v.19 n.52, jan./mar. 2015

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa.

EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp (Senior) EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Denise Martin Covielo, Unifesp Eunice Nakamura, Unifesp Margareth Santini de Almeida, Unesp Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Claudio Bertolli Filho, Unesp Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ Editoras de Criação/Creation Editors/Editoras de Creación Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Scaglione Quarentei, Unesp Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Paula Carpinetti Aversa, USP Renata Monteiro Buelau, USP

PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Mariângela Scaglione Quarentei, Unesp Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro

PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Auxiliar administrativo/Administrative assistant/ Ayudante administrativo Nieli de Lima Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) María Carbajal (Espanhol/Spanish/Español) Web design IDETEC Manutenção do website/Website support/ Manutención del sitio Juliana Freitas Oliveira

Capa/Cover/Portada: Felipe Góes, Pintura 152 (acrílica e guache sobre tela), 2012


ISSN 1807-5762

Inov açã

Direito à saúde

Participação

Saúde Mental

educação

Direito à Saúde Assistência Farmacêutica

Prática reflexiva Avaliação

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Políticas sociais

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Interdisciplinaridade

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Educação médica

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Sexualidade

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Saúde na escola

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Pesquisa qualitativa

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Felipe Góes, Pintura 222 (acrílica e guache sobre tela), 2014

o

Formação em saúde

Judicialização

Serviço de saúde reprodutiva

Organização de serviços COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2015; 19(52)


Interface - comunicação, saúde, educação/ Unesp, 2014; 19(52) Botucatu, SP: Unesp Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I Unesp Filiada à A

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C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2015; 19(52)

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editorial articles

9 Solidarity, alliance and commitment among healthcare professionals in the practices of the Brazilian Health System (SUS): a bioethical debate Doris Gomes; Flávia Regina Souza Ramos

educação

ISSN 1807-5762

121 Curriculum content and Brazilian Health System (SUS): analytical categories, gaps and challenges Vinício Oliveira da Silva; Patrícia Maria Mattos Alves de Santana

133 Supervision as a device: teaching narrative of professional internship in occupational psychology Daniele Almeida Duarte

145 Curricular change within dentistry: meanings according to the subjects of the learning João Luiz Gurgel Calvet da Silveira; Vera Lúcia Garcia

21 Communicating psychiatric diagnoses and identities: professionals’ perspectives María Jimena Mantilla; Juan Pedro Alonso

33 The continuity of psychiatric hospitalization of children and adolescents within the Brazilian Psychiatric Reform scenario Cláudia Pellegrini Braga; Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira

45 Comments about care in relation to alcohol and other drugs: a clinic of unlearning ­­ Michele de Freitas Faria de Vasconcelos; Dagoberto de Oliveira Machado; Mairla Machado Protazio

open space 159 Reflections on the process of municipalization of healthcare policies: the issue of political and administrative discontinuity Juliana Costa Machado; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Jeferson Boechat Soares

171 Lessons learned from the evaluation of a Brazilian healthcare program for elderly victims of violence Maria Cecília de Souza Minayo; Edinilsa Ramos de Souza; Adalgisa Peixoto Ribeiro; Ana Elisa Bastos Figueiredo

57 Young male homosexuals and their health: a systematic review Rosane Berlinski Brito e Cunha; Romeu Gomes

183 A cartographer’s body Flavia Liberman; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

71 Holistic readings: from Chekhov to narrative medicine Isabel Fernandes

83 Diseases neglected by the media: a theoretical approach

195

books

201

theses

207

brief notes

Aline Guio Cavaca; Paulo Roberto Vasconcellos-Silva

95 Psychosocial care center workers in Alagoas, Brazil: interstices of new practices Mara Cristina Ribeiro

109 Organization of healthcare services for elderly women: users’ perceptions Suzane Gomes de Medeiros; Fátima Raquel Rosado Morais

creation 211 Between the figure and the abstract: instances of thought Eduardo Augusto Alves Almeida; Felipe Goés


comunicação

saúde

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editorial artigos

9 ­­­Solidariedade, aliança e comprometimento do profissional da saúde nas práticas do Sistema Único de Saúde (SUS): um debate bioético Doris Gomes; Flávia Regina Souza Ramos

21 Transmisión del diagnóstico en psiquiatría y adscripción de identidades: perspectivas de los profesionales

educação

ISSN 1807-5762

121 Conteúdos curriculares e o Sistema Único de Saúde (SUS): categorias analíticas, lacunas e desafios Vinício Oliveira da Silva; Patrícia Maria Mattos Alves de Santana

133 A supervisão enquanto dispositivo: narrativa docente do estágio profissional em psicologia do trabalho Daniele Almeida Duarte

145 Mudança curricular em Odontologia: significados a partir dos sujeitos da aprendizagem João Luiz Gurgel Calvet da Silveira; Vera Lúcia Garcia

María Jimena Mantilla; Juan Pedro Alonso

33 A continuidade das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira Cláudia Pellegrini Braga; Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira

45 Considerações sobre o cuidado em álcool e outras drogas: uma clínica da desaprendizagem ­­ Michele de Freitas Faria de Vasconcelos; Dagoberto de Oliveira Machado; Mairla Machado Protazio

espaço aberto 159 Reflexões sobre o processo de municipalização das políticas de saúde: a questão da descontinuidade político-administrativa Juliana Costa Machado; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Jeferson Boechat Soares

171 Lições aprendidas na avaliação de um programa brasileiro de atenção a idosos vítimas de violência Maria Cecília de Souza Minayo; Edinilsa Ramos de Souza; Adalgisa Peixoto Ribeiro; Ana Elisa Bastos Figueiredo

57 Os ­­­ jovens homossexuais masculinos e sua saúde: uma revisão sistemática Rosane Berlinski Brito e Cunha; Romeu Gomes

183 Um corpo de cartógrafo Flavia Liberman; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

71 Leituras holísticas: de Tchékhov à Medicina Narrativa Isabel Fernandes

83 Doenças midiaticamente negligenciadas: uma aproximação teórica

195

livros

201

teses

207

notas breves

Aline Guio Cavaca; Paulo Roberto Vasconcellos-Silva

95 Trabalhadores dos Centros de Atenção Psicossocial de Alagoas, Brasil: interstícios de uma nova prática Mara Cristina Ribeiro

109 Organização dos serviços na atenção à saúde da idosa: percepção de usuárias Suzane Gomes de Medeiros; Fátima Raquel Rosado Morais

criação 211 Entre a figura e o abstrato: instâncias do pensamento Eduardo Augusto Alves Almeida; Felipe Goés


DOI: 10.1590/1807-57622015.0038

editorial

A re-emergência da epidemia de aids no Brasil: desafios e perspectivas para o seu enfrentamento No último dezembro, quando foi celebrado o dia mundial de luta contra a aids, a divulgação das tendências da epidemia no mundo1 e no Brasil2 pelas Nações Unidas e pelo Ministério da Saúde evidenciaram contradições e suscitaram interrogações. Na contramão do cenário mundial, os dados brasileiros apontaram que a aids está longe de ser controlada e que atingiu seus piores indicadores nesses mais de trinta anos da doença. Desde 2011 a barreira dos quarenta mil casos novos anuais foi ultrapassada, sem sinais de que voltará a reduzir em um curto período de tempo. Voltou a crescer o número de casos entre homossexuais, acompanhado da maior concentração da epidemia nos centros urbanos e do aumento da razão masculino/feminino devido, especialmente, à redução da transmissão do HIV por meio do uso compartilhado de drogas injetáveis e da desaceleração da transmissão heterossexual. Uma nova geração, nascida após meados da década de 1990, também começou a apresentar taxas de incidência maiores do que as registradas entre aqueles que iniciaram sua vida sexual logo após o início da epidemia. Um perfil epidemiológico que, de certa forma, volta a assumir características similares ao observado no início dos anos de 1980, quando a doença começou a fazer suas primeiras vítimas e apresentou uma incidência fortemente concentrada em segmentos sociais específicos. Agora, porém, com taxas de incidência e mortalidade mais alarmantes. Mas, o que mais evidencia a re-emergência da doença no país é a tendência da mortalidade. Depois de anos seguidos de redução, o número de mortes e a taxa de mortalidade voltaram a crescer. Somente em 2013 foram 12.700 casos de óbitos pela doença, um número similar ao de 15 anos atrás, quando a política de acesso aos antirretrovirais havia sido implantada. Nos últimos sete anos o crescimento da taxa nacional de mortalidade aumentou em pouco mais de 5%, passando de 5,9% por cem mil habitantes em 2006, para 6,2% por cem mil habitantes, em 2013. Nas regiões Norte, Nordeste e Sul as taxas chegaram a ser até duas vezes maiores do que no período anterior à política de acesso aos antirretrovirais, neutralizando todos os avanços observados anteriormente nessas locais. O recrudescimento da aids no Brasil ocorre em um momento em que os conhecimentos científicos acumulados no campo lançam perspectivas alvissareiras para o controle da epidemia no mundo. Estudos sobre os efeitos dos antirretrovirais utilizados no cotidiano dos serviços de saúde3 mostram que pessoas tratadas nas fases iniciais da infecção apresentaram expectativa de vida próxima de pessoas não infectadas. Isso nos permite distinguir um cenário onde a morte por aids deveria ser um evento cada vez mais raro. O maior entusiasmo, porém, veio com os estudos que relataram a redução de mais de 90% da transmissão do HIV em pessoas com HIV tratadas por antirretrovirais e com supressão total da replicação viral4. Uma taxa de proteção superior ao observado em programas de distribuição de preservativos5. Com base nesse novo cenário, os estudos de modelagem matemática6 têm indicado que o diagnóstico e tratamento universal de pessoas infectadas teria o potencial de eliminar a ocorrência de novas infecções. Isso impulsionou as Nações Unidas7 a convocarem os países a implantar até 2020 programas ambiciosos para diagnosticar 90% das pessoas com HIV, tratar 90% delas com antirretrovirais e fazer com que 90% das tratadas tenham carga viral indetectável. É a denominada meta 90-90-90 que, segundo as Nações Unidas, poderia levar ao fim da epidemia no mundo até 2030. Para além da polêmica acerca da factibilidade de estratégias de controle de epidemias baseadas em tratamento medicamentoso obterem pleno sucesso - basta observar a permanência da tuberculose e da hanseníase como importantes problemas de saúde pública, apesar da existência de tratamentos efetivos para a cura e para evitar a transmissão das infecções -, a proposição das Nações Unidas trouxe para o centro do debate a capacidade dos sistemas de saúde de absorver um grande contingente de pessoas infectadas e a qualidade do cuidado prestado a elas. No Brasil, os dados do Ministério da Saúde2 sobre o “contínuo do tratamento” - com a estimativa do número de pessoas infectadas no país e os percentuais dos que sabem do diagnóstico e estão em tratamento efetivo apontaram para um quadro surpreendente: o número de pessoas infectadas que conhecem o seu diagnóstico e estão fora dos serviços de saúde ou com carga viral detectável (296000) é cerca do dobro do número de pessoas (145000) que não conhecem o seu diagnóstico. Uma dificuldade clara das políticas para garantir o seguimento clínico e a adesão ao tratamento de forma sustentável ao longo do tempo. Desde o início da epidemia, ainda nos anos de 1980, uma rede de cuidado às pessoas infectadas foi implantada no país, baseada nos princípios da integralidade e interdisciplinaridade e com avaliações de qualidade8 mostrando estruturas e processos de trabalho relativamente satisfatórios, para parcelas significativas das unidades de saúde. Nos últimos anos, entretanto, parte dessa rede tem sido penalizada, devido ao subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e o enfraquecimento da resposta à aids no país. A recente proposta do Ministério da Saúde de fortalecimento dessa rede pela ampliação do cuidado de pessoas infectadas na atenção básica deixa interrogações a respeito de sua efetividade. É certo que experiências positivas foram observadas em serviços implantados nesse nível de atenção, porém, as avaliações também mostraram que os piores indicadores de qualidade se concentraram nos serviços de menor complexidade, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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implantados em cidades de médio e pequeno porte populacional e com número reduzido de pacientes. Além disso, problemas inerentes a esse nível de atenção permanecem com respostas insuficientes, como a eliminação da transmissão vertical do HIV e da sífilis, o tratamento das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e a universalização do diagnóstico do HIV. Ademais, a experiência brasileira na resposta à aids contribuiu para consolidar convicções de que o sucesso das estratégias de cuidado está fortemente relacionado às políticas de promoção à saúde e dos direitos humanos. Por um lado, o surgimento de novos métodos preventivos eficazes9, muitos dos quais de caráter biomédico, com as profilaxias pré- e pós-exposição sexual e a circuncisão masculina, junto com os já tradicionalmente conhecidos, como o preservativo masculino e feminino, o uso de sorologias para definição de acordos sexuais e as práticas sexuais não penetrativas abrem a possibilidade de ampliar o número de pessoas e de situação em que a prevenção pode ser praticada. Por outro lado, está claro que são as ações estruturais10 de redução de estigma, de discriminação, de inserção social e eliminação de barreiras legais, que farão com que as taxas de incidência e mortalidade sejam controladas em grupos sociais mais atingidos pela epidemia. Esses grupos sempre tiveram dificuldade para serem inseridos nas respostas estaduais e municipais à aids11 e, mais recentemente, houve importantes retrocessos da política federal nesse aspecto. Com isso, é preocupante que após anos de indicadores mais positivos, a resposta à aids no Brasil volte a mostrar indícios de re-emergência, especialmente quando os conhecimentos científicos e a comunidade internacional apontam para um controle mais efetivo da epidemia no mundo. A resposta a essa situação deve conjugar experiências bem sucedidas da resposta brasileira, com as oportunidades abertas pelos novos conhecimentos produzidos no campo da prevenção e do cuidado à aids. Alexandre Grangeiro Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo

Elen Rose Castanheira Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista

Maria Inês Battistella Nemes Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo

Referências 1. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Report: UNAIDS report on the global AIDS epidemic 2013. Geneve: Word Heath Organization; 2013. 2. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico Aids/DST. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014. 3. Collaboration of Observational HIV Epidemiological Research Europe (COHERE) in EuroCoord, Lewden C, Bouteloup V, De Wit S, Sabin C, Mocroft A, et al. All-cause mortality in treated HIV-infected adults with CD4 500/mm3 compared with the general population: evidence from a large European observational cohort collaboration. Int J Epidemiol. 2012; 41(2):433-45. 4. Donnell D, Baeten JM, Kiarie J, Thomas KK, Stevens W, Cohen CR, et al. Heterosexual HIV-1 transmission after initiation of antiretroviral therapy: a prospective cohort analysis. Lancet. 2010; 375(9731):2092-8. 5. Weller SC, Davis-Beaty K. Condom effectiveness in reducing heterosexual HIV transmission (Review). The Cochrane Collaboration; 2007 [acesso 2014 Abr 14]. Disponível em: http://apps. who.int/rhl/reviews/CD003255.pdf 6. Investigating the impact of treatment on new HIV infection. PLoS Med. 2012; 9(7):1-92. 7. Joint United Nations Programme on HIV/Aids. 90-90-90: an ambitious treatment target to the help end the AIDS epidemic. Geneve: UNAIDS; 2014. 8. Nemes MIB, Alencar TMD, Basso CR, Castanheira ERL, Melchior R, Brito e Alves MTSS, et al. Avaliação de serviços de assistência ambulatorial em aids, Brasil: estudo comparativo 2001/2007. Rev Saude Publica. 2013; 47(1):137-46. 9. Chang LW, Serwadda D, Quinn TC, Wawer MJ, Gray RH, Reynolds SJ. Combination implementation for HIV prevention: moving form clinical trial evidence to population-level effect. Lancet. 2013; 13(1):65-76. 10. Piot P, Bartos M, Larson H, Zewdie D, Mane P. Coming to terms with complexity: a call to action for HIV prevention. Lancet. 2008; 372(9641):845-9.

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The reemergence of the Aids epidemic in Brazil: Challenges and perspectives to tackle the disease Last December, when the World AIDS Day was celebrated, the release of trends of the epidemic in the world1 and in Brazil2 by the United Nations and by the Ministry of Health showed contradictions and raised questions. In the opposite direction from that of the world scenario, the Brazilian data revealed that AIDS is far from being controlled and that it has reached its worst indicators since the outbreak of the disease, more than thirty years ago. Since 2011, the barrier of forty thousand new cases per year has been overcome and there are no signs that it will decrease in a short period of time. The number of cases among homosexuals has increased again, on a par with the great concentration of the epidemic in urban centers and with the growth of the male/female ratio, mainly due to the reduction in HIV transmission through shared injecting drug use and to the slowdown in heterosexual transmission. A new generation, born after the mid-1990s, has also begun to present higher incidence rates compared to the ones registered among individuals who started their sexual life right after the outbreak of the epidemic. This epidemiological profile has been assuming, once more, characteristics that are somehow similar to what was observed at the beginning of the 1980s, when the disease started making its first victims and its incidence was strongly concentrated on specific social segments. However, the incidence and mortality rates are more alarming now. Nevertheless, what mostly reveals the reemergence of the disease in Brazil is the mortality trend. After consecutive years marked by reductions in the rate, the number of deaths and the mortality rate have begun to increase again. In 2013, there were 12,700 cases of deaths caused by the disease, a figure that is similar to that of 15 years before, when the policy of access to antiretroviral drugs was implemented. In the last seven years, the growth of the national mortality rate increased by a little more than 5%, from 5.9% per 100,000 inhabitants in 2006 to 6.2% per 100,000 inhabitants in 2013. In the North, Northeast and South regions, the rates reached figures that were twice as high as those registered in the period before the implementation of the policy of access to antiretroviral drugs, which means a neutralization of all the advances that had been observed in these places. The resurgence of the AIDS epidemic in Brazil occurs in a moment when the scientific knowledge that has been accumulated in the field brings auspicious prospects for the control of the epidemic in the world. Studies on the effects of antiretroviral drugs used in the daily routine of healthcare services3 have shown that the life expectancy of people treated at the initial stages of the infection is similar to that of non-infected individuals. This allows us to devise a scenario where death caused by AIDS should be an increasingly rare event. However, the greatest enthusiasm has been produced by studies that reported a reduction of more than 90% in HIV transmission in infected individuals treated with antiretroviral drugs, with total suppression of the virus replication4 – a protection rate that is higher than that observed in condom distribution programs5. Based on this new scenario, mathematical modeling studies6 have indicated that the diagnosis and universal treatment of infected individuals would potentially eliminate the occurrence of new infections. This stimulated the United Nations7 to summon the countries to implement, by 2020, ambitious programs to diagnose 90% of people living with HIV, to treat 90% of them with antiretroviral drugs, and to ensure that 90% of the treated people have an undetectable viral load. It is the so-called 90-90-90 goal which, according to the United Nations, might lead to the end of the epidemic in the world by 2030. Beyond the polemic concerning whether drug therapy strategies to control epidemics can be totally successful - tuberculosis and Hansen’s disease continue to be important public health problems, despite the existence of effective treatments to cure and prevent the transmission of the infections - , the United Nations’ proposal has triggered the discussion on the healthcare systems’ capacity to absorb a large amount of infected people and on the quality of the care that is provided for them. In Brazil, data from the Ministry of Health2 about the “treatment continuum” – with the estimate of the number of infected people in the country and the percentages of individuals who know about the diagnosis and are undergoing effective treatment – have revealed a surprising picture: the number of infected individuals who are aware of their diagnosis and are outside the healthcare services or have a detectable viral load (296,000) is approximately twice as high as the number of people (145,000) who are unaware of their diagnosis. Therefore, the policies have a clear difficulty in guaranteeing clinical follow-up and adherence to treatment in a sustainable way over time. Since the outbreak of the epidemic, back in the 1980s, a network of care provided for infected people has been implemented in Brazil, based on the principles of integrality and interdisciplinarity, and with quality assessments8 showing relatively satisfactory structures and working processes for significant portions of the healthcare units. However, in recent years, part of this network has been negatively affected due to the underfunding of the Sistema Único de Saúde (SUS – Brazil’s National Healthcare System) and to the weakening of the Brazilian response to Aids. The Ministry of Health’s recent proposal for strengthening this network by extending the care provided for infected people to the level of primary care raises questions regarding effectiveness. Positive experiences have been observed in services implemented in this level of care; however, assessments have also shown that the worst quality indicators have been presented by the least complex services, implemented in small- and medium-sized COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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cities and with a reduced number of patients. In addition, problems inherent in this level of care remain unanswered, like the elimination of vertical transmission of HIV and syphilis, the treatment of sexually transmitted diseases (STD), and the universalization of HIV diagnosis. Furthermore, the Brazilian response to AIDS has contributed to consolidate convictions according to which the success of care strategies is strongly related to policies for the promotion of health and human rights. On the one hand, the emergence of new and effective preventive methods9, many of which are of biomedical nature, with pre- and post-sexual exposure prophylaxes and male circumcision, together with methods that are traditionally known, like male and female condoms, the use of serology to define sexual agreements and non-penetrative sexual practices, have opened the possibility of amplifying the number of people and situations in which prevention can be practiced. On the other hand, it is clear that structural actions10 to reduce stigma and discrimination, to promote social inclusion and to eliminate legal barriers are the factors that will produce the control of the incidence and mortality rates in the social groups that are most affected by the epidemic. These groups have always had difficulties to be included in the State’s and municipal responses to AIDS11 and, in recent years, there have been important setbacks of the federal policy concerning this aspect. In view of all that has been discussed here, it is worrisome that, after years of more positive indicators, the Brazilian response to AIDS has been showing signs of reemergence, especially when the scientific knowledge and the international community have pointed to a more effective control of the epidemic in the world. The answer to this situation must combine successful experiences in the Brazilian response with the opportunities that have been opened by new knowledge produced in the field of AIDS prevention and care. Alexandre Grangeiro Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo Elen Rose Castanheira Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Maria Inês Battistella Nemes Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo

References 1. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Report: UNAIDS report on the global AIDS epidemic 2013. Geneve: Word Heath Organization; 2013. 2. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim Epidemiológico Aids/DST. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014. 3. Collaboration of Observational HIV Epidemiological Research Europe (COHERE) in EuroCoord, Lewden C, Bouteloup V, De Wit S, Sabin C, Mocroft A, et al. All-cause mortality in treated HIV-infected adults with CD4 500/mm3 compared with the general population: evidence from a large European observational cohort collaboration. Int J Epidemiol. 2012; 41(2):433-45. 4. Donnell D, Baeten JM, Kiarie J, Thomas KK, Stevens W, Cohen CR, et al. Heterosexual HIV-1 transmission after initiation of antiretroviral therapy: a prospective cohort analysis. Lancet. 2010; 375(9731):2092-8. 5. Weller SC, Davis-Beaty K. Condom effectiveness in reducing heterosexual HIV transmission (Review). The Cochrane Collaboration; 2007 [acesso 2014 Abr 14]. Disponível em: http://apps. who.int/rhl/reviews/CD003255.pdf 6. Investigating the impact of treatment on new HIV infection. PLoS Med. 2012; 9(7):1-92. 7. Joint United Nations Programme on HIV/Aids. 90-90-90: an ambitious treatment target to the help end the AIDS epidemic. Geneve: UNAIDS; 2014. 8. Nemes MIB, Alencar TMD, Basso CR, Castanheira ERL, Melchior R, Brito e Alves MTSS, et al. Avaliação de serviços de assistência ambulatorial em aids, Brasil: estudo comparativo 2001/2007. Rev Saude Publica. 2013; 47(1):137-46. 9. Chang LW, Serwadda D, Quinn TC, Wawer MJ, Gray RH, Reynolds SJ. Combination implementation for HIV prevention: moving form clinical trial evidence to population-level effect. Lancet. 2013; 13(1):65-76. 10. Piot P, Bartos M, Larson H, Zewdie D, Mane P. Coming to terms with complexity: a call to action for HIV prevention. Lancet. 2008; 372(9641):845-9.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0412

artigos

­­­Solidariedade, aliança e comprometimento do profissional da saúde nas práticas do Sistema Único de Saúde (SUS): um debate bioético Doris Gomes(a) Flávia Regina Souza Ramos(b)

Gomes D, Ramos FRS. Solidarity, alliance and commitment among healthcare professionals in the practices of the Brazilian Health System (SUS): a bioethical debate. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):9-20. Taking a bioethical standpoint, this paper aimed to analyze the social need for solidarity, alliance and professional commitment as a challenge within the practices of the Brazilian Health System (SUS). Through a qualitative study of descriptive and exploratory type, 30 subjects were interviewed (nurses, doctors and dentists) in a metropolitan region in southern Brazil. The results were analyzed from a bioethical standpoint through discursive textual analysis. The liberalcontractual framework that is reflected through public assistance reveals social vulnerabilities and gives rise to problems regarding the quality of services, thus suggesting that there is a relational construction preceding the mere contractual relationship: an alliance between equal subjects; a benevolent commitment towards other people who are different and/ or vulnerable; and solidarity engaged in constructing a new state of dialogue, in the form of collective clinical excellence. For this, clinical bioethics needs to incorporate these values so as to transform the quality of attendance, which is still contractual and of rationalist, abstract and impersonal type, into new practices of dialogue. Keywords: Ethics. Bioethics. Health professional.

Este artigo analisa, sob referencial bioético, a necessidade social da solidariedade, aliança e comprometimento profissional como desafio nas práticas do SUS. Por meio de pesquisa qualitativa do tipo exploratório descritivo, foram entrevistados trinta participantes (enfermeiros, médicos e odontólogos) numa região metropolitana do sul do Brasil. Os resultados foram analisados do ponto de vista bioético por intermédio da Análise Textual Discursiva. O referencial contratual-liberal refletido no atendimento público expõe vulnerabilidades sociais e constrói problemas na qualidade dos serviços, sugerindo uma construção relacional anterior à mera relação contratual: uma aliança inter-sujeitos-iguais, um comprometimento benfeitor ao outro diferente e/ou vulnerado, e uma solidariedade engajada na construção de uma nova dialogicidade como excelência clínica coletiva. Para tanto, a bioética clínica precisa incorporar estes valores no sentido de transformar a qualidade do atendimento, ainda contratual do tipo racionalista, abstrato e impessoal, em nova prática dialógica.

Palavras-chave: Ética. Bioética. Profissional de saúde.

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(a) Soebras/Funorte (Associação Educativa do Brasil/Faculdades Unidas do Norte de Minas). Rua Rafael da Rocha Pires, 3913, Sambaqui. Florianópolis, SC, Brasil. 88051-001. dorisgomes@bol.com.br (b) Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. flavia.ramos@ufsc.br

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Introdução As transformações da reestruturação produtiva trouxeram novos contornos ao direito à saúde como conquista de cidadania: há um quadro de desagregação profunda da essência do trabalho e as proteções sociais são cotidianamente contestadas por relações de mercado. O tratamento ambíguo do Estado às políticas sociais no contexto neoliberal, em especial nas décadas de 1980/90 no Brasil, construiu uma evidente indefinição do modelo de saúde: a inviabilidade de um modelo puramente liberal de atenção à saúde, traduzida na conquista constitucional do SUS, tem sido historicamente transpassada por interesses privados aos públicos, no repasse de verbas e gerenciamento. A disputa entre lógicas e objetivos diferenciados nesse mix público-privado evidencia uma dualidade: um projeto de saúde universal convive com outro, da indústria de seguros e do tradicional complexo médico-industrial, colocando, constantemente, em xeque a saúde como “dever do Estado”. Um processo que reflete a amplificação da acumulação de capital sobre o trabalho e o contínuo subfinanciamento do sistema, construindo, como problema, a qualidade do atendimento no setor público. O investimento no ideário humanizador como política de Estado, em especial a partir do HumanizaSUS em 2004, veio para transformar essa qualidade em articulação com avanços tecnológicos: para os profissionais significaria troca de saberes, espaços de criação, participação como cogestores e melhoria nas condições de trabalho1. Estratégia usada para aumentar o grau de corresponsabilidade dos diferentes atores do Sistema, privilegiando tecnologias não materiais às de maquinário. Entretanto, esse novo modus operandi, que solicita novos posicionamentos ético-políticos dos profissionais na tomada de decisão e implementação de ações, persiste em construção, pois esbarra, em contraposição, em condutas que, mesmo voltadas à ação beneficente, se alicerçam no contratualismo e racionalidade instrumental. O contrato do tipo liberal, nunca antes tão presente como intermediador das relações humanas e ainda mais vinculado ao princípio do individualismo egoísta, conflito latente e coação, viceja como única relação possível entre indivíduos, mantendo o interesse próprio acima do respeito mútuo advindo da cooperação e da competência comunicativa2, refletido, também, no setor público. As vulnerabilidades sociais como características marcantes das sociedades latino-americanas e presença indelével nas construções relacionais, amplificam os problemas na coprodução de uma relação dialógica. Quando tensões e conflitos são construídos entre a dialogicidade e a racionalidade instrumental, a bioética é chamada a debater um sentido comum, universalizante e, ao mesmo tempo, beneficente, com consideração aos vulnerados, em ações de proteção e intervenção solidária e sustentável. Este artigo objetiva, então, analisar sob o ponto de vista bioético, a necessidade social da solidariedade, da aliança e do comprometimento profissional como possibilidade nas práticas do SUS.

Metodologia Pesquisa qualitativa do tipo exploratório descritivo, que utilizou entrevista individual semiestruturada com trinta participantes (médicos, enfermeiros e odontólogos) com experiência de trabalho público-privado, na região metropolitana de Florianópolis, sul do Brasil. Uma região que abrange 22 municípios, formando o maior aglomerado populacional do estado, com uma das melhores qualidades de vida do país. É uma região com forte intersecção do mix público-privado na saúde e referência de alta e média complexidade, onde oito municípios com Hospital têm gestão estadual. Há claro zoneamento do espaço urbano segundo classes de renda: Florianópolis atrai populações de nível de renda mais elevado, seguida dos municípios contíguos – São José, Palhoça e Biguaçu. Os contatos com os profissionais, solicitando autorização para início das entrevistas, foram feitos previamente, primeiramente, com vinculados a uma Secretaria Municipal de Saúde da região. Como a seleção dos participantes privilegiou os sujeitos sociais que detêm as características necessárias ao conhecimento buscado, posteriormente, os entrevistados foram se definindo pelo método bola 10

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de neve, onde um entrevistado inicial recomendou outro, repetindo-se o processo com os novos incluídos, até atingir a saturação. A entrevista teve como objetivo central recolher dados que se referem à vivência ética dos profissionais entrevistados. Foi do interesse do estudo que as instituições estudadas fossem as mais variadas possíveis, expressando dinâmicas e questões comuns às experiências profissionais em múltiplos serviços de saúde. Abrangeram-se: 11 experiências em Centros de especialidades odontológicas/policlínicas públicas e clínicas/consultórios/hospitais privados; 12 em unidade básica de saúde e consultório/ clínica/hospital privado; duas em pronto atendimento público e clínica privada; e cinco em hospital público e hospital/clínica privada. Para análise dos resultados, utilizou-se a Análise Textual Discursiva3, que se organiza em torno da desmontagem dos textos em unidades-base e formação de categorias (auxiliado pelo software ATLAS.ti), com captação do novo emergente e combinação de sentidos expressos num metatexto, e, em seguida, por um ciclo de análise com crítica e validação. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética. A participação ocorreu de forma voluntária, sob um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e observando condições de autonomia da Resolução CNS 196/96. Para garantia do anonimato, os participantes são caracterizados pela letra “P” mais numeração.

Resultados e discussão “no setor privado as pessoas que procuram o teu atendimento são de maneira geral mais esclarecidas, elas te questionam mais a respeito do diagnóstico e tratamento e elas exigem mais, você tem que elaborar mais as suas respostas, seu raciocínio clínico. No setor público a diferença que eu vejo é a verdadeira carência do povo, muitas vezes até a ignorância, eles pouco te questionam e o atendimento que você presta, eles se satisfazem pelo simples fato de terem sido atendidos nesse dia, muitas vezes, as pessoas não querem esperar para você dar explicação, parte do próprio paciente, porque ele já está na fila 4 a 6 horas, então, ele sequer te questiona, adota aquilo como verdade”. (P20)

Este discurso desvela a assunção de diferentes lógicas no cotidiano de trabalho público-privado, onde o profissional joga com graus distintos de autonomia, racionalidade científica, coerção e controle a partir de uma esfera de decisão singular profissional-paciente, que remonta uma interface histórica entre poder, saber e valores. O embricamento na duplicação da assistência público e privada no Brasil conforma uma relação concorrencial na disputa da rede de serviços, elevando preços e dificultando a contratação de recursos humanos no SUS4, bem como mudança de paradigmas na produção. O parâmetro discursivo-relacional do profissional assume, muitas vezes, uma postura estranhada da dimensão social do trabalho, movida por graves problemas estruturais do sistema. “me deixa muito angustiada a falta de tempo no público, eles ficam me pedindo quantidade e, às vezes, não consigo falar tudo. Os meus pacientes aceitam as minhas orientações, eles voltam, fazem direitinho, me obedecem, tanto é que paciente aqui que é desleixado não volta comigo, vai levar tanta bronca por dar danoninho para um menino de 4 meses, de estar fazendo uma coisa errada, que a mãe nem ousa voltar. Aqui, eu vejo que tem pacientes que estão mal cuidados, não porque o profissional não tenha capacidade, mas porque ele faz de qualquer jeito, enquanto no privado ele faz com mais zelo, mais cuidado”. (P17)

Nesta fala se percebe uma postura profissional considerada de ótimo padrão clínico, seguindo o modelo biomédico nas práticas do SUS: atende nos horários, pede mais tempo para consulta, solicita exames e obediência, prescreve. Uma tipologia clínica que permanece ligada a um saber-poder onde o vínculo significa dominação: as verdades contidas nos discursos científicos atuam como efeitos de poder. Seguindo o mesmo modelo biomédico, se desvela outra postura, considerada clinicamente distorcida pela atestada falta de zelo e cuidado, também existente nas práticas do SUS: o profissional COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pouco ou nada assiste e prescreve. Ambas as posturas encerram, em si, um dos principais desafios na construção do sistema de saúde: a necessidade de nova relação dialógica entre sujeitos do processo saúde-doença. Para Merhy5, uma aposta no SUS utopia e na vida como direito inalienável de cada pessoa, está relacionada à maneira como o outro é ouvido/tratado: como objeto ou sujeito. Para Santos et al.6, o comprometimento do ser-sujeito-profissional na construção do vínculo e da autonomia, e no compartilhamento de saberes e fazeres, bem como, na percepção do alcance das práticas cotidianas na emancipação e corresponsabilização, ainda parece aquém das necessidades no cotidiano do trabalho profissional. Gastão Wagner7 aborda a importância de uma clínica ampliada às necessidades sociais e, quiçá, aos desejos do paciente/usuário e grupos em vulnerabilidade, combinando a objetividade da clínica e da epidemiologia com a escuta à singularidade de vida dos sujeitos, grupos e coletividades. Estas novas proposições se contrapõem à persistência de uma escuta profissional pautada num saber do paciente, onde só interessa aquilo que o profissional quer ouvir, desnudando um ethos de atendimento público-gratuito enraizado numa realidade social de enormes iniquidades, com enfoque de classe: o paciente/usuário “SUS-dependente-pobre” tem menos cultura e conhecimento dos seus direitos, portanto, menor poder de pressão e possibilidade de acesso à justiça, entendimento mais simples, não precisa ser ouvido, não quer, ou apenas “obedece” sob coação da urgência, da falta de opção ou da fila de espera. “no hospital público parece que as famílias são mais passivas, aceitam tudo que está sendo oferecido, alguns casos em exceção onde os familiares se manifestam. A gente percebe que a maioria das pessoas está contente com o que é oferecido, só que parece que tem muito mais a oferecer. No privado, os familiares são mais exigentes, querem resultados mais rápidos”. (P22) “no público no geral é um pessoal de mais baixa renda”. (P4) “o paciente de clínica privada tem um poder aquisitivo melhor, conseqüentemente a maioria tem uma educação melhor, tem uma cultura melhor, então, tem outro nível de exigência também”. (P15) “no público o paciente é menos exigente que no privado”. (P18) “é claro que sempre tem aquela diferença que o dinheiro acaba trazendo, a pessoa no privado tem uma visão diferenciada do todo”. (P10)

A abertura a uma escuta diferenciada parece manter relação direta com exigências sobre a decisão profissional: cobrança, questionamento, pressão pessoal ou familiar, associada a status cultural e ao objeto-fetiche do pagamento. Evidencia-se sob a tônica contratual, a transição a uma civilidade ética que respeita a autonomia do sujeito-paciente, com escuta diferenciada às suas necessidades/interesses. Entretanto, esta escuta, associada à hiperindividualização e interesses de mercado, confunde limites entre: autonomia e poder de compra; pressão de interesses particulares ou familiares; acesso ao conhecimento e informação; desejos de consumo como necessidade, confeccionando problemas éticos e sofrimentos morais ao profissional. “no particular, a dificuldade é porque eles lêem no Google e acham que sabem mais do que tu, te pedem muito mais atestado que no SUS, onde tu podes dizer que não e pronto. No particular eles acham que estão pagando e que podem pedir o que quiserem e tu tens obrigação de fornecer”. (P11)

A bioética é chamada a debater problemas advindos de novas subjetivações sócio-históricas, como os relacionados ao jogo de interesses utilitaristas, que, sob a ética de mercado, passam a coercionar a decisão profissional. Com base em princípios bioéticos estruturados no campo das pesquisas 12

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com seres humanos já na década de 1970, são repensados princípios bioéticos voltados à relação profissional-paciente – autonomia, beneficência e justiça. Princípios que, operados pela bioética clínica no formato de um contrato individualizado, não parecem suficientes para dar conta do cuidado no âmbito público da saúde, pautado em valores coletivos e sociais. Neste enfoque, a valorização do paciente como copartícipe da relação ultrapassa um paradigma simplificado de autonomia como princípio absoluto, no sentido de sua construção na relação, num movimento entre o individual e o todo, contextualizado nos processos contemporâneos de construção de novas necessidades/desejos, na acumulação de capital sobre o trabalho, bem como, nas vulnerabilidades sociais ainda fortemente presentes na realidade brasileira. A excelência clínica, antes de representar uma qualidade técnica resultante de treinamento e formação intelectual, deveria atender à demanda social, com eliminação de práticas discriminatórias do ser humano no sistema de saúde. “o profissional não está escutando o paciente, não está dando atenção, eu acho que ele se sente mal remunerado e aí faz coisas não tão certas, jogam o paciente para um lado, para outro, não tentando resolver um problema que muitas vezes seria simples, no serviço público acontece muito isto e é a minha tristeza, eu acho que tem profissional que não sabe o que é pobreza e não respeita pessoas simples que vem pra cá”. (P6)

Um atendimento com escuta que não ouve, atenção que não envolve e, normalmente, não resolve, sugere que o ideal de sucesso profissional, historicamente reforçado no imaginário liberal-privatista, ainda interfere nas relações de trabalho no setor público como prática hegemônica que não favorece mudança de paradigmas. A racionalidade liberal como única possibilidade exclui princípios de aliança e comprometimento, como reconhecimento mútuo de seres na tomada de consciência da própria identidade: necessário a uma dialogicidade que reconhece o tu antes do eu. Para Cortina8, não basta uma concepção pautada no “eu” como indivíduo racional, que escolheria livremente sua forma de vida, sem considerar sua identidade forjada em comunidades não escolhidas; num universalismo formal, sem percebê-lo como intérprete de significados já compartilhados em comunidades; na prioridade do indivíduo e seus direitos como capacidade altamente valorizada de cidadania, sem exigir a responsabilidade por essa comunidade como ação; e na voz da consciência como suficiente para uma moralidade que não procura renovar laços sociais e reformar a vida pública na relação sujeito-comunidade. Assim, a configuração bioética de uma nova e necessária relação intersujeitos, com direito e deveres recíprocos coletivos/individuais, deve ultrapassar o discurso político-liberal dos direitos, deveres, contratos e grupos de interesse, no sentido de uma excelência clínica coletiva que: 1 Solicita uma construção relacional anterior à mera relação contratual: uma aliança intersujeitos-iguais numa conjuntura SUS-dependente; um comprometimento benfeitor com o outro diferente e/ou vulnerado; e uma solidariedade engajada na construção de uma nova dialogicidade no horizonte da saúde coletiva. 2 Denuncia a inadequação do vínculo mercadológico do contrato-liberal ao “dever ser” público-gratuito; reconstrói um saber-poder horizontalizado, com novo significado integrador, interdisciplinar e benfeitor; e fomenta laços sociais sob uma solidariedade forjada na ação coletiva. 3 Aponta a necessidade da solidariedade, da aliança e do comprometimento como possibilidade, que deve se tornar real. “alguns pacientes que procuram a UBS não são apenas pessoas com baixa escolaridade e poder aquisitivo, tem pessoas de classe média que estão vindo, com grau de conhecimento maior, então, por existir esse acesso, hoje se tem um cuidado maior do que a gente ouvia falar na época da faculdade, de histórias de depreciação do paciente, da diferença de tratamento do privado para o público. Eu acho que influencia bastante, porque tem profissionais que dão orientação e vem o próximo, não se preocupam se o paciente entendeu essa orientação ou não. Mas, com essa mudança de público, quando o paciente questiona, pede mais explicação,

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pede mais tempo, o profissional se preocupa se ele entendeu, daí gera outro tipo de vínculo, a formação deve ter mudado bastante também”. (P21)

A percepção de uma maior inferência da “classe média” na melhoria da qualidade no atendimento público, como uma exigência a mais, parece estar associada: a uma ampliação no acesso populacional aos serviços de saúde; a um novo acesso a bens e serviços das classes populares na sociedade brasileira nas últimas décadas – que assumem nova posição de exigência; e às transições no processo de trabalho na sociedade pós-industrial: uma nova organização da produção, com novo patamar de comunicação, informação e educação como parte do processo de reestruturação, repercute em novos processos de subjetivação, não somente ao trabalhador especializado, mas generalizada ao trabalhador dos setores industriais e de serviços. Mehry e Franco9 apontam a possibilidade de transição a um novo paradigma produtivo em saúde. Possibilitado pela ampla autogestão do trabalho em saúde associada ao trabalho vivo-relacional em ato e à necessidade de redução de consumo e custos, uma inversão tecnológica centrada no cuidado sobreporia necessidades/interesses do paciente aos insumos e maquinários. O investimento do mercado na atenção gerenciada estaria publicizando a ação profissional-centrada, até agora, privada em ato. Entretanto, a atenção gerenciada publiciza a relação, não no interesse do profissional ou paciente, mas do capital financeiro como novo controlador do espaço relacional, confeccionando um cuidador dos interesses do capital, mais que do usuário. Uma mudança relacional no sentido do cuidado já consegue ser percebida pelo profissional no setor público, que a relaciona, também, às mudanças na formação. A incorporação das novas competências da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e Diretrizes Curriculares Nacionais, ressalta a importância de o aluno “cultivar uma relação nova com a comunidade, baseada na atenção, na confiança, no respeito e no cuidado”10 (p. 524). Processo que evidencia o papel indutor do Estado e de outros fatores heterônomos na potencialização da autonomia dos sujeitos: leis e políticas públicas, funcionamento da economia, cultura e valores, acesso à informação e capacidade crítica11. Apesar disto, a hegemonia da racionalidade instrumental e alguns posicionamentos profissionais e docentes deletérios fazem o sentido de mudanças ainda figurar como utopia de um ensino transformador, o que obriga se pensar a necessidade de novos espaços de debate bioético, antes e de forma permanente, no serviço. “a gente vê às vezes (o profissional) trata os pacientes como se fosse um lixo poxa, eles estão na rede pública porque não tem dinheiro para pagar um particular”. (P2) “o grande problema no público é que existem alguns colegas que fazem esta distinção do privado... uma ação (judicial) no setor privado traz uma repercussão financeira maior que no público”. (P15)

A lei ideológica do valor, reforçada pela emergência da dupla tirania do dinheiro e da (des) informação na reestruturação, ganha espaço na saúde e atua de forma indelével nas singularidades relacionais, tornando nebulosa a excelência de qualidade-produtividade público-gratuita. A Estratégia de Saúde da Família, tecnologias cooperativas, modelos gerenciais de cogestão e participação social assumem sentido contra-hegemônico como medidas humanizadoras, indutoras favoráveis de valores solidários e cívicos que supõem um marco democrático de maior compromisso e satisfação profissional12. Entretanto, são suscitados grandes desafios na responsabilização e envolvimento profissional com comunidades e sujeitos, pois a potência criativa de coletivos esbarra nos modos contemporâneos de subjetivação e sociabilidade, que negam a alteridade pelo narcísico individual e a solidariedade pela autossuficiência: o processo de trabalho continua procedimental e instrumental; e persiste a cultura da não-participação: os profissionais não se comportam como usuários-sujeitos do processo13.

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Segundo Adela Cortina2, o estímulo socialmente construído de um individualismo onde “cada um é um fim em si mesmo e os outros nada são para ele”, vem normalmente associado a uma pretensa solidariedade e justiça. Por um lado, um indivíduo atomizado cuida de sua própria saúde-belezaperfeição de forma obsessiva, sob relações contratuais num ambiente social que separa, na prática, vidas e classes em poder de compra e acesso aos bens materiais e culturais – incluindo o acesso à saúde. Por outro lado, é transmitido um sentimento abstrato de solidariedade, construtor de um cosmopolitismo perverso da “hipocrisia interna” e do “desarraigamento”, que chama a bioética a repensar o sentido da solidariedade. A reorganização da vida e do trabalho num patamar de civilidade superior – pelo conhecimento como estratégia na configuração de novas trajetórias ocupacionais na sociedade pós-industrial, onde o diálogo social e democrático seria inclusivo e transformador – coexiste com grandes retrocessos na combinação do novo com o velho nas relações de trabalho nas sociedades capitalistas não desenvolvidas, como a brasileira, onde a subcontratação de mão de obra e o analfabetismo funcional mantêm excluída grande parte da população da produção. Um patamar civilizatório que alimenta novas formas de riquezas imateriais, como lazer, criatividade, comunidade, etc., mas que aprofunda, inversamente, exclusão e separação social14. A estratégia biopolítica hiperpreventiva e hiperindividualista de uma culpabilização autoimposta, associada ao risco individual ou coletivo, coerciona, banaliza e conserva boa parte da população em condições de inferioridade sub-humana, naturalizando sua exclusão do mundo político de direitos e deveres como uma população corpo-espécie15. Uma ação invisível e totalizante, que assume características eugênicas e racistas, que se refletem diretamente em relações separatistas na saúde: a comunicação dialógica aparece como bem de consumo ou conforto, adquirido por alguns. O indivíduo distanciado artificialmente do todo, como coisas opostas, consubstancia um real paralático na substituição dos laços sociais pelo valor dinheiro. Para Sá e Azevedo16, na perspectiva das estratégias salvacionistas de consumo das elites brasileiras, os pobres e miseráveis são, cada vez menos, percebidos como pessoas morais, e mais como resíduos sociais não absorvidos, com os quais aprendemos a conviver. Diretrizes como solidariedade e equidade estão na contramão dos valores e práticas sociais dominantes, conformando um contexto desfavorável à gestão nas organizações públicas de saúde sob projetos compartilhados e coletivos. O pertencimento a universos simbólicos diferentes, mundos distintos entre profissional e paciente, corrobora humilhações e violências simbólicas cotidianas, a que a população é submetida nos serviços públicos de saúde. Segundo Zizek17, a biopolítica mantém frações da classe trabalhadora em esferas dissociadas, autonomizadas nas sociedades desenvolvidas sob três componentes da produção: planejamento e marketing intelectual, produção material, e fornecimento de recursos. Frações dos trabalhadores que procuram por suas identidades, cada qual com seu estilo de vida e ideologia: o hedonismo esclarecido e o multiculturalismo da intelectualidade; o fundamentalismo populista regressivo da velha classe trabalhadora; e formas mais extremas e singulares de fração dos excluídos. Processo que resulta na ausência de um espaço público universal, onde as três frações podem se encontrar. Novas identidades profissionais são buscadas, mas se manifesta maior afinidade dessa fração intelectualizada de trabalhadores com o capital, que com o trabalho. Velhas relações de poder ainda reforçam a introjeção do papel técnico-hierárquico ao profissional, que não se percebe como um trabalhador e igual – mesmo que intelectualmente diferenciado – naturalizando uma visão de mundo que separa por poder de compra e conhecimento, corroborando uma relação contratual instrumental, ainda mais distorcida no público, onde se evidenciam as segregações por frações de classe. Muros invisíveis ampliados entre trabalho manual e intelectual, associados à centralidade do conhecimento especializado sobre valores tradicionais, impactam as relações em saúde e dificultam a intercomunicação: do profissional que não tem tempo ou vontade para construir uma escuta levando em conta o indivíduo em seu contexto de vida e suas singularidades; e do paciente/usuário que tem entendimento simplificado de algo prescrito por uma linguagem técnica. Nesta encruzilhada, a

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bioética latino-americana procura caminhos opostos ao hedonismo, ampliando a possibilidade de uma dialogicidade renovada no sonho da autonomia do ser, como “estar sendo”, e no sentido do “ser mais” – humano. “É sempre uma preocupação tu estares tratando o paciente sem pensar no lucro, então, eu acho que a gente sempre fica pensando se poderia fazer melhor pelo paciente público”. (P13)

Cultivar valores humanizadores no trabalho público, como pertencimento a normas sociais universalizáveis, constitui uma sensação de ser da sociedade: aliança e comprometimento como ato social engajado. Não somente na interlocução de sujeitos autônomos, mas, também, copartícipes de realidades socialmente condicionadas e vulnerabilidades estabelecidas, o que implica responsabilidade social e política ao profissional, numa compreensão “crítica de seus direitos e deveres de cidadão (ã)”18 (p. 117) conjugado à formação científica. A intersubjetividade dialógica, sob essa nova perspectiva, admite a possibilidade de reconhecimento recíproco de seres dotados de competência comunicativa, muito além do poder de compra ou saber formal, pois fomenta a ideia do comum como motor da ação. Pelo caráter intersubjetivo e, ao mesmo tempo, cooperativo, intercessor da cognição, a comunicação linguística assume um papel conceitualestratégico. Entretanto, a decisão pela construção de um diálogo verdadeiramente significativo, assumido como nova postura profissional, passa pela consciência – ação e reflexão – de uma práxis diferenciada, qualificada na utopia da justiça social, e avessa à compreensão fatalista da realidade como imutável. Neste sentido, não se pode manter o outro como “coisa”, ao contrário, deve se procurar estabelecer uma relação dialógica permanente no intuito de recriar o conhecimento, por isto, a necessidade de engajamento19. Uma práxis solidária num plano crítico e desalienado, pautada no autogoverno do profissional em seu processo de trabalho vivo, intelectual e artesanal, ao mesmo tempo em que intersubjetivorelacional e coletivo, reposiciona-o como agente de mudança em suas relações com o mundo: não um humano abstrato e desligado do mundo, nem um mundo como realidade ausente. A partir de novas lealdades aos sujeitos do diálogo, reforçadas por laços entre humanos enquanto pessoas em coletivo e comunidade, se refuta um mundo de átomos sociais separados entre si, com vínculos meramente instrumentais e núcleo ético individual-hedonista8. Segundo Barros e Gomes20, a felicidade se efetiva no plano do coletivo, no coengendramento de indivíduos e de mundos, de modos de trabalhar, de subjetivar e gerir o trabalho. O cuidado de si como cuidado da alma, espaço para o pensamento, reflexão, diálogo e encontro com semelhantes, implica uma avaliação constante da relação com os outros e com o mundo, onde cuidar transforma ato em atitude: ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo. A dimensão relacional e intersubjetiva do trabalho constrói processos e formações inconscientes. com efeitos sobre a qualidade do cuidado, requerendo o conhecimento aos profissionais de sua própria subjetividade, bem como, ações para mudança nas pessoas. Um capital social estruturado como rede duradoura de conhecimento e reconhecimento mútuo, e como valores éticos e atitudes centradas na confiança, geradora de reciprocidade e cooperação, parece resistir ao hiperindividualismo21, facilitando empreendimentos comuns, virtudes cívicas e interesse pelos assuntos públicos. Entretanto, não é qualquer técnica ou associação capaz de criar esse tipo de recurso humano. “por ser muito burocrático, muito repartido, tu não consegues acompanhar o paciente por inteiro, se tens um problema que precisas encaminhar para algum setor especializado, tu não tens resposta do que ocorreu com ele, por se tratar de pacientes com o conhecimento muito vago, com baixa escolaridade, eles não conseguem te passar o que houve naquele setor específico e isso traz dificuldade”. (P21)

Transpor a paralisia burocrática e o clientelismo com estruturação positiva do sistema na assunção de cargos e salários que favoreça a integralidade, identidade e valorização; e assumir a

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corresponsabilização em outro nível, sob uma aliança que extrapola o interesse próprio em direção a pressupostos universais de identidade e reciprocidade, bem como, um comprometimento benfeitor e protetor, é construir uma nova excelência clínica pública. Mesmo com deficiências estruturais e organizativas, parece necessário mobilizar uma reflexão-ação coletiva em experiências de grupalidade, potencializada pelos sujeitos e pelos próprios gestores, que cultive novos sentidos e imaginários em equipes/coletivos, formais e não formais. Redes de cooperação e interação que ampliam o sentido do eu no nós ou que sensibilizam para valores e benefícios coletivos, em relações horizontais, sem hierarquia e dependência, estimulam a capacidade criativa, solidária e dialógica dos sujeitos. “no público são pessoas mais simples, de difícil entendimento, então, tudo que você explica, tem que explicar duas ou três vezes até que a pessoa entenda, contribuindo para que o tratamento não dê certo. No particular o entendimento é bem melhor, as pessoas são mais instruídas, entendem com mais facilidade”. (P 5) “quanto menor o nível sócio-econômico, maior a dificuldade para o entendimento do tratamento”. (P16)

Não parece mais bastar a culpabilização do paciente ou do status quo como barreira a uma comunicação dialogada. O diálogo como ato de criação conjunta, sem relação de dominaçãodominado, não se reduz a ideias a serem consumidas, tampouco, numa discussão guerreira de quem tenta impor sua verdade; ao contrário, sua concepção depende do direito à palavra e à escuta, e foge da mera prescrição em direção à libertação, por meio de uma conexão básica: profissional-paciente/ usuário-profissional. Agregando o pensamento de Paulo Freire19 ao trabalho e formação conjuntos em saúde, pode-se dizer que não basta, ao profissional, uma postura de saber como doação dos que se julgam sábios aos não sábios, absolutizando a ignorância como se fosse algo encontrado sempre e somente no outro: o profissional ensina, sabe, pensa, opta e prescreve sua opção, identifica o saber com sua autoridade funcional e é o sujeito da relação, enquanto o paciente é mero expectador que não sabe, não pensa, não opta e deve se adaptar ao pensamento e experiência narrados. A velha comunicação estratégico-instrumental voltada às consequências do agir, ao alcance de objetivos por intermédio de influências manipulatórias na decisão “por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções”22 (p. 165), precisa ser ultrapassada pelo agir discursivo, considerado forma ideal de comunicação e busca cooperativa pela verdade. Um agir que se assenta num saber proporcional compartido intersubjetivamente, numa concordância normativa e numa confiança recíproca com fundamentação em juízos próprios, autônomos, inter e intrasubjetivos, pois nenhuma autoridade coletiva limita a margem de julgamento individual. O diálogo como atividade dotada de sentido precisa de entendimento mútuo, onde os sujeitos procuram harmonizar internamente seus planos de ação, perseguindo metas em direção ao acordo comum/consenso23. O diálogo precisa ser pautado, então: 1 no reconhecimento de direito igual à justificação do pensamento e à participação na discussão; 2 no direito igual de que seus interesses sejam considerados; e 3 no compromisso de corresponsabilidade, zelar junto com os outros, para que sejam respeitados os direitos pragmáticos dos possíveis interlocutores; respeitados os direitos humanos ou direitos morais, sem os quais é impossível exercer direitos pragmáticos; e encontrar soluções mais adequadas, promovendo instituições que melhor assegurem esses direitos2. “algumas coisas eles não entendam bem como a gente gostaria, eles não são muito preventivos, são mais curativos, só querem resolver o problema imediato”. (P10) “sempre tem diferença pela parte de educação, o que o publico entende, o tempo pra cuidar da saúde, para realizar atividade física, ter uma alimentação boa, acaba ficando mais caro”. (P11)

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O atendimento voltado ao curativo-imediato faz parte de uma categoria de conflitos morais vivenciados pelo profissional da saúde, que a bioética tem a tarefa de pensar como conflitos que perpassam a qualidade de vida de indivíduos e populações, que, por razões sócio-históricas, não vivem plenamente sua cidadania, ou seja, permanecem socialmente vulnerados. Um discurso que busque alcançar um acordo sério não pode desconsiderar a interdependência entre o direito à saúde e outros direitos individuais e sociais, com nível material e cultural de vida que permita o diálogo em pé de igualdade: direitos humanos legalizados e concretizados historicamente2. Considerando a desumanização como resultado de uma ordem injusta que gera violência e “ser menos”, e a humanização pela desalienação como afirmação de “seres para si”, solidarizar-se com o outro não é descobrir-se na posição de opressor e sofrer por isso; não é somente prestar assistência mantendo as pessoas atadas à mesma posição de dependência; não é racionalizar a culpa de forma paternal, mas assumir a situação de com quem se solidarizou e tentar transformá-la. A bioética, então, deve reportar-se ao “estar sendo” como proteção de direitos e construção de conhecimentos que não nascem acabados, mas que acontecem numa nova práxis dialógica e solidária: sem isolamento ou individualismo, superando o intelectualismo alienante, o autoritarismo bancário e a falsa consciência do mundo19. Seguindo uma crítica libertadora que trabalha a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta, a perspectiva de libertação do mundo da necessidade como a mais básica do ser humano, parece fundamentar uma ponte entre a reflexão filosófica como universalismo abstrato e uma comunidade moral concreta, pois a liberdade humana não é “ab-soluta, solta de tudo, desligada de tudo, mas ob-ligada, ligada às pessoas e às coisas que são parte de mim, que são valiosas em si mesmas e por isso, estão além de qualquer preço, além de qualquer cálculo”2 (p. 184). Assim, a ideia de saúde como qualidade de vida expandida em direção ao contexto social como campo legítimo de estudos e intervenção bioéticos24, compele a bioética clínica a incorporar a aliança e o comprometimento como valores fomentadores de laços sociais solidários entre sujeitos, engajados para transformar a qualidade do atendimento público em saúde – ainda contratual do tipo racionalista, abstrato e impessoal – em relações clínicas de excelência coletiva. Uma capacitação a esta nova clínica dialogada, guiada para escuta e olhar diferenciados, com argumentação racional fundamentada nas consequências das ações e na inserção do profissional numa comunidade de trabalho e de vida concretas – onde os indivíduos aprendem a valorar, se socializar e se reconhecer como pessoas –, solicita uma ‘mudança cultural’25. Processos coletivos para tomada de decisão – nos quais se ponderam riscos e benefícios, estratégias e teorias – e como ferramenta pedagógica prática de construção de autonomia26, ampliam o sentido de proteger e de intervir como ação dessa proteção, para conquista de autonomia numa orientação positiva de ação social, que transpõe fronteiras: na relação inter-pares, profissional-gestão, profissional-paciente, profissional-comunidade e indivíduo-todo. Neste sentido, a construção de espaços bioéticos coletivos, deliberativos, democráticos, inter e transdisciplinares, que perpassem a clínica como publicização real de problemas éticos na relação profissional-paciente – até então privada em ato – e, também, como espaço de formação permanente, parece potencializar valores como: aliança, comprometimento e solidariedade, em novos paradigmas dialógicos nas práticas do SUS. A bioética da proteção, então, se transforma em intervenção, quando a inserção crítica numa realidade se reflete em emersão para a ação, pois “a reflexão se realmente reflexão, conduz à prática”19 (p. 73).

Conclusão As políticas públicas na lógica das necessidades sociais perpassam realidades complexas e contraditórias que apontam para o desafio da restauração dos laços sociais para além dos desejos de consumo construídos pelo mercado e pelo saber-poder contratual-biomédico, impulsionando uma

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nova relação dialógica profissional-paciente como nova excelência clínica nas práticas do SUS. A bioética como uma disciplina que amalgama conhecimentos teóricos de ética aplicada num contexto de tomada de decisões, surge como um espaço de debate necessário. Num movimento contra-hegemônico frente às injunções individualizantes do modelo contemporâneo de sociedade atomizada, ampliar espaços de debate bioético parece reforçar a dialogicidade entre paciente-comunidade-profissional-serviço e estimular mudança de valores com incorporação da aliança, comprometimento e solidariedade. Especialmente, numa região como a metropolitana estudada, com forte imbricamento de interesses e substantiva disjunção relacional, público-privado.

Colaboradores Doris Gomes trabalhou na concepção e redação do texto; Flávia Ramos trabalhou na revisão crítica do manuscrito.

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Gomes D, Ramos FRS. Solidaridad, alianza y compromiso del profesional de la salud en las prácticas del Sistema Brasileño de Salud (SUS): un debate bioético. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):9-20. El objetivo de este artículo es analizar, bajo el referencial bioético, la necesidad social de la solidaridad, alianza y compromiso profesional como desafío en las prácticas del SUS. Por medio de una encuesta cualitativa del tipo exploratorio descriptivo se entrevistaron treinta participantes (enfermeros, médicos y odontólogos) en una región metropolitana del sur de Brasil. Los resultados se analizaron desde el punto de vista bioético por medio del Análisis Textual Discursivo. El referencial contractual-liberal reflejado en la atención pública expone vulnerabilidades sociales y construye problemas en la calidad de los servicios, sugiriendo una construcción relacional anterior a la mera relación contractual: una alianza inter-sujetos-iguales, un compromiso bienhechor al otro diferente y/o vulnerado y una solidaridad comprometida en la construcción de una nueva dialógica como excelencia clínica colectiva. Para ello, la bioética clínica tiene que incorporar estos valores en el sentido de transformar la calidad de la atención, todavía contractual del tipo racionalista, abstracto e impersonal en una nueva practica dialógica.

Palabras clave: Ética. Bioética. Profesional de salud.

Recebido em 16/06/14. Aprovado em 10/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0198

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Transmisión del diagnóstico en psiquiatría y adscripción de identidades: perspectivas de los profesionales María Jimena Mantilla(a) Juan Pedro Alonso(b)

Mantilla MJ, Alonso JP. Communicating psychiatric diagnoses and identities: professionals’ perspectives. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):21-32.

Health-related sociology and medical anthropology have extensively addressed the impact of diagnoses on patients’ lives. However, the process through which diagnoses are communicated is still a matter that is dealt with very little in medical practice. The aim of this paper is to analyze professionals’ opinions regarding communication of psychiatric diagnoses: whether, when and how to make one, among other dimensions. Using data from two studies based on interviews with psychiatrists in the city of Buenos Aires, this paper argues that the decision on whether to communicate the diagnosis depends on the significance that the professionals place on the diagnostic categories. The doubts that characterize the act of communication are related to the difficulties in embracing a paradigm for diseases that is free from subjective assessments.

Keywords: Diagnosis. Psychiatry. Mental health. Communication.

La sociología de la salud y la antropología médica han tematizado extensamente las consecuencias de los diagnósticos en la vida de las personas. Sin embargo, el proceso por medio del cual los diagnósticos se transmiten constituye un aspecto poco abordado de la práctica médica. El objetivo de este artículo es analizar la perspectiva de profesionales acerca de la transmisión de diagnósticos psiquiátricos: si hacerlo o no, cuándo y cómo, entre otras dimensiones. A partir de datos provenientes de dos investigaciones, basadas en entrevistas en profundidad con psiquiatras de la ciudad de Buenos Aires, el artículo sostiene que la decisión de comunicar o no el diagnóstico depende del sentido que los profesionales atribuyen a las categorías diagnósticas. Las dudas que caracterizan el acto de transmisión son parte de las dificultades de asumir el paradigma de la enfermedad libre de valoraciones subjetivas.

Palabras-clave: Diagnóstico. Psiquiatría. Salud mental. Transmisión.

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(a,b) CONICET - Instituto de Investigaciones Gino Germani, Universidad de Buenos Aires. Pte. J. Uriburu 950, 6° piso, oficina 3. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. C1114AAD. jimenamantilla@ yahoo.com.ar; juanpedroalonso79@ gmail.com

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Introducción El objetivo del artículo es discutir y analizar la perspectiva de médicos psiquiatras respecto a la transmisión del diagnóstico en el campo de las enfermedades mentales desde una perspectiva interaccionista. En medicina, el diagnóstico valida aquello que se considera enfermedad, explica y da sentido a los síntomas y legitima la experiencia de enfermedad y el estatuto social del enfermo, así como la autoridad médica sobre determinados padecimientos y malestares1,2. Los estudios clásicos en antropología médica y sociología de la salud muestran cómo el diagnóstico funciona como un ritual que organiza, legitima y da sentido a situaciones de padecimiento, al tiempo que enmarca la relación médico-paciente3-6. Las características diagnósticas definen, predicen y al mismo tiempo ayudan a constituir la realidad que identifican. Como señala el historiador Charles Rosenberg7, si bien el diagnóstico siempre ha sido central para la medicina, los procesos de tecnologización y burocratización que se dieron en las sociedades occidentales en las últimas décadas han acentuado esta centralidad. La identificación de marcadores biológicos a partir de pruebas de laboratorio o de estudios por imágenes (desde radiografías, ecografías, resonancias magnéticas hasta tomografías computadas, entre otros) constituye un aspecto central de la construcción de un diagnóstico. En psiquiatría este modelo no funciona en tanto no existen marcadores biológicos concluyentes que indiquen el diagnóstico de patologías precisas8-9(c). Desde la década de 1980 la psiquiatría biológica es una referencia creciente en el campo psiquiátrico, en particular en los Estados Unidos, pero con un impacto a nivel mundial, a partir de la aparición de la tercera edición del Manual de diagnóstico y estadísticas de los trastornos mentales (DSM-III), de la American Psychiatric Association, reconocido como uno de los factores responsables de la internacionalización del modelo norteamericano de psiquiatría10. Hasta el año 2013, el criterio diagnóstico utilizado por los psiquiatras era el establecido por la cuarta versión del manual (DSM IV), y recientemente se publicó una quinta versión11. La psiquiatría biológica traza como presupuesto central que el cerebro es el órgano de la mente y los métodos y el vocabulario médico como los únicos legítimos en la investigación y descripción de los trastornos mentales. Desde esta perspectiva los problemas psiquiátricos se consideran trastornos neuroquímicos, y se propone un modelo de diagnósticos ‘sindrómicos’: la evaluación se realiza a partir de un razonamiento inductivo sumado a la presencia o ausencia de un conjunto de síntomas. Como señala Luhrmann12, la mayoría de los diagnósticos descriptos en el DSM son presentados como un cheklist de criterios: para efectuar el diagnóstico basta con que el paciente tenga algunos de los ítems de la lista. Si bien en este modelo el diagnóstico psiquiátrico se plantea como una herramienta práctica desprovista de una caracterización ontológica (la valoración moral de una condición de salud), la transmisión del diagnóstico a los pacientes pone en cuestión la neutralidad de la racionalidad médica. En Argentina, debido a la presencia del psicoanálisis y su influencia en la clínica psiquiátrica13,14, no todos los psiquiatras siguen el modelo de la psiquiatría biológica descrito: buena parte de los profesionales de esta disciplina que se desempeñan en los servicios de salud mental sigue una orientación psicoanalítica. Ello impacta tanto en la forma de concebir el diagnóstico como en la opinión que tienen acerca de la validez de transmitirlo. Desde la perspectiva psicoanalítica, la búsqueda del diagnóstico pasa por conocer la ‘estructura psíquica’ del paciente, por lo tanto, la tarea inicial es clasificar al paciente de acuerdo a las estructuras 22

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(c) Si bien los avances de las investigaciones en neurociencia cognitiva sobre las bases cerebrales de la conducta son significativos, aun no es posible identificar marcadores biológicos unívocos vinculados con los diagnósticos psiquiátricos8-9.


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(d) La transmisión de información médica ha sido analizada por la línea de estudios que examinan los aspectos comunicativos de la relación médicopaciente23-26. Estos trabajos hacen foco en la forma en que los profesionales comunican información técnica en la interacción con los pacientes, y el grado en que estos comprenden esta información, variable según el estrato social o la familiaridad con categorías médicas (la “capacidad médica”, en palabras de Bolstanski23). En este artículo interesa analizar la transmisión de información diagnóstica desde otra perspectiva, haciendo énfasis en la carga simbólica atribuible a determinadas condiciones nosológicas.

(e) La investigación etnográfica consistió en la participación en las rutinas de un grupo de psiquiatras y psicólogos en un hospital psiquiátrico de la Ciudad de Buenos Aires (observando en reuniones, guardias, salas de espera, discusión de casos clínicos y entrevistas de admisión) y en entrevistas en profundidad a veinte profesionales. Para la segunda investigación se realizaron veinte entrevistas a psiquiatras y psicólogos del sector público y privado.

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psíquicas básicas desarrolladas por Freud15. La distinción entre las estructuras planteadas por Freud – psicosis, neurosis y perversión – permite establecer una estrategia terapéutica. Desde este enfoque, el diagnóstico es una herramienta orientativa para interpretar el recorrido biográfico del paciente, pero no una información válida para ser transmitida. La sociología de la salud y la antropología médica han tematizado extensamente las consecuencias de los diagnósticos sobre la personas a quienes son aplicados, desde los estudios sobre la desviación16-18 hasta los trabajos que abordan el impacto en la vida y la identidad en personas viviendo con enfermedades crónicas como el VIH/sida19-22. Sin embargo, el proceso a través del cual los diagnósticos son trasmitidos (así como el impacto de esta actividad en los profesionales encargados de hacerlo) constituyen un aspecto menos abordado de la práctica médica2,23-26(d). La comunicación del diagnóstico en situaciones sensibles, en enfermedades crónicas y/o terminales como el VIH/sida y el cáncer, ha sido tema de reflexión sociológica (y ética) desde los estudios de Glaser y Strauss27 sobre la gestión de la muerte en el hospital. En contraposición a las prácticas destinadas a no revelar información, en las últimas décadas se ha evidenciado un cambio de política en la revelación de los diagnósticos, en el marco de una tendencia a reconocer la autonomía y los derechos de los pacientes y de la emergencia del discurso de la bioética en el campo de la salud28. Esta tendencia a una mayor apertura, observada principalmente en enfermedades oncológicas y en países anglosajones29-31, en los que el tema ha sido más ampliamente tratado, no se ha manifestado de la misma forma en otras ramas de la medicina y en otras patologías, como se ha documentado en torno a algunas categorías diagnósticas en psiquiatría32-34. La validez predictiva limitada y la incertidumbre que rodea al diagnóstico en psiquiatría, así como la diversidad de criterios entre profesionales del campo “psi” y la carga de estigma que rodea a algunas etiquetas (por ejemplo la esquizofrenia), son algunas de las aristas que configuran la particularidad de la comunicación entre profesionales y pacientes en esta área de atención. El artículo problematiza la trasmisión del diagnóstico de enfermedades psiquiátricas desde la perspectiva de los profesionales de esta disciplina, examinando los significados atribuidos a determinadas categorías diagnósticas que inciden en la decisión sobre revelar o no información a los pacientes. Qué informar, a quiénes y de qué forma, preocupaciones que cruzan a los profesionales psiquiatras, no tienen respuestas unívocas. A partir de estos ejes se describen diferentes posturas de los psiquiatras respecto a comunicar los diagnósticos, tensionadas por la dificultad para asumir una perspectiva de la enfermedad mental libre de valoraciones subjetivas y del estigma aún asociado a determinadas categorías diagnósticas. El artículo se basa en dos investigaciones: una etnografía en un hospital psiquiátrico de la ciudad de Buenos Aires, en que se analizaron las prácticas y saberes de psiquiatras y psicólogos35 y una investigación cualitativa que abordó las percepciones de los profesionales psi acerca del diagnóstico del trastorno límite de la personalidad36. El artículo examina la problemática de la transmisión del diagnóstico a partir del material recolectado en las entrevistas a profesionales de ambas investigaciones, complementado con datos provenientes de observaciones etnográficas(e). A continuación se abordan los motivos esbozados por los profesionales sobre la conveniencia o no de comunicar diagnósticos psiquiátricos, así como las formas en que este tipo de información se transmite en las interacciones con los pacientes. 23


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La transmisión del diagnóstico psiquiátrico ¿Informar o no informar, cómo hacerlo y en qué contextos? Estos interrogantes permiten sistematizar las perspectivas de los profesionales psiquiatras respecto a la práctica de transmitir información diagnóstica: ya sea comunicar de forma abierta esta información, enmascararla o evitar este tipo de intercambios.

Informar o no informar Una de las primeras cuestiones que incide en la decisión de informar o no el diagnóstico es la orientación del profesional en cuestión: psiquiatría biológica o psicoanálisis. Si bien los pacientes son descriptos a partir de su diagnóstico psiquiátrico (biológico), y el saber psicoanalítico es subsidiario respecto al diagnóstico, los psiquiatras de orientación psicoanalítica son en muchos casos renuentes a informarlo. En consecuencia, es factible que en algunas situaciones el enfoque psicoanalítico asumido por algunos psiquiatras actúe como freno a comunicar esta información. Este tipo de situaciones han sido documentadas en la etnografía realizada en un hospital psiquiátrico, donde convivían profesionales de ambas orientaciones. Un ejemplo de la incidencia de la orientación en la inclinación a informar el diagnóstico puede ilustrarse en las discusiones de los profesionales del hospital sobre un paciente diagnosticado con el trastorno bipolar. El psiquiatra que lo atendía (de orientación biológica) pretendía que éste participara en un grupo de pacientes (la Fundación de Bipolares de Argentina), mientras otro psiquiatra que había supervisado el caso, de orientación psicoanalítica, se oponía aludiendo que participar en ese espacio iba a reforzar su “posición como enfermo” (Notas de campo, observaciones en reuniones de equipo). En este tipo de situaciones se ven dos interpretaciones diferentes. Por un lado, la interpretación psiquiátrica (de orientación biológica) apelaba a la participación del paciente en el grupo como una manera de favorecer la adherencia al tratamiento y brindarle un espacio para compartir sus experiencias con otros pacientes. La interpretación psicoanalítica entendía que el grupo, por ser una asociación bajo el paraguas de un diagnóstico, podría resultar negativo para el paciente, corriendo el riesgo de promover su lugar de enfermo. En suma, una primera cuestión que hay que considerar para comprender la problemática de la transmisión es la orientación del psiquiatra, ya que este posicionamiento genera una actitud más o menos favorable para comunicar el diagnóstico al paciente.

Argumentos a favor de informar el diagnóstico Los profesionales proclives a transmitir el diagnóstico refieren las ventajas de una comunicación abierta en términos de optimizar la adherencia y los resultados de los tratamientos. Para estos profesionales, informar a los pacientes sobre el diagnóstico facilitaría una serie de intervenciones y el cumplimiento del tratamiento farmacológico. Como lo señala uno de los entrevistados: “Los pacientes que tenés que trabajar mucho la conciencia de la enfermedad para que tomen la medicación, a largo plazo tenés que darles un diagnóstico, a mi criterio. ¿Porque sino con qué justificación le decís ‘tomá, tome Divalproato de sodio toda la vida’? ‘No, ¿por qué tengo que tomarlo toda la vida?’ ¿Entendés? ‘La verdad es que si no lo tomás, para mí lo que vos tenés es un diagnóstico de trastorno bipolar, si no tomás un estabilizador del ánimo vas a tener muchas más crisis’. Viste, para mí determinadas cosas hay que trabajarlas”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica)

Desde esta óptica, la inclinación a comunicar el diagnóstico responde a una lógica instrumental, sustentada en nociones como la ‘conciencia de enfermedad’ y la adherencia, principalmente en condiciones crónicas. Los requerimientos del tratamiento, entendidos como un compromiso a largo plazo de parte de los pacientes, implicarían que los profesionales brindaran información diagnóstica. 24

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Otro aspecto señalado a favor de brindar el diagnóstico es evitar interpretaciones legas (de los propios pacientes o de familiares y allegados), que puedan ser contraproducentes o negativas para la integridad de los pacientes. La comunicación por parte de un profesional, para algunos entrevistados, reduciría los problemas que podría traer aparejado que un paciente obtenga información en otros contextos, como internet o de parte de otros pacientes. Una psiquiatra entrevistada ilustra este punto: “El otro día, en la sala, un paciente estaba muy angustiado porque el equipo le había dicho a su hermana que él era un esquizofrénico, y la hermana fue y se lo dijo, y él que no tenía ni idea de qué es un esquizofrénico, fue y le preguntó a otro compañero en la sala, y el compañero de la sala le dice ‘un esquizofrénico es alguien que está loco toda la vida y que se pone muy agresivo’, y entonces este pobre chico estaba totalmente angustiado que iba a estar loco toda la vida y que se iba a poner agresivo con su familia. Entonces, en ese caso tal vez sí hubiera sido mejor trabajar el diagnóstico del paciente y no que lo descubra por su cuenta”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica)

La Ley nº 26.742 de Derechos del Paciente y la Ley Nacional de Salud Mental nº 26.657 consagran el derecho de los pacientes a ser informados de su condición de salud de forma adecuada y comprensible. (f)

Tal como se observa en la cita, la posibilidad de brindar información médica es vista por los profesionales como una forma de guiar las interpretaciones de los pacientes a horizontes menos traumáticos, privilegiando la creación de un espacio de contención para este tipo de revelaciones. Cabe destacar, entre los argumentos favorables a comunicar el diagnóstico, la ausencia de referencias a los derechos de los pacientes a conocer su condición de salud, reconocido en las legislaciones nacionales y locales vigentes(f). A diferencia de otras especialidades, donde está más instalada la idea de que conocer el diagnóstico es un derecho de los pacientes (como en el VIH y en algunos países con el cáncer), este tipo de argumentos no fue invocado por ninguno de los profesionales. Esto podría vincularse con la falta de una política general que guíe las decisiones de información del diagnóstico. Más que basarse en protocolos o criterios establecidos a priori, en las decisiones sobre comunicar el diagnóstico los profesionales se ven influenciados por el modo en que conciben determinadas categorías diagnósticas. Sus propias ideas sobre la gravedad de tal o cual diagnóstico se convierten en una variable de peso a la hora de informar o no al paciente, como veremos a continuación.

Argumentos que justifican la decisión de no informar Entre los motivos para no revelar esta información, las principales razones esgrimidas por los entrevistados son la gravedad de algunos diagnósticos, la percepción de dificultades para comprender el significado del diagnóstico en algunos pacientes, y casos particulares que desalientan este tipo de prácticas. Con respecto a la gravedad del diagnóstico, aún los profesionales que identifican ventajas en informar a los pacientes coinciden en señalar que algunas categorías diagnósticas son problemáticas de transmitir, fundamentalmente porque comunicar estas condiciones acarrearía consecuencias negativas en la visión de los pacientes sobre sí mismos. Diagnósticos como la esquizofrenia o el trastorno límite de la personalidad son señalados por algunos profesionales como difíciles de comunicar y de asimilar por parte de los pacientes y familiares. Como señalan Jutel y Nettleton2, las dudas e incertidumbres en torno a la comunicación de diagnósticos sensibles dan COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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cuenta del grado en que los profesionales reconocen la distinción entre la enfermedad – disease –, como condición fisiológica o biológica, y la experiencia personal de vivir con una condición de salud – illness37. En palabras de los profesionales entrevistados: “La mayoría de los TLP [trastorno límite de la personalidad] no tienen diagnóstico, es como si fuera la nueva esquizofrenia, nadie les quiere decir que tienen eso, y entiendo que tiene que ver con la mala evolución, que es de mal pronóstico, y que no tiene cura o los resultados son bajos”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica) “Es como mandarlos al cadalso, decir ‘tenés TLP’, vas a sitios de Internet y si les decís a un esquizofrénico no comprende igual, pero para estos pacientes es como que les dijeras estás loco pero no tanto, entonces puede generar un empeoramiento”. (Entrevista a psiquiatra, orientación psicoanalítica)

La resistencia a informar sobre estos diagnósticos, por otra parte, coincide con las imágenes negativas que algunos profesionales tienen sobre este tipo de pacientes. La incomodidad que generan en las interacciones clínicas (los pacientes diagnosticados con TLP, por ejemplo, son considerados manipuladores), o las dificultades observadas para conseguir logros terapéuticos, generan actitudes de rechazo entre los profesionales38. Otra de las razones, respecto a no informar el diagnóstico, ocurre cuando los profesionales consideran a los pacientes incapaces de comprender la información suministrada. Ya sea porque esta dificultad se deba a motivos asociados al diagnóstico, a la ingesta de medicación o a otras situaciones (el bajo nivel cultural o al consumo intensivo de drogas), en estos casos los psiquiatras evitan transmitir el diagnóstico no por temor al impacto de las imágenes negativas de algunas categorías sino porque dudan del nivel de comprensión intelectual de los pacientes. En palabras de un entrevistado: “Es mucho más difícil trabajar la conciencia de la situación con un psicótico. Con un psicótico se complica, yo creo que incluso muchas veces puede llegar a ser contraproducente darles un diagnóstico. No pueden manejarlo, son psicóticos, no saben qué significa”. (Entrevista a psiquiatra, orientación psicoanalítica)

Por último, la cuestión de transmitir el diagnóstico coloca a los profesionales en una posición incómoda cuando se enfrentan con pacientes que no consideran problemáticos aquellos aspectos que los llevaron a una consulta psiquiátrica, o que no consideran estos problemas en los mismos términos que los profesionales. Un paciente que sufre de sensaciones de persecución, por ejemplo, considera que su problema no son los “delirios” o la “paranoia” sino el hecho de ser perseguido. Como lo refiere un entrevistado: “Como que determinados pacientes podés como moldear qué respuesta le das y qué no, en relación a la patología que tiene. Al del ataque de pánico le podés decir ‘esto le va a calmar la ansiedad’, entendés, ‘lo que usted tiene es un síntoma ansioso y esto lo va a ayudar’. Pero a un psicótico no le podés decir ‘esto es para que deje de delirar’, ‘esto es para que no se preocupe tanto por el complot, o pueda dormir más tranquilo, para los miedos’. Hay uno que en la sala dice que se le abre la cabeza y se le van las ideas, ‘esto es para ayudar que las ideas se queden adentro’”. (Entrevista a psiquiatra, orientación psicoanalítica)

Como se expresa en el fragmento de entrevista, desde la óptica del paciente, éste no está delirando sino que su problema es el complot. De este tipo de desacuerdos entre perspectivas se nutre las resistencias a una transmisión clara y directa de un diagnóstico. A continuación analizaremos estos aspectos con mayor profundidad.

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Formas veladas de transmisión del diagnóstico Ahora bien, ¿cómo se transmite (o no transmite) un diagnóstico, especialmente estos diagnósticos considerados graves y que presentan dilemas en los profesionales, en las interacciones terapéuticas? Como ocurre por ejemplo en los padecimientos oncológicos, en que la revelación del diagnóstico no se limita a un sólo momento29,30,39, la transmisión de este tipo de información en psiquiatría no puede pensarse como un evento aislado sino en el marco de una relación terapéutica que se extiende en el tiempo. Según la gravedad o el impacto negativo asociado a determinados diagnósticos, éstos se comunican de formas sutiles, con explicaciones que en ocasiones recurren a eufemismos o metáforas a través de los cuales los profesionales buscan sostener a un paciente en tratamiento. El siguiente fragmento de una entrevista muestra cómo funcionan estas estrategias para comprometer a los pacientes con los tratamientos sin la necesidad de revelar un diagnóstico: “Después con la esquizofrenia es más complicado. Tengo un paciente con primer brote esquizofrénico que nosotros lo estamos viendo más o menos desde fines de octubre y a él no, el diagnóstico no se lo dimos ni por casualidad; porque él viene también con una cuestión delirante, que un juez lo perseguía, entonces nosotros con lo que lo convencimos para darle la medicación, primero que nosotros nunca le negamos su delirio, tampoco se lo fomentamos, y siempre fue como decir ‘bueno, nosotros no podemos cambiar lo del juez, lo que podemos trabajar es con tu angustia’. Entonces como que lo convencimos por ahí, con que íbamos a trabajar con la angustia de él para que él estuviera fuerte y diera los pasos que tuviera que dar pero por su cuenta”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica)

En algunos casos, estas prácticas se continúan entre profesionales o equipos, como sucede con pacientes con largas trayectorias psiquiátricas que no cuentan con un diagnóstico. Referirse a “un problema de relaciones”, “un problema de angustia”, permite dar cuenta de un problema evitando “poner un nombre”. Como se desprende de un fragmento de una entrevista realizada luego de participar de una entrevista en la guardia con una paciente con diagnóstico de esquizofrenia: “Nosotros le explicamos [a la madre de la paciente] que cuando ella le pide que haga la cama, que lave la ropa, que tienda la ropa, que no es mala voluntad de María, sino que por la enfermedad le cuesta. ‘¿Y qué enfermedad?’, pregunta. Entonces, ahí nos miramos como diciendo ‘no se lo dijeron’. Como que ahí, nosotros le dijimos que no le íbamos a poner un nombre, le dijimos lo mismo: que no le íbamos a poner un nombre, pero que María tenía un problema de relaciones y por eso a veces tenía problemas familiares. […] Y la verdad, no sé, me pareció raro que en tantos años de tratamiento acá en el hospital no se lo hayan dicho. Además, María ya tiene cinco años de tratamiento acá en el Hospital sino me equivoco. Y lo estamos viendo con un psicólogo, y él no sabe su diagnóstico y los padres tampoco. Porque de hecho, ella no se entera. Y los padres me dicen: ‘Doctor: ¿puede ser que la chica ande tan mal por una depresión?’. Entonces, yo dije o no lo saben o tienen cero conciencia de la enfermedad”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica)

Como se desprende del fragmento citado, estas referencias veladas al diagnóstico son significadas por los profesionales como una forma de cuidado. En un artículo temprano, Goffman40 analiza la comunicación de noticias que dañan la imagen del self, noticias que típicamente son dadas de forma de minimizar este daño. Para Goffman, en este tipo de interacciones lo que está en juego no es sólo el impacto en la imagen de sí de aquellos que reciben información desacreditadora, sino la incomodidad de quienes transmiten estas noticias. Reducir la intensidad del daño, en este caso, puede pensarse también como un modo de preservarse en situaciones de alta presión como la de transmitir

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información diagnóstica. Frente a las inconveniencias que acarrea revelar determinadas categorías diagnósticas, algunos profesionales deciden transmitir el diagnóstico sólo si el paciente lo pregunta de forma explícita: “Pregunta: Y con los pacientes el tema del diagnóstico, ¿vos les decís, como es eso de la relación con el paciente? Respuesta: Yo... Depende del paciente, trato de decirle el diagnóstico, si me lo preguntan se lo digo, y si no me lo preguntan y son pacientes psicóticos, voy viendo, muchas veces no es necesario dar un diagnóstico”. (Entrevista a psiquiatra, orientación psicoanalítica)

El tipo de prácticas descriptas (la negativa a informar, o hacerlo mediante metáforas o eufemismos) envuelven al diagnóstico en un halo de ambigüedad y misticismo que se aleja de la pretensión de neutralidad valorativa propia del modelo médico y de herramientas como el DSM. Varios profesionales señalaron que la visión del diagnóstico como una etiqueta, es decir ciertas imágenes extendidas sobre algunas patologías (y compartidas por parte de legos y profesionales, que reducirían la persona a un diagnóstico estigmatizante) obtura el proceso de transmitir información a los pacientes. Así lo expresaba un psiquiatra entrevistado: “En Argentina las posiciones sobre el consentimiento informado son medievales. Lo central es para qué se quiere transmitir el diagnóstico y el problema es que tiende a ser usado como una etiqueta peyorativa”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica)

Formas abiertas de transmisión del diagnóstico A contrapelo de estas prácticas donde se transmite información diagnóstica en forma velada, fueron identificadas formas abiertas de comunicación donde la transmisión del diagnóstico es producto de un proceso activo de intercambios entre profesionales y pacientes. Un profesional entrevistado da cuenta de cómo se involucra al paciente en el proceso de definición de un diagnóstico: “Nosotros les damos manuales: de bipolar, de trastorno límite, distintas informaciones para que lean y les pedimos que nos cuenten con cuáles se sienten más identificados. Después revisamos juntos los criterios”. (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica)

Este tipo de prácticas la encontramos entre los profesionales que consideraban al diagnóstico como una herramienta de trabajo conjunto que favorece el desarrollo de la relación terapéutica. Algunos entrevistados explicaban que el diagnóstico es útil para el paciente porque sirve “para dar un nombre a la experiencia de sufrimiento”. Por otro lado, otro factor que incide para que el diagnóstico sea transmitido de modo abierto es el impacto positivo que podría tener tal noticia en el marco de una trayectoria psiquiátrica específica. Un relato etnográfico ilustra este aspecto: es el caso de un profesional que toma en tratamiento a una paciente con una larga trayectoria psiquiátrica, a quien en cada uno de sus tratamientos se la había considerado como una paciente esquizofrénica. El psiquiatra recibe a la paciente y comienza un proceso de indagación diagnóstica que lo lleva a reconsiderar y modificar el diagnóstico de esquizofrenia por el de trastorno límite de la personalidad. En este marco, la instancia de transmisión del nuevo diagnóstico se produce de modo abierto y es recibida con entusiasmo por parte de la paciente, dado que, comparativamente, el impacto de la categoría de trastorno límite es menor que la de esquizofrenia. En palabras de la paciente, “para mí tener esquizofrenia significaba que no podía hacer nada, en cambio el trastorno límite, es que tengo un problema, pero estoy bien”. (Notas de campo, observaciones en la sala de espera del hospital) Las diferentes perspectivas sobre el diagnóstico y sus formas de transmitirlo se explican en parte por el tipo de diagnóstico en cuestión. Más allá de los consensos generalizados sobre el significado de una categoría diagnóstica, los modos en que cada profesional las interpreta impactan subrepticiamente 28

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en la cuestión de la transmisión. En el caso de la categoría de trastorno límite de la personalidad, como vimos anteriormente, muchos profesionales consideran que un rasgo central de estos pacientes es que tienen un comportamiento manipulador, excesivo, el cual no corresponde con un acontecimiento que pudiera haberlo desencadenado. Un fragmento de entrevista permite dar cuenta de cómo se expresa este tipo de nociones: “La internación a los pacientes border, o con trastornos de personalidad, les sirve para demostrar lo mal que están. Entonces quieren internarse o quieren salir de la casa, huir de los quilombos internándose y van a la guardia y dicen me quiero matar, me voy acortar las venas o se toman un montón de pastillas donde saben que no se van a morir porque lo tienen ya recontra aprendido, pero igualmente es un intento de dar noticia”. (Entrevista a psiquiatra, orientación psicoanalítica)

Por el contrario, otros profesionales entienden el comportamiento de los pacientes como fruto de experiencias de sufrimiento devastadoras y se enfrentan a la anterior posición, que relativiza el sufrimiento por las actitudes que juzgan como intentos de manipulación: “Son pacientes muy criticadas, yo he escuchado decir a otros profesionales que los pacientes gozan. Nadie termina de aceptar el padecimiento horroroso de una paciente que te dice me siento con la piel despellejada” (Entrevista a psiquiatra, orientación biológica). Estas diferentes posiciones repercuten directa o indirectamente en la inclinación a transmitir un diagnóstico en tanto revelan una concepción más o menos negativa de las categorías diagnósticas. En suma, el proceso de construcción de significados acerca de las categorías diagnósticas es una dimensión central en la decisión profesional de transmitir o no el diagnóstico. Las propias interpretaciones de pacientes y profesionales reconstruyen y resignifican las categorías en una constante retroalimentación. En el caso analizado, las percepciones de los profesionales acerca del trastorno límite de la personalidad o la esquizofrenia tiñen y redefinen las definiciones médicas, y con ellas determinadas prácticas.

Conclusiones Las ambigüedades que rodean a la transmisión del diagnóstico ponen en tensión la supuesta neutralidad de las explicaciones psiquiátricas, ya que – como puede observarse en las prácticas veladas de transmisión – son los mismos profesionales quienes conciben a los diagnósticos psiquiátricos como otorgadores de identidades estigmatizadas. Los profesionales, en el acto de evitar transmitir o buscar explicaciones solapadas, contradicen su visión del diagnóstico como una condición médica sin implicaciones subjetivas negativas. Los intentos por evitar comunicar un diagnóstico revelan una mirada de los trastornos psiquiátricos próxima a la teoría de la desviación, en tanto práctica que otorgaría identidades estigmatizadas o estigmatizables17. Estas cuestiones pueden ser leídas a la luz de la conceptualización de Hacking41, que analiza cómo interfieren las clasificaciones sobre aquello que clasifican, en este caso las enfermedades mentales y las personas catalogadas como enfermos mentales. Hacking analiza el proceso de negociación y transformación que se produce entre los miembros de la categoría de desviados y la propia categoría, y señala que las categorías psicopatológicas son ‘tipos humanos’, por lo cual se retroalimentan mutuamente los sujetos clasificados y los contenidos y el alcance de las categorías. Tal como ha sido descrito en este artículo, las categorías diagnósticas se retroalimentan y modifican a través de las interpretaciones de las personas descriptas por éstas y por quienes las utilizan para describir a otros. Además, la decisión de transmitir o no (y el modo de hacerlo), da cuenta de las dudas, especulaciones y certezas que atraviesan la práctica clínica, y que influyen en las formas de interactuar con los pacientes y en el sentido que asumen la totalidad de las intervenciones. Una vez transmitido, el diagnóstico impacta en la transformación de la identidad de los pacientes: el pasaje de persona a paciente se plasma a través del diagnóstico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Por último, la problemática de la transmisión del diagnóstico ilumina las ambigüedades de las categorías psiquiátricas, en especial su histórico proceso de indefinición como condiciones médicas y su proximidad con evaluaciones morales. Las identidades psiquiátricas no implican solo el impacto del diagnóstico de una enfermedad mental, suponen un proceso de mayor alcance: la persona, sus vínculos y sus actividades cotidianas se encuentran mediadas por el universo psiquiátrico, en una distancia inseparable de la vida social regular. Tal como afirma Estroff42, la fusión de la enfermedad con la identidad se vincula con la cronicidad y por ello enfermedades como el VIH o el cáncer están mediadas por la experiencia de transformación identitaria, y en consecuencia corren riesgos de convertirse en identidades estigmatizadas. En el caso de los trastornos psiquiátricos, debido a que se hallan en el centro de la evaluación médica condiciones propias de la personalidad e identidad, estas transformaciones se dan de forma más radical. La cuestión de la estigmatización es difícil de evadir aún mediante argumentos médicos supuestamente neutrales: ésta se expresa de modos distintos según el tipo de diagnóstico, los supuestos que circulan detrás de cada categoría nosológica y el impacto que produce en cada trayectoria psiquiátrica.

Agradecimientos Los comentarios y sugerencias de los evaluadores permitieron enriquecer el artículo en forma significativa. Colaboradores María Jimena Mantilla diseñó y condujo las investigaciones en que se basa el artículo, y ambos autores trabajaron juntos en el análisis de los datos y la redacción del manuscrito. Referencias 1. Jutel A. Sociology of diagnosis: a preliminary review. Soc Health Illn. 2009; 31(2):278-299. 2. Jutel A, Nettleton S. Towards a sociology of diagnosis: reflections and opportunities. Soc Sci Med. 2011; 73:793-800. 3. Freidson E. La profesión médica. Barcelona: Península; 1978. 4. Conrad P. Sobre la medicalización de la anormalidad y el control social. In: Ingleby D, compilador. La política de la salud mental. Barcelona: Crítica; 1982. p. 129-54. 5. Kleinman A. Writing at the margin. Berkeley: University of California Press; 1997. 6. Good B. Medicine, rationality and experience. Nueva York: Cambridge University Press; 1994. 7. Rosenberg Ch. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experiences. Milbank Q. 2002; 80(2):237-60. 8. Dumit J. Picturing personhood: brain scans and biomedical identity. Princeton: Princeton University Press; 2004. 9. Rose N. The human sciences in a biological age. Theory Cult Soc. 2013; 30(1):3-34.

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Mantilla MJ, Alonso JP. Transmissão de diagnóstico em psiquiatria e atribuição de identidades: perspectivas dos profissionais. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):21-32. A sociologia da saúde e a antropologia médica têm abordado extensamente as consequências do diagnóstico na vida das pessoas. No entanto, o processo por meio do qual o diagnóstico é transmitido é um aspecto pouco abordado da prática médica. O objetivo deste artigo é analisar a perspectiva dos profissionais sobre a transmissão de diagnósticos psiquiátricos: se fazê-lo, quando e como, entre outras dimensões. Usando dados de dois estudos com base em entrevistas com psiquiatras da cidade de Buenos Aires, o artigo argumenta que a decisão de comunicar ou não o diagnóstico depende do significado atribuído às categorias diagnósticas por parte dos profissionais. As dúvidas que caracterizam o ato de transmissão têm a ver com as dificuldades de abraçar um paradigma da doença livre de avaliações subjetivas.

Palavras-chave: Diagnóstico. Psiquiatria. Saúde mental. Transmissão.

Recebido em 17/03/14. Aprovado em 04/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0227

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A continuidade das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira Cláudia Pellegrini Braga(a) Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira(b)

Braga CP, D’Oliveira AFPL. The continuity of psychiatric hospitalization of children and adolescents within the Brazilian Psychiatric Reform scenario. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):33-44. Within the Brazilian Psychiatric Reform scenario, a new policy for mental healthcare specifically for children and adolescents is under construction. However, studies have indicated that hospitalization in psychiatric institutions still occurs among this population. As a preliminary research result over a twomonth period, we identified who are these children and adolescents in a hospital with psychiatric beds were and the reasons for their hospitalization. We analyzed the medical files of 28 subjects using a hermeneutic dialectic approach. The results indicated that hospitalization of cases with a profile similar to that of the time before the reform of psychiatric care was continuing and that the main reason for hospitalization related to aggressiveness and dangerousness. It was concluded that, despite the reform, psychiatric hospitalization in institutions of asylum nature is still occurring.

Keywords: Mental health. Hospitalization. Deinstitutionalization.

No cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira, uma política de atenção em saúde mental específica para crianças e adolescentes está em construção. Porém, estudos indicam que ainda ocorre a internação dessa população em instituições de caráter asilar. Como resultado parcial de pesquisa, identificamos, durante um período de dois meses, quem são as crianças e adolescentes internados em um serviço que dispõe de leitos psiquiátricos, e os motivos dessas internações. Analisamos os prontuários de 28 sujeitos a partir da abordagem da Hermenêutica Dialética. Os resultados indicaram a continuidade das internações em um perfil similar ao de um momento anterior à Reforma Psiquiátrica, e que a principal razão para internação gira em torno da agressividade/periculosidade. Conclui-se que, apesar da Reforma Psiquiátrica, internações psiquiátricas ainda acontecem em instituições de caráter asilar.

Palavras-chave: Saúde mental. Hospitalização. Desinstitucionalização

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Curso de Terapia Ocupacional, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05360-000. claudia.braga@usp.br (b) Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, USP. São Paulo, SP, Brasil. afolive@usp.br (a)

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A atenção em saúde mental à infância e adolescência no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira A Política Nacional de Saúde Mental vem consolidando um modelo de atenção em saúde mental aberto e de base territorial, inserido nos contextos reais de vida das pessoas em sofrimento psíquico1. Esse processo teve início no cenário nacional no final da década de 1970 por meio da Reforma Psiquiátrica, um movimento “político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens que incide em territórios diversos”, inclusive nos “territórios do imaginário social e da opinião pública”1 (p. 6). A crítica ao modelo asilar e hospitalocêntrico significou um novo paradigma na atenção com a implantação, de modo progressivo, de uma rede de serviços substitutiva aos leitos em hospitais psiquiátricos, tendo como marco a sanção da Lei n° 10.216, de 6 de Abril de 2001, que dispõe sobre a assistência em saúde mental e os direitos das pessoas com sofrimento psíquico1,2. Amarante3 considera que o percurso da Reforma Psiquiátrica não diz respeito à “simples reestruturação do modelo assistencial” (p. 45), havendo um permanente movimento de inovação de atores, conceitos e princípios. Diferentes dimensões inter-relacionadas compõem esse processo, a saber: teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. A teórico-conceitual refere-se ao movimento de ruptura com o paradigma psiquiátrico e implica na elaboração, crítica e produção de novos saberes. Articulada a essa dimensão, situa-se a técnico-assistencial, com a construção de novos serviços, práticas profissionais e modalidades de atenção3. Já na dimensão jurídico-política, inscreve-se a necessidade de “rediscutir e redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania, de direitos humanos e sociais”, enquanto a sociocultural diz respeito “ao conjunto de ações que visam transformar a concepção da loucura no imaginário social”3 (p. 53). Em termos gerais, a Reforma Psiquiátrica configura-se como um “processo ético-estético, de reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos”3 (p. 50). Especificamente em relação à assistência em saúde mental para crianças e adolescentes, essa é historicamente pautada em “um conjunto de medidas calcadas na lógica higienista e de inspiração normativo-jurídica”, ocasionando um cenário de institucionalização do cuidado4 (p. 8). As mudanças nesse cenário têm início com: a Reforma Psiquiátrica, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por meio da Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990 – um marco para a construção de novas políticas e modos de atenção voltados à população infanto-juvenil5 – e a consolidação da Política Nacional de Saúde Mental, que exigiu a reestruturação da assistência. A construção de políticas públicas específicas é recente, com início em 2003, por meio da Portaria nº1946/GM4. A partir desta iniciativa, foi constituído, em 2004, o Fórum Nacional de Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, que vem construindo as bases e diretrizes para essa política pública e criando novos serviços e estratégias de cuidado4. Segundo o documento orientador dessa política, a atenção em saúde mental infanto-juvenil deve prever: o acolhimento universal, o encaminhamento implicado, a construção permanente da rede e a intersetorialidade na ação do cuidado, de modo a “possibilitar ações emancipatórias” e gerar “uma rede de cuidados que leve em conta as singularidades de cada um e as construções que cada sujeito faz a partir de seu quadro”4 (p. 14).

Cenário de serviços de hospitalidade noturna e de internações A consolidação da Reforma Psiquiátrica exige, simultaneamente, a desconstrução de instituições de caráter asilar, com a redução gradual e programada dos leitos em Hospitais Psiquiátricos, e a construção de serviços substitutivos, sendo os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) os dispositivos centrais. Há diferentes tipos de CAPS em razão da população atendida e da relação n° de habitantes/ município: CAPS-I, localizado em cidades de pequeno porte; CAPS-II, em cidades de médio porte; CAPSi, para população infanto-juvenil; CAPSad, para usuários de álcool e outras drogas; e CAPS-III, serviços estratégicos por oferecerem cobertura 24 horas e hospitalidade noturna. Desde a sanção da Lei 10.216/01, a expansão de serviços de atenção territorial, com a redução de leitos psiquiátricos, é significativa. Desde 2002, foram fechados 19.109 leitos psiquiátricos no território nacional, apesar de 34

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ainda existirem 198 Hospitais Psiquiátricos, totalizando 32.284 leitos6. Em contrapartida, já foram criados 1.742 CAPS, sendo: 822 CAPS-I, 431 CAPS-II, 63 CAPS-III, 272 CAPSad e 149 CAPSi. No Estado de São Paulo, especificamente, foram contabilizados 53 Hospitais Psiquiátricos com 10.801 leitos, contra 282 CAPS, sendo: 64 CAPS-I, 79 CAPS-II, 27 CAPS-III, 67 CAPSad, 2 CAPSad-III e 43 CAPSi6. Nesse cenário, a consolidação de serviços de hospitalidade noturna – dispositivos de fundamental importância no processo de acolhimento das pessoas em sofrimento psíquico quando elas se encontram em um momento de maior fragilidade ou quando é necessário um apoio mais intenso por conta de uma crise mental aguda – é um desafio atual. Na proposta de ampliação da oferta de hospitalidade noturna, além da oferecida em CAPS-III, encontram-se os leitos de atenção integral em saúde mental, que devem estar articulados à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), oferecendo acolhimento, em articulação com outros serviços de referência, para o usuário, e estão localizados como pontos de apoio em Hospitais Gerais, Emergências Hospitalares e serviços hospitalares de referência para álcool e outras drogas7,8. O censo de 20116 contabilizou, no cenário nacional, 3.910 leitos de atenção integral à saúde mental em Hospitais Gerais, sendo 712 localizados no Estado de São Paulo. Ainda, na perspectiva e nas diretrizes da RAPS, a tendência é de expansão de leitos em CAPS-III e Hospitais Gerais, componentes da RAPS, para a progressiva extinção das internações nos Hospitais Psiquiátricos7,8. Contudo, apesar desse horizonte de desinstitucionalização, estudos9-11 indicam que, ainda hoje, ocorre a internação de crianças e adolescentes em Hospitais Psiquiátricos e em outras instituições com lógicas semelhantes. Bentes9 afirma que as internações por mandados judiciais se tornaram mais frequentes e sem a participação da equipe de saúde mental da instituição destinatária; no momento da saída, restrições impostas aos procedimentos de alta pelo condicionamento a uma decisão judicial perpetuam uma situação de institucionalização. Segundo Scisleski10, há um circuito de institucionalizações com a produção de certo perfil de crianças e adolescentes que, recorrentemente, estão nessa rede de internações. A essa conjuntura, acrescenta-se a ‘psiquiatrização’ de questões sociais, no caso de jovens que cometem atos infracionais; nesse contexto, conforme Vicentin et al.11, há, atualmente, uma composição de linhas de forças, em particular no Estado de São Paulo, que renovaram a noção de periculosidade, “que passa a adquirir conotações que facilitam a extensão e difusão do seu uso, cada vez mais subordinado às exigências de defesa social” (p. 161). Com efeito, é preciso compreender este cenário de internações.

Objetivos e método Esse artigo apresenta resultados parciais de pesquisa de perspectiva etnográfica que visa à compreensão dos motivos e da situação de internação de crianças e adolescentes em um equipamento que dispõe de 18 leitos psiquiátricos, localizado no Estado de São Paulo. A pesquisa obteve aprovação nos Comitês de Ética e Pesquisa pertinentes. Nesse estudo em particular, será apresentada uma caracterização das crianças e adolescentes internados em um período de dois meses (12/julho/2013 a 12/setembro/2013) e os motivos de internação. Para isso, foi feita a análise dos prontuários. O principal norteador metodológico da realização do estudo foi a abordagem interpretativa hermenêutica, na qual a compreensão e a crítica podem ser articuladas no processo interpretativo12. Na leitura dos dados, recorreu-se à hermenêutica para compreensão dos textos (prontuários), buscando tanto o que havia de comum entre eles, por meio de comparação, como, também, a singularidade de cada um. Por meio da dialética, estabeleceu-se uma atitude de crítica às questões, em uma maneira de interpretar os dados, considerados pela dialética como “fundamento da comunicação e das relações sociais historicamente dinâmicas, antagônicas e contraditórias entre classes, grupos e culturas”12 (p. 347). Para a análise, primeiramente foi feito um mapeamento das determinações fundamentais para se compreender o problema em questão, elegendo-se, no prontuário, os documentos: Folha de Rosto do Prontuário, Ficha de Admissão/Anamnese e Laudo para Autorização de Internação Hospitalar. Em um segundo momento, buscou-se, nesses textos, “o sentido, a lógica interna, as projeções e as interpretações”12 (p. 355). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Para tanto, foram estabelecidas, como Categorias Analíticas, as dimensões do processo de Reforma Psiquiátrica descritas por Amarante3, a saber: teórico-conceitual, jurídico-política, técnico-assistencial e sociocultural; e como Categorias Empíricas e Operacionais criadas a partir do material de campo: caracterização do sujeito, caracterização da internação (tipo, procedência, sujeitos envolvidos) e motivos relatados para a internação (queixa principal e duração, história, sintomas, condições que justificam a internação e diagnóstico médico). Por fim, os dados foram operacionalizados: realizou-se a ordenação, constituindo conjuntos e subconjuntos trabalhados; e, após a leitura transversal de cada subconjunto e da totalidade dos conjuntos, foram criados temas que foram analisados, a saber: o velho-novo personagem da internação em instituição de caráter asilar, as declaradas demandas atuais para internações em saúde mental, e as práticas asilares travestidas de atenção à saúde mental.

Mapeamento e caracterização das internações de crianças e adolescentes Durante o período do estudo, 28 crianças e/ou adolescentes estiveram internados na instituição. A internação é determinada por um médico psiquiatra de plantão, sendo desse profissional a responsabilidade de fazer os registros nos documentos estudados. Todos os sujeitos eram do sexo masculino, com idade entre dez e 17 anos, sendo 13 moradores da grande São Paulo, 14 de cidades do interior, e um de uma cidade do Estado de Minas Gerais. Das 28 internações, uma estava classificada como voluntária, 19 como involuntárias e oito como involuntáriojudiciais. Os responsáveis legais que acompanharam essas internações foram diversos: parentes, profissionais de casas abrigo e da Fundação Casa. Em relação à procedência, quatro sujeitos vieram encaminhados de Pronto-Socorro, dois de Hospitais Gerais, um de Casa Abrigo, um de Ambulatório Geral, dois de Secretárias de Saúde de diferentes Municípios, quatro de Prefeituras de diferentes Municípios, três de órgãos judiciais, e 11 de diferentes equipamentos de saúde mental, tais como Enfermaria Psiquiátrica em Hospital Geral, CAISM, Ambulatório de Saúde Mental, CAPS-II e CAPSi. Para 23 crianças e adolescentes, essa foi a primeira internação nesse serviço (os documentos não registram internações em outros serviços da rede), para um foi a segunda vez, para três foi a terceira vez, e para um foi a quarta vez. Vale destacar que um dos sujeitos, durante a coleta de dados, recebeu duas altas e teve outras duas reinternações; ou seja, ao final deste estudo, estava em sua quarta internação, sendo que três internações deram-se em um período de dois meses. O tempo de internação para os que já saíram da instituição variou entre 14 e 77 dias, e, ao término da coleta de dados, 15 crianças e/ou adolescentes ainda estavam internados, completando exatos cem dias de internação para um dos sujeitos. As informações relativas aos motivos de internação foram encontradas em dois documentos: Ficha de Admissão/Anamnese e Laudo para Autorização de Internação Hospitalar. A Ficha de Admissão/ Anamnese contém as seguintes informações: dados pessoais, queixa principal e duração, história atual da doença, antecedentes familiares, antecedentes pessoais, exame psíquico, exame clínico e diagnóstico médico (seguindo a referência do CID-10). Os itens referentes à queixa principal e duração, e história atual da doença são os que apresentam os dados que indicam o motivo pela procura do serviço. Importante destacar que os respondentes foram os responsáveis legais do sujeito ou os responsáveis pela internação – no caso de sujeitos advindos de instituições –, não havendo nenhum registro de informações obtidas diretamente dos sujeitos em vias de internação. O Laudo para Autorização de Internação Hospitalar contém as seguintes informações: dados pessoais, principais sinais e sintomas clínicos, condições que justificam a internação e diagnóstico médico (seguindo a referência do CID10), sendo os três últimos itens relevantes para este estudo. O Laudo para Autorização de Internação Hospitalar consultado foi exclusivamente o emitido pela instituição que é o cenário de estudo, por isso o diagnóstico médico é o mesmo nos dois documentos. Em relação ao item queixa principal e duração, ora são assinalados sinais clínicos, ora contém um relato sucinto da história que levou a criança ou o adolescente à internação, e ora não há informação alguma – situação de seis registros. Em todos os outros 22 registros, são apresentadas mais de uma queixa, sendo a mais referida a agressividade (hetero e auto) (Tabela 1).

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Expressão que indica a queixa declarada

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Tabela 1. Queixa principal declarada Quantidade de registros em que aparece a expressão

Agressividade (hetero e auto) Sintomas de alucinações e delírios Alterações do comportamento Agitação psicomotora Determinação judicial Dificuldade de tratamento em outros serviços Insônia Dependência química Isolacionismo Hipersensibilidade

15 6 4 5 4 2 2 1 1 1

Em relação à história atual da doença, nos 28 prontuários há uma sucessão de fatos sobre alterações no comportamento ou no cotidiano dos sujeitos, as quais o declarante relaciona com o processo de adoecimento. O registro descreve uma história da doença, em que ora são pontuadas situações vividas pela criança e/ou adolescente e seu entorno, e ora estão descritos sinais e sintomas clínicos. A referência a encaminhamentos de outros serviços e uso atual de medicação é feita em 16 prontuários. Também em 16 prontuários está destacada a percepção ou vivência do declarante sobre alguma situação sentida como agressiva, por vezes expressa conforme o declarante informou, e por vezes já como um sintoma/diagnóstico estabelecido – caso da expressão heteroagressividade. Em nove prontuários há menção à frequência na escola; também em nove há informações sobre o uso ou não uso de drogas; em cinco está assinalada passagem pela Fundação Casa ou realização de pequenos furtos; e em dois há a composição do núcleo familiar. Sobre os principais sinais e sintomas clínicos, os sintomas de uma nosografia psiquiátrica estão escritos nos 28 prontuários (Tabela 2).

Tabela 2. Sinais e sintomas clínicos declarados Expressão que indica os sinais e sintomas clínicos Agressividade (hetero e/ou auto) Distúrbios de comportamento e/ou conduta antissocial Delírio Agitação psicomotora Alucinações Uso de álcool e outras drogas Persecutoriedade Crítica prejudicada Ideias suicidas Hiperatividade

Quantidade de registros em que aparece a expressão 19 10 9 9 5 3 3 3 2 2

Outros sintomas aparecem, cada um, apenas uma vez, considerando o conjunto dos documentos, sendo descritos com as seguintes expressões: “apetite aumentado”; “recusa de medicação”; “isolacionismo”; “irritabilidade”; “impulsividade”; “depressividade”; “desorganização do pensamento”; “ritualizações sociais”; “desafiador”; “compulsivo”; e “pouca aderência social”. O diagnóstico de deficiência mental está registrado como sintoma em nove documentos; a “resistência a tratamento em outros serviços”, em cinco; o encaminhamento sob determinação judicial, em quatro; a expressão “de difícil controle”, em um; a proveniência de outros serviços, em dois; e há menção à “desagregação familiar” em dois. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Em relação às condições que justificam a internação, cinco registros não mencionam essa informação; nos registros de quatro crianças e/ou adolescentes está a expressão “as acima”, indicando que a justificativa para a internação são os principais sinais e sintomas clínicos. Os registros de dez crianças e/ou adolescentes apresentam mais de uma condição, e os de outras nove apresentam apenas uma condição, totalizando 19 registros em que está explícita a justificativa para a internação (Tabela 3).

Tabela 3. Condições declaradas que justificam a internação Expressão que indica as condições que justificam a internação Agressividade (auto e/ou hetero) Risco para si Risco para outros Risco de suicídio/risco à integralidade Risco de exposição social Incapacidade de autocuidado Não assumir o controle

Quantidade de registros em que aparece a expressão 8 7 5 2 2 1 1

Os prontuários de todas as crianças e/ou adolescentes continham diagnósticos de psiquiatria e/ ou neurologia, entre F00-F99, categoria dos denominados transtornos mentais e comportamentais. Em oito prontuários há uma composição de dois diagnósticos diferentes e em um há uma composição de três diagnósticos diferentes. Dos 28 sujeitos: um tinha diagnóstico em G40 (transtornos episódicos e paroxísticos); dois no agrupamento F00-F09 (transtornos mentais orgânicos, inclusive, os sintomáticos); três em F10-F19 (transtornos mentais ou comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas); quinze em F20-F29 (esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes), sendo o mais recorrente F29 (dez crianças e/ou adolescentes); um em F30-F39 (transtornos do humor); dez em F70-F79 (retardo mental); dois em F60-F69 (transtornos da personalidade e do comportamento adulto), e quatro em F90-F98 (transtornos do comportamento e transtornos emocionais que aparecem, habitualmente, durante a infância ou a adolescência).

O velho-novo personagem da internação em instituições de caráter asilar O número de crianças e/ou adolescentes com diagnósticos de deficiência mental, transtornos de personalidade e comportamento adulto (para um sujeito associado ao diagnóstico de deficiência mental), uso de substâncias psicoativas (sempre associado a algum outro diagnóstico), e transtornos do comportamento (para um sujeito associado ao diagnóstico de deficiência mental) é significativo. Especificamente em relação aos sujeitos com diagnóstico de deficiência mental, denominado pelo CID-10 de retardo mental: cinco foram encaminhados de serviços de saúde, dois de órgãos judiciais, um de uma Casa Abrigo, um de uma Secretaria de Saúde, e um de uma Prefeitura, sendo três internações involuntário-judiciais para a instituição e sete internações involuntárias (dessas, duas foram determinações judiciais para o município). Esse quadro pode indicar que as internações não estão relacionadas à atenção em um momento de crise, porque, além de o número de sujeitos com diagnósticos de deficiência mental e de transtorno de comportamento ser alto, é significativa a quantidade de internações por mandados judiciais. Assim, é provável a existência de outros motivos, tais como: fragilização de vínculos sociais e familiares, baixa cobertura da rede de serviços de saúde em determinadas cidades, relações de violência no território, entre outros. Tendo em vista as dimensões jurídico-política e sociocultural da Reforma Psiquiátrica, é preciso atentar-se ao perfil da população que vem sendo internada em instituições de saúde mental de caráter asilar, tal como aponta o estudo de Scisleski10. A institucionalização de crianças com deficiência mental é um dado já conhecido e alarmante4; e, considerando que as internações com esse diagnóstico, 38

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além dos de transtornos de personalidade ou de comportamento, remetem ao cenário de internações existentes antes da Reforma Psiquiátrica, é preciso considerar que não há mudanças significativas no que se refere ao perfil da população internada. Ainda, mesmo que se considere que todos os sujeitos internados com o diagnóstico de uso de substâncias psicoativas tinham, ao menos, um outro diagnóstico associado, essas internações são relevantes porque as internações compulsórias pelo uso abusivo de álcool e outras drogas configuram um cenário recente, em particular nos grandes centros urbanos. Tais internações não se justificam sob a perspectiva técnico-assistencial, configurando-se como “tratamentos normatizadores e outras práticas de subordinação e anulação do sujeito”13 (p. 592). Outro ponto importante refere-se ao fato de oito internações estarem classificadas como involuntário-judiciais, assinalando a existência de um mandado judicial para a instituição determinando a internação, que passa a ser compulsória. Ainda, o número de reinternações é significativo, já que seis das 28 crianças e/ou adolescentes já haviam sido internados nesse serviço anteriormente. A Lei 10.216/20012 prevê três modalidades de internação: voluntária (consentida pelo sujeito), involuntária (não consentida pelo sujeito e a pedido de terceiro) e compulsória (determinada pela justiça). Para qualquer modalidade é vedada a internação em instituição de caráter asilar, e esta só pode ocorrer quando autorizada por um profissional médico. Especificamente a compulsória é determinada, também, por um juiz e deve estar “de acordo com a legislação vigente”2 (p. 2), em referência ao Código Penal, o que significa que somente é cabível no caso de a pessoa com sofrimento psíquico ser contraventor da Lei. Ora, sendo assim, as oito internações involuntário-judiciais foram realizadas a partir de uma interpretação corrompida da Lei 10.216. Esses três elementos articulados – diagnóstico, modalidade de internação e número de reinternações – podem ser indicativos de um panorama que está se construindo. Antes mesmo da carreira moral16 que ocorre durante a internação, há uma carreira de internação: um caminho deflagrador da institucionalização, envolvendo um diagnóstico médico, muitas vezes associado a uma questão relacional, uma ação judicial, e múltiplas passagens pela instituição. Vasconcelos8 assinala que, na expectativa de uma implementação rápida dos CAPS-III, os leitos de atenção integral não foram priorizados, gerando um déficit assistencial na atenção à crise mental aguda. Esse problema intensifica-se pela utilização de leitos em serviços de caráter asilar. O personagem das internações é velho e novo: é aquele que, de algum modo, rompe com a ordem pública, recebe um diagnóstico médico e, por vezes, em virtude de uma relação com o sistema jurídico, é posto em reclusão.

As declaradas demandas atuais para internações em saúde mental A presença do termo agressividade (hetero e/ou auto) como o mais frequente na descrição dos três itens que indicam necessidade de internação (principais sinais e sintomas clínicos, queixa principal e duração, e condições que justificam a internação) é significativa. Consistindo-se em sintoma, queixa e justificativa para a internação, pode-se compreender o referido termo como uma explicação simplificada da multiplicidade de um processo, em uma profunda redução da complexidade do viver e das necessidades do sujeito. Basaglia14 assinala que o conflito apresentado pelo sujeito e traduzido como agressividade (hetero/ auto) dá-se em relação a uma norma, mas isto é objetivado no sujeito como pessoa doente. Ao individualizar a problemática, cria-se a culpabilização. Na contramão dessa simplificação, é preciso compreender a agressividade como uma expressão de uma forma de relação com outros sujeitos particulares e, nesse sentido, seria necessário apreender a diversidade de aspectos que produziram uma dada situação para entender de modo contextualizado o que significa a aludida relação de agressividade17. Esses aspectos envolvem a história de vida do sujeito, sua rede de relações, o território em que vive, os espaços que percorre, o que lhe é oferecido como possibilidade de vida e de expressão, entre outros. Segundo Basaglia FO15, instituições de caráter asilar trabalham com a tutela como expropriação dos corpos – situação em que há a defesa da sociedade em detrimento do tutelado, com prejuízo de um COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dos polos da relação. Ainda, nessa forma de tutela, está explícito certo modo de responder à exigência de garantir condições nas quais o doente/desviante, considerado de alguma forma perigoso, não possa prejudicar a si nem aos outros. Com efeito, é preciso compreender o termo agressividade em vista do estigma da periculosidade da pessoa com sofrimento psíquico. Ora, a periculosidade, conceito que tem suas bases na relação entre o saber psiquiátrico e a justiça criminal, estaria relacionada às possibilidades de maior ou menor risco de exposição social daquele sujeito nas rupturas com a ordem pública1,14,16. É em relação aos temas da “proteção do louco e da defesa da sociedade perante os excessos da loucura” que: as primeiras legislações fixam o quadro dos princípios, definindo tanto os cânones da chamada ‘periculosidade social’ – equivalente à definição de doença – quanto as finalidades e os modos de seu tratamento. De um lado, portanto, os critérios de reconhecimento de tudo aquilo que, invalidado como improdutivo, representam um perigo para a convivência social; de outro, as normas que justificam as razões dessa definição de periculosidade e planificam os modos de tratamento dela, com seus corolários de separação e controle.14 (p. 301)

As internações giram em torno do eixo agressividade/periculosidade, que aparece como demanda de internação, na medida em que a agressividade é a queixa principal mais frequente, o sintoma mais relatado, e a condição que justifica a internação. Ademais, por vezes, a condição que justifica a internação é colocada como sinônimo dos sintomas, quando está escrita no Laudo para Autorização de Internação Hospitalar a expressão ‘as acima’. Há um curto-circuito simplificador nesse sistema de internações, que não encontra saída porque são desconsideradas as outras dimensões da vida do sujeito. Com isso, a instituição cumpre seu mandato social para manutenção da ordem pública14. Tal relação entre o mandato social de instituições de recolhimento daqueles sujeitos que rompem com a ordem pública e a separação da experiência de adoecimento da existência complexa das pessoas é base da categoria da agressividade/periculosidade14. Esse mandato social fica evidente, também, quando as determinações judiciais são descritas como queixa em três registros e como sinais e sintomas clínicos em quatro registros (de fato, a instituição recebeu sete internações por mandados judiciais). Interessa recordar que o termo ‘distúrbio de comportamento’, mencionado como sinal e sintoma clínico, aparece em nove registros; ‘resistência a tratamento’, em quatro; e o que é denominado como um ‘sujeito de difícil controle’, em um. A complexidade dessa questão aponta para a afirmação de Amarante3 de que as dimensões do processo de Reforma Psiquiátrica estão sempre inter-relacionadas. É preciso uma transformação profunda nas dimensões jurídico-política, técnico-assistencial, sociocultural e teórico-conceitual para que esse tema possa ser compreendido, contextualizando a questão da agressividade em base jurídica, criando modos de cuidado em uma situação de crise, construindo outros olhares para o sofrimento psíquico e desenvolvendo estudos que possibilitem superar esse tema. Outra característica dos prontuários refere-se ao registro da impossibilidade das trocas sociais com esses sujeitos. Segundo Kinoshita17, as relações de troca em um universo social são realizadas a partir de um valor atribuído, para cada sujeito, no campo social, como pré-condição para intercâmbios; e o valor pressuposto de uma pessoa é a base de seu poder contratual, compreendendo “o conjunto de recursos, potencialidades (materiais, psíquicas, culturais e físicas) que um indivíduo possui para participar no jogo de trocas da trama social”17 (p. 72). Ao sujeito em sofrimento psíquico, é pressuposto um baixo ou nulo valor para tais trocas, com uma negatividade do poder contratual no sentido de sua não-existência: seus bens são suspeitos, suas mensagens são tidas como incompreensíveis, e seus afetos não estão conforme a norma vigente17. Esse pressuposto é reproduzido em instituições de caráter asilar, nas quais a separação da experiência de sofrimento psíquico do sujeito de sua complexidade do viver converte a própria doença na única positividade desse sujeito. No ato de internação, a mensagem emitida à sociedade é de que aquele sujeito não pode participar das trocas sociais – tanto que não há registro de escuta dele no ato de internação. A internação justifica-se pelo que é denominado de agressividade, risco para si, risco para outros e risco de exposição social, em uma avaliação médica e, por vezes, com o aval de um juiz. 40

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Não se trata de negar o sofrimento vivido pelo sujeito e seu entorno, mas, sim, de questionar a internação como uma resposta social que apenas reconhece o problema da desordem pública ao objetivar o sujeito em torno da dimensão da agressividade considerada como doença, separando-a da existência complexa das pessoas14,18; é preciso questionar essa decodificação da demanda pautada na objetivação do outro e enunciada por terceiros.

Práticas asilares travestidas de atenção à saúde mental Os lugares e suas práticas expressam modos de perceber e interagir com fenômenos e, nesse sentido, o paradigma asilar é uma forma de relação com o sofrimento psíquico14. Precisamente, é possível perceber que a instituição compreende como relevantes para reconhecer uma demanda de internação aspectos que apontam para uma profunda objetivação do outro. Segundo Dell’Acqua et al.19, quando a instituição não “está em condição de reconhecer o sujeito como uma entidade complexa, o sistema tende a reduções e simplificações” (p. 50). Essa simplificação é evidente nos prontuários, em razão do entendimento do sujeito a partir da doença, e da percepção da doença a partir da chave de leitura da periculosidade. Não se trata de negar a existência dos conflitos sociais, familiares, com a rede de serviços ou outros, mas, sim, de trabalhar as relações a partir do reconhecimento desses como expressão da relação com determinadas normas, escutando todos os envolvidos19. O próprio sofrimento precisa ser compreendido em virtude de constituir o componente mais importante durante a crise mental aguda e, também, conter em si possibilidades de mudança subordinadas às respostas oferecidas e construídas com o sujeito. Porém, frequentemente, a resposta à crise é um momento de: simplificação de uma relação onde, por um lado, o sujeito que está por mostrar-se já fez, progressivamente, uma simplificação e reduziu a um sintoma a complexidade da sua existência de sofrimento e, por outro lado o serviço, qualquer que seja este, equipou-se de modo especular para perceber e reconhecer – oferecendo-se como modelo de simplificação – o próprio sintoma.19 (p. 55)

Dentre os sinais e sintomas clínicos nos registros, estão: a alucinação e o delírio. Ora, o problema vivenciado por essas crianças e adolescentes não se refere apenas ao alucinar e ao delirar, mas a não se fazer compreender e não encontrar um lugar para compartilhar. Como já afirmado, os registros não indicam que as crianças e adolescentes foram escutados e acolhidos em seu sofrimento, sendo possível afirmar que 27 internações não foram contratadas com os sujeitos, ocasionando internações involuntárias e involuntário-judiciais. Para que a exclusão de um dos polos da relação não aconteça, é preciso que o profissional, na dimensão técnico-assistencial, entre em relação com o outro, compreendendo as dimensões da fala desse sujeito ao reconhecer o outro tão legítimo quanto ele mesmo. Nesse cenário, é possível a discordância, mas isso não pode configurar-se como exclusão do outro das relações humanas17,18. Vale ressaltar que, na construção cultural do sujeito com sofrimento psíquico em crise mental aguda, ele é percebido como alguém que deve ser protegido de si e dos outros – o que é explicito na justificativa de internação de que essa pessoa oferece risco para si mesma e para outros. Porém, isso constitui um paradoxo, pois, ao visar à proteção do sujeito e seu entorno, se opera um cerceamento físico, subjetivo e dos afetos, pela deslegitimação do diálogo no momento da crise, anulando esse sujeito nas relações. Justamente, o desafio da Reforma Psiquiátrica é construir um conjunto de retaguardas de condições materiais, subjetivas e sociais que tornem possível a comunicação a partir do conflito18. Para tanto, é preciso que o serviço entre em diálogo com as necessidades dos sujeitos e assuma a responsabilidade pelo cuidado integral – premissa que busca superar a lógica da seleção da demanda e da fragmentação dos serviços, significando uma nova forma ética de relação entre as pessoas, que se opera a partir da singularização do cuidado e das necessidades dos sujeitos1. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Conclusão O estudo aponta para a contradição contemporânea da Reforma Psiquiátrica na coexistência de diferentes lógicas de cuidado na atenção à crise: preconiza-se o acolhimento noturno, quando necessário, em CAPS-III e Hospitais Gerais, mas ainda acontecem internações em instituições de caráter asilar. A condição de crise corresponde a uma complexa situação existencial, e complexos devem ser os instrumentos e recursos para lidar com isto, abrangendo todas as dimensões da Reforma Psiquiátrica. Na atenção em saúde mental, é preciso construir estratégias e dispositivos que busquem resgatar, ao sujeito, seu lugar de protagonista nas ações, e criar uma cotidianidade nos serviços de saúde e rede que reinscreva o processo de adoecimento como parte integrante da vida.

Colaboradores Cláudia Pellegrini Braga trabalhou na concepção e redação do artigo. Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira contribuiu na análise e trabalhou na revisão crítica do manuscrito.

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Braga CP, D’Oliveira AFPL. La continuidad de las internaciones psiquiátricas de niños y adolescentes en el escenario de la Reforma Psiquiátrica Brasileña. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):33-44. En el escenario de la Reforma Psiquiátrica Brasileña está en construcción una política de salud mental específica para niños y adolescentes. No obstante, los estudios indican que todavía se realiza la internación de esa población en instituciones del tipo asilo. Como resultado parcial de una encuesta, identificamos durante un período de dos meses quiénes son los niños y adolescentes internados en un servicio que dispone de camas psiquiátricas y los motivos de tales internaciones. Analizamos las fichas de 28 sujetos a partir del abordaje de la Hermenéutica Dialéctica. Los resultados indicaron la continuidad de las internaciones en un perfil similar al de un momento anterior a la Reforma Psiquiátrica y que la principal razón para la internación gira alrededor de la agresividad/peligrosidad. Se concluye que, a pesar de la Reforma Psiquiátrica, las internaciones psiquiátricas todavía se realizan en instituciones con carácter de asilo.

Palabras clave: Salud mental. Internación. Desinstitucionalización.

Recebido em 01/04/14. Aprovado em 23/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0110

artigos

Considerações sobre o cuidado em álcool e outras drogas: uma clínica da desaprendizagem ­­Michele de Freitas Faria de Vasconcelos(a) Dagoberto de Oliveira Machado(b) Mairla Machado Protazio(c)

Vasconcelos MFF, Machado DO, Protazio MM. Comments about care in relation to alcohol and other drugs: a clinic of unlearning. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):45-55.

The comments are related to concerns that surround the topic of care in relation to alcohol and other drugs (AD), within the outlines of research and professional positions and interventions at some points of the public healthcare system of Aracaju, Sergipe, Brazil: in relation to mental health and, within this, Psychosocial Care Centers for Alcohol and other Drugs (CAPS AD); and in relation to a harm reduction project and its linkages with primary care. Through investing in non-asylum care relating to AD, is not the drug that is faced here, but themes, practices and concepts that tend to be naturalized in developing healthcare practices: body, territory, drug use/users, care/interventions regarding AD and networked care. An attempt was made to the care regarding AD that is being produced, thus possibly making room for (un)learning and expansion of life and body for users, workers, managers and the AD clinic itself.

Keywords: Alcohol and other drugs. Public health. Harm reduction. Clinic. Body.

As considerações desenvolvidas dizem de inquietações que circundam o tema da atenção em álcool e outras drogas (AD) pinçadas no traçado de nossas inserções/ intervenções de pesquisa e profissionais em alguns pontos da rede de saúde pública de Aracaju, Sergipe, Brasil: na saúde mental e, nela, no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD) e no projeto de redução de danos em suas articulações com a atenção básica. Apostando num cuidado antimanicomial em AD, enfrentamos, aqui, não a droga, mas temas, práticas e conceitos que tendemos a naturalizar no desenvolvimento de práticas de saúde: corpo, território, usos/ usuários de droga/atenção/intervenções em AD, cuidado em rede. A tentativa foi a de interrogar o cuidado em AD que temos produzido, abrindo com isso, quem sabe, espaço para (des)aprendizagens e ampliações da vida e do corpo de usuários/ as, trabalhadores/as, gestores/as e da própria clínica em AD?

Palavras-chave: Álcool e outras drogas. Saúde pública. Redução de danos. Clínica. Corpo.

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(a) Departamento de Educação, Universidade Federal de Sergipe. Campus Universitário Prof. Alberto Carvalho. Av. Vereador Olímpio Grande, s/nº. Itabaiana, SE, Brasil. 49500-000. michelevasconcelos@ hotmail.com (b) Colégio de Aplicação, Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, SE, Brasil. dagoesef@gmail.com (c) Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. mairla.protazio@ hotmail.com

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Inquietando-nos

Com este artigo, objetivamos publicizar nossas experiências de cuidado em álcool e outras drogas (AD), compartilhar o que viemos pensando no processo de feitura de uma clínica em AD localizada, contingencial, não generalizável, experimentada em suas especificidades. O gerúndio (pensando) não é por força do hábito, pois parece importar aquilo que vai acontecendo, os fazeres e saberes em AD que vão tomando um rosto neste momento histórico em que, como nenhum outro, tanto se fala sobre usos/usuários/atenção/intervenções em AD. No bojo desse falatório, o que temos construído? Como e a favor de (ou contra) que processos existenciais e de sociabilidade os modos de cuidado em AD produzidos têm funcionado? Quais são os efeitos políticos e éticos da atenção em AD que viemos tracejando? Que produtos sociais têm sido forjados por meio de nossas intervenções em AD? Que ethos, que modos de (co)existir temos experienciado por meio da (rede de) atenção em AD que temos tecido? Em uma entrevista realizada em 1983, concedida a Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault, versando sobre ética, assinala: “Minha opinião é que nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. [...] Acho que a escolha ético-política que devemos fazer a cada dia é determinar qual é o principal perigo”1 (p. 299-300). Perguntar, pois, como modo de tentar localizar e incidir sobre alguns perigos que cercam a feitura do corpo do cuidado em AD; perguntar para, nele, localizar as forças em tensão. Quais são os perigos inscritos nos modos de fazer e pensar um cuidado em AD nos dias de hoje? Um deles parece se localizar na encruzilhada entre: 1) por um lado, esse falatório sobre AD que se dá articulado a exigências biopolíticas de normalização2,3, num contexto neoliberal. Em tal cenário, engendram-se técnicas de condução das condutas, por meio das quais se pretende encerrar a produção da vida e dos corpos humanos numa dimensão empresarial, fabricando corpos e sujeitos empreendedores de si. Nesse registro, tende-se a produzir um cuidado em saúde traduzido em tutela/ inclusão/participação de condutas desviantes na economia social de mercado. Assim, esse falatório em AD tem trazido consigo posicionamentos que fazem recrudescer, a olhos nus, nossos tão caros desejos de produzir um cuidado em liberdade. 2) Por outro lado, temos avançado pouco na qualificação de um cuidado em AD que se quer antimanicomial. O próprio movimento antimanicomial parece ter cuidado pouco disso. Todos/as nós que pretendemos manter viva a ideia de uma clínica antimanicomial nos encontramos neste momento: o de interrogar o cuidado em AD que temos produzido, com a finalidade de não seguir repetindo o que está dado. Perguntar, pois, como modo de produzir (des)caminhos e (des) aprendizagens para o cuidado em AD. Em outras palavras, a tentativa foi partilhar inquietações como modo de forçar um pensamento sobre cuidado em AD. Pensamento-intervenção. Pensar como modo de fazer frente a desejos manicomiais de tutela de corpos de usuários/as, profissionais e da própria clínica em ad. Inquietação como desencaminhamento, como tateio de saídas para impasses contemporâneos envolvidos na produção desse cuidado. Inquietar-se com o (por meio do) pensamento, não para constatar, mas para dedilhar práticas ainda por vir.

Pela desnaturalização da tão falada epidemia de crack Na arena da saúde mental, a produção de um cuidado antimanicomial às pessoas com transtornos mentais graves, severos e persistentes é questão discutida abundantemente. Ultimamente, compondo o cenário de circo midiático em torno da dita ‘epidemia’ de crack, o tema da atenção a usuários/as de álcool e outras drogas também tem sido bastante abordado, o que tem gerado um campo de tensão no próprio interior das redes de saúde mental, isso para não falar das questões que as extravasam. Por meio da veiculação da ideia do uso do crack como epidemia, advoga-se: por um lado, a função de certos fazeres e saberes em encontrar e resolver o problema – extirpar a doença, nem que, para isso, erradiquem-se muitos/as hospedeiros/as –, sobretudo, saberes biomédicos, especialistas no diagnóstico e na terapêutica de epidemias e doenças; por outro, a função do Estado em exercer controle sobre a disseminação da epidemia. Atualiza-se, assim, a moderna articulação entre Estado e 46

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biomedicina4, no governo das condutas humanas, e ambos a favor do mercado: no seio da produção de vidas e corpos para o mercado financeiro, fabricou-se o povo da qualidade de vida e seus corpos rumo à saúde perfeita, livre de vícios. O ponto de fissura, o contraponto, o avesso da população da qualidade de vida parece incidir na figura do/a crackeiro/a, elemento deteriorado da sociedade, ‘nova figura da anormalidade’5. A fim de manter o povo saudável, livrando-lhe do risco de contaminações, usuários/as de crack precisam ter seus corpos expostos; precisam (re)habilitar suas condutas para a inclusão na economia social de mercado; precisam, enfim, participar do regime de sociabilidade do empreendedorismo de si, sendo governados e governando a si mesmos2,3, mediante infantilização, culpabilização e controle de seus vícios e corpos. Para que não haja o ingovernável, é necessário intervir nas condutas de usuários/as de AD mediante inclusão em políticas sociais, garantindo a eles/as, por meio do consumo de políticas públicas, um mínimo de possibilidade de adentrarem o jogo do mercado. Assim, corpos desnecessários de usuários/as de ad são administrados “sem tocar em nada do jogo econômico e deixando, por conseguinte, a sociedade se desenvolver como sociedade empresarial, instaurar-se-ia um certo número de mecanismos de intervenção”, sendo a assistência à saúde um deles3 (p. 285). Ao Estado, pede-se, então, a positividade de uma tarefa que promova: a saúde, a direção das condutas, a obediência, a sujeição à subjetividade empreendedora também de segmentos da população que se encontram fora do jogo. Na esteira dos investimentos na construção de uma política sobre drogas no Brasil, em especial de serviços substitutivos, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS AD), em articulação com Programas/Projetos de Redução de Danos (PRD)6, talvez seja, então, relevante perguntar: esses investimentos têm sido acompanhados por uma discussão e uma elaboração pormenorizadas a respeito das especificidades clínico-político-institucionais colocadas, quando se almeja desenhar uma atenção psicossocial a usuários/as de AD? Como operar esse cuidado? Que cuidado se almeja operar? Que redes de cuidado têm se produzido? No campo do cuidado em AD, que estratégias clínicas podem resistir ao desejo de tutela e formatação de corpos? Que estratégias precisamos fortalecer para, ao mesmo tempo, não perdermos as conquistas de um cuidado tecido em liberdade (antimanicomial), mas, também, para ampliar a resolutividade de tal cuidado?

“As patologias do ato”: (re)pensando nossas práticas de cuidado em AD Os/as cidadãos/ãs participantes, os indivíduos críticos, conhecedores de seus direitos e deveres, responsáveis pelos seus corpos e autovigilantes de suas condutas funcionam como “avatares que costumam povoar os territórios das pedagogias e terapêuticas contemporâneas”7 (p. 11). Tais pedagogias e terapêuticas fulguram no cenário da cultura/educação do risco e do perigo como modo de controle das condutas humanas3. Encontram-se, assim, ocupadas em formar sujeitos empresários de si, unidades-empresa que policiam suas condutas e a dos outros, na busca pela prevenção de riscos e preservação da qualidade de vida da população da qual fazem parte. Nesse cenário, uma ‘cultura da iniciativa’ impele os indivíduos a agir por conta própria e de forma volátil, distinguindo-se e sendo valorizados por seus atos individuais. De acordo com Gondar, “o imperativo do agir a qualquer preço aliado a uma precariedade de referências subjetivas são elementos fundamentais na produção do homem contemporâneo, caracterizando, igualmente suas patologias”8 (p. 84). Nesse cenário, configuram-se o que o autor denomina “patologias do ato”, em que “o indivíduo dificilmente se sente à altura da performance que lhe é exigida”8 (p. 84), adoecendo. Depressão e compulsão/adição são os dois extremos dessa patologia do empuxo ao ato. A essa altura, cabe perguntar: para além e aquém de condutas clínicas prescritivas e normalizadoras, o que podem nos fazer pensar e perceber tais “patologias do ato”, o que elas podem nos fazer (des)aprender de nossas práticas clínicas? Jô Gondar8 segue adiante, afirmando que, ainda que pela via do sofrimento, a depressão e a compulsão podem ser entendidas como um modo de resistência ao mandato de organização dos corpos pelo imperativo da busca pela saúde perfeita e pela vida ativa e feliz. Ou seja, depressão COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e compulsão parecem expressar algo que se furta à sujeição, dizendo de uma subjetivação, de uma tentativa de (re)composição de um território existencial, “repetição intensiva, lancinante afirmação existencial”9 (p. 41). Em outras palavras, depressão e compulsão parecem expressar uma tentativa de singularização: “uma tentativa de se furtar às injunções sociais, familiares e/ou políticas em sentido amplo, por meio de um vetor destrutivo que retorna sobre o próprio indivíduo”8 (p. 89). A esse respeito, destaque-se o seguinte fragmento de fala(d) retirado de Vasconcelos10 (p. 151): “O lado bom da droga é usar e mais nada. Não existe trabalho, família, nada: só é a droga. Ninguém quer saber de gaia, de amor, de nada, só a droga. Aí, quando você vai olhar, você tá no inferno”. Nesse sentido, pode-se dizer que “o corpo drogado” diz da tentativa de configuração de um corpo intensivo, que Deleuze e Guattari denominam “Corpo sem Órgãos”: “o CsO já está a caminho desde que o corpo cansou dos órgãos e quer licenciá-los, ou antes, os perde”11 (p. 10); É “um exercício, uma experimentação inevitável”11 (p. 9); “De todo modo você faz um, não pode desejar sem fazê-lo”11 (p. 9); “Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte”11:9. Ele “é um limite”11 (p. 9); é que “o desejo vai até aí: às vezes desejar seu próprio aniquilamento, às vezes desejar aquilo que tem o poder de aniquilar”11 (p. 28). Deleuze e Guattari11 iniciam (o belo e instigante) texto intitulado Como criar para si um corpo sem órgãos apresentando a “longa procissão” de corpos que falharam no empreendimento de fazer para si um CsO: corpo hipocondríaco, corpo paranoico, corpo drogado, corpo masoquista, corpos esvaziados ao invés de plenos, corpos que tangenciam perigos que esvaziam o corpo sem órgãos em vez de preenchê-lo, corpos derrotados no caminho. Os autores começam o texto dessa maneira para apontar uma prudência necessária: “prudência como dose, como regra imanente à experimentação” de um CsO que – substituindo-se a anamnese pelo esquecimento e a interpretação pela experimentação – pode ser “pleno de alegria, de êxtase, de dança”11 (p. 11). A seguir, queremos pinçar algumas pistas indicativas de possibilidades de vibrações da atenção em AD, as quais se tecem na articulação entre tais ideias e nossas experimentações clínicas junto a usuários/as de AD no terreno da atenção em saúde pública. Contudo, antes de prosseguir, cabe aqui uma prudência: tais pistas têm sua força na medida em que não sejam utilizadas como novas bulas de receitas, novas prescrições de condutas, agora clínicas. Múltiplos usos podem ser feitos das mesmas. Que as pistas possam, assim, auxiliar a multiplicar saídas para os impasses vividos nesses nossos tempos nas feituras clínicas em AD. Que, com as pistas, possamos ensaiar descaminhos, desaprendizagens de condutas clínicas, desnaturalizando todo um longo histórico de enlatadas aprendizagens acerca do cuidado em AD. Abrir, enfim, o corpo da clínica em ad para os acontecimentos da vida no socius, quando o que se quer é produzir um cuidado antimanicomial em AD, quando o que se quer é encontrar o CsO dessa clínica.

Pista 1: um cuidado em AD comprometido com a produção desejante Costuma-se alegar que, para o cuidado funcionar, ‘o/a usuário/a precisa desejar o tratamento’, que usuários/as de álcool e outras drogas tendem a não aderir aos serviços oferecidos pela falta de desejo, que a não-adesão e o não-desejo fazem parte de sua conduta (para não dizer da personalidade). Desconfiando-se dessas constatações, seguindo, para isso, as indicações de uma 48

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Os fragmentos de fala utilizados neste artigo referem-se a trechos registrados por meio de nosso processo de inserção no campo da saúde mental, como trabalhador/as e como pesquisador/as. Nesse traçado, na intenção de produzir uma política de narratividade sobre processos de trabalho em saúde mental, expressões, sensações, cenas e falas foram registradas, sobretudo, por meio da produção de diários de campo. Mas, também, foram realizadas entrevistas individuais e grupos focais com trabalhadores/ as e usuários/as. Para esses dois tipos de materiais, Termos de Consentimento Esclarecido foram elaborados e assinados pelos participantes.

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trabalhadora de CAPS, quando pontua que “o serviço é conformado de um jeito que parece que entrando pela porta você já está em tratamento. Não importa muito o que foi fazer lá, ir ao CAPS já é o tratamento”11 (p. 113), parece importante perguntar: por que, em vez de, simplesmente, afirmar que usuários/as AD têm dificuldade, não desejam aderir aos cuidados prestados e às atividades ofertadas, não se pode problematizar a precariedade desinteressante das ofertas de cuidado disponibilizadas, não se pode pensar em oxigenar atividades tediosas e prescritivas, na possibilidade de desfazer moldes institucionais, ‘grades’ de ofertas, e empreender um dar vida coletivo, atingindo o cerne de serviços assistenciais em suas rotinas automatizadas? Queremos apontar a necessidade de “descolar a esfera desejante de uma leitura estrutural do sujeito”8 (p. 88) e definir o desejo como “processo coletivo de produção”11 (p. 15). Por meio da habitação de um território coletivo, tentar descolar o desejo da dimensão autodestrutiva/suicidária em que os/as usuários/as tendem a se encontrar na compulsão. Nesse mesmo sentido, Guattari assinala: Existe uma escolha ética em favor da riqueza do possível [...]. Uma escolha da processualidade, da irreversibilidade e da re-singularização. Esse redesdobramento pode se operar em pequena escala, de modo completamente cerceado, pobre [...], pode se anular no álcool, na droga, na televisão, na cotidianeidade sem horizonte. Mas pode também tomar de empréstimo outros procedimentos, mais coletivos.9 (p. 42)

Eis a função política de uma clínica que se quer antimanicomial em AD: comprometer-se, não com o regramento das condutas humanas, não com seu confinamento às práticas em voga, mas, sim, com a produção desejante, a qual é sempre coletiva. Está-se falando, pois, da composição de processos de subjetivação, da produção de outras formas de vida, espreitando fagulhas desejantes entre o moribundo e o embrionário, rastreando errâncias do desejo, “subjetividades nascentes”9 ali onde o empreendimento tende a ser suicidário. Está-se, falando, pois, da clínica como “uma experiência do limite”12 (p. 13). É nesse limite entre o moribundo e o embrionário, entre vida e morte, que essa clínica quer habitar.

Pista 2: um cuidado em AD comprometido com o alargamento de territórios existenciais Vale dizer que o estreitamento do território subjetivo parece ser o maior dano a que estão submetidos os indivíduos acometidos por compulsão: “a subjetividade parece sufocar pelo movimento reiterado restrito ao elo sujeito/droga”13 (p. 149). O empreendimento clínico pode se configurar, então, como um movimento de abrir o corpo a um máximo de conexões14, buscar “novas conexões nessa geografia subjetiva”13 (p. 149). A finalidade é, então, a de traçar mapas, interferir, produzir deslocamentos, seguir trajetos geográficos, sociais, psíquicos. Ofertar e produzir novos agenciamentos, traçar linhas de fuga do/no território”13 (p. 150). O objetivo parece ser o de pensar-experimentar aberturas, saídas, estratégias clínicas que possam transformar-se num “desvio que consiste em criar uma experimentação da vida ali onde o empreendimento é mortífero”15 (p. 82). Eis a função de uma clínica que se quer ampliada: ampliar as conexões, as relações, o território existencial; contagiar, produzir novas formas de vida, criar redes de vinculação, alianças afetivas que façam aumentar a potência de vida de profissionais clínicos usualmente restringidos a peritos responsáveis pela condução de corpos rumo à ‘boa’ conduta, e de usuários/as restringidos a doentes individualizados, infantilizados, demonizados e segregados. A esse respeito, aponta Lancetti: O conceito de ampliação da vida é [...] vital para a sustentação da posição de terapeutas de casos-limites ou de casos quase intratáveis. Ele é vital para a elaboração de territórios existenciais inéditos, ancorados na construção do comum e é vital também porque nos permite fugir da posição de derrota e impotência. Esse é o seu encanto.15 (p. 85)

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Nessa perspectiva de ampliação do cuidado em AD, a vida e o corpo – inclusive a vida e o corpo da clínica – podem se abrir a novos encontros. Sendo assim, a pista que aqui se configura é de um cuidado em AD que possibilite uma abertura a um cuidado ampliado, garantido pelo acesso a serviços de saúde que não se faça pela reabilitação de condutas a um quadro modelizante pré-estruturado, mas que se teça radicalizando a ideia de inclusão social: incluir, não pela produção de meios, inclusive clínicos, para adaptação de condutas aos valores de uma sociedade dada. Incluir, sim, pela maquinação de meios, inclusive clínicos, para desnaturalizar modos de vidas dados pela encarnação de outras subjetividades e sociabilidades que não as prescritas por entre Estado e mercado. A experiência dessa clínica é de margem, de habitação de espaços fronteiriços entre os pontos da rede de saúde, entre essa rede e outras instâncias, como a segurança pública, a assistência social, o judiciário, entre o cuidado produzido e a cidade. Pensar, então, em alargamento de territórios existenciais no campo da saúde e, sobretudo, no cuidado em AD nos leva a considerar uma rede acêntrica de vínculos, afetos, articulações e intervenções necessárias. Nesse sentido, estamos longe de considerar o cuidado em AD como somente responsabilidade do campo (território) da saúde pública, mais restritivo que isso, como somente uma questão de saúde mental. As articulações e tensões entre equipes de redução de danos, de atenção básica e de CAPS AD deixam rastros que ajudam a pensar a composição dessa pista: o conceito de território com o qual se tende a trabalhar no SUS e, com ele, a ideia de cadastro e adstrição, parece pedir por modulações. Quando nos deparamos com usuários/as de AD vivendo em situação de rua e sem carteira de identidade, borra-se a lógica da territorialização do cuidado com a qual o SUS, de modo geral, trabalha; borramento, muitas vezes, traduzido em desassistência. Em outros termos, sem moradia fixa, sem carteira de identidade, seguir os mapas-subjetividade desses usuários/as, assisti-los, pede pela concepção de território móvel. Ou seja, que o cuidado territorializado seja produzido em outros pontos de atenção que não só os espaços insulares dos CAPS AD, como, também, não apenas se trate de um cuidado institucionalizado (e institucionalizando) em serviços públicos, mas, sim, de um cuidado produzido na rua, na cidade, nas cenas da droga e seus usos, um cuidado que solicite seguir o cotidiano das pessoas e não só fazê-las aderir ao cotidiano dos serviços de saúde. Um cuidado que convide não apenas profissionais a participarem de sua tessitura, mas usuários/as, sua família, seus/suas amigos/as, sua comunidade, um cuidado aberto à cidade e ao socius. Fazer clínica, então: 1) desfocando dos protocolos de tratamento, que, mesmo importantes, são generalizantes, não podendo funcionar como guias exclusivos de nossas práticas clínicas, quando o que se quer é habitar um território existencial singular; 2) substituindo as intervenções moralizantes de um cuidado que pretende governar, inscrevendo condutas em suas peles, pela experimentação, pela relação, pelo encontro, pelo vínculo, pela abertura do corpo para outras peripécias, para outras formas de vida.

Pista 3: de um cuidado centrado na doença para um cuidado que almeja ampliar a vida A essa altura, cabe uma pergunta: não seria um equívoco persistir numa montagem clínica comprometida com o retorno do indivíduo a um estado anterior à compulsão, tido como normal? Não seria um equívoco pensar que a força da prática clínica residiria em devolver o indivíduo para as condutas, o território, o ambiente, as relações familiares e sociais em que se produziu sua sujeição e seu adoecimento? Geralmente, é assim que começamos a desenvolver projetos terapêuticos comprometidos em “reabilitar” e “incluir”: voltar para família, voltar para o trabalho, voltar para o cotidiano, enfim, voltar para a sociedade, quando a radicalidade da desinstitucionalização parece indicar o contrário dessa direção, na medida em que a entendemos como um movimento de transvaloração que aponta para modificações substanciais em nossa tábua de valores; para uma transformação radical nos âmbitos epistemológico, teórico, cultural, jurídico e da ação cotidiana16,17. Dessa forma, uma clínica engajada em desinstitucionalizar não diz respeito “simplesmente a uma remodelagem da subjetividade [...], tal como preexistia” à compulsão. Está-se falando, ao contrário, da experimentação de uma prática clínica comprometida com “uma produção sui generis”9 (p. 17). Uma 50

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clínica artesanal preocupada com a “constituição de complexos de subjetivação [...] que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se re-singularizar”9 (p. 17): produzir trabalho, produzir relações afetivas e sociais, produzir vida no cotidiano em vez de reproduzir condutas prescritas. E assim, em vez de prosseguirmos falando em resgate de laços sociais e familiares, por que não se falar de invenção de novas relações, inclusive com os mesmos membros familiares? Por que não considerar as novas relações feitas ‘na rua’, não apenas, não todas e não em todos os momentos, como sugadoras de vida, mas potencializadoras de vida? Por que não se falar da possibilidade de composição de relações menos automatizadas e individualizantes com o trabalho? Dessa maneira, no lugar de uma clínica centrada na doença como problema a ser extirpado, no lugar do compulsivo, do alcoolista, do fumante, do drogadito, “figuras fechadas sobre si mesmas, tem-se um território, uma paisagem, enfim toda uma vida afirmada nas conexões aí realizadas”13 (p. 149). Uma clínica que se preocupa em mapear as conexões institucionalmente formalizadas com família, escola, trabalho, bem como conexões de matilha, tais como laços de amizade, paixões, sensibilidades, afetações. Uma clínica preocupada, enfim, em rastrear mapas-subjetividade em suas movências, contribuir para que os territórios sofram alterações em seus relevos. A finalidade clínica é, então, pensar-experimentar aberturas, saídas, estratégias que possam transformar-se num “desvio que consiste em criar uma experimentação da vida ali onde o empreendimento é mortífero”15 (p. 82). O cuidado a usuários/as AD parece precisar se comprometer com a construção de vínculo sem focar na finalidade de retirar seus vícios de cena, mas, sim, trabalhando com eles, entendendo a relação estabelecida entre sujeito-compulsão. Como diria Clarice Lispector18 (p.165), “não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de viver qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. Produzir um cuidado, fazer clínica, entendendo que a droga compõe um território subjetivo, tem uma função singular nessa geografia. Eis a função ética de uma clínica que se quer ampliada: descentrar-se da doença, desfocar-se da droga como “o” problema a ser extirpado, para comprometer-se com a constituição de outros processos de subjetivação, com a fabricação de outras formas de vida, e de vida em sociedade. Pista 4: um cuidado que não quer resgatar uma condição anterior cidadã, mas produzir novos encontros e exercitar cidadania Profissionais e usuários/as engajados/as na produção do cuidado em AD tendem a subsumir o objetivo desse processo à recuperação de uma dada cidadania, mediante adaptação ao ‘mundo em que vivemos’, reinserção na família e no mundo do trabalho precarizado e escasso, sem questionamentos. A esse respeito, destaque-se o seguinte fragmento de fala: Mas você vai resgatar o quê? Você já teve isso mesmo? Você vai resgatar o que você nunca teve? Que cidadania é essa? É algo que você teve ou que as pessoas falam tanto que você acredita que perdeu? Para alguns usuários voltar a ser homem é voltar a trabalhar, a ter um convívio com a família, ficar com meninas, ter relações sexuais que não estava tendo [...] Ou a comunidade em torno dele voltar a olhar ele como cidadão. Devolver, resgatar o quê? O que os usuários, cada um entende por cidadania? O slogan carteira de trabalho, salário mínimo, voto, certidão de nascimento, sou cidadão. Ser cidadão é só isso? Você existe, então você é cidadão, mas o que você quer? Qual o seu plano de vida? Eu quero estar vivo, mas estar vivo como? Estar vivo é muito pouco.10 (p. 142)

A lógica em AD operada pela rede de saúde pública tende a reduzir cuidado à vinculação do/a usuário/a a um CAPS AD, almejando, por meio de tal vinculação, o retorno ao/à cidadão/ã ‘de bem’ que um dia o fora, cuidador/a de si mesmo/a, trabalhador/a e consumidor/a inserido/a na sociedade. Tende-se, enfim, por meio do cuidado, a visar ao resgate da saúde e da cidadania. Assim, nos CAPS AD, sobrevive-se. Mas é só isso? Tem que ser só isso? COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Espreitando o cotidiano dos serviços CAPS AD, acontecem práticas de liberdade e de cidadania, sem que esses termos funcionem, necessariamente, para capturar vidas. Espreitando ali onde o poder se exerce sob esses nomes (liberdade e cidadania), mas, também, o do saber, o da técnica, o da objetividade, corpos parecem se abrir a outras experimentações: em vez de uma “cidadania da sujeição” – a partir da qual se produz uma ‘autonomia regulada’19, em que a garantia de direitos se faz acoplada ao controle das condutas; uma cidadania que requer (auto)policiamento das condutas – ensaia-se uma cidadania que brota imanente a processos singulares, num movimento associado às práticas cotidianas; a um ir dando forma à vida, às nossas vidas. Cabe aqui assinalar algumas cenas observadas em CAPS AD, na medida em que parecem dizer da experimentação dessa ‘estranha’ produção de cidadania: 1) Em uma assembleia com usuários/as, inicia-se com uma atividade corporal embalada ao som de Bezerra da Silva20 – “vou apertar, mas não vou acender agora”. O grande foco da discussão do dia era o enfrentamento de situações recorrentes de violência dentro do serviço. Na tentativa de ouvir muitas vozes, em grupos menores, profissionais e usuários/as produzem, juntos/as, estratégias de enfrentamento, registram-nas, e tais estratégias construídas coletivamente passam a funcionar como norteadores de abordagem a situações de violência no serviço. 2) Numa oficina para desenvolver uma cartilha de redução de danos junto com usuários, estes falam que reduzir danos, para eles, seria: quando embriagado, não dormir na mesma cama que a companheira, pois corre o risco de urinar na cama, e essa situação é embaraçosa; algum amigo menos embriagado acompanhá-lo para casa, carregando sua bicicleta, pois são comuns aterrissagens forçadas, caírem, inclusive em bueiros. Alguns mostram cicatrizes e machucados recentes, sobretudo na face. 3) Em apresentações do coral do CAPS AD em pontos da cidade, observam-se gestos corporais prenhes de vida: um corpo-percussão a tocar como nos tempos em que participava do primeiro trio elétrico da cidade, olhos brilhantes, sorrisos ‘de verdade’, vozes entoando canções que gostam. “As pessoas lá fora vê a gente com outros olhos. Porque eles não vê mais a gente como uns drogados, como uns alcoolista”10 (p. 147). Estamos, pois, apostando em práticas de cuidado por meio das quais se exercite um direito produzido pelo exercício coletivo em prol de uma justa saúde, e não de uma saúde justa21, conforme as significações dominantes; de um direito que não diga de rostos e condutas humanas (saudáveis) ideais, mas de rostos multiformes e singulares, vozes múltiplas e polifônicas, que ecoam sentidos heterogêneos, produzindo cidadania por meio da abertura para novas produções de subjetividades e de sociabilidades tanto para usuários/as, familiares, trabalhadores/as, gestores/as de saúde e comunidade. Mas uma comunidade que não se trata de um conjunto homogêneo constituído por apagamento e nivelamento: comunidade de iguais a serem todos incluídos. Ao contrário, trata-se de uma comuna tecida por um movimento de composição entre diferentes modos de viver e conviver. Tal saúde, tal direito e tal comunidade só podem se produzir “na forma de questões, que de preferência fazem calar as respostas”21 (p. 53). Temos, sim, que produzir, no conjunto de nossas ações, zonas de contato, de tensão e de contágio entre as políticas públicas em AD e entre estas e a vida nas cidades, ampliando, quem sabe assim, nossas possibilidades de efetivamente produzir um direito à saúde e um cuidado em AD nos termos aqui ensaiados. Pista 5: um cuidado em AD que se tece em rede, conectando serviços, sujeitos e coletivos Os CAPS tendem a possuir porta de entrada, mas, muitas vezes, não possuem porta de saída. No que se refere aos pontos de estrangulação da rede de saúde mental, é importante dizer que a falta de conexão se dá dentro mesmo da própria rede de saúde mental e da saúde de modo mais geral. Tal estrangulamento é produzido, também, pela ausência de articulação do sistema de saúde com outras instâncias, como educação, justiça, escola, trabalho, assistência social etc. Como modo de sanar esse problema, tendemos a achar que cuidado em rede é aquele que se articula entre serviços de uma dada região adstrita, e, assim, realizados os devidos encaminhamentos, estamos ‘seguros’ para afirmar que ‘a rede está funcionando’. Dessa noção de rede, destacamos uma experiência. 52

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Machado22 intitula de “diários de navegação/ cadernos de formação” registros produzidos no processo de trabalho, que dizem, justamente, de “um processo de trabalho que se fez pesquisa”22 (p. 49), bem como da indissociabilidade entre trabalho e formação.

(e)

artigos

Em conversa com profissional de CAPS AD sobre um usuário acompanhado em conjunto com a equipe da Redução de Danos, dialoga-se sobre seu retorno, após dias sem frequentar o serviço, com feridas pelo corpo, oriundas de pancadas e quedas. Curativos foram feitos, mas o usuário queixa-se de dor. Nenhuma medicação foi prescrita porque o serviço está sem médico clínico geral. Já disse para ele ir ao posto, mas ele diz que não vai porque não gosta, não tem paciência de esperar. – E se alguém acompanhá-lo? For lá no posto daí mesmo do serviço junto com ele? Talvez o encoraje e a impaciência diminua... – Aí não dá não pra ir. No posto de saúde tem que marcar consulta e ele mesmo é que tem que ir. Responsabilização, né? No CAPS é uma coisa, no posto é outra. Aí isso aí não dá... (Fragmento de fala retirado de caderno de formação(e).

Queremos aqui pôr em questão, justamente, uma certa lógica de cuidado em rede, traçando, assim, a quinta pista. Parece-nos que o entendimento de rede no exemplo acima se dá por uma articulação, mesmo que rasteira, entre um conjunto de serviços e equipamentos de saúde em um dado território. Mas será só isso? Ou poderíamos pensar um outro percurso para essa mesma história, ampliando sua experimentação em rede? Restritos à concepção acima, perdemos a chance de fazer com que uma rede de cuidado viva e móvel possa ser tecida, aquecida e vivenciada, não só pelos/as usuários/as, mas, também, pelos/as trabalhadores/as, ampliando sua capacidade de análise, intervenção, oferta, tecendo redes acêntricas e desburocratizadas, em que se articulam diferentes serviços e, sobretudo, diferentes sujeitos e coletivos, garantindo-se, assim, uma efetiva abertura dos CAPS para a cidade. Se estamos complexificando a ideia de cuidado pelo entendimento de uma produção de saúde que se tece articulada com processos sociais, questões subjetivas, existenciais e territoriais, tal ideia pede, também, pela complexificação da noção de rede, acentralidade e conectividade. O cuidado em rede, então, seria aquele que se articula para além das fronteiras de um serviço, ou, mesmo, para além das fronteiras da rede de saúde institucionalizada, com um olhar para um território móvel que também nos olha, ampliando a comunicação entre profissionais e os/as próprios/as usuários/as, no sentido de produção de territórios de habitação comuns, não pela partilha de consensos e de medos, mas pelo agenciamento coletivo, liga entre estado de coisas, enunciados e corpos, articulados por limites móveis e sempre deslocados. Em outros termos, fazer redes e produzir comum, entendendo-o como “um reservatório de singularidades em variação contínua”23 (p. 30). Assim, fazer rede envolveria também ampliar a capacidade de escuta, escutar com todo o corpo, levando-se em consideração diferentes olhares sobre a realidade, possibilitando a criação de territórios de cuidado em saúde, inclusive ali onde não existem aparatos institucionais para tanto.

Por outras formas de fazer e pensar cuidado em AD Por fim, insistimos em perguntar: que montagens clínico-institucionais podem fazer frente ao movimento de anestesiamento como modo de controle do corpo e da vida? Em última análise, outras formas de pensar, perceber e experimentar saúde e atenção à saúde são possíveis, outras práticas de cuidado em AD são possíveis para expandir formas coletivizadas de afirmação da vida, um verdadeiro contraveneno para imagens de simetria e regramento corporais que tendem a ser COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Considerações sobre o cuidado em álcool ...

veiculadas pelas concepções de saúde perfeita, vida ativa, cultura do risco e do empreendedorismo de si. Todavia, vale dizer, não se trata da afirmação de qualquer vida, sobretudo, daquela vida formatada pelo governo das condutas, ensimesmada, apequenada; tampouco da vida moribunda de corpos aniquilados pela compulsão, pelo uso abusivo e prejudicial de álcool e outras drogas. Trata-se, sim, da afirmação da vida e da saúde de todos/as e qualquer um/a de nós, da afirmação de uma vida qualquer, da potência de vidas que insistem em singularizar, mesmo ali onde tudo parecia nada restar, incluindo-se aí a potência da vida de uma clínica que, dessa forma, se politiza, se (re)encanta. Uma clínica “que faz da insegurança a sua força; do risco de morrer o seu alimento. Por isso me parece imagem justa para quem vive e canta o mau tempo”24. E, assim, almejamos seguir interrogando o cuidado em AD, no sentido de desnaturalizá-lo, vitalizando-o.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P, organizadores. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. p. 273-95. 2 Foucault M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes; 2008. 3 Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008. 4 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2001. 5 Duarte A. Foucault e as novas figuras da biopolítica. In: Rago M, Veiga-Neto A, organizadores. Para uma vida não-facista. Belo Horizonte: Autêntica; 2009. p. 35-50. 6 Ministério da Saúde. A política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília (DF): MS; 2003. 7 Corazza S, Silva TT, organizadores. Manifesto por um pensamento da diferença na educação: composições. Belo Horizonte: Autêntica; 2003. p. 9-18. 8 Gondar J. A sociedade de controle e as novas formas de sofrimento. In: Arán M, organizador. Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2003. p. 81-90. 9 Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34; 2000. 10 Vasconcelos M. A infâmia de Quincas: (re)existências de corpos em tempos de biopolítica [tese]. Porto Alegre (RS): Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2013. 11 Deleuze G, Guattari F. 28 de novembro de 1947: como criar para si um corpo sem órgãos. In: Deleuze G, Guattari F, organizadores. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia Rio de Janeiro: Ed. 34; 1996. . v. 3, p. 9-32. 12 Passos E, Benevides R. Prefácio. In: Araújo F, organizador. Um passeio esquizo pelo acompanhamento terapêutico: dos especialismos à política da amizade. Niterói: Editoração Eletrônica; 2006. p. 13-4. 54

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Vasconcelos MFF, Machado DO, Protazio MM

artigos

13 Tedesco S, Souza T. Territórios da clínica: redução de danos e os novos percursos éticos para a clínica das drogas. In: Carvalho S, Barros M, Ferigato S, organizadores. Conexões: Saúde Coletiva e políticas da subjetividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2009. p. 141-56. 14 Escóssia L. O coletivo como plano de criação na saúde pública. Interface (Botucatu). 2009; 13 Supl. 1:689-94. 15 Lancetti A. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec; 2006. 16 Paulon S. A desinstitucionalização como transvaloração: apontamentos para uma terapêutica ao niilismo. Athenea Digital. 2006; (10):121-36. 17 Rodrigues H. Formação ‘Psi’: reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, desinstitucionalização. In: Mourão J, organizador. Clínica e Política 2: subjetividade, direitos humanos e invenção de práticas clínicas. Rio de Janeiro: Abaquar: Grupo Tortura Nunca Mais; 2009. p. 201-6. 18 Lispector C. Correspondências: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco; 2002. 19 Carvalho S R. Reflexões sobre o tema da cidadania e a produção de subjetividade no SUS. In: Carvalho S, Barros M, Ferigato S, organizadores. Conexões: Saúde Coletiva e políticas da subjetividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2009. p. 23-41. 20 Silva B. Malandragem dá um tempo [música]. In: Alô Malandragem, maloca o flagrante [cd]. Rio de Janeiro; 1986. 21 Deleuze G. Conversações (1972-1990). São Paulo: Ed. 34; 1992. (Coleção Trans) 22 Machado D. Movimentos da educação física: por uma ética dos corpos [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2011. 23 Pelbart P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras; 2003. 24 Bethânia M. Grãos de mar [música]. Arantes M, Cesar C, compositores. São Paulo: Biscoito Fino; 2007.

Vasconcelos MFF, Machado DO, Protazio MM. Consideraciones sobre el cuidado con el alcohol y otras drogas: una clínica de desaprendizaje. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):45-55. Las consideraciones hablan sobre inquietudes que circundan el tema de la atención en el alcohol y otras drogas AD obtenidas en el trazado de nuestras inserciones/intervenciones de investigación y profesionales en algunos puntos de la red de salud pública de Aracaju, Sergipe, Brazil: la salud mental y en ella el CAPS AD y el proyecto de reducción de daños en sus articulaciones con la atención básica. Apostando por un cuidado anti-manicomio en AD, enfrentamos aquí no la droga, sino temas, prácticas y conceptos que tendemos a naturalizar en el desarrollo de prácticas de salud: cuerpo, territorio, usos/usuarios de drogas/ atención/ intervenciones en AD, cuidado en red. El intento fue interrogar el cuidado en AD que hemos producido, abriendo así, un espacio para (des)aprendizajes y ampliaciones de la vida y del cuerpo de usuarios/as, trabajadores/as, gestores/as y de la propia clínica en AD.

Palabras clave: Alcohol y otras drogas. Salud pública. Reducción de daños. Clínica. Cuerpo. Recebido em 13/03/14. Aprovado em 05/07/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0089

artigos

­­­Os jovens homossexuais masculinos e sua saúde: uma revisão sistemática

Rosane Berlinski Brito e Cunha(a) Romeu Gomes(b)

Brito e Cunha RB, Gomes R. Young male homosexuals and their health: a systematic review. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):57-70.

This review aimed to analyze the academic literature with a sociocultural approach regarding the relationship between topics of male homosexuality, young men and health. It was based on thematic content analysis on 37 articles published between 2004 and 2013 that were selected from the Medline and Lilacs databases. The scarcity of literature on the sociocultural perspective showed that there were obstacles and challenges relating to health promotion, ranging from the quality of information to unconscious symbolic values​​and how proposals from healthcare managers are put into effect. It was concluded that heterosexual hegemony is present in the unconscious structures of the construct of homosexuality, thereby contributing towards perpetuation of the heteronormative habitus. Studies valuing the meeting point of technical knowledge with the knowledge that each individual produces, relating to personal and cultural values​​, may serve as a basis for deepening this discussion.

Com o objetivo de analisar a literatura acadêmica de abordagem sociocultural acerca da relação entre os temas homossexualidade masculina, homem jovem e saúde, realizou-se uma revisão baseada na análise de conteúdo temática de 37 artigos selecionados, nas bases de dados Medline e Lilacs, entre 2004 e 2013. A escassez de literatura na perspectiva sociocultural apontou para obstáculos e desafios, relacionados à promoção de saúde, que vão desde a qualidade da informação, passando por valores simbólicos inconscientes, até a efetivação de propostas de gestores de saúde. Concluiu-se que a hegemonia heterossexual encontra-se presente nas estruturas inconscientes da construção da homossexualidade, contribuindo para a perpetuação do habitus heteronormativo. Estudos que valorizam o encontro do saber técnico com o conhecimento que cada um produz, referido a seus valores pessoais e culturais, podem servir de subsídio para o maior aprofundamento dessa discussão.

Keywords: Male homosexuality. Sexual behavior. Attitude to health. Attitude of healthcare personnel. Unprotected sex.

Palavras-chave: Homossexualidade masculina. Comportamento sexual. Atitude frente à saúde. Atitude do pessoal de saúde. Sexo sem proteção.

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Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa, 716, Serviço de Psicologia Médica, Flamengo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22250-020. rosanebbc@ yahoo.com.br; romeugo@gmail.com (a,b)

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Os jovens homossexuais masculinos e sua saúde: ...

­Introdução Neste estudo, entende-se a homossexualidade masculina como “ter atração ou relação sexual com outros homens” (http//:decs.bvs.br). Bourdieu1, ao estudar a homossexualidade masculina e feminina, utilizou os termos gay e lésbica. Sua análise focalizou o movimento social que utilizava tais expressões. Assim mesmo, observou que tanto a homossexualidade quanto as denominações do “movimento” traziam dificuldades de definição. Segundo ele, o que levar em conta nas definições? Práticas sexuais, frequência a certos lugares ou estilo de vida? A presente discussão – por se ancorar nas bases que integram a Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) – adotou a definição do descritor mencionado por ser este o que mais se aproximava aos propósitos do estudo. Entretanto, foi apenas um ponto de partida para analisar as questões de saúde de jovens homossexuais masculinos. Ainda que os estudos acerca da homossexualidade masculina, na área da saúde, tenham se multiplicado após o advento da aids2, permanece a necessidade de se aprofundar a discussão acerca de questões consideradas fundamentais para promoção da saúde dos homens que se identificam como homossexuais. Essas questões relacionam-se, sobretudo, a: demandas desses sujeitos, ausência de cuidado adequado e persistência de preconceito/discriminação na sociedade e nos serviços de saúde2-6. A partir dessas considerações, permanece uma questão-síntese: Quais as contribuições da produção do conhecimento sociocultural acerca da homossexualidade masculina para o campo da saúde? Essa questão, direta ou indiretamente, pode relacionar-se à discussão de Pierre Bourdieu1. Considerando-se que a sexualidade resulta da trajetória social do sujeito respaldada por sua história de vida carregada e impregnada de sentidos e significados7, torna-se importante a contribuição de Bourdieu acerca da produção social dos agentes e suas lógicas de ação, que articula as dimensões individuais e sociais. Com base nesse autor, discutir a saúde dos jovens homossexuais envolve, necessariamente, a problematização do habitus heteronormativo, entendido como permanências culturais que consideram a heterossexualidade como padrão universal1. O modelo da heterossexualidade – que, segundo o autor, é demarcado pelo estigma da diferença e entendido como uma ficção coletiva – constitui-se, em parte, para se opor à homossexualidade, com pretensões de se tornar uma norma. Esse modelo exerce uma dominação simbólica que não se relaciona, necessariamente, a “signos sexuais visíveis”, mas a práticas sexuais que, no caso da homossexualidade masculina, são entendidas como “sacrilégio do masculino”1 (p. 144). Com base nessas questões, o presente estudo tem por objetivo analisar a literatura acadêmica de abordagem sociocultural acerca da relação entre os temas: homossexualidade masculina, homem jovem e saúde. A partir dessa revisão da literatura, pretende-se contribuir para o avanço na compreensão e na problematização dos aspectos da homossexualidade masculina que implicam questões de saúde coletiva.

Metodologia Nesse estudo, optou-se por uma revisão sistemática que pretende captar, reconhecer e sintetizar a grande quantidade de informação científica, no intuito de fundamentar e aprimorar as propostas de práticas qualificadas na saúde e no ensino8. Com esse propósito, efetuou-se uma revisão das publicações na área de saúde, priorizando a Biblioteca Virtual Bireme, consultando-se os artigos das bases de dados Lilacs e Medline. Somente os artigos foram selecionados, devido a sua maior circulação no meio acadêmico e profissional, de modo que as dissertações e teses não compuseram o acervo. Em busca pelo estado da arte mais atual sobre o tema, optou-se por um recorte temporal de dez anos, entre 2004 e 2013, uma vez que, com a implementação do Programa Brasil sem Homofobia, em 2004 – que promoveu atenção à saúde do homossexual masculino sob novas dimensões – proporcionou-se maior visibilidade na área de saúde, na sociedade e no meio acadêmico. 58

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Brito e Cunha RB, Gomes R

artigos

Na busca – em termos de critérios de inclusão – optou-se pelos termos dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCs), considerados fundamentais para o estudo da promoção de saúde de jovens homossexuais masculinos: homossexualidade masculina, adulto jovem, comportamento sexual, sexo inseguro, assistência integral à saúde, atitude frente à saúde, vulnerabilidade em saúde, aceitação pelo paciente dos cuidados de saúde, autocuidado, aids e pessoal de saúde/atitude do pessoal de saúde. As definições e seus sinônimos encontram-se no Quadro 1. Os descritores utilizados foram aplicados de forma integrada, tomando como base “homossexualidade masculina” e “adulto jovem,” envolvendo as duas bases de dados, com o estabelecimento de limites e critérios de exclusão. Devido à escassez de literatura brasileira, incluíramse seis artigos, que, por não abordarem exclusivamente jovens, não apareceram na busca 2 (Figura 1). O conteúdo desses foi considerado relevante para analisar os estudos brasileiros sobre o tema em questão.

Quadro 1. Descritores segundo Decs e MeSH e sinônimos Descritores

Descrições

Sinônimos

Homossexualidade Masculina

Ter atração ou relação sexual com outros homens

Gays e homossexuais

Adulto Jovem

Uma pessoa entre 19 e 24 anos de idade

Sexo anal, sexo oral, orientação sexual, atividade sexual

Comportamento sexual

Atividades sexuais dos humanos

Sexo de risco, sexo de alto risco

Sexo inseguro

Comportamentos sexuais que são de alto risco para contrair DSTS ou produzir gravidez

não foi encontrado

Assistência integral à saúde

Provisão de todo tipo de assistência individualizada de saúde para diagnóstico, tratamento, acompanhamento e reabilitação de pacientes

Assistência Integral à Saúde da mulher, da criança e do adolescente, e cuidados integrais à saúde

Atitude frente à saúde

Atitudes do público em relação a saúde, doença e sistema de atendimento médico

não foi encontrado

Vulnerabilidade em saúde

não foi encontrado

não foi encontrado

Aceitação pelo paciente de cuidados de saúde

Busca e aceitação por pacientes de serviços de saúde

Predisposição em aceitar cuidados de saúde, comportamento de procura de cuidados de saúde

Autocuidado

Realização, pelo paciente, das atividades normalmente executadas por profissionais de saúde. Inclui cuidados consigo mesmo, família ou amigos

não foi encontrado

Aids

não foi encontrado

Sida

Pessoal de saúde/ atitude do pessoal de saúde

Indivíduos que trabalham na provisão de serviços de saúde, quer como médicos individuais ou empregados de instituições programas de saúde, profissionais de saúde treinados ou não, sujeitos ou não a regulamento público.

Profissionais de saúde

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Junho 2013 (Busca 1) DeCs e MeSH: homossexualidade masculina and Adulto jovem

Limites: artigos publicados entre 2004 e 2013

Lilacs - 9 artigos Medline - 1308 artigos

DeCs e MeSH : Novas Buscas (junho 2013) 2) Comportamento sexual or sexo inseguro or vulnerabilidade em saúde or Aids. 3) atitude frente à saúde, or assistência integral à saúde or autocuidado or aceitação pelo paciente de cuidado de saúde. 4) Atitude do pessoal de saúde or pessoal de saúde.

Incluídos os artigos que apresentaram os descritores da busca 1 de maneira integrada com os da busca 2, 3 e 4 respectivamente

Excluídos os artigos epidemiológicos e os biomédicos

67 artigos (acervo inicial) Leitura integral dos textos

Excluídos 28 artigos por abordarem, exclusivamente: os bissexuais, transexuais, travestis, sexo sem consentimento, deficientes físicos e validação de instrumentos e de teorias

39 artigos constituem o corpus analítico do estudo

Figura 1. Fluxograma de buscas na BVS.

Como critério de exclusão, não foram incluídos, na revisão, artigos que: (a) tratavam de aspectos epidemiológicos e biomédicos exclusivamente; (b) não contemplavam questões de adulto jovem; (c) discutiam, exclusivamente, bissexualidade, transexualidade e travestis, sem considerar a homossexualidade; (d) tratavam de questões específicas de deficientes físicos; e (e) não abordavam a temática de forma relacionada à saúde. Aplicados os critérios de inclusão e exclusão, o acervo estudado foi de 37 artigos. A análise das publicações foi baseada na proposta de análise de conteúdo temática de Bardin9 envolvendo as seguintes etapas: leitura flutuante de todo o material, sistematização, exploração do material selecionado, identificação de eixos temáticos e, por fim, o tratamento dos resultados e suas interpretações para dialogar com o objetivo do estudo. 60

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Brito e Cunha RB, Gomes R

artigos

Resultados Inicialmente, observa-se que nem todos os 37 artigos analisados explicitam relações entre seus achados e questões socioculturais. Para chegar a essas relações, neste estudo, foi preciso levar em conta conteúdos implícitos ou ideias subjacentes aos conteúdos explícitos do corpus analítico. Outra observação importante diz respeito ao fato de metade dos artigos analisados da base Medline ter sido publicada em um só periódico (Culture, Health & Sexuality), cujo escopo editorial se volta para questões relacionadas à cultura, sexualidade e sociedade, envolvendo, sobretudo, as implicações de crenças, sistemas e estruturas sociais na saúde sexual. A partir da leitura, os conteúdos dos artigos foram classificados em três eixos temáticos. Esses eixos não são necessariamente excludentes, porquanto existem conteúdos que servem para se discutir em mais de um eixo que ora se diferenciam, ora se superpõem. Assim, há artigos que se situam, simultaneamente, em mais de um eixo (Quadro 2).

O preconceito e a discriminação frente à homossexualidade Ao analisar o acervo, observou-se que muitos autores debruçam-se sobre as questões de direitos, apontando para o preconceito como o grande impasse nas relações dos homossexuais nos países ocidentais10-19. Esse preconceito, às vezes, se expressa de forma mais sutil que flagrante19. Ainda com base nos artigos estudados, ficou claro que os discursos homofóbicos – que, ao longo do pensamento ocidental, produziram o silêncio dos sentimentos afetivo-sexuais dos homossexuais – remetem-se, historicamente, a uma identidade estigmatizante que compreendia: a proliferação de doenças, pecado, sodomia, comportamentos perversos, aberrações da natureza, promovendo discursos heterossexistas. Como somos subjetivados pelas linguagens criadas na/e pela cultura, esses discursos foram formando e transformando a construção social da homossexualidade até os dias atuais, influenciados pelos cenários históricos e culturais7,11,16,19. Willis10, que centrou seu ensaio na construção da identidade LGBQ (lésbicas, gays, bissexuais e Queer) de jovens na Austrália, observou que esses encontram-se presos a discursos homofóbicos e restritivos, associados a marcos de identidade, que orientam suas atitudes. Estudos demonstram que, para lidar com esse estigma, esses jovens tentam construir sua identidade de forma individual, muitas vezes em segredo, tentando minimizar a vergonha que sentem de sua orientação sexual18. São invadidos por sentimentos de angústia mais pelo medo de exclusão e desprezo social do que pela sua identidade homossexual7. Esses sentimentos são reconhecidos desde a iniciação sexual, que se dá a partir de algumas normas de comportamento baseadas em papéis de gênero, homossociabilidade e escolha de objeto. Carillo e Fontdevila12 e Bustos et al.14 mostraram que os adolescentes que possuem uma tendência sexual diferente sofrem discriminação de seus pares, especialmente nas escolas, por meio de intimidações e exclusões dos grupos, causando comportamentos de riscos sociais, psicológicos e físicos. Além das escolas e do meio social, estudo feito no Brasil16 aponta para a relação desses jovens com sua família. Esses, por não se sentirem aceitos, não se encontram em simetria com os ideais propostos por seus familiares. Com isso, entram em conflito com seus sentimentos afetivo-sexuais, de amor romântico, vivenciando suas relações amorosas com sentimentos de culpa e medo por quebrarem mitos e ritos familiares, vivendo, muitas vezes, numa dinâmica de segredo familiar. Essa forma de se relacionar com a família foi encontrada, também, nos países desenvolvidos. Uma revisão sistemática, feita na Holanda15, mostrou que essa posição de não-aceitação exerce influências negativas na saúde dos filhos, provocando adoecimentos. Considerando que os discursos homofóbicos da sociedade continuam a orientar as atitudes dos jovens, propiciando conflitos e adoecimentos, Willis10 salienta o importante papel dos profissionais de saúde e de atenção social na transformação dessas construções e no apoio que podem proporcionar mediante um processo de coautoria das biografias desses jovens, procurando dar outro significado às suas narrativas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 2. Eixos temáticos, autores, ano e país de publicação Temas

Autor/ano/país

O preconceito e a discriminação frente à homossexualidade

Comportamento sexual de risco

Cuidados de Saúde em jovens homossexuais masculinos

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Bouris A et al., 2010, Holanda Boyce S et al,2012, Inglaterra Bustos F et al, 2011, Chile Carrara S, 2012, Brasil Carrillo H e Fontdevila J, 2011, EUA Chromalli F, 2010, Chile Fleury ARD e Torres ARR, 2007, Brasil Gurgel JJR e Bucher-maluschke JSNF, 2010, Brasil Holt M, 2010, Austrália Kern FA e Silva AL, 2009, Brasil Mc Dermott et al., 2008, Inglaterra Silva FR e Nardi HC, 2011, Brasil Willis P, 2012, Austrália Adam BD et al., 2005, EUA Balan IC et al., 2009, EUA Bruce D et al., 2012, EUA Calabrese SK et al., 2012, EUA Carballo-Dieguez A et al., 2009, Inglaterra Carillo H e Fontevilla, 2011, EUA Eaton LA et al., 2012, Austrália Grov C, 2012, EUA Halkitis PN et al., 2008, EUA Hurley M e Prestage G, 2009, Inglaterra Kern FA e Silva AL, 2009, Brasil Knox J et al., 2010, Inglaterra Li H et al., 2010, Inglaterra Rabie F, Lesch H, 2009, Inglaterra Silva LAV, 2009, Brasil Strong DA et al., 2005, EUA Valentenova J et al., 2011, EUA Adam BD et al., 2005, EUA Bauermeister JA, 2012, EUA Beagan, Fredericks, Goldberg, 2012, Canadá Bouris A et al., 2010, Holanda Boyce S et al., 2012, Inglaterra Bruce D et al., 2012, EUA Calabrese SK et al., 2012, EUA Carballo-Dieguez A et al., 2009, Inglaterra Flores DD et al., 2011, EUA Fonte DA et al., 2005, EUA Grov C, 2012, EUA Halkitis PN et al., 2008, EUA Holt M, 2010, Austrália Hurley M e Prestage G, 2009, Inglaterra Kern FA e Silva AL, 2009, Brasil Knox J et al., 2010, Inglaterra Kubicek K et al., 2011, EUA Magee JC et al., 2012, EUA Beagan BC et al., 2012, Canadá Boyce S et al., 2012, Inglaterra Brennan DJ et al., 2012, Inglaterra Granado-Cosme JA e Delgado Sanchez G, 2008, México Jorm AF et al., 2002, EUA Morgan JF e Arcelus J, 2009, Inglaterra Varangis E et al., 2012, Países Baixos Willis P, 2012, Austrália

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Brito e Cunha RB, Gomes R

artigos

A literatura ainda destaca a escassez de pesquisas que possam dar subsídios para apoiar os pais na promoção de saúde dos jovens homossexuais15.

Comportamento sexual de risco O segundo tema encontrado na literatura pesquisada aponta para a preocupação com os comportamentos de risco dos jovens homossexuais12,20-32. Esses estudos, ao indicarem a dificuldade da relação desses jovens com suas famílias, escolas e meio social em que vivem, ressaltam a dicotomia entre o público e o privado, interferindo no comportamento sexual dessa população. Esse duplo rechaço, difundido nesses dois ambientes, reforça a necessidade de espaços onde a liberdade de ser homossexual pode ser expressa e assumida. Em sua maioria, são locais reservados, destinados especificamente para homossexuais, onde é possível haver manifestações de afeto entre iguais (como “guetos”), e/ou semiprivados (como a internet). A literatura destaca a cybercultura e o barebraking no que se refere aos comportamentos sexuais de risco dos homossexuais22,23,26. O sentido do barebacking – sexo anal desprotegido entre homens que fazem sexo com homens de forma intencional – foi descrito em uma pesquisa através da internet23. Carballo-Diéguez et al.26 destacam a necessidade de reconceituar essa prática e distinguir, nesses comportamentos – que podem resultar na transmissão de DSTs/HIV –, aqueles que são intencionais daqueles que não são intencionais e que, por isso, necessitam de apoio. Concluem que isso contribuiria para maior compreensão desse comportamento, facilitando a operacionalização do termo no meio acadêmico, dando apoio às ações de saúde pública. No Brasil, nenhum artigo sobre essas práticas enfoca, especificamente, a população jovem, referindo-se, sempre, aos homens em geral. Entretanto, nos estudos internacionais, foram encontradas algumas referências ao comportamento da população jovem, em festas e ambientes exclusivos de homossexuais, abrangendo diferentes etnias e grupos sociais. Esses comportamentos incluem sexo com múltiplos parceiros, com parceiros casuais e aumento do uso de drogas20,21,22,24,25,33. Ainda nesse campo, produções internacionais, que analisam o não-uso de preservativos por homens que fazem sexo com homens (HSH), demonstram que o sentimento de perda de prazer associada ao preservativo pode ser um impedimento fundamental para a sua utilização30. Muitos acreditam que o uso do preservativo não é necessário quando se tem um parceiro confiável e fixo30. Algumas referências afirmam que, para os HSH, o preservativo causa dificuldade de ereção, causando angústia e depressão20,21. Tanto na literatura nacional quanto na internacional, ficou evidente que a preocupação de intensificar sensações de prazer físico e emocional é muito maior do que a de adquirir o HIV. Eaton et al.31 acrescentaram que esse comportamento é incentivado pela mídia pornográfica que exibe, com frequência, atos sexuais desprotegidos, geralmente representados por orgasmos espetaculares. Ainda com relação à vulnerabilidade para HIV, pesquisa realizada com jovens norte-americanos32 demonstrou que esses apresentam, com frequência, a prática de sexo oral e anal tanto receptivo quanto insertivo com homens mais velhos sem uso de preservativos. Essa atividade pode envolver não só um contexto biológico distinto, com heterossexuais, mas, também, um contexto social rigidamente relacionado a poder, idade e gênero. Para maior aprofundamento do tema, Valentenova et al.34 destacam a necessidade de se estudarem os significados dos comportamentos de risco nas diferentes culturas. Os autores observaram que o senso comum julga a orientação sexual de uma pessoa com base nas observações de comportamentos mais ou menos masculinos/femininos (gaydar), e que esses conceitos diferem nos diversos grupos, de acordo com seu significado em cada cultura. Os estudos etnográficos12,27,29 demonstraram a importância de se compreender a diversidade de experiências e identidades sexuais dentro e entre diferentes grupos étnicos. Uma pesquisa feita com homens negros homossexuais, numa comunidade rural na África do Sul27, mostrou que esses constroem sua sexualidade utilizando as noções de feminilidade, ou seja, “sentindo-se como uma mulher”. Essa visão reproduz as ideias tradicionais de gênero ocidentais e, ao mesmo tempo, funciona como ato de subversão. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A análise temática de outro estudo etnográfico29 numa comunidade chinesa mostrou que existem crenças que se tornaram barreiras consideráveis para o não-uso do preservativo entre esses homens. Dentre elas, a ideia erótica do “rouyu” (desejo físico da carne) aliada à metáfora do uso do preservativo, visto como algo que inferioriza e que propicia um sentido de desvalorização para aqueles que fazem sexo protegido. Assim conclui-se que os significados dos comportamentos sexuais devem ser melhor compreendidos considerando que as interpretações sobre os corpos e a diferenciação dos sexos são produções discursivas, e só se tornam inteligíveis a partir da compreensão dos contextos culturais de cada organização social, que lhes servem de ancoragem. Nesse sentido, o desenvolvimento de pesquisas, na área da saúde, que utilizem jovens homossexuais como sujeitos, numa perspectiva sociocultural, podem contribuir para ampliar a compreensão de como seus comportamentos sexuais, especificamente os que envolvem riscos, são formados, como podem ser mudados e quais determinantes os influenciam.

Cuidados de saúde em jovens homossexuais masculinos Após trinta anos da epidemia de Aids, estudos em diversos países apontam que jovens homossexuais continuam a ser o maior grupo de risco para a infecção de HIV: nos Estados Unidos35, na Austrália36 e no Brasil37. Entretanto, constatou-se que poucos artigos abordam o homossexual masculino jovem no que se refere à visão subjetiva e intersubjetiva da prevenção e promoção de saúde. Dentre os estudos com abordagem qualitativa, encontrou-se o de Flores, Blake e Sowell35, que objetivaram explorar os fatores que podem ter contribuído para diagnósticos recentes de HIV em jovens, e compreender suas perspectivas sobre a concepção e a eficácia dos programas existentes de prevenção de HIV e DSts. Esses autores encontraram quatro temas principais recorrentes: riscos pessoais, falta de educação e informação qualificada, grande acesso à Internet e a necessidade de profissionais capacitados. Com relação aos riscos pessoais, Holt et al.36 observaram que, apesar de mais da metade dos homens homossexuais já terem sido diagnosticados com uma DST36, esse diagnóstico não recebe tanta atenção quanto o do HIV. Segundo os autores, essa relativa falta de preocupação pode estar relacionada a sentimentos de vergonha e constrangimento que esse diagnóstico provoca ao colocar um refletor sob suas práticas e comportamentos sexuais. Esses estudos concluem que, para aumentar a adesão aos exames de DSTs entre homens homossexuais, é necessário dar continuidade aos esforços de educação da comunidade a fim de reduzir o estigma associado a doenças sexualmente transmissíveis e proporcionar maior apoio a esses homens ao receberem esse diagnóstico. Recomendam a formulação de ações específicas de educação e o desenvolvimento de intervenções de prevenção que contemplem o elevado nível de sofisticação e as necessidades dos jovens homossexuais de hoje. Um dos importantes meios de intervenção na comunicação é a Internet, considerando que é amplamente utilizado pelos jovens para obterem informações e conhecimento39,40. Isso demonstra a relevância da utilização desse instrumento para pesquisadores, bem como para servir de apoio à promoção de saúde sexual. Outro importante fator de apoio para a promoção de vida desses jovens é poder compreender e apoiar suas expectativas para o futuro. Bauermeinster41 afirma que poucos pesquisadores examinaram a relação entre a idealização de futuro e comportamentos sexuais desses jovens. Além das DSTs e aids, os estudos internacionais na área de saúde demonstraram que a vulnerabilidade dos jovens homossexuais masculinos também está associada às doenças mentais. Granado-Cosme e Delgado-Sanchez42 observaram que os problemas de identidade e orientação sexual podem ser fatores de risco para conduta suicida, considerando que grupos marginalizados são mais vulneráveis à depressão. Os homossexuais têm de duas a seis vezes mais probabilidade de cometerem suicídio do que os heterossexuais10.

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Ainda nessa área, estudos internacionais relacionados à imagem corporal dos jovens homossexuais43-45 demonstraram uma preocupação com a estética, incentivada pela mídia. A figura musculosa e de baixo percentual de gordura corporal demonstrou ter um índice significativo de atração entre os homens homossexuais, tornando-a objeto de desejo, podendo gerar insatisfação com o próprio corpo, causando depressão e outros sintomas mentais45. Esses estudos demonstram a necessidade de os profissionais de saúde estarem atentos ao conjunto de problemas de saúde mental que são vivenciados por esses homens, que envolvem: comportamentos de abuso de álcool, imagem corporal ligada a baixa autoestima, transtornos alimentares e depressão. Tais referências só foram encontradas em pesquisas realizadas em outros países, o que demonstra a necessidade de se ampliar o conhecimento acerca dos jovens brasileiros para subsidiar discussões sobre o cuidado de saúde dessa população no Brasil. Buscando a compreensão da relação dos jovens homossexuais masculinos com os serviços de saúde, um estudo na Guatemala46 revelou que os homossexuais que procuraram os serviços públicos experimentaram discriminações, violação de sigilo e desconfiança, dando preferência para locais onde puderam vivenciar um sentimento de pertencimento. Entre as barreiras que dificultaram a procura dos serviços de saúde, as mais importantes foram: medo da discriminação, medo de ter o HIV e falta de apoio social. Por outro lado, uma pesquisa no Canadá,demonstrou uma preocupação dos enfermeiros em não ofender os homossexuais durante as consultas, evitando falar de “algumas questões” ligadas à sexualidade, o que propiciou sentimentos de desconforto para ambos47. Os resultados obtidos destacam a necessidade de reforçar a rede pública, capacitando profissionais para que possam lidar com os vários níveis de estigma e discriminação experienciados por esses homens. Reafirma-se, assim, a necessidade de programas especificamente dirigidos à saúde dos homossexuais e a capacitação de profissionais de saúde com uma perspectiva de respeito à diversidade sexual, até mesmo para orientar os pais e os próprios jovens no manejo da sua sexualidade.

Discussão dos resultados As temáticas constituídas a partir da análise dos artigos, de certa forma, talvez se configurem como tal por causa das expressões que foram utilizadas na busca. Essas expressões, a exemplo de comportamento de risco, que foram utilizadas para a problematização das relações entre homossexualidade e saúde, constituem um limite do estudo, uma vez que pode ter deixado de fora outros estudos sobre o assunto central, que apontariam para outras temáticas. Destaca-se, nas pesquisas analisadas, que as instituições, como família e escola, ainda atuam sobre as estruturas inconscientes, influenciando para que o habitus heteronormativo permaneça na sociedade ocidental. Dessa forma, a dominação simbólica, estigmatizante, leva o “dominado” a viver sua experiência sexual envergonhadamente, equilibrando-se entre o medo de ser visto desmascarado e o desejo de ser reconhecido pelos demais homossexuais. Essa relação social, invisível e insensível, dá-se por meio da comunicação e do conhecimento – ou, mais precisamente, do desconhecimento – constituído socialmente, propiciando uma maneira de falar, de pensar e de agir, utilizando, muitas vezes, noções de feminilização.1 Essas noções, que se referem a comportamentos mais ou menos femininos ou masculinos, podem diferir de uma cultura para outra. Entretanto, observou-se, na produção do conhecimento acerca da autorrepresentação dos homossexuais masculinos, que essa, em geral, é vivenciada de forma polarizada, entre a masculinidade e a feminilidade, com sentimentos de culpa e vergonha por medo de exclusão e desprezo social. Isso propicia um espaço de vida privada, isolada, promovendo vulnerabilidade social e psicológica, podendo causar adoecimentos. Na literatura estudada observou-se que, nos ambientes exclusivos de homossexuais, práticas sexuais consideradas de risco para HIV/DSTs são mais desenvolvidas, tais como: o não-uso de preservativos, sexo com múltiplos parceiros e com parceiros casuais. Ainda segundo as referências

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estudadas, o isolamento social desse grupo não constitui a única causa dos comportamentos de risco. O medo da perda de prazer e da virilidade – significado dado ao preservativo nas culturas ocidentais – e a crença na fidelidade do parceiro fixo fazem com que esses jovens tornem-se mais vulneráveis ao HIV e às DSTs em geral. Destaca-se, ainda, a importância do estudo dos significados atribuídos ao preservativo nas diferentes culturas. Observou-se que, numa comunidade chinesa, o uso deste pode ser visto como algo que inferioriza o homem. Além disso, a literatura mostra que a preocupação excessiva com a estética de corpos musculosos e com a intensificação de prazer, ambos incentivados pela mídia, é maior do que a preocupação com os cuidados de saúde. Reconhece-se que essa busca por prazer imediato e as relações descartáveis encontram-se associadas à fragilidade dos vínculos no século XXI e são retratadas através da relação com o prazer físico e emocional48. Ainda, a virilidade masculina – não exclusivamente nas relações homossexuais – é permanentemente submetida à prova de julgamento coletivo e impõe-se a cada homem com o dever de afirmá-la em todas as circunstâncias1. Assim, o modelo hegemônico de masculinidade e o contexto histórico também devem ser levados em consideração nas negociações de medidas preventivas, mesmo nos homens que fazem sexo com outros homens49. Além das doenças sexuais, os estudos mostram uma preocupação com as doenças mentais. Comportamentos que envolvem abuso de álcool, imagem corporal ligada à baixa autoestima, transtornos alimentares e depressão com alto índice de suicídio estão ligados aos conflitos internos, bem como aos atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da fronteira entre dominantes e dominados. Esses conflitos – que se estabelecem com as censuras inerentes às estruturas sociais – são assumidos por meio de formas de emoções corporais, tais como: vergonha, humilhação, timidez, ansiedade e culpa1. Esse estigma da homossexualidade pode fazer com que poucos jovens busquem os serviços de saúde. Uns por medo de discriminação e outros por medo de saber que possuem doenças que reforçam a vergonha de ser homossexual, o que dificulta os cuidados de saúde em geral. Por outro lado, como observa Bourdieu1, os movimentos sociais – ao fazerem oposição ao estigma, reivindicando passar da invisibilidade para a visibilidade – devem encontrar outras estratégias de luta para que não se autoanulem, perdendo a razão de sua existência. Assim, segundo o autor, não basta se limitar à ruptura simbólica. Faz-se necessária, dentre outros aspectos, uma transformação duradoura de esquemas de pensamento incorporados por meio da educação.

Conclusão Diante dos resultados mencionados, fica nítida a escassez de literatura latino-americana, no âmbito da saúde, na perspectiva sociocultural, relacionada a homossexuais masculinos, especialmente, quando se refere a jovens. Entretanto, deve-se considerar que as bases consultadas englobam, predominantemente, revistas de abordagens biomédicas, fazendo surgir um interesse maior para discussões no campo da epidemiologia e da biomedicina. Considerando que as palavras, gestos e características podem ter significados diferentes em contextos diferentes, devendo ser compreendidos em seus “sítios” históricos50, faz-se necessário o aumento de estudos qualitativos, que possam alavancar essa discussão no que se refere à prevenção e promoção de saúde desses jovens dentro da realidade brasileira. Ainda sobre o acervo estudado, observou-se que um grande número de produções articulam-se em torno da ideia de discriminação, não só no Brasil como em outros países. Isso demonstra que o tema possui um papel representativo na forma como os jovens homossexuais se inserem e são inseridos na sociedade, influenciando seus comportamentos, moldando sua identidade e interferindo no modo de viver e nos cuidados de saúde em geral. Embora sejam inegáveis os avanços na área de direitos 66

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humanos hoje, quando comparada a outras épocas – ressaltando as importantes conquistas nas lutas dos movimentos sociais – percebe-se que ainda se reivindicam espaços e cidadania, uma vez que esses interferem na construção social da sexualidade dos jovens em geral. Nessa revisão observaram-se alguns obstáculos e desafios relacionados à dificuldade de implementação de políticas de saúde que realmente respondam às necessidades e a promoção de saúde de homens jovens homossexuais, que vão desde a qualidade da informação, passando por desconhecimento dos valores simbólicos, até a efetivação de propostas de gestores de saúde. Dentro dessa lógica, propõe-se que, para planejar iniciativas no campo da prevenção e da promoção de saúde voltadas para essa população, deve-se interferir tanto nas diretrizes e no desenho das políticas públicas no campo da educação e saúde quanto nas iniciativas de proteção e promoção de direitos. Embora a visibilidade pública de novos modelos de sexualidade contribua para quebrar a doxa e ampliar o espaço de possibilidades, observa-se que a discriminação, o modelo de masculinidade, a falta de informação qualificada e a necessidade de profissionais capacitados na área de saúde e educação, para lidar com esses jovens e suas famílias, são as principais barreiras encontradas nas pesquisas analisadas. Assim, entende-se que os estudos interdisciplinares que valorizem o encontro entre o saber técnico sobre como se cuidar e se prevenir e o saber que cada um produz ao longo de sua vida sexual, referido a seus valores pessoais e culturais, podem servir de subsídio para o maior aprofundamento dessa discussão.

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Brito e Cunha RB, Gomes R. Los jóvenes homosexuales masculinos y su salud: una revisión sistemática. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):57-70. Con el objetivo de analizar la literatura académica de abordaje sociocultural sobre la relación entre homosexualidad masculina, hombre joven y salud, se realizó una revisión basada en el análisis de contenido temático de 37 artículos seleccionados en Medline y Lilacs, entre 2004 y 2013. La escasez de literatura en la perspectiva sociocultural señaló obstáculos y desafíos relacionados con la promoción de la salud que van desde la calidad de la información, pasando por valores simbólicos inconscientes, hasta la efectuación de propuestas de gestores de salud. Se concluyó que la hegemonía heterosexual se encuentra presente en las estructuras inconscientes de la construcción de la homosexualidad, contribuyendo para la perpetuación del habitus heteronormativo. Estudios que valorizan el encuentro del saber técnico con el conocimiento que cada uno produce, referido a sus valores personales y culturales, pueden servir de subsidio para una mayor profundización de esa discusión.

Palabras clave: Homosexualidad masculina. Comportamiento sexual. Actitud ante la salud. Actitud del personal de salud. Sexo sin protección. Recebido em 19/02/14. Aprovado em 14/05/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0628

artigos

Leituras holísticas: de Tchékhov à Medicina Narrativa*

Isabel Fernandes(a)

Fernandes I. Holistic readings: from Chekhov to narrative medicine. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):71-82.

The aim of this paper was to show how, in the short story “A Doctor’s Visit,” the Russian writer Anton Chekhov, himself a physician, creates a fictional narrative in which he draws attention to aspects of clinical practice that are rather overlooked today, namely: observation and evaluation of the environment in which patients live and aspects of their family, social and even sexual outlook, along with the crucial importance of the interpersonal dialoguebased relationship between doctor and patient. The attention indirectly drawn to this issue by Chekhov is here correlated with the current situation within the domain of clinical practice by invoking the concept of evidence-based medicine as the currently dominant paradigm in medical practice, and with the need for a complementary approach, namely by narrative-based medicine or narrative medicine.

Keywords: Anton Chekhov. Evidencebased medicine. Narrative-based medicine. Narrative medicine.

Neste artigo, procura-se evidenciar como, no conto “Um caso da prática médica”, o escritor russo, Anton Tchékhov, ele próprio médico, ficcionaliza e chama a atenção para aspetos da prática clínica hoje tantas vezes descurados, designadamente a observação e avaliação do ambiente em que vivem os doentes; e aspetos de índole familiar, social e até sexual, bem como a importância crucial da relação interpessoal de carácter dialógico entre médico e doente. Relacionar-se-á esta chamada de atenção indireta de Tchékhov com a situação atual no domínio da prática clínica, recorrendo-se ao conceito de Medicina Baseada na Prova (EBM), como paradigma atualmente dominante nas práticas médicas, e à necessidade de o complementar com o da Medicina Baseada na Narrativa (NBM) ou Medicina Narrativa.

Palavras-chave: Anton Tchékhov. Medicina baseada na prova. Medicina baseada na narrativa. Medicina narrativa.

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* O artigo apresentado resulta de investigação desenvolvida no âmbito do projecto “Medicina & Narrativa – (Con)textos e práticas interdisciplinares” [Ref. PTDC/CPCELT/3719/2012], do CEAUL/ULICES – Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). (a) Centro de Estudos Anglísticos, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Alameda da Universidade, 1600-214. Lisboa, Portugal. centro.ang@ letras.ulisboa.pt

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Anton Tchékhov (1860-1904), escritor e médico russo, é autor de muitos contos famosos, de entre os quais o texto intitulado “Um caso da prática médica,” publicado em 1898, será objeto da primeira parte deste artigo(b). Para benefício dos que possam não conhecer o texto, fornece-se uma breve paráfrase. Um prestigiado médico de Moscovo recebe um telegrama solicitandolhe uma visita até a fábrica dos Liálikovs, para consultar a filha dos proprietários, e resolve enviar o seu assistente, o Dr. Koroliov. Este não consegue detetar nenhum problema sério de saúde na jovem Lisa – que se queixa de nervosismo, insónias e palpitações, e, não vendo motivos para se demorar, dispõe-se a partir, mas é instado a pernoitar na casa da família pela mãe, que teme que se repita outra noite de pesadelo. Como não consegue dormir, o médico vagueia de madrugada pela fábrica e zonas adjacentes, e tem como que uma epifania, ao aperceberse duma conexão entre o opressivo meio envolvente e a doença da jovem. A perceção duma enfermidade social e espiritual que afeta aquele microcosmos justifica, aos seus olhos, os sintomas da paciente e leva-o a encará-la de modo diferente: da visão distanciada e profissional que lhe dispensara antes e que de nada lhe valera, passa a uma atenção mais generosa à pessoa e à situação de Lisa, com quem conversa. Agora, além dos batimentos cardíacos, torna-se atento à expressão dos seus sentimentos, medos e ansiedades, com os quais, de resto, se solidariza. Ela responde-lhe com a revelação de estar também convencida de não ter nenhuma doença física, antes sentir “inquietação” e “medo.” A conversa constitui o momento de viragem decisivo para a jovem, que, na manhã seguinte, aparece a despedir-se do médico, sorridente e vestida de branco, como que para uma festa. Proponho que atentemos no/s parágrafo/s de abertura, geralmente cruciais para o entendimento do que verdadeiramente está em causa no texto, e, também, à identificação de qual/quais a/s figura/s de retórica mais recorrente/s(c). Começando pela abertura da narrativa, verificamos que nos fala duma figura que irá estar ausente do conto: o anónimo professor. E, de imediato, nos perguntamos: por que incluir, neste início, uma personagem sem interferência no desenrolar dos acontecimentos?

O conto foi também publicado no Brasil, com o título “Um caso clínico.” Segui a tradução em português europeu1. Sempre que esta se manifestou menos satisfatória, recorri à tradução inglesa constante da antologia de Jack Coulehan, com o título “A Doctor’s Visit”2.

(b)

(c) Sobre a importância dos chamados “incipit,” veja-se, por exemplo, Andréa Del Lungo3.

O professor recebeu um telegrama da fábrica dos Liálikov: pediam que fosse lá com urgência. Adoecera a filha de uma tal senhora Lialikova, pelos vistos a proprietária da fábrica, e mais nada se podia perceber do telegrama longo e desconexo. Então, o professor não quis ir, mandando em seu lugar um dos seus médicos, o doutor Koroliov.1 (p.261)

Aparentemente inconsequente para o desenvolvimento da história, a menção à atitude do professor é, contudo, significativa, porque ele baseia a sua decisão de não responder ao apelo que lhe é feito num ato interpretativo, num ato de leitura. O facto de o telegrama ser “longo e desconexo” deprecia, aos seus olhos, aqueles que o escreveram, e determina que se esquive à visita, delegando-a no seu assistente. Chama-se aqui a atenção para o ato de leitura como qualquer coisa que precede e acompanha as nossas ações e decisões, e que, como veremos, assinala o tipo de saber e decisões próprios do ato clínico como ato deliberativo, isto é, não meramente cognitivo, dado não se limitar a equacionar factos, mas envolver também emoções e valores, bem como ponderar deveres. Isto é, chama-se indiretamente a atenção para o carácter hermenêutico complexo da prática médica, bem como da sua essência deliberativa(d). Para que não restem dúvidas, mais abaixo, ao descrever o que Koroliov vê no seu percurso até à fábrica, lê-se na tradução inglesa: “And now when the workpeople timidly and 72

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Sobre isto, uso os termos e conceitos utilizados na palestra “Bioética e Humanização”, proferida por Diego Gracia, em 31 de março de 2014, no Congresso Internacional Humanidades e Humanização em Saúde, promovido pela FMUSP, em São Paulo, Brasil. Qualquer incorreção ou deturpação de leitura é, porém, da minha total responsabilidade.

(d)


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(e) Faço-me eco da expressão sartriana: “être en situation,” no sentido de sermos o resultado dum feixe de circunstâncias e pertenças mas não, em última instância, determinados por elas.

(f) Estamos perante o artifício dialógico que F. K. Stanzel designa de reflectorização e que origina o que chama de situação narrativa figural, em que uma personagem é usada como reflectora5.

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respectfully made way for the carriage, in their faces, their caps, their walk, he read physical impurity, drunkenness, nervous exhaustion, bewilderment”2 (p.174, ênfase minha). Tchékhov está, obviamente, apostado em apresentar os médicos como leitores, como descodificadores dos sistemas sígnicos que os rodeiam, e disso mesmo o texto irá tratar. Quanto ao recurso retórico central neste conto, e não apenas por ser o mais repetido, mas por ser, ele próprio, transformado em princípio composicional da narrativa, como adiante se demonstrará, torna-se inescapável a comparação. Veja-se, por exemplo, logo no segundo parágrafo, a referência ao cocheiro da carruagem que espera Koroliov: “o cocheiro tinha uma pena de pavão no chapéu e respondia a todas as perguntas em voz alta, como um soldado…”1 (p.261, ênfase minha). Aqui, o primeiro contacto com um habitante local aponta, por meio da comparação, para o mundo castrense e sua inerente disciplina e relações de poder, aspetos que serão reverberados na apresentação da fábrica. Ora, a essência da comparação (que, como se sabe, está na base de toda a construção metafórica) consiste numa aproximação de objectos ou planos diferentes, num esforço integrativo que, segundo Percy Bysshee Shelley, na sua célebre Defesa da Poesia (escrita em 1821, mas publicada postumamente, em 1840), caracteriza o próprio modo poético. A partir duma distinção entre razão e imaginação, em que, segundo defende: “A razão diz respeito às diferenças e a imaginação às semelhanças entre as coisas”, Shelley vai mais longe e afirma que a poesia, sendo a expressão desse poder integrativo da imaginação, é uma linguagem “vitalmente metafórica, ou seja, assinala as relações até aí inapreendidas entre as coisas e perpetua essa apreensão”4 (p. 227, traduções minhas). Que seja a comparação o recurso retórico mais flagrante e recorrente no conto é significativo, dado que, por ele, se assinala a necessidade dum olhar e duma atitude integradoras das forças e relações múltiplas que governam a nossa existência enquanto seres humanos e, mais do que nunca, em momentos críticos como o duma crise ou duma doença, como é o caso neste texto. Além disso, em termos menos microscópicos, o conto vai progredindo por meio de outras comparações ou aproximações, ainda que não de natureza retórico-estilística mas, antes, de teor composicional. Constrói-se e desdobra-se por aproximações sucessivas entre personagens e entre estas e o meio ambiente. Desde logo, temos a comparação entre a governanta e os patrões, seguida da que assimila Lisa à mãe, e, finalmente, a comparação entre o médico e Lisa, neste último caso, unidos por um conspícuo e inesperado “nós,” que, não sendo meramente sintoma duma sensibilidade geracional comum, vai mais fundo e sinaliza a partilha da vulnerabilidade humana que une sempre, afinal, médico e doente. Se associarmos estes dois aspetos, o início do texto e o recurso retórico nele central, poderemos arriscar dizer que Tchékhov estará interessado em propor-nos um tipo de médico que designaremos de hermeneuta ou leitor competente, e um modo de exercer a prática clínica que tenha em conta a pessoa do paciente, no seu contexto doméstico, familiar e social; em suma, ao invés duma medicina que disseque ou separe, propõe-nos uma medicina integrativa, restauradora duma imagem global do paciente “em situação”(e). Vejamos como o faz no conto em análise. Trata-se duma narrativa de narrador heterodiegético omnisciente, vulgo de terceira pessoa, em que o ponto de vista é cedido ao jovem Koroliov – é o seu olhar e a sua consciência do mundo que acompanhamos(f). Tal escolha merece reparo – o convite ao leitor para partilhar o 73


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ponto de vista do jovem clínico aponta no sentido de ilustrar um comportamento e uma visão que se dá à consideração como digna de atenção, ou, por outras palavras, convida à empatia entre o leitor e esta personagem(g). O momento climático ocorre quando, de noite, vagueando, primeiro, no perímetro fabril e, em seguida, nas imediações, o médico se dá conta dum ambiente hostil, infernal, semelhante ao duma prisão – comparação inescapável que nos é comunicada significativamente em monólogo citado(h), na sequência duma descrição em que os sentidos da audição e da visão da personagem são convocados, testemunhando o seguinte cenário: Ouviu-se, ao lado do terceiro edifício: “jac… jac… jac…” E o mesmo nos restantes blocos fabris, e depois por trás das barracas e no portão. E parecia que, no meio do silêncio nocturno, era o próprio monstro com olhos rubros quem produzia estes sons, que era o próprio Diabo quem ali reinava sobre os patrões e os operários, enganando estes e aqueles. Koroliov saiu para o campo. - Quem é? – interpelou-o uma voz grosseira. “Como numa prisão…”, pensou Koroliov e não respondeu.1 (p. 268)

Mas não é só o entorno da fábrica que afeta negativamente o médico, também o interior da casa da família Liálikov, de gosto duvidoso e com um pretensiosismo novo-rico, tem o dom de o irritar. Além disso, as primeiras impressões que tem de Lisa também induzem nele a intuição de que algo falha ao nível da sexualidade da jovem, que o leva a pensar: “Deveria casar-se, está na altura…”1 (p. 264). Apercebe-se, então, do sem-sentido dum empreendimento que a ninguém beneficia: nem aos trabalhadores, duramente explorados e alienados, nem aos patrões, também eles, afinal, vítimas do mesmo sistema mecanizado e insensível e do mesmo ambiente insalubre, como se prova pela morte prematura do pai de Lisa e pelo sofrimento presente de mãe e filha. A única e irónica exceção a este estado de coisas irracional parece ser a governanta, Khristina Dmitrievna, que sabe tirar partido da boa cama e boa mesa ao seu dispor. O que se torna evidente ao longo do conto são as qualidades de Koroliov, no que diz respeito às suas capacidades de observação, de audição, de interpretação e à sua sensibilidade em geral. Trata-se de alguém de mente aberta, que sabe ouvir, ver e descodificar o que contempla, e que é afetado pela ausência de beleza e vida em seu redor. O diagnóstico que faz do microcosmos industrializado que observa leva-o a uma nova e eloquente comparação: tal como a vida fabril é para ele enigmática, assim, também, o são certas doenças incuráveis, cujas causas se revelam obscuras mas incontornáveis. Por mais distração e entretenimento que se proporcione aos operários, tal não logrará curá-los da doença que os aflige, como acontece com os tratamentos vãos que se aplicam em casos de doenças sem cura. Mas se a avaliação e a diagnose do contexto social e familiar por parte do clínico será certeira e decisiva para o que se segue, é o diálogo com Lisa, a doente, que vai constituir a peripécia conducente ao desenlace. Este diálogo evidencia a dependência mútua entre o eu e o outro, explorada, entre outros pensadores, por um Paul Ricoeur(i) ou por um Mikhail Bakhtin. Este último, por exemplo, num passo eloquente de Art and Answerability (obra porventura menos conhecida), chama a atenção para a complementaridade de olhares que caracteriza qualquer encontro interpessoal e sem a qual a apreensão do todo envolvente seria impossível: 74

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Cf. Stanzel, segundo o qual, a situação narrativa figural convida à empatia com a personagemreflectora ou detentora da focalização5.

(g)

(h) Dorrit Cohn usa o termo “quoted monologue” para designar este artifício narrativo, em narrativas de terceira pessoa6.

Veja-se uma obra como Soi même comme un autre, por exemplo7.

(i)


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(j) Esta necessária interdependência e colaboração faz lembrar o célebre triângulo hipocrático: “The [medical] Art consists of three factors, the disease, the patient and the physician. The physician is the servant of the Art. The patient must cooperate with the physician in combating the disease”9 (p. 1).

artigos

Quando eu contemplo um ser humano completo que está situado fora de mim e face a mim, os horizontes concretos por nós efectivamente experimentados não coincidem. Porque, a cada momento dado, independentemente da posição e da proximidade a que esse outro ser humano, a quem eu estou a contemplar, se encontra de mim, eu hei-de ver e saber sempre algo que ele, a partir da posição que ocupa, fora de mim e face a mim, não pode, ele próprio, ver: partes do seu corpo que são incessíveis ao seu próprio olhar (a sua cabeça, a sua face e respectiva expressão), o mundo atrás de si e toda uma série de objectos e relações que, quaisquer que sejam as nossas posições relativas, me é acessível a mim e não a ele. Ao olharmos um para o outro, dois mundos diferentes estão reflectidos nas pupilas dos nossos olhos. É possível, se se assumir uma posição apropriada, reduzir esta diferença de horizontes a um mínimo, mas para anular tal diferença completamente seria necessário fundirmo-nos num só, tornarmo-nos uma e a mesma pessoa.8 (p.23)

O carácter conspicuamente óptico conferido a esta cena matricial definidora da relação intersubjectiva, alerta-nos para a interdependência dos pontos de vista irredutíveis que nela se cruzam, indiciando, ao mesmo tempo, que, para o reconhecimento topográfico de qualquer situação, é indispensável a variação do enfoque. Transpondo esta interdependência para o encontro clínico, postula-se a necessidade de o olhar do médico ser complementado pelo do doente, de modo a recuperar o contexto em que este se insere e, assim, alcançar o diagnóstico(j). Para se aperceber plenamente da sua situação e dado o seu isolamento relativo, Lisa precisa do olhar de terceiros, neste caso do médico, mas este tãopouco está seguro de conseguir sozinho lidar com o enigmático mal que afeta Lisa e, sobretudo, de ser capaz de lhe dar conta das suas próprias conclusões, sem que ela com ele interaja. É interessante verificar que o tal diálogo crucial entre médico e paciente é, contra as nossas expectativas, verbalmente enxuto, não muito longo e transmite alguma insegurança de Koroliov: a linguagem técnica da medicina não lhe facilita nem garante o acesso ao íntimo desta criatura que se revelara, entretanto, inteligente e sensível; terá de recorrer a um outro tipo de linguagem. Quase instintivamente, o médico senta-se na borda da cama, pega na mão de Lisa, usa a primeira pessoa do plural, implicando-se no caso, partilhando com ela o que sente ter de lhe transmitir, mesmo sem saber bem como. Por outras palavras, trata-se dum verdadeiro diálogo, dado que ambos os interlocutores se respeitam, se colocam no mesmo patamar, e se vão reposicionando à medida que a conversa se desenrola, visando uma genuína troca de pontos de vista, um entendimento autêntico. Não há aqui paternalismo, nem o médico se refugia no pedestal do seu saber técnico, antes, admite sentir-se embaraçado, constrangido, como sempre pode acontecer quando o encontro verdadeiro de dois seres humanos ocorre e os intervenientes procuram, em conjunto, uma verdade partilhável. Por isso, emergem nele sinais duma interdependência que não se esgota na relação clínica, antes a ultrapassa, já que Lisa admite que o que verdadeiramente lhe falta é um amigo, alguém em quem confie e com quem possa falar. A capacidade de gerar confiança, a abertura para o imponderável do que o outro tem para nos contar, a disponibilidade para a escuta atenta, a empatia, eis o que, neste diálogo, se encena e se insinua como ingredientes indispensáveis num encontro que se queira digno desse nome e produtivo. Nele o médico revela-se, afinal, não apenas em sintonia com a paciente, mas como um seu igual, e os sintomas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de doença – a insónia e a taquicardia –, transmutam-se em sinais duma saudável reação a um contexto hostil e insalubre, e indiciam um instinto de vida de que ambos comungam: “A sua insónia é respeitável: seja como for, é um bom sinal. De facto, uma conversa como esta nossa teria sido impensável para os nossos pais; […] ora nós, a nossa geração, dormimos mal, atormentamo-nos, falamos muito e duvidamos sempre de termos ou não razão”1 (p. 272). Não interessa se o que Koroliov diz relativamente às diferenças geracionais é verdadeiro ou não, mas, sim, que tal serve como via de acesso e como garantia da necessária confiança viabilizadora do diálogo franco e aberto. O clínico prescindiu transitoriamente da linguagem da ciência, arriscou-se na fragilidade incerta da sua humanidade, cuidando de criar uma ponte para o outro…(k). Afinal, tudo se interliga e se nivela: o médico com a paciente, a governanta com os donos da fábrica, estes com os operários e, finalmente, os elementos naturais com o universo humano. Tudo está, aqui, em estreita interdependência: ao avaliar o ecossistema que envolve a doente, o médico é levado a um diagnóstico que, como tantas vezes acontece, excede a sua competência clínica e o seu saber científico. A vida mecanizada, insalubre e irracional gerada pela industrialização repercutese nos corpos e nos espíritos, em geral, mas especialmente nos mais sensíveis, e exige uma abordagem holística, que tenha em conta a pessoa como um todo, na multiplicidade das suas pertenças, constrangimentos, compromissos e circunstâncias. Em diagnose certeira do atual estado de coisas na área da saúde, João Lobo Antunes, em obra recente, intitulada A Nova Medicina, traça o seguinte quadro: Um facto surpreendente é que o progresso da biomedicina veio aumentar paradoxalmente a incerteza da decisão médica. […] Ainda hoje na prática clínica o diagnóstico começa com a colheita da história, o exame físico – agora um pouco menosprezado pela abundância e rigor das técnicas de imagem – a que se segue o recurso a exames auxiliares de diagnóstico. Na Nova Medicina a imagem quase aboliu a narrativa da doença, em parte porque o médico tem menos tempo para ouvir […], e porque o próprio doente tem dificuldade em explicar as suas queixas e acha que a doença está claramente revelada nas imagens obtidas. A prevalência dos exames auxiliares de diagnóstico e, sobretudo, das imagens, tenderam a negligenciar os aspectos verbais, ou melhor, narrativos, inerentes à prática clínica: ouve-se menos o doente e dáse-lhe menos espaço na consulta, porque o seu testemunho verbal foi desvalorizado.10 (p. 29-30)

Pode dizer-se que é neste contexto, neste equilíbrio difícil entre objetividade e rigor científicos e o reconhecimento da necessidade das palavras, do relato verbal, que emerge a Medicina Narrativa ou as Humanidades Médicas(l), como também têm sido chamadas. Trata-se dum campo de estudo que, nas últimas décadas, tem vindo a chamar a atenção para a necessidade de um recentramento na relação intersubjetiva que caracteriza a prática clínica, atendendo e acudindo às competências comunicativas e a uma preparação humanística por parte do pessoal para/médico que coloque a relação com a pessoa do doente no centro dos cuidados. Para tanto, a Medicina Narrativa, profundamente interdisciplinar, tira partido do contributo de áreas do saber do âmbito das Humanidades, designadamente, dos Estudos Literários, da Filosofia, da Ética, da Antropologia, 76

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A única personagem que, neste conto, tem a pretensão de usar uma linguagem médicocientífica é a governanta, que macaqueia o idioleto médico, procurando, assim, representar o papel que julga se espera dela. Trata-se de mais uma comparação, neste caso, irónica.

(k)

As designações variam, com os EUA privilegiando a designação “Narrative Medicine” (Medicina Narrativa - MN), e outros países, como o Reino Unido, preferindo a designação mais abrangente: “Medical Humanities” (Humanidades Médicas), a que correspondem, em França, as “humanités médicales.” Daí, por exemplo, o nome do programa pioneiro nos EUA: Program in Narrative Medicine, sediado no New York’s College of Physicians and Surgeons da Universidade de Columbia.

(l)


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Note-se que já o aparecimento dos Grupos Balint na década de cinquenta do século XX sinalizava a existência dum mal-estar e da necessidade de o colmatar: reconhecendo que a consulta médica é, no essencial, um ato de relação, visavam amparar o clínico, fazendo-o partilhar inter pares os dilemas e dificuldades da sua relação com o doente concreto e singular. O objetivo seria o de fomentar uma atitude mais empática e mais autoconsciente, abrindo caminho a uma relação de confiança entre ambos. (Fonte: http:// www.apmgf.pt/ficheiros/ Boletim_Inscricao_Balint. pdf)

(n)

artigos

(m) Preferimos traduzir “Evidence-based Medicine” por “Medicina baseada na prova,” dado que a tradução corrente: “Medicina baseada na evidência” atraiçoa o sentido do termo inglês “evidence,” o qual reclama, ao contrário do português, para ser incontestado, ser antes provado.

da Sociologia, entre outras. Se os anos oitenta do século passado testemunharam a emergência e a afirmação quase incontestada da “Medicina baseada na prova” (Evidence-based Medicine – EBM(m)), que abordaremos adiante, já o aparecimento desta nova área de investigação – Narrative-based Medicine – NBM ou Narrative Medicine – NM – tem conhecido menos protagonismo no âmbito das ciências médicas, muito embora não seja propriamente mais recente(n). Foi, sobretudo, nas décadas de oitenta e noventa do século passado que se fizeram notar, de forma mais decidida, publicações e iniciativas conducentes a um movimento que hoje se manifesta a nível mundial, mas muito em particular no mundo anglo-saxónico. Refiro-me ao aparecimento de programas académicos como o da Universidade de Columbia, fundado em 2000, e a publicações como as de Richard Zaner, Tricia Greenhalgh, Brian Hurwitz ou Rita Charon. A Medicina Narrativa, nas palavras da sua principal defensora, Rita Charon: “[é uma] medicina praticada com a competência narrativa para reconhecer, interpretar e ser levado a agir pela situação crítica dos outros”11 (p. 83). Em definição posterior e mais completa, Hurwitz contempla a diferença crucial entre singularidade biológica e a individualidade do doente (esta última objeto privilegiado da MN): [a] Medicina Narrativa é uma prática e uma atitude intelectual que permite aos médicos olhar para lá dos mecanismos biológicos no cerne das abordagens convencionais à prática médica, e abarcar domínios de pensamento e modos de dizer que se focalizam na linguagem e na representação, nas emoções e relações que iluminam a prática dos cuidados de saúde.12 (p. 73, tradução e ênfase minhas)

Defende-se ser esta a plataforma mais desenvolvida que existe para exercer clínica com as técnicas e a sensibilidade necessárias, a fim de sermos capazes de combinar o conhecimento clínico e científico com o entendimento interpessoal dos muitos e variados relatos encontrados nos cuidados de saúde individuais.12 (p. 84, tradução e ênfase minhas)

A questão central que hoje enfrentamos consiste em equilibrar os extraordinários avanços registados na medicina como ciência, ou melhor, na/s ciência/s médica/s, e a tendência para uma certa subalternização da relação interpessoal no encontro clínico, da escuta atenta da história do doente, da consideração do seu ambiente social e familiar, aspetos que, como se viu, alguns entendem ser consequência da crença inquestionada e (quase) exclusiva no valor decisivo dos exames auxiliares de diagnóstico e, sobretudo, no rigor das técnicas de imagem. Esta nova área interdisciplinar, focando-se na linguagem e/ou na representação, não rejeita os avanços científicos, antes, depende deles, mas combina-os com outras disciplinas, derivando sustento intelectual de domínios que vão além da estrita ciência, designadamente o das artes. Assume-se como atividade interpretativa e provisória, inalienável do contexto situacional em que é praticada12. Não sinalizando, propriamente, uma preocupação nova na medicina clínica, a MN é, porém, um campo inovador no modo como, pela primeira vez, conjuga a prática médica com áreas de investigação alheias a ela12. E responde, modernamente, ao crescente domínio do paradigma científico de base positivista, aliado a um profissionalismo algo estreito no exercício da clínica. A MN apareceu COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como o necessário complemento à institucionalização desse paradigma duro no exercício da arte médica, de base tecnológica, instalado no início dos anos oitenta do século XX e concretizado pela já referida EBM10. O que devemos entender por EBM? Nas palavras de um dos seus defensores: “[a] Medicina baseada na prova, ou medicina factual, define-se como a utilização consciente e judiciosa dos melhores e mais atualizados dados (provas) da investigação clínica, atendendo à especificidade de cada doente”13 (p. 71, tradução minha). Tais provas advêm de estudos clínicos sistemáticos, submetidos a testes extensivos de carácter aleatório, a meta-análises, a estudos transversais ou estudos de acompanhamento fidedignos. A EBM preconiza o recurso a uma revisão sistemática da melhor literatura médica disponível (sujeita a arbitragem científica), análise de risco/benefício e testes de controlo randomizado. Consiste, pois, em basear as decisões clínicas não apenas em conhecimentos teóricos, no julgamento e na experiência (principais componentes da medicina tradicional), mas, também, nas provas científicas, ou seja, os conhecimentos dedutíveis a partir de investigação científica sistemática, realizada sobretudo no plano do diagnóstico, do prognóstico e do tratamento de doenças e que se baseiam em resultados validados e aplicáveis na prática médica corrente. Ainda que os seus defensores aleguem não prescindir do julgamento e da experiência médicas e afirmem que a EBM é complementar em relação à prática médica tradicional, a verdade é que esta orientação acentuou o pendor cientificizante da “nova medicina” e levou os médicos, em gesto defensivo(o), a uma utilização excessiva de todo este tipo de resultados e decorrentes dados estatísticos, duma multiplicidade de testes e técnicas auxiliares de diagnóstico, o que determinou um aumento exponencial do número de exames (muitas vezes desnecessários), com riscos acrescidos para os doentes e um aumento significativo dos custos na saúde(p). Apesar de tudo, julgo que não devemos encorajar uma visão contraditória entre EBM e NBM/MN, mas, antes, como defende Parker16, afirmar que a EBM, devidamente concebida e complementada pela MN, pode constituir a condição necessária para o exercício consciente da liberdade clínica nos nossos dias. Mas a MN não preconiza apenas que os profissionais de saúde estejam somente atentos e disponíveis para acolher, na história clínica, as informações mais salientes do enredo que, pelo seu relato, o doente veicula, mas, também, que sejam recetivos e capazes de registar e descodificar a linguagem peculiar usada para o narrar, linguagem essa que, por vezes, pode até entrar em conflito com o ostensivo enredo da história relatada. Inspirando-se no método de leitura do New Criticism – o close reading, Charon gosta de usar a expressão close listening, para se referir ao tipo de atenção que o médico deve prestar ao que o doente lhe transmite. Pela capacidade de registarem o tipo de metáforas utilizadas, a repetição insistente de certas expressões, o ponto de vista e a sequência temporal adotados, as ambiguidades, os silêncios, entre outras características discursivas, os profissionais de saúde perceberão melhor e poderão, mais cabalmente, diagnosticar a situação psicossomática particular do doente que têm perante si. E isto só se consegue com treino. Charon defende que: “o treino narrativo ao nível da leitura e da escrita contribui para a eficácia clínica”17 (p.107). E acrescenta: “o tipo de decisões terapêuticas que tomamos pode ser marcadamente diferente do processo de decisão convencional, como resultado do aprofundamento narrativo da relação medico-doente”17 (p.191). À leitura dos sinais do corpo, deve aduzir-se uma descodificação das narrativas e outros indícios verbais e não verbais dos doentes, e uma consciência 78

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A expressão “medicina defensiva” é usada, a este propósito, por Antunes10 (p.24).

(o)

A este respeito, além de Antunes10, veja-se, também, David H. Newman14,15. (p)


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(q) Cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco21. Agradeço ao Professor Diego Gracia a chamada de atenção para a pertinência desta distinção aristotélica.

artigos

dos aspetos éticos e socioculturais envolvidos. Tal requer uma predisposição cognitiva particular que só uma formação humanística – aliada ao conhecimento e à experiência clínica – pode promover18,19. Esta apreensão e decifração da situação humana específica que, num determinado momento, caracteriza o doente, e que conduz ao diagnóstico, será tanto ou mais competente e eficaz quanto o profissional de saúde dispuser dos instrumentos de análise e interpretação capazes de lhe permitirem fazer sentido do relato que ouve. Parte desses instrumentos pode ser-lhe facultada pelos estudos literários, em geral, e, em particular, pelos contributos dados mais recentemente pela narratologia20. O reconhecimento desta necessária complementaridade entre um conhecimento científico de pendor universalizante, característico das ciências biológicas, e uma abordagem atenta e aberta às ressonâncias peculiares do caso histórico concreto que, no encontro clínico e na história clínica, vão sendo reveladas, ecoa a distinção estabelecida por Aristóteles, na sua Ética a Nicómaco, entre dois tipos de conhecimento. Refiro-me à díade sabedoria filosófica e sabedoria prática que, fazendo, ambas, parte do lado racional da alma, são de índole bem diferente. Orientada para a ação, a sabedoria prática não se ocupa apenas com universais, como é característico da sabedoria filosófica, mas, antes, atende aos factos particulares imediatos, conhecidos pela experiência. É este tipo de sabedoria que permite corrigir o raciocínio e conduz à excelência da deliberação, fim visado pelo ato clínico(q). A importância do reconhecimento duma interdependência entre saber científico, de carácter objetivo, com valor universalizante, e um outro tipo de saber, atento à situação contextual particular e, nesse sentido, provisório e dependente dum ato hermenêutico complexo, foi o que, em parte pelo menos, terá levado Lennard J. Davis e David B. Morris a publicarem, em 2007, o seu manifesto a favor do que designam de “biocultures” [“biocultura/s”], onde defendem o seguinte: Pensar na ciência sem incluir uma análise histórica e cultural seria como pensar o texto literário sem a teia contextual dos conhecimentos discursivos, ativos ou dormentes, em momentos particulares. É igualmente limitado pensar na literatura […] sem considerar a rede de sentidos que podem ser aprendidos a partir duma perspetiva científica. […] O biológico sem o cultural, ou o cultural sem o biológico, está condenado a ser reducionista, na melhor das hipóteses, e falho de rigor, na pior.22 (p. 411, tradução e ênfases minhas)

Com este termo, “biocultura/s,” pretendem validar e consolidar uma multiplicidade de experiências interdisciplinares que já estavam no terreno em inúmeras universidades e que vão desde as “Humanidades Médicas” ou “Medicina Narrativa” à história da medicina, passando pela: saúde pública, bioética, epidemiologia, estudos de identidade e do corpo, antropologia médica, sociologia médica, filosofia da medicina etc. Contestam, ainda, a legitimidade da tradicional fronteira entre as chamadas ciências duras e as restantes, por defenderem “a existência duma comunidade de intérpretes, transversal às disciplinas, intérpretes que estão dispostos a aprender uns com os outros”22 (p. 416, tradução e ênfase minhas). Na atual conjuntura, seria vantajoso que o pessoal de saúde e, em particular, os médicos se encarassem como membros duma “comunidade de intérpretes,” e, nesse sentido, valorizassem as competências interpretativas postuladas pelas exigências da “nova medicina”. Mas tal só se concretizará por via duma mudança COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de atitude, e esta só ocorrerá quando se abandonarem hábitos e uma mentalidade ainda agora demasiado arreigados no exercício da medicina. Treinado para curar, convicto de que a/s ciência/s médica/s e os seus inegáveis progressos são garantia de sucesso, o aluno das atuais escolas médicas não está preparado para admitir que não sabe ou que se enganou15. Daí que, quando confrontados com situações que fogem ao formato tipificado ou ao caso documentado e estatisticamente previsto, para já não falar do fracasso dos tratamentos, estes candidatos a médicos experimentem situações de ansiedade e desespero que nada deveria justificar. Conforme defende Newmann, a moderna ciência e, sobretudo, a Medicina “continua a tratar o organismo humano como um modelo de causa e efeito, uma máquina cartesiana com funções previsíveis e mensuráveis no mundo físico”. Ora, tal pressuposto é claramente inadequado, e não tem em conta a complexidade das “maquinações internas do corpo humano,” a grande maioria das quais está ainda por compreender15 (p. 34). Além disso, ignora ainda um outro fator, para o qual a física quântica chamou a nossa atenção: a importância do observador. Conforme argumenta Newmann: [o] modelo estóico do médico moderno que apoiamos – um observador objectivo e distante – não existe. A nossa presença altera a trajectória da doença e tem impacto sobre a experiência humana. Não somos espectadores indiferentes, nem devemos sê-lo; fazemos parte integrante e poderosa tanto da doença como da cura.15 (p. 223)

É isso mesmo que nos ensina o conto de Tchékhov, ao propor-nos um protagonista-médico que, confrontado com uma situação enigmática e atípica, acaba por envolver-se, deixando-se impregnar pelo ambiente que rodeia a paciente e tornando-se, assim, ‘parte integrante da cura’. Jack Coulehan, observador atento do uso de narrativas e de metáforas em medicina, mostrounos como a linguagem prevalecente na prática clínica reflete uma cultura que torna o doente num objeto e, o médico, alguém investido de poder para abordar esse doente-corpo, subalternizado23. Por exemplo, tome-se a expressão inglesa: “history taking” [em português, “colheita da história”], também ela metafórica, em que o peso conceptual de “history” sugere a objetivação do que o doente relata, ao mesmo tempo que está implícito tratar-se duma entidade que encontraremos se a procurarmos de modo suficientemente agressivo, tal como se procura uma caixa negra por entre os destroços da vida do doente. O verbo “taking” sugere, implicitamente, uma violação do doente. O médico como que arranca a história ao doente, como quem arranca um dente ou remove um apêndice. A “colheita” em português, outra metáfora, também ela sugere um acto agressivo, rapace, sublinhando a passividade do doente. Coulehan analisa, ainda, as metáforas mais recorrentes no discurso médico, e chama a atenção para as três mais usuais: a da guerra (a doença é o inimigo e o médico, qual comandante das tropas, propõe-se vencê-la), a paternal (a doença vista como ameaça e o médico como protetor) e a da engenharia (a doença como disfunção e o médico como técnico). Com o declínio das metáforas paternalistas, que a medicina contemporânea baniu, ganharam mais força as metáforas militares e mecânicas. Em ambos os casos, porém, a subalternidade do doente e a redução deste ou do seu corpo à dimensão de objeto são inescapáveis. Tal vai de par com a conceção do médico como um observador objectivo e distante, detentor do saber, que não se envolve. Numa época em que, constantemente, somos surpreendidos pelo reconhecimento da nossa interdependência global, seja em termos climáticos, políticos ou económicos, talvez fizesse mais sentido, como alguém sugeriu, substituir estas metáforas por outras mais holísticas; refiro-me a metáforas ambientalistas, cujos pressupostos remetem para a inter-relação entre as partes envolvidas e entre estas e o todo, evocativas da integralidade dinâmica quer do corpo social quer do corpo físico. O tratamento bem-sucedido da dor exige mais comunicação entre doente e médico, comunicação entre os vários profissionais e uma visão da medicina como qualquer coisa de inacabado e de integrativo, mais do que especializado, estandardizado e baseado em tecnologia. […] Talvez as metáforas devessem mudar do terreno da guerra para o do ambiente.

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(s) “More so than any other subject, literature lends itself to powerful teaching”25 (p. 74).

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(r) O autor continua: “Politicamente, pensar global tornou-se mais uma necessidade do que uma opção ideológica. As fronteiras já não protegem ninguém. A nossa relação com a terra tornou-se mais completa e inevitável. O mesmo se passa com a nossa saúde”24 (p. 356-7, tradução minha).

A medicina precisa de procurar ir para lá da consideração de sintomas isolados e de soluções agressivas e posicionar-se ao nível da ecologia de sistema alargado.(r)

Em última análise, o que a MN propõe é que venham a mudar-se as metáforas, e, com elas, toda uma cultura que tem caracterizado o modo como a medicina é hoje praticada. Não duvidamos de que se trata dum processo lento e com muitos obstáculos, mas a boa notícia é que ele já foi iniciado. Acreditamos, ainda, que os estudos literários, apesar de toda a sua história recente, caracterizada por antagonismos e clivagens, movimentos de ação/reação sucessivos ou, se calhar, precisamente por causa de tudo isso, atingiram uma maturidade que, no indispensável diálogo interdisciplinar, lhes permite darem um contributo decisivo, se souberem ser criteriosos no uso dos seus melhores instrumentos e métodos. E, para além do mais, não nos esqueçamos de que, como alguém fez questão de assinalar: “Mais do que qualquer outro assunto, a literatura presta-se a um ensino poderoso”(s) (Tradução minha).

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Fernandes I. Lecturas holísticas: de Tchékhov a la Medicina Narrativa. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):71-82. En este artículo se busca mostrar como en el cuento “Un caso de práctica médica”, el escritor ruso Anton Tchékhov, que era médico, presenta como ficción y llama la atención para aspectos de la práctica clínica tantas veces descuidados, específicamente la observación y la evaluación del ambiente en que viven los enfermos y también sobre aspectos de índole familiar, social e incluso sexual, así como la importancia crucial de la relación inter-personal del carácter dialógico entre médico y paciente. Se relacionará esta llamada de atención indirecta de Tchékhov con la situación actual en el dominio de la práctica clínica, recurriéndose al concepto de EBM (Evidence based medicine) como paradigma dominante en la actualidad en las prácticas médicas y la necesidad de complementarlo con el de NBM (Narrative based medicine) o Medicina narrativa.

Palabras clave: Anton Tchékhov. Medicina basada en pruebas. Medicina basada en la narrativa. Medicina narrativa.

Recebido em 12/08/14. Aprovado em 19/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0205

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Doenças midiaticamente negligenciadas: uma aproximação teórica

Aline Guio Cavaca(a) Paulo Roberto Vasconcellos-Silva(b)

Cavaca AG, Vasconcellos-Silva PR. Diseases neglected by the media: a theoretical approach. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):83-94.

Visibility in the media is a central condition for public awareness of social ills. Despite the increasingly large space dedicated to health in newspapers, the criteria for newsworthiness among health issues conform to journalistic and market logic. It can be understood that while intense coverage tends to exalt certain problems, the omission of others may contribute to political underrating of the latter. This paper aimed to pose the problem of ‘diseases neglected by the media’ i.e. healthcare demands about which little is published, and which are usually related to conditions of poverty and inequality, in order to develop a useful theoretical basis for studying them. For this, the following were proposed: posing the problem of media logic; reflection on the definitions of health needs and demands; analysis of the issue of media (in) visibility; and identification of the conceptual basis that situates ‘diseases neglected by the media’ as a category derived from such reflections.

Keywords: Health communication. Mass media. Public health.

Atualmente, a visibilidade midiática se apresenta como condição central para conhecimento público de mazelas sociais. Apesar dos espaços cada vez mais amplos dedicados à saúde nos jornais diários, os critérios para noticiabilidade obedecem à lógica jornalística e de mercado. Assim, entende-se que, enquanto a intensa cobertura tenderia a exaltar determinados problemas, a omissão de outros poderia contribuir para seu subdimensionamento político. Este artigo visa problematizar para desenvolver bases teóricas úteis ao estudo das ‘doenças midiaticamente negligenciadas’, constituídas pelas demandas em saúde sobre as quais pouco se publica, usualmente relacionadas às condições de pobreza e iniquidade. Propõese, para tanto: uma problematização das lógicas midiáticas; uma reflexão acerca das definições de demandas e necessidades de saúde; análise da questão da (in)visibilidade midiática, e, finalmente, identificam-se as bases conceituais que situam as ‘doenças midiaticamente negligenciadas’ como categoria derivada de tais reflexões.

Palavras-chave: Comunicação em saúde. Meios de comunicação de massa. Saúde Pública.

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(a) Doutoranda, Programa de Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21041-210. alineguica@hotmail.com (b) Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos, Instituto Oswaldo Cruz, Ensp, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. pr@ioc.fiocruz.br

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Introdução Entende-se que, nos dias de hoje, em que a visibilidade se torna condição central para conhecimento público de determinadas mazelas na sociedade, o estudo da exposição midiática e da audiência a determinados temas poderia identificar as condições de desenvolvimento de círculos de atenção social – essenciais à produção e reprodução de sentidos e às ações coletivas. Para tanto, é importante caracterizar escalas de valoração e dinâmicas de reprodução que implicam a magnitude conferida aos temas mais enaltecidos, assim como, no sentido inverso, as condições eventualmente negligenciadas por conta de sua débil visibilidade e sustentabilidade política. Dessa maneira, acredita-se que o espaço destacado para doenças ou condições de menor apelo político-midiático merece ser devidamente identificado, descrito e analisado por metodologias especificamente destacadas para tanto. Tal discussão se constrói sob as questões que abrangem dois campos já bem definidos – o da Comunicação e o da Saúde –, com suas características específicas, intersecções e tensões de fronteira. Adota-se o conceito de campo desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu1, que o define como parte do espaço social, microcosmo dotado de leis próprias, com autonomias relativas em relação a outros campos. O autor usa a noção de ‘campo de forças’ quando indica a distribuição desigual dos recursos nesses espaços, que se configuram, também, como campos de lutas pela manutenção ou mudança de posições dos agentes que neles atuam. Sob tais perspectivas, almeja-se problematizar possibilidades de pensar novas lógicas de valoração midiática no que se refere ao setor saúde, considerando que, conforme adverte Bourdieu1, os limites entre os campos são demarcados pelos efeitos que produzem em conjunturas específicas, sendo, portanto, permeáveis a novas disputas e possibilidades valorativas. Este artigo visa explorar os conceitos de necessidade de saúde versus negligência e visibilidade midiática, além de desenvolver insumos teóricos para a problematização das ‘Doenças Midiaticamente Negligenciadas‘ (DMN). Para apresentar a discussão proposta no presente estudo, o texto está estruturado em quatro segmentos: problematização das lógicas midiáticas e da influência da divulgação sobre saúde nas mídias; reflexão acerca das definições de demandas e necessidades de saúde; análise da questão da (in)visibilidade midiática e, finalmente, identificação e descrição das bases conceituais que situam as DMN como categoria derivada de tais reflexões.

Mídia, saúde e suas conjunções É cada vez mais evidente a influência das mídias e das novas tecnologias de comunicação na sociedade contemporânea, a provê-la de discursos, posicionamentos políticos e factoides. Os meios de comunicação concebem, assim, o concreto de nossa percepção e interpretação do mundo, de maneira a atuar como próteses do senso comum2. Quando se trata do suprimento da necessidade social da informação, a mídia amplia a visibilidade às questões coletivas, ao poder e ao mundo3. Além disso, possui o poder de pautar, ao público, os assuntos de interesse (Teoria do Agendamento), bem como de direcionar quais partes da realidade se tornarão visíveis (conceito de enquadramento)4. Nesse contexto, vale ressaltar que, quanto menor é a experiência direta do indivíduo em relação a um determinado assunto, maior é sua dependência dos meios de comunicação para compreender, contextualizar e posicionar-se perante informações e interpretações referentes a esse tema5, o que implica seu poder de influência política na sociedade. Existem atributos mais valorizados nos acontecimentos ordinários do dia a dia que os tornam noticiáveis (valores-notícia). Trata-se de critérios de noticiabilidade que, de uma forma geral, dizem respeito à: i) raridade e atualidade da informação; ii) proximidade cultural ou geográfica do fato; iii) significatividade e visibilidade do acontecimento e dos atores envolvidos; iv) possibilidade de entretenimento do público; v) exclusividade da informação, e vi) questões que mobilizam as paixões populares, dramáticas e inusitadas5. Segundo Türcke6, a notícia corresponde àquilo que merece ser noticiado – a ‘coisa’ pública – o não-negligenciável em nossa sociedade e dia a dia. Entretanto, sabe-se que a mídia se vale da lógica 84

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de uma indústria cultural, fomentada pelo interesse do público – não necessariamente o ‘interesse público’. Este, não raro, se detém no contexto de uma sociedade capitalista, no espetáculo como valor em si, que assume centralidade nas definições de prioridades da atenção coletiva. Dessa forma, a cultura das frivolidades, da coisa privada, produz, cada vez mais, uma forma de consumo sumamente valorizada pela indústria, frequentemente descontemplando o que se tem como ‘interesse público’, ou seja, questões ligadas à educação, saúde, política e justiça social. Campos et al.7 afirmam que a noticiabilidade se ampara (além das especificidades da produção jornalística) nas expectativas sociais pressupostas pela imprensa, que tende a conferir destaque aos fatos valorizados, de alguma maneira, pelo senso comum. Assim sendo, os critérios substantivos de um fato (a importância e o interesse gerados pelo acontecimento) seriam consensuais e determinariam sua seleção pela sociedade antes mesmo que a imprensa o fizesse. Tal ‘respaldo’, conferido para interesses universais humanos, ajudariam a explicar um conservadorismo dos valores-notícia através do tempo e das culturas. Entretanto, sob o ponto de vista do que aqui se pretende discutir, é fundamental questionar a coerência entre os valores sedimentados (seriam eles realmente consensuais?) em contraste com a relevância de outros temas, talvez mais urgentes. Como exemplo, a visibilidade sobre questões de saúde peculiares a populações em situação de vulnerabilidade poderia, a partir da ciência pública, conferir impulso político que talvez resultasse em benefícios à população implicada, a criar condições para o controle de suas mazelas – diferença entre interesse público e interesse do público, mais uma vez. De uma maneira geral, a mídia produz reações controversas no campo da saúde. De um lado, concebe uma demanda importante, no que diz respeito ao anseio de ocupação de mais espaços de visibilidade pública. Por outro lado, é analisada como uma antagonista por alguns gestores e pesquisadores que aspiram uma retratação fidedigna de suas percepções e discursos sanitários, negando, muitas vezes, a pertinência e legitimidade das lógicas próprias de noticiabilidade8. Nesse sentido, pode-se conceber visibilidade midiática como um dispositivo de produção e/ou legitimação de prioridades. Assim sendo, a negligência midiática, no que diz respeito a determinados assuntos de saúde, seria como uma nuance de ‘apagamento’ social, pois o que não existe é produzido como não existente, tornando-se invisível à realidade hegemônica do mundo. É certo que, apesar dos espaços cada vez mais amplos dedicados à saúde nos jornais diários das grandes cidades, os critérios para noticiabilidade dessas questões obedecem à lógica jornalística e de Mercado, na maioria das vezes descompassadas das demandas de informação dos receptores9 e, sobretudo, daquelas ligadas aos segmentos mais vulneráveis. Deste modo, os critérios de valor-notícia midiático mostram-se, na maioria das vezes, desarticulados das prioridades em saúde – um ‘valorsaúde’ – que apontariam para informações mais úteis à população sob condições insalubres, reversíveis e controláveis. Para melhor contextualizar a discussão proposta a respeito da relação visibilidade versus negligência midiática em saúde, apresentam-se algumas reflexões referentes à temática.

A influência da divulgação midiática da saúde Há muito, é bem conhecido o grande alcance das mensagens midiáticas em diversos níveis socioeducacionais10-12 como importante instrumento de promoção da saúde individual e coletiva. Os meios de comunicação social, juntamente com as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), conformam a gama de possibilidades de acesso às informações em saúde, aliados às tradicionais campanhas educativas governamentais, às estruturas da esfera assistencial, às escolas e à família13. Além disso, segundo alguns autores14, a incapacidade de grande parte dos técnicos em saúde de se comunicar eficazmente com os sujeitos, torna o estudo da natureza e da função dos meios de comunicação peça central no equacionamento dos problemas de saúde da sociedade. A influência midiática pode ser notada na procura por serviços de saúde, tanto por atendimentos de emergência quanto no planejamento de intervenções médicas futuras15,16. Tal influência também se exerce na estruturação dos sistemas de saúde, nas políticas públicas e no planejamento de recursos17. Ou seja, as decisões políticas em saúde não ocorrem em um vácuo sociopolítico: a mídia desempenha COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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papéis relevantes na visibilização de demandas, os quais geram círculos de atenção social, que, por sua vez, geram investimento em novas iniciativas, provimento de informações para os formuladores de políticas e influenciam a opinião pública nas priorizações em saúde na agenda governamental18. Como se vê, essa relação mídia e saúde mostra-se como campo multifacetado, que desperta o interesse de pesquisadores de diversos centros de pesquisas no Brasil e no Mundo19,20. No entanto, observa-se que o aspecto negativo de tais perspectivas, ou seja, os conteúdos de saúde relevantes, que são sistematicamente descontemplados, raramente são colocados como objetos de estudos. Tais questões apresentam a necessidade de se obterem mais subsídios para discussão do valornotícia das matérias ligadas ao campo da saúde (ou sua ausência). Na maioria das vezes, as questões de saúde dizem respeito ao ordinário do dia a dia, às questões altamente relevantes para a saúde dos indivíduos, mas que não representam nenhum ‘furo’ jornalístico. Entretanto, entende-se que a divulgação midiática de questões de saúde, relevantes para um determinado contexto, é importante tanto para atrair engajamentos de novos atores sociais, investimentos em pesquisas e desenvolvimento de novos fármacos, quanto para pautar os assuntos no dia a dia da população de uma forma geral. Sendo assim, dada a natureza de utilização pública e a vocação de ‘informar para modificar’ realidades, a ‘atração’ da mídia deveria também se basear em critérios de interesse público, e não apenas em questões inusitadas, espetaculares ou catastróficas, usualmente as de maior valor-notícia midiático. Contudo, como definir prioridades em saúde? Sob outras perspectivas, quais atores sociais seriam os ‘legítimos priorizadores’ de problemas/demandas relevantes ao destaque midiático? No contexto de um estado democrático, como e quem contaria com suficiente legitimação política para definir os ‘valoressaúde’ mais adequados ou urgentes para a sociedade? A discussão que se segue busca problematizar tais questionamentos.

Necessidades, demandas e ‘valor-saúde’: (in)definições A discussão das ‘necessidades de saúde’ de uma população (algumas vezes, descritas como reais necessidades de saúde) perpassa o entendimento intrincado e multifacetado do conceito de saúde e dos problemas de saúde pública, os quais já suficientemente debatidos por diversos autores21-23. Os modelos explicativos usualmente empregados para definir as demandas nesse campo amparam-se, em grande parte, nos referenciais da economia e do planejamento em saúde, centrados nas condições admitidas como anormais vividas pelos usuários, ou seja, baseiam-se na doença24. Tais modelos explicativos predominantes tendem a reduzir o sujeito pela objetivação da doença, cujas respostas são elaboradas restritamente a partir de conhecimentos especializados, amparados por suas racionalidades, de forma a desconsiderar a diversidade de contextos em que estas se inserem24. Esses argumentos nos incitam a alguns questionamentos: as demandas de saúde poderiam ser exclusivamente identificadas por um interlocutor qualificado, capaz de determinar a conformação adequada a partir de seu conhecimento técnico-científico? Mais que isso, cabe discutir se seria possível a determinação de ‘valores-saúde’ à maneira dos valores-notícia das mídias, únicos e quantitativamente determinados, diante de uma realidade social complexa e plural? É certo que o conhecimento epidemiológico tem pautado um ‘agendamento’ hegemônico da saúde, mediante sua capacidade de identificar e mensurar os agravos à saúde, bem como seus mecanismos de intervenção e controle, por meio do estudo da frequência, distribuição e dos determinantes de tais agravos25. Ressalta-se, também, sua função de apontar questões de relevância pública, no papel de ferramenta-chave para a administração da saúde de um país e para orientação das decisões políticas26. Todavia, é importante considerar que a própria discussão epidemiológica é permeada de questões sociais, e que um de seus objetos se situa no estudo dos determinantes sociais da saúde27. Portanto, a epidemiologia se apresenta como uma construção heterogênea em seus objetivos, métodos e práticas28, que admite, como recurso, a quantificação como estratégia central, mas que se mostra aberta às perspectivas críticas, multiculturais e de interlocução com a sociedade (e com as ciências sociais) para compreensão dos fenômenos que identifica e mensura com seus instrumentos26. Poderíamos considerar, então, que a epidemiologia detém o saber tradicionalmente instituído – mas não exclusivo – para determinar os critérios de priorização de problemas/questões, os ‘valores-saúde’ 86

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para a população. Mais que isso, é importante não se restringir à visão de custo-benefício balizada pelos indicadores e pelo planejamento normativo. A busca de uma análise plural e eticamente mais alinhada às necessidades de saúde de uma sociedade iníqua deve considerar, também, o prisma da vulnerabilidade social – que admite a exposição desigual das pessoas a determinadas formas de adoecimento. Isso implicaria um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas, também, coletivos, contextuais e ambientais, que derivam em suscetibilidade desigual a males e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para proteção dos grupos29. Deve-se observar que as necessidades de saúde não representam um bloco monolítico e conceitual que se limita às resoluções objetivas de problemas preconcebidos. De acordo com Cordeiro30, as necessidades de saúde podem ser concebidas em três dimensões: representação social, peculiar a cada classe social, gênero, faixa etária e às individualidades dos sujeitos; dimensão médica, a qual se expressa por meio da perspectiva clínica, levando, muitas vezes, a um conflito entre o saber ‘científico’ e o entendimento de necessidade dos indivíduos que recorrem aos serviços; e como concepção dos planejadores de saúde, baseadas, em sua maioria, em conceitos de custo-benefício. Já o conceito de demanda em saúde, segundo Cecílio31, seria a tradução das necessidades mais complexas do usuário, o seu pedido explícito, modelado pela oferta que os serviços fazem. Assim, o estudo dos indicadores epidemiológicos representa uma ferramenta objetivadora para identificação de necessidades de saúde, embora apresente limitações em seus recortes e perspectivas de coleta e análise de dados. Segundo Camargo Jr.32, tais ‘problemas de saúde’, antes de tudo, não são objetos dados que se oferecem passivamente à observação, mediante o emprego de técnicas adequadas. Entende-se que o processo de identificação de problemas de saúde seja uma negociação complexa entre vários atores, cujos resultados são contingentes e instáveis ao longo do tempo. Como possibilidade para reconhecimento e priorização dos problemas de saúde que representem maior risco em vista das vulnerabilidades da população e, sobretudo, para os grupos excluídos socialmente, alguns autores sugerem o diálogo com a epidemiologia, aliado à valorização da percepção dos indivíduos e à discussão da reorganização da gestão e da micropolítica de saúde31,33. Nessa acepção, Pinheiro et al.24 defendem a tese de que a demanda e o direito à saúde devem ser concebidos como concepções renovadoras de sentidos, significados e vozes de sujeitos, e interesses contextualizados e historicamente situados. De tal maneira, não é possível desprezar as potencialidades da epidemiologia na detecção de problemas e determinação de ‘valores-saúde’, desde que suas ferramentas sejam empregadas com a consciência crítica de suas incompletudes e da necessidade de se entender o lugar do indivíduo na construção social das demandas. Ainda que se discutam maneiras distintas de se analisarem problemas de saúde, a necessidade de metodologias de escuta e percepção da polifonia social aqui se faz mister. Em síntese, a partir da discussão (abreviada neste trabalho em vista das limitações de espaço) sobre as possibilidades de se determinarem ‘valores-saúde’, percebe-se que o emprego de sentidos únicos, legitimados exclusivamente por falas autorizadas, não sustentaria plenamente a compreensão de demandas, saberes e expectativas que emanam da sociedade. Além disso, o ‘valor-saúde’ deve buscar expressar as vulnerabilidades sociais (fragilidades dos mais prejudicados socialmente), e, não, apoiar-se apenas em critérios de custo-benefício, como muito utilizado no Planejamento Normativo na década de 1960. No entanto, os lapsos na circunscrição dos campos poderiam representar rico objeto de análise. Em face do exposto, propõe-se a reflexão do papel da mídia na problematização e enunciação das necessidades de saúde.

Visibilidade mediada e invisibilidade midiática A participação da mídia na construção da realidade é determinante atualmente. Considerada, por Thompson34, a ‘era da visibilidade mediada’, hoje, à medida que a comunicação se acelera e a extensão das diversas mídias cresce, altera-se a percepção da realidade: até mesmo considera-se a existência de algo de acordo com sua veiculação midiática35. No contexto da visibilidade mediada, a distinção de questões públicas ou privadas perpassa a sua divulgação: se diz ‘público’ algo aberto, acessível ao público, visível a espectadores, para que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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muitos o vejam ou ouçam. Já questões privadas, ao contrário, representam o que se esconde da vista dos outros, o que é dito ou feito entre um círculo restrito de pessoas34. A mídia possibilita, dessa maneira, que a publicidade de indivíduos, ações e eventos se dê independente da partilha de lugares comuns34, permitindo a visibilidade de realidades. Mais que isso, conforme salienta Türke6, os sujeitos se acostumam de tal maneira com a torrente de estímulos cotidianos – no interior de uma lógica de reprodução e apreensão de qualquer instante – que, paulatinamente, perdem a sensibilidade para o que não se anuncia, para o que não prende o olhar. A visibilidade se torna, desta forma, uma característica marcante dos tempos atuais, tal qual a intensa dependência dos meios de informação36. Assim sendo, no que diz respeito à saúde, a visibilidade faz-se determinante na construção e manutenção do lugar de fala dos indivíduos no espaço público e no mercado simbólico das práticas e políticas de saúde36,37. Torna-se essencial a capacidade de pautar os assuntos evidenciados pela mídia no dia a dia da população, incitando à discussão política sobre eles. Araújo et al.36 defendem que, assim como a visibilidade pode colaborar para o reconhecimento de necessidades de saúde, a invisibilidade pode levar à negligência. Na história recente, destaca-se a ampla dimensão midiática da aids, tornada um fenômeno social marcado pelo desenvolvimento biotecnológico, pelo ativismo social, enfrentamento e tomadas de posição, diante de sua divulgação e repercussão nos meios de comunicação38. Portanto, as decisões acerca do que se apresenta como necessidade de ação imediata – considerando o panorama político das sociedades democráticas – nem sempre são levadas a termo em vista da influência política de outros problemas de maior exposição pelos meios de comunicação. Os recursos direcionados aos setores sociais mais distanciados da percepção midiática e cultural não raro comprometem sua estabilidade política. A representação midiática do próprio Sistema Único de Saúde (SUS) como um cenário exclusivo de iniquidades torna-se um exemplo representativo da potencialização da negligência. Suas dimensões mais positivas, assim como os resultados de suas conquistas mais recentes, desaparecem sob a priorização e hipervisibilidade de suas limitações, sobretudo no campo da assistência hospitalar, o que reverbera no desestímulo à mobilização social na luta pelas pautas da saúde pública39. Portanto, ao discutir a desatenção midiática como fator de negligenciamento, devemos destacar sua propriedade formadora de sentidos e opiniões, assim como seu potencial de ocultamento da realidade. Mas, então, o que seria essa ‘negligência’? As mídias deveriam ser incluídas no rol dos atores sociais aos quais se delega um poder que é deliberado e sistematicamente omisso sobre uma realidade que expõe iniquidades? Perante seu dever de divulgar o que é de interesse da sociedade, poderia ser considerada uma ‘negligência de visibilidade’ quando se nega foco às questões que trazem sofrimento, morte e perpetuação de condições de exclusão social? A etimologia liga a palavra negligência à falta de atenção ou cuidado, desleixo, incúria40. Negligenciar denota não dar atenção, menosprezar, até mesmo esquecer. No que tange à esfera jurídica, a negligência relaciona-se à inércia psíquica e à inobservância ou omissão de dever do agente41. Apesar de não haver dever jurídico, entende-se que os meios de comunicação possuem deveres éticos e morais com a sociedade, bem como finalidade educativa e de promoção da cultura, conforme princípio garantido no Capítulo V da Constituição Federal42. Assume-se, portanto, como sentido de negligência midiática a iniquidade de não tornar visível quando é função acessível e urgente. Em outras palavras, quando há falha de intervenção originada por algo que deveria ser priorizado, mas não o foi, está colocada a negligência. O entendimento do negligenciamento midiático da saúde inspira-se no uso do conceito de negligência pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao definir as ‘doenças negligenciadas’. Tais doenças crônicas, incapacitantes e com condições estigmatizantes prevalecem em condição de pobreza e atingem um sexto da população mundial43. São, em sua maioria, de origem parasitária, e, no Brasil, as mais comuns são: doença de Chagas, dengue, esquistossomose, malária, leishmaniose, hanseníase e tuberculose44. Acredita-se que, para além da negligência atribuída à Ciência, ao mercado e ao Estado45, o silenciamento midiático acerca das doenças negligenciadas e de outros problemas de saúde contribui para sua perenidade, distancia politicamente responsáveis de vulneráveis, assim como reforça a alienação destes das mínimas condições de subsistência constitucionalmente garantidas. 88

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Sendo assim, entende-se que a visibilidade per se não garante priorização dos problemas de saúde; porém, há autores convencidos de que a ausência de espaços midiáticos suficientes para as necessidades dos indivíduos equivale à negligência em pesquisa, tecnologias, ações e serviços voltados para as mesmas36. Por esses motivos, destaca-se a relevância de se analisarem doenças e questões de saúde pouco tematizadas pelos meios de comunicação, apesar de sua relevância social – as doenças midiaticamente negligenciadas.

Doenças midiaticamente negligenciadas Amparados nas reflexões apresentadas até aqui, entende-se que os meios de comunicação podem estar implicados na negligência política, econômica e social de determinadas questões de saúde, como, também, podem veicular uma ‘comunicação negligenciada’ – centralizadora, descontextualizada e instrumental36. No entanto, considera-se, também, que a mídia pode ser negligente em relação a questões de saúde ao ignorá-las, priorizando a veiculação de banalidades em detrimento de informações relevantes à saúde da população. Além de discutir a negligência de informação, deve-se considerar a produção de ‘desinformação’ e ignorância por essa mesma mídia. É muito difícil saber o que ignoramos, mas é certo que, assim como o conhecimento, a ignorância é socialmente construída. De acordo com Proctor46, a ignorância é produzida por meio de mecanismos como: negligência deliberada ou inadvertida (‘sem querer’), supressão ou sigilo, destruição documental, tradição inquestionada ou uma miríade de formas de seletividade político-cultural inerente (ou evitáveis). Assim sendo, da mesma maneira que se produz conhecimento em saúde, seja por intermédio de estudos acadêmicos, seja por meio das ações governamentais, escolares, midiáticas de educação em saúde ou, até mesmo, por divulgação publicitária, se dá a produção de ignorância (e negligência) pelas mesmas instâncias. Pode ser passivamente construída – quando se foca determinado ‘lado’ da questão e se obscurece outro aspecto da mesma – ou ativamente construída, quando se tenta confundir ou enviesar as evidências de determinado efeito na saúde de um certo medicamento ou do próprio tabagismo, conforme ocorreu em nossa História recente, por exemplo. Cristensen47 explica como os valores jornalísticos já foram usados para perpetuar a ‘agnogênese’ intencionada pela indústria tabagista, que se valeu da objetividade jornalística e do critério do ‘equilíbrio e imparcialidade’ para justificar que o discurso científico era explorado de forma parcial e superficial. De tal forma, garantiu espaço a seus argumentos tendenciosos na notícia, a partir da premissa de que a mídia deveria dar voz aos diferentes atores e interesses sobre a questão do fumo. Há que se considerar, dessa forma, a possibilidade de as empresas jornalísticas (exceto honrosas exceções) produzirem informações ‘midiaticamente negligenciadas’ quando excluem, de sua agenda, assuntos que possam ferir interesses a que se prestam (aspectos políticos, econômicos e sociais indigestos ao capitalismo globalizado). Incluem-se, nesse cenário, alguns interesses escusos do próprio setor saúde, conformado por representações governamentais, civis, mas, também, comerciais, que não devem ser esquecidos. A tais ‘atores’, o que seria interessante que se continuasse a ignorar? Poderíamos afirmar que, enquanto a intensa cobertura tenderia a exaltar determinados problemas, a omissão de outros poderia contribuir para seu subdimensionamento político. Destaca-se, assim, a necessidade de ocupação de determinados espaços simbólicos e a relevância de se estudarem as doenças, agravos e problemas de saúde pouco tematizados pelos meios de comunicação. O problema em si não é a ‘necessidade’ de informação, pois não se pode responder à questão de falta de sentido com informações. Muitas seções de ciência e saúde encontram-se disponíveis, repletas de informações apresentadas ‘sem controvérsias’ – uma visão triunfalista da ciência, que alimenta ideias biopolíticas de saúde e doença, com caráter usualmente moralista e conservador. Então, por que almejar que as doenças e as questões de saúde NÃO sejam midiaticamente negligenciadas? Porque a mídia, ao privilegiar essa visão triunfalista da ciência, foca em assuntos de saúde que coadunam com a lógica de mercado e abordam a saúde com esse frame – valorizando o fútil, inflando o banal, prescrevendo comportamentos e vendendo mercadorias. Será que o fazem cientes de que a visibilidade é essencial para pautar políticas públicas e discussões nos mais diversos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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círculos sociais? Consideram, em suas pautas, as doenças relacionadas à pobreza, do interior dos países, dos subúrbios das cidades e das minorias sociais que deveriam ocupar espaços na mídia tanto quanto as novas biotecnologias revolucionárias “dos últimos tempos da última semana”? Admitindo-se a intensificação dos elos entre o direito à informação e o direito à saúde, destaca-se, portanto, a relevância de se analisarem as DMN. As mazelas de saúde que não despertam interesse jornalístico por não atenderem aos critérios de novidade e do extraordinário. A importância de devassar o que é invisibilizado: as doenças negligenciadas pela cobertura jornalística (assim como suas condições circundantes) e o peso desses silêncios sobre os segmentos sociais mais vulneráveis. Parte-se do questionamento do excessivo distanciamento entre os pesos que definem a divulgação de algum assunto (novidade, exclusividade, visibilidade, raridade), e os critérios que definem a relevância da divulgação das questões de saúde, sobretudo no que diz respeito às moléstias que prevalecem em condições de pobreza e não apresentam qualquer atrativo para a divulgação midiática. Dessa maneira, propõe-se a discussão sobre as diferenças entre as necessidades e valorações midiáticas (valores-notícia) e as necessidades de saúde (‘valor-saúde’), com o intuito de potencializar o diálogo entre ambos, a fim de propor uma lógica de valoração mais sintonizada. Sob tais ângulos, seria oportuna a criação de um ‘valor-saúde-notícia’9, que entenda a comunicação midiática mais do que um insumo de saúde, mas como componente estratégico do campo da Comunicação e Saúde, de alta relevância para o desenvolvimento de Políticas Públicas.

Considerações finais O estudo aponta encontros e desencontros entre saúde e mídia, evidencia ‘silenciamentos’ e lança algumas propostas de reflexão a respeito de DMN. Não se recusa, aqui, a legitimidade das lógicas de noticiabilidade, porém, clama-se por espaços e reprodução de discursos midiáticos mais contextualizados com as necessidades de saúde da população, capazes de pautar discussões e, quiçá, sobressair-se sendo utilidade pública. Afinal, a descoberta de demandas, muitas vezes, leva a um efeito de mobilização social que surpreende até as mais afinadas interpretações sociológicas. Importante também considerar que, embora legítimo num contexto genérico e abstrato, as mídias não são instituições monolíticas, inteiramente controladas por elites comprometidas com os interesses do capitalismo global48. Experiências alternativas, autônomas e marginais de comunicação massiva compõem um espectro de possibilidades de comunicação e saúde relevantes, que, muitas vezes, registram experiências contextualizadas e bem-sucedidas em comunidades, movimentos sociais e associação de pacientes, por exemplo. Trazem visibilidade para pautas periféricas e dão voz a atores invisíveis na grande mídia. Porém, ao mesmo tempo em que podem trazer à tona DMN, em sua maioria, são elas mesmas negligenciadas pelo mercado e sofrem de constrangimentos econômicos e políticos que as invisibilizam. A proposta de discutir um ‘valor-saúde-notícia’ trata de uma tentativa de aproximar os propósitos, de apresentar uma alternativa possível de sintonia. Provável sintonia, uma vez que os resultados não são garantidos. Mais que isso, não basta sintonizar as lógicas midiáticas (valores-notícia) e as necessidades de saúde (‘valor-saúde’) e viabilizar uma comunicação instrumental e transferencial para a população. Deve-se, pois, lutar por uma comunicação dialógica que não só corresponda às expectativas e necessidades dos sujeitos, mas que, sobretudo, lhes permita o acesso aos meios de produzir comunicação e fazer circular seus próprios sentidos, discursos e modos de entendimento da saúde e da vida, e suas necessidades daí decorrentes36. A partir das reflexões apresentadas neste artigo, buscou-se uma aproximação teórica da discussão das DMN, certos de que a identificação e discussão das mesmas prosseguirão em outros trabalhos. Almeja-se, assim, não só qualificar as DMN como uma categoria analítica, como, também, possibilitar a aproximação entre as perspectivas de saúde e midiáticas, por meio de uma avaliação mais acessível e, talvez, também mais sensível às discrepâncias ainda mal identificadas ou àquelas nunca percebidas.

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Colaboradores Aline Guio Cavaca responsabilizou-se por todas as etapas de produção do manuscrito. Paulo Roberto Vasconcellos-Silva responsabilizou-se pela revisão crítica e aprovação da versão final a ser publicada. Referências 1. Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1989. 2. Innerarity D. O novo espaço público. Lisboa: Editorial Teorema AS; 2006. 3. Gentilli V. Democracia de massas: jornalismo e cidadania. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2005. 4. Sousa JP. Elementos de teoria e pesquisa da comunicação e dos media. 2a ed. Porto: Universidade Fernando Pessoa; 2006. 5. Wolf M. Teorias da Comunicação. 5a ed. Lisboa: Editorial Presença; 1999. 6. Türcke C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Unicamp; 2010. 7. Campos MATF, Vieira CDD, Mota JAC. A infância sem segredos: a noticiabilidade jornalística do crime de exploração sexual de crianças e adolescentes. Interface (Botucatu). 2009; 13(30):17-29. 8. Araújo I. As mídias, as instituições de saúde e a população: convergências e divergências na comunicação sobre a prevenção da dengue. Organicom. 2012; 9(16/17):50-66. 9. Epstein I. Comunicação de massa para a saúde: esboço de uma agenda midiática. Rev Latinoam Cienc Comunic. 2008; 5(8-9):132-42. 10. Moraes HJP, Sá JB. Mídia e educação: reflexões, relatos e atuações [Internet]. In: Anais do 3o Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP; 2010; Tubarão, Brasil. Tubarão: Ed. da Unisul, 2010. p. 1-8. 11. Bévort E, Belloni ML. Mídia-educação: conceitos, história e perspectivas. Educ Soc. 2009; 30(109):1081-102. 12. Epstein I. Comunicação e Saúde. Comunic Soc. 2001; 22(35):159-86. 13. Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD, Bagrichevsky M, Griep RH. As novas tecnologias da informação e o consumismo em saúde. Cad Saude Publica. 2010; 26(8):1473-82. 14. Ratzan S, Payne S, Bishop C. The status and scope of health communication. J Health Commun. 1996; 1(1):25-42. 15. Taberner JS, Leite PC, Cutait MM, Takada J, Mansur AP, Caramelli B. A influência da mídia nos atendimentos cardiológicos de urgência: o caso Bussunda. Rev Assoc Med Bras. 2007; 53(4):335-7. 16. Sudore RL, Landefeld CS, Pantilat SZ, Noyes KM, Schillinger D. Reach and impact of a mass media event among vulnerable patients: the Terri Schiavo story. J Gen Intern Med. 2008; 23(11):1854-7. 17. Canela G. A cobertura jornalística das políticas públicas sociais: elementos para debate. In: Canela G, organizadores. Políticas públicas sociais e os desafios para o jornalismo. São Paulo: Cortez; 2008. p. 10-30. 18. Hudacek DL, Kuruvilla S, Kim N, Semrau K, Thea D, Qazi S, et al. Analyzing media coverage of the Global Fund Disease compared with Lower Funded Diseases (Childhood pneumonia, Diarrhea and Measles). PLoS ONE. 2011; 6(6):1-9. 19. Njaine K, Minayo MCS. A violência na mídia como tema da área da saúde pública: revisão da literatura. Cienc Saude Colet. 2004; 9(1):201-11.

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Cavaca AG, Vasconcellos-Silva PR. Enfermedades objeto de negligencia en los medios: una aproximación teórica. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):83-94. La visibilidad en los medios se presenta como condición central para el conocimiento público de los males sociales. A pesar de los espacios cada vez más amplios dedicados a la salud en los periódicos, los criterios para ser noticia obedecen a la lógica periodística y de mercado. Se entiende que, mientras la cobertura intensa tendería a exaltar determinados problemas, la omisión de otros podría contribuir para su sub-dimensión política. El objetivo de este artículo es la problematización para el desarrollo de bases teóricas útiles para el estudio de las ‘enfermedades objeto de negligencia en los medios’, constituidas por las demandas en salud sobre las que poco se publica, usualmente relacionadas a las condiciones de pobreza e inequidad. Se propone una problematización de las lógicas de los medios, una reflexión sobre las definiciones de demandas y necesidades de la salud, el análisis de la cuestión de la (in)visibilidad en los medios yse identifican las bases conceptuales que sitúan a las ‘enfermedades objeto de negligencia en los medios’ como categoría derivada de tales reflexiones.

Palabras clave: Comunicación en salud. Medios de comunicación de masa. Salud pública.

Recebido em 01/02/14. Aprovado em 29/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0151

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Trabalhadores dos Centros de Atenção Psicossocial de Alagoas, Brasil: interstícios de uma nova prática Mara Cristina Ribeiro(a)

Ribeiro MC. Psychosocial care center workers in Alagoas, Brazil: interstices of new practices. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):95-107.

Psychosocial care centers are one of the main strategies for ensuring mental healthcare within the scope of the brasilian psychiatric reform and have required considerable numbers of workers involved in new practices. In this study, it was sought to discover how the process of introducing these workers into the services took place, how they are perceived and how they perceive their practices within the new context. This was a qualitative study using the method of thematic oral history, guided by interviews in order to produce data. Thematic analysis was used to discuss the results. From this analysis, four thematic categories emerged: integration with the services; distress among the workers; new care technologies; and precarious employment. The statements indicated that there was a need for care among the workers, taking into considering the demands on them, with the aim that these services might function at their full potential.

Os Centros de Atenção Psicossocial constituem uma das principais estratégias para a garantia de cuidados em saúde mental no enfoque da Reforma Psiquiátrica brasileira, e têm requerido considerável número de trabalhadores envolvidos em uma nova prática. Neste estudo buscouse conhecer como se deu o processo de inserção desses trabalhadores nos serviços, e como eles se percebem e percebem suas práticas dentro do novo contexto. Trata-se de pesquisa qualitativa, na modalidade História Oral Temática, guiada por entrevistas para a produção dos dados e análise temática para a discussão dos seus resultados. Da análise, emergiram quatro categorias temáticas: inserção nos serviços; sofrimento do trabalhador; novas tecnologias de cuidado, e precariedade do trabalho. Os depoimentos apontam a necessidade do cuidado sobre o trabalhador considerando, também, suas demandas, para que esses serviços possam funcionar com toda a sua potencialidade.

Keywords: Mental health. Healthcare workers. Psychosocial care centers. Qualitative research.

Palavras-chave: Saúde mental. Trabalhadores de saúde. Centros de Atenção Psicossocial. Pesquisa qualitativa.

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(a) Curso de Terapia Ocupacional, Centro de Ciências Integradoras, Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas. Rua Doutor Jorge de Lima, 113, Trapiche da Barra. Maceió, AL, Brasil. 57010-300. maracrisribeiro@ gmail.com

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Introdução Com a aprovação da Lei 10.216 de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, o Brasil começa a mudar as suas características em relação ao cuidado em saúde mental de forma efetiva. Algumas portarias subsequentes passam a dar o suporte necessário para a construção de uma rede de serviços substitutivos que possibilitam a implantação e sustentação do modelo de atenção psicossocial. Em 2002, destacamos a Portaria GM 336, que adota o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como novo modelo de atenção, define modalidades diferentes segundo porte e complexidade desses serviços em seus territórios (CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSad, CAPSi); e a Portaria SAS 189, que insere novos procedimentos na atenção psicossocial, ampliando o financiamento dos novos serviços e instituindo diferentes modalidades de pagamento, bem como incentivo financeiro aos municípios que aderirem à criação desses serviços em seus territórios1. O CAPS é um serviço integrado à rede SUS, criado no bojo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e, portanto, de caráter substitutivo ao hospital psiquiátrico. Aberto e comunitário, tem como objetivo atender pessoas com transtorno mental severo e persistente, oferecendo cuidados na perspectiva clínica e da reabilitação psicossocial, sob a lógica da territorialidade. O cuidado oferecido nesse espaço deve estar alinhado de forma integral e intensiva, ofertando respostas às diversas dificuldades apresentadas por seus usuários no desenrolar de suas vidas cotidianas2. Para tanto, dispõe de equipe multidisciplinar em ações interdisciplinares, oferecendo: atendimentos individuais e grupais, oficinas terapêuticas, oficinas de geração de renda, atividades lúdicas, desportivas, tratamento medicamentoso, atendimento familiar, entre outras estratégias para garantir a construção de um lugar social aos seus usuários e estimular seu protagonismo frente à vida2. Com a publicação de outras portarias ministeriais, que aprimoraram e ampliaram o incentivo à sua implantação, pôde-se verificar um aumento significativo desse dispositivo de cuidado em todo o território nacional, sobretudo nos municípios de menor porte, contribuindo para a interiorização da assistência extra-hospitalar. No caso do estado de Alagoas, o processo de construção de um novo modelo de cuidados aos sujeitos em sofrimento psíquico tem singularidades importantes. O número de CAPS, em todo o Estado, saltou de sete, em 2004, para cinquenta no final do ano de 2012. É necessário apontar que, mesmo com o incremento quantitativo, é preciso investir na qualificação dos serviços CAPS existentes, para que passem a representar o modelo de tratamento a ser seguido, substituindo concretamente a referência que, atualmente, é representada pelos hospitais psiquiátricos. Haja vista o Estado ocupar o 2º lugar no ranking nacional de leitos psiquiátricos por habitantes. Atualmente, Alagoas possui oitocentos e oitenta leitos psiquiátricos SUS, distribuídos entre os municípios de Maceió e Arapiraca. Na capital do Estado, é onde existe a maior concentração de leitos, com setecentos e sessenta. No decorrer do ano de 2004, em função da Portaria GM 52, realizou-se uma diminuição programada e pactuada de quarenta leitos por hospital, ficando três hospitais com um total de cento e sessenta leitos cada, e o maior deles, com duzentos e oitenta. Apenas um hospital não diminuiu o número de leitos por já possuir cento e vinte leitos desde a sua criação. Com relação aos serviços extra-hospitalares, além dos cinquenta CAPS (I e II), o Estado possui apenas um CAPS III, inaugurado em 2013, referência para tratamento de álcool e outras drogas, e oito ambulatórios especializados em saúde mental; nenhum Serviço Residencial Terapêutico habilitado pelo Ministério da Saúde, e o número de beneficiários do Programa de Volta para Casa é ainda muito baixo, apenas 22. Também não há Centros de Convivência e Cultura. Embora os CAPS representem, praticamente, o único espaço de atenção às pessoas em sofrimento psíquico no modelo da Reforma Psiquiátrica, é possível afirmar que o crescimento numérico desses serviços possibilitou uma nova experiência de cuidado a muitas pessoas que só conheciam a internação como forma de tratamento. No entanto, o processo de transição de modelos – de um modelo asilar para um modelo comunitário territorial – é ainda frágil, uma vez que estes modelos coexistem, ambos como forças políticas, ideológicas e sociais. O que se percebe é o aparecimento de uma força paralela que luta pelo seu espaço, como forma alternativa diante da potência asilar. 96

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Uma questão bastante importante nesse processo é que a diferente lógica de funcionamento da assistência nos serviços não hospitalares traz, para os profissionais inseridos nesses dispositivos, novos desafios, requer atores comprometidos com uma nova forma de lidar com o conhecimento, capazes de articular conhecimentos profissionais específicos com o da rede de saberes envolvidos no sistema de cuidado. O trabalho no CAPS lida, portanto, com toda ordem de subjetividade humana, sendo necessária a instituição de relações sociais intensas e o uso de diferentes dispositivos terapêuticos, funcionando no modo psicossocial, em que a produção de novas práticas é pautada na ampliação das possibilidades de vida dos sujeitos ali assistidos3. O presente estudo parte do pressuposto de que a análise da trajetória da construção de uma nova prática, sob a perspectiva de seus trabalhadores, oferece subsídios para compreender esta realidade. Acredita-se que, a partir dessa compreensão, é possível o reconhecimento de limites e a indicação de possibilidades de novos caminhos.

Metodologia A realização de uma pesquisa com base na compreensão, olhar e vivência dos atores implicados no fenômeno investigado, solicita a escolha de um método que considere as especificidades do objeto de conhecimento e possibilite o entendimento do contexto de pesquisa e da dimensão da experiência humana o mais próximo da realidade. A realidade que o estudo quer conhecer é o cuidado em saúde mental, mas o cuidado percebido dentro de uma conjuntura de transformações sociais, políticas, culturais, ideológicas e comportamentais que têm marcado a saúde mental nos últimos anos. Essas transformações, com toda a sua carga histórica, não poderiam ser “medidas” ou reduzidas a avaliações numéricas ou dados estatísticos. O nosso objeto de estudo, por sua riqueza e complexidade, necessita de um olhar que penetre transversalmente as várias facetas que o compõem – seus sujeitos, suas histórias e vivências, os processos de construção envolvidos, seus limites e desafios. Para tanto, a abordagem qualitativa mostra-se bastante precisa por convergir uma variedade de saberes e práticas que permitem desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos. Ela valoriza a figura do sujeito e de seus significados na produção dos resultados, pois se aplica ao estudo: da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, sentem, pensam e constroem seus artefatos e a si mesmos4. A investigação ora apresentada faz parte da pesquisa intitulada “A saúde mental em Alagoas: trajetória da construção de um novo cuidado”. Os sujeitos desta foram: usuários, familiares dos usuários, trabalhadores dos serviços CAPS, gestores públicos e docentes universitários. Neste artigo, apresentamos os resultados referentes ao estudo específico dos trabalhadores. Para a produção dos dados, utilizou-se a História Oral Temática, por corresponder a uma narração mais restrita do depoente, mais direcionada para uma determinada temática, em que o compromisso é a elucidação ou a opinião do narrador sobre algum evento definido5. Assim, com o propósito de fazer emergir a vivência, a experiência e a percepção dos participantes, utilizou-se um roteiro com perguntas norteadoras para as entrevistas. Participaram da pesquisa oito trabalhadores técnicos de quatro diferentes CAPS do estado de Alagoas. As formações desses profissionais variaram: um assistente social, um enfermeiro, dois médicos psiquiatras, dois psicólogos e dois terapeutas ocupacionais. As entrevistas ocorreram no período entre novembro de 2010 a fevereiro de 2011. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas. Com relação à análise dos resultados, considerando as características da pesquisa e dos sujeitos que emprestaram seu conhecimento e vivência, avaliou-se que a melhor técnica seria a Análise de Conteúdo na modalidade Análise Temática, por ser considerada bastante apropriada para as pesquisas qualitativas em saúde4. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Os depoimentos foram analisados buscando-se identificar as recorrências e as singularidades nas trajetórias do exercício do trabalho dos sujeitos entrevistados, a fim de que se identificassem possíveis interseções entre suas histórias e suas percepções relacionadas às novas práticas exercida nos CAPS. Dessa forma, a análise dos depoimentos emergidos originou uma reorganização em categorias temáticas.

Resultados e discussão Ao serem tecidas as considerações levantadas por meio das entrevistas, iniciou-se o processo de análise dos dados, que remeteu a questões específicas do início das histórias dos entrevistados como profissionais, da sua entrada nos CAPS, suas realizações, suas frustrações, sofrimentos e necessidades ligadas à nova prática. Assim, delinearam-se as categorias temáticas explicitadas a seguir.

Inserção nos serviços A complexidade gerada nas novas formas de cuidado exige que os serviços passem a incorporar toda ordem de contradições e demandas ao seu funcionamento. Nesse sentido, uma das primeiras contradições detectadas em nossa pesquisa foi nas falas da maioria dos trabalhadores entrevistados, que revelaram um significativo despreparo para a prática exigida no cotidiano dos serviços quando começaram a trabalhar nos CAPS: “A gente chega sem nenhuma preparação... Como é que eu vou lidar com esse paciente, como é que a gente deve fazer, minha gente? O que é que eu faço? Como é que eu falo com ele? Como é que eu abordo a família? Como é que a gente resolve essa situação? Então assim a gente vai adquirindo muita experiência com os colegas, mas não existe uma preparação...” (T2) “Quando eu cheguei na Secretaria e que me disseram que eu vinha para um CAPS, foi surpresa pra mim porque até então eu sabia muito pouco, só na formação mesmo eu passei dois dias, mas eu não sabia quase nada”. (T8)

A falta de experiência e a ausência de formação específica para a atuação podem criar um distanciamento entre os sujeitos que ali trabalham e os pressupostos básicos da atenção psicossocial, alicerces tão necessários nos serviços de atenção à saúde mental, regidos sob a égide da Reforma Psiquiátrica. A pouca experiência dos profissionais é compreendida, na fala dos entrevistados, como fragilização do cuidado: “[...] se não tiver uma supervisão, um acompanhamento melhor da equipe onde ela seja preparada para estar batendo, para estar lutando, trazendo as propostas para serem discutidas em cima de leis a gente vai terminar em mini-hospitais e isso a gente não pode deixar acontecer”. (T3) “Os instrumentos substitutivos do hospital psiquiátrico deixam muito a desejar até em condições mesmo de material humano, de formação, de capacitação, um grande número inclusive de psiquiatras ainda não estão familiarizados em trabalhar em CAPS”. (T5)

Estudos6,7 têm evidenciado grandes lacunas entre a formação dos trabalhadores e as exigências práticas nos CAPS. Estes vêm demonstrando a dificuldade do trabalhador em conciliar o seu aprendizado teórico com os desafios do cotidiano que o novo cuidado em saúde mental incita. O que indica que os cursos universitários com formação em saúde podem ter um papel significativo no fortalecimento desses espaços se incluírem, em seus programas pedagógicos, o aprendizado e a assistência dentro dessas novas perspectivas de cuidado, e não apenas reproduzirem a manutenção de 98

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um saber tradicional, coerente com o modelo biomédico de atenção, que está voltado para o indivíduo em sua doença. Outro caminho a ser apontado é o envolvimento das Universidades nas novas propostas da saúde mental por meio da construção de parcerias entre as instituições de ensino e os serviços, é preciso investir na formação de profissionais neste novo modelo. Sabe-se que as atividades de ensino desenvolvidas dentro dos serviços colaboram tanto na atualização dos profissionais da instituição quanto na formação dos novos profissionais que logo entrarão no campo de trabalho. Essas parcerias têm importante papel no processo de reformulação constante da assistência em saúde mental, pois garantem o questionamento contínuo das práticas, a aproximação do campo teórico, a não-cristalização de posturas e, por meio desse contato, propiciam o aparecimento de ideias inovadoras que podem resultar em experiências que agregam o campo teórico ao prático8. A Educação Permanente em Saúde também constitui uma estratégia fundamental para assegurar a incorporação, pelos trabalhadores dos CAPS, das mudanças exigidas nas novas práticas e políticas em saúde mental, contribuindo para a qualificação do seu fazer cotidiano nos serviços. Acrescida a estes aspectos, outra questão importante apontada nas falas foi a forma como estes trabalhadores foram inseridos nos serviços: “Eu passei num concurso público e entrei no município. E aqui, me jogaram pra cá, ninguém diz pra onde é que você vai... Foi saúde? Vai para o CAPS... [...] A gente não escolhe, não tem muito o que escolher pra onde vai... eu fui colocada”. (T1) “Eu acho que todo mundo... e realmente eu já me certifiquei com os profissionais, todo mundo que fica sabendo que vai pra trabalhar com saúde mental, toma um susto, eu também tomei esse susto, mas assim, sem saber como era o trabalho, sem saber como é que funcionava”. (T2) “O que acontece? 70% dos CAPS é assim: você passa num concurso e você tem que ser lotado em um lugar e o CAPS é mais um lugar. Você tem que... que trabalhar. Foi assim comigo, entendeu, e me assustou muito essa possibilidade de trabalhar em saúde mental”. (T6)

A relação dos profissionais com seus locais de trabalho deveria estar apoiada em identificação com as propostas, desejos de contribuição, escolhas mútuas de parcerias reais. Na área da saúde mental, dentro dos serviços públicos substitutivos dos hospitais psiquiátricos, acrescentamos, a isso, compromisso político e ético com a proposta da desinstitucionalização. Nesta pesquisa verificamos que, na maioria dos casos, isso não ocorre, o que nos faz inferir que esta condição pode contribuir para o aparecimento de estresse, angústias e frustrações entre os trabalhadores. Além disso, esse sentimento de não-pertencimento à área da saúde mental ou a postura de descompromisso com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica podem resultar em ações prejudiciais ao serviço e, sobretudo, aos usuários e seus familiares: oficinas que se estruturam somente em base do produtivo, e não do que produzem concretamente sobre o singular de cada usuário; grupos que funcionam como espaços banalizados, sem clareza de seus objetivos e do seu significado para cada usuário; grupos de família em que os familiares são constrangidos a se exibirem na frente de outros em seus aspectos mais íntimos e doídos9. É importante nos atermos à subjetividade daqueles que tratam. Indagarmo-nos como eles são inseridos nos serviços, como eles se sentem trabalhando com o sofrimento psíquico grave, qual a sua disponibilidade para trabalhar de forma interdisciplinar com ações no território, na perspectiva da reabilitação psicossocial. A resposta a essas questões pode explicar a diferença entre os serviços que colocam o sujeito como foco de suas ações e os serviços que colocam a doença como foco. Reconhecer esses entraves, aprofundar as reflexões sobre essa realidade na intenção de melhorar o serviço por meio da qualificação de seus trabalhadores é fundamental para evitar posturas e condutas que colocam em risco o processo pretendido de transformação da assistência em saúde mental. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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É interessante e animador notar que, apesar de as falas anteriores expressarem essa grave realidade, estes mesmos profissionais têm o reconhecimento de que é preciso estar inserido nas novas propostas de cuidado e, para isso, muitos apontam mudanças ocorridas com o desenvolvimento de suas práticas e experiências: “O que me motiva atualmente é realmente conhecer melhor essa política e contribuir, contribuir aqui com o município, na minha área, pra que realmente essa política funcione do jeito que tem que funcionar.” (T2) “Eu acho que é a primeira questão, ter profissionais comprometidos que podem não ter o saber, mas o saber se aprende, se aperfeiçoa. Agora o comprometimento ético ou você tem ou você não tem.” (T4)

Podemos supor que as falas expressas demonstram o desejo de mudanças internas para uma postura mais qualificada no cuidado com o usuário dos serviços que, muitas vezes, mesmo que descolada de um saber técnico, tem a intencionalidade de construção de práticas alternativas e substitutivas. Foucault10, ao discorrer sobre a construção do saber, afirma que há saberes que são independentes das ciências, mas não há saberes sem uma prática discursiva definida. Nesse sentido, nossos entrevistados parecem estar descobrindo esse caminho na construção de seus saberes.

Sofrimento do trabalhador Um fato importante que devemos considerar é que o próprio trabalhador desses serviços passa a demandar cuidado, pois, como vem sendo evidenciado por vários pesquisadores da área, existe uma forte incidência de relatos de sofrimento, exaustão, medo, advindos de um cotidiano habitado por intensas demandas de cuidado11,12. As falas a seguir corroboram a ideia da necessidade de um olhar mais apurado sobre este trabalhador: “A gente se apoia muito um no outro justamente pra ninguém adoecer também, porque a gente se expõe muito, sabe, é um ambiente onde a gente se expõe, se expõe mesmo...” (T1) “A gente vê profissional adoecendo, não é porque quer... porque na hora que o bicho aperta adoece mesmo, até porque a pressão aumenta, a diabetes aumenta, tudo aumenta... como um mecanismo de defesa mesmo.” (T7)

As transformações do cuidado no novo contexto da saúde mental geram impasses, incertezas, conflitos e ansiedades sentidos cotidianamente pelo trabalhador. A substituição da prática manicomial por uma prática ainda em formação produz sentimentos das mais diversas ordens. Diferente das relações asilares, marcadas pelo distanciamento entre os profissionais, os pacientes e seus familiares, as relações estabelecidas nos serviços como os CAPS estimulam trocas intersubjetivas que produzem tensões. Aliados a estes aspectos podemos citar outros que têm sido apontados como fatores que dificultam o exercício da prática profissional: desvalorização da saúde mental enquanto área de trabalho; a existência de diferentes formações discursivas, as contradições ante a riqueza de criação e inventividade que os CAPS proporcionam, e a falta de investimento que impõe limites e sobrecarrega o trabalhador; as formações profissionais que ainda seguem o modelo clínico-biológico, confrontando-se com a necessidade da prática na perspectiva da atenção psicossocial13,14. Merhy12, ao referir-se à tristeza, sofrimento e exaustão relatados em equipes de trabalhadores de saúde mental, propõe a instituição de arranjos autogeridos pelos trabalhadores, como parte de seus cotidianos, que lhes permitam reordenar estes sentimentos, se recolocarem em relação às 100

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novas oportunidades e tomarem a alegria como indicador da luta contra estes sentimentos e como analisadora de suas práticas. Apostar na construção de processos de trabalho que produzam cuidados para os usuários e cuidados para os cuidadores é vital, neste percurso. Permitem vivificar o trabalho em saúde que aposta na construção da qualificação de vidas12. Portanto, para que este novo cuidado possa ser reconhecido em posturas acolhedoras, escutas qualificadas, ações de inclusão e reabilitação, é mais que urgente a criação de estratégias e iniciativas que gerem alívio e alegria também aos seus executores. Evitando soluções como a da fala abaixo: “[...] eu tenho pensado isso, a doença mental não é fácil lidar, a gente coloca o que é da gente muito na hora, como é muito difícil, eu acredito que alguns se protegem e cada um vai se proteger do jeito que pode se proteger, eu sei que não posso estar criticando por conta disso, eu também me protejo quando não aguento, uns se protegem mais outros menos, quem vive dentro das salas é pra se proteger mesmo.” (T7)

A construção de um trabalho comprometido com o cuidado de pessoas deve estar atenta à produção de cuidados não apenas em uma de suas esferas, mas, sim, à criação de potencialidades internas que deem conta de suas várias ordens de necessidades e possibilidades na produção de subjetividades de todos os seus atores. Sabe-se que os resultados positivos de um serviço como os CAPS estão diretamente ligados à satisfação e à atenção das necessidades também dos seus trabalhadores, portanto não é possível alcançar a qualidade pretendida na assistência se não forem adotadas estratégias, por parte da equipe e dos gestores, de enfrentamento dessas questões15.

Novas tecnologias de cuidado Para que estes novos espaços possam agir na potência esperada, é preciso que as pessoas que os fazem existir como espaços terapêuticos, de acolhimento, de cuidado, ou seja, seus trabalhadores, estejam afinados com essa força de recursos. Para alguns de nossos entrevistados, essa força só é possível por meio do uso de novos instrumentos de trabalho. “No serviço do CAPS o paciente tem contato direto com todos os profissionais que fazem parte do serviço [...] a relação também dos profissionais com a família ficou mais estreita, então facilita muito na questão do trabalho, do acompanhamento desses pacientes...” (T2) “Eu acredito que seja uma equipe, uma equipe que tenha uma integração, que realmente todos falem a mesma língua na questão da proposta, que todos tenham o mesmo olhar, é onde a gente hoje usa a questão do acolhimento, a porta de entrada, isso é um ponto forte do CAPS...” (T3) “Eu usufruo da equipe, da forma de trabalho da Reforma Psiquiátrica, quando se atuam diversos profissionais da área de saúde, obviamente trazendo benefício para o paciente. Eu me situo como participante dessa nova visão porque aceito essa interdisciplinaridade.” (T5)

O novo cuidado em saúde mental fornece, aos seus trabalhadores, um arcabouço de novas tecnologias: o trabalho em equipe, a interdisciplinaridade, as técnicas de acolhimento, a aproximação com a família, entre outras que foram citadas por nossos entrevistados. O campo psicossocial pressupõe ação integrada da equipe de trabalho, baseada em princípios de solidariedade, acolhimento, cooperação em torno da produção de saúde e cuidado compatíveis com as necessidades dos usuários16. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A matéria-prima para se trabalhar as novas práticas de saúde é o cotidiano das relações entre os profissionais e os usuários. Os saberes acumulados pelas diversas áreas compostas em um serviço enriquecem a prática de seus trabalhadores e os habilita para uma abordagem integral do usuário em todas as suas dimensões – biológica, sociocultural, psicológica, entre outras17. Nesse momento, vale nos aprofundarmos nas ideias que Merhy18 desenvolve sobre os trabalhadores de saúde, seus saberes e fazeres tecnológicos. Primeiramente, o autor afirma que a finalidade de qualquer ação em saúde é produzir o ato de cuidar; para tanto, as tecnologias de saúde que produzem o cuidado são configuradas a partir de arranjos entre dimensões materiais e não materiais do fazer em saúde. Estas dimensões se expressam em terrenos tecnológicos que Merhy denomina de: leve, leve-duro e duro. Para entender melhor essas tecnologias do cuidado, Merhy18 usa a ideia do encontro do profissional e o usuário e a noção das suas valises como caixas de ferramentas tecnológicas necessárias para a produção do cuidado nesse processo de interseção. A valise da tecnologia dura está vinculada à sua mão, e cabem materiais concretos, tais como estetoscópio, ecógrafo. A valise da tecnologia leve-dura está vinculada à sua cabeça, e cabem saberes bem estruturados como a clínica e a epidemiologia. Finalmente, a valise da tecnologia leve está presente no espaço relacional entre trabalhador e usuário, que se distingue por possuir materialidade apenas em ato e estar implicada na produção das relações entre dois sujeitos. Esta explanação nos serve para compreendermos a importância do uso das tecnologias leves em processos de cuidado usuário-centrados. No caso dos cuidados nos CAPS, o produto dessas tecnologias leves são também os encontros, que devem ser percebidos como atos de cuidado contínuos: encontros de profissionais com usuários, de usuários com usuários, de profissionais com familiares, de familiares com usuários, de familiares com outros familiares, de profissionais com profissionais. As falas a seguir ilustram esta importância: “A gente tem que fazer um pouquinho de tudo, então a gente aprende a necessidade do paciente e nessa necessidade dele a gente começa a trabalhar no sentido de ajudar.” (T1) “O CAPS é de uma riqueza fantástica pela multiplicidade, porque você não soma em CAPS, você potencializa.” (T4)

Nos encontros é que são conhecidas as necessidades, as demandas, os desejos, as opiniões daqueles que devem estar na centralidade do cuidado. A percepção dos profissionais sobre a importância do uso destas novas tecnologias pode fazer com que os serviços ofereçam cuidados mais efetivos, voltados para: o alívio do sofrimento, a produção de subjetividades individuais e coletivas, a produção de sociabilidades e, por fim, cuidados que potencializem os coletivos por eles atendidos. Portanto, para esses trabalhadores, fica evidente a necessidade de aprimoramento no saber-fazer o cuidado: “[...] é uma necessidade de todos os profissionais... de se capacitar, de realmente se aperfeiçoar dentro da área, já pelo fato de assim, a gente de uma certa maneira ser colocado no serviço sem nenhuma capacitação, sem nenhuma preparação, a gente aprende realmente no dia a dia.” (T2) “A gente necessita muito de uma supervisão, de um acompanhamento pra cobrar, pra exigir, pra supervisionar, pra ver realmente se o serviço está fazendo por onde, né, porque a gente sente que os CAPS estão aí, mas tem uns que estão à toa...” (T3)

Trajetória complexa, sobretudo porque ainda é bastante novo, para estes profissionais, pensar nessas novas proposições. O crescimento numérico desses serviços em Alagoas é muito recente, e, por 102

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isso, seus profissionais ainda estão tentando descobrir caminhos de intervenção que possam ofertar promoção de vida e saúde.

Precariedade do trabalho Muitos profissionais falaram sobre a falta de tempo na dedicação do cuidado oferecido, o que justificaria a fragilidade apontada nas condutas realizadas nos CAPS: “Porque é muito simples pra eu evoluir sozinha, mas não é resolutivo, não adianta nada, entendeu? Não é proposta pra o paciente, não é do CAPS... Se eu quero fazer desse paciente o melhor possível, eu tenho que evoluir em grupo. Mas não temos tempo.” (T4) “[...] não há tempo para se fazer um atendimento mais apurado, a questão não é institucional e sim pessoal.” (T5)

Essas falas ilustram como a falta de tempo traz consequências bastante graves no serviço. Muitos trabalhadores percebem que o pouco período que passam no CAPS é em função dos baixos salários oferecidos e da consequente necessidade de terem muitos vínculos de trabalho. Desse modo, verificase que a carga horária contratada é diferente da carga horária cumprida: “Eu gostaria de ter disponibilidade de tempo... Por que eu não tenho disponibilidade de tempo? Porque não pagam pra isso...” (T4) “[...] o profissional acaba tendo muitos vínculos e não consegue estar junto das ações do CAPS por ter outros empregos...” (T5)

A existência de outros vínculos empregatícios pelos trabalhadores, na mesma equipe, gera insatisfações de várias ordens e dificuldades gerenciais. O trabalho em equipe fica prejudicado: “[...] porque profissionais que ficam muito pontualmente, pingando, ninguém se encontra, aí realmente... eu acho esquizoide, não tem como se discutir paciente e isso acontece. Isso é um viés seríssimo dos CAPS em Alagoas. [...] Eu acho que a equipe mínima, ela é mínima demais. Além de ser mínima demais, ela não cumpre a carga horária da equipe mínima.” (T4) “Acho que essa falta de tempo muitas vezes é porque a equipe não fala a mesma língua, os interesses são diferentes da equipe, a visão que um tem dos usuários do CAPS é diferente da visão que o outro tem, na hora que a situação aperta, que a gente não dá conta, a gente quer que interne mesmo.” (T7)

E o cuidado recebido fica ainda mais frágil: Quando é que o paciente vai ser prioridade? Quando o técnico souber o que fazer com cada paciente. Que a prioridade é o paciente: não é o papel que eu preencho, não é quem evolui, não evolui... A prioridade é o paciente. E para o paciente ser prioridade, eu tenho que ter tempo de atender, evoluir, atender, evoluir, discutir, atender, evoluir, discutir em grupo... Com a carga horária que a gente desenvolve aqui em Alagoas, eu acho que não tem condições.” (T4)

Na capital do estado, as equipes têm estrutura um pouco mais definida, uma vez que um número significativo de trabalhadores é concursado, porém, no interior, parte dos trabalhadores é prestadora de serviços, outra parte é comissionada – o que significa indicação política – e apenas uma pequena parte é concursada. A inexistência de plano de cargos e salários e isonomia ocasionam alta rotatividade, pouco vínculo e desmotivação no trabalho. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Acreditamos não ser possível transformar a assistência em saúde mental em um cuidado que privilegia a construção de projetos terapêuticos centrados no sujeito, que objetiva a (re)construção da cidadania por meio de práticas reabilitadoras, e que envolva os mais diversos atores para este fim, se não tivermos os principais protagonistas desse cuidado, seus trabalhadores, comprometidos nessa ação. Entretanto, a precariedade exposta, nas falas, sobre as relações de trabalho com o serviço também está presente com relação às estruturas do próprio serviço. Muitos entrevistados vão falar sobre as faltas notadas no cotidiano dos CAPS: “[...] não tem dotação orçamentária pras oficinas da TO até hoje, ela faz por esforço próprio, ela faz técnicas, aplica, então assim, dentro do mínimo, eu acho que se faz muito. Mas dentro da proposta que deveria ser o CAPS, se faz quase nada.” (T4) “Muitas vezes a gente tira do bolso da gente pra comprar coisas... eu me sinto melhor pegando meu dinheiro pra comprar as coisas do que falar não vou fazer porque não tem material, a minha cabeça vai doer mais... eu só posso ter essa iniciativa de comprar do meu bolso e não ficar de cara feia se eu tiver com muita vontade de fazer alguma coisa com eles.” (T7)

Essas faltas são justificadas na própria fala dos entrevistados, quando apontam a falta de investimento nas novas proposições que são exigidas no cotidiano das práticas de saúde mental nos CAPS: “Poderia se ter investimento e eu falo investimento financeiro mesmo. Às vezes se privam de contratar, contratar não, de fazer concursos e ter funcionários...” (T1) “Eu acho que um ponto negativo é essa questão dos gestores, gestor de saúde, gestor municipal, gestor estadual, de não estar investindo nas coisas que realmente ainda precisam.” (T2) “Para funcionar um CAPS, para que funcione qualquer serviço, é necessário investimento. E se não há as capacitações, se não há o investimento necessário, a proposta fica interrompida...” (T3)

Diversos estudos19,20 têm apontado a falta de investimento nos serviços de saúde mental, indicando que as gestões municipais não assumem de forma integral as propostas do Ministério da Saúde. O reflexo disso são serviços com estruturas físicas precárias, falta de material para as intervenções terapêuticas, bem como equipes pouco investidas no que se refere às capacitações e ações de qualificação.

Considerações finais Consideramos que as transformações nos modelos de atenção em saúde mental devem ir além da implantação e ampliação das redes de serviços; elas devem conduzir a outro saber que exige flexibilidade nas ações e mudanças individuais e coletivas de todos os envolvidos nesse processo. Para tanto, o cuidado com o trabalhador deve ser indicado como uma necessidade urgente e ininterrupta, para que os CAPS possam trabalhar com toda a sua potencialidade. Não se pode ignorar que a exposição a situações de estresse diário pode adoecer esses trabalhadores. Como foi analisado, a maioria deles percebe um despreparo em sua formação para o exercício da prática nesses serviços, o que provoca insegurança para atuar e resulta na construção de mecanismos de defesa que acabam por diminuir a capacidade qualitativa de seu trabalho. Portanto, é preciso investir em capacitações contínuas e supervisões clínico-institucionais em todos os CAPS, para garantir que estes profissionais possam ser também ouvidos e atendidos em suas necessidades de um cotidiano marcado pelo cuidado do sofrimento mental. 104

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As instituições de Ensino Superior, além de reformulações curriculares e inserção prática nos novos modelos de atenção, podem contribuir com a formulação de cursos de aprimoramento e especializações dentro das propostas da Educação Permanente dirigidas a esses trabalhadores. Outro aspecto muito importante é que o trabalho na saúde mental deve ser um trabalho valorizado, com salários que estimulem a dedicação do profissional, que permitam que ele se engaje em ações intersetoriais, que ele possa estar presente na criação de espaços terapêuticos e cuidados continentes, viabilizando cotidianamente a interlocução dos usuários com a coletividade. Os espaços oferecidos para o cuidado também devem ser espaços de vida, com estruturas físicas adequadas, que instiguem o desejo de estar naquele local, que provoquem sentimentos de alegria e bem-estar, para que o próprio ambiente seja um facilitador na geração de estímulos criativos, e não o contrário – em nossa investigação, pudemos perceber quanto os locais inadequados e a escassez de materiais para o desenvolvimento das práticas necessárias a um trabalho de qualidade têm maltratado trabalhadores e usuários. O novo modelo de cuidado introduzido pela Reforma Psiquiátrica brasileira, o da atenção psicossocial, traz, para a prática cotidiana dos trabalhadores, novas frentes de intervenção, abre caminhos para relações mais democráticas, em que sujeitos cuidados e sujeitos cuidadores possuem competências que vão se entrecruzando e, dentro desse espaço relacional, é que os saberes e práticas vão se compondo. O CAPS, neste sentido, deve funcionar como catalisador dessa potencialidade, oportunizando espaços para trocas contínuas e fortalecimento do trabalho coletivo na valorização dessas novas formas de cuidar.

Apoio A pesquisa recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL). Referências 1. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde mental: 1990-2004. 2004 [acesso 2014 Mar 16]. Disponível em: http://bvsms. saude.gov.br/bvs/publicacoes/legislacao_mental.pdf 2. Ribeiro MC. Os Centros de Atenção Psicossocial como espaços promotores de vida: relatos da desinstitucionalização em Alagoas. Rev Ter Ocup Univ São Paulo [Internet]. 2013 [acesso 2014 Set 8]; 24(3):174-82. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rto/ article/view/64900/pdf_24 3. Glanzner HG, Olschowsky A, Kantorski LP. O trabalho como fonte de prazer: avaliação da equipe de um Centro de Atenção Psicossocial. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(3):716-21. 4. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010. 5. Meihy JCSB. Manual de história oral. 5a ed. São Paulo: Loyola; 2005. 6. Passos E, Souza TP, Aquino PR, Barros RA. Processo coletivo de construção de instrumentos de avaliação: aspectos teóricos e metodológicos sobre dispositivos e indicadores profissionais. In: Campos RO, Furtado JP, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008. p. 371-97.

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trabalhadores dos centros de atenção psicossocial ...

7. Bichaff R. O trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial: uma reflexão crítica das práticas e suas contribuições para a consolidação da Reforma Psiquiátrica [dissertação]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2006. 8. Ribeiro MC, Machado AL. A Terapia Ocupacional e as novas formas do cuidar em saúde mental. Rev Ter Ocup USP. 2008; 19(2):72-5. 9. Campos RO. Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental. Saude Debate. 2001; 25(58):98-111. 10. Foucault M. A arqueologia do saber. 6a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000. 11. Vasconcelos EM. Abordagens psicossociais: história, teoria e prática no campo. São Paulo: Aderaldo & Rothshild; 2009. v. 1. 12. Merhy EE. Os CAPS e seus trabalhadores no olho do furacão antimanicomial: alegria e alívio como dispositivos analisadores. In: Amaral H, Merhy EE, organizadores. A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2007. p. 55-66. 13. Leão A, Barros S. As representações sociais dos profissionais de saúde mental acerca do modelo de atenção e as possibilidades de inclusão social. Saude Soc. 2008; 17(1):95-106. 14. Nardi HC, Ramminger T. Modos de subjetivação dos trabalhadores de saúde mental em tempos de Reforma Psiquiátrica. Physis. 2007; 17(2):265-87. 15. Guimarães JMX, Jorge MSB, Assis MMA. (In)satisfação com o trabalho em saúde mental: um estudo em Centros de Atenção Psicossocial. Cienc Saude Colet. 2011; 16(4):2145-54. 16. Silva ALA, Fonseca RMGS. Processo de trabalho em saúde mental e o campo psicossocial. Rev Latino-am Enferm [Internet]. 2005 [acesso 2014 Fev 10]; 13(3):441-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v13n3/v13n3a20.pdf 17. Merhy EE. O ato de cuidar como um dos nós críticos “chaves” dos serviços de saúde. 1999 [acesso 2014 Fev 10]. Disponível em: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/ merhy/artigos-04.pdf 18. Merhy EE. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor saúde. Interface (Botucatu). 2000; 4(6):109-16. 19. Luzio CA, L’Abatte S. A atenção em Saúde Mental em municípios de pequeno e médio portes: ressonâncias da reforma psiquiátrica. Cienc Saude Colet. 2009; 14(1):105-16. 20. Ramminger T. Trabalhadores de saúde mental: reforma psiquiátrica, saúde do trabalhador e modos de subjetivação nos serviços de saúde mental [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005.

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Ribeiro MC

Ribeiro MC. Trabajadores de los Centros de Atención Psicosocial de Alagoas, Brasil: intersticios de una nueva práctica. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):95-107. Los Centros de Atención Psicosocial constituyen una de las principales estrategias para la garantía de cuidados en salud mental en el enfoque de la Reforma Psiquiátrica brasilenã y han requerido un número de trabajadores considerable envueltos en una nueva práctica. En este estudio se buscó conocer cómo fue el proceso de inserción de esos trabajadores en los servicios y cómo ellos se perciben y perciben sus prácticas dentro del nuevo contexto. Se trata de una encuesta cualitativa, en la modalidad Historia Oral Temática guiada por entrevistas para la producción de los datos y análisis temático para la discusión de sus resultados. Del análisis surgieron cuatro categorías temáticas: inserción en los servicios, sufrimiento del trabajador, nuevas tecnologías de cuidado y precariedad del trabajo. Las declaraciones también señalan la necesidad del cuidado sobre el trabajador, considerando también sus demandas para que estos servicios puedan funcionar con toda su potencialidad.

Palabras clave: Salud mental. Trabajadores de la salud. Centros de Atención Psicosocial. Encuesta cualitativa.

Recebido em 04/03/14. Aprovado em 10/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0017

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Conteúdos curriculares e o Sistema Único de Saúde (SUS): categorias analíticas, lacunas e desafios

Vinício Oliveira da Silva(a) Patrícia Maria Mattos Alves de Santana(b)

Silva VO, Santana PMMA. Curriculum content and Brazilian Health System (SUS): analytical categories, gaps and challenges. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):121-32.

The aim of this study was to describe and analyze the gaps and challenges in the directionality of curriculum content for the Brazilian Health System (SUS) in the light of the National Curriculum Guidelines. This was a quantitative and qualitative documentary study. To explore the curriculum content, the following analytical categories were used: a) focus of care; b) scope of care; and c) dimensions of the individuals and population considered with regard to care. Results indicate that to transform the healthcare model in Brazil and thus consolidate SUS, there is a need for professional training with a curriculum structure that makes it possible to comprehend the subjective aspects of human health and to understand that education and professional training are not distinct and independent from daily practices and healthcare services.

Keywords: Human resources training. Curriculum. Brazilian Health System. Public Health.

O objetivo deste estudo foi descrever e analisar as lacunas e desafios na direcionalidade de conteúdos curriculares para o Sistema Único de Saúde (SUS) à luz das Diretrizes Curriculares Nacionais. Trata-se de uma pesquisa documental quantiqualitativa. Para a exploração do conteúdo curricular, adotaram-se as seguintes categorias analíticas: a) foco do cuidado; b) âmbito do cuidado, e c) dimensões dos indivíduos e população consideradas no cuidado. Resultados indicam que, para a transformação do modelo de atenção em saúde no Brasil e, por conseguinte, para a consolidação do SUS, é necessária uma formação profissional com estrutura curricular que viabilize a compreensão dos aspectos subjetivos da saúde do ser humano e que a educação/ formação profissional não represente momento distinto e independente do cotidiano das práticas e serviços de saúde.

Palavras-chave: Formação de Recursos Humanos. Currículo. Sistema Único de Saúde. Saúde Pública.

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Mestrando, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, campus universitário Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-040. vinicio_oliveira@ hotmail.com (b) Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Salvador, BA, Brasil. Santana. patriciamattos@ gmail.com

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Introdução Nas últimas décadas, o Brasil vem passando pela construção e redefinição do seu sistema público de saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem demonstrado importantes avanços, sobretudo no que diz respeito à universalização do acesso aos serviços e à redução das desigualdades sociais, porém inúmeros desafios persistem e colocam o SUS longe da efetivação dos seus princípios, dentre os quais as distorções na formação humanística da força de trabalho que opera o sistema1. Os princípios do SUS vêm sendo problematizados à luz da formação profissional, os quais exigem que os profissionais de saúde se tornem mais responsáveis pelos resultados das ações, uma vez que tais princípios supõem uma ampliação da “dimensão cuidadora” na prática profissional. A efetivação desses princípios compõe o desafio de implantação do SUS no Brasil, visto que implica a reordenação das práticas e dos serviços, consequentemente, a redefinição do modelo de atenção em saúde2. Nesse sentido, diversos autores1,3-6 pontuam a necessidade de profissionais comprometidos ética e politicamente, que valorizem as ações de promoção e proteção da saúde, prevenção das doenças e agravos, e atenção integral. Segundo Almeida Filho1, a força de trabalho ideal para o SUS é caracterizada por profissionais qualificados, direcionados para boas práticas baseadas em evidência científica, bem capacitados e comprometidos com a igualdade na saúde. Desde o ano de 1986, quando foi realizada a I Conferência Nacional de Recursos Humanos em Saúde, a formação de profissionais para o SUS está presente nas pautas em âmbito nacional, mobilizando, assim, uma série de programas e projetos direcionados à formação/capacitação de recursos humanos3. A execução de um novo olhar na atenção à saúde requer a participação das escolas de Ensino Superior, além de outros segmentos, no que diz respeito à formação de profissionais de saúde habilitados para atender ao ideário do SUS. É nesse contexto que se insere a atual Lei de Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovada em novembro de 2001, cujo texto enuncia os princípios e diretrizes do SUS como elementos fundamentais na formação de um profissional integral, capaz de intervir no processo saúde-doença, objetivando a eficiência e a resolutividade, o que, consequentemente, busca reduzir a lacuna existente entre a formação e a assistência individual7. A reformulação das Diretrizes Curriculares para os cursos da área da saúde é “antiga”, porém, a discussão é bastante atual. O estudo de Pinto et al.3, que mapeou a produção científica sobre Trabalho e educação em Saúde no Brasil, aponta que 71,2% das publicações referem-se à formação/ capacitação dos profissionais de saúde. Essa numerosa produção reafirma a grande preocupação com a questão da formação, um desafio imposto pelo trabalho em saúde na sociedade contemporânea, ainda a ser superado. Segundo Teixeira et al.4, nos últimos anos, no Brasil, houve uma grande expansão do número de escolas e cursos na área da saúde, sobretudo no setor privado, e, em consequência, observa-se o desencadeamento de reformas curriculares. Não obstante, mesmo após mais de dez anos de existência da Lei de Diretrizes Curriculares Nacionais, Almeida Filho1 aponta que a universidade brasileira, em seu regime ainda hegemônico, submete seus ingressantes a uma formação baseada em currículos fechados, menos interdisciplinares e cada vez mais especializados, pouco comprometidos com as políticas públicas de saúde e com tendência à alienação, dificultando, assim, um eficiente trabalho em equipe. Considerando tais pressupostos, falar da formação em saúde como estratégia para a consolidação do SUS implica refletir sobre as diretrizes curriculares como uma base conceitual, filosófica e metodológica, as quais direcionam uma nova proposta pedagógica no processo de construção de um perfil profissiográfico. Estes devem ser dotados de competências e habilidades que sejam adequadas às referências nacionais e internacionais para a formação de um profissional crítico-reflexivo, transformador da realidade social, agente de mudança e comprometido com a saúde da população. As Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de saúde preconizam que a formação dos profissionais deve garantir a capacitação com autonomia e discernimento, bem como deve contemplar o sistema de saúde vigente no País, o trabalho em equipe, eficiência e resolutividade. Considerando tais aspectos, a formação deve atender as necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS, e assegurar a integralidade da atenção e a qualidade e humanização do atendimento7. 122

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Espera-se que o profissional egresso esteja capacitado para utilizar conhecimentos diversos, de modo a solucionar os problemas do seu dia a dia. Nesse sentido, segundo Fernandes et al.5, é indispensável o domínio de conteúdos e metodologias fundamentados na dialética entre as transformações sociais e o mundo do trabalho. As diretrizes curriculares preveem, ainda, que a formação dos profissionais de saúde seja resultante de uma educação continuada. Nesse sentido, os quatro pilares, eleitos como fundamentais da educação, propõem uma educação direcionada para o desenvolvimento das competências fundamentais à aprendizagem, a saber: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser8. As necessidades advindas das demandas sociais irão delinear os norteadores a que se referem os conhecimentos curriculares, considerando as peculiaridades e os contextos em que os saberes estão inseridos9. Essa conjuntura implica mudanças na formação dos profissionais de saúde, decorrentes do novo perfil socioeconômico brasileiro, aliado às exigências prementes no processo educacional. Pode-se afirmar que as Diretrizes Curriculares Nacionais cumprem um importante papel no processo de mudanças, já que são referenciais na organização dos cursos, explicitando a necessidade do compromisso das escolas com princípios da Reforma Sanitária Brasileira. No entanto, as diretrizes curriculares constituem, apenas, uma indicação da maneira de organizar o currículo, já que as escolas gozam de autonomia por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Devido a essa condição, cabe-nos interrogar se a universidade vem deixando de cumprir seu papel social, por ser uma instância que funciona independentemente da regulação e direção política do Estado6. Na literatura científica, há um grande número de estudos sobre formação e capacitação de Recursos Humanos para o SUS3, no entanto, uma lacuna se refere à escassez de estudos sobre a direcionalidade dos currículos, no que diz respeito aos seus conteúdos diante das possibilidades apontadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Poucos analisam a estrutura e o processo de constituição dos planos dos cursos levando em consideração a interdisciplinaridade. A direcionalidade de conteúdos curriculares possui relações históricas com a estruturação e hegemonia do modelo de atenção médico-curativo na sociedade brasileira, a qual implica o fazer em saúde e a orientação de profissionais a um mercado de trabalho que está condicionado para práticas tecnicistas e curativas, pouco comprometidas com o cuidado humanístico e integral em saúde. A formulação de currículos deve apoiar-se num quadro de referência e definir as características que particularizam os conteúdos10. Nesses aspectos, embora as Diretrizes Curriculares apontem para a estruturação de planos curriculares que devem contemplar alguns requisitos, as mesmas podem deixar lacunas para determinadas crenças que fortalecem ou mantêm certas práticas e ideologias em saúde. Diante do exposto, o objetivo deste trabalho é descrever e analisar lacunas e desafios na direcionalidade de conteúdos curriculares para o SUS à luz das Diretrizes Curriculares Nacionais.

Estratégias metodológicas Trata-se de uma pesquisa documental quantitativa e qualitativa, por meio de um estudo de caso baseado no conteúdo curricular de um curso de graduação em Enfermagem na cidade de Salvador. Embora as categorias analíticas deste estudo possam ser aplicadas a qualquer curso da área da saúde, por apresentarem elementos teóricos das Diretrizes Curriculares Nacionais, transversais a todos os cursos, foi selecionado o curso de Enfermagem por ter maior representatividade na conformação da força de trabalho desse setor. Os documentos analisados foram disponibilizados pela coordenação do referido curso, e formalmente autorizados pela instituição. O conteúdo curricular adotado pelo Projeto Político Pedagógico constitui um dos elementos do processo de formação, que sugere direcionalidade das práticas profissionais, bem como, as possibilidades de trajetórias a serem percorridas. Nesse sentido, configura-se importante elemento de análise deste estudo, ao possibilitar uma correlação com as políticas de formação e as Diretrizes Curriculares Nacionais. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Para a exploração do conteúdo curricular, foram adotadas as categorias de análise de Andrade11, a saber: a) Foco do cuidado – É considerado como foco do cuidado o que é tomado como objeto do cuidado, isto é, se os conteúdos estão relacionados a danos/agravos com ênfase nos aspectos biofisiológicos ou aos problemas e necessidades de saúde da população, conforme as seguintes categorias: a) Danos/aspectos biofisiológicos; b) Problemas e necessidades de saúde da população; c) Não aborda o foco do cuidado. b) Âmbito do cuidado – No âmbito do cuidado, é considerado o caráter das ações, ou seja, se estão voltadas para a prevenção de doenças, para a promoção ou para a recuperação da saúde (tratamento), conforme as seguintes categorias: a) Tratamento de doenças; b) Promoção da saúde e prevenção de doenças; c) Promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças; d) Prevenção e tratamento de doenças; e) não aborda o âmbito do cuidado. c) Dimensões dos indivíduos e população consideradas no cuidado – As dimensões dos indivíduos e população atentam para a prestação do cuidado, de dimensões para além do biomédico, ou seja, levam em conta os aspectos subjetivos, socioeconômicos e socioculturais do indivíduo, da família e da comunidade da qual este faz parte, conforme as seguintes categorias: a) Dimensão socioeconômica; b) Dimensão sociocultural; c) Dimensão socioeconômica e sociocultural; d) Não aborda essas dimensões. Foi consultada toda a matriz curricular composta por 44 disciplinas obrigatórias do ciclo básico e profissional de um curso de graduação na área da saúde, seus objetivos e respectivos conteúdos programáticos, não havendo componentes optativos. Cada disciplina foi analisada separadamente e por dimensão de análise, sendo direcionada para suas respectivas categorias de acordo com o conteúdo. Os dados foram consolidados em uma matriz do Excel®, elaborada para tal fim, contendo as seguintes informações: semestre, disciplina; carga horária, dimensões de análise e suas respectivas categorias. Posteriormente, realizou-se o cálculo do peso e percentual de carga horária correspondente a cada disciplina, segundo suas dimensões e respectivas categorias. Os referenciais que fundamentaram a análise de conteúdo do currículo foram: Premissas da Educação Superior brasileira expressas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Superior; As Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Enfermagem; Os princípios da Reforma Sanitária Brasileira e do SUS; bem como referenciais da Saúde Coletiva – Determinantes Sociais da Saúde, Problemas e necessidades de saúde e Promoção da Saúde, dentre outros correlatos.

Resultados e discussão Foco do cuidado Esse elemento diz respeito ao foco do cuidado, ou seja, o que é tomado como objeto do cuidado, isto é, se estão relacionados a danos/agravos com ênfase nos aspectos biofisiológicos ou aos problemas e necessidades de saúde da população. Conforme o Art. 5º das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Enfermagem7, a formação do Enfermeiro deve atender às necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS, e assegurar a integralidade da atenção e a qualidade e humanização do atendimento. Constam, dentre as habilidades e competências específicas desse profissional: identificar as necessidades individuais e coletivas de saúde da população, seus condicionantes e determinantes; prestar cuidados de enfermagem compatíveis com as diferentes necessidades apresentadas pelo indivíduo, pela família e pelos diferentes grupos da comunidade. Nesse sentido, as diretrizes curriculares partem de uma concepção ampla do processo saúde-doença, a qual direciona para uma formação profissional coerente com a realidade social. 124

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Ao analisar a direcionalidade do conteúdo curricular estudado, pode-se observar, na Figura 1, que, do primeiro ao terceiro semestre do curso, há ênfase em disciplinas que contêm abordagem centrada em danos, com destaque para os aspectos biofisiológicos. Particularmente no sétimo semestre, período em que o aluno realiza o Estágio Supervisionado I na clínica hospitalar, a abordagem é totalmente direcionada a Danos/aspectos biofisiológicos.

100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1º

Danos/aspectos biofisiológicos

Não aborda o objeto do cuidado

Todos os semestres

Problemas e necessidades de saúde

Figura 1. Distribuição de carga horária (%), por semestre, segundo o foco do cuidado.

De certa maneira, é um resultado esperado, afinal, historicamente, os hospitais são a representação do enfoque biológico e curativo, o que valoriza uma formação baseada em modelos de atenção hegemônicos que pouco valorizam o processo saúde doença a partir dos determinantes sociais da saúde. Já no oitavo e último semestre, período em que o estudante realiza o Estágio Supervisionado II na rede de Atenção Básica, o foco do cuidado são os problemas e necessidades de saúde da população. Tal resultado também preserva uma lógica prevista, isso porque a atenção primária à saúde tem se destacado, dentro do SUS, como o nível de atenção à saúde que melhor incorpora práticas e cuidado que consideram as necessidades de saúde a partir do contexto social onde estão inseridos os indivíduos. Considera-se que, historicamente, a formação profissional em saúde se deu a partir de uma visão tecnicista do cuidado, centrada na cura e no tratamento de doenças, de acordo com suas especificidades formativas, e não com a realidade social, o que empobrece a relação entre necessidades de saúde, sistemas de saúde e integração de práticas nos diversos níveis de atenção. A separação entre estágios em atenção primária à saúde e alta complexidade expressam a fragmentação de conhecimentos que fogem da realidade social e de uma organização mais coerente das práticas de saúde, o que privilegia o currículo tradicional e disciplinar. Esse tipo de currículo, segundo Almeida Filho1, atualmente é o mais prevalente no Ensino Superior brasileiro, e, em particular, na saúde, concedendo, assim, uma ordem lógica e linear aos conteúdos curriculares. Maia12 corrobora com esses aspectos, ao considerar que: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O ensino das atividades práticas, em geral, ocorre nos momentos finais dos cursos, partindose da proposta de que “primeiro é necessário saber, para depois fazer”. Essa tendência positivista, atualmente, é bastante criticada, uma vez que a prática pode, e deve ser o fator problematizador, para que, caso ocorra o desequilíbrio intelectual do aluno diante de uma determinada situação, ele vá em busca da teoria necessária à compreensão e/ou à proposição de soluções. (p. 117)

A fragmentação dos estágios e práticas curriculares induz a uma concepção recortada da realidade única de um sistema de saúde com potencial integrativo de suas práticas. Ao considerarem os princípios finalísticos e organizativos do SUS, as práticas e estágios curriculares devem estar estruturados de maneira integrada. Tal aspecto poderá facilitar uma formação profissional que compreenda a dinâmica do sistema de saúde e as relações entre os diferentes níveis de atenção. Em linhas gerais, os dados expressam, claramente, que a distribuição da carga horária reforça a inclinação do currículo, de tal forma que 52% do total de horas abordam como foco do cuidado os danos com ênfase nos aspectos biofisiológicos (22 das 44 disciplinas), enquanto 34,7% de toda carga horária abordam os problemas e necessidades de saúde da população, e 13,2% da carga horária restante não abordam o objeto do cuidado (Tabela 1).

Tabela 1. Distribuição das disciplinas e carga horária, segundo o foco do cuidado. Disciplinas Foco do cuidado Danos/ aspectos biofisiológicos Problemas e necessidades de saúde Não aborda o objeto do cuidado Total

Carga horária

N

%

Total de horas

%

22 12 10 44

50,0 27,3 22,7 100

2.040 1.360 520 3.920

52,0 34,7 13,2 100

Das três mil, novecentas e vinte horas consideradas, duas mil e quarenta horas são destinadas a disciplinas que tomam como foco do cuidado os danos com ênfase nos aspectos biofisiológicos. Apenas mil, trezentos e sessenta horas se destinam a disciplinas que abordam os problemas e necessidades de saúde da população, e quinhentas e vinte horas pertencem a disciplinas que não abordam o foco do cuidado. Conforme o Art. 6º (p. 4) das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Enfermagem, os conteúdos essenciais devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em enfermagem7. Diante desses resultados, apesar de o currículo ter a iniciativa de incorporar novos olhares sobre o sujeito atendido, no sentido de capacitar o estudante para intervir sobre as necessidades de saúde, considerando os seus determinantes, este privilegia, como foco do cuidado, as doenças e seus aspectos biofisiológicos, mostrando, assim, certa dicotomia entre seus conteúdos e as recomendações das diretrizes curriculares para os cursos de enfermagem. Está assim claramente delineada a formação do profissional, tendendo às práticas voltadas para os indivíduos que procuram os serviços quando se sentem doentes, o que, segundo Paim13, torna a perpetuar o modelo médico-assistencial privatista, empobrecendo o princípio da integralidade do cuidado.

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Âmbito do cuidado Esse elemento diz respeito à natureza das ações, ou seja, se estão voltadas para a prevenção de doenças, para promoção ou para recuperação da saúde nos objetivos e conteúdos programáticos das disciplinas. Segundo Almeida Filho1, a Promoção da Saúde “recupera o humanismo e reforça a capacidade crítica dos formandos, define saúde como mais do que mera ausência de doença e trata o ser humano que sofre como mais do que um biomecanismo a ser reparado em seus desvios e defeitos” (p.1681). As ações de promoção estão arraigadas no processo de transformação das condições de vida e trabalho visando aumentar a saúde e o bem-estar gerais; compreendem, de forma ampla, os problemas de saúde e seus determinantes, enquanto as ações preventivas em saúde estão direcionadas apenas a evitar o surgimento de doenças específicas na população, tornando o controle da transmissão como objetivo final14. A Figura 2 mostra a distribuição do percentual de carga horária, segundo o âmbito do cuidado do conteúdo curricular por semestre.

100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1º

Todos os semestres

Tratamento de doenças Prevenção e tratamento de doenças Promoção da saúde e prevenção de doenças Promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças Não aborda o objeto do cuidado

Figura 2. Distribuição de carga horária (%), por semestre, segundo o âmbito do cuidado.

De um total de mil, quatrocentas e quarenta horas concentradas nos três primeiros semestres, 32% são destinadas a conteúdos que têm como enfoque o tratamento de doenças; 11% para prevenção e tratamento de doenças; 11% para promoção da saúde e prevenção de doenças, e 45,8% não abordam o âmbito do cuidado. Portanto, é possível afirmar que pode haver um prejuízo quanto ao olhar do discente sobre o conceito ampliado de saúde, uma vez que há grande abordagem apenas num dos campos de atuação do SUS - o tratamento de doenças.

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No quarto semestre, apenas uma disciplina, responsável por 16,6% da carga horária, aborda promoção da saúde e prevenção de doenças. No sexto semestre, apenas 8,3% da carga horária abordam promoção da saúde e prevenção de doenças, enquanto uma única disciplina, responsável por 33,3% das horas, é direcionada a tratamento de doenças, e 41,6% abordam promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças. No sétimo semestre, referente ao estágio curricular supervisionado I em rede hospitalar, o que predomina é o tratamento de doenças. No oitavo semestre – estágio curricular II na rede básica –, a situação se inverte, de modo que predomina a abordagem à promoção da saúde, à prevenção e ao tratamento de doenças. Como aponta o conteúdo curricular em estudo, este privilegia um modelo de prática hospitalocêntrica e especializada, com tendência à privatização e que, dificilmente, irá formar profissionais que atendam às necessidades sociais e de saúde da população. Segundo Almeida Filho1, o modelo de educação em saúde, ainda predominante no Brasil, forma profissionais pouco comprometidos com as políticas públicas de saúde, os quais se mostram resistentes às mudanças e carentes de um direcionamento aos valores da promoção da saúde. Dentre as demandas-desafios do SUS à Universidade, no tocante ao tema formação de trabalhadores para o campo da saúde no Brasil, ressaltam modelos que sejam tecnologicamente competentes, capazes de trabalhar em equipe, criativas, autônomas, resolutivas, engajadas na promoção da saúde, abertas à participação social e, enfim, comprometidas com a humanização da atenção à saúde. E não é por falta de marco normativo, pois as Diretrizes Curriculares Gerais da formação em saúde, aprovadas pelo CNE entre 2001 e 2002, incluem todo um ideário avançado de formatação de currículo: ênfase nos conceitos de saúde, promoção da saúde, princípios e diretrizes do SUS.1 (p.1682)

Os dados do estudo demonstram que a maior quantidade de disciplinas está se reportando ao tratamento de doenças. Conforme pode ser observado na Tabela 2, as disciplinas que abordam apenas tratamento de doenças correspondem a 36,7% da carga horária do currículo. Se acrescidos 6,1% da carga horária, que abordam a prevenção e o tratamento de doenças, e mais os 29,6% que tratam tanto da promoção da saúde quanto da prevenção e do tratamento de doenças, é possível concluir que o tratamento de doenças está presente em 72,4% da carga horária total do curso, enquanto a promoção da saúde está contemplada em disciplinas que correspondem a 36,7% da carga horária do currículo. Ainda que o percentual de carga horária seja tendencioso ao tratamento de doenças, o total de carga horária, o qual tem como enfoque a promoção da saúde, se expressa discretamente.

Tabela 2. Distribuição das disciplinas e carga horária, segundo o âmbito do cuidado. Disciplinas Âmbito do cuidado Tratamento de doenças Prevenção e tratamento de doenças Promoção da saúde e prevenção de doenças Promoção, prevenção e tratamento de doenças Não aborda o âmbito do cuidado Total

Carga horária

N

%

Total de horas

%

14 4 4 9 13 44

31,8 9,1 9,1 20,4 29,5 100

1.440 240 280 1.160 800 3.920

36,7 6,1 7,1 29,6 20,4 100

Rossoni e Lampert15 afirmam que o grande desafio das escolas tem sido formar profissionais de saúde dotados de uma visão holística e, por isso mesmo, humanizadora, o que lhes permite trabalhar em equipe e atuar visando à integralidade da atenção. Tais características contribuem para uma nova

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configuração no quadro dos profissionais que irão atuar nos serviços do SUS, conforme é explicitado no Artigo 4º, Capítulo I (Atenção à Saúde) das Diretrizes Curriculares do Curso de Enfermagem: Os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos.4 (p. 1)

Segundo Amoretti16, a formação profissional em saúde – ainda baseada em um modelo de ensino que prioriza o atendimento curativo, em detrimento dos aspectos de promoção e prevenção da saúde – tem sido concebida de maneira desarticulada entre ensino e trabalho, representando, portanto, pontos críticos no processo de consolidação do SUS, segundo o qual não se pode ignorar as atuais transformações econômicas, sociais, políticas e culturais pelas quais passa o mundo. No currículo estudado, o tratamento de doenças predomina como esfera do cuidado em detrimento de um equilíbrio e articulação entre conteúdos voltados para ações promocionais, preventivas e curativas. Dessa forma, os estudantes dificilmente poderão se apropriar do conceito ampliado de saúde na perspectiva de seus problemas e determinantes, além de comprometer uma formação integral, tal qual o proposto pelas diretrizes curriculares para os cursos de enfermagem. Os dados apresentados sustentam a afirmação de que, no currículo analisado, o âmbito do cuidado predominante é o tratamento de doenças, reduzindo, assim, a dimensão cuidadora da integralidade.

Dimensões dos indivíduos e população consideradas no cuidado As dimensões dos indivíduos e população atentam para a prestação do cuidado, para além do biomédico, ou seja, levam em conta os aspectos subjetivos, socioeconômicos e socioculturais do indivíduo, da família e da comunidade da qual este faz parte. Conforme o Art. 5º das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Enfermagem7, a formação do Enfermeiro deve estar voltada a tornar este profissional competente para promover estilos de vida saudáveis, conciliando as necessidades tanto dos usuários quanto das de sua comunidade, atuando como agente de transformação social; e estabelecer novas relações com o contexto social, reconhecendo a estrutura e as formas de organização social, suas transformações e expressões. No Art. 6° consta que a formação desse profissional deve contemplar as Ciências Humanas e Sociais, que incluem conteúdos referentes às diversas dimensões da relação indivíduo/sociedade, contribuindo para a compreensão dos determinantes: sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença. Como é possível observar na Figura 3, do primeiro ao último semestre, nenhuma disciplina aborda, exclusivamente, a dimensão socioeconômica do indivíduo/população. De maneira diferente, a dimensão sociocultural é exclusivamente abordada por cinco disciplinas do currículo, ocupando 7,1% do total de horas do curso. No entanto, 13 disciplinas abordam tanto a dimensão socioeconômica quanto a sociocultural em todos os semestres, ocupando 36,2% do total de horas do curso. Nos três primeiros semestres, dentre as 22 disciplinas oferecidas no currículo, ou seja, 50% do total de disciplinas do curso, apenas sete abordam as dimensões socioeconômicas e socioculturais dos indivíduos e população consideradas no cuidado, ocupando 27,7% do total de horas dos três semestres. Chama a atenção o 3° semestre, no qual apenas uma disciplina aborda a dimensão socioeconômica e sociocultural, ocupando apenas 16,6% da carga horária do semestre, e seis disciplinas, que correspondem a 83,3% de horas do mesmo, não abordam a dimensão do cuidado. Há uma disparidade entre o oitavo e o nono semestre: enquanto um se refere ao estágio em unidade hospitalar

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e não aborda as dimensões socioeconômicas e socioculturais, o outro (estágio em rede básica) aborda essas dimensões. Observa-se, portanto, que, em todo o currículo, 59% das disciplinas, as quais correspondem a 56,6% de toda a carga horária do curso, não incluem abordagens das dimensões socioeconômicas e socioculturais do indivíduo/ população (Tabela 3). O profissional requerido pelo SUS, que contribua para a mudança do modelo de atenção, deve atender às necessidades sociais e estar atento à situação de saúde nas suas diversas dimensões17.

100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1º

Socioeconômica

4º Sociocultural

Socioeconômica e sociocultural

Todos os semestres Não aborda

Figura 3. Distribuição de carga horária (%), por semestre, segundo as dimensões do indivíduo e população consideradas no cuidado.

Tabela 3. Distribuição das disciplinas e carga horária, segundo as dimensões do indivíduo e população consideradas no cuidado. Dimensões do indivíduo/ população consideradas no cuidado Socioeconômica Sociocultural Socioeconômica e sociocultural Não aborda as dimensões Total

Disciplinas

Carga horária

N

%

Total de horas

%

0 5 13 26 44

11,4 29,5 59,0 100

0 280 1.420 2.220 3.920

7,1 36,2 56,6 100

De acordo com Ceccim e Feuerwerker6, o desenvolvimento dessa dimensão cuidadora possibilitaria que os profissionais se tornassem mais responsáveis pelas outras dimensões do processo saúde-doença-cuidado, não inscritas no âmbito da clínica tradicional. Nesse aspecto, o currículo analisado pouco contribui para a integralidade da atenção e para a ampliação da dimensão cuidadora na prática profissional. 130

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Além disso, a formação desses profissionais parece não se coadunar às condições de vida, trabalho e aos determinantes sociais da saúde do indivíduo e da comunidade a ser cuidada, visto que mais da metade da carga horária do currículo inclui disciplinas que não abordam dimensões socioeconômicas e socioculturais no cuidado.

Considerações finais O estudo realizado, mesmo com um caráter exploratório e limitado ao conteúdo curricular, compreende que a formação profissional vai além desta dimensão. Não obstante, o estudo apresentado traz elementos para uma reflexão crítica sobre a estrutura de currículos na formação dos profissionais da saúde, além de despertar para a concepção e indução de planos curriculares direcionados aos problemas e necessidades de saúde da população. Espera-se contribuir para o planejamento e implementação de projetos políticos pedagógicos coerentes com as atuais necessidades de saúde da população. Nesse sentido, cabe refletir sobre qual a organização e quantidade de cada conteúdo a ser lançado na formação profissional, se vale mais a quantidade de uma abordagem em detrimento de outra ou se a articulação entre elas, bem como a articulação da formação com o cotidiano dos serviços de saúde em seus diversos níveis de atenção. Para contribuir com a transformação do modelo de atenção em saúde no Brasil e, por conseguinte, para a consolidação do SUS, é necessária uma formação profissional com estrutura curricular que viabilize a compreensão dos aspectos subjetivos da saúde do ser humano, e que a educação/formação não represente momento distinto e independente do cotidiano das práticas e serviços de saúde. Na elaboração de planos curriculares, determinadas crenças podem fortalecer ou manter certas práticas e ideologias em saúde, o que implica a determinação do modelo de atenção em saúde que é difundido pelas práticas. A reforma curricular constitui apenas um dos elementos necessários à formação de um perfil profissional, visto que ele influencia, mas não determina as práticas. Assim, o estudo que ora se conclui reforça a necessidade de que docentes, discentes e corpo administrativo das instituições sensibilizem-se enquanto sujeitos de mudança, estando abertos a discutir e a construir projetos político-pedagógicos que promovam a formação de profissionais com as competências e as habilidades aqui apontadas, as quais são imprescindíveis à consolidação do SUS.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Almeida Filho NM. Contextos, impasses e desafios na formação de trabalhadores em Saúde Coletiva no Brasil. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6): 1677-82. 2. Teixeira CF, Paim JS, Vilasboas AL. SUS, modelos assistenciais e vigilância da saúde. Inf Epidemiol SUS. 1998; 7(2):7-28. 3. Pinto ICM, Esperidião MA, Silva VI, Soares CM, Santos L, Fagundes TLQ, et al. Trabalho e educação em saúde no Brasil: tendências da produção científica entre 1990-2010. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1525-34. 4. Teixeira CF, Coelho MTAD, Rocha MND. Bacharelado interdisciplinar: uma proposta inovadora na educação superior em saúde no Brasil. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1635-46. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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5. Fernandes JD, Xavier IM, Ceribelli MIPF, Bianco MHC, Maeda D, Rodrigues MVC. Diretrizes curriculares e estratégias para implantação de uma nova proposta pedagógica. Rev Esc Enferm USP. 2005; 39(4):443-9. 6. Ceccim RB, Feuerwerker LCM. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004; 20(5):1400-10. 7. Resolução CNE/CES, de 7 de novembro de 2001. Dispõe sobre Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União. 9 Nov 2001. 8. Delors J, Al-Mufti I, Amagi I, Carneiro R, Chung F, Geremek B, et al. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; 1998. 9. Morastoni J, Malinoski MGS. Do Projeto Político-pedagógico para um Projeto Político e Pedagógico: um contrato entre gestores, professores e alunos. Athena. 2006; 6(6):17-25. 10. Nunes ED, Nascimento JL, Barros NF. A questão curricular para o plano de formação em Saúde Coletiva: aspectos teóricos. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1935-43. 11. Andrade ZB. O currículo da escola de enfermagem da UFBA e o SUS [monografia]. Salvador (BA): Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia; 2009. 12. Maia JA. O currículo no ensino superior em saúde. In: Batista AB, Batista SH, organizadores. Docência em saúde: temas e experiências. São Paulo: Senac; 2004. p. 101-34. 13. Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para compreensão e crítica. Salvador: Edufba; 2008. 14. Czeresnia D. O conceito de saúde e a diferença entre promoção e prevenção. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 39-53. 15. Rossoni E, Lampert J. Formação de profissionais para o Sistema Único de Saúde e as diretrizes curriculares. Bol Saude. 2004; 8(1):87-98. 16. Amoretti RA. Educação Médica diante das necessidades sociais em saúde. Rev Bras Educ Med. 2005; 29(2):136-46. 17. Paim JS. Modelos de atenção e vigilância da saúde. In: Rouquayrol MZ, Almeida Filho NM, organizadores. Epidemiologia e saúde. Rio de Janeiro: Medsi; 2003. p. 567-86.

Silva VO, Santana PMMA. Contenidos curriculares y el Sistema Brasileño de Salud (SUS): categorías analíticas, brechas y desafíos. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):121-32. El objetivo de este estudio fue describir y analizar las lagunas y desafíos en la dirección de contenidos curriculares para el Sistema Brasileño de Salud (SUS) a la luz de las Directrices Curriculares Nacionales. Se trata de una investigación documental cuali-cuantitativa. Para la exploración del contenido curricular se adoptaron las siguientes categorías analíticas: a) enfoque del cuidado; b) ámbito del cuidado, y c) dimensiones de los individuos y población considerados en el cuidado. Para la transformación del modelo de atención en salud en Brasil y, por consiguiente, para la consolidación del SUS, es necesaria una formación profesional con estructura curricular que viabilice la comprensión de los aspectos subjetivos de la salud del ser humano y que la educación/formación profesional no represente un momento distinto e independiente del cotidiano de las prácticas y servicios de salud.

Palabras clave: Formación de Recursos Humanos. Currículo. Sistema Brasileño de Salud. Salud Colectiva. Recebido em 13/01/14. Aprovado em 14/05/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0170

artigos

A supervisão enquanto dispositivo: narrativa docente do estágio profissional em psicologia do trabalho

Daniele Almeida Duarte(a)

Duarte DA. Supervision as a device: teaching narrative of professional internship in occupational psychology. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):133-44.

This paper addresses supervision as a device, through presenting the theoretical-conceptual framework that has guided such actions and their methodology. In analyzing three fields of internship, this paper sets forth the challenge of promoting not only healthcare workers’ health but also of building praxis that questions the relationship between university-society and training. Starting from the teaching narrative of professional internship in occupational psychology, this paper assess the way in which research-intervention is constituted on an interdisciplinary basis capable of displacing expert-centered knowledge to promote transformative collective actions that through proximity and dialogue would provide an opportunity for forging solidarity and cooperation. The construction of institutional diagnoses linked to both demand and the supervision device, capable of producing original narratives in order to build protagonist experiences corresponding to the principles of the humanization policy formed a profitable element for reframing the meanings of these spheres.

Keywords: Supervision. Device. Occupational psychology. Workers’ health. Narrative.

Este texto versa sobre a supervisão enquanto dispositivo, ao apresentar o quadro teórico-conceitual que norteou a atuação e sua metodologia. Ao se debruçar sobre três campos de estágio, explicita o desafio de promover não apenas a saúde do trabalhador de saúde, mas, também, construir uma práxis questionadora da relação universidade-sociedade e formação. A partir da narrativa docente do estágio profissional em Psicologia do Trabalho, dimensiona-se como se constituiu a pesquisa-intervenção em bases interdisciplinares capazes de deslocar o saber centrado no expert para tencionar ações de coletivos transformadores, que, mediante a aproximação e o diálogo, oportunizassem o forjar de solidariedades e cooperação. Elementos profícuos para a ressignificação dessas esferas foram: a construção do diagnóstico institucional vinculado à demanda e o dispositivo supervisão, capaz de produzir narrativas originais para construir experiências de protagonização – correspondentes aos princípios da Política de Humanização.

Palavras-chave: Supervisão. Dispositivo. Psicologia do Trabalho. Saúde do Trabalhador. Narrativa.

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(a) Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. Av. Colombo, 5790, bloco 118, Jardim Universitário. Maringá, PR, Brasil. 87020-900. daduarte@uem.br

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a supervisão enquanto dispositivo: ...

Introdução Este texto possui uma moldura têmporo-espacial-relacional singular. A particularidade desse espaço remete a uma Instituição de Ensino Superior (IES) estadual do centro-sul do Paraná, vinculada ao departamento de Psicologia. O tempo reporta ao período de três anos (2009-2012), época em que a docente esteve alocada nessa IES. E a especificidade da relação, por sua vez, gravita em torno dos discentes que supervisionou no estágio profissional e dos atores sociais que faziam parte do campo de atuação. Esses três eixos compõem a narrativa docente do estágio supervisionado em Psicologia do Trabalho, especificamente na vertente da Saúde do Trabalhador. Entendemos que narrar comporta uma dimensão criadora, pois consiste em ressignificar, de modo incansável, aquilo que se conheceu, viveu e (não) desejou. Há uma correlação íntima entre o narrar e o existir, uma vez que a narrativa remete a um “passar a limpo” da própria história, que não cessa de ser contada, pois outorga (novos) sentidos. Nas palavras de Arfuch1 (p. 33, grifos no original): “[...] a narração de uma vida, longe de vir a “representar” algo já existente, impõe sua forma (e seu sentido) à vida mesma”. A potência do ato narrativo consiste em gerar significações capazes de entretecer novos afetos, esperanças, transgressões e elaborações. Não nega a perda e o sofrer – constituintes da condição humana – mas se depara com eles, posto que narrar permite encontrar outros movimentos com os fios da trama vivida. Nesses termos, a narrativa não deve ser compreendida como algo desencarnado de uma ação situada, mas envolta de contexto histórico-social e subjetivo. Feito esse delineamento, podemos avistar os elementos substanciais que nortearam o percurso da supervisão como rumos possíveis de conduzir uma intervenção a partir da Universidade no âmbito das Políticas Públicas em Saúde do Trabalhador, precisamente com os trabalhadores de saúde. Abordaremos instrumentos utilizados no próprio ato da pesquisa, posto que a atuação não se aparta de um conjunto teórico-técnico e ético-político. Contudo, esclarecemos que não apresentamos esse fazer como uma “receita”, mas como um dispositivo de quebra do lugar de especialista (o expert detentor do saber) para compor saberes plurais e compartilhados. Desse modo, este texto fica caracterizado como um dossiê aberto(b), disponível ao outro ao inserir, em um debate ampliado, estratégias teórico-práticas e atividades interpretativas produtoras de significações3.

Apresentação breve do campo de estágio A delimitação dos campos de estágio deu-se: na rede de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS), na Atenção Primária (AP), e na Atenção Secundária (AS). Na AP, dois campos foram Unidades Básicas de Saúde, onde haviam implantadas equipes de Estratégia de Saúde da Família. O terceiro campo foi na AS, no Consórcio Intermunicipal de Saúde – composto por serviços especializados localizados em territórios distintos da cidade –, dispondo de atendimentos ambulatoriais com especialidades médicas, Centro de Especialidade Odontológica e Centro de Atenção Psicossocial. Nesses três locais, o foco de ação voltou-se para o trabalhador de saúde, sendo possível abranger funções e hierarquias distintas, pois envolveu tanto os coordenadores locais quanto trabalhadores de diferentes atividades (auxiliar de serviços gerais, motorista, agente comunitário de saúde, técnico de enfermagem, enfermeiro, dentista, auxiliar de dentista e 134

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Barthes2, nessa expressão, incitanos a promover uma operação fecunda de desdobramento dos significantes, tal como um dossiê a ser explorado em busca do manifestar de novas zonas de sentidos. Isso enseja uma atuação que encalce as forças instituintes ao se deparar com o instituído. Permite vislumbrar possibilidades desejantes e o reinventar da instituição. Seja essa instituição compreendida como o campo de intervenção ou como a própria Psicologia do Trabalho.

(b)


Duarte DA

artigos

médico). Atuamos com todos aqueles que estivessem disponíveis para participar das atividades de estágio propostas. A escolha desses campos oportunizou, aos discentes do quinto ano de Psicologia, entrar em contato com as Políticas Públicas do SUS e sua complexa estrutura organizacional e de funcionamento, tendo como eixo diretor a possibilidade de atuação da Psicologia no contexto das instituições e do trabalho com foco na saúde. Isso não foi novidade apenas para os discentes, que se inseriam no campo, mas, também, para os próprios profissionais e equipamentos de saúde familiarizados com a tradicional vertente clínica. Nesses campos, era característico pensar na saúde do usuário, mas, não, na do próprio trabalhador de saúde.

Ferramentas teórico-conceituais Um primeiro marco a assinalar reporta ao caráter interdisciplinar que envolveu a atuação fundada na práxis, capaz de abarcar da pesquisa à intervenção, da teoria à prática, bem como de uma ação local não dissociada de uma análise de conjuntura. Nesse caminho a ser trilhado, um diálogo entre os diferentes saberes foi o meio que pôde propelir luzes às indagações provindas do discente, do profissional e da docente. Ao atuar com a saúde do trabalhador, é indispensável reconhecer que nenhum saber sozinho pode dar conta da complexidade e multiplicidade que esse tema requer. Disso há dois desdobramentos, um conceitual e outro ético-político. O conceitual remete à própria definição desse campo que, por ter abrangência intrassetorial e intersetorial, demanda uma abordagem interdisciplinar e interprofissional capaz de conjugar saberes diversos, tanto o científico quanto o do próprio trabalhador (oriundo de sua experiência e vivência). Com isso, verifica-se que a saúde do trabalhador consubstanciase, necessariamente, por meio da interpenetração de diferentes conhecimentos, atores sociais e instituições4,5. A interlocução com o trabalhador é indispensável e traz consequência ético-política. Sujeito de saberes e vivências precedentes do confronto do trabalho prescrito com o real, ele é quem pode fornecer pistas dos destinos do sofrimento, bem como suas astúcias e engenhosidades para lidar com o trabalho que coteja o desejo e a inteligência. Nessa vertente, a avaliação das condições de trabalho e saúde deve atentar para a subjetividade e o conhecimento do trabalhador para dimensionar os efeitos singulares e coletivos6. O trabalhador não apenas protagoniza como, também, compõe o processo de pesquisa e intervenção em curso, diferenciando-se de modo insigne do modelo da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, nos quais figurava como mero objeto, destituído de saber e de poder interventivo4,5. Diante disso, recorremos aos fundamentos teórico-conceituais condizentes com essa proposição, hábeis para lidar com a contradição que o mundo do labor encerra, a fim de atuar com a tensão do real de maneira a não descartá-la. Localizamos referenciais que ponderassem a perspectiva histórica e conjectural sem perder de vista a singularidade. Fulcros que permitissem o trânsito coletivo e individual, universal e singular privilegiando a fala dos trabalhadores de saúde, a fim de situar a indissociabilidade entre assistência e vigilância. Dispusemos de abordagens diversas em diálogo, porém, concordantes em suas próprias bases com a interdisciplinaridade. Estabelecemos, como eixo transversal, um arcabouço dialógico que não ignorasse as divergências e especificidades das correntes teóricas, mas que trabalhasse com estas a fim de operar no real. Para os três campos de estágio, em momentos diversos da atuação, buscamos referências em: Clínicas do trabalho: Psicodinâmica do Trabalho e Psicossociologia; Movimento institucionalista: Análise Institucional; Política Nacional de Humanização (PNH): transversalidade, indissociabilidade entre atenção e gestão, protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos; SUS: princípios da universalidade, integralidade, equidade. O aparato fundamental que delineou nosso trabalho de estágio nas referidas instituições foi a construção do diagnóstico institucional a partir da análise da demanda e dos preceitos da pesquisa qualitativa. Instrumento capaz de (re)conhecer a instituição. Conhecemo-la porque, por meio dele, foi possível reunir e elaborar informações no plano da universalidade, particularidade e singularidade COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e no das forças instituintes e instituídas(c). E reconhecemo-la porque ele instaura um processo de compreensão compartilhado que não cessa e nem se fecha em si mesmo, mas perfaz todo o trabalho de campo – capaz de transitar entre o campo de análise e o de intervenção. Nesse ínterim, o diagnóstico institucional é movido mais por perguntas do que respostas. Adentra no cotidiano, nas relações e existências. Perscruta as práticas, os discursos, o material e o imaterial. Percorre os níveis individuais, grupais e organizacionais, vislumbrando expressões de prazersofrimento. Ao buscarmos “discernir” e “distinguir” a singularidade institucional (termos advindos da etimologia de diagnóstico), visávamos não a patologia, mas a compreensão de algo. O cuidado com a instituição e seus atores foi o mentor para fazer a crítica (que aprecia e pondera a realidade em suas fragilidades e potencialidades). A cuidadosa análise crítica – no espaço coletivo e não centrada no expert – não foi para aumentar a autocomiseração ou despotencialização, mas fomentar a luta, os ideais emancipatórios e libertários que pulsam, muitas vezes de modo silencioso, nas instituições. Perante isso, uma indagação nos acompanhou de modo obstinado no espaço de supervisão: quais são as questões subjacentes às queixas e aos pedidos que nos são endereçados? Para pensar conjuntamente isso, foi preciso considerar o contexto institucional e histórico, seu desejo de (não) compreender, (não) controlar, (não) pensar e (não) interrogar8. Deslindar as defesas coletivas que estavam ativas – do campo e dos próprios interventores –, o que fez das contradições e das resistências o nosso material de trabalho por excelência. Essa via analítica propiciou tanger a complexidade da demanda e seu viés social, como nos ensina a psicossociologia9. A demanda confere sentido a todo o trabalho realizado, sendo sinalizadora de rumos investigativos e interventivos. Esta é também heterogênea e apenas faz sentido se estiver em relação com outras, haja vista a pluralidade de atores sociais que interagem nas instituições produzindo diferentes transversalidades e expressando diversos pertencimentos. Assim, a demanda está para ser decifrada e interpretada. A força motriz desse processo é a relação estabelecida entre estagiários/Universidade (discentes e docente) e atores sociais (profissionais de saúde), pois, para que a demanda seja endereçada, é preciso que alguém esteja disponível para escutá-la. Coerente com a perspectiva socioanalítica é a do diagnóstico institucional, que delineia o processo interventivo. Na socioanálise (a análise institucional em intervenção), o método baseia-se em criar um dispositivo de análise social compartilhado: “Consiste em analisar coletivamente uma situação coletiva”7 (p. 30). Deste viés nós puxávamos as linhas propostas nas Políticas Públicas, a saber, os Grupos de Trabalho de Humanização (GTH) que propõem essa perspectiva de trabalho. Enleávamos a esse viés teórico as ações dispostas na dimensão técnica e prática da PNH voltadas para o trabalho grupal e dialógico, especialmente, por meio de oficinas que abordaram temas como: grupo e equipe; processo saúdedoença; sentidos e significados do trabalho; relações laborais etc. Consonante a isto, a Psicodinâmica do Trabalho propiciou identificar os destinos do sofrimento, assim como sua gênese, ao esquadrinhar a organização, condição e relação de trabalho. Permitiu avistar o trabalho vivo, as artimanhas dos trabalhadores ao terem mobilizada a inteligência prática para dar conta do real; entrar em contato com as estratégias de defesa coletiva e seus efeitos sobre a gestão e atenção dispensadas, assim como sobre sua própria saúde. Apreender os sentidos e significados do trabalho e sua (con)formação histórica, material e imaterial, mais que prestar serviços, é produzir a si mesmo. Aspectos fundamentais para explorar a singularidade laboral a partir do encontro 136

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(c) Lourau7, ao fazer menção à dialética hegeliana para compreender a instituição em sua vivacidade, elucida a contradição que gera movimento e historicidade. Debruça-se sobre a universalidade (dimensão ideológica e normativa), particularidade (referente à base social e às relações de classes) e singularidade (atinente à organização material das instituições). Esses três momentos correspondem, respectivamente, ao instituído, instituinte e institucionalização.


Duarte DA

A perspectiva de Lourau7 dos micromovimentos autogestionários – contrapondo-se à heterogestão – deve ser entendida como uma construção política permanente, em que a análise coletiva da situação presente possui caráter transformador. Sendo assim, assumimos os desígnios da Análise Institucional em sua utopia ativa, ou seja, os objetivos nobres que orientam os processos desejantes e revolucionários, com suas forças instituintes que se fazem no viver cotidiano. (d)

artigos

entre indivíduo/coletivo e a organização do trabalho6. Para apreender esse quadro, realizamos: acompanhamento de rotina, análise de documentos institucionais, entrevistas e observação participante. Meios estes de acessar o trabalho real e aquilo que subsistia, de modo invisibilizado, no cotidiano dos trabalhadores de saúde. A fim de enredar esses elementos à psicossociologia, além de promover a articulação entre singular e social, permitiu encaminhar o diagnóstico sem operar dicotomias, ao problematizar a demanda em sua perspectiva social e subjetiva. Conferiu subsídios para uma cuidadosa leitura acerca da instituição e os efeitos do caráter deflagrador da intervenção, ao circunstanciar os processos de autoanálise e autogestão(d). Esses vetores reunidos foram capazes de impulsionar nosso intento: a promoção de saúde. Essa concepção diz respeito ao fortalecimento da saúde por meio da construção da capacidade de escolha, bem como à utilização do conhecimento com o discernimento de atentar para as diferenças e singularidades dos acontecimentos. [...] É algo que remete à dimensão social, existencial e ética, a uma trajetória própria referida a situações concretas, ao engajamento e comprometimento ativo dos sujeitos.10 (p. 51)

As diretrizes do SUS e da PNH, junto com o referido delineamento teórico, foram os artifícios para desenvolver o que não apenas estava preconizado formalmente para os serviços de saúde, mas os dispositivos capazes de gerar responsabilizações compartilhadas de cuidado e gestão para operar mudanças mediante um exercício de cogestão, logo, geradores multidimensionais de saúde.

A supervisão enquanto dispositivo Fortalecer a ação no quadro teórico-conceitual mencionado, atuar na perspectiva de um SUS que dá certo e confrontá-los com o real não é uma via curta tampouco fácil. Antes, diz de um processo que não é dado e nem está pronto, pois se encontra em permanente construção, marcado por contradições e desafios dentro e fora do campo de estágio. Ademais, há a atuação interventiva a se delinear, que entrelaça Psicologia do Trabalho e Saúde do Trabalhador, situada no horizonte da relação trabalho-subjetividade, processo saúde-doença, prazer-sofrimento. Perante isso, o manejo de dispositivos fez-se fundamental para ampliar a reflexão e o debate, qualificar a intervenção e produzir saúde junto ao outro11. Agamben12, a partir de um viés foucaultiano, compreende o dispositivo como algo que reporta às relações de poder e saber, a um conjunto heterogêneo linguístico e não linguístico ao abranger instituições, leis e discursos. Diz de um conjunto de práticas e de mecanismos que possui função estratégica como também responde a uma urgência. Complementar a essa visão, Saidon3 afirma que Um dispositivo é alguma coisa que serve para fazer com que algo funcione. Assim nos interessam os grupos: na medida que colocam em funcionamento alguma coisa no interior da instituição, ou no interior deles mesmos. [...] colocar em funcionamento alguma coisa que estava caminhando de forma excessivamente bem adaptada. [...] O dispositivo seria aquele instrumento que nós colocamos para ver onde é que a

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máquina se decompõe; para fazer da decomposição, e da crise, não um drama, e sim, um produtor de novos acontecimentos. (p. 14)

Nesses termos, a supervisão é um dispositivo para se trabalhar o olhar e a escuta. Analisar e ser analisado. Pôr em funcionamento processos desejantes, potencializar transformações mediante o confronto com o real. É lócus para se deparar com a dúvida, a impotência, o não-saber e o medo. É permitir ser interpelado pelo outro e por si mesmo. É trabalhar com o (não) desejo de escutar o sofrimento do outro e o nosso próprio. Sabido que escutar o outro é escutar a si mesmo (análise de implicação). A escuta é dar lugar para o mundo do outro. E o mundo do outro nos lança no risco de desalojar o nosso próprio mundo, posto que este pode assustar, gerar repulsa e trazer insegurança, como, também, encantar e produzir um sentimento cálido. A supervisão enquanto dispositivo é pensar as possibilidades para enfrentar as impossibilidades. Faça-se entendido que o problema que acomete esse percurso não é ter crise. O problema é quando não podemos olhar para esta nem encontrar/construir recursos que possam incorporá-la como material constitutivo da atuação. É compreender para transformar e transformar para compreender. Toda intervenção, derivada da análise da demanda, possui um desdobramento ético e político que faz da análise de implicação uma ferramenta irrenunciável por ser capaz de propelir luzes ao mesmo tempo em que se debruça sobre as áreas de sombra, visto que seu uso possibilita anunciar algo a ser esclarecido no percurso interventivo8. Pensar as áreas de sombra é interessante por nos remeter ao contemporâneo. Nosso objeto de estudo está nesse período histórico, o que o torna próximo e distante, inteligível e desconhecido. Para trabalhar essa contradição é preciso ir além de uma visão habitual e exercer o estranhamento. Perseguir o desconhecido e o inesperado. Esse convite nos faz remontar a Agamben12, quem pondera que “Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” (p. 63). É nesse movimento de estranhamento diante do conhecimento acerca do fenômeno que optamos por teorias e metodologias em diálogo que provocassem o deslocamento, tanto da relação de poder centrada no expert quanto da ideia de um receituário tecnicista pronto para ser aplicado. Foi preciso reaprender a ouvir e a perguntar. Construir formas de atuação que priorizassem a fala do outro em um espaço ampliado, reconhecendo os discentes e os profissionais de saúde como sujeitos de saberes irrenunciáveis. Nesses termos, instituição e intervenção são campos a um só tempo complexos e delicados. É preciso cuidado para trabalhar com suas experiências imersas em violências, sintomas e sofrimentos. A supervisão enquanto dispositivo perseguiu a busca de recursos junto ao outro, no processo interventivo, para retornar e fomentar os espaços coletivos. Buscou a potência de agir do sujeito e da instituição. Deslocou-se da encomenda (restrita a um indivíduo ou grupo) para a demanda (referida a um coletivo ou instituição). Nesse viés, trabalhou-se para dispor uma escuta de modo que o problema institucional não fosse privatizado, mas coletivizado. Isso significou atuar, durante o período de estágio profissional, com os recursos institucionais capazes de lidar com suas próprias demandas e crises. Apegar-se de modo desprendido às condições e situações em que os atores institucionais pudessem continuar a trabalhar sua realidade. Enfim, tencionar ações de coletivos transformadores para que, mediante o encontro entre as pessoas, fossem oportunizados o forjar da solidariedade, da cooperação, da corresponsabilização e do viver-junto. Diante disso, a supervisão enquanto dispositivo é espaço de ancoragem e continência mediante o vínculo entre discente e docente13. Quando se tem desmontada a idealização de transformações avassaladoras na realidade, é preciso um dispositivo que dê conta de abraçar isso a fim de entrar em contato com a frustração, a impotência e o não-saber. Poder ponderar o processo de precarização das condições e relações de trabalho, a exploração inexorável do capital, a violência institucional e a fragilização das relações – estandartes do sofrimento e do adoecimento. Somente ao reconhecer essa via é que se tornou possível intervir a partir de esferas até então não avistadas. Aprendemos a trabalhar nas brechas, com as contradições e a resistência. Desvendar e se deixar ser desvendado – 138

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uma vez que a fala e a solução das questões institucionais não se restringiram ao expert consultado, mas pertenciam, também, aos seus atores sociais, cabendo a nós, Universidade, fazermos da relação um vínculo de apoio e suporte para que esse universo de trabalho e vida pudesse ser reinventado. Nesse horizonte, foi condição trabalhar com a autonomia dos discentes para que a dos atores sociais fosse viabilizada. O docente – enquanto formador privilegiado por poder conectar (mediante o espaço de supervisão) o campo de estágio com a realidade para além dos muros da Universidade – precisa atentar, de maneira cuidadosa, para o discente. Propiciar vivências que o encorajem a aprender a pensar, a interpelar e ser interpelado. Poder deparar-se com o não-saber, a angústia e frustração para, a partir delas, atuar com o real. O papel do supervisor é profícuo quando permite não somente abrir caminho para o exercício profissional autônomo e emancipatório, como também possibilita avistar as pedras que perfazem essa trajetória. Para visualizar isso, nada melhor que o poeta14 (p. 36): No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho Tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra.

Com efeito, a supervisão, mais do que apontar o caminho, é se defrontar com as pedras. As pedras possibilitam avistar o caminho tanto quanto o caminho avistá-las. Isso significou fazer dos vetos e proibições do real um material a compreender; do silêncio institucional, uma escuta atenta; do mal-estar, sintoma (social), e da crise, algo a ser decifrado; da brutalidade e violência exercidas no cotidiano, um desvelar; do conflito e problemas atravessados, um trabalho de explicitação e ressignificação coletivas. Essas pedras denominamos como vicissitudes dos encontros e seus acontecimentos, que, no processo interventivo, sinalizaram percalços, desorientações e reticências, mas, também, geraram recursos para percorrer e superar essa realidade. Entendendo que, com pedras, se faz também o caminho! Atuar na produção de conhecimento, na formação discente, e resgatar o compromisso social da Universidade com a comunidade e as Políticas Públicas, faz-se um campo promissor. Realidade em que o discente pode experimentar vivências cujo esforço da supervisão está em superar dicotomias, respostas prontas e atemporais, para convidar o acadêmico e os atores sociais a fazerem o exercício histórico, a problematizarem o contexto e a assumirem o espaço de palavra e de vida. Consequentemente, ao concebermos o dispositivo como algo que desmonta e estranha o que está dado, a supervisão, em seu sentido etimológico de “olhar sobre” ou “por cima” de alguém, tem deslocada sua posição original (semântica e de atuação) para dar lugar ao encontro de olhares, de trocas de perspectivas distintas, porém, horizontalizadas. O campo de significação aberto e em movimento é o que vai orientar a relação entre supervisor, supervisionando e demais atores sociais, em um panorama que supera o próprio olhar e a sua verdade – porque insuficientes –, para se elevar sim, mas acima de si mesmo. É com o olhar do outro que podemos nos erguer para ultrapassar os entraves que impediam o sonhar e o realizar de novos acontecimentos até então impensáveis porque estavam em lugares restritos e tidos como cabais.

Metodologia A metodologia como a elucidação do caminho prático e epistêmico da investigação e intervenção se voltará, nessa discussão, à compreensão da supervisão enquanto dispositivo. Logo, se desdobrará, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pontualmente, sobre os elementos didático-pedagógicos e sobre o entorno teórico que configuraram a práxis veiculada pela docente. As supervisões semanais com os estagiários estiveram pautadas nos conteúdos teóricos afins à área de atuação da supervisora e da demanda. O conjunto dessas referências balizou a elaboração de uma práxis advinda do constante provocar, por parte da supervisora em seus alunos, para o acolhimento daquilo que o campo interpelava. Além disso, era o lócus para integrar o encontro da esfera da teoria com as das vivências no campo de estágio. Esse foi o esforço que imprimíamos para ultrapassar a tradicional visão dicotomizadora entre teoria e prática. O recurso promissor para este percurso foi solicitar, aos discentes, uma produção discursiva que lhes fosse própria. Isso significou desconstruir a supervisão como lugar de um mero relato do supervisionando ao supervisor, com a finalidade de construir um espaço em que o discente se tornasse narrador de seu afeto, ação e pensamento. Tanto por meio da linguagem dialógica (no espaço de trocas na supervisão e no campo de estágio) quanto da linguagem escrita (registros da experiência de estágio feitos no diário de campo semanal e nos relatórios). Linguagens estas capazes de evidenciar a dimensão da práxis ao tornar o vivido em material narrado. No espaço de supervisão, a narrativa pôde ser escutada pelo supervisor e pelo próprio supervisionando. Exercício imprescindível para manejar as dificuldades que emergiram no processo interventivo, especialmente aquelas oriundas do campo grupal nas oficinas temáticas e reuniões coletivas. Ademais, permitiu avaliar a práxis ao realizar o trânsito dialético entre o teorizar e o fazer por meio do constante debate da operacionalização dos conceitos que adquiram vida na intervenção e no estudo da instituição. Foram as palavras proferidas acerca do vivido (teórico-prático) as anunciadoras de uma ética e uma política, manifestadas no narrar, que ensejaram retomar o movimento incessante do vivido-refletido-vivido. Nesse movimento, a narrativa comporta dupla reflexividade. Reflete o vivido, mas também o pensa, indagando-o. Para si mesmo e para o outro. Narrar traz impresso um cunho (auto)biográfico, pois diz de um revisitar da história vivida. Fizemos uso desses recursos para o entendimento da realidade institucional, do processo trabalho-saúde-doença, e da produção de conhecimento sobre o próprio processo de estágio e supervisão. Alguns passos foram: Inserção institucional: os discentes se apresentam enquanto estagiário, expõem a proposta de atuação e adentram paulatinamente no cotidiano e rotina institucional. Passam a conhecer a instituição e por ela serem conhecidos; Elaboração do diagnóstico institucional: compreensão da realidade institucional a partir de sua demanda ao tanger grupos, organizações e instituições, privilegiando a atenção sobre a saúde do trabalhador com foco na prevenção e promoção; Programa de intervenção voltado para a demanda: desenvolve o exercício de análise, sistematização e tomada de decisão em uma perspectiva coletiva com base na realidade institucional e nos materiais levantados; Devolutivas: dialogadas, constantes e processuais entre interventores e atores sociais, bem como entre discentes e docente. Destacamos que a devolutiva foi concebida como um aspecto transversal do estágio, não como algo pontual e formalizado apenas com determinado representante de um nível hierárquico. Compreendemos que a devolutiva é constante porque a restituição(e) dá-se não somente no espaço formal de trabalho, como reuniões, mas, também, em locais informais por meio de chistes e

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(e) Segundo Lourau7, a restituição não consiste em uma situação de confissão privada ou pública, mas de uma análise coletiva da situação presente, uma vez que, nessa temporalidade (capaz de conjugar o vivido com o desejo de um futuro), podemos verificar a função das diversas implicações dos atores sociais e da situação institucional.


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conversas “despretensiosas”. Recolhíamos esses materiais no cotidiano por intermédio de uma escuta cuidadosa e de uma observação participante para contextualizá-los. Quando trabalhado esse material, devolvemos e recebemos novos conteúdos oriundos da atuação institucional junto aos trabalhadores de saúde. Nesses termos, pudemos, de modo dialogado, definir os rumos e prioridades da intervenção. Conduzir a atuação a partir da demanda do campo e ponderar coletivamente sobre os impasses e possibilidades vivenciados. A metodologia no campo interventivo, para operar esses referenciais, utilizou extensamente o trabalho com grupos, em uma perspectiva aberta, heterogênea, participativa e dialógica. Recorremos a publicações oriundas de Políticas Públicas de saúde e produções que abordassem essa dimensão. Por exemplo: o método da roda para análise e cogestão de coletivos15, os GTH11, a implementação de oficinas16, e os princípios do grupo operativo pichoniano. Importante assinalar que privilegiávamos o espaço público da palavra que encontramos tanto na escola dejouriana quanto na socioanalítica e psicossociológica, embora com significativas diferenciações teórico-epistemológicas. Nos grupos buscávamos ampliar o espaço de fala, escuta e negociação entre os trabalhadores de saúde por meio do exame da realidade vivida – via capaz de promover o discurso institucional não descolado da ação. O grupo reitera a lógica institucional (permitindo abordar o âmbito singular e social) por ser um dispositivo capaz de acolher angústias e gerar aproximação por intermédio da situação coletiva de análise instaurada. Caminho este que pronunciou a protagonização em sua própria realidade por meio da autoria do vivido; análise da demanda pelos próprios trabalhadores; transformação do real, ao tornarem-se agentes de suas problemáticas e possibilidades. Outras atividades atinentes ao campo de estágio foram desenvolvidas, como as visitas técnicas e a participação em espaços voltados para a atuação política em Saúde do Trabalhador, para ampliar a visão da Rede de Atenção em Saúde em nível estadual e municipal, bem como seus espaços coletivos de deliberação. Foram estas: participação em reuniões do controle social, a Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador; X Conferência Municipal de Saúde 2011; visita aos estabelecimentos focados nas políticas norteadoras em Saúde do Trabalhador e de assistência e vigilância, localizadas na capital do Paraná: Centro Estadual de Saúde do Trabalhador, Hospital do Trabalhador e o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador.

A narrativa docente in fieri desse processo A narrativa não é um trivial testemunho feito à distância e indiferente ao acontecimento, por isso, o emprego da primeira pessoa do plural neste texto, como vias demonstrativas da polifonia que gerou a narrativa singular do material social. Um recurso linguístico capaz de referenciar o enredo como uma produção coletivizada constituída por diferentes instituições e atores sociais (docente, discentes e profissionais de saúde). Há que se rememorar nosso lugar no coletivo, provocador de (novas) narrativas. Reconhecer o outro como parte indispensável da produção do saber, especialmente aquele que se engendra do encontro Universidade-sociedade. O campo de estágio não foi uma superfície sobre a qual aplicaríamos técnicas ou operaríamos conceitos, pois o entendíamos a partir de um fazer capaz de disparar mudanças em longo prazo. Um contexto em que poderíamos promover deslocamentos e inquietações baseados em sua realidade – tal qual se preconiza nas Políticas Públicas em Saúde do Trabalhador no SUS: um espaço de luta5. Conforme esses princípios, pudemos trabalhar com a crise e o drama institucional; atuar na singularidade sem perder de vista a análise da conjuntura. Posto que estas não se excluem, mas adquirem visibilidade ao serem observadas suas zonas de fronteiras, pensar as contradições, ambiguidades e conflitos. Meios estes para atuar com saúde de modo integral, sem se restringir à busca de psicopatologias ou doenças ocupacionais. Uma atuação que tencionava: compreender os impactos do trabalho contemporâneo sobre o homem e a mulher que laboram; interferir na relação trabalho-trabalhador em busca de sua valorização; compreender a gênese do processo de adoecimento e sofrimento, e estimular debates e práticas que reinventassem as regras de trabalho e institucionais. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ao nos comprometermos com a transformação da realidade em uma perspectiva ético-política, via Políticas Públicas do SUS, alçamos um espaço-tempo-relação profícuo, em que a Universidade e a Psicologia do Trabalho engajaram-se à comunidade e aos atores sociais na luta e afirmação de seus direitos17. Desafios a serem desbravados dentro e fora do espaço de supervisão, ao nos depararmos com o instituído produtor de conformismo e resignação diante da perspectiva de mudança geradora de medo, negação e insegurança. Isso anunciou que os espaços de trocas coletivas não estão dados e precisam ser diariamente (re)constituídos para se poder lidar com práticas e saberes cristalizados, reticentes ao diálogo e reflexão. Ao construirmos narrativas na/por meio da supervisão, pudemos escutar o outro, como, também, a nós mesmos. Por intermédio do narrar, encaramos face a face a impossibilidade de dar conta de tudo. Enriquez8 já nos dizia que o desconhecimento é um elemento estrutural da vida social e do pensamento. Tendo isso em vista, nossa atuação visava o pensar, o agir, e não, necessariamente, o responder algo. Sabíamos que muito seria se a instituição pudesse elaborar para si uma pergunta ou deparar-se com o vazio e a falta – nós também! Não esqueçamos que intervenção é “estar entre” e “assistir”, portanto, vincula uma dimensão ética que, por intermédio de atos de cuidado, possibilita apoio no desenrolar da trama institucional. Estar entre e assistir é pensar com o outro, e não pelo outro, para o outro, sobre o outro, sob o outro – por isso, a horizontalidade estabelecida no dispositivo supervisão foi o passo precedente para a perspectiva de encontro nivelado entre estagiários e coletivo. Estes foram os fios narrativos que compuseram uma trama capaz de atar uma Psicologia do Trabalho em diálogo e em contexto. Estratégias que incitaram possibilidades de mudança na realidade do trabalho e de seus atores, como, também, acerca do fazer do psicólogo, onde a urgência da humanização nos processos laborais constitui um desafio que excede a formação. Nesse pressuposto, o estágio propõe não somente inserir o discente em uma realidade institucional e profissional, mas, também, promover uma formação que não desarticule a Psicologia do Trabalho da área de Saúde (Mental) do Trabalhador em uma perspectiva interprofissional e interdisciplinar. Nossa experiência demonstrou a necessidade: da efetivação de espaços e dispositivos que possam abarcar a saúde do trabalhador de saúde do SUS, de ações que incitem a reflexão e apropriação da realidade institucional/laboral, e do fortalecimento da política norteadora da atuação profissional. Isso não se faz sem um percurso formativo que viabilize uma práxis fundamentada na autonomia e protagonização compartilhada, que sejam mobilizadoras de lutas em direção à construção da dignidade e humanidade pelo/no trabalho. Por entendermos que a narrativa é geradora de sentidos do vivido, é fundamental que o docente possa retornar às suas práticas didático-pedagógicas, interrogando, de modo incessante, a relação estabelecida entre Universidade e sociedade, entre formação e intervenção, para redimensionar seu saber-fazer a partir dos espaços de intersecção possibilitados pelos discentes e atores sociais envolvidos no processo de estágio. Esse movimento permite encontrar o enredo vivido e tecer outras tramas. Finalmente, ao fazermos desta seção as considerações derradeiras deste texto-narrativo, precisamos nomear o caráter que pretendemos dar a essa discussão e ao encontro travado entre supervisor, supervisionando e profissionais de saúde. Entendemos in fieri, proveniente do latim, como algo a se fazer; em vias de se tornar; estar em andamento18. A ideia do acontecer em trâmite reflete nosso teor narrativo. Assim é a formação de psicólogos e demais profissionais de saúde, que não cessa com a Universidade, mas está em constante andamento, em desenvolvimento. Tal como uma narrativa, produzida a vários fios e mãos, este narrar não começou aqui e nem terminará conosco. Outras narrativas foram tecidas, outras estão a se tecer. Uma urdidura singular capaz de conjugar o coletivo e as instituições; com a potência tanto de reinventá-las como de reinventar a nós mesmos. Essa reflexão também persiste, tal como um dossiê aberto a outras trocas, olhares e diálogos. Perspectivas ainda não visualizadas, de que somente com o outro podemos continuar produzindo novas tramas e nos elevarmos sobre nós mesmos.

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Duarte DA. La supervisión como dispositivo: narrativa docente de la pasantía profesional en psicología del trabajo. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):133-44. Ese texto trata sobre la supervisión como dispositivo, al presentar el cuadro teóricoconceptual que rigió su actuación y su metodología. Al enfocarse sobre tres campos de pasantía, explicita el desafío de promover no solo la salud del trabajador de la salud sino también construir una praxis cuestionadora de la relación universidad-sociedad y formación. A partir de la narrativa docente de la pasantía profesional en Psicología del Trabajo, se dimensiona como se constituyó la encuesta – intervención en bases interdisciplinarias capaces de desplazar el saber centrado en el expert para buscar acciones de colectivos transformadores que, por medio de la aproximación y el diálogo, dieron oportunidad para forjar solidaridades y cooperación. Elementos prolíficos para la re-significación de esas esferas fueron: la construcción del diagnóstico institucional vinculado a la demanda y el dispositivo supervisión, capaz de producir narrativas originales para construir experiencias de protagonización – correspondientes a los principios de la Política de Humanización.

Palabras clave: Supervisión. Dispositivo. Psicología del Trabajo. Salud del Trabajador. Narrativa. Recebido em 15/07/14. Aprovado em 25/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0530

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Mudança curricular em Odontologia: significados a partir dos sujeitos da aprendizagem

João Luiz Gurgel Calvet da Silveira(a) Vera Lúcia Garcia(b)

Silveira JLGC, Garcia VL. Curricular change within dentistry: meanings according to the subjects of the learning. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):145-58.

This study aimed to present the perceptions of curricular changes among dentistry students through the qualitative methodological approach of a case study. A total of 147 students from eight semesters participated. A qualitative research approach was used, with the focus group technique, involving eight phases of the course and addressing the main issues relating to curricular changes. Two categories were identified through content analysis: a) professional practice as care: placing value on content and dental practices in which meanings are grounded in practicing the techniques as a form of care; and b) acceptance of the Brazilian National Health System (SUS) as the learning scenario. A feeling of acceptance of the curricular changes prevailed, although the dimensions of this acceptance need to be determined and the new curriculum needs to be better understood by the subjects involved in the changes, so that it does not become a formal prescriptive document.

O objetivo deste estudo é apresentar a percepção da mudança curricular por estudantes de Odontologia, por meio da abordagem metodológica qualitativa de um estudo de caso. Participaram 147 estudantes de oito semestres. Abordagem de pesquisa qualitativa, com técnica de grupo focal, envolvendo oito fases do curso, tratando dos principais temas relacionados às mudanças ocorridas no currículo. Por intermédio da análise de conteúdo, foram identificadas duas categorias de análise: a) prática profissional como assistência: valorização de conteúdos e práticas odontológicas cujo sentido se ancora na prática da técnica como assistência; b) aprovação do Sistema Único de Saúde como cenário de aprendizagem. Prevalece o sentimento de aceitação das mudanças curriculares ocorridas, embora dimensões dessa aceitação precisem ser trabalhadas e o novo currículo precise ser mais bem compreendido pelos sujeitos implicados em sua mudança para que não se torne um documento prescritivo formal.

Keywords: Curriculum. Dentistry. Dental education.

Palavras-chave: Currículo. Odontologia. Educação em odontologia.

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Departamento de Odontologia, Programa de Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade Regional de Blumenau. Rua Antônio da Veiga, nº 140, sala J 107, campus 1, Bairro Victor Konder. Blumenau, SC, Brasil. 89012-900. gurgeljl@gmail.com (b) Programa de Desenvolvimento Docente para Educadores das Profissões da Saúde do Instituto Regional FAIMER Brasil, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil. vlgarcia@uol.com.br (a)

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O cenário da mudança A superação da formação odontológica “tradicional” – caracterizada por fragmentação de conteúdos, foco na especialização, alto custo e para a atuação quase exclusiva no mercado privado da profissão1 – constitui um desafio presente. No âmbito das políticas públicas, destacam-se, atualmente: a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), com inclusão do dentista no Programa de Saúde da Família1; e a Política Nacional de Saúde Bucal, Brasil Sorridente2. Na educação, merece destaque a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso de graduação em Odontologia3, corroborando para a formação de profissionais mais preparados para atuarem no sistema público de saúde. Nesse contexto de mudança da formação odontológica, cabe destacar o papel relevante da Associação Brasileira de Ensino Odontológico (ABENO), subsidiando as discussões para a mudança, juntamente com segmentos da sociedade civil, da academia e de profissionais, conferindo historicidade, legalidade e legitimidade às DCNs4,5. Um dos desafios para a implantação das DCNs pode ser identificado já no perfil proposto para o formando egresso/profissional, caracterizado por: ser generalista, humanista, crítico e reflexivo, capaz de atuar em todos os níveis de atenção com rigor técnico e científico. Capaz de resolver os problemas de saúde bucal da população, seguindo princípios éticos e legais a partir da compreensão da realidade social, cultural e econômica, visando ao benefício da sociedade3. Nesta definição, percebe-se a manutenção da valorização da dimensão técnica e científica, ampliando, de forma considerável, a formação a partir de referenciais teórico-metodológicos das áreas das ciências humanas e sociais ou da Saúde Coletiva, pouco valorizadas nos modelos curriculares “tradicionais” da odontologia, caracterizados por: formação pela prática individual, para o mercado privado, com fragmentação de conteúdos e ensino centrado no professor especialista1,6. Tais características desafiam as Instituições de Ensino Superior (IES), que, conforme Almeida-Filho7, caracterizam-se por predominância de faculdades tradicionais, que tendem a reagir contrariamente à pressão política conduzida pelo Estado, pressionado por movimentos sociais, em direção a modelos mais humanistas, orientados para a saúde e para o cuidado socialmente comprometido7. Para alcançar o perfil do egresso proposto para os cursos de odontologia, são recomendadas habilidades e competências gerais definidas nas DCNs, como: 1) atenção à saúde: pensar criticamente e analisar problemas da sociedade e procurar soluções; 2) tomada de decisão: para o uso apropriado, eficácia e custo-efetividade dos procedimentos para a utilização de recursos, com condutas baseadas no conhecimento científico; 3) comunicação: interação com demais profissionais e com a população; 4) liderança: para atuar em equipe multiprofissional; 5) administração e gerenciamento: iniciativa e empreendedorismo nas equipes de saúde; 6) educação permanente: aprender a aprender continuamente3. Pode-se considerar que a mudança no ensino odontológico está avançando lentamente desde a publicação das DCNs em 2002. Conforme estudo da Associação Brasileira de Ensino Odontológico4, envolvendo 48 escolas de Odontologia, incluindo estudantes e professores, prevalecia, entre 2005 e 2006, um estágio de “inovação incipiente” nos currículos, numa escala de cinco estágios que pode variar entre: ensino tradicional, inovação incipiente, inovação parcial, inovação avançada e transformação, considerando três “eixos” e nove “vetores” de mudança curricular, baseados no PróSaúde - Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde8.

O docente profissional de Odontologia As exigências atuais da formação odontológica ainda desafiam a Universidade e docentes para uma revisão da formação do professor, passando pela ressignificação de seu papel. Essa revisão deve ir além do ensino restrito às técnicas de uma disciplina, fruto de sua prática profissional especializada. Precisa incluir o domínio de concepções pedagógicas, novas tecnologias, abordagens e metodologias de ensino, incluindo uma visão contextualizada sobre a realidade social do país9.

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Entre os conhecimentos necessários ao exercício da docência, com os quais, geralmente, o professor “tradicional” de odontologia pode estar pouco familiarizado, a literatura destaca: conhecimentos pedagógicos da didática geral e dos programas institucionais; de ferramentas para docência; das dimensões subjetivas dos estudantes como sujeitos da aprendizagem; do contexto educativo e didático; dos objetivos; das finalidades e valores educativos e de seus fundamentos filosóficos e históricos9. Como competências necessárias ao docente, são citadas: planejar; comunicação; conceber a metodologia e organizar as atividades, incluindo organização dos espaços; seleção e desenvolvimento das tarefas10. Esses conhecimentos e competências representam desafio especial no ensino das profissões da saúde, ainda hoje marcada pela valorização quase exclusiva do ensino técnico de especialidades profissionais11-15. Outro desafio reside no fato de que a prática na área da saúde é também baseada em crenças e valores de categorias profissionais16, criando forte identidade profissional. Dessa forma, profissionais de saúde no papel de professores podem experimentar uma sensação de impotência na identificação das suas próprias falhas no exercício de seu ofício docente. Nesse contexto, valores corporativos podem representar barreiras às mudanças na educação odontológica16. Essa situação, na IES em estudo, está sendo enfrentada por uma política de fortalecimento dos núcleos docente-estruturantes (NDE) e pelo Programa de Formação Docente (PFD), incentivando a participação dos docentes em atividades continuadas programadas a partir das demandas dos cursos, com cronogramas flexíveis e possibilitando a pontuação na carreira. O modelo de formação em saúde predominante no Brasil ainda recebe críticas por seu distanciamento do sistema público de saúde, podendo-se constatar um considerável aumento do número de publicações sobre este tema, sobretudo nas últimas décadas17 e no exterior18,19. Os desafios para mudança curricular dos cursos de odontologia, estabelecidos pelas DCNs3, apresentam semelhanças e especificidades com os demais cursos da saúde. Destacam-se entre estes: o despreparo no domínio de concepções pedagógicas, limitação ao domínio técnico de uma disciplina, visão descontextualizada da realidade social, fragmentação de conteúdos, desmotivação do corpo docente para a mudança, sobrecarga de trabalho em atividade de ensino, e pouco conhecimento sobre a literatura relacionada à legislação e às tendências do Ensino Superior9,20. Essas características podem tornar difícil de sustentar uma reforma curricular21, limitando as mudanças curriculares a prescrições burocráticas e regulatórias. Numa abordagem curricular, Freitas et al.12 enfatizam a necessidade de superação da “concepção odontocêntrica” dos currículos tradicionais de odontologia, considerando a tendência de mudança estabelecida a partir das DCNs; e apontam a necessidade de aproximação, dos estudantes, de uma “práxis da saúde coletiva”, tendo os cenários do SUS um papel relevante para essa mudança.

O contexto institucional da mudança curricular no caso em estudo O curso objeto deste estudo situa-se na região Sul, em município do interior com cerca de trezentos mil habitantes, com um dos melhores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil. Trata-se de IES pública, na qual o curso de Odontologia teve início de suas atividades no ano de 1998, sendo credenciado desde 2002. Sua trajetória é marcada por falta de consenso, resistência e pouco envolvimento dos docentes e estudantes na reforma curricular. Em 2011, foi retomado o processo de mudança do currículo, após tentativas anteriores, para atender às exigências pedagógicas e legais. Novos investimentos foram realizados para envolver os estudantes, informados sobre o necessário processo de mudança curricular em reuniões colegiadas, e, também, por e-mail, por meio do envio de questionários pelo Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Entretanto, a adesão ao questionário foi extremamente baixa entre os estudantes, com 22% de respondentes. Essa baixa adesão pode ser explicada pela história de insucesso das iniciativas anteriores para a mudança curricular, gerando certo descrédito, assim como pela dedicação massiva dos estudantes ao currículo integral, cuja massificação de conteúdos dificultava um maior envolvimento na vida acadêmica. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Esse novo processo contou com a participação de estudantes representantes do Centro Acadêmico de Odontologia (CAO), e com o trabalho intenso dos seis docentes do NDE e do coordenador do curso. Em que pesem as dificuldades relatadas, destacam-se algumas fortalezas desse processo, como o apoio institucional pela direção do Centro de Ciências da Saúde e pela Pró-Reitoria de Ensino. A participação do coordenador no “Programa de Desenvolvimento Docente para Educadores das Profissões da Saúde”, promovido pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, em parceria com a Foundation for Advancement of International Medical Education and Research (FAIMER), representou um importante suporte teórico-metodológico. Assim, também, como o “Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-saúde” apoiou as atividades do NDE, possibilitando a participação de convidados qualificados que contribuíram com experiências concretas de mudança curricular. Apesar da participação limitada no âmbito do curso, o novo currículo foi aprovado por unanimidade no colegiado do curso e nas instâncias superiores da Universidade.

Os sujeitos da mudança Pensar em mudança curricular remete a refletir sobre os sujeitos implicados. Nessa perspectiva, pensamos imediatamente: nos estudantes, nos docentes, nos usuários das clínicas, nos técnicos, na própria instituição de ensino e em outras instituições com as quais a Universidade se relaciona, além da comunidade em geral. Todos esses sujeitos, especialmente os estudantes, deveriam ser atores desse processo de mudança, portanto implicados e proativos, o que não correspondeu à realidade no caso em estudo. Por este motivo, buscamos conhecer a percepção dos estudantes de odontologia, em número de 147, representando 85% dos estudantes matriculados no curso, entendendo que a dimensão subjetiva desses sujeitos teria potencial para subsidiar e sensibilizar para a participação na avaliação permanente do currículo em implantação. Conforme dados da Divisão de Registros Acadêmicos (DRA), o perfil dos estudantes do curso estudado pode ser caracterizado como: jovens com média de idade de 22 anos, etnia prevalentemente branca (89%), vindos dos municípios em torno da Universidade. Em sua maioria, são estudantes exclusivos de média a alta renda familiar. Para superar a baixa participação dos estudantes, optou-se por trabalhar com a representação por fases do curso e com representantes do CAO na primeira etapa de implantação do PPC.

Percurso metodológico da pesquisa Abordagem e desenho Pesquisa qualitativa caracterizada como estudo de caso, com técnica de grupo focal. Esta técnica é recomendada, em abordagem de pesquisa qualitativa, para a coleta de dados, sendo baseada no debate orientado para se atingir um melhor dimensionamento dos temas abordados22. Etapas 1 Oficina prévia de sensibilização, com representantes dos estudantes: Objetivo: informar sobre as mudanças aprovadas no currículo, convidar para participação nos grupos focais, e preparar ativadores para as discussões que ocorreriam nos encontros da segunda etapa, abordando as mudanças curriculares implantadas. Metodologia: oficina única, com duração de duas horas, envolvendo estudantes do curso, sob a temática “Mudança do currículo de odontologia: o que tenho a ver com isso?”. Participantes: essa oficina foi supervisionada pelo coordenador do curso, com a presença de estudantes de cada fase – exceto da quinta fase, que não contava com turma formada por razões institucionais –, além de um representante do CAO e mais um estudante representante do Colegiado 148

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do Curso de Odontologia. Os estudantes representantes de oito fases, num total de 26, foram sorteados pelo coordenador e convidados a participar. Previamente ao encontro, foi enviada uma cópia do PPC por e-mail para todos os estudantes, com recomendação da leitura para a participação na oficina. 2 Grupos focais por fase do curso: Objetivo: coletar dados sobre a opinião dos estudantes, por fase, a respeito da mudança. Metodologia: técnica de grupo focal, com duração de três horas, em média, em oito grupos. Participantes: estudantes das oito fases do curso, exceto a quinta fase, que não apresentava turma, num total de 119 estudantes e média de 14 estudantes por grupo. Os grupos foram moderados e coordenados por um dos docentes integrantes do NDE. Na abertura dos grupos focais, foram apresentados os objetivos e a metodologia, seguida da leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Em seguida, foi entregue um roteiro com aspectos relevantes para o debate, contendo: a) objetivo do curso de odontologia; b) eixos principais da mudança do PPC, permitindo comparar antes e depois da mudança curricular, e c) principais aspectos das DCNs para os cursos de Odontologia. Após os debates de cada tópico, uma síntese era elaborada por um aluno, lida para todos e aprovada pelo grupo, sendo registrada por escrito pelo relator do grupo. A coleta de dados por meio dos grupos focais teve início no semestre seguinte à aprovação do PPC, com objetivo de divulgar e avaliar as primeiras impressões e receptividade do novo currículo. O material coletado foi analisado a partir da técnica de análise de conteúdo23. O projeto de pesquisa que possibilitou esta análise foi aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa em Seres Humanos.

Resultados O que pensam os estudantes sobre a mudança curricular implantada Os resultados dos oito grupos focais foram consolidados a partir dos eixos de discussão propostos, sendo estes baseados nas propostas das DCNs, a saber: 1) Obrigatoriedade do TCC: As DCNs explicitam em seu Art. 12: “Para a conclusão do Curso de Graduação em Odontologia, o estudante deverá elaborar um trabalho sob orientação docente”3 (p. 71). No contexto em estudo, o curso de odontologia não apresentava esta obrigatoriedade no currículo anterior. O entendimento do NDE é de que o curso de odontologia deve oportunizar o domínio da metodologia científica, de acordo com o pensamento predominante na formação acadêmica dos cursos de graduação, que procura integrar a pesquisa ao ensino. Dessa forma, a obrigatoriedade da apresentação do TCC não só atende a uma exigência das DCNs, como colabora para recuperar, para o curso em estudo, o seu papel acadêmico, desenvolvendo, ainda, a habilidade de se apresentar em público para a banca examinadora24. Os estudantes, em sua maioria, reconheceram a relevância da apresentação do TCC, relacionando essa atividade com uma melhor qualificação, sobretudo visando à especialização ou à pesquisa. Competências e habilidades de comunicação, tomada de decisão, educação permanente e outras relacionadas ao processo de elaboração do TCC não foram destacadas. Revelaram preocupação com a apresentação do TCC para a banca e o tempo de dedicação necessário para realizar o TCC, conforme as falas: “Importante para a especialização, para a formação [...] desafios: apresentar em público”. “Preocupação com o tempo para fazer o TCC”.

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“Achamos bom, pois incentiva a pesquisa, a buscar conhecimento e também a aprender metodologia de trabalhos científicos [...]”. “Não concordamos com o TCC, mas é interessante o relato de casos executados durante o curso”. “Desafio para nós mesmos, com relação à banca, tempo, qualidade de um trabalho, um assunto e tamanho do trabalho”. “Importante, para a especialização. Deve tentar publicar. Inserir a pesquisa e tema de interesse do aluno”.

2) Organização dos estágios com 20% da carga horária total: Segundo as DCNs, a carga horária mínima de estágio curricular supervisionado deverá atingir 20% da carga horária total do curso3. Esse critério também está definido na legislação pertinente e no instrumento de avaliação dos cursos de bacharelado em Odontologia pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP)25,26. Em que pese o fato de o currículo anterior já apresentar 20% de atividades em estágios, ainda que a carga horária das disciplinas clínicas intramuros tenha sido considerada para o credenciamento do curso, foi unânime a concordância com a ampliação dos estágios extramuros. Estudo revela que as práticas extramuros podem contribuir, efetivamente, para o amadurecimento pessoal e profissional do estudante pelo contato real com o mundo do trabalho, possibilitando a aplicação de conhecimentos e habilidades aprendidas na universidade27. Os estudantes demonstraram valorizar o contato com o paciente e com a realidade da profissão, conforme relatos: “Bom, pois dá uma noção da realidade, mercado, unir o prático ao teórico, saber lidar com as pessoas, sentir a realidade”. “Ideal a carga horária, válida a inserção no SUS”. “Importante, pois na Faculdade já vem triado [o paciente], as realidades são diferentes, lá fora tem ganhos de conhecimentos”. “Necessário pela aplicação na prática, dá uma noção da realidade no SUS, pode formar opinião”. “[...] permite mais contato com o paciente, assim quando chegar nas clínicas os alunos se sentem mais seguros nos procedimentos”.

3) Formação generalista: As DCNs explicitam a necessidade da formação de um generalista, assim, também, como a instituição analisada regulamenta, para todos os cursos de graduação, a inclusão na matriz curricular de um eixo geral, um eixo específico e outro integralizador. Apesar da preferência dos estudantes por disciplinas técnicas e específicas da Odontologia, a formação generalista foi parcialmente compreendida pelos estudantes, que valorizaram a possibilidade de escolhas disponibilizada em diferentes disciplinas nos eixos citados. Cabe destacar o desafio da formação generalista considerando que a profissão odontológica, e, consequentemente, seu ensino no modelo tradicional, ainda são fortemente marcados pelo tecnicismo e pela ênfase na especialização de profissionais, priorizando a abordagem individual, a partir da fragmentação do conhecimento28. Essas características representam um desafio para os profissionais que deverão atuar no SUS e para o perfil profissional proposto nas DCNs. 150

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Sobre esta temática os estudantes, com ressalvas, relataram: “No novo currículo está melhor, o nível de exigência [de disciplinas do eixo geral] deve ser moderado, precisa entender a especificidade da área [odontologia]”. “Concordamos com o eixo geral, mas discordamos com o eixo de articulação, pois acreditamos que irá confundir o foco de cada disciplina”. “A formação não pode ser só técnica, tem que ter uma visão geral, transformação social [...] matérias optativas seria interessante”. “[...] principalmente se for disciplinas que hoje não constam em nossa grade, mais voltadas para nossa área”. “Válida, várias áreas de conhecimento e contexto social [...] mercado de trabalho”.

4) Flexibilização curricular por disciplinas optativas e atividades acadêmico-científicoculturais-complementares (AACCs): O Projeto Político Pedagógico (PPP) dos cursos de graduação é um documento institucional, para todos os cursos da instituição, que determina a inclusão de créditos obrigatórios na forma de AACCs, que podem ser escolhidas em qualquer área do conhecimento. Os estudantes relataram valorizar a possibilidade de fazer escolhas na sua formação profissional. Entretanto, o verdadeiro objetivo das AACCs, de ampliar a formação a partir de conhecimentos e experiências de outras áreas do conhecimento na Universidade –, incluindo, aí, a dimensão humana, cultural, ética e cidadã, identificada com o conceito de profissionalismo29 –, não foi identificado nos relatos, que ficaram restritos à formação acadêmica e profissional. Seguem os relatos dos estudantes: “Bom, pois incentiva o aluno a procurar conhecimento fora da sala de aula, a participar de palestras, bancas TCC”. “É importante para o desenvolvimento do aluno/profissional e incentiva a busca de conhecimentos”. “É válido, pois permite escolhas, ajuda a definir sua trajetória profissional”. “Válido, possibilita a participação em Pesquisa, Ensino e Extensão”.

5) Redução da carga horária de conteúdos básicos: O curso em questão apresentava a maior carga horária do Estado e uma das maiores do Brasil, ofertado de forma integral, em disciplinas, em sua grande maioria, isoladas, com muitos conteúdos básicos desconectados do ciclo profissional. Destaca-se a intenção de criar “áreas verdes” no currículo para que os estudantes tenham a oportunidade de se envolverem em atividades de pesquisa e extensão, além de favorecer o convívio no ambiente da Universidade, para além das salas de aula ou laboratórios de seu próprio curso. O NDE optou por reduzir os conteúdos básicos que eram considerados excessivos, sendo essa redução relatada, pelos estudantes, como válida, em sua maioria. “É válido, pois não vamos lembrar tudo, havia conteúdos desnecessários”. “Aprovado, excelente, válido, pois permite focar mais a profissão e muitos conhecimentos não teriam utilidade”.

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“Todos acharam ótimo, as disciplinas precisam fazer sentido”. “Importante, pois o aluno fica mais tempo no curso, focado na área [odontologia]”.

6) Antecipação e ampliação das práticas laboratoriais e clínicas (superar a barreira básico/ profissional e antecipar clínicas e estágios): A separação dos conteúdos e práticas dos ciclos básico e profissionalizante gera desmotivação e baixo rendimento, pois os estudantes não compreendem a aplicação e a importância dos conhecimentos básicos na atividade profissional. Além disso, no currículo anterior, os estudantes ingressam em disciplinas específicas apenas na quinta fase, ou seja, na segunda metade do currículo, causando desmotivação. O tema da integração do ciclo básico com o profissional é recomendado pelo Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde8. Deve ser incluído nas propostas curriculares de forma longitudinal, a partir de modularização de conteúdos, podendo utilizar a metodologia de problematização de casos clínicos. Foi grande a aceitação dessa mudança. Os estudantes valorizaram: a antecipação das práticas, a aproximação com o paciente, e a oportunidade de aplicarem o conhecimento aprendido, com raras ressalvas. Conforme os relatos: “É válido, pois incentiva o aluno, adquirir mais experiência, vivência na área profissional”. “Muito válido o contato com o paciente e com a prática, melhora a decisão do aluno sobre a sua decisão profissional”. “Concordamos em parte [...] nos preocupamos em questão da teoria disso, de o curso ficar muito superficial”. “Concordamos, pois o aluno já tem um contato com o curso da área que quer cedo, saber se é o que realmente quer, e também passa mais tempo do curso focado”. “Todos acham interessante, pois estimula o aluno. Fazer a apresentação dos materiais de uso odontológico”.

7) Maior carga horária com integração de clínicas. Formação do generalista: Para superar a lógica da fragmentação dos conteúdos e práticas e fortalecer a formação do generalista, foi criada a clínica integrada, que, no currículo tradicional, está posicionada no último ano do curso, após os estudantes terem passado por diversas clínicas de especialidades30. Essa lógica não tem cumprido o objetivo de formar generalistas, sendo necessário antecipar a integração das clínicas. No novo currículo, foi ampliada e antecipada a integração de disciplinas clínicas. Os estudantes concordaram, em sua maioria, porém com ressalvas, pela preocupação em experienciar todos os procedimentos das disciplinas isoladas. Essa é uma percepção baseada nos currículos fortemente tradicionais, organizados em disciplinas estanques e em procedimentos específicos, embotando o cuidado integral dos sujeitos, ainda muito prevalente na Odontologia1. Seguem alguns relatos que ilustram esta visão: “Sim importante desde que mantenha a possibilidade do aluno ver todos os procedimentos”. “Deveria ter pré-clínica [disciplina] com as disciplinas separadas e pelo menos uma clínica (semestre) separadas para dar mais segurança para os estudantes”. “É bom, pois permite uma visão mais integral do paciente”.

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“Concordamos como base, mas devemos ter cada disciplina separadamente, e depois ter a junção delas”.

8) Integralização do curso para cinco anos (mais um semestre em relação à matriz anterior): Embora se possa esperar grande resistência por ampliar o tempo de curso, trata-se de exigência normativa31; entretanto, sua implantação possibilita uma maior flexibilidade curricular e o envolvimento dos estudantes em atividades de pesquisa e extensão. A integralização do curso em cinco anos, exigência da Portaria n. 02/2007 do CONAES, seria implantada apenas para os estudantes que ingressaram na primeira fase do curso; todavia, para cumprir uma exigência da Comissão de Avaliação da Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina – órgão que recredencia os cursos de graduação no Estado –, quatro fases precisaram adaptar seus currículos, incorporando a nova matriz. Sobre a ampliação da duração do curso para cinco anos, as opiniões foram bastante divergentes, com dificuldade de consenso no grupo. Importante destacar que a maioria dos estudantes mora em municípios vizinhos, pelo caráter regional da Universidade. Seguem alguns argumentos apresentados: “Importante [integralização em cinco anos] desde que os horários sejam bem utilizados”. “Achamos legal, sendo que continuasse em período integral”. “Cinco anos é melhor, podendo ter tempo pra participar de vários projetos, palestras, estágios em hospitais, congressos, fazendo pesquisa, etc...” “Não há necessidade de aumento de carga horária”. “Opiniões divididas, bom, pois libera os alunos para fazer outras atividades, pesquisa, extensão, estágios, trabalhar, se deslocar”.

9) Integração ensino-serviço no Sistema Único de Saúde (SUS): A prática liberal da profissão tem sido, historicamente, o foco quase exclusivo dos currículos de odontologia do modelo tradicional no Brasil1,5,25. Essa tendência pode determinar uma certa resistência e rejeição, por parte dos alunos, das práticas no SUS. Além disso, no meio acadêmico, os processos de mudança consolidam-se em terreno marcado pelo confronto tanto científico quanto ideológico, conforme os dizeres de Almeida-Filho10: “O estabelecimento acadêmico, liderado por faculdades tradicionais, é contra o rearranjo da base ideológica do ensino superior e, portanto, tende a recusar modelos de cursos inovadores” (p. 7). A formação do cirurgião-dentista, proposta nas DCNs, apresenta forte relação com o sistema público de saúde, com a necessária inserção dos estudantes nos cenários de prática do SUS. Além de ser uma diretriz do Pró-Saúde8, estudos32,33 demonstram a importância da ampliação dos cenários de prática no SUS, com potencial para qualificar diversas dimensões do perfil profissional a ser formado no Brasil. Em acordo com essa diretriz, foi unânime, entre os estudantes, o reconhecimento da necessidade e a valorização da experiência extramuros, especialmente no SUS, podendo ser ilustrado nos relatos: “Prática no SUS é válida, para contato com a realidade, dá mais opção profissional”. “Somos a favor da inserção ensino-serviço no SUS em cinco fases do curso”. “Bom pelo aluno ter maior conhecimento do funcionamento do SUS, dificuldades enfrentadas nos serviços públicos, e mais interessante ainda para quem pretende seguir por essa carreira [no serviço público]”.

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“É muito válido, compreensão da realidade, aplicação do conhecimento, motivação social”. “Seria ótimo [...] criando vínculo com esta inserção no SUS”.

Refletindo a partir das categorias de análise A partir das falas dos estudantes, referentes aos nove temas da mudança curricular vivenciada no curso de graduação estudado, trabalhados nas oficinas e relatados nos grupos focais, identificamse duas categorias principais de análise, sobre o significado atribuído pelos estudantes à mudança curricular.

Identificação da prática profissional como assistência Os estudantes, em seus relatos, valorizaram os conteúdos e práticas técnicas relacionados à odontologia, assim como a possibilidade de especialização. Dessa forma, a busca de sentido para o aprendizado, segundo a maioria dos relatos, ancora-se na prática técnica, com forte valorização dos procedimentos odontológicos entendidos como assistência. O desafio é ampliar essa assistência para o conceito de atenção à saúde, entendido como atuação concomitante sobre os diferentes determinantes do processo saúde-doença bucal, cuja abrangência extrapola o âmbito da odontologia20. Esse conceito ampliado da atuação profissional está mais adequado às competências, habilidades, atitudes e ao perfil do cirurgião-dentista, sendo estabelecido nas DCNs e previsto como princípios do SUS, nas atribuições dos dentistas na Estratégia de Saúde da Família (ESF), na Política “Brasil Sorridente”2 e na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)34. O desenvolvimento técnico deve responder às habilidades previstas nas DCNs, com a necessidade de se alcançar a qualificação e resolutividade da assistência clínica com a compreensão do momento político-sanitário, contemplando os princípios de avaliação dos serviços conforme o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção (PMAQ)35. Trata-se de superar o risco de se reduzir a formação odontológica e a competência profissional à competência técnica, cuja excelência, por si só, não seria suficiente para atingir a relevância social das ações de saúde e da educação universitária, conforme o pensamento de Toassi et al.20 (p. 534): “A capacidade e habilidade técnica de tratamento de doenças não pode ser o único objetivo na formação dos profissionais de saúde”. Assim, além da necessária competência técnica, a atenção em saúde bucal precisa ser integral, humanizada e compromissada com a melhoria dos indicadores de saúde bucal da população. As IES precisam formar profissionais capacitados a trazerem, para suas agendas, os determinantes sociais da saúde, tornando-se aptos a atuar em equipe, compreendendo a realidade social21.

Aceitação do SUS como cenário de aprendizagem Tradicionalmente, o serviço público sempre foi visto de forma negativa, especialmente na formação em odontologia, supervalorizando o exercício privado. Entretanto, o significativo mercado profissional do dentista no SUS, que já é uma realidade, ainda não significa um determinante na formação, conforme relatado por Morita et al.4. De forma adversa à tendência privativista da formação tradicional verificada na literatura1,5, podese notar, nas falas dos estudantes em estudo, uma valorização do SUS como espaço de aprendizagem, o que significa um ponto positivo a ser trabalhado para a implantação do currículo orientado pelas DCNs e um objetivo do Pró-Saúde8. Estudos têm demonstrado uma melhoria da aceitação dos estudantes em atividades práticas nos cenários do SUS, identificadas com as tendências de mudança do currículo de odontologia4,28,32,33,36. Essas experiências precisam ser conhecidas, discutidas e avaliadas para a formação de profissionais capacitados e motivados para atuar no SUS. 154

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Em síntese Em muitas dimensões, no Brasil, as tendências de mudança curricular da saúde acompanham o cenário internacional, com destaque para a recomendação de currículos orientados por tendências sociais emergentes, inovações em saúde e metodologias de educação e avaliação baseadas em evidências. Recomenda-se, ainda, que as mudanças devam ser valorizadas pelos dirigentes de ensino, professores e estudantes, para que se efetivem de forma legítima37. No presente estudo, os estudantes revelaram, de forma geral, aceitação das mudanças curriculares ocorridas no seu curso, embora algumas dimensões dessa aceitação precisem ser aprofundadas. Confrontam-se no cenário acadêmico, além de fundamentos científicos, diferentes visões de mundo e dimensões da vida social, cujos interesses se reproduzem em argumentos mais ou menos fundamentados, porém arraigados de valores e significados que precisam ser conhecidos e debatidos à luz das tendências de mudança mais legítimas do ensino odontológico. No âmbito institucional do curso estudado, esforços devem ser envidados para a implantação de um processo avaliativo do currículo de forma participativa, que aponte as mudanças necessárias na formação odontológica. Esse esforço deve contemplar a dimensão das necessidades profissionais dos estudantes sem se distanciar das demandas da população por uma saúde bucal digna, cujo desenvolvimento científico e tecnológico da odontologia é capaz de possibilitar nos dias atuais. Entretanto, esse benefício não será acessível ao conjunto da população se a formação desses profissionais não contemplar uma dimensão ética, politizada e identificada com os princípios do SUS, a partir das necessidades da população por saúde bucal. Esse caminho precisa considerar as mudanças sociais e as tendências do ensino de graduação em odontologia, a partir das relevantes políticas de Estado, de forma crítica. Em que pese o desfecho favorável no curso estudado, com a implantação do currículo aprovado nas instâncias colegiadas da instituição, vencendo as resistências à mudança e respondendo às demandas regulatórias, o novo PPC precisa ser mais bem compreendido pelos sujeitos implicados em sua mudança para que não se torne um documento prescritivo formal.

Colaboradores João Luiz Gurgel Calvet da Silveira responsabilizou-se por elaborar o projeto, fazer a revisão de literatura, coletar os dados de pesquisa, realizar a análise dos dados e a elaboração do manuscrito. Vera Lúcia Garcia responsabilizou-se por orientar a elaboração do projeto, a revisão de literatura, a análise dos dados e participar da elaboração do manuscrito.

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Silveira JLGC, Garcia VL. Cambio curricular en odontología: significados a partir de los sujetos del aprendizaje. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):145-58. El objetivo de este estudio es presentar la percepción del cambio curricular por parte de estudiantes de odontología, por medio del abordaje metodológico cualitativo de un estudio de caso. Participaron 147 alumnos de ocho semestres. Abordaje de investigación cualitativa, con técnica de grupo focal, envolviendo ocho fases del curso, abordando los principales temas relacionados con los cambios habidos en el currículo. Por medio del análisis de contenido se identificaron dos categorías de análisis: a) práctica profesional como asistencia: valorización de contenidos y prácticas odontológicas, cuyo sentido está anclado en la práctica de la técnica como asistencia; b) aprobación del Sistema Único de Salud como escenario de aprendizaje. Prevalece el sentimiento de aceptación de los cambios curriculares habidos, aunque haya que trabajar las dimensiones de esa aceptación y el nuevo currículo tenga que ser mejor comprendido por los sujetos implicados en su cambio, para que no se convierta en un documento prescriptivo formal.

Palabras clave: Currículo. Odontología. Educación en odontología.

Recebido em 20/08/14. Aprovado em 19/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.1002

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Reflexões sobre o processo de municipalização das políticas de saúde: a questão da descontinuidade político-administrativa Juliana Costa Machado(a) Rosângela Minardi Mitre Cotta(b) Jeferson Boechat Soares(c)

Introdução Este ensaio aborda um problema concernente à implementação de políticas de saúde pública, a saber, o fenômeno da descontinuidade políticoadministrativa verificada nos municípios brasileiros após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). A decisão de abordar este problema fundamenta-se diretamente nas experiências e vivências dos autores, ao longo dos últimos anos, em projetos de pesquisa e de extensão realizados em municípios afetados, de alguma forma, pelo fenômeno acima mencionado, destacando-se as experiências mais recentes referentes ao desenvolvimento do projeto intitulado “Adesão ao tratamento da hipertensão arterial: o papel estratégico da educação em saúde e nutrição na atenção primária”. Na área das políticas sociais, a saúde foi a que mais avançou significativamente rumo à descentralização e municipalização da gestão impulsionada pelo Movimento de Reforma Sanitária (MRS), na segunda metade da década de 1970, culminando na promulgação da Constituição de 19881-3. A discussão teve como pauta central a necessidade de democratização do acesso à saúde, bem como a importância da participação social e da descentralização nos processos de gestão4. Tais princípios foram adotados no texto constitucional, o que deu início a construção de um arcabouço jurídico e institucional amplamente analisado na literatura científica nacional, destacando-se a criação dos conselhos municipais de saúde nos três níveis de governo: o municipal, o estadual e o federal5. Mas, o processo de descentralização tornou evidente certas necessidades de aperfeiçoamento para o exercício da participação social, já que a mesma envolve, necessariamente, o desenvolvimento de certas capacidades para que seja possível o exercício da ação coletiva. Faz-se necessário formar capital humano, desenvolver, nas pessoas envolvidas com a gestão da saúde, habilidades e competências, conhecimentos e atitudes, proporcionando o que ficou conhecido na literatura científica como empoderamento6,7. Para a viabilização do empoderamento, destaca-se o potencial das metodologias ativas de ensino e aprendizagem que têm por finalidade a formação de cidadãos conscientes de direitos e deveres, capazes de compreender COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Nutrição, Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Viçosa (UFV). Campus Universitário, s/n. Viçosa, MG, Brasil. 313899-2899. juboechat@yahoo.com.br (b) Departamento de Nutrição e Saúde, Centro de Ciências Biológicas, UFV. Viçosa, MG, Brasil. rmmitre@ufv.br (c) Departamento de Ciências Sociais, Centro de Ciências Humanas, UFV. Viçosa, MG, Brasil. jeferson.boechat@ufv.br (a)

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e analisar criticamente contextos, agendas e a implementação de políticas públicas, tornando possível o controle social da gestão da saúde8. O empoderamento, portanto, visa a consolidação da virtude cívica, que é um atributo da ação de indivíduos que se ocupam com questões coletivas9. A virtude cívica é importante para a implementação da gestão da saúde pública nos municípios porque indica a ocorrência da participação social. Todo o processo iniciado com o MRS resultou na implantação de um modelo de descentralização do SUS, a ponto de ser possível afirmar, segundo Arretche10, que “... os governos locais já assumiram a gestão da atenção básica à saúde” (p. 332). É exatamente em um contexto de municipalização que os autores puderam constatar, por meio de suas respectivas experiências profissionais, a ocorrência da descontinuidade político-administrativa. E trata-se de um conjunto de experiências para as quais, inicialmente, não foi possível obter muitos esclarecimentos. Isto porque, de acordo com Nogueira11, não é comum que o problema da descontinuidade seja abordado, na literatura científica, com ferramentas teóricas bem definidas. O objetivo deste ensaio é apresentar uma reflexão sobre o fenômeno da descontinuidade administrativa, procurando identificar seus possíveis elementos, a saber, os problemas referentes à governabilidade e à governança em nível municipal. Parte integrante dessa reflexão é a sugestão de um modelo analítico para a realização de levantamentos primários, que são concebidos como o início de um mapeamento da situação política dos municípios. Esse mapeamento é considerado útil por causa da complexidade envolvida nos estudos de políticas públicas nos municípios; há um extenso terreno a ser conhecido e os levantamentos primários podem ter uma função exploratória. A reflexão a seguir apresentada é incipiente. Mas, mesmo assim, o presente ensaio foi elaborado no intuito de colaborar para o entendimento da descontinuidade político-administrativa nos municípios e seus possíveis efeitos sobre as políticas de saúde, em particular sobre a execução de programas de educação não formal.

Definindo a descontinuidade político-administrativa O fenômeno da descontinuidade político-administrativa pode ser definido, conforme Nogueira11, basicamente pela [...] interrupção de iniciativas, projetos, programas e obras, mudanças radicais de prioridades e engavetamento de planos futuros, sempre em função de um viés político, desprezando-se considerações sobre possíveis qualidades ou méritos que tenham as ações descontinuadas. Como conseqüência, tem-se o desperdício de recursos públicos, a perda de memória e saber institucional, o desânimo das equipes envolvidas e um aumento da tensão e da animosidade entre técnicos estáveis e gestores que vêm e vão ao sabor das eleições. (p. 13)

A descontinuidade, em instituições públicas, se refere basicamente ao aparato governamental de gestão, sendo uma consequência do preenchimento de cargos de confiança a cada mudança de governo ou troca de dirigentes12.Integram a descontinuidade fenômenos, tais como: a interrupção de projetos, de programas e obras, bem como de reavaliação de prioridades, em nível municipal. Neste sentido a descontinuidade é denominada de ‘político-administrativa’, onde o termo político é utilizado para designar os ‘negócios públicos’, mas não o fenômeno da alternância de pessoas ou partidos no comando do governo local. A alternância político-partidária é um fenômeno específico da competição em uma democracia representativa. Especificando um pouco mais, no que tange à área da saúde, foi observada, pelos autores, uma série de fenômenos (interrupções ou atrasos) como, por exemplo: 1. Em programas de capacitação de agentes comunitários de saúde (ACS) e, também, de membros de conselhos municipais de saúde; 2. Na coleta de dados clínicos e pesquisa de campo; 160

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3. Em projetos de avaliação de metodologias ativas de ensino e aprendizagem; 4. Na coleta de dados por meio da aplicação de questionários; 5. Em programas e atividades de educação em saúde, como, por exemplo, de prevenção do diabetes e da hipertensão. 6. Em campanhas educativas e jornadas de conscientização dos usuários de serviço de saúde. Os atrasos e interrupções acarretam prejuízos financeiros, organizacionais e pessoais. No caso das pesquisas ou projetos de extensão universitária, o desrespeito aos prazos para prestação de contas junto aos órgãos financiadores traz consequências desagradáveis. Usuários dos serviços de saúde, notadamente o público-alvo de campanhas educativas e de prevenção, bem como agentes de ACS, também são prejudicados. Em particular, no caso dos ACS, a descontinuidade afeta a capacidade de atendimento, gerando descontentamentos e estigmatização desses agentes, que são avaliados negativamente pela população. Ora, uma vez definido o fenômeno da descontinuidade, cabe, agora, procurar refletir sobre suas possíveis causas. A principal alegação que, provavelmente, se possa fazer sobre a descontinuidade político-administrativa é que se trata de um fenômeno derivado da forma como se exercem as funções de governo no sistema político brasileiro.

O sistema político brasileiro e os problemas de governabilidade e governança É importante salientar, a respeito do sistema político brasileiro, a dificuldade de se fazerem respeitar os valores políticos republicanos. Para maior clareza sobre o que é uma república, pode-se afirmar, segundo Bignotto13, que: Embora tenhamos uma rica história constitucional, a separação entre o público e o privado nem sempre é percebida como um fato derivado das leis fundamentais e nela refletidos. De um lado, grupos ou partidos políticos que chegam ao poder costumam desconhecer o fato de que o aparato constitucional constitui um limite instransponível para suas ações. Agindo como grupo privado, vários atores políticos se comportam como se a vitória nas eleições significasse a posse da totalidade dos poderes do Estado. A confusão entre a esfera do governo e os domínios do Estado conduzem à crença de que a soberania popular, origem das leis em uma democracia, é apenas uma referência ideal, sem correspondência na realidade. Por outro lado, o próprio Estado parece reproduzir seus quadros [...] criando um grupo dirigente, que não reconhece limites para suas práticas, além daqueles inerentes às disputas políticas. (p. 84-5)

Uma república é um Estado organizado enquanto uma comunidade política. Comunidade, no caso, indica que os cidadãos, todos eles, governo ou governados, compartilham um conjunto de valores, de crenças, normalmente expressos em uma carta constitucional. De acordo com Huntington14, em um Estado republicano ou sistema cívico, existe um consenso moral a respeito de normas, regras, valores, e o reconhecimento de que existem interesses que são comuns a todos os cidadãos. Em um Estado republicano, existem laços de solidariedade e de lealdade, fundamentados em fatores diversos do estrito interesse individual, como, por exemplo: elementos afetivos, morais e ideológicos, crenças em valores e ideias, que orientam as suas condutas. O sistema político brasileiro se caracteriza por ser, não um sistema cívico, mas um sistema pretoriano. Segundo Huntington14, em um sistema pretoriano, indivíduos e grupos de mais variados tipos fundamentam suas ações, predominantemente, a partir de seus próprios interesses específicos. Os princípios do consenso moral e dos interesses comuns não têm efetividade. Em um sistema pretoriano, a apropriação do aparato estatal para fins privados é uma prática recorrente. Indivíduos ou grupos entendem a esfera pública, o Estado e suas instituições, como um lugar a ser ocupado e explorado como uma propriedade privada. O sistema político brasileiro indica, em suas características de sistema pretoriano, uma persistente tendência designada por Bignotto13, como a procedência do Estado sobre a sociedade civil. Esta tendência, pode se dizer, é uma herança histórica reforçada pelas experiências do Estado Novo (1937COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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1945) e o Regime Militar (1964-1985). Tal procedência indica que, na gênese e na implementação de políticas públicas, ainda não se verifica significativa participação social. A procedência do Estado sobre a sociedade civil indica problemas referentes: 1) Ao desenvolvimento e aprimoramento dos mecanismos de participação social, que representa o aperfeiçoamento da governabilidade; 2) Ao funcionamento do aparato estatal, ou seja, à governança. A governabilidade pode, segundo Araújo15 (p. 6), “[...] ser concebida como a autoridade política do Estado em si, entendida como a capacidade que este tem para agregar os múltiplos interesses dispersos pela sociedade e apresentar-lhes um objetivo comum para os curto, médio e longo prazos”. Por governança, se deve entender o conjunto das capacidades que um governo possui para tomar decisões a respeito das políticas públicas, sobretudo no que diz respeito à implementação. A governança diz respeito ao aparato ou burocracia estatal e à sua capacidade gerencial16. Não se trata de negar a participação da sociedade civil nos processos de gênese e implementação das políticas públicas, mas, tão somente, de supor as funções específicas dos agentes e órgãos públicos. Boa governança significa, assim, eficiência governamental. Qualquer esforço de aperfeiçoamento e desenvolvimento institucional para se efetivar o princípio republicano, deverá abranger: 1) O aparato estatal, a respeito do qual se deseja eficiência (boa governança); 2) As condições e garantias de mais participação política e social para garantir governabilidade. Assim, governo e sociedade devem fazer parte de um ideário de aperfeiçoamento em direção a uma democracia republicana.

A área da Saúde e a municipalização A despeito do sistema político pretoriano, desde a Assembléia Nacional Constituinte (19871988), inicia-se uma nova fase das relações entre Estado e sociedade civil. Avritzer17 denomina, este novo momento, de fase da criação da interdependência política, a qual pode ser entendida como uma relação política em que, por meio de mecanismos, como a descentralização e a participação, os processos de tomada de decisão passam a contar com a necessidade de negociação e diálogo entre as partes interessadas. Ainda segundo Avritzer17, como exemplo desta fase de interdependência política, destaca-se o Artigo 198 da Constituição Federal que “[...] descreveu a saúde como um sistema integrado organizado de acordo com os seguintes princípios: (1) descentralização; (2) cuidado unificado com foco na prevenção; e (3) participação da sociedade civil nas deliberações de políticas” (p. 390). A descentralização pode ser considerada como uma resposta para o desafio de se construir uma ordem democrática após anos de autoritarismo do Regime Militar. A nova ordem, com a Constituição de 1988, foi fundamentada em valores verificados comumente em países com experiências mais duradouras e consolidadas com a democracia. Foram garantidos os direitos civis, políticos e sociais que são o padrão daquilo que, no cenário internacional, é considerado como democracia18. A saúde e educação são exemplos importantes de direitos sociais. A nova ordem democrática também reconheceu a necessidade de participação social nos processos de decisão, associando, aos mecanismos de representação política, certos procedimentos, tais como: a audiência pública, o orçamento participativo, as proposições legislativas por iniciativa popular. E a importância da participação foi reconhecida para todos os níveis da organização do Estado, ou seja, para a União, os Estados e Distrito Federal e os municípios, configurando, portanto, o princípio da descentralização. Na área da saúde, o processo de criação dos conselhos municipais no âmbito do SUS foi uma iniciativa que representou uma adequação aos valores e critérios de governabilidade. Sob o signo da descentralização, da participação, a gestão da saúde foi planejada para contribuir com a garantia de direitos sociais e para o exercício consciente da própria cidadania democrática. Na área da saúde, a procedência do Estado sobre a sociedade civil foi reconhecida como um obstáculo na medida em que seria necessário formar capital social que viabilizasse, da melhor forma possível, a participação. Foi reconhecida a necessidade de se promover o empoderamento dos atores envolvidos com a gestão por meio do desenvolvimento de capacidades, de competências, para o 162

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exercício da participação19. Como instrumento de empoderamento, não só de conselheiros, mas, também, de agentes de saúde e de usuários dos serviços públicos de saúde, vários estudos destacam a importância da educação não formal com o uso de metodologias ativas que visam permitir o desenvolvimento da reflexão e conscientização. Trata-se de um esforço de transformar todos os envolvidos com a saúde pública em cidadãos capazes de agir, executar tarefas institucionalmente definidas e usufruir de direitos de forma. Assim, da criação do SUS até as definições concernentes ao ‘empoderamento’ e ao uso de metodologias ativas, a área da saúde esteve lidando com a questão da governabilidade, contribuindo de várias formas para o aperfeiçoamento da democracia. Na Figura 1, estão sintetizados os argumentos sobre a importância da área da saúde para a governabilidade democrática a partir da Constituição de 1988.

foram adotados os princípios da descentralização e participação que acabaram por gerar

Com a Constituição de 1988 t

t

o reconhecimento da necessidade de empoderamento

t

com vistas a garantir melhores condições para

t

t

t

a municipalização da gestão da saúde

para o exercício dos direitos democráticos.

para o aperfeiçoamento da participação, a garantia de direitos sociais e o fortalecimento da sociedade civil.

Figura 1. A área da saúde a partir da Constituição de 1988

A descentralização da gestão da saúde foi construída sobre o pressuposto de que, a partir de sua efetividade, seria possível a participação da sociedade civil, gerando uma melhoria do quadro geral de nossas instituições públicas. Mas, há aqui uma via de mão dupla, pois, se a descentralização é um meio para o fortalecimento da sociedade civil, não é menos razoável supor que uma sociedade civil forte é um pré-requisito para a ocorrência da descentralização que representaria o aperfeiçoamento da democracia. Tais relações são reconhecidas na literatura de políticas públicas produzida a partir dos anos 199020. O processo de municipalização da saúde, de implementação do SUS, acarreta um problema. De acordo com Fleury21: A operacionalização do SUS coloca em evidência alguns problemas, por exemplo, a questão do clientelismo e a grande permissividade de interesses políticos locais nas administrações municipais. O que se percebe é que no serviço público a continuidade ou não dos projetos é dada pelo interesse dos dirigentes e pelos interesses político-partidários. Também os cargos, como o de secretário municipal de saúde ou membros do Conselho Municipal de Saúde, muitas vezes são ocupados através de indicação do prefeito. (p. 77) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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As suposições aqui consideradas são as seguintes: 1) A descontinuidade político-administrativa é oriunda de falhas provenientes de limitações gerenciais do governo local, configurando, portanto, um problema de governança; 2) As falhas gerenciais incidem negativamente sobre a gestão da política de saúde, limitando a implementação da mesma; 3) As falhas gerenciais afetam, em particular, as ações que visam o “empoderamento”, na medida em que dificultam os programas de educação não formal em saúde que se utilizam das metodologias ativas de ensino e aprendizagem, 4) Assim, o que é um problema gerencial, de governança, torna-se um problema de governabilidade quando afeta as ações voltadas para o empoderamento. Na Figura 2, encontra-se uma síntese destas suposições.

A descontinuidade político-administrativa, inicialmente um problema de governança.

t

particularmente, as ações de empoderamento

afeta as políticas de saúde em nível municipal

t

t

porque dificulta a afetividade do princípio de participação social, afetando negativamente a possibilidade de aperfeiçoamento da governabilidade.

incidindo, portanto, negativamente sobre a possibilidade de aperfeiçoamento da democracia

t

Figura 2. A descontinuidade e seus efeitos nas políticas municipais de saúde

A municipalização (descentralização) indica que a implementação de políticas públicas de saúde pode se relacionar aos problemas referentes à governabilidade e à governança, características de um sistema político pretoriano. Segundo Cotta et al.4, a implementação do SUS está à mercê de obstáculos provenientes da permeabilidade do setor da saúde frente ao clientelismo. No processo de municipalização, as políticas de saúde podem ser afetadas pela descontinuidade político-administrativa, um fenômeno decorrente dos problemas de governabilidade e de governança. A seguir, serão apresentadas algumas considerações que conduzirão à proposição de um instrumento analítico, um modelo, que possa contribuir para reflexão e os estudos a respeito da municipalização e da descontinuidade político-administrativa que afeta as políticas de saúde.

A gestão municipal da Saúde enquanto um problema e a proposição de um modelo analítico para levantamentos primários Em busca de alguma clareza teórico-conceitual, deve-se considerar, inicialmente, conforme alega Frey22, que “[...] estudos de políticas públicas no nível da política municipal exigem a realização de levantamentos primários sobre as dimensões ‘politics’ e ‘polity’ nos municípios escolhidos, indo desta maneira além da dimensão material das políticas setoriais” (p. 27). Os levantamentos primários sugeridos por Frey22 são uma forma de gerar informações prévias que, no decorrer do tempo, possam constituir um mapa para a orientação dos pesquisadores, os 164

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quais estão à mercê de alterações das normas e regras que definem políticas públicas (dimensão da polity), mas, sobretudo, de alterações na composição das redes de atores e de instituições envolvidas com as políticas públicas, e, também, a rede de atores envolvidos com o processo político (dimensão da politics). Ou seja, Frey considera necessário que se procure obter e registrar informações sobre o contexto político de municípios, identificando as capacidades institucionais, os atores envolvidos nas disputas políticas, seus projetos, programas e possíveis padrões de ação. Os levantamentos primários, provavelmente, terão de ser feitos no decorrer da realização de pesquisas de campo. Assim, não se pode deixar de reconhecer a ocorrência de dificuldades, sobretudo porque os levantamentos implicam desvio de recursos materiais e uso do tempo reservado às pesquisas22. A municipalização da gestão da saúde surtiu um efeito cujo reconhecimento é muito importante para o estudo e para a implementação das políticas de saúde, em particular para a utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem em contextos de educação não formal, metodologias cuja aplicação também é objeto de avaliação científica. Não pode ser ignorada, pelas instituições universitárias, pelos agentes públicos e pelos formuladores e executores das políticas de saúde, a significativa complexidade do universo das políticas públicas de saúde, onde os municípios se tornam peças importantes para a geração de conhecimento. Donde, o reconhecimento, anteriormente apresentado, quanto à necessidade de levantamentos primários, apresenta-se como um elemento importante para a previsão dos efeitos da descontinuidade político-administrativa. No intuito de contribuir para a reflexão sobre o fenômeno da descontinuidade em um universo de pesquisa complexo, é possível fazer uso de um modelo. Para Scharpf23, modelo é uma estrutura conceitual que nos oferece um guia para a realização de explorações empíricas ou de levantamentos primários. Um modelo apenas nos indica o que devemos investigar. É um primeiro passo em direção à aquisição de conhecimento sobre a constelação de atores (individuais e coletivos) que compõem a vida social e política em nível local. Que modelo poderia ser utilizado para a realização de levantamentos primários? Sugere-se, aqui, que sejam considerados, como modelo (ou roteiro de investigação), os fatores que compõem o resultado da pesquisa realizada por Spink, Clemente e Keppke24. No Quadro 1, serão apresentados, por meio de sistematização e adaptação de termos, os elementos que, uma vez ausentes ou insuficientes, podem contribuir para a ocorrência da descontinuidade político-administrativa. Os fatores eleitoral, interinstitucional e político-institucional indicam a existência de compromissos entre os poderes municipais instituídos (prefeitura e câmara dos vereadores) e o eleitorado, sejam indivíduos ou grupos. Compromissos apontam para a ocorrência da participação e a prática descentralizada do poder. Apontam para a ocorrência do diálogo e negociações para a solução de problemas e escolha de soluções. Assim, o fator governabilidade (a capacidade de decisão e ação política pelo exercício democrático) é analiticamente contemplado. A ausência de, pelo menos, um destes fatores talvez seja suficiente para indicar a ocorrência de descontinuidade político-administrativa,

Quadro 1. Fatores referentes ao governo municipal a serem considerados na realização de levantamentos primários Fator

Caracterização

Eleitoral

Cumprimento de compromissos de campanha ou de plataformas de governo previamente definidos, o que indica a existência de grupos políticos bem articulados e comprometidos com a gestão pública.

Interinstitucional

Parcerias com instituições e organizações públicas ou privadas, o que aumenta as chances de que os programas implementados possam ter impacto positivo junto aos cidadãos

Político-Institucional

A existência de grupos que pressionam o governo local, o qual, por sua vez, responde às pressões

Técnico

Existência de uma administração pública eficiente, organizada de acordo com princípios gerenciais racionalmente planejados, capaz de alcançar eficiência na implementação de políticas públicas

Fonte: Spink, Clemente e Keppke24.

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exatamente na medida em que a falta de compromissos entre os poderes instituídos e o eleitorado dá margem para interrupções, mau funcionamento ou paralisações de programas, projetos ou serviços. O fator técnico diz respeito à governança, ou seja, diz respeito às capacidades administrativas do poder público municipal, abarcando as secretarias municipais, os demais órgãos do Executivo, bem como o quadro de funcionários do Legislativo. O planejamento das contas públicas, a previsão de gastos, a capacidade de elaboração de projetos para aquisição de recursos junto às instâncias federal e estadual, a capacidade de elaboração de projetos de lei adequados à legislação vigente, são exemplos de ações que carecem de capacidade técnica e gerencial. A instância da administração pública (o fator técnico), se for analisada em si mesma, sem relação com os demais fatores, não é capaz de fundamentar quaisquer considerações ou análises sobre a governabilidade. Por outro lado, a análise da governabilidade não pode prescindir de considerações sobre a administração pública municipal, sob risco de não possibilitar um levantamento adequado do quadro político-institucional. Seguindo o roteiro de investigação apresentado no Quadro 1, considerando, especificamente, as políticas municipais de saúde, e, em particular, os programas de educação não formal, a realização de levantamentos primários poderá considerar alguns elementos, tais como: Quanto à governabilidade (fatores eleitoral, político-institucional e interinstitucional): a composição e a atuação do conselho municipal de saúde; a existência de projetos de políticas públicas de saúde e diagnósticos sobre suas respectivas implementações; a ocorrência de programas de conscientização e educação dos usuários dos serviços de saúde; a existência de parcerias do poder público com outras instituições, bem como a implementação de capacitação para os agentes comunitários de saúde e para os conselheiros; a ocorrência de eventos ou manifestações que indiquem insatisfação ou crítica ao poder público, tais como, uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), ações judiciais e críticas veiculadas nos meios de comunicação. Quanto à governança (fator técnico): a composição do quadro de funcionários públicos, notadamente no que diz respeito à existência de planos de carreira; a formação e preparo técnico dos ocupantes dos cargos que envolvem gerência e planejamento; as finanças públicas e planejamento orçamentário; a ocorrência de CPI, de ações judiciais e críticas veiculadas nos meios de comunicação. Assim, em síntese, pode-se afirmar que, com a ausência de grupos políticos eficientes e compromissados com o trato da gestão de assuntos públicos (fator eleitoral), bem como a ausência de eficiência gerencial (fator técnico), de redes institucionais (fator interinstitucional) e de grupos sociais organizados e capazes de participar de alguma forma (fator político-institucional), há a possibilidade de ocorrência da descontinuidade político-ad­ministrativa. A partir da realização de levantamentos primários, é possível supor que, progressivamente, serão sistematizadas informações institucionais envolvendo microrregiões e, em escala crescente, regiões administrativas nos Estados, e assim por diante.

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Considerações finais Por certo, a descontinuidade político-administrativa nos municípios é um fenômeno complexo. Aqueles que lidam com pesquisas ou extensão universitária, com a prestação de serviços públicos e, em suma, todos os envolvidos de uma forma ou de outra com a área da saúde, são afetados pelo fenômeno de uma ou outra. Um modo de responder à presença evidente do fenômeno é transformando-o em objeto de reflexão. Os levantamentos primários podem ser um passo inicial em direção à formulação de predições sobre a probabilidade de ocorrência da descontinuidade político-administrativa. Tais predições podem representar, analiticamente, um instrumento útil para o planejamento e execução de projetos de pesquisa e extensão. A possibilidade de que se possa ter algum controle ou previsão sobre a descontinuidade também pode ser importante para a implementação das políticas públicas de saúde. É possível, também, que a descontinuidade político-administrativa figure enquanto variável, para além dos levantamentos primários, em pesquisas na área da saúde. 166

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Em especial, a possibilidade de predição deve ser encarada como um instrumento útil a serviço dos programas de educação não formal em saúde por meio do uso de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. A educação não formal é crucial para a prática do empoderamento. E sem o empoderamento, a participação social na gestão da saúde fica comprometida, visto que a mesma não é algo natural, mas o resultado de uma cultura a ser solidificada por intermédio da formação de capacidades. A ênfase dada ao empoderamento e aos programas de educação não formal em saúde, na verdade, é algo decorrente de um reconhecimento: a importância do aperfeiçoamento da governabilidade, dos mecanismos de participação e de decisão. Os esforços iniciados com o Movimento de Reforma Sanitária, e que se encontram reconhecidos na Constituição de 1988, no sentido de universalização do direito à saúde, carecem de plena realização e efetivação nos municípios. A municipalização (descentralização), reconhecida como fator representativo do aperfeiçoamento da governabilidade, da democracia, precisa frutificar. Para tanto, entender os mecanismos causais da descontinuidade político-administrativa é uma forma de contribuir para o aperfeiçoamento da democracia.

Agradecimento O presente trabalho foi motivado, sobretudo, pelas experiências com a descontinuidade político-administrativa no desenvolvimento do projeto “Adesão ao tratamento da hipertensão arterial: o papel estratégico da educação em saúde e nutrição na atenção primária”, apoiado pela Fapemig (Edital 14/2012 – Programa Pesquisa Para o SUS – PPSUS-REDE. Processo: CDS-APQ-03594-12) e pela Capes (AUX – PE – Pro-Ensino Saúde 2034/2010, Processo: 23038.009788.12010-78). Colaboradores Juliana Costa Machado responsabilizou-se por todas as etapas do trabalho. Rosângela Minardi Mitre Cotta responsabilizou-se pela revisão do material referente às políticas públicas de saúde e a revisão das análises desenvolvidas no artigo. Jeferson Boechat Soares auxiliou na revisão do material referente à política e administração pública.

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21. Fleury S. A utopia revisitada. Rio de Janeiro: Abrasco; 1995. 22. Frey K. Análise de políticas públicas: algumas reflexões conceituais e suas implicações para a situação brasileira. Florianópolis: PPGSP, UFSC; 1999. (Cadernos de Pesquisa, n° 18). 23. Scharpf FW. Games real actors play. Oxford: Westview Press; 1997. 24. Spink PK, Clemente R, Keppke R. Continuidade e descontinuidade administrativa: uma análise de fatores que contribuem para a manutenção de programas, projetos e atividades públicas de êxito em governos locais brasileiros. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2001.

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A descontinuidade político-administrativa apresenta-se como um fenômeno do sistema político brasileiro, notadamente em âmbito municipal. Com os esforços de descentralização e municipalização definidos pela Constituição de 1988, o processo de implementação das políticas de saúde foi afetado pela descontinuidade, causando prejuízos, entre os quais, atrasos e interrupções nos programas de educação não formal que são importantes para a promoção do empoderamento. A título de proposição para a reflexão, é apresentado um modelo para a realização de levantamentos primários nos municípios. Neste modelo são considerados quatro fatores: eleitoral, técnico, interinstitucional, político-institucional. Esses fatores se referem à organização da política nos níveis da governabilidade e governança. O objetivo deste ensaio é contribuir para o entendimento do fenômeno da descontinuidade político-administrativa verificada nos municípios brasileiros após a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS).

Palavras-chave: Municipalização. Descontinuidade político-administrativa. SUS. Reflections on the process of municipalization of healthcare policies: the issue of political and administrative discontinuity Political and administrative discontinuity is a phenomenon within the Brazilian political system, notably in the municipal sphere. Through the efforts towards decentralization and municipalization that were defined by the 1988 constitution, the process of health policy implementation has been affected by discontinuity. This has causing damage, including delays and interruptions in non-formal education programs that are important for promoting empowerment. As a proposal for reflection, a model for conducting primary surveys in municipalities is presented here. Four factors are considered in this model: electoral, technical, interinstitutional and political-institutional. These factors refer to policy organization at the levels of governability and governance. The objective of this essay was to contribute towards understanding the phenomenon of political and administrative discontinuity observed in Brazilian municipalities since the implementation of the Brazilian Health System (SUS).

Keywords: Municipalization. Political and administrative discontinuity. SUS. Reflexiones sobre el proceso de municipalización de las políticas de salud: la cuestión de la discontinuidad político-administrativa La discontinuidad político-administrativa se presenta como un fenómeno en el sistema político brasileño, principalmente en el ámbito municipal. Con los esfuerzos de descentralización y municipalización definidos por la Constitución de 1988, el proceso de implementación de las políticas de salud fue afectado por la discontinuidad, causando perjuicios, entre ellos atrasos e interrupciones en los programas de educación no formal que son importantes para la promoción del empoderamiento. A título de propuesta para la reflexión, se presenta un modelo para la realización de levantamientos primarios en los municipios. En este modelo se consideran cuatro factores: electoral, técnico, interinstitucional, político institucional. Esos factores se refieren a la organización de la política en los niveles de la gobernabilidad y de la gobernanza. El objetivo de este ensayo es contribuir para el entendimiento del fenómeno de la discontinuidad político-administrativa verificada en los municipios brasileños después de la implantación del Sistema Brasileño de Salud (SUS).

Palabras clave: Municipalización. Discontinuidad político-administrativa. SUS. Recebido em 20/12/13. Aprovado em 25/07/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0427

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Lições aprendidas na avaliação de um programa brasileiro de atenção a idosos vítimas de violência Maria Cecília de Souza Minayo(a) Edinilsa Ramos de Souza(b) Adalgisa Peixoto Ribeiro(c) Ana Elisa Bastos Figueiredo(d)

Introdução “Lições aprendidas” é uma expressão que, atualmente, titula um dos capítulos da maioria dos trabalhos de avaliação de políticas sociais1,2. Nesse capítulo, se encontram os resultados positivos e negativos provenientes do desenvolvimento dos projetos ou programas, evidenciando os ensinamentos que a partir dele possam ser generalizados2. Neste artigo, focalizamos esse tema a partir da avaliação e monitoramento de 18 Centros Integrados de Atenção e Prevenção à Violência contra a Pessoa Idosa (CIAPVI), os quais seguimos passo a passo durante três anos (2007 a 2009), na implantação, implementação e nos resultados das ações. Na avaliação de programas sociais, é comum a referência às dimensões desejáveis de desempenho traduzidas em termos de eficiência, eficácia e efetividade. A eficiência diz respeito à competência no uso dos instrumentos adequados para se alcançarem os resultados com menor dispêndio de recursos e esforços. A eficácia pode ser entendida como o alcance de resultados desejados em condições controladas3; e a efetividade se refere à obtenção dos resultados pretendidos. Trabalhamos com os conceitos de monitoramento e de avaliação4-10. O monitoramento pode ser interpretado como etapa ou componente do processo de avaliação. Monitora-se a eficiência na implantação e no desenvolvimento de uma proposta e, também, a eficácia das ações e a efetividade dos resultados. O monitoramento é realizado por meio de indicadores que mostram se determinada proposta ocorre conforme o desejado ou se há necessidade de mudança de rumos no seu desenvolvimento. Geralmente, esse acompanhamento é registrado em relatórios curtos e diretos contendo: análise da situação; dados sobre os investimentos feitos; identificação dos problemas e da busca de soluções; garantia de que as atividades previstas estejam sendo executadas corretamente; e informações sobre problemas no andamento da totalidade ou parte da proposta7. Uma avaliação completa incorpora o ciclo inteiro de análise de uma intervenção, começando antes que o processo se inicie (ex-ante), passando pelo acompanhamento (monitoramento) da implantação, da implementação, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a-d) Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Claves/ Ensp/Fiocruz). Avenida Brasil, 4036, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-210. cecilia@claves.fiocruz.br; edinilsa@ claves.fiocruz.br; adalpeixoto@ yahoo.com.br; aebfigueiredo@ yahoo.com.br

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e pela análise dos resultados e efeitos produzidos (ex-post). Uma avaliação pode também focalizar apenas determinado momento ou etapa da intervenção. Aqui focalizamos apenas o tópico das lições aprendidas na implantação e na implementação dos CIAPVI. No entanto, mesmo quando se analisa apenas parte do processo, é preciso evidenciar a origem, a história, os objetivos da ação e o contexto em que ela se desenvolve7-9. Apresentamos os ensinamentos que a experiência dos CIAPVI traz para a aplicação de políticas públicas semelhantes, precedidos de breve descrição da proposta, seus objetivos e a metodologia de sua construção.

A proposta Os CIAPVI foram criados em 2007 pela Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República do Brasil (SDH), de forma cooperativa com prefeituras, governos estaduais e instituições não governamentais. Foram instituídos como uma estratégia de ação prevista no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência e Maus-Tratos contra a Pessoa Idosa11. Esses centros funcionam com uma equipe multiprofissional composta por assistentes sociais, psicólogos e advogados, capacitados para atender à pessoa idosa. Suas atividades priorizam: orientação sobre direitos humanos ao idoso, vítima de violências; estudo e diagnóstico psicossocial das situações demandadas; mediação de conflitos familiares e comunitários, visando a sensibilização social sobre o envelhecimento e as violências; promoção de grupos de convivência; atendimento ao agressor; encaminhamento dos casos específicos de maus-tratos, abandono ou negligências aos serviços especializados, como Defensoria Pública, Ministério Público, da Saúde, delegacias de polícia, instituições de assistência social, entre outras; internação do idoso em Instituições de Longa Permanência para idosos; notificação dos casos nas delegacias especializadas de atendimento ao idoso, no Ministério Público ou na Defensoria Pública; e investimento na formação de técnicos para lidar com essas questões. Entre 2007 e 2009 foram criados 18 CIAPVI no país: oito na região Nordeste, três na região Norte; quatro na Sudeste; dois na Sul e um na região Centro-Oeste. A maioria deles não tem infraestrutura própria, estando sediados em secretarias de estado de Justiça, de Segurança Pública, de Direitos Humanos e Cidadania e defensorias públicas, de assistência e desenvolvimento social e de defesa de direitos. A avaliação foi construída a partir da compreensão dos objetivos e da missão dos centros. Os parâmetros para condução desse processo foram: as Deliberações da I Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa12, o Estatuto do Idoso13 e as diretrizes do Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência Contra a Pessoa Idosa, do quadriênio 2007/201011. Esses documentos apresentam: o diagnóstico dos principais problemas de violência vivenciados pelos idosos e as diretrizes para a organização, o controle, o acompanhamento e a avaliação das ações a serem realizadas pelo poder público.

Método de realização do monitoramento e da avaliação O estudo avaliativo baseou-se na triangulação de métodos quantitativos e qualitativos14. O processo de monitoramento e avaliação foi paulatinamente construído a partir de várias oficinas participativas e intersetoriais de trabalho, envolvendo todos os participantes desse programa social. Esse procedimento corresponde ao que há de mais atual em avaliação de políticas sociais, denominado ‘avaliação de quarta geração’15-17. O pressuposto dessa abordagem é que qualquer processo avaliativo é mais eficiente e fidedigno quando pensado e construído em forma de aprendizagem compartilhada que beneficia a todos, inclusive os pesquisadores. Na primeira das oficinas, estabeleceram-se as estratégias para realização do monitoramento e da avaliação, e articularam-se essas ações com assessoria à SEDH e às unidades locais para correção dos rumos no processo. Nesta etapa, criaram-se instrumentos de caráter exploratório e gerencial para acompanhar e analisar as ações de implantação e implementação dos serviços, investigando-se: a história de 172

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implantação de cada centro; sua viabilidade institucional e administrativa; a aceitação da proposta pelos gestores; a compatibilidade entre a realidade, as políticas locais e o Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa; os obstáculos encontrados; as estratégias de superação das dificuldades; a infraestrutura e os recursos humanos disponíveis. Um formulário com questões abertas e fechadas, discutido com os coordenadores dos centros, foi enviado por meio eletrônico para ser preenchido pelos gestores e sua equipe. Os dados obtidos foram analisados segundo cada unidade e para o conjunto delas. Em duas outras oficinas, uma em 2007 e outra em 2008, foram pactuados os indicadores quantitativos e qualitativos de avaliação, por meio da técnica ‘grupo nominal’18,19. Nessas discussões, foram consensualizados indicadores: de estrutura: sustentabilidade, estabilidade da equipe e formação continuada; de processo: articulação, referência e contrarreferência, parcerias, redes e inclusão; e de resultados: atividades de prevenção, atendimentos, casos resolvidos e casos reincidentes4,8. Os resultados do monitoramento foram sendo publicados na página de um Observatório em forma de boletins quadrimestrais, durante os anos de 2008 a 2010, destacando as situações locais e comparando as unidades. A realização da avaliação propriamente dita, por meio de instrumentos quantitativos e qualitativos, abrangeu o processo de implantação e a implementação dos centros. O “formulário de avaliação da implantação” foi aplicado a cada um dos serviços existentes e aos que foram criados a partir de 2008. As respostas foram analisadas e os resultados discutidos presencialmente com os coordenadores dos centros numa oficina de trabalho. A avaliação da implementação foi realizada em duas etapas: em 2008, enfatizamos o estudo dos êxitos e dificuldades no desenvolvimento dos trabalhos. Em 2009, os resultados da ação e as expectativas futuras. Nesse processo, aplicamos três formulários com questões abertas e fechadas e fizemos visitas a todos os centros. Essas visitas tiveram como finalidade observar as atividades in loco e entrevistar os vários atores envolvidos na proposta (gestores, profissionais, parceiros e idosos). Ao todo, realizamos: 48 entrevistas individuais com gestores e parceiros, 42 grupos focais com os profissionais e 14 com os idosos. Na última etapa avaliativa, submetemos as análises que fizemos, sobre todo o processo de monitoramento e avaliação, ao exame crítico dos principais atores envolvidos, num seminário preparado para essa finalidade. Um relatório preliminar, contendo a síntese dos resultados, foi enviado antecipadamente aos coordenadores, profissionais dos centros, representantes da SDH e de instituições parceiras. Após a validação desses atores, o relatório final com os resultados foi concluído.

Resultados Apesar de o foco do artigo ser sobre “lições aprendidas”, entendemos que será útil ao leitor ter informações mínimas sobre os resultados da avaliação a partir dos indicadores de produtividade e relevância dos centros. Em seguida, discutimos o aprendizado que o processo de implantação e implementação traz para a realização de programas semelhantes, destacando a relevância desse serviço, os êxitos e as dificuldades, mas, sobretudo, os motivos que conduziram a um e a outro. Indicadores de produtividade e relevância dos centros O Quadro 1 apresenta alguns indicadores de produtividade dos centros nos anos de 2008 e 2009. As ações de prevenção, que poderiam ser classificadas como de sensibilização e tomada de consciência, geralmente, incluíram: grandes contingentes de população em feiras, festividades cívicas e religiosas, escolas, programas de rádio, televisão, artigos em jornais, seminários abertos, todas elas focadas no processo de envelhecimento, na condição dos idosos e nas violências que sofrem. Quanto ao número de atendimentos, é importante esclarecer que cada centro foi criado em período diferente, talvez, por isso, os mais antigos, como São Luís, Manaus, Rio Branco, Teresina e Florianópolis, tendam a mostrar índices de eficiência maior. Entretanto, centros criados posteriormente, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como Palmas, Recife e Campinas, também apresentaram elevada produtividade. Outros fatores influenciam nessa quantidade de atendimentos, como o tamanho da cidade (Cornélio Procópio) e o fechamento dos centros durante o monitoramento (Natal, Belo Horizonte).

Quadro 1. Indicadores avaliativos da produtividade dos Centros, 2008 e 2009 Ano de implantação

No ações de prevenção

No atendimentos

% casos resolvidos

% casos reincidentes

São Luís/MA

2006

47

2.173

73,9

26,1

Manaus/AM

2007

3

1.832

80,0

5,0

Rio Branco/AC

2007

17

1.680

47,2

3,1

São Cristóvão/SE

2007

38

470

24,0

0,2

Maceió/AL

2007

40

54

35,2

...

Natal/RN

2007

16

37

97,3

2,7

Teresina/PI

2007

8

2.812

66,2

6,4

Marília/SP

2007

2

235

17,0

6,4

Florianópolis/SC

2007

5

1.822

13,5

1,3

Palmas/TO

2008

9

1.362

33,7

0,9

Recife/PE

2008

8

1.002

12,9

26,4

Salvador/BA

2008

8

507

70,4

0,4

Belo Horizonte/MG

2008

11

591

18,4

...

Cornélio Procópio/PR

2008

15

230

70,9

2,6

Campinas/SP

2008

1

2.432

26,8

4,9

Rio de Janeiro/RJ

2009

5

540

86,0

0

Fortaleza/CE

2009

31

696

23,4

0,9

Goiânia/GO

2009

0

16

6,2

...

264

18.459

47,0

7,3

Centros

Total Legenda: (...) sem informação.

Foram considerados “casos resolvidos” aqueles em que o idoso foi integralmente atendido em sua necessidade. A resolutividade foi alta em 38,9% das unidades. No entanto, na maioria, ficou abaixo de 50%. Os encaminhamentos constituíram as maiores dificuldades para os profissionais. A rede pública de serviços não está preparada para acolher a pessoa idosa e nem costuma dar retorno quando atende. O idoso com dependências físicas, mentais e sociais e com necessidade de respostas imediatas encontra maior dificuldade no atendimento20. Verificamos percentuais baixos de reincidência dos casos resolvidos pelos centros, o que demonstra a efetividade dos atendimentos. Os indicadores quantitativos de produtividade foram complementados pela análise das percepções dos diferentes atores envolvidos no trabalho dos CIAPVI. Ouvir as pessoas sobre os programas nos quais estão envolvidas é importante, pois o que elas pensam sobre a situação influencia seu comportamento. Alguns gestores e profissionais destacaram que os idosos saem dos centros mais tranquilos, cientes de seus direitos, se sentem protegidos, seguros, respaldados e satisfeitos. Muitos disseram que o centro é um serviço que veio para ficar em seus municípios, e ressaltam os ganhos conquistados por meio dele: a mobilização da opinião pública e da mídia, a articulação da rede de proteção local e o envolvimento da comunidade. Os representantes de instituições parceiras também destacaram que, na 174

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maioria das vezes, o centro consegue atender à demanda com respostas efetivas. Ressaltaram, ainda, a importância da participação ativa e comprometida dos técnicos, muitos deles voluntários, e que o trabalho multiprofissional tornou o grupo coeso e integrado. Para os parceiros das ONG e de outras instituições públicas, o serviço oferecido pelos centros se tornou referência para a cidadania dos idosos e uma iniciativa de vanguarda em relação ao tema, nas localidades em que foram criados. Promotores de justiça, delegados e defensores públicos assinalaram que houve redução nas queixas e denúncias que chegam a suas instituições, o que é indicativo do êxito dos centros. Os idosos ouvidos consideraram que receberam bom atendimento, pois os profissionais os escutaram, deram encaminhamento correto e seus problemas foram resolvidos. Comentaram que se sentem respeitados, à vontade e tranquilos após o atendimento. No entanto, vários deles criticaram: a burocracia e filas nos serviços para onde são encaminhados; o espaço físico dos centros, que, frequentemente, ainda não é adequado, dificultando a privacidade dos atendimentos, e a morosidade dos processos que endereçam à justiça. Por isso, muitos idosos sugeriram melhorias para os centros, como: adequação do espaço físico visando à privacidade dos atendimentos; abolição das filas para atendimento nos serviços a que são referidos; aumento do número de visitas dos técnicos às suas casas quando há denúncia de violência; penalidades mais duras para seus agressores; justiça mais ágil; estabelecimento dos centros em locais acessíveis; e meio de transporte para que os idosos dependentes sejam atendidos em casa ou levados para atendimento nos serviços.

Lições aprendidas na implantação dos centros O momento de implantação é crucial porque dele se originará uma prática coletiva eficiente ou não. Cada centro teve sua história particular de criação, mas os pontos comuns ressaltados como facilitadores foram: (1) oficinas oferecidas pela SEDH para os profissionais que atuariam nos centros para discutir a viabilidade do trabalho, criar linguagem comum e oferecer orientações para atuação de rotina e frente a problemas mais complexos. Essa estratégia tornou possível: a identificação e a sinergia das pessoas com a proposta, a obtenção de informações precisas e objetivas para a implantação, garantias para a operacionalização e discussão dos indicadores com os quais os serviços seriam avaliados; (2) constituição de um grupo de profissionais e gestores dedicados, com formação básica e experiência pessoal e institucional anterior para trabalhar com idosos; (3) apoio financeiro e orientação técnica da SEDH para prover o centro com condições básicas de funcionamento nos locais onde esse trabalho foi pioneiro; (4) acolhimento institucional de algum órgão que lhe deu abrigo, cobertura e condições de atuação; (5) criação de infraestrutura básica para o projeto: espaço físico adequado; equipamentos; acesso à internet e telefone, transporte para visitas domiciliares e locomoção de idosos dependentes, e salas para atendimento individual; (6) localização do centro em lugar de fácil acesso para os idosos que utilizam transporte público; (7) autonomia do coordenador para adaptar e organizar o espaço físico e para selecionar sua equipe; (8) construção de parcerias ativas com a rede de serviços de saúde, assistência social e segurança, instituições não governamentais e voluntariado. Dentre os fatores que dificultaram a implantação de alguns centros, gestores e técnicos destacaram: (1) escassez de recursos financeiros para realizar a quantidade de ações previstas, pois algumas unidades dependiam exclusivamente do subsídio da SDH; (2) problemas burocráticos que provocaram morosidade nos processos licitatórios para aquisição de materiais e equipamentos, contratação de técnicos e de empresas envolvidas nas ações; (3) problemas na gestão do órgão ao qual a unidade estava vinculada: troca de chefias, de gestores dos próprios centros, tornando descontínuos os atendimentos e encaminhamentos; (4) inexistência, precariedade ou inadequação de serviços e programas de suporte na rede de proteção para os quais os idosos deveriam ser encaminhados. É o caso de centros de cuidados diurnos e de vagas em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) com elevado grau de dependência; (5) problemas de integração entre os profissionais das distintas áreas (direito, saúde, assistência social, segurança e transporte) e dos órgãos que deveriam atuar em rede; (6) dificuldades de sensibilização da sociedade para as questões do envelhecimento e da violência contra a pessoa idosa. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Lições aprendidas na implementação dos centros Apesar dos problemas desafiantes de se criar um trabalho multiprofissional, o desenvolvimento das atividades nos CIAPVI mostrou conquistas importantes, consensualmente valorizadas por gestores, profissionais, parceiros e pelos próprios idosos. Mostrou ser altamente eficiente: (1) ter foco na missão; (2) ter um grupo de profissionais capacitados, motivados, coesos e comprometidos com o tema; (3) insistir no atendimento multidisciplinar incluindo apoio jurídico, psicológico e social; (4) fazer parcerias com instituições públicas responsáveis pelo atendimento (como secretarias de saúde, de assistência social, de transporte, de mobilidade urbana) ou com instituições apoiadoras, como: universidades, conselhos de direitos, Ministério Público, Ministério da Justiça, Secretaria da Justiça, Rede Nacional de Atendimento dos Direitos do Idoso e grupos de voluntariado; (5) oferecer atendimento resolutivo, personalizado e direto, que significou acolher e escutar o idoso, realizar os encaminhamentos necessários, envolver a família na solução dos problemas e reforçar seus vínculos por meio da mediação compreensiva de seus conflitos; (6) acompanhar as atividades do centro com cursos que promovessem o bom nível dos profissionais e a orientação dos familiares; (7) acompanhar o desenvolvimento do centro com a produção e divulgação de materiais informativos para sensibilização da sociedade; (8) integrar e fortalecer fóruns em defesa dos direitos da pessoa idosa; (9) quando necessário, descentralizar atividades para municípios e bairros com grande número de idosos; (10) contar com apoio político e gerencial e aporte financeiro do governo local. Esse decálogo poderia ser completado com a constatação da importância de contar com a participação dos idosos e de suas famílias no desenvolvimento das ações. Isso ajudou na adequação das atividades dos centros e permitiu a redução da judicialização dos conflitos que costumam protagonizar ou dos quais são vítimas. Foram apontados os problemas que emperraram o trabalho. Alguns são de ordem institucional, outros de gestão de pessoal e do trabalho, e outros se referem ao desempenho das atividades cotidianas. Do ponto de vista institucional, as principais falhas foram: (1) descontinuidade dos convênios com a SDH que orientava as ações e financiava os centros. Em função dessa interrupção, algumas unidades encerraram definitivamente suas atividades, pois não conseguiram ser assumidas pelos governos locais. Outras continuam existindo, mas perderam o foco multiprofissional e passaram a atuar em uma lógica setorial, desconfigurando a proposta inicial. (2) Em alguns CIAPVI, persistiram problemas: de infraestrutura (falta de espaço físico adequado à privacidade dos atendimentos); de equipamentos imprescindíveis, como telefone, transporte para idosos dependentes e para realização de visitas domiciliares; e de pessoal, persistindo quadro de profissionais reduzido, insuficiente e de elevada rotatividade; (3) em várias unidades, a excessiva lentidão burocrática dos órgãos a que estavam subordinadas prejudicou a realização de ações previstas, a contratação e pagamento de profissionais, e licitações para compra de materiais e equipamentos. Do ponto de vista da gestão dos centros, foram assinalados: (1) em alguns locais, evidente desarticulação da rede de apoio e insuficiência de serviços que deveriam garantir atenção integral aos idosos; (2) falhas no sistema de referência e contrarreferência, comprometendo a resolutividade dos casos de violência; (3) inexistência ou insuficiência de vagas em ILPI, deixando, sem apoio, idosos dependentes em extrema condição de pobreza ou que não tinham familiares cuidadores à disposição; (4) dificuldades de inclusão dos idosos e dos abusadores com transtornos psiquiátricos na rede de atendimento de saúde mental; (5) falta de formação dos profissionais para abordar idosos e familiares com transtornos psiquiátricos ou envolvidos em atos criminosos; (6) ausência de instâncias para trabalhar com os agressores; (7) morosidade no processo de interdição e abrigamento compulsório para idosos com demência e sem cuidadores adequados; (8) inexistência de bancos de dados unificados da rede de proteção. Do ponto de vista das equipes e suas atividades, os profissionais mencionaram como problemáticas: (1) inexperiência para lidar com a violência contra a pessoa idosa; (2) descontinuidade nos processos de contratação e capacitação para atuar nos Centros; (3) e rotatividade dos profissionais e estagiários. 176

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Sobre os idosos e suas famílias, os profissionais destacaram: (1) resistência da pessoa idosa em relatar a violência que sofre, seja porque o abusador é um familiar com o qual terá de conviver quando regressar para casa, ou por temor de possível desfecho policial ou jurídico-penal da situação que narrar; (2) comprometimento mental e dependência química de alguns idosos e de seus abusadores; (3) frequente omissão, falta de compreensão e de compromisso de familiares em relação às necessidades de seus parentes idosos.

Discussão Há evidência de acertos e dificuldades no desenvolvimento dos CIAPVI que foram concebidos como uma estratégia para construir uma base de conhecimentos e práticas para lidar com a violência contra a pessoa idosa, garantindo seus direitos. Ressalta-se que, embora falemos da pessoa idosa de forma genérica, na verdade, os maiores frequentadores dessas unidades são pessoas pobres e que têm algum grau de dificuldade de se defender por si só. É em relação a esse grupo específico que as instituições públicas e a sociedade brasileira vêm demonstrando maior dificuldade em atuar protetivamente. Mas esse não é um problema apenas brasileiro, pois, nos documentos do Conselho Europeu21, que reúne o pensamento da Comunidade Europeia, o foco são os idosos dependentes, considerados os mais vulneráveis. Na Europa, pretende-se criar um fundo específico para que esse grupo social seja contemplado, uma vez que os serviços a ele destinados ora são mantidos por órgãos públicos ora por organizações não governamentais. O principal desafio tem sido equilibrar as responsabilidades da família e do Estado nos cuidados aos idosos e ampliar a oferta e o acesso aos serviços especializados, assim como proteger e aliviar o desgaste dos cuidadores familiares. Se os CIAPVI pareciam apontar um caminho de possibilidades no sentido citado acima, seu papel se esmaeceu. Como soe acontecer no serviço público brasileiro, as mudanças na gestão da SDH estabeleceram outras prioridades, tornando esses centros apenas uma experiência a mais. Em levantamento realizado em 2013, constatamos que, dos 18 avaliados, seis encerraram suas atividades em função da falta de recursos financeiros e do apoio da gestão local. Dos 12 restantes, nove ainda funcionavam conforme o modelo multiprofissional preconizado originalmente. Os demais continuavam oferecendo seus serviços com foco apenas setorial. Dois centros (Rio de Janeiro, São Luís), ao contrário, ampliaram suas atividades dentro da filosofia proposta: o primeiro criou uma ouvidoria e implantou uma unidade em Niterói. O segundo criou um atendimento móvel que contempla a periferia de São Luís. A proposta de criação dos CIAPVI foi pensada como uma dentre várias outras estratégias do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa. Nesse sentido, ela é parte de um todo e, como tal, ela cumpriu sua missão. Foi com o intuito de generalizar essa estratégia que a SEDH contratou a pesquisa de monitoramento e avaliação para acompanhar o percurso do experimento. A pergunta que aqui cabe é se iniciativas como os CIAPVI têm sentido se não forem verdadeiramente institucionalizadas. A experiência internacional mostra que cada país vai encontrando formas de lidar com os problemas gerados pelo envelhecimento da população. Entretanto, observamos que a questão dos idosos dependentes e as violências que acometem os velhos em geral, continuam a ser temas sobre os quais se preocupam governantes, profissionais de saúde, pesquisadores e, sobretudo, familiares. Os CIAPVI, inicialmente criados como uma experiência-piloto de qualidade, eficiência e baixo custo, com pretensão de estender-se nacionalmente, poderiam constituir um exemplo para os países que estão buscando respostas aos problemas mencionados. Artigos que avaliam propostas de prevenção da violência contra a pessoa idosa mostram que um programa efetivo deve atender a cada idoso e abranger os vários componentes de sua vida, como saúde, educação, interações sociais e condições de vida, provendo serviços relevantes que diminuam os seus riscos de violência. Também deve incluir intervenções como campanhas na mídia e estratégias de mudanças que possam melhorar sua condição de vida22-25. Tais objetivos coincidem com os da proposta original dos CIAPVI, embora não se tenha encontrado nenhuma iniciativa igual. Os Estados Unidos, por exemplo, criaram, em 2007, o “Nacional Center of Elder Abuse” (NCEA) dentro do “Department of Health and Human Services”, para assegurar recursos para pesquisa, aplicação de políticas sociais, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de saúde, de justiça; para formação de cuidadores; para defesa de direitos dos idosos e atendimento aos familiares necessitados. Esse centro atua em colaboração com os Estados e com iniciativas locais26. No Canadá, existe: um Departamento do Idoso no Sistema Público de Saúde; uma Rede Nacional de Cuidados; um Centro de Direito dos Idosos e uma Rede de Prevenção de Abusos27.

Considerações finais Do estudo desse caso avaliado, aprendemos algumas lições: (1) A primeira delas é que, quando se faz um arranjo estratégico novo como dispositivo para o desenvolvimento de uma política pública, a instituição que o cria precisa ter foco, objetivos claros, trabalhar coletivamente com todos os atores que o implementarão ou que serão destinatários da iniciativa. No entanto, não basta isso, é preciso ter recursos financeiros, orientação técnica e previsão de sustentabilidade. No caso dos CIAPVI, houve grande investimento inicial da SDH, seguido por descontinuidade. (2) Concluímos que os 66% dos centros que persistem têm apoio local e caminham por conta própria. Mas a meta da SDH, de implantar, pelo menos, um em cada estado, não foi atingida. Entendemos, portanto, que o papel orientador e indutor dessa secretaria não deveria ter cessado até que a proposta fosse inteiramente implantada. (3) Um dos problemas cruciais relativos à continuidade dos centros foi que a proposta de sua criação nunca foi consensual na SDH e nos governos locais. Durante o processo de avaliação, percebeu-se, ao contrário, muita resistência interna e opiniões ambivalentes quanto a assumir esses arranjos e a incorporá-los às instâncias locais. Observamos que, na prática, criar estratégias para o cuidado do idoso não é prioridade para alguns governantes e para parte da sociedade brasileira, a não ser para as famílias. (4) Ressalta-se a importância, caso a proposta seja retomada, de garantir, aos centros, suas características iniciais multiprofissionais e de atuação em rede. Os resultados conseguidos por meio de uma pequena equipe formada por psicólogo, advogado e assistente social, evidenciados nos indicadores, por si só falam da relevância e adequação desse formato. (5) O engajamento dos técnicos e gestores foi um ponto alto do sucesso dos centros. Ao final do processo avaliativo, muitos coordenadores e profissionais ressaltaram que, apesar de ser um projeto recente, o esforço e o empenho dos funcionários permitiram que os serviços se transformassem em referência e fossem potencializadores de ações efetivas e significativas. (6) Foi fundamental o papel dos centros na dinamização de uma rede interinstitucional de serviços necessários e imprescindíveis, como os de saúde e de justiça que, infelizmente, constatou-se serem os de mais difícil acesso e os que apresentam demora e falta de qualidade no atendimento. Ressalta-se a insuficiência de oferta de atenção especializada para idosos dependentes e com problemas graves de saúde física e de acesso aos serviços de saúde mental. (7) Quatro problemas ligados ao cotidiano dos centros põem em risco o trabalho: falta de garantia de institucionalidade e sustentabilidade pelos órgãos locais em colaboração com a SDH; algumas iniciativas em curso, de tornar o serviço apenas setorial; inadequado e insuficiente financiamento para garantir as atividades; e falta de investimento em pessoas competentes e sua substituição por funcionários inexperientes.

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Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. The DAC Network on Development. Evaluation. Joint evaluations: recent experiences, lessons learned and options for the future [Internet] [acesso 2014 Abr 4]. Disponível em: http://www.oecd.org/dac/evaluation/dcdndep/35353699.pdf 2. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Innovations, lessons learned and good practices [Internet] [acesso 2013 Abr 4]. Disponível em: http://www.unicef.org/ innovations 3. Marinho A, Façanha LO. Programas sociais: efetividade, eficiência e eficácia como dimensões operacionais da avaliação. Texto para Discussão nº 787 [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2001 [acesso 2013 Abr 5]. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0787.pdf 4. Tamaki EM, Tanaka OU, Felisberto E, Alves CKA, Drumond Junior M, Bezerra LCA, et al. Metodologia de construção de um painel de indicadores para o monitoramento e a avaliação da gestão do SUS. Cienc Saude Colet. 2012; 17(4):839-49. 5. Carvalho ALB, Souza MF, Shimizu HE, Senra IMVB, Oliveira KC. A gestão do SUS e as práticas de monitoramento e avaliação: possibilidades e desafios para a construção de uma agenda estratégica. Cienc Saude Colet. 2012; 17(4):901-11. 6. Miranda AS, Carvalho ALB, Cavalcante CGCS. Subsídios sobre práticas de monitoramento e avaliação sobre gestão governamental em Secretarias Municipais de Saúde. Cienc Saude Colet. 2012; 17(4):913-20. 7. Minayo MCS. Importância da avaliação qualitativa combinada com outras modalidades de avaliação. Saude Transform Soc. 2011; 1(3):2-11. 8. Contandriopoulos AP. Avaliando a institucionalização da pesquisa. Cienc Saude Colet. 2006; 11(3):705-11. 9. Knaap P. Theory-based evaluation and learning: possibilities and challenges. Evaluation. 2004; 10(1):16-34. 10. Weiss CH. Evaluation, methods for studying programs and policies. New Jersey: Prentice Hall; 1998. 11. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Plano de ação para enfrentamento da violência contra a pessoa idosa (2007-2010). Brasília (DF): SDH; 2007. 12. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Relatório da Primeira Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa. Construindo a Rede Nacional de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa. Brasília: SDH; 2006 [Internet] [acesso 2014 Mar 12]. Disponível em: www.sdh.gov.br 13. Lei nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Estatuto do Idoso. Diário Oficial da União. 3 Out 2003. 14. Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadoras. Avaliação por triangulação de métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. 15. Kantorski LP, Wetzel C, Olschowsky A, Jardim VMR, Bielemann VLM, Schneider JF. Avaliação de quarta geração: contribuições metodológicas para avaliação de serviços de saúde mental. Interface (Botucatu). 2009; 13(31):343-55. 16. Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation evaluation. J Adv Nurs. 2000; 31(1):117-25. 17. Koch T. Having a say: negotiation in fourth-generation evaluation. Adv Nurs. 2000; 31(1):125-31.

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18. Lancaster T, Hart R, Gardner S. Literature and medicine: evaluating a special study module using the nominal group technique. Med Educ. 2002; 36(11):1071-86. 19. Gallangher M, Hares T, Spencer J, Bradshaw C, Webb I. The nominal group technique: a research tool for general practice. Fam Pract. 1993; 10(1):76-91. 20. Lima-Costa MF, Matos DL, Camarano AA. Evolução das desigualdades sociais em saúde entre idosos e adultos brasileiros: um estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 1998, 2003). Cienc Saude Colet. 2006; 11(4):941-50. 21. Garcia AM. La protección social en la Unión Europea, un modelo homogéneo? ICE Rev Econ [Internet]. 2005 [acesso 2014 Abr 25]; 820:1-27. Disponível em: http://www. revistasice.com/CachePDF/ICE_820_195219__9282FA86374DE5D092216C7C85F66803. pdf 22. Nation M, Crusto C, Wandersman A, Kumpfer KL, Seybolt D, Morrissey-kane E, et al. What works in prevention: principles of effective prevention programs. Am Psychol. 2003; 58(6-7):449-56. 23. Gates S, Ficher JD, Cooke MW, Lamb SE. Multifactorial assessment and targeted intervention for preventing falls and injuries among older people in community and emergency care settings: systematic review and meta-analysis. BMJ. 2008; 336(7636):130-3. 24. Chan KL. Comparative review on national strategies in the prevention of domestic violence. Open Soc Sci J. 2011; 4:1-8. 25. World Health Organization. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Genève: World Health Organization; 2002. 26. National Center on elder abuse: administration on aging. Department of Health and Human Services [Internet] [acesso 2014 Maio 20]. Disponível em: http://www.ncea.aoa. gov/index.aspx 27. Réseau canadien pour la prévention des mauvais traitements envers les aîné(e)s. Canadian Network for prevention on elder abuse [Internet] [acesso 2014 Maio 30]. Disponível em: http://www.cnpea.ca/ageism.pdf

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Apresentam-se “lições aprendidas” no processo de avaliação e monitoramento dos centros de prevenção de violência contra os idosos, programa criado em 2007 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), cuja proposta se baseia em atenção multidisciplinar oferecida por profissionais de direito, saúde e assistência social. Fez-se uma pesquisa avaliativa do programa durante três anos, utilizando-se triangulação de métodos quantitativos e qualitativos. As lições aprendidas provêm da visão dos diferentes atores que compartilharam a experiência, inclusive os idosos. A eficiência e a efetividade das ações mostraram a importância da iniciativa. Mas aqui se apontam, também, seus limites, particularmente problemas de sustentabilidade pela falta de investimento dos gestores e pela descontinuidade do apoio e da orientação da SDH. Em 2013, dos 18 projetos implantados, seis haviam encerrado suas atividades, 12 continuavam ativos, desses, dois expandiram suas ações.

Palavras-chave: Idoso. Violência contra o idoso. Direitos do idoso. Prevenção de violência. Avaliação. Lessons learned from the evaluation of a Brazilian healthcare program for elderly victims of violence This paper presents the “lessons learned” from the process of evaluation and monitoring of centers for prevention of violence against the elderly, a program created in 2007 by the Brazilian Department of Human Rights (DHR). The aims were based on multidisciplinary care provided by legal professionals, healthcare professionals and social workers. An evaluative investigation on this program was conducted over a three-year period by means of triangulation of quantitative and qualitative methods. The lessons learned came from the viewpoints of the different players who shared in these experiences.. The efficiency and effectiveness of the actions performed showed the importance of the initiative. However, the investigation also indicated the limitations of the program, particularly regarding sustainability problems caused by lack of investment by the administrators and discontinuity of support from the DHR. In 2013, out of the 18 projects that had been implemented, six had ceased activities, 12 remained active and two of the latter had expanded their actions.

Keywords: Elderly person. Violence against the elderly. Rights of the elderly. Prevention of violence. Evaluation. Lecciones aprendidas en la evaluación de un programa brasileño de atención a ancianos víctimas de la violencia Se presentan las “lecciones aprendidas” en el proceso de evaluación y monitoreo de los centros de prevención de violencia contra los ancianos, programa creado en 2007 por la Secretaría de Derechos Humanos de la Presidencia de la República (SDH), cuya propuesta se basa en la atención multidisciplinaria ofrecida por profesionales de derecho, salud y asistencia social. Se hizo una encuesta de evaluación del programa durante tres años, utilizándose la triangulación de métodos cuantitativos y cualitativos. Las lecciones aprendidas tienen origen en la visión de los diferentes actores que compartieron la experiencia. La eficiencia y efectividad de las acciones mostraron la importancia de la iniciativa. Pero aquí se señalan también sus límites, particularmente problemas de sostenibilidad por la falta de inversión de los gestores y por la discontinuidad del apoyo y de la orientación de la SDH. En 2013, de los 18 proyectos implantados, seis habían cerrado sus actividades, 12 continuaban activos siendo que de ellos, dos ampliaron sus acciones.

Palabras clave: Anciano. Violencia contra el anciano. Derechos del anciano. Prevención de violencia. Evaluación.

Recebido em 10/06/14. Aprovado em 05/07/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0284

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Flavia Liberman(a) Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima(b)

A cartografia tem se insinuado nos meios acadêmicos como método de pesquisa, entre a miríade de métodos em pesquisa qualitativa1-8. Porém, os pesquisadores que trabalham nessa perspectiva insistem: a cartografia só pode ser pensada como método se entendermos método como aquilo que nos faz compreender a nossa potência de conhecer9. A cartografia implicaria, então, disposição para afirmar uma potência da própria vida. Quem se lança a essa aventura é convidado a conectar-se com o pulsar da vida em seu corpo e com caminhos para os quais esse pulsar aponta. Para Rolnik10, a matéria-prima da cartografia são as marcas feitas num corpo. A violência vivida no encontro entre um corpo e outros desestabiliza-o, colocando a exigência de invenção de algo que venha a dar sentido e corporificar essa marca: um novo corpo, outro modo de sentir, pensar, um objeto estético ou conceitual. A pesquisa faz-se assim como cartografia do meio em que o pesquisador está mergulhado na produção de mapas referentes aos encontros vividos nesses trajetos e aos afetos e sensações ali produzidas. Deleuze e Guattari11 opõem dois procedimentos científicos: um consiste em ‘reproduzir’; outro, em ‘seguir’. Um seria de reprodução, iteração e reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das ciências itinerantes, ambulantes. Mas [...] seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir. [...] Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir é coisa diferente [...]. Somos de fato forçados a seguir quando estamos a procura das ‘singularidades’ de uma matéria ou material e não tentando descobrir uma forma; [...] quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair delas constantes.11 (p. 39)

Da mesma forma que para os geógrafos, nesta acepção a cartografia difere do mapa. Enquanto este representa um plano estático, a cartografia “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem [...] o desmanchamento de certos mundos – e sua perda de sentido – e a formação de outros”3 (p. 23). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Curso de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista. Rua Silva Jardim, 133/136, Vila Mathias. Santos, SP, Brasil. 11060-001. toflavia.liberman@ gmail.com (b) Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. beth.lima@usp.br

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Um corpo de cartógrafo

Segundo Kastrup4, o uso do método cartográfico no estudo da subjetividade afasta-se do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas; não se busca estabelecer um caminho linear. A cartografia é um método ad hoc, construído quando se pretende não representar processos, mas acompanhá-los. A atenção volta-se à detecção de signos e forças circulantes, das pontas do processo, e não de atos ligados à focalização que visam à representação dos objetos. O trabalho do cartógrafo exige um tipo de presença para delinear processos sempre em curso, pois os caminhos são construídos ao mesmo tempo em que se transita por eles, uma experiência cuja tarefa não é apenas produção individual, mas, também, coletiva12. Considerando que o trabalho do cartógrafo diz respeito às marcas feitas num corpo, é necessário perguntar: que tipo de corpo é este que se deixa afetar pelo mundo? Que tipo de sensibilidade percorre este corpo para dar conta das intensidades vividas? Tal sensibilidade e abertura surgiriam espontaneamente para todos ou alguns, ou poderíamos provocá-las e exercitá-las? Seria possível, ao cartógrafo, construir um corpo – mesmo por alguns “segundos” – que embarque em seu intento exploratório-inventivo? Que práticas de si seriam possíveis criar para instaurar tal corpo? Como fazer para sustentar a experiência de um corpo “que vibra em todas as frequências possíveis”3 (p. 66)? Tomadas por estas questões, propomos este texto para contribuir com pistas para a formação de um cartógrafo, buscando pensar linhas de produção e mobilização de um corpo que se deixa vibrar. Considerando que todos podem experimentar um corpo de cartógrafo , já que o ato de pesquisar é inerente a vida, focalizaremos aqui as discussões no exercício de pesquisa, docência e clínica. Ao aproximarmos nossa experiência teórico-prática – como professoras/ terapeutas ocupacionais e pesquisadoras – ao pensamento de autores ligados à filosofia da diferença e das ideias de Keleman13 e Favre14,15(c) sobre temáticas que envolvem o corpo, sistematizamos algumas guias para servirem de orientação na pesquisa, na prática profissional e nos processos de ensino-aprendizagem. As desenvolvidas aqui são aquelas que mereceram nossa atenção e podem se desdobrar em outras. Utilizamos a noção de guia, e não de direção, como se diz de um cão-guia16. Durante a condução, o cão deve ter a capacidade de acompanhar o caminho a ser traçado pelo cego sem, no entanto, determinar o percurso, salvo quando perceber algum obstáculo que possa colocar o cego em risco de vida. Podemos pensar a guia como uma “proteção conectiva”, uma prudência para viver os encontros de modo a tornar a experiência assimilável àquele corpo.

Primeira guia: o que pode um corpo? Estamos num grupo de mulheres na ONG Arte no Dique na Zona Noroeste de Santos. Nossas ferramentas são artes plásticas, práticas corporais, trabalho com fotografias, poemas e conversas. As mulheres estão acostumadas a ir aos serviços de saúde para buscar uma medicação, expressar uma queixa. Temos outro desafio: não falar apenas das queixas, mas tratar da vida, olhar fotografias, produzir textos, experimentar o corpo em movimento e meditação. Ampliar o conceito de saúde e falar de arte em vez de prescrever medicação para depressão, diabetes, hipertensão. Não somos contra os remédios, mas a vida nos pede mais17(d).

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(c) Regina Favre é filósofa e terapeuta da primeira geração no campo das psicoterapias corporais no Brasil, e introdutora do pensamento filosófico, biológico e clínico de Stanley Keleman no país. Atualmente, prossegue independente seu trabalho clínico e de ensino com grupos de profissionais, investindo no aprofundamento da abrangência do conceito Kelemaniano de Formatividade.

Registro retirado do Caderno de Anotações sobre supervisão realizada com grupo de alunos do 3º ano de diferentes cursos dentro do Módulo do Eixo Trabalho em Saúde realizado na Unifesp – Baixada Santista. Nesse projeto, docentes e alunos vão a campo realizando diferentes intervenções17.

(d)


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Ao trabalharmos com o nosso corpo e o do outro, nas práticas e/ou na formação, insistimos na pergunta espinosana: O que pode um corpo? Instalamo-nos no terreno das sensibilidades produzidas nos processos de subjetivação que definem modos de olhar, viver e se relacionar com a intenção de deslocar, problematizar, criar pequenas e potentes possibilidades de aproximação com o campo da corporeidade. Nesta direção afirma-se o corpo em sua capacidade de afetar e ser afetado por outros. Na perspectiva de Spinoza18, os bons encontros são aqueles em que os corpos entram em relação de composição e aumentam sua potência de ser, agir e pensar. Para o corpo, portanto, é bom aquilo que o dispõe de tal maneira que possa ser afetado por um maior número de modos. Isso, por sua vez, aumenta a possibilidade de que aconteçam bons encontros com outros corpos (humanos ou não). Nosso corpo é continuamente restaurado por esses corpos, e pode se apresentar sob novas relações. Certamente, estamos tocando um campo delicado. Há uma infinidade de técnicas e propostas relacionadas ao corpo. Um dos desafios é resistir à tentação de um novo adestramento, agora efetuado pelas chamadas intervenções clínicas na construção de um corpo hipercriativo, superexpressivo, que responda, rapidamente, às velocidades impostas pelos modos de subjetivação contemporâneos. Procurando romper com essa tendência, parece-nos que a questão de Spinoza, o que pode o corpo18, em resistência àquilo que ele deve, é bastante inspiradora. Spinoza problematiza, justamente, os modos de existir construídos com matrizes modelizadoras, prescritivas e automatizadas. Ao sermos capturados por esses movimentos, a vida esteriliza-se, acabando por fazer-nos funcionar num regime de baixa potência. Refletindo sobre o que o corpo pode e tomando-o como modelo, Spinoza abre mundos em que o desejo e a potência podem circular, sobretudo porque a pergunta não nos permite chegar a uma única resposta, mas a um terreno no qual é possível respirar. Não existe nenhuma fórmula para esta invenção, mas alguns fins norteiam a preparação de um corpo para entrar num estado de concentração aberta, de prontidão, de presença, o que o torna suficientemente poroso para que algo aconteça. Esta preparação busca um grau justo de porosidade: um corpo pode estar excessivamente poroso de modo a deixar o mundo atravessá-lo sem, necessariamente, ser tocado por ele. Neste caso, trata-se de criar e densificar contornos, membrana, molduras para uma aventura errante19. Trata-se de um exercício permanente de sensibilidade, de vitalização de corpos e relações, com aproximações e afastamentos que ampliam e redimensionam repertórios pessoais, existenciais e profissionais, para que o corpo amplie sua capacidade de afetação. Em relação a processos de subjetivação, trata-se do encontro com o outro em sua alteridade, e as perturbações provocadas por esse outro como presença viva em mim, a partir da permeabilidade, disponibilidade e da possibilidade de suportar as turbulências produzidas, de engendrar novos modos que pedem passagem, expressão e invenção. Com base nisso, podemos compreender o mundo como um lugar plural, palco de acontecimentos no próprio corpo, a partir das relações que se engendram no contexto espaço/tempo, permeado pelas afetações e modos de relação produzidos nos encontros. Vislumbra-se o corpo como um ambiente dentro de um ambiente, que, por sua vez, se encontra dentro de outro – camadas infinitamente entrelaçadas em redes de comunicação15.

Segunda guia: o corpo como pulso Por meio de um enrijecimento da musculatura entre as escápulas e atrás da nuca, e levando os ombros em direção um ao outro pela frente, o corpo se encolhe e fecha, produzindo uma dor nas costas insuportável. Acompanhando essa posição de “certo esmagamento de si”, as mãos apertam o rosto, os joelhos aproximam-se como se quisessem ocultar algo da intimidade. Vemos um braço

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procurando apertar as vísceras, num traço de agressividade contra o corpo e a vida que quer se expressar, falar de si, tornar-se presença(e). O corpo é foco de estudos e intervenções. Alguns paradigmas concebemno apenas em seu aspecto sensório-motor, enquanto outros transitam prioritariamente por uma dimensão psicológica. Procurando contribuir para a formulação de outras perspectivas no campo, pensamos o corpo como pulso, multimídia, multifacetado, que se (des)constrói permanentemente nos encontros entre corpos. Keleman13 alia o estudo da biologia, do corpo-matéria, às questões da vida – do unicelular ao multicelular, um organismo é compreendido como vivo e afetado continuamente por outro, que o obriga, continuamente, a alterar os mapas que orientam as formas do viver, fazer coisas, relacionar-se, criando outros modos e repertórios que constituem outros mapas novamente afetados, desmanchados, reconfigurados. Nesse contexto, podemos afirmar que os estudos anatômicos tendem a utilizar imagens bidimensionais, perdendo o vivido. Em contrapartida, é comum faltar à psicologia a compreensão anatômica. Sem anatomia não há afetos. Os acontecimentos têm uma arquitetura somática. “Portanto, pensar o corpo significa tentar tocá-lo em suas mais diferentes dimensões, entendê-lo como processos que procuram dar forma (sempre transitórias) às intensidades, corporificando as experiências”12 (p. 25). Todo o viver é um ato corporal. Os corpos se constroem e reconstroem refinadamente em cada experiência. Para Keleman,13 o corpo estabelece uma relação com o mundo num movimento pulsátil de contração e expansão. Saímos em direção ao mundo, voltamos e, nesse movimento, trocamos com o ambiente elementos químicos e afetos, células germinais e experiências. A construção da anatomia acontece a partir dos tipos de vínculos e graus de azeitamento das relações que produzem os mais variados corpos por meio das experiências no mundo. A construção desses corpos e seus modos de funcionamento são efeitos: da cultura, da genética, dos acontecimentos vividos, dos tipos de vínculos estabelecidos ao longo de uma existência, e da subjetividade que acompanha, molda e orienta certos modos de funcionamento dos corpos em determinado tempo/espaço.

Cena retirada dos Seminários do Laboratório do Processo Formativo, coordenados pela terapeuta corporal Regina Favre e descrita no livro Delicadas Coreografias 200812. Para saber mais, acessar: laboratoriodoprocesso formativo.com (e)

Terceira guia: afirmar a potência da materialidade dos corpos Numa reunião de docentes, o tema do desconhecimento dos alunos em relação aos seus corpos é recorrente. Alguns dizem da falta de experiências corporais e da necessidade em oferecermos oportunidades para que o aluno entre em contato com o seu corpo, sinta seus músculos, seus ossos, sua pele. Professores e estudantes, passamos, muitas vezes, tempo excessivo diante do computador, sem atentar ao que se passa em nosso corpo, que fica como que anestesiado. No dia seguinte, as costas doem, a nuca está rígida e a mente inundada de excitação20(f). Afirmar a materialidade do corpo é cada vez mais necessário num mundo onde saberes hegemônicos, como a tecnociência, apresentam o corpo como um obstáculo a ser ultrapassado na busca de um ideal ascético, artificial, virtual, imortal21. Segundo Gomes21, existem, hoje, estudos voltados para o poder de manipulação inerente às novas tecnologias de visualização e à tendência da imagem digital de separar o observador de sua corporeidade, compreendida como empecilho para uma expansão ilimitada no tempo e no espaço.

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(f) Registro de cena retirada do Caderno de Anotações sobre Reunião de docentes na Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista20.


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Na contramão dessa tendência, nossa proposta seria explorar as condições que atravessam a materialidade finita dos corpos e sua potência para produzir conexões, experimentar encontros, compor-se com o ambiente, conhecer e produzir mundos. Fabião22, em seu texto, Corpo cênico, Estado cênico, apresenta-nos aspectos sobre o corpo em suas diferentes potências. A autora define o corpo constituído de densidades cambiantes, sólido, pastoso, líquido, gasoso, elétrico e gelatinoso. Essas qualidades fazem com que estejamos permanentemente vibrando, uma vibração mínima, radicalmente permeável. Contra a ideia de corpos rígidos, autônomos e acabados, a autora fala de um “corpo-campo performático, dialógico, provisório” (p. 322). Contra a certeza das formas inteiras e fechadas, o corpo é visto como sistema relacional em estado de geração permanente, cuja condição denominada corpo-cênico acentua sua participação no mundo, amplificando a sua metamorfose pela intensa fricção entre corpos, entre corpo e mundo, entre mundos. Os corpos estão em constante autoprodução. A forma humana, herdeira da evolução, da embriogênese e da experiência, é o suporte desta autoprodução, “constituindo formas somáticas [... operadoras] de condições ambientais, físicas e afetivas”14 (p. 13). Favre14 ressalta a necessidade de se apreender o mundo como uma ecologia relacional, pautada pelos vínculos e pela afetividade. É necessário lembrar que o vínculo está relacionado à capacidade conectiva do sujeito e seu entorno. Ela se estende em várias direções, caminhos e modos, produzindo corpos que são expressões vivas de um contínuo desses processos. Para Deleuze23, “O certo é que crer não significa mais crer em outro mundo, nem num mundo transformado. É [...] crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo, e [...] atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem nomeadas as coisas” (p. 209).

Quarta guia: colocar-se à espreita Registro retirado de Caderno de Anotações sobre experiência com alunos de Terapia Ocupacional da Universidade de Sorocaba (Uniso), na constituição de um grupo de mulheres no Bairro dos Morros em Sorocaba24. (g)

Em seu Abecedário, Deleuze25 aproxima o escritor e o filósofo do animal. Diz ele: “se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser fundamentalmente à espreita [...]. O animal [...] observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranquilo. Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita”. (h)

Caminhar pelas ruas do Bairro dos Morros, em Sorocaba, olhar as casas, o mercado, conversar com as pessoas, observar, perscrutar um ambiente desconhecido, deixar-se impregnar por tudo aquilo que está acontecendo visível e invisível a olho nu. Criar estratégias de aproximação com o outro, de torná-lo presença viva em nós. Nossa presença ali mobilizava, fazia acontecer, nos corpos, sensações, ideias, contrações e retrações, pulsos dinâmicos e diversos24(g). Em termos metodológicos, clínica e práticas de pesquisa envolvem corpos que devem se colocar à espreita dos acontecimentos que emergem, realizar pousos no movimento incessante, ativar memórias no/do corpo, pensamentos, sensações25(h) – colocar-se à espreita de acontecimentos que abram o corpo para que possamos exercitar a arte dos encontros; fazer como os animais sabem, relaciona-se à construção de um estado de presença. Como organizar então um estado de presença? Para Favre26, as ações criam presença e constroem a forma de maneira conectiva. Isso sustenta a produção dos tecidos e das interações. São processos denominados por Keleman e Favre de co-corpar com/no acontecimento. Os corpos estão em rede e são atravessados por substâncias, acontecimentos e intensidades. O acontecimento dá-se por um encontro que desestabiliza um estado de coisas, desterritorializa uma organização subjetiva, uma corporeidade, uma teia de sentidos. Para acompanhá-lo, é preciso ir além do momento de desestabilização ou crise e poder criar novos corpos, ritmos, mundos à altura do acontecimento feito de simultaneidades. Muitas camadas estão implicadas: ecologias físicas, afetivas, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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sociais, antropológicas, culturais, históricas, tecnológicas, políticas, de poderes e valores… A incorporação do acontecimento dá-se num campo corpante (bodying-field)13,26, no qual os diversos corpos presentes ao acontecimento se encontram, afetam-se e põem-se em devir. Estar presente ao acontecimento, colocar-se à espreita envolve um trabalho para que se possam alcançar os limiares da própria percepção. Para Gil27, esse deslocamento da percepção implica uma atitude na qual nos colocamos não apenas em posição de ver ou observar, mas numa com-posição com aquilo para o qual nos dirigimos: participamos do espetáculo total da paisagem e relacionamo-nos ativamente com cada um de seus elementos. Olhar e perceber são pensados aqui como laços enlaçando-nos às coisas, por meio de uma percepção pequena, molecular, enraizada na corporeidade enquanto sensibilidade e motricidade, que envolve atos que, além de perceptivos, são expressivos. Ao acessarem estados e acontecimentos que ainda não podem ser nomeados, esses atos refletem-se numa linguagem não verbal, apta a lançar e captar forças, sinais ínfimos, quase invisíveis. Trata-se de uma linguagem das percepções sutis que procuram seu caminho para a expressão. Integrando-se ao ambiente, o olhar e as pequenas percepções atravessam o campo de perceptibilidade em direção às suas margens, captando as cintilações do invisível. Essas micropercepções estão em relação com o imperceptível, os movimentos da ordem do devir, puros afetos que se inscrevem nos limiares da percepção. Tornar a percepção molecular é o próprio princípio de composição: “É que a percepção não estará mais na relação entre um sujeito e um objeto, mas no movimento que serve de limite a essa relação”28 (p. 76).

Quinta guia: a invenção de práticas e dispositivos de produção de um corpo de cartógrafo Em sala de aula, as fotos eram passadas de mão em mão, percorriam uma roda que exalava silêncios, palavras, agitações e leves turbulências, que, às vezes, dava lugar a um turbilhão. Algumas pessoas não se continham e começavam a conversar, contavam histórias, comentavam as fotografias, mostravam, por meio de seu corpo, que a proposta causou um motim interno20(i). Permeando todas as guias, interessam-nos dispositivos que favoreçam a instauração de um corpo de cartógrafo. São necessárias práticas que abram o corpo ao campo dos afetos e ao plano das intensidades. Mas é preciso adicionar um elemento importante para essas práticas: prudência e cuidado para que a experimentação se faça no plano das intensidades sem, no entanto, alcançá-lo ou nele cair. Deleuze e Guattari29 dizem que “é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora”, pois “o pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado – mas precipitar os estratos numa queda suicida” (p. 23). Assim, sugerem-nos nos instalarmos numa configuração, num território existencial, num corpo em sua materialidade, e buscar aí pontos favoráveis para linhas de fuga possíveis, movimentos de desterritorialização que possam, a cada momento, reinventar o corpo. Mas se a construção de um corpo de cartógrafo tem por limite um plano de intensidade, o limite oposto faz-se numa estratificação extrema, na qual qualquer experiência de diferenciação fica impedida, pois, mesmo se o corpo estiver em encontro permanente com o mundo, esse mesmo corpo em comportamento cotidiano pode agir e relacionar-se de forma a despotencializar ou impedir a receptividade àquilo que o atravessa. 188

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Registro retirado de Caderno de Anotações sobre aula ministrada no Módulo de Atividades e Recursos terapêuticos do Curso de Terapia Ocupacional Unifesp, campus Baixada Santista20. (i)


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Cena retirada do Caderno de Anotações dos Seminários do Laboratório do Processo Formativo, coordenados pela terapeuta corporal Regina Favre32. (j)

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No modo de vida contemporâneo, a abertura do corpo ao mundo pode estar despotencializada, pois há toda uma maquinaria que constrange uma ação corporal mais potente. Esse constrangimento corpóreo, muscular e emocional gera “clichês” corpóreos e comportamentais. É preciso, então, perguntar: que forças estão presas e constrangidas? Como escapar aos comportamentos excessivamente mecanizados e conformados? Como enfrentar essas formas corpóreas pré-dadas, produzidas em outras situações e que já não nos servem mais? Como liberar esse campo corpo-espaço-outro para fins de produção de outras potências de vida? Como “desconstruir modos de funcionamentos dos corpos para que algo possa ser inventado, na contramão de certos automatismos que anestesiam os corpos e as vidas”?30 (p. 225). A ética está em selecionar aquilo a que convém abrir meu corpo a partir de um critério bem preciso: a composição possível entre a intensidade para a qual meu corpo se abre e o plano de consistência que é possível criar. “A prudência enquanto arte envolvida com as intensificações de uma vida” envolve “a procura de um lugar extensivo para situá-la”, isto é, “ligar os encontros intensivos à construção de um plano de consistência”31 (p. 30), criar linguagens, transformar o corpo, fazer tecidos novos, incorporar o vivido. Para essa empreitada, coloca-se a utilização dos mais variados dispositivos, que possam promover encontros plasmados por afetos e acontecimentos, na tentativa de criar corpos que possam sustentar as intensidades vividas e permitam a observação de si, a aproximação com o outro e a criação de mundos. É preciso, portanto, “levar a arte da prudência a envolver-se com regras ou procedimentos produtivamente favoráveis a uma experimentação curtida a cada instante pelo ficar à espreita de algo forte demais”31 (p. 29). Estou sentada ao lado dela. Nosso grupo já se reúne há quase dois anos e, enquanto estudamos os corpos em formatividade, vamos reconhecendo, em nós mesmos, os processos que formaram nosso corpo como ele se presentifica agora e aqui. Estamos experimentando uma proposta de exercício em torno de movimentos de contração e expansão. Ela reconhece, naquele gesto de contrair-se e fechar as mãos, um lugar em que o seu corpo esteve há muitos anos, quando foi presa nos porões da ditadura. Obviamente, é um lugar para o qual não quer voltar, mas, também, percebe que algo ficou estancado ali, naquele tempo, que agora ela quer fazer fluir. Enquanto fecha e contrai cada vez mais as mãos, começa a falar e contar com muitos detalhes o que viveu ali, sozinha naquela cela. Sua voz é monocórdica; seu relato, sem emoção. Estou ao seu lado e não posso me conter; começo a chorar copiosamente seu choro que não pode fluir. Choro muito, e sinto que, como Alice, começo a me afogar no lago de lágrimas que se forma em torno a mim. Ela continua e diz que é comum as pessoas chorarem quando conta sua história, mas ela nunca chorou. Então, a coordenadora do grupo pede que interrompa seu relato e comece muito lentamente a abrir os dedos das mãos, a essa altura tão contraídos que as unhas começam a se cravar na palma. Ela aceita o convite: com grande esforço, muito lentamente, começa a abrir as mãos. E não demora muito para que suas lágrimas, estancadas por mais de trinta anos, comecem a correr. As comportas foram abertas. Ela só pôde abrir seu corpo para terminar de viver aquele acontecimento porque estava num ambiente confiável, acompanhada e sustentada por uma rede de afetos. Veio até ali para cuidar de si e experimentar outro corpo e outra sensibilidade que pudesse se desdobrar de dentro desse corpo, construído numa situação de violência e opressão extremas. E eu? Vivi ali, em meu corpo, numa atualização da experiência de outro, de uma virtualidade que só existia em seu corpo, uma dor até então desconhecida e que minha imaginação nunca teria podido alcançar. Dois corpos corajosamente se abrindo para a experiência de turbulência arrasadora, para poderem se fazer outro32(j).

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Nos encontros, expressam-se e se produzem diferentes graus de abertura, diferentes graus de intensidade; turbulências acontecem, geram-se outros repertórios existenciais que se solidificam. Pequenos eventos podem reverberar em outros modos de funcionar, viver e apresentar-se frente ao outro, criando realidades. Fazer um corpo de cartógrafo implica um dobrar-se sobre si, e envolve a invenção de dispositivos que apontam para o cuidado de si: dobrar a linha. Se corpo e subjetividade são produzidos pelo poder, tomar para si os processos de subjetivação e de produção de corpos inscreve-se num movimento de resistência e luta contra os modos de assujeitamento33. Estas práticas ou tecnologias de si envolvem a construção de um corpo multidimensional de experiências, hereditariedade, cultura, trabalho sobre si e, simultaneamente, invenção de mundos. Cada corpo é um mundo e inventa seus próprios dispositivos, práticas de si.

Contornos finais Este texto busca afirmar o corpo como matéria viva do trabalho do cartógrafo, e desenvolve a ideia de que, para realizar uma pesquisa na perspectiva cartográfica, é preciso um corpo que mobilize algumas qualidades como: atenção, presença, disponibilidade e sensibilidade. Estas qualidades podem ser exercitadas, e as guias aqui apresentadas são norteadoras dessa pesquisa permanente do próprio corpo para que seja possível acessar essas dimensões. Não existem fórmulas prontas, apenas uma longa preparação. A ideia de pesquisa, neste caso, não está restrita apenas ao campo científico, mas refere-se à investigação de mundos presentes também nas práticas clínicas e nos processos de aprendizagem. O trabalho do cartógrafo é assim um trabalho de produção permanente de si, na experimentação de um corpo que, continuamente, se configura nos encontros com outros corpos. As guias indicam a pluralidade de atravessamentos que se fazem no trabalho e que deslizam por aspectos subjetivos e objetivos, físicos e psíquicos, materiais e imateriais. Em nenhum momento, apontamos a necessidade de “chegar lá”, num lugar ou forma idealizada, pois ele inexiste. E manter a ilusão de sua existência tende a impedir o encontro. Também não se trata de exigir “grandes performances”, mas um olhar refinado ao que é pequeno, ao mínimo, ao quase invisível que se engendra nos contatos. Por fim, podemos dizer que o encontro do cartógrafo com o mundo é criação permanente e delicada, sem garantias, “para se saber um pouco mais de si, abrir e ampliar repertórios e conectividades com mundo e para experimentar o que o corpo pode”12 (p. 229).

Colaboradores Flávia Liberman e Elizabeth Lima escreveram juntas o texto, de forma colaborativa e em diálogo constante.

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A cartografia tem sido discutida no Brasil como um método em pesquisa que pressupõe uma reversão metodológica na qual o caminhar na pesquisa antecede a definição de metas a serem alcançadas. Este texto busca contribuir para as discussões sobre a formação do cartógrafo, considerando que, para se realizar uma pesquisa na perspectiva cartográfica, é preciso um corpo que mobilize algumas qualidades, como: atenção, presença, disponibilidade, sensibilidade, entre outras. Ao aproximar nossa experiência teóricoprática do pensamento de autores ligados à filosofia da diferença e das ideias de Keleman e Favre sobre temáticas que envolvem o corpo, buscou-se sistematizar algumas guias para a construção de um corpo de cartógrafo, que pudessem servir de orientação na pesquisa, na prática profissional e nos processos de ensino-aprendizagem. Ao longo do texto, procuramos pensar a construção de dispositivos que promovam encontros plasmados por afetos e acontecimentos.

Palavras-chave: Corpo. Cartografia. Formação. A cartographer’s body Cartography has been discussed in Brazil as a research method that makes the assumption of methodological reversal, in which the research path is set prior to the goals that are to be attained. This text seeks to contribute to the discussions on the education for cartographers, considering that to conduct research from a cartographic perspective requires a body that mobilizes certain qualities such as attention, presence, availability and sensitivity, among others. By bringing our experience of theory and practice closer to the thinking of authors with links to the philosophy of difference and Keleman and Favre’s ideas on topics involving the body, it was sought to systematize some guides for constructing a body for cartographers, which could guide research, professional practice and the teaching-learning process. Over the course of this text, we have sought to consider the construction of devices that can promote meetings formed by affections and events.

Keywords: Body. Cartography. Education. Un cuerpo de cartógrafo La cartografía se ha discutido en Brasil como un método en investigación que presupone una reversión metodológica en la cual el caminar en la investigación antecede la definición de metas a alcanzar. Este texto busca contribuir para las discusiones sobre la formación del cartógrafo, considerando que para realizar una investigación en la perspectiva cartográfica es necesario un cuerpo que movilice algunas cualidades tales como atención, presencia, disponibilidad, sensibilidad y otras. Al aproximar nuestra experiencia teórico-práctica del peensamiento de autores vinculados a la filosofía de la diferencia y de las ideas de Keleman y Favre sobre temáticas que envuelven el cuerpo, se buscó la sistematiación de algunas guías para la construcción de un cuerpo de cartógrafo que pudieran servir de orientación en la investigación, en la práctica profesional y en los procesos de enseñanzaaprendizaje. Durante el texto, buscamos pensar en la construcción de dispositivos que puedan promover encuentros plasmados por afectos y acontecimientos

Palabras clave: Cuerpo. Cartografía. Formación.

Recebido em 17/06/14. Aprovado em 22/08/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0604

livros

Ferreira SL, Cordeiro RC, organizadores. Qualidade de vida e cuidado às pessoas com doença falciforme. Salvador: EDUFBA; 2013.

Reni Aparecida Barsaglini(a) Késia Marisla da Paz(b) Patricia Lima Lemos(c)

A publicação da coletânea faz jus ao que defendem os autores em dar visibilidade às questões relacionadas ao cotidiano das pessoas mais afetadas pela doença falciforme, seja pela experiência direta, o adoecido, ou indireta, outros próximos e familiares, chamando a atenção para o fato de que os sofrimentos decorrentes da doença podem ser acentuados ou amenizados por elementos contextuais atuais e históricos. Enfocam o cuidado à pessoa (em contraste à doença), ressaltando o papel do apoio social formal/institucional, trazendo, como exemplo, a atuação da Associação Baiana das Pessoas com Doenças Falciformes – ABADFAL. A publicação de coletâneas sobre adoecimentos crônicos é escassa e, mais ainda, sobre doença falciforme, o que atesta o valor da presente publicação, assim como as contribuições que, guardadas as especificidades, transcendem a enfermidade em questão, o segmento enfocado e o contexto do estudo. A obra é fruto da atuação do Grupo de Estudos sobre a Saúde da Mulher (GEM), da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia – UFBA que, desde 2006, vem desenvolvendo ações e projetos de pesquisa que enfocam aspectos das doenças falciformes; daí o enfoque de gênero

presente nos textos, porém sem descurar de outros constructos sociais que influenciam o processo saúde e doença. Ao longo de nove artigos, as análises consideram o cotidiano de mulheres, mães de adoecidos, gestantes, adolescentes que vivem com doença falciforme, sempre perpassado pelas questões de gênero, classe, raça/cor, abordando sintomas, significados e estratégias de manejo da doença, que inclui a relação com os serviços oficiais e profissionais de saúde, com importante intermediação da ABADFAL para a elaboração de novas e positivas normas de vida. Defendem a importância do apoio aos adoecidos e familiares, não restrito às decorrências da doença, mas à pessoa nas suas demais interações, remetendo ao princípio da integralidade da atenção. Ao mostrarem a relação de parte do sofrimento dessas pessoas com a condição histórica do grupo mais atingido (negros, empobrecidos), corroboram o que se notou em outros estudos sobre experiência de adoecimentos crônicos em que os impactos não advêm apenas da doença em si, mas se exacerbam devido às desigualdades sociais e aos contextos nos quais se desenrolam1. Adoecimentos crônicos, por demandarem arranjos cotidianos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso. Av. Fernando Correa da Costa, s/n. Cuiabá, MT, Brasil. 78060900. barsaglinireni@ gmail.com (b) Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual de Mato Grosso. Cáceres, MT, Brasil. Bolsista CNPq. enfermagem-cac@ unemat.br (c) Mestranda em Saúde Coletiva, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, MT, Brasil. Bolsista Capes. patricialimaenf@ gmail.com

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para alcançar equilíbrios na convivência com a enfermidade, podem se configurar como experiências fragilizadoras e que levam a sofrimentos, podendo estes, também, se mostrar crônicos, ainda que com variações. No entanto, o sofrimento é complexo e ultrapassa o indivíduo que sofre, sendo necessário não diluir ou despolitizar um problema que tem suas origens e repercussões na relação indivíduo-sociedade2, como os autores bem fazem. Neste sentido, com base nos dados apresentados ao longo da obra, também merece apontar que a atenção às pessoas com doença falciforme (ainda que não se trate de enfermidade transmissível, infecciosa ou parasitária) se aproxima da situação das doenças negligenciadas, assumidas como aquelas com maior prevalência em populações de baixa renda e expostas às iniquidades, e que, embora possam existir financiamentos públicos específicos para indução das pesquisas, o conhecimento produzido não tem se revertido, proporcionalmente, em avanços terapêuticos, justificado, em parte, pelo baixo interesse das indústrias farmacêuticas3,4. Lembremos que, na sua etimologia, negligenciada remete ao “não escolhido” com interpretação de “pouca atenção”, “descaso”3; e, assim, a invisibilidade apontada pelos autores parece se aproximar destes sentidos. Por fim, mais adequado é entender que não seria a doença negligenciada, mas pessoas com pertencimentos àqueles segmentos histórica e socialmente fragilizados, politicamente enfraquecidos e culturalmente discriminados. Assim é que (fazendo coro com os autores) é preciso ultrapassar a doença para contemplar a pessoa e o contexto de desenvolvimento político, econômico e social que afeta sua vida. O primeiro artigo, de autoria de Ferreira, Carvalho e Nascimento, trata de aspectos conceituais da “qualidade de vida” de pessoas com doença falciforme. Trazem a definição e as principais características dos sintomas e das complicações desta patologia, além das tendências teóricas sobre as quais se apoiam o conceito de qualidade de vida, bem como os instrumentos genéricos (aplicados na população em geral) e específicos (em determinada população ou com uma patologia) utilizados nos estudos para medi-la. Sobre o conceito de qualidade de vida, destacam que o entendimento 196

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individual é perpassado pela construção histórica, de modo que os parâmetros variam no espaço e no tempo e no mesmo tempo e espaço, sendo interposto pelo conceito de saúde. A diversidade das manifestações clínicas da doença falciforme entre as pessoas acometidas seria explicada por fatores internos e externos, ou seja, hereditários e adquiridos, mas, também, pelas variações climáticas, sociais, econômicas e de cuidados médicos. A avaliação da qualidade de vida de pessoas com a doença falciforme revelou que se encontram em pior situação do que a população sem a doença, mas observam que a detecção precoce das complicações crônicas e a prestação de serviços de cuidados à saúde interferem positivamente na qualidade de vida, além de reduzirem o tempo de hospitalização. Estudo comparativo, entre população adoecida do meio urbano e rural na Jamaica, mostrou que a do meio rural desfruta de melhor qualidade de vida em todas as suas dimensões, o que foi atribuído aos diferenciais nos níveis de apoio social nos dois contextos. Concluem apontando que, embora não haja, ainda, instrumento específico para avaliar a qualidade de vida de pessoas com doença falciforme, a sua modalidade genérica atende à investigação, não dispensando a necessidade de incremento neste tipo de pesquisa. Cordeiro, Ferreira e Silva assinam o segundo artigo, no qual analisam a experiência do adoecer por mulheres negras com anemia falciforme, com diagnóstico na adolescência ou na vida adulta. Para a análise, partem das explicações sobre: o conceito, o início da doença, as causas e formas de convívio com a enfermidade, e as relações com os serviços de saúde. Além de explanarem sobre as implicações da anemia falciforme na vida dessas mulheres, chamam a atenção para o contexto no qual se inserem, gerador, muitas vezes, da exclusão e restrição ao acesso à saúde. Concluem que a abordagem da experiência e a sua forma de expressão cultural possibilitam ultrapassar os limites do modelo biomédico, contribuindo para a edificação de um cuidado em saúde mais equânime e coerente com o contexto e vida deste segmento. O terceiro artigo, escrito por Xavier, Ferreira e Santos, versa sobre as experiências de mulheres adultas com diagnóstico tardio de anemia falciforme e as principais decorrências em suas


Lessa, Quirino e Oliveira, no sexto artigo, analisam os cuidados maternos às crianças com anemia falciforme em uma cidade baiana. O estudo destaca a importância do diagnóstico precoce e acompanhamento da criança em serviço de saúde de referência, o que implica capacitar pais e/ou responsáveis para garantir tais ações. Apontam a necessidade de profissionais de saúde preparados quanto às questões relacionadas à anemia falciforme, como: o conhecimento das complicações, sinais/ sintomas, tratamento e condutas, com o intuito de favorecer a autonomia dos responsáveis durante o cuidado. Apesar de as mães realizarem inúmeros cuidados necessários à condição de seus filhos, algumas dificuldades, identificadas pelas autoras, são preocupantes, como, por exemplo: deslocamento até o centro de referência, vacinação inadequada, desconhecimento de alguns sinais e sintomas da doença, falta de termômetro. Observa-se que os profissionais de saúde devem estar atentos à especificidade deste público a fim de favorecerem o conhecimento e atuação dos responsáveis para uma assistência integral e humanizada à criança. O sétimo artigo, assinado pelas autoras Lacerda, Almeida e Santos, aborda a vivência de cinco mulheres com úlceras em membros inferiores, diagnosticadas com anemia falciforme há cerca de cinco anos. Um importante e curioso dado é que, pela literatura, os mais acometidos por úlceras em membros inferiores são homens, mas difere no presente estudo. Em meio às inúmeras complicações, as úlceras potencializam o impacto da doença falciforme em suas vidas cotidianas, gerando limitações nas atividades de lazer e laborais, cuidados dos filhos, convívio social. Ainda sobressai o medo de reações preconceituosas, de episódios de dor e impotência diante das limitações vividas. Por serem mulheres e considerando os padrões de beleza estabelecidos pela sociedade, chama a atenção a possibilidade de problemas psicológicos, devido à autoimagem alterada, podendo resultar em baixa autoestima, acrescida do preconceito racial. Em suma, o estudo propõe medidas públicas e profissionais qualificados para darem suporte e orientarem sobre o curso da doença, suas complicações e devidos cuidados para a autonomia destas mulheres, minimizando impactos e favorecendo melhoras na qualidade de vida. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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vidas, incluindo-se as categorias gênero e raça para melhor compreendê-las. Descrevem a problemática da anemia falciforme que permeia o dia a dia dessas mulheres, suas implicações nos aspectos social, familiar e físico, ressaltando-a enquanto uma doença crônica, negligenciada, com diagnóstico tardio ainda nos dias atuais. Por fim, estimulam a maior reflexão dos profissionais na estruturação dos serviços de saúde voltados a este grupo específico, defendendo a integralidade da assistência, oferecida por equipe multiprofissional e com estímulo ao autocuidado. No quarto artigo, Souza, Ferreira e Ribeiro avaliam o programa municipal de atenção às pessoas com doença falciforme de Salvador/ BA, na perspectiva da gestão em saúde, com ênfase na saúde das mulheres. O Plano Municipal de Saúde é descrito, bem como as estratégias, parcerias e áreas prioritárias adotadas para a implantação e implementação daquele Programa. Quanto ao sistema de informação do município sobre os adoecidos por anemia falciforme, enfatizam a necessidade de se sistematizarem as informações e articularem as ações da Vigilância da Saúde na implementação do Programa. Mostram não haver avanços efetivos no Programa direcionado à saúde das mulheres, porque restringe a atenção às gestantes com doença falciforme, não efetivando a integralidade de assistência ao grupo. Observam, ainda, a necessidade de que o Programa amplie suas ações contemplando não só a saúde reprodutiva das mulheres, mas, também, os recortes de gênero e raça formalmente inseridos em seus componentes. O cotidiano de seis adolescentes com anemia falciforme, abordado a partir de entrevistas semiestruturadas, é analisado no quinto artigo de Batista, Morais e Ferreira. Valendo-se da sociologia compreensiva de Michel Mafessoli, enfocam a importância do diagnóstico precoce e acompanhamento pelos serviços de referência, sobretudo nesta fase de vida caracterizada por mudanças contínuas. O convívio dos adolescentes com a doença é marcado por: crises de dores, uso de analgésicos, atraso no desempenho escolar, dentre outras, que, embora tenham causado implicações, não restringiram viver o adolescer. Por fim, mostram ser imperativo compreender o cotidiano destes adolescentes para individualizar a assistência, favorecendo a autonomia, o autocuidado e fazendo o tratamento visando melhor qualidade de vida.

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Os dois últimos artigos destacam, além da experiência, a relevância dos movimentos organizados na luta dos direitos à saúde, entre eles: os das pessoas com doença falciforme, com destaque à Associação Baiana das Pessoas com Doenças Falciformes – ABADFAL. No penúltimo artigo, Lira e Queiroz traçam um histórico dos aparatos institucionais e legais como expressão de conquistas de lutas organizadas, realçando o protagonismo de adoecidos e familiares na implantação de políticas públicas dirigidas às pessoas com doenças falciformes e seus familiares, e focalizam tais movimentos na Bahia apontando, como marco, a constituição da ABADFAL, em 2000. Entendem que as lutas são mais profícuas se empreendidas coletivamente, em torno de uma entidade, e não individualmente, e que o foco do cuidado deve ser a “pessoa”, e não a “doença”, requerendo uma atenção anterior (e além do) ao serviço. Dessa forma, reivindica-se o fazer a sua história, participando de forma ampla do ciclo de uma política, desde a sua formulação, a destinação dos recursos e planejamento, até a sua implementação e avaliação; exercendo-se efetivo e não fragmentado controle social. Além dessa relevância política estratégica, os autores ressaltam o papel da ABADFAL de apoio material, afetivo, emocional para as pessoas com doença falciforme, considerando a “maior prevalência entre negros e seus descendentes, grupo historicamente não só discriminado, mas atingido diretamente pelos efeitos do racismo e do preconceito e vítima de exclusões” (p. 139). Destarte, as pessoas com doença falciforme seriam duplamente afetadas: por uma doença crônica e por ser negra, o que justifica a recomendação de que a atenção não se restrinja ao atendimento nos serviços de saúde, mas seja integral. Finalizam, com o direcionamento da ABADFAL em reformular conceitos, apontando três deles que orientam sua atuação: “conhecer” tudo sobre a doença para fundamentar as reivindicações; “conviver” referindo-se a como organizar minha vida e/ou do(a) meu(minha) filho(a), para conviver com a doença numa perspectiva positiva de vida, e não reduzida a quando ocorrerá a próxima crise ou até quando viverá; “viver” remetendo à aprendizagem no coletivo, ao empoderamento para ser pessoa, para além da doença. O artigo final, de Ana Luisa A. Dias, complementa o anterior ressaltando a importância da ABADFAL na trajetória dos associados e 198

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seus familiares. Inicia apontando o perfil dos associados sendo mulheres, com Ensino Médio incompleto, e com renda média familiar de um salário-mínimo. A baixa escolaridade e renda seriam vulnerabilizantes, da mesma forma que o papel, historicamente construído, da mulher como cuidadora, que lhe rende sobrecarga no cuidado, sendo comum a abdicação de outras possibilidades de sua vida. A influência negativa da raça/cor no cuidado e na assistência é ilustrada com trechos de relatos de mulheres mostrando, então, as intersecções entre raça, classe, gênero e doença falciforme presentes em práticas discriminatórias, enfatizando que a análise desta enfermidade não deve se descolar da dimensão racial. Destaca, ainda, que considerar a doença falciforme como questão de saúde da População Negra (além da prevalência histórica neste segmento) consiste de “ato político demarcando o racismo institucional demonstrado pela invisibilidade histórica da patologia no âmbito das políticas públicas, fato não condizente com a alta prevalência desta doença na população negra” (p. 151). A ABADFAL participa do cotidiano vivido por adoecidos e familiares, como no momento do diagnóstico e diante dos desdobramentos simbólicos da herança genética que gera sentimento de culpa, discriminação pelo cônjuge e por si próprio, atingindo mais a mãe. Há uma comunicação interna, proporcionada pela Associação, quanto ao conhecimento da doença, visando promover: a autonomia, adoção de novas estratégias de autocuidado e novas opções de viver. Mas, não menos importante, é a preocupação com a visibilidade da doença para a sociedade, materializada na ocupação de diversos espaços para divulgação pertinente, como produção e distribuição de material (folder) e palestras. Esclarecimentos podem amenizar, por exemplo, o sofrimento derivado do preconceito, no caso da icterícia comum nos adoecidos, que não significa, necessariamente, complicação, mas pode provocar medo e afastamentos de outros. Por fim, a luta da ABADFAL por políticas públicas, apoia-se, centralmente, no direito constitucional da saúde, que deve ser assegurado e pleno no Sistema Único de Saúde, e, para tanto, busca articulações com gestores, candidatos políticos, manifestações públicas (caminhada como a “A amor está no sangue”). O artigo encerra apontando a ABADFAL como espaço: de apoio recíproco, troca de experiências e esperanças


de uma mesma identidade pautada por critérios biológicos, mas, também, culturais, que mobiliza as pessoas para a auto-organização social e política; aproximando-se, de certo modo, da discussão de Ortega5 sobre o intuito de estas pessoas se reunirem para trocarem experiências sobre a doença que compartilham, mas, também, para se envolverem em ativismos na luta por direitos. Nota-se a preocupação, ao longo das discussões empreendidas, em não reduzir o cuidado, às pessoas com doença falciforme, a uma das suas dimensões – a biológica – mas apresentando a experiência pessoal ou institucional sempre transversalizada e intermediada pelos processos social, político, cultural e econômico, que, combinados, engendram ou acentuam o sofrimento em sujeitos concretos, contextualizados. Enfim, a obra, ao proporcionar maior visibilidade às necessidades do grupo social em questão e às implicações oriundas da anemia falciforme, chama a atenção para que as políticas de saúde sejam culturalmente mais sensíveis, resolutivas e equânimes, diante das desigualdades sociais que se refletem na totalidade da vida deste segmento historicamente fragilizado.

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(como a mãe que conheceu uma pessoa adulta com a doença, contrariando o que era comum ouvir sobre a brevidade da vida dos adoecidos), mas, também, de acolhimento, às vezes, não vivenciado no espaço familiar; apoio emocional e material (associados que disponibilizam suas casas); visitas durante as internações. Finaliza apontando que a ABADFAL apresenta, de certa forma, ação terapêutica e transformadora para experiência de pessoas adoecidas e familiares. Pode-se dizer que a Associação se destaca como importante fonte de apoio social e exercício político na construção, manutenção, (re) afirmação pela legitimidade da sua participação nas decisões sobre o tema. Como os autores mostram, desde a sua origem, a Associação conta com o envolvimento de pessoas com doença falciforme, pais, familiares e profissionais de saúde, que reivindicam direitos, cuidando de não desresponsabilizar o que compete à esfera pública prover, e assumindo funções de apoio material e imaterial, mas, por vezes, diante de falhas e ausências institucionais. Vale comentar, ainda, que a atuação da ABADFAL, apresentada nos artigos, remete a uma sociabilidade motivada pelo compartilhamento

Referências 1. Barsaglini RA. Adoecimentos crônicos, condições crônicas, sofrimentos e fragilidades sociais: algumas reflexões. In: Canesqui AM, organizadora. Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 70-103. 2. Kleinman A, Kleinman J. The appeal of experience: the dismay of images: cultural appropriations of suffering in our times. In: Kleinman A, Das V, Lock M, organizadores. Social suffering. Berkeley: University of California Press; 1997. p. 1-24. 3. Souza W. Doenças negligenciadas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências; 2010. (Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento nacional. Estudos estratégicos) 4. Morel CM. Inovação em saúde e doenças negligenciadas. Cad Saude Publica. 2006; 22(8):1522-3. 5. Ortega F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Cienc Saude Colet. 2009; 14(1):67-77.

Recebido em 17/08/14. Aprovado em 15/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0511

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Promoção da gestão do regime terapêutico em pacientes com Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC): um percurso de investigação-ação Promoting self-care management in patients with Chronic Obstructive Pulmonary Disease (COPD): a path of action research Manejo del régimen terapéutico en pacientes con Enfermedad Pulmonar Obstructiva Crónica (EPOC): un curso de investigación acción

A DPOC é uma doença crónica que influencia negativamente o nível de energia disponível para o autocuidado. Os pacientes portadores de DPOC, para controlarem a progressão da doença, necessitam de desenvolver competências para gerir o regime terapêutico (ex.: autocontrolar a dispneia; executar inaloterapia; identificar as exacerbações da doença). A competência dos pacientes para gerirem o regime terapêutico pode influenciar: a condição de saúde, a autonomia no autocuidado e a qualidade de vida. Com este estudo, pretendíamos contribuir para a melhoria contínua da qualidade dos cuidados, por meio do desenvolvimento de uma abordagem terapêutica progressivamente mais sistematizada, tomando por foco a promoção da gestão do regime terapêutico, em pacientes com DPOC. Utilizamos um paradigma de investigação construtivista e uma metodologia de investigaçãoação (IA) participativa. Para a recolha de dados, utilizamos, simultaneamente, estratégias qualitativas e quantitativas, recorremos à análise comparativa e iterativa dos dados. O estudo decorreu num serviço de internamento e na consulta externa de uma instituição hospitalar portuguesa, e contou com a participação de 52 enfermeiros. Utilizamos estratégias promotoras da participação e do comprometimento interno dos enfermeiros para viabilizar a mudança. O ciclo de IA empreendido gerou mudanças no modelo de cuidados em uso, que evoluiu de uma lógica de gestão de sinais e sintomas da doença, para uma visão, progressivamente, mais

centrada na gestão do regime terapêutico. Para isso, foram construídas e implementadas linhas de orientação para a ação dos enfermeiros, que melhoraram a continuidade de cuidados e a monitorização dos resultados. Na organização dos cuidados, a mudança permitiu otimizar a partilha de informação, tendo por horizonte a promoção da continuidade dos cuidados. A mudança implementada permitiu a reorganização da consulta de enfermagem, garantindo uma maior acessibilidade dos pacientes aos cuidados de enfermagem. Na documentação dos cuidados de enfermagem, assistimos a um aumento significativo da documentação de dados relativos ao autocuidado – gestão do regime terapêutico. Uma vez estabilizada a mudança, foi-nos possível verificar uma melhoria na continuidade dos cuidados e um aumento da documentação de informação válida para a monitorização do impacte da ação terapêutica de enfermagem sobre a condição de saúde dos pacientes. Os resultados permitem verificar que os pacientes com níveis de consciencialização mais adequados são aqueles que apresentam melhores resultados em termos de ganhos em conhecimentos e capacidades para gerir o regime terapêutico. Este estudo revela que a dinamização dos processos organizacionais e logísticos inerentes à mudança, a agregação da intenção e objetivos de todos os envolvidos, e o desenvolvimento/ disponibilização de recursos de suporte à decisão, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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são fatores-chave na mudança. A disponibilização e a estabilidade dos recursos são funções-chave das organizações para viabilizar a mudança. O envolvimento e a participação dos afetados na conceção, implementação e avaliação da mudança, por meio da promoção de consensos e da intercolaboração, são aspetos centrais no desenvolvimento de uma cultura propícia à melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem e à investigação. A sistematização da ação terapêutica implementada foi um contributo relevante para a melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem a pacientes com DPOC. José Miguel Padilha Tese (Doutorado), 2014 Programa de Doutoramento em Enfermagem, Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Ciências da Saúde do Porto, Portugal miguelpadilha@esenf.pt

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Palavras-chave: Terapêutica. Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica. Autocuidado. Investigação-ação. Keywords: Therapeutics. Chronic Obstructive Pulmonary Disease. Selfcare. Action-research. Palabras clave: Terapéutica. Enfermedad Pulmonar Obstructiva Crônica. Autocuidado. Investigación acción.

Texto na íntegra disponível em: http://hdl.handle.net/10400.14/14958

Recebido em 07/07/14. Aprovado em 27/08/14.


DOI: 10.1590/1807-57622014.0541

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Participação, integração e sustentabilidade no controle da dengue: um olhar da ecossaúde Participation, integration and sustainability in control of dengue: a look ecohealth Participación, integración y sostenibilidad en el control de dengue: el enfoque ecosalud

As diretrizes nacionais para o controle da Dengue, vigentes há 12 anos, seguem uma lógica de planejamento verticalizado, com práticas de controle químico predominante e discreta participação social. Entretanto, a reincidência da doença no país é preocupante, exigindo novas formas de agir no controle à proliferação do seu vetor transmissor, Aedes aegypti. A partir dos anos setenta, aflorou, nas Américas, a discussão sobre o uso da abordagem Ecossaúde no cenário das doenças transmitidas por vetores, reconhecendo-se o seu potencial para equilibrar a relação saúde-ambiente. Esta proposta de intervenção no controle e prevenção da dengue foi concretizada em dez quarteirões do município de Fortaleza, Ceará, Brasil, após o desenvolvimento do “Estudo Multicêntrico Ecobiossocial sobre Dengue e Doença de Chagas na América Latina e no Caribe”, financiado por UNICEF/IDRC & UNDP/World Bank/WHO Special Programme for Research & Training in Tropical Diseases (TDR) nos anos de 2010-2013. O presente estudo se propôs a analisar estratégias de controle da dengue baseadas em práticas participativas, integradas e sustentáveis, subsidiadas pelos princípios da abordagem Ecossaúde. Trata-se de estudo qualitativo, realizado em cinco agregados do município de Fortaleza, situados em bairros geograficamente distintos e heterogêneos quanto aos aspectos sociais, ecológicos e assistenciais. Adotaram-se duas técnicas de coleta de dados: 1) Grupo focal com seis agentes de controle de

endemias envolvidos no desenvolvimento do modelo, realizado em maio de 2013; 2) Análise documental de 67 diários de campo produzidos pelos pesquisadores e compilados por cinco cientistas sociais, no período de junho de 2012 a abril de 2013. Analisaram-se as informações coletadas, segundo os temas: Tema 1: A realidade observada: da reflexão do problema à ação; Tema 2: Uma releitura das ações de controle da dengue na ótica dos princípios da abordagem Ecossaúde; Tema 3: Aspectos que assemelham e diferenciam o Programa Nacional de Controle da Dengue do modelo de práticas integradas, participativas e sustentáveis subsidiado na abordagem Ecossaúde: uma análise crítica e reflexiva. A intervenção apontou caminhos já conhecidos pelos serviços públicos de saúde: o Zoneamento, ferramenta de organização e planejamento, que há mais de 14 anos não era adotado pela Secretaria de Saúde do Município de Fortaleza, apontou transformações nas relações, construção e fortalecimentos de laços de confiança e valorização do trabalho dos agentes de endemias; o Diálogo ampliou a compreensão da realidade por parte de todos os atores sociais envolvidos no estudo, propiciando a partilha de experiências, saberes, sentimentos e desejos. O estudo demonstrou que os princípios do enfoque Ecossaúde, entre seus muitos desdobramentos, despertam o interesse pelas ações sustentáveis no controle e na prevenção da dengue. Ao possibilitar o envolvimento de diferentes atores sociais no cuidado com a saúde humana e ambiental, repercute na quebra da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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cadeia de proliferação do Aedes aegypti. Nada novo foi criado, apenas foi proposto reler, reconstruir e repensar as estratégias tradicionais, a partir de um olhar diferenciado. Ana Carolina Rocha Peixoto Tese (Doutorado), 2014 Doutorado em Saúde Coletiva, Universidade Estadual do Ceará peixotoluz@gmail.com

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Palavras-chave: Dengue. Abordagem Ecossaúde. Saúde Ambiental. Keywords: Dengue. Ecohealth approach. Environmental health. Palabras clave: Dengue. Enfoque de Ecosalud. Salud Ambiental.

Recebido em 29/07/14. Aprovado em 03/09/14.


DOI: 10.1590/1807-57622014.0702

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Corpo, saúde e o envelhecimento do professor de Educação Física Body, health and the ageing of the physical education teacher Cuerpo, salud y envejecimiento en el profesor en Educación Física

A partir de referenciais teórico-metodológicos das Ciências Humanas e Sociais, a dissertação objetivou investigar as eventuais relações entre o envelhecimento do professor de Educação Física e as suas concepções de corpo e de saúde na perspectiva de como podem nortear (ou orientar) a sua prática profissional e os possíveis cuidados de si. A partir da abordagem qualitativa, foram utilizadas, como instrumento de coleta de dados, entrevistas semiestruturadas realizadas com 32 professores graduados em Educação Física atuantes em diferentes âmbitos de trabalho, que possuíam entre 15 a 25 anos de carreira. Foram 19 homens e 13 mulheres na faixa etária entre quarenta e sessenta anos, residentes na cidade do Rio de Janeiro. A análise dos dados foi feita com base na análise de conteúdo. Os achados indicaram que, na dimensão profissional, ao longo do tempo, a prática docente em academia de ginástica deixou de estar voltada exclusivamente para a estética corporal, e começou a ser focada para diversas noções de saúde e de qualidade de vida. No âmbito escolar, o aspecto social se sobrepôs à discussão sobre saúde, pela mudança do perfil do aluno ao longo dos anos. Já na dimensão pessoal, a funcionalidade do corpo, a estabilidade financeira, o fato de não ter doenças e de se tornar senil foram os aspectos imbricados com a saúde que caracterizaram as preocupações do professor ao envelhecer. Os cuidados que o professor adota para um “envelhecer saudável” se restringiram, primordialmente, à realização de práticas corporais e à adoção de uma “alimentação equilibrada”.

Apreender os significados atribuídos ao corpo e à saúde, pelo professor de Educação Física, na sua dimensão laboral e pessoal ao longo do tempo indica que tal profissional pode compreender de forma diversificada como atuar com os seus alunos e, também, com os seus próprios cuidados de si ao envelhecer. Mais do que pensar especificamente no professor de Educação Física, o presente trabalho pode colaborar para vislumbrar como outros profissionais de saúde e educadores constroem suas lógicas referentes ao corpo e à saúde em face do outro ou de si, ao longo do tempo. Portanto, é imperioso tratar o marcador social do envelhecimento de modo menos universal, pois cada grupo social e profissional possui determinadas experiências e crenças acerca da saúde e do corpo, com implicações eventualmente peculiares para o trabalho ou carreira. Alan Camargo Silva Dissertação (Mestrado), 2011 Escola de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro alan10@zipmail.com.br

Palavras-chave: Corpo. Envelhecimento. Docentes. Educação Física. Keywords: Body. Aging. Faculty. Physical Education. Palabras clave: Cuerpo. Envejecimiento. Docentes. Educación Física.

Recebido em 05/09/14. Aprovado em 22/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0933

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Uma contribuição à ciência pós-normal: aplicações e desafios da ampliação da comunidade de pares em contextos socioambientais e de saúde A contribution to post-normal science: applications and challenges for the extended peer community in socio-environmental and health contexts Una contribución a la ciencia post-normal: las aplicaciones y los retos de la ampliación de la comunidad de pares en los contextos sociales, ambientales de la salud

Questões socioambientais de elevada influência na saúde humana vêm se correspondendo intensamente com as transições e dilemas contemporâneos, inclusive no que diz respeito à ciência clássica, por sua forma de respaldar as decisões políticas. Esse contexto vem demandando a participação dos sujeitos dos riscos na produção e controle de qualidade de saberes, assim como nos processos de governança mediante a crescente escala de incertezas e disputas em jogo. Tendo como ponto de partida uma experiência em pesquisa participativa em terra indígena na Amazônia brasileira, esta tese propõe uma crítica avaliação de diferentes aspectos de projetos de pesquisa e intervenção com foco em contextos socioambientais e de saúde. Associando-se com os pressupostos da ciência pós-normal, faz-se uma classificação de artigos selecionados em revisão sistemática sobre o tema, categorizando aspectos de aplicação de instrumentos participativos, escala de abordagem e funcionalidade das experiências descritas. Dentre cento e setenta artigos selecionados, apenas dez representaram o mais elevado grau de participação dialógica por meio da combinação cíclica de instrumentos e foco em fenômenos emergentes. Os demais desempenharam condições bastante exitosas de participação, porém, não representaram uma perspectiva de sustentabilidade, pois não dialogaram com prospectiva de cenários futuros e/ ou não proveram meios de conexão por dinâmicas globais-locais, indutoras da constante reprodução dos riscos. Por meio do panorama possibilitado 206

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pela revisão bibliográfica, foi possível identificar que um novo paradigma das relações ciência, sociedade e política está apenas se iniciando. Leandro Luiz Giatti Tese (Livre-docência), 2013 Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo lgiatti@usp.br

Palavras-chave: Ciência pós-normal. Comunidade ampliada de pares. Pesquisa participativa. Saúde ambiental. Saúde pública. Keywords: Post-normal science. Extended peer community. Community-based participatory research. Environmental health. Public health. Palabras clave: Ciencia post-normal. Comunidad ampliada de pares. Investigación participativa. Salud ambiental. Salud pública.

Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/ livredocencia/6/tde-28042014-161433/pt-br.php

Recebido em 29/09/14. Aprovado em 19/10/14.


DOI: 10.1590/1807-57622014.0078

notas breves

A rede de cuidados do Sistema Único de Saúde à saúde das pessoas com deficiência The Brazilian Health System integrated health service network for people with disabilities La rede integrada de servicios de salud del Sistema Brasileño de Salud para personas com discapacidads Mariana Fernandes Campos(a) Luiz Augusto de Paula Souza(b) Vera Lúcia Ferreira Mendes(c)

A saúde da pessoa com deficiência foi uma agenda preterida no Sistema Único de Saúde (SUS). Não há exagero nessa afirmação, pois, geralmente, as iniciativas nesse campo eram pontuais, muitas vezes parcelares, e sem nexos com os princípios de integralidade, equidade, universalidade e acesso qualificado e universal à saúde. Entre outros exemplos, serviços isolados e portarias, como as de Saúde Auditiva (Portaria 587/SAS/MS, de 7 de outubro de 2004), Assistência à Pessoa com Deficiência Física (Portaria nº 818/GM/MS, de 5 de junho de 2001) e Assistência à Pessoa com Deficiência Visual (Portaria nº 3.128/GM/MS, de 24 de dezembro de 2008), não lograram uma articulação consistente com os pontos e níveis de atenção à saúde do SUS; o caráter fragmentário e a pouca eficácia desse tipo de medida, em termos de equacionamento das complexas problemáticas de saúde das pessoas com deficiência, corroboram, para dizer o mínimo, o caráter lateral ou secundário que a saúde da pessoa com deficiência ocupou no SUS até recentemente. Diante da insuficiência da ação do Estado brasileiro, e antes mesmo da existência do SUS, a sociedade civil, ao menos em parte, assumiu os cuidados em saúde (também de educação e assistência social) da população com deficiência, por meio de: movimentos sociais de deficientes; associações de amigos e parentes; e, também, pela ação de entidades filantrópicas, religiosas e/ou de mercado. Ao longo de décadas, algumas dessas iniciativas constituíram qualidade e se tornaram referências na assistência à saúde de determinadas deficiências; outras tantas convivem com visões assistencialistas, dificuldades técnicas e problemas de financiamento. Em todo caso e apesar da importância histórica das iniciativas da sociedade civil, o Brasil acabou produzindo uma miríade de abordagens dispersas, frequentemente subfinanciadas e sem um sistema de regulação minimamente adequado, o que impede, por exemplo, a identificação de boas práticas e o estabelecimento de parâmetros epidemiológicos e técnico-científicos que orientem, articulem e gerem maior consistência aos cuidados à saúde dessa população. No entanto, também é fato que, nos últimos anos, com o avanço dos movimentos sociais das pessoas com deficiência, o desenvolvimento internacional

(a) Mestranda, Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Rua Capote Valente, 1394, Pinheiros. São Paulo, SP, Brasil. 05409-003. marianafcampos@ gmail.com (b) Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, PUC-SP. São Paulo, SP, Brasil. luizad@uol.com.br (c) Coordenação Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência, Ministério da Saúde. Brasília, DF, Brasil. veralfm@uol.com.br

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desse campo (por exemplo, Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, Nova York, 30 de março de 2007, da qual o Brasil é signatário) e, no Brasil, também com o incremento da agenda dos Direitos Humanos, o governo brasileiro começa a se aproximar da problemática e, de forma explícita, a Presidência da República a assume, em 2011, como prioridade de governo, lançando o Viver Sem Limite: Plano Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, que envolve mais de 15 pastas ministeriais e conta com investimentos previstos da ordem de 14 bilhões de reais até 2014, em ações divididas por quatro eixos prioritários: Atenção à Saúde; Acesso à Educação; Inclusão Social; e Acessibilidade. O Ministério da Saúde é um dos atores centrais do Plano Viver Sem Limite; e mais do que realizar ações incrementais em relação àquilo que é praticado na saúde das pessoas com deficiência, tornou estruturante essa agenda no SUS, por meio da criação da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência, na condição de rede prioritária de saúde. O processo de formulação e implementação dessa Rede começa em 2012, com a publicação da Portaria 793, de 25 de abril de 2012, que institui a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência no âmbito do SUS. Para o processo de implementação da Rede, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência, viajou o Brasil inteiro para elaborar uma série de orientações, normativas, instrutivos e materiais de referência(d) a partir da discussão e da definição dos princípios e diretrizes da Rede com gestores e profissionais da saúde, movimentos sociais e pesquisadores. A implicação de tais atores e a disposição em fazer uma política pública pluralista e produzida de forma ascendente, isto é, com a participação direta da sociedade, foram e são decisivas para que, de fato, a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência se consolide como conquista da cidadania brasileira, indo ao encontro da maior conquista brasileira no campo da saúde: o SUS; e se inserindo na busca pela produção qualificada de saúde, com oferta de cuidados pautada: pela integralidade da assistência; pela universalidade do acesso; pela equidade do cuidado; e pelo controle social. Concomitantemente à instauração da atual política, objetivada pela Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência, a Portaria 835, de 25 de abril de 2012, institui regras de financiamento aos estados e municípios, tanto para construir, ampliar, reformar, equipar e capacitar os profissionais de saúde das unidades de saúde envolvidas pela Rede, quanto para o custeio mensal de seus serviços nesse campo. Financiamento adequado e contínuo é condição necessária e relevante à passagem da intenção e do discurso às práticas concretas e estruturantes. Não por acaso, portanto, essa dimensão foi cuidadosamente normatizada e de maneira simultânea à instituição da Rede. O volume de recursos orçamentários é consistente, ultrapassando a situação de aportes pontuais e/ou eventuais, que caracterizaram o financiamento federal de ações de saúde para pessoas com deficiência até 2011. Nesse sentido, é importante mencionar que os repasses financeiros feitos pela União viabilizam a ampliação da assistência e ajudam a qualificar os serviços, franqueando, por exemplo: a contratação e a capacitação de profissionais; a incorporação de tecnologias; a qualificação dos espaços e de sua ambiência; e a indicação, concessão e manutenção de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção. Naturalmente, se o financiamento adequado é necessário, a construção da 208

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O Ministério da Saúde disponibiliza online a documentação aqui citada, bem como todas as informações sobre a Rede de Cuidado à Saúde da Pessoa com Deficiência no endereço: www.saude.gov.br/ pessoacomdeficiencia

(d)


(e) As habilitações são feitas para equipamentos de reabilitação já existentes, públicos ou da sociedade civil, que se disponham a integrar a lógica e cumprir os requisitos da nova política. Estes equipamentos são indicados de maneira justificada pelos Grupos Condutores da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência. Os Grupos Condutores são formados por gestores e profissionais dos estados e municípios.

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lógica de cuidados à saúde da pessoa com deficiência é fundamental, porque dá sentido e consistência à nova Rede. O cuidado está pensado em rede, os serviços são organizados em linhas de cuidado, em função das necessidades da população e dos arranjos territoriais. Desse modo, permite-se que a atenção em saúde esteja focada no contexto do território e dê sustentação a projetos terapêuticos singulares, ampliando as possibilidades de equidade e de cuidado integral às pessoas com deficiência. Antes da atual política, o cuidado à saúde da pessoa com deficiência estava restrito a equipamentos de reabilitação: serviços do componente de saúde da Atenção Especializada, o que é insuficiente para as demandas de saúde da pessoa com deficiência. A nova Rede entende que os Centros de Reabilitação são necessários como pontos de atenção para ações específicas no cuidado à saúde da pessoa com deficiência, mas, também, são concebidos como espaços de articulação com os outros pontos de atenção do SUS. A atual política define que a Rede se organiza nos seguintes componentes: Atenção Básica, Atenção Especializada e Atenção Hospitalar e de Urgência e Emergência. Os pontos de atenção desses componentes estão articulados por conjuntos de ações, de protocolos de ação e de procedimentos, que estabelecem os processos e os fluxos do cuidado entre os componentes e seus pontos de atenção. A Rede institui, no componente de Atenção Especializada, novos espaços e outra lógica na organização da reabilitação: Centros Especializados de Reabilitação – CER. Os CERs são construídos ou habilitados(e) para atender duas, três ou as quatro modalidades de reabilitação (auditiva, física, intelectual e visual), rompendo com a lógica da reabilitação por modalidade de deficiência fechada sobre si mesma. Para cada tipo de CER é definida uma equipe interdisciplinar obrigatória, que varia conforme o tipo de CER e as modalidades de deficiência atendidas pelo serviço. A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, em suma, cria condições de tratamento em reabilitação a partir do CER, que, na condição de nó da Rede, articula os outros componentes e pontos de atenção, sejam eles públicos, comunitários ou privados. O CER é, portanto, estratégico na qualificação, regulação e criação de padrões mínimos para os cuidados às pessoas com deficiência, inclusive, em termos de acolhimento de diferenças e de humanização dos cuidados. Daí sua centralidade na nova Rede. Vale destacar ainda que, inserida nas ações da Atenção Especializada, a Oficina Ortopédica é um ponto de atenção importante no processo de reabilitação, por isso integra a rede e é normatizada na atual política. É na Oficina Ortopédica que se produzem e se realizam: confecção, adaptação e manutenção de Órteses, Próteses e Meios Auxiliares de Locomoção (OPMs); possibilitando que a oferta dessas tecnologias assistivas seja realizada a partir das características individuais e das necessidades funcionais de cada pessoa, o que, sem dúvida, é condição para que seu uso represente maior autonomia e melhor qualidade de vida aos seus usuários. O brevíssimo panorama sobre a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência, traçado acima, permite afirmar que a atual política avança em várias direções e vai ao encontro do aprimoramento do SUS. Avança na universalidade, pois qualifica e amplia muito o acesso à saúde das pessoas com deficiência; avança na equidade, porque permite tratar diferenças e especificidades como tais, por meio das linhas de cuidado e da construção de projetos terapêuticos singulares, que partem da escuta aos contextos locais de saúde e às necessidades concretas das pessoas com deficiência; avança também na integralidade, que é 209


sustentada na política pelas ações conjuntas entre os componentes da atenção, gerando sinergia e transversalidade entre pontos de atenção da Rede, cuja articulação também deve se orientar pelos contextos de vida e de saúde, bem como pelas necessidades concretas das pessoas com deficiência. Entretanto, universalidade, equidade, integralidade... ganharão densidade se os cuidados às pessoas com deficiência forem entendidos como algo que nasce e se sustenta no conjunto das relações sociais, na circulação das diferenças, na pertença social, no enfrentamento de estigmas e de preconceitos, que ainda afetam essa população. Claro que esse é um desafio do conjunto da sociedade brasileira, mas para o qual o campo da saúde pode e deve colaborar. Por isso mesmo, no âmbito da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência, parece promissor produzir saúde na alteridade, isto é, na relação com as diferenças, colocando-as em contato com as dinâmicas e desafios do SUS, trazendo as pessoas com deficiência, de fato, para dentro do sistema, para que possam exercer e reivindicar seus direitos como cidadãos que são. Nesse sentido, a nova Rede quer, também, colaborar com a superação de visões que privilegiem o reconhecimento da pessoa com deficiência, exclusivamente, pela lógica bioidentitária; aquela que é dada pela identificação de uns com os outros a partir da condição biológica. Se marcas biológicas (raça, sexo, deficiência...), por um lado, favoreceram a organização social e a luta por direitos, por outro lado, no caso das deficiências e no âmbito de uma sociedade segregadora como a nossa, mantiveram o estigma da deficiência e podem reforçar a tendência ao isolacionismo social, transformando a luta por direitos em conquista jurídico/formal, e não em inclusão cidadã, a partir da qual as diferenças (inclusive as biológicas) devem conviver no jogo social. Por fim, embora a nova Rede tenha sido bem recebida pelos movimentos sociais das pessoas com deficiência, bem como pelos estados e municípios brasileiros, seu desenvolvimento, aprimoramento e fortalecimento precisam ser estudados e debatidos mais amplamente também no campo acadêmico. A expansão do debate acadêmico pode contribuir para qualificar a formação de profissionais para nova política e, ao mesmo tempo, ativar a necessária interlocução da Rede com outras áreas de conhecimento, além daquelas ligadas mais diretamente à reabilitação, uma vez que as problemáticas implicadas com as deficiências afetam e são transversais a muitas outras áreas de conhecimento. Fica aqui o convite e uma espécie de chamamento público a esse importante debate.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

Recebido em 02/02/14. Aprovado em 23/07/14.


DOI: 10.1590/1807-57622014.1298

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Entre a figura e o abstrato: instâncias do pensamento

Pintura 189 (acrílica e guache sobre tela), 2013

Eduardo Augusto Alves Almeida(a) Felipe Goés(b)

Doutorando, Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA/USP), mestre em Teoria e Crítica de Arte pela mesma instituição, Especialista em História da Arte pela Fundação Armando Álvares Penteado. Publicitário. Colunista do caderno de cultura do jornal Correio Popular. Autor do blog www.artefazparte.com. edualmeida@ artefazparte.com (b) Artista e arquiteto, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Realizou exposições e projetos artísticos em diversas cidades do Brasil. www. fgoesarte.blogspot.com (a)

Classificar obras de arte como figurativas ou abstratas parece tão incompatível com o pensamento crítico contemporâneo quanto outras oposições extremistas às quais fomos conduzidos ao longo do tempo. Real ou virtual, ciência ou ficção, exatas ou humanas, teoria ou prática, razão ou sensibilidade, fato ou imaginação, saúde ou enfermidade, justiça ou impunidade, sujeito ou objeto, público ou privado, somático ou psicológico, políticas de direita ou de esquerda; entre tantos outros exemplos.

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A concepção dualista acaba não apenas insistindo nesses territórios utópicos como, também, ignorando o universo de possíveis que habitam o intervalo entre os seus polos – a “zona de indiscernibilidade” de que fala Deleuze1, composta por linhas [não exatamente] divisórias tão tênues, pulsantes e permeáveis que atuam como membranas, regulando fluxos de intensidade. Ingênua ilusão, triste engano; o rígido/instituído não se sustenta, ele se esgota no que diz respeito à sua relevância para as múltiplas/facetadas questões que permeiam a atualidade.

[O absolutismo dá conta das sutilezas do mundo? Fosse o absolutismo político, crítico, científico, social... não daria conta porque se aproxima por uma única frente e pretende, com ela, abranger o todo; porque se aproximaria com a resposta pronta, buscando somente a questão que, de alguma maneira, a justifica. Trabalharemos com essa hipótese.]

Entre a abstração e a figuração absolutas, encontra-se uma rica trama de possibilidades existenciais; linhas de força, linhas flexíveis, linhas erráticas, potências. Os extremos dão lugar a pontos de passagem, encontros, conexões, reflexões. Afirmar o absurdo do pensamento fechado, recluso e embrutecido é ignorar que a humanidade se constitui mais de matizes que de dogmas(c), e que sua emancipação se encontra no caminhar, não no ponto de chegada; a emancipação pelo acompanhamento do outro e de seus processos, pela troca de experiências, pela partilha do sensível2. No lugar de verdades, é possível criar discursos fragmentados. Alternativas. Aberturas. Aproximações. Assumir que tudo se enxerga por perspectivas, e que, do objeto em questão, apenas se apreendem alguns aspectos3. Estes tampouco pertencem, única e exclusivamente, àquilo que se observa/pesquisa: são ambiguidades oriundas [da colaboração] daquele que olha e do que é olhado. Portanto, todo olhar é, também, um ato criador4, uma participação ativa5; e se a criação não é absoluta, se não detém uma aura6, pode-se dizer que é singular, própria de cada pessoa. No limite, não se trata da subjetividade de um sujeito em contato com um mundo – é essa relação “homem-mundo” que possibilita a existência de ambos. Em outras palavras, sujeito e mundo passam a existir no instante em que se encontram, e é desse encontro que provém a experiência subjetiva. Olhar/criar é inventar/dar sentido; viver é um processo de doação e formação, além de apreensão e expectativa. Colocar-se à disposição do outro, à disposição do mundo; deixar-se atravessar, fluir com eles. Olhar implica transformar – o arredor e a si. Não somente fazer ‘com’ o outro, mas possibilitar, ao outro, fazer, colaborar com seu processo de descoberta e emancipação. Promover, prioritariamente, o seu direito de fazer, tanto quanto lugares afeitos à prática. Instaurar espaços de encontro: interfaces. Espaços abertos ao diálogo – no lugar então ocupado pelo silêncio incontestável da verdade e seus guardas opressores, sempre prontos para a defesa. E para o ataque.

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(c) Embora, muitas vezes, as relações sociais se organizem conforme dogmas em vez de matizes, ignorando estes últimos, colocando-os à margem, tentando dominá-los com uma política de violência oficial e capacitada.


criação Pintura 146 (acrílica e guache sobre tela), 2012

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Pintura 222 (acrílica e guache sobre tela), 2014

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Perspectivas ficcionais Uma pintura dita ‘abstrata’ oferece ‘significados abstratos’ e, também, ‘concretos’, assim como a pintura dita ‘figurativa’. Trata-se de instâncias da experiência, da relação com a arte, do conhecimento de mundo. Instâncias do pensamento que se depositam como camadas de tinta, ocultando parte do que antes predominava na tela, acrescentando nova possibilidade à composição, estabelecendo novas estruturas e relações. Essa pintura pode ser batizada com nome que remeta a algo concreto e provocar irrupções de ‘pensamentos figurativos’ (narrativas, lembranças de fatos...); do mesmo modo, uma paisagem dita ‘figurativa’ pode se apresentar com nome ‘abstrato’ e ocasionar sensações difíceis de serem verbalizadas sem que a tradução comprometa sua essência(d), sem que a clareza da elucidação ofusque suas cores e texturas – sentimentos alheios à lógica dita ‘científica’. [Estaria a figura mais próxima da ideia de ‘verdade’ enquanto a abstração se enamoraria pela ‘virtualidade’? Ou ambas seriam aspectos de uma realidade com estrutura ficcional, para citar Žižek7; ou de um real que precisa ser ficcionado para ser pensado/assimilado, conforme acredita Rancière2?]

Outra hipótese: o mundo se apresentaria a nós por meio de estruturas ficcionais. Isso significa que nada existiria de forma definitiva – tudo seria apreendido conforme a cultura de quem apreende, e o real nada mais seria do que um consenso limitado a um grupo de pessoas, um local, uma tradição etc.; em outras palavras, tudo seria, em certa medida, inventado, ficcionado. Vale esclarecer que essa ficção não se enquadra no duelo ‘verdade x mentira’; ela pertence a outro plano no qual estão imersas tanto a concepção da verdade quanto a da mentira, portanto, ambas seriam também espécies de ficção dadas num contexto específico. A partir de Žižek e Rancière, é factível pensar na ficção – numa certa ideia de ficção – como um possível método de apreensão do contemporâneo; de serem arte e estética ferramentas de questionamento de certas realidades e, no limite, da própria ideia de ‘realidade’; e de ser o próprio contemporâneo um conceito ao invés de uma medida – ou seja, uma maneira de pensar demandas ainda relevantes que nos atravessam em campo expandido, tão abrangentes quanto quiserem ser, em vez de continuidade linear da [tradicional cronologia] da História da Arte. Portanto, tratar-se-ia de uma metodologia: um estudo de certa ficção, da arte e da estética contemporâneas como métodos de analisar aspectos daquilo que chamamos de realidade, de produzir uma crítica em relação a ela e, desse modo, de propor resistências.

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Como diz Kuitca, em entrevista a Giancarlo Hannud, “não podemos compartilhar nossa experiência [visual/ estética]. Podemos falar sobre ela, mas, fenomenologicamente, diante de uma pintura, a única coisa que podemos dizer é que estamos completamente sozinhos. [...] A menor partícula de uma pintura é a intimidade”8 (p. 44).

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criação Pintura 134 (acrílica sobre tela), 2011

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Pintura 125 (acrílica sobre tela), 2011

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Ilusão perigosa Para Bauman, “os estranhos tipicamente modernos foram o refugo do zelo de organização do estado. Foi à visão da ordem que os estranhos modernos não se ajustaram. [...] Os estranhos exalaram incerteza onde a certeza e a clareza deviam ter imperado. Na ordem harmoniosa e racional prestes a ser constituída não havia nenhum espaço – não podia haver nenhum espaço – para os ‘nem uma coisa, nem outra’”9 (p. 28). Tal estranheza, assim como a incerteza proveniente dela, deveria ser anulada, extinguida, com propósito de tornar a sociedade ‘pura’, de fazê-la sã e salva. (e)

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A polarização pode parecer acolhedora, afinal. E, por isso, traiçoeira. Ela dispõe de espaço para o sim e para o não, para o certo e o errado; oferece o conforto de ter amigos e inimigos bem distintos, fáceis de reconhecer; o conforto da certeza. Entre trancos e barrancos, ambos coexistem, e a existência de um acaba por depender do outro. Só não há espaço para sobreviver entre os polos, e nisso consiste o perigo que, oriundo da Modernidade, ainda opera nos dias atuais. No pensamento moderno, não existem outras possibilidades entre o cientificismo da verdade e o misticismo da natureza. Os que acreditam nelas tornam-se estranhos(e), malvistos, excluídos, perseguidos por polícias da ordem, com seus uniformes assassinos. Excluídos da constituição do Estado, ainda que este se pretenda democrático. “Uma anomalia a ser retificada”, diz Bauman9 (p. 30). E explica: “Em suas buscas de constituição da ordem, o estado moderno tratou de desacreditar, de repudiar e erradicar les pouvoirs intermédiaires das comunidades e tradições”.

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(f) Bauman utiliza o termo ‘pós-moderno’ para se referir ao período que sucede a Modernidade, e que representa o esgotamento destas ideias. Esse período se confunde com o vivido atualmente, uma vez que não existe uma fronteira clara delimitando seu fim. No caso deste artigo, não cabe distinguir pós-moderno de contemporâneo, uma vez que a discussão é ampla. Para nós, aqui, “atual, pós-moderno e contemporâneo” têm, aproximadamente, o mesmo significado, que deve bastar para a discussão proposta. Mais importante seria questionar: o que resta de Moderno no pensamento que circula nas ruas, nas mesas dos bares, na administração do Estado, nas relações trabalhistas, no contato com outras pessoas, em especial, as estranhas, estrangeiras, diferentes daquilo que consideramos ‘normal’ ou ‘real’?

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Nesse sentido, aquele suposto acolhimento oferecido pela polarização moderna revela-se fascista – uma política de aniquilação das diferenças [ou das possibilidades de existência dessas diferenças] não previamente instituídas, de dissidências, transgressões etc. Seu projeto construtivo se pauta na destruição – em outras palavras, para sanar é preciso exterminar; é preciso erradicar qualquer condição de incerteza. Porque a incerteza atenta contra a segurança (moral, militar, física...). Porque a incerteza não condiz com a ideia de pureza. Enquanto, em revés, a certeza se pauta na exatidão, nos contornos precisos, na rigidez do método científico. Tanto que “os primeiros grandes inventos que marcam a modernidade são instrumentos de medida, e os primeiros grandes inventores são fabricantes de relógios, óculos e mecânicos de oficina”10. Essa condição determinante nos levou à Era dos Extremos, denominação do “breve século XX”11, que denuncia certa falência do pensamento moderno. Ou, melhor dizendo, trata-se da crítica de certo lugar a que a Modernidade chegou, levada pelas ondas do capitalismo e tendo, enfim, instituído/dogmatizado aquilo que seria ruptura [tanto objeto de ruptura quanto a atitude de romper], contrariando seus próprios princípios fundadores, como a ‘destruição criativa’ das Vanguardas artísticas. Tendo o maravilhamento com a máquina desembocado na destruição em massa, no esvaziamento das relações interpessoais e, no limite, na banalização da vida. Por sua vez, “as oposições que nessa outra experiência [moderna] asseguram e sancionam o significado do mundo, e da vida vivida neste, perdem na nova experiência [atual(f)] muito de seu significado, bem como muito de seu potencial heurístico e pragmático”9 (p. 37). Abrir espaço para novas potências aumenta, também, a complexidade dos casos e inviabiliza generalizações. A organização vira desordem, a sensação de segurança desemboca em incertezas; fica evidente certo medo de dissolução da ordem instituída.

No entanto, ao lado do colapso da oposição entre a realidade e sua simulação, entre a verdade e suas representações, vem o anuviamento e a diluição da diferença entre o normal e o anormal, o esperável e o inesperado, o comum e o bizarro, o domesticado e o selvagem – o familiar e o estranho, “nós” e os estranhos. Os estranhos já não são autoritariamente pré-selecionados, definidos e separados, como costumavam ser nos tempos dos coerentes e duráveis programas de constituição da ordem administrados pelo estado. Agora eles são tão instáveis e proteicos como a própria identidade de alguém, e tão pobremente baseados, tão erráticos e voláteis.9 (p. 37)

Em tempos de apagamento de fronteiras e valorização das nuances, cabe rever a organização do mundo e a noção de sujeito que o habita, assim como o impasse entre os polos individual e social, público e privado, normal e estranho, realidade e ficção, figurativo e abstrato. Essa nova paisagem permanece borrada, indefinível e impura. Permanece dissolvida, e, na dissolução, encontra novas formas de composição.

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Pintura 186 (acrílica e guache sobre tela), 2013

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221 Pintura 190 (acrílica e guache sobre tela), 2013

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Pintura 204 (acrílica e guache sobre tela), 2013

Um método para chamar de contemporâneo “O paradigma da ciência moderna encontra-se calcado na razão, na consciência, no sujeito soberano, no progresso e na totalidade do mundo. [...] Tendo como meta abordar a natureza essencial das ‘coisas’, a partir da noção de verdade”, explica Romagnoli12 (p. 166). Enquanto o paradigma contemporâneo se pautaria numa “humildade epistemológica, ao não perseguir a verdade; a busca de ferramentas úteis para o entendimento do mundo e o abandono da ideia de um lugar privilegiado a partir do qual podemos compreender definitivamente as relações que nos circundam”12 (p. 168).

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(h) O artista norteamericano James Turrell, por exemplo, dedicou sua carreira a pesquisar o fenômeno da luz e a maneira como ela é percebida pelos sentidos humanos, gerando/ inventando o mundo como o conhecemos. Para isso, baseia-se em astronomia e física experimental, utiliza equipamentos científicos como projetores de alta intensidade e espaços precisamente modificados com objetivo de apreender e modificar a incidência da luz solar. Mais informações podem ser obtidas diretamente no site do artista, disponível em: http:// jamesturrell.com

Seria possível classificar o homem, nos dias atuais, como abstrato ou figurativo sem trair aspectos inerentes ao ser? E a ciência que produz, muitas vezes, tão afeita à arte(g)? E a arte que inventa, por vezes mais efetiva em suas descobertas do que a ciência(h)? É possível afirmar a pureza da ciência, da arte, do homem, dos pensamentos?

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Vale a pena conferir as pesquisas da matemática contemporânea, que receberam mais evidência e popularidade com a medalha Fields conquistada pelo brasileiro Artur Avila em meados de 2014. Na edição especial da revista Piauí dedicada ao tema, tanto ele quanto outros colegas da área revelam que o pensamento matemático busca encontrar certa beleza nas formas impuras do mundo, e que lida com abstrações, ‘ficções científicas’ e interrogações da natureza muito próximas da poesia, e, afinal, de certo conceito de estética – ao contrário da racionalidade intransigente que se poderia associar a esse ramo da ciência13.

(g)

Cabe, ainda, uma última questão: é plausível classificar o homem – e todas as suas criações –, cedendo à generalização, ignorando o que há de mais brutalizante nela? Última hipótese: talvez a demanda atual almeje fazer conviver as diferenças, as incertezas e as possibilidades de existência oriundas daquele imenso fosso que separava as ambivalências modernistas. Da aridez e da rigidez daquele [em tese] vazio. Aprender a enxergar o obscuro no excesso de claridade, o impuro no excesso de sanidade, o obs-ceno na cena representada bem diante dos nossos olhos, o factível nas utopias. Habitar as heterotopias de que fala Foucault14. Tudo que existe é ao mesmo tempo indissociável e irredutível: a música não é matemática, mas é todinha matemática. Mas seria um erro dizer que a música se reduz à matemática. Inversamente, na matemática, as bases do próprio cálculo decorrem do imaginário, do poético. A indissociabilidade e a irredutibilidade existente entre todas as coisas nos leva a crer que a renúncia à unificação ou à simplificação final não é nem provisória nem uma regra de boa conduta. 15 (p. 50)

Nem exatamente par nem totalmente ímpar; vivemos no ‘entre’. Basta olhar ao redor e perceber que o mundo aceita ser visto assim, e revela os gradientes de que é constituído; é assim a paisagem que nos cerca, ainda que alguns evitem o esforço, preferindo enxergar somente céu ou somente inferno. Manchas de cor que escorrem pela tela formam tanto uma paisagem abstrata quando concreta – a pintura se abre a um universo ficcional ao mesmo tempo em que constitui a própria realidade onde se insere; uma narrativa de fatos e, também, o próprio fato. Confunde o aqui e o acolá, insistindo no ambíguo. Diferentemente do híbrido, formado por ambos os extremos, o ambíguo é nem um nem outro; é o intervalo, a fenda, o meandro e suas nuances. Assim é a paisagem que ajudamos a compor; e aceitar suas camadas de significados deve estar na ordem do dia daquele que se pretende contemporâneo, que ouve as demandas do agora, que está determinado a pesquisar em meio a essa complexa indeterminação estabelecida entre o absolutismo da verdade e a inconsistência da ficção. Pesquisar com rigor, porém sem dogmas, com persistência, porém sem opressão, circulando pelas redes de possíveis sem dar mais “uma volta a essas reviravoltas que sustentam infindavelmente o mesmo maquinário”5 (p. 48), que alimentam o velho sistema da crítica e anticrítica, que não conseguem se desvencilhar da verdade justificada pela oposição à mentira. Pesquisar com a consciência de que não se produz nada mais do que leituras do mundo; não se faz nada além de acrescentar uma pincelada à grande representação da vida humana.

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Pintura 139 (acrílica sobre tela), 2011

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Colaboradores Os autores Eduardo Augusto Alves de Almeida e Felipe Góes participaram, igualmente, da elaboração do artigo. Eduardo deu a forma final ao texto, redigindo-o e revisando-o. Felipe Góes incorporou excertos da sua obra artística. A discussão foi feita em conjunto. A proposta representa ideias consensuais de ambos os autores. Referências 1. Deleuze G. A literatura e a vida. In: Deleuze G. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34; 1997. p. 11-17. 2. Rancière J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34; 2005. 3. Almeida EAA. Aspectos da estruturação do self de Lygia Clark: perspectivas críticas [dissertação]. São Paulo (SP): Programa Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo; 2013. 4. Duchamp M. O ato criador (1957). In. Battcock G, organizador. A nova arte. São Paulo: Perspectiva; 2004. p. 71-74. 5. Rancière J. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes; 2012. 6. Benjamin W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Benjamin W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense; 1994. p. 169-196. (Obras escolhidas, v. 1). 7. Žizek S. De Hegel a Marx... e de volta a Hegel! Palestra oferecida no SESC Pinheiros, São Paulo, em 8 de março de 2013. [acesso 2013 Nov 17]. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/online/videos/26_SLAVOJ+ZIZEK+DE+HEGEL+A+MARX+ E+DE+VOLTA+A+HEGEL#/content=sobre 8. Kuitca G. Filosofia para princesas. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo; 2014. (Catálogo de exposição realizada entre 17 de julho e 2 de novembro de 2014). 9. Bauman Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar; 1998. 10. Theophilo R. A transdisciplinaridade e a modernidade [Internet] [acesso 2014 Nov 20]. Disponível em: http://www.sociologia.org.br/tex/ap40.htm 11. Hobsbawn EJ. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras; 1995. 12. Romagnoli RC. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicol Soc. 2009; 21(2):166-73. 13. Salles JM, editor. Artur tem uma medalha – a história da maior conquista da ciência brasileira. Rev Piauí. 2014; ed. esp. 14. Foucault M. Outros espaços (1984). In: Motta MB, organizador. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. p. 411-420. 15. Burnham TF; Fagundes NC. Transdisciplinaridade, multirreferencialidade e currículo. Rev FACED. 2001; (5):39-55.

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Por meio de texto e pintura, este artigo visa discutir a possibilidade de habitar certo intervalo entre polos extremistas, e, a partir da estética, rever paradigmas dos pensamentos moderno e contemporâneo.

Palavras-chave: Estética. Pintura. Modernidade. Contemporâneo. Arte figurativa e abstrata. Between the figure and the abstract: instances of thought With text and painting, this article aims to discuss the possibility of inhabiting certain interval between extreme poles and to review, from the aesthetic, some paradigms of modern and contemporary thoughts.

Keywords: Aesthetics. Painting. Modernity. Contemporary. Figurative and abstract art. Entre la figura y el abstracto: instancias del pensamiento Con texto y pintura, este artículo tiene como objetivo discutir la posibilidad de habitar cierto intervalo entre polos extremos y revisar, desde la estética, algunos paradigmas del pensamiento moderno y contemporáneo.

Palabras clave: Estética. Pintura. Modernidad. Contemporáneo. Arte figurativo y abstracto.

Recebido em 22/11/14. Aprovado em 15/12/14.

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Carmem Beck, UFSM, RS Cássia Manoel, Unesp, SP Cássia Soares, USP, SP Célia Rozendo, UFAL, AL Celia Sivali, USP, SP Cesar Ernesto Abadia-Barrero, Universidade de Connecticut, EUA Clarice Mota, UFBa, BA Clarice Rios, UERJ, RJ Claudia Cesar, Unicamp, SP Cláudia Osório, UFF, RJ Cláudia Penido, UFMG, MG Claudia Ridel Juzwiak, Unifesp, SP Cláudia Silva, SEUNE, AL Cleoni Fernandes, PUC, RS Climene Camargo, UFBA, BA Cristiane Brito, UFMG, MG Cristiane Silva, UNIFESP, SP Cristianne Rocha, UFRGS, RS Dagmar Meyer, UFRS, RS Dalvani Marques, Unicamp, SP Daniele Nigro, Unicamp, SP Débora Coelho, UniRitter, RS Denise Bueno, UFRN, RN Denise Combinato, ITA, SP Denise Monteiro, UERJ, RJ Desirée Begrow, UFBA, BA Diogo da Costa, Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, RS Dorcas Costa, UFPI, PI Eduardo Almeida, USP, SP Elaine Damião, USP, SP Elcio Santos, Unifesp, SP Elgion Lucio da Silva Loreto, UFSM, SC Elis Borde, Fiocruz, RJ Elisabete Mângia, USP, SP Elisete Casotti, UFF, RJ Elizabeth Halpern, UFRJ, RJ Elizabeth Lima, USP, SP Erica Rosalba Mallmann Duarte, UFRGS, RS Erika Almeida, UFBA, BA Eroy Silva, USP, SP Ester Costa, UFF, RJ Eymard Mourão Vasconcelos, UFPB, PB Fábio Tajra, UFPI, PI Faculdade Mauricio de Nassau, PB Fatima Oliver, USP, SP Felipe Almeida, UFES, ES Fernando Aith, USP, SP Fernando Nogueira, Fiocruz, SP Filipe Ceppas de Carvalho e Faria, UFRJ, RJ Flávia Bulegon Pilecco, Universidade Luterana do Brasil, RS Flavia Freire, UFF, RJ Flávia Guidotti, Unisinos, RS Flavia Lemos, UFPA, PA

consultores ad hoc 2014

Adriana Feliciano, UFSCar, SP Adriana Ferreira, UFMA, MA Adriana Roese, UFRGS, RS Afonso Cavaco, Universidade de Coimbra, Portugal Agleildes Leal de Queirós, USP, SP Alan Vendrame, Unifesp, SP Alba Alves Vilela, UESB, BA Alberto Cupani, UFSC, SC Alcindo Ferla, UFRGS, RS Alex Fraga, UFRGS, RS Alice de Moraes, Fiocruz, RJ Alicia Navarro de Souza, UFRJ, RJ Aline Almeida, Unifesp, SP Aline Aquilante, UFSCar, SP Aline Lins Camargo, UFCSPA, RS Aluísio Gomes da Silva Junior, UFF, RJ Aluísio Lima, UFCE, CE Ana Abrahão, UFF, RJ Ana Afonso, Universidade Nova de Lisboa, Portugal Ana Arraes, UFRN, RN Ana Carolina Biscalquini Talamoni, Unesp, SP Ana Dias, UFC, CE Ana Malfitano, UFSCar, SP Ana Maria Camara, UFMG, MG Ana Maria Gageiro, UFRGS, RS Ana Maria Pitta, Universidade Católica de Salvador, BA Ana Tania Sampaio, UFRN, RN Ananyr Fajardo, Grupo Hospitalar Conceição, RS Andréa Andrade, UFBA, BA Andréa da Silva, UFF, RJ Andrea Leal, UFRGS, RS Andrea Ruzzi-Pereira, UFTM, MG Angela Abreu, UFRJ, RJ Angela Capozzolo, Unifesp, SP Anny Farre, UFS, SE Antonia Regina Furegato, USP, SP Aurea Ianni, USP, SP Aylene Bousquat, UNISANTOS, SP Barbara Cabral, Univasf, PE Barbara Duarte, PMPA/FASC, SC Beatriz Farah, UFJF, MG Beatriz Jansen, Unicamp, SP Beatriz Teixeira, Prefeitura de São José dos Campos, SP Betânia Paiva Drumond, UFJF, MG Bruno Azevedo, Unicamp, SP Camila Pereira-Guizzo, FIEB, BA Carla Montefusco, UFRN, RN Carla Trapé, Fundação Faculdade de Medicina, SP Carlo Napolitano, Unesp, SP Carlos Alberto Rodrigues, Unimontes, MG Carlos Eduardo Estellita-Lins, Fiocruz, RJ Carlos Erick Brito de Sousa, UFMA, MA Carly Machado, UFRRJ, RJ


Flavia Liberman, USP, SP Flávio Alves, Unesp, SP Francini Guizardi, Fiocruz, DF Francisco José Silvera Lobo Neto, Fiocruz, RJ Franklin Forte, UFPB, PB Frederico Machado, UFMG, MG George Azevedo, UFRN, RN Geraldo Cury, UFMG, MG Geraldo Teixeira , UNCISAL, AL Gilberto Tadeu Reis Silva, UFBa, BA Gilza Sandre, UFRJ, RJ Gimol Perosa, Unesp, SP Gisele O´Dwyer, Fiocruz, RJ Giulyanne Silva, Faculdade Mauricio de Nassau, PB Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Graça Carvalho, UMINHO, Portugal Grasiele Nespoli, Fiocruz, RJ Guilherme Arantes Mello, Unifesp, SP Gustavo Cunha, Unicamp, SP Helen Gonçalves, UFPel, RS Heleno Corrêa Filho, Unicamp, SP Helio Lauar de Barros, PUC, MG Isabela Pinto, UFBa, BA Isabelle Gomes, UFPB, PB Ivana Aleixo, UFMG, MG Ivanilda Pedrosa, UFPB, PB Ivia Maksud, UFF, RJ Ivone Cabral, UFRJ, RJ Izabella Barison Matos, UFFS Jane Russo, UERJ, RJ Janine Miranda Cardoso, Fiocruz, RJ Jason Mafra Mafra, Uninove, SP Jayanna Bachetti, UFES, ES João Campos, UEL, PR João José de Campos, UEL, PR João Luiz Silveira, FURB, SC João Martins, UEL, PR João Paulo Ferreira, UFSCar, SP João Souza, USP, SP Joaquim, Regina , UFSCar, SP Jonas Brant, TEPHINET Jorge Alberto Iriart, UFBA, BA José Ivo Pedrosa, UFPI, PI José Lopes, Unisinos, RS Jose M. Rasia, UFPR, PR José Maria Guimarães, UECE, CE José Renato Gatto Júnior, USP, SP José Ricardo Ayres, USP, SP José Roberto Brêtas, Unifesp, SP Jose Roque Junges, Unisinos, RS Juarez Furtado, Unifesp, SP Juciano Lacerda, UFRN, RN Judite Bertoncini, FURB, SC Juliana Lopes de Macedo, UFRS, RS Juliana Silva, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, BA Karina Pavão Patrício, Unesp, SP Karla da Costa Seabra, UERJ, RJ Kathleen Cruz, UFRJ, RJ Katia Lerner, Fiocruz, RJ Kátia Poles, USP, SP Kátia Suely Ribeiro, UFPB, PB Kênia Silva, UFMG, MG Kenneth Camargo, UERJ, RJ Lara Kretzer, UFSC, SC Larissa Pelucio, Unesp, SP

Laura Feuerwerker, USP, SP Laura Gonçalves, Unicamp, SP Laura Pozzana de Barros, UFRJ, RJ Leila Jeolás, UEL, PR Leonardo de Souza, Unesp, SP Leticia Sewaybricker, Unicamp, SP Leticia Sewaybricker, Unicamp, SP Lígia Amparo, UFBA, BA Lilian Macedo, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, SP Lilian Miranda, UFRJ, RJ Liliana da Escóssia Melo, UFS, SE Liliana Santos, UFBa, BA Luciana Azevedo, UFRN, RN Luciana Cavalin, USP, SP Luciana Fioroni, UFSCar, SP Luciana Kind, PUC, MG Luciana Surjus, Unicamp, SP Luciano Gomes, UFPB, PB Luis Costa, UFMT, MT Luiz Chiavegato Filho, UFSJ, MG Luiz Cutolo, UFSC, SC Luiz Gonçalves Junior, UFSCar, SP Magali Boemer, USP, SP Maíra Apostolico, USP, SP Maisa Beltrame Pedroso, Secretaria da Saude de Porto Alegre, RS Manoel Miranda, USP, SP Mara Chirelli, Famema, SP Mara de Sordi, Unicamp, SP Mara Santos, UFMS, MS Marcella Guimarães Assis, UFMG, MG Marcelo Costa, UERN, RN Marcelo Gustavo Aguilar Calegare, UFAM, AM Marcia Andrade, UEM, PR Marcia Couto, USP, SP Márcia de Assunção Ferreira, UFRJ, RJ Marcia Molina, Prefeitura Municipal de Campinas, SP Márcia Moraes, UFF, RJ Marco Separavitch, Unicamp, SP Marcos Silva, UFJF, MG Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ, RJ Marcus Vinícius Silva, UFMG, MG Margareth Zanchetta, UFRJ, RJ Maria Albuquerque, UFPE, PE Maria Alice Garcia, PUC, SP Maria Angela Reis de Goes M. Antonio, Unicamp, SP Maria Araújo Dias, UVA, CE Maria Braga, UFJF, MG Maria Cecília Moura, PUC, SP Maria Coelho, UFRJ, RJ Maria Cristina Guimarães, Fiocruz, RJ Maria Cristina Pereira Lima, Unesp, SP Maria Denise Schimith, UFSM, SC Maria do Horto Cartana, UFSC, SC Maria Elizabeth Barros, UFES, ES Maria Helena Morgani de Almeida, USP, SP Maria Inês Badaró-Moreira, Unifesp, SP Maria Inês Barreiros Senna, UFMG, MG Maria José D’Elboux, Unicamp, SP Maria Kleba, Unochapeco, SC Maria Lúcia Bosi, UFC, CE Maria Rangel, UFBa, BA Maria Senna, UFMG, MG Maria Thereza Coelho, UFBA, BA Maria Valeria Albardonedo, Universidade Nacional de Comahue, Argentina


Maria Waldenez de Oliveira, UFSCar, SP Maria Wany Louzada Strufaldi, Unifesp, SP Mariana Arantes Nasser, USP, SP Mariella Oliveira, UnB, DF Marilene Munguba, UNIFOR, CE Marilia Cardoso, USP, SP Marilia Othero, USP, SP Marinalva Ribeiro, UEFS, BA Mário Martins, PUC, SP Martinho Silva, UERJ, RJ Mary Jane Spink, PUC, SP Mary Silva, UNEB, BA Mesaque Correia, USJT, SP Micheli Soares, UFRB, BA Michelle Medeiros, UFCG, PB Miguel Ângelo Montagner, UnB, DF Mirelle Finkler, UFSC, SC Míriam Dias, UFRGS, RS Moacir Cymrot, UECE, CE Moises Romanini, UFRGS, RS Monica Assis, INCA, RJ Mônica de Carvalho, UnB, DF Monica Kother Macedo, PUC, RS Mônica Nunes, UFBa, BA Murilo Cesar Soares, Unesp, SP Nair Yoshino, Unicamp, SP Nara Liana Pereira-Silva, UFJF, MG Nilce Costa, UFG, GO Nilce Tomita, USP, SP Nilva Stédile, UCS, RS Norma Valencio, UFSCar, SP Núncio Sól, UFOP, MG Oscarina Ezequiel, UFJF, MG Otacilio Batista, UFPI, PI Otacilio Netto, UFPI, PI Patricia Borba, Unifesp, SP Patrícia Damiance, USP, SP Patrícia Oliveira, UFSJ, MG Patrícia Suguri, UFBa, BA Paula Aversa, Unesp, SP Paula Cerqueira,UFRJ, RJ Paula Jesus, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP Paulo Arrais, UFC, CE Paulo Sousa, ENSP, Portugal Paulo Vasconcellos-Silva, Fiocruz, RJ Pedro Paulo Pereira, Unifesp, SP Rafaela Zorzanelli, UERJ, RJ Raionara Araújo Santos, UFRN, RN Ramona Fernanda Toassi, UFRGS, RS Raquel Silva Silveira ,UFRGS, RS Raquel Terada, UEM, PR Regina Joaquim, UFSCar, SP Regina Matsue, UNIFOR, SP Renata Azevedo, Unicamp, SP Renata Buelau, USP, SP Reni Barsaglini, UFMT, MT Ricardo Pena, Unicamp, SP Ricardo Teixeira, USP, SP Roberta Reis, UFRGS, RS Roberta Romagnoli, PUC, MG Roberto Esteves, UEM, PR

Roberto Marini Ladeira, Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, MG Roberto Nascimento, Unesp, SP Rodrigo Borba, UFRJ, RJ Rogerio Azize, UFF, RJ Rosa Maria Rodrigues, UNIOESTE, PR Rosana Onocko Campos, Unicamp, SP Rosana Vilela, UFAL, AL Rosangela Barbiani, Unisinos, RS Roseli Silva, UFSCar, SP Rosemarie Andreazza, UNIFESP, SP Rosuita Bonito, UFU, MG Sabrina Ferigato, Unicamp, SP Samanta Madruga, UFEPel, RS Samira Costa, UFRJ, RJ Sandra Caponi, UFSC, SC Sandra Fortes, UERJ, RJ Sandra Galheigo, USP, SP Sandra Tibiriçá, UFJF, MG Sérgio do Nascimento Trad, UFBa, BA Silvia Bocchi, Unesp, SP Sílvia Lüdorf, UFRJ, RJ Silvia Matumoto, USP, SP Silvia Viodres, UNISANTOS, SP Sílvia Zem-Mascarenhas, UFSCar, SP Silvio José Benelli, Unesp, SP Simone Barbosa, UFJF, MG Simone Junqueira, USP, SP Soraya Fleischer, UnB, DF Stela Meneghel, UFRS, RS Suely Ayres, UFRB, BA Suely Grosseman, UFSC, SC Suzane de Medeiros, UERN, RN Tadeu João Baptista, UFG, GO Tarcisio Marcio Magalhaes Pinheiro, UFMG, MG Tatiana Gerhardt, UFRGS, RS Tatiana Sato, UFSCar, SP Tereza Cristina Veloso, UFMT, MT Tereza Cristina Villa, USP, SP Thiago Pinheiro, USP, SP Valdecir Costa, UFSM, RS Valdir Oliveira, Fiocruz, RJ Valéria Alcantara Barbosa, UESPI, PI Valéria Lerch Lunardi, FURG, RS Valéria Lima, UFSCar, SP Valquiria Barbosa, UFSC, SC Vera Dantas, Secretaria Municipal de Saúde, RJ Vera Lúcia Kodjaoglanian, Fiocruz, MS Waleska Aureliano, UERJ, RJ Wallacy Feitosa, Asces, PE Walter Oliveira, UFSC, SC Wania Galhardi, FMJ, SP Wilma Madeira, Instituto de Responsabilidade Social Sírio Libanês, SP Wilza Villela, Unifesp, SP Yara Carvalho, USP, SP Yone Moura, Unifesp, SP Zulmira Borges, UFSM, RS


editores de área ad hoc 2014

Adriana Kelly Santos, Fiocruz, RJ Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp, SP Andrea Langbecker, UFBa, BA Elisabeth Meloni Vieira, USP, SP Elizabeth Araujo Lima, USP, SP Francini Lube Guizardi, Unesp, SP Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp, SP Janine Miranda Cardoso, Fiocruz, RJ Karina Pavão Patrício, Unesp, SP Lígia Amparo, UFBa, BA Luiz Carlos Cecilio, UNIFESP, SP Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa, BA Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei, MG Marcia Thereza Couto Falcão, USP, SP Marco Akerman, USP, SP Maria Antonia Ramos de Azevedo, Unesp, SP Maria Ines Baptistella Nemes, USP, SP Maria Waldenez de Oliveira, UFSCar, SP Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Rosamaria Giatti Carneiro, UnB, DF Rosana Onocko Campos, Unicamp, SP Sandra Abrahão Chaim Salles, Centro Universitário São Camilo, SP Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS, RS Stela Nazareth Meneghel, UFRGS, RS


ENVIO DE MANUSCRITOS

INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)

SUBMISSÃO DE manuscritos Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos serão submetidos à avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma autorização para publicação assinada por todos os autores do manuscrito. O modelo do documento estará disponível para upload no sistema. Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão.

Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. Forma e preparação de manuscritos SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até seis mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até seis mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até seis mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Teses - descrição sucinta de dissertações de mestrado, teses de doutorado e/ou de livre-docência, constando de resumo com até quinhentas palavras. Título e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Informar o endereço de acesso ao texto completo, se disponível na internet. Em relação à autoria, apenas o aluno (mestrando ou doutorando) deve ser citado como autor. É necessário informar a instituição onde o trabalho foi defendido. Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse para a revista, em interface com os campos das Artes e da Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc., de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, incluem-se quadros e excluem-se título, resumo e palavras-chave.

Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 20 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé: identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Nota importante: ao fazer a submissão, o autor deverá explicitar se o texto é inédito, se foi financiado, se é resultado de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, se há conflitos de interesse e, em caso de pesquisa com seres humanos, se foi aprovada por Comitê de Ética da área, indicando o número do processo e a instituição. Em texto com dois autores ou mais também devem ser especificadas as responsabilidades individuais de todos os autores na preparação do mesmo. O autor também deverá responder à seguinte pergunta: No que seu texto acrescenta em relação ao já publicado na literatura nacional e internacional? O autor pode indicar dois ou três avaliadores (do país ou exterior) que possam atuar no julgamento de seu trabalho. Se houver necessidade informe sobre pesquisadores com os quais possa haver conflitos de interesse com seu artigo. CITAÇÕES E REFERÊNCIAS A partir de 2014, a revista Interface passa a adotar as normas Vancouver como estilo para as citações e referências de seus manuscritos. CITAÇÕES NO TEXTO As citações devem ser numeradas de forma consecutiva, de acordo com a ordem em que forem sendo apresentadas no texto. Devem ser identificadas por números arábicos sobrescritos.

instruções aos autores

Projeto e política editorial


instruções aos autores

Exemplo: Segundo Teixeira1,4,10-15 Nota importante: as notas de rodapé passam a ser identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Casos específicos de citação: a) Referência de mais de dois autores: no corpo do texto deve ser citado apenas o nome do primeiro autor seguido da expressão et al. b) Citação literal: deve ser inserida no parágrafo entre aspas. No caso da citação vir com aspas no texto original, substituílas pelo apóstrofo ou aspas simples. Exemplo: “Os ‘Requisitos Uniformes’ (estilo Vancouver) baseiam-se, em grande parte, nas normas de estilo da American National Standards Institute (ANSI) adaptado pela NLM.”1 c) Citação literal de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (um enter antes e um depois), com recuo à esquerda. Observação: Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. Exemplo: Esta reunião que se expandiu e evoluiu para Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (International Committee of Medical Journal Editors ICMJE), estabelecendo os Requisitos Uniformes para Manuscritos Apresentados a Periódicos Biomédicos – Estilo Vancouver 2. REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem numérica, seguindo as normas gerais do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) – http://www.icmje.org. Os nomes das revistas devem ser abreviados de acordo com o estilo usado no Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). As referências são alinhadas somente à margem esquerda e de forma a se identificar o documento, em espaço simples e separadas entre si por espaço duplo. A pontuação segue os padrões internacionais e deve ser uniforme para todas as referências. EXEMPLOS: LIVRO Autor(es) do livro. Título do livro. Edição (número da edição). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Exemplo: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Sem indicação do número de páginas. Nota: Autor é uma entidade: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. *

Séries e coleções: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1). CAPÍTULO DE LIVRO Autor(es) do capítulo. Título do capítulo. In: nome(s) do(s) autor(es) ou editor(es). Título do livro. Edição (número). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. página inicial-final do capítulo Nota: Autor do livro igual ao autor do capítulo: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. Autor do livro diferente do autor do capítulo: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo. *

ARTIGO EM PERIÓDICO Autor(es) do artigo. Título do artigo. Título do periódico abreviado. Ano de publicação; volume (número/ suplemento):página inicial-final do artigo. Exemplos: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al. se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do artigo. *

DISSERTAÇÃO E TESE Autor. Título do trabalho [tipo]. Cidade (Estado): Instituição onde foi apresentada; ano de defesa do trabalho. Exemplos: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertação]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. TRABALHO EM EVENTO CIENTÍFICO Autor(es) do trabalho. Título do trabalho apresentado. In: editor(es) responsáveis pelo evento (se houver). Título do evento: Proceedings ou Anais do ... título do evento; data do evento; cidade e país do evento. Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Página inicial-final.


Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar a data de acesso (dia Mês abreviado e ano) e o endereço eletrônico: Disponível em: http://www......

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DOCUMENTO LEGAL Título da lei (ou projeto, ou código...), dados da publicação (cidade e data da publicação). Exemplos: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990. Segue os padrões recomendados pela NBR 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 2002), com o padrão gráfico adaptado para o Estilo Vancouver.

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RESENHA Autor (es). Cidade: Editora, ano. Resenha de: Autor (es). Título do trabalho. Periódico. Ano; v(n):página inicial e final. Exemplo: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTIGO EM JORNAL Autor do artigo. Título do artigo. Nome do jornal. Data; Seção: página (coluna). Exemplo: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. CARTA AO EDITOR Autor [cartas]. Periódico (Cidade).ano; v(n.):página inicialfinal. Exemplo: Bagrichevsky M, Estevão A. [cartas]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. ENTREVISTA PUBLICADA Quando a entrevista consiste em perguntas e respostas, a entrada é sempre pelo entrevistado. Exemplo: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista a Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. Quando o entrevistador transcreve a entrevista, a entrada é sempre pelo entrevistador. Exemplo: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista de Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.

DOCUMENTO ELETRÔNICO Autor(es). Título [Internet]. Cidade de publicação: Editora; data da publicação [data de acesso com a expressão “acesso em”]. Endereço do site com a expressão “Disponível em:” Com paginação: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [acesso em 20 Jun 1999]; 40. Disponível em: http://www.probe.br/science.html. Sem paginação: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [cited 2002 Aug 12]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/Wawatch. htmArticle Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos.

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Nota: Se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). Outros exemplos podem ser encontrados em http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html ILUSTRAÇÕES Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 300 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). Nota: No caso de textos enviados para a seção de Criação, as imagens devem ser escaneadas em resolução mínima de 300 dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12 cm e máximo de 18 x 21 cm. As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma triagem e pré-avaliação inicial, que inclui a identificação de pendências na documentação e sistema de busca por plágio. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores associados). Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos editores e do Corpo Editorial da revista. Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto quando identificado, está licenciado sobre uma licença Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial, desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/

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Exemplo: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [acesso 2013 Out 30]. Disponível em: www.google.com.br


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Project and editorial policy

SUBMITING ORIGINALS

INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)

Interface - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers can be submitted for publication. Translations of texts published in another language will not be accepted. Submissions must be accompanied by an authorization for publication signed by all authors of the manuscript. The model for this document will be available for upload in the system. Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Brief notes and Letters).

All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. Form and preparation of manuscripts SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to six thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to six thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to six thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Theses - succinct description of master’s theses, doctoral dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing abstract (up to five hundred words). Title and keywords in Portuguese, English and Spanish. Access address to the full text, if available in the internet, must be informed. The thesis’ advisor name do not figure as author. The institution where the thesis was presented must be indicated. Creation - Texts reflecting on topics of interest for the journal, at the interface with the fields of arts and culture, which in their presentation use formal iconographic, poetic, literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to strengthen and give consistency to the discussion proposed. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Note: In case of counting the text words, the tables with text are included and the title, the abstract and the keywords are excluded.

The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 20 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes: These should be identified using lower-case superscript letters, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. NOTE: during the submission process the author needs to indicate whether the text is unpublished, whether it was the result of a grant, whether it results from a master’s thesis or doctoral dissertation, whether there are any conflicts of interest involved and, in case of research with humans, whether it was approved by an Ethics Committee in its field, specifying the process number. In articles with two authors or more, the individual contributions to the preparation of the text must be specified. The author also must answer the following question: What your text adds to what has already been published in the national and international literature? Please indicate two or three referees (from Brazil or abroad) who can evaluate your manuscript. If you consider necessary, inform about researchers with whom there may be conflicts of interest concerning your paper. CITATIONS AND REFERENCES Starting in 2014, the journal Interface is changing over to the Vancouver standard as the style to use for citations and references in manuscripts submitted. CITATIONS IN THE TEXT Citations should be numbered consecutively, according to the order in which they are presented in the text. They should be identified using Arabic numerals as superscripts.


Example: According to Teixeira1,4,10-15 Important note: Footnotes will now be identified by means of lower-case letters, as superscripts, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. Specific cases of citations: a) Reference with more than two authors: in the body of the text, only the name of the first author should be cited, followed by the expression “et al.” b) Literal citations: These should be inserted in the paragraph between quotation marks (“xx”). If the citation already came in quotation marks in the original text, replace them with single quotation marks (‘xx’). Example: “The ‘Uniform Requirements’ (Vancouver style) are largely based on the style standards of the American National 1 Standards Institute (ANSI), adapted by the NLM.” c) Literal citation of more than three lines: in a paragraph inset from the text (with a one-line space before and after it), with a 4 cm indentation on the left side. Note: To indicate fragmentation of the citation use square brackets: [...] we found some flaws in the system [...] when we reread the manuscript, but nothing could be done [...]. Example: This meeting has expanded and evolved into the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), and has established the Uniform Requirements for Manuscripts Presented to Biomedical Journals: the Vancouver Style2. REFERENCES All the authors cited in the text should appear among the references listed at the end of the manuscript, in numerical order, following the general standards of the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) (http://www.icmje.org). The names of the journals should be abbreviated in accordance with the style used in Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). The references should be aligned only with the left margin and, so as to identify the document, with single spacing and separated from each other by a double space. The punctuation should follow the international standards and should be uniform for all the references. EXAMPLES: BOOK Author(s) of the book. Title of the book. Edition (number of the edition). City of publication: Publishing house; Year of publication. Example: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** Without indicating the number of pages. Note: If the author is an entity: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. In the case of series and collections: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1).

BOOK CHAPTER Author(s) of the chapter. Title of the chapter. In: name(s) of the author(s) or editor(s). Title of the book. Edition (number). City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page of the chapter. Note: If the author of the book is the same as the author of the chapter: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. If the author of the book is different from the author of the chapter: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the chapter, at the end of the reference. *

ARTICLE IN JOURNAL Author(s) of the article. Title of the article. Abbreviated title of the journal. Date of publication; volume (number/ supplement): first-last page of the article. Examples: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the article, at the end of the reference. *

DISSERTATION AND THESIS Author. Title of study [type]. City (State): Institution where it was presented; year when study was defended. Examples: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [thesis]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertation]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010.

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STUDY PRESENTED AT SCIENTIFIC EVENT Author(s) of the study. Title of the study presented. In: editor(s) responsible for the event (if applicable). Title of the event: Proceedings or Annals of ... title of the event; date of the event; city and country of the event. City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page.


Example: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brazil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [accessed Oct 30, 2013]. Available from: www.google.com.br * When the study has been consulted online, mention the data of access (abbreviated month and day followed by comma, year) and the electronic address: Available from: http://www...... LEGAL DOCUMENT Title of the law (or bill of law, or code...), publication data (city and date of publication). Examples: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

ELECTRONIC DOCUMENT Author(s). Title [Internet]. City of publication: Publishing house; date of publication [date of access with the expression “accessed”]. Address of the website with the expression “Available from:” With page numbering: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [accessed Jun 20, 1999]; 40. Available from: http://www.probe.br/science.html Without page numbering: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [accessed Aug 12, 2002]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/ Wawatch.htmArticle The authors should check whether the electronic addresses (URLs) cited in the text are still active.

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Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990. This follows the standards recommended in NBR 6023 of the Brazilian Technical Standards Association (Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT, 2002), with its graphical standard adapted to the Vancouver Style.

Note: If the reference includes the DOI, this should be maintained. Only in this case (when the citation was taken from SciELO, the DOI always comes with it; in other cases, not always).

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REVIEW Author(s). Place: Publishing house, year. Review of: Author(s). Title of the study. Journal. Year; v(n):first-last page. Example: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTICLE IN NEWSPAPER Author of the article. Title of the article. Name of the newspaper. Date; Section: page (column). Example: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. LETTER TO EDITOR Author [letters]. Journal (City). Year; v(n.):first-last page. Example: Bagrichevsky M, Estevão A. [letters]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. PUBLISHED INTERVIEW When the interview consists of questions and answers, the entry is always according to the interviewee. Example: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview conducted by Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. When the interviewer transcribes the interview, the entry is always according to the interviewer. Example: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview with Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.

Other examples can be found at http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html Illustrations: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 300 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Note: In the case of texts sent to the Creation section, images should be scanned at a minimum resolution of 300 dpi and be sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm and maximum of 18 x 21 cm. Submissions must be made online at: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will will be submited to a preliminary evaluation by the Editorial Board, that includes the identification of shortcomings in the documentation and search system for plagiarism. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (publishers and associated publishers). The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers. All content in the approved paper, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution, type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is permitted if the source is mentioned. See details in: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/


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