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INTERFACE Superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes Pierre Lévy
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apresentação
Na diversidade apresentada em termos de campos disciplinares, temas, objetos e referenciais teóricometodológicos dos textos que compõem as seções do fascículo 34 da Interface – Comunicação, Saúde, Educação, destacam-se contribuições sobre representações de profissionais da área da saúde e educação sobre sofrimento, adoecimento, cuidado; a educação em saúde e a formação profissional como estratégia para a produção do cuidado e a promoção da saúde; a medicalização do social e a complexidade envolvida no campo da produção do cuidado em saúde mental. O Dossiê sobre Discursos Médicos: diagnóstico e medicalização está estruturado com dois artigos que compõem diferentes olhares sobre o discurso médico, os quais trazem novos entendimentos sobre o amplo e longo processo de medicalização e alteração das fronteiras entre normal e patológico. O debate sobre medicamentalização, especialmente pela expansão do uso de psicofármacos no campo terapêutico e de sua difusão para além deste domínio, é ricamente atualizado a partir da abordagem do Transtorno de Déficit de Atenção, com ou sem Hiperatividade (TDA/H). As implicações sociais da expansão deste diagnóstico e da disseminação dos fármacos, em especial a ritalina, como recurso terapêutico são discutidas por María Cecília Tamburrino e colaboradores no artigo “Discursos médicos y estrategias de marketing de la industria farmacéutica en los processos de medicalización de la infancia en la Argentina”. A partir da análise dos discursos do campo médico (pediatria, psiquiatria infanto-juvenil e neurologia infantil) das regiões de Buenos Aires, Corrientes, Salta e Tierra del Fueg, concernentes ao diagnóstico de TDA/H e tratamento médico com utilização de fármacos na população infantil, os autores apontam que, a despeito da maioria dos entrevistados reconhecer a dificuldade em precisar o diagnóstico, os fármacos se impõem como opção terapêutica majoritária. O circuito do tratamento no qual emerge a decisão por medicar abrange diferentes esferas como a escola (que propõe o tratamento), a família (que solicita ao médico) e o médico (que, mesmo com dificuldade para definir o diagnóstico, receita o fármaco). Destaca-se, ainda, a influência da indústria farmacêutica nas esferas do circuito. Com suas estratégias de marketing, as empresas difundem informações para além da comunidade médica, penetrando nas escolas e nas famílias, áreas principais da vida das crianças. O segundo estudo, “A ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas”, de Francisco Ortega e colaboradores, discute a percepção social do fármaco no país, cujo incremento da utilização para o tratamento de patologias da atenção tem sido considerável na última década, ao mesmo tempo em que se observa seu uso em pessoas saudáveis que buscam melhorar suas funções cognitivas. Os resultados de dois campos de investigação são analisados. O primeiro sobre publicações nacionais (científicas e de mídia popular) acerca da ritalina e o segundo sobre as representações de universitários, seus pais e profissionais da saúde, sobre o uso da ritalina no aprimoramento do desempenho cognitivo. Deste segundo campo emerge uma rica discussão acerca das fronteiras entre natural e artificial, entre natureza e cultura, inclusive com repercussões no campo do que deve ser moralmente aceito. Para os autores, a natureza biológica, antes considerada imutável, passa a ser relativizada à medida que sobressai a tolerância à alteração da neurobiologia a partir de um ideal social que valoriza a performance das pessoas. Na seção Artigos, sobressaem trabalhos voltados às novas produções de cuidado em Saúde Mental, advindas com o movimento da reforma psiquiátrica brasileira. Os estudos destacam a complexidade de práticas, saberes e valores sociais e culturais no cotidiano da vida de instituições e associações em saúde mental. Em estudo sobre os sentidos do trabalho e imaginário organizacional em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Rio de Janeiro, Vinícius Vasconcellos e Creuza Azevedo discutem as experiências de prazer e sofrimento dos profissionais. Com argumentação embasada na tênue ralação de equilíbrio entre, de um lado, o êxito terapêutico do trabalho realizado e a reconhecida importância da proposta reformista e, de outro lado, as adversidades advindas da escassez de material e recursos, bem como a baixa valorização social do trabalho, são discutidos os limites e as possibilidades da transformação do cuidado em Saúde Mental. Igualmente preocupadas com a produção do cuidado neste campo, as pesquisadoras do Rio Grande do Norte Kamila S. Almeida, Magda Dimenstein e Ana Kalliny Severo analisam o cotidiano de uma associação local que congrega usuários de saúde mental, familiares e profissionais buscando compreender os dispositivos associativos como estratégias para o empoderamento dos usuários e familiares em termos da potencialização da força e autonomia desses sujeitos. O estudo aponta limites ao empoderamento dos usuários e familiares que emergem 481
a partir de múltiplos fatores, incluindo os institucionais, os políticos e os financeiros. A pertinência do empoderamento e da participação política dos sujeitos, como potencial terapêutico, é destacada no sentido da obtenção de direitos e do exercício da cidadania. Entre outras interessantes questões debatidas nos demais trabalhos de Interface 34, merece destaque, na seção Espaço Aberto, o relato de experiência sobre a implantação de um serviço de saúde vinculado a um terreiro de Camdomblé, em um município do subúrbio do Rio de Janeiro. Questões relacionadas a preconceito, intolerância religiosa, racismo cordial, entre outras, são exploradas no contexto das ações de saúde voltadas à população negra vinculada a religiões de matriz religiosa afrobrasileira e servem à reflexão sobre equidade e integralidade em saúde. Na seção Entrevista, Mary Jane Spink apresenta o professor Lupicinio Iñiguez-Rueda, catedrático em Psicologia Social da Universidade Autônoma de Barcelona, em um diálogo interessante tendo como pano de fundo questões emergentes quanto aos modos de vida saudáveis, ou à “promoção à saúde”, decorrentes do projeto de pesquisa “Controle e uso de tabaco em espaços públicos de convivência”, desenvolvida com o apoio do CNPq. Fica, pois, o convite para que nossos leitores apreciem a riqueza de temas, a complexidade dos objetos e a profundidade dos debates. Márcia Thereza Couto Editora assistente Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo
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presentation
Within the diversity of academic fields, topics, subjects and theoretical-methodological reference points presented by the texts that make up the sections of issue 34 of Interface – Comunicação, Saúde, Educação, the following contributions stand out: representations among healthcare and education professionals regarding distress, becoming ill and care; healthcare education and professional training as a strategy for producing care and promoting health; medicalization of the social sphere; and the complexity involved in the field of producing care for mental health. The “Dossier on medical discourse: diagnose and medicalization” is structured with two articles that make up different viewpoints on medical discourse. They bring new views on the wide-ranging and long process of medicalization and modification of the borders between normal and pathological. The debate on increasing use of medications, especially through expansion of the use of psychiatric drugs for therapeutic purposes and their spread beyond this domain, is richly updated through the approach used for attention deficit disorder, with or without hyperactivity. The social implications of expansion of this diagnosis and the spread of drug use (especially ritalin) as a therapeutic method are discussed by María Cecília Tamburrino and coworkers in the article “Medical discourse and marketing strategies in the pharmaceutical industry, within the processes of medicalization of childhood in Argentina”. From an analysis of the discourse within the medical field (pediatrics, child and adolescent psychiatry and child neurology) in the regions of Buenos Aires, Corrientes, Salta and Tierra del Fuego, concerning the diagnosis of attention deficit disorder and medical treatment with drug use for the child population, the authors indicate that, although most of the interviewees recognized the difficulty in making precise diagnoses, drugs become imposed as the therapeutic choice in most cases. The treatment circuit within which the decision to medicated emerges covers different spheres such as the school (which proposes the treatment), the family (which asks the physician for it) and the physician (who, even with difficulty in defining the diagnosis, prescribes the drug). The influence of the pharmaceutical industry within the spheres of this circuit can also be highlighted. Through marketing strategies, these companies disseminate information that goes beyond the medical community and penetrates schools and families, which are the main areas of children’s lives. The second study, “Ritalin in Brazil: production, discourse and practice”, by Francisco Ortega and coworkers, discusses the social perception of drugs in this country, where the use of drugs to treat attention disorders has increased considerably over the last decade, while at the same time, their use by healthy individuals seeking to improve their cognitive functions has been observed. The results from two fields of investigation are analyzed: firstly, in relation to Brazilian publications on ritalin (both within scientific journals and within the popular media); and secondly, in relation to representations by university students, their parents and healthcare professionals about the use of ritalin for improving cognitive performance. From this second field, a rich discussion emerges regarding the frontiers between natural and artificial and between nature and culture, including repercussions within the area of what should be morally acceptable. In the authors’ opinion, while biological nature was previously considered to be immutable, it has become a relative matter, in that tolerance to neurological changes stemming from a social ideal that places value on individuals’ performance is emphasized. In the Articles section, studies dealing with the new production of mental healthcare that has come through the Brazilian psychiatric reform movement have prominence. They highlight the complexity of practices, knowledge and social and cultural values within day-to-day activities in mental health institutions and associations. In a study on the meanings of work and organizational imaginary at a psychosocial attendance center in Rio de Janeiro, Vinícius Vasconcellos and Creuza Azevedo discuss the professionals’ experiences of pleasure and distress. With arguments based on the tenuous balance between, on the one hand, therapeutic success in the work performed and the recognized importance of the reform proposals and, on the other hand, the adversities stemming from the scarcity of materials and resources, along with the low social value placed on the work, the limits and possibilities for transforming mental healthcare are discussed. With equal concern regarding the production of care within this field, a study by researchers in Rio Grande do Norte (Kamila S. Almeida, Magda Dimenstein and Ana Kalliny Severo) analyzes day-to-day activities at a local association that brings together mental healthcare users, members of their families and professionals, and seeks to gain an understanding of these associative devices, as strategies for empowering users and their families, in 483
terms of boosting these subjects’ strength and autonomy. This study shows that there are limits to the empowerment of users and their families, which emerge from multiple factors, including institutional, political and financial factors. The pertinence of the subjects’ empowerment and participation in policies, as a potential means of therapy, is highlighted in the sense of achieving rights and exercising active citizenship. Among other equally interesting questions debated in the remaining studies that make up this issue, the experience reported in the Open Space section regarding the implementation of a healthcare service linked to a Camdomblé religious temple in a satellite municipality of Rio de Janeiro deserves to be highlighted. In this way, questions relating to prejudice, religious intolerance and cordial racism, among others, are explored within the context of healthcare actions aimed towards the black population that has links to Afro-Brazilian religions. This study serves to provide reflections regarding equity and comprehensiveness within healthcare. On Interview section, Mary Jane Spink promotes an interesting dialog with Lupicinio IñiguezRueda, Social Phycology full professor of Barcelona Autonm University, discussing emergent issues focusing on health life syles and “health promotion” thath were investigated during the research project “Control and use of tobacco in sociability public spaces”, developed with the CNPq support. Our readers are thus invited to appreciate the richness of these topics, the complexity of the subjects and the depth of the debates. Márcia Thereza Couto Assistant editor Department of Preventive Medicine FM USP
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Discurso médico y estrategias de marketing de la industria farmacéutica en los procesos de medicación de la infancia en Argentina Silvia Faraone1 Alejandra Barcala2 Flavia Torricelli3 Eugenia Bianchi4 María Cecilia Tamburrino5
FARAONE, S. et al. Medical discourse and marketing strategies of the pharmaceutical industry in the process of medicalization of childhood in Argentina. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.485-97, jul./set. 2010. This paper explores at the processes of medicalization and medicinalization of childhood, using attention deficit disorder with or without hyperactivity (ADD/H) as the analyzer. The results from a qualitative study carried out by an interdisciplinary team during 2008 in four Argentine jurisdictions (Buenos Aires Metropolitan Area, Corrientes, Salta and Tierra del Fuego) are presented. Discourse from the field of medicine (pediatricians, childhoodadolescence psychiatrists and pediatric neurologists) regarding the diagnostic construct of ADD/H and its therapeutic approach are explored, in relation to the public and private systems. In a complementary manner, the marketing mechanisms of pharmaceutical industry are investigated. Through the diagnostic construct of ADD/H, it can be seen how certain conducts and/or situations that had not been medicalized in the past have now become part of medical treatment, in which the main emphasis is on prescribing drugs as therapy.
Keywords: Childhood. Medicalization/ medicinalization. Psychoactive drugs.
Este artículo explora procesos de medicación incluso medicamentosa en la infancia, utilizando como analizador el Trastorno del Déficit de Atención con o sin Hiper-actividad (TDA/H). Se presentan los resultados de un estudio cualitativo realizado por un equipo interdisciplinario durante 2008 en cuatro jurisdicciones argentinas: Región Metropolitana de Buenos Aires, Corrientes, Salta y Tierra del Fueg. Se exploran los discursos del discursos campo médico – pediatras, psiquiatras infanto-juveniles y neurólogos infantiles – en torno de la construcción diagnóstica del TDH/A y su planteamiento terapéutica en los sistemas públicos y en el privado. De modo complementario se indaga acerca de los mecanismos de marketing de la industria farmacéutica. A través de la construcción de diagnóstico TDA/H es posible observar como determinadas conductas y/o situaciones que antes no eran medicadas hoy forman parte del tratamiento médico, cuyo principal énfasis se encuentra en la prescripción de fármacos como terapéutica.
Palabras clave: Infancia. Medicación. Psicofármacos.
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1 Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires. Uriburu 950, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. sfaraone@mail.fsoc.uba.ar 2 Cátedra Salud Pública, Facultad de Psicología, Universidad de Buenos Aires. 3 Cátedra Psicoanálisis: Psicología del Yo, Facultad de Psicología, Universidad de Buenos Aires. 4,5 Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires.
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Discurso MÉDICO DISCURSO médico Y y ESTRATEGIAS estrategias DE de MARKETING marketing DE de LA la INDUSTRIA... industria...
Introducción La medicalización es un objeto de estudio que viene siendo analizado desde hace varias décadas, en múltiples campos disciplinares y tradiciones de pensamiento: medicina, antropología, sociología, entre otros. La medicalización refiere al proceso progresivo mediante el cual el saber y la práctica médica incorporan, absorben y colonizan esferas, áreas y problemas de la vida social y colectiva que anteriormente estaban reguladas por otras instituciones, actividades o autoridades, como la familia, la religión, etc. (Foucault, 2001, 2000, 1996; Conrad, 1982; Illich, 1975). Medicalización, entonces, es el proceso histórico por el cual el campo médico se ocupa y trata diversos problemas - otrora no médicos - asociados a características intrínsecas de la vida; así, problemas de la vida son tratados en términos de problemas médicos como padecimientos, síndromes o enfermedades. En este artículo nos interesa profundizar en una de las formas actuales que adopta la medicalización: la medicamentalización (Iriart, 2008); es decir, la medicación o el tratamiento farmacológico como respuesta frecuentemente exclusiva a ese proceso medicalizador. Para ello tomaremos un analizador particular: el Trastorno de Déficit de Atención con o sin Hiperactividad (TDA/H). Entendemos por analizador una situación o un problema que al ser abordado hace visible una lógica de construcción social que trasciende esa situación o problema (Faraone, 2008). Pensar en el TDA/H como analizador nos lleva a considerar un fenómeno histórico más amplio, que actúa como horizonte de posibilidad para el accionar y alcance actual de la medicina. Decimos que el TDA/H es un analizador privilegiado para conocer las características del proceso de medicalización hoy, por varias razones: en primer lugar, porque el blanco de las acciones es el niño, sujeto que históricamente ha estado en el centro de las estrategias de la medicalización (Foucault, 2006, 2005, 2000, 1996); segundo, porque reformula un viejo problema, la conducta infantil, en términos acordes a las nuevas formas de gestión del disciplinamiento de las poblaciones, por eso, las técnicas que se despliegan pueden extenderse como metodología para el tratamiento de otras situaciones o problemas de adaptación a los modelos socialmente esperados y aceptados; y, por último, porque esta estrategia de medicalización incluye medicación en su tratamiento, lo cual abre una serie de consideraciones en relación al rol de las industrias farmacéuticas y la difusión de los fármacos como solución naturalizada. Estas características permiten observar una serie de elementos que hacen del TDA/H un objeto singularmente relevante para el análisis de los procesos actuales de medicalización / medicamentalización en la infancia en la Argentina, debido a: por un lado, el aumento en este país de la importación de metilfenidato, según datos informados por la Administración Nacional de Medicamentos Alimentos y Tecnología Médica (ANMAT); por otro, la elaboración, por un grupo de expertos, de un documento en el año 2007 que alerta al Ministerio de Salud de la Nación acerca del importante número de niños diagnosticados con y tratados por este síndrome (Benasayag, 2007), del incremento de diagnósticos de niños cada vez más pequeños (Vasen, 2005), de la inespecificidad del diagnóstico (Benasayag, 2007; Janin, 2007), del tipo de medicación indicada - psicoestimulantes - y de las implicancias éticas del suministro de psicofármacos a tan corta edad (Brio, 2007); por último, la aparición, cada vez más frecuente, de publicaciones acerca de la dimensión de cronicidad de este padecimiento y/o síndrome en revistas tanto del campo médico, como del campo educativo y familiar (Scandar, 2007; Michanie, 2000b). El presente trabajo está basado en los resultados de una investigación desarrollada durante el año 2008 a través de un convenio entre el Instituto de investigaciones Gino Germani de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires y el Observatorio Argentino de Drogas de la Secretaría de Programación para la Prevención de la Drogadicción y la Lucha contra el Narcotráfico (SEDRONAR). Dicho estudio tuvo por objetivo analizar la problemática de consumo de psicotrópicos en niños diagnosticados con TDA/H y su relación con los procesos de medicalización/ medicamentalización. A través de un diseño cualitativo, se desarrolló el trabajo de campo en cuatro provincias argentinas, y se dividió el análisis en dos componentes: educación y salud. En el componente de educación, se analizaron las dinámicas, circuitos y actores involucrados en la detección, 486
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6 Además de las autoras de este artículo participaron del proceso de investigación Isabel Ballesteros, médica pediatra, magister en epidemiología; Virginia López Casariego, médica pediatra y Constanza Leone, estudiante avanzada de la carrera de Ciencias de la Comunicación.
Para la organización de los puntos muestrales y selección de unidades de análisis se construyó un indicador utilizando dos variables: expendio de metilfenidato y atomoxetina, y población entre 0 y 14 años. Los datos de venta en farmacias fueron suministrados por la Confederación Farmacéutica Argentina (COFA). Debemos remarcar que este procedimiento fue sólo a los fines metodológicos y con el objeto de priorizar jurisdicciones para el trabajo de campo. No constituyó un dato válido ni de consumo, ni de población bajo tratamiento, sino sólo una construcción orientativa que nos permitió diseñar y priorizar los puntos nodales del trabajo de campo.
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diagnóstico y abordaje del TDA/H dentro de la institución escolar; y en el componente de salud, se analizó la detección, diagnóstico, circuitos y abordajes dentro del campo médico. En este artículo, trabajamos con algunos de los resultados correspondientes al campo médico. Este componente estuvo a cargo de un equipo interdisciplinario6, fue dirigido por la Mg. Silvia Faraone y tuvo como sede el Instituto de Investigaciones Gino Germani.
Objetivo general Analizar Analizar el el proceso proceso medicalización medicalización /medicamentalización /medicamentalización en en la la infancia infancia en en Argentina aa partir Argentina partir de de un un analizador: analizador: el el TDA/H, TDA/H, su su construcción construcción diagnóstica diagnóstica yy el el abordaje abordaje basado basado en en el el suministro suministro de de psicofármacos, psicofármacos, desde desde la la perspectiva perspectiva de de los los profesionales profesionales del del campo campo médico. médico. Describir Describir el el reposicionamiento reposicionamientode delalaindustria industriafarmacéutica farmacéuticaenenlos losprocesos procesos de de medicalización/medicamentalización medicalización/medicamentalizaciónaatravés travésdel delanálisis análisisdedesus susestrategias estrategias de de marketing. marketing.
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Las dos primeras corresponden a provincias con “mayor expendio” de metilfenidato y atomoxetina por población de zero a 14 años y las siguientes integraban el listado de provincias que se encuentran dentro de la categoría de “menor expendio” de dichas drogas para igual población. 8
Aspectos Aspectos metodológicos metodológicos Los Los resultados resultados aquí aquí expuestos expuestos corresponden corresponden aa un un estudio estudio cualitativo cualitativo donde donde se se analiza el discurso de los agentes del campo médico en relación a los procesos analiza el discurso de los agentes del campo médico en relación a los procesos de de medicalización/medicalización medicalización/medicalización de de la la infancia. infancia. Para el estudio del campo médico Para el estudio del campo médico se se seleccionaron seleccionaron profesionales profesionales de de la la salud salud pediatras, psiquiatras infanto-juveniles y neurólogos infantiles pertenecientes -pediatras, psiquiatras infanto-juveniles y neurólogos infantiles- pertenecientes al al subsector subsector público público yy privado privado de de salud. salud. También También se se seleccionaron seleccionaron informantes informantes claves pertenecientes a la industria farmacéutica agentes depropaganda propagandamédica médica claves pertenecientes a la industria farmacéutica -agentes de (APM) y líderes de opinión. La muestra fue intencional no representativa. Se (APM) y líderes de opinión. La muestra fue intencional no representativa. Se realizaron realizaron un un total total de de 45 45 entrevistas entrevistas semi-estructuradas. semi-estructuradas. 7 El trabajo de campo se El trabajo de campo se realizó realizó en en cuatro cuatro provincias provincias Argentinas Argentinas7:: Área Área Metropolitana del Conurbano Metropolitana (ciudad (ciudad de de Buenos Buenos Aires Aires yy primer primer Cordón Cordón del Conurbano 8 bonaerense), bonaerense), Tierra Tierra del del Fuego, Fuego, Salta Salta yy Corrientes Corrientes8..
El El TDA/H TDA/H cono cono clasificación clasificación gnoseológica gnoseológica Según el el Manual Manual Diagnóstico Diagnóstico yy Estadístico Estadístico de de Salud Salud Mental Mental (DSM-IV, (DSM-IV, 1995), 1995), Según que tiene como objetivo proporcionar criterios diagnósticos específicos de los que tiene como objetivo proporcionar criterios diagnósticos específicos de los distintos trastornos mentales, el síndrome del TDA/H está incluido dentro de distintos trastornos mentales, el síndrome del TDA/H está incluido dentro de lo que que denomina denomina como como “Trastornos “Trastornos por por déficit déficit de de atención atención yy comportamiento comportamiento lo perturbador”. El TDA/H puede presentarse en su tipo combinado (déficit perturbador”. El TDA/H puede presentarse en su tipo combinado (déficit de atención e hiperactividad), con predominio de déficit de atención, o con con de atención e hiperactividad), con predominio de déficit de atención, o predominio hiperactivo-impulsivo. predominio hiperactivo-impulsivo. El tratamiento tratamiento farmacológico farmacológico de de este este síndrome síndrome suele suele llevarse llevarse aa cabo cabo con con El metilfenidato, droga cuyo nombre comercial más conocido es la Ritalina®. metilfenidato, droga cuyo nombre comercial más conocido es la Ritalina®. Se trata trata de de un un estimulante estimulante de de acción acción similar similar aa las las anfetaminas, anfetaminas, que que por por Se su potencialidad adictiva está incluido en el listado de psicofármacos de su potencialidad adictiva está incluido en el listado de psicofármacos de alta vigilancia controlados por la Junta Internacional de Fiscalización de alta vigilancia controlados por la Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes (JIFE) (JIFE) de de la la ONU. ONU. Su Su venta venta en en el el país país requiere requiere el el uso uso de de un un Estupefacientes recetario oficial que los médicos deben solicitar al Ministerio de Salud de la recetario oficial que los médicos deben solicitar al Ministerio de Salud de la COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Nación. Las recetas se dan por triplicado y con archivo en la ANMAT. En los últimos años, el TDA/H también se trata con atomoxetina, droga que no requiere el mismo procedimiento que el metilfenidato, hecho que vuelve más difícil su control. El TDA/H muestra dos grandes líneas de debate en la actualidad en la Argentina: por un lado, sobre el diagnóstico; y por otro, sobre el tratamiento. En lo que respecta al diagnóstico, lo que es puesto en discusión es la existencia o no del síndrome o trastorno. En relación al tratamiento, lo que se discute es el modo en que este síndrome o trastorno debe ser abordado, particularmente el uso de medicación como tratamiento de primera elección. Las posturas críticas al diagnóstico y al tratamiento con medicación afirman que es inadecuado – desde el punto de vista de la Salud Pública – unificar a todos los niños desatentos y/o inquietos en una clasificación psiquiátrica donde una categoría descriptiva pasa a ser explicativa de todo lo que le ocurre al niño.
La medicalización/medicalización como construcción social La medicalización como proceso histórico es un tema muy amplio, que ha sido abordado desde múltiples campos y tradiciones de pensamiento. Acuñado por el filósofo, historiador y crítico social Ivan Illich, en su libro “Némesis médica: la expropiación de la salud” en el año 1975, el término ‘medicalización’ define un proceso que se extiende en la sociedad de nuestro tiempo, por el cual los médicos se ocupan y tratan problemas que atañen al bienestar humano, es decir problemas asociados a características intrínsecas de la vida, tales como: la sexualidad, la infelicidad, el deterioro biológico, el envejecimiento, la soledad y la muerte, entre otros. Así, problemas de la vida son tratados en términos de problemas médicos, es decir como enfermedades, síndromes o padecimientos. El estudio de la medicalización es uno de los ejes centrales de los análisis de Foucault. En sus trabajos, analiza al saber médico como un discurso de poder, que operando en distintos dispositivos, forma parte del núcleo duro de las estrategias tendientes a la normalización de los cuerpos individuales y sociales. Pero además, inscribe a la medicina como participando en un fenómeno histórico más amplio: el proceso de medicalización de la sociedad (Foucault, 2003, 2000, 1996). Éste es entendido como proceso general a partir del cual en el siglo XVIII la medicina se convierte en específicamente social (Rosen, 1985; Castel, 1980), la medicina se torna una estrategia biopolítica, desplegando y expandiendo su dominio hacia cuestiones como el saneamiento del agua, las condiciones de vivienda, el régimen urbanístico, la sexualidad, la alimentación e higiene (Foucault, 1996). Estos ámbitos de incumbencia rebasan a los que antes convocaban a la medicina - centrados casi exclusivamente en la enfermedad y en la demanda del enfermo - dotándola de funciones de control y normalización de los cuerpos. El proceso de medicalización es pues esencial para la comprensión del modo en que los cuerpos - individuales y sociales - se vuelven objetos de saber, blancos del poder y campo de intervención de múltiples dispositivos. Foucault abordó la medicalización partiendo de la hipótesis de que ningún problema es intrínsecamente médico o no. El dominio de la medicina no es único e inalterable, no está dado sino que cada cultura define de una forma propia y particular el ámbito de los sufrimientos, de las anomalías, de las desviaciones, de las perturbaciones funcionales, de los trastornos de la conducta que corresponden a la medicina, suscitan su intervención y le exigen una práctica específicamente adaptada […]. En último término la enfermedad es, en una época determinada y en una sociedad concreta, aquello que se encuentra práctica o teóricamente medicalizado. (Foucault, 1996, p.21)
Los aportes de Conrad resultan nodales para la comprensión del fenómeno de la medicalización. Conrad considera que la clave de este proceso está en la definición de un problema en términos médicos, utilizando un lenguaje médico para describirlo, adoptando un marco médico para entenderlo, y/o utilizando la intervención médica para tratarlo. El corolario de este fenómeno de medicalización es que “problemas no-médicos son definidos y tratados como problemas médicos, generalmente en términos de enfermedades o desórdenes” (Conrad, 1992, p.209). 488
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Otra de las contribuciones centrales de Conrad deriva de su análisis de las principales consecuencias de la medicalización para la sociedad. Dos son particularmente relevantes para el análisis que estamos realizando: 1 La expansión creciente de las áreas de incumbencia de la medicina, fomentada por una industria farmacéutica crecientemente poderosa y rentable; 2 El uso de diversas tecnologías por parte de la medicina para el tratamiento del comportamiento anormal. Estos mecanismos tecnológicos actúan de manera tal que contribuyen al sostenimiento del statu quo, con efectos que en ocasiones resultan irreversibles en quienes se ejercen. Aunque estas contribuciones resultan relevantes para nuestros análisis, entendemos además junto a Conrad, que la consecuencia más trascendente de la medicalización es que retraduce las dificultades humanas en cuestiones individuales, omitiendo o relegando a un segundo plano la naturaleza social de los fenómenos. Y ello conduce a la obturación de otros niveles de intervención posibles. Según Conrad este enfoque en el organismo individual - que está en perfecta consonancia con la ética individualista de la cultura occidental - “deforma la realidad y permite el control social en nombre de la salud” (Conrad, 1982,p.154). p.154). (Conrad 1982, Expresando una de las posturas más radicales respecto de esta problemática, Thomas Szasz sostiene que la medicalización no es medicina, ni ciencia; es una estrategia semántica y social, que beneficia a algunas personas y daña a otras. El autor sostiene que si en el pasado las personas más injuriadas eran los pacientes con padecimientos mentales; hoy día la situación es más compleja, ya que cualquiera puede, en algún momento, ser alternativamente dañado por la medicalización (Szasz, 2007b). Según Szasz, las sociedades occidentales actuales están guiadas y controladas por la ciencia, especialmente la ciencia médica. En este marco, la medicina y el Estado han formado un vínculo sólido, que el autor denomina “farmacracia” (Szasz, 2007a). Los análisis de Szasz corroboran y completan los efectuados casi treinta años antes por Foucault, quien había señalado en 1974 que en el futuro inmediato, la figura del médico adquiriría un rol cada vez más de mero intermediario entre el paciente y la industria farmacéutica (Foucault, 1996). Los actuales estudios de Celia Iriart (2008) introducen un abordaje innovador y resignifican el rol de la industria farmacéutica a la luz de los procesos de la atención gerenciada en el sector salud. Iriart coloca al capital financiero como un nuevo actor en la reconfiguración de estos procesos. En este sentido la ordenación hegemónica del capital financiero que se produce en los ´90s y las pujas distributivas que se generan, con el hasta entonces casi indiscutido actor central del sector salud, la industria farmacéutica, son determinante de las nuevas condiciones en que se produce la medicalización/ medicamentalización. Iriart brinda elementos en el cual permite visualizar cómo la puja distributiva no se ha resuelto entre el capital financiero y el complejo médico industrial, sino que ha adquirido nuevas formas que le dan a cada uno su parte, en desmedro del sector público, de los profesionales y de la salud de los colectivos sociales. (Iriart, 2008, p.1624)
Así la industria farmacéutica ha radicalizado el proceso medicalizador y medicamentalizador, produciendo nuevos desafíos analíticos del problema que aquí abordamos.
Primera parte: el El médico como intermediario. Los procesos de diagnóstico y tratamiento Diagnóstico El TDA/H es un diagnóstico de expansión reciente en la Argentina. Según los profesionales entrevistados, habría dos fechas claves que marcan su auge, mientras algunos sostienen que el
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momento de crecimiento y consolidación ocurre durante los ´90s, otros indican su incremento a partir del 2000, particularmente, en el período posterior a la crisis que experimentó la Argentina en el 2001. Mencionamos previamente que uno de los principales debates en el campo del TDA/H es la existencia o no del diagnóstico “como tal”. A lo largo de la investigación, hemos podido documentar una multiplicidad de posiciones respecto de la existencia y estatuto del diagnóstico. Por un lado, y a pesar de admitir una importante imprecisión diagnóstica ligada al cuadro, una cierta confusión producto de diversos enmascaramientos diagnósticos y la alta frecuencia de la comorbilidad, la mayoría de los profesionales médicos entrevistados acuerdan en la existencia del cuadro clínico. Ellos afirman que es un diagnóstico antiguo y que las modificaciones se han dado sólo a nivel de la denominación, pero que su esencia se ha mantenido desde su primera descripción. Así mencionan que lo que hoy se conoce como TDA/H anteriormente era distinguido como “daño cerebral”, “comportamiento amoral”, “disfunción cerebral mínima”, “hiperkinesia”, “disritmia”, “déficit de atención”, “trastorno por déficit de atención”. Estas visiones mayoritarias, sin embargo, se contraponen con la perspectiva de otros entrevistados que rechazan la existencia misma del diagnóstico, atribuyendo a una conjugación de factores históricos, sociales y culturales la responsabilidad y la producción de la subjetividad del niño y por ende de su malestar. Algunos de estos entrevistados acuerdan que el TDA/H es una “moda”, impuesta por los medios de comunicación o climas de época. Esta perspectiva enfatiza la subjetividad de cada niño y el contexto de producción familiar de sus síntomas o características de personalidad. Ciertos ideales epocales son mencionados como condicionantes en la producción de subjetividad del niño y su familia: “el rendimiento”, “el éxito”, “el consumo”. Por otro lado, algunos profesionales entrevistados hacen hincapié en los laboratorios como factores que contribuyen a la aparición del “sobrediagnóstico” y la “sobremedicación”. Mencionan que el incremento de la incidencia del TDA/H es simultáneo con el momento en que se incorpora en mayor medida la práctica de medicar a los niños. Hubo distintas respuestas según la especialidad médica de los entrevistados en lo atinente a la etiología del cuadro, la configuración del diagnóstico del TDA/H, y la terapéutica delineada para el mismo. También se observaron diferencias en torno a la magnitud de la consulta en los subsectores, público y privado, de atención a la salud. Sin embargo, una consideración importante y consensuada de la construcción diagnóstica son las enunciaciones acerca de que la enfermedad no se cura, sino que sólo puede aspirarse a mantenerla controlada (con o sin medicación mediante). Esta apreciación de la enfermedad conlleva a que el tratamiento (en sentido amplio, como necesidad de estar en contacto con el ámbito médico) sea “de por vida”. Ahora bien, acerca de la etiología del síndrome no parece haber certezas ni acuerdos entre los entrevistados. En líneas generales se habla de multicausalidad para explicarlo. Sin embargo, los especialistas en neurología infantil señalan enfáticamente causas ligadas a compromisos orgánicos y /o predisposiciones genético-hereditarias. Aquellos profesionales que trabajan en el sector público estatal de salud, refieren atender casos que revisten, a su atender, mayor complejidad que el TDA/H. Plantean la posibilidad de sub-diagnóstico en poblaciones con menores recursos socioeconómicos, lo cual asocian a la presentación de otros problemas sociales complejos en la infancia, la adolescencia o en la edad adulta. Asimismo, señalaron que la mayoría de los niños con diagnóstico de TDA/H eran atendidos en efectores privados de salud. En la construcción diagnóstica, y a diferencia de otros padecimientos, el fármaco ocupa un lugar central. Los entrevistados, principalmente los profesionales de la neurología infantil, señalan que el fármaco puede ser utilizado como una herramienta para la constitución misma del diagnóstico, es decir el consumo del fármaco anticipa el diagnóstico del TDA/H. La confirmación diagnóstica a partir del consumo del fármaco, se formula bajo la premisa “si el niño funciona con el medicamento, estamos ante un caso que podemos diagnosticar como TDA/H”. Tal como lo referían en ocasiones otros participantes del estudio, “este procedimiento estaría alterado el circuito esperable de detección, diagnóstico y tratamiento, dado que el fármaco se constituye en el eje del diagnóstico y no sólo en una posible terapéutica”, con los riesgos ligados a sobremedicación que esto conlleva.
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A lo largo de las entrevistas, la escuela se revela como la principal fuente de derivación al médico. La derivación puede tener dos direcciones: hacia el pediatra de cabecera o hacia un especialista, habitualmente un neurólogo infantil, y por lo general su nombre o la institución de pertenencia viene sugerida por la propia escuela. A partir de esta primera consulta se inicia un circuito de re-derivaciones que varía según los profesionales intervinientes. Más que por razones de índole clínica, el circuito de diagnóstico y tratamiento queda definido por los profesionales y sus posturas terapéuticas, evidenciándose aquí una división entre los que son a) proclives a la medicación o son b) proclives a terapias no medicamentosas, muchos de los cuales se autodefinen como “anti-medicación”. En función de esta línea se juega cada uno de los circuitos que el niño va a ir atravesando. Como vemos, frente a un niño diagnosticado con TDA/H, los distintos actores médicos vuelven a poner de manifiesto ante el tratamiento la división ya constatada en el relevamiento de la temática diagnóstica: medicar o no. Es en función de esta gran divisoria de aguas que se interconsultan los distintos profesionales médicos con el fin de precisar el diagnóstico y asegurarse el camino terapéutico adecuado. Más que por la necesidad y requerimiento del cuadro clínico que puede plantear un niño, el circuito terapéutico parece definirse por las posturas personales de los profesionales en juego ante la medicación.
Tratamiento Una vez que el niño es diagnosticado, puede iniciar un recorrido que se disputa entre los dos grupos ya señalados; sin embargo la construcción propia del diagnóstico de TDA/H implica una asociación terapéutica con el fármaco. Así, a pesar de que todos los entrevistados médicos señalan un cierto consenso o manifiestan las ventajas de tratamiento integral - es decir, no centrado exclusivamente en el psicofármaco -, en un grupo de profesionales, particularmente integrados por neurólogos infantiles, el fármaco emerge como principal regulador del tratamiento y el resto de las terapéuticas se enuncian como subsidiarias de ésta. Un aspecto que nos ha llamado la atención en los circuitos de derivación y tratamiento, es que el psiquiatra infanto-juvenil no se encontró asociado a esta problemática en su etapa diagnóstica y de inicio del tratamiento. Su intervención está relacionada con interconsultas a partir de fracasos en los tratamientos farmacológicos, donde se piensa una comorbilidad asociada a una psicopatología de base más grave. Los pediatras constituyen un colectivo de profesionales que siguen manteniendo una mirada integral tanto a la hora de diagnosticar como de indicar una terapéutica, y en general, manifiestan buscar alternativas a la prescripción de medicamentos. Sin embargo, la reconstrucción de los circuitos de tratamiento pone de manifiesto que la pediatría es una especialidad central en los procesos y decisiones de derivación hacia otras especialidades y por lo tanto un engranaje clave en la direccionalidad que adoptará el camino terapéutico. De la derivación depende la disciplina profesional que se consultará para abordar el problema (neurología, psicología, psicopedagogía, etc.). Al mismo tiempo, de esta derivación se desprende en gran medida si el abordaje estará basado o no en la medicación, pues como vimos, el circuito terapéutico depende en gran medida de las posturas personales en torno al síndrome y al abordaje que cada profesional adopta. En relación a prescripción del fármaco, el nombre de fantasía más mencionado por los entrevistados fue la Ritalina® (metilfenidato), droga de venta restringida y controlada en la Argentina por la ANMAT. En relación al genérico atomoxetina, el nombre comercial más aludido fue el Recit®. Si bien en términos generales cada médico es proclive a la selección de una de las drogas utilizadas, hemos detectado que hay profesionales que distinguen el tipo de droga a la hora de medicar: atomoxetina para aquellos casos en los cuales hay predominio de impulsividad y el metilfenidato para aquellos diagnósticos en los cuales la desatención es la principal característica. La administración de la medicación sigue los movimientos del ciclo escolar: de lunes a viernes (con descanso durante el fin de semana) y de marzo a diciembre. Todos los médicos prescriptores de estos psicofármacos refieren utilizar este diagrama de consumo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Respecto de los tiempos del tratamiento medicamentoso se ha encontrado mucha diversidad e imprecisión: hay quienes sostienen que dos o tres años de tratamiento medicamentoso es suficiente; otros afirman que conviene mantenerlo durante toda la escolaridad; otros, en cambio sostienen la necesidad de evaluar cada año, para decidir si se interrumpe la medicación en función de los cambios que se hubieran provocado. Se registra una naturalización entre la administración de la medicación y el ciclo escolar. Al mismo tiempo, los distintos actores mencionan la presión de los padres y del colegio a la hora de evaluar la indicación psicofarmacológica. En las narraciones de los profesionales el consumo de medicación para el TDA/H se encuentra asociado a los niveles socioeconómicos de pertenencia de los niños. Si bien hemos encontrado una difundida naturalización del consumo de psicofármacos para niños con este diagnóstico, dicha naturalización parece ser más relevante en los sectores sociales medios o altos. Se menciona que en escuelas de mayores recursos socio-económicos el consumo de psicofármacos para el TDA/H se encuentra ampliamente naturalizado y extendido. Los entrevistados infieren que esto estaría asociado a que estos niños están más expuestos que sus pares de bajos recursos a expectativas de exigencia y rendimiento (social y académico) y el consumo de psicofármacos estaría directamente inscripto en el cumplimiento de tales expectativas. Refiere un entrevistado que “el fármaco se convierte en una alternativa frecuentemente solicitada por los padres; en general, se puede rastrear que son adultos en quienes es posible indagar ideales similares y en quien también recaen las mismas exigencias de éxito”. En este mismo sentido varios profesionales entrevistados señalaron que la medicación resulta una herramienta vinculada a la “comodidad”, y está en “consonancia con la exigencia de rendimiento y eficacia”. Esto podría estar asociado a un proceso de sobrediagnóstico dado que no es un argumento estrictamente clínico el que se está tomando para juzgar la necesidad de la medicación en el niño, sino que priman los factores institucionales, familiares y sociales. Al mismo tiempo, los profesionales entrevistados explican la extensión de la medicación en estos sectores de mayores recursos por la cobertura en salud y la posibilidad de acceder económicamente a la medicación. Por el contrario, en sectores más vulnerables y marginales tanto la desatención de un niño o su hiperactividad son referenciadas, o bien como “problemas de conducta”, o bien como “característica de personalidad del niño”. Según un entrevistado, a estos niños no se le atribuyen “expectativas o posibilidades para aprender, sino que sólo se espera que no provoquen disturbios o desórdenes en el aula y puedan sostenerse en el sistema escolar primario”. Al mismo tiempo no existen, tanto a nivel nacional como de las provincias en las cuales se realizó el trabajo de campo, programas estatales de distribución de medicamentos en los cuales se incluya el metilfenidato y/o la atomoxetina. Un hallazgo resultante de la investigación fue la aparición de casos de administración de neurolépticos y antidepresivos en niños con presunto diagnóstico de TDA/H. Esto introduce cierto cuestionamiento dado que ambos medicamentos no fueron autorizadas por Food & Drugs Administration (FDA) para la prescripción en diagnóstico de TDA/H, y sólo algunos de ellos están autorizados para ser prescriptos niños mayores de cinco años con otros diagnósticos. Sólo uno de los informantes claves se refirió a la escasez de estudios científicos rigurosos y extendidos en el tiempo en la población infantil en relación a estos fármacos, hecho que pone de manifiesto problemas éticos y bioéticos en relación a la prescripción y política de medicación en nuestro país.
Segunda parte: el El reposicionamiento de la industria farmacéutica Marketing e industria farmacéutica Durante el desarrollo de la investigación nos interesó indagar acerca del modo en que la industria farmacéutica en la Argentina consolida estrategias de marketing en el mercado de los psicofármacos para niños, a fin de analizar la articulación entre estas estrategias, el diagnóstico y tratamiento del TDA/H y la consolidación de los procesos de medicalización/medicamentalización.
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10 Debemos destacar que el acceso a las entrevistas a Personal Jerárquico de los Laboratorios, Coordinadores de Área y Agentes de Propaganda Médica fue dificultosa. Así mismo, en las entrevistas que accedimos no se nos permitió realizar grabaciones.
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9 Información suministrada en entrevista por el Departamento de Psicotrópicos y Estupefaciente de la ANMAT.
El TDA/H en la población infantil es un mercado en expansión, tal como lo muestran, por un lado, las cifras de importación de metilfenidato proporcionadas por el ANMAT que señalan un significativo incremento en la importación de esta droga en la Argentina, de 47.91 kg. en el 2007 a 81.75 kg. en el 20089; y por otro, las estrategias de marketing que la industria farmacéutica implementa. A lo largo de la investigación observamos que el marketing farmacéutico se dirige por un lado hacia la comunidad médica, a través de las ya conocidas estrategias de incentivos y/o controles, y también a través mecanismos de difusión de información a través de los líderes de opinión o “speakers”. Pero también, detectamos que la industria farmacéutica pone especial énfasis en estrategias de marketing dirigidas a usuarios y/o sus organizaciones de familiares y a la comunidad educativa. Si bien estas acciones están prohibidas por la legislación nacional, se crean intersticios que posibilitan llevarlas a cabo. Hemos sistematizado los procedimientos de marketing que la industria farmacéutica implementa en relación a las dos drogas para el tratamiento del TDA/H10. Así, teniendo en cuenta las tácticas y los sujetos destinatarios pudimos distinguir diversas y novedosas estrategias. Estrategias dirigidas a los médicos Esta estrategia está relacionada con el seguimiento minucioso del médico. Este actor privilegiado en la cadena de transmisión para el consumo del fármaco está cada vez más objetivado por el propio proceso de medicalización – medicamentalización (Pavlovsky, 2006). Los laboratorios pueden hoy tener un seguimiento minucioso sobre qué y cuándo recetan los médicos a través de información construida por empresas de mercadotecnia (Jara, 2007). En la Argentina pudimos rastrear que dos son las principales. Sobre una de ellas, Lakoff (2003) realizó un interesante seguimiento acerca del modo en que este tipo de empresas operan para identificar a los médicos, las drogas y cantidades prescriptas a través de la copia de recetas microfilmadas tomadas en las grandes cadenas farmacéuticas de la ciudad de Buenos Aires. Durante la investigación hemos podido acceder a información que estas empresas venden a los laboratorios, particularmente relacionadas con fármacos para el TDA/H. Esta información se elabora mensualmente y revela las cifras de unidades vendidas (cajas vendidas) vinculadas a la totalidad de fármacos utilizados para este síndrome – tanto por el laboratorio que compra el resumen, como por los otros laboratorios competidores en el mercado. Según información de representantes de los propios laboratorios, estas cifras son las de mayor exactitud de venta, constituyéndose en la información más limpia que se puede rastrear en materia de estudios de mercado. A lo largo del trabajo de campo se observó que la estrategia dirigida a los médicos ha cambiado sustancialmente respecto de lo conocido hace tiempo atrás, ya no es necesario visitar día a día al médico para motivarlo y/o vigilarlo, otros mecanismos de control se ponen en juego. Si bien los APM casi no visitan a los pediatras por temas relacionados con el campo de la salud mental, estos se encuentran muy informados acerca del TDA/H a través de publicaciones de los laboratorios y las denominadas “guías de consenso”. En relación a los distintos especialistas médicos podemos decir que cuando se trata de psicofármacos para niños en general, los psiquiatras infanto juveniles y los neurólogos infantiles son las especialidades a las cuales se dirigen propagandas y/o privilegios por parte de los laboratorios. En el caso específico del TDA/H, según la información recabada, son los neurólogos infantiles los actores más relevantes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Lideres de opinión Los líderes de opinión son un engranaje clave en la actual estrategia de marketing de la industria farmacéutica. Según información vertida por los APM, son ellos mismos quienes evalúan a los médicos según su rol con los semejantes, luego son los propios laboratorios quienes los “moldean” a fin de elevarlos a la categoría de expertos, o, tal como lo definió un informante clave, en “sabios locales”. Son también los encargados de difundir los últimos hallazgos en relación a enfermedades y/o síndromes y las posibles terapéuticas en congresos, conferencias científicas, publicaciones y/o a través de las guías de consenso. Relatan Moynihan y Cassels (2006) que las alianzas con los líderes de opinión son tan importantes que algunas empresas de marketing calculan el rendimiento de la inversión que una campaña farmacéutica puede cosechar de esta clase de presentaciones. De acuerdo a las fuentes consultadas y las entrevistas realizadas a informantes claves de la industria farmacéutica, se destacó la estrategia de los líderes de opinión, o “speakers”, para la difusión de la información sobre la medicación del TDA/H a otros miembros de la comunidad médica. Según lo relevado, estos líderes de opinión son médicos psiquiatras infanto juveniles y neurólogos infantiles destacados pertenecientes a las instituciones públicas y/o privadas de mayor “prestigio” asistencial de la ciudad de Buenos Aires. Un entrevistado perteneciente a la industria farmacéutica expresa: “cada laboratorio tiene sus líderes de opinión que son los que sostienen científicamente (con teorías) la tendencia del laboratorio en materia de fármacos. Cada uno se lleva un cheque…o equivalentes. Hay laboratorios que tienen políticas de captación de psiquiatras y otras que premian por lo que los psiquiatras ya recetan. Nosotros ya sabemos que hay médicos que con tal de que les pagues dicen cualquier cosa…. En el medio ya se los conoce…. y a esos se apuesta”.
Estrategia directa hacia los usuarios y/o sus organizaciones En la Argentina la alianza entre la industria farmacéutica y ciertas asociaciones de pacientes/ padres y/o familiares es aún muy incipiente y no tiene el desarrollo que ha adquirido en otros países. Sin embargo, se observa la tendencia de algunos laboratorios a organizar grupos de dos, tres o más familias con el objetivo de brindar información sobre el TDA/H. A estas reuniones se las suelen denominar “mesas de ayuda”, muchas veces promocionadas a través de las escuelas y generalmente realizadas en algún tipo de ámbito médico no asistencial. Otra estrategia detectada dirigida a la familia fue la enunciada por los entrevistados como “los incentivos”. Consiste en la captación del interés hacia una droga en particular a través de la provisión de incentivos durante un tiempo. Estos incentivos están asociados a la entrega de cajas compensatorias si se selecciona un determinado fármaco de cierto laboratorio. Estrategias dirigidas a la comunidad educativa A lo largo del trabajo de campo pudimos rastrear el intento de la industria farmacéutica por acercarse a los ámbitos educativos, particularmente a docentes y gabinetes psicopedagógicos. La escuela es un actor privilegiado, como ya se expresó, para iniciar el circuito de derivación y tratamiento del TDA/H. La investigación permitió observadar tres modalidades estratégicas que los laboratorios implementan hacia la comunidad educativa. La primera podría definirse como aquella en la cual los empleados o agentes de los laboratorios, APM, que junto a, o a través de, especialistas médicos concurren a las escuelas y/o realizan charlas informativas a los gabinetes psicopedagógicos. Al igual que en las estrategias con las familias, a estos encuentros se los denominan “mesas de ayuda”. La segunda estrategia identificada fue la elaboración de información destinada a maestros. Esto se verificó en la edición de cuadernillos destinados a profesionales del ámbito educativo, con consejos para docentes e información acerca de los medicamentos a utilizar para el TDA/H.
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Por último también observamos la difusión de las drogas disponibles en el mercado en revistas pedagógicas. Hemos relevado números completos dedicados al TDA/H en revistas especializadas para docentes y psicopedagogos. En ellas, los autores son generalmente líderes de opinión de laboratorios vinculados a la producción de drogas utilizadas para este síndrome.
Conclusiones En este artículo analizamos el avance de los procesos de medicalización/medicamentalización en la infancia a partir de un analizador: el Trastorno de Déficit de Atención con o sin Hiperactividad (TDA/H). La medicalización como forma de intervención política se presenta como continua e indefinida y busca abarcar todo lo concerniente a la vida social en el mayor rango de edad posible, de tipo de población, y con la mayor duración posible en el tiempo. A su vez, la medicina ya no se ocupa de combatir la enfermedad, sino de hacer vivir de determinada manera. Su campo de acción no es sólo el de la enfermedad, sino el de la vida como un todo. La medicalización de la vida cotidiana resulta un proceso de larga data, que en la actualidad toma una forma específica: la medicamentalización. El consumo de psicotrópicos en niños diagnosticados con TDA/H es un modelo de cómo ciertas conductas y/o situaciones que antes no eran medicalizadas hoy son parte de los circuitos de tratamiento médico, circuitos que tienen principal énfasis en el consumo de fármacos como terapéutica. La Argentina no cuentan con estadísticas de diagnostico de TDA/H, sin embargo a lo largo de la investigación hemos registrado, según datos proporcionados por ANMAT, un significativo incremento en la importación del metilfenidato (47.91 kg. en el 2007, 81.75 kg. en el 2008). Dichas cifras, sumado al discurso de los entrevistados del campo médico y a las estrategias de marketing que la industria farmacéutica desarrolla para este síndrome, nos ubica en un escenario en el cual podríamos concluir que en Argentina hay auge y consolidación del diagnóstico de TDA/H en la población infantil. En relación al debate sobre la existencia o no del TDA/H como diagnóstico hemos documentado que la mayoría de los profesionales médicos de las tres especialidades abordadas en esta investigación, acordaron en la existencia del TDA/H como entidad clínica tal lo describe el DSM IV. Sin embargo la mayoría reconoce una dificultad para precisar el diagnóstico y distinguirlo de otros cuadros. En menor medida, algunos profesionales afirman que el TDA/H existe como producto de la moda o como invención de la industria farmacéutica. Asimismo, se observó una diferenciación diagnóstica según el sector social de pertenencia de los niños, una preponderancia del diagnóstico en sectores medios altos y una menor participación de los sectores bajos. En este último, la fenomenología del TDA/H en general no es interpretada en términos diagnósticos, sino como “problemas de conducta” o como “características de la personalidad del niño”. Si bien se registraron distintas posiciones según especialidad médica y subsector de pertenencia de los entrevistados respecto del tratamiento, el fármaco emerge como la opción terapéutica mayoritaria. Según las narraciones profesionales, entre las distintas disciplinas médicas la neurología infantil es la que más tiende a la prescripción de fármacos. El circuito de tratamiento donde se inscribe la decisión de medicar, está dado por la escuela que la propone, la familia que la solicita y el médico que la receta. Por otro lado, se ha identificado que la industria farmacéutica viene implementando nuevas estrategias de marketing y difusión (líderes de opinión, mesas de ayuda, gacetillas, etc.). Estas estrategias, que se suman a las ya conocidas destinadas a la comunidad médica, se dirigen a actores no médicos, particularmente maestros y asociaciones de padres. De este modo, la industria farmacéutica y sus productos de mercado encuentran nuevos modos de penetrar en la comunidad educativa y en las familias, áreas principales donde se desarrolla la vida del niño. El análisis del TDA/H permite transparentar cómo ciertas manifestaciones de vida de los niños son pensadas como enfermedades, síndromes o padecimientos e ilustrar el modo en que la industria farmacéutica reconstruye estas configuraciones en términos de ganancia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Colaboradores Los autores trabajaron juntos en todas las etapas de la producción del manuscrito.
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Palavras-chave: Palabras clave: Infancia. Infância.Medicación. Medicalização/medicamentalização. Psicofármacos. Psicofármacos. Recebido em 31/08/2009. Aprovado em 02/09/2010. 09/02/2010.
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A ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas
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Francisco Ortega1 Denise Barros2 Luciana Caliman3 Claudia Itaborahy4 Lívia Junqueira5 Cláudia Passos Ferreira6
ORTEGA, F. et al. Ritalin in Brazil: production, discourse and practices. Interface Comunic., Saude, Educ., Educ. v.14, n.34, p.499-510, jul./set. 2010.
The aim of this paper was to present ongoing research on the social representations relating to ritalin in Brazil between 1998 and 2008. Over this period, there was a considerable increase in ritalin usage and expansion of its use to purposes other than therapeutic use. Ritalin has been used not only for treating attention disorders, but also to enhance cognitive functions in healthy individuals. The research has developed through two fields of investigation with different methodologies. In the first field, Brazilian scientific and popular publications have been investigated, with analysis on the arguments justifying ritalin usage and how scientific results are disseminated to the lay public in large-circulation newspapers. In the second field, focus groups have been used to explore the social representations that university students, students’ parents and healthcare professionals have in relation to the use of ritalin for enhancing cognitive performance.
Keywords: Attention deficit disorder with hyperactivity. Ritalin. Cognitive enhancement. Brazil. Media.
O objetivo do artigo é apresentar uma pesquisa em andamento sobre as representações sociais da ritalina no Brasil entre 1998 e 2008. Nesse período, houve um incremento considerável do uso da medicação e sua expansão para outros fins além dos terapêuticos. A ritalina tem sido usada tanto para o tratamento de patologias da atenção como para melhoria de funções cognitivas em pessoas saudáveis. A pesquisa se desdobra em dois campos de investigação, com metodologias diferenciadas. O primeiro campo investiga as publicações brasileiras, científicas e em mídia popular, sobre a ritalina, analisando os argumentos que justificam seu uso e a difusão dos resultados científicos para o público leigo nos jornais de grande circulação. O segundo campo de investigação usa a metodologia de grupos focais para explorar as representações sociais de universitários, pais de universitários e profissionais de saúde, acerca do uso da ritalina para o aprimoramento do desempenho cognitivo.
Palavras-chave: Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Ritalina. Aprimoramento cognitivo. Brasil. Mídia.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
*Texto inédito, sem conflito de interesses, elaborado com base em Barros (2009) e Itaborahy (2009). Financiamento pelo projeto PENSA RIO da FAPERJ. Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da UERJ. 1 Departamento de Políticas e Instituições em Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/ UERJ). Rua São Francisco Xavier, 524, pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E. Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900. fjortega2@gmail.com 2, 4 Departamento de Políticas e Instituições em Saúde, IMS/UERJ. 3 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. 5 Programa de Estudos e Pesquisas da Ação e do Sujeito (PEPAS), IMS/UERJ. 6 Departamento de Políticas e Instituições em Saúde, IMS/UERJ.
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Apresentação O objetivo do artigo é apresentar uma pesquisa em andamento que investiga as representações sociais da ritalina no Brasil na última década. Nesse período, houve um incremento considerável do uso da medicação e sua expansão para outros fins além dos terapêuticos. A ritalina tem sido usada tanto para o tratamento de patologias da atenção como para melhoria de funções cognitivas em pessoas saudáveis. A possibilidade de alargamento do uso da ritalina para a população em geral tem suscitado um amplo debate em Saúde Pública e alterado sua percepção social. A pesquisa se desdobra em dois campos de investigação, com metodologias diferenciadas. O primeiro campo investiga as publicações brasileiras, científicas e em mídia popular, sobre a ritalina, analisando os argumentos que justificam seu uso e a difusão dos resultados científicos para o público leigo nos jornais de grande circulação. Para tal, foram pesquisados os principais periódicos brasileiros de psiquiatria e os principais jornais e revistas de ampla circulação no período entre 1998 e 2008. O segundo campo de investigação usa a metodologia de grupos focais para explorar as representações sociais de universitários, pais de universitários e profissionais de saúde, acerca do uso da ritalina para o aprimoramento do desempenho cognitivo.
O consumo da ritalina e a expansão do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade O metilfenidato, conhecido no Brasil como ritalina, é o estimulante mais consumido no mundo, mais que todos os outros estimulantes somados. Sua vinculação ao diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) tem sido fator predominante de justificativa para tal crescimento (Itaborahy, 2009; Caliman, 2006; Lima, 2005; Dupanloup, 2004). Além do tratamento do TDAH, o metilfenidato também é indicado para tratamento da narcolepsia e obesidade, com restrições. De acordo com o último relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre produção e consumo de psicotrópicos (ONU, 2008), em que os dados sobre o metilfenidato são apresentados separadamente dos outros estimulantes, sua produção mundial no ano de 2006 chegou a quase 38 toneladas. Já a fabricação mundial declarada de outros psicoestimulantes, todas as anfetaminas e seus derivados somados, com exceção do metilfenidato, não alcançou 34 toneladas no mesmo ano. A fabricação mundial declarada de metilfenidato passou de 2,8 toneladas, em 1990, para 19,1 toneladas em 1999, o que representa um aumento de mais de 580%. Este aumento é devido ao uso do metilfenidato para o tratamento de TDAH, divulgado mais amplamente na década de 1990. No ano 2000, esta produção caiu para 16 toneladas. Mesmo com queda em alguns anos, a tendência foi de crescimento, chegando a 33,4 toneladas em 2004, 28,8 toneladas em 2005, e quase 38 toneladas produzidas em 2006. Destas 38 toneladas, 34,6 foram produzidas pelos EUA, que são não somente os maiores fabricantes, mas também os maiores consumidores. A maior parte do que os EUA produzem é para uso interno. O consumo nos EUA vem crescendo a cada ano, e hoje representa 82,2% de todo metilfenidato consumido no mundo. O crescimento da produção mundial de 1990 a 2006 representa um aumento de mais de 1200%. No Brasil, seguindo a tendência, o uso vem crescendo ao longo dos anos. No ano 2000, o consumo nacional foi de 23 kg (Lima, 2005). Apenas seis anos depois, o Brasil fabricava 226 kg de metilfenidato e importava outros 91 kg (ONU, 2008). Embora seja o estimulante mais consumido, no Brasil e no mundo, a maior parte dos dados e pesquisas sobre o metilfenidato se refere à realidade de outros países, especialmente os EUA. Se, por um lado, a tendência em retratar a realidade norte-americana se justifica por seu consumo bem mais elevado que em relação aos outros países, por outro lado, acreditamos que o crescimento na produção e no consumo no Brasil, em tão pouco tempo, faz com que a compreensão sobre os usos do metilfenidato em território nacional se torne uma questão imprescindível para ações em saúde que envolvam tal medicamento.
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A ritalina ficou conhecida, nos últimos anos, por sua associação ao TDAH. Entretanto, este estimulante é comercializado desde os anos 1950 na Suíça, Alemanha e EUA. No início, não havia um diagnóstico específico para seu uso. Essa medicação era indicada para tratar a fadiga presente em vários quadros psiquiátricos, como também para tratar o cansaço em idosos. Nessa época, o uso de tranquilizantes menores também começava a ser recomendado para o tratamento de crianças com vários tipos de problemas de comportamento (Singh, 2007; Dupanloup, 2004). Se, nos anos 1950, a ritalina era um medicamento que não tinha um diagnóstico como destinação certa, hoje, o valor do uso terapêutico da droga está fundamentado no diagnóstico de TDAH. A ampliação do uso do medicamento e sua confiabilidade passaram a servir como referência para legitimar o diagnóstico (Singh, 2007; Dupanloup, 2004). A ritalina tem sido a primeira opção no tratamento do TDAH, não somente em crianças. A recente ampliação dos critérios diagnósticos que incluem adolescentes e adultos expandiu certamente a base de usuários do metilfenidato (Conrad, 2007; Okie, 2006; Conrad, Potter, 2000). Em certo sentido, o TDAH poderia ser analisado como uma desordem “sem fronteiras” (Rose, 2006) – um diagnóstico psiquiátrico que parece não possuir nem limites internos nem externos. Desde sua constituição, na década de 1970, presenciamos um processo crescente de expansão da categoria. Antes considerado uma desordem transitória e infantil, que raramente alcançava a adolescência, o TDAH é agora descrito como um transtorno psiquiátrico que pode perdurar por toda a vida do indivíduo – um quadro incurável. Uma vez visto como a causa para o baixo desempenho escolar, o transtorno passou a ser uma explicação biológica plausível para as dificuldades da vida, sejam elas acadêmicas, profissionais, emocionais, familiares e, mesmo, sexuais (Joffe, 2005; Mattos, 2005; Weiss, Murray, 2003; Conrad, Poter, 2000). Como consequência, para muitas crianças diagnosticadas com TDAH, o tratamento medicamentoso passou a ser “para toda a vida”. Para elas, o TDAH se tornou uma condição permanente. Por outro lado, adultos nunca antes diagnosticados com hiperatividade, desatenção e impulsividade, começaram a interpretar certas dificuldades em sua vida profissional, pessoal e relacional como sendo signos da manifestação do TDAH. A eles é dito que, apesar de estarem sendo diagnosticados pela primeira vez na vida adulta, os sinais e sintomas que indicam o transtorno já estavam presentes no organismo, embora de forma oculta, não revelada. O papel do processo diagnóstico é revelá-lo e tratá-lo. E, para muitos adultos, o medicamento se tornou necessário “para a vida”, como esclarece Joffe (2005, p.68): O adulto que tem TDAH passa por dificuldades durante o dia inteiro: desde manhã, quando acorda, até à noite, quando tem que organizar a vida pessoal, social e responder às necessidades emocionais das pessoas de sua família. Por isso, se um medicamento ajuda o adulto com TDAH, este precisa ser tomado para durar o dia inteiro e, às vezes, a noite inteira.
Uma pesquisa feita nos EUA, em 2005, estimava que 4,4% dos americanos adultos poderiam ser diagnosticados com TDAH (Kessler et al., 2007). No entanto, para muitos psiquiatras, essa estimativa é ainda conservadora (Kessler et al., 2007). Acreditam que os critérios diagnósticos do TDAH, presentes no DSM IV, são direcionados para o universo infantil e devem ser modificados na publicação do DSM V. Espera-se que haja um aumento na variedade de sintomas avaliados e uma redução na exigência de que a condição seja realmente severa e intensa para ser diagnosticada como TDAH. Assim, acredita-se que os critérios para o diagnóstico do adulto com TDAH se tornem mais flexíveis, inclusivos e brandos. A indissociabilidade TDAH-ritalina, construída ao longo dos anos 1980 e 1990, fez com que a ampliação dos critérios diagnósticos para o TDAH necessariamente aumentasse o número das prescrições do metilfenidato. A expansão diagnóstica vem sendo repetidamente pleiteada pelas publicações científicas. A maior parte das pesquisas científicas reitera a preocupação com os casos limítrofes que não preenchem os critérios diagnósticos para TDAH, e recomenda a expansão dos critérios diagnósticos. Pois, se o uso da ritalina fica restrito somente aos casos em que a aplicação do diagnóstico não deixa dúvidas, muitos outros casos ficam sem diagnóstico, o que, consequentemente, impossibilita a indicação do tratamento medicamentoso. Com a ampliação dos critérios para inclusão diagnóstica, amplia-se, por consequência, o uso de medicamentos recomendados para o tratamento da patologia diagnosticada (Okie, 2006; Dupanloup, 2004). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Os dados norte-americanos sobre o consumo de drogas para tratar o TDAH em adultos são alarmantes. Adultos americanos recebem cerca de um terço de todas as prescrições de drogas comumente usadas no tratamento do TDAH. Entre março de 2002 a junho de 2005, o número de prescrições dadas para maiores de 18 anos aumentou 90% (Okie, 2006). Quantos adultos serão diagnosticados com TDAH e quantos fazem e farão uso do medicamento antes e depois das alterações esperadas na publicação do DSM V é um dado que não podemos prever. No entanto, o que os dados indicam é que o mercado de medicamentos para adultos com TDAH está ainda em desenvolvimento (Rose, 2006) e se legitima, cada vez mais, na definição biomédica controversa do diagnóstico de TDAH. Em 1998, o “Instituto Nacional de Saúde Americano” (National Institutes of Health - NIH) publicou um documento, intitulado Consensus Development Statement on Diagnosis and Treatment of Attention Deficit Hyperactivity, no qual explicita que as teorias sobre as causas do TDAH permanecem especulativas e não há nada que prove a hipótese de uma causalidade orgânica, e mais especificamente cerebral (NIH, 1998). No que diz respeito ao processo diagnóstico do transtorno, o documento deixa claro que não há teste válido para o diagnóstico e que não é possível estabelecer limites objetivos entre o TDAH, outras desordens do comportamento e o comportamento normal. No caso do diagnóstico em adultos, ainda é destacada a ausência de critérios bem validados e, novamente, de um teste diagnóstico específico. Critica-se o amplo número de “symptom-screeners” (escalas de avaliação) e “self-assessment screeners” (escalas de autoavaliação) usados por pacientes (NIH, 1998). E, por fim, conclui-se que o diagnóstico é ainda coberto por dúvidas devido às divergências em suas prevalências (Rose, 2006; Singh, 2006).
Publicações brasileiras sobre o metilfenidato: diálogo entre ciência e público A fim de melhor compreendermos os discursos brasileiros sobre o metilfenidato, os argumentos que justificam seu uso e aqueles que o desconsideram como terapêutica, analisamos os principais periódicos brasileiros de psiquiatria, assim como os principais jornais e revistas de grande circulação, no período entre 1998 e 2008 (Itaborahy, 2009). Além de discutirmos o que é privilegiado e desconsiderado nos principais meios de comunicação impressa, analisamos como as informações divulgadas nos periódicos científicos são apresentadas nos meios de comunicação impressa voltados para o público em geral. A busca foi realizada primeiramente com as palavras-chave “metilfenidato” e “ritalina”, com seus respectivos termos em inglês. Contudo, notamos que a grande maioria das publicações tinha como temática principal o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Além disso, percebemos que muitas publicações sobre TDAH abordavam questões referentes ao metilfenidato sem citá-lo explicitamente. Com isso, incluímos, em nossa amostra, os artigos sobre TDAH que discutem o tratamento medicamentoso para o transtorno. Nesses artigos, a referência implícita ao metilfenidato aparece nas expressões “uso de estimulantes para sintomas de TDAH”, “tratamento medicamentoso para hiperatividade”, “psicoestimulantes para déficit de atenção”, entre outros. Os periódicos analisados foram todos os periódicos de psiquiatria brasileiros indexados na base Scielo, a saber: Revista Brasileira de Psiquiatria (RBP), o Jornal Brasileiro de Psiquiatria (JBP), os Arquivos de Neuropsiquiatria (ANP), a Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (RPRS) e a Revista de Psiquiatria Clínica (RPC). Os jornais e revistas direcionados para o público leigo que foram analisados são os de maior tiragem nacional: a Folha de São Paulo, o Jornal O Globo e o Jornal Extra, além das revistas semanais, Veja e Época. Ao todo, foram identificadas 103 publicações, sendo 72 reportagens publicadas nos jornais e revistas de grande circulação e 31 artigos dos periódicos de psiquiatria. No Jornal Extra não encontramos nenhuma reportagem que tratasse do tema da ritalina. Este dado se torna relevante por contrastar com as 32 reportagens encontradas na Folha de São Paulo. O Jornal Extra é um periódico dedicado às classes populares, com reportagens curtas e predomínio de notícias de interesse popular.
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A Folha de São Paulo apresenta notícias mais longas e variadas, e se direciona a leitores informados, com condição financeira mais elevada. Apesar de ambos os jornais apresentarem uma seção destinada a reportagens relacionadas a saúde, há uma nítida diferença no interesse por temas relacionados aos usos da ritalina. Esta diferença de escolha editorial pode indicar um interesse social pelo consumo da ritalina mais presente nas classes com melhores condições financeiras e com maior escolaridade. A predominância do tema discutido nos dois tipos de publicações é, de fato, o uso do metilfenidato para tratamento do TDAH. A narcolepsia, outro diagnóstico para o qual o estimulante é indicado, aparece apenas em um artigo científico e nenhuma reportagem aborda tal uso. Todas as publicações científicas analisadas, que abordam o TDAH, confirmam, em seus resultados, a eficácia do uso do medicamento como terapêutica para o transtorno, e concluem que o medicamento é imprescindível no tratamento do transtorno. Já as reportagens leigas apresentam outros pontos de vista, incluindo, na abordagem sobre o tema, as perspectivas daqueles que incluem outros fatores - como a psicodinâmica do paciente e as exigências e injunções sociais - como concorrendo para alteração dos comportamentos relacionados à atenção, concentração e autocontrole. Os benefícios do uso do metilfenidato aparecem em 74% dos artigos científicos e em 40% das reportagens destinadas ao grande público. Nos dois tipos de publicações, embora com prevalência diferente, existe acordo a respeito dos principais benefícios do uso do estimulante, como a remissão dos sintomas do TDAH (dificuldades de concentração e impulsividade), melhoria do desempenho escolar e acadêmico, boa tolerância ao medicamento e seu efeito “antidependência”, por reduzir os riscos de abuso de drogas na juventude. Este benefício de “antidependência” é frequentemente apresentado nas publicações analisadas como uma resposta às especulações sobre uma possível dependência ao uso do medicamento. Ou seja, este benefício tem um duplo sentido: o metilfenidato não causa dependência e ainda evita abuso de outras drogas no futuro. Contudo, a afirmação de que o metilfenidato não causa dependência é controversa, pelo menos no que tange a seu uso a longo prazo (Tófoli, 2006; Pastura, Mattos, 2004). A informação encontrada nas bulas dos medicamentos é de que ainda não há dados suficientes disponíveis sobre o uso a longo prazo. A redução da tendência ao uso de substâncias psicoativas parece estar ligada à concepção do TDAH como um fator de risco para o desenvolvimento do abuso de drogas. O benefício da medicação na redução dos sintomas reduziria, consequentemente, os riscos próprios do transtorno. A combinação da medicação com psicoterapias é tema controverso nas publicações. Nos artigos científicos, a combinação do estimulante com terapia apresenta efeitos piores que o uso isolado do medicamento. Nas reportagens não médicas, a psicoterapia aparece como um complemento benéfico do medicamento. Os efeitos colaterais do uso do metilfenidato são abordados em 40% dos periódicos científicos e em 22% das publicações leigas. Os efeitos adversos apresentados se assemelham nos dois tipos de publicação, tanto os que aparecem com maior frequência, quanto aqueles raros. Os artigos científicos apresentam mais detalhes sobre estes efeitos. A permanência do transtorno e os efeitos do uso prolongado da medicação não são mencionados em nenhum artigo que aborda os efeitos colaterais, nem em qualquer outro artigo. O tempo de uso da medicação é raramente abordado nos dois tipos de publicações. Além disso, o questionamento sobre o risco de dependência ao estimulante com o uso prolongado é, quase sempre, sobreposto pela discussão sobre os benefícios do medicamento em evitar futura dependência de drogas ilícitas. Apesar da insistente afirmação dos artigos científicos de que não há risco de dependência ao medicamento e que o uso do medicamento pode prevenir a dependência de outras drogas, ainda não existem evidências científicas que comprovem esses fatos. A informação encontrada nas bulas dos medicamentos, assim como nos próprios artigos de psiquiatria, é de que ainda não há dados suficientes disponíveis sobre o uso a longo prazo. O modo de ação do metilfenidato é abordado em cinco artigos científicos, 16% das publicações. Nas publicações voltadas para o público leigo, este tema aparece em 33%. A maior concordância está na hipótese de que o estimulante age como bloqueador da dopamina. As maiores discordâncias são sobre os efeitos do estimulante nas regiões cerebrais. Nas reportagens leigas, são sempre citados os
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efeitos sobre a região frontal. Parece não haver consenso científico sobre a ação do estimulante nas diferentes regiões cerebrais (Szobot et al., 2001). A pouca discussão nos periódicos médicos sobre como a ação do metilfenidato produz os efeitos clínicos observados pode estar relacionada à incerteza ou desconhecimento deste mecanismo. O artigo que apresenta uma revisão bibliográfica sobre os estudos com neuroimagem e TDAH (Szobot et al., 2001) aponta resultados discordantes, tanto em relação às bases neurais do transtorno, quanto em relação à ação do medicamento. O uso ‘não médico’ do medicamento não é abordado em nenhuma das publicações científicas pesquisadas. Acreditamos que, se por um lado, o uso para outros fins além do terapêutico não corresponde aos objetos de pesquisa dos especialistas que estudam o TDAH, por outro, notamos uma preocupação destes autores em garantir uma imagem benéfica e segura do metilfenidato, que poderia ser prejudicada por uma discussão sobre abusos do estimulante. Na mídia direcionada para o grande público, o tema do uso ilícito da ritalina está quase integralmente referido aos usos e abusos do medicamento por norte-americanos e ingleses. A maior parte das reportagens foi motivada pelos artigos publicados pela revista Nature, em 2007 e 2008, sobre aprimoramento cognitivo a partir de medicamentos (Greely et al., 2008; Maher, 2008; Sahakian, Morein-Zamir, 2007). Todos os artigos apresentam argumentos favoráveis ao uso ilícito da ritalina, mostrando os equívocos morais da interdição do uso do medicamento para melhora do desempenho cognitivo. O consumo ‘não médico’ no Brasil é indicado pela venda de medicamentos na internet e fóruns com anúncios de procura pelo medicamento, apresentado em duas reportagens. Concordamos com Ehrenberg (1991) quando ele afirma que a oposição jurídica, historicamente construída, entre drogas lícitas e ilícitas, deve ser ultrapassada em benefício de uma análise do significado das práticas de utilização de medicamentos. Acreditamos que o uso ‘não médico’ da ritalina aponta para questões que remetem à problemática definição sobre o que é a normalidade, na qual os usos médicos estão baseados por definição. O que é que a ritalina cura? Para que e para quem ela é necessária? Estes questionamentos têm sido reiteradamente respondidos com a apresentação dos benefícios do seu uso. O debate subsequente tem se limitado aos meios de comunicação voltados para o público leigo. O uso ‘não médico’ do metilfenidato - e de outras drogas - não foi o único ponto a se configurar como um problema nas reportagens analisadas. Quase a metade das reportagens da nossa amostra (48,6%) apresenta uma preocupação em relação a um excesso de diagnósticos médicos e prescrição do estimulante, sobretudo por envolver crianças. Esta questão é abordada de modo oposto pelos três artigos científicos (9,6%) que abordam o tema. Nesses artigos, o problema não seria o excesso de prescrições, mas a escassez de diagnósticos. A crença, presente nas publicações científicas, de que muitas pessoas ainda necessitariam do medicamento revela a existência de uma associação direta entre o diagnóstico de TDAH e a prescrição do medicamento. Observamos que potenciais conflitos de interesse das publicações são raramente mencionados. Apenas oito artigos científicos tornam explícitos os financiamentos dos laboratórios fabricantes. Outro artigo apenas agradece o financiamento do laboratório fabricante. Pesquisando, em cada artigo, cada autor, observamos que o número de artigos que deveriam apresentar conflitos de interesse por receberem financiamento dos laboratórios, ou por possuírem coautoria dos fabricantes, seria de 27 artigos, o que representa 87% dos artigos científicos analisados. A produção científica nacional sobre os usos do metilfenidato está em grande parte vinculada às pesquisas sobre o TDAH no Brasil. Outros diagnósticos e outros usos são, de certa forma, negligenciados pelas pesquisas brasileiras, como é o caso dos usos ‘não médicos’ da ritalina. Acreditamos que a omissão do financiamento dos laboratórios fabricantes às pesquisas em quase todas as publicações científicas sobre os usos do metilfenidato é uma grave questão ética e requer maiores cuidados. Os artigos que não são patrocinados pelos laboratórios correspondem, em geral, aos artigos que não abordam o tema do TDAH.
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Aprimoramento cognitivo Como citado anteriormente, o metilfenidato é indicado, sobretudo, para o tratamento de pessoas com TDAH. Contudo, pessoas saudáveis (que não apresentam critérios para diagnóstico de TDAH ou qualquer outra doença que justifique o uso do medicamento) passaram a utilizar esse fármaco para melhorar o desempenho acadêmico (Teter et al., 2006; Barrett et al., 2005). Essa prática, chamada em inglês de “pharmacological cognitive enhancement”, se tornou alvo de preocupação em países como Canadá, Estados Unidos e Inglaterra (Miller, 2006). No Brasil, foram identificados grupos de discussões sobre o uso ‘não médico’ da substância para melhorar o desempenho nos estudos, no orkut e em blogs da internet local. Apesar da confirmação da existência de fóruns de debate entre pessoas interessadas no tema, não foram encontrados artigos científicos nem investigações epidemiológicas que abordem o assunto na realidade brasileira. Assim, a pesquisa em andamento tem como objetivo identificar as representações sociais que universitários, pais de universitários e profissionais de saúde apresentam sobre o uso do metilfenidato para melhorar o desempenho acadêmico. As três populações citadas foram escolhidas pelo entendimento de serem aquelas que apresentam maior interesse e proximidade com a prática. Na investigação, foi programada a realização de sete Grupos Focais, com uma média de seis integrantes, sendo três grupos com universitários entre 18 e 25 anos, dois grupos com pais de universitários e dois grupos com profissionais de saúde (Barros, 2009). Para caracterizar melhor os participantes da pesquisa, foi elaborado um questionário com perguntas sobre: idade, sexo, nível de instrução; se o entrevistado era assinante de revista ou jornal; se ele apresentava interesse em informações científicas; se, em algum momento, recebeu prescrição para usar ritalina; se faz ou fez uso ‘não médico’ da mesma; se conhece alguém que faz ou fez uso ‘não médico’; se leu ou ouviu sobre essa outra forma de uso e, caso não tenha tido contato anterior com essa informação, se gostaria de ter tido esse conhecimento. A entrevista por meio de grupos focais foi organizada para investigar: aspectos gerais da prática do aprimoramento cognitivo farmacológico; preocupações éticas, sociais e legais relacionadas à prática; aspectos sociais e cuidados com a saúde; e o entendimento e percepção que os participantes têm da mídia como fonte de informação acerca desse comportamento. Para interpretar as falas e discussões apresentadas nos grupos, foi elaborado um “guia de codificação” com base nos principais questionamentos discutidos sobre esse tema no campo da neuroética (Greely, et al., 2008; Racine, Forlini, 2008; Hylman, 2006; Turner, Sahakian, 2006; Farah et al., 2004; Sententia, 2004; Wolpe, 2002). O “guia de codificação” serviu para nortear a identificação e compreensão dos encadeamentos de representações expressas pelos grupos sobre o uso “não médico” do metilfenidato. Até o presente momento, foram realizados e analisados os grupos focais com universitários. Os vinte componentes foram recrutados por meio de convites orais feitos por integrantes da equipe de pesquisa. Os dados coletados nos grupos focais foram organizados, de acordo com o guia de codificação, por um dos pesquisadores. Essa primeira categorização foi reavaliada em conjunto com outro pesquisador da equipe utilizando-se o software NVivo. Os resultados dessa etapa mostraram que as questões mais relevantes envolviam aspectos éticos, sociais e legais relacionados ao aprimoramento cognitivo farmacológico. O tema mais mencionado em todos os grupos foi a pressão social para atuar. Outra preocupação significativa foi a segurança no uso do medicamento e se esse uso seria comparável ou não aos esteróides e anabolizantes e outras formas tradicionais de aprimoramento. Além disso, foi expressa a preocupação com o risco de haver uma coerção social direta e indireta para uso do remédio, e com a possibilidade de o aprimoramento cognitivo farmacológico aumentar a injustiça social, caso haja um acesso desigual a essa prática. Outra questão que apareceu com frequência foi a influência dos interesses comerciais da indústria farmacêutica no aprimoramento cognitivo farmacológico, assim como a preocupação com a interferência da medicalização na condição humana.
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Outros temas surgiram de forma expressiva, mas levantaram divergências durante os debates. Por exemplo, o aprimoramento ora foi considerado como um meio honesto ora como meio desonesto para realizar tarefas acadêmicas. Opiniões contrárias também surgiram quando as discussões tratavam da melhora no rendimento cognitivo, se a melhora poderia ser considerada ou não como um atributo legítimo da pessoa que usou a droga para tal fim. A pressão social para atuar foi o tema mais mencionado. Em vários momentos, foi ressaltada a necessidade de realizar muito bem um grande número de tarefas em pouco tempo, o que exige das pessoas um comportamento sobre-humano, além do limite. Um participante lembrou que, mesmo havendo uma pressão social para ter bom desempenho, as pessoas podem fazer outras escolhas, e não apenas trabalhar incansavelmente. Outro participante questionou sobre a origem da necessidade de aumentar a capacidade cognitiva da pessoa. Apesar desses dois argumentos, quase todos os integrantes entenderam que o bom desempenho nas tarefas e atividades profissionais é a principal fonte de reconhecimento social, o que justifica tanto esforço e investimento no desempenho cognitivo/acadêmico. Para os grupos entrevistados, o reconhecimento social tanto estava relacionado ao desejo da pessoa ser “igual” aos outros e, portanto, desejar ter o mesmo desempenho que os outros, quanto ao objetivo de diferenciar-se (destacar-se) deles. A aparente divergência nas aspirações resultou do entendimento de que, para estar homogeneizado ao grupo (sentimento de pertencimento), é necessário manter a individualidade destacando-se do conjunto social. No presente estudo, o desejo de garantir a inserção no grupo social por meio da posição de destaque (ser o melhor) parece estar relacionado ao ideal cultural de valorização da performance nas sociedades contemporâneas. Essa percepção confirma o argumento de Ehrenberg (1991) que relaciona a competição e o consumismo com a responsabilidade de cada indivíduo de inventar a si mesmo mostrando sua identidade por meio das realizações pessoais. O alto valor da performance na construção de identidade e reconhecimento social transformou a exigência do bom desempenho em uma “necessidade imediata”, relegando a segundo plano necessidades como sono e alimentação. No entendimento dos grupos, a priorização do desempenho das tarefas foi considerada um dos principais motivos para as pessoas buscarem acesso à farmacologia para fins ‘não médicos’, colocando os riscos de dependência e efeitos colaterais em segundo plano. A falta de cuidado com a segurança da medicação também seria, para a maioria dos entrevistados, uma consequência do interesse comercial da indústria farmacêutica. Assim, ela não divulgaria estudos e informações que expusessem os efeitos danosos de seus medicamentos. Por meio dos informes publicitários, a indústria farmacêutica valorizaria os benefícios dos remédios procurando ampliar a necessidade de consumo de seu produto. Por esse motivo, os integrantes dos grupos demonstraram preocupação com a liberação dos anúncios para o público. Os universitários entrevistados admitiram preferir que o consumo do metilfenidato, mesmo que legalizado para aprimoramento cognitivo, continue sendo controlado pelas instâncias reguladoras. Esta seria uma forma de garantir a segurança pessoal e social das pessoas. A necessidade da segurança pessoal estaria relacionada ao problema da falta de conhecimento sobre os efeitos colaterais. Já a segurança dos aspectos sociais incluiria a tentativa de impedir a coerção direta e indireta, como também a tentativa de garantir condições de igualdade socioeconômicas. A possibilidade da prática do aprimoramento cognitivo farmacológico gerar mecanismos sociais coercitivos foi entendida, por quase todos os entrevistados, como um problema, pois isso poderia ferir o direito à liberdade de escolha dos indivíduos. Nas sociedades ocidentais, tal direito é considerado fundamental. Por outro lado, o uso ‘não médico’ do metilfenidato para melhorar o desempenho cognitivo foi compreendido por alguns como um possível instrumento para diminuir as desigualdades sociais, enquanto, para outros, poderia contribuir para intensificar esse quadro. Os dois posicionamentos, apesar de contrários, foram baseados no mesmo argumento: o direito à igualdade de condições. Essa é outra condição tida como fundamental nas sociedades liberais democráticas que adotaram os direitos humanos. Mesmo havendo a necessidade de mais investigações sobre as representações sociais do uso “não médico” do metilfenidato para melhorar o desempenho cognitivo, os grupos focais forneceram 506
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significativas informações éticas e sociais sobre o tema. Apesar de o resultado da investigação por meio dos grupos focais não poder ser expandido para todo o universo pesquisado, os dados mostram que o uso ‘não médico’ do metilfenidato para melhorar o desempenho cognitivo é um tema relevante e que suscita questões éticas importantes entre os universitários. Não apenas questões objetivas relativas à regulamentação e segurança do método para melhorar o rendimento acadêmico, mas, sobretudo, porque levanta questionamentos sobre a pressão social para produzir cada vez mais, melhor e em menos tempo.
Considerações finais Neste artigo, apresentamos os resultados parciais da pesquisa que indicam pontos relevantes para a compreensão da percepção social da ritalina e sua contribuição na alteração das pautas de comportamentos dos indivíduos e das fronteiras do que é considerado moralmente aceito. Dois aspectos podem ser destacados: sua contribuição no amplo processo de medicalização social e alteração das fronteiras entre normal e patológico; e sua contribuição no processo de modificação nas referências entre o que deve e não deve ser aceito moralmente. O primeiro ponto a destacar é a relação do medicamento com a construção do diagnóstico. A associação ritalina-TDAH pôde ser constatada na análise das publicações científicas e endossada em seu modo de difusão pela mídia. A análise dos artigos que investigam o uso terapêutico da ritalina em TDAH mostra que estes são unânimes em defender a hipótese segundo a qual a entidade nosológica TDAH é confirmada por responder bem ao efeito terapêutico da medicação. A publicação dos resultados das pesquisas na mídia tem ocupado um papel importante na difusão das informações sobre o transtorno e no aumento da demanda por seu tratamento. Podemos confirmar que também aqui se reproduz uma tendência, já identificada em outros países, de se criarem condições sociais que favoreçam a extensão da população que pode ser incluída no diagnóstico e alcançada pela medicação. Não está em questão, aqui, a veracidade dos resultados das pesquisas, mas a constatação de uma tendência no modo como se constroem as condições de investigação desse fato, e o papel das concepções subjacentes à patologia, ao indivíduo desatento e hiperativo e aos efeitos da medicação sobre o organismo como confirmação do diagnóstico. A nosso ver, o uso do medicamento vem contribuindo, de forma crucial, para a produção do indivíduo desatento e hiperativo. Não são mais as crianças que são intranquilas ou desatentas, mas passamos a identificar os adultos desatentos (Conrad, 2007; Conrad, Potter, 2000). A disseminação do uso da medicação altera os estados de atenção e concentração, melhorando a performance dessas funções e criando novos padrões de normalidade dessa função cognitiva. A relação entre a eficácia do medicamento e o diagnóstico tem contribuído consideravelmente para a expansão do diagnóstico, gerando o que Hacking (1995) chama de ‘efeito rebote’ (looping effect). Ou seja, há uma ampliação da categoria com inclusão de novos sinais e sintomas, o que faz com que novas pessoas se reconheçam e se identifiquem com os comportamentos que caracterizam o transtorno. Isso produz o aumento da demanda por tratamento e, consequentemente, aumento do consumo da ritalina, e aumento do interesse popular pelo assunto. Essa alteração no repertório de conduta dos indivíduos que passam a guiar seus comportamentos pela crença de que são indivíduos portadores de uma patologia, faz com que um maior número de indivíduos sejam diagnosticados, o que tem contribuído para o aparecimento do “adulto com TDAH”. Isso torna toda a população candidata potencial a ser portadora do transtorno. Outro ponto a ressaltar é a alteração das fronteiras do que é moralmente aceito. De um uso lícito e controlado da droga, temos passado para um uso ilícito e abusivo. A expansão do uso da medicação para além dos limites da terapêutica e do objetivo de restituição da normatividade dos indivíduos afetados pelo transtorno tem suscitado amplo debate. O principal argumento contra o uso da farmacologia para aprimorar funções cognitivas é que isso ameaçaria a integridade e a dignidade do ser humano. O principal argumento a favor é a constatação da existência de inúmeras outras práticas de melhoria do corpo e das funções cognitivas por alteração de sua biologia. Aqueles que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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defendem a legalização, ou seja, a permissão do uso, e os que chegam a defender a obrigação moral de disponibilizar a medicação para a população como um todo (Savulescu, 2006), argumentam a favor da importância da preservação da liberdade de escolha e autonomia dos indivíduos em decidir o que seria melhor para suas vidas, ou melhor, acreditam que o valor da liberdade individual e da busca pela melhoria das condições de vida sejam um bem a ser preservado. Para aqueles que são a favor de garantirmos um uso que não ofereça risco de saúde para os indivíduos, a escolha pelo uso deve ser uma decisão individual. O que podemos constatar com os resultados dos grupos focais é que a possibilidade da prática do aprimoramento cognitivo não fere a moralidade dos entrevistados. A prática não chegou a ser vista como algo repulsivo ou imoral a ser combatido. Não foi evidenciado nenhum constrangimento com a prática de aprimoramento cognitivo por meios biológicos. Ou seja, numa primeira análise, os grupos indicam uma alteração na percepção social das fronteiras entre natural x artificial. O que em outras épocas poderia ser visto como um distanciamento de nossa natureza biológica imutável tem sido percebido como algo passível de modificação e interferência. Observamos, nos grupos, uma maior tolerância às práticas que alterem nossa neurobiologia em prol do ideal social de melhoria da performance ou capacidade das pessoas. Contudo, os grupos ressaltaram o papel importante que a pressão social por melhoria da performance pode exercer na demanda pelo aprimoramento cognitivo. Nesse sentido, chamam atenção que não necessariamente apenas o exercício da autonomia e melhoria de vida está em jogo em tais práticas. Mas há também injunções culturais, sociais e econômicas, de incentivo à melhoria do desempenho – o que Ehrenberg (1991) chamou de culto à performance – que parecem se impor ao exercício das escolhas individuais. Ou seja, a sociedade contemporânea introduziu, como pauta de horizonte para os comportamentos individuais, um aprimoramento constante e uma necessidade permanente de melhoria de suas capacidades. Isso nos faz especular que, em uma sociedade em que os direitos individuais são preservados e garantidos e as oportunidades sociais são mais justas, autorizar a prática de aprimoramento e deixar como critério de escolha individual o uso ou não uso da substância podem não trazer maiores consequências. Mas numa sociedade com o nível de desigualdade que vivemos e a fragilidade das instituições que garantem os direitos individuais, talvez gere nas pessoas uma preocupação com a possibilidade de aumento das injustiças e discrepâncias entre os indivíduos, criando uma nova norma social de desempenho apenas acessível a poucos.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BARRETT, S. et al. Characteristics of methylphenidate misuse in a university student sample. Can. J. Psychiatry, v.50, n.8, p.457-61, 2005. BARROS, D. Aprimoramento cognitivo farmacológico: grupos focais com universitários. 2009. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2009. CALIMAN, L.V. A Biologia moral da atenção: a construção do sujeito desatento. 2006. Tese (Doutorado) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2006. CONRAD, P. Expansion: from hyperactive children to adult ADHD. In: ______. (Org.). The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2007. p.46-69.
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ORTEGA, F. et al. La “ritalina” en Brasil: producciones, discursos y prácticas. Interface Comunic., Saude, Educ. Educ., v.14, n.34, p.499-510, jul./set. 2010. El objeto del artículo es el presentar una investigación en marcha sobre las representaciones sociales de la “ritalina” en Brasil entre 1998 y 2008. En este período hubo un incremento considerable de la medicación y su expansión hacia otros fines fuera de los terapéuticos. La “ritalina” se ha usado tanto para el tratamiento de patologías de la atención como para la mejora de funciones cognitivas en personas saludables. La investigación se desdobla en dos campos con metodologías diferenciadas. El primer campo investiga las publicaciones brasileñas, científicas y en medios de información populares sobre la “ritalina”, analizando los argumentos que justifican su uso y la difusión de los resultados científicos para el público lego en los periódicos de gran circulación. El segundo campo de investigación usa la metodología de grupos focales para explorar las representaciones sociales de universitarios, padres de universitarios y profesionales de salud sobre el uso de la “ritalina” para la mejora del desempeño cognitivo.
Palabras clave: Hiper-actividad.Transtorno por Déficit de Atención com Hiperactividad. “Ritalina”. Mejora cognitiva. Brasil. Medios de comunicación. Recebido em 31/08/2009. Aprovado em 11/03/2010.
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artigos
A cibersexualidade e a pesquisa online: algumas reflexões sobre o conceito de barebacking
Luís Augusto Vasconcelos da Silva1
SILVA, L.A.V. Cybersexuality and online research: some reflections about the concept of barebacking. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.513-27, jul./set. 2010.
This paper results from online research on aspects of male sexuality and, more precisely, about male interactions within new contexts of the HIV/AIDS epidemic. It seeks to discuss the possibilities of the internet as a research field, considering the sociocultural issues that are opened up by new information technologies. This is the case of the practice of barebacking, which is generally defined as intentional unprotected anal sex. More specifically, this paper raises questions about some tensions and conceptual ambiguities of barebacking, especially regarding unprotected sex between steady partners and between casual partners, according to discussions developed by some users of orkut communities, within the Brazilian context. Finally, it is highlighted that the players who say that they are barebackers are not necessarily so, but neither do they understand the concept in the same way, which requires broader reflection about such communities’ different users and contexts of use.
Keywords: Internet. Sexuality. Homosexuality male. Unsafe sex. Acquiride Immunodeficiency Syndrome. HIV.
Este artigo é decorrente de uma pesquisa online sobre aspectos da sexualidade masculina, mais precisamente sobre as interações masculinas em novos contextos da epidemia de HIV/Aids. Busca discutir as possibilidades da internet como campo de pesquisa, considerando os aspectos socioculturais abertos pelas novas tecnologias de informação. Este é o caso das práticas de barebacking, geralmente definido como sexo anal desprotegido de forma intencional. Mais especificamente, neste artigo, serão problematizadas algumas tensões e ambiguidades conceituais do barebacking, sobretudo no que diz respeito ao sexo desprotegido entre parceiros fixos e entre parceiros ocasionais, de acordo com a discussão desenvolvida por alguns usuários das comunidades do orkut, no contexto brasileiro. Finalmente, destaca-se que os atores que se dizem barebackers não são, necessariamente, mais os mesmos, tampouco entendem o conceito da mesma forma, o que exige uma reflexão mais ampla sobre seus distintos usuários e contextos de uso.
Palavras-chave: Internet. Sexualidade. Homossexualidade masculina. Sexo sem proteção. Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. HIV.
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A cibersexualidade e a pesquisa online:...
Introdução As novas referências de identidade deslocam-se em um período de aceleradas transformações, de excessos – superabundância factual, espacial e do indivíduo (Augé, 1994). Nesta direção, as novas tecnologias de informação, o ciberespaço, como um dispositivo de comunicação interativo e comunitário (Lévy, 1999), põem em evidência distintas perspectivas de interação social, redimensionando as fronteiras espaciais e produzindo novos discursos sobre a gestão e necessidade do corpo, sobre uma sexualidade experimentada como “pura imagem” (Le Breton, 2003, p.135). À primeira vista, esse olhar ‘sob a superfície’ pode sugerir uma metamorfose incessante ou, em outras palavras, uma produção ilimitada de textos e signos, corpos virtuais. Entretanto, os corpos continuam, materialmente, interagindo com outros corpos (e outras máquinas), ao mesmo tempo em que são produzidos ‘novos’ discursos e concepções interativas – interações mediadas por signos e significados culturais. A internet pode servir, portanto, como campo de produção textual, possibilitando a leitura de padrões e (novos) significados culturais. Em uma perspectiva geertziana, a internet possibilita a inscrição ou fixação de um discurso social, viabilizando uma atividade de interpretação dos significados socialmente disponíveis (Geertz, 1989). Nesse sentido, os ‘contextos’ online e offline encontram-se imbricados, na medida em que os signos que se deslocam na rede online dialogam com a vida social. As tecnologias de informação, portanto, não constituem um mundo “em si”, pois são usadas por atores humanos, concretos, em contextos sociais específicos (Slater, 2002). Nessa direção, o discurso midiático pode reproduzir padrões interativos e imagens valorizadas pela sociedade (Semerene, 1999), mas também produzir abertura para outras performances, simulações e significados, muitas vezes produzidos no anonimato (Brown, Maycock, Burns, 2005; Ross, 2005). É o caso, por exemplo, da construção de redes afetivas e sociais entre gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e outras identidades, em uma perspectiva mais descentrada, flexível e múltipla (Turkle, 1999). Foi a partir, então, de uma discussão sobre as novas possibilidades da internet, de troca de experiências e encontros eróticos, que desenvolvi uma pesquisa de base etnográfica (2004-2007) sobre a relação entre risco e prazer no momento atual da epidemia de HIV/Aids, no contexto brasileiro2; mais precisamente, sobre a prática do barebacking, geralmente definido como o sexo anal desprotegido entre homens de forma intencional (Elford, 2006; Shernoff, 2006; Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Suarez, Miller, 2001), ainda que haja diferenças quanto ao tipo de vínculo e condição sorológica dos parceiros envolvidos. Nesse sentido, alguns autores buscam delimitar melhor o conceito (e o grupo de praticantes), considerando, por exemplo, se o sexo anal intencional ocorre entre homens que ‘não são parceiros primários’ (Mansergh et al., 2002), ou, mais especificamente, definindo o barebacking como o sexo anal sem preservativo de forma intencional, ‘exceto quando praticado por parceiros primários HIV negativo’ que mantêm um relacionamento mutuamente monogâmico ou em um relacionamento de proteção negociada (Wolitski, 2005)3. O conceito, entretanto, tem sido ‘usado’ pelos atores que praticam o sexo desprotegido de forma diversa. É o caso, por exemplo, quando homens que se relacionam afetivo-sexualmente com outros homens passam a caracterizar o barebacking como qualquer sexo anal desprotegido, independentemente do tipo de parceria (se fixo ou ocasional) ou, mesmo, da intencionalidade do ato (Silva, 2008; Huebner, Proescholdbell, Nemeroff, 2006; Shernoff, 2005). 514
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Trata-se mais especificamente de uma tese de doutorado, defendida em abril de 2008, no Instituto de Saúde Coletiva (UFBA), sob a orientação do Prof. Dr. Jorge Iriart. Parte deste trabalho foi desenvolvida durante meu estágio de doutorando no exterior, na UQAM (Canadá), financiado pela Capes, sob a orientação do Prof. Dr. Joseph Lévy. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
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Este autor busca incluir diferentes tipos de sexo anal desprotegido de forma intencional, por exemplo, entre parceiros primários sorodiscordantes ou entre parceiros primários soroconcordantes HIV positivo, na medida em que as relações possam apresentar risco de infecção/reinfecção para algum deles.
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SILVA, L.A.V.
artigos
Neste artigo, desenvolvo algumas dessas discussões produzidas no decorrer de uma trajetória de pesquisa online sobre o barebacking no Brasil, pensando também as possibilidades abertas pelas novas tecnologias de informação para as interações afetivo-sexuais masculinas. Dessa forma, torna-se importante discutir ou compreender a cibersexualidade como um espaço de disseminação de novos discursos e modelos sexuais (Lévy, Garnier, Thoer-Fabre, 2006) – por exemplo, sobre a intensificação do prazer sensorial, maior contato e intimidade entre os parceiros no sexo sem camisinha (Silva, 2009; Huebner, Proescholdbell, Nemeroff, 2006; Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Mansergh et al., 2002) – apesar, também, de reproduzir valores morais. Este artigo, portanto, busca focalizar essas novas facetas da internet, incluindo a potencialidade das pesquisas online para a compreensão de aspectos do homoerotismo masculino. Mais especificamente, busca problematizar algumas tensões e ambiguidades conceituais do barebacking, sobretudo no que diz respeito à relação entre sexo desprotegido entre parceiros fixos e sexo (desprotegido) ocasional ou ‘promíscuo’, de acordo com a discussão desenvolvida por alguns usuários da internet no contexto brasileiro.
Considerações sobre a trajetória de pesquisa na internet Em 2006, após uma pesquisa de reconhecimento do ‘campo’, na internet, utilizando suas ferramentas de busca, encontrei algumas comunidades do orkut que discutiam as práticas do barebacking, bem como os aspectos positivos em relação ao não uso da camisinha. Durante essa trajetória, como forma de acompanhar os grupos de discussão, foi criado um e-mail e uma página específica no orkut, com informações importantes da pesquisa. Após aproximadamente um ano e cinco meses de observação participante online (abril de 2006 a setembro de 2007), pude participar de alguns fóruns criados diretamente para a discussão sobre o barebacking ou sobre o sexo sem camisinha. A maioria das comunidades do orkut girava apenas em torno do sexo sem camisinha ou da preferência por ‘gozar dentro’, muitas vezes destacando os aspectos negativos do uso do preservativo. Na maioria delas, portanto, não havia nenhuma referência direta, na sua descrição, ao barebacking. Para minha surpresa, cheguei a encontrar no orkut algo em torno de quarenta comunidades mais genéricas que valorizavam positivamente o sexo sem camisinha. Em contrapartida, foram identificadas sete comunidades diretamente vinculadas ao tema do barebacking, uma delas posicionando-se contra o mesmo. Por sua vez, para viabilizar a coleta de dados, busquei acompanhar a lógica do próprio orkut: no espaço organizado para a descrição do meu perfil, descrevi toda uma postura ética que orientaria a pesquisa. A descrição sobre a condução do trabalho, objeto e objetivos também foram ressaltados. Na mesma página, foram inseridos meus dados profissionais e vínculos institucionais. No decorrer do trabalho, cada novo tópico para um fórum ou mensagem criada por mim em uma comunidade, às vezes apenas informando e convidando seus membros para a participação em uma pesquisa de doutorado sobre o barebacking, possibilitou que qualquer participante entrasse na minha página pessoal e conhecesse melhor as condições do trabalho de tese. Neste processo de ‘participação ativa’, buscava criar um ‘espaço’ de diálogo com outros membros das comunidades, inclusive relatando minhas próprias dúvidas sobre a prática do barebacking, como também dar visibilidade à minha pesquisa a partir dos fóruns de discussão. Por outro lado, buscava ‘conhecer’ as nuances interativas da ‘rede’ e ‘estranhar’ o que aparentemente me era ‘familiar’. Como já enfatizado por Da Mata (1978, p.28), os estudos etnográficos envolvem uma tarefa dupla: “transformar o exótico no familiar e/ou transformar o familiar em exótico”. No que concerne à dinâmica de participação e contato nas comunidades do orkut, alguns aspectos devem ser esclarecidos. No momento em que cada membro do orkut cria ou participa de alguma comunidade, todas elas ficam visíveis na respectiva página do usuário, no meu caso na página de Augusto Silva. Por sua vez, todos os membros de cada comunidade também ficam registrados e visíveis na página da comunidade. É muito fácil estabelecer contato, na forma de ‘amigos’, ou simplesmente enviar mensagens (scraps - recados) e depoimentos para cada participante. Quando um membro de uma comunidade participa de um fórum de discussão, ele pode ficar anônimo ou ser COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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identificado imediatamente. Para mim, ser identificado foi uma forma interessante de outro membro entrar em contato comigo ou visitar a minha página e perfil, conhecendo melhor aspectos da pesquisa. Vale ressaltar que é comum encontrar no orkut membros que participam de várias comunidades simultaneamente, a partir de seus interesses em foco, como é o caso do barebacking. Periodicamente, também passei a receber convites de alguns membros para participar de sua rede de amigos (no orkut, há uma seção correspondente da página em que os amigos ficam identificados, possibilitando que se estabeleçam redes de amizade ou contato). Nos fóruns, as mensagens, dispostas em uma sequência ordenada por data e hora de envio, também podem tomar a forma de um diálogo, quando os membros respondem uns aos outros. Frequentemente, as respostas acabam se direcionando para o tópico-guia do fórum em questão, ou mesmo para alguns dos participantes que enviam uma mensagem polêmica, por exemplo, criticando ou censurando a prática do barebacking. A estratégia de acompanhar grupos e fóruns de discussão na internet possibilitou o acesso a praticantes do barebacking4, já que isso seria mais difícil de ocorrer de forma offline, sobretudo porque a internet vem servindo como fonte de conhecimento e difusão da prática (Grov, 2006; Halkitis, Parsons, 2003; Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Tewksbury, 2003; Gauthier, Forsyth, 1999). Deve-se, também, considerar que as interações online privilegiam o anonimato das pessoas, facilitando a abordagem e acesso a temas polêmicos. Outro aspecto importante é que pude ter uma ideia geral da prática, considerando os distintos lugares e espaços de ocorrência no contexto brasileiro, a partir de um computador. Vale lembrar também que o orkut, filiado ao Google, tem se destacado no cenário brasileiro5 como uma rede social importante, permitindo pôr em relação os amigos de amigos, ou simplesmente criar novas amizades e manter relacionamentos; propiciando a circulação e discussão de temas diversos. Com a criação da minha página no orkut, foi possível, também, solicitar a participação de voluntários para uma entrevista online, utilizando o recurso do MSN Messenger existente para a conversa em tempo real. Qualquer interessado na pesquisa pôde ter acesso ao meu endereço eletrônico para contato, visível na página do orkut. Cada novo convite de um usuário para ‘entrar’ (ser incluído) no meu MSN significava uma resposta positiva para participar da pesquisa, ainda que esses interlocutores pudessem desistir ou retirar seu consentimento a qualquer momento6. Finalmente, deve-se destacar que foram mantidos os estilos e usos de linguagem das mensagens dos fóruns reproduzidas no decorrer deste artigo. É possível que alguns dos recursos ou signos utilizados para complementar ou construir enunciados, como imagens e símbolos disponíveis na internet, tenham se perdido no momento de transferi-los e salvá-los como documento do Word; ou mesmo quando foram trabalhados no QSR Nvivo (software específico usado para o tratamento e armazenamento de dados qualitativos).
Barebacking não é promiscuidade: novas discussões em rede No que diz respeito às descrições e explicações sobre o conceito de barebacking entre usuários brasileiros, é preciso chamar atenção para dois aspectos importantes que se apresentam de forma antagônica ou conflituosa: o sexo desprotegido com um parceiro fixo ou com uma pessoa de confiança e o sexo casual com desconhecidos7. Nesta perspectiva, o barebacking pode ser entendido como qualquer prática sexual sem camisinha, mesmo com alguém de confiança, ou apenas quando o sexo desprotegido ocorre fora de um contexto de 516
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4 Não apenas acompanhei comunidades do barebacking no orkut, como também identifiquei e acompanhei, no ano de 2005, um grupo de discussão sobre a prática no Yahoo! Grupos, do Brasil. Esta minha participação ocorreu entre os meses de junho de 2005 a julho de 2006, momento em que não conseguia mais localizar o grupo no endereço correspondente.
Lançado em 2004, o orkut atualmente é muito difundido entre os usuários brasileiros. De acordo com Morais e Rocha (2005), em 2005, já havia 71,8% de brasileiros em uma comunidade de 6,2 milhões de pessoas.
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Os textos produzidos no MSN Messenger não serão tratados neste artigo, mas apenas algumas mensagens produzidas em fóruns de discussão do orkut. Alguns dos relatos produzidos no MSN Messenger, referentes aos sentidos e práticas do barebacking no Brasil, podem ser encontrados em Silva (2009).
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A discussão sobre estes aspectos é importante porque evidencia alguns dos ‘deslizamentos’ atuais ou distintas maneiras de se compreender o conceito de barebacking. É o caso, por exemplo, quando alguns dos usuários da internet não reconhecem o tipo de vínculo entre os parceiros como necessário para a definição do barebacking; isto é, que o sexo anal desprotegido (de forma intencional) deve ocorrer entre parceiros que ‘não são estáveis ou primários’.
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comprometimento mútuo. Assim, é possível problematizar ou definir o barebacker a partir de uma imagem da ‘promiscuidade’ ou do ‘gay promíscuo’, tanto quanto defender que o barebacking pode ocorrer em uma relação estável ou duradoura, em que existe fidelidade e confiança, em oposição à imagem difundida do sexo promíscuo sem camisinha ou da prática promíscua de bareback: “Acho q não usar camisinha não faz do cara barebacker. Se os dois são casados e são comprometidos e fieis, eles não são barebackers. Barebackers implica em sexo promiscuo sem camisinha”. (Participante do fórum O que rola no bareback1?). “A linha que separa a prática de bareback da promiscuidade é bem mais larga que a espessura de um preservativo. Não defendo a prática promíscua de bareback. Existem pessoas que são como cães no cio soltos na rua, essas sim correm um seríssimo risco de contrair seja que doença for através do bareback. Porém se existe uma relação duradoura de confiança e fundamentada em testes pelo menos de 2 em 2 meses, acredito que até certo ponto a prática do bareback pode ser saudável”. (Participante1 do fórum Bareback Não é Promiscuidade). “Bareback é só putaria? Estou num relacionamento há sete anos e nunca usamos preservativo. Que eu saiba, bareback é o nome dado ao sexo sem camisinha, não importando se ocorra numa relação estável ou casual, se é com uma ou com várias pessoas. Relacionar a prática do bareback à promiscuidade é uma linha de pensamento estranha. Cabe lembrar que o uso da camisinha só ficou difundido a partir dos anos 90, após muito sugestionamento das campanhas veiculadas na mídia e na ação de grupos de combate à AIDS. Mais estranho ainda é taxarem quem prefere fazer sexo sem preservativo a pessoas soropositivas. São mais estigmas criados no nosso meio, rótulos que só servem para o meio gay mais sectário”. (Participante2 do fórum Bareback Não é Promiscuidade).
8 Definição retirada do dicionário Aurélio da língua portuguesa. A palavra promíscuo, por sua vez, significa misturado, confuso, indistinto.
Em se tratando do tipo de vínculo relacional entre as pessoas envolvidas na prática sexual desprotegida, existe um elemento central que tanto pode diferenciar o barebacking de qualquer outro sexo sem camisinha quanto estabelecer uma linha distintiva e valorativa em torno de algumas modalidades de práticas de barebacking, que é a imagem disponível da promiscuidade. Nessa trajetória discursiva sobre as práticas sexuais, a referência ao gay promíscuo parece ser frequentemente utilizada para lembrar a hierarquia de valores sexuais, separando o que seria um bom ou mau sexo (Rubin, 1984). Portanto, mesmo no interior das práticas homoeróticas, a imagem da promiscuidade serve para distinguir estilos de vida e identidades gays, por exemplo, entre aqueles que seriam promíscuos e os que se aproximariam de uma relação mais saudável, equilibrada, normal, racionalizada, passível de ser autorregulada. É interessante lembrar que a palavra promiscuidade significa, na língua portuguesa, qualidade de promíscuo, mistura desordenada e confusa8. Ser promíscuo, portanto, pode significar, em última instância, alguém que confunde ou transgride a ordem das coisas, por exemplo, quando passamos a agir orientados, primordialmente, por nossos impulsos, desejos e paixões e nos misturamos com os outros, ‘perdendo’ a dimensão racional de quem somos.
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Com base no discurso da promiscuidade, o barebacker não seria apenas aquele que pratica sexo sem camisinha, já que potencialmente pode ser qualquer um de nós, mas aquele que se aventura sexualmente com desconhecidos. Em contrapartida, aparece ainda, nos enunciados online, um tipo de barebacking que pode ser saudável em detrimento daquele que potencializa o surgimento de doenças. O promíscuo, aquele que participa de orgias, surubas, da putaria, que arrasta qualquer um em qualquer momento pra transar, que é como cão no cio solto na rua, que sai com um cara na balada sem saber nem mesmo quem é essa pessoa, serve como protótipo ou modelo discursivo para legitimar uma modalidade mais segura e menos selvagem de barebacking: “Bareback, no sentido inicial é transar sem camisinha. Como faziam no passado não tão remoto. Porém, a vulgarização das pessoas gerou um desvio de prática que se vê as vezes as pessoas falando, que é “orgia sem camisinha”. Esses que transam com qualquer pessoa, que no linguajar gay “arrastam” qualquer um em qualquer momento pra transar, e os outros que fazem orgias (pense no risco) sem camisinha é que terminam por detonar a coisa”. (Participante1 do fórum Bareback Não é Promiscuidade) “[...] Transar sem camisinha é bareback. Com qualquer pessoa, até o mendigo da rua, também é bareback. Porém BAREBACK NÃO É PROMISCUIDADE. É PRÁTICA SEXUAL SEM CAMISINHA. Entendase que promiscuidade é sair e transar com um cara na balada sem saber nem mesmo quem é essa pessoa. Nesse caso não precisa haver penetração para se contrair uma doença infecto contagiosa. Não vem ao caso citar pessoas que se infectaram com HIV ou seja com o que for. Se fizessem testes para doenças infecto contagiosas pelo menos de 2 em dois meses como eu faço junto com meu namorado estariam mais seguros. Ou pelo menos estariam constantemente lembrando-se do seu compromisso de fidelidade e de sexo seguro se resolvessem transar com outra pessoa [...]”. (Participante1 do fórum Bareback Não é Promiscuidade)
A preocupação excessiva por demarcar uma condição saudável de barebacking, quando o sexo desprotegido não representa, necessariamente, um problema (ou perigo) para as pessoas (por exemplo, com o namorado, mediante a realização de testes para doenças infectocontagiosas)9, talvez mostre o modo (e intensidade) como o discurso sobre o ‘sexo seguro sempre’ passou a estar vinculado a uma norma geral de ‘boa conduta’ para o funcionamento saudável dos corpos e relacionamentos. Consequentemente, o outro (homossexual) que pratica o sexo desprotegido tornou-se indesejável – abjeto10. Esta “incongruência” de sentido utilizada para falar sobre o barebacking está presente nas mensagens de um participante do fórum Bareback Não é Promiscuidade, que tenta esclarecer e pôr em seu devido lugar o conceito de barebacking, especialmente no que se refere à distinção entre sexo sem camisinha em uma relação estável, como sendo sexo seguro, e o bareback, como o prazer de transar com o maior número de pessoas sem pegar qualquer doença, ou simplesmente como sendo o sexo casual com estranho sem camisinha: “Na verdade existe muita diferença entre o sexo sem camisinha e o bareback. Esta ultima, literalmente, e um termo que sempre existiu 518
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Sugere-se aqui que o barebacking ocorre também entre ‘parceiros primários HIV negativo’.
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Nas palavras de Butler (2003, p.191), “o ‘abjeto’ designa aquilo que foi expelido do corpo, descartado como excremento, tornado literalmente ‘Outro’”.
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no inglês pra definir a prática da montaria em cavalos sem qualquer proteção (dorso nu, ao pé da letra) e que passou a ser utilizada após o advento da AIDS, principalmente nos EUA, pelos adeptos do sexo sem proteção e no final das contas muitos deles admitiam que era sexo promíscuo, apesar de não se definirem como promíscuos. Para alguns destes o real prazer desta prática era o prazer de transar com o maior número de pessoas sem pegar qualquer doença, tanto que chegavam a fazer disputas de quem transava mais sem se contaminar. Há alguns anos estive em NYC e recebi um convite de uma “bareback party” no qual os promotores deixavam claro que haveria um número “x” de doentes, claro que esse tipo de festa faz parte de um submundo, mas este era o prazer deles. Tanto é que o que muitos acima definiram como bareback, eles lá chamam de “safe sex”, ou seja pra eles o sexo seguro significa transar com camisinha nas relações casuais (mesmo que seja uma suruba) e transar sem camisinha numa relação estável, muito diferente de bareback. Sei que muitos não irão concordar com o exposto, não inventei nada, basta pesquisar na net que vão encontrar... no entanto, como sempre, todos vão preferir continuar usando o termo bareback por acharem mais “culto”... chique, até... Abraços”. (Participante3 do fórum Bareback Não é Promiscuidade) “No real sentido do barebacker ele nao ta fazendo isso pra adoecer mas sabe q isso pode acontecer e nao tem medo, ao contrário sente até mais prazer nisso, claro q exagerei colocando o exemplo das festas q vi acontecer nos eua mas isso tb existe no fato de se fazer sexo casual sem camisinha. O q nao combina com bareback é o q muita gente fala: “ah, so faco bareback com meu namorado”. Isso nao existe, isso eh sexo seguro, eh o q a maioria das pessoas fazem. Mas se for sexo casual com estranho ai sim esta caracterizado o bareback”. (Participante3 do fórum Bareback Não é Promiscuidade). 11 Neste contexto, as práticas do barebacking aparecem associadas a uma estratégia de resistência ao discurso normativo da saúde em relação ao sexo seguro (Crossley, 2002; Rofes, 2002). É interessante destacar que o termo barebacking, como sexo anal sem preservativo, aparece também associado a alguns nomes de atores pornôs gays, soropositivos, que, em meados de 1990, passam a declarar publicamente sua intenção de não usar mais a camisinha no sexo anal. Este foi o caso de Scott O’Hara, que aparece também como o primeiro, em 1995, a criar a expressão barebacking para descrever o sexo anal desprotegido (Huebner, Proescholdbell, Nemeroff, 2006).
Se o barebacking é sexo promíscuo sem proteção ou sexo casual com estranho, há de se problematizar diferentes aspectos e elementos que estão presentes no cotidiano dos encontros afetivo-sexuais que ocorrem casualmente. Nesta perspectiva, entra em questão a própria concepção de intencionalidade como necessária para delimitar a prática do barebacking, ou seja, o engajamento consciente e deliberado em práticas de sexo anal desprotegido, conhecendo-se os riscos envolvidos (Suarez, Miller, 2001). No entanto, a partir da perspectiva dos que se consideram praticantes do barebacking, a intencionalidade (desafio) do risco nem sempre estará presente de forma clara ou decisiva; ou seja, o conceito de barebacking pode implicar apenas sexo sem camisinha, independentemente da intenção do ato. Para exemplificar esta problemática, vale destacar a opinião de alguns dos participantes de diferentes fóruns de discussão, inclusive sem diferenciar a prática do barebacking pela identidade sexual (homossexual), aproximando ou colocando heterossexuais e homossexuais na mesma categoria, fazendo referência fundamentalmente ao sexo desprotegido. Este aspecto da identidade sexual é interessante, porque coloca em xeque a ideia de que o barebacking ocorre apenas entre ‘homossexuais’. Evidentemente, não podemos esquecer que o barebacking surge de dentro da ‘comunidade gay’, em meados de 1990, para designar o sexo desprotegido (Léobon, Frigault L-R, 2005)11. Em contrapartida, também não podemos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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negligenciar outros ‘deslizamentos’ de sentido, quando o conceito de barebacking é ‘usado’ de forma genérica, sem referência ao sexo anal desprotegido entre homens (homossexuais) ou mesmo à ‘intencionalidade’ do ato: “1) Bareback é transar sem camisinha. Mas tem muito hétero que transa e num tá nem aí. Olha a quantidade de mulheres solteiras que ganham neném. Tudo transando sem camisinha e jogam a culpa da promiscuidade em cima dos viados. Hipocrisia”. (Participante do fórum ‘ Vc é bareback?’) “2) Fazer sexo sem camisinha é praticar bareback.. você pode não sentir prazer mas fazer com camisinha.. mas se você pratica sem é um “barebacker”.. quando se confia e gosta não vejo nenhum problema”. (Participante1 do fórum O que rola no bareback?) “3) É LEITE DENTRO MESMO. bareback é (montar sem arreios) ou seja quando vc monta numa pica sem camisinha é o mesmo q montar num cavalo sem arreios ou seja: sem proteção alguma, daí a palavra BAREBACK”. (Participante2 do fórum O QUE ROLA NO BAREBACK?)12
Diante do que foi exemplificado, existe um tópico central que mobiliza o discurso sobre o barebacking, que é a ausência ou abandono da camisinha. Um dos membros (número 1) posiciona-se de forma direta quando diz que bareback é transar sem camisinha, independentemente da identidade sexual, o que o faz criticar muitos heterossexuais com sua hipocrisia ao jogar a culpa da promiscuidade em cima dos viados, ainda que não se posicione explicitamente como gay ou homossexual. Neste discurso, a prática comum do sexo sem camisinha entre heterossexuais e a pouca importância ou preocupação com o uso da mesma parecem mover-se para o centro do discurso, como uma forma de deslocar o foco de análise dos homossexuais, deixando dúvida se o tipo de vínculo entre os parceiros faria alguma diferença conceitual para o sexo desprotegido. Na segunda descrição (número 2), o barebacking é definido como fazer sexo sem camisinha, e o barebacker, como uma pessoa que pratica sexo sem (camisinha). Por outro lado, este membro parece reconhecer que existe uma ‘escolha’ ou ‘opção’ pelo prazer da prática sexual sem camisinha, na medida em que uma pessoa pode não sentir prazer com a camisinha, mas continuar a usá-la. No que diz respeito ao vínculo afetivo implicado no sexo desprotegido, este membro também sugere que o tipo de parceria não seria um elemento diferenciador do barebacking, mas também procura focalizar o contexto de confiança e afeto da prática em uma dimensão ‘não problemática’. Nessa perspectiva, ele fala de confiar e gostar13. O fato de o membro sugerir alguma concessão para o ato (quando se confia e gosta) parece implicar uma valorização em torno dos vínculos afetivos entre as pessoas, já que seria pouco provável não gostar da prática sexual sem camisinha e fazê-lo, diferentemente do sexo desprotegido com parceiros casuais ou desconhecidos que pode ocorrer mesmo sem vínculo afetivo com o parceiro. Finalmente, apenas uma das descrições acima (número 3) assinala, de forma enfática,14 o contato direto com o esperma do homem (leite ou porra), o que nos possibilita pensar sobre a condição de gozar dentro no sexo sem camisinha, 520
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Existem dois fóruns diferentes aqui, ainda que eles tenham o mesmo nome (O QUE ROLA NO BAREBACK?). O fórum número 1 origina-se de uma das comunidades genéricas sobre o sexo sem camisinha (comunidade Camisinha NEVER); o número 2, por sua vez, advém de uma comunidade sobre o barebacking, que não se encontrava mais disponível (online) no momento de escrita da tese.
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O verbo gostar possibilita pensar em dois ‘objetos’ ou direções da ação (uma pessoa e a própria prática desprotegida). Preferi, entretanto, colocar os verbos confiar e gostar mais próximos ou complementares entre si, ou seja, em direção à pessoa envolvida na relação sexual, tentando acompanhar um sentido específico do enunciado em comparação aos discursos mais gerais sobre o prazer do sexo sem camisinha.
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Este participante utiliza alguns recursos linguísticos e estilísticos para destacar uma ideia, por exemplo, com o uso da palavra mesmo, designando verdadeiramente, realmente, e toda a frase escrita em maiúscula. 14
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16 É importante esclarecer que o barebacking também não se encontra, necessariamente, vinculado à intenção ou busca por contrair o HIV. Este é o caso dos bug chasers (caçadores de vírus), quando um homem HIV negativo procura deliberadamente um homem HIV positivo para ser infectado (Gauthier, Forsyth, 1999). Deve-se, então, ressaltar que muitos barebackers (negativos e positivos) aparecem como indiferentes ou ambivalentes em relação ao status sorológico de seus possíveis parceiros (Grov, Parsons, 2006; Tewksbury, 2003).
artigos
15 A retirada do pênis antes da ejaculação é uma das estratégias de ‘redução de danos’ utilizadas por alguns homens que se autodenominam praticantes de barebacking (barebackers). Destaca-se também a ‘preferência’ por ser ativo ou passivo (posicionamento estratégico) e a busca por manter relações sexuais desprotegidas com homens do mesmo status sorológico (serosorting) (Grov, 2006; Shernoff, 2006; Parsons et al., 2005; Suarez, Miller, 2001).
sem nenhuma proteção ou cuidado, como elemento definidor da prática do barebacking. No entanto, ainda que este aspecto seja uma marca importante em outros discursos, existem homens que preferem o barebacking sem gozar dentro15 (Silva, 2008). Quando se fala, então, que o barebacking é sexo casual com estranho, parece que todos que praticam ou praticaram sexo casual com um estranho, em algum momento da vida, sem proteção, estariam praticando o barebacking, independentemente se houve algum relapso (esquecimento, omissão, concessão) ou intenção de não usar a camisinha. Na mesma direção, é possível também problematizar alguns deslocamentos de sentido para os conceitos de promíscuo (sexo promíscuo sem proteção) e estranho. Nas interações cotidianas, nem sempre será fácil estabelecer um critério preciso (objetivo) que organize estes conceitos. Por exemplo, o sexo sem grandes compromissos afetivos, independentemente do número de parceiros, com pessoas tidas como conhecidas ou confiáveis (vizinhos, colegas, amigos ou amigos dos amigos etc.) talvez não signifique, para muita gente, sexo promíscuo. Em contrapartida, existe uma variabilidade de situações e elementos que justificam ou mobilizam a prática sexual (des)protegida, inclusive com desconhecidos, sem as pessoas se sentirem, necessariamente, promíscuas. O mesmo ocorre com os critérios utilizados para distribuir as pessoas em níveis de familiaridade ou confiabilidade. Nem sempre o tempo de relacionamento ou contato (podendo ser descrito em horas, dias, meses, anos etc.) será tido como um bom descritor para definir quem é ou não um estranho. O que estou querendo dizer é que os aspectos ou linhas fronteiriças que aproximam (ou separam) o barebacking do sexo promíscuo sem proteção ou casual com estranho nem sempre estarão bem organizados ou claramente definidos no cotidiano afetivo-sexual das pessoas, podendo ser alterados ou reorganizados a partir dos interesses e aspectos morais em jogo. Não é à toa, por exemplo, que a ideia da promiscuidade sempre esteve mais vinculada às práticas homoeróticas masculinas. Por fim, vale ressaltar que distintos encontros sexuais desprotegidos, com parceiros desconhecidos, ocorrem não apenas em contextos específicos, como as festas previamente organizadas, em que os participantes sabem da existência (possível) de pessoas com HIV, mas em outras situações diversas do cotidiano, em que o tesão do momento (e ‘dos parceiros’) pode fazer com que o uso da camisinha seja algo dispensável, secundário ou menos importante16. Nessa perspectiva, a relação entre risco e prazer também está presente em vários outros contextos de interação sexual, para além do “bareback party”, quando as pessoas têm consciência (e medo) de que podem adoecer ou correr qualquer outro perigo, mas parecem apostar no prazer intenso que sentem nestas situações tidas como arriscadas ou perigosas: “[...] então repito, claro que tem barebackers que exageram realmente e não estão nem aí para as doencas, até se divertem com elas, mas tem aqueles que curtem o bareback mas com muito medo de doenca, o q não deixa de ser comportamento de risco como citou alguém em algum comentário [...]”. (Participante3 do fórum Bareback Não é Promiscuidade). “Aconteceu Eu fui no (estabelecimento X). Tinha um cara lá que eu chamo de excesso de homem. Grandão, cabeludo e cacetudo. Ô dilícia. Toda hora eu dava uma encostada nele. Fui para aquela parte mais escura, onde
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tem uma grade, e ele foi atrás de mim. Fiquei atrás da grade olhando o movimento e ele chegou por trás roçando. Tirou aquele pintão melado e começou a passar na minha bundinha lisinha. Ai que frio na espinha, sinto só de lembrar. O pau estava melado e rapidinho ele conseguiu penetrar. Até lembrei da camisinha, mas àquela altura nem dava pra pegar. Ele mandou eu abaixar e segurou na grade enquanto metia. Foi bom demais. Fudia muito forte e rapidinho já tinha uma roda de caras se masturbando e olhando. Comecei a pegar, masturbar e chupar vários que estavam perto até que um gozou na minha boca. Eu precisava lavar e acho que por isso aquele excesso de homem não gozou no meu rabo. Ainda bem. Se tivesse acontecido eu ia ficar muito preocupado, mas foi bom demais. Ai como eu adoro uma putaria, hihihi.” (Participante do fórum Conte a Sua Experiência)
Conforme enfatiza Lupton (1999), o prazer no risco está intimamente vinculado à ideia de transgressão (ou violação) de fronteiras e oposições (dentrofora, eu-outro, natureza-cultura etc.). Podemos, então, seguir uma perspectiva analítica que concebe as práticas eróticas intimamente ligadas ao risco ou perigo, sobretudo quando o erotismo é visto como uma maneira de colocar em xeque a ordem e regularidade da vida ou a descontinuidade dos seres (Bataille, 2004). Entretanto, a possibilidade de transgredir ‘limites’ estabelecidos socialmente, incluindo os que separam e distinguem corpos e identidades, mobiliza também diferentes (e ambíguos) sentimentos e emoções, entre eles, medo, ansiedade, preocupação e culpa.
Considerações finais Conforme trabalhado neste artigo, o conceito de barebacking não circula de forma fixa e imutável, sendo apropriado (e transformado) diferentemente pelos usuários. É importante considerar, aqui, os efeitos e usos (práticos) da linguagem, podendo produzir múltiplos sentidos (Spink, Medrado, 1999; Potter, 1997)17. Não estou dizendo com isso que o termo ‘barebacking’ não tenha mais nenhuma utilidade, inclusive porque ainda produz um efeito sobre seus “ouvintes” e “locutores”, especialmente quando oferece indícios de que alguém ‘prefere’ ou pratica sexo sem borracha. O que quero ressaltar, portanto, é que os atores que se dizem praticantes não são, necessariamente, mais os mesmos, tampouco entendem o conceito da mesma forma, o que exige uma reflexão mais ampla sobre seus distintos usuários e contextos de uso. Essa transformação de sentidos abre a perspectiva de novos estudos (online e offline) para acompanhar a circulação e usos dos termos barebacking e barebacker em contextos e tempos diversos. Esses estudos, por sua vez, devem buscar compreender a forma como os (novos) discursos sobre o sexo sem camisinha passam a ser utilizados entre pessoas diversas, com múltiplos posicionamentos identitários18. É importante lembrar que as identidades são sempre múltiplas, fluidas, com uma variedade de maneiras de combinação e interseções, através das modalidades de gênero, raça, sexo, idade, classe social etc. (Butler, 2003). Como sinalizado neste artigo, ‘a identidade’ do barebacker também não se apresenta de forma única, homogênea, estável ou fixa. Há conflitos, tensões, disputas, poder, valores e posicionamentos em jogo. Essas 522
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17 A partir de uma perspectiva pragmática, bakhtiniana, o sentido é potencialmente infinito. Assim, toda compreensão implica uma atitude responsiva ativa; ainda que, para o entendimento recíproco entre os participantes do discurso, devam-se levar em consideração as formas prescritivas da língua e os gêneros do discurso, ou seja, as situações típicas da comunicação discursiva (Bakhtin, 1999). O enunciado, portanto, é um fenômeno de fronteira, vive em várias bocas e em diferentes situações. 18 Evidentemente, temos aqui vários desdobramentos e interseções, por exemplo: usuários ou não da internet, de distintas classes sociais, moradores de grandes ou pequenos ‘centros’ urbanos, de distintas identidades sexuais, negros, brancos, familiarizados ou não com o termo barebacking etc.
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19 Refiro-me aqui à discussão sobre o crescimento do risco de infecção por HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis entre homens que fazem sexo com homens a partir do uso da internet (Elford, 2006; Benotsch, Kalichman, Cage, 2002; Bull, Mcfarlane, Rietmeijer, 2001).
Deve-se destacar que a internet é utilizada também como uma ‘forma’ de proteção, na medida em que ocorre o estabelecimento de ‘papéis’ e ‘expectativas’ anteriores ao encontro ‘face a face’ (Brown, Maycock, Burns, 2005). 20
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artigos
identidades (‘gays’ que praticam o ‘barebacking’) são, portanto, fluidas, instáveis e políticas (Yep, Lovaas, Pagonis, 2002). Entretanto, mesmo com essas instabilidades conceituais, torna-se importante reconhecer a existência do barebacking, com suas fronteiras e tensões (barebacking/sexo sem camisinha); discuti-lo(s) abertamente e coletivamente (dentro e fora da internet); tirá-lo(s) da ‘marginalidade’; considerá-lo(s) como uma dimensão possível e legítima das experiências eróticas e afetivas; bem como compreender (e discutir) os distintos interesses e sensações envolvidos no sexo desprotegido, as estratégias utilizadas no cotidiano de atores diversos para não se usar o preservativo (como formas de redução ou minimização dos riscos) e os múltiplos significados produzidos em torno das práticas sexuais desprotegidas. Seria, então, uma visão estreita, simplista e mesmo incongruente pensar a internet apenas como propiciadora da epidemia de HIV/Aids, ou fixá-la como contexto de práticas de risco19. Entretanto, a internet pode favorecer a prevenção, por exemplo, ao produzir informação e discussão sobre estratégias de redução de danos para a realização do barebacking (Grov, 2006)20. Em se tratando das relações entre internet, cultura e risco, talvez seja mais pertinente discutir a reciprocidade e os múltiplos efeitos destas interações. Miller e Slater (2004), por exemplo, enfatizam o relacionamento complexo e imbricado entre mundos online e offline. São vários usos e interesses envolvidos entre os distintos atores, podendo ocorrer mútuas (e múltiplas) transformações: da tecnologia, dos próprios usuários e de suas culturas. Nesse sentido, deve-se, também, ressaltar que o ‘sexo bareback’ não ocorre apenas a partir da internet, na medida em que há uma ‘diversidade’ de espaços e abordagens para os encontros e realização do mesmo (Silva, 2008; Halkitis, Parsons, Wilton, 2003; Mansergh et al., 2002). Finalmente, no que concerne às ‘emoções’ presentes nos discursos sobre o sexo desprotegido/barebacking, gostaria de destacar alguns aspectos. O autor construcionista Kenneth Gergen (1999) entende as emoções constituídas de forma dialógica e performativa. Este autor fala de cenários emotivos (Gergen, 1999), na medida em que as emoções, como performances, também adquirem sentido em cenários relacionais específicos. Nessa direção, as emoções seriam também públicas como qualquer ação social. Reconheço a importância do construcionismo ao destacar que as emoções são nomeadas e compreendidas no interior de práticas discursivas, e que as nossas posições relacionais podem mobilizar múltiplos sentidos. Entretanto, concordo com Lupton (1998) quando diz que não se deve negligenciar uma dimensão sensual, material, corporal das experiências emotivas. Como a autora assinala, a corporeidade está inextricavelmente integrada à subjetividade (Lupton, 1998). Dessa forma, torna-se importante reconhecer que o modo como as pessoas respondem às ‘regras’ e ‘estruturas’ sociais também é mediado pelas experiências sensuais ou sensoriais vividas no corpo (Shilling, Mellor, 1996). Para além de um discurso que enfatiza a ‘intenção’ (reflexiva, consciente ou racional) de não usar a camisinha, é importante considerar que muitas decisões são tomadas à ‘flor da pele’, ou seja, no calor das interações sexuais, quando as pessoas parecem perder o ‘autocontrole’; ou mesmo levando em consideração ‘sentimentos’ de intimidade e confiança no parceiro. Portanto, as ‘posições relacionais’ também são (de)marcadas a partir da ‘materialidade’ do corpo, aberto e passível de ser transformado pela mediação de objetos, artefatos culturais e de outros corpos. Esta diferença sugere uma leitura mais crítica (e criativa) das abordagens disponíveis, entre elas o próprio construcionismo, no sentido de imaginar novos modelos teóricos que considerem a materialidade (experiência vivida) de um corpo que é, ‘simultaneamente’, 523
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cultural, social, histórico e político; portanto, sem reduzi-lo à natureza (estrutura biológica), tampouco a fenômenos linguísticos. Assim, o corpo pode ser visto como fluido, excessivo e transgressivo, na medida em que rompe seus limites e especificidades histórico-culturais (Willians, 1998). Concordo também com Ortega (2008, 2007) quando diz que o corpo não desaparece no ciberespaço21. Nesse sentido, apesar de a internet possibilitar a produção de novas ‘imagens’ corporais e posicionamentos identitários, é importante reconhecer que o usuário continua ‘tendo/sendo’ um corpo e que as narrativas (online) são também produto/efeito de ‘sensações’ corporais. Entretanto, talvez o corpo não seja apenas redefinido ou transformado virtualmente, mas constituído ou produzido ‘diferentemente’ e de forma contínua pela interação com o computador (e outros corpos e máquinas). Nesta direção, para além de dicotomias tradicionais (mente-corpo, masculino-feminino, natureza-cultura, experiência-discurso), Elizabeth Grosz (2000) destaca que os corpos são irredutíveis ao sexo (natureza), ainda que sejam sexualmente específicos, como também são mutuamente constitutivos ou “necessariamente entrelaçados a particularidades raciais, culturais e de classe” (Grosz, 2000, p.79). Por conseguinte, o modelo ideal de corpo (humano) deve ser desafiado pela afirmação de uma multiplicidade de corpos distintos, de um campo de ‘diferença’. De outro ponto de vista, torna-se interessante citar a feminista Donna Haraway, para a qual seríamos todos ciborgues, híbridos de máquina e organismo. A imagem do ciborgue significa a própria confusão de fronteiras, bem como ambiguidades criativas. Segundo Haraway (2000, p.40), estas criaturas híbridas habitam “mundos” que são ‘simultaneamente’ naturais e fabricados. Esta discussão ‘pós-humanista’ é oportuna para redimensionar ou colocar em novos termos algumas cisões ou dicotomias tradicionais, como é o caso da relação entre humanos e máquinas, sem, contudo, rejeitar a ‘materialidade’ e ‘experiência subjetiva do corpo’ (Ortega, 2008).
A partir de uma discussão mais fenomenológica, o autor enfatiza: “o corpo não desaparece no ciberespaço, ele é redefinido – não é o seu fim, ele se transforma. O corpo é um processo vivo, não confinado aos seus limites físicos, mas aberto para o mundo” (Ortega, 2008, p.224).
21
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SILVA, L.A.V.
SILVA, L.A.V. La ciber-sexualidad y la investigación online: algunas reflexiones sobre el concepto barebacking. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.513-27, jul./set. 2010. Este artículo es resultado de una investigación online sobre aspectos de la sexualidad masculina, más precisamente sobre las inter-acciones masculinas en nuevos contextos de la epidemia de HIV/Sida. Trata de discutir las posibilidades de la internet como campo de investigación, considerando los aspectos socio-culturales abiertos por las nuevas tecnologías de la información. Este es el caso de las prácticas de barebacking generalmente definido como sexo anal desprotegido de forma intencionada. Más específicamente en este artículo se plantearán algunas tensiones y ambiguidad conceptuales del barebacking, principalmente en lo que se refiere al sexo desprotegido entre parejas fijas y entre parejas ocasionales, de acuerdo con la discusión expuesta por algunos usuarios de las comunidades del orkut en el contexto brasileño. Finalmente se destaca que los actores que se dicen barebackers no son necesariamente los mismos, ni entienden el concepto de la misma forma; lo cual exige una reflexión más amplia sobre sus distintos usuarios y conceptos de uso.
Palabras clave: Internet. Sexualidad. Homossexualidad masculina. Sexo inseguro. Síndrome de Inmunodeficiência Adquirida. VIH. Recebido em 29/03/2009. Aprovado em 17/12/2009.
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How Communication experts express communicative competence Eliana Mara Braga1 Maria Júlia Paes da Silva2
BRAGA, E.M.; SILVA, M.J.P. Como especialistas em Comunicação expressam a competência comunicativa. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.529-38, jul./set. 2010.
This study aimed at understanding how Brazilian communication specialists express their communicative competence. A group of nursing professors, who were communication experts, was investigated by means of a guiding question, namely, “How do you express your communicative competence?”. The interviewees reported that they expressed their communicative competence by experiencing it in their professional lives and daily routines, listening to other people, perceiving nonverbal communication, validating message comprehension, breaking communication barriers, showing affectivity and developing self-knowledge. The results obtained from this study enabled us to understand communication as something to be learned, felt and experienced, i.e. by perceiving our own emotions and feelings as well as those of other people, both in nursing care and in everyday actions.
Keywords: Communication. Competence. Nursing.
Este estudo teve por objetivo compreender como especialistas brasileiros em comunicação expressam sua competência comunicativa. Investigou-se um grupo de professores universitários de enfermagem, especialistas na área de comunicação, utilizando-se a seguinte pergunta norteadora: Como você expressa sua competência comunicativa? Os entrevistados referiram expressar sua competência comunicativa vivenciando-a em sua vida profissional e em sua rotina diária, ouvindo outras pessoas, percebendo a comunicação não-verbal, validando a compreensão de mensagens, quebrando barreiras de comunicação, demonstrando afetividade e desenvolvendo o autoconhecimento. Os resultados obtidos a partir deste estudo nos permitiram compreender a comunicação como algo a ser aprendido, sentido e vivenciado, ou seja, percebendo as nossas próprias emoções e sentimentos assim como os de outras pessoas, tanto no cuidado em enfermagem quanto em ações da vida diária.
Palavras-chave: Comunicação. Competência. Enfermagem.
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1 Departamento de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Distrito de Rubião Jr., s/n, Botucatu, SP, Brasil. 18.603-970. elmara@fmb.unesp.br 2 Departamento de Enfermagem Médico, Cirúrgica, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
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How Communication experts express communicative competence
Introduction Communication plays an important role in our development as human beings as it is not only part of our previous experiences, but also of those gained every new day. We are relationship beings, and awareness of such fact leads us to search for further understanding of the concepts, principles and skills to be acquired during the communicative process. We are also led to reflect on the commitment taken by universities to train professors, making them aware of the fact that their role as communicators is fundamental for flexible and updated teaching. Based on this reflective approach, it has been proposed that the academy should foster up-to-date learning, thus breaking the barriers imposed by elitist and fragmented teaching, as it is no longer adapted to our reality (Silva, 2000). The role of education is to shape autonomous and free citizens, subjects of the educational process, professors and students for their new research positions in an ever-growing informational and computerized world. This will require radical transformations in the educational field once it will be crucial to reexamine and reinvent strategies and practices. Universities must invest in the production of new and innovative knowledge, rethink theoretical and methodological aspects and effectively integrate learning and research because it is only through radical modernization of the educational field, from academic research to political strategies, that schools will be able to fulfill their social function – that of shaping technically and politically competent and autonomous citizens (Belloni, 1998). Perrenoud (2000, 1999) defines competence as one’s capacity to act effectively in a certain type of situation; it is based on knowledge without being limited by it. That author also states that there are no competences which are not knowledge-based, and that most human actions require some type of knowledge. It may be superficial at times or more profound at others, but stems from personal experiences, common sense, the culture shared by a circle of experts or from technological and scientific research. It is a representation of the reality that we build and store according to our experience and education. The National Curricular Guidelines (DCN) for undergraduate nursing programs point to a generalist education for Bachelors of Science in Nursing (2001). In those documents, the general competences to be acquired, such as skills in healthcare provision, decision making, communication, leadership, administration and management, are added to specific competences and skills, such as the development of technical, scientific, ethical, political and socio-educational competences that can meet the social needs of healthcare and ensure the integrality of healthcare provision, the quality and humanization of the care provided to individuals, their relatives and the various groups in the community. The importance of interpersonal relationships and good communication for effective professional performance has been pointed out by various authors in education, healthcare and management. In agreement with the Curricular Guidelines for Undergraduate Nursing Education, aspects related to the communication capacity required for nursing practice have also been addressed by researchers, including aspects concerning care humanization and professionals’ continuing education (Silva, 2008; Braga, Silva, 2007; Stefanelli, Carvalho, 2005; Rocha, Silva, 2001). Communication teaching has also been the target of studies by other healthcare professionals in national and international levels. They point it out as a skill that must be mastered in the process of professional education, since it can expand the meaning of communication to manifestations other than the production of words (Rossi, Batista, 2006). When referring to university professors in class, Masetto e Abreu (1990) state that a class is a meeting which is repeated within predetermined time periods, and at such meetings, human beings, confined within the classroom boundaries, confront, communicate with and influence one another. The main reason for such meeting is students’ learning, which is more influenced by the way the teacher acts in class than by his personal characteristics. Stefanelli e Carvalho (2005) see communication as a process of understanding and sharing sent and received messages which influence the behavior of the individuals involved, thus corroborating that people are constantly involved in an interactional field. 530
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An individual simultaneously participates in two existential dimensions stemming from two forms of relating to the world: a verbal form, which provides him with a psycholinguistic repertoire and enables an externalization of the social being; and a nonverbal form, which provides him with a psychobiological statute and enables an externalization of his psychological being (Silva, 2008). Communication competence imposes conscious attitudes of humanization and commitment to healthcare, that is, in the humanization process, patients’ and their relatives’ care needs represent strategies in healthcare production. Attention to the forms of expression involved in communication highlight the importance of considering the other, with his differences, in interpersonal relationships, since each individual is unique and has specific values (Knobel, Andreoli, Erlichman, 2008) With this regard, nurses must be aware of the relationship between verbal and nonverbal behaviors during interactions and recognize that emotions, expectations and stereotypes, as well as the communicators’ previous knowledge, interfere in communication (Silva, 2008). Competent communication with patients and their relatives contributes to excellence in nursing practice and creates learning opportunities for those involved, being able to awaken the feeling of trust between patients and nurses, thus enabling them to experience the feeling of security and satisfaction (Inaba, Silva, Telles, 2005). Additionally, technological changes influence the organization of healthcare work by strongly introducing the notion of competence, and, in that type of work, characteristics such as autonomy, responsibility and communication capacity are taken into account (Ramos, 2001). We believe that this study provides a perspective of expansion for nurses so that they, by means of their healthcare work, can advance in the pathways of their communication competence as a necessary requirement to support their everyday caregiving. Proceeding with our studies (Rocha, Silva, 2001) that have corroborated the importance of coherence in verbal and nonverbal behaviors in the nursing teaching-learning process, the present study aimed to ascertain how nursing professors who were also communication experts expressed their communicative competence.
Method Searching for the expression of competent communication, an exploratory study was developed based on qualitative methodology. It was conducted in private and public Brazilian universities since these are the places where expert teachers in nursing communication are found. The participants were thirteen nursing professors with a background in teaching and nursing communication. They were selected from literature of publications and references in the fields of nursing teaching and communication over the last ten years.
Procedures Initially, this research project was submitted to and approved by the Ethics Research Committee of the São Paulo State University at Botucatu School of Medicine – Unesp, Brazil. Data were collected by interviews, and the nurses selected according to the previously established criteria were contacted by telephone and/or e-mail. Upon such contact, the project and its objectives were explained. Whenever the nurses agreed to particpate, interviews were scheduled and then recorded after participants had signed an informed consent form. During the interviews, the following guiding question, which was intended to be explored in the study, was presented to 13 respondents: “How do you express your communicative competence?”. The recorded interviews were transcribed and sent to the respondents for content confirmation, except for those which had been sent to us by e-mail, since they had been transcribed and authorized by the respondents themselves. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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How Communication experts express communicative competence
As a scientific method for data treatment and analysis, we used Bardin’s Content Analysis (1977), which is a set of communication analysis techniques aiming at obtaining, by means of objective and systematic procedures of message content descriptions, quantitative or non-quantitative markers which allow for the inference of knowledge related to the conditions of message production/reception (inferred variables). Three steps characterize the Content Analysis method: pre-analysis, exploration of material, and treatment of results (inference and interpretation). During material exploration, semantic categorization was performed, that is, the elements were grouped according to the topic under study.
Presentation and discussion of results The results found were categorized as follows so as demonstrate how the studied individuals reported to express their communicative competence: 1st: Experiencing it in one’s professional and personal routine 2nd: Listening to others 3rd: Being attentive to nonverbal communication 4th: Validating message comprehension 5th: Being able to eliminate communication barriers 6th: Showing affectivity 7th: Investing in self-knowledge The codes used to present the results are represented by the letter R (Respondent) and by numbers, according to the sequence in which the study data were organized: R1, R2, R3, and so on.
1st category: Experiencing it in ones’s professional and personal routine “In my professional life, I express my way to communicate in teaching, research, publications and participation in academic events; by sharing ideas, etc. In my personal life, it is a continuation; I end up applying the knowledge I have acquired in my professional life; I cannot separate them”. (R 1) “I express my competence professionally and personally. It is impossible for you to learn communication that is strictly professional; I mean, you learn and apprehend”. (R 6) “There is the right time to communicate with the staff; you have to be careful about what you say and how you say it to really establish effective interaction”. (R 8) “I exercise my communicative competence on a day-to-day basis, at work, by stimulating students so that they can detect positive aspects and failures, difficulties concerning communication”. (R 12)
The respondents reported that they expressed their communicative competence by experiencing it in their professional and personal routine, by applying their acquired knowledge to their way of teaching and leading students to learn to take others and their needs into consideration, in various forms of care provision. As to their research activities, the expression of communicative competence was reported as the care demonstrated by the respondents in relation to the subjects of their investigations and the ethical representation towards the participants in their studies. This also applied to their publications, where the expression of competence valued the effective participation of all elements taking part in a study or project. In relation to participation in congresses, conferences and meetings, communicative skill facilitates interaction with others and opens avenues for professional development. The respondents pointed 532
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out that experiencing communication means understanding that there are advantages as well as disadvantages in such expression. A communication-competent person realizes it when it is the right moment to express his opinions, when one should be careful about stating them and even when it is time to remain silent. Another aspect mentioned by the respondents was that even a competent communicator may have limitations to communicate. Additionally, it was emphasized that one’s personal life is an extension of his professional life and vice-versa, that is, the knowledge acquired in each one of these realms can be applied to the other. They cannot be separated by a limiting point. Kapborg e Berterö (2003) state that nurses need to use their hands, heart and brain in order to fulfil their commitments. This should be explicit in a clear professional framework and incorporated more fully into nursing programs. Implications for education and for practice are that nursing students need to develop their reflective ability in order to view a phenomenon from a different perspective and translate new knowledge into action. Communication competence was cited as a required field of knowledge in a study conducted on primary healthcare nurses, specialists and students (Witt, Almeida, 2008), that is, in everyday work, such competence allows for more assertive relationships among individuals.
2nd category: Listening to others “Stopping to observe the other person, paying attention, knowing how to listen, for instance: A coordinator comes in; he keeps on talking and talking, and it is a hard day… so I say: “look, I can’t give you attention now because I am very busy; I can’t now.”. They want to talk and say: “I need to talk”, “I need to talk”. It is hard. I say: “I can’t now”, to try to do things right. It is hard and requires training and continuous attention”. (R 3) “I use observation a lot, and I also listen to the other person, which is a very important thing in the communication process”. (R 4) “It is important to let people speak and to hear them attentively. The procedural model that I propose is based on listening and on nurses’ comprehensive attitude”. (R 5) “I basically express communicative competence by listening to others”. (R 7) “Since I started working, I have always tried to pay attention and listen to the nursing staff because I think this is the key: you must listen”. (R 8) “I believe that communicative competence is present when I am able to listen...”. (R 10) “I try to listen actively”. (R 13)
Another way to express communicative competence cited by more than fifty percent of the study participants was that we must “listen to others”, observe them and pay attention even though we may be facing a “hard” or a busy day. It is important to make others realize that they are being listened to, that is, they should know that they will have the opportunity to express their ideas or requests. It was clear that such listening must take place in an active and engaged way and with an understanding attitude. This ability to listen acquired by competence does not mean that people can say whatever they wish whenever it pleases them. Competent communicators should organize time and space in order to be able to provide the necessary time and opportunity for others’ expression. This organization is difficult and requires training and continuous attention. Widdershoven (1999) states that knowing the other means listening and responding to him, and that nurses’ stories are about knowing the patient in such a way that one has insight into his inner feelings and needs. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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It is believed that listening allows for the integration of different knowledge types in the unit, thus contributing to effective communication. In particular, if it takes place interdisciplinarily, it allows for understanding others in their complexity. Communicating competently presupposes that individuals are concerned about comprehending others and that ideas should be understood and shared. Interest in the other allows for messages to be clearly transmitted and understood by those involved in the communicative process; therefore, communication is only competent when it is an interpersonal process (Braga, Silva, 2007).
3rd category: Being attentive to nonverbal communication “I had a teacher who used to say that if a healthcare professional knows how to talk to the patient’s body and to the patient’s person, he will be able to get whatever information he wanted. We must pay attention to information even though it is not heard; thus “the body talks”; it really does, so we must learn how to listen to it”. (R 9) “I express my competence when I am able to listen, to see, to touch, to smell, to taste, to perceive, to interpret and adequately respond to each one of these stimuli, not assuming a pattern, but a degree of satisfaction in the answers”. (R 10) “I try to understand beyond words… I look at the person I am talking to in the eyes while we interact”. (R 13)
One of the ways to express communicative competence is to go beyond words; it is to be attentive to all senses, observing the look, gestures, body posture, and objects used by a person as well as his attitudes, such as how one sits or moves. It means giving attention to information conveyed beyond what is heard, as one of the respondents said: “If the body speaks, we must learn how to listen to it”. Nonverbal communication stimuli can be used to make messages clearer by means of body posture, eye contact, furniture arrangement, clothes, facial expression, voice tone and rhythm, interpersonal distance, use of touch and paraverbal strategies (Silva, 2008). Specialists report that such competence implies being aware of the fact that we send and receive verbal and nonverbal signs during the whole process. The conscious use of such knowledge makes one attentive to the other to perceive what he or she wants to communicate and even confirm whether the communicative intent has been achieved or not. Based on such awareness, we are able to recognize individuality and previous experiences, perceiving the other’s reaction and the moments when an interaction must be interrupted or maintained.
4th category: Validating message comprehension “I am always concerned about making sure whether people understand what I say; I usually validate communication, and I emphasize the validation of the information received, particularly when it comes to Free Consent. I make sure it is really clear, and signed only after validation”. (R 2) “I am concerned about validating my understanding of the message sent by the person with whom I am interacting as well that person’s understanding of my communication”. (R 2)
According to Stefanelli e Carvalho (2005), communication validation should accompany the entire therapeutic relationship process, and it is necessary because emitted messages must have the same meaning to all the people involved in the communicative event. They state that when we do not clarify or validate patients’ messages we are prone to act according to our own values, beliefs or misinterpretations. These authors suggest therapeutic communication techniques to verify message comprehension, such as: repeating the message to the patient, asking the patient to repeat what was said and then summarize information content. 534
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Being able to perceive whether the other person has understood a message and always validating it is a way to express communicative competence. The respondents stated that validated information is singularly important in healthcare because people have been fragile or debilitated by a diagnosis. Such momentary fragility may lead to misunderstanding, making it difficult to comprehend certain specific information.
5th category: Being able to eliminate communication barriers “I think that working with the discipline of communication contributes to one’s perceiving, in context, the questions and elements that are preventing or interfering with communication. This is real: you work with people and there are uncontrollable situations; there are influential factors, but you are aware of what is going on, of what is involved, even when communication becomes impossible, unfeasible, blocked, altered, etc”. (R 6) “We are not able to do it all the time, because the communication process has several obstacles, difficulties...”. (R 8)
Gilmartin (2002) pointed out that understanding students’ learning barriers and classroom culture has obvious application in relation to maximizing communication opportunities in class, which helps to structure and maintain an open learning atmosphere. A communication-competent person is able to realize what may be interfering with or preventing communication. Relations occur among people; therefore, they are exposed to easy or difficult situations which may alter, block and even prevent communication viability. Examples of communication barriers are: a noisy environment, emotions, feelings and beliefs of the people involved as well as physical and physiological restrictions, among others. We could cite the example of a patient with endotracheal intubation who has hearing problems: he cannot hear what is being communicated and the professional responsible for his care provision should be able to eliminate this communicative barrier.
6th category: Showing affectivity “I think it is important to show affection mainly towards students; it is always good to show feelings. This affection-related issue is very important”. (R 4) “Giving attention and affection and being together are ways to express communicative competence”. (R 9) “I try to show that I am attentive; I respect the other person’s pace and show that I am ready to interact”. (R 13) “I am constantly challenged to be empathetic, flexible, open, sensitive and loving. These attitudes must be developed so as to foster competent communication”. (R 13)
The significance of emotions in nursing work has come to be recognized in the literature. While nursing work involves cognitive and technical skills, there has been increasing recognition of the interpersonal and intrapersonal skills required to cope with the complex demands of modern healthcare systems (Bellack, 1999). To McQueen (2004), emotion management is required in successful interactions, so that professionals can show understanding of others and, in turn, influence the feelings of others (who may be patients or colleagues). Although competence is a difficult term to define, authors agree that its definition involves the correct mobilization of cognitive and affective aspects (Perrenoud, 2002; Rios, 2001). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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The effective use of senses ensures accurate message perception, since to learn how to communicate adequately, each individual must be capable of perceiving the meaning of the message being conveyed and of the aspects involved in it, that is, whether it is common to communicators, how and when the messages sent affect other individuals and also how one’s own feelings affect the communication in progress (Stefanelli, Carvalho, 2005). Expressing communicative competence means being able to show affectivity, giving attention and being near the other person. It involves being sensitive, empathetic, flexible, open as well as respecting the other. Such affectivity demonstration is especially important in the relationship with students as it makes them feel secure and interested in advancing.
7th category: Investing in self-knowledge “Self-knowledge is essential because without it you cannot see the other; there is a turmoil of emotions, sensations and thoughts about things, and if you do not look to yourself, it is difficult to establish effective communication or even to allow yourself to face the other”. (R 3) “I express myself by applying the principles of the communication line that I follow in my work; I am very emotional and impulsive, but I have good control over my actions”. (R 5) “I have changed some things; this has also happened to me; you become more attentive to communication, to people and try to understand it better, and obviously you develop as a person”. (R 6)
Individuals grow up supported by interactions; they learn about and perceive their own reactions, learn about others and allow others to learn about them. Such knowledge leads to competent communication because it is produced by readiness from both parties. Self-knowledge is considered to be a review and evaluation of communicative practice, that is, being able to perceive that one is aware as a person and as a professional during the interactions established (Braga, Silva, 2007). Investing in self-knowledge is crucial for being near the other person; it consists in working on our own feelings and emotions to achieve effective interaction. Self-knowledge makes people change attitudes, be more attentive to themselves and others, and consequently develop as human beings.
Concluding remarks The professors, communication specialists and researchers, made it possible for us to understand that the development of communicative competences is directly related to the attention given to the other and to the perception of the other. An important reflection that emerged from this investigation was that expressing communication with competence means perceiving the world around us, apprehending it and understanding how much one’s knowledge can help in teaching, in professional practice and in one’s personal life, thus contributing to one’s own growth as well as to that of individuals who are influenced by this ability. The results in this study have also made it possible for us to state that authentic interpersonal relations promote the capacity to understand one’s own feelings as well as others’. In healthcare education and work, such interactions must not be causal. Instead, they must have educational purposes to be achieved, since competences are not established, but constructed in the daily routine of relationships. In this perspective, communication competence must be regarded as a fundamental skill to be developed by healthcare professionals and expanded in undergraduate and specialization programs as well as in all levels of professional enhancement, since that will enable professionals to work with resolutivity and commitment.
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We believe that the contribution that this study brings to healthcare professionals is the apprehension of communication as something to be learned, felt and experienced, that is, by perceiving one’s own emotions and feelings as well as those of others in both nursing care and everyday actions.
Collaborators The authors worked together in all phases of the manuscript. References BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BELLACK, J.P. Emotional intelligence: a missing ingredient. J. Nurs. Educ., v.38, n.1, p.3-4, 1999. BELLONI, M.I. Tecnologia e formação de professores: rumo a uma pedagogia pósmoderna. Educ. Soc., v.65, n.19, p.81-3, 1998. BRAGA, E.M.; SILVA, M.J.P. Comunicação competente - visão de enfermeiros especialistas em comunicação. Acta Paulista Enferm., v.20, n.4, p.410-4, 2007. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais da Saúde. 2001. Disponível em: <http://www.mec.gov.br>. Acesso em: 20 nov. 2001. GILMARTIN, J. Student characteristics and subculture trends in interpersonal skills workshops. Int. Nurs. Rev., v.49, n.3, p.178-87, 2002. INABA, L.C.; SILVA, M.J.P.; TELLES, C.R. Paciente crítico e comunicação: visão de familiares sobre sua adequação pela equipe de enfermagem. Rev. Esc. Enferm. USP, v.39, n.4, p.423-9, 2005. KAPBORG, I.; BERTERÖ, C. The phenomenon of caring from the novice student nurse`s perspective: qualitative content analysis. Int. Nurs. Rev., v.3, n.50, p.183-92, 2003. KNOBEL, E.; ANDREOLI, P.B.A; ERLICHMAN, M.R. Psicologia e humanização: assistência aos pacientes graves. São Paulo: Atheneu, 2008. MASETTO, M.T.; ABREU, M.C. O professor universitário em aula. 8.ed. São Paulo: MG Editores Associados, 1990. McQUEEN, A.C.H. Emotional intelligence in nursing work. J. Ad. Nurs., v.47, n.1, p.101-8, 2004. PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002. ______. Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. ______. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. RAMOS, M.N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001. RIOS, T.A. Ética e competência. 10.ed. São Paulo: Cortez, 2001. ROCHA, E.M.; SILVA, M.J.P. Comportamento comunicativo do docente de enfermagem e sua influência na aprendizagem do educando. Nursing, v.4, n.32, p.30-4, 2001. ROSSI, P.S.; BATISTA, N.A. The teaching of communication skills in medical schools - an approach. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.10, n.19, p.93-102, 2006.
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BRAGA, E.M.; SILVA, M.J.P. Cómo especialistas en Comunicación expresan la competencia comunicativa. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.529-38, jul./set. 2010. Este estudio tuvo por objetivo comprender cómo especialistas brasileños en comunicación expresan su competencia comunicativa. Se ha investigado un grupo de profesores universitarios de enfermería, especialistas en el área de comunicación, utilizándose, con la siguiente pregunta norteadora: ¿Cómo expresa usted su competencia comunicativa? Los entrevistados dijeron expresar su competencia comunicativa experimentándola en su vida profesional y en su rutina diaria, escuchando a otras personas, percibiendo la comunicación no verbal, validando la comprensión de mensajes, rompiendo barreras de comunicación, demostrando afectividad y desarrollando el auto-conocimiento. Los resultados obtenidos a partir de este estudio nos han permitido comprender la comunicación como algo a ser aprendido, sentido y experimentado; o sea percibiendo nuestras propias emociones y sentimientos así como los de otras personas.
Palabras clave: Comunicación. Competencia. Enfermería. Recebido em 15/09/2009. Aprovado em 12/03/2010.
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artigos
Representações sobre o uso de álcool por mulheres em tratamento em um centro de referência da cidade de São Paulo – Brasil* Edemilson Antunes de Campos1 Jéssica Gallante Reis2
CAMPOS, E.A.; REIS, J.G. Representations on the use of alcohol among women undergoing treatment at a reference center in the city of São Paulo, Brazil. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.539-50, jul./set. 2010.
The objective of this study was to understand the representations and meanings elaborated regarding the use of alcohol among women undergoing treatment at the Reference Center for Alcohol, Tobacco and Other Drugs (CRATOD), located in the city of São Paulo, Brazil. For this, semi-structured interviews were conducted with women who were making what was considered abusive use of alcohol. For these women, their representations on the use of alcohol were linked to their family, professional and gender relationships, which defined the conceptual ways of classifying alcohol use, either as socially accepted or as abusive. Through this route, a system of accusations came into action, involving the particular values of the sociocultural scenario to which they belonged, thereby identifying them as “women who abuse alcohol”, i.e. women who do not fulfill their social obligations within the spheres of the family and work.
Keywords: Female alcoholism. Gender. Social representations. Alcohol abuse.
O objetivo deste trabalho foi compreender as representações e os significados elaborados sobre o uso de álcool por mulheres em tratamento no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD), localizado na cidade de São Paulo-Brasil. Para tanto, realizaramse entrevistas semiestruturadas com mulheres que fazem uso considerado abusivo de álcool. Para essas mulheres, as representações sobre o uso do álcool estão ligadas às relações familiares, profissionais e de gênero, que definem os modos de classificação do uso do álcool concebidos como socialmente aceito e como abusivo e, por essa via, acionam um sistema de acusações, que envolve os valores próprios do universo sociocultural no qual estão inseridas, identificando-as como “mulheres que abusam do álcool”, isto é, mulheres que não cumprem suas obrigações sociais nas esferas da família e do trabalho.
Palavras-chave: Alcoolismo feminino. Gênero. Representações sociais. Uso abusivo de álcool.
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* Artigo inédito, elaborado com base em Reis (2009); pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, financiada pelo CNPq e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. 1 Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo (USP). Rua Arlindo Bettio, 1000, Ermelino Matarazzo. São Paulo, SP, Brasil. 03.828-000. edicampos@usp.br 2 Graduanda em Obstetrícia, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, USP.
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Introdução A ingestão de bebidas alcoólicas é parte integrante da vida social, operando como um importante marcador das relações sociais, dos espaços de sociabilidade, da experiência corporal, da saúde e da doença. O ato de beber com os amigos no bar, após o trabalho ou nas ocasiões festivas, por exemplo, demarca periodização do tempo e do espaço sociais – trabalho/lazer e trabalho/casa –, definindo os espaços nos quais o uso do álcool é aceitável e possível. Nessa linha, todo o discurso sobre o álcool é também um discurso sobre a sociedade (Ancel, Gaussot, 1998). Em cada sociedade, encontramos padrões construídos e institucionalizados de uso das bebidas alcoólicas e uma variedade de motivos e de oportunidades construídas para o ato de beber. O ato de beber é, portanto, um ato social, que sinaliza para os contextos possíveis, nos quais o uso do álcool é valorizado (Neves, 2004). A ingestão de bebidas alcoólicas é, assim, regida por regras e normas, definindo as formas de classificação do uso do álcool em: “abusivo”, “patológico”, “alcoolismo”, “alcoolização”, “dependência”, “embriaguez” etc. É nessa linha que Souza e Garnelo (2006) enfatizam um modelo para a compreensão do uso do álcool, destacando sua definição em diferentes contextos de análise. Esses autores destacam: 1 a noção de “dependência ao álcool”, entendida como o conceito mais restrito, aparecendo associado ao modelo biomédico; 2 a noção de “problemas relacionados ao uso do álcool”, cujo alcance é mais amplo que o da anterior, e abrange os problemas sociais e de saúde relacionados ao uso de bebidas alcoólicas, contextualizados em seu espaço social, cultural e histórico, e 3 o conceito de “alcoolização” 3, que engloba os anteriores, e é próprio ao campo de estudos das ciências humanas e sociais, associando o uso do álcool aos significados que o ato de beber assume em um determinado contexto cultural, independente de ser ou não concebido como problema. A noção de “dependência do álcool” remete, fundamentalmente, a uma perspectiva substantivista, de modo que a dependência segue uma progressão linear (Vaillant, 1999; Jelinek, 1960). Já as pesquisas desenvolvidas no campo das ciências humanas e sociais, apontam para a intermitência dos estados de alcoolização observados, relativizando os padrões de regularidade e estabilidade preconizados pela noção de dependência, contribuindo para dessubstancializar o conceito de alcoolismo, remetendo-o ao contexto sociocultural no qual o uso do álcool está inserido (Fainzang, 2007, 1996; Campos, 2005, 2004). É seguindo essa linha que, neste artigo, pretendemos abordar o tema do “alcoolismo feminino”, a partir das representações de mulheres que fazem um uso considerado abusivo de álcool. Nas últimas décadas, as autoridades médicas e sanitárias têm apontado o aumento de casos de “dependência do álcool” entre mulheres. Essa questão também tem chamado a atenção da mídia impressa preocupada em abordar o problema do “alcoolismo feminino”4. Segundo dados do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em conjunto com a Secretaria Nacional Anti Drogas (SENAD), envolvendo as 108 maiores cidades do País, 6,9% das mulheres brasileiras são dependentes do álcool (Carlini et al., 2006). De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, cerca de três mil mulheres recorrem todo ano aos 47 Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) para tratamento da dependência do álcool5. 540
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A noção de alcoolização é retomada aqui no sentido conceituado por Menéndez (1982, p.63), isto é, “como o conjunto de funções e consequências positivas e negativas relacionadas à ingesta de álcool em conjuntos sociais estratificados, e não apenas o estudo dos alcoólicos dependentes, nem os excessivos, nem os moderados, mas sim o processo que inclui todos e que evita considerar o problema em termos de saúde e/ou enfermidade mental”.
3
Destaca-se, nessa linha, a reportagem de Lopes e Magalhães (2009).
4
Notícia publicada no site da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, em 27 mar. 2009, sob o título: Mulheres estudadas e ricas procuram o SUS para tratamento do alcoolismo. Disponível em: <http://www.saude. sp.gov.br/content/ phewespope.mmp>. Acesso em: 10 set. 2009.
5
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artigos
Nessa perspectiva, ver o artigo do médico Drauzio Varella, publicado no Jornal Folha de São Paulo, intitulado “As mulheres e o álcool”, no qual afirma: “Apesar do empenho feminino em busca da igualdade, por um capricho da natureza, o metabolismo do álcool nas mulheres não é, nem jamais será igual ao nosso. [...] Esses mecanismos explicam porque ficam embriagadas com doses mais baixas e progridem mais rapidamente para o alcoolismo crônico e seu cortejo de complicações” (Varella, 2009, p.E14).
6
É assim que o uso considerado abusivo de álcool, pelas mulheres, é tratado com base em uma perspectiva médico-psiquiátrica, centrada nos “riscos” do uso do álcool, com ênfase nos aspectos fisiológicos e metabólicos que podem favorecer o desenvolvimento do alcoolismo feminino6. Observa-se, assim, uma lacuna na análise das representações e dos significados construídos sobre o uso do álcool, bem como sobre o modo como o ato de beber articula-se às relações familiares e de gênero, nas quais as mulheres estão inseridas.
A pesquisa em um centro de referência para o tratamento do alcoolismo Este estudo baseia-se em pesquisa realizada no período de abril a junho de 2009, no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (CRATOD), com o objetivo de apreender as representações sobre o uso do álcool entre as mulheres em tratamento nesse centro de referência. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (CEP/EEUSP). Seguindo a linha aberta por Jodelet (2001), as representações sociais são entendidas aqui como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (p.22). As representações compõem os sistemas de interpretação social, possibilitando, aos indivíduos, formularem uma compreensão sobre a experiência vivida, orientando suas práticas sociais. Ora, as mulheres entrevistadas, quando falam do uso álcool, mobilizam um conjunto de representações fundamentais para a compreensão das maneiras de beber, do uso considerado abusivo de álcool e de seus efeitos nas relações familiares e profissionais. O CRATOD é um centro de referência no estado de São Paulo, cujo objetivo é a implantação de políticas públicas na prevenção e tratamento dos transtornos decorrentes do uso considerado abusivo de álcool e de outras drogas. O acolhimento dos usuários é feito de acordo com a região de moradia, de modo que o CRATOD atende segundo as demandas das regiões delimitadas pelas subprefeituras da Sé, Lapa e Moóca, à exceção de encaminhamentos feitos pela própria rede de saúde ou judiciário. Ao chegar ao centro de referência, o usuário é acompanhado por uma equipe multiprofissional, geralmente formada por: profissionais das áreas de psiquiatria, uma equipe de enfermagem (enfermeiros, auxiliares e técnicos), assistência social, psicologia e nutrição. Ele é recepcionado e suas queixas são ouvidas, compondo um histórico de sua trajetória: o início de sua relação de dependência, os motivos que o levaram a procurar o centro, ou se foi encaminhado para o serviço. Nesse momento, ele também é informado sobre o funcionamento da instituição. Ainda no primeiro dia, é feita uma anamnese psiquiátrica detalhada, para a definição do tipo de tratamento que será aplicado. Além da consulta psiquiátrica, o usuário passa por entrevistas em cada área, para que seu atendimento seja ainda mais específico e individualizado. Com base nessas informações, é determinado o regime de tratamento do usuário e as atividades que ele irá praticar. Após o acolhimento, o usuário passa a ser acompanhado semanalmente por um grupo chamado de os “acolhidos”, isto é, aqueles usuários recepcionados no mesmo dia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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No início do tratamento, geralmente, o usuário entra no chamado regime “intensivo”, no qual ele precisa comparecer ao CRATOD todos os dias da semana, em, pelo menos, um dos períodos (manhã ou tarde), participando de todas as oficinas disponíveis naquele horário. A intenção dessas atividades é a de “desviar” e “ocupar” a mente do usuário, de maneira a “afastá-lo” da situação de dependência. Assim que a ingestão de bebidas alcoólicas cessa ou diminui significativamente, o usuário passa para o regime “semi-intensivo”, no qual ele deve comparecer ao centro de duas a três vezes por semana; o foco principal é a manutenção desse controle, contando com sua participação em grupos de psicoterapia e em oficinas, tais como: arte terapia, fuxico, xadrez, música, memória, poesia, percussão, padaria e atividade física, que o usuário pode escolher de acordo com suas habilidades. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, cujo roteiro compreendia os dados de identificação, tais como: nome, estado civil, idade, religião, escolaridade, número de filhos, ocupação, bem como questões sobre o uso do álcool, o alcoolismo e seu tratamento, com ênfase no momento em que o uso do álcool passou a ser um problema, e sobre seus efeitos nas relações familiares e profissionais. Ao longo da pesquisa, observou-se que cinco mulheres frequentavam o grupo de psicoterapia, sendo que duas delas não o faziam toda semana. Assim, foram adotados os seguintes critérios de inclusão na pesquisa: mulheres que estavam na fase semi-intensiva do tratamento, participando do grupo de psicoterapia semanalmente, e com disposição de participar das entrevistas. O número restrito de sujeitos – três mulheres – é um limite desta pesquisa. Isso se explica porque a questão do uso considerado abusivo de álcool entre mulheres ainda representa um tema de difícil abordagem, tendo em vista o estigma e os preconceitos que o cercam. Durante a pesquisa, enfrentamos alguns problemas para conseguir os depoimentos, pois duas mulheres se recusaram a falar sobre o consumo que faziam do álcool. Todavia, por se tratar de uma pesquisa qualitativa que, segundo Minayo (1994, p.22): “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”, o número restrito de sujeitos não compromete a validade do material coletado. Esta pesquisa é conduzida com base em uma perspectiva teórico-metodológica interpretativa e compreensiva, com o objetivo de se compreenderem as representações e os significados da saúde e da doença (Victora et al., 2000). As entrevistas foram realizadas nas dependências do CRATOD, uma vez por semana, entre os meses de abril e junho, após a realização do grupo de psicoterapia, e tiveram uma duração de uma hora. As mulheres foram informadas dos objetivos da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As mulheres entrevistadas são identificadas pelas iniciais de seus nomes, como forma de preservar o sigilo das informações, e têm as seguintes características: • AG, 48 anos, solteira, formada em ciências econômicas, católica, funcionária pública; • SR, 57 anos, divorciada e vive em união estável, possui magistério, espírita, mãe de dois filhos, dona de casa; • MF, 51 anos, divorciada, formada no Ensino Médio, católica, mãe de cinco filhos, auxiliar de serviços gerais. As entrevistas foram transcritas e analisadas destacando-se as representações e os significados sobre o uso do álcool e seus efeitos na vida familiar e profissional das mulheres em tratamento no CRATOD.
Álcool, família e gênero: os sentidos da alcoolização entre mulheres em tratamento para o alcoolismo As representações sobre o uso do álcool para as mulheres entrevistadas assumem um aspecto particular, traduzindo, em larga medida, os efeitos desse uso no interior da esfera familiar, relacionado às relações de gênero vivenciadas dentro da família.
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É exatamente isso que revela uma delas, quando indagada sobre sua ocupação atual: “sou suposta dona de casa, que não gosta de fazer nada” (SR). Ou ainda, quando indagada sobre as consequências do uso considerado abusivo do álcool nas relações familiares: “Maternidade é uma coisa muito complicada [...] por mais que eu tente, eu sei que eu não sou mãe” (SR). Ou ainda, quando ela expõe as consequências do uso de álcool sobre as relações com seus filhos: “Com os meus filhos, que eu fiz sofrer, com o meu menino, chegava atrasada na creche para pegar ele, [e] totalmente de fogo [...] Quer dizer, eu aprontava algumas mesmo [...] Agora, com minha menina já foi pior, como eu já não trabalhava, nada [...] ela que sofreu um pouco mais [...] ela que me via mesmo ficar de fogo, e no final, toda a minha agressividade, eu passei para ela. Então, sobrou mesmo para ela, maltratar, de cortar o cabelo dela, de falar: ‘você não é minha filha”. (SR)
Essas falas são emblemáticas na medida em que deixam entrever uma representação da mulher que faz um uso considerado abusivo do álcool como uma mulher que não “gosta de fazer nada” e que, portanto, não desempenha seu papel social de “mãe”, que deve cuidar de seus filhos. Ou seja, a mulher que bebe de maneira considerada abusiva comporta-se de maneira oposta à mulher considerada “honesta”, isto é, aquela que cumpre seu papel social de “esposa” e “mãe”, que cuida dos filhos, ao mesmo tempo em que zela pela ordem da casa, de maneira a que tudo permaneça em seu lugar. Essa representação do uso do álcool confirma os achados em pesquisa anterior que conduzimos em grupos de Alcoólicos Anônimos (AA), localizados na Zona Leste da cidade de São Paulo (Campos, 2005, p.150), na qual encontramos um leque de representações que reforça a ideia de que “lugar de mulher é em casa”, de maneira que o alcoolismo compromete o desempenho de sua responsabilidade no âmbito da família, isto é, de “dona de casa”, que deve cuidar dos filhos. Essa representação também remete à pesquisa que Garcia (2004) conduziu em grupos de Alcoólicos Anônimos (AA), localizados na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, onde, para os membros do grupo: “para a mulher, o ato de beber em ambiente público, não importando a modalidade, constitui transgressão, reconhecida pela categorização mulheres que bebem” (2004, p.155, grifos do original). Embora não devamos fazer uma interpretação unívoca dessas falas, observa-se que elas traduzem, em larga medida, a representação da mulher cujo lugar por excelência é a casa. Assim, apesar de algumas delas expressarem sinais de inconformismo em relação à suposta submissão da mulher nas relações familiares, o conjunto dos relatos enfatiza o sofrimento da mulher que não se reconhece como aquela que deve zelar pela ordem da casa e cuidar dos filhos. Em estudo sobre as relações de gênero e violência em grupos populares, Fonseca (2004) aponta que, entre as mulheres, associada ao papel de “esposa” e “mãe”, também se encontra a possibilidade de construção da própria ideia de “honra”, aqui “entendida como o esforço em enobrecer a própria imagem segundo as normas socialmente estabelecidas” (Fonseca, 2004, p.15). Ou seja, uma mulher “honrada” deve ser uma “mãe devotada” e uma “dona de casa” que zela pelos filhos e pelo marido. É exatamente isso que revela uma das entrevistadas, ao narrar sobre o modo como o ato de beber não a impede de cumprir com os afazeres domésticos: “Não era aquela pessoa que acordava e queria beber; acordava e ia cuidar dos meus afazeres [...] Não tinha aquela de ‘não primeiro eu vou beber depois eu faço as coisas’ ou ‘vou comprar uma cerveja pra depois fazer o serviço’, não [...] nunca pensei nisso, assim, quando eu acabava, eu queria beber, ai minha casa tava limpa, meu almoço tava feito, tava tudo pronto [...] nunca fui de beber na minha casa”. (MF)
Na entrevista, MF deixa claro que bebia, mas somente após “cumprir” seu papel de mulher (“fazer o almoço”, “deixar tudo pronto”), deixando a “casa limpa”. Aqui, o uso do álcool é regido por
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uma lógica que remete às relações de gênero, vividas no interior da família, nas quais as relações sociais entre homens e mulheres são marcadas pela assimetria, hierarquia e pela desigualdade7. Enquanto para o “homem alcoólico”, o uso considerado abusivo de álcool provoca a deterioração “física” e “moral”, comprometendo a responsabilidade moral no cuidado de si e de sua família, expressa na representação do “homem provedor” (Campos, 2005), as implicações desse uso para as mulheres entrevistadas são formatadas pela assimetria em relação ao homem, própria das relações de gênero vividas no interior da esfera familiar. A representação do uso do álcool para as mulheres que participaram deste estudo incide diretamente sobre a ordem moral da família, definindo os sentidos da alcoolização marcados pelas relações de gênero nas quais estão envolvidas.
“Mulheres que abusam do álcool”: moralidades, sociabilidades e transgressões A categorização “mulher que abusa do álcool” possui um valor heurístico na medida em que permite entrever os sentidos da alcoolização feminina fundados nos valores próprios do contexto no qual as mulheres estão inseridas; ao mesmo tempo em que possibilita aprofundar a compreensão sobre o modo como o uso do álcool é marcado pelas transgressões das regras sociais que regem o uso de bebidas alcoólicas. Em nossa sociedade, os bares são considerados um “contexto possível” para o uso do álcool, que possibilita a interação entre os seus frequentadores, favorecendo a construção de redes de relações sociais e a criação de vínculos a partir de regras que definem o ritmo de uma “alcoolização” controlada: “Na época que eu bebia, eu só convivia com gente que bebia também, então não tinha problema nenhum”. (AG)
Mas, se é certo que o bar é um contexto possível para o uso controlado do álcool, é necessário observar os modos diferenciais da alcoolização que envolvem os homens e as mulheres, marcados pelas relações de gênero. É assim que o bar é concebido como o espaço central para a produção e reprodução das relações sociais entre homens/trabalhadores (Guedes, 1997). A frequência da mulher nesses espaços se dá de modo a ressaltar as diferenças entre os gêneros. Não por acaso, AG afirma que, em geral, ia sozinha ao bar: “Chegava no bar sozinha, pedia uma cerveja e ficava de boa, ficava fazendo palavra cruzada se não tinha ninguém pra conversar, eu adorava fazer palavra cruzada! Eu ficava bebendo e fazendo [...] enquanto dava pra enxergar, né? Chegava uma hora que não dava pra ver mais nada [...], embaçava tudo”.
O comportamento de AG evidencia que a frequência das mulheres ao bar é marcada por um comportamento muitas vezes solitário, deixando claro que o ato de beber, nesses espaços, pode consistir em uma transgressão marcada pelas relações de gênero. Para as mulheres, o ato de beber socialmente implica não abusar da bebida, mantendo a rotina familiar e profissional:
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O conceito de gênero procura promover a distinção entre o dado e o construído, isto é, entre o natural e o sociocultural, destacando que a realidade é sempre uma realidade construída, particularmente aquela que diz respeito às relações entre o homem e a mulher. Como aponta Heilborn (2003, p.200): “gênero é conceito das ciências sociais que se refere à construção social do sexo [...] para distinguir a dimensão biológica da social. O raciocínio que apóia essa distinção se baseia na idéia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e ser mulher é realizada pela cultura”.
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Expressão usada para designar o estado de embriaguez.
“Eu trabalhava em um escritório de advocacia, normal [...] Às vezes, eu ia almoçar e voltava um pouco borratia8, mas nada que o chefe não sabia. Nada que atrapalhasse mesmo”. (SR)
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Ou, como AG afirma: “Em casa, eu bebia bastante também. Arrumando a casa, fazendo comida. Eu fazia comida com a garrafa do meu lado.”
Ou ainda: “Nunca bebi no trabalho. Eu sempre ia ressacada, mas nunca bebia durante o trabalho, então não atrapalhava o rendimento nem nada. Eu podia sair do trabalho e depois beber, mas nunca durante o tempo de trabalho”. (AG)
Os sentidos da alcoolização das mulheres apontam para a definição do beber abusivo como uma transgressão, que rompe com as normas que regem o beber socialmente aceito, conduzindo-as à perda do controle sobre o uso de bebidas alcoólicas e, consequentemente, sobre si mesmas: “Eu tava bebendo como todo mundo, normal, mas tinha um momento, que não sei qual é até hoje, e às vezes eu acho que jamais vou descobrir [...] que era aquele ponto que eu já era [...] Aí, já era [...] eu perdia tudo, [perdia] o controle”. (AG)
Isso fica evidente também na fala de AG sobre o modo como “abusava” do álcool: “Minha irmã, quando eu bebia, ela falava: ‘ai você tá insuportável, não dá pra falar com você direito’ e, quando eu não bebia, ela falava: ‘ah, agora sim, você tá maravilhosa, assim da pra conversar com você’ [...] então, quando eu abusava, tinha um certo atrito, mas assim, ela me controlava. [...] Tinha vezes que ela saia comigo e me falava: ‘quando chegar sua cota eu vou te avisar’ [...] aí eu falava pra ela: ‘então você me avisa que eu paro’. Então, a gente andava fazendo assim nas festas [...] Mas, aí eu ia dormir [...] não ficava enchendo o saco de ninguém [...] a coisa mais chata é bêbado [...] Deus me livre”.
O uso “abusivo” do álcool deteriora as relações entre AG e seus familiares, levando-a a uma espécie de insulamento, que dificulta a relação com sua irmã, exigindo que esta a controle. A representação do uso do álcool como “perda de controle” evidencia os modos diferenciais da alcoolização entre homens e mulheres, bem como a tensão com os valores que regem o universo sociocultural no qual as mulheres estão inseridas, particularmente da “família” e do “trabalho”. A “família” e o “trabalho” operam como valores fundamentais que ordenam e dão sentido ao mundo social. Nesse sentido, perder o controle sobre o álcool é, sobretudo, perder a qualidade moral de ser “mãe”, “dona de casa” e “trabalhadora”.
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Acusação e diagnóstico no tratamento do alcoolismo As representações sobre o uso do álcool das mulheres entrevistadas, como “uso abusivo” e “perda de controle”, ligam-se aos valores morais que formatam o universo sociocultural no qual elas estão inseridas, denotando um modo próprio de conceber a alcoolização, regido pelas relações de gênero. Nesse sentido, essas mulheres não se reconhecem como “alcoólatras”, no sentido médico do termo, mas sim que perderam o limite sobre as bebidas alcoólicas. É exatamente isso que revela MF quando indagada sobre a maneira que fazia uso do álcool: “Eu comecei assim, saía do serviço com as amigas e tomava. No início era um suco, depois vai pra cerveja [...] Aí você não pensa que você é alcoólatra, você bebe uma vez por semana. Você não é alcoólatra, você bebe cerveja [...] Alcoólatra pra mim era aquele que tomava vodca; aquela pessoa que acordava e tomava pinga [...] Quando eu fui ver eu já tava bebendo no sábado, ao invés de só na sexta. Eu já tava bebendo no sábado, já tava bebendo no domingo. Na segunda não, porque de segunda a sexta era para trabalhar [...] aí eu não bebia. Em compensação, sexta à noite e sábado à tarde, eu marcava horário pra beber”.
Nessa narrativa, MF deixa claro que não se reconhece como “alcoólatra”, pois para ela o alcoólatra é aquele que ingere bebidas consideradas fortes, ao mesmo tempo em que acorda e já bebe “pinga”. Em outras palavras, evidencia-se aqui o sentido social do uso do álcool, de modo que o ato de beber é reconhecido como um momento de lazer, que não compromete as atividades profissionais, diferenciando-se do “beber compulsivo”, que conduziria à “dependência do álcool”, própria do alcoólatra. Opera-se, assim, uma distinção fundamental entre o “beber social”, regido pelas regras do bem beber, e o “beber compulsivo”, categoria médico-normativa, que define o beber patológico como uma “dependência do álcool”. Essa distinção é fundamental para a definição da representação do uso considerado abusivo do álcool como sendo uma doença. É isso o que vemos na entrevista com AG, quando ela afirma: “No ano passado quando eu bebia, eu levei um susto. Eu bati a cabeça, e acordei com o travesseiro cheio de sangue, não tinha ninguém comigo e eu não lembrava de nada [...] eu fui para o hospital, e a médica de lá me falou pra procurar um psiquiatra. Aí, eu liguei e marquei pra ser atendida, e ela falou: ‘Você nem volta pra ser atendida aqui; eu vou te atender lá no CRATOD, porque seu problema é alcoolismo’. Na verdade, eu ainda não sei bem se eu sou alcoólatra, mas é o que tá lá no meu prontuário”.
A categoria “alcoolismo” é, assim, produto de um diagnóstico médico, que define o beber considerado abusivo como uma “dependência”. Ora, não por acaso, AG se mostra desconfiada e demonstra não ter certeza se é realmente “alcoólatra”, embora seja essa identificação que está em seu “prontuário”. As mulheres entrevistadas reforçam a distinção entre o “beber abusivo” e a “doença do alcoolismo”: “não tenho mesmo certeza se tenho essa doença [do alcoolismo] ou se é só o abuso mesmo. Mas, isso não é o que importa; o que importa é que há um descontrole com relação à bebida”. (AG)
É assim que elas chegam ao CRATOD em busca de ajuda, por terem vivenciado a perda do controle sobre o álcool, pois “passaram do limite”, que define o beber social, comprometendo a capacidade de cuidar de si mesmas:
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“Você toma um golinho, toma mais um pouco. Você vai de uma bebida pra outra. Eu cheguei a dormir no ônibus! Fui até o ponto final; perdi a noção! Perdi a noção de beber”. (MF)
É isso também o que aponta AG, quando indagada sobre o que a levou a buscar o tratamento no CRATOD, após o acidente que sofreu: “Eu me assustei e fui procurar essa médica. Ela falou: ‘você precisa de tratamento’. Aí, tinha um colega que tava comigo, e ele que ficou contando as coisas pra médica. E ela me falou: ‘Ele é seu anjo ou é a sua consciência externa?’ Porque ele falava: ‘ela abusa sim’. Aí, ela falou: ‘vou te encaminhar pro CRATOD’. Não cheguei ao ponto de estragar nada. O problema era que eu chegava a gastar 100, 200 reais por semana em bebida e aí começa a atrapalhar mais no orçamento: o aluguel e as contas”. 9 A noção de categoria de acusação é entendida, aqui, no sentido atribuído por Velho (1999, p.57), compondo os chamados “sistemas de acusação”, isto é, uma “estratégia mais ou menos consciente de manipular poder e organizar emoções, delimitando fronteiras”.
A noção de “abuso do álcool” opera como uma categoria de acusação9, indicando o modo como AG transgride o conjunto de valores morais que compõe o universo sociocultural no qual ela está inserida. Ao afirmar que “ela abusa sim” do álcool, seu amigo aciona um sistema de acusações, baseado em uma lógica regida pelas relações de gênero, que demarcam os significados da alcoolização feminina, redesenhando, assim, os limites de sua identidade. Não por acaso, a médica indaga se ele é sua “consciência externa”, uma espécie de porta-voz da ordem moral, que aciona o sistema de acusações, dentro do qual AG é definida como uma “mulher que abusa do álcool”, isto é, uma mulher que não cuida de si mesma e não cumpre suas “obrigações” nas esferas da família e do trabalho. A categorização “doença do alcoolismo” não faz parte do repertório dessas mulheres, sendo atribuída a partir do diagnóstico médico-psiquiátrico: “Dizem que essa doença não tem cura; é uma doença não é? Alcoolismo é doença, e não tem cura”. (MF)
O tratamento oferecido pelo CRATOD, com a participação das mulheres nos grupos de psicoterapia e nas oficinas, possibilita, assim, a recuperação do controle sobre a própria vida, comprometido pelo uso considerado abusivo do álcool: “Quando eu comecei o tratamento, eu percebi o quanto incomodava [no trabalho]. Eu percebi que eu tava incomodando antes, não era nada escancarado, mas eu tava incomodando [...] Quando eu comecei o tratamento, meus amigos falaram: ‘olha, o que você ta fazendo é muito bom pra você’. Quando souberam que eu tava fazendo o tratamento, eu fui muito incentivada. [Na família], quando falei pra eles que comecei o tratamento, todo mundo ficou muito feliz comigo”. (AG)
O tratamento, juntamente com o apoio dos amigos e dos familiares, representa a possibilidade de recuperar o controle sobre a ingestão das bebidas alcoólicas e, por essa via, o cuidado de si mesma, os vínculos familiares e profissionais: “Meus filhos me dão a maior força. Eu falo pra eles [sobre o tratamento]. Eles já me trouxeram aqui antes do trabalho. Eles me dão a maior força”. (MF)
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Ou ainda: “Aqui [no CRATOD], pelo menos eu tenho pessoas que eu posso contar o que aconteceu comigo. Você se abre uma, duas vezes por semana”. (MF)
É assim que as mulheres em tratamento no CRATOD encontram a possibilidade de recuperação, por meio do cuidado de si e do resgate dos vínculos familiares e profissionais, perdidos no tempo em que eram consideradas mulheres que abusavam do álcool.
Considerações finais O ato de beber é um ato social, ligado aos códigos que regem o consumo de bebidas alcoólicas em um determinado contexto sociocultural (Castelain, 1990; Fabre-Vassas, 1989;). As representações sobre o uso de álcool, construídas pelas mulheres entrevistadas, sintetizadas nas expressões “abuso do álcool” e “perda de controle sobre as bebidas”, acionam um sistema de acusações baseado em uma lógica regida pelas relações de gênero, nas quais se revelam os modos diferenciais do consumo de bebidas alcoólicas entre homens e mulheres, por meio do qual elas são identificadas como “mulheres que abusam do álcool”, isto é, mulheres que não cumprem suas obrigações sociais como “mães”, “donas de casa” e “trabalhadoras”. A categoria médico-psiquiátrica “dependência do álcool” não abarca a complexidade das representações sobre o uso do álcool construídas pelas mulheres entrevistadas. Quando as mulheres falam que abusavam do álcool, elas falam, sobretudo, dos conflitos e dissabores enfrentados no meio social em que vivem. As mulheres que fazem um uso considerado abusivo do álcool buscam um tratamento que as ajude reconstruir um sentido sobre a experiência do beber, possibilitando o controle sobre a ingestão das bebidas alcoólicas, redesenhando, assim, os contornos de suas vidas: pessoal, familiar e profissional.
Colaboradores Edemilson Antunes de Campos responsabilizou-se pela orientação da pesquisa, análise das entrevistas, redação e revisão final do artigo. Jéssica Gallante Reis responsabilizou-se pela realização, transcrição e análise das entrevistas. Referências ANCEL, P.; GAUSSOT, L. Alcool et alcoolisme: pratiques et représentations. Paris: L’Harmattan, 1998. CAMPOS, E.A. Alcoolismo, doença e pessoa: uma etnografia da associação de exbebedores Alcoólicos Anônimos. 2005. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. 2005. ______. As representações sobre o alcoolismo em uma associação de ex-bebedores: os Alcoólicos Anônimos. Cad. Saude Publica, v.20, n.5, p.1379-87, 2004. CARLINI. E.A. et al. II Levantamento domiciliar sobre uso de drogas psicotrópicas no Brasil - 2005. São Paulo: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas/ Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo, 2006. CASTELAIN, J.P. Vers une anthropologie du boire. In: CARO, G. (Org.). De l’alcoolisme au bien boire. Paris: L’Harmattan, 1990. v.1, p.70-2.
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CAMPOS, E.A.; REIS, J.G. Representaciones sobre el uso de alcohol: mujeres en tratamiento en un centro de referencia de la ciudad de São Paulo, Brasil. Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.539-50, jul./set. 2010. El objeto de este trabajo ha sido el de comprender las representaciones y los significados elaborados sobre el uso de alcohol por parte de mujeres en tratamiento en el Centro de Referencia de Alcohol, Tabaco y Otras Drogas (CRATOD), localizado en la ciudad de São Paulo. Para tanto se han realizado entrevistas semi-estructuradas con mujeres que hacen uso considerado abusivo del alcohol. Para estas mujeres las representaciones sobre el uso del alcohol están asociadas a las relaciones familiares, profesionales y de género que definen los modos de clasificación del uso del alcohol concebidos como socialmente aceptado y como abusivo y, por esta vía, accionan un sistema de acusaciones que incluye los valores proprios del universo socio-cultural en el que están ubicadas, identificándolas como “mujeres que abusan del alcohól”; esto es, mujeres que no cumplen sus obligaciones sociales en las esferas de la familia y del trabajo.
Palabras clave: Alcoholismo femenino. Género. Representaciones sociales. Uso abusivo de alcohol. Recebido em 25/09/2009. Aprovado em 04/03/2010.
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Percepções e atitudes de professores de escolas públicas e privadas perante o tema drogas* Tatiana Cristina Diniz Ferreira1 Zila van der Meer Sanchez2 Luciana Abeid Ribeiro3 Lúcio Garcia de Oliveira4 Solange Aparecida Nappo5
FERREIRA, T.C.D. et al. Perceptions and attitudes among public school teachers towards the topic of drugs. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.551-62, jul./set. 2010.
In Brazil, although teachers are considered potential agents for prevention of drug use, school-based prevention programs have not achieved the expected results over a period of more than two decades. Aiming to help in identifying the origin of the problem, teachers’ perceptions and attitudes regarding this issue were evaluated. Twenty elementary and high school teachers in the city of São Paulo participated in this study, and semistructured interviews were conducted with them. Although these professionals recognized that they were opinion formers, they did not consider that they had sufficient skills to deal with this topic among their students, because of lack of information, interest or ability to deal with it. Regarding the information on this topic, it was found that there was low perception of risks associated with legal drugs. Given these results, it is suggested that schoolbased prevention programs should be reviewed and should involve participation by specialized professionals.
Keywords: Prevention. Teachers, Students. Qualitative research. Substance-related disorders. Schools.
No Brasil, apesar de os professores serem considerados como agentes potenciais para a prevenção do uso de drogas, há mais de duas décadas os programas escolares de prevenção não têm alcançado os resultados esperados. Com o intuito de auxiliar a identificação da origem do problema, foram avaliadas as percepções/ atitudes de professores sobre o tema. Participaram da pesquisa vinte professores do Ensino Fundamental e Médio da cidade de São Paulo, com os quais foram realizadas entrevistas semiestruturadas. Embora esses profissionais se reconheçam como formadores de opinião, não se consideram suficientemente habilitados para tratar do tema com seus alunos, seja pela sua falta de informação, interesse ou habilidade para abordar o assunto. Quanto à informação sobre o tema, verificou-se haver uma baixa percepção sobre o risco associado às drogas lícitas. Perante estes resultados, sugere-se que os programas de prevenção destinados ao ambiente escolar sejam revistos e tenham a participação de profissionais especializados.
Palavras-chave: Prevenção. Professores. Estudantes. Pesquisa qualitativa. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Instituições acadêmicas.
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Texto inédito, elaborado com base em estudo realizado no Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), Departamento de Psicobiologia, Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas, Universidade Federal da São Paulo (Unifesp). Este trabalho recebeu o XIX Prêmio Pereira Barreto, com o título de Primeiro lugar na apresentação pôster, Categoria Saúde Coletiva, no XIII Congresso de Iniciação Científica da Unifesp. Financiado pela Fapesp e AFIP (Associação Fundo de Incentivo à Psicofarmacologia). Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital São Paulo, Unifesp. 1-5 Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo. Rua Botucatu, 862, 1° andar. São Paulo, SP, Brasil. 04.023-062. zila@psicobio.epm.br *
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Introdução A mais recente publicação epidemiológica de representatividade brasileira, sobre o uso de drogas por estudantes do Ensino Médio e Fundamental, mostrou um cenário que merece atenção. As drogas lícitas, representadas pelo álcool e pelo tabaco, têm um papel de destaque no consumo entre os adolescentes, tendo sido consumidas, respectivamente, por 44,3 e 9,9% dos adolescentes, no mês anterior à pesquisa. Já as ilícitas foram consumidas, alguma vez durante as suas vidas, por quase ¼ dos adolescentes estudados. Nesta categoria, as mais consumidas são os inalantes, os quais foram utilizados por 15,5% dos alunos investigados (Galduróz, Noto, Carlini, 2004). Outro estudo, ainda mais atual, porém só investigando o comportamento em relação ao consumo de álcool, evidenciou que quase metade dos brasileiros, entre os 14 e os 17 anos, beberam três ou mais doses de álcool em uma ocasião, tendo 16% deles, pelo menos uma vez no ano anterior à pesquisa, chegado a consumir mais de cinco doses (Laranjeira et al., 2007). Assim, a questão do uso de drogas entre os estudantes é, sem dúvida, um tópico de destaque na saúde pública e na educação. Em relação às estratégias educacionais para conter o abuso de drogas, nota-se que, na percepção coletiva, é fundamental a existência de ações cujo caráter seja preventivo e que estas sejam desenvolvidas por professores dos Ensinos Fundamental e Médio (Armelin, 1999). A Legislação Brasileira sobre o Uso de Drogas, mesmo havendo sofrido modificações ao longo das décadas, sempre regulamentou a formação continuada de professores na área de prevenção ao uso de drogas, e a implantação de projetos pedagógicos nos ensinos público e privado (Moreira, Silveira, Andreoli, 2006a; Mukoma, Flisher, 2004; Bizzotto, Rodrigues, 1997). Sabe-se que os professores dos Ensinos Fundamental e Médio são considerados agentes da prevenção por serem potencialmente importantes veículos de formação e de informação sobre as drogas. Neste contexto, Moreira, Silveira, Andreoli (2006b) revelaram a importância dos discursos, das atitudes e dos comportamentos dos professores frente aos alunos, visto que estes constituem uma população em situação vulnerável (Sodelli, 2010). Também Freire (1996, p.24), em Pedagogia da Autonomia, valorizou o papel do professor ao afirmar que “gestos aparentemente insignificantes [dos professores] podem valer como força formadora do educando”. Além disso, o Ensino Fundamental e o Médio englobam a fase da adolescência, etapa de transição entre a infância e a idade adulta, na qual os indivíduos incorporam padrões de referência aos seus comportamentos, os quais servirão de base para a definição das suas personalidades (Sanchez, Oliveira, Nappo, 2005; Burt, 2002; Scivioletto, Morihisa, 2001). Nesta fase, o aluno expõe-se mais, porém responde bem às intervenções contextualizadas, especialmente nos seus contextos dominantes, como a escola e os seus pares (Schenker, Minayo, 2005), o que leva a valorizar as possíveis intervenções que partam dos professores. Apesar da relevância do papel do professor, há mais de duas décadas os programas de prevenção que envolvem os profissionais citados não vêm obtendo a eficácia esperada (Faggiano et al., 2005; Mukoma, Flisher, 2004; Carlini-Marlatt, 2001; Soares, Jacobi, 2000). Nicastri e Ramos (2001) enfatizaram o papel crucial da informação como medida preventiva contra o abuso de drogas entre os adolescentes e os jovens. Estes pesquisadores destacaram que a informação deve ser veiculada com cautela, e de uma forma que, ao invés de prevenir o consumo de drogas, não desperte a curiosidade desses jovens pelo referido consumo. Sodelli (2007) mostrou que os professores, apesar de compreenderem a importância da prevenção às drogas como sendo um trabalho necessário, têm tendência a não assumir esta tarefa, relegando-a a outros profissionais ditos mais especializados. O mesmo autor apontou que os cursos de formação dos professores para a prevenção não estão sendo capazes de promover alterações comportamentais e de valores nos professores, como também não conseguem fazer com que eles se sintam mais preparados para assumir a tarefa preventiva na escola (Sodelli, 2007). Cruz (2002), por sua vez, salientou que os fracassos dos programas institucionais de prevenção estão relacionados aos discursos inadequados dos professores, os quais não respeitam as características psicológicas e sociais dos estudantes. 552
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Apesar destas informações oriundas da literatura científica, ainda é necessário investigar os fatores que melhor descrevem o pensamento coletivo dos professores dos Ensinos Fundamental e Médio, assim como a sua relação com estes discursos. O presente estudo qualitativo teve como proposta investigar como os professores dos Ensinos Fundamental e Médio da cidade de São Paulo percebem, agem e discursam em relação ao tema das drogas e dos seus usuários, considerando as suas percepções (suas ideias e imagens), as suas atitudes (como procedem) e as suas opiniões (como avaliam os fatos) sobre o referido tema.
Método Optou-se por utilizar a abordagem qualitativa visto que esta permite a identificação dos valores, das crenças, das opiniões e dos comportamentos dos entrevistados. Este método de pesquisa permitiu compreender, em profundidade, a visão dos professores sobre o tema “drogas”, de acordo com os seus próprios conceitos, revelados de forma aberta em seus discursos (Patton, 2002; Creswell, 1998; Taylor, Bodgan, 1998). Como instrumento para a coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada em profundidade (World Health Organization - WHO, 1994), direcionada por roteiro, na qual algumas questões foram previamente padronizadas e outras desenvolvidas ao longo do diálogo, de acordo com a necessidade de compreensão mais ampla de determinados tópicos. Um conjunto de questões básicas foi formulado a todo entrevistado, de modo a permitir comparar as respostas, além de reduzir a interferência do entrevistador e facilitar a organização e a análise dos dados (Patton, 2002; Creswell, 1998). A entrevista é considerada em profundidade por apenas ser dada continuidade ao roteiro quando a questão anterior é respondida nos seus mais profundos detalhes, e após o entrevistado ter esgotado o seu cabedal de colocações sobre o tema. A elaboração do roteiro foi baseada em entrevistas prévias com informanteschave, que são indivíduos que possuem um conhecimento especial da população em estudo (WHO, 1994). Nesta pesquisa, os informantes-chave foram duas psicólogas e cinco diretores de escolas públicas e particulares de diferentes bairros da cidade de São Paulo. Foram realizadas entrevistas com vinte professores dos Ensinos Fundamental e Médio da cidade de São Paulo. As entrevistas tiveram a duração média de sessenta minutos, e foram conduzidas de acordo com técnicas para realização de entrevistas qualitativas adequadas. Todas as entrevistas ocorreram em local apropriado para esse tipo de intervenção (neutro e seguro), boa interação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados em clima descontraído, e a não manifestação da opinião ou ideias do entrevistador durante a entrevista (Minayo, 2004; Kvale, 1996). Com isso preservou-se o princípio de uma investigação qualitativa em que o fenômeno investigado é analisado sob a visão do entrevistado, isto é, segundo os seus valores, a sua compreensão e a sua vivência (Minayo, 2004). Além disso, as entrevistas foram anônimas e gravadas com consentimento prévio dos entrevistados, após assinatura do termo de consentimento, seguindo normas do Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp. Os informantes-chave proporcionaram o contato dos pesquisadores com alguns professores da amostra, enquanto os demais componentes da amostra foram recrutados pela técnica da bola de neve (WHO, 1994), em que os primeiros de cada cadeia indicavam profissionais para serem entrevistados, os quais, por sua vez, indicavam outros professores para serem entrevistados, e assim sucessivamente. Estas cadeias foram constituídas por pessoas pertencentes a grupos diferentes no que diz respeito: às condições socioeconômicas, aos locais de moradia e de trabalho, à formação acadêmica (portanto, à disciplina ministrada), à idade e ao gênero. Não existiu nenhum tipo de contato entre os componentes das diferentes cadeias. Esta estratégia tentou assegurar uma maior heterogeneidade entre as cinco cadeias investigadas, permitindo a possibilidade de integrar à amostra perfis diferentes dos segmentos (Denzin, 2005). As entrevistas foram gravadas, transcritas e identificadas por um código alfanumérico que significa, pela ordem: a inicial do nome do entrevistado, o sexo (M= masculino; F= feminino), a idade do entrevistado e o tipo de escola em que ele trabalhava (PA= escola particular; PU= escola pública e PAPU, caso o entrevistado trabalhasse tanto em escola particular quanto em pública) (Bryman, Burgess, 1999). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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As respostas foram analisadas com base na técnica de análise de dados qualitativos, proposta por Bryman e Burgess (1999) e aprimorada com conceitos da análise temática proposta por Minayo (2004), e análise de conteúdo proposta por Bardin (2004), cuja técnica consiste dos seguintes passos: leituras flutuantes que permitem o contato com o material e o estabelecimento de impressões sobre o fenômeno estudado; preparação do material, que consiste no desmembramento das entrevistas por temas e o reagrupamento das respostas conforme o tópico e a questão perguntada. As respostas referentes a cada uma das questões foram identificadas ao longo de cada uma das entrevistas e, com a ajuda de um software, desenvolvido especialmente para essa análise, criou-se um arquivo independente para cada item do roteiro. A partir daí foram feitas interpretações e inferências em relação ao tema investigado, de acordo com as informações obtidas nos discursos e baseadas nas análises de tendências das respostas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo/ Hospital São Paulo, seguindo todas as recomendações para pesquisas envolvendo seres humanos.
Resultados e discussão Dados sociodemográficos No que concerne aos dados sociodemográficos, os entrevistados foram caracterizados como: faixa etária entre os 24 e os 57 anos; tempo de atuação como professor, variando entre quatro e 39 anos; igual distribuição entre os trabalhadores das escolas públicas e das particulares; 75% mulheres; 65% católicos.
Informações científicas dos professores sobre as diferentes drogas psicotrópicas Tipo e origem da informação sobre as drogas A lei brasileira sobre drogas (Lei n.11.343/2006) preconiza que os professores possuam conhecimentos referentes a substâncias psicoativas para subsidiar a formação dos estudantes (Bizzotto, Rodrigues, 2007). Apesar disto, quase todos os professores entrevistados disseram não ter informações suficientes sobre drogas para transmiti-las aos seus alunos nem para conversar com eles sobre o tema, conforme o seguinte depoimento: “Eu procuro me informar um pouco porque eu sou educadora e convivo com alunos que estão em contato com drogas e alunos traficantes, então tenho que estar informada. Mas eu não me sinto, assim, preparada. Tanto que eu nunca cheguei pra conversar com um aluno sobre o consumo de drogas ou sobre ele traficar, eu não tenho essa coragem”. (VF41PU)
A análise do conteúdo dos discursos, sobre a participação dos entrevistados em algum evento relacionado a este tema, demonstrou que eles não estavam suficientemente capacitados para transmitir esse tipo de informação para os seus alunos, apesar de quase a metade dos professores ter afirmado que, buscando capacitação na área, já tinha participado de algum tipo de evento sobre drogas, como seminários, cursos, grupo de estudos, palestras e treinamentos. Porém, segundo eles, estas atividades forneceram apenas informações básicas sobre a temática, não continham informações relacionadas à didática por meio da qual os professores deveriam abordar o tema e, também, as informações não eram suficientes para formar um multiplicador sobre estas. Foi observado, também, que os professores obtinham informações por leituras e vivências pessoais sobre o tema, o que contribui para a formação de uma opinião baseada no senso comum, levando a visões errôneas e deturpadas em relação às drogas. Um exemplo disto é o seguinte relato: “O crack, segundo a base científica, é o resto de outras drogas compactadas, então são substâncias diferentes interagindo junto que vão causar um prejuízo maior ao cérebro”. (EF29PAPU) 554
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Drogas lícitas são menos perigosas que as ilícitas Embora seja uma ideia observada apenas nos depoimentos de alguns dos entrevistados, notouse que estes professores consideram as drogas lícitas menos perigosas do que as ilícitas, atribuindo a estas últimas um maior potencial deletério ao organismo. Este dado também foi observado por Del Rio e Alvarez (1995), os quais perceberam que a sociedade espanhola atribuía às drogas ilegais um potencial de dano à saúde muito maior do que aquele provocado pelo álcool e pelo tabaco. Moreira (2005), avaliando os conhecimentos e as atitudes dos coordenadores pedagógicos das escolas públicas de São Paulo, verificou que é mediano o conhecimento dos educadores sobre drogas, com melhor desempenho nas questões sobre as drogas ilícitas e menor desempenho nas questões sobre o álcool. Esta percepção pode ser identificada por meio do relato mostrado a seguir: “Olha, eu acho que o álcool e o tabaco seriam considerados drogas, mas eu acho que não seria aquela droga tão... Ela não muda o comportamento, eu acho que o tabaco não chega a mudar o comportamento do indivíduo assim, não é?”. (FM48PA)
Talvez esta visão seja justificada pelo próprio consumo dos professores, já que quase todos fazem ou fizeram uso de drogas lícitas, enquanto somente alguns utilizaram drogas ilícitas. A falta de informação como fonte de medo em tratar o tema Os professores, por conta da falta de informação e do receio de não terem respostas para sanar as dúvidas dos estudantes, demonstram medo e incapacidade para lidar com a prevenção do uso de drogas, como pode ser visto nos trechos que seguem abaixo: “Eu não me acho capaz de ficar criando discurso [de prevenção]. E pra falar a verdade eu posso até falar que eu não me acho capaz e nem acho que os professores são capazes pra fazer isso [programas de prevenção]”. (CM38PAPU) “Às vezes eu falo de maneira geral, mas eu não sei especificamente que órgão ataca, eu sei mais ou menos. [...] Eu não sou especialista”. (RF29PA)
Fatores de risco para o início do uso de drogas: influência quase exclusiva do meio Quando inquiridos sobre os fatores de risco para o início do consumo de drogas, quase todos apontaram para os sociais, ou seja, o meio em que vivem e a classe socioeconômica a que pertencem. A partir desta percepção, observou-se que, na opinião da maioria dos entrevistados, os estímulos externos são os responsáveis por fazerem as pessoas iniciarem o consumo de drogas. Isto implica duas realidades distintas. Na primeira, tal fato pode levar os professores a isentarem o usuário das suas responsabilidades, já que, na opinião deles, predomina a visão de que este indivíduo age por meio de influências indiretas que vêm de experiências externas. Assim, ele executa ações que não surgem da sua própria vontade e são determinadas por fatores extrínsecos à sua pessoa. Isto resulta em considerar que os usuários são indivíduos sem autonomia para tomarem as suas próprias decisões e, até mesmo, exercerem o seu direito de dizer não. Na segunda, no discurso desses professores, a visão de usuários tendo as suas ações sempre determinadas pelo meio social está relacionada a experiências negativas, como a desestruturação familiar e a instabilidade emocional. Em contrapartida, a caracterização dos indivíduos que não usam drogas como indivíduos que têm uma boa base familiar, estabilidade emocional e têm disponibilidade de informação parece ser bastante positiva, embora utópica, fugindo à realidade que hoje pode ser observada na nossa sociedade. No entanto, os professores não parecem ter noção da dimensão multifatorial que influencia o consumo de drogas, detendo-se, quase que exclusivamente, no papel dos fatores externos ao adolescente, pouco citando fatores internos que interferem na sua decisão de consumir. Conforme Scivoletto e Morihisa (2001), há um consenso no meio científico de que o uso e o abuso de substâncias psicotrópicas é multifatorial (dimensão biopsicossocial), e que os principais fatores envolvidos são: a curiosidade, a obtenção de prazer, a influência do grupo, a pressão social, o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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isolamento social, a baixa autoestima e a dinâmica familiar. Neste contexto, as escolhas feitas pelo adolescente estariam sujeitas a inúmeros fatores externos e internos que, no balanço final, iriam gerar uma atitude diante do consumo de drogas.
Professores como formadores de opinião Foi observada, em alguns relatos, uma grande preocupação, por parte dos professores, em não usar drogas (em geral lícitas) na frente dos alunos, visto que eles se sentiam como modelos/ referências para os mesmos, conforme se pode verificar por este depoimento: “O meu vício não pode servir de mau exemplo pra eles, não é? Porque o professor, para aluno, é um espelho. Então o que eu fizer de errado, ele vai achar que pode fazer que é comum, que é normal”. (CF38PU)
Em vista disto, nota-se que, para estes profissionais, o seu próprio consumo de drogas tinha uma conotação negativa, e eles evitavam propagar este comportamento. No entanto, esta postura não é consensual. Apesar da posição que ocupam, e mesmo cientes do fato de serem formadores de opinião, curiosamente existem professores que não possuíam essa preocupação, o que pode ser comprovado pela seguinte declaração: “Com o pessoal maior de idade, nós saímos às sextas-feiras para um “happy hour” num bar qualquer. E eu fumo cigarro, tanto é que alguns criticam de vez em quando (risos). Eles não acreditavam que eu fumava. Aí eu falava: ‘Eu sou o quê? Você acha que eu sou um E.T.?’” (MM52PAPU)
Outros ainda preferiram isentar-se completamente da responsabilidade como formador de opinião, transferindo a competência da educação sobre drogas totalmente para a família do aluno, conforme o depoimento abaixo: “Não sou eu que vou ensiná-los ou não a fumar. Apesar de se ter uma idéia que na escola ele vai se deteriorar, [...] não é na escola que ele vai começar a fazer coisa errada. Quando ele chega pra nós ele já vem fazendo coisa errada dentro da casa dele”. (TF46PAPU)
O postura do professor quanto ao uso de drogas pelos alunos É importante ressaltar que a observação de indícios do uso de drogas pelos alunos resulta em posturas variadas por parte dos professores. Há aqueles que não fazem nada, pois têm receio de abordar o tema, não sabem como lidar com o assunto ou pensam que não têm, como uma das suas funções, a de alterar a conduta do aluno. Esta percepção pode ser melhor visualizada no seguinte discurso: “Quem sou eu pra chegar junto?”. (MM52PAPU)
Há também os que conversam com os alunos, encaminham para a coordenação e para a direção ou passam a abordar o tema em sala de aula após notar indícios de uso. Um deles disse achar que o trabalho do professor é muito limitado, não tem continuidade e que, às vezes, tinha a sensação de que não estava fazendo nada: “Eu acho que cabe a gente, que é o adulto da escola, a gente estar de olho pra algumas coisas. [...] O nosso trabalho de professor é muito limitado. Porque você só faz isso, mas você não dá continuidade. [...] A impressão que eu tenho é que parece que tudo o que você faz é muito pouco, não é nada pra aqueles alunos, pra aquela molecada.” (CM38PAPU)
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Estas respostas novamente trazem à tona atitudes e opiniões distintas entre os diferentes professores, fato que deveria ser considerado na realização dos programas de prevenção ao consumo de drogas, cuja aplicação é destinada às escolas. A maneira como cada professor trata o tema é peculiar. Essa distinção deve ser observada, sobretudo para que não se continue implementando programas de prevenção, cuja aplicação seja idealizada para ocorrer de maneira idêntica nas diferentes escolas, de diferentes bairros e classes sociais, e para ter a sua forma igualmente reproduzida por diferentes professores. A participação destes no projeto de execução, discussão e avaliação dos programas é fundamental.
A prevenção na escola A maior parte dos entrevistados considerou que a escola tinha um papel fundamental a desempenhar na prevenção ao consumo de drogas. Afinal, ela possui um caráter de socialização, ou seja, de tornar possível o contato do jovem com realidades diferentes da sua e, a partir daí, fazê-los incorporar ideias, comportamentos e atitudes frente a determinadas situações. Em outras palavras, é na escola que as pessoas se tornam informadas e constroem as suas opiniões sobre determinados assuntos, o que, segundo os entrevistados, não poderia ser diferente em relação ao tema “drogas”. O discurso a seguir ilustra a ideia: “A escola, como um templo do saber, [...] como um lugar onde parte da educação e parte da formação de caráter do aluno é feita, tem como dever elucidar e tentar ao máximo prevenir o uso abusivo de drogas.” (DM24PU)
Os entrevistados relataram também que existiam dificuldades para que a escola conseguisse cumprir um papel preventivo em relação ao uso de drogas, pois os professores, os pais e a comunidade deveriam estar mais engajados na formação das crianças e dos adolescentes. Em contrapartida, os professores demonstraram ter consciência de que a escola teria condições de desenvolver um trabalho que se destinasse à prevenção do uso de drogas, especialmente por possuir um espaço para isso, por ter contato direto com os adolescentes e por dispor de profissionais que poderiam ser preparados para executar esse tipo de ação. Nóvoa (1999), há uma década, afirmou que os professores eram paradoxais, ou seja, possuíam um discurso retórico complexo no que dizia respeito ao que faltava nas escolas, mas, ao mesmo tempo, não se colocavam à disposição para mudar o quadro. A maioria dos entrevistados relatou que eram desenvolvidas atividades preventivas em relação ao uso de drogas nas escolas em que eles trabalhavam, embora alguns deles não soubessem caracterizar como ocorriam essas atividades, e considerassem que o fato de falarem sobre o tema em sala de aula era uma forma de prevenção. Tal abordagem do tema, em sala de aula, foi relatada por menos de uma quarta parte dos professores entrevistados. Parecia que o receio de possíveis represálias por parte do tráfico ou dos próprios alunos consumidores os assustava. Segundo esses profissionais, a droga poderia fazer parte do ambiente no qual o aluno vivia e ser um meio pelo qual ele sobreviveria financeiramente ou, ainda, ser a causa da sua dependência química. Esta opinião foi bem expressa pelo depoimento abaixo: “Eu não entro no mérito de dizer ‘Vamos fazer uma campanha de prevenção’. E eu vou lhe explicar o porquê: porque isso é bater de frente com pessoas que seriam contra esse tipo de postura. Eu tenho colegas que já tiveram sérios problemas porque resolveram fazer uma campanha anti-drogas na escola [...]. Eu tenho experiência de amigas minhas que foram ameaçadas, que encontraram bilhetes no carro pedindo para parar, senão elas iriam ter que parar de qualquer forma.” (MF37PU)
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Quando o professor decide tratar o tema “drogas” em sala de aula, a frequência desta atividade é variável, podendo ela ser realizada semanalmente em uma disciplina específica para isso, uma vez por ano ou somente quando os alunos questionam algum aspecto relacionado ao tema. Isso demonstra a falta de engajamento de alguns professores em relação à implementação nas escolas de programas de prevenção ao uso de drogas. Dada a importância do assunto na área da Saúde Coletiva, é imprescindível que os profissionais que têm contato direto com o jovem - que é quem está mais susceptível a usar drogas pela própria característica da sua faixa etária -, sejam motivados a agirem como agentes de prevenção. Como o aluno dirige as suas dúvidas para o professor, a limitação deste em tais situações leva-o a tomar uma postura de autodidata frente à temática. Interesse dos alunos pelo tema Na opinião dos professores, os alunos estão bastante desinformados e curiosos em relação ao tema “drogas”. Mais da quarta parte dos entrevistados considerou que os alunos estão bastante interessados em abordar assuntos que foquem o tema das drogas, e chegando, até mesmo, após participarem de atividades que os esclareçam sobre o tema, a apresentarem mudanças significativas no seu comportamento, conforme o depoimento que se segue; “Às vezes eles ficam em casa buzinando, sabe? [...] Então sempre vêm as mães falando ‘Ah, meu Deus! Depois que vocês fizeram essa campanha [de prevenção] ele não pára de me encher o saco’. E houve mães que mudaram o seu comportamento e que foram fumar fora de casa, sabe, pois a criança batia o pé dizendo que ela dentro de casa não fumava mais”. (CF25PA)
Este depoimento reflete a importância e a influência do trabalho dos professores para a formação da opinião dos alunos. O aluno leva para casa aquilo que ouve na escola e, dependendo da forma como o assunto foi abordado, multiplica a sua opinião entre os familiares. Alguns professores também relataram que havia alunos que se mostravam muito resistentes quando o tema era abordado, não sendo receptivos ao mesmo. Este perfil de comportamento observase em uma minoria, mas não pode deixar de ser levado em consideração quando da elaboração dos programas de prevenção. Essa percepção reflete as sensações que os professores têm da repercussão dos seus trabalhos em função das atitudes dos seus alunos. Isso é útil, sobretudo, para que eles observem quais os aspectos que necessitam de modificações em relação ao ensino sobre o tema, e até mesmo procurem formas mais atrativas de abordar o assunto com os estudantes. Curiosamente, apesar de a maior parte dos programas de prevenção atualmente existente aplicar os seus recursos nas escolas e nos professores, e serem baseados no modelo de informação científica (Canolleti, Soares, 2005), nitidamente aqueles não têm sido bem-sucedidos, pois os alunos, sobretudo nas escolas públicas, parecem não confiar na informação transmitida pelo professor (Sanchez et al., 2009). Possíveis modelos de prevenção na escola Os professores também foram questionados quanto aos possíveis modelos de programas de prevenção. As suas respostas refletiram que a maioria crê que seria prioritária a implementação de modelos que transmitissem informações científicas sobre o feito das drogas no organismo, assim como sobre as consequências do uso destas substâncias. As sugestões dos professores, na sua essência, são semelhantes às propostas americanas de prevenção nas escolas, em que se utilizam modelos informativo-científicos (Cuijpers, 2002; Clayton, Cattarello, Johnstone, 1996). No entanto, nenhum deles cogitou a possibilidade de oferecer programas de habilidades sociais, comuns nas escolas europeias, os quais se destinam a desenvolver habilidades de relacionamento interpessoal, enfrentamento de dificuldades e desenvolvimento de perspectivas para o futuro, além de oferecer técnicas para aumentar a autoestima (Martín et al., 1999). Também não pensaram, como uma proposta alternativa, inclusive na prevenção primária, na aplicação de modelos de redução de danos, sugeridos por Moreira, Silveira, Andreoli (2006b). A proposta destes pesquisadores focou vários aspectos sobre o uso e o abuso de substâncias, especialmente na visão 558
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do indivíduo como um todo, sobre a qualidade de vida e os rompimentos com os preconceitos e as segregações (Moreira, Silveira, Andreoli (2006b). Claro que o ideal seria criar um programa de prevenção inteiramente nacional, focado para a necessidade da população brasileira, visto que a importação de modelos educacionais tem fracassado devido à falta de alicerces culturais da nossa população (Cruz, 2002). Mais de um terço dos professores mencionou que outros profissionais deveriam estar envolvidos neste tipo de atividade, alijando a sua responsabilidade em relação aos projetos sobre a prevenção do uso de drogas. Eles mencionaram os profissionais da saúde, os psicopedagogos, os assistentes sociais e os exusuários, como sendo os intervenientes necessários para uma atuação em conjunto para a realização de um programa de prevenção que produzisse efeitos satisfatórios. O discurso a seguir ilustra esta opinião: “Eu acho que deveria ter, dentro da escola, palestras com profissionais especializados no assunto. Não nós, os professores, mas alguém que venha, faça palestras, dê um enfoque, que mostre mesmo e que vê com seriedade o problema que está acontecendo”. (CF57PA)
Sodelli (2007) apontou para direção semelhante, quando disse que o professor, uma vez indagado ou pressionado pelos alunos sobre os reais problemas relacionados ao uso de drogas e às suas possíveis consequências, não se sentia preparado e com autoridade suficiente para discorrer sobre o assunto, garantindo que o profissional mais qualificado para este trabalho seria o da área da saúde - o médico ou o professor de biologia. De um modo geral, a maioria dos professores sabia da necessidade e da importância de um programa cujo caráter seja preventivo. Eles relataram que seriam extremamente necessários: um bom material, um maior investimento na escola, um trabalho coletivo, sério, contínuo, constante, aberto a novas opiniões e a novos conhecimentos, com pessoas que se aprofundassem no assunto. Esta ideia, porém, implicaria o aumento da necessidade da disponibilidade e da motivação dos professores para que a mesma surtisse efeitos benéficos concretos. O presente trabalho trouxe à tona esta falha, ou seja, de que os professores estão conscientes da falta de informação dos alunos sobre o tema e, também, de que a escola é um importante veículo para proporcionar o debate e a aplicação de estratégias preventivas. Porém, eles não querem ser envolvidos diretamente nessa discussão, o que acaba contrariando a proposta atual da SENAD (Brasil, 2005), o qual propõe programas de redução da demanda de drogas por meio dos métodos de responsabilidade compartilhada, envolvendo diversas redes sociais, como a escola, a família, a comunidade e o governo. Se os professores não assumem o seu papel neste processo, acabam sobrecarregando as outras redes e enfraquecendo o processo preventivo. Vale destacar também que qualquer estratégia preventiva a ser implantada em uma escola, necessita de tempo regular semanal para a sua execução. Não depende apenas de um professor decidir abordar a temática nas suas aulas, uma vez que este tem a obrigação de cumprir o currículo da sua disciplina dentro de uma carga horária em geral limitada, ficando sem tempo extra para tratar de assuntos não previstos. Da forma como o trabalho dos professores está organizado, qualquer trabalho preventivo dependerá de suporte por parte da direção da escola para adaptação do currículo da disciplina e da carga horária, fatores não relacionados à simples motivação do professor.
Considerações finais Apesar dos dados relevantes que este estudo apresentou, houve limitações inerentes ao método que devem ser levadas em consideração. A metodologia qualitativa, utilizando-se de amostra intencional, não-aleatória, acabou por limitar as conclusões sobre a população investigada, não permitindo generalizar as mesmas em relação à população global ou, por tabela, inferir sobre outras populações. Os entrevistados demonstraram possuir visões pouco científicas e um tanto deturpadas em relação ao tema drogas e aos seus usuários, baseadas no senso comum e em seminários pontuais de capacitação. Notadamente, estas capacitações não foram suficientes para formá-los como agentes multiplicadores de prevenção nas escolas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Apesar disto, os professores acreditam que a escola, devido ao seu caráter socializador, é o meio fundamental para a execução de programas de prevenção, além de ser o local onde os jovens podem ser formados e informados em relação ao tema. No entanto, devido ao seu despreparo, eles apenas conhecem e julgam eficaz o modelo de informação científica, não mencionando, nas suas preleções, a existência de modelos alternativos focados para o treinamento de habilidades sociais ou para o treinamento de resistência. Eles sentem-se responsáveis pela formação dos alunos em relação ao tema, porém, devido às suas limitações, eles preferem ser excluídos desse processo - fato que, na prática, tem sido impossível, já que a demanda do aluno em relação ao assunto recai sobre eles. A abordagem do tema em sala de aula traz medo aos professores, pois além de passarem a informação para os seus alunos (tarefa para a qual eles já têm inúmeras dificuldades por conta da falta de conhecimento sobre o assunto), têm de avaliar a melhor forma de como a transmitir. Consideram que qualquer programa de prevenção aplicado nas escolas deveria partir da iniciativa dos seus superiores (diretores e coordenadores pedagógicos), ser centralizado, específico, ou seja, baseado na realidade socioeconômica e cultural dos alunos, tendo o respaldo dos pais e a consultoria de profissionais da área das drogas. Os autores deste trabalho acreditam que seja fundamental que os professores façam parte, como alicerce, de qualquer programa de prevenção desenvolvido nas escolas. A atual política nacional sobre drogas enfatiza que a prevenção ao uso de drogas deve basear-se na responsabilidade compartilhada. Não adiantaria apenas capacitar professores para lidarem com a temática na sala de aula, mas sim capacitá-los para pensarem programas que envolvam as diversas instâncias sociais. A solução também não pode ser transferir a solução do problema para os “especialistas” ou os profissionais da saúde. Um problema de origem multifatorial, sem dúvida, exige uma solução multifacetada. Os programas de prevenção, mesmo quando alocados nas escolas, exigem o envolvimento da família, da comunidade vizinha, da mídia, do governo, dos professores, dos funcionários e dos alunos, permitindo que cada segmento acione a sua rede social, oferecendo não apenas informação, mas recursos e atividades que permitam que o jovem tenha alternativas ao consumo de drogas. Não será um modelo único de prevenção que definirá o não-uso, mas talvez um modelo que agregue aquilo que há de mais dinâmico e positivo em cada programa. De qualquer forma, o professor, como formador de opinião de qualidade, é a chave fundamental neste processo.
Colaboradores Tatiana Cristina Diniz Ferreira foi responsável pela coleta de dados, análise das entrevistas e redação da primeira versão do manuscrito. Zila van der Meer Sanchez supervisionou a coleta, a análise dos dados e a redação do manuscrito. Luciana Abeid Ribeiro redigiu a segunda versão do manuscrito e fez a revisão da literatura. Lúcio Garcia de Oliveira foi responsável pela discussão dos resultados e seleção dos discursos, e Solange Aparecida Nappo responsabilizou-se pela concepção teórica e supervisão geral. Referências ARMELIN, M.G. Prevenção às drogas na escola. O mundo da saúde, v.23, n.1, p.48-52, 1999. BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3.ed. Lisboa: Edições 70, 2004. BIZZOTTO, A.; RODRIGUES, A.B. Nova lei sobre drogas: comentários à lei n.11.343, de 23 de agosto de 2006. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. BRASIL. Política Nacional Sobre Drogas. Brasília: CONAD, 2005. Disponível em: <http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/ Legislacao/326979.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2009. BRYMAN, A.; BURGESS, R.G. Analyzing qualitative data. London: Routledge, 1999. 560
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Palabras clave: Prevención. Maestros. Estudiantes. Pesquisa cualitativa. Transtornos relacionados com substancias. Instituciones acadêmicas. Recebido em 03/08/2009. Aprovado em 09/02/2010.
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Sentidos do trabalho e imaginário organizacional em um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS* Vinicius Carvalho de Vasconcellos1 Creuza da Silva Azevedo2
VASCONCELLOS, V.C.; AZEVEDO, C.S. The meanings of work and the organizational imaginary in a psychosocial care center (PCC). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.563-76, jul./set. 2010.
This study examined the imaginary and affective elements of subjective professional-work bonding within the current context of the field of mental health. Using the theoretical framework of the French school of psychosociology, the analysis focused on the meanings that work takes on; organizational imaginary; and professionals’ experience of pleasure/ suffering. The empirical material for the investigation was extracted from a field study carried out in a psychosocial care center in the municipality of Rio de Janeiro, Brazil. This analysis found new meanings for attendance, packaged as an imaginary of transformation of care, thereby inspiring pleasure in the work. On the other hand, the challenges of the transformation proposal, the adversities in material support, the seriousness of the cases and the scarce social value of the work give rise to a distressing experience. Influenced by these elements, the bonding to the work and the attendance itself are seated in a fragile balance.
Este trabalho investigou os elementos imaginários e afetivos do vínculo subjetivo profissional-trabalho no atual contexto do campo da Saúde Mental. Valendo-se do referencial teórico da psicossociologia francesa, a análise centrou-se nos sentidos assumidos pelo trabalho, no imaginário organizacional e na experiência de prazer/sofrimento dos profissionais. A investigação extraiu seu material empírico de uma pesquisa de campo realizada em um Centro de Atenção Psicossocial do município do Rio de Janeiro, Brasil. Nesta análise detectaram-se novos sentidos para a assistência embalados por um imaginário de transformação do cuidado, inspirando prazer no trabalho. Por outro lado, os desafios da proposta de transformação, as adversidades no suporte material, a gravidade dos casos e a escassa valorização social do trabalho favorecem uma experiência de sofrimento. Influenciados por esses elementos, o vínculo com o trabalho e a própria assistência assentamse em um frágil equilíbrio.
Keywords: Mental health. Health care reform. Work.
Palavras-chave: Saúde mental. Reforma dos serviços de saúde. Trabalho.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
* Texto inédito, elaborado com base em Vasconcellos (2008); pesquisa com financiamento parcial do CNPq, sem conflitos de interesse, aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Ensp/Fiocruz e no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. 1 Gerência de Recursos Humanos/Ambiência, Petrobras. Av. Chile, 65, Centro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.031-912. v.v@click21.com.br 2 Departamento de Planejamento e Gestão em Saúde, Ensp/Fiocruz.
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Introdução A história da psiquiatria moderna teve, no modelo manicomial, sua principal referência desde o final do século XVIII. A partir do contexto histórico de sua emergência, este modelo apoiou-se em determinadas premissas, tais como: o isolamento social dos loucos, a internação em instituições totais, o tratamento moral, o padrão disciplinar da assistência e a exclusividade do discurso médico na condução dos casos. Em última análise, esta linha de tratamento acoplava-se tanto a um ideal de cura quanto à necessidade de “proteção” da sociedade diante da periculosidade, da anomia e da bizarrice que o louco personificava (Desviat, 1999; Amarante, 1996; Pitta, 1996). Ao sabor da dialética inerente ao processo histórico, tal modelo não passou indene às mudanças políticas, sociais e econômicas dos meados do século XX, emergindo, assim, um período de questionamento. O esforço de mapeamento histórico dos motivos que impulsionaram tais críticas é frequente nas publicações da área de Saúde Mental, assim como a descrição, análise e comparação das propostas de reforma psiquiátrica emergentes em vários países no mundo (Melman, 2001; Desviat, 1999; Amarante, 1995). Tais iniciativas começaram a repercutir mais acintosamente no Brasil no final da década de 1970 e início da década de 1980. Entrementes, em meio à efervescência pela redemocratização do país e a situação caótica dos hospitais psiquiátricos, os profissionais da área aglutinaram-se em torno de uma ampla teia de contestações, que incluía, em seu bojo: o combate à excessiva privatização da assistência, críticas ao modelo hospitalocêntrico e manicomial, e reivindicações trabalhistas, dando corpo à reforma psiquiátrica brasileira (Amarante, 1995; Bezerra Júnior, 1994; Delgado, 1992). Desde então, o campo da Saúde Mental no Brasil vem passando por intensas modificações, incluindo grandes avanços na formulação de políticas públicas, na produção teórica e na própria assistência perpetrada pelos profissionais. Imiscuído nessa nova configuração, o próprio vínculo subjetivo dos profissionais com o seu trabalho queda-se sujeito a modificações. Considerando que a prestação da assistência é influenciada por tal vínculo, o objetivo deste artigo é investigar os matizes que este adquire na atual contextura da Saúde Mental e da reforma psiquiátrica brasileira, especialmente no que toca aos sentidos e ao imaginário organizacional (Enriquez, 1994a) atrelados às práticas assistenciais e às experiências de prazer e de sofrimento existentes no trabalho. Para a consecução desta empresa, este vínculo é apreendido à luz da leitura organizacional da psicossociologia francesa contemporânea, particularmente por meio da perspectiva de Eugène Enriquez, e do estudo da dinâmica prazer-sofrimento psíquico presente na obra de Christophe Dejours. Esse arcabouço fornece lentes que facultam pesquisar o contexto intersubjetivo nos serviços de saúde, esforço que vem adquirindo espaço nas publicações da área da Saúde Pública (Sá, Carreteiro, Fernandes, 2008; Onocko Campos, 2005; Azevedo, 2002; Azevedo, Braga Neto, Sá, 2002). Os resultados empíricos que serão apresentados adiante advêm de uma pesquisa (Vasconcellos, 2008) que buscou compreender a relação entre a dinâmica intersubjetiva do trabalho em Saúde Mental e três macrocenários que a envolvem: a sociedade contemporânea, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a reforma psiquiátrica brasileira.
Imaginário organizacional e a dinâmica prazer-sofrimento no trabalho A psicossociologia francesa contemporânea tem como campo precípuo de estudo o cotidiano e a intersubjetividade dos grupos, organizações e comunidades, e assume que os sujeitos se ligam ao seu trabalho e às organizações não apenas por vínculos materiais, mas, sobretudo, por elos simbólicos, imaginários e afetivos. Ao se debruçar no estudo das organizações, Enriquez destaca o papel do imaginário, entendido aqui como “uma certa maneira de representar aquilo que somos, aquilo que queremos vir a ser, aquilo que queremos fazer e em que tipo de sociedade e de organização desejamos intervir” (Enriquez, 1994a, p.57). O sistema imaginário é povoado por desejos, imagens e representações psíquicas compartilhadas por membros de um grupo/organização, sendo traspassado por processos inconscientes e estando intimamente ligado ao sistema simbólico (conjunto de valores e mitos), 564
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aspectos que funcionam como balizadores da atuação dos indivíduos, produzindo sentido para suas ações (Enriquez, 1997). O investimento psíquico dos indivíduos em um determinado imaginário coletivo embasa a constituição do grupo e favorece a efetiva realização de um projeto comum (Enriquez, 1994a). O imaginário dá sustentação às práticas sociais (Takeuti, 2002) e, também, aos projetos a construir, sendo assim ponto de partida para os sentidos e as significações compartilhadas por um grupo social (Freitas, 2000). No marco da psicossociologia francesa, estes sentidos estão inseridos em um processo dinâmico e intersubjetivo que reside na base organizações (Lévy, 2001), remetendo a um vivido em permanente construção e traduzindo significações - muitas vezes contraditórias - para o trabalho (Araújo, 2002). Deste modo, a análise do vínculo do profissional com o trabalho, neste artigo, centrase então em desvelar os sentidos construídos para a atuação profissional e analisar o imaginário organizacional que os embasa. Adicionalmente, a análise contempla também a dinâmica prazer-sofrimento, utilizando, neste caso, a leitura de Dejours. Dentro deste veio teórico, a experiência de sofrimento no trabalho é vislumbrada como uma “vivência subjetiva intermediária entre doença mental descompensada e o conforto (bem-estar) psíquico” (Dejours, Abdoucheli, 1994, p.127). O autor advoga a existência de formas de vivenciar o trabalho que são mais favoráveis do que outras na negociação da superação desse sofrimento, de maneira que é possível aspirar à transformação de uma parte do sofrimento em prazer. Tal transformação ocorre, sobretudo, quando o indivíduo é capaz de doar sentido à sua atividade e sentir-se reconhecido na sua realização, posto que o reconhecimento assume a forma de uma retribuição simbólica pelo esforço despendido no trabalho (Dejours, 2004a, 1996). É no reconhecimento que entra o papel do outro, operando na própria constituição do elo existente entre o sujeito e seu trabalho: “Se há prazer no trabalho [...] este prazer só pode advir do ganho obtido no trabalho, justamente no registro da construção da identidade e da realização de si mesmo [...] A identidade só pode ser conferida pelo olhar do outro” (Dejours, 2004b, p.213). Na costura teórica entre a psicossociologia francesa e a abordagem de Dejours, o estudo do vínculo subjetivo do profissional com o trabalho passa a privilegiar os sentidos dados ao trabalho e o imaginário organizacional subjacente, bem como a ligação destes com a dinâmica prazer-sofrimento emergente na atuação profissional em Saúde Mental.
O campo da saúde mental e as possibilidades do vínculo subjetivo com o trabalho A abordagem aqui desenvolvida da relação profissional-trabalho na Saúde Mental brasileira mostra-se especialmente pertinente em função das alterações vivenciadas por esse campo nos últimos decênios. Protagonista dessa cena, a reforma psiquiátrica apresentou-se como uma linha de fuga diante do modelo hospitalocêntrico/manicomial, almejando uma reformulação nas formas de cuidado. Ainda que esse processo não tenha surgido como um monólito e esteja trespassado por dissonâncias entre suas correntes de pensamento (Bezerra Júnior, 1999, 1994), tal dissenso não escamoteia a consolidação de um movimento capaz de propor uma nova forma ao quadro assistencial. No que se refere à constituição de novos serviços, a reforma ganhou expressão no advento de diferentes dispositivos, dentre os quais se destacam os CAPS, serviços alçados pelas políticas públicas à condição de organizadores da nova rede de Saúde Mental. Estes contam com a presença obrigatória de equipe multidisciplinar e têm a missão de prover atendimento clínico e psicossocial a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, visando a substituir o modelo hospitalocêntrico e evitar internações (Brasil, 2004). Para além da criação de novos serviços, um modo apropriado para expor as nuanças da reforma psiquiátrica reside em estudar seus impactos nas práticas assistenciais e no vínculo do profissional com seu trabalho. Neste contexto, cumpre resgatar a discussão travada, no seio da reforma brasileira, sobre a atuação profissional, discussão esta assaz marcada pela experiência da reforma psiquiátrica italiana. Basaglia (1985), ao criticar o modelo manicomial, ressaltara que os profissionais da assistência amiúde perfaziam um papel de administradores e concessionários de uma violência técnica, fundada em larga medida na radicalização da assimetria entre o poder do profissional e do usuário. De acordo com essa COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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leitura, os técnicos - respaldados por seu saber/poder e pelo mandato social e legal - atuavam como controladores institucionais da loucura. Essas críticas ecoaram ruidosamente nos profissionais que se envolveram na implantação da reforma psiquiátrica brasileira, que passaram a refletir sobre as práticas de Saúde Mental, a relação com os usuários do serviço, os sentidos de seu trabalho, enfim, sobre sua própria atuação profissional. Em um panorama das recentes publicações da literatura, cabe salientar que alguns autores, ainda que com objetivos e desenhos teórico-metodológicos distintos dos propostos aqui, ressaltaram inserções profissionais encerradas no espírito da reforma. Desta maneira, tais pesquisadores revelam um cuidado alicerçado na reflexão e na experimentação de relações interpessoais mais dialógicas (Nunes et al., 2008), atestando também a existência de um trabalho assistencial como uma práxis que busca a transformação social (Honorato, Pinheiro, 2008). Contudo, outras pesquisas, mesmo reconhecendo avanços substanciais, observaram a redução da reforma à dimensão técnico-assistencial, esvaziando assim a dimensão política e conceitual (Bueno, Caponi, 2009), além de trazer à baila a persistência de representações sociais típicas da lógica manicomial (Leão, Barros, 2008) ou, ainda, a manutenção dos “desejos de manicômios” (controle, normatização e fixidez) nos profissionais (Alverga, Dimenstein, 2006). Nesta linha, atesta-se a necessidade de contínua autorreflexão e elaboração psíquica dos profissionais como forma de combater os insidiosos “manicômios mentais” internalizados no cotidiano do trabalho (Bezerra Júnior, 2007). A partir dessa aparente contradição entre os estudos, este artigo legitima-se na tentativa de compreender esse momento de transição, entre os modelos assistenciais, por meio dos sentidos, do imaginário e das experiências de prazer e sofrimento presentes na realização do trabalho em Saúde Mental, fornecendo mais subsídios para se compreenderem as possibilidades de reformulação no cuidado.
Método A abordagem qualitativa, entendida aqui como “aquela capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais” (Minayo, 1999, p.10), pautou a consecução deste estudo, sendo escolhida em função do objetivo da pesquisa e de seu marco teórico. Mais especificamente, a pesquisa em questão delineou-se como estudo de caso, valendo-se, como universo de investigação, do CAPS Arthur Bispo do Rosário, serviço que compõe a rede de Saúde Mental do município do Rio de Janeiro. A pesquisa de campo foi realizada no segundo semestre de 2007 e, no total, foram realizadas, aproximadamente, vinte visitas ao CAPS. Duas estratégias foram utilizadas no estudo empírico: observação participante e entrevistas. A observação participante investigou a atuação dos profissionais no fluxo de usuários, no brechó do serviço, na assembleia de usuários, no grupo de referência e na reunião de equipe/supervisão, sendo acompanhada por um diário de campo, no qual foram transcritas as percepções relativas ao campo estudado. As entrevistas foram individuais e semiestruturadas, sendo realizadas no próprio local de trabalho e com duração média de uma hora. Foram entrevistados profissionais de nível superior e de nível médio, oriundos de diferentes formações profissionais. A seleção dos entrevistados respeitou dois critérios: estar envolvido diretamente nas práticas assistenciais e trabalhar há, pelo menos, um ano no serviço. Salvaguardadas as condições de seleção dos participantes assinaladas acima, o serviço dispunha de 11 profissionais elegíveis para a entrevista, de sorte que, ao cabo da pesquisa de campo, oito profissionais foram entrevistados. Além desses profissionais, dois novos informantes foram incluídos no conjunto de entrevistas: um membro do Centro de Estudos do Instituto Municipal de Assistência Juliano Moreira (IMASJM), referência para o serviço estudado, e a primeira coordenadora do CAPS. Essas inclusões justificam-se tendo em vista que ambos, ao contrário dos demais entrevistados, testemunharam os primeiros passos do serviço. Partindo do referencial teórico, duas grandes categorias de análise foram privilegiadas na “escuta” do empírico: a primeira perscrutava os sentidos que surgiram entremeados ao exercício do trabalho, especialmente no que tange às práticas assistenciais e à relação dos profissionais com os usuários. 566
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Por meio dessa análise, tornou-se possível delinear o imaginário que embasava os próprios sentidos assumidos pelo trabalho, tendo em vista que o imaginário serve de ponto de partida para estes; a segunda categoria explorava, à luz desses sentidos e do imaginário, a ligação afetiva (prazer e sofrimento) entrelaçada ao exercício profissional. Tanto em um caso quanto no outro, o processo de reforma psiquiátrica e seus possíveis efeitos sobre o trabalho entraram como pano de fundo para a formulação das questões. A análise do material empírico, assim como todo o processo de pesquisa, centrou-se na abordagem psicossociológica, em especial na perspectiva clínica (Lévy, 2001), unindo-se a outros trabalhos realizados no campo da Saúde Pública (Sá, Carreteiro, Fernandes, 2008; Azevedo, Fernandes, Carreteiro, 2007). O posicionamento clínico se define como uma “demarché de compreensão daquilo que faz a singularidade radical de uma situação, de um problema, ou de um mal-estar vivido por determinados grupos ou pessoa” (Lévy, 2001, p.23). Essa perspectiva, ao estudar o discurso, traz o sofrimento e a questão da produção de sentido para o centro da análise (Sá, 2005). Com efeito, a situação de entrevista, nesta perspectiva, é vista como uma forma de impelir o entrevistado a construir uma narrativa e acaba lançando-o na reflexão sobre os sentidos de experiência laboral. No caso das organizações, as entrevistas expressam não só os sentidos e os valores do entrevistado em sua individualidade, mas o colocam também na condição de porta-voz (Pichon-Rivière, 1983) daquela formação social e de sua constelação de elementos imaginários e simbólicos: Uma organização social se desenvolve, com efeito, em todos os planos, interconectados, da vida dos indivíduos e dos grupos. Ela diz respeito aos atos concretos, ao trabalho [...]; traduzse nas interações que homens e mulheres fazem entre si, com seu corpo e seus sentidos, na alegria ou no sofrimento, sempre na angústia, e nos desejos que sentem nesta experiência compartilhada [...] Num plano mais geral, o ponto de vista clínico permite apreender o conjunto desses processos como o lugar onde se efetua a conjunção entre a história de grupos e coletividades e a dos indivíduos que os constituem. (Lévy, 2001, p.14)
O projeto de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Sua realização ocorreu em conformidade com os princípios éticos e condições para pesquisas envolvendo seres humanos estabelecidos na Declaração de Helsinki (1989) e na Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados e discussão Os sentidos do trabalho e o imaginário organizacional no CAPS Bispo do Rosário O CAPS Bispo do Rosário situa-se no Complexo Juliano Moreira, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Este complexo agrega atualmente vários serviços de Saúde Mental, incluindo antigos pavilhões hospitalares que são resquícios da antiga Colônia Juliano Moreira, instituição que foi um dos mais importantes hospitais psiquiátricos da cidade. Por se localizar nas terras do Complexo Juliano Moreira, esse CAPS mostra certa singularidade diante de seus pares, posto que a maioria dos CAPS está distante de estruturas hospitalares e visceralmente inserida no território. Apesar dessa idiossincrasia, a assistência do CAPS Bispo espelha o modelo prescrito pelas políticas públicas do setor. Na pesquisa de campo, as alusões à reforma psiquiátrica apareceram de modo recorrente quando os profissionais eram instigados a falar sobre seu trabalho. Assim, um profissional, ao ser perguntado sobre os sentidos de trabalhar naquele serviço, responde de pronto que “significa trabalhar em um serviço de ponta da reforma psiquiátrica, uma instituição alternativa que é de extrema importância para que se possa substituir o modelo asilar”. (profissional A)
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Na mesma linha de diferenciação do modelo asilar/manicomial, os relatos apontam que “O CAPS dá um sentido de progresso e sucesso para esse movimento de transformação da assistência e de deixar para trás essa assistência que se fazia aqui antigamente”. (profissional B)
ou ainda que “O CAPS vem com essa intenção de ser substitutivo desse modelo (asilar/manicomial) e isso me orgulha muito”. (profissional A)
Tais falas refletem o afã de se afastar/substituir as práticas manicomiais, movimento este embalado no próprio discurso da reforma. Este primeiro sentido para o trabalho surge revestido de importância e orgulho, apontando para a existência de investimento psíquico e identificação com as propostas da reforma, e para a capacidade desta em despertar afetos positivos, reforçando achados de outras pesquisas (Nardi, Ramminger, 2007). Conforme exposto anteriormente, para a psicossociologia francesa, tais processos são fundamentais para o compartilhamento de um projeto social ou organizacional, como no caso da reforma psiquiátrica. O apelo em prol da superação do modelo manicomial e da realização de um trabalho encerrado no espírito da reforma encontra, na reunião de equipe/supervisão, um locus privilegiado de manifestação: “As discussões da reforma aparecem mais nas reuniões de equipe/supervisões e a gente tenta adequar a teoria ao nosso cotidiano de trabalho”. (profissional C)
Uma das facetas mais relevantes desse encontro reside na discussão sobre a atuação da equipe técnica, esforço que se arvora na tentativa de se ampliarem as possibilidades assistenciais: “Qualquer coisa que acontece nos casos nós discutimos na reunião de equipe e a supervisora parece que tem sempre uma questão em torno do que está sendo discutido. E que faz a gente pensar: peraí, de fato, a gente devia estar dando conta disso”. (profissional D)
A reunião de equipe/supervisão, ao resgatar as discussões da reforma e fomentar esse apelo reflexivo, parece cumprir a função de alimentar e difundir o sentido de substituição do modelo manicomial. Tal encontro delineia-se, assim, como um mecanismo institucional capaz de aglutinar os profissionais em torno desse eixo de cuidado, favorecendo o investimento psíquico nas propostas de mudança da reforma psiquiátrica. Esse momento coletivo parece propiciar ao grupo o papel de fiador de um projeto que o transcende (Enriquez, 1997). Como forma de desnudar as nuances assumidas por este primeiro sentido do trabalho (substituição/superação das práticas manicomiais), foi mister apreender como este se desdobrava em outros sentidos. Desse modo, a maioria dos entrevistados, ao se reportar a este processo de renovação, o fez calcada em dois grandes eixos: os objetivos almejados pelo trabalho em Saúde Mental e a relação profissional-usuário. No que tange ao que os profissionais aspiram de suas práticas, as falas pontuam que: “O possível de se esperar (da atuação profissional) é que o usuário com transtorno mental possa seguir o curso de sua vida de uma maneira menos sofrida, lidar melhor com as situações que a vida vai lhe trazendo”. (profissional A) “Simplesmente não é se vai namorar, trabalhar ou ter um milhão de coisas na vida, é ter um lugar na vida. [...] É possível existir, porque tem gente que não existia”. (profissional E)
Em realce, despontam como sentidos do exercício profissional: a mitigação do sofrimento psíquico e a busca por novas formas de existência dos usuários. Os trechos, à primeira vista, parecem denunciar 568
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um tom menos pretensioso na atuação profissional, especialmente se comparado ao ideal de cura do discurso manicomial, vinculado à restituição de um estado de “normalidade”. Este ideal soçobrou no discurso e nas práticas observadas, sendo posto de lado pelos participantes. Por outro lado, o segundo trecho deixa transparecer o propósito de se retirarem os usuários do CAPS de seu “nãolugar” social, tarefa que, dada sua complexidade, pode também operar (ainda que na direção oposta) como um ideal (Enriquez, 1997), isto é, um objeto ou objetivo maravilhoso/ admirável porém, concomitantemente, difícil/distante. Sobre a relação profissional-usuário, cumpre resgatar que o modelo manicomial sustentava-se fortemente na radical diferença de poder entre os dois polos do par assistencial, diferença esta assentada em certas assimetrias: aquele que assiste em oposição ao que é assistido, o douto versus o ignorante e o são contraposto ao louco, onde o primeiro elemento refere-se ao profissional e, o segundo, ao usuário. Essas bases da díade profissional-usuário foram colocadas na berlinda pela reforma psiquiátrica, porquanto essas polarizações, quando levadas ao extremo, dificultam a constituição de um campo intersubjetivo no cuidado. Logo, a necessidade de re-significar os papéis de usuários e profissionais confronta-se necessariamente com as possibilidades e limites de se enfrentarem essas assimetrias. As bases da relação assistencial foram também abordadas pelos entrevistados: “Eu procuro ter uma relação de respeito acima de tudo, uma relação não-hierarquizada, mesmo sabendo que temos papéis diferentes; em alguns casos até uma relação de amizade”. (profissional D) “Nosso papel é de desmistificar a loucura. Muitas coisas que eles fazem são mais lúcidas do que ações de muitos que não se dizem loucos. Quem são os loucos?”. (profissional F) “A gente aqui vai ter as mais diversas questões: pessoas loucas, pessoas que furtam, que às vezes usam drogas, que têm questões sexuais importantes. Se a gente tiver preconceito nem pode aparecer no local de serviço. Importante é que essas distâncias entre profissional e usuários não fiquem tão grandes”. (profissional C)
Esses fragmentos mostram, de diferentes formas, um sentido de aproximação, isto é, a tentativa de reduzir o vão existente entre usuários e profissionais, substituindo a radicalização das assimetrias. Por outro lado, cumpre notar que essa aproximação pode assumir contornos marcantes, como na fala sobre o apagamento da assimetria entre o são e o louco, ou na injunção acerca da ausência de preconceito no serviço. É possível questionar até que ponto a relação assistencial de fato desenvolvese nessas bases ou, mesmo, se esse discurso aparentemente tão avançado não esconderia a própria dificuldade de se vivenciarem as assimetrias. De todo modo, se afirmar a inexistência de uma relação de poder nesse par pode soar como ingenuidade, o cerne da contenda encontra-se justamente na criação de um solo comum para o cuidado, o que ocorre a partir da construção de novas formas de se vivenciarem as assimetrias e de práticas que reconheçam a condição de sujeito dos usuários, mesmo sabendo da dificuldade inerente a essas tarefas. Todavia, se essa busca por re-significação na atuação profissional - seja na relação com o usuário ou nos objetivos do trabalho - germinou no material empírico recoberto de importância, sua dificuldade de consecução não se eximiu de aparecer. Essa situação dispõe à mesa uma imagem do trabalho assistencial em Saúde Mental: “Como é um serviço novo, a exigência do serviço é muito maior do que em outros serviços de Saúde Mental. Você está no front. Essa é uma palavra que a gente usa muito nas reuniões”. (profissional F)
Dos fios de significados derivados da metáfora do front, o primeiro desvela um serviço na vanguarda da luta pela difícil renovação do cuidado, ou seja, responsável por carrear o avanço nos limites COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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assistenciais. O mesmo profissional expressa que o CAPS figura como “o contrário frente à história da Colônia” (profissional F), instituição cuja trajetória foi sobejamente marcada pela assistência manicomial. O trabalho representado como front, desta feita, traduz a confrontação com o modelo manicomial, reforçando (e radicalizando) o sentido de substituição inicialmente explicitado. De fato, este sentido adquire maior concretude (isto é, de uma luta ainda viva e em curso) ao se constatar a persistência de elementos manicomiais na assistência, o que foi levantado por alguns entrevistados, em linha com algumas pesquisas citadas na introdução. No exemplo abaixo, um profissional reflete sobre a atuação clínica no CAPS: “Algumas situações clínicas do CAPS sofriam intervenções que eu nomearia de manicomiais, porque se tinha uma tentação de dar conta de tudo; não dar conta de tudo no sentido que a reforma propõe, mas em um viés manicomial”. (profissional E)
A alusão ao front feita pelo profissional F traduz, similarmente, um cenário permeado por dificuldades, no qual obstáculos se colocam cotidianamente. Neste sentido, o trecho seguinte de sua entrevista menciona problemas materiais e financeiros do trabalho: “falta investimento profissional e financeiro e isso dificulta todas as práticas. São poucos profissionais para dar conta do serviço e acaba sobrecarregando os que já estão”. (profissional F)
Outro profissional complementa: “Nós sentimos falta de material para trabalhar, de escritório, de higiene, a alimentação é precária”. (profissional A)
Na cena assistencial de um front, essas condições desfavoráveis se aliam à ambição transformadora da reforma para condensar um sentido moral assumido pelo trabalho, qual seja, o do sacrifício: “Estou fazendo algo que quase ninguém quer fazer pelo dinheiro que a gente ganha aqui. É algo que me engrandece muito, acho que eu pude evoluir muito como pessoa aqui dentro. Em poucos trabalhos você consegue isso. [...] Me toca aqui a grandiosidade do trabalho e que às vezes a gente não se dá conta. Meio altruísta, sacrificante”. (profissional C)
O sacrificio espelha a doação pessoal em prol de um objetivo muito importante e de difícil consecução, mesmo que as recompensas/condições não estejam à altura do esforço despendido. Tal significação expressa uma forma específica de investimento psíquico no trabalho e, por consequência, na proposta/projeto da reforma, propiciando um processo de idealização que já fora ilustrado acima nos trechos que versam sobre a reformulação nos objetivos do trabalho. A idealização canaliza o desejo e confere a um projeto compartilhado uma “aura” excepcional (ou grandiosa), mobilizando o grupo em torno de sua realização (Enriquez, 1994b). A partir desta análise, é possível considerar que, subjacente ao trabalho realizado no CAPS, encontra-se um imaginário de transformação da assistência, que desperta uma série de sentidos encadeados, tais como: a confrontação e a superação do modelo (e do imaginário) manicomial, a criação de novas formas de existência para os usuários (com mitigação de sofrimento), e a redução das assimetrias entre os componentes do par assistencial. Em meio à complexidade/importância de tal projeto e das dificuldades, inclusive materiais, que abraçam sua implantação, o imaginário de transformação da assistência assume também uma feição de grandiosidade, o que reveste o exercício profissional com um sentido de sacrifício e enobrece seus artífices. Essa dupla constituição imaginária repercute em outra faceta do vínculo do profissional: a dinâmica prazer-sofrimento.
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A dinâmica prazer-sofrimento na assistência O imperativo de concretizar a grandiosa proposta de transformação da reforma acaba remetendo os profissionais ao “olho do furação” (Merhy, 2004), ou seja, a uma situação permeada pelo imenso desafio de mudar práticas de saúde até então hegemônicas. Inserido nesse contexto, o trabalho demanda dos profissionais, como contrapartida, uma exigência psíquica consoante com a magnitude de tal projeto assistencial: “o profissional começa a se achar superexigido, sobrecarregado, pois a proposta da reforma é muito grandiosa”. (profissional E)
A tradução desse imaginário de transformação e grandiosidade na ligação afetiva com o trabalho merece, portanto, uma análise cuidadosa. Em algumas entrevistas, o cotejamento da assistência prestada com as expectativas alimentadas pela proposta reformista parece apontar para um descolamento, de modo que a variável margem que separa o prescrito e o possível pode engendrar o aparecimento de grandes fendas entre esses polos: “O CAPS não consegue entrar na vida desses pacientes [...] Não digo que não tenha essa intenção, mas isso é até um fardo, é uma responsabilidade muito grande. É até de se questionar se algum dia, algum CAPS, vai conseguir alcançar essa responsabilidade. Eu não tenho a menor dúvida que não”. (profissional C)
Antes de ser uma crítica frontal à assistência prestada no CAPS, as palavras desse técnico descortinam o “real” do trabalho (Dejours, Adboucheli, Jayet, 1994), levando-o a questionar as possibilidades do CAPS e seus limites enquanto dispositivo. Nessa fala, o desafiador e grandioso horizonte proposto pela reforma torna-se um peso a ser carregado em função do desfiladeiro entre a proposta e a prática, denotando uma vivência de sofrimento. Cabe salientar que a falta de investimento profissional e a exiguidade de recursos já assinaladas potencializam essas vivências de sofrimento, visto que surgem como empecilhos para a mudança da assistência, ecoando no trabalho como obstáculos a serem superados. O fragmento abaixo destaca esse quadro de precariedade das condições de trabalho (uma realidade que, no fundo, parece grassar por quase todo SUS) e seu impacto do ponto de vista afetivo: “tento fazer com que essas dificuldades (nas condições de trabalho) não acarretem um atendimento deficiente, mas não é fácil [...] é um serviço muito intenso até pelo aspecto emocional”. (profissional A)
Outra fonte de sofrimento brota das recorrentes falas sobre a gravidade e a complexidade dos casos de psicose, o que desvela a grande incerteza sobre os rumos e resultados do próprio trabalho: “Aqui se trabalha com uma clientela grave, que a todo o momento traz um impasse. Outros imperativos se impõem, a questão da família, do dinheiro, dos direitos. Então eu acho um exercício muito duro”. (profissional E) “A incerteza surge o tempo todo, desde a frequência dos pacientes, a adesão nas atividades, até o retorno que se tem nas atividades”. (profissional D) “Tem alguma coisa nisso aí que a gente chama de loucura que é estranho, que traz para a gente uma angústia e uma impotência absurda. A gente vê pessoas que a gente estabiliza um tempão, em um dado momento aquilo vai ruir de novo” (profissional E)
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Essa reduzida governabilidade sobre o processo de trabalho, crivada pelo desconhecimento, pela estranheza e pelas incertezas que rondam o cuidado, repercute na ligação dos profissionais com o trabalho. No caso da Saúde Mental, esta incerteza banha toda a cadeia de cuidado e a relação do usuário com o serviço, emprestando certa imprevisibilidade aos resultados da assistência e obstaculizando a obtenção de retorno profissional, o que gera desgaste emocional aos técnicos. Ainda na questão do sofrimento, a maioria dos entrevistados alude a certa desvalorização social de seu trabalho. Assim, um profissional relata comentários que costuma ouvir sobre sua atividade: “Têm aqueles que falam: ‘Como você suporta isso? Eu não daria para isso de jeito nenhum.’ E essa fala às vezes é seguida de ‘ainda bem que alguém faz’ ou ‘para mim não serviria’”. (profissional D)
Neste ponto, cumpre recuperar, da introdução do artigo, o papel do reconhecimento na dinâmica prazer-sofrimento no trabalho, especialmente em sua capacidade de transformar sofrimento em prazer (Dejours, 2004a). Na percepção desse entrevistado, o olhar do outro não inspira apreço/ reconhecimento, situação que repercute de forma desfavorável no vínculo com o trabalho, favorecendo o sofrimento. De outra parte, decerto que o vínculo com o trabalho não finca seus pilares apenas no terreno do sofrimento. Paradoxalmente, o próprio investimento psíquico na proposta da reforma psiquiátrica e no imaginário de transformação e grandiosidade que cerca o trabalho, se pode trazer sobrecarga emocional pela sua ambição, franqueia também, aos técnicos, a possibilidade de positivar sua inserção profissional. Isto é, o investimento na reforma parece conferir, aos profissionais, a vivência de que os mesmos estão inseridos em um projeto legítimo e relevante, apoiando a passagem de parte do sofrimento ao prazer. Destarte, a grandiosidade de um projeto que, por um lado, se propõe a assistir um segmento da população, em geral, subalternizado, e, por outro, tenciona reformular práticas assistenciais em meio a dificuldades consideráveis, talvez seja capaz de fornecer imaginariamente uma espécie de “recompensa moral” aos profissionais, como expresso em um trecho já citado, no qual o profissional afirma que o trabalho o engrandece e o faz evoluir como pessoa. Essa valorização moral arrogada à assistência pode abrandar a desvalorização social ressaltada antes, especialmente ao se valer de uma imagem de desprendimento no exercício do trabalho. Em acréscimo, a obtenção de um bom resultado na assistência surge também como outra fonte de prazer, notadamente quando os profissionais identificam êxito na condução de casos difíceis. Tais casos eram citados nas entrevistas quando os técnicos eram indagados sobre as cenas/situações que caracterizavam seu trabalho no CAPS: “Uma cena de um paciente que chegou altamente agressivo, ameaçador e inibidor. [...]. Hoje em dia essa pessoa trabalha com carteira assinada, a vida dele tomou outro rumo e já até saiu do CAPS. Esse foi um caso que marcou muito porque nós vimos como ele chegou e como contribuímos”. (profissional F)
A insistência nesta linha de relato não trata essencialmente sobre a frequência de bons resultados, mas sobretudo sobre sua capacidade de condensar os sentidos do trabalho, como no exemplo acima, no qual uma nova forma de inserção social e de existência desponta para o usuário. Nestes momentos, o trabalho no CAPS imprime sua marca na subjetividade dos técnicos, pois estes vislumbram a materialização dos sentidos do trabalho e a potência da proposta assistencial. Ocorre, como apontou Dejours (2004b), uma reapropriação do trabalho, que facilita a transformação do sofrimento em prazer, cumprindo uma função psíquica fundamental para sustentar a própria realização do trabalho.
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Considerações finais A pesquisa de campo facultou a interpretação de que a transmutação da assistência vem abarcando, além dos planos teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-político e sociocultural (Amarante, 1997), o plano imaginário, impulsionando novos sentidos para a assistência. Neste CAPS, o trabalho parece sustentado por um imaginário de transformação assistencial e de grandiosidade, estando estritamente vinculado ao discurso da reforma psiquiátrica que, por sua vez, afigurou-se como objeto de investimento psíquico por parte dos profissionais. Com efeito, é particularmente interessante notar que esse investimento encontra-se, em algum nível, no contrarrumo da conjuntura social contemporânea, comumente retratada pelo esmaecimento dos ideais partilhados, das fontes de identidades grupais e dos projetos de transformação (Bauman, 2000; Enriquez, 1994b). A presença do imaginário de transformação, todavia, não garante a plena mudança nas práticas assistenciais, como visto no material empírico. De fato, o abandono dos códigos anteriores e dos “manicômios mentais”, que asseguravam um modelo de conduta seguro e estável, traz consigo a necessidade de se mudarem laços de significação vigentes, desencaixe que dificilmente ocorre ex abrupto (Koda, Fernandes, 2007). Dentro desta interpretação, poder-se-ia falar verdadeiramente em um confronto entre diferentes imaginários. Por ser um serviço instalado em um macrocomplexo hospitalar, mas criado e conduzido na brasa da reforma, o CAPS pesquisado surge como precisa metonímia desta luta e desponta como um locus no qual o atrito entre o passado manicomial e o presente da reforma psiquiátrica irrompe de modo ainda mais estridente. De toda forma, se essa luta ainda permanece viva no front do Bispo do Rosário, o espírito crítico presente nas reuniões de equipe e novos sentidos para o trabalho são auspiciosos. Tal dinâmica poderia despertar o que Enriquez (1997) denominou por imaginário motor, isto é, uma fantasmática compartilhada capaz de introduzir a diferença no processo de trabalho por meio do questionamento e da criatividade. Neste cenário, se os eventuais êxitos na relação terapêutica e o imaginário de grandiosidade (pela importância e ambição da proposta reformista) inspiram prazer na realização do trabalho, por outro lado, esse mesmo imaginário de grandiosidade (em função dos complexos desafios envolvidos), as adversidades no suporte material e financeiro, a gravidade e a incerteza dos casos, além da escassa valorização social, podem favorecer uma experiência de sofrimento na atuação profissional. Nesta composição, as dificuldades repousam imaginariamente contrabalanceadas com vivências positivas, de modo que é a existência do equilíbrio precário entre esses elementos que articula a própria viabilidade da assistência. Neste equilíbrio precário, a valorização e o reconhecimento profissional assumem relevância ainda maior, visto que são capazes de favorecer a transformação do sofrimento em prazer e estão na base da constituição do vínculo subjetivo profissional-trabalho. Deste modo, é imperativo se potencializarem os mecanismos de reconhecimento do trabalhador da Saúde Mental, seja por meio de políticas de recursos humanos mais dignas, de melhores condições de trabalho ou conseguindo maior visibilidade das ações no campo social, o que certamente repercutirá na própria qualidade do trabalho assistencial.
Colaboradores Vinícius Carvalho Vasconcellos responsabilizou-se por executar a pesquisa, analisar os resultados e redigir o artigo. Creuza da Silva Azevedo analisou os resultados e revisou o manuscrito. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Palabras clave: Salud mental. Reforma de la atención de salud. Trabajo.
Recebido em 09/09/2009. Aprovado em 03/01/2010.
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Empoderamento e atenção psicossocial: notas sobre uma associação de saúde mental*
Kamila Siqueira de Almeida1 Magda Dimenstein2 Ana Kalliny Severo3
ALMEIDA, K.S.; DIMENSTEIN, M.; SEVERO, A.K. Empowerment and psychosocial care: Educ., v.14, n.34, notes on a mental health association. Interface - Comunic., Saude, Educ. p.577-89, jul./set. 2010.
Within the landscapes making up the Brazilian psychiatric reform movement, associative devices form a strategy for what can be called empowerment: boosting the strength and autonomy of users and their families involved in mental health. This paper had the aims of examining the functioning of an association bringing together users of mental health services, their families and professionals, and identifying the effects that it produces on the everyday lives of those who participate in it, along with the obstacles that clog their organization. Among these obstacles, we highlight the stiffening and bureaucratization of the association’s functional routines and the predominance of participation and decision-making by technical experts. Accordingly, we see little participation and wielding of social control by users and their families, along with disconnection of the association from other local social movements.
Keywords: Health care reform. Mental health. Empowerment. Psychosocial care. Social control.
Nas paisagens que compõem o movimento da reforma psiquiátrica brasileira, os dispositivos associativos constituem uma estratégia para o que denominamos empoderamento: potencialização da força e da autonomia dos usuários e familiares envolvidos com a saúde mental. Este artigo objetiva analisar o funcionamento de uma associação que agrega usuários de serviços de saúde mental, familiares e profissionais e identificar os efeitos que produz no cotidiano daqueles que dela participam, bem como os obstáculos que entravam sua organização. Dentre esses obstáculos, destacamos o enrijecimento e a burocratização da rotina de funcionamento da associação e a predominância da participação e tomada de decisões por parte dos técnicos. Nesse sentido, percebemos pouca participação e exercício do controle social por parte dos usuários e familiares, bem como uma desarticulação da associação com outros movimentos sociais locais.
Palavras-chave: Reforma dos serviços de saúde. Saúde mental. Empoderamento. Atenção psicossocial. Controle social.
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** Texto inédito, sem conflitos de interesse, elaborado com base em Severo (2009); pesquisa que recebeu financiamento do CNPq (bolsa de produtividade em pesquisa, mestrado e iniciação científica). 11 Graduanda em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do (UFRN), Bolsista bolsista Norte (UFRN). de Iniciação Iniciação Científica/ Científica, de CNPq. Av. Afonso Pena, 520, Petrópolis, Natal, RN, Brasil. 59.020-100. kamilassiqueiras@yahoo. kamilassiqueiras@ com.br yahoo.com.br 22 Departamento de Psicologia,UFRN. UFRN Psicologia, 33 Curso de Psicologia da Universidade Potiguar, UnP.
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Introdução Na Idade Moderna, a construção dos modos de subjetivação foi se ancorando na racionalidade e no sujeito de conhecimento, de forma a considerar desviante tudo o que diferia dessa premissa que ordenava o corpo social, tal como a loucura. O conceito de alienação mental nasce nesse contexto. Para a psiquiatria moderna, a alienação seria um distúrbio interior à própria razão e, portanto, passível de tratamento e cura pelo tratamento moral (Amarante, 1996). A condição para que este tratamento fosse profícuo era o isolamento do louco do seu meio social e a consequente reclusão aos muros do manicômio, justificada por uma maquinaria de poder-saber (Foucault, 2006a). Com a institucionalização do louco, segundo Foucault (2006b, p.262), o mesmo foi “privado de toda responsabilidade e de todo direito como membro da família, ele perdia inclusive sua cidadania, ele era fulminado pela interdição”, de forma que os enunciados da psiquiatria edificassem um asilo ilimitado, disseminado pelo corpo social. Dá-se, então, um processo de tutelamento, no qual o saber técnicocientífico passou a legitimar leis que autorizavam regulações, interdições, dependência, com base na autoridade daquele que tratava (psiquiatra) e da proteção àquele que era destituído do poder de decisão (louco). Uma vez tendo comprometida sua razão, o louco torna-se inábil para gerir sua vida: essa responsabilidade teria de ser entregue a outrem, seja o Estado, seja o médico, seja o familiar. Foilhe designado o silêncio e a incapacidade. Os movimentos reformistas no campo da saúde mental, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vêm buscando interferir e transformar essa lógica, especialmente no que diz respeito ao empoderamento dos portadores de transtornos mentais e o incremento de seu poder de contratualidade na sociedade. As propostas de reabilitação psicossocial passam pelo exercício da autonomia e cidadania visando à inserção de pessoas secularmente estigmatizadas. Construir um novo lugar social para a loucura não deve restringir-se aos limites sanitários, mas estar atrelado à invenção de novos espaços e formas de sociabilidade e de participação (Dimenstein, Liberato, 2009). É nesse sentido que a concepção de empoderamento em saúde mental torna-se chave para a criação de autonomia e sociabilidade. O empoderamento aponta para Uma perspectiva ativa de fortalecimento do poder, participação e organização dos usuários e familiares no próprio âmbito da produção de cuidado em saúde mental, em serviços formais e em dispositivos autônomos de cuidado e suporte, bem como em estratégias de defesa de direitos, de mudança da cultura relativa à doença e saúde mental difusa na sociedade civil, de exercício do controle social no sistema de saúde e de militância social. (Vasconcelos, 2008, p.60)
As concepções de empoderamento e participação social são linhas fundamentais na conformação do campo da saúde mental e coletiva. De acordo com Carvalho (2004a), tal categoria vem sendo incorporada às discussões voltadas ao ideário da promoção da saúde em diferentes perspectivas. Tal ideário – abordado pela Carta de Ottawa - inaugura uma vertente socioambiental da saúde, indicando serem necessários pré-requisitos como: justiça social, educação, saneamento, habitação, estabilidade do ecossistema e sustentabilidade dos recursos naturais. Efeito de uma série de fatores sociais, a ideia ampliada de saúde estende-se além do setor, e a intersetorialidade ganha valor crucial na construção de políticas públicas saudáveis (Carvalho, 2004b). Assim, a promoção da saúde ganha contornos de um processo de produção de sujeitos fortalecidos em suas capacidades de identificar e transformar os fatores que determinam a saúde. Ao situar o empowerment no cerne das discussões do campo da saúde coletiva, o autor acima identifica dois sentidos para a categoria, um psicológico e outro comunitário, os quais implicam diferentes modos de conceber a produção de saúde, bem como em termos das intervenções, das práticas. O primeiro - associado a uma perspectiva behaviorista de promoção da saúde pela via da conscientização, aumento da autoestima e mudança de comportamentos não saudáveis - está focado no controle, pelos indivíduos, sobre a própria vida por meio de práticas educativas, traduzido pela máxima “cogito empowerment, ergo sum empowered” (Carvalho, 2004a, p.1091). É alvo de críticas
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4 Para avançar nessa discussão, sugerimos a leitura de Carvalho e Gastaldo (2008) e Carvalho (2004b).
Por Reforma Psiquiátrica concebemos um “movimento político, social e clínico no qual se forjam novas formas de lidar com a experimentação da loucura sem seqüestrá-la das cidades e da vida” (Fonseca, Perrone, Engelman, 2004, p.221).
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por endossar o discurso neoliberal de independência, responsabilidade pessoal e de afastamento do Estado na prestação de serviços sociais. Quanto ao empowerment comunitário, não significa um rechaço ao desenvolvimento das capacidades dos sujeitos individuais preconizado na versão anterior. Porém, a tônica está na participação ativa nos processos decisórios, no fortalecimento dos modos coletivos de gestão, planejamento e decisão das políticas e ações em saúde. Trata-se de uma perspectiva mais integral na medida em que, segundo Carvalho (2004a, p.1092), demanda “a convivência da noção de determinismo social com a de agenciamento humano e o reconhecimento da mútua relação de condicionamento e determinação entre as macroestruturas e a ação de sujeitos individuais e coletivos”. Nesse sentido, o autor considera central, nessa perspectiva, “a possibilidade de que indivíduos e coletivos venham a desenvolver competências para participar da vida em sociedade, o que inclui habilidades, mas também um pensamento reflexivo que qualifique a ação política” (Carvalho, 2004a, p.1092). Tal vertente de entendimento dos processos de empoderamento impacta de forma importante no contexto do SUS, fomentando discussões acerca dos saberes, tecnologias, práticas e discursos com os quais operamos cotidianamente, além de demandar mudanças de ordem institucional e subjetiva4. Em sintonia com essa direção, especificamente no campo da saúde mental e na Estratégia da Atenção Psicossocial, a perspectiva da desinstitucionalização que as orienta implica a ampliação das estratégias de vida e de pertencimento de usuários para além do campo sanitário, bem como exige a diversificação dos espaços de socialização. O empoderamento é concebido não como transferência de responsabilidades ou mero usufruto de benefícios por usuários e familiares, mas como aumento da capacidade de eleição e ação: enxerga-os como coprodutores de políticas, por meio da corresponsabilização com diversos atores e do trabalho em rede entre diferentes instâncias sociais. A ideia de empoderamento, portanto, é heterogênea e implica a criação de estratégias de potencialização da força e da autonomia dos usuários e familiares envolvidos com a saúde mental, dentre as quais os dispositivos associativos têm lugar de destaque (Vasconcelos, 2003). No Brasil, de acordo com a Coordenação Nacional de Saúde Mental (Brasil, 2005, p.39), “o processo da Reforma Psiquiátrica, e mesmo o processo de consolidação do SUS, somente é exeqüível a partir da participação ativa de trabalhadores, usuários e familiares na construção dos modos de tratar e nos fóruns de negociação e deliberação do SUS”. Logo, trata-se de um protagonismo insubstituível. As associações de usuários, familiares e trabalhadores em saúde mental vêm se constituindo como uma estratégia poderosa de participação política desses atores no cenário atual da reforma psiquiátrica e de luta antimanicomial. Porém, em tempos de uma Reforma Psiquiátrica5 já consolidada como política de Estado (pela Lei 10.216, de 2001), com pressupostos já manifestos nos discursos dos profissionais de saúde, dos familiares e dos usuários dos serviços de saúde mental, cabe analisar como essas associações vêm participando desse processo de luta complexo. Em outras palavras, queremos discutir de que forma vêm contribuindo para o rearranjo da malha institucional que vem sendo cerzida ao longo dos últimos anos; se conseguem agenciar novas maneiras de lidar com a diferença, novas relações entre a loucura e a sociedade e, por fim, questionar se ao louco ainda resta o silêncio e a inabilidade de outrora. Este artigo pretende apresentar uma pesquisa realizada em uma associação de usuários, profissionais e “amigos” dos serviços de saúde mental situada em um município nordestino. Com base nos modos de atuação desse dispositivo 579
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e de como os usuários dos serviços de saúde mental se apropriam dele, acreditamos ser possível problematizar o campo dos movimentos sociais atrelados à Reforma Psiquiátrica. Adotamos, para tanto, o escopo conceitual da análise institucional (Lourau, 1993; Baremblitt, 1992) e de autores que abordam a questão da produção de subjetividade, grupos, e as novas configurações da luta política dos coletivos minoritários na contemporaneidade, tais como Foucault, Guattari, Rolnik, dentre outros. A escolha de um plano conceitual consiste, sobretudo, em uma aposta ético-política: tendo em vista a dissolução dos limites entre sujeito e objeto de pesquisa e da dicotomia entre teoria e prática, a intervenção é norteada pela implicação do pesquisador – o qual se utiliza dos conceitos para disparar processos de autoanálise e autogestão dos coletivos envolvidos, incluindo a si próprio.
Breve histórico dos movimentos sociais em saúde mental no Brasil Os antecedentes das estratégias coletivas no âmbito da saúde mental remontam aos primeiros grupos de ajuda mútua, a saber, os Alcoólicos Anônimos, iniciados na década de 1930 e que, logo, foram disseminados geograficamente pelo Brasil (Vasconcelos, 2003). No entanto, várias críticas foram dirigidas a essas organizações pelos estudiosos dos movimentos sociais, sendo duas especiais: a ausência de preocupação em modificar as condições concretas de vida das pessoas que delas participam e a tendência de tais grupos a converter questões públicas em problemas privados ou de responsabilidade individual, tal como indicamos na vertente psicológica do empoderamento. Dessa forma, os grupos de ajuda mútua não estão tradicionalmente organizados de maneira a questionar e dar visibilidade às diferentes lógicas e contradições que os atravessam, e consequentemente, não focam em mobilizações que visem transformação social e o enfrentamento das raízes sociais dos problemas, convertendo-se em mantenedores da ordem social. Esse caráter deve-se a certos valores presentes na conformação dos grupos de ajuda mútua, tais como: seus elementos de inspiração religiosa, sua carga racionalista, o modelo médico em que estão ancorados, assim como a falta de abordagens sociais, políticas e culturais no seu modo de organização. Então, por que tais grupos foram considerados estratégias de empoderamento? Conforme Vasconcelos (2003), as principais contribuições desses grupos seriam sua estrutura descentralizada e a forma de organização nãohierarquizada, cujos encontros baseiam-se no processo de valorização da história de cada um para o enfrentamento dos problemas cotidianos. O processo de engendramento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, cujos primeiros relances se deram no final da década de 1970, teve estreita relação com os movimentos sociais que emergiam nesse período clamando por democratização. Mais precisamente na saúde mental, importavam-se cada vez mais as ideias e experiências vindas da Europa no que diz respeito ao questionamento dos paradigmas tradicionais da psiquiatria e na invenção de novas práticas contestadoras do manicômio. As primeiras mobilizações que ensaiavam a deflagração da Reforma brasileira tiveram, como ponto crucial, a formação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), ainda na década de 1970, o qual, num primeiro momento, reivindicava apenas mudanças genéricas da assistência psiquiátrica. O MTSM extrapola seu caráter sindicalista – de uma entidade composta por profissionais – alcançando o status de movimento social amplificado, por possuir propósitos orientados para a restituição da cidadania do louco escamoteada pela clausura e tutela, bem como para uma crítica ao saber e prática psiquiátricos e imagens sociais balizadas pelo paradigma racionalista (Amarante, 1996, 1995). Também, no final da década de 1970, ocorre a fundação da primeira associação de familiares de que se tem registro no Brasil, a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração pelo Trabalho (SOSINTRA). Já a partir das décadas de 1980 e 1990, vê-se uma verdadeira proliferação de organizações, associações e grupos formados por usuários, familiares e profissionais dos recém-inaugurados sistemas de saúde mental substitutivos ao hospital psiquiátrico. A partir de uma análise de tais movimentos sociais, percebe-se que as repercussões das transformações acionadas no campo de forças da saúde mental extrapolam questões acerca do modelo assistencial. Nos novos cenários modificados a partir da Reforma, as associações de usuários e familiares representam possibilidades de ação política orientada para uma maior visibilidade social (Souza, 2001), expressão dos interesses diretos dos usuários de serviços de saúde mental e seus 580
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“Por “instituinte” compreendo as forças que tendem a transformar (ou fundar) uma instituição. Por “instituição” refiro-me às “lógicas [...] que podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos” (Baremblitt, 1992, p.25). 6
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familiares em vários sentidos: 1 Tentativa de mudança do estigma (Vasconcelos, 2008); 2 Possibilidade de transformação da clínica e de sua relação com os espaços sociais (Rodrigues, Brognoli, Spricigo, 2006); 3 Criação de táticas de controle social (Wendhausen, Barbosa, Borba, 2006); ou, ainda, de focos de resistência responsáveis pela produção de um devir-louco na sociedade (Guattari, Rolnik, 2005). No mapeamento realizado por Vasconcelos (2009), nota-se que o perfil das associações em saúde mental no país caracteriza-se por serem associações mistas, criadas a partir de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ou ligadas a um, apoiadoras da reforma psiquiátrica e que cobram uma taxa financeira simbólica (dois a cinco reais). Por meio de tal investigação, transcorrida no período de 2004 a 2007, conseguiu-se contatar, ao todo, 107 grupos em todo o país. Desses, a maioria está concentrada nas regiões sudeste e sul – sendo 34 delas somente no estado de São Paulo – o que demonstra a concentração nessa região do país, bem como a pouca acessibilidade às associações sediadas nas regiões norte e nordeste. Lembramos que a amostra da pesquisa aqui referida remete à capacidade de contato com as associações, e não à quantidade de fato existente – capacidade essa relacionada à dificuldade de os próprios usuários e familiares locais realizarem o contato. As maiores dificuldades enfrentadas por tais associações referem-se, sobretudo, às suas bases de sustentação econômica, política e institucional, mas também demonstram entraves para a comunicação e articulação com outros setores e correntes (Figueiró, 2009). Embora com décadas de história, a formação coletiva de usuários de serviços substitutivos e seus familiares ainda configura-se como um desafio no cenário político da saúde mental atual em que o saber técnico-científico da psiquiatria mantém sua hegemonia. Porém, essas formações proporcionam possibilidades de rupturas, ou seja, são capazes de produzir uma potência instituinte6 dentro de uma área marcada pela tutela e opressão, bem como dar voz a novos atores na Reforma Psiquiátrica: os usuários e seus familiares. Dessa forma, concordamos com o autor acima que A importância dos dispositivos associativos não só como formas de luta e participação, mas como sendo capazes de promover o empoderamento dos sujeitos envolvidos, no sentido de que estes tenham maior participação e controle sobre as decisões relacionadas às suas vidas. (Figueiró, 2009, p.33)
Estratégias metodológicas Conforme Guattari, citado por Barros (2007), quando se pensa ou pesquisa um grupo, o que interessa é como ele opera, “o que ele dispara e faz fazer” (p.34). Nesse sentido, nos inserimos no campo de modo a investigar como uma determinada associação funciona, conhecer seus membros, e que efeitos ela produz na vida daqueles que dela participam. No município onde foi realizada a pesquisa existem duas associações de saúde mental: a associação A, de postura contrária à Reforma Psiquiátrica, e a associação B, braço da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), a qual está dando seus primeiros passos, fazendo reuniões e mobilizações na cidade. Elegemos a associação B para tal. Era nosso objetivo conhecer se a mesma contribuía para uma politização – no sentido de aumento de responsabilidade e autonomia – dos indivíduos que dela fazem parte, bem como investigar como a alta e os processos de reinserção social vêm sendo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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discutidos no interior da mesma. O trabalho de campo transcorreu durante três meses, entre novembro de 2008 e fevereiro de 2009. Nessa associação participamos de duas reuniões da comissão de diretoria, uma roda de conversa com associados e uma reunião da associação junto à comissão pró-Associação Brasileira de Saúde Mental. A primeira das reuniões contou com quatro pessoas, sendo três integrantes da associação (dois desses usuários e um técnico); a segunda já contou com um usuário a mais, e a terceira contou com seis pessoas, sendo três, integrantes oficiais da associação – dois usuários e uma técnica. Em todos esses momentos, procuramos estabelecer um olhar cartográfico, uma vez que ele nos permite acompanhar os movimentos desenrolados durante o campo, a composição e transformações das paisagens psicossociais (Rolnik, 2007). Tal postura permite-nos, além disso, um olhar perspectivista sobre as diversas instituições que atravessam tanto os usuários e os membros da associação quanto nós mesmos. Dessa forma, implicamo-nos com aquilo que observamos, de modo a promover estados críticos no grupo, a fim de que um processo de análise fosse disparado, o que nos fez não só acompanhantes dos movimentos, mas impulsionadores deles (Mairesse, 2003). Nesse trabalho de campo algumas dificuldades aconteceram, as quais foram tomadas como analisadores, pois muitas vezes propiciaram mudanças de estratégia de nossa parte, suscitandonos novas questões. Analisadores consistem em acontecimentos ou elementos, cuja materialidade expressiva é totalmente heterogênea (Baremblitt, 1992), capazes de suscitar a crise necessária para disparar um processo analítico, “que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição ‘invisível’” (Lourau, 1993, p.35). Um analisador pode ser uma palavra, um gesto, um acontecimento, um objeto, quaisquer dados que serviram para a análise a que estamos nos propomos. Dessa forma, alguns dos maiores empecilhos foram considerados como analisadores do estado em que a associação encontravase. A dificuldade de marcar reuniões e, quando marcadas, contavam com um reduzido número de pessoas, devido ao pouco contato dos diretores da associação entre si e com os usuários dos serviços substitutivos. A roda de conversa também contou com poucas pessoas e, por fim, não tivemos um bom substrato documental, pois a associada que estava de posse dos documentos oficiais esteve ausente em todos esses momentos.
Os mo(vi)mentos da pesquisa Vasconcelos (2009), em sua pesquisa em nível nacional, categorizou as associações de acordo com os seguintes aspectos: a) modo de funcionamento, b) articulação com os serviços de saúde mental, c) tempo de existência, d) recursos (humanos, materiais e físicos) disponíveis, e) nível de formalização, f) formas de atuação dos membros, g) práticas e atividades desenvolvidas. Buscamos caracterizar a associação pesquisada segundo tais critérios. A associação B é uma associação mista, fundada em 2005 a partir de um Centro de Atenção Psicossocial local; agrega usuários, familiares, profissionais e, ainda, a categoria “amigos” envolvidos com o sistema de saúde mental. Existe há cerca de quatro anos, mas somente oficialmente legalizada há dois, possui estatuto, mas não há contribuição financeira regular. Na primeira reunião de diretoria em que comparecemos, foram postos os seus objetivos e atividades desenvolvidas: englobar diversos aspectos da vida, tais como a esfera legislativa por meio da luta por direitos legais; a ação concreta a fim da assunção da cidadania; implementação de projetos que se destinem, dentre outras coisas, à capacitação dos usuários e a sua reinserção social; a conscientização da população, por meio da tentativa de mudanças nas representações sociais acerca da loucura; e a possibilidade de um espaço para amizades. Dentre as propostas está a tentativa de articulação entre os serviços, mas há uma focalização nos CAPS, talvez por ter sido formada a partir de um. Modos de atuação: enrijecimento e desarticulação Numa rua de difícil acesso no centro da cidade, encontra-se o Sindicato dos Trabalhadores Federais em Previdência, Saúde e Trabalho (SINDPREVS), local em que aconteciam as reuniões e assembléias da Associação no período em que a pesquisa foi realizada. Chega-se ao local e adentra-se em um
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auditório convencional com direito a cadeiras interligadas – para que não fossem desarranjadas – e mesa em cima de um pequeno palco à frente – para que os falantes estivessem em altura superior aos que ouvem. Na assembleia, havia pessoas que não conheciam a associação e nem entendiam do que se estava falando. Um rapaz levanta-se, toma a palavra e, ao falar de sua vida e questionar o que seria a Associação, causa um furo na pauta. Termina a reunião como começou. Auditório, palestra, pauta, desconhecimento. Que elementos são estes que compõem as reuniões da associação e que acabam por estagná-la? De que forma o modo de ação política está relacionado com a sua organização e com as instituições que a atravessam? A roda de conversa que promovemos com alguns associados foi um marco na pesquisa, uma vez que promoveu um exercício de autoanálise (Baremblitt, 1992) entre aqueles que participaram. Dela fizeram parte quatro usuários – dentre os quais, três eram membros da comissão de diretoria, sendo um deles o presidente da associação – e uma técnica do ambulatório. Muitas das nossas impressões obtidas a partir de reuniões anteriores foram reiteradas pelos próprios participantes ali presentes. A iniciativa de promover uma discussão com certos usuários causou uma mobilização interessante. Nosso olhar ganha novo revestimento a partir de então, uma vez que, na conversa, os usuários apontam críticas à associação, bem como possibilidades de ação política. Todos os usuários que participaram da conversa conheceram a associação por intermédio do serviço do qual fazem parte – um ponto que acreditamos ser positivo, devido à mobilização feita pelos técnicos para a divulgação. Eles apontam a associação, de maneira geral, como uma possibilidade de base de apoio para o usuário. Ela teria a função de promover ações que se destinam a uma reabilitação – cursos, oficinas e capacitações – que culminaria na desvinculação do usuário do serviço, uma vez que, segundo eles próprios, o usuário torna-se dependente do serviço porque fica ocioso e não tem outros suportes sociais. Constatamos que uma das grandes demandas para os serviços substitutivos e para rede local que não dispõe de Centros de Convivência e Cultura é a questão do convívio e do estabelecimento de encontros. Além disso, foi possível notar que os usuários pouco sabem da dinâmica da rede de saúde para além do serviço que frequentam. Surge, então, a possibilidade de a associação ser um local de convivência, de interação, de troca de informações, de modo a configurar-se como um ambiente de sociabilidade e de produção de novas estratégias de vida. Dentre outros papéis atribuídos pelos usuários à associação estão: a conquista de direitos e melhor atendimento à saúde, medicação, lazer e benefício previdenciário, bem como um espaço de expressão e encontro. Tais expectativas expressas pelos usuários locais são corroboradas por outra pesquisa realizada por Rodrigues, Brognoli e Spricigo (2006), os quais investigaram as representações sociais dos integrantes de uma associação de usuários ligada a um CAPS do Rio de Janeiro. Nessa pesquisa, a associação é tomada como um espaço de informação e sociabilidade, lugar em que experiências podem ser compartilhadas, bem como de construção de autonomia e estratégia política para melhorias na assistência de saúde. Observamos toda uma complexidade de fatores políticos, institucionais e financeiros que entravam a ação dos membros da associação pesquisada. No entanto, em uma roda de conversa, identificamos certas demandas que o modelo atual de associativismo não está atendendo, uma vez que passam pela luta por direitos civis, porém, não se restringem a esse âmbito. Trata-se de possibilidades de intervenção mais prementes, muitas vezes percebidas, mas não priorizadas por um olhar demasiado focado em questões voltadas à manutenção de uma ordem institucional e de representatividade. Questões que poderiam começar a ser atendidas com um simples passeio pelas vias públicas da cidade, por exemplo. São propostas da ordem de uma Produção de formas de vida em sociedade - não um abandono da luta por financiamento, avanços técnicos, organizacionais, mas significa manter sempre vigilante nosso foco analítico em virtude da sedução fácil de determinados ganhos que aparentemente indicam a superação de modelos, mas apenas camuflam uma manutenção aprofundada de elementos fascistas que habitam em nós. (Alverga, Dimenstein, 2006, p.313)
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Na mesma roda de conversa, críticas feitas ao modo de atuação foram expressas pelos usuários. A falta de compreensão, dos usuários, de muitos assuntos tratados nas reuniões, assim como a distância desses temas, presentes nas assembleias, da realidade concreta, cotidiana, vivenciada por aqueles que frequentam os serviços de saúde mental. Outro ponto a ser destacado – e que acreditamos ser o nó górdio do então desempenho da organização – é o enrijecimento do modo de atuação, refletido pelo constante direcionamento das pautas para assuntos de cunho burocrático. Tal engessamento está relacionado a uma desarticulação entre os diretores da associação entre si e destes com os usuários. Estes alegam que pouco do que viram nas discussões das assembleias estava interligado com o cotidiano vivenciado dentro ou fora dos serviços. Ademais, uma das grandes dificuldades da associação está em reunir as pessoas, integrá-las. O número de participantes, em vez de crescer, vem diminuindo no decorrer das assembleias. Dentre os possíveis fatores apontados pelos usuários para essa pouca presença, estão desde a acomodação deles em manter seu percurso limitado entre casa e serviço, passando pela pouca informação que circula sobre a associação, até uma falta de interesse em virtude da formalidade característica das reuniões. Dessa forma, notamos, na Associação, um processo de burocratização da mesma, isto é, um jogo entre a materialização das forças sociais em formas sociais padronizadas e normalizadas e as resistências a estas. A potência da associação está na criação de focos de resistência e novas formas de convivência. Focos que podem realizar desde transformações na escala das relações cotidianas e de circulação pela cidade, como podem ser apropriadas por setores inteiros das massas (Guattari, Rolnik, 2005), empreendendo estratégias de criação de novos espaços de convivência e cooperativas de trabalho, por exemplo. Focos que, no entanto, correm o risco de serem mortificados por uma agenda política burocrática e rigidamente formalizada. Destarte, o grande risco corrido pela associação é o enrijecimento da sua ação política e, não menos importante, de uma passividade dos usuários e familiares perante esse dispositivo, implicando um empoderamento ainda bastante tímido. No caso dos técnicos e dos seus dispositivos de ação, tendem a se institucionalizar e serializar, na direção da repetição e da imobilidade, o que, por vezes, acaba ocasionando a reprodução de uma subjetividade manicomial até mesmo em um espaço de problematização dela. Diante da desarticulação, não só interna, mas com outros setores da sociedade, apontamos a necessidade de, tanto os serviços de saúde, quanto a associação estabelecerem conexões transversais e intersetoriais, a fim de que seja formada uma rede ampla e dinâmica, irrestrita às fronteiras da medicalização. Nesse sentido, nos é caro o conceito de transversalidade forjado por Guattari. Segundo o pensador e militante, o coeficiente de transversalidade designa a tendência de um grupo a realizar uma comunicação entre seus diferentes níveis e sentidos, bem como quão aberto é um grupo para estabelecer conexões com outros elementos e grupos, inclusive aqueles que lhe questionem. É justamente esse grau de abertura que dá a possibilidade de diferenciação ao grupo (Guattari, 1981). Como antídoto para esquemas rígidos e modelizados, apontamos, como necessária, a emulação de processos de tomada de responsabilidade individual e coletiva (Guattari, 1992), em outras palavras, uma gradativa intensificação do empoderamento por parte dos usuários. Mais precisamente, o incentivo à irrupção de processos instituintes no grupo. Com base no campo teórico-metodológico da análise institucional, apreendemos por jogo instituinte/instituído uma oscilação entre forças que tendem a se cristalizar por meio da hierarquização e reprodução de valores e sentidos hegemônicos, e forças que rompem com essa cristalização e reinventam sentidos e valores novos (Lourau, 2004, 1993; Baremblitt, 1992). É nesse movimento que a máquina institucional pode ser transformada: na contestação daquilo que impede a expressão do desejo e, portanto, de processos de ressingularização. Uma proposta, já surgida na reunião seguinte à roda, foi a de criar uma nova forma de grupalização, que privilegiasse tanto essa aproximação diretoria-usuários, quanto os próprios usuários entre si, além de uma maior interação com a cidade. Uma das ideias que ocorreram foi a de se fazerem as “assembleias” – o termo agora aparece entre aspas porque ele próprio foi criticado por aqueles que estavam no encontro – no espaço urbano, em praças, por exemplo. Acreditamos que essa dinâmica articularia mais os associados, além de possibilitar uma mobilidade maior pela cidade, pressuposto básico para uma reabilitação efetiva (Basaglia, 1982 apud Torre, Amarante, 2001).
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Atualmente, observamos que a associação obedece mais a uma lógica totalizadora e identitária do que a uma lógica criadora que prima pela singularização daqueles que a compõem (Barros, 2007). Admitido e organizado sobre esse princípio, o grupo acaba por reificar uma suposta identidade coletiva, o que pode tornar-se uma ameaça à processualidade do movimento social (Guattari, Rolnik, 2005). Buscar uma identidade sacralizada, identidade em que o grupo pode acomodar-se, significa a circunscrição dos territórios existenciais – os quais remetem a uma multiplicidade – a um só sistema de referência e atribuição. No caso, a cruel identidade de doente mental, esquizofrênico, pirado, incapaz, enfim, uma série de atribuições que a loucura carrega. Daí emerge uma problemática que é, também, um dilema: como atuar no campo da luta por direitos compensatórios e políticas públicas sem assumir essa identidade? Tomá-la para si seria uma estratégia política para adquirir benefícios do Estado? Ou uma armadilha em que os movimentos de minorias estão sujeitos a cair?
Os lugares do técnico e do usuário na dinâmica da Associação Embora haja presença de alguns usuários, percebemos que a liderança concentra-se nos técnicos e familiares. Neste ponto, é notável uma contradição quando os usuários alegam que são eles os que conhecem sua condição e sua realidade, mas, utilizando como subterfúgio a incapacidade historicamente atribuída à loucura -, acreditam que a associação precisa ser encabeçada por um técnico. Assim, enxergamos uma situação de passividade dos usuários frequentadores frente à associação. Entendemos que o fato de ser assistido por um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico e ter o discurso antimanicomial na ponta da língua não significa a derrocada absoluta de práticas e concepções demarcadas por um ranço asilar. Percebemos, nas falas dos usuários, um resquício da tutela a que foram historicamente delegados, como podemos perceber na seguinte fala: “A gente tem transtorno mental, tem que ver que é uma doença. Porque hoje você está bem, amanhã você pode não estar, mas tem uma associação do lado. Eles [os técnicos] trabalham pra isso aí”. (fala de usuária)
Vimos que, mesmo os usuários enfatizando que somente eles “sentiam na pele” a realidade nos serviços de saúde, acreditam que estão desabilitados para encabeçarem um grupo pela imprevisibilidade de uma crise e, por isso, os técnicos deveriam coordenar a associação. Por isso, são capturados pela noção de incapacidade, legitimada pela medicina e pelo direito, atribuída à loucura. Vasconcelos (2009, 2008, 2003) aponta que o perigo trazido pelo posicionamento de técnicos encabeçando os dispositivos associativos está no entrechoque de interesses entre estes, os usuários e os familiares, ocasionando uma assimetria de poder dentro da organização. Mas, o conflito de interesses, as relações de poder e as diferenças de perspectiva e expectativa não estão em nível interpessoal? Acreditamos, então, que depende de como os técnicos vão operar na associação de modo a favorecerem ou entravarem o processo de empoderamento dos usuários. Consideramos que os trabalhadores sociais [...] se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização, ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. (Guattari, Rolnik, 2005, p.37)
Estar à frente da associação torna-se, pois, uma questão de performance e tentativa contínua de dissolução dos blocos identitários (usuário-técnico-familiar-amigo): não mais de competência e/ ou lugar social. Trata-se de combater a tendência hierarquizante que permeia o grupo, onde tudo parece repercutir do topo para a base. Tanto os técnicos quanto os usuários precisam destituir-se das representações da loucura como incapacidade, inferioridade e doença mental, afirmando-a como
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diferença (Torre, Amarante, 2001). Ao tomar para si o poder de decisão – por mais que haja usuários no corpo diretório – e a incumbência de manejar a pauta, o técnico corrobora com a tutela, com a hierarquização das relações e, consequentemente, reforça a desarticulação da associação. Os usuários, por sua vez, destituindo-se da responsabilidade de cogerir a associação, reiteram e naturalizam o caráter de incapacidade atrelado à doença – reificando a identidade de doente mental, justificam a passividade perante as decisões do grupo. Essas forças que atravessam os envolvidos acabam por paralisar a máquina institucional e ressonam em seu modelo de ação política. Conforme Torre e Amarante (2001, p.84): A construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político. Isso vem ocorrendo através de inúmeras iniciativas de reinvenção da cidadania e empowerment [...].
Enxergamos, nas interpelações dos usuários durante a assembleia, uma força instituinte que coloca em xeque uma pauta dura, a qual estratifica a reunião. As críticas realizadas durante a roda de conversa refletem esse jogo de forças: por vezes, os usuários reclamam do “distanciamento da associação” para com a realidade vivenciada na saúde pública, bem como da extrema e mortificante formalidade das assembleias. Ao passo que são capturados pela infantilização7 e pela noção de incapacidade historicamente atribuída à loucura. Isentam-se da responsabilidade de reinventar a associação, delegando tal responsabilidade aos técnicos, uma vez que estes seriam competentes para estar à frente do grupo e lidar com a crise do outro. Um passo seria, pois, a desconstrução tanto do valor atribuído ao saber técnico, quanto da noção de incapacidade atrelada ao transtorno mental, presente no imaginário social e nos discursos dos usuários. O que não significa um rechaço ao profissional, posto que este deva ser impulsionador do empoderamento e da criação de novas formas de lidar com a loucura (Vasconcelos, 2003). Os resultados do mapeamento já referenciado, realizado por Vasconcelos (2009), nos mostram que os problemas que aqui apontamos também ocorrem em uma escala nacional, isto é, as dificuldades analisadas não são exclusivas da associação local, mas estão presentes em grande parte dos dispositivos associativos do Brasil, sobretudo no que se refere à dependência aos profissionais e à articulação com outros movimentos. Primeiramente, ao tentar entrar em contato com associações, o autor percebeu que suas dificuldades em estabelecer esse contato já refletem problemas no acesso e na comunicação dos usuários e familiares com o próprio grupo. Além disso, os conflitos de forças presentes no campo da militância política e social podem promover um desvio de foco das formas de sociabilidade mais cotidianas, semelhante ao que acontece na associação em questão. Assim, esses problemas não estariam relacionados mais com a lógica que rege as redes de saúde mental – ainda uma lógica da infantilização e da tecnocracia – do que com a conjuntura específica de cada região? Seria essa lógica a responsável por entravar a criação e articulação de movimentos não-identitários e autonomistas? Esses fatores abordados no transcorrer do trabalho contribuem para uma fragilidade da associação, enquanto processo político articulador de novas práticas, (Oliveira, Conciani, 2009) e um consequente enfraquecimento do controle social. Em termos de representatividade, a associação tem manifestado uma participação assídua (de alguns membros da diretoria) em fóruns de sindicatos e reuniões 586
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Tal processo acontece quando pensam e organizam por nós a produção e a vida social (Guattari, Rolnik, 2005).
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do Conselho Conselho Municipal Municipal de de Saúde, Saúde, sendo sendo até até convidada convidada para para tal, tal, fato fato que que demonstra demonstra um um crescente crescente do do Conselho Municipal de de Saúde, sendo até da convidada para tal, fato que demonstra um crescente reconhecimento por parte parte de outros setores da sociedade. reconhecimento por outros setores sociedade. reconhecimento por parte de outros setores da sociedade.
Conclusão ou por uma pluralização da associação Conclusão ou por uma pluralização da associação Viver éé plural. plural. Viver Viver plural.p.157) (Rosa,é1985, 1985, p.157) (Rosa, (Rosa, 1985, p.157)
Esta investigação investigação evidenciou evidenciou o o enfraquecimento enfraquecimento das das tentativas tentativas de de empoderamento empoderamento dos dos usuários. usuários. Esta Esta investigação o enfraquecimento tentativas de empoderamento doseeusuários. Tal condição condição deve-se evidenciou uma complexidade complexidade de fatores fatoresdas institucionais, políticos financeiros, dentre os os Tal deve-se aa uma de institucionais, políticos ee financeiros, dentre Tal condição deve-se a uma complexidade de associação, fatores institucionais, políticos e financeiros, e dentredos os mais marcantes: o enrijecimento enrijecimento da rotina rotina da da associação, passividade dos usuários usuários liderança dos mais marcantes: o da aa passividade dos ee aa liderança mais marcantes: o enrijecimento da rotina eedaesquemas associação, a passividade usuários ede liderança dos técnicos na gestão. gestão. Reuniões, assembleias assembleias esquemas rígidos dificultamdos circulação dea informação informação técnicos na Reuniões, rígidos dificultam aa circulação técnicos gestão. Reuniões,bem assembleias e esquemas rígidos dificultam a circulação deEstabelecer informação dentro ee na fora da associação, associação, bem como entravam entravam um processo processo de mudança mudança constante. Estabelecer dentro fora da como um de constante. dentro e fora da associação, bem como entravam um processo denão-governamentais mudança constante. eeEstabelecer contatos alianças com outros outros movimentos sociais, organizações não-governamentais projetos de de contatos ee alianças com movimentos sociais, organizações projetos contatos e alianças comum outros organizações não-governamentais e projetos de ação social social comporiam um solo movimentos profícuo para parasociais, uma intervenção intervenção transversal do dispositivo dispositivo associativo ação comporiam solo profícuo uma transversal do associativo ação social comporiam solo profícuo para uma intervenção transversal do dispositivo associativo na vida vida daqueles que aa um compõem, na dinâmica dinâmica da rede rede de serviços serviços substitutivos ao manicômio manicômio em na daqueles que compõem, na da de substitutivos ao ee em na vidasetores daqueles a compõem, na dinâmica da rede de serviços substitutivos ao manicômio e em outros setores da que sociedade. outros da sociedade. outros setores da sociedade. Movimentar-se para além além das das fronteiras fronteiras sanitárias sanitárias ee para para além além ee aquém aquém da da esfera esfera da da Movimentar-se para Movimentar-se necessita para alémde das fronteiras sanitárias e para além e aquém esfera da representatividade necessita de uma flexibilização da agenda agenda política umada inventividade representatividade uma flexibilização da política ee uma inventividade representatividade necessita de uma flexibilização da agenda política e uma inventividade cotidiana, aa qual qual abrange abrange desde os locais locais dos encontros encontros maneira com que eles eles são operados. operados. cotidiana, desde os dos àà maneira com que são cotidiana, a qual abrange desde os locais dosum encontros à maneira que eles sociais, são operados. Uma transversalidade transversalidade torna possível compor um plano reticular reticular de com movimentos sociais, os quais, quais, Uma torna possível compor plano de movimentos os Uma transversalidade torna possível compor um plano reticular de movimentos os quais, transformados em dispositivos dispositivos geradores de desindividualização desindividualização (Barros, 2007), sociais, formariam aquilo que que transformados em geradores de (Barros, 2007), formariam aquilo transformados em dispositivos geradores de desindividualização (Barros, 2007), formariam que Deleuze ee Guattari Guattari (1995) chamaram chamaram de rizoma: rizoma: não mais mais um um eixo eixo de onde onde partam grupos aquilo tomados Deleuze (1995) de não de partam grupos tomados Deleuze e Guattarimas (1995) chamaram de rizoma: não um eixo de onde partam grupos tomados como totalidades, totalidades, mas linhas que se se movimentam movimentam emmais múltiplas conexões. como linhas que em múltiplas conexões. como totalidades, masque linhas se produção movimentam em múltiplas conexões. Acreditamos que umaque nova produção de cuidado cuidado de vida vida pode se se dar dar por por meio meio do do Acreditamos uma nova de ee de pode Acreditamos que uma deao cuidado vida pode seou darseja, por uma meiomilitância do empoderamento daqueles que nova foramprodução delegados ao silêncioe eede incapacidade, ou seja, uma militância empoderamento daqueles que foram delegados silêncio incapacidade, empoderamento daquelesee que foramsão delegados ao silêncio e incapacidade, ou seja,de uma militância política cujo cujo pressuposto pressuposto objetivo são autonomia intensificação da potência potência de vida da política objetivo aa autonomia ee aa intensificação da vida ee da política cujo pressuposto a autonomia a intensificação da potência de vida e da possibilidade de decisão. decisão. EEe aaobjetivo criação são propícia para que quee essa essa processualidade se mantenha mantenha passa possibilidade de criação propícia para processualidade se passa possibilidade de decisão. E aconstante criação propícia para que essa processualidade se mantenha fundamentalmente por um um constante questionamento das instituições instituições que nos nos atravessampassa que fundamentalmente por questionamento das que atravessam ee que fundamentalmente um constante questionamento dasaainstituições que nos atravessam e queaa nos fazem fazem cristalizar cristalizarpor modelos conservadores de lidar lidar com com diferença. 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Cidadania inventada não aa partir partir da no da de criação de Cidadania inventada não da no sentido da obtenção de da direitos e criaçãopolitização, de cidadania. Cidadania inventada partir de da novas normatização, mas aa partir partir da reabilitação, politização, onde o que que está está em jogo jogonão criação de novas normatização, mas reabilitação, onde o em éé aa acriação normatização, a partir daeereabilitação, politização, onde o que está em jogofaz-se é a criação subjetividades,mas um constante constante re-atualizado processo do do qual singularização faz-se solo ee de ar:novas essa subjetividades, um re-atualizado processo qual aa singularização solo ar: essa subjetividades, constante re-atualizado processo do qual a singularização faz-se solo e ar: essa travessia que que éé um libertar-se dos evalores valores dominantes. travessia libertar-se dos dominantes. travessia que é libertar-se dos valores dominantes. Colaboradores Colaboradores Colaboradores Os Os autores autores trabalharam trabalharam juntos juntos em em todas todas as as etapas etapas de de produção produção do do manuscrito. manuscrito. Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências Referências Referências ALVERGA, A.R.; A.R.; DIMENSTEIN, DIMENSTEIN, M. M. A A reforma reforma psiquiátrica psiquiátrica ee os os desafios desafios na na ALVERGA, desinstitucionalização da Comunic., Educ., v.10, ALVERGA, A.R.; DIMENSTEIN, M.Interface A reforma–– psiquiátrica e os desafios desinstitucionalização da loucura. loucura. Interface Comunic., Saude, Saude, Educ.,na v.10, n.20, n.20, p.299-316, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v10n20/03.pdf>. desinstitucionalização da loucura. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.10, n.20, p.299-316, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v10n20/03.pdf>. 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Palabras clave: Reforma de la atención de salud. Salud mental. Apoderamiento. Atención psico-social. Control social.
Recebido em 08/08/2009. Aprovado em 09/02/2010.
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artigos
O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis Deborah Carvalho Malta1 Emerson Elias Merhy2
MALTA, D.C.; MERHY, E.E. The path of the line of care from the perspective of nontransmissible chronic diseases. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.593-605, jul./set. 2010.
This study characterizes the line of care from the perspectives of micro and macropolicies and management. The example of chronic Non-Communicable Diseases – (NCD) is taken because of their magnitude and characteristics: long-term diseases requiring intense action from caregivers, therapeutic projects, access to services and integrated actions. The study discusses the perspective of the line of care centered on the field of users’ needs and presupposes the existence of a caregiver, use of soft technologies, adequacy of therapeutic projects, existence of service networks that support the actions needed, access to healthcare resources available and actions regarding social determinants and the regulatory process. The development of promotion, prevention, surveillance and care policies for CNTDs is discussed, bringing in actions within the fields of micro and macropolicies and including interventions relating to social determinants, legislation, technologies and tools.
Keywords: Line of care. Autonomy. Micropolicy. Healthcare work. Chronic Non-Communicable Diseases.
Este trabalho caracteriza a linha do cuidado (LC) segundo as perspectivas micro e macropolíticas ou de gestão. Toma-se o exemplo das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), pela sua magnitude, e suas características: doença de longa duração, demandando intensa atuação de cuidadores, projetos terapêuticos, acesso aos serviços e ações integradas. O trabalho discute a perspectiva da LC centrada no campo de necessidades dos usuários e pressupõe a existência do cuidador, uso da tecnologia leve, projeto terapêutico adequado, existência da rede de serviços que suporte as ações necessárias, o acesso aos recursos assistenciais disponíveis, além da atuação nos determinantes sociais e no processo regulatório. Discute-se o desenvolvimento de políticas de promoção, prevenção, vigilância e assistência de DCNT, articulando ações no campo da micropolítica e macropolítica, integrando intervenção nos determinantes sociais, legislação, tecnologias e instrumentos.
Palavras-chave: Linha do cuidado. Autonomia. Micropolítica. Trabalho em saúde. Doenças crônicas não transmissíveis.
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Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais. Secretaria de Vigilância em Saúde, Coordenação geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, Ministério da Saúde. SAF SUL, Trecho 2, Lote 5 e 6, Bloco F, Torre I, Ed. Premium, sala 14 T. Brasília, DF, Brasil. 70.070-600. dcmalta@uol.com.br 2 Professor visitante, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Introdução O setor saúde vive uma crise na forma de se produzir saúde, induzindo o modelo produtor de procedimentos, ou modelo médico hegemônico (Cecílio, 1994; Merhy, Cecílio, Nogueira, 1992; Donangelo, Ferreira, 1976). A assistência à saúde é centrada no ato prescritivo que produz o procedimento, não sendo consideradas as determinações do processo saúde-doença centradas nos determinantes sociais ambientais e relacionadas às subjetivações, singularizantes, valorizando apenas as dimensões biológicas. Este formato produz custos elevados e crescentes, pois utiliza, como insumos principais, os recursos tecnológicos centrados em exames e medicamentos (tecnologias duras), como se estes tivessem um fim em si mesmo e fossem capazes de restabelecer a saúde por si só. São produzidos atos desconexos sem uma intervenção articulada e cuidadora, reduzindo-se a eficácia da assistência prestada (Malta et al., 2004). Para se repensar novas modelagens assistenciais, assentadas em diretrizes como a integralidade do cuidado, há que se aprofundar o debate sob novos fundamentos teóricos, particularmente sobre a natureza do processo de trabalho, sua micropolítica e importância na compreensão da organização da assistência à saúde (Malta et al., 2004). Torna-se necessário ainda repensar o processo saúdedoença, quanto aos seus determinantes e condicionantes, e a intervenção em toda a cadeia de produção de saúde, desde a promoção, prevenção, vigilância, assistência e reabilitação. Neste sentido, a linha do cuidado (LC) passa a ser desenhada também no campo da gestão, articulando intervenção nos determinantes sociais, em medidas de regulação e legislação, equacionando-se tecnologias, instrumentos, dentre outros, capazes de impactarem o processo saúde-doença, porém partindo do lugar do singular no ato do cuidado, que só o trabalho vivo pode dar conta. Desta forma, a atuação na macro e micropolítica deveria ocorrer de forma articulada, buscando os melhores resultados. O essencial é a perspectiva da construção do cuidado centrada nos usuários e suas necessidades, e não de um modelo que atenda aos interesses do mercado (Malta et al., 2004). Frente ao quadro atual de transição epidemiológica e demográfica com a predominância das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a ampliação da população de idosos, cresce a demanda por agregação de tecnologias (Malta et al., 2006). Torna-se fundamental repensar o modelo de assistência praticado, priorizando os atos cuidadores e a autonomia dos sujeitos. O atual trabalho buscará analisar os desafios na construção da LC das DCNT segundo as perspectivas: micro e macropolítica ou da gestão.
Metodologia Buscar-se-á, neste ensaio, apoiar-se na literatura quanto ao tema da LC, em especial o cuidado relacionado às DCNT. Foram realizadas buscas usando-se os seguintes descritores: linha do cuidado, doenças crônicas não transmissíveis, processo de trabalho em saúde, micropolítica e macropolítica. Foram descritos os marcos conceituais da LC, na sua perspectiva macro e micropolítica. Em relação à primeira, foram identificados os seguintes aspectos: a) organização da vigilância e da informação em saúde; b) comunicação em saúde; c) medidas intersetoriais, legislação, regulação; d) organização da rede de serviços; e) identificação de grupos de risco e os protocolos como ferramentas. Na perspectiva da micropolítica e o processo de trabalho em saúde: a) atuação da equipe na coordenação do cuidado; b) vinculação e responsabilização do cuidador; c) busca da produção da autonomia do usuário.
A concepção de LC Segundo Merhy e Cecílio (2003), o desenho da LC entende a produção da saúde de forma sistêmica, a partir de redes macro e microinstitucionais, em processos extremamente dinâmicos, nos quais está associada a imagem de uma linha de produção voltada ao fluxo de assistência ao beneficiário, centrada em seu campo de necessidades. 594
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A concepção da LC parte da missão institucional do estabelecimento/serviço de saúde, provendo mecanismos que garantam o cuidado (Cecílio, 1997). A LC é alimentada por recursos/insumos que expressam as tecnologias a serem consumidas pelos usuários durante o processo de assistência ao beneficiário, funcionando de forma sistêmica e operando vários serviços. Esta tem início na entrada do usuário em qualquer ponto do sistema que opere a assistência: seja no atendimento domiciliar, na equipe de saúde da família/atenção básica, em serviços de urgência, nos consultórios, em qualquer ponto onde haja interação entre o usuário e o profissional de saúde. A partir deste lugar de entrada, abre-se um percurso que se estende, conforme as necessidades do beneficiário, por serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, especialidades, atenção hospitalar e outros (Malta et al., 2004; Merhy, Cecílio, 2003). A produção da saúde implica formatos institucionais que articulam respostas macro e microinstitucionais (Merhy, Cecílio, 2003), ou seja, para equacionar o caminhar na LC, ordena-se tanto o processo de trabalho em saúde, quanto demandas de organização do sistema de saúde e suas interfaces.
1 LC sob a perspectiva da micropolítica A perspectiva de organização da LC pressupõe-se a partir de um conceito simples, mas de difícil consecução, ou seja, a responsabilização do profissional e do sistema pela saúde do usuário. Parece ser simples esta conclusão, entretanto ela se encontra distante da prática cotidiana. O que se busca é potencializar o trabalho cuidador, no qual o profissional, ao se relacionar com o usuário, no momento da assistência, ou “no espaço intercessor”, que é o espaço do encontro entre o usuário e o profissional de saúde, libere “trabalho vivo”, em ato, neste momento singular e “cuidador” (Malta, Merhy, 2003). Este espaço relacional abre possibilidades de mudanças e de atos criativos, tornando-se um momento especial, portador de forças “instituintes” (Merhy, 2002; Baremblit, 1996). A potencialidade desse encontro pode ser “amordaçada” em função do modelo de assistência praticado e dos seus pressupostos. Poderíamos afirmar que os “espaços intercessores” podem ser preenchidos pela “voz” do profissional de saúde e pela “mudez” do usuário. Essa relação em saúde deveria ser não “objetal”, comandada pelo autoritarismo do profissional, mas do tipo “interseção-partilhada”, na qual acontecessem trocas, compartilhamentos, pela disponibilidade do profissional em liberar saberes e atos cuidadores, e pelo desejo do usuário em restabelecer sua autonomia (Malta et al., 2004; Merhy, 2002). Torna-se chave o deslocamento do processo assistencial atual, centrado em procedimentos fragmentados, por outros processos, que se pautem pela responsabilização, vinculação e o cuidado. Outro elemento consiste na perspectiva de criar um projeto terapêutico adequado a cada usuário na sua singularidade. Este tema implica um fluxo contínuo, monitorado, e controlado pelos atores que figuram como “gestores do cuidado”, ou “cuidadores”, encadeado em uma intensa rede de conversação na qual o centro da sua lógica é o processo de produção do cuidado pelos vários encontros que esse exige entre trabalhadores de saúde e o usuário. Busca-se, ainda, a autonomia dos sujeitos no seu modo de viver e caminhar, autonomizando o usuário, provendo informações, suporte, que possam favorecer as suas escolhas responsáveis, que garantam maior qualidade de vida e independência dos atos de saúde.
2 LC sob perspectiva da macropolítica ou da gestão O apoio e o investimento dos gestores em processos de gestão coletivos e participativos implica a corresponsabilidade entre os atores envolvidos no ato de cuidar. A efetivação da LC depende da determinação e apoio dos gestores, sejam públicos ou privados, na garantia do caminhar pela LC, equacionando os fluxos micro da LC com os macroprocessos. Os gestores controlam serviços e recursos assistenciais e são responsáveis pelo atendimento dos usuários, desde a sua entrada no sistema de saúde, garantindo o acesso aos serviços, recursos necessários e qualificação das respostas às suas necessidades em saúde (Vasconcelos, 2008; Franco, Magalhães Júnior, 2003). Intervir na macropolítica passa por atuar nos determinantes sociais, buscando articulações intersetoriais, mudanças na legislação, atuação na regulação, no financiamento das ações, na rede de serviços, na organização da vigilância e informação em saúde. Além da construção de uma forte lógica COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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da gestão, na qual o cuidado produzido é um processo que possibilita a oportunidade de colocar os seus construtores em reflexão e aprendizagem, bem como inserir a gestão em análise. A LC se completa na medida em que macroprocessos se articulam com os microprocessos. Entretanto sempre ocorre o risco: da ruptura ou fragmentação da LC, pois são muitas variáveis a serem garantidas e nem sempre elas se entrelaçam. Pode-se correr o risco de tentar capturá-la sob a dura forma de agir da programação em saúde, que não consegue atuar nos modos singulares como cada um se apresenta no campo do cuidado, burocratizando as linhas de cuidado a ponto de elas existirem sem a necessidade do usuário real – só o imaginário protocolado é que tem presença – enfraquecendo os próprios programas como tecnologias de cuidado válidos em várias situações (Freire, 2005).
A LC das DCNT A escolha da LC das DCNT se justifica pela magnitude destas doenças, a crescente morbimortalidade, pelos custos que agrega e por gerar eventos contínuos/crônicos e que, com frequência, se agudizam, especialmente quando não bem cuidados, podendo ser um tema analisador das situações de fragmentação da LC. As DCNT se caracterizam por uma etiologia incerta, múltiplos fatores de risco, longos períodos de latência, curso prolongado, origem não infecciosa e por estarem associadas a deficiências e incapacidades funcionais (World Health Organization - WHO, 2005). Nas últimas décadas, as DCNT passaram a liderar as causas de óbito no Brasil, quase 64% das mortes, ultrapassando, em muito, as taxas de mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias (DIP) (Malta et al., 2006). Processa-se, no Brasil, a transição epidemiológica, demográfica e nutricional, aumentando a carga de DCNT, a população de idosos e o acúmulo de pessoas obesas e com sobrepeso, bem como com outros fatores de risco que predispõem ainda mais ao aumento da morbimortalidade por DCNT. Torna-se urgente a articulação de políticas e programas voltados para o enfrentamento desta realidade, bem como aprofundar sobre o cuidado que tem sido dispensado aos portadores de DCNT nos serviços de saúde, quer sejam públicos, ou privados (Malta et al., 2006). O aumento da DCNT afeta todos os países, ricos ou pobres, todas as classes sociais e sexos. Estimase que 35 milhões de mortes ocorrem anualmente, levando a OMS a estabelecer metas para sua redução (WHO, 2005).
1 A LC de DCNT sob a perspectiva dos macroprocessos a) A organização da vigilância e da informação em saúde Do ponto de vista da vigilância, é necessária a sua organização, agregando informações sobre as necessidades da população, seja sobre morbimortalidade, seja sobre os fatores de risco (atividade física, alimentação, tabagismo, uso abusivo de álcool, obesidade, hipertensão, diabetes), visando definir vulnerabilidade e riscos, e melhor ajustar as estratégias de intervenção, e alimentar a caixa de ferramenta dos cuidadores, para terem opções diante dos processos de cuidado com que vão se defrontar, mas sem estabelecer receitas. Nesse sentido, o uso ou não de certas opções só se adequa ao trabalho vivo, em ato; inclusive por considerar que nesse lugar está em aberto o inventar, o atuar fora das próprias ferramentas, com outros recursos que não precisam estar dados a priori. Uma das questões que devemos considerar é o fracasso intenso que as propostas de cuidado formatadas a priori têm tido junto a pessoas portadoras de diabetes e hipertensão, entre outras, por não conseguirem chegar ao singular de cada um, por imporem a priori olhares e fazeres que não têm nada a ver com o usuário real que está ali no trabalho de saúde que está se processando. b) Comunicação em saúde Torna-se fundamental disseminar essas informações e incentivar as ações, bem como utilizar os meios de comunicação, como estratégia de mobilização e engajamento da comunidade, buscando incentivar iniciativas de advocacy voltadas para divulgação, sensibilização e convencimento da 596
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comunidade. Torna-se importante a formação de redes sociais e o empoderamento da comunidade, bem como a sua responsabilização e participação na definição das ações a serem desenvolvidas (Brasil, 2008; WHO, 2005). c) Medidas intersetoriais, legislação, regulação A abordagem aos formuladores de políticas públicas implicaria a adoção e formulação de políticas e ações de saúde pública abrangentes e integradas, apoiadas em ações intersetoriais, levando em conta os vários ciclos da vida, as condições e necessidades locais. Para a implementação de políticas específicas devem ser definidas: estratégias para o financiamento das ações, proposição de medidas legislativas e regulatórias, além de ações sobre o ambiente urbano e meios de transporte que facilitem modos de viver a vida de modo mais intenso e implicado com a sua própria produção, e não a da morte (Merhy, 2007). Tomemos, como exemplo, a redução do sedentarismo, que necessita de medidas essenciais para o aumento dos níveis de atividade física populacionais, como: a criação de espaços públicos adequados e seguros, a organização do espaço urbano quanto às possibilidades de deslocamento a pé e/ou em bicicletas, investindo em segurança pública, iluminação, dentre outros aspectos do planejamento urbano. Desta forma, desloca-se do foco exclusivo no desejo e decisão individuais de envolver-se em práticas corporais para a análise das condições que facilitam ou não a eleição de um modo de viver mais ou menos sedentário (Malta et al., 2009). Da mesma forma, o acesso à alimentação implica não somente escolhas individuais, mas, fundamentalmente, políticas públicas integradas, desde: ações educativas; acesso à merenda escolar saudável; incentivo à produção, distribuição e comercialização de alimentos adequados; legislação oportuna quanto aos teores de sal, açúcar, gorduras trans; informações nutricionais em produtos industrializados; regulação do conteúdo das propagandas que atingem públicos específicos, como, por exemplo, as crianças (Brasil, 2008). No caso do tabagismo, já existem evidências da importância da ação do Estado, seja na regulação da propaganda, controle dos pontos de venda, taxação de produtos do cigarro, dentre outros. Estas medidas instaladas no Brasil, na última década, resultaram em evidente redução da venda de produtos, declínio na prevalência de tabagistas no país, bem como nas taxas de mortalidade por câncer de pulmão entre homens abaixo de 65 anos (Malta et al., 2007; Monteiro et al., 2007). As abordagens populacionais são universais e de grande abrangência, por isto torna-se central a construção de políticas públicas centradas em diretrizes de promoção à saúde, que abordem as questões relativas aos determinantes sociais, possibilitando o acesso dos cidadãos a escolhas mais saudáveis. d) Organização da rede de serviços Outro foco a se atuar nas respostas aos portadores de DCNT consiste na melhoria dos serviços de saúde. Nesta dimensão, está a importância de se integrarem os diversos níveis de atenção do sistema de saúde, onde acesso e resolutividade são palavras-chave e onde ganham espaço as LC. A integralidade do cuidado só pode ser obtida em rede. Deve haver algum grau de integralidade “focalizada”, mesmo que não seja suficiente, quando uma equipe, em um serviço de saúde, por meio de uma boa articulação de suas práticas, consegue escutar e atender, da melhor forma possível, as necessidades de saúde (Merhy, Cecilio, 2003). Cada serviço pode ser repensado como um componente fundamental da integralidade do cuidado, como uma “estação” no circuito que cada indivíduo percorre para obter a integralidade de que necessita. Cabe o desafio de “conectar” essas redes assistenciais, de forma mais adequada à rede de serviços de saúde. Todas as “estações” da rede de serviços são essenciais para a LC; para o hipertenso ou o portador de qualquer doença crônica, é essencial acessar a rede “básica”, ser bem acolhido, estar vinculado a uma equipe, ser incentivado a participar de grupos que lhe façam sentido, e não preleções que não lhe estimulam a rever nada no seu modo de viver, ou seja, grupos que consigam, junto com ele, operar a criação de novos sentidos para o viver. Além disto, este usuário poderá necessitar de apoio diagnóstico, terapêutico e de cuidados especializados, articulados e concatenados de forma a remetêlo de volta ao cuidador, após o percurso em cada “estação de cuidado”. Espera-se, com isto, evitar o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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uso dos serviços de urgência e dos serviços hospitalares. Entretanto, isto pode ocorrer e, no momento em que isto acontecer, o hospital também pode ter papel fundamental na ligação da rede, por exemplo: o momento de alta de cada paciente poderia ser um momento privilegiado para se produzir a continuidade do processo de cuidado na rede básica onde o usuário já está conectado, ao invés de simplesmente lhe fornecer uma contrarreferência sem compromisso, apenas de forma burocrática. O período da internação pode, inclusive, ser aproveitado para apoiar o paciente na direção de conquistar uma maior autonomia e na reconstrução de seu modo de andar a vida. O cuidador da atenção básica poderia, inclusive, participar desse acompanhamento, contribuindo na condução terapêutica no âmbito hospitalar, criando ligações potentes entre as equipes das várias estações, discutindo condutas, protocolos, fluxos e reduzindo a demanda de novos pacientes para o serviço hospitalar. Isso pode ser construído pela gestão, como espaço articulado da educação permanente em rede. A adoção das LC como organizadoras do trabalho em saúde pressupõe a vinculação das equipes de saúde com a população da região de saúde em que se situam e agem, sua territorialização. Portanto, as dimensões macropolítica e micropolítica se entrelaçam e se complementam. Entretanto é fundamental se processarem mudanças no processo de trabalho em saúde, buscando a qualidade dos serviços, capacitação dos profissionais, insumos estratégicos. Cabe ainda, aos gestores, a organização dos serviços de saúde de forma a integrar os diversos níveis de atenção do sistema de saúde, onde acesso e resolutividade são palavras-chave e onde ganham espaço para o equacionamento das LC. e) Identificação de grupos de risco e os protocolos como ferramentas Uma das maneiras de organizar o processo de atenção é pensar e planejar intervenções nos chamados grupos de risco, onde a atenção se volta para grupos populacionais, gerando ações mais efetivas. Mapear grupos prioritários para atuação é algo muito útil na abordagem das DCNT. Sem, no entanto, desconsiderar a oferta de portas de acesso para todos que procurem por serviços de saúde, pois, se é necessário eleger grupos prioritários, não há como transformá-los em exclusivos em uma ótica que se confunda com estratégias focalizantes. Assim, operar sobre grupos específicos tem de constituir uma das muitas estratégias de cuidado a ser ofertada, e, ainda mais importante, considerar a singularidade e autonomia dos sujeitos na definição das opções terapêuticas adequadas ao seu contexto de vida. Embora as diretrizes para intervenção no curso das DCNT estejam estabelecidas por consensos científicos, não constituem informações rotineiramente manipuladas pelas equipes de saúde, gerando cuidados incompletos e muitas vezes ineficazes, o que termina por colocar em risco a vida dos pacientes, além de sobrecarregar financeira e operacionalmente o sistema. Na organização dos serviços de saúde existem muitos desafios a serem alcançados, desde a compreensão das LC como organizadoras do trabalho, a vinculação das equipes de saúde com a população da região de saúde em que se situam e agem, responsabilizando-se pelo usuários, seja nos desdobramentos, seja na definição do manejo adequado, na definição de protocolos clínicos que incluam terapêutica medicamentosa adequada e procedimentos adaptados às especificidades do usuário, suas necessidades e singularidade. A definição de protocolos deve contemplar a análise de custo efetividade, os programas e recomendações já existentes, bem como definir insumos estratégicos e estratégias diagnósticas disponíveis e em utilização nas diversas regiões do país. Torna-se importante, para a qualidade da assistência, embasar-se na melhores evidências científicas disponíveis. Os protocolos devem buscar a eficiência, a racionalidade, bem como adequar-se às necessidades, valores e preferências do usuário, constituindo-se em elemento essencial para um bom cuidado com a DCNT, a adesão do usuário ao programa proposto. Não podemos nos esquecer de colocar os próprios protocolos em análise, pois os mesmos, por serem construídos muitas vezes por consenso científico, estão aí como ferramentas, e não como receitas. O que interessa neles é que o cuidador possa perguntar que tipo de problema eles tentam resolver e refletir se as soluções propostas se adéquam às realidades. Ou seja, transformar cada protocolo em uma ferramenta, e não em uma doutrina, é chave para o manejo das relações intercessoras que produzem o cuidado.
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2 A perspectiva da micropolítica e do processo de trabalho em saúde a) Atuação da equipe na coordenação do cuidado Segundo Merhy (2005) e Merhy e Cecílio (2003), o cuidado, nas organizações de saúde em geral, é, por sua natureza, necessariamente multidisciplinar, depende da conjugação do trabalho de vários profissionais. Mecanismos instituídos de dominação e de relações muito assimétricas de poder entre as várias corporações profissionais ocultam a imprescindível colaboração que deve existir entre os vários trabalhadores, como operadores de tecnologias de saúde, para que o cuidado aconteça. O cuidado, de forma idealizada, recebido/vivido pelo paciente, é somatório de um grande número de pequenos cuidados parciais que vão se complementando, de maneira mais ou menos consciente e negociada, entre os vários cuidadores que circulam e produzem a vida dos serviços de saúde. Assim, uma complexa trama de atos, de procedimentos, de fluxos, de rotinas, de saberes, num processo dialético de complementação, mas também de disputa, vai compondo o que entendemos como cuidado em saúde. O cuidado à saúde dispensado pelas equipes pode ser decomposto em inúmeros outros atos diagnósticos e terapêuticos, realizados por vários trabalhadores diferentes, conforme o modelo de atenção e de gestão de produção do cuidado. Para ilustrar este fato, basta imaginarmos os cuidados de um paciente com diabetes, internado com um quadro de descompensação, nos serviços que temos hoje em oferta para produzir esse cuidado. Além dos cuidados iniciais do plantonista, que o recebe e interna a partir do prontosocorro, ele receberá também cuidados da enfermagem, poderá ser visto, em algum momento, pelo cirurgião vascular, pelo cardiologista, pelo endocrinologista, pela nutricionista, pela assistente social e pela psicóloga. Além do mais, terá seu corpo escrutinado por uma bateria de exames, alguns deles bastante complexos, realizados em serviços diferentes e por profissionais distintos. Um dos grandes desafios do trabalho em saúde é conseguir coordenar adequadamente esse conjunto diversificado, especializado, fragmentado de atos cuidadores individuais, que resulte em uma dada coordenação do cuidado (Merhy, Cecilio, 2003), ao mesmo tempo em que deve-se mudar o sentido desse modelo de cuidado, tarefa que também depende da própria forma como se encara o lugar da LC como estratégia de gestão de novos modos de se produzir saúde. Por isso, cabe refletir sobre a correlação do cuidado como o processo de gestão. Uma coisa é pensar o trabalho em equipe como somatório de ações específicas de cada profissional, como linha de montagem do tratamento da doença, papéis hierárquicos e rígidos; a outra é pensar arranjos institucionais, modos de operar a gestão do cotidiano sobre a micropolítica do trabalho que resultem em uma atuação mais solidária, articulando um grande número de trabalhadores envolvidos no cuidado. Nesta medida, o tema da integralidade do cuidado, passa, necessariamente, pelo aperfeiçoamento da coordenação do trabalho em equipe (Merhy, Cecílio, 2003). Outro fator primordial consiste na compreensão do trabalho em saúde de forma integrada, incluindo a participação e os saberes de uma equipe multidisciplinar que garanta o cuidado integral. Articulando saberes, práticas, olhares diversos. E outro elemento consiste na garantia da formação adequada dos profissionais de saúde, investindo em educação e capacitação permanente. Segundo Merhy e Cecílio (2003), o delicado processo de coordenação do cuidado se faz por meio de dois mecanismos principais. O primeiro deles é a criação de “pontes” ou pontos de contato entre as lógicas da profissão: médicos e enfermeiros e os outros profissionais têm de conversar para que o cuidado se realize. Uma coordenação “em ato”, o encontro de práticas, de saberes. Torna-se desafiador construir uma coordenação mais horizontal, mais regular e “institucionalizada” entre os vários profissionais, centrada no cuidado. A própria lógica, em si, da produção do cuidado, e sua micropolítica, remete a uma forma mais transversalizada de operar o cuidado, integrada em uma rede mais ampla de serviços, composta de vários pontos, ou várias “estações”. Os coordenadores de LC deverão ter a preocupação de buscar uma melhor articulação entre estas várias “estações cuidadoras”. Isto vale para todas as linhas. A integralidade do cuidado é tarefa de rede de serviços (Merhy, Cecílio, 2003). A participação dos trabalhadores como sujeitos do processo é essencial e vital, abrindo espaços de escuta, participação, definição conjunta de espaços decisórios, adesão ao projeto de melhoria COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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da qualidade assistencial que seja centrado nas necessidades do usuário e forte responsabilização institucional pelo processo. Estes espaços decisórios destinam-se a: favorecer a melhor interação entre os trabalhadores das equipes e o estabelecimento de corresponsabilidade entre os atores envolvidos no ato de cuidar, discussão de protocolos adaptados aos usuários, definição de condutas e responsabilidades. Ações a serem operadas no espaço da gestão que a educação permanente possibilita. b) Vinculação e responsabilização do cuidador Sob a perspectiva da micropolítica, o acompanhamento do fluxo da LC pressupõe a responsabilização do cuidador pelo usuário. O consumo de “tecnologias duras” (exames, imagens, procedimentos) implicará o retorno ao “cuidador”, que definirá sempre pela necessidade de novos procedimentos, ou pela instituição de determinada terapêutica. A figura do cuidador é central e pressupõe o uso intenso da “tecnologia leve” (dos saberes, da capacidade de decisão do profissional) e da tecnologia “leve-dura” (protocolos, que deverão ser adaptados pelo cuidador na singularidade do sujeito). Este é um espaço relacional pleno de subjetividades, implicando o encontro entre o usuário e o cuidador. Esse fluxo se faz sempre marcado por subjetividades, pelo encontro singular entre o profissional e o usuário. O usuário não faz esse percurso de forma impessoal, mecânica, desvinculada de sentimentos e impressões (Malta, Merhy, 2003; Merhy, 2002, 1997). A dimensão cuidadora, produtora de tecnologias leves, relacionais, torna-se fundamental para ampliar a capacidade dos trabalhadores de lidarem com a subjetividade e com as necessidades de saúde dos usuários. Estes espaços de encontro são singulares para operar esta compreensão dos trabalhadores acerca das necessidades dos usuários, e portanto, com a produção de um cuidado integral à saúde (Feuerwerker, 2005; Merhy, Cecílio, 2003). Os trabalhadores não são uma “caixa vazia”, ao contrário, utilizam seus espaços de autonomia para agir como lhes parece correto, de acordo com seus valores e/ou interesses (Helman, 2003). Portanto, preservar a autonomia dos trabalhadores é essencial para ampliar a qualidade do cuidado, sua capacidade de decisão, de envolvimento, de compromisso e vínculo com o usuário (Feuerwerker, 2005). O caminhar pela linha de cuidado pressupõe a existência de uma rede de serviços que suporte as ações necessárias, o projeto terapêutico adequado àquele usuário, que comandará o processo de trabalho e o acesso aos recursos disponíveis à assistência. Portanto, as pontes e os entrecruzamentos entre a macropolítica e a micropolítica atravessam todo o percurso da LC. c) Busca da produção da autonomia do usuário Além disto, outro elemento-chave consiste em fortalecer a capacidade de o usuário cuidar de si, o que vai muito além de um simples autocuidado protocolado dos portadores de DCNT, estimulando seu empoderamento, suas escolhas, suas opções. A sua autonomia é fundamental para fortalecer suas escolhas responsáveis, a sua qualidade de vida. E, por isso, devem-se revisar as estratégias de trabalho de grupo e de educação em saúde que vêm sistematicamente povoando nossas redes de saúde, que utilizam métodos ultrapassados que pouco contribuem para esses processos. Os caminhos clássicos de informações e educação tipo bancária devem ser substituídos, conforme já alertava há muito o educador Paulo Freire, em seus vários trabalhos e preleções (Freire, 1983). Torna-se fundamental ganhar a implicação do usuário nas apostas de prevenção, controle e recuperação, para a obtenção de melhores resultados. Deve-se assegurar o acompanhamento regular e a participação do cliente. A DCNT é de longa duração e esta nova realidade nem sempre está clara para o paciente, sendo momento de tensão, angústia e contradições. Nem sempre está claro o conviver com o novo estado, o lidar com a doença, comorbidades, limitações e medos decorrentes. Por outro lado, tampouco os profissionais de saúde têm claro as limitações de cada sujeito, e nem sempre os mesmos possuem formação para promover a ampliação de autonomia dos sujeitos, buscando a ampliação das suas habilidade para a autogestão da doenças crônicas. Torna-se necessário investir nos cuidadores para que incentivem abordagens compreensíveis e adaptadas à cultura do usuário, suas singularidades, limites, fortalezas e fraquezas (Taplin, 1998). Torna-se necessário, ainda, mapear redes sociais de apoio existentes na comunidade, família, que possam fortalecer esses processos cuidadores. Incentivar redes de solidariedade, trocas, apoios integrados. Além disto, o 600
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cuidador deve se disponibilizar para apoiar o processo de travessia, mostrando-se aberto e disponível para o usuário, à medida que ocorram necessidades e demandas. O que exige mudanças substanciais no modo de se construírem as redes de cuidado (Franco, 2006).
Análise da LC A análise da LC possibilita: mapear os recursos disponíveis nos diversos segmentos da saúde, avaliar as tecnologias utilizadas para assistir o beneficiário, quanto ao tipo, fluxos, mecanismos de regulação, tentativas de negação de acesso, ações de vigilância à saúde, promoção, utilização dos recursos das clínicas especializadas. Ao analisar o caminhar do usuário na linha, pode-se verificar se este fluxo está centrado no campo de necessidades dos usuários, determinado pelo suposto projeto terapêutico que lhe é indicado, a sua acessibilidade aos serviços, comodidade, segurança no atendimento, acompanhamento, tratamento, orientação e promoção, ou, ao contrário, se ocorre a fragmentação ou interrupção da assistência (Merhy, Onocko, 1997). O esperado é um “caminhar” na rede de serviços que seja seguro, sem obstáculos, pois isto garantirá a qualidade da assistência. A “linha de produção do cuidado” não se encerra no momento em que é estabelecido o projeto terapêutico, ela deve continuar no acompanhamento deste usuário para garantir a integralidade do cuidado. Existem diversas etapas neste percurso (LC) que são microprocessos de trabalho específico, determinado pelos atos de cada produtor de serviços/ profissional de saúde envolvido. Cada microunidade produtiva (consultório médico, laboratório e outras) fornece insumos umas às outras, e é local de intensa possibilidade de análise no que se refere à configuração tecnológica do trabalho produzido, o que pode ser obtido por meio da análise das valises tecnológicas em operação, suas conformações e combinações (Merhy, 2002). Os processos existentes em cada etapa estarão integrados ou não, dependendo do modelo em curso (Malta et al., 2004). Na análise deste percurso é importante identificar a fragmentação da LC, o que pode ocorrer em função de: a) A ausência de ofertas de práticas de promoção e prevenção pode ser determinante do estímulo à entrada na rede de serviços. Exemplos simples, como o estímulo à prática da atividade física, a estruturação de grupos de acompanhamentos de hipertensos, diabéticos, idosos, vinculando clientelas específicas, e evitar consumos desnecessários de serviços. Estas práticas devem ser estimuladas pelos gestores do setor público, pelas operadoras de planos de saúde. Enquanto essa prática não for assentada em responsabilidade concreta, muitas ações assistenciais curativas mais complexas e desnecessárias serão praticadas. b) Ausência de gestão e regulação dos processos – os gestores formais são os garantidores dos macroprocessos, sua atuação é definidora do planejamento e gestão da rede, articulação intersetorial, funcionamento da regulação, existência da rede de serviços, insumos, regulação de fluxos assistenciais, formação e capacitação dos trabalhadores no trabalho e, até mesmo, a priorização da agenda da integralidade do cuidado. c) Deficiência da rede de serviços (insuficiência do apoio diagnóstico terapêutico), inexistência de ofertas específicas (alta complexidade, exames não cobertos), oferta insuficiente seja pelo número, seja pelas especialidades e/ou complexidade disponíveis. d) Atitudes de desresponsabilização do cuidador, com: não vinculação, saber insuficiente, negação ou cerceamento de uso de tecnologias adequadas, retardo ou não fechamento do diagnóstico, não oferta de mecanismo de acolhida às demandas agudas. Quando não existe um “cuidador”, ocorrem repetições de procedimentos desnecessários, tornando a atenção mais onerosa e ineficiente. e) Atitudes de cerceamento ao acesso, dificultando a autorização de procedimentos essenciais à assistência, especialmente acesso a tecnologias e procedimentos de alta complexidade e custo. f) Prestador com falta de insumos, perda de exames, qualidade questionável na prestação de assistência. g) Definição de cuidador que articule todo o percurso da LC. Para evitar a fragmentação do cuidado, dever-se-ia operar em outro formato do modelo assistencial, comandado por um processo de trabalho COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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cuidador, que oriente esse percurso. Quando isso não existe, o usuário faz o seu próprio caminhar pelas redes de serviços, induzindo consumo de procedimentos. Essa prática é altamente perversa, podendo levar a erros e indução ao consumo de procedimentos. Muitas vezes, só o usuário consegue recuperar a história da sua peregrinação, sendo o seu próprio “fio condutor” (Malta et al., 2004). O grande desafio consiste em restabelecer uma nova prática, centrada no estímulo à promoção da saúde, prevenção e resolubilidade dos problemas de saúde do usuário, referenciada no vínculo e na responsabilização. Torna-se importante, aos gestores, públicos e privados, estimularem a prática da vinculação a cuidadores, mapeando certos grupos de risco (idosos, diabéticos, hipertensos), ou certos ciclos de vida. Estimulando os usuários a se vincularem a “cuidadores” por meio de práticas de cuidado centradas nas tecnologias leves de impacto para a produção dessa relação. Poderia se estimular que os cuidadores tivessem usuários cadastrados e fizessem acompanhamento sistemático, definindo projetos terapêuticos adequados a cada situação, estimulando a participação em grupos educativos de novo tipo (lembrando de novo Paulo Freire), o acompanhamento e monitoramento desses usuários com algum risco diferenciado. No caso dos hipertensos, diabéticos e idosos com múltiplos fatores de risco: o acompanhamento da medicação de uso contínuo, a garantia do atendimento aos casos agudos, enfim, a garantia da continuidade do processo, o contato quando o retorno não foi cumprido, a informação sobre as intercorrências, possíveis internações, e de todo o processo assistencial (Malta et al., 2004). A linha de cuidado pode ser acompanhada e monitorada, tomando-se eventos sentinelas, como marcadores dos eventos “atípicos” ou ruídos na cadeia de cuidado. O evento sentinela constitui-se evento não esperado e cuja detecção serve de alerta para determinado fato sob observação (Malta, Duarte, 2007; Rutstein, 1976). Existem possibilidades de se monitorarem os resultados de uma população por meio dos Sistemas de Informação existentes, avaliando-se indicadores de processo, ou resultado. Além disto, coloca-se, então, o desafio de se implantar um sistema de informação (SI) baseado em informações individuais, que possibilite capturar dados dos usuários de risco de forma contínua, mapeando grupos e indivíduos prioritários e seus eventos adversos, como complicações, internações. Este monitoramento pressupõe a existência de um cuidador e da articulação da equipe. Existem sistemas de informações complexos, com prontuário eletrônico e monitoramento de indicadores e, outros simplificados, como as planilhas dos agentes comunitários de saúde, que cumprem o papel de alimentar as equipes com dados vitais. O essencial deste processo é que existam cuidadores que estejam atentos a estes processos e desenvolvam ações oportunas, especialmente quando sinais de alerta forem emitidos por estes sistemas (agudização, prescrição de medicação de urgência, procura à unidade de emergência, internação, outros). As vantagens destes sistemas de informações clínicas seria a possibilidade de se identificarem subpopulações relevantes para atenção proativa, facilitando o planejamento de atenção individual, compartilhando informações com provedores e pacientes. Este tipo de SI se apoia no monitoramento e performance das equipes e do sistema.
Conclusão Este ensaio toma, como exemplo, as DCNT, pela sua grande magnitude, mas os demais problemas de saúde, sejam as doenças infecciosas e outras, também se inserem no contexto da não responsabilização no processo terapêutico. Ou seja, a crise em saúde passa pelo modo de cuidar que não vincula, que não opera com as tecnologias leves produtoras de singularizações no cuidado e, ao mesmo tempo, de mútua construção terapêutica entre trabalhador e usuário. Portanto, as reflexões aqui apresentadas cabem também para as linhas de cuidado em geral, que precisam ser repensadas sob novas categorias. No caso dos portadores de DCNT, as linhas de cuidado necessitam articular ações de proteção, promoção, vigilância, prevenção e assistência, voltadas para as especificidades de grupos ou necessidades individuais, permitindo não só a condução oportuna dos pacientes pelas diversas 602
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possibilidades de diagnóstico e de terapêutica, mas, também, uma visão global das suas condições de vida (Brasil, 2008). A LC, nesta perspectiva, é centrada no campo de necessidades dos usuários e pressupõe: a existência do cuidador, o uso da tecnologia leve, o projeto terapêutico adequado, a existência da rede de serviços que suporte as ações necessárias, o acesso aos recursos assistenciais disponíveis, além da atuação nos determinantes sociais e no processo regulatório. O cuidado integrado das DCNT prioriza o encadeamento de ações e, ao mesmo tempo, aponta a necessidade de integração de agendas por parte dos gestores, seja do ponto de vista da responsabilidade compartilhada entre esferas diferentes de governo, seja pela intersetorialidade que viabilize ações fora do setor saúde. Diante da epidemia de DCNT cabe agregar tecnologias orientadas e preparadas para a abordagem de processos de adoecimento de mais longo prazo e de causalidade complexa, na qual se articulam diferentes fatores individuais, coletivos, sociopolíticos, culturais, históricos e econômicos, e ação integrada com outros setores. A análise da situação de saúde de DCNT e seus fatores de risco e proteção exige tecnologias de organização do processo de trabalho que retomem o protagonismo do setor sanitário no debate das políticas de desenvolvimento e organização econômica e social do país, destacando o seu papel de advocacy na garantia de direitos de cidadania à população. Reorientar os modelos de atenção à saúde requer a compreensão da situação de saúde de dado local para poder atuar na realidade de saúde. Em se tratando das DCNT, elas têm sua especificidade, especialmente no que diz respeito à qualidade de vida das pessoas e de suas famílias. Uma abordagem focada na promoção deve incluir: fatores de risco e doenças já instaladas - como diabetes e hipertensão; ações educativas e estímulo a mudanças no estilo de vida; estratégias de adesão ao tratamento medicamentoso; ações produzidas por equipe multidisciplinar; incorporação de outros profissionais de saúde; empoderamento do indivíduo para o autogerenciamento das suas doenças e dos seus riscos - autonomia. A ação cuidadora implica mecanismos de responsabilização - por parte de equipe, gestores públicos, operadoras de planos de saúde - que resultem em ação integral, na qual não ocorram a interrupção e a segmentação do cuidado; o que exige um sistema único de saúde atuando coerentemente em todos os frontes de produção de práticas de saúde, públicos e privados.
Colaboradores Deborah Carvalho Malta participou da concepção teórica, elaborou a versão inicial e final do texto; Emerson Elias Merhy participou da concepção teórica, revisou e trabalhou na versão final do manuscrito. Referências BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 3.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1996. BRASIL. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes para a promoção, prevenção e controle de DCNT. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. CECÍLIO, L.C.O. Uma sistematização e discussão de tecnologia leve de planejamento estratégico aplicada ao setor governamental. In: MERHY, E.E.; ONOKO, R. (Orgs.). Agir em saúde, um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p.151-67. ______. (Org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. DONNANGELO, M.C.F.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976. FEUERWERKER, L. Modelos tecnoassistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde: nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.18, p.498-506, 2005.
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MALTA, D.C.; MERHY, E.E. El trayecto de la línea del cuidado bajo la perspectiva de las enfermedades crónicas no transmisibles. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.593-605, jul./set. 2010. El trabajo caracteriza la línea del cuidado (LC) según las perspectivas micro y macro políticas o de gestión. Se toma el ejemplo de las Enfermedades Crónicas No Transmisibles (ENT), por su magnitud y por sus características: enfermedad de larga duración, demandando intensa actuación de cuidadores, proyectos terapéuticos, acceso a los servicios y acciones integradas. El trabajo discute la perspectiva de la LC centrada en el campo de necesidades de los usuarios y presupone la existencia del cuidador, uso de tecnología blanda, proyecto terapéutico adecuado, existencia la red de servicios que soporte las acciones necesarias, el acceso a los recursos asistenciales disponibles, además de la actuación en los determinantes sociales y en el proceso regulativo. Se discute el desarrollo de políticas de promoción, prevención, vigilancia y asistencia de DCNT, articulando acciones en el campo de la micro-política y de la macro-política, integrando intervenciones en los determinantes sociales, legislación, tecnologías e instrumentos.
Palabras clave: Línea del cuidado. Autonomía. Micro-política. Trabajo en salud. Enfermedades crónicas no transmisibles.
Recebido em 15/03/2009. Aprovado em 10/03/2010.
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O cuidado de grávidas e bebês no contexto do Programa de Saúde da Família: um estudo etnográfico Vania Bustamante1 Cecilia Anne McCallum2
BUSTAMANTE, V.; MCCALLUM, C.A. Caring for pregnant women and babies in the context of the Family Healthcare Program: an ethnographic study. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.607-18, jul./set. 2010.
This study aims to contribute towards the conceptual discussion on care from an ethnographic approach among pregnant women and babies in a low-income district of Salvador who were attended within the Family Healthcare Program. We conducted interviews and participant observation. Based on analysis of two situations discovery of pregnancy with the decision to take it further, and breastfeeding – we compared the professionals’ and users’ perspectives. We argue that for both, care involves continuing construction of projects of the person. While professionals focus their interventions on the women, seeking to give guidance and apply planned routines, users make reference to spontaneous behavior that responds to practical demands and in which embodied experience is central. The differences between professionals and users relate not only to subjective characteristics but also to the social positions that they occupy.
Keywords: Care. Family Healthcare Program.
Este trabalho pretende contribuir para a discussão conceitual sobre o cuidado a partir de uma abordagem etnográfica com grávidas e bebês em um bairro popular de Salvador atendido pelo Programa de Saúde da Família. Realizamos entrevistas e observação participante. Com base na análise de duas situações - a descoberta da gravidez com a decisão de levá-la adiante e o aleitamento - comparamos a perspectiva dos profissionais com a dos usuários. Argumentamos que, para ambos, o cuidado envolve a construção permanente de projetos de pessoa. Enquanto os profissionais centram suas intervenções nas mulheres, buscando dar orientações e aplicar rotinas planejadas, os usuários fazem referência a comportamentos espontâneos que respondem a demandas práticas e onde a corporalidade da experiência é central. As diferenças entre profissionais e usuários são relacionadas não apenas com características subjetivas, mas com as posições sociais que ocupam.
Palavras-chave: Cuidado. Programa de Saúde da Família.
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1 Pós-doutoranda, Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, Salvador, BA, Brasil. 40.110-170. vaniabus@yahoo.com 2 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia.
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Introdução Este trabalho é uma contribuição para a discussão conceitual sobre o cuidado, com base em uma abordagem etnográfica sobre o cuidado de mulheres grávidas e recém-nascidos atendidos por profissionais do Programa de Saúde da Família em um bairro de baixa renda de Salvador. Os cuidados à saúde de mulheres grávidas e bebês são considerados prioritários quando se trata de organizar serviços de atenção básica (Brasil, 2005, 2002, 1997a), especialmente no contexto do Programa de Saúde da Família, considerado estratégico para a reorganização da atenção básica no Brasil (1997b). Em consonância com estas preocupações - além dos clássicos estudos epidemiológicos sobre indicadores de saúde em grávidas e crianças (ver, por exemplo, Victora et al., 1997) - existe um grande número de pesquisas que buscam avaliar o nível de sucesso nas ações ou identificar fatores que afetam indicadores de saúde. Na maior parte dos estudos são usadas técnicas quantitativas, e os dados são coletados em unidades básicas de saúde, tanto em prontuários quanto por meio da aplicação de instrumentos padronizados às mães das crianças (Carvalho et al., 2008; Feuerwerker, Merhy, 2008; Slomp et al., 2007; Ratis, Batista, 2004; Oliveira, Camacho, 2002; Santos et al., 2000). Por outro lado, como característica comum na literatura sobre cuidados na gravidez e nos primeiros meses de vida, as pesquisas se centram na perspectiva das mães, inclusive os estudos que fazem referência à perspectiva da família (Frota, Barroso, 2005; Rabuske, Oliveira, Arpini, 2005; Moura et al., 2004). Com isto se deixa de incluir outras pessoas que têm participação ativa no cuidado e se perpetua a tendência encontrada entre profissionais de saúde de focalizar suas intervenções nas mulheres, vistas exclusivamente como mães (Schraiber, 2005; Siqueira et al., 2002). Em resposta a essa lacuna, nesta pesquisa propomos incluir a perspectiva dos múltiplos agentes envolvidos no cuidado e a maneira com que estes se relacionam. Neste trabalho buscamos não só descrever práticas - uma característica comum em pesquisas que fazem referência ao cuidado -, mas refletir teoricamente sobre elas em relação com o conceito de cuidado. A forma com que abordamos o cuidado está inspirada em Ayres (2009, 2004a, 2004b, 2001), para quem o “cuidado” é fundamentalmente a construção de projetos de felicidade, visando conseguir o sucesso prático – ou seja, o bem-estar do sujeito que recebe o cuidado – e não apenas o êxito técnico, que se relaciona com o controle de doenças. Segundo o autor, “... temos sustentado a idéia de projeto de felicidade como uma espécie de horizonte normativo implicado na noção de cuidado” (Ayres, 2009, p.18). Esta é a referência que permite, aos profissionais, compreenderem o que as pessoas estão buscando nas capacidades instrumentais dos mesmos e permite que as pessoas compreendam o que os profissionais podem oferecer a elas. Ayres (2009, p.19) esclarece que se refere a projeto no sentido existencial tomado da obra de Heidegger, “entendido como o reiterado e inexorável tomar para si do eu, do outro e do mundo, que nos permite estar cada vez (re) conhecendo nosso modo mais próprio de ser, atualizando a compreensão de si e do mundo que nos situa e move existencialmente, racional e afetivamente”. Por outro lado, explica que felicidade não se refere à ideia do senso comum. Trata-se de uma ideia reguladora que orienta nossas decisões, mostrando que estamos nos movendo conforme nossos projetos. É uma ideia contrafática e assintônica, na medida em que nunca se atinge a experiência mais abrangente de felicidade. Argumentamos que o cuidado pode ser pensado como a construção de projetos de pessoas que se expressam em práticas cotidianas, num marco de relações de poder entre agentes em posições sociais diferentes. Mostramos, por meio da análise etnográfica, que, para os sujeitos, o cuidado envolve necessariamente um trabalho centrado na pessoa, tal como Thomas (1993) argumenta. Trabalho que toma a forma de construção de projetos, envolve articulações e, também, diferenças em relação à perspectiva de Ayres. Enquanto Ayres se concentra em examinar o cuidado, numa esfera de intersubjetividade restrita, nesta pesquisa mostramos que o mesmo é construído cultural e socialmente em relações de poder estruturadas. Os aspectos sócio-históricos do cuidado destacados por Carvalho (1999) e outros autores que trabalham numa perspectiva feminista (Scavone, 2005), são centrais no conceito que aqui se propõe.
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Os projetos de pessoa podem estar relacionados com múltiplos interesses - não apenas a preocupação com o sucesso prático - de cuidadores ocupando distintas posições dentro do espaço social, tal como proposto por Bourdieu (1996, 1989). Seguindo o conceito de projeto de Rabelo (1999), que se apoia em Schutz e Merleau Ponty, defendemos que os projetos não envolvem apenas uma construção mental ou discursiva. Os projetos podem ter expressão corporal, sem passar pelo plano das representações mentais, e podem ainda haver projetos concorrentes numa mesma situação. Com base nas contribuições de Rabelo e a partir da discussão antropológica sobre a construção social da pessoa (ver Bustamante, 2009), consideramos que o cuidado, e com ele a pessoa, são construídos permanentemente na forma de projetos que nem sempre são explicitados discursivamente. Esta conceituação envolve uma crítica à tendência a universalizar o significado do cuidado e, ao mesmo tempo, a proposta de ampliar essa noção, ao mostrar que o cuidado é construído cotidianamente em diversas interações, não apenas como preocupação com a felicidade ou o bem-estar. Tendo como base esta discussão teórica, argumentamos que o cuidado se produz constantemente nas interações entre profissionais de saúde e usuários, e que o mesmo apresenta qualidades diferentes que estão relacionadas com as posições sociais dos agentes. Entre os profissionais, o cuidado se constrói com ênfase nos aspectos discursivos – o dar orientações – e em referência a rotinas planejadas, focalizando as mulheres como objeto das intervenções. Entre os usuários, o cuidado se dá em forma espontânea, fazendo referência à corporalidade e a respostas a situações que se apresentam e das quais participam parentes de ambos os gêneros. Por outro lado, os usuários constroem suas práticas em negociação com os projetos de pessoa propostos pelos profissionais. Em contraposição, os profissionais tendem a manter suas perspectivas originais, sem contemplar o que é trazido pelos usuários. Com esta pesquisa buscamos contribuir para uma discussão conceitual que aproxime a reflexão sobre o cuidado de práticas que se observam cotidianamente em serviços de saúde. Assim, poderemos entender melhor a complexidade de situações que fazem parte da construção cotidiana do cuidado e pensar em aspectos que requerem maior atenção para se construírem práticas de saúde mais próximas dos projetos - de pessoa e também de felicidade - dos usuários.
Método A presente análise faz parte de uma pesquisa maior sobre o cuidado infantil em um bairro de baixa renda de Salvador (Bustamante, 2009). O trabalho de campo, realizado entre 2003 e 2006, envolveu contato com moradores de Prainha, nome fictício de um bairro localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, e com membros de várias instituições que atendem crianças dentro do bairro. Aqui analisamos dados de observação participante e entrevistas com profissionais da Unidade de Saúde da Família e alguns dos moradores atendidos por eles, especialmente membros de sete unidades domiciliares. Para Toren (1997), a observação participante é o método mais característico da abordagem etnográfica e envolve ser ao mesmo tempo um participante e um observador que questiona sua própria participação e a dos outros em eventos ordinários, de maneira que nada do que é dito é considerado irrelevante. Segundo a autora, a análise etnográfica não pretende basear-se em amostras representativas. Em contrapartida, o desafio é saber o máximo possível sobre as pessoas cujas ideias e comportamentos são objeto de análise, e para isso é importante fazer entrevistas em profundidade com alguns informantes. Argumenta-se aqui que a etnografia é algo além de um texto literário em que o etnógrafo mostra ao leitor que, de fato, “esteve lá” (Geertz, 1989). Dois são os critérios que consideramos fundamentais para pensar sobre a validade das interpretações etnográficas. Por um lado, tal como defende Jackson (1996), a credibilidade do discurso não é decidida pelos fatos falando por si mesmos, mas pela forma em que os fatos e os dados são organizados numa narrativa. Por outro lado, as interpretações devem ser construídas a partir do partilhar de um mundo comum com os pesquisados, tal como destaca Pina Cabral (2005, p.20): “O etnógrafo, na sua materialidade, é co-existente com os etnografados e só através do mundo comum que partilham é que ele pode dar sentido às observações etnográficas que realiza”.
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Assim como em Wolf (1983, p.XI), citado por Jackson (1996, p.43), aqui a etnografia é tida como um trabalho realista motivado “[...] por uma sensação urgente de registrar e testemunhar experiências humanas que nos ‘falam’, sem superficialidade, sobre coisas que importam” (tradução nossa). Desse modo, a etnografia é muito mais do que um tipo de escrita, sendo a melhor forma de entender e mostrar como vivem e como se relacionam pessoas de diferentes grupos. A análise aconteceu em todos os momentos da pesquisa e caminhou junto com o processo de escrita (Becker, 1994). As entrevistas e as notas de campo foram transcritas, lidas e organizadas em pastas, seguindo a sequência temporal. As primeiras leituras do material foram gerais, tendo como objetivo pensar sobre o tema da tese, identificando pontos importantes. Um segundo tipo de leitura se seguiu, envolvendo a identificação de temas importantes, seleção de trechos relacionados e a criação de novos arquivos. Novas leituras do material selecionado – e às vezes retorno ao material original – foram acontecendo conforme eram construídos os argumentos da tese. Olhares mais aprofundados sobre o mesmo material se foram construindo a partir desse processo. Alguns achados importantes se deram após novas leituras das mesmas notas. O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Os cuidados éticos incluíram o uso de nomes fictícios na divulgação dos dados. Plena liberdade foi dada aos informantes para decidirem sobre sua participação, tendo recebido informações sobre a mesma e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados e discussão Sobre o contexto da pesquisa O bairro possui características comuns a outros bairros populares: serviços insuficientes, infraestrutura urbana precária, algumas ruas sem asfalto, carência de espaços verdes e de lazer, presença de casas “em construção”, entre outras. Os moradores têm baixo nível de escolaridade e de renda. Alternam períodos de emprego e desemprego. Entre os homens, os empregos mais comuns são em segurança e serviços gerais; entre as mulheres, vendas e serviço doméstico. Os relatos sobre episódios de violência são frequentes, incluindo violência doméstica, brigas entre vizinhos e violência perpetrada pela polícia. Contudo, há crescente presença de instituições – Unidade de Saúde da Família, escolas, creches, posto de polícia – e de programas sociais, tais como o Programa Bolsa Família e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). A Unidade de Saúde da Família que atende aos participantes da pesquisa foi implantada em 2002. As três equipes estão formadas por equipes mínimas de Saúde da Família - profissionais de medicina, de enfermagem e técnico em enfermagem -, assim como equipes de saúde bucal (dentista e auxiliar de dentista) e agentes comunitários de saúde. Cada equipe atende a, aproximadamente, mil famílias. Assim como em outras Unidades de Saúde da Família, em Prainha estão previstas ações de planejamento familiar, acompanhamento pré-natal e puericultura. Algumas mudanças nas últimas décadas fazem parte do contexto no qual se constroem cotidianamente os cuidados de grávidas e bebês em Prainha. No Brasil há uma drástica redução na taxa de natalidade (Dalsgaard, 2006), assim como crescente redução nas taxas de mortalidade infantil. Isto faz com que o número de filhos por mulher seja menor que em décadas anteriores. Em Prainha, há diferenças entre as mães de crianças pequenas e suas próprias mães: as mais jovens tendem a ter menos filhos e, assim como em outros lugares do Brasil, manifestam o desejo de ter apenas dois filhos (Bemfam, 1997). São raros os casos de mortalidade infantil entre as gerações recentes, diferentemente do que aparece no relato das avós de crianças pequenas, que tiveram, no mínimo, quatro filhos e que, frequentemente, relatam terem perdido filhos recém-nascidos ou bebês de menos de um ano. Por outro lado, em Prainha são frequentes os relatos sobre abortos, e se faz referência ao uso de Cytotec (misoprostol), um medicamento que está no mercado para o tratamento de úlceras de estômago,
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cujo uso tem diminuído significativamente as taxas de mortalidade por abortos inseguros no Brasil (Menezes, Aquino, 2009). Por razões de espaço priorizaremos a análise de cuidados ligados com a descoberta da gravidez e o início do pré-natal, assim como o cuidado durante os primeiros meses de vida, especialmente a prática do aleitamento materno. Estes aspectos foram escolhidos devido à importância que têm nas rotinas dos profissionais de saúde e na vida das mulheres e suas famílias.
“Aparecer grávida” e a decisão de continuar a gravidez
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Todos os nomes usados aqui são fictícios.
4 O trabalho de campo foi realizado apenas por Vania Bustamante. Por isso, em alguns relatos, utilizamos a primeira pessoa.
Os profissionais de saúde consideram a gravidez das usuárias como expressão de falhas na prática do “planejamento familiar”. Às vezes são apontadas falhas no trabalho dos profissionais. Por exemplo, um dia, a dentista Ana3 reclamou da falta de compromisso da enfermeira de sua equipe, citando, como exemplo, o planejamento familiar, que é atribuição da enfermeira: “se fosse bem feito, não devia aparecer nenhuma grávida”. No entanto, entre os profissionais predomina a ideia de que o “aparecer grávida” é expressão de que a mulher não seguiu as orientações. Nesse sentido, a enfermeira Rosa relatou que as mulheres têm “preguiça” de ir ao posto de saúde para buscarem os métodos contraceptivos, assim como a falta de interesse em aprenderem a usá-los, e que frequentemente isto se relaciona com a maneira passiva com que levam a vida. Na opinião de Rosa há algumas famílias “estruturadas”, nas quais o casal planeja ter os filhos. Ou seja, a possibilidade de engravidar por uma decisão própria é associada com a existência de uma família conjugal. O “planejamento familiar” é uma das funções da enfermeira. Faz parte de sua rotina fazer consultas com as mulheres e conversar sobre métodos contraceptivos. No cotidiano do serviço a oferta é insuficiente, especialmente porque a maioria das mulheres solicita anticoncepcionais injetáveis. A dificuldade no acesso foi expressa por uma mulher na sala de espera, a qual reclamava não só da falta do contraceptivo, mas da impossibilidade de que seu marido retirasse a medicação quando ela não podia ir ao posto de saúde por ter de trabalhar. Segundo essa informante, os profissionais são inflexíveis e, além disso, “quando a gente aparece grávida falam que não seguimos as orientações deles”. A situação da informante mostra que as ações ligadas com “planejamento familiar” estão concentradas nas mulheres. Isto coincide com a análise de Schraiber (2005), que realizou uma pesquisa sobre o cotidiano das práticas do Programa de Saúde da Família em Recife. A autora identificou que os profissionais dirigem as ações às mulheres, vistas, sobretudo, como mães e cuidadoras da família, e de quem se espera que tenham ampla disponibilidade de tempo para permanecerem na unidade de saúde. A partir da fala da usuária na sala de espera vemos que tanto usuários como profissionais fazem referência à gravidez como algo que “aparece”. Isto é concordante com dados da pesquisa GRAVAD (Aquino et al., 2003), realizada em três capitais brasileiras, onde a maior parte das mães disse ter engravidado sem planejar. No entanto, os moradores de Prainha se referem ao “aparecer grávida” ou ao engravidar “sem planejar” de forma diferente dos profissionais de saúde. O seguinte trecho de uma conversa com Paula e Ed, um casal com dois filhos, é ilustrativo. Um dia perguntei4: “Como vocês se imaginavam o fato de ter filhos?”, e Paula respondeu: “Não, na verdade eu nem imaginava como seria, porque não foi uma coisa planejada. Aconteceu, mas, no momento que aconteceu, tinha certeza que eu queria [...]”.
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Frequentemente, quando uma mulher aparece grávida no posto de saúde, a sua gravidez já foi reconhecida por ela e pelo pai da criança, assim como por parentes e vizinhos. E isto envolve a escolha de levar adiante a gravidez. A experiência de Paula na segunda gravidez é ilustrativa. As duas gravidezes aconteceram “sem planejar” e, ao verificar que estava grávida pela segunda vez, Paula pensou em provocar um aborto. Ed a acompanhou a uma clínica clandestina que acharam em um bairro do centro da cidade. Enquanto esperava, Paula desistiu e disse a Ed para voltar para casa: “Depois disso deixei a barriga, e foi só crescer”. Neste relato, a decisão de levar adiante a gravidez é seguida pelo ato de mostrar a barriga e assim deixá-la crescer. No entanto, esta sequência de eventos não é a única possível. Há relatos onde o aborto se dá em um estágio avançado da gravidez. Este é um tema de pesquisa muito delicado (Menezes, Aquino, 2007), que não será abordado aqui. As irmãs Alícia e Lucineide engravidaram “sem planejar”, não tinham uma fonte de renda estável, as duas se separaram de seus parceiros à medida que as barrigas cresciam, e, no entanto, lidaram diferentemente com as circunstâncias. Alícia relatou que engravidou porque deixou de fazer o “planejamento familiar”, durante um período muito conturbado em que um dos filhos precisava ser levado constantemente a serviços de emergência. Resolveu “deixar” após falar com o parceiro, que paralelamente se afastou dela, primeiro porque foi trabalhar numa cidade do interior e depois porque se envolveu com outra mulher. A mãe de Alícia achou uma grande “falta de responsabilidade” ter mais um filho nessas condições, mas, no entanto, aceitou a chegada da neta. Ajudou quando a filha ficou internada, ajudou a cuidar e sustentar os outros filhos de Alícia. Durante a gravidez, esta encontrou suporte em uma igreja pentecostal, onde as colegas organizaram um chá de bebê para ajudá-la a conseguir roupas, fraldas e outros objetos para a criança. Lucineide engravidou do terceiro filho com quarenta anos, sendo mãe de dois adolescentes. Relata que não esperava ficar grávida, mas que sabia que, se isso acontecesse, não provocaria um aborto, pois era responsabilidade dela “evitar”, algo que não fez. Tomou a decisão de “deixar” independentemente da opinião do parceiro, o qual, por coincidência, também queria ter o filho. Aqui mostramos as diferenças individuais e a importância de parceiros, parentes, colegas e profissionais na experiência da gravidez, não só na decisão de levá-la adiante, mas em lidar com os desafios emocionais e materiais. O discurso da enfermeira Rosa contrasta com o que encontramos no cotidiano das mulheres e suas famílias. Parentes, e às vezes parceiros, participam da decisão de dar continuidade à gravidez, assim como dos cuidados com as grávidas e, também, do preparo para a chegada do bebê, e isto não depende da existência de um arranjo conjugal. Entre os profissionais, as práticas são construídas a partir da ideia de que as mulheres não têm interesse, têm preguiça, não seguem as orientações, e a gravidez é vista como sinal dessas atitudes. A possibilidade de que se trate de uma gravidez desejada é associada com a existência de uma família conjugal, onde existe um marido provedor. A insuficiência da oferta de contraceptivos não é discutida pelos profissionais como algo que contribui para gravidezes não planejadas. Segundo a enfermeira Rosa, há sempre algum método disponível, às vezes apenas o preservativo masculino, mas as mulheres não o usam. A preferência por métodos contraceptivos mais duradouros, inclusive a esterilização cirúrgica, e sua relação com a pobreza, já foi discutida em outros estudos (ver Dalsgaard, 2006). Para os usuários, são centrais as referências à espontaneidade e à corporalidade. Isto é evidenciado não só na expressão “aparecer grávida”, mas na fala de Paula sobre mostrar a barriga e deixá-la crescer. A aparição da gravidez, de alguma forma, é esperada na vida das mulheres, especialmente quando se trata do primeiro filho. Esta pode ser uma estratégia espontânea para construir a maternidade, dado que, na maioria dos casos, não é legítimo, diante dos profissionais, que elas expressem abertamente o desejo de ter filhos, devido a suas precárias condições de vida. Nesse sentido, argumentamos que o “aparecer grávida” pode ser pensado como uma negociação implícita entre usuárias e profissionais. Sem desconsiderar os problemas no acesso a contraceptivos, consideramos que existe, relacionado a esta expressão, algo ligado ao desejo não consciente de ter filhos. Isto pode ser relacionado com a discussão de Menezes (2006), que, com base em um estudo realizado em três capitais brasileiras, aponta que é comum que as mulheres digam que não queriam a gravidez, que não pensavam nisso, que não a estavam evitando, e a gravidez “aconteceu”.
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A assistência ao recém-nascido também está contemplada nas rotinas do Programa de Saúde da Família. Nesse momento tem particular importância dar orientações sobre aleitamento materno. Sobre este tópico discutimos a seguir.
As “orientações” e o “lado da gente” Durante as primeiras semanas de vida está prevista uma visita da enfermeira, outra da dentista, além de vacinação e acompanhamento por parte de agentes comunitários. Um dos principais objetivos nesta fase é estimular o aleitamento materno exclusivo. Tanto na Agenda da Gestante quanto em outros materiais impressos distribuídos na unidade de saúde, dá-se bastante espaço a recomendações sobre aleitamento materno. Os benefícios para o bebê são destacados, são ensinadas técnicas adequadas para facilitar a amamentação, são informados direitos trabalhistas das mulheres nesse campo. Nesses materiais não parece haver motivo lógico para não se amamentar. No entanto, o aleitamento é um espaço em que os usuários resistem. A seguir, analisamos como usuários e profissionais lidam com a situação e mostramos a relação com a ideia de boa maternidade. O seguinte trecho da entrevista da enfermeira Rosa é ilustrativo da perspectiva dos profissionais e de sua relação com as metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde: “Essas metas são dadas pelo Ministério, você tem que ter um percentual ‘x’ pra cada programa, entendeu? [...] Já o aleitamento materno seria o quê? Setenta por cento taria num nível razoável. Só que, às vezes, você chega em oitenta, aí daqui a pouco você baixa pra cinqüenta, você chega a setenta. Aí você fica flutuando, porque tem a estória do mingau, da mulher que vai trabalhar, daquela que a mãe, a vizinha e a sogra: ‘Esse menino não tá ganhando peso!’ E aí vai todo o seu trabalho por água abaixo porque a mãe, a sogra, dá mesmo o mingau e acabou, é elas que mandam: ‘Eu criei os meus filhos assim, vocês ficam inventando moda’. E aí pronto [...]”.
Neste estudo encontramos que, tal como Rosa expressa, frequentemente as mães não fazem aleitamento materno e oferecem mingau à criança com a ajuda de mulheres mais velhas. No entanto, isto não é dito abertamente aos profissionais. Um exemplo é o que aconteceu com o recém-nascido Tadeu. No mesmo dia em que a família voltou orgulhosa do posto de saúde - após ter dado vacinas e ter tido uma consulta com a enfermeira - vi Dona Aurelina ajudando a nora Cristiane a dar mingau a Tadeu. Dona Aurelina considerava que, com a alimentação que tem, uma mulher “pobre” como Cristiane não poderia alimentar uma criança, e que por isso era melhor dar mingau. Quando perguntei se tinha conversado sobre isso com os profissionais do posto, ela disse que não: “Não é para falar disso com médico, eles não entendem o lado da gente”. Argumentamos aqui que a dificuldade para revelar a não adesão ao aleitamento materno tem a ver com sua associação à boa maternidade. O seguinte relato envolvendo Lucineide, a amiga Cláudia e Milton, o esposo de Cláudia, é ilustrativo: “Lucineide falou sobre Cláudia, uma colega que tem um filho de três meses. Comentou que o menino está muito gordo e que talvez fosse porque ela começou a dar mingau, suco e outras coisas, poucos dias depois do menino chegar do hospital. Perguntei se Cláudia tinha parado de amamentar. Lucineide disse que não sabia (pareceu-me que Lucineide preferia não afirmar isso), mas que ela tinha aconselhado Cláudia a dar só peito até os seis meses e que Cláudia tinha falado: ‘Mas quando eu sair, o que é que eu vou fazer? Ele vai ficar com fome?’ E Lucineide tinha dito: ‘Não, enquanto ele mamar, você tem que levar pra onde você for’. E que Cláudia respondeu que ela não ia conseguir fazer isso. Então, Lucineide achava que era por essa razão que Cláudia tinha dado logo comida para o bebê. Comentou também que as pessoas preferem dar mingau, porque assim a barriga fica pesada e a criança não fica acordando durante a noite.” (Notas de campo)
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No meio desta conversação percebi que Cláudia é esposa de Milton, alguém a quem já conhecia. A primeira vez que falei com ele, ele estava passeando com o filho de dois meses – a minha gravidez já era visível5 – e, sem que eu perguntasse, comentou que o filho estava gordo porque só se alimentava com leite materno. A fala de Milton e o relato de Lucineide mostram quão valorizado é o aleitamento materno exclusivo. Por outro lado, as preocupações de Cláudia mostram quão difícil é manter esta prática. Embora esteja colocado como uma prioridade para profissionais de saúde, algumas observações indicam que eles dedicam pouco tempo a conversar sobre os múltiplos aspectos envolvidos no aleitamento materno: “Fiquei na sala de espera conversando com uma senhora que estava com uma criança. Ela falou que ia conversar com a médica, pois a mãe da criança não está tendo leite suficiente para amamentar. Perguntei o que ela era da criança, e ela disse que era avó, mas que a mãe da criança (que é sua filha) mora com ela. Depois de alguns minutos ela foi chamada pela médica. Foi atendida em pé e com a porta aberta, um atendimento de menos de três minutos. Quando saiu falou que a médica tinha dito para não fazer nenhum tipo de complementação na alimentação do bebê, que a mãe tem leite sim, que ‘o problema está na cabeça da mãe’.” (Notas de campo)
Esta troca pode ser pensada como um momento de cuidado onde a médica dá uma orientação e ouve pouco a mulher que a procura. O projeto de pessoa parece restrito a alguém que precisa receber as informações adequadas. Os aspectos práticos e emocionais não são contemplados. Aqui mostramos que, seguindo recomendações do Ministério da Saúde, os profissionais consideram que o aleitamento materno é a melhor alternativa para a criança, sem considerar quais podem ser as implicações desta prática para as mulheres e suas famílias. Encontramos aspectos em comum com o estudo de Azeredo et al. (2008), que, ao comparar perspectivas dos profissionais e das mães sobre o aleitamento, identifica que ambos os grupos apontam a imunização da criança como vantagem da amamentação. As diferenças aparecem em relação com as causas do desmame precoce. Segundo as mães, este se deve ao leite “fraco” e porque elas precisam retornar ao trabalho. Os profissionais fazem referência à falta de informação – algo que a própria equipe deveria oferecer – e à falta de interesse. Em Prainha os profissionais dirigem suas ações às mães. Os homens não são incluídos nas ações de saúde. Deles se espera que deem assistência, especialmente financeira. No entanto, entre os usuários, as decisões ligadas com o aleitamento são tomadas não só pela mãe, mas por parentes, incluindo outras mulheres e, também, parceiros - como no caso de Milton -, apesar de que estes não são incluídos nas práticas dos profissionais. Por outro lado, os usuários têm outras preocupações, relacionadas com a viabilidade do aleitamento materno exclusivo. As mulheres e suas famílias fazem referências a situações práticas com as quais precisam lidar e que, às vezes, as impedem de amamentar os filhos. No entanto, para elas, também é importante o acesso aos profissionais e contar com a aceitação deles, por isso não declaram abertamente “o lado da gente”. Isto mostra que, no cotidiano, as práticas de cuidado envolvem negociações que integram a perspectiva dos profissionais – dar orientações, seguir rotinas planejadas com base em ideias que têm apoio no conhecimento biomédico – com a perspectiva dos usuários: a necessidade de resolver problemas práticos e, 614
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Vania Bustamante realizou trabalho de campo durante a maior parte de sua gravidez.
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ao mesmo tempo, de se sentirem reconhecidos pelos profissionais de saúde. Contudo, é importante lembrar que o cuidado se constrói em relações desiguais, onde os profissionais estão em posições que envolvem maior capital econômico e social.
Considerações finais Neste trabalho argumentamos que existe cuidado em todos os contatos entre profissionais e usuários, na medida em que nestes se constroem projetos de pessoa. Assim, as características do cuidado mudam constantemente. No entanto, aqui mostramos que existem situações estruturais que favorecem determinadas práticas de cuidado. Os profissionais possuem maior capital simbólico e econômico e, portanto, as suas orientações e práticas são mais valorizadas que as dos usuários. Aqui mostramos que os profissionais priorizam os aspectos discursivos e buscam seguir rotinas planejadas, tendendo a desvalorizar os comportamentos dos usuários que não se adéquam às suas expectativas. Em lugar de procurar entender o sentido do comportamento dos usuários, os profissionais consideram o ‘não seguir as orientações’ como falta de interesse ou indicador de falta de estrutura familiar. As práticas são construídas a partir desta perspectiva - que aqui denominamos projeto parcial de pessoa - onde a pessoa é avaliada a partir de um único aspecto. O desejo - por exemplo, em relação com a gravidez - ou a autonomia para decidir sobre a alimentação do bebê não são contemplados. Assim, os profissionais oferecem consultas rápidas onde dão orientações sem ouvir “o lado” dos usuários. Identificamos ambiguidades e contradições entre os profissionais, que requerem maior estudo. Em alguns momentos parecem mais preocupados em cumprir as rotinas do que em investir no contato com os usuários, como quando a médica atende rapidamente uma avó preocupada com a dificuldade da filha para amamentar a neta recém-nascida. Isto pode ser relacionado com a frustração que os profissionais expressam, não só porque consideram que as mulheres não seguem as orientações, mas porque pensam que outros profissionais não valorizam o trabalho feito por eles, como quando Rosa afirma que “na hora ninguém olha para isso”, em referência ao Cartão da Gestante que é preenchido durante o pré-natal. Pensar no cuidado como construção de projetos de pessoa e procurar entender como o trabalho se insere nos projetos que os profissionais têm para si é uma possibilidade analítica importante para aproximar-se da experiência dos mesmos. Os usuários se relacionam com os profissionais adotando estratégias próprias, onde predominam as referências à espontaneidade e corporalidade, que se contrapõem ao planejamento e às práticas discursivas dos profissionais. Assim, os usuários buscam dar respostas adequadas a problemas práticos. Para isto também é importante o conhecimento dos profissionais. Por outro lado, os usuários valorizam o acesso aos profissionais porque reconhecem o alto valor social que estes têm. Pensando no cuidado na perspectiva que aqui se propõe, podemos questionar até que ponto a falta de êxito técnico – gravidez não planejada ou não adesão ao aleitamento – supõe problemas. A maneira como os usuários se cuidam (aparecendo grávida, não amamentando) pode responder a necessidades práticas ou ser parte de estratégias para lidar com os próprios desejos e as limitações da realidade. Contemplar isto é central para a construção de práticas de saúde que, ao mesmo tempo, permitam construir projetos de felicidade e de pessoa genuínos. Neste ponto há complementaridade entre o conceito aqui proposto e o trabalho de Ayres. A construção de cuidados que contemplem a perspectiva dos usuários demanda incluir, nas ações de saúde, não apenas a perspectiva das mulheres, mas ter um olhar ampliado para incluir os parentes, não só cônjuges ou outras mulheres, mas também parentes masculinos, tais como tios ou irmãos, e considerar que o parentesco não se restringe a consanguinidade ou a coabitação. Aqui mostramos que há grandes diferenças no tipo de presença que os parentes têm – algumas situações se restringem ao casal (como a decisão de abortar, no caso de Paula e Ed), outras incluem parentes com quem se convive (como a decisão de dar mingau a Tadeu), e outras incluem um grupo amplo de parentes e vizinhos (como o chá de bebê organizado para Alícia).
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Dito isto, é preciso acrescentar que o cuidado não pode ser pensado apenas na perspectiva das trocas entre profissionais e usuários. O conceito de cuidado aqui proposto contempla aspectos sóciohistóricos e culturais. Assim, é preciso lembrar que profissionais e usuários constroem suas práticas em condições precárias, não só as condições de trabalho dos profissionais, mas também precariedade na infraestrutura e falta de materiais de trabalho. Este contexto dificulta a construção de práticas de cuidado onde se contemple a perspectiva dos usuários e contribui para o quadro mais amplo da realidade brasileira de altas taxas de morte materna e mortalidade infantil (Rattner, 2009).
Colaboradores Vânia Bustamante é autora da tese de doutorado que deu origem a este trabalho, e redigiu o artigo. Cecília Anne McCallum orientou a pesquisa e participou da redação e revisão final do artigo. Referências AQUINO, E.M. et al. Adolescência e reprodução no Brasil: a heterogeneidade dos perfis sociais. Cad. Saude Publica, v.19, supl.2, p.377-88, 2003. AYRES, J.R.C.M. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc., v.18, supl.2, p.12-23, 2009. ______. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.6, n.1, p.6372, 2001. ______. Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.14, p.73-92, 2004a. ______. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc., v.13, n.13, p.16-29, 2004b. AZEREDO, C.M. et al. Percepção de mães e profissionais sobre aleitamento materno: encontros e desencontros. Rev. Paulistana Pediatr., v.26, n.4, p.336-44, 2008. BECKER, H. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1994. BEMFAM. Sociedade Civil Bem-estar Familiar no Brasil. Brasil, pesquisa nacional sobre demografia e saúde. Rio de Janeiro: BEMFAM/DHS, 1997. BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. ______. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. BRASIL. Ministério da Saúde. Pré-natal e puerpério: atenção qualificada e humanizada. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. (Manual técnico). ______. Ministério da Saúde. Guia prático do Programa de Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. ______. Ministério da Saúde. Agenda de compromissos para a saúde integral da criança e redução da mortalidade infantil. Brasília: Ministério da Saúde, 1997a. ______. Ministério da Saúde. Saúde da família: uma estratégia para a reorganização do modelo assistencial. Brasília: Ministério da Saúde, 1997b. BUSTAMANTE, V. Cuidado infantil e construção social da pessoa: uma etnografia em um bairro popular de Salvador. 2009. Tese (Doutorado) – Pós Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009. CARVALHO, M.F. et al. Acompanhamento do crescimento em crianças menores de um ano: situação nos serviços de saúde em Pernambuco, Brasil. Cad. Saude Publica, v.24, n.3, p.675-85, 2008.
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THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, v.27, n.4, p.649-69, 1993. TOREN, C. Ethnography: theoretical background. In: RICHARDSON, J.T.E. (Ed.). Handbook of qualitative research methods for psychology and the social sciences. London: BPS, 1997. p.102-12. VICTORA, C. et al. Estudo longitudinal da população materno-infantil da região urbana do Sul do Brasil, 1993: aspectos metodológicos e resultados preliminares. Rev. Saude Publica, v.30, n.1, p.34-45, 1997.
BUSTAMANTE, V.; MCCALLUM, C.A. El cuidado de grávidas y bebés en el contexto del Programa de Salud de la Familia: un estudio etnográfico. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.607-18, jul./set. 2010. Este trabajo pretende contribuir para la discusión conceptual sobre el cuidado a partir de un planteamiento etnográfico con grávidas y con bebés en un barrio popular de la ciudad de Salvador, estado de Bahia, Brasil, atendido por el Programa de Salud de la Familia. Hemos realizado entrevistas y observación participante. Con base en el análisis de dos situaciones – el descubrimiento de la gravidez con la decisión de llevarla a buen término y la lactancia –comparamos la perspectiva de los profesionales con la de los usuarios. Argumentamos que para ambos, el cuidado incluye la construcción permanente de proyectos de persona. Los profesionales centran ls intervenciones en las mujeres tratando de dar orientaciones y aplicar rutinas planeadas, los usuarios hacen referencia a comportamientos espontáneos que responden a demandas prácticas y donde la corporalidad de la experiencia es central. Las diferencias entre profesionales y usuarios se relacionan no sólo con las características subjetivas sino con las posiciones sociales que ocupan.
Palabras clave: Cuidado. Programa de Salud de la Familia. Recebido em 08/05/2009. Aprovado em 05/01/2010.
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Percursos para promoção da saúde bucal:
a capacitação de líderes na Pastoral da Criança da Igreja Católica no Brasil*
Silvia Maria Prado Lopes Queiroz1 Samuel Jorge Moysés2 Beatriz Helena Sotille França3 Julio César Bisinelli4 Simone Tetu Moysés5
.L. et et al. al. Paths Paths for for promoting promoting oral oral health: health: capacitation capacitation among among leaders leaders of of QUEIROZ, S.M.P.L. the Children’s Pastoral Mission of the Catholic Church in Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., Educ. v.14, n.34, p.619-32, jul./set. 2010.
The purpose of this evaluative study was to analyze capacitation among of the Children’s Pastoral Mission of the Catholic Church, and to identify potentials and weaknesses with regard to oral health promotion. Rapid evaluation methodology of participatory nature was used. Evaluation workshops were held, documents were analyzed, key informants were interviewed, focus groups were held and participants were observed during leader guidance training. With empowerment and comprehensiveness as the interpretative categories, content analysis was performed. Oral health was dealt with such that it was integrated with other topics, and complementary actions supported the educational activities. The pedagogical trend adopted by the institution involved the principle of empowerment. However, technical questions were given greater emphasis than were pedagogical questions. Discussions on pedagogical issues and working in networks, for capacitation, were considered fundamental points for consolidating and amplifying the action evaluated.
Keywords: Health promotion. Health education. Empowerment. Comprehensiveness. Social networks.
O propósito desta pesquisa avaliativa foi analisar a capacitação dos líderes da Pastoral da Criança da Igreja Católica e identificar potencialidades e fragilidades para promoção da saúde bucal. Utilizouse a Metodologia de Avaliação Rápida, de caráter participativo. Foram realizadas oficinas de avaliação, análises documentais, entrevistas com informantes-chave, grupos focais e observação participante de uma capacitação no Guia do Líder. Tendo como categorias interpretativas o empoderamento e a integralidade, procedeu-se à análise de conteúdo. A saúde bucal é trabalhada de forma integrada aos demais temas e ações complementares dão suporte às ações educativas. A tendência pedagógica adotada pela instituição pesquisada contempla o princípio do empoderamento. Contudo, questões técnicas tiveram maior ênfase na capacitação do que as pedagógicas. Discussões sobre questões pedagógicas e trabalho em redes, nas capacitações, foram consideradas pontos fundamentais para consolidação e ampliação da ação avaliada.
Palavras-chave: Promoção da saúde. Educação em saúde. Empoderamento. Integralidade. Redes sociais.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
* Elaborado com base em Queiroz (2008). O projeto de pesquisa foi registrado no Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e financiado pelo CNPq. 1 Instituto Federal do Paraná. Rua Augusto Severo, 1001, apto. 502, 80.030-240. silvia.queiroz@ifpr.edu.br 2-5 Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
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Introdução As sucessivas Cartas da Promoção da Saúde (Brasil, 2002) têm, como um de seus núcleos filosóficos, o conceito de potencialização ou empowerment. Este conceito, usualmente traduzido no Brasil como empoderamento, resgata a dimensão da educação em saúde, porém, mais do que repassar informações e induzir a determinados comportamentos, visa um aumento do poder político por parte de indivíduos e comunidades, capacitando-os para atuarem como atores diretos de sua própria transformação social (Carvalho, 2004; Buss, 2000). Contudo, alguns autores afirmam que o termo empoderamento pode ser utilizado com diversos sentidos, servindo a diferentes objetivos. Pode estar ligado a processos de mobilização e práticas para promover a autonomia, a consciência crítica e a melhora das condições de vida de grupos e comunidades. Por outro lado, pode referir-se a ações que se destinam a promover a integração dos excluídos em sistemas precários e ações sociais assistencialistas, que não contribuem para organizálos (Gohn, 2004). O termo pode ser utilizado, ainda que no sentido de autonomia, para sugerir que as pessoas utilizem cada vez mais recursos próprios e/ou das comunidades, justificando a diminuição de recursos estatais na prestação de serviços sociais e de saúde, em tempos de ajustes neoliberais (Carvalho, 2004). Neste trabalho, o empoderamento foi tomado como categoria interpretativa, enquanto um processo de capacitação (aquisição de conhecimentos) e de poder político, que procura possibilitar que indivíduos e coletivos aumentem o controle sobre os determinantes da saúde, para melhorá-la (Buss, 2000; World Health Organization - WHO, 1986). Ao buscar as formas de operacionalizar esse conceito, a própria Carta de Ottawa destaca a necessidade de total e constante acesso à informação e à educação sanitária para o reforço da ação comunitária, bem como para o desenvolvimento de aptidões pessoais (WHO, 1986). Contudo, dependendo da tendência pedagógica adotada, um processo educativo pode aproximar-se ou afastar-se do conceito de empoderamento. Wallerstein (WHO, 2006) afirma que o processo de empoderamento tem sido beneficiado, em todo o mundo, pela filosofia da educação libertadora de Paulo Freire. A pedagogia libertadora ou da problematização possibilita uma prática educativa mais participativa e dialógica, onde a realidade das relações do homem com a natureza e com os outros homens é questionada visando sua transformação (Pereira, 2003). Já a educação tradicional, denominada por Freire de “bancária”, onde o educando recebe passivamente os conhecimentos, não se mostra adequada para tal fim, já que, dentre suas repercussões em nível individual e coletivo, estão: a falta de atitude crítica e problematização da realidade, o individualismo e falta de participação, submissão à dominação e a manutenção do status quo (Bordenave, 1989). A maioria das propostas educativas em saúde tem sido calcada na transmissão de conhecimento especializado para uma população cujo saber é desvalorizado ou ignorado, distanciando-as do conceito de empoderamento (Meyer, Mello, Ayres, 2006). Outra questão importante é que elas acontecem majoritariamente de forma isolada e desconectada de ações que lhes deem suporte, ferindo outro princípio da promoção da saúde: a integralidade. Esse princípio orienta que as iniciativas fomentem a saúde física, mental, social e espiritual, em sua ampla determinação, o que só pode ser alcançado por meio de ações que ultrapassem o setor saúde (Westphal, 2006). No que se refere à promoção da saúde bucal, revisões da literatura destacam as limitações de intervenções educacionais para produzirem mudanças sustentáveis em longo prazo ou para reduzirem iniquidades em saúde. Uma das maiores críticas tem sido o desenvolvimento de programas isolados de outras iniciativas em saúde, utilizando abordagem estreita e segmentada, separando a boca do corpo. O desafio é a inserção de tópicos de saúde bucal em estratégias mais amplas de promoção da saúde, em que os profissionais trabalhem integrados, utilizando a abordagem dos fatores comuns de risco (Sheiham, Moysés, 2000) e envolvendo membros da comunidade de maneira participativa. As ações educativas devem estar conectadas a uma série de ações complementares em saúde pública, para promover saúde bucal de forma sustentável (Mouradian, Huebner, Ramos-Gomes, 2007; Watt, 2007; Dickson, Abegg, 2000). Dessa forma, as associações de base comunitária e do setor de voluntariado são apontadas como canais potencialmente importantes para se atuar em promoção da saúde, incluindo saúde bucal 620
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(Sheiham, 2004). Dickson e Abbeg (2000) sustentam que o envolvimento de potencialidades locais no planejamento e implementação de iniciativas de desenvolvimento comunitário e de melhora da saúde, não é apenas um imperativo ético, mas também um imperativo pragmático. Eymard Vasconcelos (1997) ressalta que, no Brasil, na maioria das regiões, é impossível fazer um trabalho comunitário em saúde sem se relacionar com as várias organizações populares ligadas à Igreja e com seus agentes, e que estes podem ser importantes aliados, sendo preciso conhecer seu trabalho. A Pastoral da Criança da Igreja Católica é uma dessas organizações que tem se destacado nacional e internacionalmente por atuar na promoção da saúde de gestantes e crianças até seis anos. No ano 2000, a promoção da saúde bucal passou a fazer parte de suas ações básicas. Este estudo objetivou aprofundar o conhecimento sobre o processo de capacitação e materiais de apoio utilizados pelos líderes da Pastoral da Criança, a fim de identificar suas potencialidades e fragilidades para a promoção da saúde bucal.
Método O universo de referência da pesquisa foi a Pastoral da Criança na diocese de Curitiba. Esta diocese abrange, além do município de Curitiba, outros nove municípios vizinhos, onde atuam 1.053 líderes comunitários. Foi utilizada a Metodologia da Avaliação Rápida proposta pelo Centro para o Desenvolvimento e Avaliação de Políticas e Tecnologia em Saúde Pública (CEDETES), Colômbia, para avaliação de efetividade de intervenções em promoção da saúde. Essa metodologia busca desvelar não apenas o cumprimento dos objetivos da intervenção, mas também as mudanças esperadas e não esperadas como consequência da mesma, bem como os fatores que têm contribuído para esses resultados, alcançando uma compreensão dos fenômenos encontrados a partir de uma análise do contexto, processo e resultados (Salazar, 2004). Tem como pressupostos: a redução da brecha entre informação e ação, tendo como usuários primários os tomadores de decisão; a consideração do contexto e cenário político, na análise dos resultados; a participação de todos os interessados no processo avaliativo. A opção por uma metodologia participativa se apoia na ideia de que a avaliação em Promoção da Saúde deve ser coerente com seus princípios. Tendo como um de seus pilares o empoderamento, a avaliação deve se dar com base em uma lógica emancipatória, participativa e colaborativa. Deve tornar-se um processo de construção de sujeitos, contribuindo para o fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações (Brandão, Silva, Palos, 2005). Para tanto, são previstos os sete passos percorridos nesta pesquisa avaliativa. Primeiramente, realizou-se a caracterização do projeto para avaliação. Nesta etapa, foi construído o marco lógico da intervenção e realizada a análise do contexto. O segundo passo foi o estudo da viabilidade e factibilidade da avaliação, com a definição da equipe avaliadora e seus interesses no processo avaliativo. Fizeram parte desta equipe, 16 atores-chave, que participaram da implementação e que atuam na ação avaliada: formuladores de políticas da Pastoral, representantes dos diversos níveis de gestão, capacitadores e líderes que atuam diretamente com as famílias acompanhadas. Para a realização da sistematização (Salazar, 2004), a equipe avaliadora recuperou e organizou todo o material disponível: projeto original, relatórios, material fotográfico, bem como os materiais didáticos utilizados nas capacitações e atividades dos líderes. Numa primeira Oficina de Avaliação, empreendeu-se um resgate histórico da ação e discussão do marco teórico, aprofundando conceitos de educação em saúde e promoção da saúde. Segundo Wallerstein, Maltrud e Polacseck (1997), nesta fase é importante compartilhar uma história e criar uma visão comum de futuro, neste caso, o perfil esperado para um líder promotor de saúde bucal. Nessa oficina, realizou-se o terceiro passo da avaliação: definição do alcance da avaliação. Foram refinados a pergunta e objetivo da avaliação. Cumpriu-se ainda, nessa oficina, o quarto passo, com a definição das fontes e métodos de coleta de dados. O quinto passo foi o trabalho de campo. Procedeu-se à análise documental para se identificar a tendência pedagógica e conteúdos relacionados à saúde bucal nos materiais de apoio utilizados pelas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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lideranças durante as capacitaçþes e atividades. Foram realizadas entrevistas com trĂŞs informantes-chave na Pastoral da Criança: Coordenação de SaĂşde Bucal, para aprofundar questĂľes tĂŠcnicas; Assessoria de Capacitaçþes, para questĂľes pedagĂłgicas; e Coordenação da diocese de Curitiba, para levantar como essas questĂľes se configuravam na prĂĄtica diĂĄria. Realizou-se a observação participante de uma capacitação no Guia do LĂder, principal material de apoio utilizado nas capacitaçþes e nas atividades das lideranças. Foram realizados, ainda, dois grupos focais com nove e sete lĂderes, respectivamente, contemplando-se, dessa forma, o princĂpio da triangulação (Minayo, Assis, Souza, 2005). O sexto passo foi o processamento e anĂĄlise da informação. Os conteĂşdos das entrevistas e grupos focais foram gravados e transcritos, sendo reunidos com os demais registros para constituição do â&#x20AC;&#x153;corpusâ&#x20AC;? de pesquisa. Como categorias interpretativas foram elencados dois princĂpios da Promoção da SaĂşde definidos pela Organização Mundial de SaĂşde (WHO, 1998): o empoderamento e a integralidade, a partir dos quais foi realizada a anĂĄlise de conteĂşdo (Bardin, 1977). Para desvelar como esses princĂpios se apresentam na formação e atuação dos lĂderes, foram utilizadas duas categorias de anĂĄlise: Â&#x2021; WHQGrQFLD SHGDJyJLFD DGRWDGD QRV PDWHULDLV H FDSDFLWDo}HV H[SORUDQGR R SULQFtSLR GR empoderamento; Â&#x2021; DERUGDJHP GRV WHPDV GH VD~GH EXFDO H VXD FRQH[mR FRP RXWURV WHPDV H Do}HV YLQFXODGDV DRV determinantes ampliados da saĂşde, para a anĂĄlise da integralidade. A equipe avaliadora reuniu-se em uma segunda Oficina de Avaliação para a anĂĄlise e interpretação dos resultados. Foram levantadas sugestĂľes para superação dos fatores dificultadores e potencialização dos fatores facilitadores da ação avaliada. O sĂŠtimo passo foi a comunicação dos resultados e tomada de decisĂŁo. Nesta etapa foram identificados os decisores e seus interesses de informação. Definiram-se os objetivos e estratĂŠgias para comunicação dos resultados. Foram realizadas reuniĂľes da coordenadora da equipe avaliadora com alguns dirigentes da Pastoral da Criança em nĂvel nacional e da diocese pesquisada. Discutiramse os principais resultados, conclusĂľes e recomendaçþes da equipe de avaliação. Foi elaborado um resumo executivo, com formato reduzido e linguagem simples, a ser disseminado nos demais nĂveis hierĂĄrquicos da instituição por meio das reuniĂľes mensais de coordenaçþes. Em cumprimento aos princĂpios ĂŠticos, o projeto foi registrado e aprovado no ComitĂŞ de Ă&#x2030;tica em Pesquisa. Foram obtidos os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido pelos diversos sujeitos participantes.
Resultados e discussĂŁo O conceito de empoderamento e a tendĂŞncia pedagĂłgica adotada A base do trabalho da Pastoral da Criança ĂŠ a capacitação de lĂderes comunitĂĄrios para que possam melhorar seus conhecimentos sobre saĂşde, nutrição, educação e cidadania, e depois compartilhar o saber com as famĂlias que acompanham. Ainda que o resultado deste esforço se limitasse a prover informaçþes bĂĄsicas sobre estes temas para largos segmentos da população, considerando os 1.053 lĂderes atuantes na diocese, esta proposta jĂĄ poderia ser relacionada ao processo de potencialização, por integrar o direito de tomar decisĂľes informadas e beneficiar aprendizagens posteriores (Meyer, Mello, Ayres, 2006). Contudo, considerando o anteriormente exposto sobre as concepçþes pedagĂłgicas e suas consequĂŞncias em nĂvel individual e coletivo, buscou-se aprofundar o conhecimento sobre os materiais de apoio e as capacitaçþes dos lĂderes, para uma anĂĄlise mais apurada de sua adesĂŁo ao conceito de empoderamento. A entrevista com a assessoria de capacitaçþes da Pastoral da Criança revelou o mĂŠtodo a ser utilizado nas capacitaçþes, bem como durante as atividades dos lĂderes: â&#x20AC;&#x153;Utilizamos uma metodologia baseada na educação popular, trabalhando teoria e prĂĄtica, uma metodologia que a gente chama de â&#x20AC;&#x153;ver, julgar, agir, avaliar e celebrarâ&#x20AC;? que ĂŠ usada na Igreja hĂĄ muitos anosâ&#x20AC;?. (entrevista 1) 622
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Por ser importante detalhar mais o contexto em que esse método se insere, tanto para situá-lo melhor sócio-historicamente, quanto para compreender o que sua adoção pode significar em termos de uma educação libertadora, recupera-se, a seguir, um pouco de seu histórico. O Concílio Vaticano II - 1962/1965 - consolidou uma nova maneira de se fazer teologia, atenta às realidades do mundo moderno. A II Conferência Episcopal Latino-Americana realizada em Medellín, em 1968, definiu três principais opções: pelos pobres, pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e pela libertação integral. No Brasil, este movimento se materializou nos grupos e nas associações operárias de inspiração cristã e nas CEB, que utilizavam, como método de trabalho, o “ver-julgar-agir” em sintonia com os ensinamentos da pedagogia do oprimido de Paulo Freire (2005). Este método esquematizado pelo padre belga Cardijn, para estimular a participação dos leigos na transformação da dura realidade do período entre guerras na Europa, foi posteriormente adotado pelos teólogos da América Latina. O método faz ponte entre educação e vida, por meio de três momentos: (VER) partir da realidade, (JULGAR) formar consciência crítica sobre os problemas, (AGIR) transformar a realidade. A reunião dos bispos da América Latina em Puebla, em 1972, veio confirmar a opção pelos pobres e também pelo método (Boran, 1981). No contexto sociopolítico e eclesial de 1992, em que ocorreu a Conferência de São Domingos, República Dominicana, os bispos e demais participantes foram formalmente proibidos de trabalhar segundo o método indutivo do “ver, julgar e agir”, sendo-lhes imposto um método dedutivo característico da teologia clássica (Boff, Ramos-Regidor, Boff, 1996). Recentemente, durante a preparação da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada no Brasil em 2007, levantaram-se muitas vozes para pedir explicitamente o retorno ao método (Beozzo, 2007). Diante desta polêmica percebe-se que não se trata de uma mera técnica de trabalho grupal, ao contrário, esse método tem o claro objetivo de desenvolver a consciência crítica e a autonomia dos indivíduos e grupos, o que o aproxima do conceito de empoderamento. Estas idas e vindas do método “ver, julgar e agir” refletem o que Marcondes (2007) denomina a ambiguidade da questão social na Igreja. Daí a importância da adoção de uma vertente pedagógica, nas pastorais e movimentos sociais, que permita a construção da consciência crítica e a continuidade das mudanças, mesmo em épocas de recuo da Igreja Católica a uma posição teológica mais tradicional, ou em períodos de repressão política, como a ocorrida sob os governos militares.
Análise dos materiais de apoio O Guia do Líder é utilizado tanto como roteiro das capacitações iniciais, quanto como material de apoio nas atividades educativas realizadas posteriormente. A tendência pedagógica não está descrita no material, mas algumas características indicam seu direcionamento para a vertente da problematização, utilizando a metodologia do ver-julgar-agir, que na Pastoral da Criança agrega mais duas etapas: avaliar e celebrar. Algumas dessas características são descritas a seguir.
Discussão da realidade antes da teorização e atitude dialógica No início de cada ciclo teórico da capacitação, sob o título VER, são propostas algumas questões para discussão antes do início das atividades. Essa discussão leva ao segundo passo do método, que é o JULGAR, que aqui tem o sentido de compreender melhor a realidade a ser transformada. Da mesma forma, o Guia incentiva os líderes a assumirem uma postura dialógica, procurando reconhecer a realidade, os conhecimentos e valores das pessoas como no trecho: As conversas sobre amamentação podem se basear no que a gestante e seu companheiro querem saber [...] um bom começo é conversar sobre as experiências de amamentação que a gestante conhece [...]. (Pastoral da Criança, 2007, p.34)
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Integração entre teoria e prática O Guia está estruturado de forma que, durante a capacitação, alternam-se momentos de concentração teórica e momentos de dispersão, onde os líderes em formação realizam atividades práticas em suas próprias comunidades. Ao final de cada período de concentração, é apresentada uma sugestão de tarefa para a dispersão – momento do AGIR. No início de cada nova etapa teórica, encontra-se uma série de perguntas sob o título – AVALIAR E CELEBRAR –, que estimulam o relato da realidade encontrada nas comunidades, uma avaliação da atividade realizada e a comemoração dos avanços conseguidos.
Adequação da linguagem e ilustrações ao público-alvo A linguagem utilizada em todo o material é muito clara e os conceitos técnicos foram convertidos em explicações bastante simplificadas. Observa-se que existiu um cuidado extremo para que os desenhos e fotos refletissem a realidade socioeconômico-cultural das comunidades nas quais este material será utilizado. A linguagem adotada e a consonância das fotos e desenhos com a realidade da população acompanhada são fatores extremamente positivos do ponto de vista pedagógico. Frei Betto, ao relatar uma experiência vivenciada num programa materno-infantil para mulheres faveladas, afirma: [...] os médicos falavam em “FM” e as mulheres captavam em “AM” - não conseguiam se sintonizar. Então me chamaram para ver onde estava o “curto-circuito”. Percebi que havia uma grande falha no uso do material pedagógico. O material dos médicos era sofisticado [...] As belas mulheres dos áudio visuais, as fotos de bebês tipo propaganda da Johnson etc. Diante daquilo, qual era o raciocínio das mulheres? “Não tem nada a ver comigo, esse é o mundo da patroa”. [...] hoje, no meu trabalho de educação popular, cada vez mais isto se confirma: o material pedagógico também não é neutro. (Freire, Frei Betto, 1987, p.59)
O processo de capacitação O processo de capacitação inicia-se com a capacitação no Guia do Líder e adquire caráter processual e permanente por meio: das reuniões de coordenação, jornal mensal, programas radiofônicos, capacitações em temas específicos e nas reuniões para reflexão e avaliação. Nestas, os diversos líderes de uma mesma comunidade se reúnem mensalmente para compilar os indicadores colhidos nas visitas, avaliar os resultados, discutindo os problemas encontrados e alternativas de superação. O próprio Guia indica que, nestas reuniões, deve ser utilizado o mesmo método usado nas capacitações: o “ver-julgar-agir-avaliar e celebrar”. Durante a observação participante da capacitação no Guia do Líder, constatou-se que não foram realizadas as etapas do VER, momento de buscar na realidade o tema a ser estudado, antes de iniciar a teorização. Pode-se considerar que o momento do JULGAR, no sentido de ampliar a compreensão dos determinantes maiores dos problemas, foi estimulado durante os momentos de espiritualidade e por conteúdos presentes no Guia. Logo em suas páginas iniciais, onde se aborda a “missão do líder”, encontra-se uma análise das condições de vida no país, uma citação do capítulo II da Constituição Dos direitos sociais - e vincula o trabalho dos líderes à luta por acesso a esses direitos, temas que são retomados em outros pontos do material. O AGIR esteve presente nas atividades práticas realizadas nas comunidades, porém, em menor número do que o previsto no Guia, que alterna permanentemente teoria e prática. Assim, as fases do AVALIAR E CELEBRAR, após cada atividade prática, ficaram reduzidas. Os momentos presenciais de capacitação focaram prioritariamente os conteúdos técnicos presentes no Guia. Desta forma, embora o Guia seja estruturado com tendência participativa, partindo da realidade e alternando teoria e prática, a capacitação observada adotou uma abordagem pedagógica mais tradicional.
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Nas discussões dos grupos focais, o termo “passar informação” foi corriqueiramente utilizado e alguns líderes demonstraram, em suas falas, posturas verticalizadas, características da educação tradicional: “[...] tem mãe que a gente sofre um pouco pra por na cabeça delas a importância a respeito de tudo”. (grupo focal 1)
Por outro lado, alguns líderes revelaram uma tendência dialógica, considerando o contexto da família acompanhada: “[...] as vezes a gente diz: - Aquela mãe não é interessada [...] mas por quê? Como que ta a vida daquela mãe, como é que ta a auto-estima dela, de repente ela ta com dificuldade do marido desempregado [...] ta com alguma dificuldade grande que vai daí a gente saber. Não, vamos lá. Saber trabalhar, saber conversar, saber chegar até ela”. (grupo focal 1)
Estes resultados podem estar refletindo o pouco enfoque dado ao método “ver, julgar e agir” nas capacitações, já que, como afirma Freire (2005, p.22-3): [...] se na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero objeto [...] terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da “formação” do futuro objeto de meu ato formador.
Ao ser adotada uma concepção tradicional nas capacitações, a maior probabilidade é de que os líderes a reproduzam em seu dia-a-dia, mesmo porque esta é a concepção dominante na educação formal, que vivenciaram desde sua infância. Trapé e Soares (2007), estudando as concepções de educação em saúde dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), profissionais cujas funções assemelham-se às dos líderes, também encontraram, predominantemente, posturas transmissivas, e, em menor frequência, concepções dialógicas pautadas no respeito aos conhecimentos da população. As autoras atribuíram esse resultado à ênfase no caráter técnico das capacitações, e a uma compreensão política limitada do processo educativo. Quando questionada sobre quem são os capacitadores na Pastoral da Criança, a assessora de capacitações afirmou que: “[...] são pessoas que se destacam no acompanhamento das famílias, que têm facilidade de se comunicar, que sabem manejar grupos, são pessoas que sabem ler e escrever e que conseguem, de alguma forma, reproduzir o que eles tiveram nas capacitações deles pra outras pessoas”. (entrevista 1)
Sobre a existência de capacitação pedagógica para os líderes ou para os capacitadores, declarou não existir uma formação específica: “[...] durante a capacitação do Guia do Líder existem vários momentos em que é falado o como agir, o como trabalhar com a família, mas não existe uma capacitação só pra isso, diferenciada [...] o que nós sempre orientamos nas capacitações é que eles ouçam bastante, troquem experiências e também algumas atitudes que eles devem evitar como criticar, julgar, penalizar estas famílias por não estarem entendendo suas orientações ou não seguirem o que eles falaram”. (entrevista 1)
Assim sendo, percebeu-se que existe a preocupação desta instituição com o tipo de postura educativa adotada pelo líder em seu trabalho, e, ao mesmo tempo, a Pastoral da Criança já assumiu seu caminho pedagógico ao produzir o Guia do Líder utilizando o método “ver-julgar-agir”. Buscando o “nó critico” que vem dificultando a aplicação desta metodologia, a equipe avaliadora apontou COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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a falta de formação pedagógica para os capacitadores. Avaliou-se que eles têm de compreendê-la profundamente, seus objetivos e os porquês de utilizá-la nas capacitações, tornando-se capazes de estimular esta postura pedagógica nas diversas atividades dos líderes. Abordando a capacitação dos ACS, Nascimento e Correa (2008) relatam que, visando qualificar a atuação destes profissionais, foi realizada, além da capacitação técnica, a formação pedagógica de seus capacitadores. Objetivou-se que os mesmos se apropriassem da metodologia da problematização. Esta foi adotada por potencializar a aprendizagem do aluno que, como agente de transformação social, deve ser capaz de detectar problemas reais e buscar para eles soluções originais. Ou seja, se o objetivo é formar educadores críticos e criativos, os capacitadores devem não apenas utilizar o método nas capacitações, mas reforçar a importância dessa dinâmica de trabalho durante as atividades do líder. Uma das coordenadoras entrevistadas apontou um tipo de atividade que os líderes são estimulados a realizar nas comunidades: “A Pastoral orienta a fazer roda de conversa. Não são duas ou três pessoas não. É reunir a comunidade, fazer uma roda com uma pessoa orientando, coordenando, pra ver aquilo que é necessário”. (entrevista 3)
Nos jornais mensais e na publicação “Dicas”, dirigida aos coordenadores, foram encontradas várias citações sobre esta atividade, porém, nos grupos focais e oficinas, não foram feitas referências a essa estratégia, sugerindo que sua importância precisa ser reforçada com as lideranças. Processos educativos que tenham como meta o empoderamento das comunidades demandam abordagens que valorizem a criação de espaços de participação, para identificação e análise crítica de seus problemas (Carvalho, 2004). Outro ponto levantado como dificultador da utilização do método foi a limitação de tempo nas capacitações. Os líderes afirmaram: “[...] porque a gente faz a capacitação, mas é muito tema no livro [...] muita coisa, vai corridinho”. (grupo focal 1)
Os participantes da equipe avaliadora apontaram dificuldades de abordar todos os assuntos e realizar todas as atividades previstas: “Em capacitações mais antigas eram formados grupos, feitas dramatizações sobre visita domiciliar [...] agora é tudo passado muito rápido [...] na pressa de capacitar muita gente, sendo poucos capacitadores, se perdem algumas coisas”. (oficina de avaliação 2)
A utilização do método tradicional calcado na “transmissão” de conteúdos, sem dúvida, se mostra mais rápida. Logicamente, a abertura de canais de diálogo para problematização dos conteúdos e busca de soluções demanda mais tempo. Daí a importância da discussão, com os capacitadores, do perfil de líder que se pretende formar. Enquanto a primeira abordagem se liga a um perfil mais técnico, voltado para repasse de informação, a segunda se mostra fundamental para formação de agentes de transformação social (Nascimento, Correa, 2008; Pereira, 2003). Ainda em relação ao empoderamento, dois outros depoimentos mostraram-se importantes. O primeiro refere-se à percepção dos líderes sobre o impacto das ações: “Tem umas (famílias) que acham que a gente só por ser líder não é nada, elas acreditam mais na agente comunitária do que na líder”. (grupo focal 1)
Quando foi discutido sobre a busca de parcerias para a realização das atividades, a percepção se repetiu:
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“Pra gente ir atrás como uma simples líder procurar este apoio [...] então teria que ser de cima, porque a gente não vai ter força”. (grupo focal 2)
Os termos ‘só por ser líder’ e ‘uma simples líder’ denotam a percepção de impotência por parte destes entrevistados e revelam, de certo modo, um paradoxo diante do conceito de liderança. Durante a segunda oficina de avaliação, analisando as causas desta percepção, o grupo concluiu que a autoestima dos líderes está baixa, e que deveria ser feito um trabalho que levasse ao reconhecimento do valor pessoal. A fala de uma coordenadora é bastante esclarecedora: “O valor pessoal precisa ser resgatado, que se chama cidadania [...] você descobrir que é um cidadão. Esta fala - eu sou só uma líder - é de uma pessoa que não se identificou, não se descobriu. Então nós, capacitadores, temos que trabalhar a auto-estima, o valor pessoal e levar que ela consiga identificar-se [...] eu faço parte de uma nação, um país, com direitos, acesso”. (oficina de avaliação 2)
Este depoimento vem ao encontro do que Paulo Freire denomina assumir-se: Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos [...] ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos [...]. (Freire, 2004, p.41)
A própria OMS (WHO, 1984) reconhece que garantir o acesso à informação, ampliando o conhecimento em saúde, sem aumentar a capacidade de controle e perspectivas de mudança, apenas contribui para gerar ansiedade e fomentar a sensação de impotência. Ou seja, apenas o conhecimento técnico não é suficiente para o empoderamento. Mais uma vez, a resposta a este problema pode estar na estratégia utilizada na formação e atuação dos líderes. Uma das líderes presentes na segunda oficina declarou: “Eu acho que isto vem acontecendo mais por falta do nosso “ver-julgar e agir” e a falta de mais avaliações e reflexões em nossas reuniões”. (oficina de avaliação 2)
Esta líder constatou, empiricamente, que a otimização na utilização deste método é o caminho necessário e suficiente para a superação desta sensação de impotência. Boufleuer (1991) aponta o método dialógico como forma de devolver a autoconfiança aos educandos. Só por meio da reflexão e ação sobre uma realidade a ser recriada, pode se dar o processo de tornar-se sujeito.
Integralidade das ações Outro ponto fundamental diz respeito à forma como a saúde bucal é abordada nos materiais e capacitações. A análise dos materiais de apoio mostrou que os conteúdos específicos de saúde bucal não formam uma sessão à parte, mas foram sendo introduzidos em cada fase da gestação e do desenvolvimento da criança. Como anteriormente comentado, as ilustrações e orientações são adequadas ao contexto socioeconômico, contemplando diferenças regionais. Desta forma, considerase que esses materiais conseguem recolocar a boca dentro do corpo e esse dentro do contexto social das pessoas (Moysés, Kusma, 2008). Alguns temas são recorrentes nos materiais e depoimentos na Pastoral da Criança: aleitamento materno, alimentação saudável, higiene corporal, prevenção de acidentes e violência doméstica. Estes são fatores comuns de risco para diversos problemas, como: desnutrição. obesidade, cárie e trauma dentário. Assim sendo, constata-se que o trabalho realizado utilizando a abordagem de fatores de risco/fatores de saúde comuns a diversos problemas acaba por favorecer a conexão entre saúde bucal e geral, promovendo a integralidade (Watt, 2007; Sheiham, Moysés, 2000). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Durante os grupos focais foram levantados os outros temas trabalhados nas capacitações que podem promover saúde bucal. O tema alimentação foi o mais relacionado pelos líderes: “Tem tudo a ver. Tem que ter uma alimentação saudável, comer bastante verduras, frutas [...] A alimentação é a base, seria importante fazer esse reforço”. (grupo focal 2)
Foram correlacionados, ainda, problemas bucais e gerais: “[...] não adianta só tratar a desnutrição se não tem a higiene na boca também. A desnutrição pode ser dos próprios dentes, por causa dos dentes estragados”. (grupo focal 2)
Contudo, percebeu-se certa limitação na capacidade dos líderes em fazer estas conexões, indicando a necessidade de se aprofundarem estas relações durante as capacitações iniciais e na capacitação específica de saúde bucal que será estruturada. Finalmente, é importante ressaltar a existência de ações complementares, que dão suporte às ações básicas, como a alfabetização de jovens e adultos, voltada às próprias líderes e às famílias acompanhadas. Os programas de geração de renda são adaptados às características regionais e, na diocese pesquisada, acontece o projeto de qualificação das líderes e mães em serviços domésticos. Outra ação complementar é a formação para o controle social. O objetivo do desenvolvimento desta estratégia é a capacitação de um articulador no Conselho de Saúde, em cada município onde a Pastoral da Criança atua. O articulador é responsável pelo preenchimento e envio mensal da Folha de Acompanhamento do Conselho de Saúde. Percebeu-se a preocupação desta organização com a integralidade das ações e a criação de um ambiente domiciliar e comunitário que dê suporte às ações educativas. Sabe-se, porém, que este princípio da promoção da saúde está intimamente ligado a outro, como afirma Buss (2000), as políticas saudáveis têm, na intersetorialidade, sua ferramenta operacional. Todas as Cartas da Promoção da Saúde (Brasil, 2002) foram unânimes em indicar a construção de alianças para o enfrentamento de desafios tão amplos. A complexidade da realidade encontrada foi citada nos grupos focais como fator dificultador do desenvolvimento das ações, sendo estampada na fala de uma líder: “Eu faço visita de manhã às vezes. E daí você vê o marido dela lá. – Há, hoje to sem ânimo, meu marido já correu fazer entrevista, correu atrás de emprego não conseguiu [...] uma casa de quatro paredes, duas peças, sete pessoas dentro da casa. O marido não consegue emprego, pela condição dele [...] já vem da baixa escolaridade [...] Então às vezes essa mãe tem isso de ter preguiça [...] porque a vida dela não é um mar de rosas. Não tem escova, não tem pasta, não tem uma alimentação saudável, não tem um sabão pra lavar a roupa, não é verdade? A realidade é dura”. (grupo focal 2)
A declaração de uma coordenadora alia-se a esta constatação, atestando ainda a insuficiência das ações educativas para a concretização do lema da organização - “para que todas as crianças tenham vida e vida em abundância”: “[...] a gente percebe que esta questão do líder chegar [...] eu tenho para ensinar, vocês vão aprender, isso não funciona. O soro caseiro é uma coisa que funcionou bastante, porque é uma técnica simples de se fazer e que surtiu efeito contra a desidratação [...] hoje existem outros problemas que não é uma “tecnicazinha” [...] falar em anemia, não envolve só a colherzinha do soro e fazer com a água [...] tem que trabalhar a questão do ferro, como é que está o acesso da criança ao serviço de saúde, que alimentação a mãe está dando pra criança? Então, são outros fatores que envolvem a questão educativa e uma mudança de comportamento, que não é só o líder chegar lá com uma orientação que ele vai conseguir mudar’”. (entrevista 1)
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Estas considerações vêm ao encontro dos questionamentos de Meyer e colaboradores quanto à necessidade dos processos educativos incorporarem as questões de vulnerabilidade: O componente social da vulnerabilidade envolve o acesso às informações, as possibilidades de metabolizá-las e o poder de incorporá-las a mudanças práticas na vida cotidiana, condições estas diretamente associadas ao acesso a recursos materiais, a instituições sociais como escola e serviços de saúde, ao poder de influenciar decisões políticas [...] dentre outras, que precisam então ser incorporadas às análises de vulnerabilidade e aos projetos educativos às quais elas dão sustentação. (Meyer, Mello, Ayres, 2006, p.1340)
Assim sendo, buscou-se conhecer mais profundamente como os mecanismos de capacitação dos líderes têm fomentado o estabelecimento de parcerias para promoção de saúde. Ao trabalhar a questão do planejamento das atividades, o Guia do Líder (Pastoral da Criança, 2007, p.137) coloca as seguintes questões: “Que recursos temos nas nossas comunidades? Que pessoas podem nos ajudar em nossa missão?”. Quando orienta a organização das Reuniões para Reflexão e Avaliação (p.247), traz outros questionamentos: “Que outras ações para essa ou outras famílias devem ser iniciadas? Quem pode ajudar?” E afirma que, para solucionar problemas que afetam várias famílias, pode ser necessário reunir entidades da comunidade. Nos grupos focais, os líderes manifestaram a necessidade de se buscarem parceiros para realização das ações, porém observou-se que as parcerias indicadas dirigiam-se majoritariamente à realização das atividades educativas: “Do próprio posto de saúde se a gente conseguisse fazer com que uma vez ou outra eles mesmos fossem lá e falassem [...] ou poderia ser até da universidade [...] pra vir alguém de fora fazer alguma coisa, porque a verdade é que a gente não consegue fazer tudo”. (grupo focal 2)
As coordenações divergiram quanto ao papel das lideranças na busca de parceiros, bem como sobre a abordagem deste tema nas capacitações. Uma das coordenações afirmou: “[...] o líder quando é capacitado ele é orientado a nunca trabalhar sozinho, sempre procurar parcerias [...] com a unidade de saúde, com o conselho tutelar quando necessário [...] e isto é passado em capacitação. Inclusive se orienta que se trabalhe com as associações de moradores porque dali surgem melhorias pra própria comunidade. Aconselhamos que os nossos líderes participem de seus conselhos locais, distritais e municipais... porque a comunidade sozinha não resolve...ela tem que se unir a outras entidades, a outros órgãos, pra poder melhorar suas condições”. (entrevista 3)
Outra coordenação reiterou a necessidade do trabalho em redes: “[...] se não tiver a comunidade ajudando em outros sentidos, a associação de moradores, a prefeitura, o serviço de saúde, se não estiverem envolvidos os outros setores da comunidade [...] a gente vai ter menos resultados do que a gente espera”. (entrevista 1)
Afirmou, contudo, que esta responsabilidade extrapola a função dos líderes e que este assunto não é focado na capacitação deles: “[...] como ele é um voluntário e vai ter determinado tempo do mês pra fazer este trabalho, ele tem as outras instâncias da Pastoral que vão ter que estar atuando neste sentido [...] os coordenadores têm uma capacitação específica que foi montada justamente pra ele ter esta visão do todo. O líder não tem este papel, não por incapacidade, mas ele já tem as suas atividades [...] então os coordenadores é que tem esse papel de movimentar a comunidade. E
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aí quando ele percebe nas reuniões de reflexão e avaliação quais são os problemas, ele tem que chamar as outras instâncias da comunidade pra trabalhar junto”. (entrevista 1)
Na segunda oficina, quando estes resultados foram analisados, o grupo apontou que a construção de redes deve ser um trabalho descentralizado. Enfatizou-se que todo trabalho na Pastoral é conjunto, cada nível tem de buscar as parcerias correspondentes ao seu nível de atuação. As lideranças e coordenações de comunidade buscam parceiros nas comunidades em que atuam, fazem contato com a unidade de saúde, grupos de jovens e outros recursos locais. Já as demais coordenações devem fazer contatos maiores, como com secretarias de saúde e prefeituras.
Conclusões Concluiu-se que a tendência pedagógica adotada pela instituição pesquisada está em sintonia com o princípio do empoderamento. Porém, existe a necessidade de se aprofundarem as questões pedagógicas, especialmente durante a formação dos capacitadores dos líderes, para que a abordagem educativa assumida possa ser evidenciada de modo mais efetivo na prática. Considera-se que a inserção da saúde bucal na Pastoral da Criança conseguiu superar uma falha grave e constante em outras propostas educativas, ao integrar este tema aos demais conteúdos e ações já existentes. A constatação de que os problemas sociais tornaram-se muito mais complexos em relação ao início do trabalho da Pastoral da Criança há 26 anos, leva à conclusão de que a formação e atuação focadas na informação de conteúdos técnicos não têm mais o impacto esperado. Hoje, a capacitação tem de ultrapassar a dimensão técnica e alcançar uma dimensão política, formando lideranças capazes de acessar políticas públicas e buscar parcerias para construção de redes que deem suporte e sustentabilidade às suas ações. Considera-se que a metodologia avaliativa utilizada oportunizou um processo pedagógico participativo que favoreceu o empoderamento e desenvolvimento de capacidades de reflexão e ação da equipe avaliadora. Um movimento em que pessoas avaliam as próprias ações e tentam transformar o seu cotidiano de maneira mais confiante nas habilidades e capacidades desenvolvidas ao longo do processo coletivo.
Colaboradores As autoras Silvia Queiroz e Simone Moysés participaram da elaboração do artigo, de sua discussão, redação e revisão do texto. Os autores Samuel Moysés, Beatriz França e Julio Bisinelli participaram da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do manuscrito. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BEOZZO, J.O. A V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Aparecida: contextos sociopolítico e eclesial. Rev. Teol. Cienc. Religião, v.6, n.6, p.1-10, 2007. Disponível em: <http://www.unicap.br/revistas/teologia/arquivo/artigo%201.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2008. BOFF, L.; RAMOS-REGIDOR, J.; BOFF, C. A teologia da libertação: balanços e perspectivas. São Paulo: Ática, 1996. BORAN, J. O senso crítico e o método ver-julgar-agir: para pequenos grupos de base. São Paulo: Loyola, 1981. BORDENAVE, J.E.D. Alguns fatores pedagógicos. In: BRASIL. Ministério da Saúde (Org.). Capacitação pedagógica para instrutor supervisor da área da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1989. p.19-26. 630
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QUEIROZ, S.M.P S.M.P.L. .L. et et al. al. Itinerarios Itinerarios para para promoción promoción de de la la salud salud bucal: bucal: la la capacitación capacitación de de líderes en la Pastoral del Niño de la Iglesia Católica en Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.619-32, jul./set. 2010. Educ. El propósito de esta investigación evaluativa ha sido el de analizar la capacitación de los líderes de la Pastoral del Niño de la Iglesia Católica e identificar el potencial y la fragilidad para promoción de la salud bucal. Se ha utilizado la Metodología de Evaluación Rápida, de caracter participativo. Se han realizado talleres de evaluación, análisis documentales, entrevistas con informaciones clave, grupos focales y observación participante de una capacitación en la Guía del Líder. Teniendo como categorías interpretativas el apoderamiento y la integralidad, se ha procedido al análisis de contenido. La salud bucal se trabaja de forma integrada a los demás temas y acciones complementarias dan soporte a las acciones educativas. La tendencia pedagógica adoptada por la institución investigada contempla el principio de apoderamiento. No obstante cuestiones técnicas han tenido mayor énfasis en la capacitación que en las pedagógicas. Las discusiones sobre cuestiones pedagógicas y trabajo en redes, en las capacitaciones, se consideran puntos fundamentales para consolidación y ampliación de la acción evaluada.
Palabras clave: Promoción de la salud. Educación en salud. Apoderamiento. Integralidad. Redes sociales.
Recebido em 06/08/2009. Aprovado em 28/12/2009.
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artigos
A gestão em saúde: nexos entre o cotidiano institucional e a participação política no SUS*
Francini Lube Guizardi1 Felipe de Oliveira Cavalcanti2
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O. Health management: nexuses between institutional daily routine and political participation in SUS. SUS .Interface Interface--Comunic., Comunic.,Saude, Saude,Educ., Educ. v.14, n.34, p.633-45, jul./set. 2010.
This is an essay on the topic of management within the field of public health. It raises questions about the challenges inherent to the construction of democratic forms of management in SUS. The path followed in this conceptual field is analyzed, emphasizing the tendency towards normative centralization that characterizes it. Starting from the reconfiguration of work within the contemporary world through the emergence of new technologies for information and communication, the authors reflect on the new institutional configurations derived from this. There is a need to rethink co-management within the scope of healthcare institutions, as a passage from practices of work organization and control to the level of interlinking in a network of activities for healthcare production.
Keywords: Healthcare management. Political participation. Sanitary reform. Democracy.
Este é um ensaio sobre o tema da gestão no campo da saúde coletiva e tem por objetivo problematizar os desafios inerentes à construção de modos democráticos de gestão do SUS. A trajetória desse campo conceitual é analisada destacando-se a tendência à centralização normativa que o caracteriza. A partir da reconfiguração do trabalho no mundo contemporâneo, com o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), os autores refletem sobre as novas configurações institucionais daí derivadas. Sinaliza-se, então, a necessidade de se repensar a cogestão, no âmbito das instituições de saúde, como passagem das práticas de organização e controle do trabalho para o plano da articulação em rede das atividades de produção de saúde.
Palavras-chave: Gestão em saúde. Participação política. Reforma sanitária. Democracia.
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Texto inédito, resultado da cooperação entre os resultados de Guizardi (2008) e do projeto de qualificação de mestrado de Cavalcanti (2009). 1 Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). Av. Brasil, 4365, Escola Politécnica de Saúde, sala 321. Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.045-900. franciniguizardi@fiocruz.br 2 Programa Médico de Família, Niterói, Rio de Janeiro. *
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A GESTÃO gestão EM em SAÚDE:... saúde:...
Introdução Durante as décadas de 1970 e 80, forjou-se no Brasil o movimento sanitário que, com a afirmação “saúde é democracia”, reivindicava o direito à saúde como “[...] expressão de um conjunto de condições saudáveis – condições de vida e de trabalho – das quais não se poderia abrir mão” (Ceccim, Ferla, 2008, p.444). A Reforma Sanitária proposta pelo movimento sanitário passava pela criação de um sistema de saúde universal, pautado pela integralidade, que procurasse enfrentar as históricas desigualdades presentes no campo da saúde. Entretanto, como nos mostra Paim (2008), para alguns atores do movimento sanitário, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) transcendia a criação de um sistema de saúde, isto é, transcendia uma reforma setorial. Com base na tese de que a RSB representa um projeto de reforma social, poder-se-ia considerar a hipótese de que ela foi concebida como reforma geral, tendo como horizonte utópico a revolução do modo de vida, ainda que parte do movimento que a formulou e a engendrou tivesse como perspectiva apenas uma reforma parcial. (Paim, 2008, p.38)
Desse modo, a RSB seria um processo inconcluso e, em seu estado atual, limitado ao desenvolvimento de suas dimensões setorial e institucional, isto é, ao Sistema Único de Saúde (SUS). Partilhamos com Paim a noção de que o projeto da RSB e a luta do movimento sanitário vão além da construção de um sistema de saúde fornecedor de serviços à população, evidenciando a necessidade de uma mudança radical dos modos de vida em nossa sociedade. No entanto, discordamos do autor em sua tendência a considerar o SUS unicamente como um sistema de saúde no qual são ofertadas ações e serviços para se cuidarem dos problemas de saúde da população. Nesse sentido, consideramos que é necessário assumir o SUS como principal campo de lutas do movimento sanitário e, sobretudo, como terreno de interação e produção de sujeitos em luta por uma nova sociedade. E isto porque a participação política na gestão do sistema de saúde não se constitui apenas como um caminho para construí-lo da melhor maneira, mas, primordialmente, como o próprio terreno onde, a partir do campo da saúde, é possível agenciar os sujeitos para a luta pelo SUS e por um outro mundo. Nesse sentido, o aprofundamento do projeto da Reforma Sanitária Brasileira passa fundamentalmente por uma radicalização democrática do cotidiano institucional do sistema de saúde. Esta nos parece ser a arena onde é possível, ao mesmo tempo, avançar na construção da institucionalidade do SUS e produzir novas formas de subjetivação que permitam alcançar a almejada revolução nos modos de vida. Desse modo, nossa reflexão parte do movimento de remeter a gestão em saúde ao projeto da Reforma Sanitária, o que nos parece constituir a participação política no cotidiano institucional do SUS como problema teórico e político fundamental. Quanto a este ponto, cabe, portanto, interrogar como a gestão dos serviços e sistemas de saúde tem respondido ao desafio de radicalização do projeto democrático do SUS. Uma breve retrospectiva nos mostraria os elementos que marcaram a institucionalização do SUS, em especial, os instrumentos normativos de organização da atenção. Destaquem-se, a esse respeito: as normas operacionais, a reorganização da Atenção Primária com a Estratégia de Saúde da Família e a recente perspectiva de ampliação da pactuação federativa das políticas. Esses são importantes exemplos de artifícios institucionais que responderam pela estruturação do SUS em âmbito nacional, por sua significativa capilaridade num país de proporções continentais como o Brasil, num período histórico relativamente curto. A presença marcante de artifícios normativos, constituídos de forma centralizada, aponta qual tem sido a tendência hegemônica na gestão das políticas de saúde. Em razão dela, e não negligenciando os avanços alcançados em sua implementação, alguns indícios nos fazem questionar se os desenhos institucionais que hoje configuram o SUS respondem plenamente aos desafios de democratização das políticas do setor. Para iniciar nossa reflexão sobre esse questionamento, convidamos o leitor a deslocar
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3 Na Norma Operacional Básica de 1996, a gestão é definida como “a atividade e a responsabilidade de dirigir um sistema de saúde (municipal, estadual ou nacional), mediante o exercício de funções de coordenação, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria”. A gerência, por sua vez, “é conceituada como sendo a administração de uma unidade ou órgão de saúde (ambulatório, hospital, instituto, fundação etc.) que se caracteriza como prestador de serviços ao sistema” (Brasil, 1997, p.8).
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o olhar da referida arquitetura institucional, de sua configuração em âmbito nacional, e aproximar-se da realidade dos serviços de saúde, do cotidiano das instituições que concretizam (ou não) o direito formalmente assegurado. Tomando como foco de análise a gestão do SUS no cotidiano institucional, nos cenários onde o sistema de saúde se efetiva, é marcante o fato de que estes artifícios negam ou diminuem demasiadamente a possibilidade de que a gestão possa se fazer de forma democrática, pactuada, incluindo em seus processos decisórios os diferentes atores implicados nos contextos locais. Castanheira (1990, p.222) nos ilustra algumas dessas dificuldades, entre elas “[...] os conflitos entre a necessidade institucional de estabelecer normas para o atendimento, e as necessidades mais imediatas trazidas pelos usuários”; ou, ainda, “o conflito entre os interesses de grupos de trabalhadores da unidade, e de cada trabalhador individual, com as normas da instituição, de um lado, e com as demandas dos usuários, de outro”. Por outro lado, achamos necessário ponderar que a tendência à centralização normativa, que tem caracterizado a implementação do SUS, muitas vezes por grupos comprometidos com o ideário da Reforma Sanitária, pode ser justificada como tentativa de garantir sua efetuação num cenário histórico marcado por uma assistência pública à saúde fortemente mercantilizada, defendida por grupos de interesses vinculados ao complexo médico-industrial, que acumula grande poder de intervenção. Considerar este cenário pode auxiliar-nos a entender por que a luta por um sistema público de saúde universal e equânime foi identificada com o referencial da epidemiologia e com as correntes que tinham por objeto o planejamento e a planificação das políticas públicas, influenciadas pela produção teórica da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). A normalização e a racionalização das práticas foi, nesta trajetória, fortemente associada com o projeto de Reforma Sanitária, como caminho impreterível para a construção de outro modelo assistencial, determinando, em consequência, as formas de gestão das políticas de saúde e as práticas institucionais do gestor. Tais referências são aqui retomadas porque se traduzem em tecnologias de gestão em saúde que apresentam um forte viés técnico e centralizador. Não é difícil constatar que, mesmo advogando a participação popular e o planejamento ascendente, os modelos de gestão propostos no âmbito do planejamento e da programação em saúde redundaram na permanência de práticas de gestão calcadas na centralização normativa das políticas públicas e no controle do processo de trabalho nas instituições de saúde. Por fim, um importante esclarecimento faz-se necessário em nosso esforço de reconhecer o cotidiano institucional como contexto de participação política no SUS. Este esclarecimento diz respeito justamente ao conceito de gestão com que trabalhamos, isto porque, ao propormos remeter a discussão da participação política à gestão das instituições, não assumimos, em nossa análise, a distinção entre gestão e gerência3 instituída pela NOB 96. Concordamos com Ferla, Ceccim e Pelegrini (2003) que, dada a persistência de orientações centralizadoras e frente ao desafio que se impõe à gestão em “[...] propor e fomentar arranjos descentralizados, resolutivos, solidários e permeáveis à participação da população, desde o sistema local de saúde” (p.62), tal diferenciação torna-se secundária, uma vez que entendemos que “[...] o principal núcleo dos desafios colocados à gestão, nesse contexto, é relativo à capacidade de implementar práticas cotidianas suficientemente densas para produzir, no limite da radicalidade possível em cada situação, tensões e rupturas com a cultura instituída e com as tecnologias de gestão existentes” (p.65).
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Gestão e centralização normativa nas instituições de saúde Ao retomarmos a discussão sobre a centralização normativa nas instituições de saúde, pretendemos enfatizar, sobretudo, a impossibilidade de total centralização do processo decisório dos modos de gestão em saúde. Nessa perspectiva, o “ato de gerir” não é jamais estritamente uma tarefa técnica (Gonçalves, Schraiber, Nemes, 1990), tampouco é uma tarefa exclusivamente determinada pelo gestor. Ainda que sob a égide de normas e instrumentos operacionais de controle, os trabalhadores configuram a assistência prestada nas escolhas que determinam as implicações de suas ações, em suas relações com os demais profissionais e com a comunidade (Merhy, 2005). Ainda, atualizam antigos modelos ou produzem a abertura para novas possibilidades, assim como também o fazem a comunidade e os usuários. Como salienta Arendt (1981), a história não tem criador porque não é criada, já que, se podemos compreender a inserção de seus agentes, não é possível jamais determinar seus autores, a não ser pelo recurso a objetos teóricos transcendentes, como a providência, a “mão invisível”, o “espírito do mundo”, ou o interesse de classe. Algumas vezes pequenas, outras vezes mais aparentes, essas escolhas convertem as normas e desenhos institucionais em atos e práticas concretas. São elas que produzem realidade social. É a partir delas que as instituições de saúde adquirem “vida”, é com elas que o direito à saúde ganha materialidade. São essas pequenas escolhas que tornam a concepção racionalista do sistema de saúde um modelo frágil e sempre deficitário. [...] o denominado ‘sistema de saúde’ é, na verdade, um campo atravessado por várias lógicas de funcionamento, por múltiplos circuitos e fluxos de pacientes, mais ou menos formalizados, nem sempre racionais, muitas vezes interrompidos e truncados, construídos a partir de protagonismos, interesses e sentidos que não podem ser subsumidos a uma única racionalidade institucional ordenadora. (Cecílio, Mehry, 2003, p.199)
Portanto, mesmo sendo o SUS organizado de forma centralizada, por normas, protocolos e programas, todos esses sujeitos, com suas diferentes inserções, implicações e perspectivas, são autores desse desenho institucional e de seus fluxos singulares em cada contexto, pois não se pode desconsiderar o fato de que normas e instrumentos operacionais somente existem como prática social em situação, compreendida aqui segundo a acepção que lhe confere Carlos Matus (1989). Esse aspecto coloca um grande desafio à gestão, já que a intervenção em saúde depende da construção de relações, das tecnologias leves (Merhy, 2005), da configuração de redes cooperativas, o que não pode ser respondido com a estrita normalização do processo de trabalho. Mesmo porque, a ação é, por definição, normativa, residindo nisto sua dimensão política, a qual não pode ser, de forma alguma, isolada das implicações reticulares em que se tecem as relações humanas. Essas considerações nos ajudam a perceber que os efeitos da ação humana têm como movimento primordial a tendência a espraiar-se e a repercutir-se, sem que seja possível sua objetivação ou a previsão inconteste de sua direção e de seus resultados. As consequências da ação, nesse sentido, são impossíveis de serem plenamente antecipáveis, já que, imanentes à sua efetuação, articulam-se com os demais processos que compõem a realidade como artefato humano compartilhado. Arendt (1981), seguindo a tradição grega, diferencia os momentos que compõem a ação como archein e prattein: o começo, ato inicial que inaugura a ação como possibilidade; e a realização, a condução, o gesto de pôr em movimento, com que a ação se desdobra para além de seu princípio. Ainda que se possa identificar para o primeiro momento certo sujeito (mesmo que coletivo), a concretização da ação jamais decorre exclusivamente dele, uma vez que se articula em um plano de relações. Assim, a separação entre gestão e execução, governo e vida social, não pode ser lida a não ser como ficção, dado que jamais alguém poderá agir isoladamente ou supor responder totalmente pelo curso empreendido por suas ações, ou por aquelas que decide serem realizadas. Essa, contudo, foi a expectativa e a presunção dos modos de gestão modernos, que entendem – ou pretendem afirmar – a ação dos homens como um dentre os demais recursos de produção.
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O papel do iniciador e líder, que era um primus inter pares [...], passou a ser o papel do governante; a interdependência original da ação [...] dividiu-se em duas funções completamente diferentes: a função de ordenar, que passou a ser prerrogativa do governante, e a função de executar, que passou a ser o dever dos súditos. [...] Contudo, a força do iniciador e líder reside apenas em sua iniciativa e nos riscos que assume, não na realização em si. No caso do governante bem-sucedido, ele pode reivindicar para si aquilo que, na verdade, é realização de muitos. [...] Através dessa reivindicação, o governante monopoliza, por assim dizer, a força daqueles sem cujo auxílio ele jamais teria realizado coisa alguma. (Arendt, 1981, p.202) Em consequência, reportando a questão ao campo da saúde, podemos afirmar que, se de fato à gestão cabe “gerir a coordenação” dos processos de trabalho e da organização do sistema público de saúde, isso não deve representar institucionalmente a centralização do poder de decisão acerca deles. Questão esta que nos faz problematizar as formas de participação na gestão que desejamos construir no SUS.
Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade Como saber o que recusar e o que afirmar em nossas práticas institucionais? Tendo em vista as considerações prévias que fizemos sobre a centralização normativa na gestão, podemos explicitar alguns conceitos-chave para nossa reflexão. Um deles é o que definimos por capacidade normativa. Retomando a discussão feita por Canguilhem (2001), aproximamos política e capacidade normativa da ação ao defendermos que as normalizações e renormalizações que caracterizam a atividade humana não podem ser compreendidas exclusivamente desde as normas externas que a codificam, regulam ou constrangem: o exercício normativo é inerente à atividade e não equivale à aplicação de leis e normas institucionais (o que não significa desconsiderar sua importância na produção de realidade social), inclusive porque estes recursos de sobrecodificação não conseguem jamais manter a ação em seus limites. Ao entendermos a dimensão política da ação como relativa aos efeitos normativos que gera, não pretendemos sugerir a possibilidade de sociedades sem leis e normas institucionais, mas apontar o fato de que é preciso incorporar em nossas instituições, como estratégia de sua determinação, o movimento normativo da atividade em seu plano de imanência. Isto significa não a existência de normas a serem seguidas de forma estrita, mas o reconhecimento, no âmbito dos espaços institucionais, do agir como produção normativa. Implica, fundamentalmente, a necessidade de se engendrarem artifícios e dispositivos que promovam planos de visibilidade para os efeitos normativos da atividade e de suas sinergias, para o modo como potencializam ou constrangem outras esferas de ação, bem como para as implicações de seus vetores de determinação. Em outras palavras, planos de visibilidade que exponham esse exercício normativo em sua capacidade de produzir repercussões e efeitos de realidade e em sua condição de atravessamento e ponto de emergência singular de outros movimentos de normalização. Tal forma de colocar o problema da gestão das práticas institucionais tem por base a compreensão de que a intercessão entre política, ética e atividade humana resulta da relação dialógica com o outro, do fato de que o agir se reporta ao outro, condição de sua existência, já que não pode limitarse a sua própria esfera de atuação. É da possibilidade dessa relação com o outro que decorre toda diferenciação e individuação. Os sentidos que adquirem as práticas institucionais são assim forjados como efeito de nossa condição humana de seres de relação. Ao afirmarmos a dimensão dialógica da produção de realidade social, seguindo as análises de Bakthin (Brait, 2005), não pretendemos reduzir a experiência ao sentido linguístico, afinal, nessa esfera, as relações são relações de sentido que se expressam pela linguagem e pelos signos, mas não são redutíveis a estes últimos. [...] a relação dialógica não é uma relação lingüística. Embora pressuponha uma língua, esta relação não existe dentro do sistema da
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língua. E porque podemos fazer tal afirmação? Porque a emoção, o juízo de valor, a expressão são igualmente estranhos à palavra dentro da língua, e só nascem para favorecer o processo de sua utilização viva no enunciado concreto. [...] A maior parte dos comentadores de Bakthin, [...] equivocam-se ao interpretar o dialogismo como um problema lingüístico. Para Bakthin, ao contrário, trata-se de um problema ontológico e político. (Lazzarato, 2006, p.195)
Ao apontarmos para a dimensão política da experiência, procuramos colocar em discussão a gestão em saúde a partir das implicações normativas da atividade em sua produção dialógica de sentidos e efeitos de realidade.
Considerações sobre os modos de produção contemporâneos e suas implicações para a gestão em saúde Trazer para o contexto da gestão em saúde as implicações normativas da atividade significa afirmar que a gestão é feita por todos, é responsabilidade ética de todos, já que, mesmo sob os maiores cerceamentos, a atividade do humano produz realidade. Isso significa pensar a realidade (institucional) necessariamente como produção compartilhada. A transformação dos modos de produção contemporâneos apresenta-nos a radicalidade desse sentido de gestão, a impossibilidade real de concretizar em absoluto a separação entre concepção e execução no agir humano. Foram as infinitesimais e micropolíticas insurgências da atividade que redundaram na falência do ideal fordista de regulação do trabalho, a ponto de gerar o reconhecimento da urgência em requisitar essa capacidade normativa, procurando, contudo, delimitar seu escopo de intervenção à valorização do Capital. A acumulação flexível e o chamado modelo toyotista não são outra coisa que não um esforço de regulação da atividade dentro das fronteiras da organização capitalista do trabalho. Os trabalhadores são convocados à “auto-organização” das equipes e células de produção, em função de tarefas e projetos, sem que seja viabilizado o acesso concreto dessa capacidade normativa à própria configuração institucional, ou seja, à definição do sentido da produção e da instituição. Esta é uma questão fundamental à noção que adotamos de coprodução, formulada a partir do amplo debate sobre as modificações contemporâneas do capitalismo. O ponto de partida que fundamenta o conceito de coprodução que utilizamos é a indicação de que criação social de valor e modo de produção capitalista não coincidem completamente, a despeito da força historicamente revelada pelo Capital de submeter “[...] à lógica da acumulação pela acumulação os modos de produção que lhe são estranhos” (Lazzarato, 2003, p.64). Isso é particularmente evidente no modo como o território, a comunidade, as relações sociais de vinculação passam a ser investidos diretamente como lócus da produção, em contraposição ao modelo fordista, assentado na separação forjada entre produção e reprodução social, em mecanismos que explicitam a divisão moderna entre o político, o subjetivo, o social e o econômico. As novas articulações produtivas rompem essa diferenciação ao imporem uma passagem da lógica de reprodução à da inovação, com base na potência produtiva do trabalho imaterial. Cada vez mais intensamente, as linguagens, os afetos, os saberes e a vida se tornam imediatamente produtivos, em virtude das novas formas de composição sociotécnicas do trabalho, em grande medida assentadas nas alternativas tecnológicas de integração e comunicação em rede, disseminadas na dinâmica pós-fordista da produção, que reorganizam, em torno destas qualidades imateriais, os processos de trabalho. Desta forma, a cooperação social revela-se força motriz da produção, com os fluxos e redes sociotécnicas que gera. De fato, as novas tecnologias de comunicação e informação (NTIC), que estão na base dessas transformações, introduzem uma inédita dinâmica de cooperação horizontal, em que se efetivam produção, circulação e acumulação de conhecimento sem constrangimentos de ordem temporal ou espacial. Redesenham, com isto, os estriamentos, as malhas e os pontos de passagem, de desvio e de adensamento dos fluxos, criando e intensificando, de forma exponencial, as linhas que tecem os territórios sociais. A importância que a internet adquiriu nas sociedades contemporâneas revela não só o distanciamento já percorrido em relação ao período fordista, mas também a abertura de possibilidades que esses arranjos produtivos portam e enunciam como indeterminação. 638
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Deste modo, a potencialidade produtiva das redes sociais (redes de redes) extrapola e antecede os recursos tradicionais de regulação do trabalho e de ordenamento das instituições. O trabalho reticular que se configura nestas redes, a produção e difusão de saber que empreendem, têm para nós uma relevância peculiar, na medida em que intervém diretamente no governo e administração da vida. A distinção entre concepção e execução mostra-se absolutamente impertinente neste contexto, em que o trabalho produz valor ao produzir diferença, ao dar passagem à invenção e à criação. O novo resulta justamente do caráter difuso e reticular dessa cooperação, das contribuições infinitesimais, no dizer de Lazzarato (2006), que cada sujeito aporta à realidade. Na insistência da repetição, a diferença se imiscui como intrusa, já que não há, na atividade humana, a alternativa da reprodução exata, a execução perfeita, a possibilidade de estancar o tempo da ação como reificação absoluta de uma norma antecedente. Todo e qualquer sujeito difere, introduz em seu contexto a marca dessa condição ontológica, que, por certo tempo, pretendeu-se neutralizar com as técnicas administrativas de controle, com a postulação rigorosa do best way das práticas e movimentos. É essencialmente desta capacidade de diferir e de colocar em sinergia tais contribuições que a inovação resulta. Não o grande invento do grande homem, mas a coprodução singela e cotidiana que a interação humana nas redes potencializa. Daí que a eficácia do processo produtivo dependa, cada vez mais intensamente, da interação e socialização que os meios técnicos ofertam como suporte e infraestrutura de comunicação e relação. As análises dos diferentes ‘momentos’ do ciclo do trabalho imaterial nos permitem avançar na hipótese de que aquilo que é produtivo é o conjunto das relações sociais [...], segundo modalidades que colocam diretamente em jogo o “sentido”. [...] Essa cooperação não pode ser em nenhum caso predeterminada pelo econômico, porque se trata da própria vida da sociedade. O econômico somente pode apropriar-se das formas e produtos desta cooperação, normatizá-los e padronizá-los. Os elementos criativos, de inovação, são estritamente ligados aos valores que somente as formas de vida produzem. (Lazzarato, 2001, p.52)
A dissolução da distinção entre tempo de trabalho e tempo de vida; a temporalidade heterogênea da criação do novo (cuja intensidade produtiva não pode ser medida pelas horas da jornada de trabalho); a dinâmica horizontal das redes, que se fortalecem na comunhão dos saberes e conhecimentos como produção compartilhada que escapa à lógica da apropriação privada da riqueza; tudo isto nos fala da solidez de nossas instituições modernas que se desmancham no ar. Enfim, transformações “éticas da constituição do tempo” (Cocco, 2001) que nos solicitam outras instituições e, em consequência, o desafio de articular outros modos de gestão, pautados pelo reconhecimento da realidade como incontornável coprodução. Para pensar esse desafio, quanto à produção de saúde, julgamos necessário retomar a inovação que o conceito de cogestão, trabalhado por Campos (2000), nos oferece. Ao remetê-lo ao compromisso de democratização institucional, o autor nos apresenta um problema fundamental: como tornar o cotidiano institucional espaço de produção de autonomia, de produção de novos sujeitos? Como superar os efeitos do paradigma tradicional da administração, geradora de desinteresse, objetivação dos sujeitos, alienação, agir mecânico e burocracia? Estas questões revelam-se centrais aos problemas hoje vividos, seja nas unidades de saúde, seja nos espaços de controle social no SUS. Aliás, temos por hipótese que a vitalidade dos mecanismos de controle social é diretamente condicionada pela experiência cotidiana nos serviços que materializam, de fato, a política de saúde. Não há como a representação de interesses em fóruns episódicos substituir a materialidade das relações e trocas que ocorrem nas instituições de saúde, razão pela qual situamos o problema da participação política no SUS nos modos de gestão dos serviços e sistemas. Adotamos, nesta análise, a referência ao conceito de instituição sistematizado por Baremblitt (1992), como lógicas que regulam e estruturam práticas sociais e que podem expressar-se tanto em leis e normas, como em modos de comportamentos. Quando utilizamos o termo instituições de saúde no debate sobre a gestão, fazemos referência à conformação de determinados campos de força COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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que configuram efeitos particulares nos estabelecimentos, resultantes do atravessamento de diversas lógicas institucionais que requerem, para atualizar-se nas relações sociais, a legitimidade que lhes conferem tais lugares específicos. Quando falamos na instituição médica, não é o mesmo que debatê-la em seu exercício no hospital e no domicílio do usuário. O que queremos enfatizar com essa colocação é que a dinâmica produtiva das instituições demanda certos modos de territorialização, de organização do lócus de suas práticas, sendo justamente aqui que a interseção com o tema da gestão nos interessa: a relação entre instituições e a produção de realidade social. A trama institucional que atravessa e conforma os espaços de concretização das políticas de saúde é, nesse sentido, produção de temporalidade e espacialidade, produção do cotidiano, conforme Milton Santos (1999), já que é no lugar, compreendido como território compartido, que se materializam as relações de cooperação e conflito, que são a base da vida em comum. “Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contigüidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo [...]” (Santos, 1999, p.258). Nesse sentido, as instituições são condição material da produção de determinadas permanências, posto que desempenham funções de estratificação das relações de força e estruturação dos processos sociais dentro de certo horizonte de possibilidades. Nessa malha institucional territorializada, [...] aquilo que é aprisionado é o fora. O que é enclausurado é o virtual, a potência de transformação, o devir. As sociedades disciplinares exercem seu poder neutralizando a diferença e a repetição e sua potência de variação (a diferença que faz diferença), subordinando-a à reprodução. (Lazzarato, 2006, p.69)
Isso apenas é possível na medida em que as tecnologias de governo se assentam em delimitações territoriais de seu exercício, de desaceleração ou, mesmo, imobilidade das movimentações constituintes imanentes aos fluxos sociais. Em outras palavras, discutir as possibilidades de coprodução das instituições de saúde implica discutir o modo como suas instituições se organizam e procedem a clausura normativa dos fluxos sociais, protegendo-se de sua potência constituinte.
Novos sentidos para a cogestão das instituições de saúde O que observamos, com as transformações atuais do trabalho, é a constituição de redes que escapam aos regimes institucionais tradicionais da modernidade. Deslocamento este que fez insurgir a potência produtiva das relações de cooperação, que não encontram abertura nos espaços institucionais, dados os dispositivos de captura que os organizam. Desta forma, ao trazer as contribuições dessas análises para o campo da saúde, percebemos que afirmar a natureza intrinsecamente social da produção de saúde implica o questionamento dos arranjos institucionais que materializam a política de saúde atualizando práticas de centralização normativa de sua gestão. E é justamente nesse aspecto que divergimos da proposição do conceito de cogestão feito por Campos (2000), porque, embora indique uma avaliação convergente quanto à necessidade de democratização institucional, a forma como o autor articula a cogestão tende a privilegiar os trabalhadores nos processos decisórios, na medida em que “[...] a gestão de Coletivos deve incorporar os usuários, mas não com o mesmo sentido e proporção que os trabalhadores” (Campos, 2000, p.72). Circunscrição esta que, a nosso ver, não consegue romper, de fato, com o modo operante do funcionamento institucional, em suas inércias, enclausuramentos e em seu peso gravitacional, que procura sempre conter e fixar a intensidade dos fluxos sociais, asfixiá-los com sobrecodificações e hierarquias, aspectos que o próprio autor aborda, ao falar da tendência de fechamento que as unidades de produção revelam e que justificaria, segundo ele, a função de apoio e liderança. Em nossa perspectiva, discutir a cogestão no âmbito das instituições de saúde representa uma passagem do entendimento da gestão como organização da operação de tarefas e ações e suas distribuições no trabalho da equipe, para o plano da articulação em rede das atividades de produção 640
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de saúde. Isso significa, necessariamente, extrapolar os limites das equipes e unidades em direção às conexões possíveis com o território produtivo em que se situam. Seria esse um novo sentido para o conceito de territorialização do sistema de saúde trabalhado pelo enfoque teórico dos Distritos Sanitários, aproximação que resgata alguns de seus objetivos, que consideramos atuais, como, por exemplo, a necessidade de se criar maior plasticidade nos mecanismos da gestão e de se efetuar uma transição de normas duras para normas brandas. No entanto, apesar dessas convergências, o conceito de territorialização apresenta aqui uma apreensão diversa da proposta do Distrito Sanitário, pois não se trata de conhecer o território para melhor intervir, para melhor responder às suas necessidades de saúde (o que mantém as fronteiras funcionais da instituição). Ao contrário, a territorialização significa aqui a socialização das instituições de saúde nas redes sociais produtivas do território, no sentido de democratizar o poder normativo que caracteriza sua intervenção ao limite de sua transformação em malhas articuladoras destas redes, em sua potencialidade de produção de saúde. Isso significa investir no território diretamente como campo da produção de saúde, concretizando novas articulações institucionais que não atualizem a intervenção em saúde como uma reprodução de normalizações sobrecodificadas e heterodeterminadas. Remete, portanto, ao entendimento da coprodução como socialização e democratização da constituição de artifícios institucionais, com base na potência produtiva do trabalho imaterial, em sua dependência direta dos fluxos e redes sociais que promovem a socialização dos saberes, dos dispositivos tecnológicos e organizativos. Pensar a coprodução de saúde em suas articulações com o território demanda, portanto, inovações (“sinergias produtivas”, não antecipáveis, não passíveis de prescrição) que produzem, sobretudo, novas formas de ver e sentir, novos territórios existenciais. Se a produção é hoje diretamente produção de relação social, a ‘matéria-prima’ do trabalho imaterial é a subjetividade e o ‘ambiente ideológico’ no qual esta subjetividade vive e se reproduz. A produção da subjetividade cessa, então, de ser somente um instrumento de controle social (pela reprodução das relações mercantis) e torna-se diretamente produtiva [...]. (Lazzarato, 2001, p.46)
As transformações nos modos de gestão que indicamos implicam, em decorrência, transformações nos sentidos produzidos e atribuídos às instituições de saúde, as quais seguem a direção das análises feitas por Cecílio e Merhy (2003), que nos propõem pensar o “sistema” como uma “rede móvel, assimétrica e incompleta de serviços” (p.199). Leitura esta que completamos ao sugerirmos que o sistema torna-se necessariamente rede societária porque nenhum conceito ou estratégia racionalizadora da política de saúde será capaz de antever e engessar as movimentações sociais. A cogestão das instituições seria, nessa perspectiva, a outra face da coprodução de saúde, vinculação que explicitamos por realocar a descentralização do sistema de saúde no horizonte da efetiva apropriação democrática dos processos de sua gestão. São transformações administrativas dos serviços de saúde que supomos depender da exposição dos espaços institucionais à multiplicidade normativa dos fluxos societários e de suas composições singulares. Nesse sentido, a cogestão é uma forma de ruptura da tendência de centralização e concentração do poder normativo dos processos decisórios da administração, a qual tem ocasionado ao SUS um vasto leque de dificuldades em articular desenhos institucionais adequados às especificidades locorregionais; ou melhor, que tem apresentado constrangimentos para a concretização do SUS como território público, plano de visibilidade que torna acessível aos seus sujeitos a dimensão política das práticas de saúde, ao mesmo tempo em que se efetua como contexto de expressão e materialização de sua diversidade e singularidades na produção de saúde. A cogestão colocar-se-ia, assim, como dispositivo de redistribuição do poder nas relações sociais (objetivo do planejamento conforme Mario Testa), afirmando definitivamente a participação política como relativa às implicações decisórias da atividade (normativas, portanto), ao poder de intervir na capacidade institucional de regular a temporalidade e a intensidade constituinte da dinâmica societária. Nesse sentido, dispositivo democrático que transformaria os espaços institucionais não mais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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em lócus de aprisionamento do virtual, mas em rede cooperativa em que ocorre a modulação ética das forças que o constituem (já que a vida social nos solicita permanências e territórios institucionais). Pensar as instituições de saúde a partir dessas referências equivale a reconhecer como problema fundamental a desarticulação dos estados de dominação que as determinam. Segundo Foucault (Lazzarato, 2006), estes são resultantes da estabilização, do congelamento e do bloqueio nas instituições das relações estratégicas de poder que constituem o social. À medida que entendemos, em uma apreensão foucaultiana, o poder como “ação sobre outras ações possíveis, como capacidade de conduzir as condutas possíveis dos outros” (Lazzarato, 2006, p.250), as relações estratégicas seriam uma faceta inerente às relações humanas, o que não significa confundi-las com estruturas políticas, institucionais ou classes sociais. Seriam, em contrapartida, “jogos de poder infinitesimais, móveis, reversíveis, instáveis, que permitem aos diferentes parceiros disparar e colocar em ação estratégias para modificar as situações” (p.251). Relações que não têm, portanto, conotação negativa, já que resultam de modos de ação livres, que pressupõem a liberdade de serem revertidas, desfeitas e modificadas. Os estados de dominação consistiriam na estabilização institucional dessas relações estratégicas, na limitação da reversibilidade e mobilidade própria das assimetrias que constituem toda relação social. Ao cristalizarem a fluidez dessas assimetrias, revelam-se como constrangimento da liberdade das relações estratégicas, o que se produz com o recurso a um conjunto de tecnologias de governo, de [...] práticas através das quais se pode ‘constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem traçar, em relação uns aos outros’. O que essas técnicas regem é consigo e com os outros. Para Foucault, as técnicas de governo desempenham um papel central nas relações de poder, porque é através delas que os jogos estratégicos podem ser fechados ou abertos, e é pelo seu exercício que se cristalizam e se fixam em relações assimétricas institucionalizadas (estados de dominação), ou em relações fluidas e reversíveis, abertas à experimentação de subjetivações que escapam aos estados de dominação. (Lazzarato, 2006, p.252)
Considerações provisórias sobre a participação política no SUS O desafio colocado para a gestão, no contexto de luta pela construção do SUS, implica a constituição de novas tecnologias de governo, novas institucionalidades abertas à reversibilidade e à mobilidade das relações estratégicas, que reconheçam e afirmem a dimensão política (normativa) da atividade, tramas institucionais em que a política possa adquirir o sentido e o efeito de pôr à prova o existente. A política em seus atravessamentos institucionais deixaria de ser, assim, a mobilização para negação (o situar-se coletivamente contra), ou para a definição identitária de elementos constantes de agregação, tornando-se uma recusa das opções dicotômicas atualizadas como possível (representantes x representados, público x privado, individual x coletivo). Seria uma abertura do plano de possibilidades (de criação de realidade) que resulta do estranhamento e do questionamento da transversalidade dos estados de dominação, da fixação das assimetrias por certas tecnologias de poder. A partir da especificidade histórica (portanto inédita) de cada situação, a política pode afirmar-se como experimentação, como prática normativa não constrangida por recursos de dominação que tornam a escolha, a possibilidade de constituir-se nessas decisões, restrita aos possíveis já determinados nestas tecnologias de governo. Esta perspectiva decorre da compreensão da política como produção de realidade social, determinada, segundo Negri (2001), pelo poder constituinte da multiplicidade. Tal concepção aponta, sobretudo, para a necessidade de se extrapolar sua definição como resistência e defesa (de interesses), e nos coloca o problema da efetuação, nas instituições, de arranjos e dispositivos que engendrem e expressem esta produção ao invés de restringi-la. Composições estas que manteriam o principal efeito de realidade das instituições: a produção de temporalidades e espacialidades, de referências e permanências, de lugares que territorializam relações, porém resignificando o sentido de sua eficácia. Não mais a fixação hierárquica e excludente, mas o direito de todos ao pertencimento e à
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diferença, que supõe necessariamente o acesso ao bem comum (conhecimentos, linguagens, serviços etc.) e a relação com o outro, em que as inevitáveis assimetrias estejam submetidas à mobilidade e reversibilidade das relações de poder estratégicas. “Instituições paradoxais, porque precisam ser móveis, falhas, excêntricas, fraturadas como os devires que irão favorecer” (Lazzarato, 2006, p.212). Defender a política como experimentação e constituição de processos de subjetivação implica o reconhecimento de que nossa inexperiência democrática, como a denomina Freire (2005), não deixará de ser uma realidade no cotidiano das instituições de saúde, a menos que esse cotidiano se torne objeto de problematização e de construção de outros saberes que sejam reconhecidos como legítimos na esfera de determinação da política pública do setor. Como argumenta Freire (2005, p.88), “a democracia, antes de ser uma forma política, é forma de vida”. É este um atributo da vida que se deseja humana, já que “a vida não tem necessidade de assumir valores externos a ela para tornar-se política. Política ela é imediatamente em sua própria facticidade” (Agamben, 2004, p.160), pois o homem é um ser de relações, não apenas de contato. Tanto ele está no mundo, como com o mundo, sendo essa a grande peculiaridade da condição humana, sua abertura autoral à realidade, que se efetiva em sua multiplicidade, criticidade e temporalidade (Freire, 2005). Poderíamos tirar o “r” que tem limitado a política à resistência em sentido estrito, de reatividade e contraposição, passando a defini-la, então, como existência, constituição de ser social que expõe a luta política em suas implicações ontológicas. O desafio de construção de novos dispositivos institucionais e saberes como recursos de cogestão do sistema de saúde talvez possa, nesse movimento reflexivo, encontrar uma importante ressonância, que não se tornará presente no processo de efetivação do SUS se não nos dispusermos a questionar a produção concreta (portanto local) das políticas e intervenções públicas. O problema da radicalização do projeto democrático do SUS passa, então, pelo exercício da potência de criação que constitui o humano; pela capacidade de tecer participações como possibilidade de produzir o novo, e não apenas como controle da execução e fiscalização das normas instituídas. Formas de participação que nos solicitam outras composições institucionais, outras tecnologias de governo que tenham, por compromisso, a integração e coordenação das singularidades, a articulação dos fluxos sociais de modo a potencializar a constituição de novos horizontes éticos.
Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do manuscrito. Referências AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. BRAIT, B. Bakthin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. BRASIL. Ministério da Saúde. NOBSUS 96: Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1997. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000.
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artigos
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O. La gestión en salud: nexos entre lo cotidiano institucional y la participación política en el Sistema Único de Salud (SUS). Interface Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.633-45, jul./set. 2010. Este es un ensayo sobre el tema de la gestión en el campo de la salud colectiva y tiene por objeto cuestionar los desafíos inherentes a la construcción de modos democráticos de gestión del SUS. La trayectoria de este campo conceptual se analiza destacando la tendencia a la centralización normativa que lo caracteriza. A partir de la nueva configuración del trabajo en el mundo contemporáneo con el surgimiento de nuevas tecnologías de información y comunicación (NTIC), los autores reflexionan sobre las nuevas configuraciones institucionales de ellas derivadas. Se señala pues la necesidad de repensar la cogestión, en el ámbito de las instituciones de salud, como pasaje de las prácticas de organización y control del trabajo hacia el plan de articulación en red de las actividades de producción de salud.
Palabras clave: Gestión en salud. Participación política. Reforma sanitaria. Democracia. Recebido em 16/09/2009. Aprovado em 23/02/2009.
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Higienizar, cuidar e civilizar: o discurso médico para a escola paranaense (1920-1937)
Liliana Müller Larocca1 Vera Regina Beltrão Marques2
LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.Sanitizing, caring and civilizing: the medical discourse for schools in the State of Paraná (1920-1937). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.647-60, jul./set. 2010. Based on the investigation of medical discourses referring to school sanitation, this study addresses the spread of the Hygiene science in the State of Paraná, southern Brazil, between 1920 and 1937. Discourses to schools present in many sources, mainly periodicals, Archivos Paranaenses de Medicina and Revista Medica do Parana, pointed out the perception of medicine underpinned by Hygiene, in which doctors advocated a new social function: educators. By discussing intervention in schools and their users, doctors intended to “care for, protect and sanitize infancy”, a task aiming to insert the territory of Paraná in the national process of hygienic and social sanitation. It is a historical research study, inspired by Norbert Elias’ ideas of Civilizing Process. Thus, its purpose is to recognize civility proposals in the medical discourses created to the schools of the State of Paraná. Educational conceptions in the studied period evolved from knowledge, prescriptions and discourses on Hygiene science and its greatest advocates - the doctors.
Com base na investigação dos discursos médicos referentes à higienização da escola, este estudo problematiza a difusão da ciência Higiene na sociedade paranaense no período compreendido entre 1920 e 1937. Os discursos para a escola presentes em várias fontes, com destaque para Archivos Paranaenses de Medicina e Revista Medica do Paraná, emergiram a percepção de uma medicina na qual os médicos defendiam uma nova função social: a de educadores. Ao tematizarem sobre uma intervenção nas escolas e nos seus usuários, pretendiam “cuidar, proteger e higienizar a infância”, tarefa assumida com vistas à inserção do território paranaense no processo de saneamento sanitário e social. Trata-se de uma pesquisa de caráter histórico, inspirada nas ideias de processo civilizador de Norbert Elias. Assim, propõe-se reconhecer propostas de civilidade contidas nos discursos médicos. As concepções de educação e as prescrições para a escola no período estudado, produzidas pela Ciência Higiene, são aqui apresentadas.
Keywords: School health. Eugenics. History of medicine. Medical education.
Palavras-chave: Saúde escolar. Eugenia. História da medicina. Educação médica.
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Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Paraná. Rua Padre Camargo, 120, Curitiba, PR, Brasil. 80.060-240. larocca_m@terra.com.br 2 Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná. 1
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Introdução Desde meados do século XVIII, o “cuidar de si” era preconizado por meio de conselhos médicos divulgados nos manuais de boa conduta que se encontravam embebidos do ideal iluminista de uso da razão humana para promoção do progresso social (Marques, 2003). A preocupação com a higiene das pessoas e das cidades e sua transformação em um conjunto de normas e leis, com objetivo de controlar doenças e de melhorar a vida em sociedade, foi decorrência de um longo percurso histórico (Hochman, 1998). A higiene como ciência e prática médica data do início do século XIX. Entendida como “arte de conservar a vida”, indicava rumos para sua utilização, fosse pelos que afirmavam as responsabilidades individuais no processo de adoecer e morrer ou como conceito para os que alardeavam sua determinação social (Arouca, 1975). Compreendida como medida para diminuir o desperdício de recursos humanos causado pelas doenças, a Higiene também foi “guia científico”. Como disciplina acadêmica, se destacou na Alemanha em meados de 1860, servindo de alicerce para o progresso e regeneração social (Arouca, 1975). Como ciência, se institucionalizou, produziu práticas e discursos, os quais encontraram eco e visibilidade na atuação dos médicos paranaenses. O conceito de limpeza passou a refletir o processo de civilização de uma sociedade, moldando gradualmente as sensações corporais. Refinou comportamentos e desencadeou, sutilmente, seu polimento; promoveu o crescimento do espaço privado, do autorregramento e dos cuidados individuais, ações cada vez mais estreitadas entre o íntimo e o social. Trata-se de uma história que percebeu o peso da cultura sobre as sensações imediatas: do “toalete seco” do cortesão, esfregando o rosto com um pano branco, às normas de limpeza “racionais” do século XVII, nas quais os critérios de limpeza eram ditados pelos autores de livros de boas maneiras, até o advento da era bacteriológica, quando se iniciou um gradual deslocamento dos saberes em direção à higiene e à medicalização das sociedades (Vigarello, 1996). No Brasil, as prescrições médicas adentraram o século XX impulsionadas pelos poderes da Ciência Higiene, de maneira a convocar a adesão a novos saberes. Gradualmente tornaram-se “rituais de saúde”, com o intuito de alavancar a cidadania, numa cruzada pela saúde, educação e civilidade (Rocha, 2003a). A escola foi lócus privilegiado dessas prescrições, local onde a higiene formatou propostas de construção de modelos educacionais, formação de professores, inspeção de alunos e de organização de espaços e equipamentos, objetivando a formação de novos e higienizados cidadãos. Pensada como “veículo de formação harmônica do corpo e do espírito”, à escola foi delegada a missão de modelar os futuros cidadãos necessários à construção da nação brasileira. A medicalização da infância e a intervenção nas possíveis degenerações aconteceriam, segundo os esculápios, por meio de prescrições e campanhas em prol da educação higienista, possibilitando a transposição dos bons hábitos adquiridos na escola à vida doméstica, promovendo assim o saneamento médico e social do país (Marques, 1994). Alguns médicos paranaenses aderiram aos discursos higienistas e civilizadores, particularmente no início do século XX. Entre os veículos por eles utilizados e que permitiram auscultar seus clamores, destacamos os Archivos Paranaenses de Medicina3 (APM) e a Revista Médica do Paraná (RMP)4, cujas edições circularam nas décadas de 1920-1930. Ao se reconhecerem como porta-vozes da higiene, e atuando, segundo suas normas, na contenção dos flagelos paranaenses, bem como 648
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3 Revista de Medicina Experimental e de Hygiene - Órgão Oficial do Serviço de Prophylaxia Rural, editada mensalmente entre os anos de 1920 e 1923.
Órgão da Sociedade Medica dos Hospitaes do Paraná (fundada em dezembro de 1930), mantém sua periodicidade até os dias atuais sob a chancela da Associação Médica Paranaense. 4
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artigos
na regeneração nacional, orquestraram uma cruzada ousada: a construção de uma nova ordem sanitária, objetivando trazer civilidade para o Paraná. O processo higienização-escolarização redundaria na civilidade, pensada como codificação de normas de conduta, condicionando, adestrando e atuando no autocontrole de pulsões, de forma a submeter os indivíduos às intervenções modeladoras (Elias, 1994, 1993). E ainda mais: civilidade foi um dos componentes do processo civilizatório, considerado não apenas um conjunto de conquistas tecnológicas ou econômicas, mas, antes de tudo, um estágio no relacionamento entre os seres humanos. A escola então foi escolhida como foco para as intervenções nos relacionamentos humanos, desenvolvidas por meio de prescrições médicas pormenorizadas, objetivando o controle das pulsões. Controle este considerado basilar na organização da medicina social, no início dos Novecentos, no intento de construir cidadãos civilizados. Foi um período vibrante de produção de conhecimento e tentativas de disseminar preceitos higiênicos para os professores - os mais indicados para repassá-los aos pequenos cidadãos em formação. De fato, o professorado estava em locais onde os médicos não circulavam; tinham um domínio territorial que faltava aos doutores; eram, portanto, potenciais agentes civilizadores e precisavam ser chamados à cruzada. Construir um Paraná moldado pela saúde e educação apresentava-se como o grande desafio.
A missão de higienizar - prescrevendo para a escola Segundo Marques e Farias (no prelo), os escolares paranaenses, no início do século XX, eram acometidos por várias doenças: gripes, verminoses, anemias, pediculoses, casos de “heredo lues” (sífilis), varicela, sarampo e escarlatina. Este cenário não deixava dúvidas: “sem higiene não haveria condições de saúde adequadas, nem ‘escola produtiva’ e os alunos dificilmente se tornariam futuros cidadãos moralizados e úteis ao estado e à nação, pois até do vigor físico se ressentiam”. Cabia à escola estancar a degeneração nacional. E, nesse intuito, formar professoras e normalistas para atuarem como educadoras sanitárias tornara-se imprescindível. Estudos de Rocha (2003b, p.400) demonstram que instrução, moral e saúde formariam um tripé capaz de alicerçar “[...] a atuação das novas mensageiras da saúde, incumbidas do sublime apostolado de levar a todos os cantos a boa nova da regeneração da raça brasileira” (grifos no original). Guiar a infância faria os professores “cruzados” capazes de aproximarem as crianças do “evangelho da saúde” e promoverem sua conversão à “religião da higiene” (Rocha, 2003b, p.400). Tal papel faria parte da formação de cidadãos vigorosos e virtuosos capazes do engrandecimento nacional, levando o Brasil à “vanguarda da civilização” (Rocha, 2003b). Discursos com ênfase eugenista chegaram ao Paraná. Nos anos 1920, as ideias eugênicas circulavam mais densamente nas publicações médicas paranaenses. A eugenia foi tema de trabalho original de Fontenelle (1923), publicado nos Archivos Paranaenses de Medicina: “[...] palavra que significa ‘geração bôa’ e conhecimentos scientificos que concorrem para melhoramento physico e mental das gerações futuras e a necessidade de restringir a propagação dos individuos doentes, monstruosos, degenerados e deficientes mentaes” (p.107). Como higiene da raça, a eugenia tomava para si discutir os flagelos nacionais, com destaque para: a tuberculose, consanguinidade, alcoolismo e doenças sexualmente transmissíveis. A civilidade e o autorregulamento, de acordo com os médicos paranaenses, dar-se-iam por meio de várias estratégias, dentre elas desenvolver o campo fértil do espaço escolar, uma vez que a criança era considerada “massa modelável” capaz de reproduzir, no ambiente familiar, as prescrições higienizadoras. Há que se considerar: a realidade sanitária das crianças, das famílias, das escolas e das professoras ganhava novos contornos no século XX. Para tanto, os médicos paranaenses organizaram estratégias. E a formação higienista de professores por meio de cursos específicos foi o primeiro passo dado, já que a escola foi escolhida como “sede primeira” de formação de hábitos higiênicos, corroborando as relações entre saúde-educação e seus respectivos representantes. Nos Archivos Paranaenses de Medicina (Redacção..., 1922, p.191-2) destacava-se:
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[...] o ensino de hygiene é de importância tamanha, que bem merece as attenções dos dirigentes do nosso estado, tornando-o mais desenvolvido e em condições de maior efficiencia pratica. Não basta o que se tem feito até aqui [...].
Desde meados do século XIX, intelectuais e cientistas europeus, cujas ideias ecoaram no Paraná, acreditavam que o universo era regido por leis mecânicas, causais e evolutivas, cerceando a liberdade individual. Tratar-se-ia de uma situação na qual a soma das características físicas de uma raça determinaria sua relação com o meio. O fenótipo dos indivíduos era considerado “espelho d’alma”, em especial no que se referia às virtudes e vícios (Schwarcz, 1993). Urgia, para tanto, reconhecer, nas crianças, vícios e virtudes, e fazer intervenções nos primeiros e a promoção das segundas, sendo a escola espaço ideal para tal ação. O estabelecimento de um paradigma “moderno” à saúde brasileira - reconhecido fundamentalmente como um conjunto de ações capazes de introduzirem hábitos higiênicos e eugênicos na população e reestruturarem o “tipo nacional” - orientou os discursos produzidos nas sociedades médico-científicas nos primeiros trinta anos do século XX (Herschmann, Pereira, 1994). Reconhecemos, na construção de uma ordem sanitária nacional, etapas de um processo civilizador, no qual, de acordo com Elias (1997), algumas figurações sociais podem ser analisadas sob a ótica das coerções, nas quais, por distintas maneiras, os seres humanos estão sujeitos a relações de interdependência dentro de dinâmicas sociais específicas. Tais dinâmicas estariam representadas por mudanças nas relações entre coações sociais internas e autocoações individuais, papel amplamente reconhecido nas prescrições médico-higiênicas do início do século XX. O movimento gerado pelos doutores paranaenses para efetivação da ordem sanitária produziu estratégias – discursos, prescrições, ocupações de espaços, eleição de coadjuvantes – que atuaram sobre e sofreram interferências do movimento social urbano paranaense desencadeado pelos atores sociais circulantes no cenário local. Tomamos por hipótese que, além da participação de técnicos paranaenses em eventos e sociedades científicas e profissionais, um dos fatores determinantes na difusão do ideal higienista no Paraná foi a publicação de periódicos locais. Nos anos 1920, um convênio firmado com esferas do governo federal organizou, no Paraná, um “novo serviço sanitário”: o Serviço de Profilaxia Rural (Relatório..., 1923). Estudos realizados por Fernandes (1988) apontam que o rompimento com o convênio federal, ao final da década de 1920, produziu a incorporação do Serviço de Profilaxia Rural à Diretoria dos Serviços Sanitários do Estado do Paraná, o que pode ser explicativo para a interrupção da publicação do periódico. A saúde pública paranaense paulatinamente se inseriu no espaço escolar, local “eficientíssimo” para construção de uma ordem sanitária local e propagação dos ideais higiênicos (Fernandes, 1988).
A formação sanitária do professorado paranaense Neste estudo, consideramos a publicação dos periódicos estudados um elo entre a medicina paranaense e a escola – proposta de sensibilização ao professorado local, pois as revistas pretendiam, entre outros objetivos, ampliar os “mensageiros” da higiene pelas terras paranaenses. Em 1920, uma estratégia para disseminar a possibilidade de regeneração nacional pela educação foi, a pedido do inspetor geral de ensino Cezar Martinez, o Curso Elementar de Higiene para professores, com o objetivo de “[...] prepara-los não só a orientar a educação dos seus discipulos, como tambem para formar no professorado um grupo de propagandistas da moderna hygiene publica” (Araujo, 1921, p.373). O curso gratuito de dois meses, dividido em duas partes, teve conferências abertas ao público, com aulas teóricas no “Gymnasio Paranaense”. Os temas tratados estão listados no Quadro 1.
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artigos
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Quadro 1. Temas do Curso Elementar de Higiene. Responsável
Tema Noções geraes sobre hygiene. Importância do saneamento do Brazil. Ophidismo.
Vital Brazil
Microorganismos pathogenicos em geral. Infecção. As defezas do organismo. Pontos de penetração do agente infectuoso. Evolução e especificidade das infecções. Vaccinação e sôrotherapia.
H. Araujo
Doenças contagiosas em geral. Meios de contagio. Transmissores animaes de molestias: mosquitos, barbeiros, pulgas, piolhos, etc.
H. Araujo
Ectoparasitoses. Noções geraes sobre a escabiose, a pediculose, as tinhas, etc. Sua prophylaxia.
Leal Ferreira
Verminoses intestinaes. Noções theorico-praticas sobre a ancylostomose, a ascaridiose, a trichuriose, etc. Sua prophylaxia.
H. Araujo
Febres eruptivas. Noções geraes sobre a escarlatina, o sarampo e o grupo variólico. Sua prophylaxia. Vaccinação anti-variolica.
Medeiros
Trachoma, raiva e molestia de Heine-Medin. Noções geraes e sua prophylaxia.
Leônidas Ferreira, Leal Ferreira e Medeiros
Infecções typhicas e parattyphicas, dysenterias, Noções theorico-praticas e sua prophylaxia.
Leal Ferreira
Diptheria, tetano e meningite cerebro-espinhal. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.
Medeiros
Tuberculose. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.
Medeiros
Lepra. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.
H. Araujo
Epizootias transmissiveis ao homem; peste; mormo e carbunculo. Noções theorico praticas e sua prophylaxia.
Leal
Impaludismo. Noções theorico-praticas sobre diversos parasitos. Doença de Carlos Chagas e leishmaniose. Sua prophylaxia.
H. Araujo
Doenças venéreas: syphilis, blennorrhagia, etc. Noções geraes e sua prophylaxia.
Sebastião Azevedo
Intoxicações: morphina e cocaina, alcool e alcoolismo. Considerações medico-sociaes. Sua prophylaxia.
Medeiros
Hygiene Geral, hygiene escolar e alguns pontos de medicina social.
Sem indicação
Fonte: Araujo (1920a).
Para Marques e Farias (2007), ao dominarem esses conhecimentos, os professores paranaenses seriam considerados aptos à vigilância e à propagação do ideal higienista, papel que lhes cabia na exemplar missão de educadores. Criado pela Lei 2.095 de 31 de março de 1921, o Serviço de Inspeção Médica escolar estava pautado na experiência paulista, trazida, não sem ressalvas, ao Paraná, pelo então Inspetor Geral do Ensino Cezar Prieto Martinez. Um dos objetivos do serviço era visitar escolas e grupos escolares, examinando “amiudadamente alunos e professores” para compreender a influência que a vida escolar exercia sobre a vida das crianças (Marques, Farias, 2007). Marques (1994) cita que, na formação dos professores, a estreita relação higiene-educação se destacou em teses, congressos e conferências. Os mensageiros, contudo, precisavam ser sabatinados e, nem sempre, conseguiram acompanhar os temas e as aulas, compostas pelo que se considerava à época o melhor da moderna saúde pública. O programa era complexo e, ousamos dizer, inadequado para a finalidade proposta. Segundo Pykosz (2007), torna-se possível perceber, entre o âmbito educacional e o higienista, uma distância entre o prescrito e o efetivado. O respeito aos preceitos da higiene e a pedagogia moderna era dificultado devido às condições estruturais e humanas para seu cumprimento. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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No Paraná, a oficialização do conteúdo higienista para ser desenvolvido junto aos escolares incluiu saberes relacionados às principais doenças que aqui grassavam, sua profilaxia e tratamento, bem como noções de primeiros socorros, o que acabou por expor necessidades relativas à formação do professorado local para o empreendimento de tal tarefa (Pykosz, 2007). Os conteúdos de ensino demonstravam preocupação com a saúde do corpo e da mente, além de um propósito antigo: a formação de hábitos saudáveis, a contribuir para organizar espaços e corpos capazes de participarem da jornada civilizadora proposta pela intelectualidade médica de então (Pykosk, 2007). O relatório do encerramento do Curso de Hygiene Elementar (1920) esclarecia: [...] Dos 65 professores públicos inscriptos no curso submetteram-se a exame apenas 28 senhoras professoras, das quaes uma elevada porcentagem revelou grandes conhecimentos da materia leccionada, tendo apenas uma dellas obtido pontos em numero inferior ao estipulado para a habilitação. (Araujo, 1920b, p.266)
O diretor do curso, o médico Souza Araujo, registrou, no texto, sua satisfação com o resultado da ação, e enfatizou que “grande pleiade de professoras patricias revelou muita intelligencia, perseverança e actividade, causando a melhor impressão aos assistentes [...]” (Araujo, 1920b, p.266). Grandes nomes da Saúde Pública brasileira escreveram nos Archivos, conferindo ao discurso higienista credenciais para destacar o papel missionário dos médicos, sua cruzada civilizatória, além do imprescindível papel a ser desenvolvido pelo professorado local nessa “batalha saneadora”. A prosperidade paranaense, segundo os intelectuais locais, não seria conquistada sem um amplo e profundo intercâmbio entre médicos e povo. Desse modo, consideramos que os professores foram “soldados recrutados” para batalhar junto às crianças e seus familiares, disseminando os ventos civilizatórios trazidos pela ciência higiene. Um assíduo parceiro dos Archivos Paranaenses de Medicina foi o médico Belisário Penna, que fez conferência sobre a consciência sanitária durante visita a Curitiba: “Em qualquer paiz civilisado não se faz mais hygiene sem o concurso da propaganda e da educação sanitária [...]” (Penna, 1921, p.73). Algumas contribuições ao saneamento nacional foram destacadas pela campanha contra os quatro flagellos universaes: alcoolismo, sífilis, tuberculose e consanguinidade, que não respeitavam: “[...] clima, regiões, nem civilisações [...]” (Penna, 1921, p.76-7). Para Penna, o combate a esses males dar-se-ia por uma ciência positiva, experimental e biológica – a higiene – que, em conjunto com a aplicação, pelos professores, da educação higiênica nas escolas, seria capaz de desenvolver nas crianças o domínio da vontade. Tal processo teria sólida base moral, da qual se deduziriam numerosos deveres e cujo cumprimento evitaria às sociedades os perigos que a sua inobservância acarretava à espécie humana: [...] é essa sciencia que crêa uma moral biologica, e nos indica a prophylaxia e therapeutica para previnir e combater os terriveis flagellos que castigam e destroem a humanidade de hoje: o egoismo social, o antialtruismo, o homicidio, a dissolução da familia, o pessimismo, o malthusianismo, as doenças sociaes (tuberculose, syphilis), o anticivismo, o antipatriotismo, a desmoralisação internacional, o suicidio e as intoxicações voluntarias euphoristicas e habituaes (morphina, cocaina, haschich, ether, chloroformio, fumo, alcool etc.). (Penna, 1921, p.77)
De fato, a educação higiênica tornou-se, na década de 1920, grande aliada dos médicos paranaenses. Os Archivos Paranaenses de Medicina passaram a publicar uma secção denominada Educação Hygienica, que serviria de subsídio científico para professores desenvolveram ações higiênicas junto aos escolares. [...] sendo creada uma secção de ‘Educação hygienica’, onde teem apparecido artigos praticos, que se distribuem, por intermedio da Inspectoria de ensino, pelos differentes Grupos e Escolas do Estado [...] quando a educação começa pela escola, desde, mesmo, o
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jardim da infancia, a criação dos bons habitos, que se faz aos poucos entre populações escolares, tem repercussão magnifica no seio da familia. (Redacção..., 1922, p.192)
Acreditar na medicina e na higiene como armas civilizatórias era fundamental para demarcar um campo profissional para os doutores paranaenses, onde não cabiam crendices nem charlatanismos: A par de tudo quanto indicamos é de importancia maxima, primordial, a propaganda intensa, pertinaz, continua, por todos os meios, em toda parte, sob todos os pretextos, e a educação hygienica de toda a gente. E’ imprescindivel criar a todo transe a consciencia sanitaria, quer entre as classes dirigentes, para que saibam legislar, quer entre as dirigidas, para que saibam obedecer sem relutância. (Propaganda ..., 1921, p.268)
O que havia sido feito com relação à formação das professoras, era considerado, pelos médicos locais, muito pouco. Na opinião deles, a independência do ensino de higiene daria oportunidade, aos formandos da Escola Normal, de adquirirem maior soma de conhecimentos. [...] cumpre, pois, introduzir nos trabalhos, o ensino pratico da hygiene individual principalmente; o resto virá aos poucos mas, a reforma deve vir de cima: - formando auxiliares competentes, com uma cultura hygienica moderna, capazes de transmitir aos que lhe forem confiados principios fundamentaes que terão de abrir uma nova via de progresso, para a grandeza do nosso povo. (Redacção..., 1922, p.192)
A batalha pelo poder de difundir conhecimento foi grande entre os higienistas paranaenses. O Serviço de Profilaxia Rural, mais ligado à esfera federal, e os programas estaduais de saúde e educação disputavam entre si importantes recursos humanos - professores e alunos - para propagar ideais em um espaço privilegiadíssimo: a escola. Passados doze anos do curso do Serviço de Profilaxia Rural, em fevereiro de 1932, o diretor da Inspeção Médica Escolar apresentou artigo, à Revista Medica do Paraná, no qual propunha a separação efetiva entre o ensino de biologia humana e o da higiene. Para tanto apresentou roteiro de curso intitulado Educação Sanitária, no qual as questões da higiene escolar exigiriam, dos professores, conhecimentos de vários domínios. Retomar a estratégia de formar professores, colaboradores eficientes na formação da consciência sanitária, era imprescindível. Para alcançar esse objetivo, a Inspeção Médica Escolar do Paraná incluiu, nos seus programas de serviços, o Curso de Educação Sanitária, destinado a “ministrar aos alunos do ultimo ano da Escola Normal conhecimentos necessarios, se bem que elementares, de higiene e medicina preventiva e breves noções sobre as molestias transmissíveis [...]” (Macedo, 1932, p.123). O curso ofertado pela Inspeção Médica Escolar não pretendia, segundo seus organizadores, resolver o problema “da formação mental do professor para a sua elevada missão educativa, nem substituir a cadeira de higiene do curso normal” (Macedo, 1932, p.124). Era considerado um ensaio que buscava fornecer-lhes bases concretas para compreensão do programa de higiene do Estado, de modo “[...] a integrar nosso professor nos problemas referentes ás praticas sadias no meio escolar e consequente repercussão destas nos lares” (Macedo, 1932, p.125). A Inspeção Médica Escolar não possuía, “para a sua missão”, os recursos necessários para dispensar “a colaboração inteligentemente desenvolvida no meio escolar pelo professor. Sem esta colaboração assidua e permanente, todo e qualquer esforço do médico escolar será grandemente prejudicado” (Macedo, 1932, p.125). No Quadro 2, reproduzimos o programa semestral, apresentado em 1931, do Curso de Educação Sanitária da Inspeção Médica Escolar do Paraná para o 5º ano da Escola Normal. Composto por trinta itens, o curso poderia ser considerado uma exposição breve da ciência higiene e principais fatores do adoecimento e mortalidade dos paranaenses.
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Quadro 2. Temas do Curso de Educação Sanitária. Temas trabalhados 1. Micróbios: fórma e estrutura. Protozoários. Cogumelos. Bactérias 2. Biologia geral dos microorganismos patógenos 3. Desinfecção. Agentes de desinfecção 4. Infecção, seus agentes e especificidade 5. Imunidade e imunisação 6. Toxinas e anti-toxinas 7. Difteria 8. Coqueluche 9. Febre Tifóide 10. Tuberculose 11. Lepra 12. Estomatites e conjuntivites 13. Vitaminas – Avitaminoses 14. Vírus filtráveis. Raiva 15. Sarampo 16. Escarlatina 17. Varíola, Alestrim e Varicela 18. Vacinas e soro-vacinas 19. Biologia Geral e papel patogeno dos parasitas animaes: tripanozomas. Spiroquetas. Hematozoarios 20. Doença de Chagas 21. Sífilis 22. Malaria 23. Amoebas. Schistozomas 24. Disenterias 25. Tênias. Ascaris. Oxyurus. Ancilostomum. Tricocefalos 26. Verminoses 27. Sarna e phthiriase 28. Sarcoptes scabiei e Pediculideos 29. Papel patógeno dos dípteros; pulez irritans. Sacopsyla penetrans 30. Papel patógeno dos dípteros. Moscas. Mosquitos transmissores de doenças: anofeles. Stegomya. Fonte: Macedo (1932).
A não sobrecarga de esforços às normalistas era fator considerável na organização do curso, pois, segundo o Inspetor, os deveres morais, por parte das alunas, se resumiriam [...] num pouco de atenção nos ensinamentos e demonstrações praticas dos médicos [...] espurgado de minucias fastidiosas bem como de terminologia técnica, ao alcance de qualquer inteligencia, abrirá novos horisontes á mentalidade dos futuros professores para o julgamento das nossas realidades sanitárias e muito contribuirá para o aproveitamento de uma colaboração valiosa, perfeitamente integrada das suas responsabilidades na educação popular, para a transformação dos nossos hábitos de higiene. (Macedo, 1932, p.125)
Em termos de conteúdos, não percebemos diferenças significativas entre o Curso Elementar de Higiene (1920) e o Curso de Educação Sanitária da Inspeção Médica Escolar do Paraná (1932). Torna-se importante destacar, no primeiro curso, um tom moralizador, perceptível pelos temas “saneamento do Brasil”, “higiene geral e higiene escolar”, que não aparecem no curso de 1932, mas que certamente estariam diluídos quando das discussões sobre sífilis. Talvez, mais importante que a diferença conceitual entre os cursos fosse a distinção entre seus promotores: o Serviço de Profilaxia Rural (ligado ao Departamento Nacional de Saúde Pública) e o Serviço de Inspeção Médica Escolar, numa tentativa de, por meio do segundo, valorizar a educação e os médicos locais. 654
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Além de cursos, as normalistas recebiam a visita regular dos doutores paranaenses na Escola Normal. Chamadas ao cumprimento do dever moral de engajamento à missão higienista, tiveram contato, entre outros, com Milton Munhoz, professor de Higiene da Faculdade de Medicina do Paraná. Ao versar sobre saúde pela educação, em palestra proferida no Salão Nobre da Escola Normal, como encerramento da Semana da Educação, em 25 de novembro de 1933, Munhoz afirmou, ao público, seu convencimento da parceria higiene-educação como caminho verdadeiro para realizar os “sonhos mais belos da Medicina Social”. Atribuiu relevância ao papel dos médicos, cuja missão era ser [...] orago da saude, aconselhando os meios de a manter integra, ensinando as medidas de prevenção e colocando ao alcance de todos os recursos de defesa contra o inimigo comum que é a molestia. O medico é bem o representante terreno das duas divindades da mitologia grega. Como Asclépio, astuciosa, vigilante e prudentemente cura, quando póde, os organismos doentes e como Higieia, de posse da sabedoria dos fenomenos normais e patologicos, transmite aos que estão sob sua imediata guarda a verdade cientifica do seu tempo para o bem de seus semelhantes. (Munhoz, 1933, p.11)
Para Munhoz e outros médicos paranaenses, era deles também o papel de sensibilizar, treinar e supervisionar a ação do professorado na coadjuvância da missão higienista no Paraná. Segundo ele, a ingerência do médico não deveria ser menor na educação, pois acreditava que o pedagogo deveria atuar em parceria com o primeiro, que, de fato, seria o técnico capaz de determinar as possibilidades físicas e mentais dos educandos e assim “[...] orientar, corrigir e auxiliar a tarefa do professor” (Munhoz, 1933, p.12). A ciência capaz de aproximar pedagogia e medicina seria a higiene, pois, ao incorporar conhecimentos de outras ciências, alargou desmensuradamente seu raio de ação: “[...] Os conhecimentos que mobilisa, a sua constante interferência em todos os quadrantes da atividade humana, a necessidade quotidiana dela em todos os nossos atos, avantajaram-na á própria ciência donde proveio [...]” (Munhoz, 1933, p.13). Com poderes de interferir na saúde, “[...] fator imprescindível de progresso e para a pátria um dos maiores motivos de sua grandeza”, a Higiene seria capaz de produzir também cooperação social. A participação dos professores na valoração da saúde, um dos grandes “bens concedidos ao homem”, não era privilégio nem prêmio distribuído pela sorte, mas sim, considerado por Munhoz, objetivo conquistável pelo esforço e inteligência. Estes teriam, talvez, um de seus mais importantes papéis, afinal, segundo ele, a “saúde perene” e o desaparecimento das moléstias eram passíveis de serem conquistados pela aplicação dos preceitos da higiene (Munhoz, 1933, p.12). A assistência sanitária, efetivada também por meio da educação, deveria estender sua proteção a todos os cidadãos. Segundo Munhoz, a proteção à sociedade seria “[...] passivel de medidas, às vezes violentas, mas explicáveis e necessárias” (Munhoz, 1933, p.12). O conjunto de medidas apresentadas pelos higienistas possibilitariam, então, o aperfeiçoamento contínuo da sociedade que se formulava, para o médico paranaense, em uma só palavra: progresso (Munhoz, 1933, p.13). Mais que propiciar saúde, a higiene poderia colocar os desviantes em condições tais “que as suas energias se não desviem nem esmoreçam, que a sua contribuição economica e social seja propicia” (Munhoz, 1933, p.14). Apresentar esse ideário às jovens normalistas fazia parte de uma estratégia dos médicos paranaenses: torná-las copartícipes da construção de uma consciência sanitária nacional, na qual a educação higiênica impor-se-ia como complemento inseparável da educação geral e, também, como base formadora de cidadãos saudáveis e capazes de promoverem o progresso e a prosperidade. [...] devemos educar não para a escola mas para a vida de modo a que se tornem em elementos úteis e produtivos [...] Da cera virgem tem o educador de modelar, com habilidade de artista, o homem capaz. A educação não se limita somente a desenvolver as faculdades mentais. Vai mais longe [...]. (Munhoz, 1933, p.12-3)
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Sob tal perspectiva, a saúde pela educação, segundo o paranaense Munhoz, precisava de regras para não ser uma proposta utópica. Passou, então, a elencar alguns preceitos, que uma vez desenvolvidos pelas jovens professoras, tanto contribuiriam para o sucesso da empreitada higienista. O primeiro passo seria criar, nos indivíduos, hábitos sadios: A formação de habitos bons, habitos sadios, na criança de tenra idade é o ponto de partida da educação [...] o empirismo nos aconselha que não há mistér esperar que a razão desperte para se iniciar a educação [...] A educação higiênica cifra-se na aquisição de habitos que lentamente incorporados ao automatismo psicologico formarão mais tarde a consciencia sanitária (grifo no original). Quanto mais cedo se a iniciar tanto mais reais os resultados. A criança registra passivamente as impressões recebidas. (Munhoz, 1933, p.14-5)
Para interlocutor dos “hábitos bons” tomamos Norbert Elias (1997), que entende habitus basicamente como uma segunda natureza, não tomada de forma essencialista, fixa e estática, mas como soma de modificações ao caráter individual movimentadas pelo autoaperfeiçoamento. Os higienistas preconizavam, para a regeneração da raça, o desenvolvimento da capacidade humana de autoaperfeiçoar-se com a consequente aquisição de hábitos saudáveis. A escola, para alguns médicos paranaenses, era [...] pedra angular da educação higienica. Para tanto deve estar preparada para a sua nova missão. O edificio onde funciona deve ser construído de acordo com a engenharia sanitária, o material escolar adequado, as instalações sanitárias suficientes e mantidas em rigoroso asseio [...]. (Munhoz, 1933, p.14-5).
Desse modo, Munhoz apresentou, aos alunos da Escola Normal, prescrições, descritas no Quadro 3.
Quadro 3. Regras para a escola e professoras. Lista de prescrições do médico Milton Munhoz A criança deverá entrar e sair limpa da escola. Durante as aulas a professora corrigirá atitudes irregulares nas carteiras e bancos, prevenindo posições viciosas. No recreio a professora regulará jogos e exercícios de acordo com a capacidade física dos alunos. A professora deverá ensinar aos alunos a se servirem dos aparelhos sanitários. A professora evitará que os alunos façam sua merenda em local impróprio e com mãos sujas, mastigando apressadamente os alimentos. Colocar em cada escola uma professora da saúde escolhida entre as moças de mais bela aparência em pleno gozo de saúde e entusiasta da higiene. As regras higiênicas deverão ser praticadas a princípio intencionalmente e depois de forma automática. A professora deverá despertar na criança o interesse pela saúde, de forma positiva, por meio de brincadeiras, pelo exemplo e pela ação. A professora estimulará e organizará a formação de pelotões de saúde, sob moldes militares, com promoções, distintivos, competições e até cadernetas de serviço em que serão anotados, além das conquistas, cuidados corporais, peso e altura. A professora deverá encaminhar os alunos para exames médicos periódicos. Fonte: Munhoz (1933).
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Para o cumprimento de tantas prescrições, se impunha, como preliminar, a instrução das professoras, pois para Munhoz a tarefa educacional em matéria de higiene caberia ao professorado primário, sendo considerado, por ele, incoerência tentar qualquer iniciativa sem a prévia formação de um corpo consolidado de educadores. Todos esses envolvimentos seriam para dar conta dos dois maiores problemas nacionais, conforme o higienista paranaense: educação e higiene. Volvamos as nossas vistas para as escolas, colocando-as á altura da sua nobre missão, introduzamos nela a educação higienica, eficiente e proveitosa, demos corpo a essa aspiração, que até hoje na poude ainda se concretisar como devera [...] Trabalhemos pela saude do nosso povo e assim teremos contribuído para a felicidade do Paraná e grandeza do Brasil. (Munhoz, 1933, p.18)
Em 1937, a Revista Medica do Paraná publicou tema que destacou as mazelas do meio rural, referindo-se à ignorância como a maior delas. Propôs que a escola primária fosse estrategicamente reconhecida como Centro de Educação: “[...] as crianças escolares são physica e espiritualmente mais sadias e, por isso mesmo, mais alegres; as novas idéias de progresso e civilização são mais facilmente difundidas pelas vias de communicação [...]” (Gonzaga, 1937, p.301-2). Todavia, o progresso por si não era garantia de um processo civilizador: E’ sabido que o progresso de um paiz está em razão dirécta da cultura do povo. O saber é o principal capital da propriedade. E a instrucção, em todos os seus graus, é a unica chave que abre a porta ao progresso material, social, civico e profissional. Quando o ensino aliado á hygiene tiver penetrado em todas as massas populares das mais reconditas regiões ruraes, novos e promissores horizontes estarão desvendados para a nossa nacionalidade. (Gonzaga, 1937, p.301-2)
O caboclo se tornou referência no reconhecimento dos grandes problemas relacionados ao progresso nacional, de modo que sua redenção ou impedimento de seu aparecimento seriam conseguidos pela aplicação do ideal higienista, no qual educação e eugenia seriam fundamentais, porém somente o apostolado das professoras não seria capaz de tamanha mudança: A instrução e a hygiene constituem as duas forças eugenisadoras capazes de salvar a criança da roça – o nosso caboclo de amanhã. A simples e rudimentar alphabetização nada adeanta sem a complementar educação: educação civica, educação physica, educação economica, educação profissional, educação sanitaria, enfim, transformar o inconsciente e consciente [...]. (Gonzaga, 1937, p.303)
O imperativo categórico era convocar médicos para formar sanitariamente as professoras, pois, mesmo após os cursos realizados, críticas se faziam presentes, talvez pela distância existente entre os cursos ministrados e a prática pedagógica cotidiana: Infelizmente, entre nós, o ensino de hygiene nas escolas normaes deixa muito a desejar [...] A escola primaria deve ser a primeira e a maior escola de hygiene de um paiz [...] ella exerce com o ensinamento da hygiene uma nova funcção social [...] cada escola deve ser um templo de hygiene onde as crianças se habituem a praticar ritos de asseio, a hygiene sendo uma religião cívica [...]. (Gonzaga, 1937, p.303)
Foram, então, apresentadas algumas conclusões que já configuravam a prática de alguns médicos paranaenses, de acordo com a citação: “Não basta combater o analphabetismo; é necessario hygienisar pela educação e pelo saneamento [...] O ensino de hygiene nas Escolas Normaes deve ser intensivo, cuidando tanto da hygiene urbana como da rural [...] (Gonzaga, 1937, p.304). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Considerações finais Ao final do século XIX e início do século XX, o ideal de progresso adquiriu, para os médicos paranaenses, significados distintos, mas com um mesmo receituário a balizar seus discursos: higiene se ensina e se aprende na escola. Naquele período, a organização de uma ordem médica no Paraná, centrada em um modelo para a escola projetado com bases na racionalidade científica advinda da ciência higiene, produziu mais que discursos; passou a elaborar prescrições para seus usuários, mesmo que a acessibilidade a elas fosse um fator complicador para a grande maioria dos paranaenses. Cuidar, proteger e higienizar a infância, por meio da escola, foi tarefa assumida com vistas à inserção do Paraná no processo de saneamento sanitário e social que, segundo seus idealizadores, uma vez disseminado, promoveria a melhoria de nossa gente, de nossa raça e a contenção das doenças que nos assolavam. A construção de uma legitimidade local e o anseio de uma identidade própria forjaram a difusão de um ideal europeizado, no qual médicos discursavam sobre “o clima salubérrimo” e sobre um espaço idealizado para o Paraná. Contraditoriamente, conviviam com as estatísticas nada “civilizadas” da morbimortalidade populacional, com a organização e construção de hospitais, sanatórios, entre outros estabelecimentos de “combate às doenças”. No afã de transformar esse quadro, elegeram-se a escola e a infância para serem higienizadas e, assim, galgarem etapas na construção de um processo civilizador. Pois vale lembrar que crianças moldadas pela higiene tornavam-se importantes disseminadoras de hábitos higienizados, transformandose também em agentes da saúde, atuando especialmente junto às suas famílias. Nossa pretensão foi dar visibilidade à ciência da higiene no movimento de medicalização da sociedade paranaense, adentrando em espaços ocupados pela retórica higienista, nas intervenções do cotidiano, em um processo de civilização que vislumbrava ser caminho para o progresso e redenção nacionais. Seguindo um ideário positivista do final do século XIX, a higiene e a educação adentraram ao século XX, consolidadas em seu papel difusor do espírito científico, imprescindível à regeneração social, mesmo que, em vários momentos, o “social” ficasse à margem das discussões e as formas ditas higienizadas de viver propostas fossem pouco acessíveis às populações pobres. Ao se considerarem “intelectuais”, os médicos paranaenses se conformaram como agentes difusores da ciência e valorizaram o potencial do higienismo como estratégia civilizadora. Como foco central das práticas discursivas dos médicos paranaenses, higiene e educação foram o arcabouço deste estudo. Os saberes médicos construídos se aproximaram dos saberes pedagógicos, expondo, frequentemente, aspectos contraditórios, mas que tiveram como base a higienização da escola e de seus usuários. Stephanou (1999) comparou esta produção de saberes e prescrições a um caleidoscópio, cuja visão infinita permite desvelar relações entre sujeitos higienizadores e higienizados e produção de procedimentos de controle e dependência.
Colaboradores Liliana Müller Larocca responsabilizou-se pela elaboração do manuscrito (com base em um capítulo da tese de doutoramento). Vera Regina Beltrão Marques responsabilizouse pela análise do referencial teórico, análise das fontes e discussões temáticas.
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LAROCCA, L.M.; MARQUES, V.R.B.Higiene, cuidar y civilizar: el discurso médico para la escuela paranaense (1920-1937). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.14, n.34, p.647-60, jul./set. 2010. Con base en la investigación de los discursos médicos referentes a la higienización de la escuela, este estudio plantea el problema de la difusión de la ciencia Higiene en la sociedad paranaense en el periodo comprendido entre 1920 y 1937. Los discursos para la escuela presentes en varias fuentes destacándose los Archivos Paranaenses de Medicina y la Revista Médica del Paraná, estado de Brasil, hicieron emerger la percepción de una medicina en la cual los médicos defendían una nueva función social: la de educadores. Al plantear los temas sobre una intervención en las escuelas y en sus usuarios, pretendían “cuidar, proteger e higienizar la infancia”, tarea asumida hacia la inserción del territorio paranaense en el proceso nacional de saneamiento sanitario y social. Se trata de una investigación de carácter histórico inspirada en las ideas de proceso civilizador de Norbert Elias. De este modo se propone reconocer propuestas de civilidad contenidas en los discursos médicos. Los conceptos de educación y las prescripciones para la escuela en el período estudiado producidas por la Ciencia Higiene son aquí presentadas.
Palabras clave: Salud escolar. Eugenia. Historia de la medicina. Medicina y educación.
Recebido em 10/05/09. Aprovado em 04/01/10.
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Projeto: Ylê ayié yaya ilera (Saúde plena na casa desta existência): equidade e integralidade em saúde para a comunidade religiosa afro-brasileira
Márcia Constância Pinto Aderne Gomes1
Introdução A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Brasil, 2001a) definiu o conjunto de princípios, marcas, diretrizes e objetivos voltados para a melhoria das condições de saúde desse segmento da população. Incluiu ações de cuidado e atenção à saúde, bem como de gestão participativa, controle social, produção de conhecimento, formação e educação permanente de trabalhadores de saúde, visando à promoção da equidade em saúde da população negra. Este trabalho pretende relatar uma experiência de implantar um serviço de saúde dentro de um espaço cedido em um terreiro de candomblé na zona norte do município do Rio de Janeiro. A partir da reflexão de indicadores de saúde, revisão documental da política para saúde da população negra e contatos com lideranças do Movimento Negro e de religiões de matrizes africanas, surgiu a necessidade, ou melhor, a possibilidade de construção de um projeto de atenção integral e equânime para um grupo de mulheres negras, pobres e vinculadas ao Candomblé.
Desigualdades raciais e indicadores de saúde A classificação em termos de raça, usada no Brasil com fins de estudos demográficos, é, desde 1991, a do IBGE, a qual entende que o indivíduo deve autodeclarar sua cor, sem levar em consideração a categoria biológica que a escolha acarretaria. Enfim, é uma classificação arbitrária, mas que permite ao indivíduo definir em que raça ele se considera inserido (Oliveira, 2004). O censo brasileiro pede às pessoas que se classifiquem dentro de uma das cinco categorias seguintes: branco, preto, pardo, indígena ou amarelo (oriental). Pretos e pardos constituem 45% de toda a população e 98,7% da população não-branca brasileira (Brasil, 1996). No Brasil, entretanto, assumir-se na categoria racial “negra” traz consigo diversos elementos conflituosos, já que a sociedade ainda vê como “certos”, “bons” e “bem-sucedidos”, pouquíssimos elementos dessa categoria (Oliveira, 2004). O Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD, intitulado “Racismo, pobreza e violência” (Brasil, 2005), analisou as desigualdades raciais em áreas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Centro Municipal de Saúde Milton Fontes Magarão (SMSDC/RJ). Av. Amaro Cavalcanti, 1387. Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.735-041. marconstanci@hotmail.com 1
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como renda, educação, saúde, emprego, habitação e violência, e concluiu que os negros estavam em situação pior em todos os indicadores. O relatório mostrou que as diferenças entre brancos e negros apontaram, em alguns casos, uma defasagem de mais de uma geração. A porcentagem de homens negros com curso superior completo, em 2000, era menor que a dos homens brancos em 1960. A renda per capita dos brancos de 1980 era o dobro da dos negros em 2000. Do mesmo modo, a taxa de analfabetismo dos negros, em 2000, era maior que a dos brancos em 1980. Os negros apresentavam, em 2000, esperança de vida semelhante à dos brancos em 1991. O estudo apontou também que a taxa de homicídio entre os negros é o dobro da dos brancos. Este relatório contribuiu para o debate a respeito do racismo no Brasil, pois revelou indicadores incontestáveis de manifestação desse fenômeno. Racismo, pobreza e violência, afirmou o relatório, são “problemas que se imbricam de tal forma que só podem ser confrontados conjuntamente, combinando tanto ações de cidadania e de participação com políticas públicas, sejam elas de caráter universalista ou focalizada” (Brasil, 2005, p.12). O município do Rio de Janeiro, cuja maioria da população é branca, era, em 2000, a segunda cidade negra do Brasil, com 2,36 milhões de habitantes fazendo parte deste grupo racial ou de cor (Paixão, 2003). A cidade do Rio de Janeiro abrigava, na ocasião, 831,8 mil negros pobres. Este número equivalia a 33,3% dos negros abaixo da linha da pobreza no estado do Rio de Janeiro. O percentual de negros abaixo da linha da indigência era de 9% frente a 3,9% dos brancos (Paixão, 2003). Outra pesquisa constatou que as gestantes negras (pardas e pretas) têm maior dificuldade no acesso aos cuidados e informações de saúde (Leal, Gama, Cunha, 2005). Em relação à consulta de pré-natal, os dados do Ministério da Saúde informam que a mulher negra (preta e parda) tem menos acesso à consulta de pré-natal, podendo estar mais exposta ao risco de morte materna e fetal. Travassos e Martins (2004) realizaram uma revisão de conceitos de “acesso” e de “utilização dos serviços de saúde”. As autoras identificaram pontos de distinção e de articulação entre estes conceitos e concluíram que, apesar das discordâncias nas terminologias empregadas e na abrangência destes, a ideia que prevalece é que acesso é uma dimensão do sistema de saúde associada à oferta, e que há uma tendência de deslocar o conceito de acesso para os resultados dos cuidados de saúde. Assim, para melhorar as condições de saúde das pessoas, seria necessário formular políticas para um melhor desempenho dos sistemas de saúde, a partir da construção de modelos que incorporem as particularidades de cada contexto a ser enfrentado.
Aproximação com o tema Em dezembro de 2006, fomos procurados, na Coordenação de Saúde da Área 3.2,2 por uma líder religiosa afro-brasileira que solicitava a implantação de um Posto de Vacinação (PV) em seu Barracão (sede do Terreiro de Candomblé) para atender aos moradores da região. Na ocasião também foram discutidas questões a respeito do acesso e da qualidade da atenção à saúde prestada a um grupo particular de mulheres negras, pobres e vinculadas à religião de matriz afrobrasileira, que frequentavam seu terreiro – “Ilê ya manjele o” - em Água Santa (subúrbio do município do Rio de Janeiro). Essa líder religiosa e social representava 75 mulheres e suas famílias, todas vinculadas ao seu Terreiro de Candomblé, por questões religiosas e também 664
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2 O Município do Rio de Janeiro é dividido em dez áreas de planejamento de ações de saúde. A Área Programática 3.2 abrange 26 bairros (Jacarezinho, Inhaúma, Tomas Coelho, Jacaré, Del Castilho, Pilares, Engenho da Rainha, Piedade, Engenho de Dentro, Engenho Novo, São Francisco Xavier, Água Santa, Encantado, Lins de Vasconcelos, Maria da Graça, Abolição, Higienópolis, Cachambi, Riachuelo, Rocha e Méier), totalizando uma população de 561.474 habitantes (Instituto Pereira Passos, 2002), distribuídos em 44 Km2, sendo 70% usuários do SUS.
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Machado e Carvalho (2004), escrevendo sobre a dor da invisibilidade do negro, trazem diversos autores que associam a invisibilidade do negro brasileiro como consequência concreta, eficiente e direta do racismo. Oportunamente, retornaremos ao assunto. 3
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pelo trabalho de cunho social e de educação em saúde (prevenção de doenças sexualmente transmissíveis – DST e de aids) desenvolvido por ela e algumas de suas “filhas-de-santo”. Nosso objetivo inicial era escutar e qualificar as necessidades de atenção à saúde do grupo de mulheres trazidas por essa líder, conhecer seu território, apresentar as unidades e os serviços oferecidos pela rede assistencial da CAP 3.2, e iniciar um estudo de viabilidade para a realização do PV no espaço do terreiro. No cumprimento de nossos objetivos, escutamos as queixas apresentadas, que foram anotadas para posterior discussão com os profissionais e gestores de saúde da CAP 3.2. As queixas incluíam: dificuldade de acesso, assistência não-resolutiva, preconceito racial, preconceitos com a pobreza, maus-tratos, preconceitos relacionados à prática de religião afro-brasileira e “invisibilidade”. Este último nos causou um grande estranhamento, pois como seria possível que um ser humano fosse invisível? Só entendemos o que isto significava quando conhecemos as mulheres, as examinamos e ouvimos suas histórias, soubemos como evoluíram seus sinais e sintomas, observamos suas várias receitas e/ou saquinhos cheios de medicamentos. As “invisíveis”3 tinham acesso aos serviços, eram atendidas, acompanhadas, medicadas e faziam exames, porém, ao vê-las e escutá-las, tivemos a impressão de que nunca elas tinham sido vistas. Na ocasião, conhecemos o terreiro e a mãe-de-santo nos apresentou o espaço onde as práticas religiosas aconteciam e as outras atividades de cunho social (oficinas de geração de renda por meio de grupos de artesanato, reforço escolar para as crianças, e capacitação e palestras sobre DST/Aids, violência, planejamento familiar e outros temas de promoção à saúde). Na ocasião, a líder religiosa manifestou seu desejo de transferir as atividades não-religiosas e montar um consultório médico na casa em frente para atender às mulheres frequentadoras do terreiro. Comprometemos-nos a estudar esta possibilidade, pois a população que frequentava este espaço religioso habitava a área de responsabilidade sanitária da CAP 3.2 e comunidades de alta vulnerabilidade social. Deveríamos, então, construir um projeto que pudesse confrontar as demandas de saúde da população da área a partir do diagnóstico de saúde deste grupo, para planejar ações de promoção de saúde, prevenção de doenças e assistência a estas mulheres, suas famílias e comunidade pautadas nos princípios do SUS, nos moldes da Estratégia de Saúde da Família (Brasil, 2001b, 2000, 1997). Acreditamos que as transformações que podem ser alcançadas na reorganização da atenção básica decorrem da adoção de ações institucionais globalizantes e includentes de inovações das práticas de saúde presentes nas diretrizes operacionais do PSF (Gomes, 2005). Para cada objetivo, foram pensados ações e prazos. As reuniões formais e informais para planejar e executar o projeto foram as que mais demandaram nossos esforços e tempo.
Objetivos gerais • Planejar e organizar o acesso de mulheres negras, pobres e vinculadas à religião de matriz afro-brasileira em situação de exclusão social. • Viabilizar o atendimento das necessidades de saúde desta população a partir do conhecimento das estratégias que são empregadas, com o objetivo de oferecer alternativas contextualizadas. • Promover ações que se destinem à promoção de saúde, à prevenção e controle de doenças infectocontagiosas e/ou crônicas e à inclusão de forma resolutiva na rede de serviços de saúde existente. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Os objetivos específicos • Realizar revisão bibliográfica sobre a saúde da população negra, indicadores de saúde, religiões de matriz afro-brasileira, exclusão, preconceito e intolerância. • Construir uma agenda de atenção às mulheres negras e suas famílias. • Planejar e organizar o acesso aos serviços de saúde e identificar as necessidades de acesso a serviços de atenção básica e/ou especializada. • Iniciar um projeto-piloto: • Montagem de consultório simplificado e transitório4; • Providenciar, junto aos diretores de unidades próximas, o empréstimo ou doação de bens para montagem do consultório simplificado transitório; • Criar cotas de medicamentos, insumos e outros produtos de consumo; • Recrutar profissionais para montar equipe multidisciplinar; • Registrar ações, consultas, encaminhamentos, procedimentos, acompanhamento, pedidos de material, cotas, gastos, e outros dados relativos ao projeto. • Divulgar e discutir esta experiência em diversos fóruns. • Avaliar o projeto. • Contatar outras lideranças religiosas para aumentar a parceria saúde e religião de matriz afro-brasileira. • Iniciar mapeamento do território de moradia dessas mulheres. • Realizar oficinas de integração entre profissionais de saúde e lideranças religiosas.
Passos metodológicos Utilizamos diversos métodos de coleta de dados, tanto quantitativos quanto qualitativos. Foram examinados os documentos referentes à Política de Saúde da População Negra e as estratégias para a cidade do Rio de Janeiro. Paralelamente, foi feita uma revisão da literatura pertinente ao tema, para refletir e fundamentar pontos teóricos que sustentaram a parte analítica deste estudo. Optamos por uma pesquisa-ação que fosse, acima de tudo, ética - e todos os cuidados estão sendo tomados neste sentido, pois assumimos o compromisso de pensar nela como uma prática social, garantindo a visibilidade dos procedimentos de coleta e análise, construindo uma relação dialógica entre entrevistador e entrevistado (Spink, Menegon, 2000). Esta dinâmica de investigação e de trabalho, que combina e cruza múltiplos pontos de vista, é conceituada/denominada de triangulação de métodos, e tem, como premissa, a integração subjetiva e objetiva no processo avaliativo, pois, com várias visões de muitos informantes, integrará a análise das estruturas, processos e dos resultados, permitindo a compreensão das relações envolvidas no projeto (Minayo, Assis, Souza, 2005).
Desenvolvimento da proposta O projeto foi aprovado para execução pelo Comitê de Ética em Pesquisa e pela coordenadora da área, que nos autorizou a negociar, junto às unidades de saúde, as doações, as cotas de medicamentos e insumos para o projeto. Simultaneamente, a líder religiosa se encarregou de disponibilizar o local. A casa que abriga o projeto sofreu uma pequena reforma, com algumas adaptações, e assim que foi disponibilizada iniciamos o trabalho em junho de 2006. Nas reuniões formais, nos diversos encontros informais que realizamos, nas visitas às unidades e pelos relatos do cotidiano das práticas de saúde, podemos 666
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4 Nossa intenção não é retirar esta população da rede assistencial a partir da criação de novos espaços de atendimento, mas sim construir possibilidades de inclusão dessas pessoas na rede.
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apontar algumas fragilidades, que nos permitiram intuir que a equidade nos serviços de saúde era apenas pro forma. Foram relatados fatos que apontam para a existência de obstáculos para os diferentes tipos de usuários. Nesses encontros, escutamos discursos contundentes que incorporavam argumentos contraditórios e frequentemente desfavoráveis à inclusão dessas mulheres negras, pobres e de religiões de matrizes afro-brasileiras. Estes discursos, provenientes de discussões econômicas, políticas, partidárias, religiosas e outras, serviam para negar-lhes o acompanhamento, rejeitá-las e às suas famílias, e “fechar a porta de entrada” de suas demandas de saúde. Muitos dos argumentos apresentados convergem para uma visão destes profissionais bem próxima à encontrada por Reis (2000). Essa pesquisadora analisou as percepções da elite (políticos, burocratas, líderes empresariais, líderes sindicais, elites militares, religiosas, intelectuais e outras, e atores ocupando papéis de destaque em seu meio) sobre a pobreza e as desigualdades sociais no Brasil e em outros países. Ela se debruçou sobre atitudes e valores políticos básicos a respeito de justiça e igualdade social. As conclusões de sua pesquisa apontam que a pobreza e a desigualdade social têm grande importância (absoluta e relativa) para a elite, sendo identificados como principais problemas: a inflação, os problemas da saúde, da educação, pobreza e desigualdade social, considerados como ameaças à democracia. O que mais chamou nossa atenção foi o reconhecimento da questão da desigualdade, e o não-reconhecimento da interdependência existente entre a missão dos profissionais vinculados a um sistema público de saúde que possui, entre os seus princípios, o da equidade de acesso. Esses profissionais ainda não estariam convencidos “das necessidades de coletivização das soluções sociais e a pertinência de cooperar nestas tarefas” (Reis, 2000, p.499-500). O Brasil recebeu, ao longo de mais de três séculos, cerca de quatro milhões de africanos como escravos. Embora tenham sido verificadas oscilações no número de escravos importados no decorrer de todo o período escravocrata (Tramonte, 2001), apesar de a sociedade escravagista ter dividido as famílias e espalhado grupos étnicos através do país, os escravos conseguiram manter alguns laços com sua herança étnica. Os colonizadores dividiram os grupos de escravos em diferentes nações (termo referido ao local geográfico de descendência de um determinado grupo étnico e sua tradição cultural); consequentemente, e de forma inesperada, este conceito de nação fomentou a manutenção de várias identidades étnicas, reforçando a importância da transmissão cultural e religiosa (Jensenn, 2001). O sentido da ancestralidade é mantido a partir da linhagem do santo, que não coincide com a linhagem biológica. Estes grupos de múltiplas inter-relações estabelecidas são liderados, em sua grande maioria, pelas ialorixás, ou mães-de-santo. Na família-de-santo, isto é, no sistema da família religiosa de matriz afro-brasileira, a mãe-de-santo é a chefe e todos os seus filhos são iniciados por ela. Assim, a famíliade-santo assume importante papel, pois foi (na época dos escravos) e é capaz de penetrar no vazio emocional, espiritual e social deixado pela família biológica (Tramonte, 2001). As religiões afro-brasileiras, trazidas por africanos ou originadas de tradições culturais de povos que entraram no Brasil como escravos, nem sempre foram professadas livremente. As diferentes organizações e expressões foram impedidas no período colonial pela Inquisição, quando foram encaradas como feitiçaria e prática diabólica. No Império, foram encaradas como divertimento de negro, sujeitas à autorização da autoridade e a serem perseguidas como feitiçaria e curandeirismo, objeto de penalidade em Códigos de Postura municipais estabelecidos no reinado de D. Pedro II. Depois da proclamação da República, apesar da “liberdade de crença”, os terreiros continuaram a ser considerados como casas de diversão, acusados da realização de práticas mágicas e curandeirismo, enquadrados como crime no Código Penal brasileiro de 1890 e crimes contra a saúde pública, sendo encarados como centros geradores de loucura. Em decorrência disso, a religião afro-brasileira sempre enfrentou controle e perseguição da polícia e de órgãos governamentais (Ferreti, 2001). Atualmente, ainda continua sendo encarada de forma preconceituosa, o que impede que os terreiros recebam do poder público o mesmo tratamento que é dispensado a outras religiões, e tem levado muito dos seus adeptos a negarem sua crença e sua vinculação a terreiros (Ferreti, 2001). Brito e Malandrino (2007) demonstraram que os estudos historiográficos sobre a escravidão fazem poucas referências à religiosidade, ou então, referências genéricas, que não ajudam a compreender a experiência da religiosidade para a vida dos escravos, abordando o tema a partir da instituição religiosa (católica). A negativa de inclusão dessas mulheres aos serviços também foi atribuída ao preconceito 667
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contra a religião afro-brasileira. Esse preconceito, que no passado encorajou práticas discriminatórias de católicos e de espíritas, hoje se mantém por evangélicos, sobretudo da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD (Ferretti, 2001). Estudos recentes nos permitem afirmar que existem evidências de que a religiosidade está associada ao bem-estar das pessoas e de sua qualidade de vida. A Organização Mundial de Saúde vem desenvolvendo um instrumento denominado “religiosidade, espiritualidade e crenças pessoais no seu instrumento genérico de avaliação de qualidade de vida”, o WHOQOL-100 (World Health Organization Quality of Life Instrument), para avaliar esta dimensão (qualidade de vida e religião) dentro de uma perspectiva transcultural (Fleck et al., 2003). A religião é uma das práticas mais universais e antigas, praticada por todos os povos. O homem, ao longo da história, sempre manteve uma relação com o sagrado, porém, ao entrarmos na era do conhecimento e do saber mais objetivo, “quando a ciência se impôs como a única capaz de legitimar o campo do conhecimento, a religião foi posta de lado” (Guimarães, 2005, p.175-6). O período atual caracteriza-se, no entanto, por um momento de transformação (Guimarães, 2005), e volta à cena a legitimidade das crenças religiosas, retornando a importância da religião como promotora do suporte emocional, instrumental e informativo (Faria, Seidl, 2005). Assim, entendemos que o conjunto de crenças relacionadas com aquilo que aquelas mulheres consideravam como sobrenatural, divino, sagrado e transcendental - bem como o conjunto de rituais e códigos morais que derivam dessas crenças - deveria ser entendido, considerado e respeitado.
As mulheres negras, pobres e “de santo” Em junho de 2007, a proposta inicial se materializa a partir do cadastramento e atendimento das mulheres vinculadas ao “ilê manjele ô”. Nesse dia recebemos os questionários respondidos que haviam sido previamente distribuídos durante uma reunião das mulheres, sendo complementados por outras informações da Ficha Central da SMS RJ. Sete pessoas se autodeclararam brancas (10,8%); 34 negras5 (52,3%) e 24 (36,9%) não souberam responder. Em relação à escolaridade, duas (3,15%) eram analfabetas; 24 (36,9%) possuíam Ensino Fundamental incompleto; sete (10,85) tinham Ensino Fundamental completo; três (4,6%) com Ensino Médio incompleto; oito (12,3%) com Ensino Médio completo, e apenas três (4,6%) com nível superior. Foram realizados oito encontros para atendimento, com intervalos de três a quatro semanas entre eles, no período de junho de 2007 a junho 2008. Foram realizados 182 atendimentos (consultas médicas) para 65 pessoas, de um a 87 anos, assim distribuídos: menores de um ano: zero; de um a quatro anos: dois; de cinco a nove anos: seis; de dez a 14 anos: dois; de 15 a 19 anos: quatro; de vinte a 39 anos: 26; de quarenta a 59 anos: 13; de sessenta a 79 anos: oito; maiores de oitenta anos: três.
As primeiras ações de saúde No primeiro dia de ações de saúde com as “mulheres do terreiro”, chegamos pela manhã com um enfermeiro, uma auxiliar de enfermagem e um motorista; e caixas com material educativo, formulários padrão da SMS, medicamentos de uso protocolar dos Programas de Hipertensão Arterial e Diabetes, alguns antibióticos, antiparasitários e pomadas de uso ginecológico, além da maca, foco e outros insumos. Montamos, então, o consultório 668
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Negras: pretas, negras, mulatas, pardas.
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simplificado e iniciamos o trabalho de diagnóstico de saúde daquelas mulheres e suas famílias. Na ocasião, realizamos 16 atendimentos médicos, além de desenvolvermos conversas a respeito de planejamento familiar, prevenção de DST-Aids e outras demandadas pelas mulheres. Retornamos, um mês depois, para dar continuidade ao nosso trabalho, com a mesma equipe, acrescida da cirurgiã-dentista da CAP 3.2 coordenando um grupo de estagiários de Odontologia para as ações de saúde bucal. Nessa ação conjunta, realizamos 15 atendimentos médicos, atividades recreativas e educação em saúde para 13 crianças, além de distribuição de kits de saúde bucal, escovação supervisionada e do exame da cavidade oral de todas. Foram também atendidas vinte mulheres, das quais cinco já saíram encaminhadas e agendadas para o serviço de saúde bucal da Policlínica César Pernetta, para realização de exodontia e outros procedimentos. Desde então, temos realizado ações de atenção básica (Brasil, 2001b) em encontros mensais. Também podemos encaminhar e realizar exames complementares, ultrassonografia vaginal, e, recentemente, mamografias de alta resolução. Concomitantemente, temos participado de fóruns de discussão sobre implantação de política de saúde da população negra, para divulgar e avaliar, junto aos parceiros, as ações, possibilidades, desafios e dificuldades. Em outubro, um grupo destas mulheres nos procurou solicitando que as mesmas pudessem ser capacitadas para educação em saúde, para que elas pudessem ser multiplicadoras destes conhecimentos em sua comunidade. Os primeiros temas solicitados foram relativos ao planejamento familiar e prevenção de DST/Aids. Desde então, estamos nos reunindo regularmente com este grupo, utilizando a metodologia e os manuais da Estratégia de Saúde da Família para estas ações educativas. Outro desafio que se destaca consiste em estabelecer mecanismos formais de sustentabilidade, pois o projeto não responde por todas as necessidades da população-alvo e, de certa forma, nos permite “abrir um olhar analisador” sobre equidade e integralidade das ações de saúde da rede de serviços, sendo necessário ampliar as discussões sobre preconceitos, intolerância religiosa, racismo cordial, “invisibilidade” nos serviços.
Considerações finais O estudo analisou a experiência de implantação de um “serviço de saúde” vinculado a um terreiro de candomblé. A análise do material empírico representou apenas uma parte da realidade do cotidiano das ações desenvolvidas no local e em outros fóruns de discussão. Com base nos achados da pesquisa, foi possível levantar as seguintes questões: a implantação do Projeto “Ilê ayié yaya ilera” baseou-se em argumentos técnicos e foi garantida, política e ideologicamente, pelos gestores do projeto, que assumiram posições de garantidores do processo, embora se percebesse que, após certo tempo, a situação não havia avançado no atendimento às necessidades da população negra vinculada ao terreiro. Quanto à relação estabelecida entre usuários e o grupo de mulheres atendidas, um fator que mereceu ressalva foi o vínculo estabelecido entre o grupo, a líder religiosa e os profissionais de saúde voluntários no projeto, permitindo a continuidade de ações e o processo de construção coletiva da organização dos eventos. Por outro lado, a organização da rede de saúde ainda desfavorece o acesso a todas as ações e serviços para a população negra e de religião de matriz afro-brasileira, e não é possível mudar a realidade por meio apenas de projetos e leis. Alguns gestores e profissionais não se sentem responsáveis pela desigualdade e pobreza, assim não estão comprometidos/solidários com essas mulheres e suas famílias. Acreditamos que, embora não tenha sido possível esgotar o assunto, cuja complexidade reconhecemos, este estudo sugere que as diferenças nos estágios de envolvimento dos gestores e profissionais de saúde das unidades com a Política de Saúde da População Negra podem estar relacionadas com as características estruturais, gerenciais e culturais dos profissionais de saúde, gestores e unidades de saúde. É necessário que sejam construídos vínculos e responsabilização entre os serviços de saúde e a população para garantir equidade e integralidade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Ylê ayié yaya ilera (Saúde plena na casa desta existência)...
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra definiu o conjunto de princípios, diretrizes e objetivos voltados para a melhoria das condições de saúde dessa população, incluindo, entre outras, ações de cuidado e atenção à saúde, visando à promoção da equidade e integralidade em saúde. Este trabalho relata a experiência de implantar um serviço de saúde vinculado a um terreiro de candomblé. Na condução do projeto encontramos apoio de gestores e profissionais, mas surgiram alguns obstáculos (preconceitos, intolerância religiosa, racismo cordial, “invisibilidade”). Iniciamos o diagnóstico de saúde das mulheres e suas famílias e desenvolvemos ações de atenção e de educação em saúde. O desafio que se destaca consiste em estabelecer mecanismos de sustentabilidade, pois o projeto não responde por todas as necessidades do grupo e nos permitiu “abrir um olhar analisador” sobre equidade e integralidade das ações de saúde para a população negra vinculada a religiões de matriz afro-brasileira.
Palavras-chave: Grupo com ancestrais do continente africano. Integralidade. Religião de matriz afro-brasileira. Equidade em saúde. Ylê ayié yaya ilera (full health in the house of this existence): equity and comprehensiveness in healthcare for the Afro-Brazilian religious community The National Comprehensive Healthcare Policy for the black population has defined a set of principles, guidelines and objectives for improving this population’s health conditions, including healthcare and attendance actions, among others, with the aim of promoting healthcare equity and comprehensiveness. This paper describes the experience of implementing a healthcare service linked to a Candomblé yard. In undertaking the project, we found support from managers and professionals, but there were some obstacles (prejudice, religious intolerance, cordial racism and “invisibility”). We began to diagnose women’s health and their families’ health, and we developed healthcare and health education actions. The challenge that stood out was to establish mechanisms for sustainability, since the project did not meet all the needs of the group, while it allowed us to “open an analytical eye” regarding equity and comprehensiveness of healthcare actions for the black population with links to Afro-Brazilian religions.
Keywords: African continental ancestry group. Integral health care. Afro-Brazilian religion. Equity in health. Yle ayié yaya ilera (Salud plena en la casa de esta existencia): equidad e integralidad en salud para las comunidades religiosas afro-brasileñas La Política Nacional de Salud Integral de la Población Negra ha definido el conjunto de principios, directrices y objetivos relacionados a la mejora de las condiciones de salud de esta población incluyendo, entre otras, acciones de cuidado y atención a la salud visando la promoción de la equidad e inegralidad en salud. Este trabajo relata la experiencia de implantar un servicio de salud vinculado a un “terreiro de candomblé”. En la realización del proyecto encontramos apoyo de gestores y profesionales pero surgieron algunos obstáculos (preconceptos, intolerancia religiosa, racismo codial, “invisibildad”). Iniciamos el diagnóstico de salud de las mujeres y de sus familias y desarrollamos acciones de atención y educación en salud. El desafío principal consiste en establecer mecanismos de sustentabilidad pues el proyecto no responde por todas las necesidades del grupo y nos permitió “abrir una mirada analizadora” sobre la equidad y la integralidad de las acciones de salud para la población negra vinculada a religiones de matriz afro-brasileña.
Palabras clave: Grupo de ascendência continental africana. Integralidad. Religión de matriz afro-brasileña. Equidad em salud. Recebido em 15/01/2009. Aprovado em 20/04/2009.
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Produção do cuidado e produção pedagógica no planejamento participativo: uma interlocução com a Educação Permanente em Saúde
Camilla Maia Franco1 Lilian Koifman2
Cenário Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. (Deleuze, Parnet, 1998, p.75)
A experiência relatada ocorreu em uma comunidade com 1.856 habitantes, localizada na periferia do município do Rio de Janeiro. O local não tem rede de esgoto e água encanada regular. Como equipamentos sociais, possui uma associação de moradores, duas escolas municipais, duas praças com quadra poliesportiva e uma Unidade de Saúde da Família (USF) com equipe de saúde bucal, atendendo, além da população local, a comunidade limítrofe. As equipes de saúde da família se organizam em consultas médicas e de enfermagem. As visitas domiciliares são realizadas em grande parte pelos agentes comunitários de saúde. Os acamados são atendidos pela auxiliar de enfermagem, que, quando necessário, solicita a visita domiciliar da enfermeira. Dificilmente, a médica da equipe realiza visita domiciliar. Todas as suas atividades são concentradas em consultas. Os grupos são vinculados aos profissionais, e não à unidade, ou à proposta de promoção da saúde. Diante disso, com a saída recente do auxiliar de enfermagem da equipe, encerrou-se o grupo de idosos. Atualmente, desenvolve-se o grupo de caminhada, e o grupo de planejamento familiar encontra-se em construção. Alguns projetos sociais são desenvolvidos e coordenados pela própria comunidade. O projeto Primeiro Tempo destina-se à promoção da prática esportiva e lazer para crianças, adolescentes e adultos, tem apoio do governo do Estado e é coordenado por lideranças locais. A Pastoral da Criança tem apoio do Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef) e também é coordenada por lideranças comunitárias.
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Secretaria Municipal de Saúde de Silva Jardim. Rua Alpheno Correa Mello, 288, Reginópolis, Silva Jardim,RJ, 28820-000. camillamfranco@gmail.com 2 Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense. 1
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Insatisfeitos com os serviços prestados pela USF, os moradores da comunidade, por meio de sua associação de moradores, encaminharam um documento à ouvidoria da área de planejamento do município, relatando a baixa resolutividade da unidade, tendo em vista os excessivos encaminhamentos de pacientes para outras unidades de saúde. Nesse documento, a associação de moradores solicitou a transformação da USF em Unidade Básica de Saúde, por julgarem que um maior número de médicos e especialistas atenderia de forma resolutiva as necessidades de saúde daquela comunidade. Além disso, os moradores também estavam mobilizados para encaminhar tal proposta para a Assembléia do Conselho Distrital de Saúde.
Desenvolvimento do caso e discussão Com o intuito de exercer o direito ao controle social, percebemos que a associação de moradores não tinha clareza quanto ao significado e às formas de exercê-lo na prática. Do outro lado, a equipe de saúde, com pouca habilidade para lidar com a situação, estabeleceu uma espécie de “cabo de guerra” com a associação. Dessa forma, a tensão entre as partes só aumentou. Era necessário restabelecer o diálogo. Apesar de os conflitos evidenciarem as diferenças numa sociedade, eles precisam ser gerenciados a favor do bem comum. Entendemos assim que: O conflito é democrático, é esclarecedor, é necessário. Uma das desgraças da herança cultural brasileira é essa mania das pessoas dizerem que querem chegar a um acordo. Que acordo coisa nenhuma! Temos que radicalizar as idéias para as pessoas compreenderem. Então, o conflito é necessário. (Lancetti, 2001, p.84)
Quando o conflito é nomeado e expresso, como nesse caso entre a associação de moradores e a USF, abre-se espaço para o enfretamento, para a possibilidade de se produzirem mudanças, e transformar. A problematização do conflito permite a troca e o movimento das ideias, compreensão e decisões. A potência da equipe está justamente no crescimento coletivo, embora o movimento habitual seja de exclusão. As possibilidades de expressar as diferenças de opiniões, sentimentos, idéias são processos de democratização das instituições, dependente da abertura para acolher as mudanças em si, nos coletivos e nas instituições. (Brasil, 2005, p.100)
Considerando o momento oportuno, foi elaborado, pela psicóloga residente em saúde da família na USF, um encontro da equipe de saúde com a associação de moradores, lideranças comunitárias e as famílias da comunidade. Essa estratégia mostrou-se propícia para o estabelecimento de um acordo de cooperação e parceria entre os envolvidos. É nesse encontro, entre usuário e profissional, que é produzido o cuidado e consumido em ato. Merhy (2002) enfatiza que, nessa relação de encontro, há um espaço estratégico para as mudanças no modo de produzir saúde, permitindo que coloquemos o usuário, com suas necessidades, no centro da atenção para produção do cuidado. A psicóloga residente e a enfermeira da equipe de saúde apresentaram a proposta em reunião da equipe. Após certo desconforto e desconfiança dos outros profissionais, a proposta foi aprovada. A equipe, nesse momento, movia-se do lugar da conservação para a “transformAÇÃO”, no intuito de produzir mudanças na realidade local instituída. Antes do encontro com os moradores da comunidade, foi realizada uma oficina com os trabalhadores da USF com o tema “Controle Social”. Esta primeira oficina, entendida como prática educativa para os trabalhadores, seguiu os princípios da Educação Permanente em Saúde (EPS), que tem como premissa o desenvolvimento e a qualificação profissional dos trabalhadores da área da saúde, o que possibilita mudanças nas práticas de saúde, em direção à consolidação das diretrizes fundamentais do SUS (descentralização política-administrativa, participação da comunidade, igualdade e integralidade da assistência à saúde, universalidade do acesso aos serviços de saúde, entre outros). Com relação à EPS, Ceccim (2005) esclarece-nos que esta se constitui como
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estratégia fundamental às transformações do trabalho no setor para que venha a ser lugar de atuação crítica, reflexiva, propositiva, compromissada e tecnicamente competente. Há necessidade, entretanto, de descentralizar e disseminar capacidade pedagógica por dentro do setor, isto é, entre seus trabalhadores; entre os gestores de ações, serviços e sistemas de saúde; entre trabalhadores e gestores com os formadores e entre trabalhadores, gestores e formadores com o controle social em saúde. Esta ação nos permitiria constituir o Sistema Único de Saúde verdadeiramente como uma rede-escola. (Ceccim, 2005, p.976)
Portanto, ao optar por essa orientação, damos vida à política de Educação Permanente no cotidiano do trabalho em saúde. O espaço da produção do cuidado pode transformar-se numa “comunidade educativa”, onde a construção do conhecimento, necessário e específico ao contexto, se dá no interior do processo produtivo em saúde, possibilitando a relação entre Educação e Trabalho. Seria este um dos marcos para a educação em serviço? Neste trabalho, as instituições de saúde são caracterizadas também como instituições educativas. Ribeiro e Motta (1996) afirmam que a Educação Permanente em Saúde tem como objeto de transformação o processo de trabalho, a partir da reflexão sobre e no serviço, ou seja, o que está acontecendo no serviço e sobre o que precisa ser transformado. Logo, podemos pensar que, numa perspectiva pedagógica, o processo de trabalho passa a ser valorizado como o centro do processo de ensino-aprendizagem. Para esses autores, a EPS não procura transformar todos os problemas em questões educacionais, e sim buscar as “lacunas” de conhecimento e as atitudes que são parte da estrutura explicativa dos problemas identificados na vida cotidiana dos serviços. Diversos recursos pedagógicos foram utilizados durante a oficina com os trabalhadores, entre eles: a apresentação audiovisual, tempestade de ideias, palestra dialogada e a leitura coletiva de texto com debate. No final da atividade, a Equipe de Saúde da Família construiu coletivamente seu próprio conceito de Controle Social para a unidade. Para subsidiar a discussão, recorremos ao conceito de Controle Social utilizado pelo Conselho Nacional de Saúde, que é entendido como o controle sobre o Estado pelo conjunto da sociedade organizada em todos os segmentos sociais. Evidentemente, esse controle deve visar o benefício do conjunto da sociedade e deve ser permanente. Por isso, quanto mais os segmentos da sociedade se mobilizarem e organizarem, maior será a pressão e o resultado, para que seja efetivado o Estado Democrático. Assim, a democracia representativa que aguarda a cada quatro anos, a eleição de representantes da sociedade (Poder Executivo e Legislativo), passa gradativamente a se completar com as várias formas de Democracia Participativa, que as conquistas sociais e democráticas vão realizando. (Brasil, 2000, p.24)
Esta atividade possibilitou maior segurança à equipe de saúde para abrir espaços de expressão e acolher possíveis mudanças no processo de trabalho. A USF passou a estar atenta para a identificação daquele local como espaço de formulação de ações que são interligadas e interdependentes. No dia do encontro com a comunidade, o clima estava tenso. Porém, as pessoas foram tranquilizando-se aos poucos, ainda durante o momento de acolhimento, apresentação dos participantes e construção do contrato de convivência. Nessa atividade, foi apresentada, de maneira lúdica e interativa, a proposta da Estratégia Saúde da Família, os critérios que orientaram a seleção da comunidade para a construção de uma USF, e o trabalho que era desenvolvido pela equipe, ao longo de dois anos, desde a sua implantação. Também foram pontuadas as dificuldades e os limites desse trabalho, bem como suas potencialidades, como a possibilidade de transformação da realidade. O recurso utilizado nesse momento, além da palestra dialogada, foi a roda de conversa. Esta dinâmica proporciona a exposição de ideias de todo o grupo, o esclarecimento de possíveis dúvidas e a troca de experiências sobre o serviço oferecido nesses dois anos de funcionamento da USF. Eram os olhares dos profissionais de saúde e os olhares da população se cruzando na possibilidade do encontro. Era preciso transformar as relações no processo de trabalho; permitir a proposição e o acolhimento
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das críticas; escutar e trocar. Essa atividade permitiu à população conhecer o modelo de atenção à saúde, preconizado pela Estratégia Saúde da Família, e aos trabalhadores, a reflexão de sua prática profissional, frente ao modelo proposto. A avaliação desse primeiro encontro foi muito positiva, tanto por parte da equipe, quanto por parte da população. A associação de moradores desconhecia muito do que foi falado sobre o trabalho e a importância da ESF. A população e a equipe demonstraram interesse em criar estratégias para que pudessem realmente trabalhar de maneira coletiva e organizada. Um novo encontro aconteceu dois meses depois, com duração de dois dias, e tinha como meta planejar as atividades do próximo trimestre da equipe da USF de maneira coletiva e participativa junto à comunidade. Esse segundo encontro marcou o início do que estamos chamando de Planejamento Participativo. Afinal, o planejamento não é tarefa dos “planejadores”; ele deve ser feito pelos atores envolvidos na ação (Tancredi, Barrios, Ferreira, 2000). Quem planeja é um ator social, que segundo Matus (1987), é um sujeito ou organização que controla recursos, e isto lhe dá capacidade de intervir sobre a realidade de acordo com seus interesses e necessidades, produzindo seus próprios projetos na situação analisada. O ator social que planeja é também parte do sistema planejado, ocupa um lugar determinado no processo e no sistema, de tal modo que suas percepções e seus saberes são fortemente influenciados por sua inserção e por sua história. A esta singularidade dos indivíduos, nomeamos subjetividade. Tancredi, Barrios e Ferreira (2000) apontam que o planejamento participativo, adotado como prática social, exerce um forte poder de aglutinação de pessoas e grupos, os quais passam a compreender e conviver com os anseios dos outros atores sociais. Tem, portanto, o poder de criar uma nova cultura de compromisso com a instituição. A oficina de Planejamento Participativo teve como objetivos: • Instrumentalizar todos os atores para o trabalho comunitário; • Possibilitar discussões e exercícios que auxiliassem a ampla compreensão da realidade; • Analisar um problema central e as propostas para solucioná-lo; • Elaborar um plano de ação para combater o problema; • Promover compromisso social; • Consolidar a prática da educação permanente, enquanto ferramenta de trabalho e estratégia de formação para a equipe de saúde. O método de planejamento escolhido foi o Método Altadir de Planificação Popular (MAPP), desenvolvido sob a liderança de Carlos Matus. Este método se fundamenta nos mesmos princípios do Planejamento Estratégico-Situacional (PES) – indicado para planificações em organizações de nível central (Tancredi, Barrios, Ferreira, 2000). Por suas características operativas, constitui-se no método de eleição para planejamento no nível local, particularmente naqueles altamente descentralizados. É simples e criativo. Elaborado com o objetivo de viabilizar a planificação a partir de uma base popular. Dessa forma, aplica-se à solução daqueles problemas limitados ao espaço mais restrito do nível local, assim como daqueles que não se constituam numa rede de relações muito complexas. É, portanto, um método bastante coerente com os princípios do SUS, recomendado como instrumento para a elaboração do planejamento de Unidades Básicas de Saúde. No processo de planejamento foram identificados e selecionados, pelo grupo, os problemas que acometem as comunidades. Em seguida, o grupo elegeu a ordem de prioridade dos mesmos, possibilitando a construção da “Árvore de Problemas”, que identificou de forma clara e objetiva as causas e consequências dos problemas eleitos, apontando ações necessárias para superá-los. A partir da árvore de problemas, foi construído, de forma coletiva, o plano de ação para o próximo trimestre de trabalho da equipe de saúde da família junto com a comunidade. O planejamento participativo permitiu a criação de elos entre a comunidade - lideranças comunitárias, associação de moradores, moradores - e a USF, que firmaram compromissos sociais, pois, segundo Tancredi, Barrios e Ferreira (2000), objetivos amplamente discutidos e em que há consenso são mais facilmente aceitos e compreendidos por aqueles que, de alguma forma, participarão da execução das tarefas necessárias para atingi-los. A necessidade de se promoverem mais momentos como esse foi ressaltada pelo grupo. Espaços que propiciassem maior aproximação entre as partes, para que a parceria entre Saúde da Família, 676
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associações de moradores e lideranças comunitárias fosse cada vez mais efetiva e gerasse, de fato, um acordo de cooperação. De acordo com Franco (2007, p.430), os processos educacionais na saúde possibilitam a “produção de sujeitos, entendidos como coletivos, com capacidade de intervir na realidade, com o objetivo de transformá-la”. Podemos pensar, com isso, no Planejamento Participativo como uma proposta educacional, visto que intervém na realidade local potencializando a sua transformação. Diante disso, o autor destaca a existência de duas grandes dimensões no campo da educação: [...] da cognição, que é dada pela capacidade de transferir e produzir conhecimento técnico em saúde, aplicado aos seus processos produtivos, dentro de uma certa organização do trabalho; e uma segunda, da subjetivação, que deve ser dada pela capacidade que têm certas pedagogias de promover mudanças na subjetividade. (Franco, 2007, p.431)
3 O poder – formal, tradicional ou informal – está no coração de qualquer processo de transformação e é a dinâmica fundamental que determina as relações sociais e econômicas. Assim como Oakley e Clayton (2003), ao tratarmos sobre processo de “empoderamento”, nos referimos às posições relativas ao poder formal e informal desfrutado por diferentes grupos socioeconômicos e às consequências dos grandes desequilíbrios na distribuição desse poder. Um processo de empoderamento, tal como foi proposto na experiência relatada, busca intervir em tais desequilíbrios e ajudar a aumentar o poder daqueles grupos “desprovidos de poder”, relativamente aos que se beneficiam do acesso e uso do poder formal e informal.
Vimos, na experiência relatada, a possibilidade de construção de um espaço educativo que trabalhasse com a dimensão da cognição e da subjetivação. Tal experiência desencadeou a transformação das relações entre os profissionais e profissional-usuário, a criação de vínculos e o estabelecimento da corresponsabilidade. Os moradores da comunidade sentiram-se protagonistas do projeto para a saúde que a Estratégia Saúde da Família estabelece ao trabalhar com o território. Novas formas de gerir o serviço de saúde local foram instituídas e passou-se a contar com as lideranças e associações de moradores como parceiras na mobilização social, estimulando novos dispositivos terapêuticos, como os grupos de promoção da saúde. A implicação dos sujeitos (trabalhadores e usuários) como protagonistas na produção de mudanças na ESF do local também se refletiu na qualidade do serviço de saúde prestado/desenvolvido para/pela comunidade. O serviço passou a ser um produto comum produzido pelo encontro dos trabalhadores e moradores do território abrangido. Um exemplo disso é o grupo de adolescentes, que conta com a participação das lideranças locais na busca ativa desses jovens, ao mesmo tempo em que passou a ser um espaço para diálogo com os responsáveis pelos adolescentes. Concordamos com Baremblitt (2002) que, para o protagonismo, é necessário que os sujeitos sejam empoderados3 pelo processo de autoanálise, ou seja, que se apropriem das suas necessidades, seus desejos, suas demandas, seus problemas, soluções e limites, produzindo saberes acerca de si mesmo. Desta forma, apropriando-se como um coletivo autogestionário. O Planejamento Participativo estimulou a mobilização e o comprometimento da comunidade, que passou a fazer parte dos processos de tomada de decisão da unidade, teve suas reivindicações consideradas e construiu uma relação de parceria para a busca de soluções. Todo esse processo proporcionou a mudança de atitude no processo da produção de cuidado e potencializou o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos implicados. Tínhamos, anteriormente, um cenário onde a comunidade sentia-se sujeitada ao serviço de saúde local, questionando a arbitrariedade das decisões, por não fazer parte das mesmas, e, muitas vezes, por não compreender o processo de trabalho diferenciado da USF, e, por consequência, reivindicava sua mudança. Atualmente, a comunidade faz parte deste serviço, como elemento fundamental para o bom desempenho do mesmo e articulador de processos inovadores - como o grupo para educação de jovens adultos, o grupo de artesanato e geração de renda -, rompendo com a lógica da hierarquização COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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na relação profissional-usuário, ainda presente no modelo tradicional de saúde, e possibilitando espaços intercessores, que, para Merhy (2002, p.21), significam: o que se produz nas relações entre sujeitos, no espaço das suas interseções, que é um produto que existe para os dois em ato e não tem existência sem o momento da relação em processo, e na qual os inter se colocam como instituintes na busca de novos processos, mesmo um em relação ao outro.
É no encontro entre trabalhadores-usuários e trabalhadores-trabalhadores, que se dá o lugar da produção do cuidado, que, ao mesmo tempo, configura-se como cenário para a produção pedagógica, porque permite a troca de saberes cognitivos e afetivos/subjetivos. Temos, portanto, uma forma de se pensar a integralidade no cuidado, pois todos os atores buscam atender e terem atendidas as necessidades de saúde. Constituem-se, assim, sujeitos deste processo, que acaba por ser um processo de ensino-aprendizagem, onde todos fazem os papéis de educando e educador. Desta forma, baseados no diagrama interpretativo elaborado por Franco (2007) e nas reflexões teóricas a partir dos referenciais adotados, propomos outra possibilidade de diagrama para a produção pedagógica do cuidado na gestão da Estratégia Saúde da Família, a qual orienta a política de Atenção Básica. Normas, Leis, Lógica: o instituído
Ministério da Saúde
Secretaria Estadual de Saúde
Secretaria Municipal de Saúde
Atores sociais e Políticos
Representações Sociais das Profissões
Atenção Básica
Estratégia Saúde da Família
Atravessam
Imaginários Construídos do modelo Tecnoassistencial Subjetividades e Subjetivações
Território Unidades Saúde da Família
Processos de Tabalho Produção Campo de Disputa
Transversal
Campos Temáticos
Campo de Saberes e Práticas
Controle Social
Programas:
(Saúde da Mulher, Planejamento Familiar, DST/AIDS, Tuberculose, Hanseníase etc.
Controle Social
Encontro entre sujeitos: Trabalhador e usuário
Comunidade
Transversal Figura 1. Diagrama da produção pedagógica do cuidado na gestão da Estratégia Saúde da Família. Fonte: Elaborado pelas autoras, inspirado no diagrama de Franco (2007, p.434).
As relações presentes neste diagrama apresentam tensão permanente entre os diversos cenários, visto que estes fluxos operam numa rede dialógica, que, paradoxalmente, na macrogestão ainda mantém um certo nível de hierarquização – herança do modelo tecnoassistencial curativista. Entretanto, não podemos esquivar-nos do fato de que o conflito, o dissenso, é democrático, rico, capaz de grandes produções no exercício pela pactuação. 678
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Os campos temáticos que permeiam os cenários de produção da saúde de forma transversal e retroalimentar, ao mesmo tempo em que criam tensões sobre essa rede, também são geradores de processos educativos. Para Koifman e Saippa-Oliveira (2005), o processo educativo em geral está, e sempre esteve, vinculado à difusão de conteúdos “culturalizadores”, que se materializam por meio dos conteúdos abordados e pelas formas de se explicar os processos de produção e reprodução social. Com isso, os processos educativos configuram-se como dispositivos para criação de cenários promissores, na elaboração de possibilidades de intervenção nos problemas de saúde e educação, tanto no âmbito do território, permeado pelo controle social fortemente exercido pela comunidade e pelos trabalhadores da ESF, quanto no cenário da macropolítica, por meio da transversalidade dialógica que propõe nesta relação entre as esferas governamentais e a implementação da política de Atenção Básica em Saúde. Por meio deste diagrama, buscamos representar a interpenetração em nível instituinte, produtivo – a transversalidade – possibilitando a cooperação, a liberdade, a produção e a transformação ativa da realidade local, como propõe Baremblitt (2002). Se considerarmos a prática educativa como libertadora, transformadora e afirmativa, o planejamento participativo, mais que uma possibilidade de criar um coletivo organizado e potencializar a autogestão do serviço, foi um dispositivo que contribuiu para que os sujeitos - atores deste processo de produção do cuidado - compreendessem sua função estratégica para a mudança da realidade outrora instalada. Assim, temos os cenários de produção do cuidado na ESF como, também, cenários de produção pedagógica do território. Compreendendo território como o amplo conjunto de necessidades e potencialidades. Segundo Franco (2007, p.435), estes cenários de produção do cuidado e produção pedagógica: ressignificam a educação na saúde e colocam-na para além da relação ensino-aprendizagem, mas no âmbito dos agenciamentos de cognição e subjetivação, com o sentido de criar grupossujeito capazes de assumir para si o protagonismo, sob certa intencionalidade, que determina o desenvolvimento do SUS.
Se entendermos os processos educativos em serviço como intervenções capazes de mobilizar, circular, produzir, elaborar e apreender conhecimentos, tecnologias, valores e sentimentos; se compreendemos que tais intervenções se dão em instituições que operam sobre uma rede de relações de poder formal e informal estruturadas numa dada cultura organizacional; se consideramos a EPS como intervenção que desloca esses saberes e, portanto, mobiliza poder, podemos situá-la como atividade técnica e política, em sua dimensão estratégica. Ribeiro e Motta (1996) auxiliam-nos a concluir que, se concebemos a EPS como ferramenta, a mesma deve estar inserida numa proposta de transformação social, a partir de reflexões sobre as possibilidades e o campo de disputa em que essa proposta intervencionista se insere. Assim, a EPS apresenta como desafio o fato de que a produção do cuidado em saúde e sua micropolítica são constituídas por práticas pedagógicas que também são práticas sociais de trabalho que envolvem reflexões sobre as relações estabelecidas neste processo produtivo. As atividades de planejamento participativo continuaram na comunidade e na USF e estimularam a implantação do Conselho Local de Saúde na mesma unidade, reafirmando o exercício do controle social – a democracia em ato – capaz de potencializar e dar continuidade ao processo de transformação.
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Este trabalho é fruto da experiência das Oficinas de Planejamento Participativo realizadas em uma Unidade de Saúde da Família, no município do Rio de Janeiro. Demonstra a importância do planejamento participativo e da educação permanente como ferramentas de organização do trabalho e de ensino para a qualificação em serviço. Busca estabelecer a relação entre produção do cuidado e produção pedagógica, que pode ocorrer por meio de práticas educativas desenvolvidas no processo de planejamento participativo, possibilitando interlocução com a Educação Permanente em Saúde. Na realidade local, permitiu o exercício do controle social – a democracia em ato - capaz de potencializar e dar continuidade ao processo de transformação nas relações trabalhadores-usuários, trabalhadores-trabalhadores e maior autonomia dos usuários. Assim, essa experiência retrata uma das formas de resolução de conflitos mediante instrumentos reconhecidos e capazes de auxiliar o processo de trabalho das equipes e a aproximação com a comunidade.
Palavras-chave: Planejamento participativo. Assistência à saúde. Educação em saúde. Educação continuada. Care production and pedagogical production in participative planning: a dialogue with continuing health education This paper is the result from the experience of participative planning workshops developed in a Family Healthcare Unit in the municipality of Rio de Janeiro. It demonstrates the importance of participative planning and continuing education as tools for organizing work and teaching aimed towards in-service improvement of qualifications. It seeks to establish the relationship between care production and pedagogical production that may occur through educative practices developed within the participative planning process, thus enabling a dialogue with continuing healthcare education. Within local realities, this allows social control to be wielded (democracy in action), which has the capacity to boost and continue the transformation process within worker-user and worker-worker relationships and enable greater autonomy for users. Thus, this experience portrays one of the ways to resolve conflicts, through using instruments of recognized capacity for helping in the teams’ work process and moving closer to the community.
Keywords: Participative planning. Delivery of health care. Health education. Education continuing. Producción del cuidado y producción pedagógica en la planificación participativa: una interlocución con la Educación Permanente en Salud Este trabajo es fruto de experiencia en las Oficinas de Planificación Participativa realizadas en una unidad de Salud de la Familia en el municipio de Rio de Janeiro. Demuestra la importancia de la planificación participativa y de la educación permanente como recursos de organización del trabajo y de la enseñanza para la calificación en servicio. Trata de establecer la relación entre producción del cuidado y producción pedagógica que puede ocurrir por medio de prácticas educativas desarrolladas en el proceso de planificación participativa, posibilitando interlocución con la Educación Permanente en Salud. En la realidad local ha permitido el ejercicio del control social capaz de potenciar y dar continuidad al proceso de transformación en las relaciones trabajadores-usuarios, trabajadores-trabajadores y de mayor autonomía de los usuarios. De este modo tal experiencia refleja una de las formas de resolución de conflictos mediante instrumentos reconocidos y capaces de auxiliar el proceso de trabajo de los equipos y la aproximación con la comunidad.
Palabras clave: Planificación participativa. Prestación de atención de salud. Educación en salud. Educación continua.
Recebido em 23/10/2008. Aprovado em 02/07/2009.
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A universidade promotora de saúde e as mudanças na formação profissional Ana Lúcia Schaefer Ferreira de Mello1 Simone Tetu Moysés2 Samuel Jorge Moysés3
Introdução O objetivo geral deste artigo é problematizar os pressupostos teóricos do debate contemporâneo sobre a educação, registrando-se aqui a proeminência do discurso da mudança neste campo (Gomes, 2002; Xavier,1997) e, particularmente, da formação profissional em saúde (Machado et al., 2007; Pereira, 2003; Vilela, Mendes, 2003). O objetivo central é explorar a adoção dos referenciais amplos da Promoção da Saúde (PS) como um dos aspectos substanciais de mudança, reiteradamente enfatizado na educação e no trabalho, para fazer frente a certas características perturbadoras das sociedades contemporâneas, que afetam negativamente as relações profissionais e os desfechos em saúde. Se o trabalho em saúde é primariamente determinado pelo perfil profissional, caberia perguntar se tal perfil apresenta traços gerais detectáveis em uma específica formação social, historicamente dada. A tarefa imputada por tal questionamento afigura-se intrincada, sobretudo quando se dá saliência ao fato de que não é apenas uma profissão (e seu respectivo perfil) envolvida nas práticas de saúde. Isto engendra um heterogêneo universo de policompetências, já que a organização da prática de saúde moderna é necessariamente interativa, com profissionais de várias carreiras e níveis de escolaridade partilhando espaços de iniciativa e de corresponsabilização, com utilização de suas aptidões intelectuais e afetivas, com coordenação de tarefas e intercâmbios de comunicação e informação (Vasconcelos, 2005, Morin, 2004). As competências especializadas deixam de ser exclusivas e autônomas, na medida em que as policompetências as cruzem e articulem. Contudo, importantes assimetrias podem ocorrer na prática, decorrentes de nível de escolaridade e acumulação de poder técnico-científico e/ ou social. Há que se considerar ainda que, mesmo após a obtenção regulamentar dos “passaportes” profissionais para o mundo do trabalho (certificados, bacharelados, licenciaturas, diplomas), a formação profissional segue seu curso diversificado, por processos formais e/ou informais, em algo que genericamente se caracteriza como “educação permanente”. Todas as fases educativas implicadas na formação de uma equipe multiprofissional de saúde, seja em regime escolar ou não, são permeadas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
1 Departamento de Odontologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Rua Rosa, 159, Florianópolis, SC, Brasil. 88.040-270. alfm@terra.com.br 2,3 Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
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atualmente pelo discurso da reorganização dos modelos de atenção e das práticas de saúde, sobretudo no âmbito das políticas que configuram o Sistema Único de Saúde (SUS) dos brasileiros. Quando a formação é problematizada, observa-se relativo consenso, entre os críticos da educação dos profissionais de saúde, quanto ao fato de ser hegemônica a abordagem biologicista, medicalizante e procedimento-centrada, com fortes e distorcidas reminiscências flexnerianas (Flexner, 1910). Com sua ênfase no conhecimento experimental de base clínica e laboratorial, proveniente da pesquisa realizada geralmente sobre doenças infecciosas, reforça-se a separação entre individual e coletivo, privado e público, biológico e social, curativo e preventivo (Paim, Almeida Filho, 1998). O modelo pedagógico que se torna hegemônico é conteudista e organizado de maneira compartimentada e isolada, fragmentando os indivíduos em partes estanques. Dissocia conhecimentos das áreas básicas e conhecimentos da área clínica, centrando as oportunidades de aprendizagem da clínica no hospital universitário ou ambulatório especializado, adotando sistemas de avaliação cognitiva por acumulação de informação técnico-científica padronizada, incentivando a especialização precoce, perpetuando modelos tradicionais de prática em saúde. O ensino é tecnicista e preocupado com a sofisticação dos procedimentos, favorecendo a agregação tecnológica intensiva e, muitas vezes, desprovida de avaliação de efetividade.
Movimentos de mudança em relação à educação e a saúde Especificamente em relação à formação em saúde, há um instruído arcabouço legal presente tanto na Constituição Nacional (Brasil, 1988), como na Lei Orgânica da Saúde (Carvalho, Santos, 1995), passando pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos para o SUS (Brasil, 2002a), e culminando com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 1996), com respectivas diretrizes curriculares nacionais (DCN) para as várias profissões (Fernandes et al., 2005; Pereira, 2003; Brasil, 1996; Pierantoni, 2001). Aprovadas, em sua maioria, entre 2001 e 2002, as DCN dos cursos de graduação em saúde (exceto Medicina Veterinária, Psicologia, Educação Física e Serviço Social) afirmaram que a formação do profissional de saúde deve contemplar o sistema de saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção integral à saúde. A educação é o setor que detém os instrumentos de gestão e a legitimidade de regulação da educação nacional, entretanto, as funções sociais do ordenamento, controle, fiscalização, auditoria e avaliação são, em última instância, funções de Estado e, assim, ganham igualmente importância no setor da saúde. Como lembram Ceccim e Feuerwerker (2004a), os dois setores, pela legitimidade e legalidade, ora de um, ora de outro, devem ocupar-se das funções de regulação de Estado no tocante à formação na área da saúde. Argumentam ainda estes autores que toda a regulação relativa à saúde deveria ser usuário-centrada, ou seja, voltada aos interesses de saúde dos cidadãos-usuários de serviços, sendo tais interesses motivos centrais para se ordenarem serviços de atenção e instituições de formação de profissionais de saúde. Ao assumir o pressuposto anterior, ou seja, a importância finalística do processo de formação/ atuação profissional, inexoravelmente atrelado ao potencial de vida e saúde das pessoas, isto nos remete à produção social da saúde (e da doença) e, por consequência, ao campo da PS. Na base do processo político de lutas pela criação do SUS encontra-se o conceito ampliado de saúde. Este conceito evoca a necessidade de se criarem políticas públicas para promovê-la, o imperativo da participação social na construção do sistema e das políticas de saúde e a impossibilidade de o setor sanitário responder sozinho à transformação dos determinantes e condicionantes para garantir opções saudáveis para a população. Nesse sentido, o SUS dialoga criticamente e incorpora muitas das reflexões e ações que são reivindicadas pela PS, em âmbito nacional ou internacional. A PS, como uma das estratégias de produção social de saúde, ou seja, como um modo de pensar e de operar articulado às demais políticas e tecnologias de intervenção social promotoras de saúde, contribui na construção de ações que possibilitam responder às necessidades sociais em saúde (Brasil, 2006). Simultaneamente, universidades também constituem espaços sociais estratégicos para a PS por sua contribuição potencial à saúde de grupos populacionais específicos a elas relacionados, com consequente impacto sobre a população geral. Promover saúde, seja no âmbito acadêmico, seja nos serviços, implica 684
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proporcionar à população as condições necessárias para melhorar e exercer controle sobre sua saúde, envolvendo “paz, educação, moradia, alimentação, renda, um ecossistema saudável, justiça social e equidade”. Tal conceito baseia-se nos seguintes princípios: (I) que saúde deve ser parte integrante de ações voltadas para o desenvolvimento; (II) que saúde pode ser melhorada por meio da modificação do ambiente físico, social e econômico; (III) que as condições em espaços sociais como a casa, a escola, a universidade, a comunidade, o local de trabalho e a cidade influenciam profundamente a condição de saúde das pessoas; e (IV) que ações intersetoriais voltadas para a saúde são necessárias no nível local. Por isso, é essencial que pessoas e organizações assumam seu papel na criação de oportunidades, escolhas e ambientes saudáveis, mediante o comprometimento político com o desenvolvimento sustentável e a redução das desigualdades sociais e de saúde (Moysés, Moysés, Krempel, 2004; Sícoli, Nascimento, 2003). Ao se discutir o referencial estratégico para o desenvolvimento de projetos de ambientes saudáveis, tais como o projeto de Universidades Saudáveis, alguns aspectos importantes sobre o papel das universidades no século XXI, seu potencial para promover saúde e as justificativas para seu envolvimento neste processo podem ser apontados.
O papel das universidades no século XXI, sob a referência da promoção da saúde O papel das universidades no século XXI vem sendo tema de muitas discussões. Alguns aspectoschave que poderiam ser destacados incluem missões e papéis institucionais desejáveis e recomendados na literatura (Tsouros et al., 1998, p.33): A universidade constituindo-se como um centro de aprendizagem e desenvolvimento, com ações em educação, treinamento e pesquisa; A universidade também deve ser um centro de criatividade e inovação, expressa no processo de aprendizagem, na organização, junção e aplicação do conhecimento e na compreensão intra e interdisciplinar; De modo amplo, a universidade caracteriza-se como um ambiente em que alunos deveriam desenvolver independência e aprender habilidades para toda a vida mediante vivências de experimentação e exploração; As mudanças na educação superior têm oportunizado que as universidades tornem-se ambientes onde profissionais maduros também possam passar por processos de aprendizagem; Uma universidade é um recurso e uma parceira para comunidades locais.
Todos estes papéis oferecem oportunidades para uma universidade influenciar a saúde e a qualidade de vida de seus membros e a comunidade externa, contribuindo para o conhecimento e o reforço da cidadania. Universidades Promotoras de Saúde integram o comprometimento com a sociedade, em seu amplo aspecto, nas políticas e práticas universitárias. A abordagem da PS em ambientes sociais tem o potencial de ampliar a contribuição das universidades de várias formas: 1 Universidades são instituições onde muitas pessoas vivem e experimentam diferentes aspectos de suas vidas: pessoas aprendem, trabalham, socializam e aproveitam seu tempo de lazer, além de, em muitos casos, utilizarem serviços oferecidos. Universidades, portanto, têm um amplo potencial para proteger a saúde e promover o bem-estar de estudantes, funcionários (acadêmicos e não-acadêmicos) e a comunidade, em toda sua abrangência, pelas políticas e práticas empregadas; 2 Universidades formam estudantes que são ou serão profissionais e formuladores de políticas com o potencial de influenciar as condições que afetam a qualidade de vida de pessoas. Mediante o desenvolvimento do projeto político-pedagógico e de pesquisa, universidades podem ampliar o conhecimento e o comprometimento com a PS de um vasto número de sujeitos capacitados e educados em várias áreas de atuação. Isto inclui, portanto, o comprometimento não apenas de profissionais da área de saúde, mas também aqueles dos cursos das áreas sociais, tecnológicas e humanas; 3 Sua ação comunitária dá oportunidade, para servir de exemplo, de boas práticas em relação à PS e de usar sua influência em benefício da saúde e qualidade de vida da comunidade local, nacional e internacional. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Em síntese, universidades possuem potencial para contribuir com a saúde em três áreas distintas: a) Criando ambientes de trabalho, aprendizagem e vivências saudáveis para estudantes e funcionários; b) Ampliando a importância da saúde, promoção da saúde e da saúde pública no ensino e na pesquisa; c) Desenvolvendo alianças e parcerias para a promoção da saúde e atuação comunitária. Além disto, problematizar a formação a partir da PS é interrogar, de saída, um de seus alicerces mais densos: a intersetorialidade. Sim, pois a tarefa constitucional designada pela reforma sanitária brasileira de formular políticas de formação para a área da saúde remete à ação intersetorial de coalizão com as tarefas do setor da educação. Dentre as várias possibilidades de abordagem sobre o campo da PS e suas inter-relações com a formação profissional, a reflexão produzida a seguir enfatizará a intersetorialidade como um dos elementos de base na formação profissional em nível universitário.
A intersetorialidade como fundamento da formação profissional com base na promoção da saúde Nas últimas décadas, instituições multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), bem como governos nacionais, regionais e locais, e mesmo organizações do terceiro setor, têm disseminado o conceito e apoiado a estratégia de criação de Ambientes Saudáveis (OPAS, 2003; WHO, 1998). Estimulam-se agentes nacionais e internacionais, comunidades, organizações governamentais e não governamentais e o setor privado a investirem em estratégias, tais como a Escola Promotora de Saúde e a Universidade Saudável, pelo seu potencial em promover a saúde de estudantes, trabalhadores, famílias e demais membros da comunidade (PUC-PR, 2008; University of Toronto, 2007; Moysés et al., 2003). Fundamentalmente, o próprio processo formativo de novos profissionais para a sociedade pode ocorrer de modo precocemente atrelado aos conceitos e práticas da PS; ou seja, além de uma vivência interiorizada individualmente pelo profissional em sua aprendizagem, o próprio ambiente da aprendizagem atuaria como uma exterioridade contextual influenciando a absorção de valores e práticas vinculadas à PS. O desenvolvimento de projetos de PS dentro do espaço das universidades tem sido reconhecido como uma alternativa intersetorial viável, que resulta em melhores processos formativos e na melhoria da qualidade de vida de uma importante parcela da população. Especificamente, ações promocionais voltadas para estudantes favorecem uma formação integral, estimulando a prática profissional responsável, engajada com a realidade social (Tsouros et al., 1998). Tal estratégia oportuniza ações de PS que reforçam a compreensão e aplicação dos compromissos assumidos internacionalmente, tanto na área específica da saúde, quanto nas áreas de direitos sociais e de desenvolvimento sustentável, amplamente discutidos em eventos/declarações internacionais de PS (Brasil, 2002b): na Declaração de Alma Ata (1978), na Carta de Ottawa (1986), nas Conferências de Adelaide (1988) e Sundsvall (1991), na Declaração de Jacarta (1997), na Conferência do México (2000), na Conferência de Bangcok (2005), bem como em outros eventos/declarações como a Agenda 21 (1992), Carta do Caribe (1993) e na Conferência Pan-Americana sobre Saúde e Ambiente (1995). A Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS) já propusera uma definição em 1990, segundo a qual a Promoção da Saúde é: “a soma das ações da população, dos serviços de saúde, das autoridades sanitárias e de outros setores sociais e produtivos, dirigidas ao desenvolvimento das melhores condições de saúde individual e coletiva” (De Salazar, 2004, p.21). Tais ações são categorizadas por Green e Kreuter (1990, p.321) quando afirmam que a PS é uma “combinação de ações planejadas do tipo educativo, político, legislativo ou organizacional em apoio aos hábitos de vida e condições favoráveis à saúde dos indivíduos, grupos ou coletividades”. Ou seja, mais uma vez, reafirma-se a relação indissociável entre políticas e ação planejada que inclua a esfera formal da educação e a esfera do trabalho em saúde, repercutindo na sociedade. Ocorre que o mundo da formação pode ser mais ou menos permeável ao mundo do trabalho, e vice-versa, conforme a força histórica dos intercâmbios presentes na realidade. A formação dos profissionais de saúde é um projeto educativo que extrapola o domínio técnico-científico de uma dada profissão e se estende para outras esferas de ação com profundo impacto social (Ceccim, Feuerwerker, 686
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2004b). Enquanto a mudança na graduação e a implementação das diretrizes curriculares na área da saúde não entrarem na agenda institucional, incluindo as pró-reitorias de graduação, o potencial dos movimentos de mudanças será sempre limitado. Será mais difícil atingir o núcleo duro da organização da graduação e, em consequência, as mudanças serão ainda periféricas. E mais, as políticas de saúde e de educação, para favorecer a formação de profissionais com perfil adequado à atenção à saúde de qualidade, também não podem se restringir à graduação. Precisam atingir também as políticas de especialização, de residência, de pós-graduação stricto sensu. Não é demais lembrar o poder, o impacto e a influência que as pós-graduações detêm sobre a graduação, com seu status de produtoras de conhecimento.
Por que as universidades deveriam se envolver? Universidades envolvidas com projetos de PS podem obter muitos benefícios, desde a valorização de sua imagem pública, sua importância para a saúde local, regional e nacional, a melhoria dos projetos institucionais e pedagógicos, incluindo a melhoria da qualidade de vida dos envolvidos, e as condições de atividade e de permanência das pessoas que ali trabalham, estudam, vivem e socializam. Em termos acadêmicos, um projeto como este tem o potencial de reforçar as discussões sobre saúde em várias áreas acadêmicas. Pode ampliar a credibilidade de pesquisas inovadoras na área, além de dar suporte para uma mudança no foco das pesquisas, direcionando-as mais para ações ampliadas, interdisciplinares, voltadas para a busca de soluções de impacto sobre a qualidade de vida e o combate às desigualdades sociais e de saúde. O principal desafio de uma Universidade Saudável é integrar a PS nas políticas e práticas universitárias. Isto pode ser obtido por intermédio de: desenvolvimento de políticas saudáveis e planejamento sustentável na universidade; criação de ambientes saudáveis de trabalho; oferecimento de ambientes de suporte social e cuidados primários em saúde; facilidades para o desenvolvimento pessoal e social; encorajamento da ampliação do interesse acadêmico por PS, e desenvolvimento de parcerias com a comunidade.
Limites e possibilidades para a mudança Segundo os depoimentos e experiências variadas dos participantes de oficina de trabalho no V Congresso Nacional da Rede Unida, para discutir a PS nas diretrizes curriculares nacionais dos cursos da área da saúde (Teixeira et al., 2005), ainda há pouca atenção dispensada à PS nos cursos de graduação das profissões superiores da área da saúde. O marco inovador do movimento mundial pela PS, desdobrado a partir da Carta de Ottawa e iniciativas subsequentes, fala de um espaço institucional e social transformado para a PS florescer. Dentro de um novo marco definidor, seria possível uma agenda teórico-operativa de intervenção potente na realidade, com vistas à construção de sujeitos em luta pela conquista de sua cidadania, o que exige o empoderamento de tais sujeitos, copartícipes na construção social da saúde como vetor para a melhoria da qualidade de vida. Teixeira et al. (2005) identificam forças restritivas ou impulsionadoras para que uma agenda propositiva da PS ganhe materialidade nas instituições formadoras e nas instituições prestadoras de serviços. Dentre as forças restritivas, podem ser mencionadas: a) muitas experiências tradicionais, autodenominadas como “promotoras de saúde”, ainda são realizadas de modo tópico, isolado, microdisciplinar, com baixa sustentabilidade institucional, sendo extremamente dependentes do voluntarismo de poucos docentes com poder de vocalização e influência quase marginal no âmbito da política pedagógica das instituições de Ensino Superior; b) a PS deve necessariamente ser diferenciada da atuação do setor saúde na prevenção de doenças ou da “educação sanitária” convencional, no sentido estrito, para desfazer confusões conceituais frequentes, que geram reducionismos incompatíveis com o nível teórico já alcançado hoje, mundialmente, com o conceito ampliado de PS; c) resistências culturais dentro das instituições, arraigadas há muitas décadas ao modelo cartesiano e positivista que induz à fragmentação, mecanização e disciplinarização; d) alta valorização ideológica de componentes assistencialistas e/ou clínicos curativos e baixo status quo conferido às práticas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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promocionais de saúde; e) ethos institucional dominado pela cultura de “corporações”, com foco no mercado e na prática privada, o que dificulta a integração com a esfera pública; f) uma relativa ambiguidade e/ou confusão conceitual, em que muitos concordam em tese com as propostas, muitas vezes considerando-as “nobres” ou “simpáticas”, sobretudo aquelas relacionadas com a formação em consonância com as necessidades do SUS, mas revelando grande desconhecimento (ou desinteresse) em sua operacionalização; g) pouca e nenhuma identificação de muitos docentes, alunos e dirigentes universitários com a proposta constante nas referidas diretrizes. Segundo depoimentos relatados em Teixeira et al. (2005), inclusive em situações que envolviam avaliações oficiais realizadas pelo Ministério da Educação (INEP), muitos dirigentes universitários, professores e alunos entrevistados revelavam profundo desconhecimento sobre as reformas educacionais em curso no Brasil, sobretudo relativas aos novos projetos político-pedagógicos. Alguns desconheciam as bases referenciais mínimas para uma efetiva implantação de ações de PS; outros se mostraram francamente contrários à implementação de DCN em sintonia com o SUS. Para fazer frente a tais dificuldades históricas, epistemológicas e ideológicas, sem dúvida as novas diretrizes curriculares nacionais, ao respeitarem o espírito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Superior no Brasil, apresentam-se como dispositivos muito avançados e úteis. Assim, algumas forças impulsionadoras também são identificadas: a) a análise cuidadosa das DCN permite perceber a transversalidade com que a PS é concebida, não mais como uma disciplina ou um “conteúdo” dentro de uma disciplina, mas uma visão transdisciplinar que perpassa toda a formação, não subsistindo apenas na área da saúde, mas na visão da universidade como um todo; b) o estabelecimento de projetos político-pedagógicos e de desenvolvimento institucional que avancem para uma relação e integração intercursos (ciência biológicas e da saúde, ciências sociais e humanas, ciências jurídicas, ciências exatas), bem como para a constituição da própria universidade como um “ambiente” saudável e promotor da saúde da coletividade com ela envolvida; c) a vinculação orgânica da universidade com as comunidades locais, onde projetos intersetoriais sejam implementados; d) esta nova relação da universidade para dentro de si mesma e para o mundo social que a atravessa pode criar dispositivos potentes para vencer resistências dentro de setores públicos e privados, particularmente nos serviços que prestam atendimento direto ao público – em especial nos serviços de saúde; e) o estabelecimento de projetos intercursos que contextualizem e potencializem abordagens pedagógicas nos quais a interdisciplinaridade, a integralidade, a humanização e a construção da autonomia dos sujeitos colocam-se como pilares da construção de projetos político-pedagógicos; f) ênfase especial deve ser dada à possibilidade concreta de diversificação de cenários pedagógicos, em processos ativos de aprendizagem, em que a realidade social, com suas profundas iniquidades, seja apreendida precocemente pelos acadêmicos, no processo de construção de sua própria cidadania. Este, aliás, é um dos principais trabalhos de facilitação de educadores comprometidos. Se a qualidade de vida e a saúde são determinadas e condicionadas pelo processo social, não resta dúvida de que projetos integrados (intercursos) de intervenção na realidade social, seja por meio de iniciação científica, de pesquisa pós-graduada, de prestação de serviços, de aprendizagem por projetos ou de aprendizagem baseada em problemas, qualquer destas intervenções pode conduzir a uma percepção valorativa da PS como eixo explicativo que busca a raiz dos problemas e suas respectivas soluções. As potencialidades presentes nas DCN podem ser sinteticamente descritas a seguir: 1 Genericamente, nas diretrizes dos cursos da saúde, a PS aparece como um campo de competências e habilidades que devem ser desenvolvidas, incluindo a competência individual e coletiva de compreender e se situar criticamente frente a uma realidade em transformação; 2 O entendimento de que os profissionais da saúde, além de técnicos competentes em suas atribuições específicas, devem ser cidadãos participantes, que contribuem socialmente para a melhoria da qualidade de vida da comunidade em geral; 3 O reconhecimento de que a diversidade de cenários em que a PS opera conduz ao maior respeito ao pluralismo e à diversidade cultural, embora isto não deva conduzir a um “relativismo” inócuo e vazio, ou seja, a um “vale-tudo” conceitual; 4 Fica patente que a PS estabelece um compromisso com a autodeterminação das pessoas, ou que pode trazer a benéfica consequência do autocuidado e da (des)medicalização cara e ineficaz; 688
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5 A utilização plena de tecnologias de informação e comunicação produz um ambiente menos contaminado por “ruídos” e mal-entendidos, ou seja, a PS em sua dimensão comunicativa estabelece relações mais horizontalizadas, trabalhos em equipes multiprofissionais que produzem em redes colaborativas, o que reduz barreiras comunicativas entre profissionais e destes com a população, bem como a superação de estreitamentos corporativos; 6 Estímulo às dinâmicas de trabalho em grupo por favorecerem discussão coletiva e relações interpessoais; 7 Um marco ético regulatório fundamental se estabelece com o pleno desenvolvimento da PS em uma política institucional ou interinstitucional. Teixeira et al. (2005) apresentam algumas sugestões de natureza estratégica para o atual momento de implementação das DCN, muitas já assimiladas na atual política de gestão do trabalho e da educação em saúde (por exemplo, presentes nas agendas do Ministério da Saúde, da Educação e da Ciência e Tecnologia), incluindo: (i) os estágios em unidades do SUS, o incentivo a mudanças curriculares e novos projetos pedagógicos que levem em conta as necessidades locorregionais particularmente da população pobre e excluída; (ii) a imbricação da universidade com os serviços, potencializando a formação em serviço, com base em estratégias tais como a Saúde da Família, que, a partir do cadastro familiar, avançam para o diagnóstico comunitário integrado; (iii) a capacitação de professores e gestores universitários, em temas como gestão participativa no SUS ou em política pública para docentes; (iv) busca do fortalecimento das lutas sociais por mais qualidade de vida, implicando que a universidade também assuma tal compromisso; (v) as DCN constituem, atualmente, o único instrumento normativo disponível, além da avaliação institucional, para induzir mudanças na formação dos profissionais da saúde, convergentes com os interesses da sociedade brasileira. Tais diretrizes deveriam ser consideradas na avaliação das condições de ensino, como estratégia de indução reflexiva para que gestores universitários, docentes e alunos incorporem a PS.
Considerações finais Há que se assumir as dificuldades na realização das mudanças anunciadas no plano legal e discursivo, em relação à formação profissional. De fato, não parece possível produzir a mudança pretendida sem interferir simultaneamente no mundo da formação e no mundo do trabalho. A agenda dos processos de mudança vai se tornando mais complexa na medida em que as diferentes experiências se materializam para além dos discursos e possibilitam uma compreensão mais abrangente e sistemática sobre a natureza da mudança, suas implicações, as relações entre a formação e a organização do trabalho em saúde. Aí surgem: as especificidades educacionais envolvidas, a complexidade das instituições de ensino e de saúde, a diversidade dos atores, as distintas culturas desafiadas, os tensionamentos frente às relações de poder instituído, os enfrentamentos que transcendem o espaço do particular e alcançam o espaço coletivo amplo dos projetos societários. A presença da universidade, com seus respectivos cursos e projetos pedagógicos, no ambiente locorregional onde atua, estreitando laços com a comunidade em geral e com as políticas públicas, pode ser um caminho para a concretização do diagnóstico situacional participativo e do enfrentamento comum dos problemas, onde as soluções já nasçam integradas. Neste ambiente, a PS tem grandes chances de frutificar. Uma das conclusões a que se pode chegar é que mudanças duradouras e profundas somente serão construídas de maneira ampla se houver políticas públicas saudáveis operando nesse sentido. Então, uma das bandeiras dos movimentos de mudança deveria ser a reivindicação de políticas públicas de saúde e de educação que favoreçam, apoiem, estimulem os processos de transformação das práticas no sentido da adoção dos referenciais amplos da Promoção da Saúde (PS).
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Discute-se a Promoção da Saúde (PS) na perspectiva de um arranjo teórico-político, organizativo e prático capaz de influenciar processos de mudança na formação profissional em saúde. Com foco no conceito de Universidade Promotora de Saúde, particularmente em aspectos como intersetorialidade e ambientes saudáveis, discutem-se os movimentos históricos e institucionais de mudança, apresentando alguns limites e possibilidades, relativos aos processos de mudança em curso no setor da educação e da saúde, no Brasil contemporâneo. A incorporação da PS no cotidiano profissional faz emergir possibilidades e espaços de mudança, particularmente aqueles relativos ao processo de implementação de novos projetos pedagógicos e diretrizes curriculares nacionais. A construção do conhecimento e das novas práticas indica mudanças ainda tímidas, mas aponta para novas estratégias que poderão orientar a condução de ações pedagógicas mais potentes, voltadas para a PS e melhoria da qualidade de vida, e para a implementação de políticas públicas mais saudáveis e efetivas.
Palavras-chave: Promoção da saúde. Universidade. Educação. Políticas públicas. The health-promoting university and changes in professional training This paper discusses health promotion (HP) from the perspective of a theoretical-political, organizational and practical arrangement that is capable of influencing change processes within professional healthcare training. Focusing on the concept of the health-promoting university, and particularly on the matters like intersectorality and healthy environments, historical and institutional movements for change are discussed, presenting some limits and possibilities relating to change processes in course, in the education and health sectors in contemporary Brazil. Incorporation of HP within professional routines allows some possibilities and spaces for change to emerge, particularly those relating to the process of implementing new pedagogical projects and national curriculum guidelines. The knowledge and new practices constructed indicate that the changes still lack strength, but point towards new strategies that may guide pedagogical actions into more potent directions, aimed towards HP and improvement of quality of life, and towards implementation of healthier and more effective public policies.
Keywords: Health promotion. University. Education. Public policies. La universidad promotora de la salud e los cambios en la formación profesional Se discute la Promoción de la Salud (PS) en la perspectiva de un arreglo teórico-político, organizativo y práctico capaz de influir en procesos de cambio en la formación profesional en salud. Enfocando el concepto de Universidad Promotora de Salud, particularmente en aspectos como inter-sectores y ambientes saludables, se discuten los movimientos históricos e institucionales de cambio en curso en el sector de la educación y de la salud en el Brasil contemporáneo. La incorporación de la PS en el cotidiano profesional hace emerger posibilidades y espacios de cambio, particularmente los relativos al proceso de implementar nuevos proyectos pedagógicos y directrices curriculares nacionales. La construcción del conocimiento y de las nuevas prácticas indica cambios todavía tímidos pero apunta nuevas estrategias que podrán orientar la conducción de acciones pedagógicas más potentes vueltas a la PS y la mejora de la calidad de vida y para la implementación de políticas públicas más saludables y efectivas.
Palabras clave: Promoción de la salud. Universidad. Educación. Políticas públicas.
Recebido em 03/08/2008. Aprovado em 27/07/2009.
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entrevista
O conhecimento como forma de resistência: uma conversa com Lupicínio Íñiguez-Rueda* El conocimiento como forma de resistencia: una conversación con Lupicínio Íñiguez-Rueda
Mary Jane Paris Spink1
Em novembro de 2008, estivemos na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) dando continuidade às atividades de colaboração estabelecidas no marco de convênio entre a UAB e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Nessa ocasião, realizamos entrevista com Lupicinio Iñiguez, tendo como pano de fundo questões emergentes quanto aos estilos de vida saudáveis, ou à “saúde promocional”, decorrentes do projeto de pesquisa “Controle e uso de tabaco em espaços públicos de convivência”, desenvolvida com o apoio do CNPq. Lupicinio Íñiguez-Rueda é professor catedrático de Psicologia Social da UAB. Suas obras são abrangentes e incluem reflexões sobre a Psicologia Social Crítica e sobre análise de discurso2 que se tornaram referência em vários países da América Latina. No Brasil, participou, como convidado, de Encontros Nacionais da Associação Brasileira de Psicologia Social, foi professor convidado do Núcleo de Pesquisa em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, da PUCSP, do Grupo de Pesquisa “Estudos Culturais e Modos de Subjetivação”, coordenado por Neuza Guareschi, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e, mais recentemente, do Centro de Administração Pública e Governo, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGVSP). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
* Entrevista realizada em 14 de novembro de 2008, por Mary Jane P. Spink, com participação de Peter Spink e Vera Menegon. Apoio CNPq. 1 Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Ministro Godói, 969. São Paulo, SP, Brasil. 05.015-000. mjspink@pucsp.br 2 IÑIGUEZ, L. (Org). Manual de análise de discurso em ciências sociais. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
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Mary Jane: Me gustaría pensar este encuentro como una oportunidad para hablar de al menos tres temas sobre los cuales usted ha reflexionado. Uno es la perspectiva crítica en Psicología Social que, como bien sé, cambió bastante en su trayectoria académica. El segundo tema es su actuación en el área de salud pública. Y el tercero, su interés por los desarrollos contemporáneos en la arena de los derechos y la ciudadanía que se caracterizan por los procesos de individualización y la necesidad de trabajar con la diversidad. Estos tres temas son para mí de especial interés por estar entrelazados con mis preocupaciones teóricas y prácticas sobre la relación entre procesos de individualización y estrategias contemporáneas de promoción de salud, asociadas, por ejemplo, a la noción de estilos de vida saludables. Entonces me gustaría oír lo que piensa sobre estos temas y pensé que podríamos empezar con algunas informaciones de tipo biográfico sobre su trayectoria académica y su involucramiento con la salud pública. Sobre la trayectoria académica Lupicinio: Es muy difícil concentrar mi trayectoria, pero siempre me gusta resaltar unas cuantas cosas. La primera es que mi formación no es enteramente de psicólogo, que esto plantea muchas ventajas en el contexto de las ciencias sociales y plantea también algunos inconvenientes. La segunda es que mi formación como psicólogo fue absolutamente ortodoxa, convencional, experimental, positivista, lo cual hace prácticamente un milagro que yo pudiera salir de ese entramado de cosas. Lo que pasa es que junto a la formación como psicólogo yo tenía, y todavía mantengo, un interés político relacionado con la emancipación, con la idea de horizontalización de las relaciones sociales e interpersonales, del estímulo de la auto-organización y la auto-gestión social y eso en una tradición política que podríamos llamar libertario-anarquista. Supongo que ésa es una parte de las razones que explican el cambio desde una formación y unos intereses centrados en la Psicología individual y convencional, que poco a poco se fueron orientando hacia los problemas sociales, hacia las dificultades de la vida de nuestro tiempo y a intentar pensar las cuestiones sociales, no únicamente desde una clave estrictamente política, sino que también en una clave académica. Otro motivo que puede estar explicando el cambio y mi salida de esa manera de entender la Psicología, y mi trabajo crítico tiene que ver con las casualidades. Las trayectorias humanas están llenas de casualidades. La primera aconteció en el primer año de Psicología en la UAB en 1977. En ese curso había una materia obligatoria, “Introducción a la Psicología”, que la impartían tres profesores. Dos de ellos hacían una Psicología skinneriana, pero un tercero hacia una Psicología distinta y yo acabé en su grupo por azar. El profesor, Adolfo Perinat, me hizo leer el que probablemente fue el primer libro que yo he leído en Psicología que fue “Internados” de Goffmann3. La segunda casualidad es haberme encontrado en mi camino de formación con Tomás Ibáñez4 que impartía dos materias que cursé en mi cuarto año. Las dos me han marcado profundamente. Una era “Procesos psico-sociales”, orientada a lo sociológico más que a lo psicológico y muy marcada por la fundamentación teórica y epistemológica. La otra se llamaba “Seminario sobre relaciones de poder” donde básicamente estudiábamos a Michel Foucault. Pero téngase en cuenta que esto era en el año 1980 en una Facultad de Psicología con un enfoque totalmente convencional. Comencé a trabajar con Tomás Ibáñez muy temprano y la verdad es que la mayor parte de las cosas que sé, no las sé por haberlas estudiado o por haberlas leído en libros, sino por haber estado con él durante años; en una transmisión de saber que no es de contenido, sino de entender que 694
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Erwin Goffman, sociólogo da corrente interacionista simbólica, publicou várias obras sobre as interações sociais corriqueiras (“Representação do eu na vida cotidiana”) e o cotidiano de instituições (“Manicômios, prisões e conventos”).
3
4 Tomás Ibañez, psicólogo social atualmente jubilado da Universidad Autonoma de Barcelona . Dentre suas muitas obras, destacamos “Municiones para disidentes” (Barcelona: Gedisa, 2001).
Spink, M.J.P.
6 POTTER, J.; WETHERELL, M. Discourse and social psychology. London: Sage Publications, 1987.
7
LATOUR, B. Ciência em ação. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
entrevista
5 Charles Antaki, professor of Language and Social Psychology no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Loughborough, conhecido por suas contribuições à analise de conversação.
para hacer algo, primero hay que problematizarlo, que no debes dar nada por sentado, sino cuestionar lo que te planteas y que en cualquier trabajo, el tiempo dedicado a la reflexión y la lectura nunca es tiempo perdido. La tercera casualidad es que Charles Antaki5 pasó su año sabático en Barcelona en 1989. Nosotros lo conocíamos muy bien porque su movimiento había sido muy parecido al nuestro: él venía de una tradición de la Psicología Social estándar, dedicándose al estudio de los procesos atribucionales. Charles había hecho una aproximación al lenguaje, más en la tradición de la filosofía analítica de Wittgenstein, de la Teoría de los Actos del Habla de Austin, etc, y posteriormente al método del Análisis Conversacional. Con él hicimos un seminario sobre “Análisis del discurso” el mismo año en que se comenzó a hablar de discurso en la Psicología Social por la publicación de Discourse and Social Psychology de Jonathan Potter y Margaret Whetherell6. Aquel seminario fue otro punto de inflexión, porque esto me puso delante de una manera absolutamente distinta de abordar la investigación y entonces me abracé a la “religión discursivista”. Sin embargo, los temas específicos de investigación que he abordado han ido variando posteriormente en función de las demandas, las preferencias o los intereses de cada momento. Primero me interesó el tiempo y la memoria colectiva. La memoria colectiva, porque el poder siempre está detrás de ella. La estudiamos en conexión o en relación con procesos políticos, específicamente la guerra española de 1936, y la transición política española. También he tenido una época dedicada al estudio del medioambiente, a lo que hoy llamamos sostenibilidad o sustentabilidad. Lo que estaba haciendo entonces era tratar de ver el modo en que la Psicología Social podría contribuir a la sostenibilidad, algo que en la Psicología convencional a veces lleva el nombre de “comportamiento ecológico responsable”, que yo creo que en el fondo es simplemente llenar de contenido humano todo este discurso medioambiental. En los últimos años he centrado mis intereses en el campo de la ciencia y la tecnología. Con la mayor parte de colegas de mi departamento, empezamos primero con investigaciones muy próximas a los temas característicos de la Psicología Social (percepción social de la ciencia) y poco a poco fuimos virando hacia una orientación mas simétrica heredera de Bruno Latour7,. sobre cómo se hace la ciencia. Ahora me intereso sobretodo por el impacto de las Tecnologías de la Información y la Comunicación en la arena pública, como por ejemplo, los locutorios (lanhouses). Aproximaciones com la Salud Pública ¿Y la salud pública donde está? Pues es que la salud va en paralelo porque mi aproximación a ese campo no ha sido inicialmente académica. Yo me aproximé a ella con un interés en tanto que ciudadano de mi tiempo. Luego, junto con Marga Sánchez-Candamio, empezamos a hacer cursos de formación en técnicas de investigación cualitativa para personal sanitario, y esto me llevó a tener un contacto directo con todo tipo de profesionales, fundamentalmente con personal médico y personal de enfermería, pero también eventualmente epidemiólogos, técnicos de salud pública, etc. Lo que debo precisar es que ese trabajo no es tanto en el ámbito de la salud como en el ámbito sanitario, es decir, más próximo de las políticas públicas que de la salud pública. Por ejemplo, he trabajado con Juan Muñoz, Félix Vázquez, con Maite Martínez, con Susana Pallarés, con Jordi Sanz o con Marga Sánchez-Candamio en proyectos que han resultado muy relevantes a la hora de diseñar políticas públicas especificas (donación de sangre, percepción de la sanidad, planificación del sistema sanitario o donación de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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órganos). Este ámbito de las políticas públicas sanitarias me interesa mucho por las formas que está tomando la nueva gobernanza de las poblaciones. Ahora, por debajo de todo lo que acabo de contar hay algo, y eso es el interés por el poder y las relaciones de poder. La otra cosa que hay es el interés por la fundamentación teórica y epistemológica, y la pasión que yo siento por la metodología. Probablemente hoy tendría que decir que mi última línea de investigación tiene como objeto la metodología. La metodología ya no es para mí un mero instrumento, sino un objeto de investigación. Me interesa el análisis, la reflexión y la investigación sobre los métodos en tanto que métodos. Desarrollar aspectos que se relacionan con análisis del discurso, pero también con las técnicas, el papel que tienen las entrevistas en la investigación, las diferencias entre las entrevistas individuales o las grupales, las diferencias entre un grupo focal y un grupo de discusión, el papel de la hermenéutica en las metodologías cualitativas, la conjunción de las perspectivas discursivas con la semiótica o la semiología. En fin, diría que más que una base que está por debajo de todo lo que ha sido mi trayectoria y mis intereses, la metodología acaba por ocupar un lugar en tanto que objeto de investigación y no sé si esto no representaría bien lo que es mi trayectoria Políticas públicas y medicalización de la vida cotidiana Mary Jane: Es muy interesante. Ahora, podemos hablar entonces de su preocupación por las políticas públicas y las formas de medicalización de vida cotidiana, tal vez especialmente en esta confluencia entre el discurso sanitario y el discurso de los derechos que son cosas que, por ejemplo, se chocan o se suman también. Lupicinio: Bueno, éste es un tema apasionante del que no creo tener un discurso mínimamente estructurado así que, como por encima de todo soy un docente, empezaré con un ejemplo. En una entrevista, una doctora me contaba que estaba un día en su consulta y la llamó por teléfono una niña de 13 ó 14 años muy preocupada. Le pedía que fuera a su casa porque “su mamá se encontraba muy mal”. Entonces la doctora intentó averiguar qué es lo que le pasaba. La niña le explicó que su mamá estaba llorando todo el tiempo, y que no paraba de llorar y que no era capaz de hacer nada y que estaba sentada, prácticamente inmóvil, llorando, durante días, y que estaba muy enferma. Al final la doctora averiguó que la abuela de la niña había fallecido hacía poco y entonces la mamá tenía mucha pena y estaba llorando de pena. Hoy día la pena, superar el duelo y afrontar las dificultades de la vida, ya no es una cuestión propia como era hasta hace poco tiempo; ahora es una cuestión médica. Si estas llorando porque ha muerto tu madre tienes que ir al médico para que te dé un relajante o una pastilla para dormir o para que hagan algo. Es a esto a lo que me refiero cuando hablo de medicalización de la vida cotidiana, los aspectos más comunes de la cotidianeidad acaban aprehendidos en el interior del sistema. Pero esto es extraordinariamente perverso, porque luego el sistema se queja de la sobreutilización, es quien nos reprocha a las personas que vayamos tanto a la consulta y nos recrimina que no hagamos un uso racional del sistema. Hay aquí una paradoja: por una parte tenemos que ir porque si no somos unos irresponsables, pero por otra parte no tenemos que ir porque saturamos el sistema. Es ése es el tipo de paradojas que me empezaron a interesar. La otra cosa que me interesa mucho, es el modo en que esto se coloca en la escena actual de control de la población, de manejo de la población, del gobierno. Ciertos elementos que se relacionan con la salud han cobrado un valor inusitado, muy importante, y no sé si lo es igual en todo el mundo, pero desde luego lo es en el caso de los países que tienen un sistema potente de prestación universal de la salud. Existe la generación de unas lógicas globales, que podrían llamarse también discursos, que tienen que ver con la salud y el bienestar, pero que se concretan en la micro-práctica de cada individuo específico. A mi modo de ver encierran una paradoja, la paradoja de que son aparentemente prácticas diversas y por lo tanto manifiestan la diversidad de lo colectivo, pero en el fondo tienen un efecto homogenizador; es decir, bajo la lógica de respetar y manejar la diversidad, hay algo que homogeneiza a todos. Por ejemplo, hay un discurso de la diversidad y de la gestión de la diversidad pero es un lugar común, una idea colectiva que nos hace vivir la ilusión de que podemos hacer las cosas de manera diferenciada y no homogénea que en el fondo tiene el mismo efecto que siempre tuvieron las políticas de control de las poblaciones, que se basan básicamente en la normalización y en el que todo el mundo haga lo mismo. Entonces ésta es una paradoja que a mi me apasiona. 696
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9 Referindo-se às teorizações de Donna Haraway, entre elas as que constam de seu influente livro “Ciência, cyborgs e mujeres”(Valencia: Ediciones Cátedra, 1995). 10 Vide, por exemplo, LAW, J.; HASSARD, J. Actor-Network Theory. Oxford: Blackwell, 1999.
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8 Referindo-se ás teorizações de Nikolas Rose dentre as quais destacamos o seu mais recente livro: “The Politics of life itself” (Princeton: Princeton University Press, 2007.
Se trata de un desplazamiento de la responsabilidad pública, sea lo que sea que entendamos por sujeto público, a las prácticas de los individuos. Me parece un caso maravilloso de ejercicio de poder exitoso y de control de la población que se puede leer en términos de bio-política, se puede ver en términos de micro-políticas, se puede ver en términos de micro-poder, con una apertura Foucaultiana, Roseniana8, Harawariana9, como queramos. Pero ahí hay un tema sumamente interesante: la sujeción, el control de las prácticas individuales, lo que implica un desplazamiento desde lo público hasta lo individual. El tabaco es un fenómeno que nos sirve también para pensar estos fenómenos. A mí me parece admirable cómo en un intervalo temporal extraordinariamente pequeño, creo que no mas de 15 años, hemos pasado del tabaco y el alcohol como mediadores de lo social, en el sentido de Latour y de la Actor Network Theory10, ya que alimentan y construyen la socialidad, a verlos como los demonios. El cigarrillo, es un ejemplo perfecto, literalmente es un conductor de socialidades y de vínculos sociales y en una operación que es por un lado simbólica y por otro lado material. La simbólica tiene que ver con lo público y lo material tiene que ver con el cuerpo. El cigarrillo ha pasado de ser un mediador de socialidad a convertirse en un peligro, en un problema, en un riesgo, no sé qué palabra utilizar. A mí me parece admirable, un éxito, digamos, del poder. Si utilizáramos una terminología antigua, diríamos un éxito de las políticas públicas, un ejemplo perfecto de cuál es el camino que ha tomado la gobernanza en las sociedades contemporáneas, un ejemplo perfecto, porque no sólo representa eliminar un elemento que contribuye y construye la socialidad, o el vínculo social, sino que construye cosas horrendas que quedan en la periferia del sistema, que son malas, que son perjudiciales, que te colocan en el afuera de la sociedad. Esto es fascinante y vemos cómo son substituidas por otras como el gimnasio, con sus elementos técnicos que cubren ese papel de atadura social o de vínculo social pero que van en la dirección de eso. No es necesario verlo como algo intencional, porque sabemos que lo público no tiene una mente perversa que lo dirija, pero que van orientados hacia el control y el dominio de las poblaciones de una manera muy obvia. A mi son esos sistemas los que realmente me fascinan. Puedo entender que el sistema tiene que garantizar y llegar a todos los individuos si quiere hacer una prestación universal, tiene que controlar su gastos, etc, etc, pero yo creo que en las nuevas formas de gobierno no estamos hablando de eso, no estamos hablando de eficacia o de recursos, sino que estamos hablando de producir sujetos que son viables para las nuevas formas de sociedad que van conformándose en los últimos años, y ahí yo pienso que las políticas públicas en general, y en particular las que tiene que ver con la salud, han triunfado completamente. Lo que es interesante es que en paralelo a estos cambios, a estas prácticas, ha habido un aumento de herramientas conceptuales teóricas y metodológicas para entenderlo. Porque ya nos dijo Foucault, donde hay poder, hay resistencia, y yo veo las nuevas formas de teorización de lo social como formas de resistencia a estos mecanismos de gobierno. Entonces el trabajo de Bruno Latour o el trabajo de NiKolas Rose, de Donna Haraway o de Judith Butler, el pensamiento post-colonial , etc, todos estos están dando alternativas que son teórico-metodológicas y críticas pero no solo para el conocimiento, sino también para la sociedad porque ofrecen formas de resistencia social. ¿Cómo lo hacen? desvelando que hay esta operación, y ello nos habilita como ciudadanos para resistirla. Son teorías por la que hoy sabemos que el cigarrillo no sólo es una cosa que produce humo y que da placer, gusto, sino que además son un elemento material que produce socialidad. Y cuando desvelamos que 697
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está siendo desplazado para que otros mediadores vengan a producir otra sociedad, conociendo esto, nosotros podemos actuar para resistir a esas nuevas formas. El conocimiento que nos da la teoría crítica contemporánea es también una manera de resistir las formas de poder, y eso es lo que a mí me encanta del pensamiento crítico contemporáneo, no que es crítico en un sentido epistemológico, sino que es una herramienta política. Nos permite resistir, nos permite ir contra esas políticas, y a mí esto me da mucha esperanza en el trabajo académico. Me parece interesante porque hoy día es una nueva forma de hacer política porque, al desvelar el modo en que se producen las formas de gobierno, estamos en mejores condiciones de resistirlas. Y yo creo que esas formas de producción se relacionan con la idea de resistir. Quizás soy un poco ingenuo, pero yo lo veo así. Mary Jane: Me gustaría saber cómo esto puede transformar la crítica en acción, porque una cosa es resistir, mas si tomamos a Foucault como ejemplo. La teoría de Foucault nos permite hablar de resistencia, pero Foucault tenía también una acción política. Una agenda en la calle. Pero cómo nuestras teorías, nuestras pesquisas sobre estas cosas pueden conectar, por ejemplo, con alguien en la prisión para quien el humo es una de las pocas formas de sociabilidad. Cómo transferir esto a una resistencia que no sea solo en la academia, sino que también en la calle. Lupicinio: Bueno, la primera operación que hay que hacer para entender esto que yo digo es re-nivelar el papel que tiene la teorización de lo social y la investigación en la escena de las prácticas sociales. Tendemos a pensar que la investigación, el conocimiento, es una práctica social privilegiada y que el conocimiento producido bajo ese estándar normativo científico es cualitativa y cuantitativamente mejor que el conocimiento o el saber producido por otras prácticas, o distinto y mejor que otras prácticas sociales. Aquí hay que volver un poco la vista a las advertencias y a los intereses de la etnometodología y decir “¡cuidado!, las prácticas de producción de saber no son exclusivas de la ciencia”. Esto es la primera cosa para entender esto, a mi juicio, y ya sé que todo el mundo lo sabe, pero se practica poco porque nos gusta sentirnos importantes como investigadores. Pero en realidad nuestro saber, es un saber del mismo tipo que otro. La segunda cosa es que, y ahora me voy a poner un poco epistemológico, el saber no es acumulativo, o sea yo no sé si esto engrandece nuestro conocimiento sobre la sociedad civil y su funcionamiento, porque vamos sabiendo cada vez más, cada vez más. Esto no funciona así y por eso tenemos que ir a la observación minuciosa de las prácticas en específico como investigadores. Aún así, como formamos parte de un grupo que tiene unas normas y tiene unos procedimientos, nos llamamos comunidad científica, producimos saberes que tienen un importante papel, porque tiene una enorme audiencia en la escena contemporánea, entonces son esas cosas que tenemos que tener en cuenta. Ahora bien, si asumimos todo eso, en el escenario de la acción social somos actores y actrices igual que los demás. Cuando advertimos del papel que juegan esas políticas y de los efectos que generan -- déjenme utilizar un concepto de la Psicología Comunitaria -- fortalece a los grupos y a las personas. Yo no estoy en condiciones de decir en qué modo le va a ayudar a orientar su acción o a orientar su resistencia, yo esto no lo puedo decir, porque no puedo hasta tal punto conducir las prácticas de las personas, pero de lo que estoy convencido es de que el desvelar esas formas de política, fortalece al grupo, a los colectivos, en definitiva fortalece la acción social y entonces ese fortalecimiento comporta mayores probabilidades o resistencia. Yo en esto no tengo ninguna duda. Ahora cuando me pone el problema especifico, cómo podemos trasladar esta cuestión a la cárcel donde el humo, el tabaco, o esnifar cocaína por ejemplo, es casi la única forma de socialidad posible, donde además se concitan más problemas de salud que los que encontraríamos en igual número de personas en otros contextos, la prisión es un lugar donde se producen estos problemas y además se acompañan de otros que tienen que ver con las enfermedades infecciosas, con problemas de salud ligados a situaciones específicas que se dan en la prisión y a lo mejor no se dan en otro sitio, etc ¿Cómo podríamos traducir esto? Bueno yo lo tengo muy claro. Como persona concreta, yo sigo fumando (risas). A mí las políticas anti-tabaco me producen reactancia. Yo volví a fumar después de casi 8 años por contestación a la regulación del tabaco, no puedo evitarlo. Entonces, yo no sé cuál sería la salida, pero si en lugar de ver sólo al tabaco como un problema de salud, si en lugar de ver sólo el tabaco como una cuestión de socialidad, si en lugar de ver las limitaciones al consumo del tabaco como algo que quiere promover la salud pública, lo vemos también como un elemento que 698
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altera nuestras formas de relación, el comportamiento especifico de las personas concernidas puede ser diferente. Yo no sé en qué sentido tiene que ir, ahí habría que desempolvar la tradición que he dicho libertaria-anárquista, yo no sé cuál sería la manera, pero sé que con ese conocimiento podemos resistir. Generar un saber de otro tipo está abriendo una posibilidad de resistir a esa individualización, yo creo que no es la única alternativa, porque cada conocimiento no lleva aparejado un tipo de práctica social, pero estarán de acuerdo conmigo que puede informar prácticas sociales diferentes, qué orientación le queremos dar a esa práctica, es una responsabilidad nuestra como científicos sociales. Yo tengo esta esperanza, llámenme ingenuo, tengo la esperanza de que con el conocimiento estoy contribuyendo a abrir un campo de posibilidad a una práctica social que es rebelde, que resiste, que plantea un conflicto y que moviliza para el cambio,. Yo estoy totalmente convencido si no, no me dedicaría a lo que me dedico. Sobre los desarrollos contemporáneos en la arena de los derechos 11 Peter Spink é professor titular na Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, e atual coordenador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo.
Mary Jane: Peter11, ¿puede entrar en la conversa? Lupicinio: Si, vamos al tema de los derechos, que me interesa mucho también. Mary Jane: Si, está bien. Lupicinio: Y creo que no se puede desligar la cuestión que usted identifica del proceso de la individualización. Es decir, primero sabemos que históricamente hay una tensión entre los llamados derechos individuales y derechos colectivos. Es una tensión muy mal resuelta en cualquier plano, en las ideologías, en el de las relaciones. Es muy complicado. Por ejemplo, ustedes han venido muchas veces a Cataluña donde hay esta tensión claramente expresada en términos del nacionalismo, o sea ¿qué prima, el derecho individual a “X” o el derecho colectivo al mismo “X”? ¿Qué es más importante?, ¿los derechos lingüísticos son míos, yo puedo hablar mi lengua, o los derechos lingüísticos son de la comunidad y entonces todos tenemos? Nunca ha estado clara la respuesta para esto, nunca ha estado resuelto ni en las ideologías, ni en las acciones políticas. Es una tensión muy importante. El tema de los derechos vuelve a ser una reproducción del conflicto entre los derechos individuales y los colectivos. También estoy de acuerdo en que hay un problema que se relaciona con la trivialización de los derechos. Hoy en día hay una invocación, un reclamo de derechos muy solemne para cualquier clase de cosa. Es decir, uno tiene derecho a todo y hay como una perversión del lenguaje de los derechos, lo cual trivializa los derechos mismos cuando hablamos de cosas que atentan contra la supervivencia de las personas, sus capacidades y posibilidades de desarrollo individual y colectivo. Y por otra parte, pues genera estas tensiones que en el caso de la salud a mi me parecen muy obvias, en el caso, uno tiene derecho a que no se le obligue a fumar, a aspirar el humo y me parece que en ese plano no hay ningún problema. Pero entonces yo tengo que hacer la invocación “¿Por qué yo no soy dueño, por qué yo no soy el amo de mi cuerpo, por qué antes era Dios quien iba a decidir sobre mi cuerpo y ahora es el Estado que decide sobre mi cuerpo? No sólo porque no puedo fumar y tengo que comer sano y tengo que hacer ejercicio, y tengo que hacer todo, sino que además, si me quiero matar no me dejan matarme, si tengo una enfermedad terminal, no dejan que me muera. Es decir, porque el locus de control de mi vida me lo han puesto fuera. Pero paradójicamente la decisión la tengo que tomar yo. Que es donde yo veo la COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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paradoja de la que ya hemos hablando antes, yo no tengo una solución para esto, pero esto está abierto a la conversación porque no sé cómo se articula esa cuestión que yo la veo de forma paradójica: yo tengo que ser dueño de mi mismo pero alguien es dueño de mí y las dos cosas se dan simultáneamente. Y es como si yo tuviera que renunciar de ser dueño de mi mismo, es como una forma de delegación del control, ¿no? Y alguien puede decidir sobre mí y para sostener este argumento, que es difícilmente sostenible, pues hay unas prácticas en específico. Están las jurídicas, que ya Foucault nos advirtió de las diferencias entre el poder jurídico y el resto, pero hay toda esa cadena de micro-prácticas que con operaciones que son a la vez simbólicas y materiales, van colocando en la periferia de la sociedad a todas aquellas personas o que persisten en el control de sí mismos o que literalmente renuncian a controlarse a sí mismos. Entonces el buen ciudadano o ciudadana es quien sabe manejar esta tensión de control, y quien queda en la periferia es el que la resiste. A mí esto me parece apasionante en diversos campos, también en la escena política en general, pero en el campo de la salud me parece apasionante. Es un objeto de investigación que efectivamente hay que realizar porque está muy presente. ¿Cómo podríamos nosotros responder a la reclamación del derecho a no respirar el humo del tabaco? Yo pienso que hay sobre esa idea un mito del contrato social, de que la sociedad es el resultado de unos acuerdos en los que todos estamos de acuerdo y esto nos permite vivir en armonía y, aunque sabemos que hay conflictos, tenemos que avanzar hacia esta sociedad ideal fruto del consenso y se niega el conflicto. Pero la sociedad no está hecha de acuerdos, está hecha de conflictos como dirían los simétricos12, la sociedad no está por encima de las prácticas, se hace en la conexión, y esas conexiones son conflictivas, entonces no podemos aspirar a que el problema de que tú tienes derecho a no fumar y a no aspirar mi tabaco y yo quiero tener el derecho a matarme mis pulmones, se tenga que resolver con ese mito de la armonía, sino que tenemos que resolverlo como un conflicto inter-personal. A mi ver, cuando llevamos lo jurídico a las relaciones inter-personales, matamos las relaciones inter-personales. Entonces tenemos que substituir, para entender todo esto, la idea del contrato y de la armonía social por la idea de una sociedad más puntual que es una emergencia de las prácticas y que se construye sobre la discrepancia y el conflicto, no sólo del acuerdo y de la armonía. Entonces el problema lo resolvería vis-a-vis. No tengo ningún problema en negociar con usted si puedo fumar o no aquí, y no fumar si resulta que usted no quiere que fume. Y a lo mejor también al revés, que usted pueda tolerar que en determinados momentos y en un contexto particular, por ejemplo, un día que me ha invitado a su casa porque yo estoy de paso por Sao Pablo, me deje fumar un cigarrillo y mandarme a la piscina, que eso resulte factible también aunque normalmente no va a pasar porque ha de resultar de una convergencia en ese momento, no del hecho de que hay algo ahí que nos impide que fumemos en los sitios. Los derechos y la cuestión de la ciudadanía Peter: La explosión del uso de los derechos como un instrumento moral, va también junto con la explosión del uso y de los dramas de la cuestión de la ciudadanía. Los derechos no vienen ahora solitos sino colados con la expresión de ciudadanía en la contemporaneidad: quién es ciudadano. quién no es; sería interesante ver sus comentarios sobre eso, cómo ve la cuestión de la ciudadanía Lupicinio: también me interesa como espectador el tema de la ciudadanía y me he interesado no tanto por los problemas que estamos viviendo, sino 700
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A expressão “simétricos” refere-se à Teoria Ator-Rede que propõe uma sociologia que tome atores humanos e não humanos como simétricos quanto a seu potencial agenciador.
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13 Arthur Koestler, jornalista que defendeu causas políticas diversas. Dentre sua vasta obra destacamos a novela sobre intelectuais que fazem do circuito internacional de conferências seu ganhapão (1972).
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por el contexto socio-político en el que me desenvuelvo. En abstracto hay dos formas básicas, creo, de ciudadanía, la que tiene una raíz étnica o cultural, por decirlo de alguna manera, cuando uno es ciudadano si es nacido en un sitio, si habla una lengua particular y si cuenta con todos los apellidos de no sé cuantas generaciones. Por ejemplo, esto en la ideología nacionalista es muy obvio. Hay ideologías nacionalistas muy étnico-culturales. Y hay otras formas de ciudadanía que devienen del contrato social; por decirlo de alguna manera, uno es ciudadano si firma un contrato. Se trata, diríamos, de la tradición de la Ilustración. Pero yo creo que ambas comprensiones de la ciudadanía están anticuadas y que no nos permiten entender los problemas de nuestro tiempo. Ni la que deriva de la ilustración, ni la que deriva de lo cultural, la visión romántica, no tienen que ver con lo contemporáneo. Entonces, ¿dónde situar la ciudadanía? Para mí, y yo creo que a usted supongo que le es fácil de entender, porque la tradición anglosajona tiene que ver algo con la responsabilidad. Ahí es donde yo situaría la ciudadanía, en la responsabilidad. Es decir, no colocar el tema de la ciudadanía antes, sino colocar la respuesta de la ciudadanía después, en las consecuencias de lo que hacemos. De qué tipo son esas consecuencias, o cuáles son. Ésa es la medida de la ciudadanía. Uno es ciudadano o ciudadana, desde mi punto de vista, si de su acción se derivan efectos de vinculación, de relación, de cuidado, de apoyo mutuo, de responsabilidad colectiva. Si de su acción no se derivan esas consecuencias, yo no hablaría de ciudadanía. Así pues, yo defendería una visión que provisionalmente podríamos llamar de “ciudadanía-post” o de “post-ciudadanía”, una ciudadanía por resultado, no una ciudadanía por antecedentes . Peter: La cuestión del lenguaje como producto inter-subjetivo. La cuestión de derechos individuales y colectivos en relación al lenguaje es un poco complicada; no es una cuestión simple, porque si dos personas no hablan, si una persona no responde a la otra, una persona sola no mantiene un lenguaje. Es obligatorio que la otra persona responda. Me recuerdo de Arthur Koestler13 que fue internado en España durante un buen tiempo, durante la guerra civil, en Málaga creo. Koestler era un reportero y comentó que, para no virar insano, él creó otro Koestler y ahí los dos, a cada día, marcaban una hora donde los dos irían a conversar, uno con el otro durante una hora y con esta hora de conversación, él aguantaría 23 horas de silencio. Mas a no ser que crees otro Koestler, necesitas que otra persona responda y eso es de interés especifico no solo en términos de una lengua concreta, como usted bien colocó. Es necesario que las personas hablen para que la lengua sobreviva. En Irlanda hay ciertas partes donde no hay placas en inglés, como también en el país Vasco. Si ciudadanía es una cuestión de negociaciones del cotidiano, las lenguas son aspectos muy importantes; entonces dentro de esa cuestión inter-subjetiva de la lengua que exige la presencia del otro, ¿cómo irán a trabajar esta cuestión de los derechos individuales y colectivos de esta manera? Yo creo que hay que decir “post”, de cierta manera la discusión entre los derechos individuales y derechos colectivos, puede ser una discusión para nosotros hoy falsa, una discusión que genera un non-dialogo, que es necesario sobreponer en esta cuestión. Lupicinio: Esta discusión muy difícil, la pregunta es muy complicada. Yo primero diría que el lenguaje es visto normalmente sólo como algo simbólico, como comunicación simbólica, pero el lenguaje también es una tecnología, creo. La escritura había sido una de las primeras tecnologías, yo creo que podemos hacer la extensión al lenguaje también, ¿no? y eso es muy importante. O sea, cuando hablemos sobre el lenguaje que no lo veamos sólo como algo simbólico, sino que también lo podemos ver como algo material sin necesidad de ser 701
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chomskianos,14. Por lo tanto, siendo así, tiene una lectura objetual también y verá, lo digo para contestar a su pregunta, si dos personas no quieren hablar no hablan; en términos analíticos, para conversar hay que querer conversar. Si no queremos conversar, no podemos conversar. O en el otro lado, el de los conflictos, como se dice en mi pueblo,15 dos no riñen si uno no quiere, dos no se pelean si uno no quiere. O sea, siempre hay esta ideología. Bueno, sobre este plano tanto da que los derechos sean individuales como colectivos, porque ese ejemplo que ha puesto de Irlanda y que lo podemos ver en Cádiz, o que lo podemos ver en Cataluña, lo podemos ver del otro lado también, el de un euskaldun, que es una persona que habla Euskera, cuando se ve excluida porque otro apela a su derecho de hablar su lengua. O sea, estamos hablando de una disimetría en la relación, reconocer lo dialógico no significa que las posiciones estén en el mismo plano, por eso hay que recuperar la idea de poder, y en el campo de los derechos y en el campo de las responsabilidades y en el campo de la ciudadanía hay que ver cuál es el nivel en que se encuentran las partes. Y ese nivel siempre es disimétrico. Entonces un conflicto, ya sea de derechos individuales o de derechos colectivos, no se podrá traer a la arena de la relación y discutirlo si alguien dispone de los recursos para evitarlo. Es algo así de simple. Lo cual no niega que es en una entente dialógica donde eso se podría resolver. Pero reconocer que hay dos polos no significa que los dos estén en el mismo plano y siempre alguien dispone de recursos que el otro no tiene, entonces pues podrá más fácilmente imponer, en un sentido literal de la palabra imponer, su punto de vista. Yo aquí volvería al modelo mas clásico de verlo en términos de relación de poder, por mucho que las disimetrías a veces sean inconmensurables o pequeñas lo que no podemos suponer es que todo el mundo está en la arena social en el mismo plano, eso no lo podemos sostener , no sé si contesta…. Peter: Si, es bueno, porque hay similitud. Me estoy acordando del período, vamos a decir de 15 o 20 años atrás, donde no había legislación en la cuestión del humo. No era infrecuente que en discusiones en grupo las personas comentaban unas para las otras, ¿sería posible no fumar o fumar un poco menos? Mary Jane: En esos micro-lugares de negociación, sin duda. Pero creo que habrá una inflexión diferente en esta tensión de lo colectivo y lo individual. Cuando piensas colectivo no más como humanos y sí como humanos y no humanos, colectivo pasa a ser, por ejemplo, un planeta. Entonces creo que las cosas van cambiando….. Lupicinio: Pero yo creo que ya están cambiando. Parte también de las ventajas que tiene esta idea de innovación teórico-metodológica de la que yo hablaba antes, por ejemplo, muchos procesos que nunca fueron cuestionados en su naturaleza, como por ejemplo ciertos procesos psicológicos, o ciertos procesos psicosociales, hoy día ya no los vemos ni analizamos, ni los entendemos como tales. Pienso por ejemplo en el cálculo, en la memoria, por poner ejemplos típicos psicológicos y en paralelo de la memoria social. Por ejemplo, vamos a cualquier bar, a cualquier restaurante y yo puedo apostar mi salario con ustedes a que si pedimos un café, un cortado, otro cortado y otro cortado, a la hora de pedir la cuenta el camarero no va a sumar con su cabeza un café y tres cortados, va a ir a la máquina y va a poner 0,75, más, 0,75, más 0,75, más 0,75. O sea, el cálculo, que es uno de los ejemplos más característicos de la actividad psicológica y mental, ya no está en nuestras cabezas, está en lo material. Estoy haciendo un viraje un poco hacia lo simétrico, conscientemente. Hay cosas que me están interesando, pero por ejemplo la memoria, ya que si pierden esta grabación, será imposible hoy que recuperemos nuestra conversación. Hace unos años donde todos fuimos entrenados a tomar nota de las entrevistas 702
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Noel Chomsky, teórico da ciência cognitiva, conhecido por sua proposta de gramática generativa.
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Lupicinio Iñiguez nasceu e mantém fortes vínculos com o povoado de Anguiano, na província de La Rioja.
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porque no teníamos grabadoras, hubiéramos re-construido nuestra conversación, hoy día va a ser muy difícil. Y si trasladamos por analogía este tipo de enfoque al ámbito colectivo tenemos la misma cosa. Efectivamente lo colectivo incluye las cosas, los objetos, las materialidades, el planeta, el universo, el mundo y todo, pero lo que cambia también es la naturaleza misma del proceso colectivo. Una de las dificultades que yo tenía para conceptualizar la memoria social justamente es que vista sólo como un fenómeno simbólico o como un acontecer simbólico, se nos suscitaban siempre preguntas ontológicas, ¿dónde está la memoria colectiva? y ¿dónde se encuentra? y ¿cómo se crean hábitos? Y hoy día sabemos que la memoria colectiva se produce en nuestras conversaciones, pero que también se incrusta en las piedras, en la ropa, se incrustan en los sitios. Cuando he hablado antes del colectivo estoy teniendo en mi cabeza, si puedo utilizar esta analogía que resulta tan poco contemporánea, ya estoy teniendo esta ampliación del concepto de lo colectivo porque me parece muy importante. Estoy de acuerdo que también el ámbito que le da a lo colectivo y el campo que abre a pensar algunas dicotomías que siempre tuvimos presentes como lo local, lo global, cambia. O sea, ¿qué hay de local en dónde y qué? Pero también ¿qué hay de global, dónde y qué? O sea para comprenderlo, lo tenemos que pensar de otra manera…
Recebido em 18/05/2010. Aprovado em 10/06/2010.
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livros
Ritchie, J.; Lewis, J. (Eds.) Qualitative research practice: a guide for social science studentes and researchers.London: Sage Publications, 2003.
Ana Maria Canesqui1
Cresce a divulgação da literatura sobre metodologia da pesquisa qualitativa, ampliando adeptos e interesses de usá-la nos vários campos do conhecimento das ciências sociais e humanas e das áreas da Saúde e Educação. Ritche, psicóloga, e Jane Lewis, especialista na pesquisa qualitativa, formada em direito, pertencem a uma organização de pesquisa independente inglesa - o Centro Nacional de Pesquisa Social criada em 1969, que abriu uma divisão de pesquisa qualitativa em 1985. O livro, por elas organizado, traduz essa experiência em vários campos da pesquisa social e, sobretudo, na política pública, dominada durante longo tempo pelos estudos quantitativos, objetivistas e modelos multicausais. Na coletânea reúnem-se membros daquela organização, especializados em aspectos dos métodos qualitativos, cujas qualificações abraçam: os que combinam estas metodologias com os métodos quantitativos; os que aplicam grupos focais; os interessados na academia, assessorias e formação de pesquisadores, assim como os que fazem pesquisas qualitativas aplicadas às organizações; à avaliação de políticas públicas, enquanto
pesquisas estratégicas, interessadas em subsidiar as intervenções e a gestão, distinguindo-se dos estudos de desenvolvimento das teorias. O livro é um guia para pesquisadores e estudantes, passando pela discussão dos diferentes tipos de pesquisa qualitativa, seu papel, usos, desenho, amostra, seleção das informações e análise. No final de cada capítulo, está um resumo dos aspectos principais abordados e dos conceitos-chave desenvolvidos pelos autores, juntamente com uma bibliografia básica sobre o assunto, orientando didaticamente os leitores. O primeiro capítulo, assinado por Dawn Snape e Liz Spencer, reconhece a diversidade das concepções da pesquisa qualitativa e abraça a clássica definição de Denzin e Lincoln, situando-a como um tipo de pesquisa naturalística, interpretativa, voltada à compreensão do significado atribuído às ações, decisões, crenças e valores circundantes no mundo social. Os autores abordam o desenvolvimento histórico da pesquisa qualitativa, desde as posturas positivistas e empíricas, chegando às correntes interpretativas, críticas, feministas e pós-modernas, que percorreram o século passado com posicionamentos
Professora aposentada, colaboradora do Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Caixa Postal 6111. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13.083-887. anacanesqui@uol.com.br
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ontológico e epistemológico deste tipo de investigação, que aposta na capacidade criativa e interpretativa dos sujeitos em ação no mundo. Os autores descartam a neutralidade da investigação, endossando a posição ontológica da dependência do mundo social do entendimento subjetivo dos sujeitos, compreendendo e admitindo ser multifacetada a captura da realidade. Associam o interpretavismo ao pragmatismo, ao contexto e às circunstâncias vividas pelos informantes, aceitando a combinação dos métodos qualitativos e quantitativos. O segundo capítulo, de Jane Ritche, aborda a aplicação dos métodos qualitativos, chamando a atenção para o fato de este tipo de pesquisa ter-se ligado, anteriormente, à produção do conhecimento, e não aos assuntos voltados às políticas públicas. Ela descreve os tipos de estudos - contextuais; explanatórios ou associativos; avaliativos; de efetividade; generativos - e os tipos de abordagens utilizadas, como: a observação e observação participante; a análise documental, de conversação e de discurso, juntamente com a geração das informações. Estas são obtidas pelos métodos biográficos; entrevistas individuais, temáticas ou grupais; entrevistas em profundidade, narrativas e grupos focais, ou pela combinação destes procedimentos. Adverte a autora sobre a subordinação e dependência das diferentes técnicas aos propósitos do estudo. O terceiro capítulo, assinado por Jane Lewis, dedica-se ao desenho dos estudos, mostrando a importância da flexibilidade da pesquisa qualitativa, sempre aberta ao desconhecido, aos imprevistos e à permanente revisão dos seus pressupostos iniciais e abordagens. A autora fornece um roteiro bastante didático dos passos a serem percorridos na elaboração de um projeto de pesquisa; dos relacionamentos preliminares necessários; da escolha da população; dos contatos com os participantes; do desenho dos instrumentos utilizados e preparo da ida ao campo. Ressente-se a ausência de discussão dos aspectos éticos das pesquisas, que estão dentre os passos a serem observados pelos pesquisadores. Os capítulos seguintes são contínuos e nucleares da coletânea, nela ocupando grande espaço. O capítulo 4 centra-se no desenho; seleção da amostra e implementação da 706
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pesquisa, sendo assinado por Jane Ritchie, Jane Lewis e Gillian Elam. O capitulo 5, de autoria de Sue Arthur e James Nazroo, enfoca o desenho das estratégias do trabalho de campo e a obtenção de informações. Traz exemplos dos vários tipos de pesquisas e suas técnicas: histórias de vida, entrevistas em profundidade; discussões em grupos focais, assim como a confecção de roteiros de entrevista, de acordo com os propósitos, tipos de investigação e requerimentos da obtenção das informações. O capítulo 6, de Robin Legard, Jill Keegan e Kil Ward, é bastante extenso e dedicado somente à entrevista em profundidade, seus tipos, e a importância das habilidades dos pesquisadores em perguntar, ouvir e estabelecer um relacionamento empático com os sujeitos da pesquisa, convocando o uso da sensibilidade às reações dos entrevistados. Os autores exploram detalhadamente a técnica de grupo focal em todas as suas etapas: as discussões, fases, tamanho, organização; condução; a participação de observadores e o uso de equipamentos de gravação. Ressaltam o caráter interativo e participativo desta técnica e a importância de o pesquisador assumir o papel de guia das discussões. O capítulo 8, assinado por Liz Spencer, Jane Ritchie e Willian O`Connor, dedica-se ao processo, princípio e prática da análise, como uma etapa que requer criatividade, sistematização, inspiração e diligência do pesquisador. É o momento de se testarem as teorias iniciais e, se necessário, reformulá-las, para se alcançarem os resultados da pesquisa. Os autores observam, pertinentemente, o desprezo da literatura sobre este assunto no século passado, cobrindo-o de mistérios, segredos e obscuridade. Enfatizam as diferentes abordagens, tradições e estrutura da análise; os recursos e métodos disponíveis e a potencialidade da análise reflexiva. O capítulo 9, de autoria destes últimos autores, continua e detalha as análises das informações qualitativas, incluindo algumas técnicas, como: a análise temática; descritiva; de conteúdo; explanatória; de padrões associativos; a construção de índices e de tipologias, assim como os apoios necessários. Cada tipo é sintetizado em caixas, expondo os principais conceitos e procedimentos. É em torno de um conjunto de assuntos, não exclusivamente
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relacionadas às políticas, que exemplificam os tipos de análise e sínteses das informações obtidas sobre temas como: os sem-teto; a sexualidade; gays e lésbicas. O capítulo 10, de Jane Lewis e Jane Ritcher, discute a generalização da pesquisa qualitativa, seu caráter contextual e particular, sua validade e relação com a generalização, apontando um importante princípio a ser seguido: o uso das bases de evidências; a explicitação das rotas analíticas e dos níveis de interpretação; a checagem do desenho da pesquisa e da conduta do pesquisador, e a validação das interferências. Finalmente, no capítulo 11, Clarissa White, Kandy Woodfiel e Jane Ritcher discutem a apresentação das informações, apontando o caráter inacabado do relatório final exposto, nas suas palavras, à “continuidade da jornada da interpretação e classificação das informações que requerem contínua exploração, futuras interrogações, padrões de associação, detalhes das interpretações e exploração”. Assim, não se admite a existência da voz única e onipotente do pesquisador, mas de múltiplas, incluindo os leitores que podem fornecer novas interpretações ao texto. Portanto, este tipo de análise detém o caráter inacabado e provisório. São explorados, ainda, os diferentes estilos de apresentação do relatório final e suas possíveis combinações, como: descritivo; complexo; diagramático; tipológico; ilustrativo; associativo; explanatório das evidências ou dos conceitos. O texto, finalmente, traz orientações à apresentação oral das informações, que geralmente costumam ser relegadas, na academia, ao autodidatismo dos expositores. Não se trata apenas de mais um livro sobre a pesquisa qualitativa, mas sua didática, discussões conceituais e práticas, amplamente fundadas na teoria e na experiência dos autores neste tipo de pesquisa, tornam o texto acessível e útil, tanto aos pesquisadores iniciantes quanto aos experientes, que procuram se aperfeiçoar neste tipo de metodologia. Resta alguma frustração em relação às expectativas iniciais, geradas no leitor, de maior detalhamento e análise qualitativa, de natureza avaliativa, das políticas públicas, que poderiam ter sido mais contempladas nos exemplos usados pelos autores.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.14, n.34, p.705-7, jul./set. 2010
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teses
Entre os processos de fortalecimento e de fragilização do modelo ESF: gestão municipal – órgãos formadores como componentes intervenientes
Between the processes of strengthening and of weakening of the ESF model: municipal management - educational agencies as intervenient components Entre los procesos de fortalecimiento y de fragilización del modelo ESF: gestión municipal – órganos formadores como componentes intevinientes O presente estudo teve como objetivos: compreender o processo de trabalho dos membros da equipe multiprofissional da ESF segundo a perspectiva dos mesmos; propor modelos teóricos representativos de cada experiência, e elaborar uma metassíntese a partir dos modelos teóricos emersos das experiências, resultando em um metamodelo. Trata-se de um estudo qualitativo orientado pela Teoria Fundamentada nos Dados, denominada internacionalmente por Grounded Theory, e pelo Metaestudo como referenciais metodológicos, tendo como referencial teórico a Teoria da Complexidade. Os dados foram coletados por meio de entrevista não diretiva, gravada e transcrita na íntegra, com 54 profissionais de saúde, membros da equipe multiprofissional da ESF, composta por: médicos, enfermeiros, cirurgiões dentistas, auxiliares de cirurgião dentista, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, de um município do interior paulista, no período entre fevereiro e março de 2008. Da análise das experiências dos grupos amostrais, emergiram seis categorias centrais, respectivamente, a saber: entre o declínio e o fortalecimento do vínculo médicoESF: a reciprocidade médico-equipe-comunidade como componente interveniente na resignificação da práxis; do entusiasmo à desmotivação: o apoio da gestão municipal na materialização da consulta de enfermagem como instrumento da visibilidade do enfermeiro; do ideal à materialização da assistência odontológica preventiva junto à ESF; do consultório para a ESF: conquistando reconhecimento social e ressignificando a vida ao vivenciar, na práxis, a promoção e prevenção da saúde bucal materno-infantil; do ideal à ilusão: a dimensão político-administrativa do gestor municipal como componente interveniente na consecução da ESF; do sonho à frustração com a ESF: a reciprocidade ACS - comunidade como
componente interveniente. Da metassíntese desses modelos emergiu um metamodelo representativo da experiência de trabalho da equipe da ESF, nomeado: “Entre os processos de fortalecimento e de fragilização do modelo ESF: gestão municipal – órgãos formadores como componentes intervenientes”, que representa o significado e o movimento dos membros da equipe multiprofissional que atuam no modelo de atenção da ESF. O modelo teórico evidencia o processo que leva a equipe a entusiasmar-se e a se encontrar no modelo ESF, materializado no cuidado integral à comunidade, como forma de tornar reconhecido seu papel social. O trabalho fragmentado, a falta de apoio da dimensão político-administrativa e dos órgãos formadores sobrecarrega o trabalho, tornando-o invisível. A visão da Teoria da Complexidade apoia novas práticas, mais criativas e sistêmicas, sendo que, quanto mais fortes as relações entre as pessoas, mais apoio e reconhecimento nascerão delas. Há necessidade de uma desconstrução do paradigma cartesiano do trabalho em saúde para que novas maneiras de enfrentar os desafios surjam a partir do fortalecimento de todos os seus membros, apoiados por uma nova visão de mundo. Regina Stella Spagnuolo Tese (Doutorado), 2010 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp rstella10@yahoo.com.br Palavras-chave: Programa Saúde da Família. Avaliação em saúde. Dinâmica não linear. Pesquisa qualitativa. Keywords: Family Health Program. Health care assessment. Non-linear dynamics. Qualitative research. Palabras clave: Programa Salud de la Familia. Evaluación en salud. Dinámica no linear. Investigación cualitativa. Texto disponível na íntegra: http://www.pg.fmb.unesp.br/index.php?codPG=9
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.34, p.709-11, jul./set. 2010
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teses
Análise compreensiva do significado do atendimento ao adolescente realizado pelos profissionais de saúde da atenção primária do Município de Viçosa, MG Comprehensive analysis of the meaning to care the adolescent performed by occupation health attention in primary care of the municipality of the Viçosa, Minas Gerais State, Brazil Análisis comprensivo del significado del atendimiento al adolescente realizado por los profesionales de salud de la atención primaria en el Municipio de Viçosa, Minas Gerais, Brasil O presente trabalho é um estudo de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica, que teve como objetivo compreender o significado do atendimento a adolescentes realizado pelos profissionais da atenção básica do município de Viçosa-MG. A pesquisa foi realizada com profissionais de nível superior, médicos e enfermeiros, que trabalhavam nas Equipes da Estratégia Saúde da Família. Os dados foram colhidos nos meses de fevereiro e março de 2009, por meio de uma entrevista individual com os profissionais que aceitaram participar da pesquisa. A entrevista foi aberta, guiada por uma questão norteadora: “O que é, para você, atender o adolescente na atenção primária?”. Por meio do critério de repetição das falas chegou-se a 12 entrevistados, cujos discursos foram avaliados segundo a análise ideográfica proposta por Martins e Bicudo (1989), o que possibilitou construir 12 unidades temáticas. Estas unidades confluíram para três grandes categorias de análise, que elucidam o atendimento ao adolescente: “Atendimento ao adolescente: os desafios da atenção primária”, “Atendimento ao adolescente na atenção primária: características da prática assistencial”, “Atender o adolescente: uma necessidade da atenção primária”. Para os profissionais que participaram da pesquisa o atendimento ao adolescente ainda é um grande desafio, com muitos obstáculos. Nesse contexto destacam-se questões relacionadas à dificuldade em lidar com essa população, à falta de capacitação, à sobrecarga de trabalho, dentre outros elementos. Outros pontos evidenciados estão relacionados ao atendimento realizado pelos profissionais nas equipes, muitas vezes direcionados para as características, os riscos e os agravos da adolescência. Os participantes colocam, também, que é necessário atender o adolescente, e que o serviço de saúde deve se organizar para esta finalidade. O desocultamento 710
do fenômeno indica que existem questões importantes para serem discutidas e melhoradas com relação ao atendimento ao adolescente na atenção primária. Neste contexto vários atores devem ser envolvidos, dentre eles o profissional e o adolescente, que são as peças fundamentais dessa organização. Bruno David Henriques Dissertação de Mestrado (2009) Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde: Saúde da Criança e do Adolescente, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais. brunoenfer@yahoo.com.br
Palavras-chave: Atenção primária. Saúde do adolescente. Pesquisa qualitativa. Fenomenologia. Keywords: Primary care. Health of adolescents. Qualitative research. Phenomenology. Palabras clave: Atención primaria. Salud del adolescente. Investigación cualitativa. Fenomenología.
Texto na íntegra disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ ECJS-7W8P86
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.34, p.709-11, jul./set. 2010
teses
Poéticas do inacabado: verbetes para uma clínica em trânsito Poetics of the unfinished: notes for a moving clinic Poéticas de lo inacabado: apuntes para una clínica en tránsito
A dissertação buscou investigar questões ligadas a alteridade, distâncias e trânsitos de uma clínica, disparadas pelo tema “Como Viver Junto”, da 27ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Um viverjunto inspirado em Roland Barthes, pensado a partir de noções de distância que preservam as singularidades, sem se desfazer do coletivo, numa orquestração de movimentação conjunta. Noções que levamos para o campo da clínica, perpassando também pelo campo da arte, e que serviram como operadores em situações específicas de intervenção estético-clínica. Tais intervenções ocorreram tendo como ponto de partida a Terapia Ocupacional e a ampliação dos espaços de atuação, deslocadas dos settings fechados para os espaços da cidade, seja no trabalho como acompanhante terapêutica, seja na experiência junto ao projeto Encontrar-te na cidade de São Paulo. Além disso, a ampliação deste campo de atuação da Terapia Ocupacional se deu em espaços de arte, no Programa Lazer com Arte para a Terceira Idade, da Divisão de Educação do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC/USP), em parceria com arte-educadores, e no trabalho como monitora na 27ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo em 2006 e como educadoraperformer na exposição Objetos Transitórios para uso humano, da artista Marina Abramovic, em 2008, na Galeria Brito Cimino. A pesquisa foi construída em forma de verbetesrizomáticos que podem ser lidos a partir de qualquer ponto e seguir para qualquer direção, formando uma composição híbrida de escrita e imagens, numa cartografia das andanças, dos acontecimentos e dos deslocamentos que estes encontros artísticosclínicos produziram. Afirmou-se, assim, um percurso marcado por práticas estéticas que não pretende terapeutizar a arte ou reduzir a clínica a meros procedimentos artísticos, mas que se inventa no cotidiano de uma clínica constituída a partir das ações humanas, na compreensão de uma ética e de uma estética movidas pelos desejos e afetos. Práticas estéticas
que inventamos para dar conta dos deslocamentos produzidos pelo estrangeiro-outro ou estrangeiro-eu, que se revelam no acompanhamento da precariedade e fragilidade do outro em cada um de nós. As distâncias se relativizam nesse ato de acompanhar o outro – no sofrimento, nas situações limites, nos enfrentamentos – e evidenciam a nossa própria vulnerabilidade. No entanto, neste trilhar com, produzimos trocas, percebemos diferentes modos de olhar para o outro, de lidar com as situações, de nos relacionarmos com o mundo, partilhando o que captam nossas próprias sensibilidades, numa composição mútua de processos de vida, que, embora singulares, são compostos nos encontros. Práticas estéticas que permearam toda esta pesquisa, numa afirmação de que afeto e procedimentos sensíveis podem compor um trabalho acadêmico. Procedimentos sensíveis que podemos chamar, ainda, de estético-clínicos, na medida em que não apenas se compõem com um modo de pesquisar e clinicar, mas também me constituem: na forma de apreensão do mundo, na lentificação do tempo e na apropriação das experiências. Nesse sentido, o ato opera coisas, revela potências e nos damos conta de nossas forças, a despeito de toda nossa incompletude e fragilidade. Gisele Dozono Asanuma Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica), 2010 Núcleo de Subjetividade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo gisele.asanuma@gmail.com
Palavras-chave: Terapia ocupacional. Arte. Clínica. Distância. Procedimentos estéticos. Alteridade. Keywords: Occupational therapy. Art. Clinic. Distance. Aesthetical practices. Alterity. Palabras clave: Terapia ocupacional. Arte. Clínica. Distancia. Procedimientos estéticos. Alteridad.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.34, p.709-11, jul./set. 2010
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notas breves
A rede de apoio no tratamento oncológico
Luciana Geyer Kopelman Thalenberg1
Apresentação A seguir apresentamos o relato de uma experiência ímpar de luta pela vida, em que a formação de uma rede de ajuda, de apoio, de troca, de amizade foi fundamental. Luciana Kopelman Thalenberg (1965–2009) é a protagonista desta história de vida. Ela, com sua alegria, humor, generosidade, sensibilidade e inteligência teceu, com suas amigas, uma rede para ajudá-la a lutar contra um câncer de mama e para sustentar sua vitalidade e das pessoas ao seu redor. Ela amava a vida e a enfrentou com a maior garra e dignidade. Qual sua maior força? Seu amor, sua potência afetiva. Era seu desejo tornar público seu texto-testemunho, uma pequena amostra de sua generosidade. Ela queria revelar para as pessoas, sobretudo aquelas que enfrentam situações tão difíceis como a que enfrentou, que há um caminho possível e vital em meio à mata densa de uma doença grave. Ela ensinou-nos que, mesmo diante de uma doença terrível, podemos nos manter ativos e vivos. O relato em terceira pessoa é uma maneira de a autora se preservar, tomar distância do que lhe acontecia para colocar em andamento um processamento importante para ela e para outros. Nada faz um escrito mais valioso do que usálo como um instrumento para encontrar meios de tornar a vida possível e digna. Segue esse texto-tesouro. Paula Patrícia Francisquetti, médica psiquiatra, psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Esta Apresentação foi escrita com base em alguns encontros com membros da rede de apoio descrita no texto “A rede de apoio no tratamento oncológico”, em janeiro e fevereiro de 2010. ppsnf@uol.com.br
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Psicóloga, era membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
v.14, n.34, p.713-5, jul./set. 2010
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A rede de apoio no tratamento oncológico
O termo “rede” vem sendo utilizado comumente na área de saúde. Esta terminologia, cujo significado é amplo e, portanto, pouco preciso, não deixa de ter um valor fundamental enquanto ideia que permite a construção efetiva de um aparato que favorece certos tratamentos2. No campo da saúde mental, por exemplo, a noção de rede envolve a utilização de uma equipe multidisciplinar que favorece uma visão do paciente em suas diversas facetas. Atualmente, fala-se de múltiplas redes existentes na internet, inclusive para apoio às pessoas doentes. Pois bem, não é deste tipo de rede que pretendo falar. A minha ideia é discutir a importância de um grupo muito específico, fundamental para o paciente em tratamento oncológico, qual seja: o grupo de pessoas que o acompanha durante o tratamento. Comumente, a resolução de quem estará presente nas aplicações de quimioterapia ou de radioterapia, nas consultas médicas, exames, e tudo o mais que for necessário, é tomada num momento em que tanto o doente quanto os seus próximos estão ainda sob o efeito desorganizador da constatação da doença. Assim como em nosso cotidiano estamos sempre fazendo projetos, no adoecimento também se faz necessário um projeto de tratamento. É inegável que uma doença desta ordem seja um atravessamento em nossas vidas. Ela se impõe, e, assim, nos impõe uma nova tarefa: dar o devido tamanho a ela. Com isso afirmo que é possível não ser a doença, mas ter a doença. É uma conquista muito recente poder nomear esta moléstia. Há apenas algumas décadas usavam-se expressões do tipo: “Ele está com aquela coisa ruim”, “É aquilo que não pode falar”, e outras mais. A consequência imediata desta impossibilidade de nomeação é a permanência, na fantasia, de uma série de ideias a respeito do adoecimento que não podem ser compartilhadas, seja com o médico ou qualquer outra pessoa. Muitas destas fantasias nem sempre encontram respaldo na realidade. Por exemplo: o câncer, cada vez mais, está deixando de ser uma sentença de morte. Quanto ao caráter punitivo que, muitas vezes, a ela está associado, imaginariamente, afirmo que não há sujeito algum tão onipotente que possa causar a si mesmo o câncer. Se assim fosse, o trabalho do psicólogo seria na linha de demover o sujeito desta ideia absurda de adoecer. Apesar de não ser de sua responsabilidade o seu adoecimento, é tarefa de cada doente trabalhar a favor do tratamento. Susan Sontag (2007), buscando desmistificar certas doenças, como a tuberculose, o câncer e a aids, traz uma importante contribuição relativa ao imaginário das pessoas acometidas por estas patologias. A autora afirma que quanto menos conhecidos são os mecanismos das doenças em sua totalidade, mais o imaginário toma conta de explicá-las e, quando o faz, sempre surgem respostas de cunho moral, religioso ou, até mesmo, ideológico. Retomando a ideia de que o câncer pode ser explicado como uma forma de punição, de expiação de culpa, o filósofo e religioso Martin Buber (1979), ao abordar a temática da relação do homem com Deus, lembra que dívidas entre os homens só podem ser “quitadas” entre os mesmos. Não cabe mais pensar a doença ou, até mesmo, a morte como um último gesto de nobreza. Nada disso impede que o paciente encontre apoio na religião. Voltando à ideia de que é necessário que se faça um planejamento para o tratamento, tenho experimentado, na clínica, que isto é um processo e pode haver mudanças a partir da experiência. De qualquer maneira, não cabem automatismos. O paciente precisa ser ouvido. Ele pode e deve tomar decisões. A empatia com o sofrimento do outro, muitas vezes, acaba se convertendo numa atitude de poupar ao máximo quem está doente, evitando até que ele se ocupe de si mesmo. Ao ser humano não é dado o direito de tirar férias de si mesmo. Então, mãos à obra! 714
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.14, n.34, p.713-5, jul./set. 2010
Para uma discussão geral sobre o conceito de rede social e sua utilização na área de saúde, ver Sluzki (1997).
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Thalenberg, L.G.K.
notas breves
É preciso levar em conta que este sofrimento se estende às outras pessoas, tais como: companheiros, familiares e amigos. É justamente neste ponto que a noção de rede toma sentido. Sua construção tem dupla finalidade. Ela tanto tem de servir de suporte para o paciente como precisa se autossustentar. Darei, como exemplo, o de uma rede em funcionamento que atingiu a sua dupla finalidade. Trata-se de um grupo constituído em novembro de 2007 e que ainda segue funcionando. Num primeiro momento foram listadas tanto as necessidades da paciente, que iam muito além das sessões de quimioterapia, bem como as disponibilidades dos familiares e amigos. As disponibilidades foram apresentadas à paciente que, por sua vez, decidiu o que lhe parecia o principal: quem ela gostaria de ter junto a si nas aplicações de quimioterapia. Esta organização trouxe uma tranquilidade a todos. De início, por meio de e-mails, a dupla escalada para a aplicação tinha o dever de mandar notícias relativas ao estado da paciente. Este era o foco. Com o tempo, estes e-mails passaram a conter comunicações relativas às vivências dos acompanhantes. Foi justamente a partir deste ponto que a rede passou a cumprir a sua outra função: a de autossustentação, que nada mais é do que um amparo mútuo. A esta rede foram sendo incorporadas mais pessoas, que ajudavam, inclusive, em outras funções, tais como: compras, leva e traz dos filhos e sessões de DVD, muitas vezes acompanhadas de pipoca e pessoas, grupos de rezas e, até, um grupo autointitulado de grupo dos “bolinhas” (amigos do marido da paciente), com encontros mensais para jogar conversa fora - ou dentro? Em relação às redes que tenho acompanhado, percebo que quanto maior é a capacidade de comunicação entre seus membros, mais ela se torna flexível e eficiente. O bom funcionamento destas redes tem consequências importantes para todo o tratamento, ou, dito de outra forma, ela é facilitadora do trabalho dos médicos bem como o da enfermagem. Conforme o impacto inicial da constatação da doença é elaborado, as pessoas envolvidas no tratamento vão sendo reconhecidas em sua importância. Isso exige tempo e, portanto, é da ordem da construção. Uma experiência desta ordem pode não significar somente dor. Como toda crise, ela também oferece a possibilidade do aumento do patrimônio emocional, de se criarem novas oportunidades. Apesar de o linguajar muitas vezes ser o mesmo dos quartéis: “vamos vencer mais esta batalha”, “venceremos o inimigo”, “ainda temos muita munição”, e assim por diante, prefiro ficar com a imagem do junco que precisa vergar-se para não quebrar. A flexibilidade é característica fundamental dos movimentos criativos. É possível que esta seja uma das maiores exigências desta doença: ser criativo, ousar, fazer projetos prazerosos para além da doença.
Referências BUBER, M. Eu e tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979. SLUZKI, C.E. A rede social na prática sistêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. SONTAG, S. Doença como metáfora: AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Recebido em 25/05/2010. Aprovado em 25/05/2010.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.14, n.34, p.713-5, jul./set. 2010
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criação
Poética do inacabado - postais cartográficos das expedições urbanas Gisele Dozono Asanuma1
As imagens que compõem esta edição da revista Interface fazem parte da dissertação de mestrado “Poéticas do inacabado: verbetes para uma clínica em trânsito”2, de minha autoria. Tais imagens3 compõem a dissertação como parte de um bloco de cartões postais construídos durante o processo de pesquisa, fruto de atravessamentos produzidos a partir das andanças por espaços urbanos e culturais e dos encontros com as pessoas que atendo como acompanhante terapêutica na cidade de São Paulo, e também como terapeuta ocupacional do grupo Encontrar-te. O Encontrar-te é um projeto que investiga uma prática clínica contemporânea em Terapia Ocupacional, coordenado por mim e pela terapeuta ocupacional Isabela Valent, tendo como foco atravessamentos pela cidade, seus usos e deslocamentos possíveis. O projeto está em atividade desde 2005, com um grupo heterogêneo em atendimento que se encontra semanalmente para andanças/expedições por espaços da cidade escolhidos pelos participantes. Desenvolvemos ações que dão sustentação às experiências desse deslocamento coletivo e, a partir da cartografia dessas experiências, o grupo constrói um repertório de circulação singular, constituindo recursos para ampliação da autonomia e apropriação dos espaços públicos (www.wix.com/encontrar/te). Um mapa em camada, com recursos que recortam a visão e ampliam o modo de olhar, e cartões postais construídos a partir de fotografias tiradas por mim e por participantes do grupo compuseram a dissertação numa dimensão sensível e poética da pesquisa. Nas situações mais diversas, em que a fragilidade do outro coloca em evidência a minha própria, invento dispositivos singulares de registro, elaboração e apropriação das experiências, que são para mim dispositivos de sustentação do trabalho com o outro. Os postais aqui publicados são especificamente de: - fotos de sombra do grupo Encontrar-te; - xilogravura realizada durante o processo de acompanhamento na organização de um espaço de moradia em uma ocupação, na tentativa de sair da situação de morador de rua; - objeto-roupa-no-cabide “costurada” sensivelmente por um acompanhado depois da visita à exposição de Kazuo Ohno, artista com uma fina “pele-veste”, no Sesc Paulista; - colagem e registros de uma composição linguística produzida em um acompanhamento que se deu na Galeria Vermelho, na exposição do coletivo Chelpa Ferro.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
1
Terapeuta Ocupacional e Acompanhante Terapêutica, coordenadora do Projeto Encontrar-te na cidade de São Paulo. Av. Dr. Altino Arantes, 637, Vila Mariana, São Paulo, SP. 04.042-033. gisele.asanuma@gmail.com
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Núcleo de Subjetividade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.
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Carlos Andrés González, intercambista de artes visuais pela Universidade Estadual Paulista/ Instituto de Artes e Universidad Nacional de Cuyo/ Facultad de Artes y Diseño, colaborou com André Luís Nunes na arte das imagens para esta edição da Interface.
v.14, n.34, p.719-20, jul./set. 2010
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São fotos, colagens, registros, xilogravuras, pequenos recortes e escritos, janelas que abrem as vistas. Olhar meu, olhar de outros, olhares trocados, olhares partilhados, olhares transmutados. Uma composição coletiva, múltipla, disparada por encontros na clínica, da clínica e dela com a cidade. Encontros que me atravessam e inquietam, produzem deslocamentos e convocam à criação. Uma “máquina” é acionada e algo aí se opera: formigamento poético, sempre inacabado.
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