medicina Chinesa em uma longa escala de tempo desde a dinastia5 SHANG (1751-112 a.C.) até o período atual conhecido como República Popular da China, iniciado em 1949, o autor demonstra como foram ocorrendo as mudanças de paradigmas na MTC, que inicialmente pautada num modelo oracular e sem diferenciação clara entre as funções do sacerdote e do terapeuta, hoje se aproxima cada vez mais da Medicina Ocidental ou da Racionalidade Biomédica (Souza, 2008). Segundo Luz e Souza (2009), a Medicina Clássica Chinesa - MCC foi sistematizada durante a dinastia HÀN (206 a.C.-220 d.C.). Houve, nesse período, uma síntese das concepções da cosmologia e da sociologia dos chamados “filósofos” chineses com concepções específicas do saber médico, que formaram as dimensões da doutrina médica, morfologia, dinâmica vital, diagnose e terapêutica. Destaca-se, nesse modelo, o HUÁNG DÌ NÈI JING, o Livro do Imperador Amarelo, e NAN JING, O Clássico das Dificuldades, nos quais foram sistematizados, num modelo coerente, a teoria dos meridianos (JING MÀI) e dos órgãos e vísceras (ZÀNG FU) e a teoria dos fatores patogênicos, a qual passa a ser a principal forma de explicar o adoecimento na dimensão da doutrina médica - e a prática da acupuntura aparece integrada a este modelo (Luz, Souza, 2009). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Acupuntura e Promoção de Saúde:...

Ainda de acordo com Luz e Souza (2009), o declínio da Medicina Clássica se iniciou na dinastia QING (1644-1912), já sob influência da cultura ocidental em expansão, os valores da cultura chinesa foram lentamente sendo transformados pelos valores ocidentais. A reconstrução da Medicina Chinesa teve início após a revolução comunista de 1949, no processo de construção da República Popular de China, uma vez que seus dirigentes tinham como objetivo resgatar parte da cultura tradicional criando uma síntese com a ciência e os valores modernos; adequando-se aos valores e ideologia da China comunista, surge então a MTC. Nos últimos quarenta anos, a escola de pensamento denominada MTC alcançou uma posição hegemônica na República Popular da China, bem como em diversos países do ocidente. Sendo uma das práticas terapêuticas mais divulgadas da Medicina Chinesa, a Acupuntura se apresenta como uma opção terapêutica disponível em qualquer metrópole do mundo ocidental (Souza, 2008). A MTC tem por base a integração e interação entre o ser humano e a natureza, visando o equilíbrio geral das pessoas (Alvarenga et al., 2004). O organismo é visto como um sistema energético e funcional e as doenças vistas como desequilíbrios energéticos, ou “quebra” na harmonia das funções orgânicas. Os fenômenos que ocorrem nos órgãos são explicados por meio de síndromes (conjunto de fatores patológicos de origem interna ou externa ao organismo) que revelam como a base energética da existência e a expressão da matéria, a força vital (QÌ), está circulando no sistema de órgãos e vísceras da pessoa (ZÀNG FU). Os indicadores das síndromes são verificados por oito critérios de diagnóstico: quanto à localização: (1) interno (profundo) ou (2) externo (superficial); quanto à natureza: (3) frio ou (4) calor; quanto à intensidade: (5) vazio (deficiência) ou (6) plenitude (excesso); quanto ao princípio: (7) yin ou (8) yang. Também importa, no diagnóstico, a análise do meio em que a pessoa se encontra e as condições de vida, sendo fundamentais, o aspecto emocional, os hábitos alimentares, os hábitos sexuais e a atividade física (Luz, 1993). O “fluxo de energia” no corpo é analisado com base nos cinco elementos existentes na natureza: fogo, terra, metal, água e madeira. Esses cinco elementos são vistos como responsáveis por uma série de relações e ciclos entre si, que explicariam os fenômenos vitais do corpo humano (Luz, 2006). Assim, o estado de saúde, nesta concepção, corresponde a um estado de equilíbrio do corpo, da mente e da espiritualidade e a manifestação da plena interação destes. No caso da Acupuntura, o método consiste na estimulação (com agulhas, eletricidade, esferas ou sementes) de pontos específicos da pele onde se localizam os padronizados canais definidos como “meridianos”, onde passaria a força vital (QÌ). Esses meridianos estão, cada um, em vinculação direta com um respectivo sistema fisiológico e/ou mental da pessoa. Por isso, estimulando (tonificando) ou pressionando (sedando/ dispersando) tais pontos, altera-se a circulação de energia vital (QÌ) e o fluxo de sangue (XUÈ) do organismo (Fundamentos, 1995). A MTC configura-se como uma racionalidade médica diferente da Biomedicina. A categoria criada por Madel Luz (1992) postula que um sistema terapêutico complexo é uma “racionalidade médica” quando engloba: 1 uma cosmologia; 2 uma morfologia; 3 uma dinâmica vital (ou Fisiologia); 4 uma doutrina médica (causas, efeitos e definições do adoecer são explicados); 5 um sistema de diagnose e 6 uma terapêutica. Como a Acupuntura faz parte dessa racionalidade integradora e vitalista da Medicina Tradicional Chinesa, acredita-se que seu tratamento tenha a possibilidade de promover o contato e o aprendizado de novas formas de se pensar o corpo, a saúde e a doença, viabilizando ações promotoras de saúde. A expressão Promoção da Saúde surgiu em 1945 (Pereira et al., 2000) para descrever uma das quatro tarefas básicas da Medicina relativas à prevenção de doenças, ao tratamento de doentes e à reabilitação. As ações de Promoção da Saúde englobam a promoção de condições de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, exercício físico e descanso. Em 1966, Leavell e Clark, ao sistematizarem o modelo de história natural de doença, incluíram a Promoção de Saúde no primeiro dos três níveis de ações de prevenção à saúde: 1 ações de promoção, prevenção e de profilaxia; 2 ações de diagnóstico e tratamento; e 3 ações de reabilitação (Leavell, Clark, 1976). Nesse modelo, as atividades a serem realizadas para promover a saúde incluiriam desde a boa nutrição, ao atendimento às necessidades afetivas e atividades de educação para a saúde. 142

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artigos

Mais tarde, em 1974, Marc Lalonde procurou ultrapassar as limitações nas definições das ações de Promoção da Saúde centradas na assistência médica, privilegiando as ações voltadas a “fatores particulares” (como a modificação de hábitos, do estilo de vida e dos comportamentos individuais não-saudáveis). Sua contribuição repercutiu durante toda a década de 1970, orientando práticas de Promoção da Saúde em diversos países da América do Sul e Europa (Sícoli, Nascimento, 2003). Na década de 1980, o termo Promoção da Saúde passou a se destacar no campo da Saúde Pública, ao ser introduzido oficialmente pela Organização Mundial de Saúde em 1984, passando a explicitar tanto a determinação social, política e econômica sobre a saúde, como a necessidade de atuação junto a esses determinantes (Sícoli, Nascimento, 2003). Essa visão foi reforçada pela Declaração de AlmaAta (World Health Organization - WHO, 1978) e pela Carta de Otawa (WHO, 1986), esta última elaborada na 1ª Conferência Internacional sobre a Promoção de Saúde. A Carta de Otawa define que a Promoção da Saúde é um processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, visando atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social (WHO, 1986). Posteriormente, em 1998, diante do cenário de crescentes preocupações com os princípios norteadores das ações de Promoção, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu sete princípios norteadores para as políticas e as ações de Promoção de Saúde: 1 a concepção holística, 2 a intersetorialidade, 3 O empoderamento, 4 a participação social, 5 a equidade, 6 as ações multiestratégicas, e 7 a sustentabilidade (WHO, 1998). Os mesmos princípios são contemplados pela Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) brasileira, criada em 2005: Promover a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes – modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais. (Brasil, 2005, p.14)

Promoção de saúde: um conceito positivo Segundo Lefèvre e Lefèvre (2004), admitir a possibilidade de promover saúde implica, necessariamente, o rompimento da visão da doença como fatalidade e assumir que a doença não é uma fatalidade e que a saúde não é mera resposta a ser reproduzida. Os autores consideram o modo negativo de conceber saúde como inadequado, pois este considera a saúde apenas como a ausência de doenças, revelando uma visão fragmentada do ser humano, baseada unicamente no modelo biomédico. De acordo com Camargo Jr. (2003), a biomedicina tem suas origens no surgimento da ciência moderna. A partir do Renascimento, progressivamente, foram sendo instauradas as bases da racionalidade mecanicista clássica e do positivismo, que têm como expoentes René Descartes e Auguste Comte, respectivamente. Nesse mesmo momento histórico nasce a clínica (Foucault, 2008), que, embasada nesta episteme, impregna o imaginário médico (mesmo séculos mais tarde) na racionalidade mecânica clássica (Camargo Jr., 2003), paralelamente ao desenvolvimento das Ciências Naturais. A ótica mecanicista pode ser delineada em três proposições básicas: 1 Seu caráter generalizante, ou seja, dirigir-se à produção de discursos de validade universal; 2 Seu caráter mecanicista, ou seja, a naturalização das máquinas produzidas pelo Homem, ao mesmo tempo em que passa a ver o universo como uma gigantesca máquina subordinada a princípios de causalidade lineares traduzíveis em mecanismos; 3 Seu caráter analítico, que pressupõe o isolamento das partes e o funcionamento do todo dado, necessariamente, pela soma das partes, portanto, buscam-se “leis gerais” (Camargo Jr., 2005). A Biomedicina se origina a partir da anatomoclínica; é uma medicina do corpo, das lesões e das doenças. A perspectiva de encontrar-se a essência da doença a partir do exame empírico de lesões delineia todo um novo campo epistemológico; com isso, apresenta-se nova concepção de doença, as quais não mais são vistas como um fenômeno vital, mas como a expressão de lesões celulares; assim, a doença passa a ser a categoria central do saber e da prática médica. Para Madel Luz, a Medicina COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ocidental torna-se definitivamente uma ciência das doenças, contrapondo-se à concepção médica da “arte de curar” (Camargo Jr., 2003, p.32). A doutrina biomédica traz implícita a ideia de que as doenças são objetos com existência autônoma; a perspectiva de uma “normalidade” é caracterizada por sua oposição à “patologia”, e a própria noção de saúde é definida como ausência de doença, por isso é tida como uma concepção negativa (Canguilhem apud Camargo, 2005, p.181). Em resposta a esta concepção “negativa”, Lefèvre e Lefèvre (2004) defendem que a concepção dada pela área da Promoção da Saúde, ao contrário, é “positiva”, pois é ampliada, integrada, complexa e intersetorial. Ao relacionar a saúde aos recursos sociais e pessoais, assim como às capacidades físicas, objetivando o bem-estar global, a área da Promoção da Saúde termina por ir além do setor Saúde. Assim, os autores propõem à Promoção de Saúde um papel de interferência, reunindo o conhecimento historicamente acumulado do processo saúde/doença como indicador das necessidades de intervenção com o objetivo de atingir as causas básicas da doença e, não apenas, evitar que elas se manifestem nos indivíduos e nas coletividades. Dentre as recomendações de ações de Promoção à Saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimula a integração das medicinas tradicionais nos sistemas de saúde, procurando promover estratégias de atuação mais amplas, que integrem, ao mesmo tempo, os requisitos de segurança, eficácia, qualidade, uso racional e acesso (WHO, 1998). Entre essas técnicas, a OMS cita a fitoterapia, a homeopatia, e, também, a Medicina Tradicional Chinesa, que inclui a terapêutica da Acupuntura.

Metodologia O presente estudo foi realizado utilizando-se a abordagem qualitativa de pesquisa. Em 2007, os serviços de saúde da região centro-oeste do município de São Paulo totalizavam 44 unidades básicas de saúde. Dentre eles, foram selecionados os quatro serviços municipais e com carga horária de atendimento mínimo de 4 horas semanais em Acupuntura. Os profissionais entrevistados foram escolhidos por serem os responsáveis pelo atendimento em Acupuntura nas unidades, por meio do contato direto com os mesmos, após autorização das respectivas coordenações dos serviços. Os usuários entrevistados foram convidados entre aqueles que estavam fazendo ou que já haviam feito tratamento com Acupuntura nesses mesmos serviços, em número que obedeceu ao critério de saturação de informações. Na abordagem dos participantes foram adotados todos os procedimentos de ética em pesquisa, orientados pela resolução 196/96 (CNS, 1996), além da submissão e aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa. A análise transversal consiste em descobrir progressivamente as analogias e/ou complementos entre as diferentes experiências e reflexões presentes num conjunto de arquivos, para extrair daí os elementos comuns.

6

Resultados obtidos e discussão Foram realizadas 13 entrevistas em profundidade, sendo quatro com profissionais e nove com usuários de Acupuntura. As entrevistas tiveram seus conteúdos analisados individualmente, e, depois, em seu conjunto, organizados por categorias temáticas por meio da análise transversal de conteúdo6.

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artigos

Os profissionais entrevistados nesta pesquisa possuíam formação anterior na área da biomedicina, pelo menos seis horas de trabalho semanal como acupunturista num serviço público, e a maioria com mais de dez anos de formação na área, como demonstra o quadro a seguir: Quadro 1. Perfil dos profissionais de Acupuntura entrevistados entre os meses de junho e setembro de 2007.

Entrevistado

Sexo

Formação inicial

Tempo de formado em Acupuntura (anos)

Instituição de formação

Carga horária total no serviço

Carga horária como Acupunturista

(horas por semana)

P1

M

Sanitarista

13

Pública

30

30

P2

M

Clínico

30

Pública/ Particular

30

30

P3

F

Pediatra

3

Pública/ Particular

40

6

P4

F

Sanitarista

20

Pública/ Particular

40

6

Fonte: Entrevista com os profissionais de Acupuntura.

Os usuários entrevistados são todos adultos, e têm escolaridade até o 2º Grau. Além disso, são em grande maioria do sexo feminino, oito entre nove, e buscaram espontaneamente o tratamento com Acupuntura, como demonstra o quadro: Quadro 2. Perfil dos usuários de Acupuntura entrevistados entre os meses de junho e setembro de 2007.

Unidade

A

B

C D

Entrevistado

Sexo

Idade

(estágio/completo ou incompleto)

Escolaridade

Recebe tratamento com Acupuntura

Como entrou em contato com a Acupuntura

U1

F

77

2º G – C

Atualmente

Espontaneamente

U2

F

50

1º G – I

Atualmente

Encaminhamento

U3

F

42

2º G – C

Anteriormente

Encaminhamento

U4

F

35

2º G – C

Anteriormente

Espontaneamente

U5

M

35

2º G – I

Atualmente

Espontaneamente

U6

F

60

2º G – I

Atualmente

Encaminhamento

U7

F

55

2º G – I

Atualmente

Encaminhamento

U8

F

37

2º G – C

Atualmente

Espontaneamente

U9

F

62

2º G – C

Atualmente

Espontaneamente

Fonte: Entrevista com os profissionais de Acupuntura.

As entrevistas foram divididas com base em três grandes temas de análise: 1 Combinação da Acupuntura com outros tratamentos; 2 Mudanças atribuídas ao tratamento com a Acupuntura; 3 Situação do tratamento com Acupuntura no Serviço Público de Saúde. 1 Combinação da Acupuntura com outros tratamentos de saúde: Considerou-se como combinação de tratamentos de saúde, sempre que foi relatada a não desistência de um tratamento anterior, ou quando o terapeuta encaminhou o paciente para alguma outra especialidade médica ou prática corporal sem interromper o tratamento com agulhas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Foi possível verificar que os acupunturistas trabalham em conjunto com outros tratamentos, da seguinte forma: Quadro 3. Combinação da Acupuntura com outros tratamentos de saúde segundo os entrevistados, entre os meses de junho e setembro de 2007.*

Entrevistados

Atende ou é atendido em conjunto com outro profissional de saúde

Indica ou acata orientação para alimentação e/ou prática corporal

Receita ou consome medicação alopática

P1 P2 P3 P4 U1 U2 U3 U4 U5 U6 U7 U8 U9

Sim Sim Não Sim Sim Sim Não Não Sim Sim Sim Não Sim

Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Sim Sim Sim Sim

Não Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Sim Sim Sim Sim

* As categorias Sim/Não encontradas nas tabelas correspondem, respectivamente, a itens que apareceram na entrevista e a itens que não apareceram. Fonte: Entrevista com os profissionais e usuários de Acupuntura.

Todos os profissionais relataram fazer parceria com profissional de saúde de outra especialidade: “[...] por encaminhamento interno dos profissionais que atendem aqui. Como esse que você viu, ou por encaminhamento de outro serviço, através de um impresso, um encaminhamento próprio, tal”. (P1)

Os usuários entrevistados relataram terem sido orientados pelos terapeutas a exercerem alguma prática corporal. As indicações, em sua maioria, foram para a realização de caminhadas e participação em grupos de ginásticas orientais: “Faço, faço caminhadas, quando não tá com muita dor, eu faço caminhada e a fisioterapia que é direcionada [...]. Pela fisioterapeuta e pelo acupunturista também”. (U3) “[...] então tem duas vezes por semana um grupo de TÀI JÍ [...] então vai fazendo a dobradinha e vai fazendo o acompanhamento do paciente”. (P4)

Os resultados indicam também que os profissionais entrevistados incentivam práticas corporais como parte complementar e integrante do tratamento. Como coloca Luz (2007), na MTC, é com a prática dos exercícios das artes marciais, como o TÀI JÍ, que se nota um tipo de mudança pela qual o paciente passa a ser menos dependente de remédios e médicos, tornando-se um agente de cura de si mesmo. O uso do medicamento alopático sem abandono do tratamento com as agulhas ocorre sempre que necessário, tal como a busca de especialidades médicas como forma de complementação e resolução de enfermidades não contempladas por outra terapêutica. Isso reforça a complementaridade entre as duas racionalidades médicas (biomédica e tradicional chinesa) (Figueiredo, 1999): “É. Então, mas a gente não descarta a alopatia, tem o hipertenso, o diabético, tem a artrose [...]”. (P3) 146

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artigos

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Entendendo que, em oposição a uma ciência das doenças biomédica, a MTC valoriza a arte de curar, a terapêutica predomina sobre a diagnose; neste sentido pautam-se, bem como outras medicinas tradicionais, nos seguintes aspectos: a) na reposição do sujeito doente como centro do paradigma médico; b) na re-situação da relação médico-paciente como elemento fundamental da terapêutica; c) na busca de meios terapêuticos, despojados tecnologicamente, menos caros e, entretanto, com igual ou maior eficácia curativa nas situações mais gerais e comuns do adoecimento da população; d) na construção de uma medicina que busque acentuar a autonomia do paciente, e não sua dependência no tocante à relação saúde-enfermidade; e) na afirmação de uma medicina que tenha, como categoria central de seu paradigma, a categoria de Saúde, e não de Doença. Nesse sentido: Levando-se em consideração o grande e continuado desenvolvimento da tecnologia e da ciência no campo da medicina, e sua incapacidade para reverter tal quadro, a busca de outra racionalidade em saúde por distintos grupos sociais que conformam clientelas de cuidados médicos, e mesmo por profissionais terapeutas, torna-se uma explicação razoável para o sucesso de sistemas terapêuticos regidos por paradigmas distintos dos da medicina científica. (Luz, 2007, p.48)

2 Mudanças atribuídas ao tratamento com Acupuntura Os acupunturistas relataram a ocorrência de mudanças atribuídas ao tratamento com Acupuntura, como: Quadro 4. Mudanças atribuídas ao tratamento com Acupuntura segundo os entrevistados entre os meses de junho e setembro de 2007.

Entrevistados

Fundamenta-se na racionalidade médica da MTC

Houve mudança na alimentação e/ ou incentivo ao exercício de prática corporal

Relata melhora ou ausência de enfermidades

P1 P2 P3 P4 U1 U2 U3 U4 U5 U6 U7 U8 U9

Sim Sim Sim Sim -------------------

Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não Sim Sim Sim Sim

Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim

Fonte: Entrevista com os profissionais e usuários de Acupuntura

2.1 Mudança na racionalidade médica Foi possível verificar que a racionalidade que embasa a prática da Acupuntura nos serviços visitados é “holística”, ou seja, há uma concepção que engloba a integração do homem com a natureza numa perspectiva de macro e microuniversos, postulando uma integridade biopsicossocial. “O mais evidente é esta concepção que o corpo não é... Ele não é ‘compartimentalizado’, ele é uma integração de estruturas, de órgãos, de vísceras, que se complementam [...]. Então este conceito de meridianos, ou de canais de energia que é o princípio de atuação da Acupuntura te, evidentemente, te leva a uma concepção do organismo como um todo. Então isso é básico”. (P1) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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2.2 Mudanças no cotidiano Os entrevistados relatam alterações em seu cotidiano. Estas mudanças passaram por diversos aspectos, desde mudanças na disciplina pessoal, no estado emocional e/ou psicológico e comportamental, bem como nas atividades físicas e na alimentação. Foi verificado que os profissionais de Acupuntura atribuem grande importância às mudanças nos hábitos de vida (alimentação, práticas corporais, respiração, ingestão de água e afetividade) para complementar o tratamento que desenvolvem: “Ah sim, tanto é que, por exemplo, com leite, a gente sempre fala para tirar o leite, por causa da proteína do leite, que não é bom. E o paciente: mas como ficar sem cálcio, num sei quê? Mas têm as verduras, o cálcio dos vegetais é muito melhor que o do leite, então tenta trocar”. (P3)

Assim, o contato com a terapêutica também pode permitir intervenções nas causas primárias dos desequilíbrios que causam as doenças (falta de atividade física, ou da má alimentação), indo de encontro ao que postulam Lefèvre e Lefèvre (2004). Os usuários dos serviços de Acupuntura entrevistados também relataram a ocorrência de mudanças atribuídas ao tratamento em Acupuntura, em relação à: 2.3 Melhora ou ausência de enfermidades Foi relatada, por todos os usuários, a melhora ou extinção das enfermidades ou quadro clínicos, após o tratamento com Acupuntura, como: perda de peso, ausência de dor (muscular, de cabeça, tendinite, dor nas costas, dor nos ombros, hérnia de disco, bico de papagaio, reumatismo), melhora na deficiência óssea (incluindo osteoporose, artrose), controle da pressão alta, controle da diabetes e melhora no sistema circulatório, entre outras: “[...] então eu acho que a Acupuntura age em todos os sentidos na depressão, no circulatório, no reumatismo e quando você está assim com o coração magoado, você sabe assim, que até nisso ajuda”. (U1)

3 Situação do tratamento com Acupuntura no serviço público de saúde Quando perguntado aos profissionais sobre a inserção da Acupuntura no serviço público de saúde, foi possível identificar as temáticas mais frequentes reveladas: Quadro 5. Tratamento com Acupuntura no serviço público segundo os entrevistados, entre os meses de junho e setembro de 2007.

Entrevistado

Verificou redução de custos e consumo de medicação

P1 P2 P3 P4 U1 U2 U3 U4 U5 U6 U7 U8 U9

Sim Sim Sim Sim Não Não Sim Sim Não Não Não Sim Sim

Citou boa infraestrutura

Considerou o tratamento eficaz

Mantém bom relacionamento com os outros profissionais de saúde

Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não Não

Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim

Sim Sim Não Sim -------------------

Fonte: Entrevista com os profissionais e usuários de Acupuntura.

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Acesso dos pacientes ao tratamento com Acupuntura Encaminhamento profissional

Procura espontânea

Já conhecia

Tratamento anterior ineficaz

Sim Sim Sim Sim Não Sim Sim Não Não Sim Sim Não Não

Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Sim Sim Não Não Sim Sim

--------Não Não Sim Não Não Não Não Sim Sim

--------Não Não Sim Sim Sim Sim Sim Não Não


CINTRA, M.E.R.; FIGUEIREDO, R.

artigos

3.1 Motivação para busca de tratamento em Acupuntura Foi possível verificar, nos relatos, como os pacientes entraram em contato com o tratamento em Acupuntura nas unidades de saúde e ambulatórios de especialidades. Conseguimos discernir duas principais formas de contato: por encaminhamento e por procura espontânea. Os relatos dos usuários que foram encaminhados por outros profissionais da área da saúde revelam que variadas especialidades médicas recomendam a Acupuntura como um tratamento complementar às suas práticas: “Eu comecei, vim do hospital universitário, passava lá porque eu tinha muitas dor, né? Ai fui encaminhada pra aqui, e tô, já fiz, ni mim, fisioterapia, agora tô fazendo Acupuntura”. (U2)

Contudo, a maioria dos usuários relatou a procura espontânea pelo tratamento, guiados por diferentes naturezas de motivações, por exemplo, muitos dos usuários buscaram tratamento orientados por outros usuários de Acupuntura conhecidos: “Aquela que já fez passa pra gente, ai pra mim foi ótimo, então ai recebi aquilo. Ah foi ótimo, ai eu passei pra ela, vamos passando pra frente. Ai isso assim, é como uma bola de neve”. (U1)

E outros usuários relataram experiências anteriores de tratamento em Acupuntura com resultados eficazes como sendo motivadoras da busca de um novo tratamento com esta técnica. “Eu não lembro, foi porque alguém fez, tinham muitas pessoas aqui fazendo, e ai eu fiz. Eu tinha um problema de enxaqueca e depressão e me falaram que era bom, que ajuda, e fui tentar fazer, mas não conhecia”. (U5)

Usuários que não resolveram suas queixas com outros tratamentos relataram a busca de outras formas de tratamento, entre elas, a Acupuntura: “E depois uma artrose e agora osteoporose, tudo relativo ao esqueleto. Então na primeira vez eu tive uma crise muito grande de tendinite nos pulsos, aí comecei a procurar a medicina clássica, cheguei lá e foi indicada cirurgia para os meus pulsos, o pulso direito. Mais aí eu fui pegando opinião, conversando com outras pessoas e aí falaram: por que você não tenta Acupuntura antes da cirurgia?”. (U3)

O contato com a Acupuntura também propicia a interação com outras áreas que extrapolam os serviços de saúde, levando as pessoas a parques, a ruas de seu próprio bairro e a integração com seu corpo e com o ambiente espacial e social. “[...] Além das feiras livres onde você pode comprar alimentos muito mais, em geral mais baratos e pode escolher e os produtos têm mais variedade. Isso é uma coisa que agente estimula muito aqui nessa discussão [...] ai uma da uma sugestão e a outra dá outra. E uma diz: eu compro beterraba e a outra diz que aproveita a folha da beterraba [...]”. (P1)

Neste sentido, as falas demonstram ser possível a abrangência apresentada por Alvarenga et al. (2004), que consideram o campo da Saúde Pública amplo e abrangente para contribuições das mais diversas áreas do conhecimento e dos distintos setores da sociedade. Ao mesmo tempo, demonstra que a Promoção de Saúde pode ser interdisciplinar, tal como define a Organização Mundial da Saúde (WHO, 1998), e intersetorial ao possibilitar novos espaços de diálogo. 3.2 Avaliação do tratamento: Foram relatados, pelos profissionais, diversos casos de ausência de dor, melhora de autoestima e

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retrocesso de diversas patologias pelo tratamento com Acupuntura. Assim, verifica-se que a maioria dos resultados destes tratamentos foi eficaz para a melhora ou extinção das enfermidades: “A Acupuntura me ajudou muito, melhorou bem a minha insônia, e também na depressão [...]”. (U6). “Ajudou, principalmente na obesidade ela foi indicando algumas coisas, o que não comer. Porque eu sou muito ansiosa”. (U8)

Os profissionais disseram, também, que a eficácia do tratamento motiva os usuários para adesão ao tratamento com Acupuntura: “Na verdade, eu sei que é meio difícil, principalmente, tem uns pacientes que tem fibromialgia, e eles vêm cheios de queixas, que é uma doença danada, mas que você vai orientando, batendo na mesma tecla e vendo que melhora mesmo. E então acabam fazendo. Mas muito no perceber que melhora, tá muito ligado a isso, percebeu que melhorou com Acupuntura, alguns conselhos que eu dou, fazendo TÀI JÍ melhora, começa a aderir mais”. (P2)

3.3 Relacionamento: A respeito da relação com os demais profissionais dos serviços de saúde, os acupunturistas disseram não ter encontrado problemas de convivência. A maioria dos profissionais entrevistados afirma ter um bom relacionamento com colegas de outras especialidades, bem como de outras unidades da região. Foi observado que há troca de informações, experiências e tratamentos realizados em conjunto por diferentes especialidades do setor: “[...] no geral, agora os médicos também estão indicando, tem hoje a Dra. [...] que tá aqui também, né, do Programa Saúde da Família, [...] então ela também está estimulando”. (P4)

Isso, contudo, não foi válido em uma das unidades. Um dos profissionais de Acupuntura relatou ter apresentado grande dificuldade de aceitação e colaboração dos colegas, o que acabou acarretando em seu pedido de demissão: “[...] E aí foi um problema interno que eu tive lá na UBS. Então, num vou fazer mais, né? [...] Achei que faltou colaboração da recepção, da chefia, porque foi uma coisa assim: não, não dá, mas nem um dia? [...] E de você ouvir umas coisas assim da recepção: Não sei, porque atender Acupuntura, era pra atender 16 que nem os outros médicos, [...] Foi um processo ruim”. (P3)

Foi observada também a alteração da hierarquia médico-paciente típica na Medicina Ocidental (Camargo Jr., 2003), pois profissionais relataram aprendizado e reconhecimento de saberes que os pacientes trazem aos atendimentos. A importância da relação terapeuta/paciente foi observada repetida vezes nos serviços de Acupuntura visitados, estabelecendo a confiança e o vínculo mútuos, refletindo a necessidade de mudança nos modelos de organização de assistência à saúde, que hoje possuem caráter curativista e centrados na doença, distanciando o terapeuta do paciente: “Outro dia, numa das últimas reuniões, uma deu uma receita de aproveitamento de casca de banana, [...] e ai vão surgindo às idéias mais variadas e que sempre alguém aprende alguma coisa com isso. Eu mesmo aprendi com esta história da casca de banana, por exemplo”. (P1)

Quanto ao aspecto organizacional, Luz (2007) ressalta a resolutividade que atividades com medicinas alternativas vêm obtendo em programas de serviços públicos de atenção médica ante a demanda da clientela, em relação, sobretudo, às doenças crônicas, tradicionalmente com baixa resolutividade nos sistemas convencionais. Os entrevistados demonstraram que consideram, como positivo, o fato de a terapia da Acupuntura reduzir custos e consumo de medicamentos alopáticos: 150

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“Eu acho assim, você diminui custos, você diminuí medicamentos, você melhora e beneficia mais os pacientes [...]”. (P2)

3.4 Instrumentalização do paciente para o autocuidado: A concepção de “empoderamento” é definida pela Organização Mundial de Saúde (WHO, 1998) como o processo de capacitação dos indivíduos e comunidades para assumirem maior controle sobre os fatores pessoais, socioeconômicos e ambientais que afetam a saúde. Esta preocupação relativa à capacitação dos pacientes para o cuidado com sua própria saúde aparece em diversas passagens das entrevistas realizadas com todos os profissionais: “[...] tá dentro do protocolo da Acupuntura, do papel da Acupuntura, tornar o paciente o mais possível responsável pela sua saúde e que ele próprio possa também, a partir de alterar práticas hábitos e costumes do cotidiano, evidentemente, melhorar a sua qualidade de vida e, conseqüentemente, da sua saúde”. (P1)

Observa-se que o contato com a Acupuntura, nos serviços visitados, incentiva uma postura ativa e uma visão crítica sobre seu próprio corpo. A ampliação da responsabilidade pela própria saúde - o que incluí ações voltadas a “fatores particulares”, na busca de hábitos, de estilo de vida mais saudáveis - vem ao encontro da perspectiva apontada em Lalonde (1974) que reforça que não se deve “culpar” a pessoa por sua enfermidade, mas capacitá-la para o autocuidado. As entrevistas revelam a satisfação dos usuários com as orientações para mudança de hábitos, que são seguidas e, em alguns casos, conservadas, como no caso de dois usuários que ainda as seguem após anos do término do tratamento. A prática demonstra potencial para a mudança do papel da pessoa frente a seu tratamento, transformando-a de paciente (passivo) a sujeito (ativo). De acordo com Luz (2007), em princípio, tais medicinas tendem a propiciar um conhecimento maior do indivíduo a respeito de si mesmo, de seu corpo e de seu psiquismo, com uma consequente busca de maior autonomia ante o seu processo de adoecimento, facilitando um projeto de construção (ou de reconstrução) da própria saúde. Sem deslocar o modo de conceber, praticar e obter saúde de sua origem no setor saúde, a Promoção de Saúde passa a mobilizar o conhecimento historicamente acumulado no campo sanitário, buscando a saúde em outro lugar, não mais no corpo, nem genericamente em todos os espaços sociais, mas nas relações entre os corpos/mentes doentes e a sociedade. Começa a ser compreendida em seus significados, para daí constituírem objetos de intervenções transformadoras, tal como apontam Lefèvre e Lefévre (2004).

Considerações finais A discussão colocada anteriormente apresenta um panorama dos temas mais relevantes levantados pelos participantes desta pesquisa. Esses temas foram divididos em três grandes tópicos de análise: 1 combinação da Acupuntura com outros tratamentos; 2 mudanças atribuídas ao tratamento com a Acupuntura; 3 situação do tratamento com Acupuntura no serviço público de saúde; com a intenção de organizar e facilitar a compreensão do leitor. Todavia, um aspecto importante a ser registrado são os limites da amostra obtida e da própria metodologia qualitativa no que diz respeito às generalizações dos resultados alcançados no caso específico pesquisado. Fizemos a discussão com base em revisões bibliográficas sobre o tema, e especificamente para este grupo de pessoas entrevistadas. Acreditamos que os padrões encontrados podem se repetir em outros serviços e em outras localidades, porém não é possível afirmá-lo. Mas é possível afirmar que profissionais e usuários dos serviços em questão apontam a terapêutica como eficaz para melhoria das enfermidades, e reconhecem que o contato com a terapêutica viabiliza a eliminação ou a diminuição das condições que geram doença. O conceito de Promoção da Saúde abrange abre um novo leque de possibilidades de ações de

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adesão de cuidados com a saúde (na nutrição, ambiente, saúde metal etc.). Na Promoção da saúde, mais do que na Vigilância à Saúde, é possível intervir não apenas para evitar a doença, mas para estabelecer patamares a serem alcançados na qualidade de vida, reconhecendo o que se quer alcançar. Assim, o arsenal científico e tecnológico disponível na atualidade deve ser direcionado não apenas para corrigir e prevenir doenças, mas para interpretar e tematizar os valores vitais que as patologias observadas estão revelando (Ayres, 2002). O modelo funcional observado na MTC permite um movimento interpretativo, como propõe Ayres (2002), que revela e critica conteúdos normativos, permitindo um trânsito interdisciplinar e integrando a percepção do indivíduo e de seu contexto. Assim, a Acupuntura praticada nos serviços de saúde da rede municipal de São Paulo mostra-se passível de contribuir para a construção de ações de promoção de saúde, por isso deve ser ampliada para outros serviços e utilizada como exemplo para a incorporação de outras terapias alternativas à prática da biomedicina.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALVARENGA, A.T.; IORIO, R.C.; YAMAMURA, Y. Acupuntura no currículo médico: visão de estudantes de graduação em Medicina. Rev. Bras. Educ. Med., v.28, n.3, p.223-33, 2004. AYRES, J. R. Epidemiologia, promoção da saúde e o paradoxo do risco. Rev. Bras. Epidemiol., v.5, supl.1, p.28-42, 2002. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília: Senado, 1988. Cap. 2, seção 2. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Ministério da Saúde, Municipais de Saúde – Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <http://dtr2004.saude.gov.br/dab/docs/publicacoes/geral/ pnpic.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2009. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Promoção de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/portaria687_2006_anexo1. pdf>. Acesso em: 10 jun. 2009. ______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1230/GM. Dispõe sobre a inclusão da consulta médica em homeopatia na tabela de procedimentos do SIA/SUS. Ministério da Saúde, Municipais de Saúde – Brasília: Ministério da Saúde, 1999. ______. Ministério da Saúde. Portaria 971/06. Dispõe sobre a integralidade da atenção como diretriz do SUS e aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Ministério da Saúde, Municipais de Saúde – Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/ informe/anexos/Portaria%20n971-2006.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2009. ______. Ministério da Saúde. Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Caderno Temático da Medicina Tradicional Chinesa, 2002. Disponível em: <http://ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/saude/ publicacoes/0001/MTC_CadernoTem%c3%a1tico.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2009.

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CINTRA, M.E.R.; FIGUEIREDO, R. Acupuntura y promoción de salud: posibilidades en el servicio público de salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.139-54, jan./ mar. 2010. El presente estudio analiza las posibles contribuciones de la Acupuntura aplicada en los servicios públicos de salud en el municipio de São Paulo, Brasil, para la Promoción de la Salud. Se utilizada el planteamiento cualitativo de investigación con el uso de entrevistas en profundidad. Los resultados señalan que la Acupuntura practicada en los servicios públicos permite un tránsito interdisciplinario integrando la percepción del individuo sobre sí mismo y su contexto, posibilitando cambios en las causas primarias de las enfermedades. Así el contacto con la Acupuntura practicada en los servicios de salud de la red municipal de São Paulo se muestra pasible de contribuir a el desarrollo de acciones de Promoción de Salud.

Palabras clave: Acupuntura. Promoción de salud. Sistema Único de Salud. Recebido em 04/12/2008. Aprovado em 16/09/2009.

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artigos

Fibromialgia: perspectivas de um campo problemático

Luis Eduardo Ponciano Aragon1

ARAGON, L.E.P. Fibromyalgia: perspectives of a problematic field. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.155-69, jan./mar. 2010.

This paper related to studies on the contemporary processes of subjectivation and becoming ill, through an affirmative and non-reductionist approach towards fibromyalgia. A method named affirmation of the problematic field was formulated. This sought to resist dialectic approaches and denial of signs and symptoms, in order to pick up the procedurality of the set of affections and the production of signs today, using psychoanalytical, philosophical and clinical tools. Indiscernibility of boundaries, multiplication of surfaces and alienation of the participating rhythms of the vital processes of individuation arose as results from the study. An approach taking the body question as a field for political, ethical and clinical incidence was therefore proposed.

Este trabalho está ligado a pesquisas a respeito de processos de subjetivação e adoecimento contemporâneos, pela abordagem afirmativa e não reducionista da fibromialgia. Formula-se uma metodologia chamada de afirmação do campo problemático, a qual procura resistir à abordagem dialética e à negativação dos sinais e sintomas, para captar a processualidade do jogo de afetos e da produção de signos de hoje, fazendo uso de instrumental psicanalítico, filosófico e clínico. A indiscernibilidade dos limites, a multiplicação de superfícies e a alienação dos ritmos participantes dos processos vitais de individuação surgem como resultados da pesquisa e propõe-se abordar um corpo-questão como território de incidência política, ética e clínica.

Keywords: Fibromyalgia. Problematic field. Subjectivation processes. Psychoanalysis. Body.

Palavras-chave: Fibromialgia. Campo problemático. Processos de subjetivação. Psicanálise. Corpo.

Médico cardiologista e psicanalista. Rua Bastos Pereira, 84, Vila Nova Conceição. São Paulo, SP, Brasil. 04.507-010. luis.aragonn@uol.com.br 1

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Fibromialgia: perspectivas de um campo problemático

Introdução Podemos conceber a fibromialgia [FM] como a expressão atual de sofrimentos contemporâneos, resultado de uma transformação do tecido social, implicando seus regimes de signos, sua lógica clínica, sua forma de sofrer e lidar com este sofrer. A FM enquanto uma enfermidade que comporta dores difusas pelo corpo associadas à dor muscular em pontos específicos, faz-se acompanhar de uma série de comorbidades, como: fadiga, depressão, distúrbios do sono. Estas últimas, não sendo específicas, também podem assumir a dominância hierárquica enquanto nome do sofrer, dependendo de uma alquimia de intensidades que resiste a uma abordagem cartesiana. Esboça-se uma constelação patológica e nosográfica com limites imprecisos sugerindo a necessidade de uma aproximação singular do sofrer.

Método Paradoxo e positivação Parece-me fundamental buscar – na pesquisa e na clínica – uma forma de aproximação com a própria movência dos modos do sofrer, suas variações de apresentação, de tratamento e alienação. Neste trabalho pretendo desenvolver uma metodologia que se destina a resistir a dois dos mais fortes processos do pensar, e que acompanham majoritariamente a abordagem da FM, a saber: o raciocínio dialético e a negativação dos sintomas. Por raciocínio dialético2 penso na forma reducionista de apreender um processo dinâmico de produção de nomes, de modos de viver os afetos no corpo, de engendramento de gestualidades, de comportamentos, de plasticidade corporal, de abordagem técnica... Aqui, ao contrário, procurarei trabalhar com a ideia de uma concomitância paradoxal da produção/produto, buscando tocar no plano processual, o qual tem seu dinamismo maltratado quando apreendido apenas como fotografia representativa, isto é, quando fixado como sujeito ou objeto, isto ou aquilo, bom ou ruim. Veja-se que todo um esforço da comunidade de cuidadores se detém neste território dialético, quando se abre a discussão da existência ou não da doença, do fato de ela ser somática ou psíquica, ou ainda se ela é resultado de uma questão social ou individual. Seguirei por um caminho de desmonte, crítica ou proliferação de planos para resistir ao pensamento dicotômico e apaziguado. Já por negativação dos sintomas, quero dizer da forma de alienar a positividade do processo do adoecer enquanto normatividade, ou seja, enquanto invenção de normas de um ser, vivo e ativo no mundo que o envolve, atravessa, implica3. Abordar as dores, o sono não restaurador, a depressão, como expressões de um mal a ser eliminado, é desconhecer a inteligência do vivo e da vida4, a qual encontra, a todo momento, nas protorritmicidades do mundo supraindividual (Aragon, 2007), caminhos inéditos para lidar com as exigências e encontros aos quais está submetida. Ainda além, esta forma do pensar – por negativação do engendramento processual do vivo – muitas vezes é desdobrada, para o social, enquanto déficit da provisão ambiental, ou, para o indivíduo, enquanto portador de um problema genético (Buskila, Sarzi-Puttini, 2006), de maus costumes alimentares e físicos ou de diminuição da capacidade de elaboração psíquica e simbólica. Esta busca por “culpados” ou causas específicas responsáveis pelo adoecer dificulta – quando não impede – observar a produção dinâmica, contínua e recíproca do indivíduo e do meio, bem como das formas do sofrer. 156

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Dialética será tratada aqui como forma de pensamento baseado na contradição ou oposição dos termos, comportando os três momentos sucessivos desenvolvidos por Hegel: tese, antítese e síntese.

2

O conceito de normatividade foi trazido da obra de Georges Canguilhem, “O normal e o patológico” (2000). O autor afirma que “o homem normal é o homem normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas” (Canguilhem, 2000, p.109).

3

Entendida aqui como processualidade normativa biológica e subjetiva.

4


ARAGON, L.E.P.

5 Acontecimento não como evento banal, mas como aquilo que “faz época”, que marca o tempo, adquirindo certa eternidade, mesmo em se tratando de uma experiência cotidiana. Não é “o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (Deleuze, 2000, p.152).

“Patologia implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e impotência, sentimento de vida contrariada” (Canguilhem, 2000, p.106). 6

artigos

Afirmação do campo problemático Nosso procedimento será chamado de afirmação do campo problemático. Problemático, para nós, terá um estatuto muito específico, não se alinhando à concepção clássica de imperfeição do raciocínio. Por problemático entendemos o modo como os acontecimentos5 se dão (Deleuze, 2000) por meio dos encontros. O estatuto do problemático é aquele que não se restringe ao estado de coisas, aos corpos extensivos, às formas individuadas, convidando a uma transcendência da percepção e da sensação. Aspectos formais dos encontros (como eu e você, determinado objeto ou qualidade sensível) convivem com um transcender de suas formas atuais, que se exprime no limite do porvir, por meio dos modos singulares de expressão. Há sempre uma violência, um estranhamento, uma fissura ou algo que resiste à harmonização, um sofrer da vida, que revela sua presença e força, paradoxalmente, por intermédio da precariedade da estabilidade do visível, do dado, do concebido. Assim, nos distanciaremos dos métodos que se destinam ao equilíbrio, à estabilidade, à reprodutibilidade. Se nos restringimos aos aspectos dados - como os pontos dolorosos de um corpo, as estatísticas de prevalência de uma constante na população, o nome como identidade geral extensiva a muitos indivíduos -, perdemos, de certa maneira, o vivo do sofrer, aquilo que prolifera sentidos díspares para cada ser. Os verbos no infinitivo são aqueles que mais nos guiam na direção de apreender a produção de sentidos dos acontecimentos, para além da determinação exaustiva de elementos dados. Por exemplo, descrever e delimitar a dor, sua localização, o número de pontos acometidos e a intensidade (como medida pelo dolorímetro), não dá conta de produzir os sentidos que tem um doer. Dizer que a dor é produto de inflamação ou de um delírio também não é suficiente. Portanto, procurarei ir além de uma aproximação quantitativa, e, mesmo, de uma abordagem qualitativa. O doer não é uma quantidade de fatores que, acumulados, transporiam um limiar para produzi-lo, bem como não se resume à dor, e não pode ser estendido por abstração para pessoas diferentes em situações diversas. O que chamo de problemático é justamente a multidão de elementos em presença, atuais e virtuais, tecidos em um sentido, em um “doer-questão”. Esta multidão determina a radical singularidade de um acontecimento, resistindo ao processo de equivalência, o qual apagaria o modo único de se apresentar aquela dor, de se experienciar aquele adoecer. Estes modos abrem o problemático para várias linhas de sentido que atravessam questões como: qual o local onde se está? Qual o momento da vida? Quais as situações em que a dor é sentida irremediavelmente como doença? O que a alivia? Quais reações produz no entorno? Quais transformações no agir e no pensar se produzem? Mais do que linhas que fogem por todos os lados, elas fazem fugir a reificação dogmática do diagnóstico e do tratamento. No território da clínica lidamos com demandas do sofrer. Demandas radicalmente singulares, pois cada um vive a dor, o luto, o desconforto ou o desespero de maneira diferente, e aquilo que pode ser sentido como patologia6 para um, não o é, necessariamente, para outro. Desde que nos coloquemos frente ao encontro enquanto produção de acontecimento, somos instados a implicar, em nossa ética e nosso procedimento clínico, aquilo que está aquém e além dos nomes possíveis de doenças, das formas corporais, gestuais ou subjetivas existentes, das estatísticas e teorias concebidas a priori. Somos convocados a ultrapassar o dado, em direção ao que produz sentidos e que pode forjar novos acontecimentos, variando a expressão da dor para um território mais

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Fibromialgia: perspectivas de um campo problemático

alegre7. Se concebermos o modo problemático dos acontecimentos enquanto modos do sofrer, a ação se dará por apontamentos e marcações do que rompe a trama do estabelecido na produção de sentidos. Vamos insistir. Por que esta dor? Por que agora? Por que desta forma? Por que esta terapêutica? Estes são os passaportes para, como nos propõe Orlandi, proceder a “operações de um sub/ sentir, de um entre/sentir, de um intra/sentir, extra/sentir, trans/sentir etc., e não, simplesmente, de um re/sentir” (Orlandi, 2003, p.93). Estas “variações ardilosas” são necessárias, já que estamos tratando da exploração de um mundo real, palpável, mas que não se reduz aos dados dos sentidos e nem se deixa capturar por instrumentos tecnológicos8. De maneira nenhuma recusamos os avanços da ciência, o conjunto de dados e as descrições qualitativas produzidas na aproximação científica da FM. Ao contrário, fazemos uso destes, mas os concebemos como questões, como partes de uma problemática maior, querendo dizer com isto que cada fator já é em si uma multidão, e que a unidade em acontecimento não ocorre pela somatória de cada um, ou mesmo pela produção de outros, mas pela intensidade singular, pela forma metaestável e complexa do jogo de fatores atuais e virtuais, pelos sentidos efêmeros e vitais da contemporaneidade daquela expressão.

O problema da FM – encontrando/inventando um campo A expressão paradoxal acima indica que nosso objeto de pesquisa não é uma objetividade (dada de antemão no mundo, esperando apenas ser descoberta ou melhor estudada), mas também não é uma abstração subjetiva. Com inspiração winnicottiana, e fiéis ao nosso procedimento, buscaremos uma apercepção9 da FM, intuindo e forjando caminhos do pensar, sem recusar a materialidade do que já foi produzido e elaborado até aqui pela ciência.

Afirmação da indiscernibilidade dos limites Sim, a FM, bem como outras doenças que têm sido chamadas de somatomorfes (como a fadiga crônica e a síndrome do intestino irritável), causa problema. O fato da FM verdadeiramente criar problema (diagnóstico, terapêutico e classificatório) já justifica nossa metodologia – que busca ultrapassar o problema empírico – sendo considerada por nós como uma singularidade existencial. Desta maneira, tiramos da aproximação negativa o fato mesmo de esta doença não se encaixar com facilidade em explicações causais, em limites categóricos, em respostas terapêuticas e, mesmo, em cortes demográficos rígidos. Existir ou não, eis uma questão Todos sabem que há grande polêmica em torno da existência ou não da FM, ou da pertinência em categorizá-la enquanto doença. O próprio comitê multicêntrico, que desenvolveu os critérios diagnósticos (Wolfe et al., 1990) utilizados até hoje, percebeu que havia uma circularidade entre a formação de critérios e os diagnósticos feitos. Cada serviço formava seus próprios critérios para formular o diagnóstico, e estes confirmavam aqueles, os quais eram diferentes para cada grupo de pesquisadores, sendo que apenas por meio do nome “fibromialgia” estabelecia-se uma associação com os dados de outros clínicos e pesquisadores. Como era de se esperar, esta comunhão denotativa escondia um mundo esquizofrênico, no qual cada um forjava sua própria 158

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Pensaremos na alegria, com Espinosa, enquanto aumento de potência: “Aquilo que dispõe o corpo humano de tal maneira que possa ser afetado de diversos modos ou que o torna apto a afetar os corpos externos de um número maior de modos, é útil ao homem; e é-lhe tanto mais útil quanto o corpo se torna por essa coisa, mais apto a ser afetado de mais maneiras ou a afetar os outros corpos; e, pelo contrário, é-lhe prejudicial aquilo que torna o corpo menos apto para isto” (Espinosa, 1979, p.250).

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A filosofia positivista é tributária de invenções como a luneta de Galileu ou o microscópio de Leeuwenhoeck, forjando a ideia de que nossos sentidos são insuficientes para a apreensão adequada do real, mas que estes mesmos sentidos, instrumentalizados, seriam capazes de “esgotar o real”, de pôr a descoberto algo que só está oculto ou distorcido por nossa limitação perceptiva, e que por fim permitiria subordinar a percepção ao conceito (Muricy, 1988, p.481).

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No sentido que tem para Winnicott (1975) ao trabalhar a noção de espaço potencial, ou seja, aquilo que está entre o objetivamente percebido e o subjetivamente concebido. 9


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11 Utilizarei o termo “ser” acompanhando a especificidade que o mesmo tem na obra de Winnicott, no sentido de diferenciá-lo do ego e mesmo do indivíduo, desde que para este autor, nas relações objetais primitivas, nem um nem outro constituem o centro do que poderia ser chamado de ser. Cito Winnicott: “[...] a unidade não é o indivíduo, mas sim uma estrutura ambienteindivíduo. O centro de gravidade do ser não tem sua origem no indivíduo. Sua origem repousa na estrutura como um todo” (Winicott apud Abram, 2000, p.240), isto é, num complexo sistema metaestável, como diria Simondon.

O autor nota que em uma pesquisa realizada com a população canadense Amish, de hábitos muito diversos daqueles comuns no mundo ocidental, a prevalência da FM, ao se utilizar o critério dos pontos dolorosos, foi muito grande. No entanto quase não se fala, neste trabalho, sobre as pessoas que tinham os “pontos dolorosos” e menos ainda o que significavam estas dores para elas. 12

realidade e todos conversavam entre si como se falassem da mesma coisa. Na avaliação, pelo comitê, destes critérios diagnósticos, inúmeros elementos foram percebidos como não específicos e rejeitados enquanto determinantes para a classificação. Ao final, apenas a dor musculoesquelética generalizada, associada aos chamados “tender points”, mostrou especificidade e sensibilidade discriminatórias. Percebe-se o esforço em colocar limites, romper a comunicação esquizofrênica, criar uma unidade de percepção e de abordagem, forjar um nome que recolha, em sua materialidade, a agitação subterrânea do adoecer. Sim, é interessante que os pesquisadores e clínicos possam partilhar seus achados e suas ideias, e isto é possibilitado por algum grau de generalização. Também é importante que a dor da coluna, ou de um tumor no pulmão, possa ser diferenciada daquela da FM, e isto é possibilitado inclusive por classificações, além do saber e experiência que o profissional tem acerca de cada uma destas patologias. No entanto, há algo que não se restringe a um esmiuçar nosológico e que se impõe hoje por meio da FM, insistindo no convite a uma nova perspectiva de pesquisa e de clínica, que a tome como questão irredutível da processualidade do viver. Delimitar, médica e juridicamente, a FM como doença tem permitido a alguns advogados conseguirem para seus clientes a proteção da seguridade social; também permite que fundos financeiros para pesquisa e centros de tratamento sejam constituídos; mas também permite a apropriação da plasticidade corporal e do sofrer pelo sistema capitalista contemporâneo, na forma de medicamentos10, terapias as mais diversas, e profissionais especializados, que nem sempre colaboram para uma compreensão global da complexidade singular e atual deste adoecer, proporcionando, muitas vezes, uma aproximação fragmentária, paternalista, e mesmo aditiva do ser11. Há toda uma política de forças envolvida na produção da superfície do que seria a FM. Um dos principais autores dos critérios diagnósticos, o Dr. Wolfe, publicou em 2003 um interessante editorial intitulado “Parem de usar os critérios do Colégio Americano de Reumatologia na clínica” (Wolfe, 2003, p.1671-2). Nesse comunicado Wolfe coloca em questão os critérios, dizendo que eles se concentram em perspectivas físicas, deixando de lado o que diz dever ser um “diagnóstico social e político”. Os pontos dolorosos e a dor difusa – enquanto elementos diagnósticos – se baseiam na mera intensidade quantitativa dos sintomas, e não em uma constelação que englobaria uma multiplicidade de fatores12. O autor ainda constata que existe um território comum entre o que se poderia diagnosticar como FM e a artrite reumatóide, e mais, que dependendo da pressão que se faz nos pontos (ou do quanto se acredita neles – sugestão de Wolfe), o diagnóstico pode variar bastante. Por fim ele, como nós, não recusa a existência da doença pedindo, no entanto, que os reumatologistas “restabeleçam o sentido ao mundo, [...] escutem e entendam o sofrimento e os sintomas dos pacientes: tentem ajudar” (Wolfe, 2003, p.1671-2).

artigos

10 Em fevereiro de 2008 o Food and Drug Administration (órgão regulador e fiscalizador do mercado farmacêutico americano) aprovou a primeira droga para a FM (Lyrica® – Pfizer). No entanto, os especialistas já sabem que o efeito deste medicamento para aliviar as dores é muito pobre, bem como o efeito de analgésicos, antiinflamatórios, opióides ou corticóides. A única melhora algo significativa para estas “dores fibromusculares” são os antidepressivos! (vide comentário do Dr. Knoplich disponível em: <http://www1.folha. uol.com.br/folha/ciencia/ ult306u371072.shtml>. Acesso em: 02 fev. 2009.

A FM não/é psicológica Outro extenso campo de contenda, no que tange à FM, é a indiscriminação acerca de ela ser uma doença somática, psicológica, psicossomática ou psicossocial. Apesar de o diagnóstico ter surgido no campo da reumatologia, a psiquiatria passou a se interessar progressivamente por esta doença. Na medida em que os diagnósticos, baseados em aspectos eminentemente físicos, não se faziam acompanhar de explicações causais anatômicas ou fisiológicas claras, as hipóteses de síndrome funcional, somatomorfe, de somatização ou, simplesmente, de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“problema psicológico”, passaram a ganhar terreno13. Interessa-nos aqui apenas garantir, à própria dificuldade de delimitação, um estatuto positivo. Dependendo da composição dos grupos de pesquisa, com mais ou menos profissionais “psi”, reumatologistas, infectologistas, entre outros, muda-se o enfoque da doença. Em alguns casos, insiste-se nas origens genéticas, infecciosas, inflamatórias ou nutricionais, em outros, nos aspectos sociais, comportamentais e familiares. Parece que a FM “se diz” de muitas formas, contemplando o interesse de inúmeros pesquisadores, mas trai a todos, na insistência em resistir ao anseio daqueles que buscam o conforto das causalidades. Estamos em outros tempos, e a FM, em companhia de suas “parceiras”, “fadiga crônica”, “síndrome do intestino irritável”, “déficit de atenção e hiperatividade”, entre outras, exige outra abordagem, uma que implique o desconforto (e a agonia) das ciências e dos pacientes. Mesmo nas abordagens psicossomáticas encontramos, com frequência, ações que se destinam a alienar o sofrer (talvez, sobretudo, do clínico-pesquisador) por meio de teorias que negativam o sintoma. As perspectivas clássicas acabam por buscar uma fonte do problema, a qual, no mais das vezes, é referida a algum “defeito” do indivíduo. Termos consagrados revelam esta perspectiva, como: a “alexitimia”, referindo-se a baixa capacidade de elaboração e expressão das emoções; o “pensamento operatório”, como característica de doentes com pouca capacidade de introspecção; ou, ainda, o “déficit de simbolização”, com ascendência psicanalítica, pressupondo um conflito inconsciente ou uma pressão pulsional, que não puderam ser simbolizados, aparecendo como descarga no corpo. Mesmo a psicossomática contemporânea – a qual procura sair da clássica dicotomia corpo/ mente, por intermédio da sustentação da multiplicidade de fatores envolvidos com o adoecer e da complexidade de sua interação – ainda concebe as doenças como lesões orgânicas, objetivamente identificadas, tendo como importante fator de risco, etiologia desencadeante ou elemento de manutenção, algum componente psicossocial (Tófoli, 2004). Ela cria uma dialética que minimiza aquela do corpo/ mente em prol de outra, corpo/psicossocial. A partir daí, investiga-se o entorno, para a determinação de fatores que possam estar causando um estresse psicológico. Certamente o aumento da complexidade de análise e a atenção a fatores sociais e culturais são bem-vindos, mas ainda aqui não saímos nem da abordagem dialética, nem da negativação da expressão. Nossa aposta procedimental valora as observações que identificam as possíveis fontes de estresse trabalhista, nutricional, familiar, e todo o esforço para a redução destes elementos e do sofrer é desejável; mas, não compartilhamos da ideia hegemônica de que apenas um refinamento e aprofundamento na delimitação destes fatores deem conta do que consideramos como um verdadeiro convite, impresso com as tintas do sofrer vivo e normativo do ser, para uma mudança de lógica, de clínica, de ética e de política. Neste terreno, tanto os clínicos como os pacientes incorrem na mesma oposição. Para estes últimos, estrategicamente, importa afastar-se da alcunha “doença psicológica”, já que esta é o início da trilha que vai levar a uma desvalorização dos sintomas e sofrimentos. Multiplicam-se os sites de associações de pacientes com FM que colocam em letras garrafais a posição-mandamento “a FM não é psicológica”. Como a maior parte dos cuidadores, no cotidiano do tratamento de doenças com expressão corporal, não tem formação psicológica, dizer que elas são devido ao estresse, ou que são resultado de problemas emocionais, é uma maneira de minimizar o impacto da agonia. Encaminhar para a saúde mental parece não corresponder, nem de longe, à expectativa dos doentes que sabem ser uma dor que envolve o corpo, e que sentem o cerco da culpa se fechar sobre si mesmos ao serem tidos como loucos, histéricos (com conotação pejorativa), incapazes de tolerar a pressão da vida ou ainda fingidores e preguiçosos. 160

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Para o acompanhamento histórico destes termos e das polêmicas que os acompanharam e acompanham, sugiro ao leitor a introdução da tese de doutoramento de Tófoli (2004).

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Penso que esta é uma falsa questão, e que o foco deveria ser deslocado. O próprio existir desta doença faz pensar que o corpo está em outro lugar, e não naquele onde estamos habituados a procurá-lo. A questão, hoje, distribui elementos problemáticos que se localizam nas superfícies e nos processos: o trabalho progressivamente imaterial; a comunicação cada vez mais intensa e com modulação espaciotemporal enorme; o lazer, a produção e o consumo com divisões cada vez mais apagadas; a administração do tempo cada vez mais desesperadora; o acesso disseminado à violência; a ameaça continuada de exclusão. Coincidentemente, ou não, é na superfície que vem se instalar a patologia. Pele, músculo, intestino, mas também superfícies mais sutis como o tempo de atenção, o umbral sono/vigília, a fadiga/disposição, o pânico/a vida irrefletida. O corpo-questão confronta o ser, que não pode ser apreendido apenas enquanto corpo/mente/ socius. Não que consideremos corpo e mente como a mesma coisa, há sim o soma, a extensão, como há a subjetividade, as ideias, a imaginação, o coletivo. Mas, rigorosamente pensando, esses aspectos são imersões que constituem o ser tomado por relações complexas num campo problemático, reciprocamente, convocando, insistindo, reagindo e produzindo transformações uns nos outros. A questão se dá de tal forma que todo o ser do encontro-mundo, “em vias de”, é exigido, e é todo o ser que forja a expressão de suas dores e sofreres, de suas alegrias e potência, de maneira diferente a cada época-questão. O caminho para uma aproximação com o corpo-questão é a singularização do sofrer por meio de um perguntar: por que esta angústia? Por que esta forma se “in-formou” aqui e agora? O que esta dor repõe ao mundo enquanto problema? Este corpo-questão não tem pudores em estender-se para territórios demográficos ou terapêuticos. A FM classicamente tem atingido mulheres pobres, mas nem sempre (White, Thompson, 2003). Parece que, na América Latina, a incidência em homens é maior do que no restante do mundo, e a proporção de pacientes pobres não tão clara (Tofóli, 2004). Estas constatações insistem em perguntas e convidam o pesquisador a se lançar aos encontros, deixando-se afetar pelo campo problemático que cada doença-acontecimento instaura. Será que as mulheres pobres estão mais expostas a um registro de sobrevivência? Será que têm de suster um corpo que trabalha, cuida dos filhos, sustenta o jovem marido desempregado, e quer ter para si e sua família os impossíveis mundos que chegam até ela pela televisão? Ou estão “à margem do sistema”, enquanto donas de casa sem perspectiva de ação que as singularize? Será que os homens na América Latina estão sofrendo como as mulheres pobres de outras partes do mundo? Até que ponto as condições de estresse social estão envolvidas com esta patologia? Mulheres mais abastadas manifestam menos sintomas físicos por terem mais acesso a drogas e psicoterapias? Levantar estas questões, formular hipóteses e sair a campo procurando respostas é legítimo e importante, mas para nós este é um segundo momento, forjado pela exposição ao sofrer e ao afeto que se dá com o corpo-questão que exige movimentos, pesquisas e ações, mas se furta, todo o tempo, às respostas dogmáticas. A modulação do limite psicofisiológico Outra entrada instigante é a terapêutica. Os tratamentos medicamentosos que mais têm surtido efeito para a FM são, mais do que os analgésicos ou anti-inflamatórios, os antidepressivos e, com menor impacto, os que interferem na qualidade do sono. É surpreendente o fato de que, também aqui, a ação se dá nos limites/superfícies. São drogas que agem no território de interação entre a neuroendocrinologia e as emoções. Em situações ancestrais de luta ou fuga, constituíram-se regiões cerebrais como o hipotálamo e substâncias neuro-humorais como a adrenalina ou a serotonina, envolvidas na regulação dos ritmos corporais, mas também nas reações ao meio. Toda uma sutil dinâmica molecular promove alterações afetivas, o que se comprova facilmente com a administração de antidepressivos ou neurolépticos. Mas o inverso também é verdadeiro. Sabemos que a mudança frequente de fuso horário em viajantes, ou da exposição à luz daqueles que trabalham em turnos não regulares, provoca uma série de alterações na bioquímica corporal; situações de medo ou tensão constantes, associadas à impossibilidade de ação para a transformação do meio, produzem inúmeros efeitos, como hipertensão arterial, alteração de peso, diminuição da imunidade (Laborit, 1983). E é justamente nesta superfície que tem se observado a maior efetividade dos tratamentos, não só da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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FM, mas do pânico, da fadiga crônica, da hiperatividade e mesmo da dor crônica. Muitas vezes são as reações mais primitivas da complexa interface corpo/mente que são ativadas, como: taquicardia, falta de ar, tremor, palidez, suor frio, dor. Por que os antidepressivos são os mais efetivos? Seria apenas uma questão de moda, uma que substituiu os ansiolíticos? Seriam demandas do próprio mercado, veiculadas por propaganda? Haveria uma impossibilidade de ação mutativa que impediria a afirmação da individualidade dos indivíduos? Estaria ocorrendo um descuido ou, mesmo, um ataque às regularidades temporais próprias implicadas na saúde?

A multiplicação das superfícies A necessidade de captura da processualidade do vivo, e de controle do contingente, está fortemente relacionada com a ação de nomear, repartir, classificar. Ela é uma produção de objetos, de superfícies de contato, e nos indica outra singularidade existencial a gravitar na órbita da FM: a multiplicação de superfícies. Percebemos, hoje, um movimento nosográfico compulsivo, o que se pode perceber facilmente por meio do aumento no número de entidades a cada nova edição do Manual Estatístico e Diagnóstico de Doenças Mentais. Vivemos, hoje, em um mundo repleto de síndromes e transtornos: hiperatividade, pernas inquietas, distimia, pânico. Alguns profissionais da saúde têm tido uma abordagem crítica a este respeito, apesar de claramente minoritária, veja-se o artigo: “O que está nos deixando doentes é uma epidemia de diagnósticos” (Welch, Schwartz, Woloshin, 2007). Os autores chamam a atenção para o fato de que a associação da tecnologia com a redução progressiva dos limiares para a caracterização de doenças, e a capitalização financeira (“mais diagnósticos significa mais dinheiro”), têm sido fatores envolvidos em uma lógica, tanto sutil quanto poderosa, que leva a população a conceber-se como doente. Constata-se que, aplicando-se os critérios diagnósticos atuais, cerca de quarenta por cento da população americana estaria doente; a maior parte dos demais poderia ser considerada como portadora de uma “pré-doença” ou estando “em risco”. Diagnósticos precoces são de grande valia, mas sua forma epidêmica pode trazer inúmeros problemas, como os efeitos adversos do tratamento e a medicalização da infância. A constatação de Illich de que “quanto maior a oferta de ‘saúde’, mais as pessoas respondem que têm problemas, necessidades e doenças, exigindo garantias contra os riscos” (Illich, 1999), aparentemente paradoxal, vai se afirmando como uma produção, e mesmo necessidade do sistema. Levar a sério a compulsão pela demarcação, a violência da experiência com o sofrimento e a dor, a angústia de sustentar o não saber, é considerar o medo. Caso o medo da dupla frente ao desconhecido, ao processo do adoecer, ao descontrole ou ao temor do enlouquecimento seja muito grande, é possível que uma identificação tranquilizadora – como FM – venha a nascer prematuramente. Está aberto o caminho para a abordagem multiprofissional. E esta abordagem está em ressonância, e mesmo continuidade, com a lógica/necessidade de multiplicação de superfícies. Em boa parte das vezes, a multidisciplinaridade se estabelece como uma política do encaminhamento, do abandono ou do desapego. Para “lavar as mãos” ou com a melhor das intenções, se restabelece a esquizofrenia. A peregrinação pelos especialistas não colabora para uma apreensão geral do “mundo ambiente”14 do paciente (compartilhado em muitos de seus elementos pelo próprio clínico, como o trabalho em excesso ou a má alimentação), e pode alienar a possibilidade do acolhimento do processo daquele sofrer.

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Mundo ambiente como aquele que está aquém ou além das formas sujeito e objeto. Que os inclui, atravessa e conforma. Um termo que procura resistir ao que, no “meio ambiente”, é já separado a priori.

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Fibromialgia em contraface: a demonização da “zona de conforto” A distância da “zona de conforto”

A idade média de pacientes com FM é de 49 anos para mulheres e 39 anos para homens (White et al., 1999), enquanto o pânico aparece predominantemente na terceira década de vida, segundo o “Practice Guideline for the Treatment of Patients With Panic Disorder” (Work Group on Panic Disorders, 1998). 15

Introduzo outra estratégia para a afirmação do campo problemático. Por estar em contato, enquanto clínico, tanto com pessoas com as “doenças contemporâneas”, como com pessoas do assim chamado “mundo corporativo” (com ou sem a manifestação destas doenças), faço uso da expressão “zona de conforto” como um ponto de ressonância, para trazer elementos de um mesmo mundo, mas distribuídos por tempos e espaços diferentes. Popularizou-se, no mundo empresarial e financeiro, a ideia de que estar na “zona de conforto” é um atestado de incompetência e caducidade. Estar nesta zona significa estar perdendo o bonde da história; é poder ser visto aos olhos de colegas e superiores como um acomodado, preguiçoso e, o que é pior, sem ambição ou “empreendedorismo”. Uma fala possível seria: “estava indisposta e não fui trabalhar ontem, mas não pense que eu estou na minha zona de conforto!” Ou ainda: “quando compramos uma empresa, os profissionais empregados normalmente estão fazendo um bom trabalho, mas nós mudamos a diretoria e tiramos todo mundo da zona de conforto!” Autores de falas como estas não podem imaginar que eu possa não compartilhar da ideia que têm acerca do conforto, isto pela maneira tão sutil e arraigada com que esta acepção pejorativa vingou. Em um sistema que valoriza o crescimento contínuo e o controle sobre o imprevisto, quem não está incluído em uma peregrinação de atividades (como a educação continuada ou os workshops), buscando “aprimorar o currículo” ou em auto-observação constante (sendo o “gerente de si mesmo”), é habitualmente visto com maus olhos. Ser visto assim, nas entrevistas para assumir algum emprego, nas avaliações periódicas ou mesmo na filigrana do convívio cotidiano, pode significar perda de oportunidades, de ascensão, de dinheiro e de trabalho. Não crescer continuamente pode representar estar fora do jogo e ter dificuldade de sobrevivência, o que é uma possibilidade bem concreta para boa parte da população. Interessa-nos em especial, neste contraponto, chamar a atenção para a questão do ritmo. O sistema tem capitalizado a disposição e a competitividade de jovens que se dispõem a trabalhar muitas horas por dia, inclusive aos fins de semana, tolerar muita pressão, e corresponder à expectativa de crescimento para além do humano. São jovens que adoecem menos de FM, estando mais tecidos nas malhas do pânico15. Aqui nos concentraremos apenas na ideia de que esta força jovem e altamente selecionada impõe, em cascata, um ritmo acelerado de trabalho, pressão e ameaça, para um número enorme de pessoas, o que se traduz pela expressão-mandamento “sair da zona de conforto”. Aqui também se deve sustentar o campo problemático e afetivo, não se apressando em culpar ingenuamente os jovens, ou as empresas, por exemplo.

A importância do “holding” e do engendramento de ritmos Seguindo pelo território do ritmo, podemos dizer que o ritmo não é feito apenas de presenças, mas de presenças e ausências ou continuidades e pausas. Será que os momentos de tristeza elaborativa, de recolhimento e introspecção, ficarão restritos aos momentos de desemprego e de doença? Se assim o for, a FM, através daquilo que na dor é incontornável, mais uma vez conquista um lugar afirmativo.

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Vamos nos deter nos primórdios do enlace entre o soma e os afetos, para entender que é, neste limite, nesta superfície de engendramento mútuo, que se encontra um caminho profícuo para a aproximação da FM. O psicanalista e pediatra Donald Winnicott chamou a atenção para a importância da formação do ritmo nos primeiros momentos do bebê com sua mãe. Neste período a separação mãe/bebê é apenas uma abstração, e a subjetividade vai sendo tecida junto com o desenvolvimento do corpo. É importante, para que o bebê integre experiências aparentemente separadas, como uma luz aumentando, um cheiro de leite e uma fome torturante, que se estabeleça com a mãe um ritmo próprio, uma regularidade confiável, uma musicalidade de base, única. Só desta forma, criando ritmos emergentes no encontro dos seus com os de sua mãe, é que poderá em algum momento sentir-se um, sentir-se separado de sua mãe e dos outros, e ainda sentir que todas aquelas sensações e emoções referem-se àquele mesmo e único corpo, o seu (“conluio psicossomático”). Este processo compõe em parte o que o autor chamou de “manejo”, “suporte” ou “holding”, no qual o cuidador dedica-se às necessidades físico-psíquicas do bebê (Davis, Wallbridge, 1982), quando a fisiologia e a psicologia ainda não se diferenciaram. Dificuldades neste processo de integração produzem “agonias primitivas” (Winnicott, 1994, p. 72), como a de estar despedaçado, de sofrer uma queda sem fim ou de perder o senso de realidade. São mobilizadas reações corporais primitivas e o corpo pode ser sentido como separado da experiência subjetiva, chamada pelo autor de despersonalização. Poder dispor, neste ponto, a informação de que os pacientes com FM costumam referir-se ao corpo como um estorvo, um obstáculo ou um “isso” (Söderberg et al., 2002), dá uma dimensão outra a algo que não deve ser visto apenas como um capricho de linguagem. Provavelmente estes pacientes vivem algo da desapropriação dos ritmos próprios, o que produz uma profunda agonia e algum grau de despersonalização, a qual, mais uma vez, deve ser entendida de forma positiva (perspectiva que já se encontra em Winnicott), como a saúde possível, o ritmo possível que tece, na dor, a singularidade do existir.

A “desmaternagem” e a esquizoalgia Assim, podemos pensar que vivemos em um momento histórico, cultural, tecnológico e capitalista, no qual boa parte do povo (de qualquer classe social ou escolaridade) sofre um processo de “desmaternagem”, por meio de uma expropriação insidiosa e insistente da condição de criar ritmos próprios. Os regimes de signos, por sua disseminação maciça, e a demanda do sistema com seu caráter imperativo e ameaçador (mas sedutor também), impõem necessidades comuns, projetos similares, formas clichê do viver, ou apenas uma miríade de encontros não afetivos, e não propiciam individuações singulares16, com participação original. Inspirados em Winnicott concebemos que, para a saúde, é muito importante poder constituir um território híbrido entre a percepção do mundo “como ele é”, e a certeza de que este mundo pode aceitar um colorido pessoal. Nos processos vitais e normativos que favorecem estas individuações, importa que se possa marcar o mundo com seus próprios tons, nem que isto se faça – sofrida e tragicamente – por meio da doença ou da violência. Neste sentido penso poder falar de um movimento psicotizante (por expropriação

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Apoiamos-nos em Deleuze para pensar as singularidades como aquelas que “não se confundem, [...] nem com a personalidade daquele que se exprime em um discurso, nem com a individualidade de um estado de coisas designado por uma proposição, nem com a generalidade ou a universalidade de um conceito significado pela figura ou a curva. A singularidade faz parte de uma outra dimensão, diferente das dimensões de designação, da manifestação ou da significação. A singularidade é essencialmente pré-individual, nãopessoal, aconceitual. Ela é completamente indiferente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao impessoal, ao particular e ao geral – e às suas oposições. Ela é neutra. Em compensação, não é ordinária: o ponto singular se opõe ao ordinário” (Deleuze, 2000, p.55). 16


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17 “Todo sofrer deve chamar um agir, mas um agir que não impeça o sofrer; as patologias do vivente reclamam uma medicina, mas uma medicina que respeite as patologias como forma de vida” (Stiegler 2001, p.124).

18 Deleuze, ao se perguntar quais forças estão em jogo no homem contemporâneo, sugere não serem mais aquelas relacionadas a “elevação ao infinito, nem a finitude, mas um finito ilimitado, convocando assim toda a situação de força em que um número finito de componentes oferece uma diversidade praticamente ilimitada de combinações” (2004, p.140). Não se encontra a unidade na forma infinita de Deus da idade clássica, nem na finita do homem do modernismo, mas na combinação ilimitada de elementos e forças no homem ou, como sugere aquele autor, no super-homem nietzschiano.

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dos processos de individuação) e perverso (por sedução para o consumo de uma “vida invejável”, e a alienação da expressão singular do desejo) do sistema lógico-capitalista atual. Esta aproximação relativiza a perspectiva que concebe doenças como a FM, o resultado de uma personalidade com estrutura psicótica ou com déficit de simbolização apenas exposta a fatores estressantes. Todos estão submetidos a esta moção que in(ex)cita enquanto aliena e fragmenta. Illich propõe o termo esquizoalgia para referir-se à dor surgida da expropriação do sofrimento, dor que “escapa à escala humana” (Illich, 1975, p.141), traduzindo a impossibilidade de apreender a realidade íntima do viver, o que gera uma dor crônica e sem sentido. Seguindo o desmantelamento sutil e insidioso da integração rítmica dos processos perceptivos e afetivos primevos, a doença passa a ser o refúgio para uma unidade teratológica possível, um aglomerado que não se entende e... dói. Dor que integra uma experiência subjetiva e corporal no próprio nonsense de sua existência. Não há qualquer complacência com o fato de o paciente sentir dor e sofrer. A clínica deve estar sempre voltada para a redução da dor física e a transformação do sofrimento, em favor de uma vida mais alegre e plena. Apenas não acreditamos que isto possa ser possível sem a problematização do adoecer e a produção de sentidos singulares deste processo, o que permitirá intervenções próprias para transformá-lo17. Estaríamos em um mundo que, por fomentar a uniformização perceptiva e afetiva, impõe uma forma perversa do viver, na qual as pessoas, no momento em que canalizam seu desejo para marcar o mundo com suas questões vitais e singulares, são conduzidas à vala comum dos desejos e encontros clichê? A doença e a violência seriam passaportes sofridos, mas legítimos, para fazer valer algo de si neste mundo? Seriam estas o resultado de certa inteligência do viver? O corpo-questão na contemporaneidade Tomaremos apenas duas perspectivas deste corpo, a de ter seus limites paradoxalmente apagados e proliferantes. Sua superfície não para de se dobrar e desdobrar, sendo que o indivíduo tem dificuldade em encontrar uma unidade na forma de uma pessoa ou, mesmo, de um número, tem dificuldade para conquistar um ritmo, passa a ser dividual. Este corpo é tomado por fragmentos que não remetem mais a um todo, como a tentativa de se capturar o vivo através da decifração do genoma humano18. O doente esquartejado por especialistas já não dá conta da complexidade do ser-superfície-proliferante-e-dividual. É a partir da contemporaneidade deste sofrer, que coloca em questão os próprios limites eu/outro, somático/psíquico, normal/patológico, vivo/morto, que surge a condição de aproximação com o corpo retalhado, multiplicado, desintegrado e capturado. Acompanhando Deleuze, temos hoje uma “nova medicina” “no “regime dos hospitais”, “sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada” (Deleuze, 1992, p.225). Criam-se então demandas ou públicos preocupados com o colesterol, a pressão alta ou a possibilidade de ter um bebê anormal, sendo oferecidos medicamentos, técnicas de ginástica,

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Fibromialgia: perspectivas de um campo problemático

dietas e exames, para consumo19. A “matéria dividual” não é nem mesmo o indivíduo reduzido a partes, pois esta “des-matéria” refere-se mais ao tempo de permanência da atenção/investimento do espectador/consumidor, para além das divisões em classes sociais, intelectuais etc. (Lazzarato, 2002). Ressalte-se que os pesquisadores têm observado distúrbios da atenção e da memória em pacientes com fibromialgia (Glass, 2006). A contemporaneidade da FM parece fazer uso da imaterialidade do jogo de forças e poder, para interferir na produção do limite doença/saúde. Aponta-se para um processo ainda mais sutil, que vem se compor com o plano dos “seres dividuais”. Percebe-se o surgimento, para além da sedução da atenção, da formação de clientelas e o gerenciamento de medos e riscos impessoais, de uma necessidade de modulação de aspectos do ser: humor, atenção, vigília, relaxamento, alegria. Um corpo que não se resume a ser vivido através da desestabilização, incitação, antecipação e controle, mas que se abre para variações infinitas. A “alegria antidepressiva”, a euforia das raves, o desempenho sexual dos pênis turbinados de jovens inseguros. Drogas, as mais diversas, mas também programas de televisão, roteiro de compras, esportes, são apreendidos como formas de modular o corpo e a subjetividade, agindo “de dentro” na própria interface dos mecanismos fisiológicos, neuroendócrinos e nos órgãos dos sentidos. O corpo é excitado, exaurido, dopado, estimulado, anestesiado. Em parte, observa-se uma tentativa de minimizar o sofrer por meio dos inescapáveis caminhos modulatórios e capitalizados de hoje. Por outra parte, há uma progressiva exigência estética e opressiva. A necessidade de estar sempre bem, alegre, disposto, mais produtivo, vai se expandindo pelo social, atingindo gradativamente as crianças20. Para um psicanalista estas questões são concretas e graves, pois não raro as pessoas se surpreendem desesperadas por sentiremse deprimidas (mesmo havendo motivo para tal) ou por perceberem, atônitas, que um dia estão alegres e, em outro, nem tanto, o que pode parecer caricato, mas traduz uma vivência de profunda angústia e sofrimento. O que revela uma visceral sensação de desconfiança quanto às próprias percepções e intuições, ou seja, uma sensação de enlouquecimento na apresentação do sofrer, o que demanda a urgência de uma confirmação “de fora” de que aquilo é “normal”. O sofrer dos “afetos existenciais” (Guattari, 1987, p. 50) envolvidos com o luto, o adoecer, a morte, o nascimento, as conquistas, são vividos como delirantes e ameaçadores de uma “normalidade” que já não se acessa mais naturalmente, necessitando de um fiador. Qual clínica trataria das angústias – impensáveis – vividas no plano das superfícies proliferantes e em variação infinita? Qual encontro possível? Como acolher, dar sentido, sarar, as feridas desta pele? Como propiciar encontros que sejam verdadeiros acontecimentos, no sentido de produzir ritmos? As perguntas não pedem resposta, sabemos, mas este conjunto de questõescorpo insiste. O acontecimento que é o encontro clínico não entulhado de teorias e pressuposições pode escutar uma mulher pobre, com diagnóstico de fibromialgia, que “não deu atenção ao corpo”, em seu caminho de sobrevivência através de uma infância violenta21 e de um trabalho excessivo dividido entre a cozinha de uma escola pública, os filhos e o marido. Pode perceber esta mesma mulher fazendo o mundo parar, o campo de afetação se restringir, os familiares transformando a administração dos tempos e espaços, frente à doença incapacitante (Alves, 2005). O clínico, des-pré-ocupado em saber se a doença existe ou não, se é ou não psicológica ou ainda se é causada por este ou aquele motivo, pode dispor-se vulnerável ao encontro e, a partir daí, inventar uma clínica. 166

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Rabinow esclarece bem como, na atualidade, os dados da presença imediata vão cedendo lugar à necessidade de antecipação de riscos impessoais projetados no futuro, quando diz que “a prevenção moderna é antes de tudo mapeamento de riscos. O risco não é o resultado de perigos específicos colocados pela presença imediata de uma pessoa ou um grupo de pessoas, mas sim a fusão de ‘fatores’ impessoais que tornam um risco provável. Assim, a prevenção é a vigilância, não do indivíduo, mas sim de prováveis ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados, e de comportamentos saudáveis a serem maximizados. Estamos aos poucos abandonando a antiga vigilância face-a-face de indivíduos e grupos já conhecidos como perigosos ou doentes, com finalidades disciplinares ou terapêuticas, e passando a projetar fatores de risco que desconstroem e reconstroem o sujeito individual ou grupal, ao antecipar possíveis loci de irrupções de perigos, através da identificação de lugares estatisticamente localizáveis em relação a normas e médias” (Rabinow, 1999, p.145). Estes “fatores impessoais” forjam não só uma “bioidentidade” que está para além dos limites individuais e grupais, como uma “biossociabilidade” (Rabinow, 1999, p.135-57). Sugiro que este processo não se restrinja à biotecnologia, mas atinja planos mais imateriais, como sociedades moduladas por “tempos de atenção dedicados a”.

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ARAGON, L.E.P.

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A violência na infância, inclusive a sexual, tem sido relacionada ao quadro de FM (Terre, Guiselli, 1997).

22 Entenda-se que clínica é utilizada neste trabalho não apenas no sentido mais restrito de atendimento a pacientes, mas que a própria perspectiva problemática de concepção do artigo pretendeu ter “efeito de acontecimento” no encontro com o leitor, promovendo uma variação das formas de perceber e sentir neste campo, sendo, portanto clínica por si só.

Conclusão

artigos

20 Começa-se a propor o “uso estético” de drogas como a Ritalina®, para melhorar a atenção e o desempenho escolar (à revelia do mundo da criança, que pode estar literalmente desabando!)

Este trabalho é o resultado de um esforço para dar voz ao corpo-questão que me atravessa enquanto pesquisador, clínico e indivíduo implicado nos sofreres deste tempo. Escolher – ou ser escolhido – pela FM, forjar um conjunto de procedimentos singulares, tentar apreender, por entre as palavras e ideias, algo do inapreensível e, no entanto, tão concreto da angústia, faz parte da aposta na força do viver que encontra, a cada momento, caminhos para seguir, mesmo que pelo adoecer. Aposta que busca retirar a FM de um território que a submete ao negativo e às abordagens dialéticas e causais. Exploramos o que nos pareceu serem singularidades existenciais envolvidas com a questão-mundo da FM, como a indiscernibilidade dos limites, a proliferação de superfícies, e a captura pelo sistema de produção de capital. Tocamos o movimento de um processo progressivo de alienação dos ritmos participantes dos processos vitais de individuação, e o aparecimento correlativo de agonias impensáveis. Percorremos um corpo mutante que é tomado por partes, pelo fato mesmo de multiplicar sua superfície, tornando-se dividual, impessoal e genérico, encontrando, na dor e na modulação dos limites, instrumentos desesperados de ancoragem do ser singular. Acredito que, a partir daí, é possível entrever uma clínica22 que se afirma na potência de criação de ritmos nos encontros (Aragon, 2007); uma ética que busca, em cada situação, acolher as singularidades da individuação; uma política que vê no adoecer do corpo uma forma legítima de expressão do viver, mesmo sabendo que devemos fazer todo o possível para aliviá-la.

Agradecimento O esboço deste trabalho foi apresentado em maio de 2008 para o Grupo de Trabalho Subjetividades Contemporâneas, por ocasião do Simpósio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, coordenado por Suely Rolnik e formado por Beatriz Sancovschi, Cristina Rauter, Eduardo Passos, Elizabeth Lima, Elizabeth Pacheco, Fernanda Bruno, Flávia Liberman, João Leite Neto, Liliana da Escóssia, Luciana Caliman, Peter Pál Pelbart, Silvia Tedesco, Virgínia Kastrup e William Pereira. Agradeço a todos por suas contribuições.

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ARAGON, L.E.P. Fibromialgia: perspectivas de un campo problemático. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.155-69, jan./mar. 2010. Este trabajo se vincula a investigaciones sobre los procesos de subjetivación y padecimiento contemporáneos mediante un abordaje afirmativo y no reduccionista de la fibromialgia. Para ello se formula una metodología denominada afirmación del campo problemático, tendiente a resistir al abordaje dialéctico y a la negativación de las señales y los síntomas, para captar la procesualidad del juego de afectos y de la producción de signos en la actualidad, haciendo uso de instrumental psicoanalítico, filosófico y clínico. La indiscernibilidad de los límites, la multiplicación de superficies y la alienación de los ritmos participantes en los procesos vitales de individuación surgen como producto de esta investigación. Se plantea aquí abordar un cuerpo-cuestión como territorio político, ético y clínico.

Palabras clave: Fibromialgia. Campo problemático. Procesos de subjetivación. Psicoanálisis. Cuerpo. Recebido em 11/02/2009. Aprovado em 27/07/2009.

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artigos

Diálogos entre padres y adolescentes sobre sexualidad: discursos morales y médicos en la reproducción de las desigualdades de género*

Daniel Eduardo Jones1

JONES, D.E. Dialogue between parents and teenagers about sexuality: moral and medical discourse reproducing gender inequalities. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.171-82, jan./mar. 2010.

Teenage girls and boys construct certain dimensions of their sexuality through dialogue with adults, who transmit values and standards to them. This paper analyzes conversations about sexuality between teenagers and their parents, in which medical and moral discursive registers are interlinked. The study was based on 46 individual interviews with boys and girls between 15 and 19 years of age, from middle-level socioeconomic strata who were living in Trelew (a city of 90,000 inhabitants in Patagonia, Argentina) and attending high school. To explain differences in the dynamics of dialogue between the teenage girls and boys, we constructed the notions of parental control over teenage girls’ sexuality and material and discursive omnipresence of condoms. These notions show how this dialogue with adults is crossed by unequal gender expectations that are, in turn, reinforced by these adults.

As mulheres e os homens adolescentes constroem determinadas dimensões da sua sexualidade a partir do diálogo com adultos, que lhes transmitem valores e normas. O artigo analisa conversas sobre sexualidade de adolescentes com seus pais, onde são articulados registros discursivos médicos e morais. A pesquisa é baseada em 46 entrevistas individuais com homens e mulheres de 15 a 19 anos de estratos socioeconômicos médios que residem em Trelew, cidade de noventa mil habitantes da Patagônia Argentina, e cursam o Ensino Médio. Para explicar as dinâmicas diferenciadas de diálogo entre adolescentes mulheres e homens, elaboramos as noções de controle parental da sexualidade feminina adolescente e onipresença material e discursiva do preservativo. Essas noções mostram como esses diálogos com adultos são atravessados por expectativas desiguais de gênero que, por sua vez, eles mesmos reforçam.

Keywords: Teenagers. Sexuality. Dialogue with parents.

Palavras-chave: Adolescentes. Sexualidade. Diálogo com pais.

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*Artículo inédito, elaborado con base en Jones (2008). Las y los adolescentes accedieron voluntariamente a ser entrevistados, manifestándolo por escrito, garantizándoles la confidencialidad y el anonimato de su participación. 1 Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Instituto de Investigaciones Gino Germani, Universidad de Buenos Aires. Castelli 25, 6º “25”.CP 1031. Ciudad Autónoma de Buenos Aires (Argentina). jonesdaniel@speedy. com.ar

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Diálogos entre padres y adolescentes sobre sexualidad:...

Introducción En las charlas de las mujeres y los varones adolescentes con adultos, y a través de algunos silencios, se transmiten valores y normas que se ponen en juego en sus opiniones y comportamientos sexuales. Este artículo analiza las conversaciones sobre sexualidad de adolescentes con sus padres y madres. Partimos de 46 entrevistas individuales a varones y mujeres de 15 a 19 años residentes en Trelew, una ciudad de noventa mil habitantes de la Patagonia argentina, pertenecientes a estratos socioeconómicos medios2 y que asisten a escuelas secundarias. Este análisis permite explorar una parte significativa del complejo proceso de construcción de la sexualidad de adolescentes. Considerando el papel socializador de normas sexuales de padres y madres (Gagnon, 1990), es importante indagar no sólo las grandes formaciones que organizan la sexualidad (como la religión, la medicina o el sistema educativo), sino también cómo dichas fuerzas actúan por mediación de la “vida privada” en la educación de los hijos en la familia (Vance, 1989). Luego de las amistades, para las mujeres entrevistadas la madre es su segunda interlocutora más frecuente en cuestiones de sexualidad, y para los varones es el padre y los padres (padre y madre).3 Cuando preguntamos con quiénes nunca hablan del tema, las mujeres primero mencionan a los padres -señalados por todas las que no habían indicado a la madre como interlocutora habitual- y luego el padre; en total, dos terceras partes de las entrevistadas no hablan nunca de sexualidad con su padre. Entre los varones, los docentes son los más mencionados como aquellos con quienes nunca hablan del tema, y luego los padres.4 En el primer apartado caracterizamos brevemente a Trelew, donde se criaron y residen las y los entrevistados, para situar localmente el proceso de construcción social de su sexualidad. A continuación analizamos de qué temas de sexualidad y cómo hablan con sus padres. En términos metodológicos, reconstruimos la interacción entre adultos y adolescentes tal como la presentan estos últimos.

Trelew Trelew se encuentra en la provincia del Chubut, en la Patagonia argentina, donde la gran extensión geográfica y la dispersión de las localidades determina un importante grado de aislamiento periférico, por las distancias y costos para viajar a otras ciudades, especialmente las grandes urbes (como Buenos Aires, Rosario o Córdoba), todas a más de 1500 km de Trelew. A su vez, otro rasgo local significativo es el menor peso de la Iglesia Católica en la vida pública de la provincia, en comparación con lo que sucede a nivel nacional y, sobre todo, en el Norte argentino. Esto puede vincularse a la temprana presencia de protestantes en la zona, con los colonos galeses en el siglo XIX, y la tardía presencia del catolicismo en el medio local, en comparación con el resto del país: hasta 1907 no hubo templo católico ni sacerdote en Trelew. El menor peso del catolicismo en Chubut se refleja, por ejemplo, en que fue la primera provincia argentina que eligió un gobernador no católico (en 1987) y en que la Iglesia Católica no tuvo un papel relevante durante la discusión de la ley provincial de salud sexual y reproductiva, a diferencia de lo sucedido a nivel nacional y en otras provincias. Esto ayuda a comprender la ausencia de discursos religiosos en las charlas entre adolescentes y sus padres, donde, con todo, aparecen otros valores tradicionales.

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Las y los entrevistados pertenecen a estratos medio-medio y mediobajo. En el artículo no los identificamos según su estrato porque no hallamos ninguna diferencia en los fenómenos analizados a partir de dicha dimensión. Para definir su estrato socioeconómico consideramos, primero, el hecho de que están escolarizados en el nivel secundario diurno a la edad esperada para realizar cada curso y que ninguno trabaja ni busca empleo para sostenerse económicamente. Segundo, tomamos el nivel educativo y la ocupación del padre y/o la madre con quien viven. Incluimos en el estrato medio-medio a los adolescentes cuyo padre y/o madre tienen estudios secundarios completos (muy pocos tienen estudios universitarios) y ocupaciones de media o alta calificación: profesional contratado, personal jerárquico estatal o de empresas, docente de secundario, propietario de comercio. Incluimos en el estrato medio-bajo a aquellos cuyo padre y/o madre tiene como máximo nivel educativo secundario incompleto y ocupaciones de baja calificación: operario fabril, trabajador de la construcción, peón de taxi, vendedor de comercio, jubilados de estas ocupaciones. Indagamos si existían diferencias en los diálogos sobre sexualidad de adolescentes con sus padres, en cuanto a temáticas y valores, según el nivel educativo o profesiones de estos adultos, sin hallar correlaciones relevantes.

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JONES, D.E.

4 Sin embargo, tanto varones como mujeres resaltan el papel intermedio que puede cumplir un docente, en relación a padres y pares, para hablar sobre sexualidad, al infundir la seguridad y confianza que dan la experiencia y madurez de un adulto, sin la vergüenza que genera tratarlo con los padres. Sobre las diferencias entre varones y mujeres al hablar de sexualidad con docentes, ver Jones (2008).

5 Las palabras entrecomilladas son términos nativos. Aunque usan “enfermedades” y “contagio”, para las situaciones a las que refieren los adecuados serían “Infecciones de Transmisión Sexual” (ITS) y “transmisión”.

6 Los nombres han sido cambiados para preservar el anonimato.

7 Nos referimos a la primera relación sexual coital.

Una expresión vulgar sobre la disposición corporal femenina para tener relaciones sexuales, enfatizando la pasividad de la mujer y que es penetrada. 8

El control parental de la sexualidad femenina adolescente Los diálogos sobre sexualidad entre las mujeres y sus padres se centran en los consejos sobre “cuidarse” de embarazos y “enfermedades”5 y, en menor medida, en las experiencias sexuales de estas jóvenes. En las charlas el discurso de los padres articula registros médicos y morales. Con registro médico nos referimos a sugerencias e informaciones que presentan como fuente y base de autoridad, tácita o explícitamente, un saber biomédico. Por registro moral entendemos “un conjunto de valores y de reglas de acción que se proponen a los individuos y a los grupos por medio de aparatos prescriptivos diversos, como pueden serlo la familia, las instituciones educativas, las iglesias, etc.” (Foucault, 2003, p. 26). Estos valores y reglas conforman un código moral que se transmite de manera difusa y que, “lejos de formar un conjunto sistemático, constituyen un juego complejo de elementos que se compensan, se corrigen, se anulan en ciertos puntos, permitiendo así compromisos o escapatorias” (Foucault, 2003, p.26). Los testimonios de Meibel, Maite y Nachi6 muestran cómo se articulan ambos registros en los consejos de adultos que, además de procurar la prevención de embarazos y enfermedades, brindan orientaciones morales para la actividad sexual de sus hijas:

artigos

A fines de facilitar la lectura, utilizamos la expresión “padres” para referirnos a padres y madres cuando la distinción entre ambos no resulte analíticamente relevante. En el caso de aludir sólo a padres varones, así lo indicamos cuando sea preciso. Seguimos un criterio semejante con la expresión “adultos”. 3

“Informante: En un tiempo mi mamá me hablaba de esas cosas [de sexualidad]. Me prevenía. Entrevistadora: ¿Qué te decía tu mamá? ¿De qué hablabas con ella? I: De las maneras anticonceptivas para cuidarte, del hacerlo por amor… Y después, de no regalarte al primero que se te cruza... El hecho de no tener sexo enseguida... Como que lo hacés y te abriste de gambas [piernas] y nada más”. (Meibel, 17 años, se inició sexualmente7 a los 15 con un novio)

Meibel señala que su madre la “prevenía” en cuestiones de sexualidad, un término que connota tanto recomendación como advertencia sobre qué hacer y qué no, y enumera en pie de igualdad dos consejos en distintos registros: las “maneras anticonceptivas” y el “hacerlo por amor”. Luego agrega tres frases que permiten reconstruir la orientación moral brindada por su madre: “no regalarte al primero que se te cruza”, “no tener sexo enseguida” y no “abrirte de gambas y nada más”, consejos que apuntan a que Meibel evite dos comportamientos. Por un lado, que no tenga relaciones sexuales con parejas ocasionales, pues las expresiones “el primero que se te cruza” y “enseguida” refieren a la ausencia de un vínculo socioafectivo previo, estable o duradero. Por otro lado, que evite relaciones motivadas sólo por las ganas, en oposición a “hacerlo por amor”. Estos consejos distinguen comportamientos legítimos e ilegítimos, algo que refuerzan las expresiones utilizadas. “Regalarte al primero que se te cruza” implica otorgarse tan poco valor a sí misma como mujer que, siguiendo la metáfora comercial, se entregaría a un hombre que no paga ningún precio por tener relaciones sexuales con ella, como, por ejemplo, estar de novios (de ahí que la frase aluda a parejas ocasionales). Estrechamente ligado, “abrirte de gambas8 y nada más” significa aceptar tener relaciones sin que haya una dimensión que exceda al mero interés sexual y, por ende, justifique ese encuentro. La distinción respecto de “hacerlo por amor” nos indica que, ante la mirada de su madre, este sentimiento legitimaría las relaciones sexuales, y no así el deseo o placer erótico de Meibel. Esta justificación de las relaciones sexuales de mujeres jóvenes mediante el discurso del amor es un fenómeno ampliamente registrado

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Diálogos entre padres y adolescentes sobre sexualidad:...

en América latina (Sosa, 2004; Amuchástegui, 2001; Cáceres, 2000; Pantelides, Geldstein, Infesta Domínguez, 1995). En las charlas entre Maite y su padre (ginecólogo y obstetra), él también articula ambos registros al explicarle los métodos para “cuidarse” y destacar que el mejor es la abstinencia sexual, una observación cierta en sentido estricto pero que implica no tener relaciones: “I: A mí mis padres me explicaron todos los métodos y me dijeron que la abstinencia era el mejor método. O sea, yo tengo 17 años y todavía no me siento lista. Y tampoco tuve nunca una pareja estable más de dos meses. [...] E: Y con tu papá por ejemplo, ¿qué hablás? I: Los métodos de cómo cuidarse, todo eso. [...] Mi papá me dio una charla más médico. Me dijo con los métodos cómo cuidarte, que mantenga pareja estable y eso”. (Maite, 17 años, aún no se inició sexualmente)

Maite explica que no ha tenido relaciones sexuales porque no se siente preparada y nunca tuvo una pareja estable más de dos meses, lo que indica que considera a este tipo de vínculo y esa duración condiciones necesarias para tener relaciones. El discurso de su padre combina los registros médico y moral: dando “una charla más [como] médico” (apelando a la autoridad que brinda ese saber), le recomienda la abstinencia como el mejor método para cuidarse y conservar una pareja estable (lo que para una adolescente es sinónimo de noviazgo). Ambos consejos parecerían contradictorios: ¿para qué mantener una pareja si precisamente su continuidad temporal aumentaría las posibilidades de que Maite tenga relaciones? Sin embargo, estos consejos pueden articularse en una misma orientación normativa presente en el discurso de estos adultos hacia sus hijas: “en lo posible no tengas relaciones sexuales durante tu adolescencia pero, en caso de tenerlas, que sea con un novio, por amor y utilizando algún método de prevención del embarazo y las enfermedades”. También articulan ambos registros los padres de Nachi, quien relata cómo su madre habla de sexualidad con sus hermanos varones (de 17 y 18 años) y cómo su padre charla con ella: “Mi mamá siempre habla con mis hermanos. Les dice que cuando ellos tengan una relación sexual se cuiden porque pueden traer enfermedades o pueden dejar embarazada a una chica y capaz que ellos no quieren dejarla embarazada. Cuando ellas... cuando ellos quieran tener un hijo que ahí sí no se pongan condón. [...] Mi papá siempre me dice que si en algún momento yo estoy con un novio “y sienten ganas”, pero porque lo quiero... Que me cuide, que tenga en cuenta todas las enfermedades que me puedo traer, y no quedar embarazada”. (Nachi, 15 años, aún no se inició sexualmente)

El punto de partida común es la presunción de heterosexualidad de estos adultos (una constante registrada en nuestro estudio), mediante consejos que colocan como pareja sexual a una persona del género opuesto o el énfasis en el uso de anticonceptivos. Dichos consejos operan en la institución de la heterosexualidad, en el marco de la matriz heterosexual: “La institución de una heterosexualidad obligatoria y naturalizada requiere y reglamenta al género como una relación binaria en que el término masculino se diferencia del femenino, y esta diferenciación se logra por medio de las prácticas del deseo heterosexual” (Butler, 2001, p. 56). Si bien ambos diálogos comparten esta presunción y giran sobre el mismo tema, hay diferencias significativas. Con Nachi, su padre refiere elípticamente a las relaciones sexuales (sin mencionarlas) y supone y refuerza con quién y por qué motivo debería tenerlas: con un novio y porque ella lo quiere, es decir, sus “ganas” (su deseo sexual) deben acompañarse de, o subordinarse al, amor. Además, no le señala métodos de prevención, sino sólo que se “cuide”. En cambio, con los hermanos de Nachi, su madre habla de una “chica” como compañera sexual, sin especificar el tipo de pareja, no les indica los motivos para tener relaciones y les señala el preservativo. Estas diferencias muestran cómo los consejos de adultos establecen requisitos más estrictos para la actividad sexual de sus hijas: el compañero sexual debería ser un novio y la motivación el amor. Como sostienen Heilborn, Cabral y Bozon (2006, p.211): “En la construcción social del género 174

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femenino hay una subordinación del sexo a la afectividad, designada como perspectiva relacional referente a la sexualidad y, en contrapartida, la sexualidad en los hombres es socialmente moldeada como portadora de sentido en sí misma”. Por otra parte, el no señalar métodos específicos de prevención revelaría un carácter más elíptico de las recomendaciones de adultos a sus hijas mujeres, como destacan otros estudios: entre jóvenes escolarizadas de nivel secundario en Lima (Perú), “la prescripción parental central a las chicas es un omnipresente ‘cuídate’, genérico y tangencial” (Cáceres, 2000, p.38), mientras que en Santiago de Chile, “el discurso para las hijas adolescentes se centra fuertemente en el cuidado, en general, sin oferta de medios concretos, sin referencia a ningún método anticonceptivo” (Valdés, 2005, p.334). El relato Nachi sintetiza cómo varían los consejos sobre sexualidad según se trate de un hijo o una hija, reforzando códigos morales diferenciados. Estos códigos retoman escenarios culturales tradicionales en términos de género. Con tradicional designamos a una concepción jerárquica y asimétrica de las relaciones de género, así como a normatividades para la actividad sexual rígidamente diferenciadas para varones y mujeres. En estas charlas padres y madres retoman imágenes de género donde predominan el amor-pasión como característica masculina y el amor romántico como definitorio de la sexualidad femenina (Szasz, 2004). El primero implica una conexión intensa entre el amor y la atracción sexual, mientras que en el amor romántico los afectos tienden a predominar sobre el ardor sexual (Giddens, 1995). En Argentina, las creencias del amor romántico se han difundido a través de diversos medios y formatos culturales orientados hacia las mujeres (folletín, radioteatro, teleteatro), de inicios del siglo XX al presente (Torrado, 2003), actuando como relato legitimante de la sexualidad femenina. La otra cuestión que sobresale en estas conversaciones es la asociación constante entre actividad sexual y reproducción, mediante advertencias sobre el riesgo de quedar embarazadas. Algunos adultos presentan a sus hijas adolescentes un encadenamiento automático entre comienzo de las relaciones sexuales, embarazo, maternidad (no mencionan la opción de abortar) y derrumbe del proyecto de vida. Esta idea retoma una extendida percepción en América latina de que el embarazo en la adolescencia es esencialmente un problema y perturba el desarrollo del curso de vida, percepción compartida por los medios de comunicación y los servicios educativos y sanitarios (Knauth et al., 2006; Villa, 2007). El proyecto de vida de estas chicas escolarizadas supone asistir a la universidad, para lo que consideran condición necesaria no tener que criar un hijo. Como registra una investigación de adolescentes escolarizados en la ciudad de Buenos Aires, “la posibilidad de embarazos puede ser experimentada con temor […] cuando éstos son percibidos como una ruptura de la autonomía individual y de la continuidad en el estudio” (Villa, 2007, p.102). Para acceder a ciertas carreras universitarias estas jóvenes deben emigrar a ciudades lejanas con mayor oferta educativa, para lo que reconocen un obstáculo en el embarazo y la maternidad. En este entramado de expectativas y asociaciones, algunos adultos intentan disuadir a sus hijas de tener relaciones en la adolescencia (sugiriéndoles que las posterguen), a través de recomendaciones preventivas en un registro médico. Un ejemplo es el consejo de abstinencia del padre de Maite, a la sazón de profesión médico, que delinea la sexualidad que considera legítima para su hija mediante argumentos presuntamente científicos. La articulación de registros morales y médicos en estos consejos puede interpretarse, siguiendo a Foucault (2000), como parte de un dispositivo de control social sobre la sexualidad que la medicina a menudo legitima, cuando no ejerce directamente. Desde el siglo XVIII, progresivamente “la iniciativa para juzgar la sexualidad pasó de las iglesias a los encargados de la higiene social y mental, sobre todo de profesión médica. Ésta ha sido una revolución inconclusa en el sentido de que los asuntos morales y médicos siguen estando inextricablemente vinculados” (Weeks, 1998, p.94). Otras charlas de las adolescentes con sus madres se centran en sus relaciones sexuales: “I: Mi mamá sabe que tengo relaciones, de eso nunca hablé mucho con ella. E: ¿Qué te decía tu mamá? I: Cuando le conté que tenía relaciones no le gustó demasiado. Creo que esperaba que no las tuviera. E: ¿Y vos qué pensás?

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I: ¡Qué pensamiento retrógrado! La verdad es que me molestó bastante porque yo fui a contárselo, me parecía que era algo que me gustaría compartir. De hecho me gustaría que mis hijos me lo contaran. Y esperaba que le pareciera mejor. Tampoco que me haga una fiesta. E: ¿Qué te dijo? I: Me dijo: “Yo no quería, yo no esperaba que vos tuvieras relaciones ya. ¿Se cuidan?”. Yo se lo quería contar y esperaba que [diga]: “Qué bueno que me contaste. Sabés que a mí... Vos sabés que…”. Y bueno, pero nada de eso pasó. E: ¿Y no hablaron más del tema? I: No. Ahora estoy yendo a la doctora para ver si tomo anticonceptivos”. (Karina, 17 años, se inició sexualmente a los 16)

Karina le contó a la madre que tenía relaciones sexuales con su novio, con quien fue su primera vez. Esperaba que se alegrara por habérselo contado por voluntad propia y que, en consecuencia, la madre compartiera alguna experiencia. Nada de eso sucedió: por el contrario, la madre le expresó su disgusto porque tuviese relaciones y sólo le preguntó si se cuidaban, una reacción que contiene los dos registros mencionados. Por un lado, en la frase “Yo no quería, yo no esperaba que vos tuvieras relaciones ya”, el “ya” refiere a la edad de Karina y expresa una regla moral que considera precoces y, por lo tanto, inadecuadas las relaciones sexuales a esta edad. Por otro lado, la pregunta “¿se cuidan?” alude a si usan algún método preventivo cuando mantienen relaciones, inscribiéndose en un registro discursivo médico. Que la única e inmediata consulta de su madre sea sobre los cuidados, a la que Karina responde yendo a una médica por anticonceptivos orales, indica la dificultad de algunas madres (y padres) para hablar de sexualidad con las adolescentes más allá de la prevención del embarazo. La referencia a las píldoras en las charlas con sus madres se vincula a un escenario cultural sobre la sexualidad femenina adolescente donde ocupa un lugar central el temor al embarazo. La interacción relatada por Karina muestra un choque de expectativas que influye en la posibilidad de otros diálogos con sus padres: la esperanza de que la madre se alegre por la confianza depositada al contarle que tenía relaciones y comparta su propia experiencia choca con la recriminación de ésta, lo que contribuye a que no vuelvan a hablar de relaciones sexuales y, además, a que Karina no comente nada a su padre. A modo de síntesis construimos la categoría control parental de la sexualidad femenina adolescente para dar cuenta de los contenidos y dinámicas de los diálogos sobre sexualidad de las adolescentes con sus padres. Este control consiste en una regulación y sanción de la actividad sexual de las adolescentes a través de consejos, restricciones y recriminaciones que, articulando registros médicos y morales, establecen orientaciones normativas sobre comportamientos legítimos e ilegítimos.9 Dichas orientaciones también guían a las jóvenes acerca de qué pueden hablar con ellos y sobre qué no, lo que nos lleva a los silencios. Las entrevistadas consideran que los silencios sobre sexualidad de los adultos ante las hijas adolescentes se orientan a negar su actividad sexual, una negación que podemos interpretar como ignorancia y como prohibición. La negación como ignorancia implica que cuando las mujeres comienzan con inquietudes sobre sexualidad y, sobre todo, a tener relaciones sexuales, sus padres no les hablan al respecto porque supuestamente desconocen estas vivencias. Decimos supuestamente porque dicho desconocimiento sería una mezcla de no saber que sus hijas tienen relaciones y no querer que las tengan durante la adolescencia:

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Para esta definición nos inspiramos en las nociones de vigilancia y sanción de Foucault (1989), evitando oponer “control” y “sexualidad”, como si ésta fuese una naturaleza que el poder intentaría reprimir (Foucault, 2000, p.129).

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“E: ¿Y con quién nunca hablaste de sexualidad? I: Con mi mamá. E: ¿Por qué? I: Me da vergüenza. E: ¿Y ella nunca te habló? I: No. Pienso que también le debe preocupar que... “Mirá, ya está creciendo y...”. E: ¿Y con tu papá? I: (riéndose) No, él no. Él siempre cree que soy una nena, piensa que soy una nena. Dice: “Mi nena” y nada más... ya no quiere que crezca”. (Belén, 19 años, se inició sexualmente a los 19)

Mientras que Belén sospecha que su silenciosa madre debe estar preocupada por su sexualidad, el padre ejemplifica la mezcla entre no saber y no querer que su hija tenga actividad sexual: no hablaría con Belén del tema tanto porque cree que es una “nena” y como tal no tendría relaciones, como porque no quiere que su hija crezca y efectivamente las tenga. Otros testimonios reflejan dicha articulación entre la negación como ignorancia y como prohibición: los adultos ignoran todo el tiempo posible que sus hijas tienen relaciones hasta que, cuando lo sospechan fuertemente o se enteran, comienzan las recriminaciones y prohibiciones. En estas situaciones también se da el control parental de la sexualidad femenina adolescente, ya no bajo la forma de consejos sino a través de vigilancia y límites a sus actividades: “E: ¿Con quiénes es poco frecuente hablar de sexualidad? I: Y... con los padres generalmente. E: ¿Y a qué atribuís que no se habla? I: Muchos padres viven la sexualidad de los hijos como algo que es de ellos, o como algo que todavía no existe para algunos o que no debería existir para otros. Entonces, ante la posibilidad de encontrar una respuesta negativa, es preferible no contarlo. Ésa es la actitud que se toma generalmente. Porque algunos padres se desilusionan o después están controlando todo el tiempo, y el chico... generalmente en el caso de las mujeres, si vas a salir a bailar, ya es toda una historia, porque atrás de eso imaginan un montón de cosas. […] Como que pueden esperar cualquier cosa de vos. E: ¿Más en las mujeres que en los varones o es igual? I: En general más en las mujeres que en los varones. Los padres de los varones suelen ser más piolas, lo tienen más aceptado y algunos hasta prefieren abrirles las puertas de la casa con tal de que no se vayan a otro lado. En las mujeres se vive como más escondido eso”. (Lucía, 17 años)

Para Lucía las chicas prefieren no contar de sus relaciones sexuales a sus padres por miedo a una reacción negativa, como la desilusión o el control. Como ilustra la madre de Karina, la posibilidad de dicha desilusión no es una fantasía de las jóvenes. La noticia de que una adolescente ya tiene relaciones la coloca bajo sospecha y activa la vigilancia de sus padres, por ejemplo, cuando sale a bailar. Esta dinámica supone una actitud diferente de los adultos según se trate de hijos o hijas, que ayuda a entender por qué algunas mujeres no hablan con los padres de su actividad sexual. Mientras que frente a los hijos varones los adultos serían más abiertos, llegando a ofrecer la casa familiar para tener relaciones, una chica lo viviría más clandestinamente, por temor a que si se enteran sus padres empiecen los controles a sus rutinas, una diferencia entre géneros también registrada en adolescentes de Buenos Aires (Villa, 2007) y Cuernavaca (México) (Sosa, 2004). Dichas dinámicas reflejan la productividad del poder (Foucault, 2000), pues este control no solamente restringe, sino que está en el corazón mismo de la producción de ciertos comportamientos sexuales, como profundizamos a continuación.

La omnipresencia material y discursiva del preservativo Los diálogos sobre sexualidad de los varones con su padre y/o madre se centran en el preservativo y, en menor medida, en sus experiencias sexuales. Los primeros presentan una secuencia común: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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el padre o la madre aconseja al adolescente sobre el uso de preservativos y acompaña el consejo entregándoselos o dándole dinero explícitamente destinado a su compra. “E: ¿Y cómo es que vos tenías forros [preservativos]? ¿Siempre andás con forros? I: Sí, porque mi viejo [padre] me compró. E: ¿Cuando empezaste a andar con esta chica o antes? I: Antes, antes. “Por las dudas”, me dijo. Porque ya me había dado indicaciones de un montón de cosas, después me los compró y cuando tuve la posibilidad los usé”. (Martín, 18 años, se inició sexualmente a los 15)

Muchos varones mencionan recibir preservativos o dinero para comprarlos: generalmente el padre se los facilita con bastante antelación a su eventual uso, desde el momento en que comienzan a salir a bailar a las discotecas, a los 14 años. Esta entrega tiene dos tipos de efectos: uno práctico, porque los jóvenes disponen de preservativos para cuando se presente la ocasión de utilizarlos (como hicieron varios en su primera vez y/o encuentros posteriores); y otro simbólico, pues proporcionar profilácticos refuerza el consejo con una dimensión material. Cuando termina la charla el adolescente cuenta con preservativos e información sobre cómo usarlos, lo que contrasta con la experiencia de algunas chicas, que sólo reciben de sus padres un genérico “cuidate”, sin recomendarles o facilitarles métodos concretos. Sin embargo, los efectos simbólicos de esta secuencia no acaban ahí: el suministro de profilácticos legitima desde y ante los padres la posibilidad de que su hijo mantenga relaciones sexuales.10 La orientación normativa rezaría: “podés tener relaciones sexuales durante tu adolescencia siempre y cuando uses preservativo”. Esto significa que dichos consejos no se dan en un registro exclusivamente médico. A diferencia de las charlas con las hijas, en aquellas con varones no aparecen requisitos sobre el tipo de vínculo con la compañera sexual y la motivación para tener relaciones, pero igualmente se pone en juego un mensaje moral: presuponen que estos adolescentes ya tienen relaciones o las tendrán en breve y, por ende, las aprueban. La orientación normativa se da en un sentido inverso al control parental de la sexualidad femenina adolescente, que indica que en lo posible las mujeres no deberían tener relaciones sexuales en su adolescencia. Las charlas sobre el preservativo en ocasiones se enlazan con las referidas a sus experiencias sexuales: “E: ¿Y alguna vez tus papás te dijeron algo sobre el tema de las minas [chicas]? I: Siempre me dijeron que tenía que tener el famoso preservativo en la billetera. Porque en un boliche [discoteca] nunca sabés qué pasa. Y por más que vos sepas que con una mina estás hace un mes, no sabés si tiene algo, entonces por las dudas a mí siempre me dijeron: “Vos siempre llevalo, es mejor prevenir”. E: ¿Y eso te lo dijeron desde qué edad? I: Desde los 14. Es que yo a los 14 ya empecé a estar [de novio] con una piba. [...] E: ¿Y cómo era el tema? ¿Ellos te compraban el preservativo? I: No, me daban plata. Si necesitaba plata para preservativos siempre iba, pedía y me daban. [...] E: ¿Y cuando empezaste a tener relaciones le comentaste algo a tus viejos? 178

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Algo semejante sucede con el hecho de que la madre acompañe a una hija a la ginecóloga para que le prescriba píldoras anticonceptivas y/o se las compre, relatado por dos entrevistadas. Ninguna menciona haber recibido preservativos de su madre o padre.

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I: Yo les dije: “Bueno, hoy les tengo que decir algo”. Los senté a los dos y les dije: “Ya tuve mi primera relación, me cuidé, la pasé re bien”. Se cagaban de risa. Así que todo bien, estaban contentos de que me haya cuidado. No me decían nada referido a la edad”. (Emiliano, 18 años, se inició sexualmente a los 14)

Al igual que Karina, Emiliano describe cómo fue contar a sus padres que había tenido su primera vez. El contraste entre ambas vivencias ilumina diferencias significativas entre mujeres y varones en estos diálogos. Mientras que Emiliano cuenta su iniciación a su padre y madre juntos, señalándoles que se había cuidado y que la había pasado muy bien, Karina se dirige sólo a su madre, la referencia a los cuidados es por una pregunta de ésta y no menciona haberlo disfrutado. Cabe preguntarse qué posibilidad tenía Karina de compartir con el padre esta experiencia, si consideramos que dos terceras partes de las mujeres entrevistadas no hablan con su padre de ningún tema de sexualidad y quienes lo hacen se centran en los cuidados. En contraposición, varios varones destacan una actitud complementaria del padre y la madre, quienes demuestran interés y predisposición para hablar con ellos de sexualidad, juntos o por separado. La mención de Emiliano de haber disfrutado del encuentro sexual contrasta con el silencio de Karina al respecto, algo que se enmarca en un patrón común de los relatos femeninos: la ausencia de referencias al placer sexual en las charlas con sus padres. A su vez, que Emiliano señale espontáneamente haberse cuidado puede ser producto de la insistencia previa de sus padres sobre el preservativo. En los testimonios aparecen otras dos diferencias. Por una parte, la reacción negativa de la madre ante el relato de Karina contrasta con la alegría de los padres de Emiliano, lo que él atribuye a que haya utilizado preservativo. Por otra parte, la ausencia de recriminaciones por su edad al varón, que percibe el propio Emiliano, se contrapone con el reproche de la madre a Karina al decirle que “no esperaba que tuvieras relaciones ya”. Como otro ejemplo de las expectativas diferenciadas de los padres respecto a la actividad sexual de hijos e hijas, recordemos que Karina tuvo su primera vez a los 16 años, mientras que Emiliano la tuvo a los 14. En resumen, desde el momento en que los padres aconsejan a Emiliano sobre el preservativo y le dan dinero para comprarlo, admiten la posibilidad de que tenga relaciones en breve y, consecuentes con dicha perspectiva, se alegran porque su hijo se cuidó al debutar. Las diferencias entre ambas interacciones son producto de, y refuerzan, expectativas de género y agencias desiguales para los participantes de estos diálogos con adultos. A modo de síntesis construimos la categoría omnipresencia material y discursiva del preservativo para dar cuenta de los contenidos y dinámicas de las charlas sobre sexualidad de los adolescentes varones con su padre y/o madre. En esta interacción el preservativo ocupa un lugar central no sólo mediante consejos sobre su uso, sino también a través de la entrega de profilácticos o dinero para comprarlos. Estas acciones traen aparejado un reconocimiento simbólico de las relaciones sexuales de los varones desde y ante los padres, en un sentido opuesto al control parental de la sexualidad femenina adolescente, que desalienta, condiciona o recrimina la actividad sexual de las mujeres. Dicho reconocimiento adulto, diferencial según el género de la o el adolescente, actuaría como horizonte regulativo de sus comportamientos, incitando de algún modo a los varones a tener contactos sexuales, lo que refleja una dimensión productiva del poder. Este contraste reproduce un doble patrón de moral sexual que viene de larga data en Argentina (Torrado, 2003, p.129-35) y en América latina en general: Este patrón se funda en la comprensión de una diferencia fundamental en las naturalezas sexuales de hombres y mujeres, […] [en la que] el tratamiento cultural de la sexualidad femenina está claramente dirigido para el control y la limitación. […] El tratamiento de la sexualidad masculina, al contrario, debe ser la incitación, y un discurso casi constante sobre asuntos sexuales, […] una continua y explícita educación sexual ofrecida por hombres más viejos a los jóvenes.

Reflexiones finales En este artículo analizamos los diálogos y silencios de adolescentes con sus padres como parte del proceso de construcción social de su sexualidad. Vimos cómo los consejos de adultos establecen COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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orientaciones normativas sobre la actividad sexual que pueden sintetizarse en dos fórmulas. Para las mujeres: “en lo posible no tengas relaciones sexuales durante tu adolescencia pero, en caso de tenerlas, que sea con un novio, por amor y utilizando algún método de prevención del embarazo y las enfermedades”; para los varones: “podés tener relaciones sexuales durante tu adolescencia siempre y cuando uses preservativo”. ¿Qué fenómenos sociales permiten entender la presencia de estos consejos en las conversaciones entre adolescentes y sus padres? 1) El reconocimiento de los adultos de que una proporción importante de adolescentes tiene relaciones sexuales, más allá de su valoración al respecto; 2) la extendida percepción del embarazo en la adolescencia como un problema que afecta al proyecto de vida de las mujeres; 3) la visibilidad de la epidemia del VIH/Sida a través de los medios de comunicación; y 4) el debate público sobre salud sexual y reproductiva en Argentina, desde la década de 1990. Sin embargo, en estos consejos difieren los mensajes para varones y mujeres. Las recomendaciones de padres refuerzan una jerarquía de comportamientos para las chicas que coloca en primer lugar a la abstinencia sexual durante la adolescencia y sólo en segundo lugar a las relaciones protegidas. A su vez, instauran requisitos sobre con quién y por qué motivo deberían tener estas relaciones (con un novio y por amor), que si se cumplen legitimarían la actividad sexual de las adolescentes ante la mirada adulta. En cambio, para los varones no especifican el tipo de vínculo con la compañera sexual, ni la motivación para tener relaciones, indicando como único requisito el preservativo. Amén de presuponer la heterosexualidad de sus interlocutores, estos consejos refuerzan códigos morales desiguales. Por eso propusimos las categorías control parental de la sexualidad femenina adolescente y omnipresencia material y discursiva del preservativo para dar cuenta de las dinámicas de diálogo entre adultos e hijas y adultos e hijos, respectivamente. El control parental no sólo se da a través de consejos, sino también mediante la negación de la actividad sexual de las chicas, en los sentidos de ignorancia y prohibición. Los adultos ignoran todo el tiempo posible que sus hijas tienen relaciones sexuales, manteniendo silencio al respecto, y cuando se enteran comienzan las recriminaciones, controles y prohibiciones. En cambio, la omnipresencia del preservativo en la interacción entre adultos e hijos varones pone en juego otro mensaje moral: los padres suponen que estos adolescentes tienen o tendrán en breve relaciones sexuales y tácitamente las aprueban al facilitarles preservativos y aconsejarles su uso. Estas acciones implican un reconocimiento de la actividad sexual de los varones desde los progenitores, en un sentido inverso al control parental que condiciona o desalienta las relaciones sexuales de las mujeres. En las charlas con las chicas es nodal la asociación entre actividad sexual y reproducción, al enfatizar la posibilidad del embarazo y la maternidad si tienen relaciones. Esto permite que algunos padres presenten a la abstinencia en la adolescencia como una alternativa razonable y da cuenta de una inquietud prioritaria por el embarazo que se refleja en otro fenómeno: algunas madres que se enteran de que sus hijas tienen relaciones les aconsejan cuidarse a través de píldoras anticonceptivas. Si por un lado resulta un avance frente al silencio de muchos padres, por el otro deja a estas chicas expuestas al VIH y otras ITS de no complementarlas con el preservativo (como lo hacen sólo algunas de ellas). La diferencia entre este consejo y aquel dado a varones sobre el preservativo, sumado a que ninguna chica ha recibido profilácticos de sus padres, plantea dos interrogantes. Primero, si esta insistencia en diferentes métodos tiene que ver con quién puede decidir usarlos. Segundo, si la recomendación de pastillas a las chicas descansa en que sus madres consideran lejana la posibilidad de que contraigan una ITS, mientras que, simultáneamente, evalúan que las peores consecuencias de no usar anticonceptivos recaerán sobre ellas. Estas diferencias en las recomendaciones recibidas se reflejan en aquello que más les preocupa de tener relaciones sexuales. La principal preocupación de los varones es que el preservativo falle, porque esté pinchado, se rompa o simplemente falle al utilizarlo. La consecuencia que más les inquieta es que su compañera sexual quede embarazada y, en menor medida, “contagiarse” una enfermedad. La segunda preocupación más mencionada se centra directamente en contraer el VIH. Entre las mujeres, el hecho de quedar embarazada es la principal preocupación, le sigue el contraer una enfermedad, mientras que sólo una teme que falle el preservativo. Estas preocupaciones dan cuenta de cómo las y los adolescentes construyen dimensiones de su sexualidad a partir de diálogos atravesados por 180

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expectativas de género desiguales. Para los varones la falla del preservativo constituye en sí el objeto de su preocupación, pues la omnipresencia material y discursiva del preservativo en las charlas con sus padres influye para que consideren que todo aquello que suceda con éste en la interacción sexual es su responsabilidad. El varón será el encargado de que el preservativo funcione efectivamente, ya que es quien usa dicho método y habitualmente lo provee. Si el preservativo es su responsabilidad y el único método de prevención que utilizan con su pareja (como declaran varios), su falla implica que el varón también sería el responsable si contrae alguna enfermedad o deja embarazada a su compañera. Que para las mujeres la principal preocupación sea el embarazo refleja cuán fuerte es la asociación entre actividad sexual y reproducción para la sexualidad femenina. En esta preocupación opera la idea, transmitida por sus padres, de que el embarazo y la maternidad en la adolescencia derrumbarían su proyecto de vida, particularmente los estudios universitarios. En síntesis, procuramos destacar correspondencias significativas entre los consejos sobre sexualidad de adultos a adolescentes y sus preocupaciones. En los varones, mediante la centralidad del preservativo, tanto en la interacción entre padres e hijos como en los temores de los adolescentes de que falle. En las mujeres, a través de la asociación entre actividad sexual y reproducción, tanto en las recomendaciones de padres como en la preocupación de las chicas de quedar embarazadas. Aunque estos y estas adolescentes escuchan a los adultos y valoran sus consejos, en ocasiones sus comportamientos van en otra dirección, como reflejan aquellas chicas que tuvieron relaciones a pesar de la prescripción parental de abstinencia durante la adolescencia, y decidieron no compartirlo con sus padres para evitar recriminaciones. Esta resistencia silenciosa muestra las dificultades que enfrentan los intentos de control sobre la actividad sexual de las chicas.

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JONES, D.E. Diálogo entre padres y adolescentes sobre sexualidad: discursos morales y médicos en la reproducción de las desigualdades de género. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.171-82, jan./mar. 2010. Las mujeres y los hombres adolescentes construyen determinadas dimensiones de su sexualidad a partir del diálogo con adultos que les transmites valores y normas. El artículo analiza conversaciones sobre sexualidad de adolescentes con sus padres en que se articulan registros discursivos médicos y morales. La investigación se basa en 46 entrevistas individuales con hombres y mujeres de 15 a 19 años de estratos socioeconómicos medios que residen en Trelew, ciudad de 90.00 habitantes de la Patagonia argentina, y cursan enseñanza media. Para explicar las dinámicas diferenciadas de dialogo entre adolescentes mujeres y adolescentes hombres, elaboramos las nociones de control parental de la sexualidad femenina adolescente y omnipresencia material y discursiva del preservativo. Estas nociones muestran como los diálogos con adultos son atravesados por expectativas desiguales de género que, a su vez, ellos mismos refuerzan.

Palabras clave: Adolescentes. Sexualidad. Diálogo con padres.

Recebido em 31/03/2009. Aprovado em 13/09/2009.

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A contribuição de um museu de ciências na formação de concepções sobre saúde de jovens visitantes* Vânia Rocha1 Virgínia Torres Schall2 Evelyse dos Santos Lemos3

ROCHA, V.; SCHALL, V.T.; LEMOS, E.S. The contribution of a science museum towards formation of healthcare concepts among young visitors. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.183-96, jan./mar. 2010.

Educational research indicates the importance of developing educational activities starting from the realities and previous knowledge of the public involved. Based on this principle, we conducted an investigation at the Museum of Life (Oswaldo Cruz Foundation, Rio de Janeiro), with the aim of better understanding about how visiting the museum influences the formation of healthcare concepts. Fifty-six public high school students who had participated in the Science and Society Project developed at the Museum took part in this survey. The qualitative methodology included the following strategies: application of 56 questionnaires and interviews with 18 of these subjects, before the visit; interviews with 14 students after the visit and with 12 students one year later. The results indicated that the educational activities contributed towards establishing relationships between the main topics covered (history, science, technology, environment and health), thereby expanding the young participants’ notions about healthcare.

As pesquisas no campo da educação indicam a importância de se desenvolverem ações educativas a partir da realidade e dos conhecimentos prévios do público envolvido. Partindo deste pressuposto, realizamos uma investigação no Museu da Vida (Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro) com objetivo de melhor compreender a influência da visita ao museu na formação de concepções sobre saúde. Participaram da pesquisa 56 jovens estudantes de Ensino Médio de escolas públicas, integrantes do Projeto Ciência e Sociedade, desenvolvido no museu. A metodologia qualitativa contou com as seguintes estratégias: aplicação de 56 questionários e realização de entrevistas com 18 desses sujeitos, antes da visita; realização de 14 entrevistas após a visita e de 12, um ano depois. Os resultados indicaram que as atividades educativas oferecidas contribuíram para estabelecer relações entre os principais temas abordados (história, ciência, tecnologia, ambiente e saúde), ampliando as concepções sobre saúde dos jovens participantes.

Keywords: Health education. Health and environment. Scientific exhibitions. Learning in museums. Meaningful learning.

Palavras-chave: Educação em Saúde. Saúde e ambiente. Exposições científicas. Aprendizagem em museu. Aprendizagem significativa.

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*Artigo inédito, elaborado com base em dissertação de mestrado aprovada em junho de 2008 pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz – Fiocruz. 1 Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Av. Brasil, 4365, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.040-360. vrocha@coc.fiocruz.br 2 Laboratório de Educação em Saúde, Centro de Pesquisas René Rachou, Fiocruz/MG. 3 Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz.

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Introdução A Educação em Saúde é o campo da Saúde Pública associado ao sistema formal e não formal de ensino que orienta a construção de conhecimento e o desenvolvimento de práticas relativas à saúde. Dentre as vertentes de atuação neste campo, podemos destacar duas linhas que influenciam os atuais projetos e programas educativos: a abordagem preventiva e a promoção da saúde (Schall, Struchiner, 1999). A primeira valoriza a aprendizagem sobre doenças, seus riscos e formas de controle; a segunda considera os fatores sociais, as condições de vida e do ambiente como relevantes para manter a saúde das populações. A escolha da abordagem para a elaboração de uma ação educativa depende de vários fatores, incluindo as concepções, tanto de saúde como de educação, dos seus proponentes. Com a mesma relevância, é fundamental conhecer as concepções sobre saúde da população em geral e do público a ser atendido, em particular. É essa compreensão que torna possível a formulação de estratégias educativas com potencial para a promoção de melhorias na realidade dos sujeitos envolvidos. Por muito tempo, as iniciativas no campo da educação em saúde foram voltadas, quase que exclusivamente, à prevenção e ao controle de doenças e com influências de uma visão higienista. Os programas eram centrados em informações básicas padronizadas e de alcance limitado (Schall, 1999). Embora importante para a aprendizagem sobre doenças e para a prevenção de epidemias, a abordagem higienista reduziu os problemas de saúde ao controle de agentes biológicos causadores ou transmissores de doenças, responsabilizando individualmente o sujeito pela sua condição de saúde. Como alternativa a esta abordagem, surgem, nas últimas décadas, propostas educativas com perspectivas integradoras e participativas, que prometem melhor alcance de resultados. Um dos objetivos é contribuir para que os sujeitos compreendam saúde como um estado positivo e dinâmico que expressa o bem-estar físico e mental (ausência de doença), ambiental (condições adequadas do ambiente), pessoal e emocional (autorrealização pessoal e afetiva) e socioecológica (comprometida com a igualdade social e com a preservação da natureza) (Schall, Struchiner, 1999). No mesmo sentido, a saúde humana, quando associada à saúde dos ecossistemas, propicia a compreensão da saúde de forma ampla. Esta concepção busca estabelecer relações entre os serviços de ecossistemas - como provisão de água, alimentos, energia, recursos genéticos e bem-estar humano - e permite a separação entre atenção à saúde, compreendida como assistência básica, e saúde, que incorpora dimensões sociais, políticas, econômicas e históricas (Freitas, Porto, 2006). A abordagem ecossistêmica da saúde humana surge nos anos 70, no Canadá, tendo como princípios: compreender os problemas de saúde em seu contexto e complexidade, porém atuar localmente; envolver o maior número de atores sociais (população, governantes, gestores, empresários, profissionais e técnicos) na solução de problemas; utilizar a ciência e a tecnologia como estratégia de mudanças; trabalhar com o conceito de participação social e “empoderamento” dos sujeitos; contemplar os papéis diferenciados de homens, mulheres, crianças e idosos na construção social da mudança; e adotar uma perspectiva inter e transdisciplinar, em que “fragmentos disciplinares” são acionados e postos em cooperação visando à qualidade de vida e ao ambiente saudável (Gómez, Minayo, 2006). Portanto, auxiliar a compreender saúde, de forma ampla, é também educar para ocupar espaços de participação nos processos decisórios. Porém, transformar propostas educativas em práticas pedagógicas inovadoras, que estimulem mudanças na realidade dos sujeitos, é uma tarefa desafiadora para todos os profissionais envolvidos, seja no sistema formal ou não formal de educação, pois não bastam mudanças no âmbito conceitual, tampouco nas estratégias e recursos instrucionais. A fragmentação do conhecimento científico no campo da saúde torna o ensino repleto de conteúdos desconexos, reduzidos a conceitos isolados, na maioria das vezes sem sentido para o educando. Outro aspecto desafiador é definir quais conteúdos são relevantes para auxiliar os sujeitos na (re)construção de concepções mais amplas e apropriadas sobre saúde. É nesta perspectiva que a área de Ensino de Ciências e, dentro desta, a de Ensino de Biociências e Saúde – cujo foco central é o processo de construção do conhecimento e os diferentes aspectos que nele interferem – vêm contribuindo para a melhor compreensão de muitos dos fenômenos 184

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de interesse da Educação em Saúde. A aproximação destes campos, particularmente na avaliação de atividades educativas, pode trazer avanços para a compreensão da natureza do conhecimento socialmente construído, do seu processo de construção e, assim, subsidiar a elaboração de atividades com maior potencial de favorecer a aprendizagem dos sujeitos nos diferentes contextos de educação. Criar condições para aprendizagem tem sido a justificativa para a produção de materiais educativos, entretanto, somente pesquisas avaliativas pautadas em pressupostos teóricos e metodológicos consistentes permitem melhor conhecimento do processo. As pesquisas em avaliação de materiais e de estratégias educativas no campo da saúde têm aumentado, assim como reflexões teóricas sobre as tendências que as influenciam. São tentativas de produzir resultados que orientem os profissionais na elaboração de atividades educativas inovadoras, com a intenção de superar posturas discursivas hegemônicas. Em relação aos materiais educativos em saúde, Pimenta, Leandro e Schall (2006) consideram o desenvolvimento e a avaliação dos mesmos como algo complexo que caminha por inúmeras frentes transdisciplinares. Em geral, seus conteúdos deixam transparecer, no processo de investigação, posições ideológicas, culturais e visões de mundo de seus elaboradores. Há uma quantidade expressiva de recursos tecnológicos produzidos (vídeos, cartilhas, panfletos, folders, cartazes, jogos) e incorporados a atividades educativas. Entretanto, a articulação entre a comunicação promovida pelo material e sua finalidade educativa nem sempre ocorre (Siqueira, 2006). Dentre as tecnologias educacionais em saúde, podemos destacar exposições dos museus de ciências como potenciais colaboradores para uma educação não formal em saúde. Estes espaços recebem diariamente um público diversificado, especialmente, estudantes e professores de diferentes níveis e áreas de formação. As exposições são produtos culturais com um rico potencial educativo e merecem atenção dos pesquisadores, no sentido de avaliarem o alcance e as limitações de seu uso pedagógico. É necessário avaliar a atuação do museu junto aos seus diversos públicos para que a instituição se certifique do alcance das metas estabelecidas e do cumprimento de sua missão, visando ao aprimoramento do trabalho e atendimento de novas demandas da sociedade (Studart, Mano, Pereira, 2007). O Museu da Vida é um espaço de divulgação científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com missão de educar em ciências e saúde. Por este motivo, valoriza a avaliação de suas iniciativas como uma oportunidade de aperfeiçoar suas propostas e conhecer quais elementos são importantes considerar na elaboração de novas atividades educativas em saúde. A visita às exposições do Museu da Vida contribui para uma compreensão de saúde de forma ampla? As atividades educativas oferecidas auxiliam na formação de conceitos importantes para uma nova concepção sobre saúde? Quais conteúdos, abordados durante a visita, apresentam maior potencial de contribuição na (re)construção de uma concepção mais ampla e apropriada sobre saúde? Estas foram algumas questões que nortearam a pesquisa, realizada entre os anos de 2006 e 2008, junto ao programa stricto senso em Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz. O objetivo principal da pesquisa foi conhecer as possíveis contribuições que a visita ao Museu da Vida poderia proporcionar na elaboração de concepções mais amplas sobre saúde, de jovens participantes de um projeto realizado no Museu. A Teoria da Aprendizagem Significativa (Ausubel apud Moreira, 1999), assumida como um conhecimento central e essencial para a formação dos profissionais do ensino (Lemos, 2005), também subsidiou a investigação.

Educação em Saúde no Museu da Vida O Museu da Vida, como espaço de divulgação científica, pode proporcionar diferentes formas de contribuir para a educação em saúde de seu público ou, ainda, de usuários das tecnologias educacionais elaboradas, como jogos, livros, multimídias e as próprias exposições. Considerando a contribuição dos espaços de visita, as atividades educativas mediadas - isto é, aquelas conduzidas por profissionais capacitados que, estrategicamente, questionam, estimulam e incentivam a participação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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do visitante - possuem potencial para contemplar o tema saúde com base em múltiplas dimensões. Por esta característica, pressupomos que a visita pode contribuir para a formação de concepções mais abrangentes sobre o tema saúde e sua relação com o meio ambiente. Para melhor compreendermos os problemas de saúde em suas múltiplas dimensões, há necessidade de se incorporarem os fatores sociais em nossa concepção, como: falta de emprego, má distribuição de renda, precariedade das condições de vida e trabalho, de moradia, entre outros. A saúde possui, além da dimensão biomédica, contornos éticos, sociais e culturais, sendo objeto de permanente negociação e eventuais conflitos na sociedade (Freitas, Porto, 2006). Portanto, é necessário compreender que estas dimensões são importantes para analisarmos, de forma crítica, a origem e as possíveis soluções para os problemas de saúde e ambiente que enfrentamos atualmente. E é esta a visão que o Museu da Vida valoriza, desde sua implantação, e se propõe incluir em suas atividades (Gadelha e Schall, 1999), representando o aspecto que o presente estudo investigou. Escolhemos uma atividade educativa de cada espaço temático para ser analisada durante o processo de investigação – a visita ao Castelo, com abordagem sobre a História da Saúde no início do século XX; a Biodiversidade numa gota d’água, no espaço Biodescoberta; a Praça Solar, no Parque da Ciência; e a peça “O mistério do barbeiro”, no espaço Ciência em Cena.

Metodologia Contexto do estudo A natureza do problema exige compreender que investigamos potenciais mudanças de concepção sobre saúde que acontecem a partir da visita, porém, os resultados podem sofrer influências de fatos anteriores e posteriores. Neste sentido, é necessário recorrer à abordagem qualitativa para comparar as concepções dos sujeitos envolvidos antes e depois da intervenção, utilizando diferentes formas de coleta de dados para tentar obter indícios desta influência. Além das visitas agendadas pelas escolas, o Museu desenvolve projetos educativos, que têm na visita seu ponto de partida, como o projeto Ciência e Sociedade (Sepúlveda, Bonatto, Rocha, 2006). A pesquisa foi realizada a partir da visita com estudantes que participaram deste projeto entre os meses de outubro e novembro de 2006. Os espaços visitados foram: Passado e Presente, Biodescoberta, Parque da Ciência e Ciência em Cena. O projeto Ciência e Sociedade é uma atividade educativa não formal, realizada desde 2002 no Museu da Vida, com o objetivo de reunir, em um fórum de discussões, pesquisadores, gestores de instituições de pesquisa, estudantes, professores e profissionais de divulgação científica. O debate promovido durante o fórum aborda as preocupações trazidas pela comunidade escolar sobre resultados de pesquisas contemporâneas e seus impactos na sociedade. A visita ao Museu da Vida é a primeira atividade realizada pelos estudantes que participam deste projeto. Com base nos objetivos do projeto, pressupomos que estes estudantes buscam, na visita, informações capazes de subsidiar suas opiniões sobre temas voltados à saúde e ao ambiente, que serão discutidos durante as outras fases do projeto e na escola.

Perfil das escolas e critérios de escolha dos sujeitos da pesquisa Participaram do estudo alunos de três escolas públicas de Ensino Médio da região metropolitana do Rio de Janeiro, totalizando 56 estudantes, 35 do sexo feminino e 21 do sexo masculino, com idade entre 14 e 21 anos. Estes alunos foram selecionados por seus professores e inscritos no projeto Ciência e Sociedade em setembro de 2006. Os critérios para seleção dos estudantes, segundo os professores, são: possuir uma história bem-sucedida na escola, destaque em projetos ou trabalhos extracurriculares, apresentar interesse pelos temas saúde e ambiente, possuir rendimento escolar satisfatório e capacidade de socialização, manter a responsabilidade e compromisso com o colégio.

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Elaboração e teste dos instrumentos utilizados na coleta de dados Para realizar a coleta de dados necessários ao estudo, foram elaborados os seguintes instrumentos: um questionário, aplicado durante a inscrição no projeto; um roteiro de entrevista utilizado antes da visita; um segundo roteiro utilizado após a visita; e um terceiro roteiro utilizado um ano depois da visita. A coleta de dados em momentos diversificados e apoiada em diferentes instrumentos se justifica pela possibilidade de associar respostas objetivas e subjetivas resultantes destes procedimentos. Segundo Minayo, Assis e Souza (2006), estratégias como esta, que privilegiam a triangulação de métodos, permitem uma postura dialética que leva a compreender que dados subjetivos (significados, interações, participação) e dados objetivos (indicadores, frequência) são inseparáveis e interdependentes. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados não podem se tornar uma tarefa longa e complicada para o respondente (Gunther, 2003). Portanto, os questionários e os roteiros de entrevistas foram formulados com base nos objetivos da pesquisa e aplicados de forma a não tornar o processo uma atividade aborrecedora para o grupo investigado. Outro aspecto importante apontado pelo referido autor é evitar perguntas que possam induzir o respondente a expor o que o pesquisador atribui como resposta adequada. Para garantia da qualidade dos instrumentos de coleta, os mesmos foram testados e validados com sujeitos que possuíam perfis semelhantes aos dos participantes, mas que não fizeram parte do grupo de estudo. A todos os sujeitos envolvidos, foi apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido, explicando que os dados coletados seriam analisados por um número muito restrito de pesquisadores e a identidade dos participantes seria preservada. Aos estudantes menores de 18 anos, o termo foi direcionado aos pais ou aos seus responsáveis. Cada aluno se responsabilizou por entregar o documento devidamente assinado à pesquisadora. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da instituição proponente, assim como a redação do termo.

Aplicação de questionário A versão final do questionário deveria ser preenchida com dados pessoais como: nome completo, telefones residencial e celular, endereços residencial e eletrônico, nome dos pais ou responsáveis, escola, série, turma e professor responsável no projeto. Em seguida, vinham questões abertas e fechadas sobre: o interesse por assuntos científicos, museus e espaços culturais, informações relativas a ambiente, ciência e saúde, conhecimento sobre materiais de divulgação científica (revistas, vídeos, jogos) e as concepções sobre saúde, ambiente, bem como suas relações. Responderam ao questionário 61 estudantes, porém cinco declararam não desejar participar da pesquisa, alegando não terem tempo disponível para conceder entrevistas, caso fossem convidados. Excluídos os cinco questionários não autorizados, trabalhamos com o universo de 56 sujeitos. Todos os questionários foram aplicados pela própria pesquisadora em dias e locais diferentes no mês de setembro de 2006. Com uma análise preliminar dos questionários, obtivemos informações necessárias à escolha de um grupo de jovens que melhor representasse o perfil geral dos estudantes para serem entrevistados. Os critérios de seleção deste grupo para as entrevistas foram: idade, sexo e interesse por assuntos científicos, agrupando estudantes bastante interessados e outros com menor interesse. Selecionamos 21 estudantes, entre 16 e 18 anos, 11 do sexo feminino e dez do masculino, das três escolas participantes, que foram contatados por telefone e convidados a participarem das entrevistas em local, dia e horário estabelecidos.

Entrevista antes da visita – Entrevista I As perguntas do roteiro permitiram investigar: as expectativas e o interesse em relação ao Projeto Ciência e Sociedade e à visita ao Museu da Vida; se o professor havia informado ou preparado algo

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sobre a visita; os temas que poderiam encontrar nas atividades, e concepções sobre ciência, saúde e ambiente. Situações-problema, tais como as descritas nos resultados, foram elaboradas no sentido de verificar que conhecimentos estes jovens utilizavam para formular suas respostas e argumentos. Procuravam também investigar se o grupo abordava os temas saúde e ambiente a partir das concepções declaradas no questionário As entrevistas antes da visita foram realizadas no Museu da Vida em diferentes dias e horários, e contaram com a colaboração de 18 estudantes dos 21 selecionados, pois três não compareceram no dia marcado. Todas as entrevistas seguiram um roteiro contendo questões abertas e situaçõesproblema, gravadas em fitas microcassetes com aproximadamente 15 minutos de duração.

Entrevista após a visita – Entrevista II Com esta entrevista, procuramos identificar: se as expectativas tinham sido alcançadas; aspectos que facilitaram ou dificultaram a compreensão dos temas; os espaços do Museu e atividades que melhor exploraram o tema saúde e ambiente, e, sobretudo, buscamos identificar quais assuntos abordados auxiliaram a compreender saúde de forma ampla, quando aprendidos de forma significativa. Nesta etapa, contatamos, via telefonema, os 18 estudantes entrevistados anteriormente, entre os quais 14 aceitaram o convite, concedendo nova entrevista no Museu da Vida ou na escola. Os quatro restantes alegaram não ter tempo para participar. As entrevistas seguiram o roteiro semiestruturado, contendo questões abertas e situações-problema semelhantes às utilizadas anteriormente. Foram realizadas em dias e locais diferentes para cada estudante. Segundo Rennie e Johnston (2004), o tempo para analisar o impacto de uma visita é um elemento importante, pois devemos considerar que a influência da visita na aprendizagem pode acontecer em tempos diferentes para cada indivíduo. Sendo assim, entrevistamos os jovens estabelecendo tempos diferenciados após a visita, que variaram desde o mesmo dia até 27 dias depois. Os resultados obtidos com esta entrevista não serão aqui explorados, pois foram tratados em artigo específico sobre a contribuição do museu para a aprendizagem significativa sobre saúde.

Entrevista após um ano da visita – Entrevista III Este procedimento foi realizado com 12 dos 14 estudantes que concederam entrevistas na etapa anterior, nos dias 27, 28 e 29 de novembro de 2007, um ano após a visita. Contatamos os jovens via telefone celular ou residencial, a partir dos números registrados no item “dados pessoais” do questionário. Como a maior parte dos alunos estudava na mesma escola, com exceção de uma jovem que mudara de cidade, optamos por realizar as entrevistas no ambiente do colégio. O procedimento foi agendado individualmente, com horário marcado e sem causar prejuízo para as atividades escolares. Nesta entrevista, foram explorados itens como: conteúdos, aspectos importantes do ambiente de aprendizagem em museus e alterações nas concepções sobre saúde e ambiente. Neste momento, perguntamos o que os jovens lembravam espontaneamente e, após a resposta, recorremos ao método da Lembrança Estimulada, adaptado por Falcão e Gilbert (2005), no qual fotos da visita auxiliam o público a expor as lembranças sobre a experiência. Entretanto, em nossa análise, não ignoramos que o trabalho do professor, da escola e a própria vida dos alunos eram variáveis que interfeririam nestes resultados, ou seja, no impacto da visita para o avanço no conhecimento do aluno. Por isso, perguntamos de quais atividades, eventos, projetos, os estudantes participaram durante este período, se possuíam relação com a visita ao Museu e se esta influenciou a aprendizagem ao longo da vida.

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Procedimento para análise dos dados

Primeiro momento

Para tratamento dos dados obtidos com base em questões abertas do questionário e das entrevistas, utilizamos a técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977). Trata-se de um conjunto de técnicas de análise das comunicações destinado a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a interferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. Neste tipo de análise, o texto sofre desmembramentos em unidades e, em seguida, reagrupamentos em categorias de análise. As categorias foram criadas posteriormente à análise do conteúdo, a partir de temas que emergiram das respostas. Para tanto, foi preciso identificar o que as unidades de textos transcritos possuíam em comum, o que permitiu o seu agrupamento em categorias. Apresentamos um esquema do desenvolvimento do estudo com objetivo de auxiliar o entendimento do seu percurso (Figura 1).

Escolha das atividades realizadas no Museu da Vida

Passado e Presente Biodescoberta Ciência em Cena Parque da Ciência

Intervencão avaliada

Terceiro momento

Segundo momento

Visita Definição do público Elaboracão, teste e aplicação dos instrumentos de coleta

Fórum Ciência e Sociedade

56 jovens do projeto Ciência e Sociedade

18

14

Questionário

Entrevista 1

Entrevista 2

outras atividades

12

Registro e tratamento dos dados

Análises

Entrevista 3

Elaboracão da dissertação

Figura 1. Desenho esquemático da metodologia em diferentes momentos da realização da pesquisa.

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Resultados e discussão Apresentamos os resultados na sequência dos seguintes instrumentos utilizados para coleta de dados: questionário, entrevista antes da visita e entrevista após um ano. A pesquisa gerou um volume expressivo de resultados; por este motivo, optamos por focar, neste artigo, aqueles relativos às alterações nas concepções dos jovens, inserindo as discussões seguidas dos resultados.

Saúde: o que pensavam os jovens antes da visita Resultados obtidos com os questionários aplicados antes da visita Por meio dos questionários (n=56), perguntamos aos jovens: “O que é saúde, pra você?”. As respostas foram organizadas em quatro categorias de análise. A categoria Bem-estar aparece em 28 respostas (50%). Incluímos, nesta, as respostas que apresentam saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social ou, ainda, resultado do bom funcionamento do organismo e do equilíbrio entre estes fatores. Estilo de vida aparece em 19 respostas (33,9%). São concepções que consideram a importância ou a preocupação em se manter um estilo de vida com hábitos saudáveis para preservar a saúde. Na categoria Ausência de doença, inserimos as respostas que consideram saúde como consequência da ausência de alguma enfermidade, sendo cinco (8,9%) as respostas com esta concepção. Em Outras, incluímos quatro (7,1%) respostas que não se enquadram nas categorias anteriores, duas que definem saúde como direito e duas como área de pesquisa e estudo. A maior parte das concepções sobre saúde é influenciada pelo conceito da Organização Mundial de Saúde – OMS (OPAS, 2007), como estado de bem-estar e de equilíbrio. Embora esta visão contemple aspectos importantes, como a saúde mental e a dimensão social, a ideia considera um estado de perfeição, dificilmente obtido. A noção de equilíbrio é outro fator a ser discutido. Pode ser considerado como um estado positivo e dinâmico que busca o bem-estar físico e mental. As concepções reunidas na segunda categoria, Estilo de vida, estão de acordo com a diretriz da Promoção da Saúde, que considera os cuidados com a saúde como fator importante (Buss, 2000). Embora fundamentais para manter os índices de saúde de uma população, apenas os hábitos e o estilo de vida contemplados como condicionantes de uma boa saúde significam atribuir a responsabilidade exclusivamente ao indivíduo (Carvalho, 2004; Oliveira, 1998). Esta visão desconsidera outros condicionantes, como emprego, renda, moradia, alimentação e ambiente adequados à saúde, que dependem de fatores sociais e econômicos. Nesta mesma categoria, as respostas que apresentam a ideia de saúde como essencial à vida contemplam a concepção de saúde como bem, que deve ser mantido para garantir a sobrevivência. As concepções que consideram saúde como ausência de doença aparecem em poucas respostas. Isso pode representar que projetos, programas e materiais educativos utilizados por estas escolas ou nos contextos pelos quais os alunos passaram no cotidiano de suas vidas têm dado menos ênfase a esta abordagem. Embora importante para a compreensão de fatores causadores e para o controle de doenças, esta abordagem, quando utilizada isoladamente, pode levar à visão reducionista do que é importante para mantermos nossa saúde. Em artigo publicado por Mohr e Schall (1992), as autoras evidenciam esta ênfase na educação em saúde praticada nas escolas. Porém, a partir do final da década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997), que tratam saúde como tema transversal e inserem outros aspectos relevantes, foram considerados nas práticas educativas nas escolas. Este fato pode ter apresentado algum resultado positivo, no sentido de diminuir a ênfase do tema saúde como ausência de doença, que reduz o problema a ações preventivas, nas práticas educativas escolares. A saúde como direito também é outra concepção pouco evidente nas respostas. Esta dimensão é fundamental para a formação de sujeitos mais bem preparados para o exercício de cidadania. A saúde compreendida nesta perspectiva pode auxiliar a formação de uma sociedade organizada e melhor preparada para ocupar os espaços de controle social (Stotz, 2003), mantendo uma atitude participativa para a conquista de políticas públicas e de fatores que determinam a saúde, como moradia, emprego, entre outros. Adotar esta abordagem nos projetos e programas educativos é uma

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tarefa para os educadores da área. A abordagem recomendada por Carvalho (2004) é pautada na ideia de “empowerment education”, que busca contribuir para a emancipação humana por meio do desenvolvimento do pensamento crítico e do estímulo a ações que tenham como objetivo realizar a superação das estruturas institucionais e ideológicas de opressão. Esta perspectiva pedagógica, derivada do “empowerment comunitário”, toma os indivíduos e grupos socialmente excluídos como cidadãos portadores de direitos e do “direito a ter direitos”. O “empowerment comunitário” distancia-se do projeto behaviorista que tende a representar as pessoas como dependentes de treinamento e ajuda. As concepções que consideram saúde como área de pesquisa e estudo podem ter sido influenciadas pelo fato de esses jovens estarem ingressando em um projeto desenvolvido por uma instituição de pesquisa reconhecida no campo da Saúde. Responder ao questionário ciente da colaboração com um estudo sobre educação em saúde é outro fator que pode ter induzido estas respostas. Resultados obtidos com as entrevistas antes da visita Antes da visita, perguntamos a 18 jovens, por meio de entrevistas: “O que lhes vem à cabeça quando falamos as palavras Ciência, Saúde e Ambiente?”. O objetivo foi identificar como o grupo entende Ciência e reafirmar as concepções prévias dos entrevistados sobre Saúde e Ambiente, levantadas com base nos questionários. Por meio das associações que os estudantes estabeleceram com cada termo, compreendemos melhor as concepções trazidas antes de ingressarem no projeto e realizarem a visita. Após a análise, foram criadas categorias com ideias e porcentagem semelhantes às encontradas nos questionários, reafirmando que o grupo selecionado para entrevista representava as concepções identificadas com o questionário. Entretanto, quatro dos 18 entrevistados (22,2%) não conseguiram, naquele momento, associar saúde a nenhum outro termo, ou, ainda, tentaram fazê-lo sem sucesso. Isto pode indicar que esses jovens definiram saúde nos questionários, mas, quando surgiu a necessidade de falar sobre um conceito de forma rápida e objetiva durante a entrevista, este conhecimento não estava suficientemente elaborado. As categorias obtidas com as respostas dos questionários e da entrevista são as mesmas ou semelhantes. Contudo, respostas com a ideia de saúde como ausência de doença, como direito e como campo de pesquisa e estudo - encontradas nos questionários - não apareceram nas entrevistas. Em resumo, a visão de saúde dos jovens entrevistados antes da visita está relacionada ao bemestar, ao equilíbrio e à importância disso para a manutenção da vida. Embora importante para manter cuidados com a saúde, esta visão não contempla dimensões fundamentais, como as sociais, ambientais e políticas. Santos, Firmo e Schall (1996) realizaram uma pesquisa sobre concepções de saúde e doença entre professores e estudantes de Ensino Fundamental. A ideia de saúde mais frequente nas respostas dos professores foi a de equilíbrio físico, corporal e orgânico (61%). Com relação aos alunos, saúde foi considerada como possibilidade de exercer atividades, caracterizada por ações e regras para manter a saúde e evitar adoecimento (76,8% para 3ª e 4ª séries e 41,2% para 1ª e 2ª séries). Um terço da amostra associou saúde a sensações e sentimentos positivos. Os resultados encontrados nas respostas dos jovens entrevistados em nossa pesquisa se aproximam dos obtidos pelas autoras, pois, se professores consideram saúde como equilíbrio, é a partir desta concepção que irão trabalhar com seus alunos. Portanto, a mesma concepção predomina nas respostas dos jovens. A ideia de saúde como possibilidade de exercer atividades e que isso só é possível por meio de cuidados pertence ao mesmo sentido de saúde como bem, apresentado pelos jovens. As concepções sobre saúde, identificadas antes da visita, serviram para avaliarmos o impacto da visita no conhecimento do estudante. Nosso interesse foi compreendermos se houve ou não alterações, ao compararmos as respostas iniciais com o resultado final após um ano da visita.

Saúde: o que pensam os jovens um ano depois Ao final das entrevistas realizadas um ano depois da visita, perguntamos aos jovens: “O que você entende por saúde?” Verificamos se associavam saúde à qualidade ambiental e, caso não o fizessem,

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perguntávamos: “Existe relação entre saúde e ambiente? Explique”. O objetivo das questões foi identificar se houve mudança de concepção nas respostas dos 12 jovens que finalizaram todas as etapas. Encontramos, em dez respostas (83,3%), associação de novas ideias sobre saúde, sendo que as outras duas (16,7%) permaneceram muito semelhantes às anteriores. Nas dez respostas em que novas ideias apareceram, consideramos que sete (58,3%) deveriam permanecer nas mesmas categorias inseridas anteriormente. Em três casos (25%), as respostas foram alocadas em outras categorias; em duas delas a compreensão de saúde como bem-estar passou a ser considerada pelos jovens como direito e como qualidade de vida. No outro caso, a concepção de saúde, antes compreendida como ausência de doença, foi inserida na categoria que representa bem-estar. Porém, a noção de saúde deste jovem se limitava ao estado de bem-estar físico. Ao compararmos as respostas dos questionários aos relatos desta entrevista, percebemos maior preocupação em conceituar saúde. Um ano depois, os jovens conseguem expor suas ideias sobre saúde de forma espontânea e com mais propriedade. Quando comparamos estas respostas finais às entrevistas realizadas antes da visita, percebemos que houve associação de novos significados mais ricos em conteúdo e com argumentos mais elaborados. Este fato pode ser uma evidência de compartilhamento de significados, considerado por Gowin apud Moreira (1999) como importante passo para a aprendizagem significativa de conteúdos relevantes para se compreender saúde de forma ampla. Naquele momento, oito dos 18 jovens entrevistados relacionaram saúde a bem-estar e equilíbrio (44,4%) e seis entenderam como condição ou algo essencial à vida (33,4%). Estas ideias permanecem nas respostas finais representadas nas categorias Bem-estar e Estilo de vida, contudo ganham elementos novos, como a dimensão ambiental, política e social. Houve também três jovens que não conseguiram associar saúde a nenhuma outra ideia (16,7%) e um associou saúde à ciência, muito provavelmente, influenciado pela pergunta da entrevista. Um ano depois, quando comparamos as respostas obtidas durante as entrevistas com as descritas nos questionários, observamos que todos conseguem responder e associar ideias não explicitadas anteriormente. A abordagem ecossistêmica é evidenciada em três das 12 respostas (25%) e, provavelmente, indica a compreensão de saúde associada à saúde do ambiente. Nesta abordagem, a saúde humana integrada à saúde dos ecossistemas amplia o próprio conceito de saúde, pois busca estabelecer uma relação entre os serviços de ecossistemas, como provisão de água e alimentos e o bem-estar humano (Freitas, Porto, 2006). Compreender saúde desta forma poderá, então, auxiliar o jovem a entender as causas e consequências da destruição dos ecossistemas para a saúde humana. Neste sentido, os espaços do Museu poderiam investir mais em atividades que privilegiassem esta abordagem. Essa compreensão já era apontada em alguns relatos anteriores à visita. Nos questionários, cinco das 56 respostas (8,9%) sobre a relação entre saúde e ambiente contemplavam esta ideia. Nas entrevistas antes da visita, essa ideia permaneceu em três das 18 respostas (16,7%) e, após a visita, em duas respostas, porcentagem muito semelhante à anterior (14,3%). A permanência dessas concepções nos indica que a visita pode não ter influenciado diretamente no aumento do número de estudantes que pensam saúde desta forma. Porém, pode ter ajudado a melhor compreender saúde humana relacionada à saúde dos ecossistemas. A forma com que os jovens responderam indica preocupação em elaborar com mais propriedade seus argumentos, fato que evidencia uma influência positiva da visita, como no exemplo a seguir: “É o estado físico da pessoa, pode ser bom ou não, dependendo de como a pessoa se cuida. (E tem a ver com o meio ambiente?) Tem, tem sim, diretamente. (Que tipo de relação?) Preservação, mais interação com o meio, para nos preservar, preservar a gente mesmo, melhorar nossa saúde, nossa condição de vida”. (Aluno 39)

A abordagem ecossistêmica trata os problemas de saúde em seu contexto e complexidade. Envolve diferentes atores de todos os segmentos para agir localmente sem perder o foco global da origem desses problemas. Nesta abordagem, a ciência e a tecnologia são utilizadas como estratégias numa perspectiva inter e multidisciplinar e o “empoderamento” dos sujeitos ajuda a ampliar a participação 192

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social (Gómez, Minayo, 2006). Compreender saúde a partir desta abordagem auxilia, então, a formar cidadãos mais atuantes e em condições de se tornarem participativos nos processos de decisão em busca de melhorias para a saúde. A saúde como direito e qualidade de vida, bem como a necessidade de condições adequadas para mantê-la, também aparecem com maior evidência em duas das 12 respostas (16,6%). Esta concepção não era presente nas entrevistas anteriores à visita, nem logo após a visita. A compreensão de saúde como direito vai além da conquista por serviços de saúde, inclui políticas públicas que garantam a saúde em sua concepção mais ampla (Stotz, 2003). Neste sentido, a mudança de concepção desses dois jovens, de bem-estar físico para a compreensão de outras dimensões como a social e política, pode ajudar a entender o papel do indivíduo na organização por melhores condições de saúde. Um dos jovens declarou ter participado de um Fórum sobre violência promovido pela escola em parceria com outras instituições. Quando perguntamos a este jovem se havia participado de algum estágio, visita a museu ou de outra atividade educativa, a resposta foi a seguinte: “Fiz, mas nada voltado à saúde, ambiente, ecossistema. Nosso trabalho é feito sobre violência urbana e mundial, sobre desigualdade... É, realmente tem a ver com saúde”. (Aluno 2)

Segundo Moreira (1999), a palavra “subsunçor” não existe na língua portuguesa, sendo seu uso associado à palavra inglesa subsumer, equivalente a facilitador ou subordinador. 4

Neste exemplo, o jovem quase se contradiz, pois entende saúde como qualidade de vida. Porém, reconsidera sua afirmação e recorre à nova concepção de saúde, indicando ter captado os novos significados e tê-los ainda aprendido de forma significativa (Gowin apud Moreira, 1999). A aprendizagem significativa é “[...] um processo por meio do qual uma nova informação relaciona-se com aspectos especificamente relevantes da estrutura do conhecimento do indivíduo, ou seja, este processo envolve a interação de nova informação com uma estrutura do conhecimento específica definida como conceito ‘subsunçor’4” (Ausubel apud Moreira, 1999 p.153). Os conhecimentos prévios do aprendiz têm grande influência sobre a aprendizagem significativa de novos conhecimentos (Novak apud Moreira, 1999). Os resultados desta investigação indicam que a maioria dos jovens agregou aos seus conhecimentos prévios - construídos a partir de experiências diversas na escola e na interação com os meios de comunicação e do próprio meio onde convivem - ideias e conceitos trabalhados durante a visita aos espaços do Museu da Vida, como no exemplo da peça “O mistério do barbeiro”. “É a coisa mais importante para a vida... envolve o físico e o mental (E o ambiente?). É, envolve o ambiente onde essa pessoa vive, a saúde é influenciada pelo ambiente... as condições favoráveis, como no caso do barbeiro, as pessoas mais atacadas eram as que viviam em condições precárias, em região onde tinha mato e proliferação do inseto”. (Aluno 42)

Segundo Moreira (1999), as mudanças conceituais têm sido equivocadamente interpretadas como a substituição de um significado pelo outro. Esta característica, incoerente com o caráter processual e recursivo da aprendizagem significativa, implicaria o abandono, a médio e longo prazos, dos conceitos alternativos por aqueles considerados corretos. Entretanto, para o autor, este tipo de mudança provavelmente não existe, razão pela qual os resultados das intervenções realizadas com base nesse enfoque têm sido decepcionantes.

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Participar de outras experiências educativas, como no Projeto Ciência e Sociedade, logo após a visita, foi importante para este processo de aprendizagem, pois alguns estudantes declararam que assuntos como biodiversidade, energia, ambiente e saúde foram discutidos e aprofundados em outras atividades. Portanto, as experiências positivas da visita possivelmente resultaram também em conhecimentos, que auxiliaram na formação de conceitos posteriores. As participações dos jovens em outras atividades educativas posteriores à visita, indicadas nas respostas das entrevistas - como estágios de iniciação científica, projetos de inclusão social, Fórum sobre violência e a inserção no pré-vestibular - foram experiências importantes para a formação das concepções finais sobre saúde, pois muitos declararam nas entrevistas que lembraram ou utilizaram algum assunto trabalhado na visita durante o desenvolvimento destas experiências. Para Moreira (1999), o indivíduo vai construindo uma estrutura de significados que é, essencialmente, a sua estrutura cognitiva. É com essa estrutura (ou com este conhecimento prévio) que o aprendiz participa de uma experiência educativa. Neste sentido, as concepções finais são resultados das diferentes experiências vivenciadas antes, durante e após a visita. Porém, podemos considerar que a visita favoreceu a interação entre conhecimentos prévios e novos, que adquiriram significados diferenciados, coerentes com o que se pretendeu ensinar, propiciando argumentos ricos e mais bem elaborados.

Considerações finais O presente artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa que buscou avaliar as contribuições da visita a um museu de ciências na elaboração de concepções sobre saúde. Podemos considerar, por meio de evidências encontradas, que o museu contribuiu oferecendo um ambiente favorável à troca de significados importantes para a compreensão de conteúdos relativos à ciência, à saúde e ao ambiente que facilitaram a aprendizagem. A cada atividade realizada, os jovens puderam estabelecer relações entre estes temas, fator que ajudou a ampliar as concepções sobre saúde trazidas antes da visita. Sendo assim, os espaços de visita do Museu poderiam trabalhar de forma mais integrada, no sentido de promoverem a relação entre estes conteúdos. Foram também identificadas relações estabelecidas entre experiências vivenciadas antes e após a visita e que resultaram em aprendizagem significativa sobre saúde. Destacamos, então, a necessidade de se estreitarem as relações entre a educação formal e não formal de modo articulado, compartilhando interesses entre a escola e o museu, e de se promoverem pesquisas avaliativas neste sentido. As respostas da maior parte dos jovens entrevistados pertenceram à mesma categoria alocada anteriormente. No entanto, as concepções sobre saúde declaradas um ano depois da realização da visita foram acrescidas de novas ideias, promovendo, assim, a formação de significados mais amplos sobre saúde. Percebemos, ainda, que os jovens responderam às entrevistas utilizando argumentos mais elaborados, dos quais emergem suas concepções finais sobre saúde, contempladas nas suas várias dimensões. No entanto, a abordagem ecossistêmica, ainda pouco presente nas concepções dos alunos, poderia ser explorada de forma mais efetiva nas atividades, pois há potencial nos espaços visitados. Promover avaliações contínuas da visita ao Museu da Vida com diferentes públicos e enfoques fazse necessário para o seu aperfeiçoamento, numa perspectiva de uma educação com compromisso de contribuir para a formação de cidadãos responsáveis e em condições de tornarem-se participativos na melhoria das suas condições de saúde. Entendemos a contribuição da visita, evidenciada pelo estudo, como um passo importante para ampliação na concepção de saúde dos sujeitos envolvidos, que pode ser indutora de práticas para a melhoria da realidade.

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artigos

Colaboradores Vânia Rocha responsabilizou-se pela produção do texto. Virgínia Torres Schall e Evelyse dos Santos Lemos foram responsáveis pela orientação e revisão do artigo em todas as etapas de produção.

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ROCHA, V.; SCHALL, V.T.; LEMOS, E.S. La contribución de un museo de ciencias para la formación de concepciones sobre la salud de jóvenes visitantes. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.32, p.183-96, jan./mar. 2010. Las investigaciones en el campo de la educación indican la importancia de desarrollar acciones educativas a partir la realidad y de los conocimientos previos del público objetivo. Partiendo de este presupuesto, realizamos una investigación en el Museo de la Vida (Fundacão Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil), con el objeto de mejor comprender la influencia de la visita al museo en la formación de concepciones sobre salud. Han participado en la investigación 56 jóvenes estudiantes de enseñanza media de de escuelas públicas, integrantes del Proyecto Ciencia y Sociedad desarrollado en el museo. La metodología cualitativa ha contado con las siguientes estrategias: aplicación de 56 cuestionarios y la realización de entrevistas con 18 sujetos antes su visita; realización de 14 entrevistas después de la visita y de otras 12 un año más tarde. Los resultados indican que las actividades educativas ofrecidas han contribuido a establecer relaciones entre los principales temas planteados (historia, ciencia, tecnología, ambiente y salud), ampliando las conceptos sobre salud de los jóvenes participantes.

Palabras clave: Educación en salud. Salud y ambiente. Exposiciones científicas. Aprendizaje en museos. Aprendizaje significativo. Recebido em 28/01/2009. Aprovado em 06/09/2009.

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espaço aberto

O Sistema Único de Saúde como observatório de direitos universais: uma reflexão a partir das Ciências Sociais *

Paulo Roberto do Nascimento 1 Fabiola Zioni 2

Recursos limitados e gestão insuficiente são colocados atualmente como cerceadores do desenvolvimento do sistema de saúde no país. Entretanto a crise que acompanha a efetivação do Sistema Único de Saúde permite identificar elementos que vão além das dificuldades em racionalizar o uso dos recursos, sejam financeiros, sejam de gestão.

Novas sociabilidades ou nova sociedade? A crise da modernidade não é um tema recente. Os pilares contratuais sobre os quais se assentaram as sociedades ocidentais contemporâneas sofrem hoje intenso questionamento advindo das novas formas de sociabilidade impetradas pelo capitalismo financeiro transnacional. São muitos os autores que discutem essa nova sociabilidade, procurando evidências dos seus elementos constitutivos, basicamente, confrontando-as às formas de sustentabilidade que construíram o mundo moderno. Santos (1999) identifica a crise da modernidade como um conjunto de profundas transformações no próprio processo de inclusão/exclusão característico daquele modo crítico de viver em sociedade. Viver na modernidade é, em si, um viver crítico, de um equilíbrio precário alcançado por um duplo movimento, o qual, ao mesmo tempo que exclui, dissemina a percepção da possibilidade de inclusão. O contrato social, preconizado pelos clássicos da Teoria Política – Hobbes, Locke e Rousseau3 – que fundamentaram a sociabilidade moderna, sedimenta-a sobre a possibilidade de indivíduos, grupos sociais e sociedades inteiras emergirem do “estado de natureza” e se inserirem na modernidade. Essa possibilidade funciona como mecanismo legitimador da modernidade, a qual se assenta prioritariamente em mecanismos contratuais que operam de forma a incluir e excluir. Das lutas sociais travadas em decorrência dessa tensão, emerge todo um conjunto de institucionalidades que conformaram o modo concreto de viver em sociedades modernas. Santos identifica três principais grandes grupos de institucionalizações que conformam o viver moderno: instituições que socializam a economia, que politizam o Estado e que nacionalizam (uma determinada configuração interativa de espaço-tempo) a identidade cultural. Todas as formas sociais e históricas da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

*Adaptado de discussão introdutória à tese de Doutorado (Nascimento, 2006). Projeto submetido à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa de Saúde. 1 Departamento de Práticas de Saúde, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo (FSP/USP). Av. Dr. Arnaldo, 715. São Paulo, SP, Brasil. 01.246-904. pnasc@usp.br 2 Departamento de Práticas de Saúde, FSP/USP.

Para uma discussão comparativa sobre o contrato social nos três clássicos, ver Santos (2000), p.129 e seguintes.

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O Sistema Único de Saúde como observatório...

modernidade se enquadram nesse contorno institucional, assim como as mais diversas formas de lutas sociais, de modo que estas últimas - cuja expressão mais paradigmática são as lutas de classes entre os interesses antagônicos fundantes das sociedades capitalistas - não chegaram a questionar ou indicar um caminho que superasse os contornos modernos. Numa expressão: as lutas sociais modernas não apontaram formas de superação da modernidade, na exata medida em que se bastaram em disputar formas alternativas de institucionalidades modernas. Ocorre que, no último meio século, o tenso equilíbrio conflitual da modernidade passou a sofrer turbulências cada vez mais intensas, justamente pelo esboroamento das bases operativas de gestão do processo de exclusão/inclusão. Ou seja, a forma contratual que definia o que se incluía e, portanto, o que seria excluído do contrato, sofreu modificações tais que o resultado, atualmente vigente, ampliou as possibilidades de exclusão, ao mesmo tempo em que limitou os mecanismos de inclusão. Dito de modo direto: o equilíbrio precário sob o qual as sociedades modernas se acostumaram a viver ampliou sua precariedade e ousa balançar-se desprevenidamente numa corda-bamba, expulsando crescentemente segmentos sociais antes incluídos (pós-contratualismo), impedindo a entrada dos que estavam fora (précontratualismo) e procurando uma nova magérrima forma oscilante de equilibrar-se sobre um “estado de natureza” cada vez mais fornido de contingentes humanos e de elementos naturais. Obviamente, as institucionalidades construídas pelas lutas sociais modernas perdem capacidade de regulação dos conflitos, já que não se legitimam mais como expressão institucional de lutas em torno de um mesmo estatuto contratual. Sendo outros, ainda que incertos, os termos contratuais, pode-se então perguntar: sobre quais institucionalidades se daria o novo viver em sociedade? É, aliás, nesses termos que se indaga sobre a concepção de cidadania que se construiu nos últimos duzentos anos, cuja expressão máxima seria: o direito a ter direitos. Ou, em termos distintos: a universalidade dos direitos é realizável? Na verdade, o ponto central da discussão reside sobre quais serão os novos termos contratuais. Daí a importância da iniciativa de Santos (1999) em, às portas do futuro, arriscar uma proposição: já que finalmente estamos diante de uma possibilidade de discutir o contrato social em termos contramodernos, ou ao menos não-modernos, participarmos desse momento com um programa em mãos: superarmos a regulação social e buscarmos a emancipação. Buscar sociabilidades alternativas é uma exigência desses novos tempos. Os riscos que corremos em face da erosão do contrato social são demasiado sérios para que ante eles cruzemos os braços. Há, pois, que buscar alternativas de sociabilidade que neutralizem ou previnam esses riscos e abram o caminho a novas possibilidades democráticas. [...] Ante isso, há que definir de modo mais amplo os termos de uma exigência cosmopolita capaz de interromper o círculo vicioso do pré-contratualismo e do pós-contratualismo. A nível muito geral, essa exigência traduz-se na reconstrução ou reinvenção de um espaço-tempo que favoreça e promova a deliberação democrática. (Santos, 1999, p.109)

E mais adiante: [...] penso ser possível definir algumas das dimensões das exigências cosmopolitas da reconstrução do espaço-tempo da deliberação democrática. O sentido último dessa exigência é a construção de um novo contrato social. Trata-se de um contrato bastante diferente do da modernidade. É antes de mais um contrato mais inclusivo porque deve abranger não apenas o homem e os grupos sociais, mas também a natureza. Em segundo lugar, é mais conflitual porque a inclusão se dá tanto por critérios de igualdade como por critérios de diferença. Em terceiro lugar, sendo certo que o objetivo último do contrato é reconstruir o espaço-tempo da deliberação democrática, este, ao contrário do que sucedeu no contrato social moderno, não pode confinar-se ao espaço-tempo nacional estatal e deve incluir igualmente os espaços-tempos local, regional e global. Por último, o novo contrato não assenta em distinções rígidas entre Estado e sociedade civil, entre economia, política e cultura, entre público e privado. A deliberação democrática, enquanto exigência cosmopolita, não tem sede própria, nem uma materialidade institucional específica. (Santos, 1999, p.112) 200

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Paulo Roberto do Nascimento; P.R., ZIONI, F.

4 A esse respeito é interessante a leitura de Almeida (1997), ao situar as justificativas teóricas para as reformas dos sistemas de saúde, nos anos oitenta, como fundamentadas nas mesmas bases que procuravam “decretar” o fim do ‘welfare state’ (p.181). Quanto às reformas de Estado, referimo-nos ao receituário neoliberal de retração da intervenção keynesiana do Estado na economia, promovendo a desregulamentação do sistema e a privatização do setor estatal (Ugá, 1997).

espaço aberto

Direitos universais A defesa dos direitos universais, representados aqui pelos princípios constitutivos do SUS, se apresenta, nesses termos, como um tema anacrônico, tanto para os que acreditam que estes são tempos modernos, nos quais estaria ocorrendo apenas um refluxo do ‘welfare state’, associado às reformas estruturais do Estado4, quanto para os que veem uma contemporaneidade pós-moderna, argumento segundo o qual o contrato social moderno, que pressupunha inclusão, se desfez. Da mesma forma, acrescentamos, os obstáculos a sua concretização parecem incontornáveis quando afrontamos a inserção subordinada que se oferece aos países em desenvolvimento no mundo globalizado, diante do qual portam capacidade financeira reduzida, baixo nível de desenvolvimento científico e tecnológico, reduzida capacidade de gerenciar complexidade. Por qualquer das três perspectivas, são grandes os riscos para que o SUS se viabilize. Assim, abrem-se os questionamentos: qual a estratégia possível para que direitos universais sejam assegurados?; os espaços participativos e negociais do SUS têm contribuído para assegurar tais direitos?; ou os têm flexibilizado, restringindo a abrangência dos direitos?; haveria uma necessidade de flexibilizar, ditada pelos novos tempos, entendida como forma de viabilizar diante da escassez?; poderá a equidade ser um conceito referente à maior agilidade para alcançar as necessidades mais prementes? ... sem que isso signifique reduzir universalidade e integralidade?

SUS – observatório de direitos universais É conveniente lembrar que o problema formulado por Santos, colocado pela crise da modernidade, atinge de frente o caminho tomado no Brasil, na década de 1980, ao se constituir, finalmente, a estrutura da Seguridade Social, dentro da qual situamos o Sistema Único de Saúde. Vejamos, em termos gerais, a trajetória trilhada até o SUS. Podemos dizer que se construiu no país uma forte tradição na defesa da saúde da população (Escorel, 1998; Draibe et al., 1990; Oliveira, Teixeira, 1986; Braga, Paula, 1981). Políticas públicas, incitadas pelo setor produtivo e orientadas para o controle de doenças, dataram a origem – no final do século XIX - de nossa preocupação em combater, de forma sistêmica, os males que acometiam a saúde da população trabalhadora e ameaçavam os ganhos dos setores econômicos sempre os mais pujantes da economia nacional. Até a década de 1960, o setor saúde foi essencialmente caracterizado pela preponderância de ações públicas de caráter preventivo, orientadas por doenças e incitadas pelos potenciais e reais prejuízos à economia nacional. O perfil de morbidade alterou-se muito naquele período, especialmente devido às mudanças do perfil demográfico da população e ao aprofundamento dos processos de urbanização e industrialização. As massas de trabalhadores urbanos trouxeram para o Estado uma nova configuração do rol de suas preocupações, gerando todo um conjunto de direitos previdenciários e trabalhistas, reflexo do que acontecia em todo o mundo que se industrializava e competia no mercado de produtos e serviços. Necessidades ligadas à cura de doenças - não à prevenção – emergiram, inscrevendo-se nos planos de aposentadorias e pensões, regulamentados pelo Estado. Entretanto, o caráter preponderante das ações públicas era o preventivo. O final da Segunda Guerra Mundial transformou definitivamente esse cenário, fazendo aportar, no país, como sinônimo de saúde, os atos médicos medicamentosos e terapêuticos associados aos centros hospitalares e orientados pelo mercado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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As primeiras iniciativas de medicina de grupo datam, no país, dos anos sessenta. Esse momento coincide com a tão almejada unificação dos institutos e caixas de aposentadorias e pensões, reunidos, durante o regime militar, no Instituto Nacional de Previdência Social – INPS (Malloy, 1985). Sob o legítimo argumento de levar à maior fatia possível da população os direitos previdenciários, que seriam de todos os trabalhadores, atingiu-se, também, o objetivo de capitalização do Estado, mediante contribuição previdenciária, para o financiamento das obras necessárias ao desenvolvimento econômico. Entretanto, o gigantismo do aparelho público gerado, associado à falta de controle público dos recursos e de sua participação na formulação das políticas e prioridades – possibilitado pela ausência de participação política e cidadania ativa impetrada pelo regime de exceção – cedo produziu uma infindável diversidade de modalidades de fraudes e desvirtuamentos da finalidade pública do sistema previdenciário. Aspecto adicional, nada irrisório para compreendermos a situação, era dado pelo caráter médico-hospitalar da atenção à saúde embutida no rol de direitos e benefícios previdenciários. Na década de 1960, o segundo maior orçamento brasileiro era o do sistema de previdência social. O cenário era o de uma grande quantidade de recursos, administrada longe dos olhos da população, direcionada aos projetos nacionais de desenvolvimento econômico fundamentado no mercado e financiadora da atenção médico-hospitalar, num mundo que, encantado com o desenvolvimento tecnológico, aprendia a reverenciar soluções miraculosas para seus problemas de saúde: o medicamento, o aparelho diagnóstico, as práticas terapêuticas em geral, o centro hospitalar. Uma nova consciência, um novo conhecimento tomava conta da população, que depositava, cada vez mais, a solução dos problemas de saúde nesses pequenos aparatos exógenos, externos a seu corpo ou ambiente. Os problemas do sistema de saúde, por sua vez, produziram toda uma onda de aparatos programáticos, políticas públicas racionalizadoras dos recursos e sistematizadoras da participação do Estado na defesa da saúde da população. Dos anos setenta e oitenta provieram: o Sistema Nacional de Saúde – SNS, o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento – PIASS, o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde - Prev-saúde, as Ações Integradas de Saúde – AIS e o Sistema de Assistência Médico-hospitalar da Previdência Social – SAMHPS, as duas últimas iniciativas originadas do Programa de Reorganização da Assistência à Saúde, elaborado no âmbito do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária - CONASP – e o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde - SUDS (Almeida, Chioro, Zioni, 2001; Cohn, s/d; NEPP, 1986). O Sistema Único de Saúde – SUS é o resultado histórico dessas experiências, onde erraram e onde acertaram. Mas não só: o seu surgimento se deve muito ainda ao processo de redemocratização do país, conquistado pelos movimentos e forças da sociedade, em luta contra a ditadura. Em 1986, as forças sociais reunidas na VIII Conferência Nacional de Saúde definiram o estado de saúde de uma população como o resultado do conjunto das diversas políticas setoriais: econômica, salarial, educacional, ambiental, habitacional, de alimentação e nutrição, de transportes, cultural, de saúde e outras. Ou seja, a saúde não é tão somente resultado das realizações do setor saúde. Os esforços do movimento sanitário, associados aos movimentos de redemocratização do país, dos quais aquele participava, inscreveram os princípios do SUS na Constituição de 1988. A saúde, como direito universal, demandava ações públicas voltadas à prevenção, promoção, cura e reabilitação (TCU, 1999). À restrita cobertura populacional proporcionada pelo sistema previdenciário, o Movimento da Reforma Sanitária respondeu propondo a universalidade da cobertura, nos moldes de um sistema de seguridade social, inserido no texto constitucional. À tradicional separação entre níveis de atenção – curativo e preventivo – operados respectivamente pelo sistema médicohospitalar previdenciário e pelas ações de saúde pública do Setor Saúde, o Movimento respondeu com o princípio de integralidade da atenção. À diferença flagrante de atendimento entre segmentos previdenciários distintos e entre a população previdenciária e os excluídos de qualquer atenção emerge o princípio redistributivo da equidade. À exclusão dos trabalhadores e usuários das instâncias decisórias do sistema de saúde, agravada pelo período de regime burocrático-autoritário, fez o Movimento aportar a diretriz de controle do sistema mediante a participação da comunidade. Enfim, como resposta à forte centralização decisória que marcava 202

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5 Particularmente informativo sobre o papel dos organismos internacionais na redefinição das agendas sociais dos estados nacionais é o texto de Costa (1998), especialmente o capítulo cinco: O Banco Mundial e a Política Social nos anos 90: a agenda para a reforma do setor saúde no Brasil.

6 Ver Santos e Avritzer, 2002.

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por inteiro o conjunto de instâncias de atenção à saúde, mas também como princípio doutrinário de crença na sociedade política e civil de onde deveria emanar os determinantes do sistema, vislumbrou-se a diretriz da descentralização como o mais importante dos instrumentos orientadores da organização do sistema. (Nascimento, 2002, p.18)

Note-se que os países centrais discutiam o refluxo do Estado de Bem-Estar Social quando estabelecemos, na Constituição de 1988, o conceito de Seguridade Social. O problema não seria tão relevante se aquele refluxo não estivesse inserido no movimento histórico de crise da modernidade. A quebra do asseguramento de direitos universais, a redução do tamanho e das funções do Estado, a flexibilização do funcionamento das instituições estatais, uma nova forma de relacionamento entre os espaços público e privado e o questionamento das formas democráticas tradicionalmente aceitas de gestão política dos conflitos são algumas das manifestações da crise do contrato moderno. Todas elas estão presentes, na década de 1980, nas formulações dos organismos internacionais de gestão de conflitos5. Assim: o que seria mais confrontador da crise do que uma institucionalidade que propugnasse direitos universais a uma atenção estatal integral? O espaço-tempo nacional estatal manifestou, naquele momento, certo grau de independência em relação ao sentido que a crise assumia no plano internacional. Colocado em termos de confronto, intencional ou não, o SUS porta um certo caráter de resistência ao movimento de exclusão, mesmo que tenhamos chegado tarde ao futuro. Resistência que, em todo caso, longe de ser anedótica, pode constituir uma experiência de construção da nova sociabilidade de que Santos nos fala; já que o argumento central da sua tese reside num otimismo: se está para ser feito, quem o fará? “Não podemos ficar de braços cruzados...” Assim, melhor que olhemos para as tentativas universalizantes, menos como forma de resistência, e, mais apropriadamente, como projetos de emancipação a serem testados em plena crise da modernidade; já que, como depreendemos, a crise instaura uma era de tentativas, possibilidades, até que se configure a nova sociabilidade, por mais instável e excludente que possa ser. Importante também lembrar, ainda conforme Santos, o papel a ser desempenhado pelas “deliberações democráticas”. Estranhamente, a democracia6, tão descaracterizada e desdenhada, quando comparada com a força das institucionalidades econômicas, ou justamente por decorrência da ação dos organismos multilaterais, assume, na sua análise, um papel central no desenrolar próximo. Trata-se de trazer para o cenário político-econômico-social as populações e os indivíduos, talvez como último estoque de forças a ser revitalizado, para contagiar o novo contrato: enfim, participarão ou não da elaboração dos termos do novo contrato? O fortalecimento dos mecanismos e a ampliação dos espaços de exercício da democracia são imprescindíveis para o estabelecimento do novo pacto. O que, então, faz do SUS uma realidade, não um experimento, para a observação sobre as possibilidades de preservação de direitos universais, vale dizer, de questionamento das bases que constituirão a sociedade que se cria na atualidade. Reconhecendo a importância das iniciativas de se constituírem observatórios que monitoram as políticas do setor, no afã de conduzi-las ao caminho de atender as necessidades da população, há que se observar também as possibilidades de preservação e efetivação dos seus princípios constitutivos e, quando não, se a flexibilização que sofreram aponta para a construção de institucionalidades que flexibilizam ou não os princípios universalizantes. Nessa perspectiva deve ser incentivado o debate sobre gestão e financiamento, ultrapassando os limites impostos pelo questionamento sobre a racionalização ou otimização dos recursos disponíveis. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Colaboradores Paulo Roberto do Nascimento e Fabiola Zioni participaram de todas as etapas de elaboração deste artigo, gerado com base na tese de doutoramento do primeiro, com orientação do segundo autor.

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VIANNA, M.L.W. (Orgs.). A miragem da pós-modernidade: democracia e políticas sociais no contexto da globalização. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p.81-99.

Há uma ampla bibliografia sobre a crise da modernidade. Uma certa vertente compreende que estão ameaçados vários pilares da vida social moderna, dentre eles as conquistas representadas pelos direitos universais. A literatura da Saúde Coletiva também aponta o Sistema Único de Saúde (SUS) como uma ocorrência contrária ao movimento mundial de flexibilização daqueles direitos. Os princípios de universalidade e integralidade, além de constituírem um desafio institucional, financeiro, político e social, expressam também a decisão da sociedade de implementar direitos universais. Utilizamos o instrumental teórico de Souza Santos para caracterizar o SUS como um observatório sobre a efetivação de tais direitos. Ressurge a importância do remodelamento institucional e das deliberações democráticas no estabelecimento do contrato social.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Contrato social. Direitos humanos. The National Health System as an observatory for universal rights: a reflection based on the Social Sciences The bibliography on the crisis of modernity is wide-ranging. One particular school of thought takes the view that various pillars of modern social life are under threat: among them the achievements represented by universal rights. The public health literature also points out that the National Health System (SUS) is a development going against the worldwide movement towards flexibilization of these rights. The principles of universality and comprehensiveness not only constitute an institutional, financial, political and social challenge, but also express society’s decision to implement universal rights. We have used Souza Santos’s theoretical instrument to characterize SUS as an observatory regarding effective application of these rights. Institutional remodeling and democratic deliberations for establishing a social contract emerge again as matters of importance.

Keywords: National Health System. Social contract. Human rights. El Sistema Único de Salud como observatorio de derechos universales: una reflexión a partir de las Ciencias Sociales Hay una amplia bibliografía sobre la crisis de la modernidad. Cierta vertiente comprende que están amenazados varios pilares de la vida social moderna, entre los cuales las conquistas representadas por los derechos universales. La literatura de la Salud Colectiva también señala el Sistema Único de Salud (SUS) como una ocurrencia contraria al movimiento mundial de flexibilización de tales derechos. Los principios de universalidad e integralidad, además de constituir un desafío institucional, financiero, político y social, expresan también la decisión de la sociedad de implementar derechos universales. Utilizamos el instrumental teórico de Souza Santos para caracterizar el SUS como un observatorio sobre la efectuación de los derechos universales. Resurge la importancia de la remodelación institucional y de las deliberaciones democráticas en el establecimiento del contrato social.

Palabras clave: Sistema Único de Salud. Contrato social. Derechos humanos. Recebido em 30/06/2008. Aprovado em 05/01/2009.

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Promoção da saúde e redução das vulnerabilidades: estratégia de produção de saberes e (trans)formação do trabalho em saúde com base na Ergologia

Suze Rosa Sant`Anna1 Élida Azevedo Hennington2

Introdução O presente ensaio tem como perspectiva a tentativa de percorrer um novo caminho relacionado ao trabalho em saúde, fruto da incorporação de saberes e práticas surgidas ao longo do século XX, e contribuir para a reflexão sobre a formação de trabalhadores como sujeitos3 sociais capazes de concorrer para a transformação da realidade no campo da Saúde Coletiva. A Saúde Coletiva, campo de saber e prática social fruto do movimento sanitário, surgida no Brasil na década de 1970, configurou-se a partir da articulação de quatro vetores – práticas técnicas, ideológicas, políticas e econômicas – desenvolvidos no âmbito acadêmico, nas organizações de saúde e em instituições de pesquisa (Paim, 2006). Tem-se verificado que novas concepções foram incorporadas no âmbito de cada vetor, fato que tem contribuído para a reconfiguração dos saberes e práticas do campo. Apesar do entendimento de que todos os vetores estabelecem entre si relações de interseção no plano de produção em saúde, abordaremos, neste artigo, o de caráter ideológico, pois se entende que este exerce influência nem sempre clara, mas decisiva, na produção em saúde. No que diz respeito aos movimentos ideológicos, Paim (2006) diz que a Saúde Coletiva recorreu ao diálogo e à crítica aos movimentos denominados Preventismo, Medicina Social, Saúde Comunitária, Medicina de Família e, atualmente, encontrase em diálogo com os chamados movimentos ideológicos contemporâneos, o Movimento da Promoção da Saúde e o da Nova Saúde Pública. A incorporação de conceitos desses novos movimentos ideológicos impôs e impõe, ao campo, novos saberes e, consequentemente, novas práticas com a finalidade de transformar o olhar individualista do campo da saúde, fortalecido pelo paradigma biomédico, para dimensões mais coletivas, com objetivo de motivar mudanças sanitárias e sociais. Neste sentido, o movimento da Nova Saúde Pública – termo que vem sendo difundido desde o encontro intitulado Interregional Meeting on New Public Health, ocorrido em Genebra no ano de 1995 –, proposto pelos países hegemônicos e apoiado pela OMS, defende teoria assentada em bases científicas das ciências biológicas, sociais e comportamentais, e estabelece quatro tarefas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/ Fiocruz. Av. Brasil, 4365 Manguinhos, Rio de Janeiro CEP: 21040-360. suze.santanna@ipec. fiocruz.br 2 Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/ Fiocruz.

Definido por Ayres (2001, p.65) como “ser autêntico, com necessidades e valores, capaz de produzir coisas e transformar sua própria história”. 3

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básicas: prevenção das doenças não-infecciosas, prevenção das doenças infecciosas, promoção da saúde, melhoria da atenção médica e da reabilitação. Entre seus conceitos e estratégias, foram apresentados: a promoção e educação em saúde, o marketing social, a participação comunitária, as políticas públicas de saúde, que vêm sendo incorporados pelo movimento da Saúde Coletiva brasileira (Castiel, Diaz, 2007; Paim, 2006). Embora o movimento da Nova Saúde Coletiva seja uma proposta relativamente recente, muitos dos elementos incorporados nos seus documentos de origem já se encontravam presentes no movimento da promoção da saúde que surgiu com a Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, que teve, como um de seus desdobramentos, a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde ocorrida em 1986 no Canadá, na qual foi publicada a Carta de Ottawa, documento fundamental para divulgação e difusão do conceito de promoção da saúde internacionalmente. Dentre as concepções idealizadas pelo movimento da Promoção da Saúde, destaca-se a necessidade de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, cujo princípio geral orientador é a necessidade de encorajar a ajuda recíproca – cada um a cuidar de si próprio, do outro, da comunidade e do meio ambiente natural (Brasil, 2006). De forma crítica, Castiel e Diaz (2007) enfatizam que a saúde promocional escapa do âmbito da medicina, da fisiologia, da epidemiologia, que tem caráter predominantemente individualista e voltado ao corpo do paciente como fonte primária e objeto da saúde, para percorrer outros caminhos, nos quais vigoram os discursos da moral e do bom costume. Além disso, esses autores defendem que a saúde promocional é portadora de concepções biopolíticas da subjetividade somática que erige o corpo em sua maleabilidade automanipulável como matriz de identidade. Essa concepção de biopolítica, segundo Ortega (2004), surge por volta dos anos 60 como um projeto de cunho conservador mediante os excessos daquela época, como a promiscuidade sexual e o culto ao uso de drogas. Com base nessa concepção, a saúde deixou de ser a “vida no silêncio dos órgãos”, tão difundida pelo modelo biomédico, para constituir-se em uma biopolítica das sociedades que se estrutura sob uma nova moral, descrita por Sfez (1996) como moral do bem comer (sem colesterol), do beber um pouco (de vinho tinto para as artérias), de ter práticas sexuais de parceiro único (para evitar o perigo da aids). Ou seja, trata-se de restaurar a moralidade “plugando-a” de novo no corpo. Essas novas práticas, ao enfatizarem os cuidados de saúde do indivíduo para consigo mesmo, contribuíram para a construção das bioidentidades, ou seja, a formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna (Ortega, 2004). Com base neste conceito de biopolítica e busca da autonomia do indivíduo para com sua saúde, o campo de práticas da Saúde Coletiva – ou seja, o campo da prevenção das doenças e promoção da saúde – passou a se estruturar no conhecimento sobre os riscos à saúde e as formas como os indivíduos percebem, priorizam e enfrentam esses riscos. E embora tenha havido a tentativa de aproximação entre riscos epidemiológicos, identidades e subjetividades com objetivo de se obterem práticas que operem com a ideia do autocuidado, mudanças no estilo de vida na busca da saúde e evitação das situações de risco, esta tentativa não foi suficiente para garantir a melhoria da qualidade de vida e saúde dos indivíduos, passando a ser alvo de críticas, conforme refere Castiel (2003, p.92): os discursos da promoção da saúde e da evitação de riscos parecem implicitamente refletir a ótica das formações neoliberais, individualistas, que geram grupos de indivíduos entregues a si próprios e à preocupação com o desempenho baseado em condições individuais quanto a recursos e capacidade de incorporar semimitos que sustentem uma identidade frágil, povoada cada vez mais por um imaginário composto por elementos vinculados a “questões de saúde”.

Neste sentido, reconhece-se que esses novos discursos ainda não conseguem proporcionar compreensão satisfatória diante da complexa dinâmica entre a situação de saúde individual/coletiva e as aceleradas mudanças socioculturais e subjetivas que ainda se mostram limitadamente inteligíveis (Castiel, Diaz, 2007). Com base nestas limitações percebidas, outros conceitos e estratégias começaram a surgir no campo das práticas de prevenção e promoção da saúde, sendo o conceito de vulnerabilidade 208

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social um conceito/estratégia de redirecionamento destas ações para dimensões mais contextuais e sociais. Assim, conforme relata Porto (2007), reconhecer a vulnerabilidade social diante de um agravo ou doença é compreender os riscos de forma integrada e contextualizada, trazendo à tona, simultaneamente, questões éticas, políticas e técnicas que conformam a distribuição dos riscos nos territórios e a capacidade das populações de enfrentá-los. Ayres (2001) também admite que o conceito de vulnerabilidade, oriundo do campo do Direito, é uma tentativa de deslocar os horizontes normativos das práticas de saúde para uma subsunção do ideal de controle da doença no respeito e promoção dos direitos humanos. Ou seja, não se trata de abolir a ciência do âmbito desses regimes, mas de resgatar a dignidade de outros tipos de sabedoria na formação das verdades úteis para a construção da saúde, sejam eles conhecimentos acadêmicos não-normológicos, como a filosofia, o direito e certos ramos da ciência humana, e até as diversas sabedorias práticas transmitidas secularmente nas diferentes tradições culturais. Segundo Munoz Sanches e Bertolozzi (2007), para intervir em situações de vulnerabilidade, é imperativo o desenvolvimento de ações que envolvam resposta social, descrita por Ayres (1999) como a participação ativa da população na procura de estratégias solidárias e passíveis de execução e encaminhamento/equacionamento de problemas e necessidades de saúde. A aplicação do quadro conceitual da vulnerabilidade pode fornecer subsídios que vão desde o desenvolvimento de ações, instrumentos tecnológicos, bem como práticas no campo da prevenção e redução das vulnerabilidades (Ayres et al., 2003). Trazendo a discussão para o contexto da formação em saúde, considera-se que o trabalho em saúde deve ser repensado, de forma a incorporar o conceito da vulnerabilidade social no sentido de resgatar os outros saberes, além do científico, para a construção das práticas de saúde. Entretanto, para que esta (trans)formação ocorra, entendemos que seja necessário os sujeitos (trabalhadores em formação) serem convocados a repensar suas atividades até então centradas no modelo biomédico, individualista e normativo, ao lado de outros modelos capazes de fazê-los experimentar, renormalizar e transformar as suas práticas de modo a substituir o ímpeto normativo pelo esforço do diálogo entre saberes científicos e não-científicos. Mas, como convocar o sujeito a incorporar essa nova produção de conhecimento no trabalho em saúde? Com base neste questionamento e entendendo que a formação dos profissionais de saúde se dá a partir da experiência da atividade de trabalho em saúde, pretende-se, com este ensaio, discutir as possibilidades teóricas e empíricas que se abrem ao adotarmos o referencial da Ergologia no campo da formação destes trabalhadores.

As contribuições teórico-conceituais da Ergologia para renovação do trabalho em saúde A Ergologia, disciplina do pensamento própria às atividades humanas, que conforma o projeto de melhor conhecer e, sobretudo, de melhor intervir sobre as situações de trabalho para transformá-las, foi iniciada por Yves Schwartz e por uma equipe de pesquisadores, em Aix-em-Provence, na França, na década de 1980, com objetivo de ser uma disciplina diretamente relacionada ao trabalho. Trata-se de uma démarche que reconhece a atividade como debate de normas (Schwartz, Durrive, 2007). A proposta da Ergologia é discutir o trabalho e produzir conhecimento sobre ele considerando: o conhecimento e a experiência dos trabalhadores, o geral e o específico da atividade, suas normas e variabilidades, e a exigência da conversa entre as várias disciplinas, além do constante questionamento a respeito de seus saberes (Hennington, 2008). Para Schwartz (2000), a Ergologia não é, portanto, uma “disciplina” no sentido de “um novo domínio do saber”. É uma disciplina própria para as atividades humanas e distinta da disciplina epistêmica que, para produzir saber e conceito no campo das ciências “experimentais”, deve, ao contrário, neutralizar os aspectos históricos. A démarche ergológica, mesmo tendo como objetivo construir conceitos rigorosos, deve indicar nestes conceitos como e onde se situa o espaço das (re)singularizações parciais inerentes às atividades de trabalho. Fígaro (2007) se refere à Ergologia como uma abordagem teórico-prática capaz de problematizar a complexidade da atividade humana e distinguir os diferentes fatores pertinentes a ela. Diz também que ela propõe uma postura epistemológica que coloca, em articulação, os conceitos das disciplinas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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científicas (abstratos, não-aderentes) com os conceitos da experiência (da vida, aderentes), ou seja, propõe-se a se aproximar desse mundo complexo que é o homem e sua atividade de trabalho. Entendendo o trabalho em saúde como “atividades vivas” postas em ação pelos trabalhadores, sujeitos que, em situação de trabalho, são capazes de inventar e reinventar modos de fazer também se transformando – a si próprios e aos coletivos (Santos-Filho, 2007). O trabalho como atividade, ou melhor, atividade humana, automaticamente pressupõe que estamos convocando o sujeito no trabalho, uma vez que o trabalho jamais é feito sem o trabalhador. Essa reflexão centra-se no pressuposto de que os que lidam com o trabalho em saúde devem reconhecer o profissional da saúde como sujeito de seu saber e seu fazer, e o seu trabalho com uma inserção e atuação que o leve à ampliação da sua capacidade de análise e de proposição no âmbito do coletivo, constituindo-se como equipes, exercitando a quebra de conhecimentos disciplinares estanques e avançando na atuação transdisciplinar (Santos-Filho, 2007). Não é possível desvincular o conjunto trabalhador-trabalho no processo de produção da saúde, pois, segundo Barros, Mori e Bastos (2007), quando os trabalhadores são convocados no processo de trabalho, eles “usam de si”, utilizam suas potencialidades, ou seja, são gestores de seus trabalhos e produtores de saberes e novidades. A abordagem ergológica de Schwartz e Durrive (2007) assevera que, quando o trabalhador se encontra no trabalho, ele precisa fazer “uso de si”, ou seja, uso de suas próprias capacidades, de seus próprios recursos e de suas próprias escolhas para realizar o trabalho, pois toda situação de trabalho é lugar de uma “dramática” subjetiva, um destino a ser vivido, onde se negociam circunstâncias pessoais, históricas por meio do “corpo-si” do trabalhador. É por intermédio do seu “corpo-si”, entidade mais enigmática que a definição de sujeito e subjetividade, que o trabalhador deixa de ser objetivado pelo trabalho e realiza sua atividade através do “uso de si”. Para o autor, o “corpo-si” do trabalhador não é inteiramente biológico nem inteiramente consciente ou cultural, e sim o resultado de toda sua história, de sua experiência de vida, suas paixões, seus desejos e patrimônio. É fazer escolhas para fazer valer suas próprias normas de vida, produzindo formas de “des-anonimar” o meio (Barros, 2007; Schwartz, Durrive, 2007). De acordo com Schwartz e Durrive (2007), para mobilizar o “corpo-si” numa situação de trabalho, é necessário mobilizar competências tendo em vista um objetivo comum. O autor ressalta, porém, que operacionalizar o que seriam as competências da atividade em uma situação de trabalho é tarefa difícil, tendo em vista que as situações de trabalho são imprecisas, jamais descritíveis e padronizáveis. Entretanto, a noção de competência é legítima e reconhecida quando pessoas engajadas numa operação respondem positivamente e operam com eficácia, tendo em vista esse objetivo comum. Desse modo, percebe-se que existem três elementos presentes na noção de competência. São eles: a apropriação de um certo número de normas antecedentes, ou seja, conceitos que foram transmitidos e codificados para situações e trabalho; a presença de algo inteiramente diferente e inédito em relação às normas antecedentes da situação de trabalho; e, por fim, a exposição ao inédito, quando as pessoas devem remeter-se a si próprias para gerir o inédito, articulando uma série de experiências heterogêneas, fazendo escolhas para “agir em competência”. A Ergologia considera o conjunto em interpelação: de uma parte, homens e mulheres, e de outra parte, suas histórias, seu meio, seu meio de vida, no seio do qual se encontra o trabalho (Schwartz, Durrive, 2007). Segundo Brito (2005), o ângulo a partir do qual Schwartz observa o trabalho é aquele que tende a ser negado ou mesmo ignorado pelas organizações. É o ângulo da vida, do trabalho vivo; é encontrar a vida presente no processo de trabalho. Com base na perspectiva ergológica de que há necessidade de experimentação para que se construam competências para gestão de situações de trabalho (Schwartz, Durrive, 2007); e, entendendo-se que o trabalho em Saúde Coletiva vem se complexificando e incorporando novos conceitos e práticas (Hennington, 2008), constitui-se um desafio, portanto, renovar a atividade do trabalho em saúde por meio do investimento de novas propostas e estratégias que direcionem e insiram os trabalhadores da saúde no cotidiano de práticas e ações de saúde, desde o início de sua formação, numa perspectiva menos individualizante e mais contextual e coletiva, considerando que o “trabalho vivo” em saúde deve ter ênfase na promoção da saúde e redução das vulnerabilidades.

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A Ergologia e seu dispositivo dinâmico de três polos: possíveis contribuições na formação e produção de saberes para (trans)formação do trabalho em saúde Ao refletir sobre a necessidade de buscar caminhos que pudessem fazer com que estes profissionais em formação experimentassem, em sua vida cotidiana, as práticas de promoção da saúde - lembrando que cuidar da saúde faz parte da vida de cada um -, tornou-se necessário buscar, na literatura, uma abordagem que pudesse contribuir no processo de formação destes profissionais. Neste sentido, encontramos, na Ergologia de Schwartz e sua proposta do dispositivo dinâmico de três polos, a metodologia capaz de contribuir para repensar a formação de profissionais com capacidade de fazer dialogar os conhecimentos científicos com os não científicos, ou seja, entender que a saúde não é apenas assunto dos profissionais de saúde, mas também daqueles que vivem a experiência de conquista da saúde em determinado contexto histórico-social, permeado por pressupostos éticos e epistemológicos que têm como horizonte o bem comum. A proposição desse dispositivo ampliou e aprofundou o conceito de “Comunidade Científica Ampliada” (CCA), desenvolvido por Ivar Oddone, um militante do Movimento Operário Italiano, que, por volta da década de 1970, propõe uma nova concepção de pesquisa, uma forma original de pesquisa-ação em torno do tema das mudanças das condições de vida e trabalho, que articulava os saberes de trabalhadores e de pesquisadores com objetivo de conhecer a complexidade real do trabalho. Sua proposta tinha como objetivo oferecer, aos trabalhadores e pesquisadores, uma forma de aprenderem e utilizarem a experiência acumulada nos centros de pesquisa e nos coletivos de trabalho para que destes dois tipos de experiências emergisse uma, científica, que priorizasse as demandas das categorias profissionais, onde todos os atores se tornariam coautores da pesquisa, e portadores de saberes específicos – exaltando, assim, a iniciativa dos trabalhadores para modificar o ambiente de trabalho (Barros, Heckert, Marchiori, 2006; Schwartz, 2000). Segundo Souza e Bianco (2007), a principal intenção do grupo era colocar em confronto os saberes formais dos pesquisadores e os saberes considerados informais dos trabalhadores, emergindo daí uma nova concepção de pesquisa e, consequentemente, de produção do saber sobre o trabalho. Apesar da grande contribuição dessa proposta, Schwartz (2000) revela que a CCA apresenta limites, uma vez que propunha a primazia do campo científico na produção de conhecimento sobre a atividade, não definindo claramente as competências próprias de cada um dos parceiros, além de não deixar claro o projeto de trabalho conjunto. Schwartz, ao retomar o conceito de atividade oriundo da ergonomia, como atividade humana que se constitui de renormalização parcial dos meios da vida, propõe o dispositivo dinâmico de três polos (DD3P) que tem por objetivo resgatar um polo que se encontrava pouco valorizado na proposta de Oddone, Gastone e Gloria (1986), o terceiro polo. Polo este que articula um certo modelo de humanidade, que faz com que o protagonista da atividade olhe o seu semelhante como alguém que está em atividade, ou seja, atravessado por dramáticas (focos de debates, debates de normas, resingularizando uma situação) – tanto quanto ele. O dispositivo dinâmico de três polos é uma espécie de dialética, que pode ser esquematizado de forma espiral, por onde circulam os saberes, tanto para conhecer as normas antecedentes de uma atividade, como para compreender os recentramentos operando na atividade (Schwartz, Durrive, 2007). Pode ser considerado um meio de ação com uma filosofia geral e, inclusive, ter uma grande diversidade de aplicação, a exemplo de: Trinquet (1996), que desenvolveu o dispositivo em uma empresa com objetivo de controlar os riscos do trabalho; Durrive (2004), que o utilizou no campo da formação, e Figaro (2008), que adaptou o dispositivo proposto por Schwartz e esquematizado por Durrive no campo da comunicação. O esquema elaborado por Luis Durrive a partir do dispositivo dinâmico de três polos no campo da educação foi proposto para minimizar a dicotomia encontrada entre a teoria e prática presentes na formação profissional, na qual se percebeu que os alunos em formação - que alternavam períodos de formação na escola (teoria) e períodos em campo de trabalho (prática) - tinham, muitas vezes, dificuldade de aprendizado por não conseguirem realizar a gestão da alternância entre os saberes constituídos na teoria e os saberes da prática. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 1. Dispositivo dinâmico de três polos proposto por Schwartz, esquematizado por Durrive (Schwartz, Durrive, 2007, p.274) e adaptado por Fígaro (2008).

Dispositivo Dinâmico em três polos Neste esquema, o polo A representa o polo dos saberes e valores constituídos nos universos científicos, ou seja, os saberes que foram construídos e estão disponíveis para antecipar a atividade. O polo B, representado pelos saberes processados e reprocessados na atividade, consiste no polo onde se localizam o aprendiz e as pessoas que trabalham com ele: é a reunião de diversos protagonistas em torno do que se passa no trabalho, tanto para olhar o trabalho como a aplicação dos saberes constituídos e disponíveis no polo A, como para olhar o trabalho como momento único, onde os protagonistas deverão ser inventivos para encontrar soluções para o trabalho. E, por fim, o polo C, que consiste no polo do questionamento, é descrito como eixo socrático4 em duplo sentido, onde a reunião dos diferentes protagonistas em torno do que se passa no trabalho supõe uma espécie de exigência que é, ao mesmo tempo, uma exigência de aprendizagem, de domínio de conceitos e verbalização do trabalho e, também, uma exigência de imprendizagem (Schwartz, Durrive, 2007), descrita como uma forma de humildade em face da atividade de trabalho que representa uma mina de informações acerca da forma com que se podem colocar em uso os saberes constituídos no polo B. A utilização deste esquema retrata que, no encontro do trabalho, nunca se sairá incólume, pois a dinâmica de três polos engaja todos os seus protagonistas. Entendendo que há múltiplas formas de representar o dispositivo, cuja proposta é problematizar e produzir conhecimento, mesmo que de forma parcial, sobre a atividade humana (Fígaro, 2008), ressaltamos a importância de se utilizarem a Ergologia e o dispositivo dinâmico de três polos como estratégia metodológica no campo da formação de profissionais de saúde. 212

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Sócrates (469-399 a.C.) desenvolveu uma filosofia mediante diálogos críticos com seus interlocutores.

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À guisa de conclusão Nas últimas duas décadas, muitas discussões e conceitos foram introduzidos no campo da Saúde Coletiva, entretanto percebemos que as aplicações destes discursos não estão sendo difundidas na prática com a mesma velocidade que as teorias têm sido apresentadas, ficando uma lacuna entre o que é dito e o que é realizado. Mudanças nas práticas de saúde urgem; é preciso que o paradigma hegemônico da unilateralidade na relação trabalhador da saúde (saber científico)/usuário (saber nãocientífico) seja rompido por um modelo que traga os sujeitos e seus saberes como eixo principal da atenção nas práticas de saúde. E, neste sentido, entendemos que a incorporação da reflexão proposta pela Ergologia e o dispositivo dinâmico de três polos no processo de formação de profissionais de saúde poderá trazer (trans)formações no trabalho em saúde. O desafio que propomos é o de se construir, nos centros de formação, um dispositivo metodológico de formação e pesquisa denominado “Comunidade Ampliada de Pesquisa em Promoção da Saúde e redução das vulnerabilidades” (CAP-PSRV), como espaço de diálogo-debate entre os saberes científicos e não-científicos provenientes da experiência do cuidado à saúde dos alunos em formação; tendo, como princípio, as “mútuas convocações”, combinando desconforto intelectual e humildade epistemológica, por meio de encontros e diálogos que possibilitem os diversos sujeitos a falarem, escutarem, sentirem, indagarem, refletirem, discutirem e reconhecerem as experiências e saberes próprios e do outro, além de propor a construção de vida e trabalho mais saudáveis. Portanto, espera-se que o sujeito em formação, ao participar do CAP-PSRV, experimente as dramáticas do aprender a pensar, do aprender a enfrentar e intervir coletivamente em prol da melhoria das condições gerais de vida e saúde, ou seja, produzir novas normas no enfrentamento das infidelidades do meio (Canguilhem, 1982). Concluindo, este ensaio teve por finalidade refletir sobre novas possibilidades que emergem no cenário da saúde, capazes de contribuir para o rompimento do paradigma ainda hegemônico. Nessa perspectiva encontramos, no dispositivo dinâmico de três polos, um terreno favorável para a reflexão no campo da formação de profissionais de saúde, pois pretendeu percorrer caminhos originais de questionamento e de requalificação do trabalho em saúde e construir, de forma emancipatória, práticas favoráveis à promoção da saúde a partir de normas, saberes e de renormalizações e experiências. Entretanto, parafraseando Schwartz e Durrive (2007), obviamente, não nos iludimos acerca da dificuldade da operacionalização de tais projetos. Mas, conforme também relata o autor, cremos que essas experiências têm sua chance e suas exigências, tornando-se uma possibilidade de produção de saberes e (trans)formação do trabalho em saúde.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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SOUZA, E.M.; BIANCO, M.F. A Ergologia: uma alternativa analítica para os estudos do trabalho. In: CONGRESSO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGIA DEL TRABAJO, 5., 2007, Montevidéo. Anais... Montevidéo, 2007. p.1-13. Disponível em: <http://www. urosario.edu.co/RET/documentos/Ponencias%20pdf/014.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2009. TRINQUET, P. Maîtriser les risques du travail. Paris: PUF, 1996.

O presente ensaio tem por objetivo refletir sobre a urgência de novas possibilidades no cenário da saúde a partir da proposta de conformação da “Comunidade Ampliada de Pesquisa em Promoção da Saúde”. Esta estratégia visa contribuir para a formação do trabalhador da saúde articulando conceitos da Ergologia de Yves Schwartz e seu dispositivo dinâmico de três polos, com a perspectiva de percorrer caminhos originais de reflexão crítica e de requalificação do trabalho em saúde, propiciando a imersão do trabalhador no debate e experimentação do aprender a compartilhar e dialogar com saberes e práticas científicos e não-científicos, visando à promoção da saúde da comunidade. Desse modo, entende-se que essas experiências têm sua chance e suas exigências, tornando-se uma possibilidade de produção de saberes e (trans)formação do trabalho em saúde.

Palavras-chave: Promoção da saúde. Ergologia. Formação em saúde. Health promotion and reduction of vulnerabilities: a strategy for knowledge production and (trans)formation of healthcare work, based on Ergology The present study had the aim of reflecting on the urgency of new possibilities within healthcare settings starting from the proposal to shape an “Extended Community for Health Promotion Research”. This strategy aims to contribute towards training for healthcare workers, by interlinking concepts from Yves Schwartz’s ergology and its dynamic three-pole mechanism, from the perspective of going along original paths for critical reflection and requalification of healthcare work. Through this, workers can be immersed in the debate and experimentation regarding learning to share and discuss scientific and non-scientific knowledge and practices aimed at health promotion for the community. In this way, it is understood that such experiences have their chance and demands, thus becoming a possibility for knowledge production and (trans)formation of healthcare work.

Keywords: Health promotion. Ergology. Healthcare training. Promoción de la salud y reducción de las vulnerabilidades: estrategia de producción de saberes y (trans)formación del trabajo en salud con base en la “Ergologia” El presente ensayo tiene por objetivo reflexionar sobre la urgencia de nuevas posibilidades en el campo de la salud a partir de la propuesta de conformación de la “Comunidad Ampliada de Investigación en la Promoción de la Salud”. Esta estrategia procura contribuir para la formación del trabajador de la salud, articulando conceptos de la “Ergologia” de Yves Schwartz y su dispositivo dinámico de tres polos en la perspectiva de recorrer caminos originales de reflexión crítica y de re-calificación del trabajo en salud, propiciando la inmersión del trabajador en el debate y en la experimentación del aprender a compartir y a dialogar con saberes y prácticas científicos y no científicos en relación a la promoción de la salud de la comunidad. De este modo se entiende que tales experiencias tienen sus posibilidades y sus exigencias, viniendo a facilitar la producción de saberes y la (trans) formación del trabajo en salud.

Palabras clave: Promoción de la salud. “Ergologia”. Formación en salud. Recebido em 16/02/2008. Aprovado em 17/02/2009.

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Laboratório de comunicação: ampliando as habilidades do estudante de medicina para a prática da entrevista

Mario Alfredo De Marco1 Ana Luiza Vessoni2 Augusto Capelo3 Cíntia Camargo Dias4

Introdução Um obstáculo importante para o aprendizado de técnicas para a realização da entrevista médica é a ideia de que este preparo não é necessário (como se fosse inerente ao profissional já saber entrevistar) ou possível. Hoje, essa postura é amplamente questionada e inúmeros trabalhos têm investigado os diferentes tópicos nesse campo, entre os quais: A técnica para realizar entrevista exige aprendizado específico? É possível aprender essas técnicas ou isso depende exclusivamente de características pessoais? Esse aprendizado deve ser parte do currículo médico? Em caso afirmativo, como inserir esse aprendizado no currículo? Acreditamos que a questão a seguir deve ser a primeira a ser abordada: É possível ensinar habilidades para a realização da entrevista ou essas habilidades são características pessoais que independem de aprendizado e treinamento? A validade de todas as outras perguntas depende da resposta a esta questão básica. Hoje, sabemos que essa resposta é afirmativa: inúmeros trabalhos focando o treinamento permitem afirmar com segurança que essas habilidades podem ser ensinadas e aprendidas. Mais detalhadamente, esses trabalhos e pesquisas revelam que: • a qualidade da entrevista e da relação entre profissional e paciente é amplamente dependente das habilidades do profissional para conhecer e manejar o processo de comunicação (Borrell, 2004; Wissow, Kimel, 2002; Rodríguez Salvador, 2001, Aspegren, 1999); • a qualidade da entrevista e da comunicação favorecem adesão ao tratamento e evolução (Aspegren, 1999; Bartlett et al., 1984); • habilidades de comunicação podem ser ensinadas e aperfeiçoadas (Hulsman et al., 1999; Henwood, Altmaier, 1996); Essas confirmações nos remetem a outras observações e questionamentos: • como incluir esse preparo em nossa formação profissional? • como saber se já estou preparado? • como alcançar preparo e aperfeiçoamento? Há várias décadas, o campo tem sido objeto de atenção e experimentação; e um formato para inclusão desse treinamento nos programas, a técnica de vídeoCOMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Departamento de Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Rua Borges Lagoa, 570, 1º andar. Vila Clementino, São Paulo, SP, Brasil.04.038020. mariodemarco@ globo.com 2,3,4 Departamento de Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. 1

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feedback interativa, vem demonstrando efetividade e superioridade em relação a outros métodos (Roter et al., 2004; Yedidia et al., 2003; Humphris, Kaney, 2000). A técnica consiste, sucintamente, na gravação de entrevistas com pacientes reais e/ou dramatizados (role-playing) e feedback interativo por meio do exame do material gravado. Em nosso trabalho na Unifesp, por intermédio dos programas de Psicologia Médica e em integração com outros módulos interdisciplinares, temos desenvolvido ações voltadas para esse tópico. A título de contextualização, segue breve histórico de nossa atividade: A Psicologia Médica, introduzida no currículo médico da Escola Paulista de Medicina em 1956, integrando o programa do terceiro ano do curso, está presente, atualmente, no currículo do primeiro ao quinto ano. Diferentemente do modelo inicial, basicamente teórico (aulas para toda a turma), o trabalho atual é, primordialmente, vivencial e participativo, realizado em pequenos grupos (dez a vinte alunos), de forma a proporcionar espaço para discussões e elaboração das vivências (De Marco, 2006, 2003). Ao foco inicial, dirigido essencialmente para o estudo do desenvolvimento da personalidade, adicionou-se o estudo da relação e comunicação. Na prática, o curso de Psicologia Médica está cada vez mais articulado à nossa perspectiva de educação continuada. Nessa perspectiva, executada integradamente, por meio de diferentes atividades (Psicologia Médica, Interconsulta, programas de Ligação em Saúde Mental, programas de capacitação e em múltiplas oportunidades de contato com estudantes e profissionais), o curso regular de Psicologia Médica, em sua parte prática (introduzida cada vez mais cedo), compõe o quadro mais amplo de um programa em que, no hospital e demais cenários de atendimento, acompanhamos e/ou estamos disponíveis para o estudante, ao longo de toda sua evolução na formação (De Marco, 2003). Entre as várias iniciativas para diminuir a fragmentação dos programas de ensino na graduação (Garcia et al., 2007; Trindade et al., 2005; Cyrino, Rizzato, 2004), planejamos o módulo de “Semiologia Integrada”, inserido no currículo do curso médico desde 2004. O módulo é parte de um conjunto mais amplo de ações voltadas para promover aproximação antecipada aos cenários da prática (Sayd et al., 2003; Santos et al., 2003). No caso da abordagem semiológica, o programa, além da aproximação antecipada, foi planejado para corrigir o seguinte quadro: o programa de psicologia médica (primeiro e segundo ano do curso médico) colocava o aluno em contato com conhecimentos e treinamento para capacitá-lo a perceber, valorizar e manejar, nas entrevistas com os pacientes, os aspectos psicossociais, a relação e a comunicação, enfatizando a importância de uma visão processual do adoecer. Paradoxalmente, nos anos posteriores, quando recebia treinamento nas clínicas específicas, o aluno se defrontava com uma visão e prática focalizada na doença e, basicamente, nos sintomas e aspectos físicos. Para corrigir esta distorção, a proposta do módulo de Semiologia Integrada foi a de envolver, numa prática conjunta, professores das diferentes áreas e disciplinas. Assim, professores dos diferentes ciclos de vida contemplados pelo curso (Pediatria, Clínica Médica, Obstetrícia, Ginecologia e Geriatria) participam tanto do acompanhamento das entrevistas como das discussões, lado a lado com o professor de Psicologia Médica. O módulo ocorre em continuidade ao curso de Psicologia Médica, ministrado no primeiro semestre, no qual já tem lugar uma iniciação no treinamento de entrevistas. São mantidas turmas (18 a vinte alunos) e coordenador (professor de Psicologia Médica) de cada grupo. Adicionalmente, reconhecendo a importância do desenvolvimento do ensino da comunicação nos cursos de graduação em medicina, em consonância com as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (Rossi, Batista, 2006), ampliamos o investimento nesse campo com a atividade “laboratório de comunicação”, inserida no programa de Psicologia Médica do segundo ano, antecedendo a prática das entrevistas com os pacientes. A atividade destina-se a aprofundar o conhecimento e vivência das técnicas de comunicação por meio de discussões e exercícios com apoio de gravação de imagens. A implementação do programa foi precedida de preparo realizado por meio do estudo de diferentes experiências, particularmente de profissionais e pesquisadores ligados à SemFYC (Sociedad Española de Medicina de Família y Comunitária) e à John Hopkins Bloomberg School of Public Health, bem como por intermédio da oportunidade de contar com a vinda de profissionais dessas instituições (Fernando Orozco, Ana Sobrino e Lawrence Wissow) que promoveram atividades de discussão e capacitação com nosso grupo de professores. 218

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A intenção principal deste trabalho é apresentar a proposta e metodologia desta atividade (laboratório de comunicação), construída com base na experiência acumulada, e inspirada pelos trabalhos e contribuições dos vários autores mencionados, particularmente aqueles ligados à SemFYC (Sociedad Española de Medicina de Família y Comunitária) e à John Hopkins Bloomberg School of Public Health.

Laboratório de comunicação – Psicologia Médica O objetivo geral da atividade é proporcionar ao aluno conhecimento e treinamento nas habilidades de comunicação necessárias para desempenho efetivo e eficiente da entrevista e da consulta médica. Como objetivos específicos temos: • Sensibilizar para os diferentes aspectos da comunicação verbal e não-verbal e sua importância na tarefa médica. • Fomentar o respeito ao estilo pessoal e facilitar o reconhecimento das habilidades e características pessoais de cada entrevistador. • Propiciar a evolução e ampliação de recursos técnicos e habilidades para uma comunicação mais efetiva e eficiente. • Ajudar a identificar e lidar com situações consideradas “difíceis”, sistematizando observações e procedimentos para esse fim.

Metodologia Cada turma, de aproximadamente vinte alunos, juntamente com o professor de psicologia médica que coordena o grupo, passa pelo laboratório de comunicação (três reuniões de cento e vinte minutos por grupo). É disponibilizado previamente para o aluno material referente à atividade. A abordagem do laboratório tem como foco principal a atividade prática e a observação/discussão/ elaboração dessa experiência, visando a evolução das habilidades para a realização de entrevistas e contatos inerentes à atividade médica. A disponibilização de material audiovisual ou material teórico destina-se ao apoio a essa atividade. A intenção é oferecer oportunidade de ensaiar formas de atuação na entrevista clínica, que favoreçam a evolução das capacidades de comunicação. A prática é realizada por meio da técnica de role-playing e envolve participação de alunos e professores. A representação é gravada (vídeo) e apresentada na mesma reunião, permitindo observação detalhada e detida das modalidades comunicacionais, ensaio de várias possibilidades de interação e introdução de elementos técnicos que enriqueçam a comunicação verbal e não-verbal do entrevistador.

Estrutura da atividade Três reuniões com duração de duas horas/cada, assim distribuídas: • Primeira reunião: 1 Comunicação não verbal; 2 Recepção / apresentação na entrevista. • Segunda reunião: Fase exploratória da entrevista. • Terceira reunião: Fase resolutiva da entrevista. Primeira reunião 1 Comunicação não verbal; 2 Recepção e apresentação na entrevista. Roteiro É realizada apresentação da atividade (aproximadamente 15 minutos) seguida de diálogo aberto – “bate-bola” – (15 minutos) sobre a importância da comunicação na tarefa médica (tópicos: Qual

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a ideia sobre a comunicação e sua importância? Quais os fatores que facilitam e dificultam? Numa consulta médica, como numa aula, existe uma tarefa comum: como alcançar consenso quanto à tarefa comum? O que pode atrapalhar alcançar consenso e cooperação? Qual o papel da comunicação nesse processo?). Na sequência, uma exposição interativa (20 minutos) aborda tópicos relacionados ao tema da reunião. Os tópicos são apresentados para discussão no formato a seguir: 1 A comunicação não verbal A comunicação não verbal costuma ser categorizada em: paralinguagem, proxêmica e cinésica. Paralinguagem: se refere às qualidades da emissão vocal (altura, intensidade ritmo etc.) que fornecem informações sobre o estado afetivo do emissor, bem como outras produções vocais, como o riso, o grito, o bocejo, a tosse etc., e, podem ser agrupadas nas seguintes categorias: • qualidade da voz, que inclui a altura do tom de voz, a qualidade de articulação e o ritmo; • qualificadores vocais, que incluem a forma como as palavras são emitidas (extensão, timbre, intensidade); • caracterizadores vocais, que incluem certos sons bem reconhecidos, como o suspiro, o bocejo, o riso, o choro, o grito etc.; • secreções vocais, que incluem sons que participam do fluxo da fala sem que as palavras signifiquem alguma coisa (ahn, hum, hen, aha, pausas e outras interrupções de ritmo). Proxêmica: se refere ao uso do espaço, envolvendo as dimensões de distância, território e ordem na comunicação humana (é muito importante nos animais); é o jogo de distâncias e proximidades que se entretecem entre as pessoas e o espaço, traduzindo as formas como se colocam e movem em relação aos outros, como gerenciam e ocupam o espaço. Define a relação que os comunicantes estabelecem entre si: a distância espacial, a orientação do corpo e do rosto, a forma como se tocam ou se evitam, o modo como dispõem e se posicionam entre os objetos e os espaços. Em nossa atividade envolve: • a forma como nos aproximamos do paciente (contato corporal, angulação do corpo – como sinais de aceitação, rechaço e hierarquia). • a utilização e distribuição dos espaços (decoração, barreira da mesa etc.), propiciando um trabalho em campo tenso ou campo relaxado. Cinésica: se refere aos gestos e movimentos corporais e estende-se por cinco áreas: contato visual, gestos, expressões faciais, postura e movimentos da cabeça. Apresenta diferenças significativas dependendo do ciclo de vida (criança, adulto e idoso) e da sociedade e cultura (a maioria dos autores considera que não há expressões universais e que qualquer expressão facial, atitude ou posição corporal tem significados diferentes nas diversas sociedades). 2 Recepção/apresentação na entrevista Procedimentos e cuidados: Acolhimento: a forma como acolhemos o paciente é muito importante e influencia significativamente todo o processo. Algumas qualidades importantes do entrevistador influenciam positivamente o acolhimento. São elas: • Qualidades de superfície: calidez, respeito e cordialidade. • Qualidades profundas: empatia, continência emocional e assertividade. Capacidade de observação da comunicação não verbal: é importante em toda a entrevista, mas é particularmente crítica para a fase da apresentação/recepção. Ela favorece a observação imediata de aspectos do paciente e seu eventual acompanhante que poderão facilitar a condução da entrevista, bem como a observação e a possibilidade de equacionamento de uma série de interferências e ruídos: • Aspectos do paciente e seu eventual acompanhante: a aparência, a forma de vestir, a postura corporal (aberta, fechada...), o estilo e a postura na marcha, a forma de cumprimentar (o aperto de mão, o olhar...), o timing (particularmente em relação ao acompanhante – invasivo, passivo, colaborador) são elementos que já fornecem uma série de dados e auxiliam a manter desobstruídos os canais de comunicação, facilitando uma condução mais favorável da entrevista. • Observação e equacionamento de interferência e ruídos: a atenção aos ruídos e interferências é também bastante útil para ajudar a diagnosticar e equacionar as perturbações no contato que podem se produzir como decorrência dos mesmos. Eles envolvem uma série de características e 220

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DE MARCO, M.A. et al.

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eventos que participam indiretamente do encontro: o ambiente do consultório ou centro onde se realiza o atendimento, o número de pessoas na sala de espera, o tempo de espera, o nível de ruídos e interferências no ambiente, as interrupções, as chamadas telefônicas etc. Após a exposição interativa é apresentada a proposta de atividade prática, que, nesta primeira reunião, é a de “encenar a organização de uma sala de atendimento e situações de início de consulta”. É solicitada a apresentação de voluntários e as encenações são gravadas e exibidas, permitindo um exame detalhado e detido dos elementos comunicacionais, dando ensejo à percepção na prática do cumprimento ou não dos tópicos abordados, bem como a discussão e ensaio de diferentes possibilidades. Na sequência, a título de finalização (vinte minutos), realiza-se um breve sumário dos pontos e das questões mais importantes que se apresentaram, bem como um feedback de toda a atividade.

Segunda reunião Fase exploratória da entrevista Roteiro Abre-se espaço para comentários sobre a atividade realizada na semana anterior, contextualizando e estabelecendo pontes para a atividade do dia, sobre a qual é apresentado um roteiro (aproximadamente 15 minutos). Segue-se o diálogo aberto - “bate-bola” - (15 minutos) abordando aspectos relevantes da fase exploratória da entrevista (Como se inicia uma investigação? O que vai nos orientar na investigação? O que define um bom entrevistador? Quais os principais problemas que vai enfrentar?), como aquecimento para a exposição interativa (vinte minutos) que focalizará os seguintes tópicos: Procedimentos e cuidados: 1 Delimitação do motivo da consulta: clarificar os motivos do paciente com uma pergunta aberta do tipo: “o que o traz aqui?” ou “como posso ajudá-lo?” ou mesmo “pois não?”. Delimitar todas as demandas, pois isso ajuda a priorizar: indagar, sempre, “mais alguma coisa?”, até se certificar de que todas as demandas foram expressas. Quando existem muitas demandas, é importante se estabelecerem prioridades. 2 Obtenção dos dados necessários para se estabelecer a natureza do problema, as crenças e as expectativas do paciente: • Explorar que ideias tem o paciente quanto à natureza da enfermidade. Perguntas como “o que você acha que está provocando estes sintomas?” podem ser úteis. • Explorar os sentimentos que provocam (especialmente medos). Perguntas como “em relação a este problema, tem alguma coisa que lhe preocupa?” podem ser utilizadas. 3 Incorporar à exploração o contexto familiar, social e laboral. Principais técnicas de apoio narrativo a serem observadas com o objetivo de facilitar a verbalização do paciente: • Baixa reatividade: o entrevistador deixa um lapso de tempo entre a intervenção do paciente e a sua. Alguns segundos (um ou dois) entre a intervenção do paciente e a nossa evitam interrupções e favorecem a livre narração do paciente. • Silêncio funcional: ausência de comunicação verbal com o intuito de proporcionar um tempo de meditação ao paciente, ajudar sua concentração, ou atuar como catalisador de determinadas reações emocionais no curso da entrevista. • Facilitação: conduta verbal ou não verbal para ajudar o paciente a prosseguir ou iniciar seu relato, sem indicar nem sugerir os conteúdos do mesmo. Por exemplo, gestos de assentimento com a cabeça que indicam “continue, estou ouvindo com atenção” ou sons que carreguem um significado semelhante. Ou mais explicitamente: “continue, por favor”, “e que mais?” etc. • Empatia: conduta verbal ou não verbal que expressa solidariedade emocional sem prejulgar ética ou ideologicamente. Um contato, um sorriso, “compreendo como se sente”. • Frases por repetição: repetição de palavra ou frase pronunciada pelo paciente a fim de orientar a atenção do mesmo para aquele aspecto: “Então você me dizia que foi depois daquela discussão que teve esta forte dor de cabeça que está te preocupando”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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• Assinalamento: explicitação de emoções ou condutas. Pode ser feito por intermédio da observação e nomeação do estado de ânimo do paciente: “parece que você ficou um tanto aborrecido comigo” ou: “estou observando que você foi ficando triste...”. Após a exposição interativa, é apresentada a proposta de atividade prática que, nesta segunda reunião, é a de “realizar uma entrevista com o foco na fase exploratória”. Como material de apoio, fornecemos a parte inicial de um roteiro de entrevista que apresenta o esboço de uma situação para ser manejada e expandida. O roteiro poderá, também, ser reformulado e/ou utilizado como modelo para a construção de outros roteiros: Médico - Dona Júlia Paciente - Sou eu doutor. M - Bom dia, dona Júlia, vamos entrar (cumprimenta) Entram no consultório e sentam-se M - Então, dona Júlia, como posso ajudá-la? P - Doutor, é uma dor muito forte aqui na cabeça (coloca a mão direita na região frontal) M - Uma dor forte na cabeça... me conta mais dessa dor. P - Bom doutor, é uma dor que eu já levanto com ela (tom bastante queixoso). Às vezes melhora um pouco durante o dia, à noitinha sempre está um pouco melhor... M - E faz quanto tempo que começou essa dor? P - Olha doutor, faz bem uns quinze dias... M - E a senhora já teve essa dor antes? P - Bem doutor, de vez em quando, isso me ataca, mas nunca foi tão forte como desta vez...e não passa com nada...das outras vezes eu tomava aspirina e a dor ia embora..., agora, não adianta nada a aspirina (abaixa levemente a cabeça e leva a mão à região frontal fazendo expressão de dor). M - Vejo que é uma dor muito incômoda. P - Ah doutor, é um sofrimento (a expressão de dor persiste mas agora suavizada, o rosto se descontrai e surge um brilho no olhar que agora dirige ao médico) M - E além da dor de cabeça, mais alguma coisa? P - Não doutor, não que eu me lembre agora. M - O que a senhora acha que pode estar causando essa dor de cabeça? P - Não sei doutor, meu medo é que possa ser um tumor. Eu queria fazer uma chapa p’ra ver o que tem dentro da cabeça. M - E a senhora lembra de alguma coisa que aconteceu quando começou essa dor de cabeça? P - Não doutor, não aconteceu nada que eu lembre. M - E a família, como vai? P - Ah tudo bem, doutor, meu marido é um homem muito bom, trabalhador (abaixa a cabeça, leva a mão à fronte e contrai fortemente a expressão) M - Mas, não tem alguma coisa da família preocupando a senhora? P - (abaixa um pouco mais a cabeça e vai emitindo um som de choro abafado). M - (permanece um tempo em silêncio e inclinando-se na direção da paciente fala em tom acolhedor) Está muito difícil, não é? P - (a paciente libera o choro e gradualmente vai contando sua aflição) É, doutor, minha filha de 14 anos, imagina o senhor que faz uns 15 dias me apareceu grávida...

A gravação, a discussão e a finalização seguem a mesma dinâmica já descrita na primeira atividade. Terceira reunião Fase resolutiva da entrevista Roteiro A dinâmica inicial é a mesma da segunda reunião, com diferença do tema, aqui focado na fase 222

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resolutiva da entrevista, a respeito do qual são propostas as seguintes questões no “bate-bola”: Quais os principais cuidados no fornecimento de informações? Como se verifica a assimilação das informações? É importante/necessário negociar um consenso com o paciente sobre os procedimentos e o tratamento? O que facilita alcançar um consenso? E quando não é possível, o que fazer? Na sequência, na exposição interativa, são abordados os seguintes tópicos: A fase resolutiva é subdividida em 2 etapas: informativa e negociadora. 1 Etapa informativa: envolve fornecimento de informações ao paciente da maneira mais apropriada, tendo em vista: • Responder às expectativas do paciente que deseja ser informado sobre sua saúde. • Melhorar a adesão ao tratamento. Há alguns erros mais importantes a evitar nesta etapa: • Muitos conceitos por unidade de tempo. • Uso de linguagem excessivamente técnica. • Misturar diferentes problemas sem dar explicação concreta para cada um. • Interromper o paciente quando este vai perguntar ou falar. Há fatores que favorecem a boa compreensão e assimilação. Entre eles: • Fornecer informações compreensíveis e despertar interesse. • Detectar resistências, entender preocupações e fornecer esclarecimentos necessários. • Comprovar a assimilação, isto é, assegurar-se de que o paciente compreendeu. 2 Etapa negociadora: envolve pactuação das condutas e orientações entre o profissional e o paciente. Implica, evidentemente, que o profissional tenha clareza quanto ao direito do paciente de participar e opinar sobre seu processo. Quando as orientações indicadas pelo profissional são colocadas em dúvida pelo paciente, estamos frente a uma negociação propriamente dita, que envolve, como passos decisivos: • Reconhecer o direito do paciente a participar e opinar sobre seu processo. • Explorar as crenças do paciente, mesmo quando suas opiniões foram expressas de forma agressiva ou receosa. • Discutir as crenças mostrando incoerências, indicando contradições ou contrapondo informação. Ex: “Mudar os hábitos não é o problema, o que é um problema é não ter a pressão controlada. A pressão alta faz com que o coração precise fazer mais força para bombear o sangue”. • Tentar desenvolver técnicas de negociação e persuasão, inclusive em situações em que as opiniões do paciente nos pareçam pouco justificadas. • Respeitar as últimas decisões do paciente. A gravação, a discussão e a finalização seguem a mesma dinâmica descrita na segunda atividade. A diferença é que, nesta prática, além do roteiro de entrevista, são fornecidos ao aluno dados sobre a paciente, resultados dos exames e informações sobre a patologia. É uma consulta de retorno na qual a paciente deverá receber orientações de mudança de estilo de vida, tendo em vista o controle da pressão arterial e do colesterol. Aqui, também, o roteiro é aberto, colocando um impasse para ser manejado pelo entrevistador. O roteiro deverá ser desenvolvido e expandido e/ou servir como modelo para a construção de outros roteiros: Médico - Olá, dona Maria, como vai? Paciente - Graças a Deus, tudo bem, doutor. M - Então, dona Maria, estou aqui com os resultados dos seus exames. P - Tá tudo bem, não é, doutor? Eu não sinto nada, acho que tenho uma boa saúde. M - Bem, dona Maria, na verdade os exames estão um pouco alterados... P - Nossa, doutor, é mesmo? M - Sim, dona Maria, veja, não é nada muito grave no momento, mas é importante cuidar para prevenir problemas no futuro P - Mas o que é que eu tenho afinal doutor? M - Bem, Dona Maria, a senhora está com a pressão alta e o açúcar e a gordura no sangue

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também estão altos. Na verdade, sua gordura no sangue, quer dizer, seu colesterol, está desequilibrado: o colesterol “bom” está baixo e o colesterol “ruim” está alto. P - Doutor, mas eu quase não como gordura. M - Bem, dona Maria, na verdade não é só comer gordura que faz aumentar a gordura no sangue, tem outros alimentos e, também, os hábitos, a herança... P - Bom, doutor, mas o que o senhor quer que eu faça? M - São várias coisas, dona Maria. Precisa mudar alguns hábitos da sua vida: precisa começar a fazer exercícios, precisa diminuir bastante o sal da comida e mudar o tipo de alimentos – depois eu passo isso tudo direitinho para a senhora. Precisa também parar de tomar bebidas alcoólicas. Ah, e o cigarro também precisa parar... P - Tudo isso, doutor? Ah não, doutor, é muita coisa. Além disso, eu estou bem. Não estou sentindo nada...

Recursos humanos e materiais Três professores, de forma a permitir participação ativa tanto nas discussões quanto no role-playing (alguns role-playing são, a título demonstrativo e para minorar as ansiedades dos alunos, realizados pelos professores). Os recursos materiais, além de uma sala apropriada para trabalho em grupo, são: aparelho para gravação de imagens, monitor, projetor.

Cronograma, revisões e avaliações Além da avaliação permanente da atividade realizada em cada reunião, é feita avaliação sistematizada ao final de cada reunião e ao final da aplicação do projeto, permitindo uma reavaliação e reestruturação das atividades.

Discussão Maguire et al. (1986) encontraram superioridade evidente nos profissionais treinados com a técnica de “vídeo-feedback interativa” frente à técnica convencional. Vários trabalhos posteriores têm confirmado a importância dessa técnica para o sucesso no ensino das habilidades de comunicação (Roter et al., 2004; Yedidia et al., 2003; Humphris, Kaney, 2000). Contudo, apesar das evidências favoráveis, poucos programas de treinamento para a entrevista médica utilizando esse formato têm sido implementados. Isto tem sido creditado, parcialmente, ao fato de esse formato ser considerado estressante, tanto por alunos como por professores, como aponta investigação realizada por Nielsen e Baerheim (2005). Nessa pesquisa, os autores identificaram, entre as principais preocupações: embaraço de ver sua atuação gravada, medo de demonstrar falta de conhecimento, medo de ser considerado inadequado em termos de personalidade ou em habilidades de comunicação, e medo de ser considerado incompetente. A avaliação preliminar de nossa experiência tem confirmado tanto a eficácia da técnica quanto a necessidade de uma atenção especial aos fatores estressantes mobilizados. De um lado, verificamos que a filmagem de diferentes situações de entrevistas, protagonizadas tanto pelos alunos quanto pelos professores, podem facilitar significativamente a observação e treinamento nas técnicas de comunicação e de entrevistas. O exame cuidadoso e detalhado das imagens gravadas tem se revelado um instrumento poderoso para a detecção e evolução das capacidades relacionais e comunicacionais. Por outro lado, ficou patente a importância da manutenção de canais de escuta e avaliação permanentes, que permitam detectar a situação grupal e facilitar um direcionamento que evite a instalação e cristalização de defesas que possam obstaculizar o rendimento da atividade. Em relação ao estresse mobilizado pela atividade, por exemplo, temos buscado alternativas para minimizar esse inconveniente: os professores permanecem muito atentos a esse tópico, procurando respeitar 224

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e trabalhar as resistências. Em relação às gravações, uma fórmula que tem sido útil para minimizar o estresse nas turmas em que detectamos maiores resistências, é iniciá-las tendo como protagonistas os professores e, só depois, convidar os alunos a se envolverem na protagonização. Em relação ao feedback, que é outro fator de grande relevância para a produção de estresse, o cuidado que temos observado é em relação à criação de um clima grupal que favoreça a formulação de feedback construtivo, que seja descritivo e não valorativo, e que ressalte aspectos considerados funcionais, apontando, complementarmente, o que faltou ou o que poderia ser feito de outra forma, sugerindo e, eventualmente, protagonizando as sugestões. Para os alunos mais críticos (na maior parte das vezes, a crítica vem expressa em autocrítica), é sempre muito importante reassegurá-los de que o desempenho está adequado para o seu nível de experiência. Os alunos, numa porcentagem significativa, manifestaram satisfação com a atividade, tanto nas avaliações informais como nas respostas a questionário (tipo Likert) aplicado ao final do semestre (81,6% dos alunos classificaram-na entre satisfatória e totalmente satisfatória, tendo em vista o objetivo de treinamento das habilidades e atitudes para a entrevista médica). Contudo, em relação à efetiva incorporação e manutenção das habilidades e atitudes, são necessárias avaliações mais sistematizadas, que já iniciamos e que serão estendidas no acompanhamento dos alunos ao longo do curso, tendo em vista rastrear a eficácia e repercussão deste preparo no desempenho dos estudantes em sua atividade na entrevista médica.

Colaboradores Mario Alfredo De Marco coordenou e participou ativamente de todas as fases do trabalho (implantação do programa, pesquisa bibliográfica, redação do trabalho) e escrita final do manuscrito. Ana Luiza Vessoni trabalhou na implantação do programa, pesquisa bibliográfica e redação do trabalho. Augusto Capelo coordenou a gravação das imagens e participou ativamente de todas as fases; e Cíntia Camargo Dias coordenou o módulo e participou ativamente da implantação do programa, pesquisa bibliográfica e redação do trabalho.

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O trabalho apresenta a atividade denominada “laboratório de comunicação” na qual, utilizando gravação e discussão de dramatizações de entrevistas (técnica de “vídeo feedback interativa”) objetiva-se capacitar os estudantes de medicina nas habilidades comunicacionais necessárias para o exercício da tarefa médica. A atividade está inserida no segundo ano do curso médico, fazendo parte do programa de psicologia médica. O exame cuidadoso e detalhado das imagens registradas tem se revelado um instrumento muito poderoso para a detecção e a evolução das capacidades relacionais e comunicacionais. Ainda estamos em fase de realização de avaliações sistematizadas que nos permitirão verificar a eficácia da atividade e mensurar a repercussão que terá sobre o desempenho dos estudantes em sua atividade na prática médica.

Palavras-chave: Competência clínica. Comunicação. Relações médico-paciente. Educação médica. Communication laboratory: expanding medical students’ skills for interview practice This paper presents an activity named “communication laboratory”, in which, through recording and discussing simulated interviews (“interactive video feedback” technique), the aim is to capacitate medical students with the communicational skills needed for performing medical tasks. This activity is included in the second year of the medical course, and is part of the medical psychology program. Careful and detailed observation of the recorded images has revealed this to be a very powerful instrument for detecting and developing the relational and communicational capacities. We are still at the phase of performing systematized evaluations that will allow us, in the future, to verify the efficacy of the activity and to measure the repercussion that it will have on the development of students in their medical practice activities.

Keywords: Clinical competence. Communication. Physician-patient relations. Medical education. Laboratorio de comunicación: ampliando las habilidades del estudiante de medicina para la práctica de la entrevista El trabajo presenta la actividad denominada “laboratorio de comunicación”, en la cual, utilizando grabación y discusión de dramatizaciones de entrevistas (técnica de vídeo feedback interactiva”), se trata de capacitar a los estudiantes de medicina en las habilidades de comunicabilidad necesarias al ejercicio de la tarea médica. La actividad se insiere en el segundo año del curso medico, formando parte del programa de psicología médica. El examen cuidadoso y detallado de las imágenes registradas se ha revelado instrumento muy poderoso para la detección y la evolución de las capacidades de relación y comunicación. Estamos aún en fase de realización de evaluaciones sistematizadas que nos permitirán comprobar la eficacia de la activad y medir la repercusión que tendrá sobre el desempeño de los estudiantes en su actividad en la práctica médica.

Palabras clave: Competencia clínica. Comunicación. Comunicación. Relación médicopaciente. Educación médica. Recebido em 13/06/2008. Aprovado em 16/10/2008.

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livros

NARVAI, P.C.; FRAZÃO, P. Saúde bucal no Brasil: muito além do céu da boca. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008 (Coleção Temas em Saúde).

Adriano Maia dos Santos 1 Ana Áurea Alécio de Oliveira Rodrigues 1

O Sistema Único de Saúde (SUS), em 2008, completou vinte anos, mas ainda ficamos perplexos em face dos desafios a serem enfrentados. Compreender a saúde como direito e, portanto, como um bem inalienável é uma premissa para a transformação no modo de lidar com as políticas públicas. O livro ‘Saúde Bucal: muito além do céu da boca’ põe em evidência essa questão e, pertinentemente, demarca o caráter ético-político dos sujeitos como elemento preponderante para definir os contornos do sistema de saúde no Brasil, especificamente, no tocante à saúde bucal. Publicado pela editora Fiocruz, o livro faz parte da coleção ‘Temas em Saúde’ e apresenta-se como uma ferramenta didática para exploração do contexto sociopolítico da Saúde Bucal. Nesse sentido, a expertise dos autores, dois expoentes da Saúde Bucal Coletiva no Brasil – Paulo Capel Narvai e Paulo Frazão, professores e pesquisadores na Faculdade de Saúde Pública, da Universidade de São Paulo (USP), produtores de inúmeros artigos – foi decisiva para a qualidade e fluidez do texto. Além disso, são referências obrigatórias nos estudos sobre a Saúde Bucal e

contribuem, consubstancialmente, para a consolidação das políticas públicas de saúde, implicando-se com questões teóricas e práticas do dia-a-dia do SUS. Apesar de inúmeros problemas, o Brasil avançou ao reconhecer a saúde como direito de todos e dever do Estado. O caráter de Sistema Nacional de Saúde legitimado ao SUS, ancorado pela universalidade, integralidade, participação social e equidade, inseriu na agenda do Estado a questão da proteção social e da solidariedade, abrindo inúmeros desafios para as políticas públicas. Um dos grandes legados dessa política é não poder fragmentar a saúde bucal de jure, ainda que de facto permaneça reproduzindo tais iniquidades. Mergulhar em questões delicadas como estas, bem como demarcar os cenários e os sujeitos, é uma das estratégias do texto para conclamar a sociedade à ação. Na apresentação, os autores dão uma pista do que nos espera ao degustarmos as páginas seguintes da obra: “[...] buscamos compreender a saúde bucal em suas várias dimensões, transitando do biológico ao social e ao psicológico e analisando suas implicações políticas. Pretendemos, além de possibilitar

Instituto Multidisciplinar em Saúde, Campus Anísio Teixeira, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Av. Olívia Flores, 3000, Candeias, Vitória da Conquista, Ba, Brasil. 45.055-090. maiaufba@ufba.br 2 Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

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a compreensão dos problemas desta área no contexto do sistema e das políticas de saúde no Brasil, que o leitor possa dispor de elementos para exercitar a crítica das ações desenvolvidas nesse âmbito e, também, participar de modo qualificado dos processos de tomada de decisões envolvendo a saúde bucal e a produção do cuidado em saúde bucal” (p.13). Trata-se de objetivos ousados e implicados com a transformação dos sujeitos, diríamos até nada modestos. Em 148 páginas, em formato 12,5x18cm, o “livrinho” toma dimensões inesperadas, reforçando a máxima de que “o que vale é o conteúdo”. E é, exatamente, no corpo do texto, que os autores dão a robustez necessária para levar à frente uma revisão e propor um debate atualizado acerca da política de saúde bucal no Brasil. Fazendo-se uma metáfora para contemplar o despojamento do texto, a sensação é de que o “Brasil” foi ao consultório odontológico, nele encontrou dois grandes estudiosos que, por meio de uma anamnese apurada, foram anotando toda uma “história de vida” e, ao abrirem a boca desse jovem com pouco mais de quinhentos anos, perceberam que o problema era sistêmico, sendo necessária uma intervenção que requer olhares de outras formações, respeitando, inclusive, a singularidade desse sujeito sob cuidado. O texto é escrito de maneira a estabelecer um diálogo com o leitor, conectando-o com os diferentes elementos que embasam o campo científico e político em relação à saúde bucal. Nesse sentido, os autores, didaticamente, subdividem o conteúdo do livro em sete capítulos. Como um novelo, o livro apresenta a ponta do fio, cabendo ao leitor, com a agulha da criatividade, tecer os diferentes bordados que configuram os distintos sentidos e significados da saúde bucal. Para tanto, Narvai e Frazão abordam desde aspectos relacionados aos problemas biológicos da saúde bucal a elementos da complexidade organizacional no terreno das políticas, não se eximindo de apontarem caminhos e opções ideológicas. Com um estilo elegante, os autores retomam trechos da fala do presidente Lula e de outros atores e, sem engessamento metodológico, analisam as diversas passagens para substanciarem as argumentações e nos evidenciarem a importância dos sujeitos na 230

tomada de decisão. O reconhecimento, aliás, é resgatado no final da obra quando os autores listam uma série de sugestões de leituras e atribuem a riqueza sintetizada no livro aos estudos realizados por inúmeros defensores do SUS e da saúde bucal como direito de todos. A ‘Saúde Bucal’ e os ‘Problemas de Saúde Bucal’ são os títulos dos dois primeiros capítulos. O primeiro retoma uma discussão acerca do conceito de saúde bucal e as suas múltiplas dimensões, sendo, de certa maneira, um conceito polifônico. No segundo, há o cuidado em situar o leitor, inclusive aquele que não tem uma formação na área da Odontologia, em relação aos aspectos do processo de saúde-doença relacionados aos componentes do sistema estomatognático. Apresentam-se de maneira simplificada, mas relevante, as características históricas, clínicas e epidemiológicas dos principais agravos bucais: cárie dentária, doença periodontal, má oclusão dentária, fissuras labiopalatais, câncer de boca, fluorose dentária, traumatismo bucomaxilofacial e cárie dentária radicular. Destacam-se, ainda, tendências mundiais que influenciam nos problemas de saúde bucal na atualidade: 1 progresso substancial científicotecnológico e informacional em saúde, nas décadas mais recentes; 2 mudança nosológica, demográfica, etária, alterações climáticas, tensões sociais e desafios à segurança alimentar; 3 sistema mundializado, instável e fluido, comercialização desregulada e apagamento das fronteiras entre público e privado; 4 mercado de trabalho e aspectos relacionados à formação. A ‘Mutilação Dentária e Percepção da Saúde Bucal’, que desvela a face cruel da história da saúde no Brasil, é a abordagem do capítulo três. Os autores fazem uma retrospectiva histórica desse problema no Brasil e em outros países, tocando na chaga que permanece nas faces de muitos brasileiros, em pleno século XXI. Quais seriam as causas da perenidade da mutilação dentária como opção de tratamento? Quando se debruçam na questão nacional, expõem todas as já conhecidas mas sempre necessárias críticas ao processo de trabalho do cirurgião-dentista e aos aspectos políticos, econômicos e culturais do Estado brasileiro. Para os autores, “[...] cabe destacar a orientação liberal do Estado, presente em muitas regiões e países, que engendra, em muitos casos, uma estrutura de serviços

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Não obstante, os autores revisitam a história das políticas de saúde/saúde bucal, sinalizando o caráter paradigmático da implantação do SUS e posterior priorização da atenção primária em saúde, como serviço de primeiro contato, por meio da Estratégia Saúde da Família. Revolvendo esse terreno, os autores destacam as conquistas coletivas no campo das Conferências de Saúde e Saúde Bucal, fruto da mobilização e luta de visionários que acabaram por forjar o movimento da Saúde Bucal Coletiva, “parte inseparável da saúde coletiva” (p.123), demarcando o rompimento epistemológico com a odontológica – liberal, coorporativa e excludente. No último capítulo, Paulo Capel Narvai e Paulo Frazão trazem ‘Algumas Palavras sobre o Futuro’. A reflexão é pertinente e os autores colocam-se abertos ao debate. Alguns elementos mais recentes nas políticas relacionadas à saúde bucal, ainda merecem estudos aprofundados, como é o caso do Programa Brasil Sorridente e seus desdobramentos. Os avanços recentes no campo das ciências e das novas tecnologias chamam atenção para as questões éticas e paradigmáticas: “o ser humano está na iminência de deixar de ser difiodonte para, como os peixes, tornar-se polifiodonte – de modo artificial, sim, mas polifiodonte” (p.130). Claro que cabe a ressalva do papel dos sistemas universalizantes e solidários, e da capacidade concreta de incorporação de novas técnicas, bem como do questionamento acerca das reais necessidades e interesses que sustentam determinadas pesquisas. O livro comporta tudo isso? A resposta é ambígua: sim e não. Talvez alguns não consigam encontrar tudo e acabem frustrados, mas o importante é que os autores nos fazem sair do chão, nos fazem pensar e incitam uma vontade enorme de estudar, pesquisar, escrever...

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livros

escassos e desigualmente distribuídos, na qual os profissionais são formados para atender mais às necessidades do mercado de consumo do que às necessidades de saúde coletiva” (p.52). As questões de modelos, organização e políticas públicas são apresentadas nos capítulos seguintes, intitulados, respectivamente, de ‘Modelos de Atenção à Saúde Bucal’, ‘Saúde Bucal: direito?’ e ‘Saúde Bucal no Sistema Único de Saúde’. Os três capítulos estão imbricados e constituem o âmago do livro, justificando o subtítulo ‘muito além do céu da boca’. Diríamos que, ao se levantar o véu do palato, se descortina a extensão dos problemas bucais e, com um sorriso amarelo, vamos nos dando conta dos limites e das responsabilidades (ou da sua falta) dos profissionais de saúde, especificamente, dos dentistas. A assistência odontológica no Brasil, apesar de todos os avanços, caracteriza-se por ser predominantemente liberal, por meio do desembolso direto ou através de planos de saúde. A saúde bucal tratada como mercadoria, além de alienar o cirurgião-dentista, esvazia o sentido da própria prática, implicando restrição de acesso (atrelado à capacidade de pagar, e não à necessidade do cuidado) e fragmentação das ações. Sobre esses aspectos, o livro não poupa críticas, alertando aos mais desavisados para o caráter histórico das intervenções em saúde bucal e a necessidade de se evitarem as panacéias ou a repetição de fórmulas desgastadas. Para tanto, relembra o modelo incremental, as ações da odontologia simplificada e do preventivismo, chamando atenção para a importância de “[...] obter dados e analisar, entre outros: o contexto institucional; a estrutura organizacional; a capacidade instalada e a disponibilidade de recursos humanos; as características dos processos de administração, gestão e financiamento; os sistemas de informação e, por certo, as características das ações de saúde bucal, em termos individuais e coletivas, bem como os sistemas de atendimento empregados e as técnicas e ambientes de trabalho adotados” (p.70). Superar o modelo procedimento-centrado, valorizar a diversidade terapêutica, incluir o usuário no processo de cuidado e integrar promoção, prevenção, cura e reabilitação requer mudanças no projeto pedagógico de formação.

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Da enxada à colher de pedreiro: trajetórias de vulnerabilidade social na construção civil From hoe to trowel: occupational trajectories of social unstable works in civil construction A pesquisa teve como objetivo estudar as trajetórias ocupacionais de trabalhadores instáveis da construção de edificações frente à vulnerabilidade social. Procuramos analisar as estratégias utilizadas e/ou planejadas por estes operários diante da precariedade dos contratos de trabalho e diante da ausência ou dificuldade de acesso à proteção social exercida pelo Estado. Investigamos como lidam com acasos naturais ou sociais da existência, como: a procura por trabalho, o desemprego, a instabilidade de renda, o envelhecimento ou afastamento por doenças ou acidentes ocupacionais e o recurso às redes sociais informais na resolução dessas questões. Buscamos analisar ainda a percepção dos trabalhadores sobre como este contexto afeta suas condições de trabalho, sua saúde, bem como sua reprodução social. Foram entrevistados vinte operários da construção de edificações da cidade de São Carlos-SP, Brasil, com mais de vinte cinco anos e, no mínimo, cinco anos de trabalho no setor. A escolha deste setor é justificada pelo alto índice de instabilidade, grande contingente de trabalhadores informais, terceirizados e subcontratados, alta rotatividade, nocividade das condições de trabalho e precariedade dos contratos de trabalho. As análises realizadas apontam que a construção de edificações, além de ser historicamente uma oportunidade de trabalho para jovens migrantes de origem rural, recém-desempregados, e para indivíduos sem experiência de trabalho, torna-se uma opção (ou falta de) de trabalho para aposentados e operários fabris demitidos com a reestruturação produtiva. Parte dos entrevistados, que ao longo de suas trajetórias ocupacionais usufruíram direitos trabalhistas e previdenciários, passa a vivenciar, na construção de edificações, a precarização econômica e social resultante da perda de direitos, como no caso dos exmetalúrgicos. Constatamos que as redes sociais informais são fundamentais no enfrentamento da vulnerabilidade profissional, da inconstância de serviços, nos períodos de afastamento, enfim,

na sobrevivência cotidiana. Prevalece o apoio da família nuclear e das redes formadas na consanguinidade, na identificação comunal e na identificação religiosa. O Estado encontra-se cada vez menos presente e as instituições públicas não-estatais, como o sindicato, não fazem parte da rede destes trabalhadores. Os trabalhadores não dispõem de condições financeiras para adquirir formas privadas de proteção e diante da instabilidade da vida sobrevivem com dupla jornada de trabalho, bicos, busca de aquisição de bens rentáveis e, em alguns casos, a continuidade do trabalho após a aposentadoria. A vulnerabilidade presente em toda a trajetória faz com que a percepção de sua condição misture impotência, revolta e resignação. Fernanda Flávia Cockell Tese (Doutorado), 2008 Engenharia de Produção, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. fercockell@yahoo.com.br

Palavras-chave: Trajetórias ocupacionais. Rede social. Contrato de trabalho. Vulnerabilidade social. Edificações. Metalúrgicos. Keywords: Professional paths. Social network. Employment contract. Social vulnerability. Building industry. Metal workers. Palabras clave: Trayectos de ocupación. Red social. Contrato de trabajo. Vulnerabilidad social. Edificios. Metalurgico.

Texto na íntegra disponível em: http://200.136.241.56/htdocs/tedeSimplificado/tde_busca/ arquivo.php?codArquivo=1987&PHPSESSID=8e089e96b588 ca7fb0cd2f2e3cab5b23

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Representações sociais sobre a situação de vida, saúde e doença na concepção indígena Potiguara Social representations about the conditions of life, health and disease according to the Potiguara indians concept A questão da saúde indígena brasileira vem sendo debatida desde a década de 1990, com reivindicações constantes dos indígenas ao governo e à sociedade nacional devido ao agravamento progressivo das condições de saúde deste povo, caracterizado por altos índices de morbimortalidade e pela oferta inadequada e ineficaz dos serviços de saúde. Esta pesquisa teve como objetivos: averiguar a situação de vida, saúde e doença na concepção dos índios Potiguara, salientando as representações sociais interfaceadas aos aspectos epidemiológicos; identificar o perfil socioeconômico, cultural e epidemiológico dos índios participantes deste estudo; apreender representações sociais sobre saúde e doença na concepção dos índios Potiguara; verificar aspectos socioeconômicos e culturais a partir das representações sociais sobre saúde e doença e evidenciar as práticas adotadas pelos índios Potiguara frente à doença. Tratase de uma pesquisa exploratória, documental, com abordagem quanti-qualitativa, tendo como aporte a Teoria das Representações Sociais. A unidade amostral foi definida como sendo o núcleo familiar de acordo com o cadastro das famílias no Sistema de Informação de Atenção à Saúde Indígena (SIASI), sendo identificado 01 membro por família de ambos os sexos e acima de 18 anos. Participaram do estudo 55 famílias sorteadas ao acaso, pertencentes à aldeia São Francisco em Baia da Traição/PB, tomando-se como parâmetro uma tabela de números aleatórios simples para seleção e identificação da família no SIASI. A técnica para coleta de dados foi uma entrevista individual seguida de um roteiro semiestruturado, com questões relativas à caracterização socioeconômica dos participantes, além de questões abertas sobre a temática, com utilização de gravador para registro das informações. Esta pesquisa seguiu as observâncias éticas contempladas nas Resoluções 196/1996 e 304/2000 do Conselho Nacional de Saúde, que tratam da ética em pesquisas envolvendo seres humanos e da temática em especial: população indígena. O tratamento do corpus foi submetido à análise por meio dos softwares: Statistical Package for the Social Sciences 234

(SPSS) 14.5 e, posteriormente, a Análise Lexical por Contexto de um Conjunto de Segmentos de Texto (ALCESTE) versão 4.8. Os resultados apontam a necessidade das instituições, lideranças indígenas e demais atores que têm responsabilidade social com os índios de se reunirem para adoção de propostas voltadas para a melhoria das condições de vida desta população, em que a Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena promova a integração entre o sistema local de saúde e a sabedoria indígena, tornando, assim, as intervenções de controle mais eficazes, sobretudo em relação às doenças infecciosas e parasitárias. Observamos, por um lado, representações sociais em que os índios Potiguara associam saúde a “ser ou estar saudável” e doença a “ser ou estar doente” capaz de atender às necessidades básicas como: alimentação, assistência à saúde, ocupação, trabalho e moradia. Por outro lado, as representações sociais de saúde e doença são ancoradas nos aspectos econômicos, culturais e sociais. No campo da saúde pública, evidencia-se a relevância deste estudo, uma vez que as representações sociais podem proporcionar fundamentos teóricos contextualizados socialmente para elaboração e avaliação de estratégias e/ou programas adotados pelas instituições responsáveis pela saúde dos índios no Brasil. Rita de Cassia Cordeiro de Oliveira Dissertação (Mestrado), 2009 Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal da Paraíba rita.oliveira@funasa.gov.br Palavras-chave: População indígena. Representações sociais. Enfermagem. Processo saúde/doença. Keywords: Indigenous population. Social representations. Nursing. Health-disease process. Palabras clave: Población indígena. Representaciones Sociales. Enfermería. Proceso salud-enfermedad. Texto na integra disponível em: http://www.ccs.ufpb.br/gepaie/lib/exe/fetch.php?id=hom e%3Apublica%C3%A7%C3%B5es&cache=cache&media =home:representa%C3%A7%C3%B5es_sociais_sobre_a_ situa%C3%A7%C3%A3o_de_vida_sa%C3%BAde_e_ doen%C3%A7a_na_concep%C3%A7%C3%A3o_ ind%C3%ADgena_potiguara.pdf

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criação

Mostra FSESP - três décadas da experiência Fundação Serviço de Saúde Pública: fragmentos da imagem da educação em saúde Maria Cristina Soares Guimarães1 Cícera Henrique da Silva2 Rosinalva Alves de Souza3 Rosemary Teixeira dos Santos4 Luiza Rosângela da Silva5

O trabalho de pesquisa para o projeto A Imagem da saúde no discurso oficial do Estado Novo: recuperação e disponibilização do acervo Cinematográfico do SESP - Educação Sanitária em 16mm, levantou um rico universo imagético e icônico que, para refletir e endossar um projeto de nação, pensou e expôs temas de saúde pública em várias frentes – higiene, epidemiologia, cuidados com alimentação etc. – e para públicos diferentes, articulando ideais de cidadão, de estado, de doença e de saúde em várias mídias. O destaque coube aos curtas e desenhos animados no formato 16mm, recuperados do acervo original da Serviço Especial de Saúde Pública - SESP para mídia digital, onde estes ideais estão representados ora na temática e nos personagens, ora na própria técnica escolhida para representá-los. Boa parte do acervo deriva de um momento histórico de convergência entre o interesse do Estado brasileiro e o discurso e o projeto dos Estados Unidos para a América Latina: no escopo de um Acordo Bilateral, foram trazidos para o país filmes educativos, ao mesmo tempo em que técnicos brasileiros produziram e exportaram uma solução fílmica própria, o diafilme. A diversidade de recursos usados e a originalidade de um tipo simpático de cinema no tratamento de questões de difícil compreensão - para um público de diversas idades mas, muitas vezes, iletrado, rural, isolado - inspiraram uma Mostra em que se pudesse apresentar, ao menos, parte do acervo recuperado. Mas a complexidade do contexto histórico, o alcance dos resultados em diversos pontos do país e a articulação com diversos órgãos demandavam o suporte à exibição com fatos e fotos que permitissem ao público entender o que aquele acervo representou durante o apogeu de sua utilização, no Brasil dos anos 1940 e 1950. Nascia a Mostra FSESP – três décadas da experiência Fundação Serviço de Saúde Pública: fragmentos da imagem da educação em saúde, composta de textos que coordenavam fotos, cartazes e boletins de época e fotogramas do acervo, em módulos ligeiros na forma de pedaços de película retirados de um imaginário rolo gigante de filme, para integrar a programação do 8º Congresso Regional de Informação em Ciências da Saúde - Crics 2008, no Rio de Janeiro. Foram produzidos cartazes, folhetos e um catálogo para informar o público da Mostra. O sucesso rendeu vários convites de instituições para que a exposição estivesse presente em seus respectivos eventos. A Mostra Fsesp adquiria, assim, um caráter itinerante que não havia sido pensado.

Laboratório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (LabCities, Icict/Fiocruz). Av. Brasil, 3865, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.040-361. cguima@ icict.fiocruz.br 2-5 Labcities, Icict, Fiocruz.

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Em 2008, a Mostra ilustrou o Seminário SUS 20 anos: desafios para a informação e comunicação em saúde, na Fundação Oswaldo Cruz. Para 2009, planejou-se uma trajetória que incluía percorrer várias cidades – como Outro Preto e Porto Alegre -, mas o surto de gripe suína limitou a Mostra ao IX Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, em Recife. Para 2010, a ideia é traçar um calendário com base na agenda nacional do Ministério da Saúde, mas também abrir espaço aos convites de instituições. Com a Mostra, a equipe do projeto conseguiu resgatar e dar visibilidade a um período da história da saúde pública brasileira contada de maneira nada usual em imagens em movimento - conhecida, até então, por poucos. A partir dela, e em paralelo à publicação de uma série de artigos que têm a pesquisa como suporte, espera-se estimular pesquisadores e estudantes das mais diversas áreas do conhecimento – História, Ciências Sociais, Saúde, Psicologia, Comunicação, Ciência Política etc. –, que tenham interesse neste objeto, a compartilharem dos achados e prosseguirem produzindo conhecimento sobre eles.

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