v.21 n.62, jul./set. 2017

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INTERFACE Superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes

Pierre Lévy

2017; 21(62) ISSN 1807-5762

UNESP

2017; 21(62)


Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a a Filosofia, as Artes e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy, Arts and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la la Filosofia, las Artes y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITOR-CHEFE/CHIEF EDITOR/EDITOR JEFE Antonio Pithon Cyrino, Unesp EDITORES/EDITORS/EDITORES Denise Martin, Unifesp Lilia Blima Schraiber, USP EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORES JUNIOR/JUNIOR EDITORS/EDITORES JUNIOR Francini Lube Guizardi, Fiocruz Tiago Rocha Pinto, UFRN EDITORES ASSISTENTES/ASSISTANT EDITORS/EDITORES ASISTENTES Ana Flavia Pires Lucas D’Olveira, USP Claudio Bertolli Filho, Unesp Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES ASSOCIADOS/ASSOCIATE EDITORS/EDITORES ASOCIADOS Alejandro Goldberg, UBA, Argentina Ana Domínguez Mon, UBA, Argentina Cássio Silveira, FCM, Santa Casa Charles Dalcanale Tesser, UFSC Chiara Pussetti, Universidade de Lisboa, Portugal Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, UFRGS Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elisabeth Meloni Vieira, USP Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Janine Miranda Cardoso, FioCruz Joana Raquel Santos de Almeida, Universidade de Londres, Inglaterra Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa Marcelo Viana da Costa, UERN Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Mónica Petracci, UBA, Argentina Patrícia Natalia Schwartz, UnB Rosamaria Giatti Carneiro , UnB Rosana Teresa Onocko Campos - Unicamp Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Silvio Yasui, Unesp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITORA DE RESENHAS/ REVIEWS EDITOR /EDITORA DE RESEÑAS Francini Lube Guizardi, Fiocruz

EDITOR DE ENTREVISTAS/INTERVIEWS EDITOR/EDITOR DE ENTREVISTAS Pedro Paulo Gomes Pereira, Unifesp EDITORA DE CRIAÇÃO/CREATION EDITOR/EDITORA DE CREACIÓN Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Juliana Araújo Silva, Unesp Renata Monteiro Buelau, USP EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistant/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Rodrigo A. Chiarelli Gonçalves Assistente editorial/Editorial assistant/Asistente editorial Renato Ribeiro Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) Liane Christine L. P. Pilon (Português/Portuguese/Potugués) Félix Héctor Rígoli (Inglês/English/Inglés) Maria Jesus Carbajal Rodriguez (Espanhol/Spanish/Español) Web design Ester Campos Mello de Andrade Manutenção do website/Website support/Manutención del sitio Nieli de Lima Capa/Cover/Portada: Mayna de Ávila, 2015


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alcindo Ferla, UFRGS Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE Angelica Maria Bicudo, Unicamp António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Eunice Nakamura, Unifesp Fernando Peñaranda Correa, UFPr Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz George Dantas de Azevedo, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Gustavo Nunes de Oliveira, UnB Helena Maria Scherlowski Leal David, UERJ Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE Jairnilson da Silva Paim, UFBa Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Miguel Rasia, UFPr José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Lia Geraldo da Silva Batista, UFPE Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luciano Bezerra Gomes, UFPB Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp

P

ES

M FA

Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Raquel Rigoto, UFCE Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Ricardo Sparapan Pena, UFF Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Rosana Teresa Onocko Campos, Unicamp Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Túlio Batista Franco, UFF


APOIO/SPONSOR/APOYO Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp Fundação para o Vestibular da Unesp - Vunesp Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Bibliografia Brasileira de Educação

<http://www.inep.gov.br> . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . Indice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Iresie) <http://www.iisue.unam.mx/iresie/revistas_analizadas.php> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . SciELO Brasil/SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . SciELO Citation Index (Thomson Reuters) <http://thomsonreuters.com/scielo-citationindex/> . SciELO Saúde Pública <www.scielosp.org.br> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com>

TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br


DERMEVAL SAVIANI

HISTÓRIA

SAÚDE DA FAMÍLIA

ÉTICA

MAR

XISM

O

ATENÇÃO PRIMÁRIA

FORMAÇÃO

Mayna de Ávila, 2015

ISSN 1807-5762

MÉTODO SAÚDE EDUCAÇÃO

Z

GRAVIDE

TO

EN ECIM

ELH

COMUNICAÇÃO

ENV ULO

RÍC CUR

TRABALHO EM EQUIPE

PRECEPTORIA

CUIDADO COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2017; 21(62)


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, 2017; 21(62) Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2017; 21(62)

editorial 487 Interface, vinte anos: a Saúde Coletiva em tempos difíceis Mário Scheffer; Lilia Blima Schraiber

dossiê Dermeval Saviani: cinquenta anos de trabalho e educação

493 Apresentação

Marise Nogueira Ramos

497 Dermeval Saviani: uma trajetória cinquentenária

Ana Carolina Galvão Marsiglia; Carlos Roberto Jamil Cury

509 Dermeval Saviani e a centralidade ontológica do trabalho na formação do “homem novo”, artífice da sociedade socialista Gaudêncio Frigotto

521 Concepção de currículo em Dermeval Saviani e suas relações com a categoria marxista de liberdade Carolina Nozella Gama; Newton Duarte

531 A dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica histórico-crítica Tiago Nicola Lavoura; Lígia Márcia Martins

artigos 543 Trabalho, ser social e cuidado em saúde: abordagem a partir de Marx e Lukács

Diego de Oliveira Souza; Henrique Pereira Freitas de Mendonça

553 Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia Octávio Augusto Contatore; Ana Paula Serrata Malfitano; Nelson Filice de Barros

565 Núcleos de Apoio à Saúde da Família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde Charles Dalcanale Tesser

579 O cuidado de idosos como um campo intersubjetivo: reflexões éticas Katia Cherix; Nelson Ernesto Coelho Júnior

589 Sentidos atribuídos à integralidade: entre o que é preconizado e vivido na equipe multidisciplinar Marcos Valério Santos da Silva; Gilza Brena Nonato Miranda; Marcieni Ataíde de Andrade

601 Multiprofissionalidade e interprofissionalidade em uma residência hospitalar: o olhar de residentes e preceptores

Thaise Anataly Maria de Araújo; Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos; Talitha Rodrigues Ribeiro Fernandes Pessoa; Franklin Delano Soares Forte

educação

ISSN 1807-5762

615 Ensaio sobre ‘cegueiras’: itinerário terapêutico e barreiras de acesso em assistência oftalmológica Natalia Carvalho de Lima; Tatiana Wargas de Faria Baptista; Eliane Portes Vargas

629 Gestação e morte cerebral materna: decisões em torno da vida fetal Rachel Aisengart Menezes; Naara Luna

641 Significados, para os familiares, de conviver com um idoso com sequelas de Acidente Vascular Cerebral (AVC)

Rogério Donizeti Reis; Elaine Cristina Pereira; Maria Isabel Marques Pereira; Ana Maria Nassar Cintra Soane; José Vitor da Silva

651 O cuidado longitudinal difícil de uma usuária em situação de grave cronicidade: análise de caso emblemático

José Roque Junges; Raquel Brondísia Panizzi Fernandes; Noéli Daiam Raymundo Herbert; Francine Tomasini; Leonice Werle; Cátia Pereira; Andressa Wagner Moretti

661 Trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para a atenção primária à saúde

Rodrigo Alves dos Santos Silva; Fátima Corrêa Oliver

675 Fundamentos éticos na tomada de decisão de discentes de Fisioterapia

Talita Leite Ladeira; Aluísio Gomes da Silva Junior; Lilian Koifman

687 Sentidos sobre agroecologia na produção, distribuição e consumo de alimentos agroecológicos em Florianópolis, SC, Brasil Deise Warmling; Rodrigo Otávio Moretti-Pires

espaço aberto 699 Entre saúde e educação: sobre um ambulatório de saúde mental infantojuvenil Pedro Moacyr Chagas Brandão Junior; Fernanda Canavêz; Patricio Lemos Ramos

entrevistas 711 Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter Dermeval Saviani

resenhas 725 Bikes vs Car: análise crítica do documentário de Fredrik Gertten Mathias Roberto Loch; Paulo Henrique Guerra

criação 731 O que pode o corpo? Corpografias de resistência Mayna Yaçanã de Ávila; Alcindo Ferla


comunicação

saúde

2017; 21(62)

editorial 487

Interface, twenty years: Collective Health going through difficult times Mário Scheffer; Lilia Blima Schraiber

dossier Dermeval Saviani: fifty years of work and education 493

Presentation

497

Dermeval Saviani: a fifty-year trajectory

509

Dermeval Saviani and the ontological centrality of work for building the “new man”, maker of the socialist society

Marise Nogueira Ramos Ana Carolina Galvão Marsiglia; Carlos Roberto Jamil Cury

Gaudêncio Frigotto

521

The curriculum conception in Dermeval Saviani and its relations with the marxist category of freedom Carolina Nozella Gama; Newton Duarte

531

The dialectic of teaching and learning in historical-critical educational activity

Tiago Nicola Lavoura; Lígia Márcia Martins

articles 543

Work, social being and health care: an approach from Marx and Lukács

Diego de Oliveira Souza; Henrique Pereira Freitas de Mendonça

553

Care process in the health field: ontology, hermeneutics and teleology

Octávio Augusto Contatore; Ana Paula Serrata Malfitano; Nelson Filice de Barros

565

579

Family Health Support Teams, potentialities and barriers: the primary care health outlook Charles Dalcanale Tesser The care of elderly as a field of inter-subjective relations: ethic reflections Katia Cherix; Nelson Ernesto Coelho Júnior

589

Diverse meanings of comprehensiveness: between the presupposed and the experienced in a multi-disciplinary team

Marcos Valério Santos da Silva; Gilza Brena Nonato Miranda; Marcieni Ataíde de Andrade

601

Multiprofessionality and interprofessionality in a hospital residence: preceptors and residents’ view Thaise Anataly Maria de Araújo; Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos; Talitha Rodrigues Ribeiro Fernandes Pessoa; Franklin Delano Soares Forte

educação

ISSN 1807-5762

615 Essay on ‘blind spots’: therapeutic itinerary and access barriers in eye care

Natalia Carvalho de Lima; Tatiana Wargas de Faria Baptista; Eliane Portes Vargas

629 Pregnancy and maternal brain death: decisions on the fetal life Rachel Aisengart Menezes; Naara Luna

641 Meanings to family members living with elderlies affected by stroke sequelae

Rogério Donizeti Reis; Elaine Cristina Pereira; Maria Isabel Marques Pereira; Ana Maria Nassar Cintra Soane; José Vitor da Silva

651 The difficult longitudinal care of a female patient in a severe chronic situation: analysis of an emblematic case José Roque Junges; Raquel Brondísia Panizzi Fernandes; Noéli Daiam Raymundo Herbert; Francine Tomasini; Leonice Werle; Cátia Pereira; Andressa Wagner Moretti

661 Teaching career path and training of occupational therapists to primary health care

Rodrigo Alves dos Santos Silva; Fátima Corrêa Oliver

675 Ethical foundations of decision-making in physical terapy students

Talita Leite Ladeira; Aluísio Gomes da Silva Junior; Lilian Koifman

687 Meanings of agroecology in the production, distribution and consumption of agroecological food in Florianópolis, Santa Catarina State, Brazil Deise Warmling; Rodrigo Otávio Moretti-Pires

open space 699 Between health and education: a clinic for youngsters and children’s mental health

Pedro Moacyr Chagas Brandão Junior; Fernanda Canavêz; Patricio Lemos Ramos

interviews 711 From inspiration to the formulation of Historical-Critical Pedagogy (PHC). The three PHC moments that every truly critical theory must contain Dermeval Saviani

reviews 725 Bikes vs cars: critical analysis of Fredrik Gertten’s documentary Mathias Roberto Loch; Paulo Henrique Guerra

creation 731 What a body can do? Bodygraphics of resistance Mayna Yaçanã de Ávila; Alcindo Ferla


comunicação

saúde

2017; 21(62)

editorial 487 Interface, vinte años: la Salud Coletiva en tiempos difíciles Mário Scheffer; Lilia Blima Schraiber

dossier Dermeval Saviani: cincuenta años de trabajo y educaciõn

493 Presentaciõn

Marise Nogueira Ramos

497 Dermeval Saviani: una trayectoria cincuentenaria

Ana Carolina Galvão Marsiglia; Carlos Roberto Jamil Cury

509 Dermeval Saviani y la centralidad ontológica del trabajo en la formación del “hombre nuevo”, artífice de la sociedad socialista Gaudêncio Frigotto

521 Concepción de currículo en Dermeval Saviani y sus relaciones con la categoría marxista de libertad Carolina Nozella Gama; Newton Duarte

531 La dialéctica de la enseñanza y del aprendizaje en la actividad pedagógica histórico-crítica Tiago Nicola Lavoura; Lígia Márcia Martins

artículos 543 Trabajo, ser social y cuidado en salud: abordaje a partir de Marx y Lukács

Diego de Oliveira Souza; Henrique Pereira Freitas de Mendonça

553 Los cuidados en salud: ontología, hermenêutica y teleología Octávio Augusto Contatore; Ana Paula Serrata Malfitano; Nelson Filice de Barros

565 Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia, sus potenciales y obstáculos: uma interpretación a partir de la atención primaria a la salud Charles Dalcanale Tesser

579 El cuidado de ancianos como un campo intersubjetivo: reflexiones éticas

Katia Cherix; Nelson Ernesto Coelho Júnior

589 Sentidos atribuidos a la integralidad: entre lo que se preconiza y lo que se vive en el equipo multi-disciplinario

Marcos Valério Santos da Silva; Gilza Brena Nonato Miranda; Marcieni Ataíde de Andrade

601 Multi-profesionalidad e inter-profesionalidad en una residencia hospitalaria: la mirada de residentes y preceptores

Thaise Anataly Maria de Araújo; Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos; Talitha Rodrigues Ribeiro Fernandes Pessoa; Franklin Delano Soares Forte

educação

ISSN 1807-5762

615 Ensayo sobre ‘cegueras’: itinerario terapéutico y barreras de acceso en asistencia oftalmológica Natalia Carvalho de Lima; Tatiana Wargas de Faria Baptista; Eliane Portes Vargas

629 Gestación y muerte cerebral materna: decisiones en torno de la vida fetal Rachel Aisengart Menezes; Naara Luna

641 Significados para los familiares de convivir con un anciano con secuelas de Accidente Cerebrovascular (AVC)

Rogério Donizeti Reis; Elaine Cristina Pereira; Maria Isabel Marques Pereira; Ana Maria Nassar Cintra Soane; José Vitor da Silva

651 El cuidado longitudinal difícil de una usuaria en situación de grave cronicidad: análisis de caso emblemático

José Roque Junges; Raquel Brondísia Panizzi Fernandes; Noéli Daiam Raymundo Herbert; Francine Tomasini; Leonice Werle; Cátia Pereira; Andressa Wagner Moretti

661 Trayectoria docente y la formación de terapeutas ocupacionales para la atención primaria a la salud

Rodrigo Alves dos Santos Silva; Fátima Corrêa Oliver

675 Fundamentos éticos en la toma de decisión de discentes de fisioterapia

Talita Leite Ladeira; Aluísio Gomes da Silva Junior; Lilian Koifman

687 Sentidos sobre agroecología en la producción, distribución y consumo de alimentos agroecológicos en Florianópolis, Estada de Santa Catarina, Brasil Deise Warmling; Rodrigo Otávio Moretti-Pires

espacio abierto 699 Entre la salud y la educación: sobre un ambulatorio de salud mental infanto-juvenil Pedro Moacyr Chagas Brandão Junior; Fernanda Canavêz; Patricio Lemos Ramos

entrevistas 711 De la inspiración para la formulación de la Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Los tres momentos de la PHC que toda teoría verdaderamente crítica debe contener Dermeval Saviani

reseñas 725 Bikes vs Car: análisis crítico del documental de Fredrik Gertten Mathias Roberto Loch; Paulo Henrique Guerra

creación 731 ¿Qué puede hacer el cuerpo? Cuerpografías de resistencia Mayna Yaçanã de Ávila; Alcindo Ferla


Interface, vinte anos: a Saúde Coletiva em tempos difíceis Ao completar vinte anos, a revista Interface instiga a reflexão nos tempos difíceis atuais. Lançada em agosto de 1997, com a intenção de estimular o debate e a difusão de conhecimento em torno de questões interdisciplinares que se colocam no campo da Saúde, a publicação tem se destacado pela visibilidade nacional, pelo crescimento das submissões, pelas boas indexações e pela avaliação por parte da CAPES1. Com a determinação de valorizar a pesquisa qualitativa em saúde, sobretudo presente na subárea das Ciências Sociais e Humanas em Saúde, observou-se que o maior número de submissões também refletia o crescimento da própria pesquisa qualitativa na produção científica da Saúde Coletiva, reflexo ainda da expansão dos programas de pós-graduação nessa área, formando cada vez mais pesquisadores. A interlocução pretendida com as áreas da Educação e da Comunicação, no interior de seu escopo interdisciplinar, foi igualmente bem avaliada. E de seu projeto de editoração original, com o esforço para construir um diálogo entre expressões artísticas e o conteúdo dos textos publicados, manteve a perspectiva de permanentemente valorizar o modo de produção de conhecimento baseado na sensibilidade própria às Artes. Como resultado, a revista tem sido bem classificada não apenas na área da Saúde Coletiva, mas nas de Artes/Música, Interdisciplinar, Educação e Ensino, Ciências Sociais Aplicadas, Antropologia/Arqueologia e Sociologia. Esse período também exigiu adaptações às novas normas e imposições surgidas com o próprio desenrolar da ciência e da tecnologia no país, das políticas de avaliação e dos indicadores de formação e produção intelectual. Com o aumento do volume de submissões, houve uma contínua redução dos artigos aceitos para publicação, em razão, sobretudo, das dificuldades de financiamento no sentido de expandir a periodicidade de publicação da revista. Outra mudança foi a perda da publicação impressa, cuja qualidade e estética correspondiam ao objetivo de articular a produção científica com aquela em Artes. Assim, o aumento dos custos se fez sentir frente às dificuldades na obtenção de financiamentos específicos, já que apenas as assinaturas logo deixaram de cobrir tais necessidades. Adicionalmente, hábitos dos leitores com novas tecnologias apressaram a transição das revistas impressas para plataformas digitais on-line. Em todos esses anos, mudanças importantes aconteceram no próprio campo da Saúde Coletiva. Na esfera da academia, observou-se o crescimento e a diversificação dos programas de pós-graduação, além da maior autonomia das subáreas Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas em Saúde e Política; Planejamento e Gestão, inclusive com independência de congressos e eventos. Houve, ainda, o progressivo estabelecimento de cursos de graduação. Já as mudanças na esfera dos serviços e que produz diretamente questões de interesse científico e de formação de profissionais incorporados às práticas de saúde, observou-se o surgimento de políticas de financiamento a pesquisas ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), assim como a formulação de políticas assistenciais, com rápida substituição de normas anteriores, sobretudo, voltadas à atenção primária, com estímulos importantes à produção do conhecimento. Também ocorreu um aumento acelerado de profissionais e pesquisadores do campo, como se denota do também progressivo aumento de pessoas que apresentam trabalhos e frequentam os distintos congressos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2017; 21(62):487-91

editorial

DOI: 10.1590/1807-57622017.0288

487


EDITORIAL

Nesse cenário de ampliação de pesquisadores, profissionais engajados no SUS e temáticas de pesquisa; e mantendo seu acolhimento quanto à interdisciplinaridade e ao diálogo entre a Saúde Coletiva e as Ciências Humanas e Sociais, Interface tem se destacado enquanto veículo de expressão de conhecimentos e relatos de experiências em práticas de saúde com múltiplos objetos e contornos. Da produção compartilhada afluem várias disciplinas, desenhos de pesquisa e modos de investigação. Resta a uma publicação científica como Interface, em contextos atuais difíceis e de incertezas, não reduzir-se a uma coleção de problemas heterogêneos ou a uma caixa de objetos apropriados para cada disciplina, mas sim voltar-se a questões novas e transversais, em estudos que atualizem seus referenciais, quadros teóricos e métodos, em face de realidades diversas e dinâmicas. Ainda que esteja sempre aberta à educação e comunicação nas práticas de saúde e na formação de profissionais, novos aportes de conteúdos e abordagens devem ser valorizados, surgidos, sobretudo, na última década. A revista deve abraçar movimentos recentes de maior diversidade de categorias sociais, demográficas e de atores sociais estudados. Há diversificação de referenciais que aproximam a Saúde da Medicina, como nos campos da Saúde Mental e Saúde Sexual e Reprodutiva. O objeto “processo saúde-doença” permanece um objeto de estudo frequente, mas com novos enfoques e perspectivas: de raça, de gênero, sexualidade, violência, populações vulneráveis e marcadores sociais das diferenças e desigualdades. Somam-se estudos críticos de inovações organizacionais e desafios de gestão de serviços e níveis de atenção, das transformações de práticas profissionais, com mudanças nos perfis, na composição e distribuição da força de trabalho em saúde, do impacto das inovações tecnológicas, como as da genética e da telemedicina, do lugar dos medicamentos, das tecnologias e da propriedade intelectual nos espaços social e terapêutico, dos contextos de cronicidade, de fim da vida e de mudanças do paradigma da cura para o cuidado. Não só no Brasil, a produção em Ciências Sociais e Saúde2, ainda que profícua, aponta para desafios futuros de pesquisas que enfrentem tensões e interações entre riscos individuais e coletivos, interrogações abertas pela biotecnologia, pelas transformações dos saberes e das práticas das profissões de saúde e pelas reformas dos sistemas de saúde. Há que se destacar, ainda, contextos científicos e institucionais adversos, marcados pela saída da atuação na Saúde Coletiva de uma geração numerosa de pesquisadores em Ciências Sociais e Humanas recrutados nos anos 1970, pela redução de investimentos em pesquisa e docência nas universidade públicas, pela retração das agências de fomento e ascensão de instituições privadas de ensino em saúde, sem tradição e compromisso com a articulação ensino-pesquisa, pelos entraves impostos à democracia sanitária e pelas novas relações entre Estado, mercado e sociedade na concepção de políticas e na condução de sistemas de saúde. Na conformação da Saúde Coletiva no Brasil, embora tenha se desenvolvido um pensamento social em saúde caracterizado pelo diálogo interdisciplinar com as Ciências Biológicas, cabe ser considerada certa inibição e certo retardamento do avanço do conhecimento científico. É comumente atribuída menor cientificidade às Ciências Sociais aplicadas em Saúde, com obstáculos ao acionamento de recursos de pesquisas e à legitimação da produção acadêmica3. Há possível deficiência de formação de parte dos autores4, o que conduz a uma produção monótona que não usufrui da diversidade de ferramentas analítico-metodológicas à disposição ou mesmo leva à banalização e ao uso inadequado de categorias analíticas, técnicas e métodos qualitativos. 488

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2017; 21(62):487-91


COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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editorial

Não alheia a crises de cientificidade, identidade e adequação de métodos, a produção brasileira de políticas, planejamento e gestão em Saúde5,6 vem sendo marcada pela diversificação e fragmentação de abordagens ao tratar principalmente de políticas de saúde específicas, de problemas de determinados grupos populacionais, de instituições e práticas isoladas, da validação de iniciativas e programas governamentais, de componentes dos subsistemas que integram o sistema de saúde e, em menor grau, trazem análises do processo político em saúde. Iniciativas internacionais7 têm encorajado pesquisadores a renovarem esforços em abordagens multidisciplinares, tidas como imprescindíveis para a solução dos problemas complexos que se colocam para a Saúde Coletiva em geral e para os sistemas de saúde em particular. Cada vez mais é preciso compreender, por exemplo, a maneira como a sociedade passou a se organizar e como diferentes atores e interesses passaram a interagir para atender ou mesmo para dificultar objetivos sanitários coletivos; a forma como as políticas são elaboradas; e o papel de atores, interesses e relações de força e poder que influenciam os rumos e os resultados de saúde obtidos, cabendo interrogar os meios que são ou deixam de ser mobilizados, as razões dos sucessos e fracassos para o alcance das finalidades de promover, recuperar, melhorar e manter a saúde de toda a população8. Há que se ressaltar a necessidade de harmonização de esforços e definição de uma agenda estratégica e articulada para maximizar o impacto dos escassos investimentos em pesquisa e otimizar a produção de conhecimentos na Saúde Coletiva8. Também é imprescindível fortalecer os programas de pós-graduação para formar pesquisadores, ampliar fomentos destinados a abordagens e questões prioritárias de pesquisa decididas em conjunto pela comunidade acadêmica, assegurar transparência na utilização dos recursos envolvidos e na divulgação dos resultados. Faz-se necessário, ainda, melhor compreensão da dinâmica da constituição e do desenvolvimento da produção científica atual. Fundamentos divergentes devem compor o debate acadêmico sobre sua manutenção, articulação ou renegociação, visando à possível adoção de agenda plural, atualizada, inovadora e transdisciplinar de pesquisas. Trata-se de um debate sobre como a área da Saúde Coletiva agrega outras áreas, mantém, orienta ou reduz a diversidade teórica e metodológica na produção de conhecimentos; sobre como pesquisadores pautarão a organização de fronteiras, constituição de redes, publicação de obras ou organização de eventos acadêmicos. O mundo mudou drasticamente nos últimos vinte anos, assim como o cenário em que se dá a produção da Saúde Coletiva. Antes havia mais confiança de que, por meio de produção de evidências, a solução para problemas dos sistemas de saúde poderia ser facilmente identificada e sua implementação, generalizada9. O próprio conceito de políticas e estratégias universalmente relevantes passa a ser contestado, com o reconhecimento de que os sistemas de saúde são dinâmicos e nem sempre previsíveis, o que demanda capacidade analítica inovadora de pesquisa para produzir conhecimentos geradores de ajustes e intervenções adaptativas. Com a sociedade conectada, com novas redes de informação e tecnologias de interação, de compartilhamento de ideias e conhecimentos, o papel das instituições e dos agentes responsáveis pela saúde vai muito além dos limites do sistema, das políticas e dos programas tradicionais de saúde, o que requer novas questões de pesquisa que naveguem nessa e em outras realidades contemporâneas, a exemplo da convivência maior com situações crônicas de saúde, da necessidade crescente de recursos em tempos de austeridade fiscal, ou do imperativo de responder à insatisfação social por meio do incremento da qualidade e eficiência de serviços de saúde.

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EDITORIAL

No Brasil, os constrangimentos à universalidade e as alternativas que fragmentam e estratificam o sistema de saúde percorreram, em nuances e graus diversos, todos os governos, de Fernando Collor a Michel Temer, passando por vários partidos, desde que o SUS foi assegurado na Constituição de 1988, e incluem desde a não criação de bases sólidas e fontes estáveis de financiamento público para a saúde até o acirramento dos processos de privatização e financeirização, resultados da acumulação de poder político e mecanismos de relação com o Estado acionados por empresas e instituições que compõem o setor privado da saúde. Na busca da superação das crises política, econômica, ética, moral e societal que abatem o país, a Saúde Coletiva e a defesa do SUS despontam com elementos de um novo projeto nacional e de civilização a ser coletivamente forjado, que clame por outra economia – que gere crescimento, que promova inclusão e renove o estado de bem-estar social – e por uma reforma política que assuma os limites da estrutura partidária corrompida e da democracia representativa nos moldes atuais, permitindo novas experiências, nas quais a população possa ter presença efetiva e direta na gestão, nas decisões e nos vetos sobre temas nacionais como a saúde. Para tanto, a Saúde Coletiva deve revisitar a construção do pensamento crítico que a caracterizou desde sua origem, retomar o conceito ampliado de saúde, ater-se às questões contra-hegemônicas e culturais – entre elas as desigualdades – e voltar a articular a política com as dimensões técnico-científicas. Se até a primeira década dos anos 2000 é clara a percepção de que a Saúde Coletiva se consolidou como campo científico, diante dos novos tempos, outros desafios se colocam frente a sua (re)fundação como projeto interdisciplinar e crítico da cultura científica e das práticas médica e sanitária tradicionais. Em mesma direção, as revistas do campo devem reorientar suas agendas editoriais, atualizando-as e abrindo-se a comunidades mais ampliadas e diversificadas de pesquisadores, também em sintonia e interação com os novos movimentos sociais e debates em curso sobre projetos de futuro. Mário Scheffer Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, Cerqueira César. São Paulo, SP, Brasil. 01246-903. mscheffer@usp.br Lilia Blima Schraiber Editora de Interface – Comunicação, Saúde, Educação. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. liliabli@usp.br

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1. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP, Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista interface – comunicação, saúde, educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68. 2. Rapport Sciences humaines et sociales et santé. Sci Soc Santé. 2013; 31(1):37-58. doi:10.3917/sss.311.0037.

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Referências

3. Ianni AMZ, Spadacio C, Barboza R, Alves OSF, Viana SDL, Rocha AT. Ciências sociais e humanas em saúde na ABRASCO: a construção de um pensamento social em saúde. Cad Saude Publica. 2014; 30(11):2298-308. 4. Deslandes SF, Iriart JAB. Usos teórico-metodológicos das pesquisas na área de ciências sociais e humanas em saúde. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2380-6. 5. Paim JS, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saude Publica. 2006; 40 N Esp:73-8. 6. Santos JS, Teixeira CF. Política de saúde no Brasil: produção científica 1988-2014. Saude Debate. 2016; 40(108):219-30. 7. Gilson L, editor. Health policy and systems research: a methodology reader. Geneva: WHO; 2012. 474 p. [citado 19 Maio 2017]. Disponível em: http://www.who.int/alliancehpsr/resources/reader/en/index.html. 8. Scheffer MS, coordenador. Contribuições para uma agenda de pesquisas sobre o sistema único de saúde: síntese das discussões realizadas no Strategic Workshops USP “A saúde no Brasil após a PEC 241”. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2017. 42 p. [citado 19 Maio 2017]. Disponível em: http://www2.fm.usp.br/gdc/docs/ preventiva_255_uspworkshopsus.pdf. 9. World Health Organization (WHO). World report on health policy and systems research. Geneva: WHO; 2017. 56p. [citado 19 Maio 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/ iris/bitstream/10665/255051/1/9789241512268-eng.pdf.

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Interface, twenty years: Collective Health going through difficult times After completing twenty years, Interface calls the journal’s readers to a reflection regarding current hard times. Launched in August, 1997 with the intention of stimulating the debate and the diffusion of knowledge around interdisciplinary issues in the field of health, this publication stands out by its national visibility, by the growth of submissions, by its good indexation and by the CAPES rate1. Determined to value the qualitative research in health, especially present in the subarea of the Social and Human Sciences in Health, the greater number of submissions also reflected the growth of qualitative research itself in the domain of the scientific production of Collective Health, reflecting the expansion of graduate programs in this area, producing and training an increasing number of researchers. An aspect equally well evaluated was the interlocution sought with the areas of Education and Communication within its interdisciplinary scope. And from its original publishing project, it kept its ever-evolving efforts to build a dialogue between artistic expressions and the content of the published texts, keeping the perspective of a continued appreciation of the way to produce knowledge based on the specific sensitivity of the Arts. As a result, the journal has been positively classified not only in the area of ​​ Collective Health, but also in those of Arts / Music, Interdisciplinary, Education and Teaching, Applied Social Sciences, Anthropology / Archeology and Sociology. Over this period it also required adaptations to the new norms and impositions arising from the development of science and technology in Brazil, as well as the evaluation policies and indicators of training and intellectual production. With the increase of the volume of submissions, there was a continuous reduction of the accepted articles for publication, mainly due to the financing difficulties experienced to expand the periodicity of the journal publication. Another change was the end of the printed publication, whose quality and aesthetics corresponded to the objective of articulating the scientific production with the artistic one. As a result, the increase in costs was felt through the difficulties in obtaining specific financing, since the mere subscriptions soon proved to fail short in covering such needs. In addition, readers’ habits with new technologies have hastened the transition from print magazines to online digital platforms. In all these years, important changes occurred in the field of Collective Health itself. In the academic sphere, growth and diversification of graduate programs were observed, as well as the greater autonomy of the sub-areas such as Epidemiology; Social and Human Sciences in Health and Politics; Planning and Management, including independent congresses and events. There was also a gradual establishment of undergraduate courses. On the other hand, the changes in the sphere of health services that directly produce issues of scientific interest and training of professionals incorporated into health practices, encompasses the emergence of funding policies for research linked to the Brazilian National Health System (SUS), as well as the formulation of health care policies, with rapid replacement of previous norms, mainly focused on primary care, with important stimuli to knowledge production. There has also been an accelerated increase in the number of professionals and researchers in the field, observed also through the increasing number of people presenting papers and attending different congresses. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0288

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In this expanding scenario of more researchers, more professionals engaged in the SUS and research themes; and while maintaining its interdisciplinarity and dialogue between Collective Health and Human and Social Sciences, Interface has stood out as a vehicle for expressing knowledge and reporting experiences in health practices with multiple objects and contours. Various disciplines, research designs and modes of investigation stem from this shared production. It remains for a scientific publication like Interface, in today’s difficult contexts and uncertainties, the duty of avoiding reducing itself to a collection of heterogeneous problems or to a toolbox of objects appropriate for each discipline, but instead resort to new and transversal questions in studies that update their references, theoretical frameworks and methods, in the face of diverse and dynamic realities. Although it is always open to education and communication in health practices and professional education, new contributions of content and approaches that emerged in the last decade are especially valued. The journal should embrace recent movements through the study of a greater diversity of social, demographic and social categories. This diversification of theoretical frameworks will bridge the gap between health and medicine, as in the fields of Mental Health and Sexual and Reproductive Health. The object “health-disease process” remains a frequent object of study, but with new approaches and perspectives: race, gender, sexuality, violence, vulnerable populations and social markers of differences and inequalities. Additionally there are critical studies of organizational innovations and management challenges of services and levels of care, changes in professional practices, shifts in profiles, composition and distribution of the health workforce, and the impact of technological innovations, such as genetics and telemedicine, the role of medicines, technologies and intellectual property in the social and therapeutic spaces, the contexts of chronicity, end of life and changes from the evolving paradigm from healing to care. It is not exclusive to Brazil that the production in Social Sciences and Health2, although fruitful, points to future research challenges that confront tensions and interactions between individual and collective risks, questions opened by biotechnology, knowledge transformations and changes in practices of health professions as well as health system reforms. It is also worth noting that there are adverse scientific and institutional contexts, marked by the retirement of a large generation of researchers in Social and Human Sciences recruited in the 1970s, quitting active roles in Collective Health, product of the shrinking investment in research and teaching in public universities. It is also motivated by the reduced role of the research agencies and the promotion of private health education institutions, without tradition and commitment to the teaching-research articulation. Added to the aforementioned, we must consider the obstacles imposed on health democracy and the new relations between the State, market and society in the design of policies and in the stewardship of health systems. In the conformation of Collective Health in Brazil, although it has been developed as a social line of thinking in health characterized by the interdisciplinary dialogue with the Biological Sciences, it is also possible to be perceived a certain inhibition and a certain retardation of the advance of the scientific knowledge. It is common to consider the Social Sciences applied in Health as less scientific and the activation of research resources and the legitimation of academic production is therefore blocked3. There is a possible lack of training on the part of the authors4, which leads to a monotonous production 488

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that does not enjoy the diversity of analytical-methodological tools available; or even it may lead to banalization and inappropriate use of analytical categories, techniques and qualitative methods. Even not spared from the crises of scientificity, identity and appropriateness of methods, the Brazilian production of policies, planning and management in Health5,6 has been marked by the diversification and fragmentation of approaches when dealing mainly with specific health policies, or addressing problems of certain population groups, of isolated institutions and practices, of the validation of governmental initiatives and programs, of components of subsystems that integrate the health system, and to a lesser extent, providing analyzes of the political process in health. International initiatives7 have encouraged researchers to renew efforts in multidisciplinary approaches, considered essential for solving the complex problems that arise for Collective Health in general and for health systems in particular. It is increasingly necessary to understand, for example, the way in which society evolved in its organization and how different actors and interests began to interact to solve, or inversely, to hamper collective health objectives; the way policies are developed; and the role of stakeholders, interests and relations of force and power that influence the direction and results of health obtained. It is necessary to question the means that are being mobilized or blocked, the reasons for successes and failures to reach the goals of promoting, recovering, improving and maintaining the health of the entire population8. It is necessary to emphasize the need for harmonization of efforts and the definition of a strategic and articulated agenda to maximize the impact of scarce investments in research and to optimize the production of knowledge in Collective Health8. It is also imperative to strengthen graduate programs to train researchers, to broaden the support with focus on research approaches and priority issues decided jointly by the academic community, ensure transparency in the use of the resources involved, and disseminate its results. It is also necessary to better understand the dynamics of the constitution and development of current scientific production. Divergent grounds should inform the academic debate about its maintenance, articulation or renegotiation, aiming at the possible adoption of a plural, updated, innovative and transdisciplinary research agenda. It is a debate about how the area of Collective ​​ Health may act aggregating other areas, maintaining, guiding or reducing the theoretical and methodological diversity in the production of knowledge; about how researchers will guide the organization of thematic boundaries, networking, publication of works or convening academic events. The world has changed drastically in the last twenty years, as well as the scenario in which the production of Collective Health takes place. Previously, there was more confidence that through the production of evidence, the solution to health system problems could be easily identified and those solutions could have widespread implementation9. The very concept of universally relevant policies and strategies is challenged with the recognition that health systems are dynamic and not always predictable, requiring innovative analytical research capacity to produce knowledge that generates adjustments and adaptive interventions. Within the connected society, with new information networks and technologies of interaction, sharing of ideas and knowledge, the role of institutions and agents responsible for health goes far beyond the limits of the systemic traditional health policies and programs, requiring new research questions that navigate these and other contemporary realities, such as a closer

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coexistence with chronic health situations, the increasing need for resources in times of fiscal austerity, or the imperative to respond to social dissatisfaction by increasing quality and efficiency of health services. In Brazil, the constraints to universality and the alternatives that fragment and stratify the health system have crossed over all governments, from Fernando Collor to Michel Temer, albeit with nuances and different degrees, surviving through several party administrations since the SUS was enacted in the 1988 Constitution. It included the failure to create solid foundations and stable sources of public financing for health before it was stopped by the intensification of privatization and financialization processes, that resulted from the accumulation of political power, and from mechanisms of relations with the State triggered by companies and institutions that make up the private health sector. In order to overcome the political, economic, ethical, moral and societal crises that hit the country, Collective Health and the defense of the SUS come to the fore with elements of a new national project and civilization to be collectively forged, generating growth, promoting inclusion and renewing the social welfare state - and a political reform that acknowledges the limits of a corrupt party structure and the representative democracy in the current molds, allowing new experiences in which the population can have an effective and direct presence in the management, in the decisions and the vetoes on national subjects like health. To this end, Collective Health must revisit the construction of the kind of critical thinking that was its main characteristic since its inception. It should also take up the expanded concept of health, confront counter-hegemonic and cultural issues - including inequalities - and re-articulate the political and the technical-scientific dimensions. If, until the first decade of the 2000s, there was a clear perception that Collective Health was consolidated as a scientific field, when faced with the new times it must confront other challenges regarding its (re) foundation as an interdisciplinary project that can act critically to question traditional scientific culture, medical practices and health care. In the same direction, journals in this field should refocus their editorial agendas, updating them and opening up to an expanded and more diverse communities of researchers, also keeping in tune and interaction with the new social movements as well as the ongoing debates regarding projects for the future. Mário Scheffer Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, Cerqueira César. São Paulo, SP, Brasil. 01246-903. mscheffer@usp.br Lilia Blima Schraiber Editora de Interface – Comunicação, Saúde, Educação. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. liliabli@usp.br

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1. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP, Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista interface – comunicação, saúde, educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68. 2. Rapport Sciences humaines et sociales et santé. Sci Soc Santé. 2013; 31(1):37-58. doi:10.3917/sss.311.0037.

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References

3. Ianni AMZ, Spadacio C, Barboza R, Alves OSF, Viana SDL, Rocha AT. Ciências sociais e humanas em saúde na ABRASCO: a construção de um pensamento social em saúde. Cad Saude Publica. 2014; 30(11):2298-308. 4. Deslandes SF, Iriart JAB. Usos teórico-metodológicos das pesquisas na área de ciências sociais e humanas em saúde. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2380-6. 5. Paim JS, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saude Publica. 2006; 40 N Esp:73-8. 6. Santos JS, Teixeira CF. Política de saúde no Brasil: produção científica 1988-2014. Saude Debate. 2016; 40(108):219-30. 7. Gilson L, editor. Health policy and systems research: a methodology reader. Geneva: WHO; 2012. 474 p. [citado 19 Maio 2017]. Disponível em: http://www.who.int/alliancehpsr/resources/reader/en/index.html. 8. Scheffer MS, coordenador. Contribuições para uma agenda de pesquisas sobre o sistema único de saúde: síntese das discussões realizadas no Strategic Workshops USP “A saúde no Brasil após a PEC 241”. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2017. 42 p. [citado 19 Maio 2017]. Disponível em: http://www2.fm.usp.br/gdc/docs/ preventiva_255_uspworkshopsus.pdf. 9. World Health Organization (WHO). World report on health policy and systems research. Geneva: WHO; 2017. 56p. [citado 19 Maio 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/ iris/bitstream/10665/255051/1/9789241512268-eng.pdf.

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Apresentação Presentation Presentación

Marise Nogueira Ramos(a)

A publicação deste dossiê em homenagem ao professor Dermeval Saviani, neste momento, é tanto um ato de justiça quanto de protesto e resistência. Como atestam os textos aqui apresentados, a história e a obra desse educador ao longo dos últimos cinquenta anos é símbolo da luta pelo direito da classe trabalhadora à educação pública, universal, laica e de qualidade; e matéria de orientação concreta a este direito do ponto de vista filosófico e ético-político. Revisitá-las e difundi-las agora é o mesmo que resistir ao movimento gravemente regressivo da conjuntura atual que se manifesta na educação básica, assim como em outros âmbitos, mediante a recente aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei nº 13.415/2017, que reformula o ensino médio no Brasil. O leitor que transitar por todo o dossiê testemunhará o diálogo entre os autores, cada qual abordando a produção do professor Saviani em alguma perspectiva. A primeira, elaborada por Ana Carolina Marsiglia e Carlos Roberto Jamil Cury, possibilita o encontro com a dimensão existencial do homenageado, na qual se enraízam suas análises da educação e suas teorias pedagógicas. Para além de sua origem, sua consciência de classe, que foi desenvolvida na contraditória relação entre os reinos da necessidade e da liberdade em que viveu – o trabalho desde a juventude e os estudos filosóficos iniciados em uma “instituição total” e prosseguidos na universidade –, o levou a questionar o sentido da escola para a classe dominada. Sua resposta a essa questão é exatamente o contrário do que os representantes da classe dominante hoje dão à sociedade brasileira com a referida reforma. Enquanto esses minimizam em quantidade e qualidade o ensino médio para os estudantes da escola pública, nosso intelectual demonstra que, apropriado pela classe trabalhadora, o conhecimento sistematizado produzido historicamente pela humanidade se torna força política. Porém, nem por isso educação e política são consideradas fenômenos idênticos, apesar de serem inseparáveis, como nos ensinou o livro “Escola e democracia”. O conteúdo biográfico do

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(a) Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Avenida Brasil, 4365, Sala 322, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20550-013. ramosmn@gmail.com

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DERMEVAL SAVIANI: CINQUENTA ANOS DE TRABALHO E EDUCAÇÃO

texto nos mostra que Dermeval Saviani viveu intensamente essas dimensões da prática social como particularidades e na sua unidade. O encontro proporcionado por este artigo com a trajetória do professor, escritor e pesquisador é um encontro com o materialismo histórico-dialético como concepção de mundo e método de apreensão do real. Assim, as questões de investigação que Dermeval Saviani se colocou e que motivaram suas pesquisas, condensadas na importante bibliografia que o artigo nos apresenta, têm o trabalho no seu sentido ontológico como pressuposto e a contradição como categoria do método. Por isso, entende a educação não somente como reprodutora da dominação de classe, mas como lócus de emancipação, por ser expressão histórica das contradições da sociedade de classes. Sendo o trabalho um conceito central na obra do professor Saviani, por referência ao modo de produção da existência humana, o texto de Gaudêncio Frigotto adentra esse campo, nos ajudando a ver a coerência filosófica do autor com a precedência da ontologia materialista na sua concepção de mundo e de conhecimento. Ele foi também um dos difusores no Brasil da concepção de educação politécnica, em grande parte tributária da introdução pelo professor dos estudos de Marx e Gramsci na pós-graduação em educação no país. Ambos estiveram juntos na construção do que em 1987 se cunhou como “uma utopia em construção”: a tentativa de se fundar, originalmente e na contradição, uma escola baseada na concepção de educação politécnica inspirada no pensamento de Gramsci. Essa experiência legitima o autor do artigo a discutir, ao fim de seu texto, a natureza das críticas à concepção do trabalho como princípio educativo em Saviani. Argumenta que o intelectual dialoga com as críticas, analisando-as e incorporando elementos delas em suas obras. Denuncia, porém, aquelas que partem da “análise silogística nos parâmetros da lógica formal e na perspectiva do raciocínio dicotômico”, tomando trechos muitas vezes fora do contexto das obras do intelectual, revelando uma intenção estéril à polêmica diletante ou desqualificadora. A finalização da análise nesses termos se respalda na densa recuperação do conceito de trabalho na obra de Saviani, compreendido como “a atividade vital que define a especificidade do ser humano e, como tal, ponto de partida e de chegada da análise que se inscreve numa perspectiva materialista histórica”. É, portanto, a partir dessa ontologia que se explicita a opção epistemológica do intelectual e sua ação política na luta pelo socialismo. A recuperação do artigo “A relação trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos”, publicado na Revista Brasileira de Educação, é uma oportunidade para o leitor encontrar uma síntese da filosofia da educação de Dermeval Saviani na convergência com a análise ontológicahistórica da educação, tal como ele reivindicou na introdução de seu texto. O autor também o toma como exemplo da disposição científica e ética do intelectual para dialogar com seus críticos, pois nesse texto não só encontramos o conceito de politecnia, que ele desenvolveu a partir de Marx e Gramsci, como também a polêmica terminológica a que Paolo Nosella lhe convida. Este pergunta se o termo “educação tecnológica” não corresponderia mais adequadamente à concepção marxiana e revolucionária da educação do que politecnia. Como os autores são convergentes em relação ao sentido ontológico do trabalho e da potência da escola moderna em atuar na contradição entre os tempos de necessidade e de liberdade, conclui Saviani que não seria o uso de determinado termo que colocaria suas ideias em confronto, dispondose até mesmo a abrir mão de “politecnia”, sem prejuízo para a concepção pedagógica que vem procurando elaborar. Se a formação do “homem novo” na perspectiva do socialismo implica incorporar, desde a infância, o trabalho socialmente produtivo como condição universal do ser humano, a superação da contradição entre o avanço das forças produtivas e as relações sociais de produção baseadas na propriedade privada teria como resultante a superação dialética da contradição entre os reinos da necessidade e da liberdade. Assim, percebe-se que o trabalho escolar é motivado pela necessidade de produzir liberdade, posto que o uso de um conhecimento e a produção de um novo possibilita a apropriação da natureza pelo homem, conduzindo-o à ampliação da qualidade de vida. A isso se liga o sentido emancipador atribuído por Dermeval Saviani à apropriação pela classe dominada do conhecimento científico, ético e estético produzido historicamente pela humanidade. Para ele, como relembram Newton Duarte e 494

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Ramos MN

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Carolina Gama em seu texto, a pedagogia inspirada no marxismo implica a apreensão da concepção de fundo (de ordem ontológica, epistemológica e metodológica) que caracteriza o materialismo histórico. Assim, a reorganização do trabalho educativo nessa concepção tende a movimentar um novo éthos educativo voltado à construção de uma nova sociedade, de uma nova cultura de um novo ser humano. Por esse caminho, os autores nos ajudam a entender que a questão da liberdade “está no centro desse processo de construção de uma pedagogia inspirada no marxismo, necessariamente articulada à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura e um novo ser humano” e no “centro do projeto de uma sociedade socialista”, opondo-se frontalmente ao mito da liberdade formal do liberalismo. Na nova sociedade, a humanidade é livre para redirecionar as forças produtivas a serviço da produção de valores de uso, de modo que o trabalho seja “uma das principais formas de livre desenvolvimento das capacidades e das necessidades humanas”. É na relação ontológica e histórica com a liberdade que o princípio educativo do trabalho em Saviani é aqui abordado. Newton Duarte e Carolina Gama demonstram que esse postulado da pedagogia histórico-crítica se fundamenta não no trabalho assalariado do qual o capital extrai a mais-valia, mas sim “na importância do trabalho para a construção histórica das possibilidades objetivas e subjetivas de liberdade para a humanidade”. Isto corresponde à designação conferida ao trabalho por George Lukács como modelo de toda prática social; ou seja, a apropriação humana da natureza pelo trabalho para suprir necessidades básicas fez surgir e se desenvolver “novas necessidades que geraram esferas mais elevadas de objetivação, chegando-se às formas mais desenvolvidas e complexas que são a ciência, a arte e a filosofia”. Tomado como princípio educativo, essa compreensão do trabalho tem implicações curriculares que os autores exploram na primeira parte do texto, em especial no que se refere à premissa curricular da objetividade e enfoque científico do conhecimento abordados pelo professor Saviani. Aproveitam para salientar que objetividade não é o mesmo que neutralidade, já que o processo histórico de produção do conhecimento tende a ser orientado pelos interesses da classe dominante. Por esse motivo, retomam de nosso autor a diferença entre os aspectos gnosiológico (centrado no conhecimento e na objetividade) e ideológico (expressão dos interesses, na subjetividade) do conhecimento. Assim, a historicidade do conhecimento torna-se princípio orientador do currículo e da prática pedagógica, pois, como afirmam, “a historicização é a forma de resgatar a objetividade e a universalidade do saber”, ao mesmo tempo que permite compreender os problemas que a humanidade se colocou e se dispôs a resolver. Tais problemas, particularidades empíricas da totalidade social, conformaram-se como problemas científicos cujo enfrentamento amplia a apropriação do real. Ao mesmo tempo, a cada momento que a humanidade transforma objetivamente sua realidade, produzem-se novas culturas manifestadas como ética e como estética. Daí se identifica a relevância social dos conteúdos curriculares – outro princípio enfatizado pelos autores – juntamente com a noção de clássico presente na teoria pedagógica do professor, como um importante critério para guiar a seleção dos conhecimentos a serem ensinados. Assim se atesta que a pedagogia histórico-crítica é a expressão, no plano educativo, do método materialista histórico-dialético. O artigo de Tiago Lavoura e Lígia Márcia Martins insiste neste tema, chamando-nos a atenção para o fato de que o destaque didático-metodológico atribuído a essa teoria pedagógica; em detrimento da apropriação das bases teóricas e históricas, de seus fundamentos filosóficos e do significado político do conjunto da obra de Dermeval Saviani; pode levar à interdição da verdadeira concepção ontológica da pedagogia histórico-crítica. Por isso, além de mostrarem alguns “nexos causais que possibilitam explicar essa didatização e desmetodização do método pedagógico histórico-crítico”, propõem-se a contribuir para a superação desses equívocos, partindo do princípio da unidade ontologia e metodologia presente na teoria social de Marx. Tal princípio se manifesta na obra de Saviani, não negligenciado pelos outros autores deste dossiê, mas aprofundado por esses a quem nos referimos. Tiago Lavoura e Lígia Márcia dedicam, então, um item à análise da unidade teórico-metodológica do pensamento de Marx, a fim de, simultaneamente, recuperá-lo como fundamento da pedagogia histórico-crítica e demonstrar que tanto o “racionalismo formal” típico do positivismo e neopositivismo quanto o “irracionalismo” pós-moderno liquidam ou relativizam a dimensão ontológica do real. Se atualmente, no campo educativo, essas tendências se manifestam nas teorias pedagógicas designadas 495


DERMEVAL SAVIANI: CINQUENTA ANOS DE TRABALHO E EDUCAÇÃO

como pós-críticas, a respectiva contraposição da pedagogia histórico-crítica está em compreender que “a atividade de aprendizagem possibilita aos alunos a apropriação dos conteúdos escolares necessários para o conhecimento da realidade (dimensão epistemológica) e, ao mesmo tempo, a apreensão dos nexos e relações que lhe permitem compreender e explicar o que essa realidade realmente é (dimensão ontológica)”. Nesse sentido, repetimos que, sendo o homem e a realidade produzidos na relação igualmente histórica e dialética entre sujeito-objeto, o princípio da historicidade do conhecimento é orientador do currículo. O ponto de chegada do artigo, anunciam os autores, “está na análise do duplo trânsito requerido pelo trabalho pedagógico no que se refere ao caminho lógico do ensino em contraposição dialética ao da aprendizagem”. Para isso, nos brindam com apontamentos da psicologia histórico-cultural e da teoria da atividade de Leontiev. Apresentam e defendem a contribuição dessa teoria porque, ao ter o trabalho educativo como uma atividade especificamente humana, permite-se reconhecer a materialização de tal especificidade no ensino (atividade do professor) e na aprendizagem (atividade do aluno), processos que, por sua vez, operam por contradição, tal como argumentam os autores com a ajuda da abordagem histórico-cultural de Vigotski. Face ao que apresentamos, esta obra é, certamente, uma homenagem justa e digna de um intelectual da envergadura de Dermeval Saviani, devido a tudo sobre o que os autores se manifestaram e que dele conhecemos. Mas trata-se, também, de uma homenagem aos educadores brasileiros, pela oportunidade de terem acesso, de forma rigorosamente analítica, mas sintética na sua exposição, a fundamentos da obra do intelectual motivada e produzida coerentemente pelos princípios éticopolíticos que sustentam sua trajetória existencial e acadêmica.

Submetido em 03/03/17. Aprovado em 22/03/2017.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0947

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Dermeval Saviani: uma trajetória cinquentenária

Ana Carolina Galvão Marsiglia(a) Carlos Roberto Jamil Cury(b)

Marsiglia ACG, Cury CRJ. Dermeval Saviani: a fifty-year trajectory. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):497-507.

The ethical attitude of Dermeval Saviani, as well as his academic contributions both promoting key educators and through countless publications, are one of the best and greatest testimonies in the struggle for elementary and higher education in Brazil today. His commitment in favor of an alliance between educators and the search for quality and socially equal school education, leads to the celebration in a timely and deserved way of his fiftieth career anniversary. In this paper, divided in three parts, we first highlight the most general aspects in his biography (family, school, work). In the second section, we address his academic-professional path, as professor, writer and researcher. In the last section, we underline the professor Saviani’s future plans, an expression of his vigor and willingness to continue contributing to Brazilian education, stimulating us in the struggle for quality education for the working class.

A postura ética de Dermeval Saviani, bem como sua contribuição acadêmica, seja na formação de quadros ou por meio de suas inúmeras publicações, é um dos melhores e maiores testemunhos da luta pela educação básica e superior hoje no País. Da união compromissada, áurea, por uma aliança entre um educador e a perseguição de uma educação escolar de qualidade social, celebramos, de forma oportuna e meritória, seu cinquentenário de carreira. Neste artigo, dividido em três partes, primeiramente destacamos de sua biografia aspectos mais gerais (família, escola e trabalho). No segundo item, tratamos de sua trajetória acadêmico-profissional como professor, escritor e pesquisador. No último tópico, sublinhamos os planos de futuro do professor Saviani, que expressam sua vitalidade e disposição para continuar a contribuir para a educação brasileira, animando todos nós na luta pela formação de qualidade da classe trabalhadora.

Keywords: Dermeval Saviani. Brazilian education. History of education. Pedagogical ideas.

Palavras-chave: Dermeval Saviani. Educação brasileira. História da educação. Ideias pedagógicas.

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Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais, Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo. Avenida Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras. Vitória, ES, Brasil. 29075910. galvao.marsiglia@ gmail.com (b) Departamento de Educação, Instituto de Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil. crjcury.bh@terra.com.br (a)

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DERMEVAL SAVIANI: UMA TRAJETÓRIA CINQUENTENÁRIA

Introdução A comemoração de cinquenta anos de uma trajetória é simbolizada pelo ouro, cuja aparência de um amarelo vistoso e belo sempre fez com que fosse tido como um metal de alto valor. Ao longo da história, chegou a ser referência de riqueza e de garantia de valor. Esse metal, entretanto, vai além de sua materialidade. O ouro, do latim aurum, material brilhante, simboliza a nobreza, o caráter forte e firme de um compromisso ao longo de tantos anos. Por isso, muitas das uniões entre pessoas formalizam-se e publicizam-se por um anel de ouro. Trata-se também do supremo galardão em competições esportivas, especialmente nos Jogos Olímpicos. É dessa união compromissada e áurea, marcada por uma aliança entre um educador e a perseguição de uma educação escolar de qualidade social, que celebramos, de forma oportuna e meritória, o cinquentenário de carreira de Dermeval Saviani.

A história de um “filho de trabalhadores brasileiros” Em 1994, durante o simpósio “Dermeval Saviani e a educação brasileira”, realizado na Unesp, campus de Marília, Cury1 enfatizou que Saviani é um “[...] filho de trabalhadores brasileiros, neto de imigrantes italianos, que sabe o valor do conhecimento para a mudança social” (p. 20). É a partir dessa perspectiva que procuramos apresentar brevemente a biografia desse educador que, justamente por compreender a relevância do conhecimento, “[...] é o professor que é sério, rigoroso e difícil; é o escritor que é claro, distinto e definido; é o pesquisador que é cuidadoso, fundado e inovador.”1 (p. 20). Dermeval Saviani nasceu em 25 de dezembro de 1943, em uma fazenda em Santo Antonio da Posse, interior do Estado de São Paulo. Os pais dos oito filhos dessa família jamais frequentaram os bancos escolares, embora tenham conseguido se alfabetizar. Em 1948, a família mudou-se para a capital paulista, levando o pai e a maioria dos irmãos de Dermeval Saviani a se tornarem operários nas fábricas da cidade. Entre 1951 e 1954, frequentou o ensino primário em um grupo escolar, localizado em um galpão de madeira na periferia de São Paulo. Desse período, o próprio professor Dermeval destaca que não foi um aluno brilhante, pois dividia seu tempo escolar com as peladas de futebol e sua infância foi “[...] como a de qualquer criança pobre, semelhante, portanto, à dos filhos da maioria da população que habita este país.”2 (p. 2). Em 1955 iniciou o curso de admissão ginasial em São Paulo, mas ainda nesse ano mudou-se para Cuiabá, onde veio a cursar o ginásio no Seminário Nossa Senhora da Conceição (1956 a 1959), revelando-se um aluno aplicado, que invariavelmente alcançou o primeiro lugar na classificação dos estudantes, emitida pelos boletins mensais da escola. O curso colegial foi feito ainda em Mato Grosso e desse tempo Saviani2 fala do seu sentido contraditório, pois, ao mesmo tempo que representou uma violenta ruptura com seus familiares, com quem deixou de conviver com apenas 11 anos de idade, foi também de grande riqueza pelas novas experiências que propiciou. Em 1962, ingressa no Seminário Maior, em Aparecida do Norte (SP), onde iniciou os estudos filosóficos. Saviani reflete sobre os rumos de sua vida e entende que, apesar de as circunstâncias terem-no conduzido ao Seminário, “[...] a decisão de prosseguir nessa direção deveria advir de uma opção própria, lúcida, consciente e plenamente assumida, decorrente de uma motivação positiva e não apenas negativa”2 (p. 5). E, assim, ao fim de 1963, decide deixar o seminário. Com a volta para a capital paulista (1964), transferiu seu curso de Filosofia para a PUC-SP, o qual conclui em 1966. Trabalhou no Banco Bandeirantes do Comércio até dezembro de 1965, quando prestou concurso para o Banco do Estado de São Paulo, buscando melhores condições de vida, posto que com a remuneração de salário mínimo do Banco Bandeirantes - levando em conta a necessidade de ajudar em casa, os custos do estudo e transporte - quase não lhe sobrava condições financeiras para a alimentação. Na PUC-SP, participou da militância estudantil até a extinção dos órgãos de representação estudantil, em novembro de 1964, já no contexto do golpe empresarial-militar vivido naquele ano. Isso não significou, entretanto, o fim da militância estudantil, que continuou por meio de sua participação 498

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na Comissão Coordenadora do Ano de Integração de Cursos (1966), que mobilizava os estudantes em substituição às ações dos centros acadêmicos, agora extintos. Desse período, Saviani ressalta: “Sendo de uma família operária, eu vivia num bairro periférico de São Paulo. Assim, nesses conturbados anos da década de 60, enquanto meu pai e meus irmãos participavam das greves nas fábricas e nas ruas, eu participava das assembleias e passeatas estudantis”2 (p. 2). É importante destacar, ainda desse período, que Saviani aliava a militância estudantil à séria dedicação aos estudos, já desenvolvendo trabalhos para as disciplinas da graduação com “densidade de reflexão própria”2 (p. 7). Também não se descuidou dessa densidade e dedicação durante o doutorado, quando procurou demonstrar que, mesmo em condições adversas, tendo que aliar trabalho e estudo, sem bolsa ou afastamento, era possível comprometer-se disciplinadamente com as horas de preparação de aulas, correção de trabalhos dos alunos e as leituras e escrita da tese, levada a termo em 1971. Isso revela que, para Saviani, teoria é importante e deve ser tratada com a máxima seriedade, porque não deve se descolar da prática, da vida de carne e osso. Assim, chegamos ao ponto de partida da carreira de professor de Dermeval. Em julho de 1966, quando ainda era estudante do quarto ano de Filosofia, o professor Joel Martins assumiu interinamente a cadeira de Filosofia da Educação para o curso de Pedagogia e indicou Saviani como monitor, dando início à sua carreira de magistério. Em 1967, assume oficialmente a função de docente na PUC-SP, na cadeira de Fundamentos Filosóficos da Educação, e também inicia sua experiência como docente no Ensino Médio, ministrando a disciplina de Filosofia em escolas públicas e privadas. Tudo isso ainda como bancário, emprego que deixou em 1968, quando suas aulas aumentaram e quando pôde se manter somente com o trabalho de professor. Em 18 de novembro de 1971, defendeu sua tese de doutorado, publicada em livro pela primeira vez em 1973, com o título de Educação Brasileira: estrutura e sistema. A partir de 1972, começou a trabalhar também na pós-graduação. Entre 1973 a 1978 trabalhou na PUC-SP, sendo incentivador e professor do doutorado em educação. Por essa época, em período parcial, trabalhou na Universidade Federal de São Carlos, no Programa de Pós-Graduação em Educação, do qual não só foi coordenador como também cofundador. Nessa época, realizou estudos temporários no exterior, em países como França, Itália e Alemanha. Em 1980, ingressou na Unicamp, instituição na qual permanece como professor colaborador até hoje. Casou-se em 1984 com Maria Aparecida Dellinghausen Motta e, em 1988, nasceu Benjamim. A importância desses acontecimentos para a vida pessoal do professor Saviani; sua articulação com a concepção de mundo que defende de forma coerente com o que coloca em prática em sua vida; e sua compreensão de que o ser humano só é pleno no entrelaçamento entre aspectos afetivos e cognitivos expressam-se em algumas de suas dedicatórias para Maria Aparecida e Benjamim. Na edição comemorativa de 25 anos do lançamento do livro “Escola e Democracia”, Saviani3 escreveu: “Para Benjamim, esperando que os filhos de sua geração alcancem estudar numa escola verdadeiramente democrática”. Já em “Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações”, lançado em 1991, quando Benjamim estava com apenas três anos, Saviani4 tece a seguinte dedicatória: “Para Benjamim, filho dileto, nova e maior razão de viver”. Tal dedicatória, entretanto, também é para Maria Aparecida: “[...] esposa querida, sonho realizado”4. Em “História das ideias pedagógicas no Brasil”, há novamente a declaração de seu amor: “Para Maria Aparecida, história de amor eterno, porque infinito e sempre dura”5; e “Para Benjamim: quem está com a juventude que cultiva os clássicos, possui o porvir”. Finalmente, ao prefaciar o livro “Crônicas sepeenses: das vivências locais às inquietações universais”, de Maria Aparecida, Saviani explica que foi “[...] introduzido nas paisagens e na alma de São Sepé, passadas já três décadas, pelo amor da autora deste belo livro de crônicas”6 (p. XI). Mais adiante, ele assinala ainda: “Que privilégio, o meu, ter encontrado uma linda prenda, o amor de minha vida, oriunda de uma querência portadora de história tão fascinante!” (p. XII). Quem conhece Saviani, seja pela rigorosidade de seus escritos ou pela postura sempre tão humilde e contida, entenderá o significado das doces palavras endereçadas ao filho e à esposa, que certamente lhe dão forças para prosseguir dedicadamente em sua luta pela educação brasileira. 499


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Saviani não produziu/produz seus escritos, que balizam os fundamentos da pedagogia históricocrítica, de forma descontextualizada nem de sua própria vida nem da sociedade que se propôs a pensar (a brasileira), pois considerou seu modo de produção (capitalista), o tempo histórico no qual se encontra (séculos XX e XXI) e o conjunto da produção acadêmica já elaborado antes dele. Assim, continuemos tratando de sua trajetória, destacando agora, mais pormenorizadamente, sua vida acadêmica.

Dermeval Saviani: professor, escritor, pesquisador Saviani deixou o serviço de bancário e apostou no ensino. Em serviço, graduou-se no ensino superior até defender seu doutorado. Desde então, não teve outro caminho que não fosse o ensino e a pesquisa: ensino de filosofia na educação e a educação na filosofia. Socorremo-nos de Ricoeur7: Se eu ensino a filosofia, é ainda à edificação de um discurso ao qual eu me dedico, de um discurso que não seja mais somente um símbolo como aquele do matemático, porém realidade; que não seja mais somente poesia, mas verdade; que não seja mais fato, mas condição de possibilidade; que não seja mais uma narrativa, mas ordem e razão. (p. 2, tradução nossa)

Trilhando os caminhos da graduação e da pós-graduação, deixou/deixa a marca de um docente responsável, cujas aulas seus alunos se recordam pela clareza, crítica e diálogo. Continuamos com Ricoeur7 quando sublinha: “A escola é educadora porque ela é ensinante, e não o inverso” (p. 2, tradução nossa). No livro “Escola e Democracia”, lançado nos idos de 1983, há a defesa do direito à educação como recusa a uma ordem discriminatória. Do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Lutar contra a marginalidade por meio da escola significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes3. (p. 25-6)

Como filósofo compromissado com o papel emancipatório da educação escolar, aliou o escritor às aulas. Mas qual é esse papel emancipatório da escola? Nada de uma emancipação em si nem na crença iminente de um mundo sem exploração. Irradiar a escola para todos, especialmente para as classes populares, e assim possibilitar a transmissão de conteúdos sólidos significa um empoderamento dessas classes. Nesse sentido, é dele a afirmação da defesa dos conteúdos, na qual assinala: Se os membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação [...] o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação3. (p. 45)

Nada de desqualificar a escola, de defesa da desescolarização ou afirmá-la tão só como reprodutora das classes dominantes. Daí sua defesa do ato de ensinar. O ensino é o conhecido, é aquilo que nós herdamos e já está acumulado. Como dizia Gramsci8: Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e 500

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moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta por parte de um “gênio filosófico”, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais. (p. 13-4)

Em um país que ainda convive com uma população sem a completude da educação básica, atravessado por discriminações e preconceitos, a transmissão de conhecimentos sólidos é um campo para conquistas, em vista de uma educação democrática e de qualidade social. É de Saviani uma pergunta sagaz a esse respeito: se a escola é tão reprodutora, por que tanto tempo se levou para ampliá-la? Por isso, era preciso ir além. Saviani se impõe a tarefa de conhecer as raízes das barreiras históricas discriminatórias a fim de partir para a disseminação das ideias por meio de publicações. Parte ele, pois, para a investigação histórica; instigado por uma vivência pessoal, posta em epígrafe no seu livro de 1973: “A meus pais que não conheceram os bancos escolares”9. Era preciso ir mais a fundo na educação brasileira e conhecer sua estrutura e sistema para abrir as portas das escolas para todos. Nesse livro, ele se pergunta: “Existe sistema educacional no Brasil?”9 (p. 1). Negando a existência de um sistema educacional no Brasil, este se impõe como tarefa dos educadores. Em 1973, no livro, lê-se: “[...] como não pode haver sistema sem atividade sistematizadora, por aí é que se deve começar. Impõe-se, pois, atuar de modo sistematizado nas estruturas, tanto ao nível microeducacional, quanto da macroeducação. Esta atividade sistematizada exige capacidade de reflexão e fundamentação teórica”9 (p. 110). Ciente da importância do caráter sistemático da educação, optou por uma reflexão científica sobre o nosso passado histórico, a fim de que, desvendado, pudesse servir de inspiração aos futuros docentes e pesquisadores. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é um “conhecete a ti mesmo” como produto de um processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário8. (p. 12) De um lado, surge o pensador reflexivo que entende ser importante partir daquilo que somos realmente. Um didata, um pedagogo deve partir, desde logo, de onde o outro se encontra. Eis que surge o livro “Educação: do senso comum à consciência filosófica”, com artigos modulados em torno do título do livro. A reflexão como resposta ao problema levou Saviani a perscrutar os caminhos de nossa evolução histórica no campo da educação. Com experiência adquirida, entendeu que era momento de fazer escola. Daí seu empenho em criar um grupo de pesquisa com a ambição de torná-lo um coletivo nacional. Essa concepção de fundo de Saviani o fê-lo perscrutar os caminhos da educação no Brasil para fazê-la não uma reprodutora de uma dominação de classe, mas um lócus de emancipação. Citamos mais uma vez Ricoeur: “Se sou um historiador, eu entro em um discurso que nasce da narrativa e que tende ao rigor de uma língua capaz de transformar um traço em documento, de analisar, de religar, de reconstruir e de fazer reviver”7. (p. 2, tradução nossa). É nesse sentido que surge o Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil/HISTEDBR”, do qual foi um de seus coordenadores, fundador e incentivador. É inegável a importância de tais estudos e investigações que esse protagonismo propiciou para a compreensão da história da educação, seja cobrindo as regiões do país, seja trazendo novas visadas interpretativas sobre períodos históricos, sobre figuras de destaque na educação nacional e sobre concepções presentes, estimulando o saudável debate na área. Mais do que um protagonismo individual, importa acentuar seu caráter de coletivo nacional e seu financiamento nas diversas instituições de ensino superior no Brasil. Das páginas do site do HISTEDBR, docentes, pesquisadores e estudantes valem-se do seu acervo. Tal fato significa fazer uma escola coletiva, por meio da publicação de livros, de uma Revista on-line, que busca no passado elementos ainda presentes que representam barreiras ou mesmo caminhos para uma educação de qualidade.

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Ciente da importância de uma compreensão larga da história da educação, da importância da pedagogia e das licenciaturas, Saviani4 pôs-se a elaborar um estudo que reunisse tanto a contribuição dos estudiosos quanto a sua própria, para oferecer aos estudantes, docentes e pesquisadores um recurso que lhes permitisse abordar a educação em seu conjunto, desde as origens até nossos dias. Nasceu aí o livro “História das ideias pedagógicas no Brasil”, agraciado em 2008 com o Prêmio Jabuti(c). Esse livro rastreia a história da educação no Brasil, por meio de uma pesquisa rigorosa, crítica e interdisciplinar, manejando com maestria a concepção dialética da história. Essa busca histórica, seja em sua produção individual, seja em parceria ou pela animação de um coletivo nacional, não se satisfaz com a investigação em si, pois, para o nosso autor, buscar na história os caminhos das barreiras e das possibilidades assim se justifica em seus fundamentos: [...] é pela história que a condição animal assegurada ao homem pela natureza é ultrapassada elevando-se à condição humana. Sendo a história a mestra da vida, consoante o provérbio latino historia magistra vitae est, segue-se que é exatamente ela que deve ocupar o lugar central na escola de nosso tempo, uma escola unitária porque guiada pelo mesmo princípio, o da radical historicidade do homem identificada como o caminho comum para formar indivíduos plenamente desenvolvidos10. (página inicial da orelha do livro)

Crítico de políticas educacionais, de leis e de projetos de lei considerados aquém desse “pleno desenvolvimento da pessoa”, sua pena polemiza com tais iniciativas como nos livros que abordam a LDB, o FUNDEF/FUNDEB e o Plano Nacional de Educação. No primeiro caso, o esboço inicial de projeto de lei saiu de sua lavra. Tal esboço, assumido pelo então deputado Octávio Elísio Alves de Britto, foi ampliado mediante larga participação da comunidade científica. Esse projeto colidia com outro, nascido de um acerto entre o poder Executivo de então e alguns senadores. A resultante final, embora obrigatoriamente submetida ao capítulo da educação da Constituição, ficou aquém de uma compreensão da educação sob um sistema nacional de educação. Em um trabalho minucioso, Saviani esquadrinha o processo que conduziu à aprovação do projeto pelo Senado, de um ponto de vista que retrata objetiva e criticamente a tramitação, sempre com proposições alternativas. Esse trabalho veio à luz sob o nome de “A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas”, em 1997. No caso do Plano Nacional de Educação de 2001, dois projetos distintos correram pelos caminhos da sociedade civil e do Congresso Nacional, reeditando os problemas encontrados no processo de tramitação da LDB. Nesse sentido, o retorno do polemista, crítico, sempre com base na documentação precisa, comparece no livro “Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação: por uma política de educação”, lançado em 1998. Com o governo Lula em 2003, novas políticas entraram na cena nacional, daí a reedição desse livro sob o título de “Da nova LDB ao FUNDEB”. Aqui, contudo, cabe apontar sua escrita que faz jus ao aforismo de Göethe, disseminado por Ortega y Gasset: “A cortesia do filósofo é a clareza”11 (p. 27). Seus textos são escritos de modo elegante, de expressão correta e sempre há a preocupação de se fazer entendido. Louvamo-nos agora com uma frase de Foucault12: “O que erige a palavra em palavra e a eleva acima dos gritos e dos ruídos é a proposição nela oculta” (p. 111).

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Em 2014, Saviani recebeu outro prêmio Jabuti: 2º lugar com o livro “Aberturas para História da Educação” (2013). Em 2015, ficou entre os dez melhores livros da sua categoria com a obra “O lunar de Sepé” (2014) e, em 2016, foi novamente agraciado com o 2º lugar, com o livro “História do tempo e tempo da história” (2015). (c)


Marsiglia ACG, Cury CRJ

Pelo conjunto de sua obra, Dermeval Saviani recebeu o Prêmio Zeferino Vaz de Produção Científica, outorgado pela Unicamp (1997), e foi condecorado com a Medalha do Mérito Educacional do MEC (1995). Ao lado de sua intensa e vigorosa produção, também teve assento no Conselho Estadual de Educação de São Paulo, foi coordenador de pós-graduação da UFSCar, da PUC-SP e da Unicamp. No momento, é professor emérito da Unicamp (2002) e pesquisador emérito do CNPq (2010). Em 2016, foi agraciado com o Prêmio Anísio Teixeira(d). Nada mais justo do que ser professor emérito da educação nacional, por sua docência cinquentenária, pelo possante vigor de suas pesquisas e pela difusão editorial e periodista de sua obra. Cremos que nessa comemoração de 50 anos em homenagem a Saviani, seria justo atribuir-lhe o título de emérito nacional. Na obra de Saviani, o que está oculto não é o segredo, mas a defesa do direito à educação, que não se esgota em si. Valemo-nos agora de Chauí14:

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(d) O Prêmio Anísio Teixeira é dividido nas categorias Educação Básica e Educação Superior. A categoria na qual Saviani foi premiado (Educação Básica), tal e qual Cury, foi instituída em 2012. A escolha das doze personalidades que contribuíram de maneira relevante para o desenvolvimento da educação é feita por pares, consultados em 2015 por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Entretanto, uma vez que o prêmio foi entregue em 26 de outubro de 2016, data em que já estava consumado o golpe jurídico-midiáticoparlamentar que colocou Michel Temer na presidência do país, Saviani e Cury não compareceram ao evento, justificando: “Ao aceitarmos [a indicação do prêmio], não podemos nos esquecer que estamos em posições opostas ao atual governo e isto nos constrange diante de uma solenidade que pode significar apoio a medidas que venham a restringir o nosso compromisso com uma educação de qualidade. Tal circunstância também nos constrange porque a participação nessa cerimônia nos colocaria em desacordo com o exemplo do patrono do prêmio em sua intransigente defesa da democracia como uma condição indispensável para o pleno atendimento aos direitos educacionais de toda a população brasileira”13. Leia a íntegra da carta de esclarecimento enviada ao Presidente da Capes em: http://www.pcm. uem.br/noticia/12/ dermeval-saviani-naoparticipa-de-cerimoniado-premio-capes.

[...] cada direito, uma vez proclamado, abre campo para a declaração de novos direitos e que essa ampliação das declarações de direitos entra em contradição com a ordem estabelecida. [...] as declarações de direitos afirmam mais do que a ordem estabelecida permitem e afirmam menos do que os direitos exigem, e essa discrepância abre uma brecha para pensarmos a dimensão democrática dos direitos. (p. 26)

Essa discrepância, a rigor da contradição que anima e funda a sociedade de classes, no pensamento e palavra de Saviani, não rejeita as reformas que erradicam a pobreza e a marginalização e reduzem as desigualdades sociais e regionais. Ao mesmo tempo, a força do formar indivíduos plenamente desenvolvidos lança-o no eixo de um horizonte de um socialismo, cujo tempo ainda não está próximo. Em relação à contradição, a citamos nos termos de Przeworski15: Existem muitas razões para esperarmos que o capitalismo continue a oferecer uma oportunidade de melhorar as condições materiais e que, onde e quando isso não ocorrer, ele será defendido pela força, enquanto as condições para o socialismo continuarão a deteriorar-se. Por esse motivo é que os sonhos de uma utopia não podem ser substitutos para a luta por tornar o capitalismo mais eficiente e mais humano. A pobreza e a opressão são uma realidade, e não serão mitigadas pela possibilidade de um futuro melhor. A luta para melhorar o capitalismo é tão essencial quanto sempre foi. Contudo, não devemos confundir essa luta com a busca do socialismo. (p. 290)

Ao irradiar seu saber compromissado, não há segredo, não há perda de valor. Ao contrário da acumulação possessiva, quem irradia o saber que possui faz com que ele se multiplique. Trata-se daquela busca da cidadania ativa de uma sociedade civil participativa, cujo horizonte é a busca por uma sociedade superadora do individualismo possessivo e da exploração. Nesse sentido, Saviani é um intelectual a serviço de uma política educacional que mira o futuro, tendo um olhar crítico sobre o passado e o presente. Vale aqui a observação de Hobsbawn16, comentando o pensamento de Gramsci, intelectual que percebeu a importância da política como uma dimensão especial da sociedade e, dentro dela, da educação. O historiador afirma:

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[...] a sociedade burguesa, ao menos nos países desenvolvidos, sempre deu muita atenção a suas instituições e seus mecanismos políticos. É por isso que a ordem política tornou-se um meio poderoso de reforçar a hegemonia burguesa, de modo que palavras de ordem como defesa da república, defesa da democracia ou defesa dos direitos civis e das liberdades unem dominadores e dominados para o benefício primordial do primeiros; mas isso não quer dizer que sejam irrelevantes para os segundos. Desta forma, são muito mais do que simples cosméticos na face da coerção ou mais do que um simples embuste. (p. 300)

Saviani entendeu o recado de Gramsci e fez da defesa da educação escolar uma tribuna, destacando sua importância para “os que sabem” e “para os que não sabem”. A esse professor podese aplicar a lição de Ricoeur7: O que é que eu faço quando ensino? Eu falo. Eu não tenho outro ganha-pão e eu não possuo outra dignidade; eu não tenho outro modo de transformar o mundo e eu não tenho outra influência sobre os homens. A palavra é meu trabalho; a palavra é meu reino. [...] esta comunicação pela palavra de um saber adquirido e de uma pesquisa em movimento é a minha razão de ser: meu ofício e minha honra. (p. 2, tradução nossa)

Partamos então para a finalização desse artigo, destacando o que ainda há por vir do professor, escritor e pesquisador, que, após cinquenta anos de carreira, ainda expressa sua vitalidade e disposição para contribuir com a educação brasileira.

Cinquenta anos depois, ainda com muitos planos para o futuro Dermeval Saviani já comentou sobre diversos planos que ainda tem para sua vida. A indicação foi feita em 2002, por ocasião da outorga do título de professor emérito da Unicamp. Naquela oportunidade, ele mencionou o desejo de concluir de forma mais imediata alguns de seus projetos e assim fez. É o caso de três obras: “História das ideias pedagógicas no Brasil”, “A pedagogia no Brasil: história e teoria” e “Sistema Nacional de Educação e Plano Nacional de Educação”. Outros planos, entretanto, ainda estão em aberto (e já se passaram 14 anos). Segundo o autor: Entre os planos mais simples estão aqueles textos de apoio para seminários que organizei no início de minha carreira docente e cuja transformação em livros foi um projeto sempre adiado, mas nunca abandonado; igualmente os programas de disciplinas que ministrei e que também planejara transformar em livro. Entre os projetos mais recentes encontram-se reedições atualizadas de livros como “Educação e questões da atualidade”, publicado simultaneamente em português e espanhol em 1991, já há bastante tempo esgotado, o mesmo ocorrendo com “Ensino público e algumas falas sobre universidade”, cuja primeira edição é de 1984. Um outro livro que gostaria de publicar e que é relativamente fácil de viabilizar é o que eu chamaria de “Prefácio à educação brasileira”, em que, partindo dos cerca de quarenta prefácios que redigi para livros sobre educação, complementados pelas dissertações e teses orientadas, eu buscaria traçar a trajetória histórica da educação brasileira nos últimos 30 anos17. (p. 287)

Não satisfeito, ele ainda sinaliza para um projeto sobre máximas e provérbios em educação e um livro sobre o legado educacional do século XX, escrito na forma de diálogo com seu filho Benjamim: [...] em que, aproveitando sua curiosidade e seu interesse pela história e pela genealogia, seriam formuladas as perguntas e eu iria discorrendo sobre a trajetória da educação no desenvolvimento da sociedade brasileira ao longo do último século. Com efeito, perpassam o século três gerações: meu pai nasceu no início, em 1909; eu me encontro na metade (19431944) e Benjamim nasceu no final do século, em 1988. Seria uma boa oportunidade de entrelaçarmos nossas vidas com os acontecimentos que cobriram todo o século XX17. (p. 288)

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Por fim, novamente menciona o projeto de um livro anunciado em 1991, quando do lançamento de Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações e que continua por ser escrito. Segundo ele: [...] este livro constitui uma primeira aproximação ao significado da pedagogia histórico-crítica. Isto porque está em curso o processo de elaboração desta corrente pedagógica, através de diferentes estudiosos, de minha parte, venho dedicando-me a uma pesquisa de longo alcance que se desenvolve com ritmo variável e sem prazo para sua conclusão, por meio da qual se pretende rastrear o percurso da educação desde suas origens remotas, tendo como guia o conceito “modo de produção”. Trata-se de explicitar como as mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente. É um estudo que não se move sobre o acicate das urgências imediatas da conjuntura, mas que se propõe a captar o movimento orgânico definidor do processo histórico [é um estudo] de caráter duradouro e que justifica toda uma vida. Pretende-se, assim, revelar as bases sobre as quais se assenta a pedagogia histórico-crítica para viabilizar a configuração consistente do sistema educacional em seu conjunto do ponto de vista dessa concepção educacional18. (p. 2)

Com tantos planos, Saviani17 pede-nos “sossego”: Como se vê, não é necessário que se preocupem em me dar trabalho. De fato, com tantos projetos, com tantas ideias fervilhando, é impossível que eu pare de trabalhar. A conclusão a que chego é, pois, a seguinte: quanto mais me derem trabalho, quanto mais se multiplicam as solicitações, mais eu tenho que me ater aos projetos mais simples e de menor fôlego, postergando os mais importantes. Daí, o apelo: deixem-me livre, reduzam suas expectativas, pois, desse modo, poderei me concentrar nos projetos de maior transcendência, cujos benefícios serão mais amplos e mais duradouros. (p. 288)

Fazemos coro ao nosso mestre: precisamos pedir “menos”, para lhe dar condições de produzir (ainda) mais sobre temas que mobilizem nossa educação e nossa prática pedagógica; mas é preciso reconhecer que o apelo deve ser dirigido também ao próprio professor Saviani, que, com sua impecável delicadeza e generosidade, é incapaz de recusar um único pedido e fazer “menos” para poder fazer “mais”. Em tempos de obscurantismo, retrocessos e fundamentalismos, com ataques frontais, diários e violentos à classe trabalhadora, comemorar o cinquentenário profissional de Dermeval Saviani é comemorar a resistência. Homenageá-lo é um ato de resistência, é uma forma de ter esperança, de partir para o embate com a certeza de que estamos trilhando o melhor caminho e procurando colaborar para a construção de um projeto de sociedade para o qual ele dedicou sua vida. Trata-se de celebrar o fato de ainda estarmos aqui, com forças para se manter a escola pública e brigando com todas as nossas condições por uma formação digna para a classe trabalhadora. Parafraseando nosso homenageado19, assinalamos nosso agradecimento ao mestre, que, a despeito de muitas profissões glamorosas, não perdeu o encanto pelo ofício de produzir a humanidade no ser humano. Vida longa ao professor Dermeval Saviani!

Colaboradores Os autores participaram igualmente de todas as etapas de elaboração do mansucrito.

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Referências 1. Cury CRJ. Um pequeno depoimento. In: Silva Júnior CA. Dermeval Saviani e a educação brasileira: o simpósio de Marília. São Paulo: Cortez; 1994. p. 18-21. 2. Saviani D. Autobiografia [Internet]. Campinas: Unicamp; 2016 [citado 11 Out 2016]. Disponível em: http://www.fae.unicamp.br/dermeval. 3. Saviani D. Escola e democracia. Edição comemorativa. Campinas: Autores Associados; 2008. 4. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2011. 5. Saviani D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3a ed. Campinas: Autores Associados; 2010. 6. Motta MAD. Crônicas sepeenses: das vivências locais às inquietações universais. Campinas: Ciranda das Letras; 2014. 7. Ricoeur P. La parole c´est mon royaume. Le Portique [Internet]. 1999 [citado 05 Jun 2016]. Disponível em: http://leportique.revues.org/263. 8. Gramsci A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1978. 9. Saviani D. Educação brasileira: estrutura e sistema. São Paulo: Saraiva; 1973. 10. Saviani D. História do tempo e o tempo da história: estudos de historiografia e história da educação. Campinas: Autores Associados; 2015. 11. Ortega y Gasset J. Qué és Filosofia? Madri: Revista de Occidente; 1958. 12. Foucault M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes; 2000. 13. Cury CRJ, Saviani D. Dermeval Saviani não participa de cerimônia do Prêmio Capes “Anísio Teixeira” [Internet]. Campinas: Faculdade de Educação da Unicamp; 2016 [citado 27 Out 2016]. Disponível em: http://www.pcm.uem.br/noticia/12/dermeval-saviani-naoparticipa-de-cerimonia-do-premio-capes. 14. Chauí MS. Cultura e democracia: São Paulo: Cortez; 1989. 15. Przeworski A. Capitalismo e social-democracia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 1989. 16. Hobsbawm E. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo. São Paulo: Companhia das Letras; 2011. 17. Saviani D. Percorrendo caminhos na educação [Internet]. Educ Soc. 2002 [citado 24 Nov 2015]; 23(81):273-90. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13941. pdf. 18. Saviani D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados; 2011. 19. Saviani D. A pedagogia no Brasil: história e teoria. Campinas: Autores Associados; 2008.

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Marsiglia ACG, Cury CRJ

Marsiglia ACG, Cury CRJ. Dermeval Saviani: una trayectoria cincuentenaria. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):497-507. La postura ética de Dermeval Saviani, así como su contribución académica, sea en la formación de cuadros o por medio de sus innumerables publicaciones, es actualmente uno de los mejores y mayores testimonios de la lucha por la educación básica y superior en el País. De la unión comprometida, áurea, por una alianza entre un educador y la búsqueda de una educación escolar de calidad social, conmemoramos, de manera oportuna y meritoria su cincuentenario de carrera. En este artículo, dividido en tres partes, consideramos en primer lugar aspectos más generales de su biografía (familia, escuela y trabajo). En el segundo ítem, tratamos sobre su trayectoria académico-profesional como profesor, escritor e investigador. En el último tópico, subrayamos los planes de futuro del Profesor Saviani que expresan su vitalidad y disposición para continuar contribuyendo con la educación brasileña, animándonos a todos en la lucha por la formación de calidad de la clase trabajadora.

Palabras clave: Dermeval Saviani. Educación brasileña. Historia de la educación. Ideas pedagógicas.

Submetido em 06/12/16. Aprovado em 05/04/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0967

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Dermeval Saviani e a centralidade ontológica do trabalho na formação do “homem novo”, artífice da sociedade socialista Gaudencio Frigotto(a)

Frigotto G. Dermeval Saviani and the ontological centrality of work for building the “new man”, maker of the socialist society. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):509-19.

This paper states the ontological centrality of work across the research done by Dermeval Saviani, philosopher and educator. The materialist conception of history, the dialectical method of understanding human reality and the meaning of political action are all based, throughout history, on the crucial human activity of work and the way it is defined by social relations of material production of existence conditions through time. Finally, the paper analyzes the exegetical and heuristic view of ‘new’ critiques of the author’s thoughts.

Keywords: Dialectical method. Work. Education. Politics. Heuristic.

O presente texto explicita a centralidade ontológica do trabalho no conjunto da obra do filósofo e educador Dermeval Saviani. A concepção materialista da história, o método dialético de compreensão da realidade humana e o sentido da ação política se fundamentam na atividade vital do trabalho e como este se define nas relações sociais de produção material da existência, ao longo do tempo. Ao fim, analisa-se a visão exegética e heurística de “novas” críticas do pensamento do autor.

Palavras-chave: Método dialético. Trabalho. Educação. Política. Heurística.

(a) Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, 12º andar, Maracanã. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 24210-350. gfrigotto@globo.com

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“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.1 (p. 118)

Introdução Os leitores que têm uma visão da ampla e densa obra de produção científica de Dermeval Saviani, sem dúvida o filósofo e intelectual marxista mais importante do campo educacional no Brasil, podem estranhar a escolha do título deste texto. Com efeito, Saviani, a não ser em alguns textos específicos, não se ocupa diretamente do tema do trabalho. Então, como poderia ser esta a categoria central no conjunto de sua obra? Na brevidade deste texto, buscarei responder a essa questão, destacando que a dimensão ontológica do trabalho, de forma explícita e implícita, constitui-se no pressuposto de toda a obra de Saviani, tanto no plano de sua opção epistemológica quanto no âmbito de sua ação política na luta pelo socialismo(b). Como nota final, farei uma breve menção sobre o caráter abstrato e lógico-dedutivo de alguns dos seus críticos em relação à questão do trabalho e do trabalho como princípio educativo.

O pressuposto do trabalho na concepção teórica e política no conjunto da obra de Dermeval Saviani A centralidade do trabalho em sua dimensão ontocriativa constitui-se como pressuposto ao longo da obra de Dermeval Saviani por ser este a atividade vital que define a especificidade do ser humano e, como tal, ponto de partida e de chegada da análise que se inscreve em uma perspectiva materialista histórica. Vale dizer que, em Marx2, somente é histórica a análise que busca compreender as formas concretas de os seres humanos produzirem sua existência em relações com outros seres humanos ao longo dos tempos. “Por isso, o trabalho – processo entre o homem e a natureza, um processo que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (p.149) – é uma categoria antidiluviana. Nesse sentido, a concepção materialista histórica é, ao mesmo tempo, uma concepção de como se produz a realidade humana em todas as suas dimensões, um método dialético na apreensão de como essa realidade se produz sob as relações classistas no seio do modo de produção capitalista e uma prática política ou práxis na tarefa de sua superação na construção de uma sociedade sem a exploração de classe, uma humanidade emancipada. No texto ”A relação trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos” (2007), Saviani3 trata sistematicamente do sentido ontológico do trabalho e das formas históricas que assume a relação trabalho e educação e inicia com uma observação que demarca sua visão materialista da realidade humana: A primeira observação que me ocorre a propósito do próprio enunciado do tema é que, na verdade, da perspectiva em que me coloco para analisar o problema, os termos “ontológico” e “histórico” não seriam ligados por uma conjunção coordenativa aditiva como está posto no enunciado do título. Não se trataria de examinar os fundamentos ontológicos e depois, em acréscimo, examinar os fundamentos históricos, ou vice-versa. Isso porque o ser do homem e, portanto, o ser do trabalho, é histórico. (p. 152)

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No espaço deste texto, não tenho a pretensão de dissecar a obra extensa e profunda de Dermeval Saviani, mas sim mostrar como a dimensão ontológica do trabalho é o pressuposto que a perpassa, pelo simples fato de que sua abordagem se inscreve na concepção materialista histórica, cujo fundamento é o trabalho. (b)


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Na continuidade dessa frase, Saviani insere a citação clássica de Marx e Engels, que afirmam a especificidade histórica do ser humano: “Podemos distinguir o homem dos animais pela consciência, pela religião ou por qualquer coisa que se queira. Porém, o homem se diferencia propriamente dos animais a partir do momento em que começa a produzir seus meios de vida, passo este que se encontra condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, o homem produz indiretamente sua própria vida material”.4 (p. 19, destaque do autor) (c)

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Essa não separação real do ontológico e do histórico é demonstrada em seguida, mediante a superação que Marx2 faz das concepções metafísicas, idealistas e racionalistas do que define a “essência” do ser humano. Voltando-nos para o processo de surgimento do homem vamos constatar seu início no momento em que determinado ser natural se destaca da natureza e é obrigado, para existir, a produzir sua própria vida. Assim, diferentemente dos animais, que se adaptam à natureza, os homens têm de adaptar a natureza a si. Agindo sobre ela e transformando-a, os homens ajustam a natureza às suas necessidades(c). [...] ora, o ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades humanas é o que conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois, dizer que a essência do homem é o trabalho. A essência humana não é, então, dada ao homem; não é uma dádiva divina ou natural; não é algo que precede a existência do homem. Ao contrário, a essência humana é produzida pelos próprios homens. O que o homem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um processo histórico. (p. 154, destaque nosso)

Como sublinha Saviani, o ser humano, ao se construir humano pelo trabalho, educa-se em sentido amplo e, na processualidade histórica e no seio das relações sociais de produção capitalistas, de forma contraditória e sempre em disputa, cria espaços específicos de produção e sistematização de conhecimentos científicos que se vinculam à produção e reprodução da “vida”. É nessa compreensão de processualidade histórica que Saviani evidencia o momento de unidade entre trabalho e educação, a necessidade, sob as relações sociais capitalistas de produção, da sua separação e as condições contraditórias desse sistema, que na atualidade implicam, sob outras bases, novamente a unidade. O conhecimento, sob a atual “revolução tecnológica”, constitui-se em força produtiva por excelência. Sob o domínio do capital, o trabalho é dominantemente meio de potenciar os processos de exploração e de alienação. Livre dessa relação de classe, todavia, a ciência e as técnicas que dela derivam constituem-se em meios de diminuição do tempo de trabalho imperativamente dedicado à esfera da necessidade e de ampliação do tempo livre, tempo de efetiva liberdade, de escolha e de fruição, em que as qualidades humanas podem se expandir. Por isso que, para Marx, a ciência e a técnica somente serão forças que dilatarão efetivamente o tempo livre quando libertas de sua subordinação à ampliação do capital. Mesmo sob as relações classistas, entretanto, nem o trabalho, nem a ciência e a técnica são pura negatividade. Situam-se no plano contraditório da realidade historicamente dada, terreno no qual se efetiva a luta de classe. Podemos afirmar que Saviani segue com rigor teórico aquilo que Engels5 sintetizou como sendo o legado fundamental de Marx: Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o fato, tão simples, mas oculto sob uma manta ideológica, de que o homem necessita, em primeiro lugar, de comer, beber, ter um teto e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião etc.; de que, portanto, a produção dos meios de vida imediatos, materiais, e, por conseguinte, o grau de desenvolvimento econômico objetivo de um povo

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dado ou durante uma época dada forma a base sob a qual as instituições estatais, as concepções jurídicas, a arte e inclusive as ideias sobre religião do povo em questão têm se desenvolvido, e à luz das quais devem, por tanto, ser explicadas, em vez do contrário, como havia sido o caso até então. (p. 1)

Em seguida, Engels5 completa dizendo que: “Marx também descobriu a lei especial do movimento que governa o atual modo capitalista de produção, e a sociedade burguesa que este modo de produção tem criado – a mais-valia.” (p. 1). É por essa base da lei do desenvolvimento da história humana que a obra de Saviani expõe, no plano epistemológico e político, sua concepção de educação em sentido amplo e, em particular, da educação na sua forma escolar. Essas abordagens têm, de forma implícita ou explícita, as dimensões de processualidade, mediação, contradição e particularidade nas relações que os seres humanos estabelecem na produção da sua existência. Na elaboração de sua pedagogia histórico-crítica, Saviani analisa as concepções idealistas, racionalistas e pragmáticas de educação e as define como abordagens a-históricas, isto é, que não apreendem a educação no seio das relações sociais capitalistas, marcadas pela cisão e antagonismo de classe. Em seguida, situa as abordagens que concebem a educação como instrumento unilateral de reprodução das relações sociais capitalistas de produção e denomina-as de crítico-reprodutivistas. Críticas porque percebem, sem dúvida, a forma dominante do sistema capital de subordinar o conjunto das relações e práticas sociais, incluindo a educação, no movimento de sua reprodução. Reprodutivistas, contudo, pelo fato de não perceberem, por um lado, o caráter contraditório das relações sociais capitalistas e, por outro, sob essas contradições, a luta de classes. Essa dupla visão crítica e os elementos de sua superação somente foram possíveis pelo fato de Saviani pautar-se na concepção materialista da história, cujo fundamento é o trabalho. Essa concepção aparece de forma explícita em análise de temas mais pontuais, sempre referidos pelo autor em suas análises mais aprofundadas. Destaco, aqui, apenas dois exemplos do livro “Educação em diálogo”6, no qual estão reunidos 35 textos de entrevistas que o autor concedeu sobre diferentes temas do debate educacional contemporâneo. Na entrevista sobre educação e informática, o entrevistador pergunta sobre o impacto das novas tecnologias na relação dos professores com os alunos no processo de ensino. Após situar, como ele mesmo sublinha, um tanto jocosamente, a geração a que pertence como sendo a do “penso, logo existo” e a geração atual, sob o signo da pós-modernidade, a do “digito, logo existo”, destaca o que está subjacente e o que é necessário desvelar para não cair no fetiche do determinismo tecnológico. Assim penso que o principal desafio posto pela interferência digital na educação reside na compreensão do significado histórico-social dos processos de informatização. Entendo que, mais do que familiarizar os alunos com os procedimentos de digitação, o papel da educação escolar é permitir-lhes a compreensão dos princípios científicos que fundamentam estes procedimentos. [...] é preciso levar em conta que as tecnologias não são outra coisa senão recursos cuja função é auxiliar o trabalho humano, facilitá-lo e maximizar seus efeitos. A base disso é o modo de ser do trabalho humano que consiste numa atividade adequada a finalidades6. (p. 143)

Saviani não nega o papel das novas tecnologias no processo pedagógico, mas situa-as como meio na relação entre os professores e os alunos e não como um ente autômato em si e por si criadores de conhecimento. A capacidade exponencial de gerar informações, imagens e dados pelas novas tecnologias não é sinônimo de conhecimento, por isso as novas tecnologias não substituem o professor na sua função fundamental de ajudar os alunos a construírem as bases científicas que lhes podem permitir entender não apenas como se efetivam atualmente os processos produtivos, mas também que, sob o domínio das relações sociais capitalistas, as novas tecnologias são dominantemente meios que aumentam a exploração da classe trabalhadora. O segundo exemplo é também de outra entrevista, esta sobre educação e transformação social. De imediato, observa-se que, ao mesmo tempo em que a educação não se separa da atividade vital 512

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do trabalho na produção da existência, tem uma função específica como prática social. Trata-se de uma unidade do diverso. Pode-se apreender essa unidade do diverso na resposta a duas passagens da entrevista sobre a função da educação na produção do ser humano e na transformação da sociedade: Historicamente a educação se põe como atividade inerente ao próprio processo de hominização, isto é, o processo pelo qual o homem cria a si mesmo ao produzir os meios que lhe garantem a existência. Por isso a origem da educação coincide com a origem do próprio homem. Ou seja, o homem não nasce homem. [...] Por isso que no livro Pedagogia HistóricoCrítica defini a educação como o ato de produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens7. (p. 217)

Note-se que o ato de se educar está implicado no ato de o ser humano criar a si mesmo pelo trabalho, ao produzir os meios de reprodução da sua vida como um ser da natureza, que dela se diferencia pela capacidade de conceber, idear e modificar os instrumentos e meios de sua produção e reprodução. Se trabalho e educação, porém, formam uma unidade indissolúvel, na prática social concreta a educação assume uma especificidade. Como defini em Escola e democracia, a educação é uma prática social mediadora no interior da prática social global. Portanto, seu influxo transformador se exerce na forma de mediação, isto é, de forma indireta e mediata e não de forma direta e imediata. Seu papel diz respeito a prover as condições subjetivas do processo de transformação que, entretanto, só podem ter eficácia em articulação com as condições objetivas. Eis porque, quando guiado pelo objetivo da transformação social, o educador crítico deve estar atento às condições objetivas, desenvolvendo os instrumentos de compreensão dessas condições e assegurando aos educandos a sua assimilação, o que implica não abrir mão do cumprimento da função específica da escola que se liga ao domínio do saber sistematizado7. (p. 218, destaque nosso)

É por meio da compreensão da unidade diversa entre trabalho e educação e de suas especificidades que Saviani analisa o trabalho como princípio educativo e desenvolve a concepção de educação politécnica. O trabalho como princípio educativo, tanto no sentido amplo de formação humana quanto da escola unitária, situa-se, pois, na compreensão da relação intrínseca entre trabalho humano e educação. O primeiro é ligado imediata e diretamente às “condições objetivas” e necessárias na produção da vida humana, e a segunda é associada de forma indireta e mediata no desenvolvimento das “condições subjetivas”. Saviani, ao tratar do conceito de politecnia, em “Sobre a concepção de politecnia”8 e em “O choque teórico da politecnia”9, a partir da elaboração de Marx e da tradição socialista, contrapõese à divisão do trabalho manual e intelectual, à separação da concepção e execução no processo de produção e à consequente dualidade na educação e da formação fragmentária e adestradora da classe trabalhadora do projeto societário capitalista. Trata-se de uma concepção que se situa na dialética velho e novo: “Estamos, pois, num contexto em que, como dizia Gramsci, trava-se de uma luta entre o novo que quer nascer e o velho que não quer sair de cena.”9 (p. 149). Desse modo, a formação politécnica, “[...] entendida como o desenvolvimento dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo produtivo do trabalho moderno [...]”8 (p. 17), busca construir “bases subjetivas” que permitam a crítica à forma que assume o trabalho, a ciência, a educação, a cultura e a arte sob as relações sociais capitalistas e dentro destas, pois são as condições historicamente existentes que irão dilatar as possibilidades de sua superação. Do que se expôs até aqui, fica clara a coerência entre a concepção materialista da história e o método materialista histórico-dialético, mediante o qual analisa a relação entre trabalho e educação, sistema de ensino e educação no processo de superação das relações sociais capitalistas. Também fica explícito que o autor busca, especialmente em Marx, Engels, Lenin e Gramsci, o sentido da historicidade do real e da processualidade contraditória como marca inerente à forma capital de relações sociais. Em cada obra e mesmo em textos mais curtos ou entrevistas, Saviani prima COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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por situá-los de maneira que traga os elementos do contexto histórico e das forças sociais em disputa na sociedade e na educação. O autor evidencia uma relação permanente entre o ontológico (sentido dado por Marx), o histórico, o epistemológico e a práxis política.

Da densa produção teórica à militância política na sociedade e na educação A epígrafe do texto busca sinalizar que por dois caminhos Saviani traz uma dupla contribuição singular para o campo da ação política ou práxis, na luta pela transformação radical das relações sociais de produção da existência, na sociedade capitalista e na construção do socialismo. Marx não reduz o papel da teoria na luta política. Pelo contrário, como ele mesmo sublinha, quando ela vai à raiz da realidade humana tem força material revolucionária. Todavia, como observa José Barata-Moura10 , “Em Marx o pensar e a teoria em si e por si sós revelam-se de todo incapazes de produzir resultados de transformação material da natureza ou da sociedade. O pensar, com efeito, não é predominantemente determinante em relação ao âmbito do ser” (p. 353, destaque do autor). No processo histórico, o que altera a realidade é a mudança material resultante da ação prática. Trata-se, pois, de um duplo e inseparável movimento – o de buscar entender o que produz ou o que está subjacente às relações sociais do capitalismo e, ao mesmo tempo, atuar praticamente na busca pela superação dessas relações na construção do socialismo. Nesse duplo movimento de elaboração teórica e de atuação prática, Saviani oferece uma contribuição original e ímpar para campo da educação. A primeira contribuição efetiva-se pela densidade teórica na análise da relação entre educação e sociedade, sem a qual a luta política não tem direção; e a segunda, pelo sistemático embate na crítica das leis e políticas educacionais, ao longo das últimas quatro décadas no Brasil, e pelo seu vínculo orgânico com organizações científicas, políticas e movimentos sociais empenhados na transformação da sociedade e da educação. Saviani, ao tratar da relação entre educação e democracia, pela base teórica apontada, traz-nos o sentido de como a escola, na produção e socialização do conhecimento, em seu conteúdo, método e forma de educar, exerce a função política de mascarar as relações sociais de exploração ou, no espaço contraditório em que se move a luta de classe, de revelar essas relações e a necessidade de sua superação. Em outras palavras, a concepção, o método de conhecer e seu resultado engendram uma dimensão política e, como tal, não são neutros. Essa compreensão é sintetizada nas “Onze teses sobre educação e política” (2008), nas quais mostra que educação e política se relacionam dentro de uma unidade diversa. Vale dizer que não estão separadas, mas também não se identificam. “Entendo que educação e política, embora inseparáveis, não são idênticas. Trata-se de práticas distintas, dotadas cada uma de especificidade própria.”11 (p. 66). A exposição de cada tese com um breve corolário busca elucidar a inseparabilidade de ambas, sem diluir sua especificidade. Aqui destacam-se apenas as duas que explicitam esta relação: “Tese 2: Toda prática educativa contém inevitavelmente uma dimensão política” e “Tese 3: Toda prática política contém, por sua vez, inevitavelmente uma dimensão educativa” 11 (p. 71). Esses temas situam-se em um contexto específico do debate teórico e político da educação no Brasil, como Saviani11 destaca antes de expor as teses: De uns tempos para cá se tornou lugar-comum a afirmação de que a educação é sempre um ato político. Mas o que significa essa afirmação? Obviamente, trata-se de um “slogan” que tinha por objetivo combater a ideia anteriormente dominante segundo a qual a educação era entendida como um fenômeno estritamente técnico-pedagógico, portanto, inteiramente autônomo e independente da questão política. (p. 65)

Tais temas ganham outra dimensão e relevância, atualmente, no contexto de uma crescente escalada que segue na direção de anular a função docente de ensinar e de educar, pelo que, como e para que se ensina. O epílogo dessa escalada é a manifestação ultraconservadora da tese “Escola sem Partido”, pelo que manifesta e muito mais pelo que esconde. 514

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Sublinha-se que a análise que Saviani realiza sobre a relação entre educação e política ajuda a desvelar o que a “Escola sem Partido” efetivamente esconde. No chão da escola, a esfinge da “Escola sem Partido” e da “Liberdade para Ensinar” quebra o que define a relação pedagógica e educativa: uma relação de confiança e de solidariedade. Além disso, trata-se de obrigar os docentes a ensinar e adestrar pelo que reza a cartilha dos “especialistas” e institutos privados autorizados pelo partido do mercado e do capital e a sua metafísica cínica de neutralidade. A segunda contribuição é a de que o esforço teórico de apreender pela raiz como se produz a realidade humana no seu conjunto, imprescindível para uma ação política não idealista ou voluntarista, não é da mesma natureza da ação política. Esta se inscreve, na sociedade capitalista, no âmbito da luta antagônica e em condições inicialmente não escolhidas. Aqui, com base em Marx, que não separa a tríade trabalho, capital e Estado, Saviani notabiliza-se por uma análise crítica sistemática das reformas educacionais, dos planos nacionais de educação, da legislação, do Plano de Desenvolvimento da Educação e das Conferências Nacionais de Educação. Podese afirmar que nenhum dos temas mais candentes da disputa pelo sentido da educação escolar no Brasil, nas últimas quatro décadas, escapou à análise e ao posicionamento político de Saviani na perspectiva da luta de classe.

Nota sobre a natureza das críticas à concepção do trabalho como princípio educativo em Saviani

Ver, por exemplo, o debate com Paolo Nosella sobre o termo mais adequado em Marx: “educação politécnica” ou “tecnológica em Marx”3. (d)

Por certo, nenhum autor é imune a críticas a sua obra e, assim, Saviani não seria uma exceção. Quem conhece sua obra e sua forma de se conduzir no debate constata que o intelectual tem dialogado com as críticas, analisando-as e incorporado elementos delas(d). No texto sobre polissemia da categoria trabalho, pelo fato de Lessa12 e Tumolo13 ligarem a minha análise e a de outros autores à abordagem de Dermeval Saviani, estabeleci um breve debate com estes, distinguindo inclusive o teor e a densidade da análise de Lessa e de Tumolo14. Sublinhei naquele texto a discussão de Thompson sobre conceito de classe social e como historiadores trabalham os mesmos conceitos com significados diferentes: uns buscam apreendê-los na processualidade histórica e outros efetivam a análise heurística e analítica, sendo todos legítimos. Thompson, citado por Negro e Silva15, adverte: “Todavia, confusões geralmente surgem quando nos deslocamos de uma acepção para outra.” (p. 1). Por que voltar, então, ao tema e especificamente em relação a Tumolo? Faço isso, apenas como registro, por três razões. Primeiro porque Tumolo16 repete, de forma requintada e ampliada, as mesmas críticas, mesmo depois de ter conhecimento da elegante e incisiva reposta à tese de seu orientando Ademir Lazarini17, na qual Saviani e Duarte18 sinalizam que: “[...] a referida tese não traz novidade, pois retoma os mesmos argumentos de Sérgio Lessa, Ivo Tonet e Paulo Sérgio Tumolo [...].” (p. 122). E, logo adiante, acrescenta: A não ser o fato de reunir num só trabalho um conjunto de críticas formuladas de forma mais ou menos esparsas, além do caráter bombástico com que as denúncias são apresentadas, como já se pode ver apenas pela leitura do sumário da tese18. (p. 122)

Saviani, contudo, reconhece a pertinência de estudos que buscam a exegese ou hermenêutica dos textos no tempo histórico em que foram produzidos, mas explicita que não segue esse caminho. O que busca nos autores clássicos do marxismo é COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como eles podem “[...] nos ajudar a compreender nossa realidade e enfrentar com mais consistência os problemas da educação brasileira [...].”18 (p. 124). Os textos de Tumolo sobre o tema trabalho e trabalho como princípio educativo situam-se inequivocamente no plano da hermenêutica ou análise heurística ou analítica dos textos de Marx. Até aí, não há objeções, pois a escolha é dele e pode ser fecunda(e). O problema é que insiste no que Edward P. Thompson adverte sobre as confusões do deslocamento da análise heurística, o que para Oliveira19 significa “[...] não alcançar-se a saturação histórica do concreto, isto é, não saber apanhar a multiplicidade de determinações que fazem o concreto [...].” (p. 9). O que sistematicamente faz, nesse “deslocamento”, é uma análise silogística nos parâmetros da lógica formal e na perspectiva do raciocínio dicotômico, pois toma trechos muitas vezes fora do contexto do conjunto das análises de Saviani, vai aos textos de Marx e volta a fazer conclusões sobre os equívocos do autor criticado. O estranho é a insistência com os mesmos autores, com os mesmos argumentos, apenas com pequenas alterações. Aqui, tomam-se como exemplo os textos de Tumolo13,16. Tumolo13, em um de seus textos, toma um trecho de uma entrevista de Saviani na qual assinala que o sistema escolar se estrutura a partir da questão do trabalho, por ser este a base da existência humana, e justifica que, dado o número de educadores que se ocupam do tema, seleciona apenas este porque “sintetiza a concepção presente no conjunto de seus estudiosos.” (p. 241). Em uma nota, a título de exemplo, nomeia 13 educadores, elencando 23 obras supostamente vinculadas à mesma visão. Em outro texto, 13 anos depois, Tumolo16, na primeira página, toma literalmente o mesmo parágrafo de 200313 e agora inclui no texto oito autores que tratam da questão do trabalho como princípio educativo, mas em nota de rodapé acrescenta mais cinco, o que redunda em 13 aqui também. A soma das obras agora é de trinta. Nesse caso, o argumento é de que não vai tratar de todos os autores citados dada a sua complexidade e profundidade e, por isso, aborda somente Saviani e Frigotto. A inovação consiste na menção a uma citação minha para mostrar uma divergência não na concepção de trabalho, mas no fato de que, em Saviani, o princípio educativo do trabalho relaciona-se à escola. Diante disso, eu assinalo: “Da leitura que faço do trabalho como principio educativo em Marx, ele não está ligado diretamente ao método pedagógico ou à escola [...].”16 (apud Tumolo, p. 404). Adiante, ele me cobra de onde tirei isso de Marx. Tumolo, por não trabalhar na perspectiva da historicidade e, portanto, da dialética da unidade do diverso, não percebe que, se digo “não diretamente”, significa que admito que de forma mediata o trata. Quem liga diretamente o trabalho como princípio educativo à escola é Gramsci, do qual Saviani parte; mas Marx trata do princípio educativo do trabalho, em acordo com o que Saviani20 expõe: “Historicamente a educação se põe como atividade inerente ao próprio processo de hominização, isto é o processo pelo qual o homem cria a si mesmo ao produzir os meios que lhes garante a existência” (p. 110). É fundamental, portanto, na formação do homem novo e na perspectiva do socialismo, que desde a infância se incorpore na prática o dever ético (por que é da condição universal do ser humano) do trabalho socialmente produtivo e entenda-se que quem não trabalha, explora. No texto de Tumolo a que agora estou me referindo16, há a repetição da mesma lógica de 200313, começando com uma citação de cada autor; em seguida, há a reiterada explanação sobre como ele entende em Marx os conceitos em debate e retoma novamente os autores para evidenciar seus equívocos 516

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Os trabalhos de Mário A. Manacorda são, nesse sentido, extraordinários e fecundos. (e)


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interpretativos. Com isso, parece estar fazendo escola, com deformações mais sérias em jovens pesquisadores, reivindicando de forma arrogante a verdadeira leitura de Marx e Gramsci, lembrando os debates metafísicos de mesmo teor sobre a verdadeira interpretação da bíblia. Dessa postura deriva a segunda razão, cujo exemplo emblemático e de ingênua arrogância intelectual é a tese de Lazarini12, mas do qual podem vir outras críticas na mesma direção para os outros 12 autores mencionados por Tumolo, que, de acordo com esse autor, por mera suposição, perfilam a mesma linha de Saviani. Vale mencionar o texto de Saviani18, no qual desmonta uma a uma as bombásticas afirmações do jovem pesquisador. Como exemplo do teor bombástico e acusatório, Saviani destaca, entre vários, a crítica que dá título ao item 3.5.2 de tese acima referida17 – “Educação como trabalho imaterial: simbiose entre idealismo e empirismo sensitivo”. Saviani retoma o capítulo VI (inédito) de Marx para mostrar o ponto em que o filósofo trata literalmente da questão por ele trabalhada e que o doutorando não deve ter lido: “Diante desta constatação, cabe a seguinte ironia: pobre do nosso Marx. Tão limitado intelectualmente que acabou sendo vítima da simbiose entre idealismo e empirismo sensível”18 (p. 135). Em seguida, Saviani desmonta o mesmo equívoco grosseiro sobre a crítica a sua concepção de trabalho como princípio educativo, entretanto, aqui o limitado intelectualmente passa a ser Gramsci. Mais adiante, Saviani desmonta os quatro argumentos pelos quais é acusado de se afastar do marxismo. O que é mais preocupante, e isso se liga à ultima razão dessa nota, é o que Saviani18 relata na primeira parte do seu texto: Lazarini nunca o procurou durante a produção da tese. Saviani corretamente observa que quando o autor está vivo e deseja-se analisar sua obra, é usual e metodologicamente importante consultálo. Saviani, entretanto, foi convidado para uma mesa do V Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo para ouvir seu jovem crítico. Saviani18, com total razão, afirma: Da forma como aconteceu, não fui tratado como um companheiro do mesmo campo teórico-político-ideológico a quem se endereçam críticas para fazê-lo avançar ou para corrigir desvios detectados em sua apropriação da teoria, no caso, o marxismo. De fato, fui tratado como um inimigo a abater. (p. 123, destaque nosso)

Quero crer que os organizadores da coletânea não tinham conhecimento da natureza e antecedentes do debate, cujo teor das críticas, na linha do que indica Saviani, é menos de ajudar colegas do mesmo campo teóricopolítico-ideológico do marxismo para avançar e mais uma estratégia de tomá-los como adversários a abater. Por isso, seria relevante a leitura do livro organizado por Saviani e Duarte18, no qual, em profundidade, debatem e qualificam o teor da crítica. (f)

A questão aqui é dupla. Primeiro, a quem serve essa “forma da crítica”, justamente ao mais importante intelectual marxista da área, por sua incomparável produção teórica e pela clareza do lado em que situa sua militância na luta de classe? E qual seria, agora, a intenção de Tumolo em publicar um texto requentando os mesmo argumentos de 200313, justamente na coletânea “Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Politécnica Joaquim Venâncio” (2016), juntando agora Saviani e Frigotto? Registra-se que o primeiro foi quem dominantemente deu a concepção teórica e política da Escola Politécnica na sua origem e o segundo, quem aceitou a interpelação feita pelos então mestrandos, jovens profissionais da Fundação Oswaldo Cruz – André Malhão, Bianca Antunes Cortez e Julio Cesar França Lima –, para ajudá-los na formulação da proposta e, ao longo desses trinta anos, nunca negou a sua frequente colaboração. Mais estranho é que o texto apareça na seção cujo título é: “Debates atuais para uma educação emancipadora”. O que se poderia interpretar é que Saviani e Frigotto já não são atuais e, além disso, suas contribuições não concorrem para uma educação emancipadora e, consequentemente, há necessidade de a escola ter novos referenciais(f). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Referências 1. Marx K, Engels F. A ideologia alemã: Feuerbach - a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista. São Paulo: Martin Claret; 2005. 2. Marx K. O capital. São Paulo: Abril Cultural; 1983. 3. Saviani D. A relação trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Rev Bras Educ. 2007; 12(34):152-80. 4. Marx K, Engels F. La ideologia alemana. Montevideo: Pueblos Unidos; 1974. 5. Engels F. Revista de teoria e política marxista [Internet]. São Paulo: Edições Iskra. 2014 [citado 04 Jul 2016]; Disponível em: http://edicoesiskra.blogspot.com.br/. 6. Saviani D. Educação em diálogo. Campinas: Autores Associados; 2011. p. 119-44. 7. Saviani D. Educação em diálogo. Campinas: Autores Associados; 2011. p. 217-30. 8. Saviani D. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 1989. 9. Saviani D. Choque teórico da politecnia. Trab Educ Saude. 2003; 1(1):131-52. 10. Barata-Moura J. Totalidade e contradição. Acerca da dialética. Lisboa: Editorial Avante; 2012. 11. Saviani D. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados; 2008. p. 65-74. 12. Lessa S. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez; 2007. 13. Tumolo PS. O significado do trabalho no capitalismo e o trabalho como princípio educativo: ensaio de análise crítica. Trab Necessario. 2003; 1(1):1-16. 14. Frigotto GA. Polissemia da categoria trabalho e a batalha das ideias nas sociedades de classe. Rev Bras Educ. 2009; 14(40):168-94. 15. Negro AL, Silva S, organizadores. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos de E. P. Thompson. Campinas: Editora da Unicamp; 2007. 16. Tumolo PS. Bases teórico-políticas para a discussão da educação da perspectiva da classe trabalhadora. In: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, organizadora. Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Rio de Janeiro: EPSJV; 2016. p. 406-61. 17. Lazarini AQ. A relação entre capital e educação escolar na obra de Dermeval Savani [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2010. 18. Saviani D, Duarte N, organizadores. Pedagogia histórico-crítica e luta de classe na educação escolar. Campinas: Autores Associados; 2012. 19. Oliveira F de. O elo perdido: classe e identidade de classe. São Paulo: Brasiliense; 1987. 20. Saviani D. Questões para Dermeval Saviani [entrevista a Bassani E, Caliari R, Dalvi MA, Simões V, Zanin L]. Pró-Discente Cad Prod Acad-Cient Progr Pós-Grad. Educação [Internet]. 2009; [citado 04 Jul 2016]. 15(2):110-6. Disponível em: http://periodicos.ufes. br/PRODISCENTE/article/download/5737/4185.

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Frigotto G. Dermeval Saviani y la centralidad ontológica del trabajo en la formación del “hombre nuevo”, artífice de la sociedad socialista. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):509-19. Este texto deja explícita la centralidad ontológica del trabajo en el conjunto de la obra del filósofo y educador Dermeval Saviani. La concepción materialista de la historia, el método dialéctico de comprensión de la realidad humana y el sentido de la acción política se fundamentan en la actividad vital del trabajo y en cómo este se define en las relaciones sociales de producción material de la existencia en el transcurso del tiempo. Al final, se analiza la visión exegética y heurística de “nuevas” críticas del pensamiento del autor.

Palabras clave: Método dialéctico. Trabajo. Educación. Política. Heurística.

Submetido em 06/12/16. Aprovado em 23/02/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0922

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Concepção de currículo em Dermeval Saviani e suas relações com a categoria marxista de liberdade Carolina Nozella Gama(a) Newton Duarte(b)

Gama CN, Duarte N. The curriculum conception in Dermeval Saviani and its relations with the marxist category of freedom. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):521-30.

Dermeval Saviani analyzes the educational work using the marxist approach, articulating issues relating to philosophy and history of education, educational policy and educational theory, providing inputs for coping with the emptying process suffered by the the school curriculum. From the contribution of Saviani and others regarding the construction of the historicalcritical pedagogy, some curricular principles for the theachig content selection can be formulated. As an example, the question of the classics is pointed out by Saviani as a reference for the selection of school subjects. The category of freedom is understood following the marxist tradition in a way opposed to the liberal-bourgeois point of view based on the historical analysis of the construction of sociability and culture using work as foundation. This historical perspective gives meaning to the ideas proposed by Saviani regarding knowledge, human education and school curriculum.

Keywords: Curriculum. Dermeval Saviani. Historical-critical pedagogy. Freedom. Marxism.

Dermeval Saviani analisa o trabalho educativo pelo enfoque marxista, articulando questões relativas à filosofia e história da educação, política educacional e teoria pedagógica, fornecendo sustentação para o enfrentamento do esvaziamento do currículo escolar. A partir da contribuição desse educador e de outros que a ele se somam, na construção da pedagogia histórico-crítica, alguns princípios curriculares podem ser formulados para a seleção dos conteúdos do ensino. Um exemplo é a questão dos clássicos, que Saviani aponta como referência para a seleção dos conteúdos escolares. A categoria de liberdade é compreendida, pela tradição marxista, de maneira contraposta à visão liberal-burguesa e tem como fundamento a análise histórica da construção da sociabilidade e da cultura a partir da atividade de trabalho. É esta perspectiva histórica que dá sentido às ideias defendidas por Saviani sobre o conhecimento, a formação humana e o currículo escolar.

Palavras-chave: Currículo. Dermeval Saviani. Pedagogia histórico-crítica. Liberdade. Marxismo.

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Centro de Educação, Universidade Federal de Alagoas. Campus A. C. Simões, Avenida Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins. Maceió, AL, Brasil. 57072-970. carolina.gama@ cedu.ufal.br (b) Departamento de Psicologia da Educação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Araraquara, SP, Brasil. newton@fclar.unesp.br (a)

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CONCEPÇÃO DE CURRÍCULO EM DERMEVAL SAVIANI E SUAS RELAÇÕES ...

Introdução A concepção de currículo na obra de Dermeval Saviani indica possibilidades reais para se pensar o currículo, visando o desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica como uma concepção de formação humana na perspectiva da transição do capitalismo para o socialismo e, deste, para o comunismo. Nesse sentido, iniciamos esse artigo explicitando alguns princípios curriculares para a seleção dos conteúdos do ensino e para o trato com o conhecimento. Na sequência, discutimos como esses princípios articulam-se à teoria marxista da liberdade. Afinal, na sociedade capitalista o trabalho gera a anulação da liberdade do trabalhador, posto que este é obrigado, pelas condições objetivas de vida, a vender sua atividade para poder sobreviver. Ao mesmo tempo e contraditoriamente, o trabalho na sociedade capitalista é a fonte de enormes avanços em termos das possibilidades de construção de uma sociedade na qual os seres humanos possam viver e atuar de maneira livre e universal.

Princípios curriculares à luz da pedagogia histórico-crítica Conforme Saviani1, “[...] currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola.” (p. 16). Trata-se das atividades essenciais que a escola não pode deixar de desenvolver, sob pena de perder a sua especificidade. O processo de “seleção do conhecimento” a ser incorporado ao currículo não deve se dar de maneira aleatória, mas com base no que é necessário ao ser humano conhecer para enfrentar os problemas que a realidade apresenta2. A problematização da realidade pelo professor como parte do método da prática pedagógica é fundamental, pois a seleção do conhecimento que se vincula à definição dos objetivos de ensino implica definir “prioridades” (distinguir o que é principal do que é que secundário), o que é ditado “[...] pelas condições da situação existencial concreta em que vive o homem.”2 (p. 39). Malanchen3 explica que a escola precisa garantir a socialização dos conhecimentos “científicos, filosóficos e artísticos”, devendo permitir a superação do conhecimento espontâneo pelo conhecimento elaborado1. Guiada pelas formulações do Coletivo de Autores4 acerca de princípios curriculares, a tese de Gama5 explicita como tais princípios podem ser aprofundados a partir das formulações de Saviani. Três princípios para a “seleção dos conteúdos de ensino” – Relevância social do conteúdo; Adequação às possibilidades sociocognitivas do aluno e Objetividade e enfoque científico do conhecimento – podem ser destacados; pois estes possuem relação intrínseca entre si e com os princípios metodológicos para o trato com o conhecimento (da síncrese à síntese; simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade; ampliação da complexidade do conhecimento e Provisoriedade e historicidade dos conhecimentos)5. No que tange ao princípio da Relevância social do conteúdo, o Coletivo de Autores4 explica que o conteúdo a ser tratado “[...] deverá estar vinculado à explicação da realidade social concreta e oferecer subsídios para a compreensão dos determinantes sócio-históricos do aluno, particularmente a sua condição de classe social.” (p. 31). Saviani6 permite-nos complementar tal assertiva ao ressaltar que, sendo o saber um meio de produção, sua apropriação contraria a lógica do capital baseada na propriedade privada desses meios. Defendemos que o conhecimento sistematizado seja apropriado pelos trabalhadores na escola, pois ele pode se converter em força material, permitindo o desenvolvimento da compreensão acerca das relações sociais de produção7-8. Nessa perspectiva, a “[...] organização curricular dos vários níveis e modalidades de ensino [...] deverá tomar como referência a forma de organização da sociedade atual, assegurando sua plena compreensão por parte de todos os educandos.”9 (p. 32). A noção de “clássico” orienta a definição dos currículos escolares, fornecendo “[...] um critério para se distinguir, na educação, o que é principal do que é secundário; o essencial do acessório; o que é duradouro do que é efêmero; o que indica tendências estruturais daquilo que se reduz à esfera conjuntural.”10 (p. 27-28). [...] clássico é aquilo que resistiu ao tempo, tendo uma validade que extrapola o momento em que foi formulado. Define-se, pois, pelas noções de permanência e referência. Uma vez que, mesmo nascendo em determinadas conjunturas históricas, capta questões nucleares que 522

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dizem respeito à própria identidade do homem como um ser que se desenvolve historicamente, o clássico permanece como referência para as gerações seguintes que se empenham em se apropriar das objetivações humanas produzidas ao longo do tempo.10 (p. 16).

A noção de clássico é um importante critério para guiar a seleção dos conhecimentos artísticos, filosóficos e científicos que devem ser abordados na escola. Trata-se de priorizar os conhecimentos que carregam a universalidade humana. Referimo-nos aos conhecimentos que possibilitam a relação entre os seres humanos e a totalidade da cultura, servindo de referência para que as novas gerações se apropriem do que foi produzido ao longo da história social. Outro princípio é o da adequação dos conhecimentos às possibilidades sociocognitivas do aluno. Ao discutir a questão dos saberes do ponto de vista da forma “sofia” e da forma “episteme”, Saviani8 esclarece que essas formas atravessam, indistintamente, os diferentes tipos de saber, ainda que com ênfases diferenciadas. As atitudes, à medida que se configuram como saber, implicam necessariamente certo grau de sistematização, assim como a experiência de vida tem um peso que não pode ser desconsiderado na forma como se constroem os saberes específicos8. Nesse sentido, “[...] o currículo escolar deve dispor, de forma que viabilize a sua assimilação pelos alunos, o conjunto de objetivações humanas [...].” O professor, por sua vez, “[...] ao lidar com o aluno concreto, precisará ter o domínio dessas objetivações para realizar aquela colaboração original do adulto para com a criança de que falava Vigotski.”11 (p. 49). Isso significa dosar e sequenciar os conteúdos ao longo do tempo-espaço, tendo em vista atuar na zona de desenvolvimento iminente do aluno, considerando suas possibilidades e necessidades como sujeito histórico. É neste âmbito que se situa o problema do conhecimento sistematizado [...]. Esse conhecimento sistematizado pode não ser do interesse do aluno empírico, ou seja, o aluno, em termos imediatos, pode não ter interesse no domínio desse conhecimento; mas ele corresponde diretamente aos interesses do aluno concreto, pois enquanto síntese das relações sociais, o aluno está situado numa sociedade que põe a exigência do domínio deste tipo de conhecimento12. (p. 45)

Portanto, devemos considerar o aluno concreto. Como apontam os estudos no campo da psicologia histórico-cultural, há que se tratar o conhecimento tendo em vista o desenvolvimento do aluno, o que se faz incidindo sobre a zona de desenvolvimento iminente. Tal questão se traduz na afirmação de Vigotski13 de que o bom ensino é aquele que antecede o desenvolvimento. Do mesmo modo que é contraproducente o ensino que exige o que está além dos limites da zona de desenvolvimento iminente, também é inócuo, em termos de desenvolvimento psíquico, o ensino que se limita ao que o aluno consegue fazer por si mesmo. Outro relevante princípio curricular é o da objetividade e enfoque científico do conhecimento. Essa premissa é abordada por Saviani1, que salienta ser necessário superar a falsa afirmativa positivista que identifica objetividade e neutralidade e esclarece que a questão da neutralidade é uma questão ideológica que diz respeito ao caráter interessado ou não do conhecimento, enquanto a objetividade é uma questão gnosiológica, que diz respeito à correspondência ou não do conhecimento com a realidade a que se refere. O fato do conhecimento ser sempre interessado, sendo a neutralidade impossível, não significa a impossibilidade da objetividade. Afinal, “[...] dizer que determinado conhecimento é universal significa dizer que ele é objetivo, isto é, se ele expressa as leis que regem a existência de determinado fenômeno, trata-se de algo cuja validade é universal.”1 (p. 57-8). Buscar a objetividade do conhecimento corresponde à explicitação das múltiplas determinações que produzem e explicam os fatos. Por isso, é preciso identificar o aspecto gnosiológico (centrado no conhecimento e na objetividade) e o aspecto ideológico (expressão dos interesses, na subjetividade), uma vez que os seres humanos são impelidos a conhecer em função da busca pelos meios que atendam às suas necessidades e satisfaçam suas carências. Assim, a historicização é a forma de resgatar a objetividade e a universalidade do saber; não por acaso a historicidade do conhecimento é um dos princípios metodológicos a serem considerados no trato com o conhecimento, como veremos mais adiante. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O conceito de saber objetivo utilizado por Saviani é fundamental para a discussão do currículo na perspectiva histórico-crítica, pois indica que há que se tratar na escola de um conjunto de conhecimentos sistematizados que a humanidade acumulou acerca da realidade ao longo da história; há que se ter um enfoque científico, e não do senso comum, do conhecimento. Tal perspectiva contrapõe-se às concepções curriculares relativistas de cunho pós-moderno, que negam a possibilidade de apreensão do real para além das aparências, pautando-se no improviso e rejeitando o critério de maior ou menor grau de fidedignidade dos conhecimentos acerca da realidade3. Considerando que “para existir a escola não basta a existência do saber sistematizado”, sendo necessário viabilizar as condições de sua transmissão e apropriação, o que implica “dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe gradativamente do seu não domínio ao seu domínio”1 (p. 18), os “[...] princípios da seleção do conteúdo remetem à necessidade de organizá-lo e sistematizálo fundamentado em alguns princípios metodológicos, vinculados à forma como serão tratados no currículo, bem como à lógica com que serão apresentados aos alunos4” (p. 31). Iniciemos pelo princípio da síncrese à síntese ou da aparência à essência, que pode ser compreendido quando Saviani¹ destaca que o papel da escola é possibilitar, por meio do acesso à cultura erudita, a “[...] apropriação de novas formas por meio das quais se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular” (p. 22). Não se trata de excluir ou negar o saber popular, mas superá-lo e torná-lo rico em novas determinações, atingindo-se no ponto de chegada do trabalho educativo aquilo que não estava posto no ponto de partida. Trata-se de estabelecer um movimento dialético entre o saber espontâneo e o saber sistematizado, entre a cultura popular e a cultura erudita, de forma que a ação escolar permita que se acrescentem novas determinações que possam enriquecer as anteriores; o saber espontâneo, baseado na experiência de vida, e a cultura popular são a base que torna possível a elaboração do saber e, consequentemente, a cultura erudita. Destarte, o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação de novas formas pelas quais se pode expressar os próprios conteúdos do saber popular8. Com isso, Saviani6 defende ser necessário combater tanto o rebaixamento vulgar da cultura para as massas como a sofisticação esterilizadora da cultura das elites, que coexistem nesse momento conservador, transcendendo a “cultura superior” (ciências, letras, artes e filosofia) como privilégio restrito a pequenos grupos da elite. É tarefa fundamental da escola viabilizar o acesso ao conhecimento sistematizado, pois o “[...] conhecimento de senso comum se desenvolve e é adquirido independentemente da escola.”8 (p. 1-2). Dessa forma, contribui-se para a compreensão dialética da realidade, de modo a articular o singular – o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas (trato com o conhecimento, organização escolar) – com o geral – a transformação da realidade regida pelo capital (o projeto histórico-socialista). Outro princípio é o da simultaneidade dos conteúdos como dados da realidade. Trata-se de buscar assegurar na organização curricular a visão de totalidade, que carrega o particular e o universal, demonstrando as relações e nexos entre os diferentes conteúdos, ou seja, trata-se de, por meio da socialização dos conteúdos das diferentes áreas do conhecimento, permitir ao aluno que aprofunde sua compreensão acerca da realidade. Considerando que, para produzir materialmente, o ser humano necessita antecipar em ideias os objetivos da ação, é necessário impulsionar os alunos a representarem mentalmente os objetivos reais, o que inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte) na produção de ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes e habilidades8. Assim empreende-se um movimento que vai “[...] da síncrese (‘a visão caótica do todo’) à síntese (‘uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas’) pela mediação da análise (‘as abstrações e determinações mais simples’) [...]”, o que constitui uma “[...] orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (o método científico) como para o processo de transmissão-assimilação de conhecimentos (o método de ensino).”14 (p. 74). Esse percurso orienta a organização e sistematização lógica e metodológica do conhecimento por dentro de uma unidade de ensino, bem como de uma etapa ou ano escolar, remetendo ao princípio seguinte. A ampliação da complexidade do conhecimento, que parte do entendimento de que a apropriação de dado conhecimento não se dá de forma linear, em uma “única dose”, mas por meio de sucessivas

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aproximações. Em um processo no qual vão se ampliando as referências acerca do objeto (apreensão das múltiplas determinações), a representação do real no pensamento vai sendo produzida, ampliando-se e tornando-se cada vez mais fidedigna. Assim, o trato escolar com o conhecimento, embora requeira a sistematização de sequências dos conteúdos curriculares, não deve ser visto de maneira linear, na forma de etapas que se sucedem rigidamente e às quais não se retorna. O que mudaria de uma unidade de ensino ou de uma série para outra, além da incorporação de novos conteúdos, seria a ampliação das referências sobre aspectos da realidade já estudados que, dessa maneira, serão compreendidos pelos alunos de forma cada vez mais aprofundada e complexa. De um período para o outro enriquecem-se as determinações acerca dos objetos estudados, incorporam-se ao saber escolar novos conhecimentos sobre esses objetos e também novos objetos das ciências, das artes e da filosofia, avançando-se na qualidade do conhecimento apropriado e objetivado. O currículo deverá traduzir essa organização dispondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessários para que se alcance a aprendizagem1. Há outros textos em que Saviani6,7,15 trata da organização curricular e reforça a pertinência do princípio curricular da ampliação da complexidade do conhecimento. Ao examinar as contradições da educação burguesa, o autor propõe que a organização do sistema de ensino deva guiar-se pelo enfrentamento das contradições inerentes ao sistema capitalista, sendo três delas mais relacionadas à educação: contradição, homem e sociedade; homem e trabalho; homem e cultura15. As considerações referentes ao princípio metodológico da ampliação da complexidade do conhecimento fornecem elementos para pensarmos a organização escolar, seja em termos de como organizar metodologicamente uma aula ou unidade de ensino, seja em termos de como organizar os níveis de ensino e o conhecimento ao longo dos anos escolares. Isso nos remete a outro princípio curricular: o da provisoriedade e historicidade dos conhecimentos. Conforme o Coletivo de Autores4, “[...] é fundamental para o emprego desse princípio apresentar o conteúdo ao aluno, desenvolvendo a noção de historicidade, retraçando-o desde a sua gênese, para que ele se perceba como sujeito histórico.” (p. 33). Sobre isso, à luz da problematização da questão escolar realizada por Gramsci em “Os intelectuais e a organização da cultura”, em especial a passagem em que o autor tratou da centralidade que a cultura greco-romana tinha na escola tradicional, traduzida no cultivo das línguas latina e grega e das respectivas literaturas e histórias políticas, Saviani16 argumenta que a História seria exatamente essa matéria que deve ocupar o lugar central no novo princípio educativo da escola do nosso tempo. Conforme Taffarel et al.17, trata-se de assumir a história como matriz científica, de modo que a organização dos conteúdos curriculares oriente-se pelo princípio da radical historicidade do homem, organizando-se “[...] em torno do mesmo conteúdo, a própria história dos homens, identificado como o caminho comum para formar indivíduos plenamente desenvolvidos.”16 (p. 129). Afinal, o presente tem uma história enraizada no passado, ao passo que também contém elementos que projetam o futuro. Dessa maneira, é impossível compreender com radicalidade o presente sem compreender as suas raízes, o que implica o estudo de sua gênese18. Nessa perspectiva, é imprescindível para o trato com conhecimento abordá-lo na sua historicidade, como produto da ação humana concretizada em um dado momento histórico. Ademais, a história do desenvolvimento dos conhecimentos produzidos pela humanidade fornece pistas importantes para sua organização, sistematização e sequenciamento lógico e metodológico. Esse princípio não deve, porém, ser entendido de maneira mecânica, como se o estudo de cada tópico dos conteúdos escolares devesse necessariamente ser precedido de uma exposição sobre sua gênese histórica ou a sequência de ensino devesse necessariamente reproduzir o percurso histórico de determinado conhecimento. Há aqui a necessidade de se considerar a dialética entre o lógico e o histórico, isto é, entre um determinado fenômeno em sua forma mais desenvolvida e seu processo de desenvolvimento19. Os princípios curriculares expostos articulam-se, mas não devem ser tomados isoladamente ou como receituários a serem aplicados de forma descontextualizada; pois, ao contrário, têm função de orientar a definição e organização do currículo, bem como o trabalho educativo, que articula o trabalho individual em torno de um projeto coletivo de formação.

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Relações entre o currículo e a categoria de liberdade na tradição marxista Em estudo recente, Duarte20, pela perspectiva da pedagogia histórico-crítica, estabelece relações entre os conhecimentos escolares e a categoria de liberdade, tomando como referência a abordagem dessa categoria na tradição marxista. Ultrapassaria os limites e os propósitos desse artigo uma análise dos momentos em que a categoria de liberdade se apresenta na obra de Dermeval Saviani. O enfoque aqui adotado reduz-se apenas aos aspectos mais diretamente ligados à concepção de currículo. Como já foi assinalado neste artigo, a concepção marxista de conhecimento ocupa lugar central na teoria pedagógica histórico-crítica, partindo-se da definição da especificidade escolar, que reside na socialização do saber sistematizado. Em texto intitulado “Marxismo, Educação e Pedagogia”, Saviani21 distingue a concepção marxista de conhecimento tanto da visão moderna quanto da pós-moderna: Vê-se, pois, que estamos diante de uma concepção claramente realista, em termos ontológicos, e objetivista, em termos gnosiológicos. Assenta-se, portanto, em duas premissas fundamentais: 1. As coisas existem independentemente do pensamento, com o corolário: é a realidade que determina as ideias e não o contrário; 2. A realidade é cognoscível, com o corolário: o ato de conhecer é criativo não enquanto produção do próprio objeto de conhecimento, mas enquanto produção das categorias que permitam a reprodução, em pensamento, do objeto que se busca conhecer. (p. 63)

Além disso, o autor defende que o aspecto gnosiológico e o ideológico do conhecimento “[...] não se confundem, não se excluem mutuamente e não se negam reciprocamente.”21 (p. 66). Assim, a concepção marxista de conhecimento não se contrapõe à exigência de objetividade, mas, ao contrário, procura levá-la às últimas consequências. É nesse sentido que, no marxismo, unem-se o materialismo, a dialética e o historicismo, formando uma concepção de mundo que dá sentido à defesa, pela pedagogia histórico-crítica, da socialização dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos em suas formas mais desenvolvidas22. Nessa direção, Saviani21 articula explicitamente a construção da pedagogia histórico-crítica ao projeto socialista: Penso que a tarefa da construção de uma pedagogia inspirada no marxismo implica a apreensão da concepção de fundo [de ordem ontológica, epistemológica e metodológica] que caracteriza o materialismo histórico. Imbuído dessa concepção, trata-se de penetrar no interior dos processos pedagógicos, reconstruindo suas características objetivas e formulando as diretrizes pedagógicas que possibilitarão a reorganização do trabalho educativo sob os aspectos das finalidades e objetivos da educação, das instituições formadoras, dos agentes educativos, dos conteúdos curriculares e dos procedimentos pedagógico-didáticos que movimentarão um novo éthos educativo voltado à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura, um novo homem. (p. 81)

A questão da liberdade está, portanto, no centro desse processo de construção de uma pedagogia inspirada no marxismo, necessariamente articulada à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura e um novo ser humano. Trata-se, primeiramente, da afirmação de que a humanidade não está definitivamente aprisionada ao capitalismo. Se essa sociedade colocou em movimento forças produtivas desconhecidas pelas formações sociais precedentes, as relações capitalistas de produção tornaram-se um obstáculo não só ao desenvolvimento dessas forças produtivas como também ao seu direcionamento em prol de necessidades humanizadoras e de formas sustentáveis de relacionamento entre sociedade e natureza. É importante também reafirmar que a liberdade está no centro do projeto de uma sociedade socialista. Os problemas ocorridos nos países que, no século XX, tentaram construir o socialismo acabaram sendo usados pela ideologia liberal como argumento para difusão da distorcida visão de que o socialismo se oporia ao princípio da liberdade e que o capitalismo estaria pautado nesse princípio. A 526

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visão liberal, além de se restringir a uma concepção formal de liberdade, desconsidera que o processo de reprodução do capital não só foge ao controle dos seres humanos como se impõe de maneira fetichista, como um ser sobre-humano que possui vida própria e não se detém diante de qualquer obstáculo de natureza ética, jurídica, política, ambiental, cultural, etc. Como pode ser o baluarte da liberdade uma sociedade que impõe a pobreza à maioria da humanidade em nome da opulência de uma minoria, que se vê impotente perante o problema da destruição dos recursos naturais causada por uma produção de mercadorias pautada no princípio da obsolescência programada, que não se mostra capaz de oferecer às novas gerações alternativas de futuro que deem sentido à vida para além do hedonismo imediatista que reduz tudo ao aqui e agora? O socialismo, diversamente, afirma que a humanidade é livre para redirecionar as forças produtivas, colocando-as a serviço da produção de necessidades verdadeiramente humanizadoras e fazendo do trabalho uma atividade que, ao invés de escravizar as pessoas em decorrência da venda da força de trabalho, seja uma das principais formas de livre desenvolvimento das capacidades e das necessidades humanas. Quando a pedagogia histórico-crítica postula que o trabalho seja o princípio educativo, não está tomando como referência o trabalho assalariado do qual o capital extrai a mais-valia, mas sim a importância do trabalho para a construção histórica das possibilidades objetivas e subjetivas de liberdade para a humanidade22. Foi a partir da forma primeira e fundamental de atividade de trabalho, ou seja, a transformação da natureza com vistas à satisfação das necessidades humanas, que se desenvolveu a dialética entre os processos de objetivação e de apropriação, que constituem a dinâmica fundamental de relacionamento entre cada indivíduo e a cultura historicamente construída23. A partir dessa forma básica de trabalho, indispensável a todo tipo de sociedade, surgiram e desenvolveram-se novas necessidades que geraram esferas mais elevadas de objetivação, chegando-se às formas mais desenvolvidas e complexas que são a ciência, a arte e a filosofia. A defesa do trabalho escolar com os clássicos da ciência, da arte e da filosofia não denota desconsiderar que eles refletem as contradições que marcam o desenvolvimento humano, até o presente caracterizado pela luta de classes. A seleção dos conteúdos escolares não é neutra, mesmo quando realizada a partir de concepções que pretendam impor à ação pedagógica uma suposta neutralidade política. A pedagogia histórico-crítica não esconde seu posicionamento político, do qual deriva sua defesa de um sistema público de ensino que assegure a socialização do saber sistematizado. Os arautos do liberalismo não defendem, de fato, a plena liberdade para todos, mas sim apenas o tipo de liberdade que permita à burguesia continuar a subjugar o restante da humanidade à lógica do capitalismo contemporâneo, dominado pela forma mais destrutiva de capital, que é o capital financeiro. O conhecimento por si só não liberta o ser humano: o que o liberta é a prática social. Da mesma forma, não há qualquer resquício, na obra de Dermeval Saviani, da ideia de que a socialização do saber sistematizado pela educação escolar promoveria, por si só, a libertação das pessoas. Isso seria idealismo e se a pedagogia histórico-crítica acreditasse nessa ideia, seu nome estaria errado, pois ela não estaria historicizando o conhecimento, nem abordando de maneira crítica as relações entre conhecimento e transformação social. As teorias situadas no campo da esquerda, porém, que não atribuem ao conhecimento qualquer papel relevante no processo de superação da sociedade capitalista, também padecem do mesmo idealismo que julgam negar, pois destituem a revolução da necessária fundamentação no conhecimento objetivo da realidade social e desconsideram as complexas mediações que unem os mais abstratos conhecimentos à prática social em sua totalidade. Como já foi explicitado neste artigo, para a pedagogia histórico-crítica, o currículo escolar é uma unidade de conteúdo e forma. Assim, as relações entre a concepção de currículo na obra de Dermeval Saviani e a categoria de liberdade na tradição marxista mostram-se também nas ideias que esse educador defende acerca das formas de se ensinar e se aprender o saber sistematizado. Esse é um ponto, aliás, no qual a pedagogia histórico-crítica tem sido injustamente alvo de muitas acusações, especialmente dos educadores alinhados às “pedagogias do aprender a aprender”24, que tendem a considerar que a pedagogia histórico-crítica opta pelas formas tradicionais de ensino em detrimento de formas que valorizam a liberdade do aluno. Não é o caso de se retomar aqui as análises 527


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que os educadores da pedagogia histórico-crítica já fizeram sobre os limites e as inconsistências das “pedagogias do aprender a aprender”24, pois nosso foco volta-se para o fato de que Saviani, ao abordar a questão das formas de se ensinar e aprender, mantém-se coerentemente na linha do tratamento dado pelos clássicos do marxismo à categoria de liberdade. Um exemplo dessa questão abordada, extraído do texto “Sobre a natureza e a especificidade da educação”, capítulo do livro “Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações”1, refere-se ao caráter aparentemente paradoxal da condição de aprendiz. Nesse texto, Saviani, ao defender que a formação de automatismos é condição para liberdade, dá como exemplo o processo pelo qual uma pessoa aprende a dirigir um automóvel. De início, cada um dos movimentos, isto é, das operações que formam a ação de dirigir o automóvel, deve ser aprendido pelo iniciante, o que exige grande atenção, esforço e repetição, sem o qual a pessoa não adquire o automatismo que lhe permitirá conduzir o automóvel com destreza, segurança e autonomia. Antes de alcançar esse nível, o aprendiz estará prisioneiro do esforço necessário à realização de cada movimento. A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas as energias. Por isso o aprendiz não é livre ao dirigir. No limite, eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele não os domina, mas, ao contrário, é dominado por eles. A liberdade só será atingida quando os atos forem dominados. E isso ocorre no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições de se exercer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos. Então, a atenção liberta-se, não sendo mais necessário tematizar cada ato. Nesse momento, é possível não apenas dirigir livremente, mas também ser criativo no exercício dessa atividade. E só se chega a esse ponto quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, completouse. Por isso, é possível afirmar que o aprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto da aprendizagem, nunca é livre. Quando ele for capaz de exercitá-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser aprendiz. As considerações supra podem ser aplicadas em outros domínios, como, por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical etc1. (p. 19-20)

O caráter aparentemente paradoxal da condição de aprendiz está no fato de que, para alcançar a liberdade na realização de um determinado tipo de atividade, o indivíduo precisa inicialmente ser destituído de sua liberdade, submetendo-se aos processos que ainda não domina quando tem início a aprendizagem; mas sua liberdade será reconquistada em um nível mais elevado, quando alcançar a autonomia na realização daquela atividade, por meio do domínio das operações por ela requeridas. Esse processo de conquista da liberdade, pela mediação da subordinação inicial àquilo que se pretende dominar, está presente na atividade humana desde a mais primitiva produção de instrumentos. Todos os clássicos do marxismo abordaram, de uma forma ou de outra, o caminho pelo qual o ser humano avançou no domínio da natureza, conhecendo e respeitando sua processualidade objetiva para colocar essa processualidade a serviço da satisfação das necessidades humanas, o que foi chamado por Hegel como a astúcia da razão25. Concluindo, podemos afirmar que o currículo na concepção histórico-crítica tem como objeto o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos estudantes nas suas máximas possibilidades dentro das condições históricas atuais, o que, nas palavras de Saviani, significa produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida, histórica e coletivamente, pelo conjunto dos homens. Tal processo implica não perder de vista a noção do todo, em especial, a unidade conteúdo-forma, pois alterar o conteúdo que é ensinado nas escolas, avançando na socialização do saber sistematizado, perpassa pela alteração da forma de organização escolar. Assim, podemos dizer que é impossível pensar a alteração da organização escolar sem que haja a alteração do conteúdo que é tratado na escola. Esperamos ter evidenciado que tratar do currículo na perspectiva histórico-crítica articula-se à questão da liberdade, que está no cerne do processo de construção de uma nova sociedade, uma nova cultura e um novo ser humano.

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Colaboradores Carolina Nosella Gama e Newton Duarte participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10a ed. Campinas: Autores Associados; 2008. 2. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 15a ed. Campinas: Autores Associados; 2004. 3. Malanchen J. A pedagogia histórico-crítica e o currículo: para além do multiculturalismo das políticas curriculares nacionais [tese]. Araraquara (SP): Universidade Estadual Paulista; 2014. 4. Coletivo de Autores. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez; 1992. 5. Gama CN. Princípios curriculares à luz da pedagogia histórico-crítica: as contribuições da obra de Dermeval Saviani [tese]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2015. 6. Saviani D. Educação socialista, pedagogia histórico-crítica e os desafios da sociedade de classes. In: Saviani D, Lombardi JC, organizadores. Marxismo e educação: debates contemporâneos. Campinas: Autores Associados, HISTEDBR; 2008. p. 223-74. 7. Saviani D. Choque teórico da politecnia. Trab Educ Saude. 2003; 1(1):131-52. 8. Saviani D. Educação escolar, currículo e sociedade: o problema da base nacional comum curricular. Movimento. 2016; 3(4):54-84. 9. Saviani D. Ciência e educação na sociedade contemporânea: desafios a partir da pedagogia histórico-crítica. Rev Faz Cienc. 2010; 12(16):13-36. 10. Saviani D. Importância do conceito de “clássico” para a pedagogia. In: Teixeira Júnior A, organizador. Marx está vivo! Maceió: [s.ed]; 2010. p. 15-28. 11. Saviani D. Perspectiva marxiana do problema subjetividade-intersubjetividade. In: Giolo J. Conferência proferida no I Seminário Internacional sobre Filosofia e Educação. Esp Ped. 2003; 10:77-97. 12. Saviani D. Marxismo e educação. Principios. 2006; (14):37-45. 13. Vigotski LS. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: Vigotski LS, Leontiev NA, Luria AR. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, Editora USP; 1988. p.103-17. 14. Saviani D. Escola e democracia. 42a ed. Campinas: Autores Associados; 2012. 15. Saviani D. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Rev Bras Educ. 2007; 12(34):152-80. 16. Saviani D. Pedagogia: o espaço da educação na universidade. Cad Pesqui. 2007; 37(130):99-134. 17. Taffarel CNZ, Santos Júnior C L, Escobar MO, organizadores. Cadernos didáticos sobre educação no campo. Salvador; 2009. p.183-203. 18. Saviani D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados; 2007. 19. Duarte N. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco: a dialética em Vigotski e em Marx e a questão do saber objetivo na educação escolar. Educ Soc. 2000; 21(71):79-115. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302000000200004.

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20. Duarte N. Relações entre conhecimento escolar e liberdade. Cad Pesqui. 2016; 46(159):78-102. 21. Saviani D. Marxismo, educação e pedagogia. In: Saviani D, Duarte N. Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar. Campinas: Autores Associados; 2012. p. 59-85. 22. Duarte N. A importância da concepção de mundo para a educação escolar: porque a pedagogia histórico-crítica não endossa o silêncio de Wittgenstein. Germinal Marxismo Educ Debate. 2015; 7(1):8-25. 23. Duarte N. A individualidade para si: contribuição à teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados; 2013. 24. Duarte N. As pedagogias do “aprender a aprender” e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento. Rev Bras Educ. 2001; 18:35-40. 25. Lukács G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo; 2012. v. 1.

Gama CN, Duarte N. Concepción de currículo en Dermeval Saviani y sus relaciones con la categoría marxista de libertad. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):521-30. Dermeval Saviani analiza el trabajo educativo por el enfoque marxista, articulando cuestiones relativas a la filosofía e historia de la educación, política educativa y teoría pedagógica, suministrando sustentación para el enfrentamiento del vaciado del currículo escolar. A partir de la contribución de ese educador y de otros que se suman a él, en la construcción de la pedagogía histórico-crítica, pueden formularse algunos principios curriculares para la selección de los contenidos de la enseñanza. Un ejemplo es la cuestión de los clásicos que Saviani señala como referencia para la selección de los contenidos escolares. La categoría de libertad es entendida, por la tradición marxista, de manera contrapuesta a la visión liberal burguesa y tiene como fundamento el análisis histórico de la construcción de la sociabilidad y de la cultura a partir de la actividad del trabajo. Es esa perspectiva histórica la que da sentido a las ideas defendidas por Saviani sobre el conocimiento, la formación humana y el currículo escolar.

Palabras clave: Currículo. Dermeval Saviani. Pedagogía histórico-crítica. Libertad. Marxismo.

Submetido em 16/11/16. Aprovado em 21/03/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0917

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A dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica histórico-crítica Tiago Nicola Lavoura(a) Lígia Márcia Martins(b)

Lavoura TN, Martins LM. The dialectic of teaching and learning in historical-critical educational activity. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):531-41.

Through the intermediation between the historical-critical pedagogy and historical-cultural psychology based on the fundamentals of historical and dialectical materialism, the paper aims to discuss the dialectic of teaching and learning in the educational activity. It aims to contribute to overcome the split between ontology and epistemology, by pointing out the need for a solid understanding of the fundamentals of the ascension from the abstract to the concrete method while proposing the activity theory as an indispensable theoretical stuff to think about the organization of educational activity of teaching and learning in the field of education. In this way it puts in motion the teaching method needed for the apprehension of phenomena as synthesis of multiple determinations and relations.

Keywords: Method. Pedagogical activity. Teaching. Learning.

Explicitando as intermediações entre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural a partir dos fundamentos do materialismo histórico-dialético, o artigo pretende problematizar a dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica. Enseja-se contribuir para a superação do problema da cisão entre ontologia e epistemologia ao apontar a necessidade da sólida compreensão dos fundamentos do método de ascensão do abstrato ao concreto, ao passo que se afirma a teoria da atividade como estofo teórico imprescindível para se pensar a organização da atividade pedagógica de ensino e aprendizagem no âmbito da educação, colocando em movimento o método pedagógico necessário para a apreensão dos fenômenos como síntese de múltiplas determinações e relações numerosas.

Palavras-chave: Método. Atividade pedagógica. Ensino. Aprendizagem.

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Departamento de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Santa Cruz. Rodovia Jorge Amado, Km 16. Ilheus, BA, Brasil. 45662-900. nicolalavoura@ uol.com.br (b) Departamento de Psicologia, Faculdade de Ciências de Bauru, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Bauru, SP, Brasil. ligiamar@fc.unesp.br (a)

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Introdução Tornou-se um tanto conhecido o método da pedagogia histórico-crítica, anunciado por Saviani1 como processo constituído por cinco passos, tendo em vista instrumentalizar uma didática que contraponha a didática da pedagogia histórico-crítica (partindo do materialismo histórico-dialético) à didática da pedagogia tradicional (com base no método expositivo formulado por Herbart, fundado no método científico indutivo de Bacon) e da Escola Nova (com base no método experimentalista ao qual se filia Dewey). Desde sua proposição metodológica, já se apontava para o fato de não se incorrer no erro de tomar os referidos passos como uma sequência cronológica. Conforme Saviani1 asseverou: “[...] em lugar de passos que se ordenam numa sequência cronológica, é mais apropriado falar aí de momentos articulados num mesmo movimento, único e orgânico.” (p. 67, destaque nosso). Como forma de exemplificação, o referido autor afirmou que, em muitos casos, a problematização exige a instrumentalização, uma vez que a capacidade de problematizar algum dado constitutivo da prática social depende diretamente da posse de determinados instrumentos, vale dizer, de conhecimentos sobre tal. Posteriormente, Saviani2 passou a empregar o termo “momentos”, buscando corrigir equívocos de entendimento do método pedagógico proposto. Assim, tais momentos do método pedagógico articulam-se dialeticamente no trabalho educativo, sempre considerando a prática social dos homens como ponto de partida e de chegada da prática educativa, tomando como momentos intermediários a problematização dessa prática social, a instrumentalização dos alunos – compreendida como a apropriação dos instrumentos teóricos e práticos necessários à transformação da prática social – e a “catarse”, que corresponde à efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados em elementos ativos de transformação social2. Desde então, temos acompanhado, sobretudo ao longo desses últimos anos, uma crescente produção acadêmica nos mais diversos campos e áreas do saber científico, que têm buscado discutir o ensino dos conteúdos escolares a partir dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica, apresentando formas para o ensino de Ciências, Matemática, Geografia, Educação Física, Química, Filosofia, Artes, entre outras disciplinas do currículo escolar dos diferentes níveis de ensino. A despeito dessas inúmeras colaborações que se somam aos esforços da construção coletiva da pedagogia histórico-crítica, enseja-se neste artigo problematizar a discussão acerca do método dessa teoria pedagógica tal como se apresenta nas referidas produções, notadamente, tendo-se como preocupação central o que aqui se denomina por uma – possível e, em alguns casos, notória – “didatização e desmetodização do método da pedagogia histórico-crítica”. É válido pressupor alguns nexos causais que possibilitam explicar essa didatização e desmetodização do método pedagógico histórico-crítico, quais sejam: a) a incompreensão do caráter dialético do método pedagógico, o que leva à sua formalização expressa em passos lineares e mecânicos, sequencialmente sistematizados a partir da lógica formal do pensamento, incorrendo-se na didatização do ensino; b) a inadequada caracterização do conceito de mediação presente nessa teoria pedagógica (enquanto interposição que gera transformação), comprometendo a compreensão, por exemplo, da relação teoria e prática e da relação forma-conteúdo-destinatário; c) a falta de clareza na distinção entre método e procedimentos de ensino, com nítida hipertrofia do segundo e secundarização ou abandono d´[o primeiro, levando consequentemente à desmetodização do próprio método; e d) por fim, um pretenso epistemologismo da pedagogia histórico-crítica, de forma intencional ou não, por parte daqueles que o fazem, muito ao gosto da ambiência contemporânea identificada com o debate pós-moderno, debruçando-se em torno de seus apontamentos didático-metodológicos sem, no entanto, lançar mão da apropriação de suas bases teóricas e históricas, seus fundamentos filosóficos e o significado político do conjunto da obra de Dermeval Saviani, o que leva à interdição da verdadeira concepção ontológica da pedagogia histórico-crítica. O caminho por nós escolhido neste artigo, a fim de contribuir para as necessárias superações desses equívocos, está delineado no ponto de partida pela afirmação de uma sólida compreensão acerca dos fundamentos da teoria social de Marx3; notadamente, seu método de apreensão do movimento do conhecimento do real concreto em direção ao concreto pensado (que, por sua vez, dá suporte 532

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ao método pedagógico histórico-crítico), tendo em vista a apropriação, por parte dos educandos, do conjunto dos conhecimentos historicamente desenvolvidos pela humanidade. Essa é uma exigência para aqueles que almejam desenvolver seu trabalho pedagógico com base na pedagogia históricocrítica. O ponto de chegada do presente ensaio está na análise do duplo trânsito requerido pelo trabalho pedagógico no que se refere ao caminho lógico do ensino em contraposição dialética ao da aprendizagem, processo dinamicamente promotor de desenvolvimento humano, conforme apontamentos da psicologia histórico-cultural e da teoria da atividade de Leontiev4,5. A proposição da contradição lógica existente entre os processos de ensino e de aprendizagem não tem por base níveis de ensino ou áreas específicas do conhecimento, mas características evidenciadas pela psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-crítica acerca da relação entre os atos de ensinar e aprender. Trata-se, pois, de um princípio orientador para a organização didática do trabalho pedagógico, aplicando-se desde a educação básica ao ensino superior, e igualmente para pósgraduação e formação profissional contínua. Ou seja, aplica-se às situações nas quais interagem, de modo sistematizado, alguém na condição de aprendiz e alguém na condição de promotor da referida aprendizagem. O mesmo é possível afirmar no que se refere ao problema da procedimentalização do ensino, ou seja, o que aqui estamos denominando de didatização da atividade educativa. Nesse sentido, ao explicitar as intermediações entre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural sob os fundamentos do materialismo histórico-dialético, pretendemos contribuir para a efetivação de uma prática pedagógica que supere os possíveis equívocos de didatização e desmetodização da atividade de ensino.

O método em Marx: constituição da teoria social e fundamento da pedagogia histórico-crítica Como se sabe, Marx jamais escreveu um tratado acerca do método por ele operado para compreender seu objeto de análise com vistas à intervenção prática-política. Algumas poucas páginas da obra do filósofo são destinadas à discussão sobre o método. Tal fato se torna evidente quando se compreende que Marx jamais reduziu suas análises à discussão epistemológica, interditando a impostação ontológica necessária à apreensão do real em pensamento. Não há em Marx um reducionismo epistemológico, por assim dizer, um epistemologismo, entificando a razão, desprezando a história e supondo que os problemas do real possuem raiz na maneira de se pensar sobre esse real, o que se coloca na contracorrente do pensamento moderno em sua fase de decadência ideológica6, seja nos períodos de “miséria da razão” – expressão do racionalismo formal – ou em períodos de irracionalismo – expressos por teorias sedimentadas no subjetivismo7. Dessa maneira, não é possível compreender o método em Marx independente do espírito de sua obra, visto não haver nesse autor um tratamento metodológico autônomo, no qual se formalizam e cristalizam regras e técnicas supostamente científicas, independente do objeto que se quer apreender. Conforme Hungaro8, o que há em Marx é a constituição da mais bem elaborada teoria social na modernidade, deixando-nos como herança não um novo paradigma de análise ou uma nova abordagem metodológica, mas sim a mais fecunda elaboração teórica rica em determinações da própria organização social do objeto em análise: o modo de produção capitalista. Marx buscou ao longo de seus disciplinados e extenuantes estudos reproduzir em pensamento o movimento real de seu objeto de análise, tornando lógico o movimento histórico de gênese, desenvolvimento, consolidação e decadência da ordem burguesa, tendo como fonte a análise crítica da economia política clássica, da filosofia alemã e do pensamento político socialista francês vinculado à tradição e luta operária9. Nessas bases, elaborou uma concepção ontológica de teoria, que lhe possibilitou constituir idealmente a processualidade, o movimento e o vir a ser do seu objeto investigativo, operando com categorias analíticas expressivas do modo de ser do objeto, configuradas como determinações da existência e como traços efetivos da própria realidade, carregadas de elementos de continuidade e superação que se sintetizam em uma complexa totalidade social8. É nesse sentido que a riqueza metodológica de Marx não pode ser compreendida à revelia de sua teoria, o que implica conhecer a teoria para apreender o método, pois caso contrário caímos na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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epistemologização teórico-metodológica (por certo, um epistemologismo). As análises de Lukács6,10 quanto ao que denominou de decadência ideológica da filosofia burguesa evidenciam o processo de corrosão da dimensão ontológica das teorias científicas e filosóficas, a partir do momento em que a burguesia não mais se encontra na condição de classe revolucionária, mas sim na condição de classe conservadora do existente. O traço peculiar desse pensamento decadente diz respeito à apresentação de respostas evasionistas em face dos dilemas da realidade histórico-social. De acordo com Coutinho7, o período da decadência da filosofia burguesa passa a oscilar entre uma razão miserável – típica do racionalismo formal demarcado por um epistemologismo que passa a ter como substrato a liquidação da dimensão ontológica na análise de qualquer objeto do conhecimento (positivismo e neopositivismo) – e um característico irracionalismo, demarcado por categorias como pessimismo, intuição, subjetivismo e o existencialismo individualista (fenomenologia e existencialismo). No campo educacional, entendemos que as hegemônicas pedagogias do “aprender a aprender”11, denominadas por alguns autores de pedagogias pós-críticas12-14, são a expressão inequívoca dessa decadência ideológica do pensamento moderno burguês. Tais pedagogias, apesar de possíveis diferenças entre elas, fundamentam-se notadamente na valorização da prática imediata e espontânea como processo construtor de conhecimento, defendendo a centralidade das interações discursivas e concebendo a escola como um espaço de compartilhamento e troca de crenças culturais e de saberes locais, cotidianos e populares. A negação da objetividade em si do real (afirmando que as coisas não existem independentemente do sujeito, tornando todo o real uma construção subjetiva) e o relativismo ontológico (transformando a teoria do ser em uma nova teoria do conhecer, na medida em que ontologicamente a realidade é, para tais teorias intituladas “pós”, construída a partir da própria experiência sensível do ser) assumidos por tais ideários pedagógicos atestam suas vinculações ao denominado período decadente da sociedade tardo-burguesa. Na esteira dos embates de Lukács15 contra o neopositivismo e com base nas análises de Lênin16 contra o empiriocriticismo, ambos refutando o ceticismo e o epistemologismo de suas épocas, acreditase que o trabalho educativo pautado na pedagogia histórico-crítica não pode negar a dimensão ontológica que é própria da atividade de ensino. Considerando que a ontologia se debruça sobre o processo de constituição e produção da realidade e tendo-se em vista que a educação, para a pedagogia histórico-crítica, é uma mediação da prática social, esta que é ponto de partida e ponto de chegada do trabalho educativo, a atividade de ensino sempre se realiza concretamente por um horizonte ontológico de compreensão dessa prática social. Tal aspecto é válido para a relação entre ensino e aprendizagem, ou seja, tanto para professor quanto para alunos. Nessa perspectiva, a atividade de aprendizagem possibilita aos alunos a apropriação dos conteúdos escolares necessários para o conhecimento da realidade (dimensão epistemológica) e, ao mesmo tempo, a apreensão dos nexos e relações que lhe permitem compreender e explicar o que essa realidade realmente é (dimensão ontológica). Quanto ao professor, haja vista a realização da atividade de ensino, assumir a orientação teóricometodológica da pedagogia histórico-crítica no trabalho educativo implica não somente “conhecer” a aparência da prática social, mas, sobretudo, apreender o que essa prática social realmente é, considerando esse ser em sua processualidade histórica, ou seja, em seu surgimento, desenvolvimento, estrutura atual e tendências futuras de transformação (tal qual delineado por Marx ao longo de seu percurso teórico-metodológico, ao buscar apreender seu objeto de análise para além da aparência dos fenômenos que se manifestam empiricamente e são captáveis fenomenicamente pela nossa percepção). Implica não apenas deter informações caóticas e precárias dessa prática social, mas também compreendê-la como síntese de múltiplas relações e determinações numerosas. Conforme Duarte17, há uma relação intrínseca entre a educação escolar e a formação da concepção de mundo dos indivíduos que está fundada em uma dada dimensão ontológica da realidade. Com efeito, a aquisição dos conhecimentos mais desenvolvidos no campo das ciências, das artes e da filosofia, tanto por parte dos professores quanto dos alunos, é fundamental para a formação de uma concepção de mundo que torne possível a compreensão de questões ontológicas fundamentais, tais 534

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como as reveladas nas perguntas: Que sociedade é esta? Como ela se formou? O que é a realidade? O que é o homem? Quanto mais o trabalho educativo escolar disponibilizar aos alunos conhecimentos que possibilitem a eles responder tais questões de maneira não fantasiosa, não ilusória, não mistificada e não folclórica - ou seja, disponibilizar aos alunos instrumentos teóricos, por meio da mediação do conhecimento científico, artístico e filosófico, de forma tal que as respostas a essas perguntas cada vez mais tenham aproximação objetiva e concreta com o próprio real, o que exige um ”método” adequado para tal -, mais nós estaremos contribuindo para a formação de uma concepção de mundo baseada não na aparência dos processos sociais e naturais da realidade, mas sim na sua essencialidade concreta. A perspectiva materialista, histórica e dialética da atividade de ensino proposta pela pedagogia histórico-crítica não autoriza nenhum tipo de silenciamento sobre a realidade concreta ao não separar o conhecimento sobre o mundo (dimensão epistemológica) da existência efetiva deste próprio mundo (dimensão ontológica), vistas as relações entre os conteúdos escolares e a totalidade da atividade humana historicamente desenvolvida. Sendo assim, a pedagogia histórico-crítica não segue o fluxo das correntes filosóficas e pedagógicas hegemônicas do período da decadência ideológica do pensamento moderno, tais como o positivismo, o neopositivismo, o pragmatismo, o conhecimento tácito, o construtivismo, o pós-modernismo, entre outras. O processo de transmissão-assimilação do saber por meio do trabalho educativo escolar não deve nem pode fragmentar a dimensão ontológica da dimensão epistemológica, separando ciência e visão de mundo17. A cisão entre epistemologia e ontologia ou entre conhecimento e visão de mundo somente acentua a redução das atividades humanas, plasmadas fenomenicamente naquilo que se torna empiricamente sentido e observado, aos limites da imediaticidade da vida cotidiana. Com isso, a práxis humana torna-se restrita ao seu emprego utilitário e direto, carente de mediações, restringindo o conjunto das atividades dos indivíduos singulares e a totalidade da prática social humano-genérica à funcionalidade prática imediata, manipulatória e utilitária, minimizando as forças motrizes do desenvolvimento histórico da humanidade. O trabalho educativo fundamentado em concepções pedagógicas que operam a cisão entre epistemologia e ontologia e que se silenciam acerca das questões relativas à visão de mundo também reduzem a atividade de ensino a um amontoado de técnicas e procedimentos de manipulação imediata e pragmática que, no máximo, podem contribuir para o processo de sociabilidade adaptativa dos indivíduos às condições que pautam suas vidas cotidianas. As pedagogias hegemônicas do ”aprender a aprender”, notadamente, acentuaram essa ”práxis manipulatória” da atividade de ensino, trazendo consequências nefastas para o processo formativo dos indivíduos. Com efeito, a práxis manipulatória está presente na história do desenvolvimento da humanidade, desde o surgimento da vida primitiva até a vida moderna e, como tal, não pode ser eliminada do conjunto da totalidade social que determina a vida humana. Por certo, a manipulação da natureza pelo homem primitivo caracterizou-se como um ato fundamental de apropriação da natureza e objetivação da cultura humana. Na vida moderna, ainda somos acometidos a realizar atividades em nossa vida cotidiana que atendem a função de manipulação direta e imediata, como utilizar objetos comuns, por exemplo. Segundo Coutinho7, tais atividades imediatas, caracterizadas como manipulatórias, não exigem o conhecimento das determinações essenciais do objeto ou do fenômeno com o qual o ser humano se depara e se relaciona e, assim, não necessitam de uma representação mais rica da realidade. A atividade manipulatória acaba por se decompor em unidades simples imediatamente utilizáveis, cumprindo sua finalidade a partir da realização de ações de elementos isolados ou diretamente combináveis, sem a necessidade de mediações mais complexas. Evidentemente, a manipulação não se constitui como um mal em si mesma. Não obstante, no processo histórico de desenvolvimento da humanidade, novas formas de atividade mais ricas e complexas se constituíram. Estas, caracterizadas como ”práxis apropriadoras”, exigem e permitem aos homens a captação das ricas determinações do objeto ou fenômeno, tornando lógica a correta consciência do significado humano e social da práxis. Atividades humanas como a ciência, a arte, a 535


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filosofia, a política, bem como o ensino sistematizado, necessitam levar em conta e explicitar a riqueza da objetividade da coisa em si. Atividades ricas em determinações e mediações numerosas não podem ser produzidas e reproduzidas diretamente, no nível da manipulação imediata, sob o risco do empobrecimento simultâneo da própria essência de tais atividades. Conforme nos esclarece Coutinho7: A distinção entre práxis apropriadora e práxis manipulatória implica, por sua vez, a distinção entre diferentes níveis de racionalidade. A maior ou menor apreensão racional do objeto pelo pensamento relaciona-se com a amplitude dos objetivos propostos na práxis. Assim, quanto mais ampla for a práxis, quanto mais profunda e organicamente se vincula ao objeto, tanto mais rico deverá ser o sistema de categorias racionais que ela colocará em operação. (p. 94)

O empobrecimento da práxis humana apropriadora, por certo, corresponde à eliminação da configuração ontológica da objetividade. Ao fazer isso, o pensamento não apreende o objeto em sua riqueza categorial, em sua totalidade, como unidade da diversidade e como síntese entre conteúdo e forma, empobrecendo a atividade humana ao nível da manipulação, dividida, formalizada e reduzida à pura forma, carente de seus conteúdos concretos. No trabalho educativo escolar, a atividade de ensino deve ser um reflexo na consciência do sujeito (professor) das determinações ontológicas objetivas e universais dessa práxis humana configurada como mediação da totalidade do real, ou, nas palavras de Saviani1, como mediação da prática social global. É nesse sentido que o método da pedagogia histórico-crítica não pode ser convertido em cinco passos realizados sequencialmente e de forma mecânica, em que primeiro 1) parte-se da prática social, depois 2) problematiza-se, logo após 3) instrumentaliza-se, depois 4) faz-se a catarse para, em sequência, 5) retornar à prática social. Tampouco é possível estabelecer uma norma de ensino dos conteúdos escolares fundamentando-se na pedagogia histórico-crítica, de modo a se preparar um plano de aula para cada um dos passos do método pedagógico. Temos acompanhado, ao longo dos últimos anos em nossas atividades de pesquisa e ensino na formação inicial e continuada de professores, certa ansiedade por encontrar exemplos e modelos de aplicabilidade dessa teoria pedagógica na prática em sala de aula, por parte daqueles que desejam desenvolver seu trabalho pedagógico com base na pedagogia histórico-crítica. Nossa resposta a esse anseio costuma ser: há que se dominar a teoria para que se possa desenvolvê-la na prática. O que queremos salientar é a impossibilidade de materialização de aulas embasadas na pedagogia histórico-crítica sem o fecundo domínio de seus fundamentos teóricos, que são exatamente os pilares constitutivos do método pedagógico em questão. O arsenal categorial teórico é que possibilita colocar em movimento o método na sua atividade de ensino, enriquecendo a prática pedagógica coerentemente à luz da teoria. Questiona-se, portanto, a existência de uma formalização da didática da pedagogia históricocrítica, devido à impossibilidade de sua existência autônoma e isolada, sem referência, relação e mediação orgânica com seus fundamentos teóricos. Qualquer tentativa de aplicação do método pedagógico sem domínio dos fundamentos da teoria (da qual o próprio método é constitutivo) resulta, em nosso entendimento, tanto na sua didatização quanto na sua desmetodização. Tal fato pode ocorrer quando, por exemplo, seu método pedagógico acaba sendo “encaixado” em um estruturalismo esquemático que reduz a atividade pedagógica a uma simples técnica de manipulação. Trata-se, aqui, de uma operação lógico-formal do pensamento, quando este toma como objeto suas próprias regras imanentes, suspendendo o real como objeto da própria atividade e em nada afirmando nexos com a estrutura ontológica da realidade. O resultado da formalização do método da pedagogia histórico-crítica se converte em um procedimento didatizado parcial, unilateral e imediato, em que a ‘práxis’ docente acaba se convertendo em uma atividade técnica empobrecida de manipulação de passos de ensino reduzidos às regras formais pseudo-objetivas, ou seja, regras com propenso caráter objetivo; mas que, no fundo, são estabelecidas ao gosto subjetivo do professor, que passa a delimitar por vontade própria o 536

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momento de reconhecer ou partir da prática social inicial dos alunos, problematizar, instrumentalizar, possibilitar a catarse e, por fim, permitir a eles a manifestação de uma nova prática social (final). Assim, uma racionalidade técnica passa a substituir o método dialético, em que o imediato, o espontâneo e o linear acabam por fragmentar o que deveria ser um único e orgânico movimento, rico em mediações e contradições, tornado, agora, uma coleção de passos convertidos em procedimentos e técnicas de ensino. Considerando a prática social – ponto de partida e ponto de chegada do trabalho educativo para a pedagogia histórico-crítica – um conjunto de complexos articulados que constituem uma totalidade social (um complexo de complexos), exige-se do professor a apreensão consciente dos dados constitutivos dessa realidade e de suas ricas mediações e relações entre os complexos que a formam em uma totalidade única e orgânica: a totalidade da vida social. Dito isso, há de se reconhecer as diferentes posições e relações recíprocas entre professor e aluno que colocam em movimento o método pedagógico histórico-crítico, a partir da análise do duplo trânsito requerido pela atividade educativa referente ao caminho lógico do ensino, em contraposição dialética ao da aprendizagem, processo dinamicamente promotor de desenvolvimento humano, tal como é proposto por Martins18, com base no aporte metodológico materialista dialético que fundamenta a psicologia histórico-cultural, a teoria da atividade de Leontiev4-5 e os princípios da pedagogia históricocrítica. Sobre tais questões discorreremos na sequência.

O método pedagógico histórico-crítico: contribuições da psicologia histórico-cultural e da teoria da atividade Ao debater a natureza e a especificidade da educação, Saviani2 evidencia a relação histórica e ontológica entre a natureza da educação e a natureza dos próprios homens. Estes necessitam produzir continuamente sua própria existência por meio das atividades de trabalho e precisam também aprender a produzir essa existência, o que nos permite concluir que tal processo é educativo. Partindo dessa relação, podemos afirmar que a natureza do trabalho educativo corresponde ao “[...] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.” (p. 13). A especificidade da educação, por seu turno, tem correspondência com a questão do saber (o conhecimento), cuja compreensão deve estar relacionada ao próprio desenvolvimento histórico objetivo da humanidade. Essa análise histórica nos permite reconhecer, no âmbito da especificidade da educação, que o papel da educação escolar, como a forma mais desenvolvida historicamente de educação, é para a pedagogia histórico-crítica a socialização do saber sistematizado. Com efeito, o saber sistematizado se diferencia de outros tipos de saberes (como o saber espontâneo ou religioso) por ser produzido por um conjunto de atividades específicas dos homens, quais sejam, a ciência, as artes e a filosofia, resultantes de um longo processo de complexificação da prática humana que se acumula historicamente na prática social. Na sociedade moderna, não sem contradições, a escola assumiu a função – que lhe é específica – de socialização desse saber sistematizado. Para tanto, Saviani2 já alertara que o objeto específico da educação, por um lado, tem a ver com a identificação dos elementos culturais – os conhecimentos – que necessitam ser apropriados pelos indivíduos das novas gerações e, por outro, com a descoberta das formas mais adequadas para promover o processo de apropriação desses elementos. Por certo, o trabalho educativo exige uma atividade especificamente humana que possa articular dialeticamente a relação conteúdo e forma na socialização do saber sistematizado, atividade norteada por finalidades (objetivos a atingir) e que esteja organizada de modo a articular e colocar em movimento os processos de ensino (transmissão) e aprendizagem (apropriação) desse saber, agora convertido em saber escolar. Entendemos que as intermediações da pedagogia histórico-crítica com a psicologia históricocultural e, no âmbito dessa última, as contribuições da teoria da atividade de Leontiev4-5 apresentam-se como um riquíssimo estofo teórico para se pensar a organização da atividade pedagógica de ensino COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e aprendizagem, colocando em movimento o método pedagógico necessário para a apreensão dos fenômenos em sua essencialidade concreta. Defende-se aqui que a teoria da atividade4,5 é um grande contributo para a organização da prática pedagógica que se pretende fundamentada pela pedagogia histórico-crítica, pois esta nos possibilita pensar o trabalho educativo como uma atividade especificamente humana e, ao mesmo tempo, permite-nos reconhecer a especificidade dessa atividade que se materializa no ensino (atividade do professor) e na aprendizagem (atividade do aluno). Para Leontiev4, todo o desenvolvimento humano ocorre por meio de uma atividade. Em determinados períodos de nossas vidas, algumas atividades ocupam lugar de atividades-guia, consideradas aquelas que, em um momento específico, requerem e determinam as principais mudanças promotoras de desenvolvimento de nosso psiquismo e personalidade. Leontiev5 afirma que toda atividade humana possui uma estrutura geral carregada de traços essenciais constitutivos de sua especificidade e que, em unidade e em sua totalidade, caracterizamse como uma atividade. Esses traços essenciais da atividade humana são: o “objeto” da atividade, a “finalidade”, seus “motivos”, suas “ações” e suas “operações”. Compreender o trabalho educativo como atividade humana exige que pensemos a sua organização a partir da delimitação do objeto do ensino e da aprendizagem – correspondentes aos conhecimentos sistematizados dos fenômenos da realidade objetiva e convertidos em conteúdos escolares –; qual a sua finalidade definidora dos objetivos do ato educativo que, ao coincidirem com o objeto da atividade (os conteúdos escolares), promovem os motivos do ensino e da aprendizagem; e as formas pelas quais o ensino e a aprendizagem se realizam, visando explicitar quais ações e operações (procedimentos de ensino) devem ser realizadas por professores e alunos diante das tarefas escolares que pretendem concretizar o processo de transmissão e apropriação do conhecimento. Compreendida dessa maneira, a estrutura da atividade pedagógica conquista a qualidade de mediação como interposição que gera transformação, na medida em que ensino e aprendizagem configuram-se como ato intencional mediado por signos (conteúdos escolares tomados como objeto da atividade), vinculado a uma finalidade (objetivos do ensino) e uma necessidade (motivos da aprendizagem) e organizado para realizar determinadas ações e operações (tarefas e procedimentos de ensino e aprendizagem). Nessa condição de mediação, o trabalho educativo cumpre a tarefa de possibilitar a apropriação, por parte dos indivíduos singulares, da experiência humana genérica que é produzida pelo conjunto dos homens, por intermédio da particularidade do ensino e da aprendizagem, materializando o conceito de educação como mediação da prática social global, delimitado por Saviani1. Considerando que o método em Marx3 fundamenta a pedagogia histórico-crítica, para essa teoria pedagógica, a construção do conhecimento pressupõe três momentos intimamente articulados: o ponto de partida que se dá no âmbito do conhecimento acerca do real sensível em sua aparência e manifestação fenomênica, imediata e aparente, a ser superado pela mediação de abstrações do pensamento (ideias, teorias), intentando alçar o conhecimento do real em sua essencialidade concreta, isto é, como síntese de múltiplas relações e determinações diversas. Em um percurso que contempla o movimento indutivo (do particular para o geral) e dedutivo (do geral para o particular), o critério de validação do conhecimento assim construído ocorre no âmbito do real, apreendido agora não mais de forma sensível e aparente. Transposto esse percurso metodológico para a esfera pedagógica, depreende-se os três momentos que Saviani2 denomina como síncrese, análise e síntese. Essa proposição, por sua vez, encontra amparo também na psicologia histórico-cultural18, que, ao tratar do desenvolvimento do pensamento, aponta a síncrese como forma inicial e primeva de pensamento, a ser superada por novas estruturas de generalização, tendo em vista atingir sua forma mais completa e complexa representada pelo pensamento abstrato, apto à captação dos fenômenos por meio de um sistema de conceitos. Ainda com base em Martins18, depreendemos que ensino e aprendizagem são processos opostos interiores um ao outro e, operando por contradição, caracterizam-se por percursos lógicometodológicos inversos. A saber: a aprendizagem ocorre da síncrese para a síntese pela mediação da análise oportunizada pelas apropriações dos conhecimentos historicamente sistematizados, enquanto 538

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o ensino deve ocorrer a partir da síntese formulada por quem ensina, visando a superação da síncrese, própria ao momento inicial de construção do conhecimento de quem aprende. A síntese como ponto de partida do ensino resulta, por sua vez, da objetivação das apropriações já realizadas pelo professor, apto a promover o desenvolvimento do pensamento pela mediação do ensino escolar. Assim, a dinâmica interna da atividade pedagógica vai se concretizando ao longo do percurso de escolarização (cujo início se dá na Educação Infantil), considerando que na base desse processo residem os conteúdos disponibilizados pelo ensino, que se voltam à formação de domínios e habilidades psicofísicas operacionais, mas que, à medida do desenvolvimento da criança, devem ser gradualmente superados pelos conteúdos conceituais, para que haja a formulação do conhecimento teórico-conceitual pela via das abstrações. Esse percurso demanda, por conseguinte, que a atenção ao destinatário (aquele que aprende) leve em conta as atividades-guia que pautam a periodização histórico-cultural do desenvolvimento, bem como se tenha clareza de que os modos de pensar mudam ao longo da vida. Vygotski19, referindose a tais mudanças, formulou a periodização do desenvolvimento do pensamento, a pressupor: pensamento sincrético, pensamento por complexos e pensamento abstrato. Esse avanço nos alcances do pensamento demanda um longo processo formativo que se estende, segundo Vygotski19, até a adolescência, quando o pensamento alcança as possibilidades para operar por meio dos conceitos propriamente ditos, isto é, caminha para alçar o mais alto grau de abstração do pensamento. Para Vygotski e demais estudiosos da psicologia histórico-cultural, o pensamento abstrato ou lógico-discursivo representa o pensamento na exata acepção do termo, uma vez que, ao ultrapassar a esfera das ações práticas e das imagens sensoriais, torna possível a apreensão dos fenômenos para além das aparências, ou seja, em sua essencialidade concreta como síntese de múltiplas relações.

Considerações finais O percurso que avança do pensamento sincrético ao pensamento abstrato não resulta de determinantes naturalmente disponibilizados pela herança biológica ou por critérios cronológicos, mas da qualidade das mediações que ancoram a relação sujeito-objeto, da natureza dos vínculos entre o indivíduo e suas condições de vida e de educação. Destaca-se, pois, que o pensamento abstrato é uma conquista resultante das apropriações das objetivações simbólicas, que carecem de transmissão por outrem, que demandam ensino. Não por acaso, Vygotski19 enfatizou uma diferença radical entre o ensino que se volta para os conceitos espontâneos e de senso comum e o ensino dos conceitos científicos, denominados por ele de “verdadeiros conceitos”. Em seus estudos sobre o desenvolvimento do pensamento, o autor evidenciou a natureza dos conteúdos que devem ser priorizados por uma educação desenvolvente, que são os conceitos científicos. A formação de tais conceitos exige e articula-se a uma série de funções psíquicas como, por exemplo a da percepção complexa, da atenção voluntária, da memória lógica e, sobretudo, das operações lógicas do raciocínio, isto é, da análise, síntese, comparação, generalização e abstração. Por isso, Vygotsky destacou que, diante de processos tão complexos, o processo de instrução escolar que de fato vise a esse desenvolvimento não pode ser simples. Diferentemente dos conceitos espontâneos, que se formam de modo assistemático pela simples inserção do sujeito na comunidade cultural, orientando-se por sua aplicação prática e pragmática, a formação dos conceitos científicos subjuga-se à orientação conscientemente dirigida, à voluntariedade e ao autodomínio da conduta – esferas que se revelam extremamente frágeis na adoção dos primeiros. Tal qual para Marx3, o processo do conhecimento ocorre por meio de sucessivas aproximações, orientado a ascender do imediato ao mediato por meio da elevação do abstrato ao concreto. O trabalho pedagógico desenvolvido e sustentado pelo método da pedagogia histórico-crítica requer a mediação da teoria para a superação da empiria fenomênica da ação humana. Ademais, salienta-se que o método assim concebido encerra articulações internas entre teoria do conhecimento e ações práticas orientadas por ela, realizando-se mediatamente por ações sistematizadas em conformidade com o planificado. É no âmbito dessa sistematização que a didática COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desponta como instituinte e constitutiva do método e, portanto, a ele subordinada. Por isso, sua implementação como esteira do ensino requer professores saturados de determinações e mediações que explicitem o dinamismo e o movimento dos objetos e fenômenos do real concreto na prática pedagógica, revelando a processualidade mediadora da natureza ontológica do trabalho educativo.

Colaboradores Ambos os autores participaram integral e conjuntamente da construção e preparação do artigo para sua publicação. Referências 1. Saviani D. Escola e democracia. 41a ed. Campinas: Autores Associados; 2009. 2. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. 3. Marx K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboço da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; 2011. 4. Leontiev AN. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte; 1978. 5. Leontiev AN. Actividad, consciência y personalidad. Ciudad de México: Editorial Cartago; 1984. 6. Lukács G. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Senzala LTDA; 1967. 7. Coutinho CN. O estruturalismo e a miséria da razão. 2a ed. São Paulo: Expressão popular; 2010. 8. Hungaro EM. A questão do método na constituição da teoria social de Marx. In: Cunha C, Sousa JV, Silva MA, organizadores. O método dialético na pesquisa em educação. Campinas: Autores Associados; 2014. p. 15-78. 9. Netto JP. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular; 2011. 10. Lukács G. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1968.

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11. Duarte N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5a ed. Campinas: Autores Associados; 2011. 12. Corazza SM. Currículo como modo de subjetivação do infantil. In: Anais da 22a Reunião anual da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em educação; 1999; Caxambu, Brasil. Caxambu: ANPEd; 1999. 13. Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2a ed. Belo Horizonte: Autêntica; 2002. 14. Paraíso MA. Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um mapa. Cad Pesqui. 2004; 34(122):238-303. 15. Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012. 16. Lênin VI. Materialismo e empiriocriticismo: notas críticas sobre uma filosofia reaccionária. Lisboa: Edições Avante; 1982. 17. Duarte N. A importância da concepção de mundo para a educação escolar: porque a pedagogia histórico-crítica não endossa o silêncio de Wittgenstein. Germinal (Salvador). 2015; 7(1):8-25. 18. Martins LM. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados; 2013. 19. Vygotski LS. Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor; 2001.

Lavoura TN, Martins LM. La dialéctica de la enseñanza y del aprendizaje en la actividad pedagógica histórico-crítica. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):531-41. Explicitando las intermediaciones entre la pedagogía histórico-crítica y la psicología histórico-cultural a partir de los fundamentos del materialismo histórico-dialéctico, el artículo pretende problematizar la dialéctica de la enseñanza y del aprendizaje en la actividad pedagógica. Se busca contribuir a la superación del problema de la escisión entre ontología y epistemología al señalar la necesidad de la sólida comprensión de los fundamentos del método de ascensión de lo abstracto a lo concreto, al paso que se afirma la teoría de la actividad como base teórica imprescindible para pensar la organización de la actividad pedagógica de la enseñanza y del aprendizaje en el ámbito de la educación, poniendo en movimiento el método pedagógico necesario para la aprehensión de los fenómenos como síntesis de múltiples determinaciones y relaciones numerosas.

Palabras clave: Método. Actividad pedagógica. Enseñanza. Aprendizaje.

Submetido em 16/03/17. Aprovado em 05/04/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0482

artigos

Trabalho, ser social e cuidado em saúde: abordagem a partir de Marx e Lukács

Diego de Oliveira Souza(a) Henrique Pereira Freitas de Mendonça(b)

Souza DO, Mendonça HPF. Work, social being and health care: an approach from Marx and Lukács. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):543-52.

This paper aims to develop a theoretical analysis of care using an ontological approach. We use Lukacsian theoretical categories, inspired by Karl Marx’s theory, to delimit care as a particularity of social praxis, based on work. Like any praxis, care change shapes through history under different appearances. Within capitalism, it takes a particular form, in accordance with the determinations of the process of creation of value that is concomitant with its reification, enabling the “realization” of a certain surplus value objectfied in the “dead labor”, embodied by the production of care. It also allows the transformation of caregivers in possible sources of surplus value and transforming care in value. A typically capitalist contradiction is thus consolidated, since care, in its essence, corresponds to the particular practice able to meets healthcare needs, although in capitalism, it is subsumed within market needs.

Keywords: Capitalism. Communism. Delivery of health care. Work.

Este artigo visa desenvolver uma análise teórica sobre o cuidado a partir de uma abordagem ontológica. Fazemos uso de categorias teóricas lukacsianas, inspiradas na teoria de Karl Marx, para delimitar o cuidado enquanto uma particularidade da práxis social, fundada pelo trabalho. Como qualquer práxis, o cuidado se move historicamente, assumindo diversas roupagens. No capitalismo, assume uma forma particular, consoante as determinações do processo de valorização, quando ocorre a sua reificação, possibilitando a “realização” da mais-valia objetivada no “trabalho morto” incorporado pela produção do cuidado, bem como a transformação dos cuidadores em possíveis fontes de extração de mais-valia e do próprio cuidado em valor. Consubstancia-se uma contradição tipicamente capitalista, porquanto o cuidado, em sua essência, corresponde à práxis particular capaz de atender necessidades de saúde, mas que passa a ser, no capitalismo, subsumido às necessidades do mercado.

Palavras chave: Capitalismo. Comunismo. Assistência à saúde. Trabalho.

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Curso de Bacharelado em Enfermagem, Campus Arapiraca, Universidade Federal de Alagoas. Av. Manoel Severino Barbosa, S/N, Bairro Bom Sucesso. Arapiraca, AL, Brasil. enf_ufal_diego@ hotmail.com (b) Enfermeiro. Maceió, AL, Brasil. henriquepfreitas@ hotmail.com (a)

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Introdução A compreensão das formas historicamente determinadas de cuidado em saúde (ou, simplesmente, cuidado) perpassa diretamente a apreensão do cuidado em geral no plano ontológico. Apenas com a articulação entre o genérico e o específico, entre fenômeno e essência, é que podemos desenvolver uma leitura mais próxima do real, em sua totalidade. Propomos, então, uma abordagem ontológica do cuidado, a fim de problematizar as suas facetas contemporâneas, mas articuladas às suas determinações ontológicas. Convém esclarecer que não se trata de uma ontologia subjetivista ou a-histórica como foram, predominantemente, as ontologias anteriores a de Karl Marx1. A ontologia à qual recorremos é de caráter materialista histórico-dialético, considerando que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”2 (p. 47). György Lukács, em “Para uma ontologia do ser social”3-4, é o primeiro a reconhecer e demonstrar, com precisão, que a teoria marxiana possui impostação ontológica, porquanto a preocupação metodológica de Marx sempre foi a de revelar a essência dos objetos estudados. Não obstante, “toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem diretamente”3 (p. 294-5). A preocupação ontológica já esteve presente entre autores5-6 que debatem o cuidado, mas ancorados numa ontologia de outra natureza, mais próxima da fenomenologia (mais precisamente, a de Heidegger). Ainda que essa ontologia suscite reflexões que contribuem para a ampliação do debate, não atinge o plano materialista histórico-dialético, no qual o cuidado possui existência objetiva, tanto em forma quanto em conteúdo, independentemente de termos consciência sobre esta existência e suas particularidades. Assim, sem desconsiderar a importância da subjetividade, pois o ser humano é ativo na história (portanto, na práxis social), a centralidade do processo de conhecimento se situa na objetividade. Consideramos que “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”7 (p. 25). Nesse prisma, as contribuições lukacsianas (que partem de Marx) são imprescindíveis para o debate do ser, de modo a superar os automovimentos da razão, voltando-se para os movimentos do real. Trata-se de uma perspectiva original na abordagem teórico-metodológica do cuidado, para a qual este artigo visa contribuir. Assim, nosso objetivo consiste em desenvolver uma análise teórica, de cunho ontológico, sobre o cuidado. Desenvolvemos um estudo teórico-conceitual, preliminar, com base em algumas categorias teóricas marxianas/lukacsianas, tais como: trabalho, práxis, teleologia, causalidade, totalidade, universalidade, particularidade, diferença, essência, fenômeno, valor de uso, valor de troca e trabalho abstrato. Lidar com estas categorias pode contribuir para apreendermos a razão de ser e a dinâmica do cuidado hoje, evidenciando os limites a serem enfrentados e as possibilidades a serem aproveitadas.

O cuidado enquanto práxis Nossa premissa fundamental consiste em conceber o cuidado enquanto práxis particular. Esta concepção tem duas implicações mais imediatas: 1) o cuidado é componente do complexo universo das atividades humanas, ou seja, é uma particularidade da práxis social (o conjunto das atividades humanas sensíveis, no qual objetividade e subjetividade são indissociáveis, embora a primeira seja a determinação predominante); 2) o trabalho é o seu modelo originário. Na verdade, estas duas implicações se confundem em uma só, porquanto o caráter humano do cuidado esteja consignado ao caráter fundante do trabalho para com o processo de humanização. Vejamos o porquê: O caráter dialético do trabalho como modelo da práxis social aparece aqui exatamente no fato de que esta última, nas suas formas mais evoluídas, apresenta muitos desvios com relação ao próprio trabalho. [...] Exatamente por isso é preciso sublinhar sempre de novo que os traços específicos do trabalho não podem ser transferidos diretamente para formas mais complexas da 544

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práxis social. [...] o trabalho realiza materialmente a relação radicalmente nova do metabolismo com a natureza, ao passo que as outras formas mais complexas da práxis social, na sua grandíssima maioria, têm como pressuposto insuperável esse metabolismo com a natureza, esse fundamento da reprodução do homem na sociedade4. (p. 93)

Assim, o trabalho é concebido como fundante da práxis social4, o que implica uma relação de determinação para com o cuidado, enquanto práxis particular. A argumentação lukacsiana se desenvolve com base na concepção de trabalho em Marx, especialmente explicitada no capítulo V de “O Capital”. Neste capítulo, o trabalho é analisado no plano ontológico, no seu caráter genérico, “independentemente de qualquer forma social determinada”8 (p. 142). Assim, “antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza”8 (p. 142). O trabalho, portanto, permite que o homem transforme a natureza em produtos que possuem a capacidade de satisfazer as suas necessidades, o que poderia nos levar a crer que se trata de um tipo de transformação comum ao reino animal. Contudo, por exemplo, Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto idealmente [...]8. (p. 142-3)

Constatamos que a transformação efetivada pelo homem constitui um pôr teleológico; ou seja, uma atividade orientada a um fim. O homem necessita realizar, na matéria natural, seu objetivo (que existe idealmente), e ao qual tem de subordinar sua vontade, pois “qualquer trabalho seria impossível se ele não fosse precedido de tal pôr, que determina o processo em todas as suas etapas”4 (p. 51), um pôr “que comparece como lei, a espécie e o modo de sua [do homem] atividade”8 (p. 142-3). Destarte “[...] é enunciada a categoria ontológica central do trabalho: através dele realiza-se, no âmbito do ser material, um pôr teleológico enquanto surgimento de uma nova objetividade”4 (p. 47). Diferentemente dos outros animais, o produto do trabalho humano já existe subjetivamente antes de existir no plano objetivo. Esta capacidade teleológica é o que particulariza a transformação efetivada pelos homens para com a natureza. Nesse processo, o homem precisa abstrair certas qualidades da natureza, adquirir certos conhecimentos e formular conceitos sobre as coisas para que, assim, consiga pôr o natural sob seu controle, efetivando uma objetivação na matéria natural. Desse modo, o homem vai adquirindo um conhecimento cada vez mais sofisticado para o atendimento de suas necessidades, o que determina o surgimento, em meio a tal processo, de novas possibilidades de satisfação que, antes, eram impensáveis, ainda mais porque surgem, inclusive, novas necessidades, antes impossíveis4. É bom frisar que esse pôr teleológico deve respeitar as cadeias causais próprias da natureza. Tais cadeias causais consistem em propriedades inelimináveis que operam numa legalidade própria e que independem da vontade dos homens; são o que podemos chamar de causalidade4. Apesar dessa limitação, o homem pode conhecer e dominar a causalidade, sujeitar as forças naturais à sua prévia ideação, para que, a partir delas, possa produzir algo inteiramente novo, que seria inexistente sem a ação humana, mesmo que não sejam alteradas as propriedades e as leis próprias da matéria natural. Diante disso, fica claro que o homem, ao final do processo de trabalho, já não é mais o mesmo, ele transformou a natureza, mas também se transformou: nem sua corporalidade nem sua consciência a respeito do mundo são mais os mesmos. O homem, “ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”8 (p. 142). Assim, é a partir do intercâmbio orgânico com a natureza que o homem se complexifica enquanto ser, afastando-se das barreiras naturais (mas não as eliminando), tornando-se um ser social. Por meio do trabalho, o homem se constrói – ele assume o papel de autor e ator (coletivo) de sua história. Por conseguinte, o resultado do trabalho é, na verdade, um impulso para além dele mesmo, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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uma vez que, neste processo, surgem novas necessidades que demandam outros tipos de intercâmbio (que não aquele envolvendo, em um dos polos, a natureza não humana, mas agora envolvendo humanos em ambos os polos) para serem satisfeitas. Trata-se do surgimento de novas atividades (novas práxis particulares, como a educação, a ciência, a arte, o cuidado etc.) que conferem, ao ser social, o caráter de crescente complexificação. Neste processo de crescente complexificação do ser social, o cuidado comparece como práxis particular, portanto, fundada pelo trabalho (entendido no seu plano genérico, independentemente da formação social). Convém esclarecer que não se trata de uma relação cronológica, na qual o trabalho surgiria antes de todas as outras práxis particulares. A precedência do trabalho é de caráter ontológico, na medida em que ele assume a posição central no processo de humanização (tornar-se humano). O cuidado, assim como qualquer práxis, guarda similitudes com o processo de trabalho, mas possui sua especificidade, que o distingue das outras práxis. Qual seja: cuidar, é ajudar outrem a viver9. Trata-se de uma prática existente desde que surgiu a vida humana, cujo fim consiste em permitir a continuidade da vida, lutando contra a morte do indivíduo ou das coletividades10. Deste modo, o cuidado é inerente ao ser humano, práxis ineliminável do âmbito do ser social. Essa função social específica evidencia o caráter humano do cuidado. Tal como no caso do trabalho, o cuidado assume a condição de pôr teleológico, desenvolvido em um campo no qual os limites são estabelecidos pela causalidade própria do processo de cuidar (tanto do ponto de vista biológico quanto social). Assim, existe uma diferença qualitativa entre o cuidado concebido como práxis e as formas instintivas presentes entre os outros animais. Pensemos, por exemplo, nas grandes diferenças que existem entre a amamentação de uma tigresa para com seu filhote (que se desenvolve com o predomínio das determinações instintivas, destituída de pôr teleológico) e o aleitamento humano (que, embora conserve uma faceta instintiva, ocorre teleologicamente direcionado). No primeiro caso, há quase que uma invariabilidade de forma, ao passo que, no segundo, pela sua capacidade teleológica, há uma complexificação à medida que se vê diante de novas possibilidades e necessidades, geradas no próprio processo, implicando uma diversificação histórico-social nas formas de aleitamento. Essa condição abre um leque de possibilidades para a realização do cuidado que é infinitamente superior ao âmbito do ser meramente natural. Esta distinção é perceptível pela superação (no sentido dialético: incorporação e superação) das formas primitivas de cuidado, o que fez o ser humano desenvolver formas mais evoluídas: místicas, religiosas, médicas, de Enfermagem etc. Em uma perspectiva lukacsiana, trata-se do crescente recuo das barreiras naturais; isto é, [...] quando nos referimos de maneira simples ao afastamento da barreira natural provocado pelo trabalho, vimos que desempenhava um papel sumamente importante essa nova função da consciência como portadora dos pores teleológicos da práxis. No entanto, se queremos, a respeito desse complexo de questões, proceder com uma crítica ontologicamente rigorosa, devemos entender que certamente se verifica um ininterrupto afastamento da barreira natural, mas jamais a sua supressão completa; o homem, membro ativo da sociedade, motor de suas transformações e de seus movimentos progressivos, permanece, em sentido biológico, um ente ineliminavelmente natural [...]4. (p. 129-30)

Tal como na práxis originária (o trabalho), o cuidado se complexifica e se distancia do seu caráter natural, mas sem prescindir do mesmo. Ou seja, o cuidado humanizado não suprime a sua faceta natural (instintiva), mas a eleva para um novo patamar: social. Exatamente aí encontra-se o cerne da apreensão do cuidado em saúde enquanto práxis, no entrelaçamento entre teologia e causalidade do agir humano.

Do cuidado em geral ao cuidado técnico-científico Toda práxis é dinâmica, histórica. Segundo Lukács4, ao se proceder o estudo ontológico da práxis, devem-se “tornar visíveis as diferenças qualitativas que, no curso do desenvolvimento social posterior, se apresentam de maneira espontaneamente inevitável e modificam a estrutura originária do fenômeno de modo necessário, inclusive de maneira decisiva em algumas determinações importantes” (p. 137). 546

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Assim como o trabalho se expressa diferentemente em cada formação econômico-social, o cuidado assume formas particulares no desenvolvimento social, marcadas pela diferença para com sua estrutura genérica, originária. Isto determina uma dinâmica na qual surgem, encerram-se, sobrepõem-se ou reformulam-se diferentes formas de cuidado. Em linhas gerais e de acordo com o conhecimento ocidental, podemos dizer que a humanidade experimentou quatros formações econômico-sociais: comunista primitiva, escravista, feudal e, a atual, capitalista10. Cada uma delas foi se constituindo tendo por base uma forma particular de trabalho, o que determina formas bem específicas e distintas de práxis social, inclusive no que concerne ao cuidado. No comunismo primitivo, por exemplo, predominam formas de cuidado mais próximas às práticas instintivas, como, por exemplo, as primeiras formas de cuidados maternos ou aqueles a serviço da sobrevivência da comunidade, haja vista o caráter coletivo e primitivo do trabalho à época11. Neste período, as comunidades nômades, por vezes, decidiam sacrificar um doente, o que significava uma forma de cuidado (de luta contra a morte) de caráter coletivo, porquanto atender à necessidade individual comprometia a peregrinação da qual dependia a vida da comunidade10. O tipo de saber sobre o qual se executava o cuidado estava em estádio inicial, implicando ações que se baseavam nas obviedades naturais. Podemos, então, demarcar o cuidado particular desta fase histórica como aquele em que as barreiras naturais estão mais presentes, considerando que, só com o contínuo processo de complexificação do ser social, acentua-se o recuo de tais barreiras. Logo, as formas mais primitivas de trabalho, também de práxis social, são as menos complexas. Assim, esta forma de cuidado, embora de caráter social (haja vista, por exemplo, seu caráter coletivo), ainda é fortemente determinada pela dimensão natural. Após a fase primitiva, há cerca de 10 mil anos, começaram a surgir a domesticação de animais e a agricultura, implicando o abandono do nomadismo por parte de muitas comunidades primitivas. Ocorreu um considerável avanço na invenção de novos instrumentos de trabalho, mais eficientes e com maior potencial de controle sobre a natureza. O principal resultado desses avanços foi uma produção de bens maior que a necessária para a subsistência imediata. Surgiu o excedente econômico, que nada mais é que a diferença entre o que aqueles que realizam o trabalho produzem e o que é preciso para satisfazer as necessidades imediatas da comunidade10. O surgimento do excedente econômico foi um marco fundamental, pois, pela primeira vez, as comunidades se perguntaram o que fazer com aquilo que não consumiam. Como não se pensava em desperdício, abriu-se a possibilidade de acumular os produtos do trabalho. Essa solução aponta para duas consequências: a primeira, o excesso de produção de alguns bens, que, desse modo, poderiam ser trocados com outras comunidades, constituindo as primeiras formas de comércio. A segunda, a acumulação desses produtos do trabalho abre a possibilidade de exploração do trabalho humano. Em virtude das guerras constantes entre as tribos – seja para se apropriar do excedente do outro e tomar suas terras, seja para adquirir mais poder – os vencedores terminavam por forçar – mediante uso de violência – os derrotados a produzirem os bens para o consumo da comunidade, e se apropriar do excedente produzido por estes. Constituem-se as primeiras formas de exploração do homem pelo homem e de apropriação privada da riqueza social10. No que concerne à práxis do cuidado, observamos transformações significativas acarretadas pela transição do modo de produção primitivo ao escravismo. O homem passa a se apropriar privadamente do ato de cuidar e de seus saberes como instrumento de fortalecimento do seu poder econômico e político, fundamentando-se na observação da natureza, mas a partir de um padrão de conhecimento ontológico metafísico que, nestas condições, buscava, no mito e na religiosidade, a sua razão de ser – o que justificava, inclusive, a naturalização das classes sociais. Consubstancia-se o que podemos chamar de práticas de cuidado mágico-sacerdotais, uma vez que, quanto mais os grupos humanos descobriam o que era bom e o que era mau para sua sobrevivência, surgiam práticas de cuidado confiadas a um xamã e/ou sacerdote, mediadores entre as forças benéficas e maléficas para a saúde12-13. Essa formação econômico-social sobrepuja o caráter coletivo da sociedade anterior, justificando a nova forma de trabalho e toda sua dinâmica societária a partir de uma visão de mundo especulativa e/ ou mística. Esta condição determina uma forma de cuidado revestida do mesmo caráter. Temos, então, 547


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um cuidado predominantemente místico, cujo saber pertencia apenas a alguns indivíduos (algumas classes ou extratos de classes), exercidos a fim de manter o equilíbrio da polis. Assim, a práxis social, ao se mover, imprime diferenças nas expressões históricas do cuidado. O movimento persiste com as sociedades posteriores. Com o fim do Império Romano, a Europa se fragmentou em pequenos reinos: as invasões bárbaras forçaram as populações dos grandes centros urbanos a se refugiarem no campo, onde não havia ameaça de serem mortas, já que as riquezas do império se concentravam nas cidades. Esses indivíduos, ao chegarem ao campo, foram absorvidos como força de trabalho, já que a quantidade de escravos estava diminuindo; porém, não mais na condição de escravos: existia um “acordo” no qual o senhor prometia protegê-los, ao passo que o servo se comprometia a trabalhar para garantir o sustento do feudo. O antagonismo de classes desse sistema passa a se dar entre senhores feudais (em sua maioria, nobres) e servos (aqueles que, de fato, trabalhavam e geravam riqueza na propriedade)14. A vida social nesse regime passa a acontecer quase que isoladamente nos feudos, sendo o império muito mais uma figura formal que efetivamente organizadora da vida social. Estabelece-se um vazio político, que terá na adoção de uma religião oficial, a estratégia mais efetiva para manutenção de algum tipo de unidade. O cristianismo será a religião eleita para esse papel, tornando-se o polo regente político, cultural, enfim, social em geral14. Consequentemente, mantém-se um padrão de cientificidade baseado na ontologia metafísica, sendo que, a partir daí, ancorada em uma figuração cristã de mundo1. O culto, que antes destinava-se a diversos deuses, é substituído pelo culto à figura de Jesus Cristo11. A cultura cristã passa a ser a principal particularidade para a prática dos cuidados nesse período13. Desse modo, os hospitais que surgiam, geralmente, ficavam vizinhos a monastérios ou eram dirigidos por clérigos. Os cuidadores ou eram clérigos ou eram leigos que faziam votos religiosos, como o de castidade e o de pobreza para, assim, viverem cuidando dos enfermos. As práticas de cuidado consistiam em cuidados caseiros com forte conotação mística, motivadas por sentimentos de amor ao próximo, caridade e compaixão. A abnegação, o espírito de serviço, a obediência e outros atributos desse tipo vieram a ser reificados posteriormente para profissões que se estruturam a partir do cuidado, como a Enfermagem, por exemplo11. O cenário político e econômico europeu, porém, começou a sofrer mudanças a partir do século XII: a crise do sistema levou à agudização dos conflitos entre a nobreza e os servos, pois os primeiros acentuaram a exploração sobre os servos para compensar a crise por escassez produtiva. O feudalismo entrou em decadência, porque o sistema já não era suficiente para suprir as necessidades sequer dos senhores feudais: as terras estavam esgotadas, não havia recursos técnicos que possibilitassem a retomada da produção, bem como existia uma redução da produção de minérios (prata e ouro) para a cunhagem de moedas. As forças produtivas não conseguiam mais se desenvolver no marco das relações feudais, o que exigiu novas relações (burguesas), dando-se a transição entre feudalismo e capitalismo10,14. A ascensão do capitalismo é marcada, politicamente, pela Revolução Francesa, no século XVIII (pondo fim aos resquícios políticos feudais), mas é a Revolução Industrial, concretizada em meados do século XIX, que vai possibilitar o impulso no desenvolvimento dos meios de produção capaz de viabilizar o processo de trabalho voltado à produção crescente de capital. A partir desta nova forma de trabalho, as necessidades mercantis assumem a condição de força regente da vida social, implicando a universalização de sua lógica, inclusive, para o âmbito técnico-científico. Nestas condições, a ciência precisava ser direcionada à manipulação do mundo empírico, com fins de possibilitar a transformação da natureza em capital – e, posteriormente, a transformação de toda vida social para a reprodução capitalista. Por conseguinte, a ascensão da forma de trabalho particular do capitalismo determinou transformações técnico-científicas, políticas, enfim, de toda a práxis social, tornando-a mediação para a produção de valor10. No bojo deste novo contexto, o cuidado assumiu sua faceta moderna, sendo exercido por profissionais detentores de um conhecimento científico (no sentido moderno), majoritariamente assalariados ou, quando não, profissionais autônomos que exercem o cuidado por meio da mediação do mercado15. O cuidado em geral se particulariza em cuidado técnico-científico, concretizado por 548

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meio das diversas profissões de saúde, responsabilizadas, cada uma delas, por dimensões específicas oriundas da compartimentação/especialização do ato de cuidar (o cuidado médico, o cuidado de Enfermagem, o cuidado em Saúde Mental etc.)16. É preciso destacar o caráter contraditório do caminho particular tomado pelas protoformas das práticas de cuidado até se consolidarem enquanto cuidado técnico-científico e/ou profissionalizado. Se, por um lado, há um considerável avanço por conta do desenvolvimento de um tipo de conhecimento detentor de potencial para resolver problemas de saúde dos indivíduos e das coletividades; por outro lado, os profissionais que o executam e aqueles que são cuidados sofrem as consequências da dinâmica desumanizadora do capital, não conseguindo aplicar ou desfrutar, em sua plenitude, o saber desenvolvido. Expliquemos melhor. É preciso considerar que, no capitalismo, o intercâmbio orgânico entre homem e natureza está voltado à produção de valor de troca, cristalizado nas mercadorias. Isto implica a crescente e contínua mercantilização das relações sociais ou, dito de outro modo, a mercadoria passa a ser o eixo organizador da vida social. Os homens passam a se reconhecer, antes de mais nada, como compradores e vendedores de mercadoria, num processo evoluído de alienação ao qual Marx8 chamou de “fetichismo da mercadoria”. Vale ressaltar que “o valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço”8 (p. 46). Isto significa dizer que o valor de troca pressupõe o valor de uso, além de consistir na forma peculiar (ao capitalismo) de igualar valores de uso diferentes e, assim, viabilizar as trocas mercantis. Nessas condições, ao se igualarem valores de uso diferentes, precisa-se determinar o que há em comum entre eles; ou seja, aquilo que determina a grandeza de valor de cada bem produzido e que permite igualá-los. Essa grandeza é o tempo necessário para produzir o valor de uso. Esse tempo, por sua vez, possui suas próprias unidades de medida, como hora, dia, entre outros. É a quantidade de trabalho (medida em tempo de trabalho) despendida em uma mercadoria que permite compará-la a outra mercadoria, viabilizando uma troca8. Quanto mais trabalho socialmente necessário exige a produção de uma mercadoria, maior é a grandeza de valor desta. Nesses parâmetros, ao se igualarem coisas, tendo como referência o trabalho em média socialmente gasto para produzi-las, desconsideram-se todas as suas outras qualidades, aquelas propriedades que determinaram sua utilidade (seu valor de uso), suas diferenças, reduzindo o produto de processos de trabalho diversos às horas ou aos minutos trabalhados (metamorfoseados em preço, no mercado)8. Na sociedade atual, portanto, não basta produzir bens que satisfaçam necessidades (ou seja, que possuam valor de uso), mas produzir valor de troca (ou, simplesmente, valor). O processo de trabalho passa à condição de processo de valorização; e como o capital é uma relação social impulsivamente expansiva, ele necessita se apropriar das diversas práxis particulares, submetendo-as à lógica mercantil e, portanto, tornando-as mediação para a valorização. O trabalho assalariado nada mais é do que a forma materializada desta força expansiva, o que implica um reducionismo do caráter complexo do ser social, uma vez que todas as atividades humanas podem assumir a roupagem de trabalho (assalariado, abstrato, alienado), rebaixando suas especificidades (seus valores de uso) a um segundo plano, tornando-se uma forma indiferenciada8. Tal condição pode ser observada a partir da subsunção da subjetividade humana implicada no processo de cuidar ao uso de “tecnologias duras”17, sobremaneira aquelas nas quais está cristalizado o “trabalho morto” (aquele efetivado no interior da produção de instrumentos, equipamentos, enfim, insumos médicos em geral) e que reaparece na produção do cuidado, consubstanciando um processo de mediação decisivo para a “realização” da mais-valia produzida no “complexo médico-industrial”18. Diante disso, tanto o saber envolvido no cuidado (hoje, na forma de saber técnico-científico), quanto as relações estabelecidas no processo (entre profissionais que cuidam e indivíduo/coletividade cuidado/a, bem como entre os próprios profissionais envolvidos na construção coletiva do cuidado) são sobrepujados pela objetividade alienante do capital, uma vez que ela demanda a construção de espaços e práticas que sejam condizentes à valorização do valor, seja daquele produzido em 549


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trabalhador anterior (cristalizado nas “tecnologias duras”), seja daquele produzido no “trabalho vivo em ato” no processo de cuidar17. Com efeito, a práxis do cuidado passa a se dá por uma via que relega, a um segundo plano, justamente, o seu caráter definidor – a sua condição humana –, porquanto assume a roupagem de produção de cuidado com a regência fetichista da mercadoria. Isso determina a (re)produção de práticas de saúde reducionistas, como aquelas centradas na esfera biológica e de caráter tecnicista (considerando procedimentos passíveis de compra e venda), garantindo a utilização da tecnologia a serviço da produção de valor. Determina, pois, em última instância, a (re)produção do cuidado enquanto mercadoria (enquanto valor), transformando o profissional que cuida em agente de um cuidado reificado (a partir do qual se valoriza capital) e o indivíduo que é cuidado em consumidor de valor. Estabelece-se, assim, o que, hoje, vem sendo denominado de desumanização do cuidado19, com bases objetivas no processo de valorização, particularizado na práxis do cuidado e com manifestações funestas no âmbito da subjetividade humana, com o estabelecimento de determinações reflexivas e dialéticas entre essas duas dimensões (objetiva e subjetiva). Passa a existir uma mediação passiva por parte da práxis social (humana), na qual os sujeitos envolvidos têm sua condição humana cunhada à condição de compradores e vendedores de cuidado. A partir da subsunção do trabalho ao trabalho abstrato, portanto, todas as atividades humanas passam a ser passíveis de compra e venda, de forma generalizada, inclusive, a práxis do cuidado – e é esta a condição que se colocou como determinante para a profissionalização do cuidado, no sentido de inserção das diversas profissões da saúde (Enfermagem, Medicina, Fisioterapia, Nutrição etc.) na divisão e especialização capitalista do trabalho e, deste modo, inserção no mercado profissional. Os diversos profissionais de saúde são impelidos à condição de mediadores da realização do cuidado enquanto valor de troca, mediante o processo de assalariamento. Passam a ser, dessa maneira, possíveis trabalhadores assalariados, dos quais se extrai mais-valia (aquela diferença entre o valor do capital que a sua atividade possibilitou acumular e o valor do salário que lhe é repassado8), num processo de reificação do ato de cuidar, do cuidador e de quem é cuidado. Não obstante, não se devem negar as virtudes dos sujeitos que promoveram (e promovem) a evolução, em alguma medida, do saber e da prática do cuidado, virtudes que convivem conflituosamente com a lógica capitalista. Portanto, o movimento histórico do real desemboca numa relação dialética entre o desenvolvimento de formas mais evoluídas de cuidar e a incorporação das mesmas pelo capital, subordinando seu caráter humano à lógica coisificada do processo de valorização. Assim como o trabalho abstrato (forma de trabalho do capitalismo) possui caráter dual – particularizarse por produzir valor de troca, mas sem abandonar seu caráter concreto, produtor de valor de uso –, o cuidado se objetiva, na ordem social vigente, por meio de uma dualidade: ainda que atenda a algumas necessidades de saúde, cumpre esta tarefa de forma subsumida às necessidades do mercado. Nesse movimento dialético, constatamos o caráter contraditório entre a forma atual de cuidado, consignada ao capital, e sua essência (intervir sobre a saúde humana, compondo a dinâmica do ser social), no interior de sua unidade heterogênea. Portanto, direcionar o cuidado à ruptura com uma objetividade alienante – que vem destituindo o seu conteúdo efetivamente humano e deslocando o “trabalho vivo em ato” à seara da produção de valor –, revela-se mediação particular da emancipação do ser social ante o capital.

Considerações finais A trajetória teórica aqui empreendida pretendeu uma abordagem sobre o cuidado a partir da ontologia marxiana, tendo Lukács, além do próprio Marx, como interlocutores fundamentais. Concluímos que o cuidado é prática consubstanciada na (e partir da) dinâmica do ser social, uma vez que consiste em intervenção humana sobre a saúde de indivíduos e coletividades, possibilitando a continuidade da vida. Embora essa práxis possua, em sua composição ontológica, elementos de natureza instintiva e biológica, é no âmbito do ser social que ela consegue romper com as limitações naturais, afastando-se das mesmas, porém sem prescindi-la. 550

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Dessa maneira, o cuidado evolui junto com o ser social à medida que o mesmo se complexifica, expressando-se de maneiras diferentes em cada sociedade, mas se mantendo expressão particular da forma de trabalho específica em cada fase histórica. Por isso, o cuidado se movimenta a partir de formas particulares menos complexas, como na comunidade primitiva, no escravismo ou no feudalismo, até particularizar-se em formas mais complexas, como o cuidado profissionalizado, no modo de produção capitalista. Com a consolidação do capitalismo, o trabalho assume a conformação de mercadoria e, sendo a práxis particular central, imprime a mesma metamorfose para as demais práxis particulares, inclusive, o cuidado. Este último, apesar de abrir novas possibilidades de êxito no enfrentamento dos problemas de saúde, contraditoriamente, é incorporado pelo processo de valorização, sendo reduzido à condição de trabalho abstrato. Nessas condições, subjuga-se o caráter essencialmente humano do cuidado à “realização” da mais-valia cristalizada no “trabalho morto” e, sobretudo, implica a transmutação do próprio cuidado em dimensão particular do processo de valorização, com extração de mais-valia dos trabalhadores que cuidam, e impelindo aqueles que precisam de cuidados a procurá-los no mercado, onde serão consumidores do valor de troca objetivado no ato de cuidar. Ou seja, passa a existir uma mediação passiva por parte da práxis social, com subordinação da subjetividade aí implicada à lógica reificada do valor. Por fim, ressaltamos que o pensamento de autores clássicos, como Marx e Lukács, continua vivo, constituindo referencial imprescindível para a compreensão dos diversos fenômenos sociais da contemporaneidade, articulando-os às suas determinações dialéticas da história passada, para, assim, vislumbrar as possibilidades do futuro. Acreditamos que, uma vez delimitada a natureza contraditória e desumana do cuidado, hoje, possamos construir estratégias que revertam esta condição, possibilitando formas emancipadas de cuidar, no bojo de uma sociedade emancipada do capital.

Colaboradores Diego de Oliveira Souza participou da concepção, redação, discussão, revisão e aprovação da versão final do artigo. Henrique Pereira Freitas de Mendonça participou da redação, discussão, revisão e aprovação final do artigo. Referências 1. Tonet I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács; 2013. 2. Marx K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular; 2008. 3. Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012. 4. Lukács G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo; 2013. 5. Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(3):16-29. 6. Oliveira MFV, Carraro TE. Cuidado em Heidegger: uma possibilidade ontológica para a enfermagem. Rev Bras Enferm. 2011; 64(2):376-80.

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7. Marx K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo; 2011. 8. Marx K. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural; 1988. 9. Collière MF. Promover a vida: da prática das mulheres de virtude aos cuidados de enfermagem. Lisboa: Lidel; 1999. 10. Netto JP, Braz M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez; 2010. 11. Geovanini T, Moreira A, Schoeller D, Machado WCA. História da enfermagem: versões e interpretações. Rio de Janeiro: Revinter; 2010. 12. Oguisso T. Trajetória histórica e legal da enfermagem. 2a ed. Barueri: Manole; 2007. 13. Scliar M. História do conceito de saúde. Physis: Rev Saude Colet. 2007; 17(1):29-41. 14. Huberman L. A história da riqueza do homem. Do feudalismo ao século XXI. Rio de Janeiro: Guanabara; 1986. 15. Germano RM. Educação e ideologia da enfermagem no Brasil (1955 – 1980). São Caetano do Sul: Yendis Editora; 2011. 16. Silva SEV, Cavalcanti FMS. O processo de formação do enfermeiro brasileiro face às imposições do modelo neoliberal. Maceió: Edufal; 2013. 17. Merhy EE, Franco TB. Por uma composição técnica do trabalho em saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves: apontando mudanças para os modelos tecnoassistenciais. Saude Debate. 2003; 27(65):316-23. 18. Oliveira JAA, Teixeira SMF. (Im) Previdência social? 60 anos de história da previdência no Brasil. Rio de Janeiro: Abrasco; 1986. 19. Deslandes SF. Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Cienc Saude Colet. 2004; 9(1):7-14.

Souza DO, Mendonça HPF. Trabajo, ser social y cuidado en salud: abordaje a partir de Marx y Lukács. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):543-52. El objetivo de este artículo es desarrollar un análisis teórico sobre el cuidado a partir de un abordaje ontológico. Utilizamos categorías teóricas lukacsianas, inspiradas en la teoría de Karl Marx, para delimitar el cuidado como particularidad de la praxis social, fundada por el trabajo. Como cualquier praxis, el cuidado se mueve históricamente, asumiendo ropajes diferentes. En el capitalismo, asume una forma particular, consonante con las terminaciones del proceso de valorización, cuando ocurre su reificación, posibilitando la “realización” de la plusvalía objetivada en el “trabajo muerto” incorporado por la producción del cuidado, así como la transformación de los cuidadores en posibles fuentes de extracción de plusvalía y del propio cuidado en valor. Se co-substancia una contradicción típicamente capitalista, puesto que el cuidado en su esencia corresponde a la praxis particular capaz de atender necesidades de salud, pero que pasa a ser, en el capitalismo, inserido en las necesidades del mercado.

Palabras clave: Capitalismo. Comunismo. Cuidados de salud. Trabajo.

Submetido em 31/05/16. Aprovado em 09/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0616

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Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia

Octávio Augusto Contatore(a) Ana Paula Serrata Malfitano(b) Nelson Filice de Barros(c)

Contatore OA, Malfitano APS, Barros NF. Care process in the health field: ontology, hermeneutics and teleology. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):553-63.

The health care is a growing research field and has been addressed through new referential frameworks. Although it is an attribute essential to human survival, it did not receive enough analysis to build a sociology of care. The purpose of this essay is to map the production of knowledge about care, in order to develop a theoretical reflection on the subject. The literature shows an ontology of biomedical care, a hermeneutics of different approaches to care and the teleological challenge of caring in the contemporaneity. As conclusion, the technical-scientific basis of care gives few answers to the real demands of the people, demonstrating the need for a “social + logic” emancipatory approach of the care.

Keywords: Delivery of health care. Sociology. Biomedicine.

O cuidado em saúde cresce como área de pesquisa e tem sido abordado por novos referenciais. Embora seja um dos atributos necessários à sobrevivência humana, não lhe foram direcionadas análises suficientes para a constituição de uma sociologia dos cuidados. O objetivo deste ensaio é mapear a produção de conhecimento sobre os cuidados, com o fim de desenvolver uma reflexão teórica sobre o tema. Observou-se na literatura: uma ontologia do cuidado biomédico, uma hermenêutica das diferentes abordagens do cuidado e o desafio teleológico do cuidado na contemporaneidade. Conclui-se que os cuidados de base técnico-científica pouco atendem as reais demandas das pessoas, apontando a necessidade de uma abordagem “sócio+lógica” emancipadora dos cuidados.

Palavras-chave: Cuidados em saúde. Sociologia. Biomedicina.

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Doutorando, Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde (LAPACIS), Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (DSC/ FCM/Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”. Campinas, SP, Brasil. oacontatore@ yahoo.com.br (b) Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, Brasil. anamalfitano@ufscar.br (c) LAPACIS, DSC/ FCM/Unicamp. Campinas, SP, Brasil. felice@fcm.unicamp.br (a)

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OS CUIDADOS EM SAÚDE: ONTOLOGIA, HERMENÊUTICA E TELEOLOGIA

Introdução A palavra cuidado é etimologicamente originária da palavra latina cogitatus, que significa meditado, pensado e refletido. Como substantivo na língua portuguesa, ganha os significados de: atenção especial, inquietação, preocupação, zelo, desvelo que se dedica a alguém ou algo, objeto ou pessoa deste desvelo, encargo, incumbência, responsabilidade, lida, trabalho, ocupação1. Os significados atribuídos falam da sua dimensão social, implícita na interação entre sujeitos, numa relação de ajuda. No entanto, há muitas décadas, a noção de cuidado ganhou maior identificação com as ações profissionais na atenção à saúde. Neste sentido, embora o cuidado seja um dos atributos necessários à sobrevivência da espécie humana2, sendo considerado uma expressão de apoio social intenso, não lhe foram direcionadas análises suficientes para a constituição de uma sociologia dos cuidados3. Isto ocorreu por ter sido concebido como uma responsabilidade familiar, interpretado como certo que as tarefas de rotina pertenciam às mulheres, num comportamento singular implicitamente atribuído ao gênero. Como resultado, os cuidados e a sua importância para a vida social foram subvalorizados pelas ciências humanas e reduzidos pelas ciências naturais3. As ações especializadas de cuidado empreendidas no campo da saúde têm sido mais atentamente discutidas e crescem como área de pesquisa. Com mais ênfase àquelas pertencentes ao modelo biomédico, em que o ato de cuidar prioritariamente passa a ter o sentido de diagnosticar, tratar e prevenir a doença, e tem como base o conhecimento desenvolvido no campo técnico-científico4,5. Em função disto, cresce uma reflexão crítica de sua trajetória no âmbito da clínica, buscando alternativas para a atenção às necessidades dos sujeitos atendidos. Este ensaio discute sobre os cuidados, tanto a partir da literatura clássica sobre o cuidado em saúde, como, também, da contemporânea, em que se apresenta quanto as ações de cuidado na clínica assumiram, em muitos casos, o status de intervenção verticalizada e protocolada de um especialista detentor do conhecimento, em detrimento do cuidado como conhecimento tácito da espécie humana2. O conceito de cuidado é aqui abordado a partir de uma perspectiva ontológica, a qual se embasa em uma abordagem heideggeriana, como aquilo que torna possível as múltiplas existências1. Propõe-se uma discussão hermenêutica, com o intuito de interpretar os signos e o valor simbólico implícito ao conceito. E, por fim, busca uma contribuição teleológica, considerando a finalidade de exploração do princípio explicativo1, tendo em vista as possibilidades de diálogo pelo debate de ideias.

A ontologia do cuidado biomédico A ontologia do cuidado tem raízes na ampliação da compreensão, observação e intervenção sobre as causas do adoecimento produzidas pela racionalidade médica científica6, com a objetivação do seu saber clínico e o desenvolvimento tecnológico. Entretanto, a ação do cuidado da biomedicina efetivou-se independente da subjetividade7 inerente em cada indivíduo no processo do seu adoecer. Mais explicitamente, houve, no desenvolvimento da clínica médica, um gradual descarte de qualquer elemento subjetivo implícito ao sofrimento, na busca do conhecimento técnico mais produtivo e eficiente para o controle das enfermidades. Embora este momento tenha sido de grande relevância histórica no cuidado à doença, em consequência desta abordagem clínica foi desconsiderado o que não era observável pelo uso metodológico da avaliação diagnóstica. A subjetividade é vista aqui como mais do que um sistema determinista intrapsíquico, mas, sim, dimensionada como produção psíquica inseparável dos contextos sociais e culturais em que acontece a ação humana7. Ao determinar a doença como fato patológico e distanciá-la da esfera existencial do sujeito adoecido, a medicina científica, no seu processo histórico, retirou do adoecer seu conteúdo, sua substância, reconhecendo-a apenas em sua exterioridade e privando o sofrimento da sua dimensão produtora de sentidos e autoconhecimento ao seu portador 5,8-10. O que seria nas palavras de Gonzales Rey7: “negar a subjetividade”, ou seja, “desconsiderar a força da produção humana mais genuína e nos submeter ao domínio do instrumental” (p. 20).

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Contatore OA, Malfitano APS, Barros NF

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Desta maneira, a clínica passou, predominantemente, a ser o local da aplicação técnica de um cuidado voltado diretamente ao que foi protocolado como doença, por ser desvio da norma, quebra de um equilíbrio esperado8. O ser humano visto como máquina desregulada5 precisa ser retificado e orientado na direção da saúde, um estado hipotético de bem-estar a ser alcançado pela intervenção externa de um profissional qualificado. Evidentemente, esta abordagem sofreu duras críticas5,8,10 e a medicina contemporânea tem produzido discussões de uma outra dimensão clínica para o respeito à subjetividade e individualidade dos sujeitos4. Contudo, opta-se, aqui, pelo enfoque na clínica tradicional, conforme definida por Foucault9, por compreender que tal tradição tem influência naquilo que se define e aplica como cuidado na atualidade. Autores como Foucault9, Canguilhem8, Illich11 e Boltanski12 analisaram o desenvolvimento histórico do pensamento científico voltado para a construção racional do saber médico, que, de várias maneiras, teve efeito na produção de um modelo técnico-centrado de atenção à saúde, que persiste na contemporaneidade. Sublinha-se, entretanto, que não se trata de realizar juízos peremptórios e dogmáticos, que, certamente, cometem injustiças, tampouco ignorar toda produção contra-hegemônica em curso por diferentes profissionais, em muitos níveis da clínica executada nos serviços de saúde. Todavia, fazse necessário assinalar ações existentes, e, em muitos contextos predominantes, pautadas em uma perspectiva biomédica clássica5, para que possamos avançar no debate e quiçá produzir mudanças. Para Barros13, a partir da adoção do método morfofisiológico na clínica biomédica, o olhar médico foi reorganizado. “O olhar de qualquer ‘prático’ da medicina é substituído pelo olhar do médico ‘doutor’, apoiado e justificado por uma instituição, que lhe garante o poder de decisão, intervenção, investigação e ensino (o Hospital)” (p. 64). De um olhar inicial classificador dos processos de adoecimento, passou para um olhar calculador, que não se contenta apenas em constatar o que é evidente, mas estende sua capacidade especulativa para o cálculo dos riscos. Em ‘O Nascimento da Clínica’, Michel Foucault9 descreveu o desenvolvimento da medicina moderna a partir do século XVIII, de forma a dar visibilidade para a formatação do modelo de cuidado da ciência clínica, por meio de uma reorganização, em profundidade, não só dos conhecimentos médicos, mas, sobretudo, do desenrolar de um novo discurso emanado de uma nova experiência com a doença. Já no século XIX, ainda segundo Foucault9, a medicina científica ampliou seu conhecimento anatomopatológico e adotou novos elementos ao modelo de compreensão da doença, incluindo a química e a fisiologia. Nesta medicina, a clínica não mais se configurava em estar ao lado do doente, noite e dia, tomando notas dos seus sintomas, pois anatomistas com liberdade de realizar múltiplas sessões de investigação anatômica transformaram-na. Em consequência, foi preciso reorganizar o campo hospitalar e criar uma nova definição do estatuto do doente na sociedade, instituindo um domínio médico do conhecimento singular do indivíduo doente. Por sua vez, ao analisar o desenvolvimento da clínica, Canguilhem8 concebe, em primeiro lugar, a existência de alguém doente e seu pedido de ajuda. Com isto, o conhecimento terapêutico apresentase a partir da necessidade de cuidar de alguém, o seu desenvolvimento é feito por pessoas em busca da aptidão para lidar com aquilo que a vida lhes oferece, a experiência de sofrimento se encontra no centro da terapêutica. Posteriormente, com o desenvolvimento da medicina científica, de base fisiopatológica e anatomopatológica, a clínica ocupa o lugar do cuidado e passa a ser exercida pela atuação do médico no processo terapêutico. Foucault9 e Canguilhem8 ressaltam que a doença foi objetivada pela disfunção com o desenvolvimento da clínica médica e passou a ser o alvo e o sentido da ação terapêutica. Já o doente foi relegado à posição de portador da doença e sua queixa servia (e ainda serve, em alguns contextos) apenas como mais um elemento, de menor valor, no conjunto da análise diagnóstica. As ações de cuidado passaram a ser orientadas pela busca do fator patológico, para um tipo de atenção pautada na ideia de que a cura poderia ser alcançada a partir do restabelecimento daquilo que foi estipulado como normal, em detrimento do processo criativo e existencial implícito na queixa trazida pela pessoa adoecida.

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No entanto, para Canguilhem8, a doença não é apenas o desaparecimento de uma ordem fisiológica, uma desordem, caracterizando-se como o surgimento de uma nova ordem vital, outro tipo de norma surgida a partir da história de cada indivíduo, num processo de reestruturação do mundo vivido. O doente não é anormal por ausência de normas, mas sim, pela incapacidade de ser normativo, por perder a possibilidade de instituir normas diferentes em condições adversas. Estar sadio não é o oposto de estar doente, porém se configura em estar apto para criar novos modos de viver, novas normatividades, estar em produção, fazer escolhas, restabelecer o equilíbrio que lhe seja possível. Uma contundente crítica ao modelo biomédico foi feita por Ivan Illich11, com o desenvolvimento de seu conceito de iatrogênese estrutural. O autor denunciou a colonização exercida pela ação ideológica e política da medicina científica, sua influência na medicalização da sociedade e seu poder de limitar a autonomia dos indivíduos e das culturas tradicionais, de gerar saúde, de lidar com a dor, com a enfermidade, com a morte e, especialmente, com a doença. Outro aspecto importante abordado por Illich11 está na influência da linguagem especializada usada pelo médico para a manutenção de seus privilégios e segurança da profissionalização da medicina. Nas ideias do autor, a dominação implícita na construção de uma linguagem especializada, da qual o paciente não tem acesso aos seus códigos, dá ao médico o poder de falar só aquilo que julgar necessário para obter a cooperação do doente à sua manipulação. Pelo monopólio da linguagem, portanto, pode-se manter o monopólio dos cuidados, e não favorecer a possibilidade de diminuição da alienação no campo da saúde. A implicação do uso de uma linguagem especializada também foi abordada por Boltanski12. O autor evidenciou que, algumas vezes, a falta de entendimento da linguagem técnica e a conduta médica de passar informações parceladas distanciam a pessoa atendida da criação de um imaginário próprio favorecedor de uma relação reflexiva com o seu corpo e a sua doença. Isto resulta na construção, pelo paciente, de uma representação do discurso sobre a doença que o médico transmitiu, em detrimento de seu próprio conteúdo cultural. Esta adaptação de saber, maior entre as pessoas das classes social de baixa renda e escolaridade, dificulta a comunicação entre profissional de saúde e doente e condena a uma reconstrução parcelada e com palavras mal entendidas àquilo que foi dito. Já as pessoas com maiores recursos econômicos e socioculturais sentem um menor distanciamento entre o que é dito sobre a doença, a interpretação de seu significado e tendem a comunicar-se melhor, obtendo uma explicação mais pormenorizada do seu adoecimento12. Entretanto, independente da condição social da pessoa que procura o atendimento médico e sua capacidade de compreensão dos termos técnicos referentes à doença/tratamento, ainda subjaz a importante questão de o adoecimento significar e impactar mais a vida dos sujeitos, do que as suas implicações biomecânicas possam demonstrar. Os aspectos subjetivos implícitos ao adoecer, estando ou não presentes na sintomatologia, nem sempre foram objeto de atenção da medicina científica. Uma mudança, neste sentido, ocorreu ao final do século XIX e início do século XX, pois a clínica médica se deparou com uma incógnita de difícil resolução relacionada à impossibilidade de lidar com adoecimentos com causas fugidias à análise diagnóstica. O discurso médico positivista encontrou um de seus limites na desrazão e empreendeu uma nova ação investigatória para determinar as causas de sintomas que se manifestavam no somático, mas não se originavam nele. Freud, em seus estudos sobre histeria, reconheceu as alterações fisiológicas segundo relações de excitabilidade entre partes do sistema nervoso e descreveu que sintomas, como convulsões, contraturas, paralisias e perturbações da sensibilidade, sempre apareciam conjuntamente com alterações psíquicas14. A psicanálise e outras linhas de atenção psicológica tiveram o mérito de ampliar a compreensão do sofrer humano, uma vez que, no processo histórico de sua fundamentação teórica, afastaram-se do modelo positivista mecanicista biomédico, ao desenvolverem uma interpretação dinâmica da doença, e consideraram influências sociais na sua etiologia15. No entanto, é preciso ressaltar que as abordagens do campo “psi” nasceram no seio da medicina científica e suas ações de cuidado, como parte do campo da saúde, receberam influências do modelo biomédico. O seu modo de atenção, com poucas exceções, como é o caso da Psicologia Social16, da Reabilitação Psicossocial4 e outras práticas, está fortemente caracterizado por uma atuação clínica individualizada, pautada no binômio saúde-doença, e orientada a buscar o diagnóstico e tratamento da doença mental, muitas vezes distante de ações que contemplem o universo social e cultural do sujeito16. 556

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Hermenêutica dos cuidados contemporâneos Buscando os múltiplos e divergentes significados em torno do cuidado, em uma abordagem heremenêutica, observa-se que estudos recentes sobre o cuidado na atenção à saúde têm apresentado uma produção de conhecimento abrangente, complexa e diversa sobre o tema. As abordagens discutidas neste ensaio foram denominadas tendo como base estudos anteriores que já haviam proposto algumas classificações, quais sejam: abordagem ‘pragmática do cuidado’5,6,10,17-23, ‘clínica ampliada’4; abordagem ‘gerencial do cuidado’24,25; abordagem ‘filosófica do cuidado’21,26; abordagem ‘emancipadora do cuidado’2,27-32; abordagem ‘política do cuidado’33; abordagem ‘sociológica do cuidado’34,35 e abordagem ‘cultural do cuidado’36,37. A proposição chamada de ‘pragmática do cuidado’ está relacionada ao modelo biomédico de assistência, pautado na lógica da racionalidade médica científica contemporânea6,28. O seu tipo de atenção à saúde é caracterizado por um conjunto de procedimentos técnicos e tecnológicos voltados ao tratamento da doença como único e principal objeto de atenção; uma concentração de saber e poder no médico e no hospital; criação e validação de protocolos que aperfeiçoem procedimentos para maior segurança, eficácia, rapidez e baixo custo; instituição de diretrizes embasadas no método clínico empírico-classificatório e raciocínio fisio e anatomopatológico; produção de ações de cuidado destituídas de um olhar singularizado ao sujeito assistido, com baixa qualidade na relação profissional e paciente4-6,10,17,19. As ações pragmáticas tendem a ser orientadas para um maior intervencionismo em geral, um tratamento padronizado voltado para as doenças segundo a avaliação dos seus riscos e com menor preocupação com as singularidades. Como se a biomedicina, cada vez mais, identificasse os pacientes homogêneos entre si5,10,19. Para Camargo Jr.5, há uma gradual desvalorização da biomedicina como forma de cuidado, em função de ela trazer uma propensão iatrogênica, apesar ou por causa de sua pujança técnica, sendo que a sua perspectiva clínica tem sido questionada pela pouca eficiência na resolução de vários problemas de saúde. Em grande parte, porque está pautada no tratamento da doença, a partir da produção de evidências científicas que visam aferir a eficácia dos procedimentos e o seu custo, para, assim, poder generalizá-los. Outra crítica que vem sendo feita a esta abordagem pragmática está relacionada à produção de processos de medicalização18 e sofrimento sociais22. A medicalização transforma a capacidade autônoma da população, para enfrentar grande parte dos adoecimentos e dores cotidianas, ao criar um consumo abusivo dos serviços de saúde, produzindo dependência e alienação18. Além disso, transforma questões advindas da desigualdade social em compreensões individualizadas e medicalizadas22. Luz17 argumenta que é pela generalização e experimentação que o método científico produz conhecimento, o que se reflete no modelo de cuidado praticado nos diferentes tipos de serviços médicos. Para a autora, especialmente no período entre o final do século XX e primeiras décadas do XXI, as ações médicas estão cada vez mais próximas do cientista que estuda a doença, em detrimento da prática do terapeuta que trata o sujeito doente. O que resulta na priorização de estudos baseados em experimentação laboratorial de natureza analítica, para determinar a evolução da patologia, sua etiologia e a forma de combate. Desta maneira, desenvolve-se um modelo de cuidado prescritivo, advindo de um conhecimento obtido sem nenhuma relação com o paciente. A Clínica Ampliada e Compartilhada contempla de forma mais ampla as necessidades dos sujeitos atendidos, pois faz uma proposta contra-hegemônica ao modelo de assistência à saúde da clínica biomédica. Seu diferencial está em ampliar o objeto de saber e de intervenção clínica incluindo, também, o sujeito e seu contexto. O intuito é o de deslocar a ênfase de atenção da doença, na direção do sujeito concreto portador de um adoecimento. A racionalidade implícita neste modelo de clínica é a de cuidar daquilo que é imprevisível e singular em cada sujeito ou coletividade4. Para tanto, a Clínica Ampliada e Compartilhada propõe não ficar apenas com o que o corpo pode mostrar pelo olhar empírico, mas, sim, possibilitar encontros mais férteis com o sujeito atendido ao permitir que outros temas, não apenas a doença, possam estar presentes. Convida-o a construir conjuntamente as decisões de seu próprio cuidado, sem evitar qualquer desafio, seja este emocional, social, cultural ou econômico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Renova, também, ao considerar a participação de um número maior de atores nas ações de cuidado, incluindo a multiprofissionalidade das equipes para a elaboração dos projetos terapêuticos singulares4. A ‘abordagem gerencial do cuidado’ também se propõe à abertura para a participação de vários profissionais no compartilhamento de responsabilidades24 e, ao mesmo tempo em que compreende a importância para a clínica de uma boa relação entre cuidador e paciente, concebe haver dificuldades para isto acontecer com espontaneidade e generosidade, frente à dureza das organizações formais e sua racionalidade instrumental característica, conflitos de interesse, hierarquias de autoridade e recursos escassos. A gestão do cuidado em saúde é definida por Cecílio24 como o provimento ou a disponibilização das tecnologias de saúde, de acordo com as necessidades singulares de cada pessoa, em diferentes momentos da vida, visando ao bem-estar, segurança e autonomia para seguir com uma vida produtiva e feliz. Pela ‘abordagem filosófica’ do cuidado, Ayres26 discute a importância de se refletir sobre o cuidado em saúde para se compreender as bases teóricas e epistemológicas de algumas tendências emergentes atuais, que surgem como novos discursos no campo da saúde pública, mundial e nacionalmente, tais como: a promoção de saúde, a vigilância à saúde, a saúde da família, a redução de vulnerabilidades, entre outros. Para o autor, a consolidação destas propostas e seu consequente desenvolvimento dependeriam de transformações radicais no modo de pensar e fazer saúde, especialmente em seus pressupostos e fundamentos. Nesse sentido, defende a visita a aspectos filosóficos, na tentativa de corresponder a transformações práticas mais expressivas, para além dos avanços conceituais alcançados e, assim, contribuir para a reconstrução em curso nas práticas de cuidado. O sentido de cuidado já consagrado pelo seu uso, segundo Ayres26, normalmente, refere-se a um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de certo tratamento. Mas não é no sentido do conjunto de medidas terapêuticas ou procedimentos auxiliares de cuidado que o autor se propõe a refletir, sobretudo por considerá-lo como um constructo, que abrange tanto uma compreensão filosófica, como uma atitude prática frente ao sentido adquirido pelas ações de saúde nas diversas situações em que se dá um processo terapêutico. Em relação à abordagem ‘emancipadora do cuidado’, Barros2 faz uma leitura sociológica e aborda os cuidados e seus desdobramentos sociais em três planos representados: na expressão, como conhecimento tácito; no desenvolvimento de ações focais institucionalizadas, representadas pela clínica biomédica; e no cuidado emancipador, com elementos dos dois primeiros planos. O cuidado como conhecimento tácito38 é resultante de um processo de socialização, que passa a ser descrito como atributo da espécie, uma prática pessoal coletivamente construída, fruto de longa experiência, convivência e transmissão complexa, pois necessita de interações prolongadas em uma cultura ou tradição, e está na esfera das ações informais. Já ao ser associado à clínica biomédica e a um conhecimento focal e técnico, o cuidado ganha um contorno reificador – no sentido de coisificar, ao encarar algo abstrato como uma coisa material ou concreta – relacionado aos símbolos, valores, práticas e regras da ciência ocidental moderna, cujo método, predominantemente, preconiza a objetivação e consequente objetificação ou desumanização. Como expressão de conhecimento autonomizante, o cuidado emancipador produz-se como terceiro elemento, a partir dos conhecimentos tácitos (socializador) e técnicos (reificador), para construir simultaneamente: atenção, liberdade de escolha e tomada de decisão, em relação às regras legítimas resultantes da interação social e legais instituídas e protocoladas2. Neste sentido, o cuidado emancipador pode ser exemplificado pelas ideias originárias de cuidado que dão base às proposições de algumas Práticas Integrativas Complementares – PIC27, em sua dimensão de Racionalidades Médicas6,28. Utilizam-se, aqui, as PIC como possibilidade de desenvolvimento de um cuidado emancipador, por apresentar, teoricamente, características como: conceber holisticamente o adoecimento e as necessidades individuais de cuidado; direcionar o cuidado à saúde e não à doença; diminuir a distância entre profissional e paciente; não estar limitada a crescente intensificação do uso de tecnologia para obtenção de diagnóstico; satisfazer simbólica e tecnicamente a experiência vivida com o sofrimento pelo sujeito; integrar o bem-estar físico, mental, social e espiritual na sua concepção de saúde; estimular o autocuidado ajudando os pacientes a desenvolverem atitudes, disposições, crenças, hábitos e práticas que promovam seu bem estar13,20. 558

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No entanto, a aplicação das PIC não necessariamente está ligada a uma abordagem de cuidado emancipador, dependendo, como todas práticas clínicas, de quem a executa e das filosofias políticas das instituições envolvidas. Dessa forma, alguns estudos têm demonstrado que, na busca constante de legitimação perante a comunidade científica, as PIC têm sido estudadas com metodologia científica convencional em busca de validade e eficiência de sua aplicação ao tratamento de doenças31,32, o que modifica sua base conceitual original, aproximando-as de um padrão biomédico tradicional32. A abordagem ‘política do cuidado’33, ao mesmo tempo em que o insere numa prática, desenvolve seu potencial de ser o veículo de promoção de uma cultura de cuidar de si, presente na obtenção e na manutenção da saúde de um indivíduo consciente de suas necessidades, e que, sobretudo, busca realizá-las tanto na esfera individual quanto coletiva. Nesta dimensão, Pires33 entende a politicidade do cuidado: “Como manejo reconstrutivo da relação dialética entre ajuda e poder para a construção de autonomia dos sujeitos, sejam estes gestores, técnicos, profissionais de saúde, família, comunidade, enfim, cidadãos” (p. 1026). A autora defende que é pela politicidade que o cuidado pode se tornar emancipatório e redimensionar-se como ética da humanidade, para que, assim, as pessoas possam ser capazes de reelaborar a tutela e exigir cidadania. Busca-se um cuidado que se reconstrua para melhor atender as necessidades das pessoas e que possa gerir politicamente relações de ajuda-poder, desta forma, propondo mudanças ao modelo assistencial em saúde. Já Bila Sorj34 almeja uma reestruturação das políticas sociais em relação ao cuidado e, para isso, acredita ser necessária “a construção de um Estado solidário, que por meio de políticas públicas de qualidade coloque o cuidado no centro da sua definição de bem-estar social” (p. 127). A autora, a partir de uma ‘abordagem sociológica’ do cuidado, discute a articulação entre trabalho e cuidado; e compreende os seus efeitos sobre as desigualdades de gênero e de classe social, em que a profissionalização do cuidado denota um processo de ressignificação do seu sentido, não mais entendido como decorrência de um processo cultural, como o amor materno naturalizado, mas de um trabalho de reprodução social. As mudanças no cenário privado familiar ou comunitário são temas de interesse da sociologia, como a profissionalização de quem dá atenção às crianças, idosos e pessoas com algum tipo de deficiência, e, também, quais são os profissionais que, na assistência, exercem as ações de cuidado. No entanto, mesmo que as ações de cuidado sejam exercidas por diferentes atores sociais e o processo de profissionalização de cuidadores esteja influenciando a criação de políticas públicas, destaca-se a marcada presença feminina no “campo dos cuidados” e a desvalorização econômica e simbólica deste trabalho34,35. A abordagem ‘cultural do cuidado’ discutida por Prochnow, Leite, Erdmann36 reflete sobre as aproximações que possibilitam questionar a prática social do enfermeiro na gerência do cuidado. As autoras definem cultura “como as teias de significados que o homem teceu e nas quais ele enxerga seu mundo, sempre procurando seu significado” (p. 586). Assim, é importante para o enfermeiro, na construção de sua prática social, ater-se à diversidade cultural como recurso inovador na ampliação de sua visão da integridade humana, valorizando as divergências, o respeito e o compartilhamento. No entanto, Sá37 observa a necessidade de se compreenderem e conceberem algumas questões psicossociológicas implícitas nas relações intersubjetivas presentes na prática dos profissionais da área da saúde e que interferem diretamente na construção da humanização e do cuidado em saúde. Para isto, traz à tona o questionamento de que os obstáculos e limitações para a solidariedade e a produção do cuidado em saúde de qualidade não estão apenas relacionados à precariedade dos serviços em oferecer condições materiais, tecnológicas e de pessoal, ou somente nas características dos modelos dominantes, biomédico e gerencial funcionalista, mas, sim, aos padrões de sociabilidade e de subjetivação presentes na sociedade contemporânea. Mesmo compreendendo a importância da capacitação dos profissionais e a criação ou a ampliação de mecanismos de comunicação, a autora não os considera suficientes, por entender que a: “disposição para o acolhimento, para a escuta e para o estabelecimento de vínculos não se constitui em capacidade absoluta e apriorística do ser humano ou algo que possa ser controlado exclusivamente por um trabalho consciente e voluntário e/ou por mecanismos gerenciais”37 (p. 653). 559


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Por isso, a autora defende que, para se superarem os desafios impostos pela complexidade das questões relacionadas à “humanização” das práticas de saúde, é preciso continuar a problematizar a natureza sociológica da impossibilidade de uma comunicação simétrica e transparente entre sujeitos no campo da saúde. Outra dificuldade levantada por Sá37 refere-se à compreensão de que temas como cooperação, humanização e cuidado encontram dificuldade de se desenvolverem na cultura contemporânea, como parâmetro de relação intersubjetiva. Em outras palavras, a pressuposição da existência de um sujeito incompleto e precário que possa reconhecer que não é autossuficiente é invisibilizada, na medida em que, justamente, a autossuficiência é o modelo de subjetivação contemporânea predominante. Assim, compreendem-se os fatores que dificultam a fraternidade e a solidariedade no cuidado, bem como a inviabilidade da união de quem cuida a quem é cuidado na construção de um projeto de vida coletivo, em que o profissional no exercício da atenção à saúde assume uma posição igualitária àquele que recebe o cuidado. Portanto, a classificação hermenêutica da multiplicidade de abordagens sugere categorias de aplicação à prática cotidiana do cuidado. O que envolve ações ‘pragmáticas’ que se voltem a respostas efetivas às doenças, porém sob uma clínica ‘ampliada e compartilhada’, que respeite a cultura e a subjetividade de quem é cuidado; tendo, também, um viés ‘gerencial’, o qual convida atores formais e informais para serem responsáveis pelo cuidado, por meio de uma compreensão ‘filosófica’, que ressalta a necessidade permanente de reflexão sobre as bases epistemológicas da ação que se efetiva, com o objetivo de desenvolver uma prática ‘emancipadora’, que visa à autonomia do sujeito e ao lugar tácito do cuidado, considerando, sempre, as vertentes ‘política, sociológica e cultural’ que integram toda e qualquer prática social. Desta forma, o cuidado se complexifica, humaniza, e coloca, no centro da discussão, a pessoa.

A Teleologia dos cuidados A noção de teleologia pode ser compreendia como o transcurso da história presidido por uma finalidade, um telos, possivelmente do imaginário da ação de um demiurgo voluntarioso que imprime sua finalidade numa matéria amorfa para transformá-la na forma mais bem-acabada38. Todavia, não é essa a noção com que estamos operando, uma vez que não cremos que exista uma única e melhor finalidade do cuidado, exatamente porque tratamos de cuidados em uma complexa hermenêutica. No entanto, expandimos os limites da visão finalista associando a teleologia dos cuidados aos desafios e transformações civilizatórios contemporâneos, para que sejam produzidas múltiplas formas de sociabilidade diferentes das tradicionais, estruturadas entre estabelecidos e excluídos39, ou seja, profissionais e pacientes, nas quais se reproduzem autoritarismos, violências e excessivas intervenções e prescrições. Em outras palavras, o que se busca com a reorientação dos cuidados é a emancipação, também, por meio do rompimento com as relações unilaterais construídas e em posições institucionais19, impressas em muitos profissionais de saúde com apoio do Estado40, que ainda lhes qualifica como superiores aos pacientes por eles assistidos. Identificamos que não existe apenas uma forma de cuidado, e que ele não é exclusivo do campo da saúde, pois abrange relações sociais e culturais em suas efetivações. É preciso, então, colocar o cuidado em saúde apenas como parte das ações necessárias para atenção às demandas dos sujeitos, de forma que sejam tiradas da invisibilidade as necessidades interpessoais que o cuidado de senso comum alcança e a clínica biomédica tradicional não contempla. Nessa reorientação dos cuidados, o imaginário sobre o cuidar, a solidariedade em torno dos cuidados e a disponibilidade para estar com o outro, tornam-se, igualmente, constitutivos das ações de manutenção da vida. Claramente, a teleologia contemporânea dos cuidados é diferente das anteriores, uma vez que avança em relação às empirias pré-históricas associadas: aos instintos, às experiências culturais da antiguidade, às imposições religiosas do cristianismo, às leis gerais da morfofisiologia da clínica moderna e aos protocolos do modelo biomédico. Enquanto cada um desses modelos, à sua maneira, e todos em conjunto, orientaram os cuidados para manter a vida, na atualidade, é preciso, além de se

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garantir a existência, também orientar os cuidados para configurações39 emancipatórias de indivíduos e coletividades. A hipervisibilidade41 do processo de construção social dos cuidados contemporâneos pode, portanto, trazer à visibilidade: as implicações da sua forte relação com o gênero feminino, sua associação com as condições socioeconômicas e os seus determinantes relativos ao acesso e qualidade. Deixando ver, também, que uma perspectiva “sócio-lógica” do cuidado implica reconhecer que ele não apenas é atávico à condição da vida social humana, mas que é também constitutivo de inúmeras formas de afetos e afecções nos grupos sociais. Por fim, não há garantias de que uma sociologia dos cuidados – que dimensione a ontologia dos modelos e ações de cuidado, que explicite os múltiplos sentidos de uma hermenêutica dos cuidados e reoriente sua teleologia prática e simbólica – consiga construir um projeto emancipador. No entanto, pode, com segurança, performar projetos que levam à emancipação dos sujeitos interagentes com o desenvolvimento de uma consciência de valor pessoal, tanto na dimensão política, como na existencial. Assim como pode construir caminhos que extrapolam a consciência social de ser detentor do direito ao cuidado, para a consciência de ser e estar no mundo como portador de seu próprio cuidado.

Colaboradores Octávio Augusto Contatore contribuiu para o levantamento, discussão e análise dos dados e trabalhou na concepção, redação e revisão do texto; Ana Paula Serrata Malfitano foi responsável pela discussão e revisão do texto; e Nelson Filice de Barros foi responsável pela orientação da pesquisa, redação e revisão do texto. Todos os autores aprovaram a versão final do texto. Referências 1. Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. 2. Barros NF. As Práticas Integrativas e Complementares como cuidado emancipador. Comunidade de Práticas. Gestão de Práticas Integrativas e Complementares [Internet] [citado 08 Maio 2015]. Disponível em: https://cursos.atencaobasica.org.br/ conteudo/8900. 3. Fine M. Individualization, risk and the body: Sociology and care. J Sociol. 2005; 41(3): 247-66. 4. Campos GWS, Bedrikow R. História da Clínica e Atenção Básica – o desafio da ampliação. São Paulo: Huitec; 2014. 5. Camargo Jr KR. A biomedicina. Physis Rev Saude Colet. 2005; 15 Supl: 177-201. 6. Luz MT. Medicina e racionalidades médicas: estudo comparativo da medicina ocidental contemporânea, homeopática, chinesa e ayurvédica. In: Canesqui AM, organizadora. Ciências sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 181-200. 7. González Rey F. As categorias de sentido, sentido pessoal e sentido subjetivo: sua evolução e diferenciação na teoria histórico-cultural. Psicol Educ. 2007; 24: 155-79. 8. Canguilhem G. O normal e o patológico. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2002.

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OS CUIDADOS EM SAÚDE: ONTOLOGIA, HERMENÊUTICA E TELEOLOGIA

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artigos

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Contatore OA, Malfitano APS, Barros NF. Los cuidados en salud: ontología, hermenéutica y teleología. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):553-63. El cuidado en salud crece como área de investigación y ha sido abordado por nuevos factores de referencia. Aunque sea uno de los atributos necesarios para la supervivencia humana, no le fueron dirigidos análisis suficientes para la constitución de una sociología de los cuidados. El objetivo de este ensayo es mapear la producción de conocimiento sobre los cuidados, con el fin de desarrollar una reflexión teórica sobre el tema. En la literatura se observó: una ontología del cuidado biomédico, una hermenéutica de los diferentes abordajes del cuidado y el desafío teleológico del cuidado en la contemporaneidad. Se concluye que los cuidados de base técnico-científica atienden poco las demandas reales de las personas, señalando la necesidad de un abordaje “socio+lógico” emancipador de los cuidados.

Palabras clave: Cuidados en salud. Sociología. Biomedicina.

Submetido em 01/07/16. Aprovado em 06/09/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0939

artigos

Núcleos de Apoio à Saúde da Família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde Charles Dalcanale Tesser(a)

Tesser CD. Family Health Support Teams, potentialities and barriers: the primary care health outlook. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):565-78.

This paper reframes the role of the Family Health Support Teams (NASF in Portuguese), aiming to expand its conceptual and normative framework, focusing on its operational micro-management process. It discusses several ambiguities and facets in official regulations, public health literature, and decreases in services’ capacity (underutilisation of specialized matrix support teams). Based on the generalist and interdisciplinary operational character of primary care, a critique is made to the normative emphasis about specialists’ roles of general practitioners usually underappreciating the specialists’ care in the NASFs. Thus, the optimization of specialist support requires the specialist matrix team should assume fully and equally both the management of specialized care of referred patients and the matrix support to Family Health teams in a coordinated fashion. Thus, the expanded NASF’s may be able to encompass other medical specialties and consequently, becoming an excellent prototype of the Brazilian National Health System (SUS in Portuguese) secondary specialized management care.

Keywords: Primary care. Secondary care. Family Health Strategy. NASF. Matrix support.

Apresentamos uma interpretação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs), visando ampliar a sua plataforma conceitual-normativa, com foco na microgestão do seu trabalho. Discutimos algumas ambiguidades e aspectos das normativas oficiais, da literatura da Saúde Coletiva e reduções presentes nos serviços (subvalorização do cuidado especializado ou do suporte às equipes matriciadas). Partindo do caráter generalista do cuidado na atenção básica e de uma perspectiva operacional da interdisciplinaridade, criticamos a ênfase normativa na assunção de papéis generalistas pelos especialistas e a subvalorização da assistência especializada pelos NASFs. Defendemos que a otimização do matriciamento demanda que os matriciadores assumam plenamente, e igualmente, o exercício do cuidado especializado aos usuários referenciados e o apoio às equipes matriciadas, articulando-os, o que tornará os NASFs, se ampliados e adaptados para as demais especialidades médicas, um excelente protótipo de serviço especializado no Sistema Único de Saúde (SUS).

Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Atenção secundária à saúde. Estratégia Saúde da Família. NASF. Apoio matricial.

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(a) Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Trindade. Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900. charles.tesser@ufsc.br

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Introdução Oferecemos uma discussão dos NASFs1, focada na microgestão do trabalho de seus profissionais. Partimos da constatação de reduções e ambiguidades relativas à atuação dos profissionais dos NASFs. Discutimos seu papel a partir do projeto de construção de uma Atenção Primária à Saúde (APS) forte e de saberes respectivos. Analisamos alguns aspectos dessa atuação, das diretrizes oficiais e de discussões na Saúde Coletiva, incluindo a questão da interdisciplinaridade na prática, focados na operacionalidade do matriciamento ou apoio matricial, propositivamente. Visamos contribuir para a ampliação da sua plataforma conceitual e normativa, tomando como base a organização da rede de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), coordenada pela APS ou atenção básica. Usamos, como recurso analítico, a distinção, presente na proposta do matriciamento, de dois componentes articulados, constituintes do apoio matricial2: o suporte técnico-pedagógico às equipes matriciadas e a realização de cuidados especializados diretamente aos usuários. Eles designam ações cuja concretude operacional vai sendo progressivamente especificada e articulada. Fundamentamo-nos em estudos empíricos e conceituais e em experiência profissional na Saúde da Família (SF) e em unidades básicas tradicionais, desde os primórdios do matriciamento (início dos anos 2000), em dois municípios paulistas. Participamos como profissional da APS em matriciamentos de: cardiologia, reumatologia, psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional e fonoaudiologia. Nos últimos sete anos, acompanhamos, em outro munícipio, como docente dedicado ao ensino na APS, a atuação de (atualmente 12) equipes de NASF, envolvendo pelo menos: assistência social, educação física, farmácia, fisioterapia, nutrição, pediatria, psicologia, psiquiatria e geriatria.

NASF e matriciamento: reduções e ambiguidades “Existe uma linha que defende o assistencialismo e outra que defende o matriciamento, e ainda tem um grupo que acha possível conciliar as duas coisas”3 (p. 321). Esta transcrição de depoimento de um gestor local exemplifica duas reduções comuns sobre as funções dos NASFs: seu centramento na prestação de cuidados especializados aos usuários (‘assistencialismo’) ou no suporte técnicopedagógico às equipes de SF. Tais reduções ocorrem, frequentemente, nos serviços, onde talvez predomine a versão assistencialista4. Porém, aparecem na Saúde Coletiva em artigos que tematizam as atribuições desses Núcleos, que fazem críticas também polarizadas à prática de cuidados especializados diretamente aos usuários pelos matriciadores3,5-7 (com exceção das ações grupais), como se não fosse desejável que a executassem. Isso contradiz as conceituações de apoio matricial, que, a rigor, conforme Campos e colaboradores2,8-10, incluem esses dois conjuntos de ações: 1 exercício do cuidado especializado aos usuários, e 2 suporte ou apoio técnico-pedagógico às equipes de SF. Em contextos polarizados reducionistas, o termo matriciamento frequentemente é utilizado, em sentido reduzido, como sinônimo de suporte técnico-pedagógico às equipes de SF (transcrição acima). Parece haver interessados nas duas reduções apontadas: gestores, provavelmente mais alheios ao ideário da Saúde Coletiva, tendem a preferir a versão assistencialista, também mais facilmente administrável, sem os conflitos e negociações do matriciamento, e tendem, com isso, a reproduzirem ambulatórios especializados dentro da ESF (com suas mazelas8,11). Por outro lado, os profissionais matriciadores podem oscilar, conforme propensão individual ou grupal, entre as reduções: desviar-se da ação clínica especializada e da pressão pelo seu exercício vinda das equipes matriciadas, atuando mais em reuniões, grupos, prevenção/educação/promoção; ou desviar-se para seus núcleos de competência e restringir-se a fazer cuidados especializados, montando uma agenda que rapidamente lota, sem negociação ou suporte às equipes em dúvidas/urgências, sem construção coletiva de projetos terapêuticos complicados etc. Essas reduções geram a subutlização dos NASFs. No primeiro e seminal artigo de Campos10 sobre apoio matricial, o autor defende uma reconstrução das instituições de saúde por meio do fortalecimento de equipes de referência, que teriam fortes vínculos personalizados e de responsabilização por seus usuários, o que, na APS, identifica-se, hoje, com as equipes de SF8. Propõe que, para evitar a fragmentação, os especialistas, denominados 566

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(b) Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1.

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apoiadores matriciais, seriam responsáveis por uma oferta de ações especializadas que ampliassem o cardápio de um grupo de equipes de referência, havendo negociações para se definir a distribuição de trabalho entre estes profissionais10. Posteriormente, Campos e Domitti2, que mantêm um papel assistencial especializado direto aos usuários para os matriciadores, reafirmam a negociação entre as equipes de referência e matricial. Todavia, os autores mencionam que o matriciamento é “complementar [aos] mecanismos de referência e contrareferência […] e centros de regulação”2 (p. 400). Não explicitam se isso diz respeito a ações diversas dos mesmos profissionais ou se essa complementaridade se refere a profissionais diferentes; se o especialista que recebe o usuário referenciado deve ser o matriciador ou outra pessoa. Mais recentemente, Cunha e Campos8 e Campos et al.10, referindo-se aos NASFs, reafirmaram essa dupla função, mantendo essa indefinição acima apontada. Porém, acentuaram a ênfase no suporte técnico-pedagógico dos matriciadores, o que pode ter contribuído para uma interpretação separatista entre suporte técnico-pedagógico e assistência aos usuários ‘referenciados’ pelas equipes de SF. Cabe destacar que o apoio matricial nasceu junto com experiências institucionais voltadas para transformar: o cotidiano, a distribuição de poder e a gestão dos serviços de saúde. Elas almejam democratizar a gestão e gerar maior compromisso com o cuidado, flexibilizando as tendências burocratizantes das instituições da saúde8,12,13, em busca de superação de modelos mais hierárquicos e da regulação externa entre os técnicos. A função apoio destaca-se como uma defesa de uma relação dialógica entre os profissionais. Porém, esta origem comum pode ter colaborado – nos seus desdobramentos práticos em certos locais, e discursivos em textos da saúde coletiva – para um distanciamento dos matriciadores da ação clínica direta com usuários referenciados, influenciado, talvez, pelo desenvolvimento do apoio institucional. Nesse sentido, para Paulon et al.14 (p. 818), “a função apoio se exerce menos para a obtenção dos fins da organização […] e mais para a produção de reposicionamentos no trabalho”. Há trabalhos relacionando o apoio matricial com o institucional5,15,16, indicando convergências, mas não mencionam a especificidade de os matriciadores realizarem, também, assistência especializada diretamente aos usuários filtrados. Em 29 textos sobre apoio institucional na revista Interface(b), há poucas e passageiras menções ao matriciamento e à sua clínica especializada. A primeira diretriz federal para atuação dos NASFs (CAB27)17 contribuiu para a ‘despriorização’ do exercício do cuidado especializado pelos matriciadores. Ela prevê três tipos de ações: a) atendimento compartilhado e discussões de casos/situações; b) intervenções específicas do profissional do NASF com os usuários, e c) ações comuns nos territórios articuladas com as equipes de SF. Ações com usuários individuais do tipo ‘b)’ são previstas “apenas em situações extremamente necessárias”17 (p. 20), “sempre sob […] discussões e negociação a priori”17 (p. 9). Há criticas na Saúde Coletiva a este trecho por permitir o atendimento especializado pelos matriciadores1,3,6. Nossa crítica vai em sentido contrário, e questiona a restrição à atuação assistencial especializada. Há, no documento, priorização expressa de ações interdisciplinares compartilhadas (de execução conjunta). Nas ações do tipo ‘c)’, há projeção de atividades (realização e ou apoio) típicas das equipes de SF nos NASFs, o que parece estar relacionado à outra definição oficial conceitualmente questionável: a de que esses Núcleos fazem parte da atenção básica ou APS1,17,18. A última normativa federal para os NASFs18 restringe menos o exercício do cuidado especializado, mencionando-o ao introduzir uma dimensão ‘clínico567


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assistencial’ na sua atuação. Contudo, o faz de forma tímida, mantendo ampla priorização da ação interdisciplinar presencial (“trabalho compartilhado e colaborativo”18 (p. 17)), expresso nas suas ‘responsabilidades’18 (p. 46), ‘atuação’18 (p. 47) e atividades propostas, com pré-requisito de “projeto terapêutico produzido conjuntamente”18 (p. 53) para todos os atendimentos individuais ‘nasfianos’. Nesses documentos e na Saúde Coletiva, há grande desproporção de volume textual dedicado a esses componentes da atuação ‘nasfiana’, e priorização das atuações conjuntas com as equipes de SF: atendimentos conjuntos, discussões de casos/projetos terapêuticos, ações nos territórios, grupos, prevenção, promoção, planejamento, reuniões; frente à mínima ou nenhuma orientação para ações do tipo ‘b’ (cuidado especializado) adaptadas ao contexto do matriciamento. Isso demanda retomar o entendimento da APS.

Interpretando os NASFs a partir do entendimento da APS

Há ampla experiência nacional e internacional e literatura convergente sobre alguns aspectos organizativos dos sistemas de saúde públicos universais com APS forte (embora haja, no Brasil, propostas divergentes, inclusive, nas normativas oficiais). Desde Alma-Ata é consenso que uma APS abrangente envolve o atendimento a problemas gerais (saneamento básico, problemas de alimentação, distribuição da riqueza social, democratização do poder, educação escolar) que ultrapassam os limites dos serviços de saúde. Estudos sobre determinantes gerais e promoção da saúde têm indicado que a ação e o impacto dos serviços de saúde sobre esses problemas são muito limitados19-21, o que indica que não se deve assumi-los como prioridade de trabalho dos profissionais de saúde dos serviços da APS22, embora devam ser ali problematizados, em dimensão individual, microssocial e comunitária, como tarefas das equipes de APS. Um trabalho que os profissionais de saúde da APS devem, necessariamente, realizar é o cuidado clínico à sua população vinculada, com alta resolubilidade. De 4 a 8% dos usuários da APS são referenciados para cuidados especializados em países de alta renda23. A alta iniquidade socioeconômica no Brasil, que gera maior frequência, gravidade e multimorbidade nos adoecimentos24,25, sugere estimar que estes percentuais sejam maiores, talvez de 10 a 20%. O cuidado aos adoecidos é, talvez, a mais importante das tarefas dos profissionais da APS26: ele deve ser ampliado27,28 e centrado nas pessoas29, envolver abordagem familiar e comunitária com competência cultural30; associado com funções de vigilância, educação, prevenção e promoção da saúde, que não o obstruam nem com ele compitam26. Para isso, os serviços de saúde da APS (no Brasil, SF) devem ter atributos de: universalidade, integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado31. Ou seja, sendo acessíveis a seus usuários vinculados e atendendo-os independentemente dos tipos de seus problemas de saúde, resolvem a grande maioria deles. Quando necessário, acionam e coordenam cuidados especializados médicos e não médicos (doravante chamados apenas de cuidados especializados), que transcendem o cuidado generalista da APS, com vistas a gerar o mínimo de dano (incluindo mínima fragmentação do cuidado)32 e a combater a ‘lei dos cuidados inversos’33, o que exige operar a função filtro34, entendida como decisão de acessar cuidados especializados, incluindo participação na regulação (estabelecimento de possível prioridade/urgência nesse acesso). A função filtro sempre esteve normativamente vigente na SF quanto aos NASFs. A discussão sobre redes de atenção reitera o papel de coordenação da APS35. Consideradas estas atribuições, uma equipe de SF tem como núcleo de competência e atuação profissional, conforme Campos e Domitti2, o cuidado generalista longitudinal de uma coorte de pessoas em um território, o que significa uma especialização às avessas. Isso não é trivial, pois incide no campo de atuação das outras profissões e especialidades. Na medicina, o cuidado na APS, de tão complexo e vasto, constitui, genuinamente, um núcleo de especialização: a medicina de família e comunidade, muito pequena, pouco conhecida e pouco valorizada no Brasil, social e academicamente. O mesmo vale para a enfermagem, provavelmente. As equipes de APS são geralmente constituídas por um médico de família e comunidade e enfermagem (enfermeiro e técnico de enfermagem, onde este está presente). No Brasil, há também os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), nas equipes de SF. Tal composição se apoia em experiências acumuladas na APS no mundo e no Brasil, e também em resultados de pesquisas, sendo uma tendência das propostas de reformas europeias onde a APS 568

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é forte36. Ela associa a virtude da abordagem abrangente e generalista, mais integral que cuidados fragmentados entre especialistas, com maior equidade, coordenação de cuidados, sustentabilidade e proteção dos usuários dos danos das intervenções médico-sanitárias (prevenção quaternária37), em coerência com evidências que mostram melhor qualidade do atendimento, população mais saudável, maior equidade e menor custo onde há equipes generalistas de APS38. Isso é corroborado pela experiência profissional de quem vive o suficiente a rotina de uma equipe de SF. Como consequência do exposto, apenas os profissionais generalistas que atendem longitudinalmente a todos os tipos de problemas, cotidianamente, de uma coorte vinculada de pessoas deveriam ser conceitualmente considerados ‘profissionais da APS’ (no Brasil, as equipes de SF). Os demais profissionais e especialidades deveriam ser vistos como especialistas, acionados pela equipe de SF, como é o caso dos profissionais do NASF. Todavia, ao invés de assumir o acima afirmado, as normativas oficiais1,17,18 estabeleceram que os NASFs fazem parte da atenção básica, talvez para incentivar sua aproximação com ela. Além disso, estimularam apoiarem/realizarem atividades generalistas de: planejamento, acolhimento, atuação territorial, prevenção e promoção, ligadas ou não ao seu núcleo de atuação. Isso gera ambiguidades e superposições entre funções das equipes de SF e dos NASFs, potencialmente ‘desnorteando’ os profissionais dos NASFs, que passam a se ver, em alguns locais, como apoiadores ou, mesmo, realizadores de ações generalistas. Ao não respeitarem minimamente o núcleo de atuação e competência dos generalistas da SF, a concepção e as diretrizes oficiais dos NASFs podem induzir um efeito adverso paradoxal de enfraquecer a APS brasileira no seu generalismo (já fraca). Ao pulverizá-lo pelos campos de atuação dos especialistas do NASF, podem facilitar que ele não seja assumido efetivamente e competentemente por ninguém. Apesar da porosidade entre núcleo e campo e do compartilhamento dos campos, a construção/fortalecimento da APS requer reconhecer e respeitar minimamente o núcleo generalista, viabilizando estruturação da APS e do cuidado longitudinal nela, ainda que flexível e com exceções selecionadas. Além de desviar os matriciadores dos NASFs de ações específicas de seu núcleo de competência profissional para atividades em que eles têm, provavelmente, menor competência que os generalistas, as diretrizes federais podem induzir, também, uma desvalorização (simbólica, retórica, ideológica) do cuidado especializado no SUS. Este último está cronicamente sem um modelo para sua organização e viabilização articulada com a APS, que possa ser expandido para estruturação em escala nacional11.

Sobre a interdisciplinaridade na APS e nos NASFs O argumento de que os profissionais do NASF não pertencem às equipes de APS não limita a interdisciplinaridade, cada vez mais valorizada, e dificulta a construção difícil da integralidade, princípio fundamental do SUS e da APS? Entendemos que não, e destacamos que o desenho de rede composto por equipes de referência e de apoio matricial exige que se observem semelhanças e diferenças na relação interdisciplinar nas duas situações distintas: dentro de uma equipe de SF e entre esta e os especialistas (NASFs). Ações de prevenção e promoção à saúde, intramuros ou territoriais, bem como de planejamento e gestão local, são ou devem ser, em parte, transversais a todos os profissionais e serviços de saúde. Nas equipes de APS, tais ações devem ser regidas por um foco generalista centrado nas pessoas e no território vinculados, realizadas pelos profissionais generalistas da equipe, como uma de suas responsabilidades típicas, mas de modo a não obstruir o acesso dos adoecidos ao cuidado. Destacamos que as atividades de cuidado profissional individual ocupam, geralmente, entre 70 a 80% do tempo dos integrantes da equipe SF (exceção feita aos ACS)22. Essa situação não significa isolamento entre os profissionais e nem ausência de uma clínica compartilhada entre eles, embora tal isolamento não seja raro de ser observado. A prática e estudos sobre interdisciplinaridade, como o de Madeira39, investigando uma equipe de SF de alto padrão, mostram que o que chamamos ‘interdisciplinaridade presencial’, aquela em que os profissionais atuam juntos simultaneamente no mesmo problema ou ação, ocorre, sobretudo, em cinco momentos do cotidiano da SF: 1 no COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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acolhimento, quando os profissionais avaliam usuários e negociam entre si decisões; 2 nas atividades coletivas com usuários, quando dois ou mais profissionais da equipe participam; 3 nas visitas domiciliares em que alguns profissionais atuam juntos; 4 nas reuniões semanais da equipe; e 5 nos corredores, portas de salas e na copa, quando ocorrem conversas, discussões e decisões sobre usuários, num clima de cuidado compartilhado e cooperação. Estas ações interdisciplinares presenciais ocupam uma pequena parte da agenda semanal dos profissionais da SF (com exceção do acolhimento, mas mesmo ele, em grande parte, é individual). Elas constroem e fortalecem o espírito de equipe, azeitam e harmonizam as ações de todos, ao interligarem práticas assistenciais realizadas individualmente pelos profissionais (a maior parte de sua agenda), reforçando compromissos compartilhados com a qualidade do cuidado. Podemos chamar de interdisciplinaridade não presencial o conjunto de ações individuais sucessivamente coordenadas entre si. Para visualizar o cotidiano das equipes de SF e, posteriormente, sua relação com os NASFs, apresentamos, no Quadro 1, as principais ações do núcleo de competência/atuação dos profissionais da SF. Assumindo-se que as ações de cuidado aos usuários realizadas individualmente tomam a maior parte do tempo dos membros da SF, sem com isso ser sacrificada a interdisciplinaridade, podemos

Quadro 1. Ações dos profissionais generalistas da SF Agente

Tipo

Ação

A) Ações individuais (realizadas por um profissional para indivíduos)

Atendimento individual (consultas, vacinas, curativos) Acolhimento (1ª escuta) Visitas domiciliares (VD) “Acompanhamento terapêutico” (pelo ACS) Coordenação de cuidado

B) Ações coletivas (realizadas por um profissional para grupos ou famílias)

Grupos / atendimento coletivo ou familiar Ação em escolas, creches, asilos, etc Acolhimento (alguns fazem coletivo) VD

C) Ações interdisciplinares presenciais (realizadas por profissionais atuando simultaneamente no mesmo problema)

Acolhimento VD conjunta (médico+ACS; enfermeiro+ACS, etc) Grupo /atendimentos coletivos Discussão informal de casos Consulta conjunta Reunião da equipe e outras (gestão do trabalho, gestão e execução do cuidado de pacientes complicados* e de ações territoriais/intersetoriais**).

D) Ações sanitárias e de organização/ planejamento (individuais ou interdisciplinares presenciais)

Buscas ativas, vigilância epidemiológica (notificações, acompanhamentos e fechamento de casos notificados) e ou sanitária etc. Atividades administrativas correlatas Reuniões de equipe (gestão do processo de trabalho)

Ações das equipes de SF

Sem presença de nasfianos

Projetos terapêuticos singulares (envolve coordenação do cuidado). Ações sanitárias, políticas, de promoção da saúde e aspectos e projetos culturais, comunitários, em outras instituições (escolas, creches, asilos, prisões, associações, centros comunitários, etc) *

**

compreender que, com os profissionais dos NASFs, mutatis mutantis, algo semelhante deve ocorrer, com atenuações significativas derivadas de atenderem a dois tipos de clientela, aos usuários filtrados e às equipes de SF, e, também, das características de cada especialidade. Assim, as ações assistenciais especializadas, individuais e coletivas, em lógica interdisciplinar não presencial, devem ocupar, talvez, a maior parte da sua agenda; e devem estar articuladas ao trabalho de apoio às equipes de SF em 570

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Tesser CD

artigos

espaços interdisciplinares presenciais e não presenciais, viabilizando: discussões de caso, atendimentos conjuntos quando cabível, esclarecimento de dúvidas, regulação, ‘devolução’ de casos, construção compartilhada de projetos terapêuticos complicados, pactuação de ações conjuntas, educação permanente. Os espaços interdisciplinares presenciais vão além das reuniões de matriciamento ou dos atendimentos conjuntos, e incluem trocas ‘informais’ na unidade e contato via tecnologias não presenciais (telefone, correio eletrônico e comunicadores digitais), essenciais na relação SF e NASF18. Reuniões de matriciamento incorporadas no calendário das equipes são importantes, mas observa-se que sua idealização como único ou principal espaço de atuação e troca tende a obstruir, burocratizar e enrijecer a ação do NASF, reduzindo sua disponibilidade para prestar suporte às equipes matriciadas e atender usuários necessitados quando necessário. A atuação conjunta presencial entre os profissionais da equipe de SF e NASF, potente se bem indicada, pode ser limitante às demais atividades e a outros modos de interface, se assumida como modo prioritário de atuação articulada.

Reconsiderando a atuação dos NASFs É desejável a presença de especialistas atuando articuladamente à APS e dentro de seus serviços, desde que acessados e coordenados personalizadamente pelas equipes da SF, exercendo, sobretudo, suas competências nucleares, reconstruindo-as no contato íntimo com a APS e o território, e ampliando a resolubilidade dos generalistas da SF2,8,10. Porém, há objeções à indistinção entre suas atuações, sintetizadas anteriormente, em que há incorporação ou ‘ensino/suporte’ de tarefas generalistas pelos especialistas, como se devessem ensinar o que não ou pouco sabem, aprender ou, mesmo, realizar ações tipicamente generalistas: isso induz afastamento de sua atuação nuclear, valiosa para um pequeno mas significativo número de usuários mais graves, que merecem cuidado especializado acessível. A prática tem mostrado que a presença de especialistas junto aos generalistas da APS é mais promissora e teórica/empiricamente fundada se houver critério forte de seleção dessa presença para realizar cuidado especializado (a usuários) e suporte, quando requerido, aos generalistas, além de feed-back, discussão e educação permanente sobre a filtragem e o cuidado praticado relativo à interface com o núcleo do matriciador. Tal contribuição é certamente menor ou talvez quimérica em situações da rotina generalista, individuais e coletivas, preventivas e promocionais, e que não requerem o saber especializado do profissional do NASF. O Quadro 2 esquematiza as principais ações dos profissionais dos NASFs, divididas didaticamente em dois blocos. No bloco 1 (Quadro 2), estão as ações do profissional do NASF compartilhadas com profissionais matriciados, que ocorrem com ou sem a presença dos usuários filtrados, nas quais operam o suporte técnico-pedagógico e a regulação/coordenação de cuidado. O bloco 2 envolve as ações de cuidado especializado dos matriciadores aos usuários, conforme demanda das equipes de SF, com discussões prévias dos casos se necessário (que podem variar de uma rápida passagem de caso a uma discussão de condutas e projetos terapêuticos). As rotinas dos profissionais ‘nasfianos’ devem contemplar, de modo flexível, as ações dos blocos 1 e 2 (Quadro 2), conforme demanda das equipes matriciadas e características de seu saber/prática, buscando, sempre, articulá-las. Geralmente, suas ações não carecem da presença de vários ‘nasfianos’ na mesma ação, cujas ações interdisciplinares presenciais entre si devem ocorrer conforme necessário, centradas na capacidade de resposta aos profissionais matriciados ou usuários filtrados. Nessa lógica, os ‘nasfianos’ não deveriam participar das ações rotineiras dos generalistas da SF (Quadro 1), mas o podem fazer ocasionalmente. Por exemplo, quando deve um nasfiano participar de uma atividade coletiva com usuários (grupo)? A maioria dos grupos na SF são de escopo generalista e não precisam ter participação rotineira de ‘nasfianos’. O matriciador é desejável em ações do Quadro 1, quando é convidado para uma participação pontual julgada necessária/adequada, em que haverá oferta/abordagem de conteúdos/práticas especializados. O matriciador pode também coordenar/conduzir seu próprio grupo, pertencente ao seu núcleo de atuação, caracterizado como cuidado especializado coletivo, com acesso filtrado (salvo exceções). Isso facilita o acesso geográfico, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a aproximação do matriciador do universo social e cultural dos usuários e, supõe-se, foi considerado necessário em termos de demanda, prevalência, relevância, gravidade desses usuários, etc. Quando um matriciador deve entrar numa reunião da equipe de SF? Quando convidado por um motivo específico. Não é raro que equipes de SF de baixa qualidade não filtrem adequadamente, gerando excesso de referências. E, também, que sejam poucas ou inexistentes as ações coletivas cabíveis (generalistas),

Quadro 2. Ações dos profissionais dos NASFs (diferenciadas segundo natureza e modo de organização) Agente

Tipo

Bloco 1 Ações compartilhadas entre nasfianos e equipes de SF (demandadas pelas equipes de SF) (interdisciplinares presenciais) Bloco 2 Ações específicas dos nasfianos (cuidado especializado aos usuários)

Ação

A) Na presença do(s) usuário(s) Individuais (em geral) ou com outro nasfiano (só se necessário)

Consulta conjunta (individual/familiar-nasfiano convidado) VD (nasfiano convidado) Participação ocasional do nasfiano (convidado) em grupos realizados pelos profissionais da SF

B) Na ausência do(s) usuário(s) Individuais (em geral) ou com outro nasfiano (só se necessário)

Discussões informais com matriciados em corredores, copa, portas, telefone, correio ou via digital PTS com matriciados (na reunião da equipe ou fora dela) Reuniões para matriciamento: discussões de caso, “referência” e “devolução” de casos

Ações individuais (em geral) ou em conjunto com outro(s) nasfiano(s) (só se necessário), voltadas a pessoas ou grupos filtrados

Atendimento individual (núcleo profissional do nasfiano) VD pelo nasfiano (se necessário, para seu núcleo) Grupos / atendimentos coletivo (núcleo do nasfiano) Discussão de caso entre nasfianos (se necessário)

às vezes, dentre outros motivos, por excessiva demanda de cuidado individual. Isso sobrecarrega o NASF com excesso de usuários ‘referenciados’ e/ou projeta nele tarefas da SF, como grupos e ações territoriais generalistas. Nesses casos, cabe aos ‘nasfianos’ oferecerem apoio e educação permanente para melhorar a resolubilidade da equipe de SF na interface com seu núcleo específico, porém, não se justifica a assunção rotineira de tarefas generalistas. As diretrizes dos últimos parágrafos derivam da observação da prática, e são coerentes, em grande parte, com a proposta original do matriciamento2,10. Todavia, na perspectiva aqui assumida, o exercício do cuidado especializado (individual e coletivo) aos usuários deve ser uma função tão nobre dos profissionais dos NASFs quanto o suporte técnico-pedagógico às equipes de SF. Ambas as funções só se efetivam, potencializam e otimizam sinergicamente se associadas, cada uma atingindo seu clímax de efetividade à medida que a outra também é assumida integralmente. O suporte técnico-pedagógico do matriciamento será, certamente, mais efetivo e pleno se o matriciador for disponível para intervir quando necessário, assumindo a prestação do cuidado especializado. Por seu turno, para a boa execução e efetividade do cuidado especializado, o suporte técnico-pedagógico é importante, pois induz melhoria na filtragem, agiliza devoluções à equipe de SF e faz os usuários necessitados chegarem aos especialistas adequados. Isso evita que a equipe de SF ‘referencie’ em demasia, por pouca resolubilidade ou para se livrar do usuário, e melhora muito o rendimento da ação dos especialistas34. Doutra parte, essas interações do suporte técnico-pedagógico são valiosos espaços de educação permanente mútua e ampliadoras da clínica e da resolubilidade, em relação horizontalizada dialogal. Os documentos institucionais consideram os NASFs uma iniciativa para melhorar a qualidade e resolubilidade das equipes de SF, via apoio por meio do acréscimo de outras profissões e especialidades 572

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à APS. Esta última parece ter sido considerada apenas como um campo comum interprofissional de cuidado. Porém, se o incremento de integralidade e resolubilidade proporcionado pelo suporte técnicopedagógico pode ser significativo onde existem competências generalistas razoáveis em exercício na SF, ele tem se mostrado muito menos potente ou, mesmo, relativamente inócuo onde essas competências não existem ou são escassas (não raro). E fica ainda menor se o ‘nasfiano’ não exerce ou restringe o exercício do cuidado especializado aos filtrados. Por outro lado, se a ideia era ampliar a clínica e reforçar ações promotoras, preventivas, de planejamento e territoriais na SF, possivelmente, seria melhor investir fortemente na redução do volume de usuários das equipes, sabidamente excessivo26; e na educação permanente generalista, ao contrário de introduzir especialistas na APS, via de regra, sem as competências generalistas necessárias. Além disso, o pouco exercício do cuidado especializado pelo NASF pode produzir uma grave consequência adversa, observada comumente nos serviços: o afastamento dos ‘nasfianos’ da pressão assistencial. Isso gera um apartheid entre as equipes de SF e os matriciadores, em que as primeiras suportam sozinhas a pressão assistencial (comumente excessiva), e os segundos não compartilham dela (protegidos por restrições de agenda e/ou seu desvio para ações generalistas, grupais e interdisciplinares presenciais). Com isso, rompe-se ou fragiliza-se a parceria, a cumplicidade e o compromisso mútuos para com o cuidado, que recheiam, fundamentam e são pré-requisitos para a efetividade do suporte técnico-pedagógico. Outro aspecto comumente problemático é o NASF ser aberto a especialidades muito heterogêneas quanto à demanda por seu cuidado especializado, o que merece forte priorização ou exigência das mais demandadas, conforme o perfil local. Poder-se-ia até considerar a inserção de especialistas nas equipes de SF para realizarem cuidados especializados (e suporte técnico-pedagógico) de alta relevância e prevalência, como, por exemplo, em saúde mental. Devido às peculiaridades do cuidado no modo psicossocial40, a saúde mental na APS e no NASF exige tratamento à parte, em outro momento. O combate à lei dos cuidados inversos e a proteção dos usuários32 indicam que, mesmo assim, haja filtro pelos generalistas, com exceções - como obstetrizes, se existissem41, para atender pré-natal e partos de risco habitual; e dentistas, já existentes e atuantes com acesso direto.

Vislumbrando potenciais inexplorados dos NASFs Um dos grandes desafios do SUS é a viabilização e qualificação da atenção aos usuários que necessitam, de forma pontual ou continuada, de cuidado especializado. No Brasil, em geral, não há tradição de diálogo personalizado entre profissionais de serviços diferentes, nem construção coletiva de projetos terapêuticos quando necessário, nos serviços e, muito menos, entre eles. Isso pode ser grandemente alterado por meio do NASF, que viabilizou a inclusão de especialistas atuando descentralizadamente junto às equipes de APS. Cuidado especializado é uma das ações que os ‘nasfianos’ podem e devem realizar, articulado ao suporte às equipes (hoje fortemente priorizado nas diretrizes). Isso é ou pode ser um avanço inédito nas relações entre cuidado especializado e APS, visando um continuum coordenado de cuidados colaborativos42-44, muito procurado nos sistemas públicos universais de saúde valorizadores da integralidade. Assim, é defensável a ampliação da atribuição dos NASFs para o assumir pleno do exercício dos cuidados especializados, mantendo o suporte técnico-pedagógico, sem exigência de discussão prévia com matriciador de todos os filtrados (que não faz sentido). Nossa análise indica que, na articulação entre NASFs e SF, devem ocorrer ações clínicas e de trabalho compartilhado complementares e sinérgicas: função filtro, cuidado especializado, regulação e negociação de priorizações, cuidado intensificado via projetos terapêuticos compartilhados em casos muito complicados, discussões em situações limítrofes e casos duvidosos, gerando educação permanente mútua, qualificando a ‘filtragem’ por meio de reconhecimento de inadequações e oferta de educação permanente à SF, com aumento da resolubilidade. A Figura 1 esquematiza tais fluxos de atividades de cuidado e de relação APS-NASF. Durante o processo de reforma sanitária houve amplo questionamento do modelo médicoassistencial privatista brasileiro, com fortes críticas à estrutura ambulatorial especializada, nas quais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Naturezas das atividades dos NASFs

Usuários que são objetos de trabalho dos profissionais dos NASFs

Regulação (negociação em casos urgentes/ priorit., revisão filas

Monitoramento e reavaliação da fila de filtrados (se houver fila) Cuidado especializado dos usuários (individual e coletivo)

Filtrados corretamente que precisam de regulação por serem urgentes ou prioritários

Filtrados para cuidado individual (conjunto ou só com especialista) ou coletivo, com ou sem PTS discutido prévio

Suporte técnico-pedagógico (discussão casos, educ. permanente, PTS se necessário)

Identificados como sendo filtrados sem necessidade de cuidado especializado Discutidos em conversas (presenciais ou não) (agendadas ou não) com generalistas da SF

Ignorados pelo NASF, salvo convite específico

80 – 90 % dos usuários

Atendidos e manejados pela equipe de SF Selecionados para tiração de dúvidas, discussão ou elaboração conjunta de projeto terapêutiuco (PTS) Filtrados pela SF para receberem cuidado especializado

Figura 1. Filtragem dos usuários pela Saúde da Fmaília e atividade dos NASFs Fonte: elaboração do autor

se faziam (e fazem) atendimentos desarticulados da APS, com grandes filas de espera8. Disso talvez decorra certa restrição ao investimento institucional em cuidados ambulatoriais especializados. As práticas desse cuidado, todavia, carecem de local de oferta no SUS que não recaia nos mesmos erros dos ambulatórios isolados, e que não prive o usuário dos cuidados especializados quando necessário. O NASF pode trazer avanços importantíssimos neste sentido. Sua modelagem e suas experiências em curso permitem propor e defender, como diretriz estratégica e ideia reguladora, que os profissionais de todos os ambulatórios e serviços especializados, sempre que possível, devem atuar vinculados personalizadamente a generalistas que lhes referenciam usuários, e realizar apoio a esses generalistas, similarmente aos NASFs. 574

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Porém as práticas dos NASFs têm estado, geralmente, aquém desse potencial, devido a, pelo menos, quatro ordens de motivos: 1 ambiguidades normativas, que não deixam clara a relação a ser estabelecida entre NASFs e serviços ambulatoriais especializados (apenas preveem possibilidade de que seja regulado fluxo para eles pelos NASFs), nem orientam expressamente o assumir pleno, pelos ‘nasfianos’, da sua função executora de cuidados especializados aos filtrados; 2 desvios ou equívocos (no entender aqui exposto) normativos que induzem os ‘nasfianos’ a se verem como profissionais da APS e se envolverem em ações generalistas rotineiramente; 3 discursos da saúde coletiva que criticam a execução do cuidado especializado pelos ‘nasfianos’; 4 restrições e desvios contextuais locais nos serviços, ora dificultando o suporte técnico-pedagógico, ora o cuidado especializado. Obviamente, o subdimencionamento do número de equipes de SF e dos profissionais ‘nasfianos’ mais demandados também complica a situação.

Considerações finais Os NASFs são um potencial protótipo excelente de equipes de cuidados especializados ambulatoriais e de articulação APS-atenção especializada, amplamente subexplorado. Além de atribuir ações generalistas aos ‘nasfianos’ e hipervalorizar a atuação interdisciplinar presencial e na promoção, prevenção e planejamento, as normativas federais e as discussões acadêmicas têm subvalorizado o exercício do cuidado especializado aos usuários, que é intrínseco ao apoio matricial. Por isso, é defensável uma retificação das diretrizes oficiais, para que elas não induzam sua inserção em atividades generalistas nem secundarizem/obstaculizem ações de cuidado especializado (individual e coletivo) e de suporte técnico-pedagógico, de modo a viabilizar a plena realização do matriciamento. Tais Núcleos podem originar um novo e admirável modelo de organização dos cuidados especializados ambulatoriais no SUS, que responde diretamente ao centro das buscas por atenção adequada e singularizada aos usuários, coordenada pela APS, procurada nos sistemas de saúde públicos baseados na APS45. Equipes inspiradas nos NASFs, adaptadas para as especialidades médicas hoje ali ausentes (a grande maioria delas), poderiam ser induzidas nos municípios via financiamento federal, como foram os NASFs. Em síntese, nos locais em que os NASFs atuam apenas com ações assistenciais especializadas aos usuários, é necessário implantar ações de suporte técnico-pedagógico, viabilizando o matriciamento. E vice-versa onde ocorre o contrário. As análises e propostas apresentadas não menosprezam os esforços, conceitos e instrumentos de trabalho desenvolvidos para o matriciamento. Propõem ampliação de escopo, melhoria em ambiguidades e correção de desvios e diretrizes, para que os NASFs tenham efetividade, plena realização e máxima expansão, ampliando seu escopo atual para ser, além de apoio às equipes de SF, exemplar operacionalização de serviços especializados ambulatoriais no SUS.

Agradecimentos A Raquel Frosi, pelas discussões e sugestões de redação que muito contribuíram para o artigo.

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Tesser CD. Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia, sus potenciales y obstáculos: una interpretación a partir de la atención primaria a la salud. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):565-78. Presentamos una interpretación de los Núcleos de Apoyo a la Salud de la Familia (NASFs), con el objetivo de ampliar su plataforma conceptual-normativa, con enfoque en la microgestión de su trabajo. Discutimos algunas ambigüedades y aspectos de las normativas oficiales, de la literatura de la Salud Colectiva y reducciones presentes en los servicios (subvalorización del cuidado especializado o de apoyo a los equipos matriciales). Partiendo del carácter generalista del cuidado en la atención básica y desde una perspectiva operativa de la inter-disciplinariedad, criticamos el énfasis normativo en la asunción de papeles generalistas por los especialistas y la sub-valorización de la asistencia especializada por los NASFs. Defendemos que la optimización de la matricialidad exige que los matriciadores asuman de forma plena e igualitaria el ejercicio del cuidado especializado a los usuarios referenciados y el apoyo a los equipos matriciales, articulándolos, lo que hará que los NASFs, sean ampliados y adaptados a las demás especialidades médicas, un excelente prototipo de servicio especializado en el Sistema Brasileño de Salud (SUS).

Palabras clave: Atención primaria a la salud. Atención secundaria a la salud. Estrategia Salud de la Familia. NASF. Apoyo matricial.

Submetido em 22/05/16. Aprovado em 18/07/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0492

artigos

O cuidado de idosos como um campo intersubjetivo: reflexões éticas

Katia Cherix(a) Nelson Ernesto Coelho Júnior(b)

Cherix K, Coelho Júnior NE. The care of elderly as a field of inter-subjective relations: ethic reflections. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):579-88.

This paper aims to expand the reflection on the care of elder people inspired by the text “Patterns of intersubjectivity in the constitution of subjectivity: dimensions of otherness,” published in 2004 by Nelson Coelho Jr. and Luis Claudio Figueiredo. Through the use of the aforementioned concept in dialogue with the ideas of empathy in Ferenczi, projective identification in Klein and radical alterity in Lévinas, we intend to show how the contributions of psychoanalysis and philosophy allow questioning the notion of care as linked to charity and love that can lead to the subjection of the elderly. In contrast, we propose an understanding of care in which elderly and caregivers are in a multifaceted inter-subjective relationship that implies tensions and possibilities of transformation without losing sight of the ethical background in which both are respected in their idiosyncrasies and differences.

Keywords: Elderly. Care. Aging. Psychoanalysis. Ethics.

Este artigo tem por objetivo ampliar a reflexão acerca do cuidado aos idosos, tendo como pano de fundo o texto “Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade”, publicado em 2004 por Nelson Coelho Júnior e Luís Cláudio Figueiredo. Por meio de uma articulação dos conceitos de empatia, em Ferenczi, identificação projetiva, em Klein, e alteridade radical, em Lévinas, pretendemos mostrar como contribuições do campo da Psicanálise e da filosofia permitem um questionamento da noção de cuidado como ligada à caridade e ao amor que podem acarretar um assujeitamento do idoso. Em contrapartida, propomos uma compreensão do cuidado, na qual idoso e cuidador se encontram numa relação intersubjetiva multifacetada, que implica tensões e possibilidades de transformação, sem nunca perder o horizonte ético no qual ambos são respeitados em suas idiossincrasias e diferenças.

Palavras-chave: Idosos. Cuidado. Envelhecimento. Psicanálise. Ética.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Doutoranda, Departamento de Psicologia Experimental, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo (USP). Alameda dos Tupiniquins, 426. São Paulo, SP, Brasil. 04077-001. katiacherix@ hotmail.com (b) Departamento de Psicologia Experimental, Instituto de Psicologia, USP. São Paulo, SP, Brasil. ncoelho@usp.br

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O CUIDADO DE IDOSOS COMO UM CAMPO INTERSUBJETIVO: ...

Envelhecimento e cuidado O Brasil encontra-se num período de transformação demográfica que engendra mudanças familiares, sociais e políticas. De 1980 a 2005, o crescimento da população idosa foi de 126,3%, ao passo que o crescimento da população total foi de apenas 55,3%. Nesse mesmo intervalo, o segmento de oitenta anos ou mais apresentou um crescimento de 246%, representando 14% da população idosa brasileira. A longevidade acarreta um aumento do número de idosos dependentes e de cuidadores, sejam formais (que exercem o cuidado numa situação profissional), sejam informais (familiares que exercem o trabalho de cuidar, sem uma remuneração). Por falta de recursos financeiros e de uma rede de assistência que ofereça o serviço de cuidado de forma gratuita, a grande maioria dos idosos, no Brasil, é cuidada por mulheres da família(c), muitas vezes, elas mesmas idosas, sem preparação para esse tipo de trabalho e sem uma rede que propicie amparo para que possam oferecer um cuidado de qualidade aos familiares que delas dependem1. Partindo desse contexto mais amplo, é possível direcionarmos nosso olhar para um cenário mais circunscrito: o do idoso dependente e seu cuidador. O grau de dependência de um idoso é avaliado de acordo com sua capacidade de executar as atividades da vida diária (AVD), as quais se dividem em: (1) atividades básicas da vida diária – tarefas próprias do autocuidado; (2) atividades instrumentais da vida diária – indicativas da capacidade para uma vida independente, como realizar tarefas domésticas, administrar as próprias medicações, manusear dinheiro; e (3) atividades avançadas da vida diária – indicadores de atos mais complexos ligados à automotivação, como trabalho, atividades de lazer, exercícios físicos. A dependência se traduz por uma ajuda indispensável para a realização dos atos elementares da vida3. A dependência para as AVDs pode ser reduzida, se houver assistência adequada, por exemplo, com a adaptação da residência ou uso de tecnologia. Porém, ao sentir-se dependente, o sujeito entra em contato com sentimentos de fragilidade e desamparo relacionados com uma condição física instável, a qual implica um risco de declínio funcional. A condição de fragilidade será maior se, ante a realidade de perdas, o sujeito não encontrar um amparo. Assim, fatores subjetivos e culturais também contribuem para a situação de fragilidade. Por vivermos numa sociedade na qual os valores capitalistas ligados à produtividade, beleza e juventude imperam, alguns idosos podem sentir que lhes sobra um lugar de pouco reconhecimento simbólico e social. Além dessa posição social negativa, há uma questão existencial que envolve o sentimento de finitude. Tanto a relação de dependência, como a fragilidade e a exclusão social, e sentimentos ligados às mudanças do corpo, à proximidade da morte e à elaboração das perdas podem levar alguns sujeitos a sentirem o desamparo3. Diante de situações concretas de dependência e adoecimento que marcam algumas histórias de envelhecimento, é possível refletir sobre o impacto dessas vivências nos sujeitos, assim como o impacto de suas reações sobre os outros à sua volta. O tema do cuidado ao idoso nos leva a pensar sobre a história de cuidado de cada um, a qual ressoa tanto no idoso como em seu cuidador, remetendo-nos a experiências inaugurais de cuidados. Para a Psicanálise, o bebê humano nasce em condição de grande fragilidade, necessitando de um outro que cuide dele, pois depende inteiramente de outrem para a satisfação de necessidades vitais. Essa condição provoca sensações de desamparo(d) e angústia, que deixarão marcas psíquicas. Essa primeira experiência de vínculo cria uma condição de estruturação psíquica e inaugura a relação com o outro como 580

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Küchemann1 cita Karsh2, mostrando que, em estudo realizado em São Paulo, de 102 pessoas que sofreram AVC, 98% eram cuidadas por familiares; 92,9% dos cuidadores eram mulheres: 44,1% esposas, 31,3% filhas e o resto noras e irmãs. (c)

Laplanche e Pontalis5 indicam que o estado de desamparo (Hilflosigkeit) influencia, de forma decisiva, a estruturação do psiquismo, destinado a constituir-se inteiramente na relação com outrem. Numa situação de dependência no envelhecimento, é possível pensar que o sujeito se viria submerso em excitações das quais não tem controle, numa situação parecida com a vivida pelo bebê. (d)


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fundadora do sujeito. Assim, desde o início, estamos, em algum grau, em situação de dependência do outro. Essa situação vivida pelo bebê é diferente da situação de dependência do idoso, porque este já se constituiu como sujeito e tem muitas possibilidades de significar a situação de dependência e cuidado. Entretanto, de alguma forma, experiências primitivas de medo, confiança, prazer, ódio e amor, vividas na primeira relação de cuidado, ficam como uma matriz para vivências posteriores. A partir dessa experiência de dependência e cuidado vital, uma das maiores ameaças que pode atingir o ser humano é a fragilidade dos vínculos e o medo de perder o amor do outro, o qual, de certa maneira, o protege diante de perigos e sofrimentos4. De sorte a lidar com a angústia dessa situação de proximidade com aspectos sombrios do envelhecimento, como perda de funcionalidade do corpo, perdas cognitivas e dependência física, podemos pensar que os cuidadores fazem uso de diversos mecanismos de defesa do Eu, a fim de manterem sua saúde mental frente a um cotidiano tão rude. Um desses mecanismos parece ser a infantilização do idoso, que permite, ao cuidador, reduzir a situação de cuidado à situação familiar e agradável de cuidado de uma criança, protegendo-se do fato de que aquele idoso é um adulto, com uma história subjetiva singular, e que a situação de dependência na qual se encontra pode estar no horizonte de qualquer um de nós. De certa forma, essa identificação com o outro velho pode ser sentida como perigosa ou indesejada. Uma pesquisa feita em Cuiabá3 com cuidadores familiares de idosos elucida esse ponto: “O idoso no caso dele se torna uma criança [...] vai dar um remédio, engasga, se tem comida seca, não pode dar [...] fica assim teimoso, você fala uma coisa ‘não faz isso’!!! Ele faz [...] (C14); [...]é pior do que você cuidar de um bebê recém-nascido. Você olha assim e não é uma pessoa adulta que você vê, porque se torna uma criança. Faz birra porque não quer comer, fica com aquele bicão (C3); Eu levo ele, deito e enrolo, bonitinho como uma criancinha, sabe? Aí, ele dá uma risadinha, tipo um bebezinho, tão bonitinho [...] [risos]”. (C7)

É possível inferir desse relato que, ao olhar para o idoso como um “bebê recém-nascido”, o cuidador o priva de exercer um papel de sujeito autônomo e tomar decisões acerca do seu próprio cuidado. Dentro desse contexto, cuidar de alguém acaba significando decidir pelo outro. Muitos cuidadores se referem ao cuidado como um ato de amor. Por trás dessa fala, é possível ver que o cuidador se coloca num lugar de potência onde ele dá banho no idoso, dá comida, dá atenção e, assim, procura certo reconhecimento social como uma figura que se sacrifica pelo outro, figura piedosa e generosa, figura abastada, que é capaz de dar tudo a quem nada tem. Nessa lógica, o idoso encontra-se no lugar de quem não tem nada e precisa de tudo, de maneira que o “fazer pelo outro” acaba sendo o significado primordial por trás do cuidado. Esse tipo de cuidado priva o outro de sua autonomia e possibilidades de expressão de sua subjetividade3. Como mostrado acima, tentativas de expressão do idoso são entendidas como “teimosia” e rebeldia, em face da suposta autoridade do cuidador. Ao considerarmos a situação de infantilização como uma proteção diante de situações de doença e morte, podemos pensar em relações hierárquicas como num hospital. Varella6 apresenta interessante relato sobre a experiência que teve, quando foi hospitalizado: Um técnico de laboratório passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco de soro: “Vou dar uma picadinha.” Foi uma série infindável de diminutivos que viriam a ser pronunciados. [...] O emprego do diminutivo infantiliza o cidadão. Deitado de camisola e pulseirinha, sem forças para agir por conta própria, cercado de gente que diz: “Vamos tomar um remedinho”; “Abre a boquinha”; “Levanta a perninha”... Há maturidade que resista? (p. 24)

O outro como semelhante: a empatia no encontro Além de estabelecer uma relação de autoridade, de saber sobre o outro, podemos pensar que cuidar ganha outro significado numa relação intersubjetiva. Reconhecer o outro como sujeito constituinte dessa relação significa reconhecer necessidades e desejos do outro, no sentido de que há COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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algo nele de semelhante com o qual posso me identificar, e algo nele que implica uma alteridade radical com a qual posso entrar em contato, porém, nunca reduzila a algo conhecido. Nos trabalhos publicados sobre cuidado no envelhecimento, são ressaltados aspectos do cuidado ao corpo, especialmente sob a perspectiva da qualidade de vida e da autonomia. Esse cuidado, pautado nos valores da biomedicina, pode mostrar-se extremamente técnico e eficaz para a manutenção da vida biológica, mas tende a não levar em conta aspectos afetivos, psicológicos e éticos que estão em jogo nessa relação. Numa tentativa de ampliar o olhar para essa relação de cuidado, procuramos a contribuição de autores da Filosofia e da Psicanálise. Coelho Júnior e Figueiredo7, baseados em autores da Filosofia, Psicologia e Psicanálise, apresentam quatro possíveis matrizes para se compreenderem distintos modos de intersubjetividade, ou seja, formas de relacionamento do Eu com o outro. A primeira matriz foi chamada de intersubjetividade transubjetiva, pois faz referência a experiências pré-subjetivas de existência, a um campo de indiferenciação Eu-outro. A segunda matriz, inspirada no trabalho de Lévinas, é nomeada de intersubjetividade traumática, pois postula a presença do outro como, simultaneamente, constitutiva e traumática. A terceira matriz se refere à intersubjetividade interpessoal, e, das quatro matrizes, é a única que pressupõe uma relação simétrica entre Eu e o outro, visto que aponta um campo de relacionamento entre dois sujeitos independentes, totalmente constituídos. A última matriz, chamada de “intersubjetividade intrapsíquica”, mostra um funcionamento psíquico baseado na teoria psicanalítica, no qual existiria uma relação entre o Eu e seus objetos psíquicos, os objetos introjetados. Esse tipo de conceptualização nos permite refinar nosso olhar acerca dos processos relacionais, e dimensionar a complexidade envolvida nas dinâmicas intersubjetivas, processos em constante trânsito e transformação. Para articular esses conceitos com o tema do cuidado de idosos, iniciaremos nossa reflexão nos primórdios da Psicanálise, quando Freud8 e Ferenczi9 usam a palavra empatia (Einfühlung), que significa possibilidade de estar junto do outro, em seu sofrimento, capacidade de compreender os sentimentos do outro, colocando-se em seu lugar. Freud considera central a experiência da empatia para o trabalho terapêutico, não obstante, em sua obra, a palavra revela ter um sentido mais cognitivo que afetivo, referindo-se à capacidade cognitiva do analista de colocar-se no lugar do paciente, dentro de uma relação assimétrica que mantém a autoridade do médico. Baseado em experiência clínica, Freud cria conceitos para dar conta de novos aspectos do trabalho terapêutico. Um dos conceitos mais importantes foi o de Transferência (Übertragung), apresentado em 189510, que designa o fato de que o paciente transfere para o analista sentimentos que tem ou teve em relação a outra(s) pessoa(s) em sua vida. A princípio, acreditou que a transferência fosse uma resistência que impedia o paciente de entrar em contato com as lembranças ligadas aos eventos traumáticos, todavia, percebeu que a transferência se apresentava como uma ferramenta importante do processo psicanalítico, já que, por meio dela, pela repetição de padrões de relacionamento, poderia acessar conteúdos reprimidos do paciente11. Já o conceito de contratransferência(e) (Gegenübertragung), o qual, na Psicanálise contemporânea, ganhou grande destaque, foi pouco estudado por Freud. No começo, a contratransferência também foi sentida como um problema, como uma resistência inconsciente do analista de entrar em contato com os conteúdos expostos pelo paciente12. Em um segundo momento, Freud destaca a importância de o analista estar atento a seus conteúdos inconscientes, para maior compreensão do funcionamento psíquico do paciente13. 582

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A contratransferência seria o conjunto de reações inconscientes do analista à pessoa do analisando. Conforme o tratamento psicanalítico foi sendo visto cada vez mais como uma relação a dois, reconheceu-se a importância de o analista ter um cuidado com os sentimentos provocados nele pelo analisando. Num momento inicial do desenvolvimento da Psicanálise pós-Freud, a contratransferência foi concebida como algo negativo a ser controlado. Depois, passou-se a entendê-la como uma ferramenta terapêutica que permite uma maior compreensão do funcionamento psíquico do paciente13, especialmente com o trabalho pioneiro de Paula Heimman (1950). (e)


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Na mesma época, Ferenczi desenvolveu um trabalho frisando a importância dos sentimentos contratransferenciais do analista. A abertura mental do analista aos seus próprios sentimentos torna-se elemento essencial para a escuta e a compreensão empática do paciente. Diferentemente de Freud, ao avançar no desenvolvimento de sua teoria, Ferenczi propôs uma técnica na qual o analista poderia ter um papel mais ativo, com o intuito de provocar elaborações no paciente. Nessa direção, passou a usar o conceito de empatia, ou “tato psicológico”, para guiar o tratamento. O analista é assim visto como uma banda elástica que pode moldar-se às necessidades dos pacientes. Ao arriscar-se nessa posição heterodoxa, Ferenczi ampliou o campo da psicanálise, no sentido de pensar como as ideias e os afetos do analista acabam, inevitavelmente, entrelaçando-se com os do paciente, por estarem numa relação intersubjetiva14. Se levarmos adiante a reflexão acerca dos conceitos de empatia, transferência e contratransferência, é possível pensar que, assim como Freud, no início de sua prática, poderia ser visto como alguém que se colocava como autoridade em relação aos pacientes, muitos cuidadores parecem se sentir nesse tipo de relação com os idosos de quem cuidam, esquecendo-se da possibilidade de entrar em contato com o sujeito e seus afetos, como indicado por Ferenczi. Ao se cuidar de uma pessoa dependente, é possível ter uma relação empática e colocar-se no lugar do outro, a fim de melhor compreender suas necessidades, ou sentir-se numa relação de poder, na qual o outro está assujeitado. Obviamente, a relação entre cuidador e idoso não tem um objetivo terapêutico como uma situação analítica, porém, é uma relação de muita proximidade física e psíquica, na qual, inevitavelmente, acontecem transferências relacionadas à neurose de cada um. Isso quer dizer que é possível que alguns idosos revivam situações ligadas à infância e outras situações de dependência e cuidados com o cuidador, assim como o cuidador também pode reviver situações ligadas à sua história pessoal. Dessa maneira, a relação de cuidado é compreendida como singular, marcada pelas histórias afetivas de cada um, porém, espera-se que quem se encontra no lugar de cuidar esteja preparado ou disposto a entrar em contato com um outro que está numa situação de fragilidade, dependência e sofrimento. Tal disponibilidade implica se identificar com o outro, num primeiro momento, para poder aproximar-se dele, escutá-lo e conhecê-lo num segundo momento e, assim, atender às suas necessidades, num terceiro momento. Klein15, ao estudar mecanismos de defesa precoces, introduz o conceito de identificação projetiva no campo da Psicanálise. Ela se refere ao ato de colocar para fora, no outro, afetos que não podem ser suportados no interior do aparelho psíquico. Esse mecanismo é inconsciente, e o emissor não reconhece que o que foi projetado para dentro do outro lhe pertence. Esse tipo de mecanismo intrapsíquico tem consequências reais para a relação intersubjetiva, pois o objeto externo pode reagir ao comportamento estranho do sujeito em relação a ele, reafirmando sua fantasia. No início, esse conceito foi concebido como apenas um mecanismo de defesa com repercussões intrapsíquicas, no entanto, rapidamente, a Psicanálise começou a entendê-lo como uma possibilidade de comunicação com o outro, com o intuito de provocar sentimentos no outro para se fazer compreender. Um dos psicanalistas que mais trabalhou com essas formas de comunicações rudimentares foi Bion, mostrando que a criança é capaz de se relacionar com o mundo externo, por meio da mediação realizada pela mãe, a qual funciona como um continente que acolhe e traduz os conteúdos assustadores que a criança projeta, e depois os devolve para ela se responsabilizar por seus conteúdos. É possível inferir que esse campo da comunicação não verbal inaugurado na relação mãe-bebê se mantém nos relacionamentos adultos. No trabalho terapêutico, assim como na relação da mãe com o bebê, o ideal é que o analista consiga receber essas identificações, elaborá-las e devolvê-las ao outro, para que este possa reconhecer, cada vez mais, seus sentimentos e dar sentido a eles. Assim, o analista usa seu próprio pensamento para dar continência e sentido ao afeto recebido, ao invés de reagir emocionalmente. Trazendo esses conceitos elaborados por Klein e Bion para o campo do trabalho dos cuidadores de idosos, podemos pensar que um idoso fragilizado pode estar sobrecarregado com sentimentos assustadores e projetá-los nos outros. Por sua vez, o cuidador é chamado a fazer um trabalho psíquico parecido com o da mãe/continente, acolher e dar sentido a esses sentimentos, sem reagir a eles. A relação entre cuidador, idoso, família e instituição é extremamente complexa e singular, contudo, 583


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podemos propor um ângulo de análise no qual o idoso coloca o cuidador num lugar de suposto saber e de depositário dos recursos que não se acha mais capaz de exercer. Por um lado, o cuidador pode cair na armadilha de tomar para si esse lugar de saber sobre o outro, de decidir por um idoso que se vê numa posição passiva de receber. Ao olharmos mais de perto, é possível perceber que a potência do cuidador se encontra intrinsecamente ligada à passividade e assujeitamento do idoso e, dessa forma, não seria do interesse desse cuidador, o qual se encontra narcisicamente nutrido por tal lugar de potência, fortalecer a autonomia do idoso. Por outro lado, o cuidador, assim como um analista que recebe um novo paciente, precisa minimamente aceitar ocupar essa posição de suposto saber para, num segundo momento, se deslocar desse lugar e ajudar o idoso a redescobrir em si os recursos que necessitou provisoriamente projetar no outro. Os conceitos psicanalíticos de transferência, contratransferência e identificação projetiva revelam um aspecto do conceito de “intersubjetividade” intrapsíquica, formulado por Coelho Júnior et al.14, presente na relação de cuidado. Isso significa que, quando nos relacionamos com alguém, não estamos nos relacionando com um sujeito integrado e unidimensional, mas com um sujeito povoado de “outros”, de objetos, histórias e identificações do passado, os quais se fazem constantemente presentes nas relações intersubjetivas atuais. Podemos, assim, imaginar um encontro de um sujeito habitado por múltiplos “outros” com outro sujeito igualmente “múltiplo”. Esse encontro com aspectos multifacetados de cada um requer compreensão e cuidado. Fica claro que o trabalho de cuidar gera muito estresse, principalmente quando os idosos se encontram em situação de grande sofrimento, de dor crônica ou perdas cognitivas. Oliveira16, em pesquisa realizada com familiares que cuidavam de idosos com Alzheimer, constatou que essa relação gerava tensão, exaustão e estresse no cuidador. As familiares (em grande número, filhas que cuidavam dos pais) relatavam sentir compaixão, ao se identificarem com a situação difícil pela qual passava o idoso, além de certa satisfação em poder retribuir o cuidado que um dia receberam. Por outro lado, sentimentos ambíguos se alternavam frente às situações cotidianas, como: raiva, impaciência, solidão, vergonha, frustração e medo. Expressaram dificuldade em manter o autocontrole, no processo do cuidado, com respeito a sentimentos tão intensos. Em outro cenário, em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), Barbieri17 reflete acerca do cuidado oferecido por cuidadores profissionais dentro de um enquadre institucional. A instituição asilar, por motivos históricos, é compreendida como um lugar de caridade que oferece ajuda aos idosos, os quais são vistos como abandonados, apesar de pagarem mensalidades pelos serviços prestados. A autora discute como essa marca histórica estabelece uma relação desigual entre idoso e cuidador, entre o necessitado e o homem piedoso. Nesse caso, o cuidado não é sentido como um campo intersubjetivo de mútuo reconhecimento, porém, como um campo coercitivo em que um exerce o poder sobre o outro, tanto o cuidador sobre o idoso quanto o idoso sobre o cuidador, e a instituição sobre ambos. Para a autora, a relação de assimetria entre quem cuida e quem é cuidado não equivale a uma relação de desigualdade, mas se refere ao encontro em que um demanda ajuda e o outro quer ajudar. Em teoria, essa relação com lugares distintos não pressuporia uma hierarquia de poderes. Todavia, na prática, os cuidadores priorizavam um modelo de cuidado técnico que não abria um campo para o reconhecimento do idoso como um sujeito capaz e potente. Cuidadores relataram ter uma relação de “amor” com os idosos, a qual estaria além da relação profissional, porém, sem nenhuma perspectiva de reconhecimento da alteridade. A proximidade com a velhice fragilizada provoca reações de apego ao idoso ou de afastamento relacionadas à transferência de sentimentos de relações vividas anteriormente. Os profissionais assinalaram que é preciso se cuidar para não fazer confusões e estabelecer a mesma relação que estabelecem com um familiar lembrado por aquele idoso. Além disso, enfatizaram sofrer agressões físicas e verbais, mas, dentro do contexto institucional, conseguiram dar um sentido para essas vivências como sendo parte da condição do trabalho, de maneira a não retaliarem ou se abaterem pessoalmente com o ocorrido. Neste ponto, podemos fazer uma breve reflexão acerca de como é estar numa relação intersubjetiva com um idoso acometido de perdas cognitivas e, assim, incapaz de identificar o dentro e o fora, o Eu e o outro. Um idoso confuso impõe aos outros reviverem, repetidamente, situações 584

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intrapsíquicas, as quais podem não estar diretamente ligadas à realidade compartilhada. Nesse sentido, o cuidador necessita fazer um grande esforço para se situar dentro da realidade psíquica do paciente, que está sendo exteriorizada, de sorte a significar seus comportamentos de outra forma, já que não estão diretamente ligados à relação intersubjetiva vivida no presente. Pensando nas matrizes de intersubjetividade7, podemos inferir que, nesse momento, o cuidador precisa estar disposto a participar de uma relação intersubjetiva transubjetiva, na qual partilha com o outro um campo de indiferenciação e os impactos que essa vivência acarreta, em ambas as subjetividades.

O outro como alteridade radical: o (des)encontro traumático Muitas teorias têm dado importância à alteridade nos processos de constituição do Eu, valorizando estudos sobre as formas intersubjetivas de comunicação. A noção de intersubjetividade, tomada como capacidade de estabelecer inferências sobre intenções e sentimentos de outros, envolve a capacidade de “leitura” de estados mentais alheios. Essa noção, que, de alguma maneira, nos remete ao conceito de empatia, abre um campo interessante para a reflexão de todo tipo de relacionamento humano. Nessa linha, Lévinas, filósofo do século XX, que foi discípulo de Husserl e estudioso da obra de Heidegger, traz um ponto de vista peculiar, a propósito da presença do outro como simultaneamente constitutiva e traumática. Salienta que há algo no outro que me interpela e impõe uma responsabilidade. O rosto do outro expõe sua vulnerabilidade e pede cuidado (n)um dizer mudo. O encontro com a alteridade radical do outro, a eleidade, o outro do outro, o ele do tu, o que vem do outro e não é assimilável ao eu-mesmo se faz sempre presente. Assim, a relação com outra pessoa sempre ultrapassará nossa compreensão e nossa capacidade de assimilação. Haverá sempre um excesso que me ultrapassa, pois não tem como ser transformado em algo semelhante a mim e assim ser assimilado. O pensamento de Lévinas nos coloca uma questão ética que, resumidamente, poderia ser entendida como o outro precedendo o Eu e o constituindo e traumatizando simultaneamente, com sua presença que impõe uma diferença. O contato com a alteridade pode trazer dor e sofrimento, impondo transformação ao Eu e esforço para lidar com essa alteridade. Não há uma plena adaptabilidade entre Eu e outro, sua presença engendra uma experiência traumática7. Em face dessas proposições, é possível retornar à Psicanálise para refletir acerca da relação Eu/ outro marcada pelo desamparo original. Por meio de seu grito, o bebê convoca o outro a atender às suas necessidades. Esse socorro se dá como uma “ajuda estrangeira”, já que um desconhecido próximo irá ajudar – a figura materna –, a qual pode ser sentida como um objeto hostil, quando não consegue satisfazer o bebê e como um objeto bom e potente capaz de satisfazer parcialmente suas necessidades18. Essa alternância entre presença e ausência permitirá, ao bebê, desenvolver uma capacidade de espera e um pensar que se tornará, ao longo de múltiplas experiências, um Eu capaz de cuidar de si e do outro. A presença do outro para a Psicanálise também pode ser compreendida como traumática, visto que a mãe invade o bebê com sua sexualidade, expectativas e afetos, com sua alteridade radical e incompreensível. Fica claro que somos afetados pelo outro para além do que conseguimos representar sobre quem ele é. O outro inquietante desaloja o sujeito do conhecido, promovendo um desassossego. Assim, viver eticamente seria constantemente retomar essa abertura e possibilidade de afetação pelo outro, deixando-se desfazer; deixar-se afetar pelo sofrimento alheio e pelo desconhecido, o qual promove um trabalho de constante transformação de si. Trazendo a reflexão sobre a matriz de intersubjetividade traumática para o campo do cuidado de idosos, vemo-nos diante de uma questão ética, porque reconhecer o outro na sua alteridade radical implica que um saber total sobre o outro nunca é possível. Desse modo, uma relação de respeito pressupõe uma abertura para o contato, escuta, descoberta do diferente do que eu sou, domino e conheço. Manter-se constantemente nessa posição de abertura e acolhimento do diferente é uma tarefa árdua, já que exige uma constante transformação do Eu. Não obstante, entre uma posição de constante abertura e uma de constante fechamento – na qual o outro seria reduzido ao que eu já sei e ao que eu conheço e imagino dele – existe um grande espectro de formas de relacionamentos intersubjetivos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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que envolvem reconhecer ou não o outro como um sujeito portador de saber sobre si. Abrir um espaço para o idoso falar de si e participar da atividade de cuidado proporciona um campo de encontro intersubjetivo, no qual pode expressar sua subjetividade, e o cuidador se transformar para oferecer um cuidado singular que contemple as demandas e limites daquela relação que é única. Tanto o cuidador – com sua bagagem sobre o que é cuidar e envelhecer, como sua história pessoal – pode “traumatizar” o idoso, no sentido de impactá-lo e produzir efeitos na sua subjetividade, quanto o idoso, com suas vivências, também “traumatiza” o cuidador, o qual precisa lidar com excitações que podem estar exacerbadas e não encontram outros objetos, além do cuidador, para ganhar contorno e sentido.

Considerações finais De acordo com Almeida e Ribeiro Júnior19, para Heidegger, o cuidado é próprio da existência humana, em todas as suas esferas, pois apresenta três dimensões: sorge (cuidar de si), fürsorge (cuidar de alguém) e besorgen (cuidar de algo). Inspirados pela filosofia levinasiana, pensam num tipo de prática de profissionais de saúde não tocado pela alteridade, em que o profissional vê, no outro, uma extensão de si. Sem levar em conta a alteridade do outro e ser afetado pelo encontro com ela, não é possível oferecer um cuidado ético, pois um agir responsável faz referência ao encontro da liberdade do profissional, no limite dado pela subjetividade do outro. Assim, para Lévinas,20 o registro ético é anterior ao psíquico, uma vez que o outro antecede o Eu. A ética se configura como uma relação Eu-Outro, na qual o elemento que constitui a definição do sujeito ético é constituído pelo outro, e não pelo Eu. Com isso, o Eu é implicado pelo outro, desde seus primórdios, e a subjetividade tem sua origem fora do Eu. Para a Psicanálise, o outro também tem extrema importância na constituição do Eu, por meio do cuidado do bebê desamparado e da transmissão da cultura, por intermédio da linguagem. É possível pensar que, quando atingimos a idade adulta, nós nos sentimos relativamente autônomos, livres e independentes do cuidado do outro, porém, com o envelhecimento, a situação de dependência, desamparo e cuidado retorna e será determinada pela qualidade de experiências de cuidado anteriores. A compreensão da relação entre idosos e cuidadores como um ato de amor e sacrifício, como um favor, um ato de bondade, traz implicações éticas de quem exerce essa função, profissional ou informalmente, assim como para quem depende desse tipo de serviço. Por questões culturais ligadas à caridade, é possível entender que quem fica no lugar de cuidador, pode, mesmo sem pensá-lo conscientemente, buscar um reconhecimento social que viria por meio do assujeitamento do outro, colocando o velho que perdeu aspectos funcionais no lugar de incapaz e dependente. O conceito de empatia de Ferenczi9 nos chama a atenção para o semelhante no outro, para uma possível identificação com a situação de sofrimento que nos permite oferecer um cuidado baseado autenticamente na necessidade e vontade comunicada pelo idoso. Já o conceito de identificação projetiva de Klein nos joga no campo das trocas inconscientes, no qual o idoso pode depositar conteúdos relacionados a sentimentos de medo e agressão no cuidador, criando situações paranoides que quebram a confiança na relação, assim como o cuidador pode se ver tomado pelas emoções despertadas por tais projeções e reagir de forma veemente, alimentando uma relação de agressão e medo. Já Lévinas20 dá relevância ao aspecto traumático de toda relação, pois o contato com a alteridade sempre terá uma parcela “estranha” que nos forçará a nos deslocarmos de um lugar conhecido e confortável. Seja pelo ângulo da empatia, seja pelo do trauma ou do entrelaçamento das emoções intrassubjetivas presentes na relação do cuidado, o objetivo deste trabalho foi promover um questionamento acerca da complexidade dessa relação. A situação de fragilidade dos idosos dependentes e o pouco respaldo encontrado pelos cuidadores para exercer a função de cuidar trazem grandes implicações éticas a todos nós, visto que, em algum momento, podemos nos encontrar nessa situação de ser cuidado ou cuidar de alguém e, aí sim, ficaremos mais atentos para que essa situação de cuidado seja múltipla, respeitando todos os aspectos envolvidos numa complexa relação intersubjetiva. 586

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Colaboradores Ambos os autores participaram da discussão dos resultados e estão de acordo com a versão final do texto. Referências 1. Kuchemann A. Envelhecimento populacional, cuidado e cidadania: velhos dilemas e novos desafios. Rev Soc Estado. 2012; 27(1):165-80. 2. Karsh UM. Idosos dependentes: famílias e cuidadores. Cad Saúde Pública. 2003; 19(3):861-6. 3. Caldas C. Envelhecimento com dependência: responsabilidades e demandas da família. Cad Saude Publica. 2003; 19(3):773-81. 4. Goldfarb D. Velhices fragilizadas: espaços e ações preventivas. São Paulo: Editora PUC-SESC; 2006. Velhices: reflexões contemporâneas; p. 73-86 5. Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário de psicanálise, São Paulo: Martins Fontes; 2001. 6. Varella D. O médico doente. São Paulo: Companhia das Letras; 2007. 7. Coelho Júnior N, Figueiredo LC. Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade. Interações. 2004; 9(17):9-28. 8. Freud S. La iniciación del tratamento. Madrid: Biblioteca Nueva; 1913. Obras completas de Sigmund Freud, v. 2, p. 1564-70. 9. Ferenczi S. A técnica psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes; 1992. Obras completas, v. 2, p. 407-20. 10. Freud S. Psicoterapia da histeria. Rio de Janeiro: Imago; 2006. Obras completas, ESB, v. 2, p. 181-217. 11. Freud S. A dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago; 1912/2006. Obras completas, v. 12, p. 129-43. 12. Freud S. As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. São Paulo: Companhia das letras; 1910/2013. Obras completas, v. 9, p. 287-301. 13. Freud S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. São Paulo: Companhia das letras; 1912/2010. Obras completas, v.10, p. 147-62. 14. Coelho Júnior N. Ferenczi e a experiência da Einfühlung. Ágora. 2004; 7(1):73-85. 15. Klein M. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. Rio de Janeiro: Imago; 1985. Inveja e gratidão; p. 17-43. 16. Oliveira A, Caldana R. As repercussões do cuidado na vida do cuidador familiar do idoso com demência de Alzheimer. Saude Soc. 2012; 21(3):675-85. 17. Barbieri N. O dom e a técnica: cuidado de velhos asilados [dissertação]. São Paulo (SP): Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo; 2008. 18. Schneider M. A proximidade em Lévinas e o Nebenmensh freudiano. Cad Subj. 1997; 5(1):71-90. 19. Almeida D, Ribeiro Júnior N. Ética, alteridade e saúde: o cuidado como compaixão solidária. Bioethikos. 2010; 4(3):337-42. 20. Lévinas, E. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Den Haag, Netherlands: M. Nijhoff; 1974.

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O CUIDADO DE IDOSOS COMO UM CAMPO INTERSUBJETIVO: ...

Cherix K, Coelho Júnior NE. El cuidado de ancianos como un campo intersubjetivo: reflexiones éticas. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):579-88. El objetivo de este artículo es ampliar la reflexión sobre el cuidado a los ancianos, teniendo como telón de fondo el texto “Figuras de la intersubjetividad en la construcción subjetiva: dimensiones de la alteridad”, publicado en 2004 por Nelson Coelho Júnior y Luís Cláudio Figueiredo. Por medio de una articulación de los conceptos de empatía, en Ferenczi, identificación proyectiva, en Klein, y alteridad radical, en Lévinas, pretendemos mostrar cómo las contribuciones del campo del sicoanálisis y de la filosofía permiten un cuestionamiento de la noción de cuidado como vinculada a la caridad y al amor que pueden traer consigo una sumisión por parte del anciano. En contrapartida, proponemos una comprensión del cuidado, en la cual el anciano y el cuidador se encuentran en una relación intersubjetiva multi-facetada que implica tensiones y posibilidades de transformación sin nunca perder el horizonte ético en el que ambos son respetados en sus idiosincrasias y diferencias.

Palabras clave: Ancianos. Cuidado. Envejecimiento. Sicoanálisis. Ética.

Submetido em 19/07/15. Aprovado em 01/08/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0420

artigos

Sentidos atribuídos à integralidade: entre o que é preconizado e vivido na equipe multidisciplinar

Marcos Valério Santos da Silva(a) Gilza Brena Nonato Miranda(b) Marcieni Ataíde de Andrade(c)

Silva MVS, Miranda GBN, Andrade MA. Diverse meanings of comprehensiveness: between the presupposed and the experienced in a multi-disciplinary team. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):589-99.

The aim of this paper is to discuss the practitioners’ view about icomprehensiveness in health. This study is part of a Masters’ degree qualitative dissertation, held in Belém, Pará, in the period from june to august 2015. Most participants attributed the meaning of comprehensiveness in health as “a holistic view of the being,” and were able to see the relationship between comprehensiveness and multidisciplinary approach. There is the need to deepen the knowledge of the principles of Brazilian National Health System (SUS) even during training, to accomplish more effective health actions.

Keywords: Compehensive health. Primary health care. Family health strategy.

O objetivo deste artigo é discutir como os profissionais elaboram suas concepções acerca dos termos “integralidade” e “abordagem multidisciplinar” que estão presentes em seu dia a dia. Trata-se do recorte de uma dissertação de mestrado de natureza qualitativa, realizada no município de Belém-Pará, no período de junho a agosto de 2015. A maioria dos participantes atribuiu, à integralidade, o significado de “ver o ser como um todo”, e conseguiram visualizar a relação desta com a abordagem multidisciplinar. Observamos a necessidade de aprofundarmos o conhecimento sobre os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), e ainda durante a formação, para realizarmos ações de saúde mais efetivas.

Palavras-chave: Integralidade em saúde. Atenção primária à saúde. Estratégia saúde da família. (a,c) Programa de PósGraduação em Saúde Ambiente e Sociedade da Amazônia, Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Pará. Belém, PA, Brasil. marcossilva@ufpa.br; marcieni@ufpa.br (b) Fisioterapeuta. Belém, PA, Brasil. gilzabrena@hotmail.com

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SENTIDOS ATRIBUÍDOS À INTEGRALIDADE: ...

Introdução O que é integralidade? Poderíamos dizer, numa primeira aproximação, que é uma das diretrizes básicas do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela constituição de 1988. De fato, o texto constitucional não utiliza a expressão integralidade; ele fala em “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”1. Neste contexto, a Lei 8080 de 19 de setembro de 1990, conhecida como lei orgânica da saúde, define o termo como “integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”2. Mas o termo integralidade tem sido utilizado correntemente para designar exatamente essa diretriz. Diríamos que a integralidade não é apenas uma diretriz do SUS definida constitucionalmente. Ela é uma ‘bandeira de luta’, parte de uma ‘imagem objetivo’, um enunciado de certas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas, que são consideradas, por alguns, desejáveis. Ela tenta falar de um conjunto de valores pelos quais vale lutar, pois se relacionam a um ideal de uma sociedade mais justa e mais solidária. Integralidade, no contexto da luta do movimento sanitário, parece ser assim: uma noção amálgama, prenhe de sentidos3. Além disso, a integralidade da saúde pode assumir diferentes sentidos: primeiro, quando está relacionado à busca do profissional e do serviço em compreender o conjunto de necessidades de ações e serviços de saúde que um usuário apresenta; segundo, relacionado à organização dos serviços e práticas de saúde, voltado à articulação entre assistência e práticas de saúde pública, tendo, na disciplina de epidemiologia, o apoio para apreender necessidades de saúde da população; e terceiro, relativo à definição de políticas, representando respostas governamentais a problemas de saúde específicos4. De acordo com Fracolli et al.5, a palavra integralidade encontra-se no discurso propagado por organismos internacionais, ligado às ideias de Atenção Primária à Saúde (APS) e de promoção de saúde. Mais recentemente, esta palavra tem sido encontrada nas propostas de programas do Ministério da Saúde em nosso país e nas críticas e proposições sobre a assistência à saúde por parte de alguns acadêmicos brasileiros. Essa ampla utilização da palavra integralidade talvez explique ainda, mesmo que parcialmente, a clara escassez bibliográfca sobre o tema. A integralidade emerge como um princípio de organização contínua do processo de trabalho nos serviços de saúde, especialmente na questão da abordagem multidisciplinar, que se caracterizaria pela busca, também contínua, de ampliar as possibilidades de apreensão das necessidades de saúde de um grupo populacional. Ampliação que não pode ser feita sem que se assuma uma perspectiva de diálogo entre os diferentes sujeitos e entre seus diferentes modos de perceber as necessidades de serviços de saúde. Nessa perspectiva, Pinheiro e Luz6 afirmam que as instituições de saúde assumem papel estratégico na absorção dos conhecimentos, de novas formas de agir e produzir integralidade em saúde, esta entendida aqui como uma ação social que resulta da interação democrática entre os atores no cotidiano de suas práticas na oferta do cuidado de saúde; na medida em que reúnem, no mesmo espaço, diferentes perspectivas e interesses de distintos atores sociais, caracterizando, assim, a abordagem multidisciplinar. Consideramos, portanto, as instituições de saúde um lócus privilegiado de observação e de análise dos elementos constitutivos do princípio institucional da integralidade, seja quanto às práticas terapêuticas prestadas aos indivíduos, seja nas práticas de saúde difundidas na coletividade, concretizando a proposta da multidisciplinaridade. Diante disso, observamos que a estruturação do trabalho em saúde em equipes multidisciplinares no Brasil remonta à década de 1970, quando o serviço já era organizado com a presença de profissionais com diferentes formações e níveis de escolaridade. No entanto, após a criação do SUS e, sobretudo, após a ampla difusão da Estratégia Saúde da Família (ESF) ocorrida na última década, a equipe multidisiciplinar deixou de ser um mero aspecto do organograma do setor e passou a ser um ponto estruturante do trabalho em equipe multiprofissional7. A importância da abordagem multidisciplinar na ESF é ressaltada, sobretudo, pelo aspecto de integralidade nos cuidados de saúde. Considerada um dos princípios doutrinários do SUS, a integralidade 590

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reveste-se, no decorrer dos anos 1990, e, especialmente, nesse início de século, de uma importância estratégica ímpar para a consolidação de um novo modelo de atenção à saúde no Brasil. Para alguns autores, deve ser pensada como uma imagem-objetivo, portanto, polissêmica, com variados sentidos8. Diante disso, observa-se a necessidade de se discutir como os profissionais elaboram suas concepções acerca dos termos ‘integralidade’ e ‘abordagem multidisciplinar’ que estão presentes em seu dia a dia, uma vez que, a partir desses conceitos, eles devem fundamentar suas práticas em saúde.

Método Trata-se do recorte de uma dissertação de mestrado, de natureza qualitativa, realizada no período de junho a agosto de 2015, em uma equipe de ESF e um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) de um dos distritos administrativos do município de Belém-Pará. O distrito pesquisado está entre os mais populosos da cidade, e uma parte significativa da população dessa área é de baixa renda. Historicamente, marcado por uma ocupação rápida e desordenada, possui altos índices de pobreza, mas também abriga importantes órgãos e serviços. Este distrito constitui importante desafio para as equipes que nele atuam. A equipe de ESF estudada, pertencente ao distrito em questão, é composta por duas equipes (equipe 1 e equipe 2), ambas constituídas pelos profissionais: médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS), que atuam de segunda à sexta-feira e desenvolvem ações direcionadas à população adscrita, prestando atendimento em todo o ciclo de vida. A equipe de NASF foi instituída em abril de 2014, sendo composta por: terapeuta ocupacional, assistente social, fisioterapeuta, psicólogo, educador físico e fonoaudiólogo, e dá suporte a seis estratégias do referido distrito do município de Belém; desenvolvendo ações como: grupos de terapias multidisciplinares e de atividades físicas, atendimentos individuais ou compartilhados ou visitas domiciliares, além de reuniões de matriciamento e/ou de equipe do NASF. A pesquisa apresentou uma fase inicial caracterizada pela observação participante, a fim de familiarizar a pesquisadora à realidade a ser estudada. Segundo Whyte9, a observação participante supõe a interação pesquisador/pesquisado. As informações que obtém, as respostas que são dadas às suas indagações, dependerão do seu comportamento e das relações que desenvolve com o grupo estudado. Ela implica ainda saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como que perguntas fazer na hora certa, cujos dados devem ser registrados em documentos ou diário de campo. O processo de observação aconteceu durante toda fase do estudo, no entanto, se deu de forma mais aguçada no início da pesquisa, quando a pesquisadora precisou estar mais atenta aos detalhes da rotina para se adaptar ao ambiente e aos participantes do estudo. Os registros foram feitos em um diário de campo contendo: as principais impressões, observações, reflexões, e demais aspectos gerais da pesquisa, que permitiram conhecer mais a realidade vivenciada pelos serviços de saúde e os diferentes atores que o compõem, fundamentais para o prosseguimento das demais etapas do estudo. Após essa etapa, ocorreu a aplicação das entrevistas de fato. Foram entrevistados todos os sujeitos integrantes da equipe de ESF e NASF selecionadas para o estudo, que estavam presentes no período da coleta e aceitaram participar voluntariamente da pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), compondo um total de 16 participantes, caracterizados de acordo com uma numeração, identificados como ‘trabalhador 1’, ‘trabalhador 2’, e assim por diante, para resguardar o sigilo da fonte. Inicialmente, fazia-se uma abordagem breve para apresentar a pesquisa de um modo geral, em seguida, o participante realizava a leitura do TCLE, esclarecia suas dúvidas e consentia ou não em participar assinando o termo. Posteriormente, era preenchido o roteiro sobre o perfil acadêmico e profissional dos sujeitos, e, por fim, era realizada, de fato a entrevista estrutural semidirigida, conforme o roteiro previamente elaborado, testado e adaptado; com posterior leitura do instrumento pela pesquisadora e gravação das respostas em um aparelho gravador de voz, para transcrição e análise do material. Todas as falas foram gravadas e transcritas, e, posteriormente, lidas e categorizadas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A análise de dados foi feita com base na lógica proposta por Bardin10 de análise de conteúdo, que segue três fases: pré-análise, que é a fase da organização propriamente dita; exploração do material, caracterizada pela aplicação sistemática das decisões tomadas; e tratamento dos resultados, no qual os resultados brutos são tratados de maneira a serem significativos e válidos. Este estudo foi realizado segundo os preceitos da Declaração de Helsinque e do Código de Nuremberg, respeitadas as Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Conselho Nacional de Saúde (Res. CNS 466/12), após o aceite da Instituição envolvida na pesquisa e após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Pará.

Resultados e discussão A visão integral do ser humano Quando interrogados a respeito do que representa o termo ‘integralidade’ no contexto do SUS, a maioria dos entrevistados relacionou este princípio à visão integral do ser humano, como ilustra a fala do Trabalhador 1: “Atendimento universal, atendendo a pessoa na sua integridade física, mental e social”. Mas também foi mencionada a questão da integralidade na perspectiva da articulação dos serviços, conforme observamos na fala do trabalhador a seguir: “Integralidade... a integralidade do SUS é a unificação, é a parceria das ESF’s com as Unidades Básicas de Saúde (UBS’s) até chegar no nível máximo que são os hospitais, isso que acho que é agrupação que é integralidade” (Trabalhador 4). Ambas as opiniões dos profissionais acima citadas demonstram haver um conhecimento a respeito do tema abordado, ainda que de forma reducionista, tendo em vista ser a integralidade um princípio ético-normativo bastante complexo dentro da abordagem teórica e da literatura, que permite diferentes interpretações dependendo do contexto ao qual é aplicada, sendo também amplamente aplicada na própria legislação do SUS e nas práticas dos serviços de saúde. De acordo com Mattos3, alguns sentidos podem ser atribuídos ao termo integralidade. O primeiro deles estaria relacionado à integralidade como um traço da boa medicina, ou seja, não deixar de lado todo o causal de conhecimento sobre as doenças que tem permitido tanto à medicina como à saúde pública alguns significativos sucessos, mas, sim, fazer uso desse conhecimento de forma prudente, sobretudo guiado por uma visão abrangente das necessidades dos sujeitos que tratamos. A abertura dos profissionais para outros aspectos que não aqueles diretamente ligados à doença – como a simples necessidade da conversa – também ilustra a integralidade. Podemos, facilmente, reconhecer que as expectativas dos que buscam serviços de saúde não se reduzem à perspectiva de abolir o sofrimento gerado por uma doença ou de evitar tal sofrimento. Buscar compreender o conjunto de dimensões que compõe um ser humano e social seria, assim, a marca maior desse sentido da integralidade. Tal sentido, apresentado por Mattos3, corrobora bem a opinião emitida pelo trabalhador 1, na medida em que preconiza justamente essa visão integral do usuário inserido no seu contexto social, com suas vontades, dores e sofrimentos, e tudo aquilo que contempla o complexo campo da saúde e da qualidade de vida dos indivíduos e populações.

Organização das práticas em saúde De acordo com Mattos3, outra interpretação do termo estaria relacionada à integralidade como modo de organizar as práticas, em que não é aceitável que os serviços de saúde estejam organizados exclusivamente para responder às doenças de uma população, embora eles devam responder a tais doenças. Os serviços devem estar organizados para realizar uma compreensão ampliada das necessidades da população que atendem. Esta ideia ratifica bem a fala do Trabalhador 4 supracitada, tomando por base o sentido de integralidade como uma forma de articulação dos serviços da rede para garantir acesso e resolutividade frente às questões de saúde dos cidadãos-usuários.

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Entenda-se, aqui, o conceito de acesso na perspectiva da acessibilidade trazida por Donabedian, que, segundo Travassos e Martins11, o definem como um dos aspectos da oferta de serviços relativo à capacidade de produzir serviços e de responder às necessidades de saúde de uma determinada população. Por outro lado, para Turrini et al.12, a resolutividade envolve aspectos relativos: à demanda, à satisfação do cliente, às tecnologias dos serviços de saúde, à existência de um sistema de referência preestabelecido, à acessibilidade dos serviços, à formação dos recursos humanos, às necessidades de saúde da população, à adesão ao tratamento, aos aspectos culturais e socioeconômicos da clientela, entre outros.

A configuração de políticas especiais Outro conjunto de sentidos do princípio de integralidade é relativo às configurações de certas políticas específicas, chamadas de políticas especiais. São políticas especificamente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde, ou aos problemas de saúde que afligem certo grupo populacional. Poderíamos falar que esse terceiro conjunto de sentidos da integralidade trata de atributos das respostas governamentais a certos problemas de saúde, ou às necessidades de certos grupos específicos3. Essa última ideia apresentada por Mattos3 é mais raramente relacionada ao conceito de integralidade por parte dos profissionais. No entanto, o Trabalhador 12 expressou bem esse pensamento como mostra sua fala: “Bom a integralidade pelo que eu entendo ela tem alguns níveis assim; então o primeiro que eu entendo é que quando a gente recebe uma demanda, a gente tem que entender todo todo... tudo que compõe o ser humano, é... seu contexto, seu ambiente, e também as questões relacionadas ao próprio período de desenvolvimento, tudo que envolve compõe mente, corpo, e daí entendo que por isso só uma profissão não tem como abranger toda essa necessidade de toda essa dimensão, então nesse primeiro nível eu entendo a integralidade enquanto entender esse sujeito de forma biopsicossocial; e no nível de assistência eu entendo que a integralidade, o próprio SUS, o próprio sistema ele é organizado por várias linhas de cuidado, por vários programas, que incluem todo o ciclo de vida das pessoas, então eu entendo que se uma pessoa assistida pelo sistema público de saúde, ele deve ser acompanhado em todos esses níveis, desde quando ele nascer até o envelhecimento, então eu entendo também integralidade no sentido de... dessa continuidade que o usuário ele pode se inserir no nível de atenção no SUS, só que dependendo da necessidade ele vai pra outros níveis de atenção, só que é necessário um diálogo entre esses níveis pra que ocorra essa integralidade de fato”.

Vale ressaltar que o trabalhador 12, cuja opinião foi acima mencionada, demonstrou uma compreensão mais completa acerca do tema da integralidade. Este profissional, por sua vez, em seu perfil profissional e acadêmico, apresentou como diferencial uma expressiva vivência na área de ESF, demonstrando a importância da formação voltada para APS em contraponto ao currículo ainda voltado para as especialidades. Nesta perspectiva, Nogueira13 afirma que o desafio de tornar as práticas de saúde mais eficazes requer um posicionamento crítico frente aos obstáculos inerentes à própria racionalidade biomédica que limitam a prática clínica. Tanto o reducionismo organicista quanto a fragmentação do conhecimento em especialidades terminaram por configurar uma medicina ocidental altamente tecnológica, muitas vezes incapaz de abordar com sucesso a complexidade do adoecimento. Para a formação de profissionais de saúde capazes de atuar de forma mais integral e humanizada, torna-se imprescindível problematizar algumas concepções, em especial, as de saúde e doença. Importante também conhecer o processo de construção dos modelos terapêuticos utilizados, para que se possa historicizá-los e, consequentemente, desnaturalizá-los.

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Neste contexto, Ceccim14 ressalta algumas iniciativas, como: o Programa de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-saúde) e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) e, ainda, o AprenderSUS, enquanto mecanismos para estabelecer relações de cooperação do SUS com os diferentes atores da educação, tendo como principal objetivo fortalecer sua capacidade de ação e proposição em relação aos movimentos de mudança na formação; enfatizando uma formação mais voltada para as demandas sociais do SUS.

A articulação entre os diferentes saberes Em relação ao tema da multidisciplinaridade, a maioria dos entrevistados demonstrou ter conhecimento dos aspectos que perpassam esta premissa, reconhecendo a importância da articulação dos diferentes saberes que compõem a rotina da equipe multidisciplinar no intuito de estabelecer o melhor atendimento ao cliente-usuário. “O trabalho multidisciplinar envolve vários... envolve vários profissionais de diferentes áreas na esfera do SUS, são dois tipos: um que é a ESF que é a família saudável, que envolve mais o enfermeiro, o médico e os ACS’s; e em apoio o NASF, no caso, essa integralidade se volta com seis profissionais diferente desse; integralidade no sentido de cada um na sua área contribuindo de maneira diferente mas complementar”. (Trabalhador 1)

De acordo com Gomes et al.7, a estruturação do trabalho em saúde em equipes multidisciplinares no Brasil remonta à década de 1970, quando o serviço já era organizado com a presença de profissionais com diferentes formações e níveis de escolaridade. No entanto, após a criação do SUS e, sobretudo, após a ampla difusão da ESF ocorrida na última década, a equipe multidisciplinar deixou de ser um mero aspecto do organograma do setor e passou a ser um ponto estruturante do trabalho em equipe. Para Viegas15, em sua pesquisa de doutorado na qual ela acompanhou e entrevistou diferentes equipes de ESF em Minas Gerais acerca do tema da integralidade, ficou constatado que o trabalho em equipe representa um dos principais pilares para uma assistência integral e equânime na saúde. Assim, uma abordagem integral dos indivíduos/famílias pode ser facilitada pela soma de olhares dos distintos profissionais que compõem as equipes de saúde da família e favorecer uma ação multidisciplinar. Verificou ainda que atender as necessidades dos usuários pressupõe empenho da equipe de ESF na resolução dos problemas de saúde de suas famílias. Sem o trabalho em equipe, não será possível implementar o modelo de atenção que acolhe, que escuta as pessoas, ou seja, voltado a resolver os problemas de saúde das pessoas e da comunidade. Segundo um estudo de Pereira16 sobre o trabalho multidisciplinar em uma ESF do Rio de Janeiro, verificou-se que a formação de equipes de saúde é compreendida como forma de atingir o cuidado integral, tanto no sentido de dar conta dos aspectos curativos, preventivos e de reabilitação, quanto em relação à noção de ultrapassar a intervenção biomédica, focada na realização de procedimentos; e, dessa maneira, conseguir visualizar o sujeito em seu contexto. Sendo assim, qualquer que seja a motivação principal, cada vez mais, se constata a limitação da abordagem uniprofissional sobre o processo saúde-doença. Observou-se, no referido estudo acima citado, que existe o reconhecimento da interdependência e complementaridade das ações de outros profissionais para melhorar a qualidade da assistência, como: no controle e tratamento da hipertensão e diabetes mellitus; ou, então, no manejo da dor crônica, assim como no tratamento e reabilitação psicossocial, bem como na atenção aos transtornos alimentares, entre outras condições de adoecimento. Dessa forma, é necessário que o trabalho em equipe seja norteado por um processo assistencial comum, e que os agentes desenvolvam uma ação de interação entre si e com a comunidade. Para tanto, é imprescindível o desenvolvimento de uma prática comunicativa orientada para o entendimento mútuo, e, assim, vislumbrar obter um maior impacto sobre os diferentes fatores que interferem no processo saúde-doença16. No estudo de Bonaldi et al.17 sobre o trabalho em equipe como dispositivo de integralidade em quatro localidades brasileiras, constatou-se que a orquestração do trabalho em equipe multidisciplinar 594

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é resultante: dessa composição de forças, saberes e práticas, da harmonização das atuações profissionais, da afirmação das diferenças e do reconhecimento do saber do outro para a realização do trabalho. A orquestração do trabalho em saúde se baseia numa espécie de ‘humildade epistemológica’, no reconhecimento de que os diferentes saberes profissionais possuem zonas de incultura, e que a presença de trabalhadores com diferentes formações e funções permite reduzi-las. O sentimento de que os diferentes trabalhadores são fundamentais para a realização do serviço reforça a noção de pertencimento à equipe de saúde, produzindo outra forma de comprometimento que rompe as fronteiras de seu saber específico ou de um campo de atuação definido. O trabalhador entende que o cuidado não se restringe a sua ação e que ele é um dos responsáveis pelo serviço, tal qual o músico numa orquestra que, mesmo com o instrumento de sonoridade mais discreta, ou aquele cuja participação se limita a alguns movimentos, se sente como parte fundamental para execução e obra executada17. Esta constatação de Bonaldi et al.17 reflete bem a concepção do conceito de multidisciplinaridade, enquanto articulação de diferentes saberes e práticas envolvidos numa complexa lógica, que envolve não somente e meramente a justaposição de profissões, mas, também, preconiza diálogos, tensões, conflitos, embates, consensos e tudo aquilo que permeia o universo do trabalho em equipe na sua essência; convidando os membros dessa equipe a participarem de forma ativa e contínua na construção dos caminhos e superação de desafios que contemplem a melhor assistência ao usuário agregada à satisfação dos trabalhadores nesse processo.

A inter-relação entre integralidade e trabalho multiprofissional Quando interrogados a respeito da associação entre os termos ‘integralidade’ e ‘abordagem multidisciplinar’, a maioria dos trabalhadores concorda que ambos se relacionam na perspectiva de articular os diferentes saberes e práticas dos profissionais que compõem a equipe, para garantir um atendimento mais integral aos indivíduos, conforme ilustram as falas a seguir: “Tem que ter (a relação), por exemplo, no nosso trabalho aqui porque um se vincula ao outro, o ACS ao técnico, o técnico ao enfermeiro, o enfermeiro ao médico, e assim forma uma roda, um se... fazendo a rede, compondo a integralidade”. (Trabalhador 3) “Acredito que muita relação, porque assim pra você poder dar aquela atenção integral ao paciente mesmo, não é um único profissional que vai poder abarcar toda essa... esse cuidado que o paciente precisa, é necessário para que tenha uma saúde integral, é necessário que haja uma correlação entre as diversas áreas; da medicina, não só a medicina... da saúde, não só da saúde como de humanas também para que possa ali “tá” proporcionando essa atenção, então está intimamente relacionada assim multidisciplinaridade com integralidade, acredito eu”. (Trabalhador 14)

Todavia, alguns entrevistados visualizam essa relação sob um aspecto apenas, restringindo os significados de ambos os termos. “Tem, total (relação). Essa integralidade vê a pessoa como um sujeito inteiro. Essa integralidade vem dizer que a pessoa não é só fisicamente adoecida, mas socialmente, emocionalmente, e essa integralidade faz com que seja um trabalho completo; e essa complementação ela tende a ser uma forma mais satisfatória de ver a pessoa como um ser humano”. (Trabalhador 1)

Um dos participantes demonstrou certa confusão ao tentar fazer associação entre integralidade e abordagem multidisciplinar. “Eu acredito que (sinalizou negativamente com a cabeça)... porque a integralidade eu vejo assim como o sistema em si, o sistema todo integrado, pra resolver o problema daquele

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paciente, e a equipe multidisciplinar, eu acho que ela tem muito a ver também porque ela ajuda nesse sentido, não sei se é mais ou menos isso”. (Trabalhador 7)

Neste sentido, vale reiterar a discussão sobre a complexidade do termo integralidade no contexto das políticas e programas do SUS, que nos remete a uma diversidade de interpretações fundamentalmente necessárias de serem compreendidas, a fim de garantir o bom funcionamento do sistema, bem como para pôr em prática aquilo que preconizam os princípios e diretrizes do próprio SUS. Diante disso, Teixeira18 afirma que a problemática da integralidade tem como fundamento as distintas concepções acerca dos determinantes do processo saúde-doença, bem como da reorganização das práticas, dos serviços e do próprio sistema de saúde. Ela aponta diferentes interpretações acerca do termo: 1) ora privilegiam a dimensão micropolítica das relações entre profissionais de saúde, trabalhadores e usuários, ora privilegiam a dimensão organizacional do processo de trabalho, 2) trata sobre organização de ‘rede de serviços’, como forma de integração dos diversos ‘níveis de assistência’ a pessoas, 3) diz respeito à proposta de integração de práticas que extrapolam a dimensão individual do cuidado e abarcam a articulação entre promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos e atenção à saúde individual e coletiva, como é o caso da vigilância da saúde. A partir disso, podemos ter uma breve noção da complexidade do termo ‘integralidade’ nos diferentes contextos ao qual está inserida. De fato, uma única palavra ressignificada de diferentes formas pode gerar confusão de interpretações ou, mesmo, correr o risco de se tornar uma expressão subjetivamente vaga, ou, quem sabe, ainda pior, se direcionar a outros sentidos, desvirtuando-se do propósito inicial para o qual foi concebida. Mas a discussão trata, particularmente, do termo integralidade no sentido da micropolítica de trabalho no SUS, conforme Teixeira18. Neste aspecto, direciona-se o sentido do ‘ser integral’ para a abordagem multidisciplinar, do fazer coletivo no universo da multidisciplinaridade, por meio da articulação de saberes e práticas na tentativa de garantir, ao máximo, ao usuário, o seu direito à saúde, por meio da interação dos diferentes profissionais, cuja contribuição de cada um constitui a soma dos múltiplos olhares do ser humano, resultando no tratamento de fato do ser como um todo, visto a partir dos diversos campos de conhecimento. No entanto, Campos19 discute que, ainda que a equipe multidisciplinar seja recomendada como solução milagrosa para superar os problemas da fragmentação e da desresponsabilização decorrente da especialização excessiva dos profissionais, a simples implementação não garante que se alcance esse objetivo. Dois modelos de trabalho em equipe devem ser superados: um que se fundamenta no simples agrupamento de especialidades, a partir de uma articulação burocrática do trabalho, baseado em protocolos e programas normativos que tendem a fazer com que cada trabalhador se sinta responsável por fazer o que se restringe a sua área técnica; e outro, que se baliza numa falsa horizontalização em que “todos fariam tudo e ninguém seria pessoalmente responsável por nada em particular, já que a responsabilidade pelo projeto terapêutico seria sempre coletiva” (p. 248). Vale destacar aqui a fundamentação da pesquisa a partir do conceito apresentado por Pinheiro, Barros e Mattos20 em seu projeto intitulado “Integralidade: saberes e práticas no cotidiano das instituições de saúde”, no qual se analisaram os saberes e práticas gerados nos processos de trabalho em saúde, considerando a dimensão ética e sua interface com a noção de integralidade; propondo um entendimento do princípio da integralidade como valor coemergente às práticas cotidianas, as quais podem ou não apontar para integralidade, dependendo dos valores que circulam no cotidiano dos serviços e dos quais são abraçados, ou, ainda melhor, corporificados pelos profissionais; evidenciando a multidisciplinaridade como premissa fundamental da integralidade e de relevante importância. Em outras palavras, não basta apenas conceber a abordagem multidisciplinar a partir da simples composição de um variado leque de profissionais, cada qual agindo na sua área contribuindo para uma abordagem integral do usuário. Ou mesmo, resumir-se a um agrupamento de trabalhadores que ultrapassa os limites de atuação de cada um, em que todos seriam responsáveis por tudo. A questão é bem mais complexa e exige esforço diário e constante, quando se quer cumprir o que, de fato, propõe a prerrogativa da multidisciplinaridade.

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Diante disso, Peduzzi21 afirma que, para a equipe de saúde alcançar algum grau de integração, é preciso que seus componentes, cada um deles e todos de forma compartilhada, façam um investimento no sentido da articulação das ações. As ações de saúde não se articulam por si só, automaticamente, por estarem sendo executadas em uma situação comum de trabalho, na qual diferentes trabalhadores compartilham o mesmo espaço físico e a mesma clientela. A articulação requer que o profissional reconheça e coloque em evidência as conexões e os nexos existentes entre as intervenções realizadas – aquelas referidas ao seu próprio processo de trabalho e as ações executadas pelos demais integrantes da equipe. Em resumo, os enfrentamentos relativos às diferentes situações vivenciadas por cada equipe, com suas peculiaridades, requerem diálogo e um nível de abertura ao que lhe é diferente, na esperança de encontrar o melhor caminho, que consiga agregar os diversos conhecimentos disponíveis nessa atmosfera de trabalho, respeitando as individualidades e fazendo uso das diferenças como algo favorável no processo que envolve a busca da resolutividade dos conflitos da população pela qual são responsáveis. Neste sentido, recai ênfase na proposta trazida pela política nacional de educação permanente em saúde, enquanto ferramenta facilitadora de mudança desse processo, na medida em que busca aproximar a educação da vida cotidiana, como fruto do reconhecimento do potencial educativo da situação de trabalho. Em outros termos, mostrando que, no trabalho, também se aprende. A situação prevê transformar as situações diárias em aprendizagem, analisando, reflexivamente, os problemas da prática e valorizando o próprio processo de trabalho no seu contexto intrínseco. Esta perspectiva, centrada no processo de trabalho, não se limita a determinadas categorias profissionais, mas a toda a equipe, incluindo: médicos, enfermeiros, pessoal administrativo, professores, trabalhadores sociais e todas as variantes de atores que formam o grupo. Reforçando, portanto, a importância e os valores da diversidade de saberes no trabalho, na concepção dos diferentes atores envolvidos no processo 22.

Considerações finais Torna-se evidente a complexidade da discussão em torno do que, finalmente, representa o termo ‘integralidade’, em sua variedade de interpretações, ela nos permite refletir desde as práticas no cuidado, sobretudo ligada à abordagem multidisciplinar, até a articulação do sistema, bem como planejamento e execução de políticas de saúde. Por este motivo, deve ser amplamente debatida para que os profissionais percebam constantemente sua importância ao ser aplicada no dia a dia dos serviços ou sintam a diferença quando este princípio está ausente de tais contextos. Frequentemente, sob um ponto de vista reducionista, seguimos a tendência de visualizar integralidade como ‘atendimento integral à pessoa como um todo’, tal como foi bastante citado pelos sujeitos desta pesquisa, no entanto, precisamos considerar a diversidade do termo; de modo particular, ao tratarmos das práticas das equipes de saúde, cujas ações devem ser pautadas pelo princípio da integralidade na abordagem multidisciplinar, como sugerem os autores, fundamentando-se na articulação e diálogo de diferentes áreas do conhecimento para que se chegue a um objetivo comum: ofertar saúde de qualidade, de modo efetivo, com resolutividade e garantia de direitos aos cidadãos, conforme preconiza a própria legislação brasileira. Ainda que estes ideais residam no plano dos desafios a serem superados para efetivação de um SUS melhor para todos, torna-se evidente a necessidade de continuar a caminhar neste direcionamento, conscientes dos princípios que alicerçam esse sistema e regendo nossas ações, enquanto profissionais e equipes de saúde, com base em tais princípios; por meio de constantes capacitações, atualizações e aprimoramentos de um modo geral, com destaque para a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, que desponta como importante instrumento de reflexão das práticas em situações cotidianas dos serviços de saúde; além de várias outras ferramentas de mudança da mentalidade das coletividades, despertando-as para a abordagem multidisciplinar, que pode se iniciar ainda durante o processo de formação, pelas instituições de ensino.

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Colaboradores Gilza Brena Nonato Miranda: participou na concepção, discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Marcos Valério Santos da Silva: participou na discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Marcieni Ataíde de Andrade: participou da revisão e aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. 2. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. 3. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2009. p. 43-67. 4. Pinho LB, Kantorski LP, Saeki T, Duarte MLC, Sousa J. A integralidade no cuidado em saúde: um resgate de parte da produção científica da área. Rev Eletron Enferm. 2007; 9(3):835-46. 5. Fracolli LA, Zoboli ELP, Granja GF, Ermel RC. Conceito e prática da integralidade na Atenção Básica: a percepção das enfermeiras. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(5):1135-41. 6. Pinheiro R, Luz MT. Práticas eficazes x modelos ideais: ação e pensamento na construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2003. p. 7-34. 7. Gomes RS, Herbert F, Pinheiro R, Barros MEB. Integralidade como princípio ético e formativo: um ensaio sobre os valores éticos para estudos sobre o trabalho em equipe na saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2007. p. 19-36. 8. Araújo MBS, Rocha PM. Trabalho em equipe: um desafio para a consolidação da estratégia de saúde da família. Cienc Saude Colet. 2007; 12(2):455-64. 9. Whyte WF. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Tradução de Oliveira ML. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2005. 10. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 11. Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica. 2008; 20(2):5190-8. 12. Turrini RNT, Lebrão ML, Cesar CLG. Resolutividade dos serviços de saúde por inquérito domiciliar: percepção do usuário. Cad Saude Publica. 2008; 24(3):663-74. 13. Nogueira MI. Racionalidades médicas e formação em saúde: um caminho para a integralidade. In: Pinheiro R, Silva Junior AG. Por uma sociedade cuidadora. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2010. p. 101-114. 14. Ceccim RB. Educação dos profissionais de saúde e compromissos públicos com a integralidade: as disposições do AprenderSUS. In: Pinheiro R, Silva Junior AG. Por uma sociedade cuidadora. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2010. p. 131-154. 15. Viegas SMF. A integralidade no cotidiano da estratégia saúde da família em municípios do Vale do Jequitinhonha - Minas Gerais. Belo Horizonte - MG [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Enfermagem; 2010.

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16. Pereira RCA. O trabalho multiprofissional na estratégia saúde da família: estudo sobre modalidades de equipes [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2011. 17. Bonaldi C, Gomes RS, Louzada APF, Pinheiro R. O trabalho da equipe como dispositivo de integralidade: experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras. In: Pinheiro R, Mattos, RA. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO; 2007. p. 53-72. 18. Teixeira C. Os princípios do sistema único de saúde. In: Conferências Municipal e Estadual de Saúde; 2011; Salvador-BA. Salvador; 2011. 19. Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes de saúde. In: Merhy EE, Onoko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 229-66 20. Pinheiro R, Barros MEB, Mattos RA. Trabalho em equipe: a estratégia teórica e metodológica da pesquisa sobre integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, Barros MEB. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO; 2007. p. 208. 21. Peduzzi M. Trabalho em equipe de saúde no horizonte normativo da integralidade, do cuidado e da democratização das relações de trabalho. In: Pinheiro R, Mattos, RA, Barros MEB. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO; 2007. p. 161-77. 22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília, DF: SGTES; 2009.

Silva MVS, Miranda GBN, Andrade MA. Sentidos atribuidos a la integralidad: entre lo que se preconiza y lo que se vive en el equipo multi-disciplinario. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):589-99. El objetivo de este artículo es discutir sobre cómo los profesionales elaboran sus concepciones sobre los términos “integralidad” y abordaje multi-disciplinario” presentes en su cotidiano. Se trata del recorte de una disertación de maestría de naturaleza cualitativa, realizada en el municipio de Belém, estado de Pará, en el período de junio a agosto de 2015. La mayoría de los participantes atribuyó a la integralidad el significado de “ver al ser como un todo” y consiguieron observar su relación con el abordaje multidisciplinario. Observamos la necesidad de profundizar el conocimiento sobre los principios del Sistema Brasileño de Salud (SUS) y también durante la formación para que realicemos acciones de salud más efectivas.

Palabras clave: Integralidad en salud. Atención primaria a la salud. Estrategia salud de la familia.

Submetido em 09/05/16. Aprovado em 16/09/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0295

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Multiprofissionalidade e interprofissionalidade em uma residência hospitalar: o olhar de residentes e preceptores Thaise Anataly Maria de Araújo(a) Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos(b) Talitha Rodrigues Ribeiro Fernandes Pessoa(c) Franklin Delano Soares Forte(d)

Araújo TAM, Vasconcelos ACCP, Pessoa TRRF, Forte FDS. Multiprofessionality and interprofessionality in a hospital residence: preceptors and residents’ view. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):601-13. We sought to understand the perception of residents and preceptors regarding multiprofessionality and interprofessionality of a Multiprofessional Integrated Residence in Hospital Health. A qualitative approach study was carried out, involving focus groups as the data production strategy, using Bardin’s content analysis. Concepts of multiprofessionality and interprofessionality are still weak. However, tools have been listed that can assist in this realization to foster the collaborative work. There is confusion and duality in the recognition of the role of residents in practice scenarios. The preceptor is an important actor in Multiprofessional Residences in Health. Despite the perceived progress, the feasibility of interprofessionality is still a challenge to the health sector. In this context, continous educational processes based on interprofessional education, are strategic tools.

Keywords: Team work. Preceptorship. Interprofessional education. Interprofessional collaboration. Multiprofessional residence in healthcare.

Buscou-se compreender a percepção de residentes e preceptores sobre a multiprofissionalidade e a interprofissionalidade de uma Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Hospitalar. Foi realizado um estudo com abordagem qualitativa, envolvendo o grupo focal como estratégia de produção de dados, apreciados por meio da análise de conteúdo de Bardin. Na prática, os conceitos sobre multiprofissionalidade e interprofissionalidade ainda são fragilizados. Contudo, foram elencadas ferramentas que podem auxiliar nessa efetivação, inclusive, com vistas ao fomento do trabalho colaborativo. Há confusão e dualidade quanto ao (re)conhecimento do papel dos residentes nos cenários de prática. O preceptor consiste em um importante ator nas Residências Multiprofissionais em Saúde. Apesar dos avanços percebidos, a viabilização da interprofissionalidade ainda se configura como um desafio do setor saúde. Nesse contexto, os processos formativos contínuos, com base na educação interprofissional, constituem ferramentas estratégicas.

Palavras-chave: Trabalho em equipe. Preceptoria. Educação interprofissional. Colaboração interprofissional. Residência multiprofessional em saúde.

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Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Paraíba. Cidade Universitária, s/n, campus I, 2º andar do Centro de Ciências da Saúde, Castelo Branco I. João Pessoa, PB, Brasil. 58059-900. thaisearaujo_nutri@ yahoo.com.br; anacpeixoto@ uol.com.br (c,d) Departamento de Clínica e Odontologia Social, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Paraíba, campus universitário I. João Pessoa, PB, Brasil. talitha.ribeiro@ yahoo.com.br; franklinufpb@ gmail.com (a,b)

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Introdução A reordenação da formação, tanto na graduação como na pós-graduação, tem mobilizado reflexões sobre a necessidade do trabalho em equipe, de práticas colaborativas e da educação interprofissional (EIP)1,2. É neste contexto que se insere o desenvolvimento das Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS), consideradas alternativas importantes no cenário da formação e para o Sistema Único de Saúde (SUS). As RMS são pautadas em arcabouço teórico e pedagógico que corroboram os princípios e as diretrizes do SUS, associando o aprendizado à prática, de maneira a problematizar o modelo técnico-assistencial. Desta forma, vislumbra-se o ensino-serviço com enfoque na humanização da atenção e ampliação da compreensão da integralidade, ao passo que o processo de trabalho pode ser (re)construído no cotidiano do serviço3. Entretanto, a literatura aponta imprecisões quanto às definições de alguns termos4. Segundo Alvarenga et al.5, a fragmentação do cuidado é comum na multiprofissionalidade, a qual seria a justaposição de disciplinas distintas, em que os saberes especializados balizarão a atuação de cada profissional. Já a interprofissionalidade vincula-se: à noção do trabalho em equipe de saúde, marcado pela reflexão sobre os papéis profissionais, a resolução de problemas e a negociação nos processos decisórios, a partir da construção de conhecimentos, de forma dialógica e com respeito às singularidades e diferenças dos diversos núcleos de saberes e práticas profissionais6. Extrapolar o trabalho em equipe multiprofissional, para uma perspectiva de interprofissionalidade, reduz custos e melhora a produção do cuidado aos usuários7-13, especialmente em se tratando de situações de elevada complexidade, como são os casos das residências multiprofissionais hospitalares14. A Organização Mundial da Saúde (OMS)7 propôs a definição para a EIP: “É quando estudantes ou profissionais de dois ou mais cursos, ou núcleos profissionais, aprendem sobre os outros, com os outros e entre si”. Na conjuntura das RMS, a EIP constitui uma estratégia que oportuniza o desenvolvimento do trabalho coletivo efetivo, com o intento de otimizar a qualidade da atenção à saúde7,8,15. Assim, fortalecer a EIP favorece a implementação da prática colaborativa em saúde, uma vez que esta pressupõe a incorporação da experiência de profissionais de diversos núcleos do saber, estimulando a comunicação entre eles e a tomada de decisão, com vistas a consolidar a integralidade do cuidado10,11. Destaca-se, ainda, a importância do envolvimento de diferentes atores no processo, para além dos profissionais da área, o que amplia o escopo de atuação destes e as conquistas dos objetivos de saúde10. A OMS10 ainda aponta que as equipes de saúde de diferentes núcleos profissionais, que trabalham na perspectiva interprofissional, qualificam os serviços de saúde ofertados aos usuários, ao passo que há compreensão das habilidades dos membros que as compõem, assim como compartilhamento e gerenciamento dos casos. Deste modo, é possível considerar as seguintes potencialidades dessa forma de atuação: a) otimização das práticas e produtividade no ambiente de trabalho; b) melhoria dos resultados obtidos, mediante recuperação e segurança dos pacientes; c) ampliação da confiança dos trabalhadores da saúde; d) melhoria do acesso à assistência de saúde. A Residência Multiprofissional e a em Área Profissional da Saúde foram propostas em 200516 e devem ser desenvolvidas conforme as necessidades e realidades locais e regionais17. Nesse escopo, configura-se o cenário desta pesquisa: a Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Hospitalar (RIMUSH), vinculada a um centro de uma instituição de Ensino Superior do Nordeste do Brasil, dentro de um hospital universitário (HU). Nesse cenário de aprendizagem, o residente desenvolve suas competências, habilidades e conhecimentos, mediado por um preceptor. O preceptor, então, é o profissional da saúde que acompanha diretamente os residentes nos cenários e articula a prática ao conhecimento científico, sendo considerado um dos protagonistas do processo de ensino-aprendizagem das RMS18. A presente pesquisa visa refletir sobre a percepção de residentes e preceptores quanto ao trabalho multiprofissional e interprofissional, a partir de uma experiência de Residência Multiprofissional em Saúde Hospitalar, em uma capital do Nordeste do Brasil.

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Metodologia Trata-se de um estudo exploratório de natureza qualitativa19. A pesquisa foi desenvolvida em um hospital pertencente a uma Instituição de Ensino Superior que é referência no Estado, com residentes e preceptores (trabalhadores da saúde) das três ênfases que compõem a RIMUSH, distribuídas sob a forma de linhas de cuidado: Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente; Atenção à Saúde do Idoso; e Atenção ao Paciente Crítico. O desenvolvimento do currículo na RIMUSH engloba apresentação mensal de seminário integrador, abrangendo as três ênfases mencionadas. Tal atividade é pautada na vivência dos residentes; nos respectivos cenários de prática, incluindo o compartilhamento de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS); e no conhecimento acerca da rotina do serviço ou outros projetos que tenham sido desenvolvidos. Esta ferramenta educacional visa promover uma maior integração entre os residentes, divulgar as ações desenvolvidas e ampliar o debate orientado pela práxis. Além disso, no cronograma de atividades da residência, há programação para o desenvolvimento de tutorias, tanto por ênfase quanto por núcleo profissional, vislumbrando discussões e aprofundamento sobre temas vinculados ao que acontece na realidade vivenciada. Associados ao componente teórico da carga horária da residência, existem, ainda, os módulos transversais, cujas abrangências perpassam as três ênfases. Vale mencionar que, em todas as estratégias pedagógicas adotadas na RIMUSH, há preconização da utilização das metodologias ativas de ensino-aprendizagem. Os sujeitos voluntariados a participar do estudo foram os residentes da RIMUSH matriculados em seu segundo ano e os trabalhadores do hospital com experiência mínima de um ano como preceptores. Nesse sentido, foi utilizada a técnica de Grupo Focal (GF) como estratégia de produção de dados qualitativos, cujo desenvolvimento de entrevistas grupais mediadas por um facilitador está adequado aos estudos, visando entender: atitudes, preferências, necessidades e sentimentos, e aprofundando a compreensão sobre o tema em análise20. Foram realizados dois GF. Do primeiro – com duração aproximada de 55 minutos – participaram nove preceptores, pertencentes às três seguintes categorias profissionais: Enfermagem, Nutrição e Serviço Social. Já o segundo, incluiu 11 residentes, os quais dialogaram por 75 minutos. Nesse caso, foram cinco as categorias profissionais: Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia e Serviço Social. A condução do GF foi baseada no referencial de Stalmeijer et al.20. O roteiro dos GF pautou-se: na multiprofissionalidade, na interprofissionalidade, nos espaços da residência onde esses conceitos foram colocados em prática, e nas possíveis implicações do trabalho multiprofissional e interprofissional no cotidiano dos serviços e para a formação. Os GF foram gravados e, posteriormente, transcritos, na íntegra. Visando manter a privacidade e o sigilo da identidade dos atores envolvidos na pesquisa, adotou-se a nomeação ‘Grupo Focal P’ para preceptores, e ‘Grupo Focal R’, para residentes. A análise de conteúdo foi realizada seguindo o que preconiza Bardin21: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. Realizaram-se a pré-análise do material coletado e a leitura flutuante das transcrições. Em seguida, procedeu-se à exploração do material. A terceira e última fase foi a do tratamento dos resultados obtidos e interpretados. Foi observada a Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde22, e a pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa, obtendo parecer favorável (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética). Os sujeitos voluntários participaram do estudo após a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

Resultados e discussões Esta seção será apresentada com base em cinco categorias predefinidas e identificadas no decorrer do processo de análise: As dimensões da multiprofissionalidade e da interprofissionalidade; (Re)

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conhecendo o papel dos residentes multiprofissionais nos cenários de prática; A preceptoria no âmbito da RMS; Processo avaliativo na residência: desafios e conquistas; e As potencialidades da RMS no contexto do ensino-serviço.

As dimensões da multiprofissionalidade e da interprofissionalidade Extrapolar a lógica do trabalho uniprofissional, no Brasil, ainda é um desafio9. Neste contexto, a EIP tem um significado singular8, que reforça os ideários do SUS e aponta caminhos a serem trilhados por ela na formação em serviço, como é o caso das RMS. Trabalhar no mesmo ambiente e estar junto em uma atividade ou ação não significa efetivar a EIP. Assim, é muito importante adotar a interprofissionalidade como estratégia de trabalho e de formação, vislumbrando aonde se quer chegar e propondo passos a serem dados. O desafio é ainda maior ao se pensar em residência multiprofissional em ambiente hospitalar, onde a EIP vislumbra otimizar a assistência integral prestada ao usuário, por meio da promoção de processos de formação pautados na prática colaborativa8. “[...] quando a gente pode contar com uma equipe que tem vários núcleos profissionais, por si só, eu acho que isso é uma multiprofissionalidade [...]. Quando a gente consegue sentar essa equipe, de vários núcleos, para atender de forma sistemática, qualitativa, um usuário, e cada um vai contribuir [...] a gente atinge a interprofissionalidade”. (Grupo Focal P) “[...] multiprofissionalidade, o que se sobressai é aquela ideia de que ‘tão juntos, mas não constroem uma coisa juntos, de uma forma, é... horizontal [...]. Enquanto que o prefixo ‘inter’, ele é muito mais amplo, né?! [...] ele prescinde da participação de todos, [...] respeitando mesmo cada um”. (Grupo Focal R)

Os depoimentos corroboram a definição da interprofissionalidade, atuação preconizada pela RMS, que resulta na otimização do cuidado em saúde com vistas à saúde integral do usuário, por meio do trabalho interacional da equipe, todavia, considerando as especificidades dos núcleos profissionais4-9,23-25. A inserção dos residentes em um processo de trabalho já estabelecido, marcado pela acentuada multiprofissionalidade, torna-se muito mais desafiadora. Os preceptores se deparam com novas formas de aprender e ensinar, como, também, de trabalhar em saúde, e os residentes sentem dificuldade para o exercício do trabalho interprofissional. “[...] nós, residentes multiprofissionais, temos que levar a multiprofissionalidade pra o serviço, o que, na minha visão, deveria ser o contrário [...]”. (Grupo Focal R)

Embora discussões acerca da multiprofissionalidade e da interprofissionalidade venham se acentuando nos últimos anos, este movimento ainda se mostra gradual quando o panorama analisado passa a ser o componente prático. Em consonância com o explanado, as RMS emergiram como alternativas para favorecer o desenvolvimento de profissionais com habilidades para o trabalho em equipe13,25, pretendendo fomentar uma formação libertadora, pautada no trabalho vivo, vinculado às tecnologias leves que envolvem a saúde26. Os relatos dos residentes e preceptores mostram que, embora compreendam o conceito, a prática ainda é um desafio a ser perseguido. Reafirmam a lacuna entre o trabalho desenvolvido por equipes e o mero aglutinamento de profissionais, sendo imprescindível articular ações entre os núcleos para a efetivação da interprofissionalidade27. Às vezes, as equipes não atuam interprofissionalmente e ainda questionam a tentativa desse novo fazer.

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“[...] só que essa equipe multi, trabalhando, é cada um fazendo o seu, na sua caixinha, em todo momento”. (Grupo Focal R) “[...] mas os profissionais de todo lugar que a gente vai, [...] eles acham, às vezes, que a gente ‘tá querendo fugir da assistência, porque a gente ‘tá fazendo uma atividade [...] como é a nossa visita”. (Grupo Focal R)

Assim, a residência tem proporcionado não só a formação em serviço para os residentes, como, também, a reflexão sobre o processo de trabalho, da parte dos preceptores. Logo, visar à promoção da efetivação da EIP é favorecer um espaço de aprendizado coletivo para todos os envolvidos, incentivando a interação entre as disciplinas, mediadas pelo diálogo e pela cooperação entre os profissionais da saúde. A implementação da RMS tende a favorecer a reflexão sobre a reorganização do trabalho, potencializando as práticas colaborativas e suas implicações na atenção à saúde28. Por meio das metodologias ativas, os processos pedagógicos relacionam-se com a resolução de problemas de forma crítica e reflexiva29,30, no intuito de promover a interação entre os atores, com foco não só no aspecto cognitivo do conhecimento, mas, também, assumindo a necessidade do desenvolvimento de outras habilidades interpessoais e atitudes para o trabalho em equipe, compreendendo o processo de trabalho em saúde em grupo e a interprofissionalidade13,31. Assim, os sujeitos problematizam sua práxis, tornando-se capazes de transformá-la, e, ao mesmo tempo, transformarem a si mesmos30. Conforme relato dos grupos focais, as ferramentas que poderiam auxiliar na efetivação da multiprofissionalidade e da interprofissionalidade permeiam as metodologias interacionistas que fomentam a EIP, fazendo do processo ensino-aprendizagem algo prazeroso, estimulante e potencializador da prática crítico-reflexiva. Nessa esfera, o PTS é uma ferramenta de organização da gestão do cuidado em saúde, instituída entre as equipes que efetivam este cuidado. A partir do diálogo, os trabalhadores envolvidos compartilham saberes e práticas, e acompanham, de forma longitudinal, os casos32,33. Como o próprio nome ressalta, trata-se de uma discussão prospectiva sobre o caso, de forma não fragmentada e isolada, por núcleos profissionais, procurando responder às demandas do usuário34. “[...] que já entra outro conceito: de clínica ampliada, que é uma coisa que os residentes vêm trazendo pr’a gente [...]”. (Grupo Focal P) “[...] fizemos um PTS desse paciente e a gente botou a rede e o resultado, a equipe, sabe [...] realmente a gente trabalhou de forma multi e interprofissional”. (Grupo Focal R)

Tais questões perpassam o enfatizado por Reeves7, ao elencar diversos métodos de aprendizado que podem ser utilizados para o alcance da EIP: aprendizagem baseada em seminário; aprendizagem baseada em observação (shadowing); aprendizagem baseada em problemas; aprendizagem baseada em simulação; e aprendizagem baseada na prática clínica. Nesse âmbito, a discussão em pequenos grupos sobre o vivenciado, seja em espaços de tutoria ou na própria preceptoria de ênfase ou núcleo profissional, sobressai-se como estratégia educacional potente35, bem como o planejamento do conjunto de ações36. Isto implica a importância de se utilizarem vários dos métodos explicitados, pautando-os na complementaridade das especificidades profissionais e, assim, na qualificação e na integralidade à assistência prestada8. Entretanto, a utilização do PTS, por vezes, não foi acolhida pelos trabalhadores dos cenários de prática, sendo necessária, portanto, a Educação Permanente (EP) dos preceptores, no que diz respeito ao seu desenvolvimento docente, como, também, a discussão sobre a organização do processo de trabalho em saúde e as tecnologias que favoreçam o trabalho colaborativo e a EIP. Pesquisa realizada por Fernandes et al.37 também observou dificuldade no processo de trabalho com base na reprodução de práticas dos núcleos profissionais, isoladamente, distanciando-se dos preceitos da RMS. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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(Re)conhecendo o papel dos residentes multiprofissionais nos cenários de prática A elaboração dos programas de residência, geralmente, ocorre em meio a articulações com diversos atores, como gestores e trabalhadores da Rede de Atenção à Saúde (RAS), gestores acadêmicos e docentes38. No entanto, apesar desta configuração, o cuidado com a socialização das informações sobre as atividades da residência multiprofissional deve ser constante, no sentido de evitar fragilidades na inserção e no vínculo inicial dos residentes com os serviços, além de uma visão equivocada a respeito da RMS. Feuerwerker26 esclarece que, de fato, a residência pode ter enfoque meramente assistencial. Todavia, o intuito é que ela seja inventiva na esfera do desenvolvimento das tecnologias do cuidado e dos aspectos que a circundam. O entendimento de que o residente atuaria, simplesmente, compondo a equipe do cenário de prática, inclusive, contribuindo para preencher lacunas ligadas ao dimensionamento de pessoal, reflete as fragilidades que envolvem a gestão e a tímida apropriação da função dos residentes. Esta compreensão pode fomentar a uniprofissionalidade e o pouco entendimento quanto à inserção e ao papel dos residentes no contexto dos serviços de saúde. “[...] sim, mas vocês vão fazer o que, aqui? É... vocês vão conseguir vaga no HU pra, pros nossos pacientes? [...] o que esse povo vai querer fazer aqui? Num é estagiário, num quer assumir o serviço e ainda vem dando ideia. Que é isso?”. (Grupo Focal R)

Pesquisa realizada com enfermeiros e técnicos de enfermagem que acompanhavam o trabalho de residentes de enfermagem evidenciou, também, a dualidade ou confusão de entendimento sobre o residente: seria ele estudante ou profissional39? De fato, é preciso definir os papéis de cada ator na residência, inclusive, determinando suas atribuições e competências. Ante o exposto, faz-se premente a existência de discussões cotidianas sobre o arcabouço legal da RMS, vislumbrando-se, inclusive, a agregação de atores que possam ser multiplicadores de sua proposta e fomentadores de estratégias que intentem sua efetivação nos serviços da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Dessa forma, são necessários processos de pactuações com os trabalhadores do SUS envolvidos na residência e com gestores de serviços de saúde e de instâncias acadêmicas, para a elaboração da proposta da própria residência, bem como do desenvolvimento de EP para os preceptores37,39. A EIP insere-se como questão central nestes processos, que devem, inclusive, reiterar o papel das residências como transformadoras das práticas dos serviços. E, tendo em vista que os programas geralmente perpassam diversos cenários, esse movimento provocaria uma qualificação dos profissionais da RAS. Além disso, construir processos formativos que incluam os preceptores, possivelmente, refletirá na qualificação das discussões com os residentes e na melhoria de ambos nos cenários em que estiverem inseridos. Estes processos devem ser orientados pelo desenvolvimento de domínios por competência, com foco na EIP, no sentido de discutir habilidades, atitudes, valores, decisões, que estimulam a prática colaborativa do cuidado em saúde11,16. Contudo, avanços já foram conquistados e demonstram a possibilidade de mudanças expressivas nesse contexto, como a oferta do curso de preceptoria.

A preceptoria no âmbito da RMS O protagonismo do preceptor é de fundamental importância na RMS, uma vez que realiza a interlocução residente-serviço e potencializa as discussões e reflexões acerca das vivências, facilitando o processo de ensino-aprendizagem. Contudo, a integração ativa dos profissionais dos serviços, nesta perspectiva, ainda é um desafio, visto – entre outros aspectos – o frágil incentivo institucional, a extenuante jornada de trabalho e a oferta diminuta de desenvolvimento docente e formação de preceptoria38.

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Além disso, a atuação do preceptor pode assumir diversas configurações, causando dúvida, estranhamento e insegurança sobre qual seria o seu papel frente à RMS. Do ponto de vista do próprio preceptor, e também dos residentes, esta reflexão é feita e pode ser discutida, a partir de espaços de diálogo que favoreçam a construção conjunta. “[...] a gente tem uma dúvida assim: O que é ser preceptor? Preceptor é aquele que acompanha diretamente? Aquele que está longe? [...] nós estamos aprendendo a ser preceptor, né?! A gente ‘tá construindo isso”. (Grupo Focal P) “É aí onde vem aquela questão: preceptor de campo é aquele para a qual ele foi nomeado? Ou é aquele que, independente do seu núcleo específico, ele lhe dá um suporte?”. (Grupo Focal R)

Ressalta-se que, apesar da variedade de definições conferidas ao preceptor, o que não se pode perder de vista é o seu componente pedagógico dentro do processo educativo, seja enquanto fomentador da clínica ou facilitador de outros aspectos40. Também emerge das falas, em especial do último trecho exposto, uma reflexão conceitual quanto ao núcleo ou campo de atuação do preceptor, devendo-se esclarecer que o núcleo é a especificidade de determinada área do conhecimento, enquanto campo seria onde os profissionais desses núcleos atuam, apoiando-se para a resolutividade teórico-prática de suas demandas41. Na esfera das dificuldades para uma atuação eficaz desse ator, cabe ressaltar a questão do acúmulo de funções. “[...] eu acumulo diversas funções e que eu, muitas vezes, preciso está do lado do residente e eu não estou”. (Grupo Focal P)

Pesquisa realizada com preceptores apontou para o fato de a escassez de tempo representar uma expressiva fragilidade para o desempenho da preceptoria42. Diante das falas, infere-se o possível prejuízo que a sobrecarga de trabalho dos preceptores promove ao processo de formação dos profissionais envolvidos na residência28. Estudo sobre a interpreceptoria na Estratégia Saúde da Família, com profissionais de nível Superior28, constatou que os preceptores reconheceram as fragilidades de sua formação acadêmica, no tocante à interprofissionalidade28. Diante dessa demanda, houve a necessidade de alinhamento teórico na capacitação profissional, mesma característica exposta em pesquisa realizada por Barreto e Marco43, cujos preceptores indicaram a sua inserção em um movimento de EP com foco na educação na saúde. “[...] esses residentes vêm com ferramentas novas pra os preceptores, que até hoje nós ainda não temos o domínio. [...] por conta de oportunidade de um curso de preceptoria que foi ofertado, e que não abrangeu todos os preceptores”. (Grupo Focal P)

Fomentar a existência de EIP nas áreas social e da saúde faz-se primordial, uma vez que a aproximação dos profissionais com o ensino de cunho libertador ainda se encontra incipiente, e que esses profissionais necessitam conquistar domínios e habilidades que orientem o trabalho colaborativo, vislumbrando o cuidado integral7,44,45. Deve-se reconhecer que algumas ações nesse sentido vêm sendo desenvolvidas, entretanto, em número insuficiente e com poucos profissionais. Tal limitação pode relacionar-se à promoção da saída da zona de conforto no processo de trabalho implicada nesses espaços formativos e ao acúmulo de funções no ambiente de trabalho. “Quem é envolvido com a residência, que ‘tá procurando se capacitar, que ‘tá nos momentos de formação, às vezes, você não é bem visto pelo resto da equipe porque você vem provocar uma mudança de rotina”. (Grupo Focal P)

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Em pesquisa realizada por Jesus e Ribeiro46, os profissionais, após o processo de formação, consideraram-se instrumentalizados para uma atuação problematizadora no processo de trabalho. O mesmo ocorreu nos achados de Tracey e McGowan47, nos quais os preceptores sinalizaram a importância dos processos de atualização para a preceptoria. Reforça-se o protagonismo que o preceptor possui na RMS, já que é um dos ativadores da constante construção do conhecimento, mediando-o por meio de uma relação dialógica com o residente e requerendo, para tanto, aporte teórico-metodológico adequado18.

Processo avaliativo na residência: desafios e conquistas A RMS orienta suas avaliações nos preceitos das metodologias ativas de ensino-aprendizagem. Deve-se, pois, considerar a avaliação como um movimento complexo, que valoriza não somente os conhecimentos cognitivos, mas, também, os afetivos e os psicomotores inerentes a este tipo de método, bem como a relação com a capacidade de fazer e receber feedbacks48,49. Entretanto, o modelo tradicional de ensino ainda permeia os espaços de formação. Apesar do que se preconiza na residência, o processo avaliativo ainda constitui uma ação verticalizada, desempenhada com incipiente diálogo entre residentes e preceptores, bem como fragilizada no tocante à provocação de análise crítica e reflexiva sobre o processo vivenciado, ao deslocamento obtido e aos domínios e competências que precisam ser mais bem desenvolvidos pelo residente. “Seria melhor que fosse de mês em mês. Depende do tempo que ele passar... Uma vez ao mês, e assim você pode dizer o que pode melhorar e, no mês seguinte, poderia estar diferente... Só avaliação no final, pois eu tive que avaliar alguém que já tinha saído do cenário de prática... Avaliação deve ser construtiva, deve ser contínua”. (Grupo Focal P)

Nesse contexto, ampliar o diálogo na perspectiva da avaliação faz-se necessário, com vistas a provocar uma transformação na prática. Deste modo, o processo de trabalho na RMS passa a ser refletido, e o conhecimento construído significativamente, já que a transmissão deste não mais se constitui em modelo educacional recomendado50. Durante o GF, houve questionamento sobre os processos avaliativos, no escopo de como e quando estavam ocorrendo. Isto posto, foi possível verificar conquistas, além de reconhecer a necessidade de tais processos serem contínuos e construtivos. Ressalta-se a disponibilidade de diversas abordagens avaliativas, que possibilitam a construção de metas de aprendizagem e verificação do cumprimento dos objetivos de aprendizagem, antes, durante e depois do processo de vivência11. Assim sendo, aspectos quantitativos, quando extrapolados e com ênfase nas abordagens horizontais e participativas, contemplando as fragilidades e potencialidades percebidas nas experiências vivenciadas e no sentido de estimular a aprendizagem dos atores envolvidos, são elementos que podem ser angariados em processo avaliativo inovador, adequado aos preceitos da RMS51. Ainda nessas circunstâncias, a EIP pode exercer papel relevante na implementação de processos avaliativos, ao considerar elementos como o incentivo à transformação da cultura e procedimentos desempenhados pelos profissionais de saúde, que minimizem os entraves para o trabalho colaborativo e a aspiração pelo aperfeiçoamento da estrutura pedagógica, aspectos que implicam o deslocamento com vistas à qualificação dos preceptores e residentes10.

As potencialidades da RMS no contexto do ensino-serviço As questões apreendidas convergiram para a compreensão de que, isoladamente, os profissionais não conseguem prestar um cuidado qualificado, uma vez que os usuários e suas necessidades de saúde são dotados de complexidade, e, apenas a partir do diálogo entre os atores é que intervenções efetivas poderão se concretizar52. Nesse intuito, preceptores reconhecem, apesar dos desafios existentes, que a RMS incentiva a reorientação de práticas, com vistas à consecução dos princípios e diretrizes preconizados pelo SUS. 608

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“[...] a residência, [...] veio pra ajudar nesse ponto, em alguns momentos, trabalha com inter... quando a residência ‘tá lá sofrendo a influência dentro dos profissionais. Quando a residência se ausenta, a gente continua sendo multi”. (Grupo Focal P)

Nesse escopo, a inquietação se comporta como um elemento marcante, mediante as ações propositivas dos residentes, que suscitam uma onda de anseio por EP nos serviços, considerando-se, inclusive, que a tomada de decisão perpassa os núcleos, e, diante de seus limites, extrapola para a interprofissionalidade36,50. “Então, são projetos que é... incentiva até a gente que ‘tá na prática. Diz assim: ‘É possível fazer, né?!’ E eles [residentes] vêm auxiliando a mudança de paradigmas dentro de mim, entendeu?”. (Grupo Focal P)

Na perspectiva dos residentes, emergiram reflexões críticas quanto à potencialidade da residência como movimento de ensino-aprendizagem para si mesmos e, também, no cerne dos cenários de prática, embora a sua viabilização ainda exija mais envolvimento de seus atores. “E aí, com o feedback que a gente deu, né?! Porque isso também é muito bom, você parar depois que você faz e sentar com o profissional: ‘Olha, a gente fez e propôs isso assim, por causa disso, disso e disso’. E aí, elas puderam parar pra pensar: ‘É, realmente, a gente não tem esse momento de parar pra pensar na nossa prática e outras soluções para além daquilo que a gente já ‘tá acostumado’”. (Grupo Focal R)

Portanto, reafirma-se que a RMS constitui um espaço de (re)construção de conhecimento e de transformação de práticas, concebida de forma articulada às demandas do SUS, visto ser fundamental dispor de profissionais que atendam aos problemas de saúde dos usuários, a partir de abordagens mais abrangentes, para além das dimensões biológicas. No contexto hospitalar, esta questão fica ainda mais evidente, considerando o predomínio do modelo médico-centrado e da assistência pautada em procedimentos. Cabe aos profissionais envolvidos pela RMS refletirem, permanentemente, sobre as seguintes declarações e indagações: “Então, eu acho que envolver não só os residentes, os profissionais, mas os usuários desse processo, né?!, de entender o que... o que a residência é pro SUS? O que a residência pode fomentar? Em que sentido a integralidade pode ser vislumbrada, a partir dessa formação desses profissionais”. (Grupo Focal R)

Os resultados da presente pesquisa foram apresentados à coordenação da RIMUSH, no sentido de balizar processos de desenvolvimento docente para os preceptores, contemplando metodologias ativas, incluindo a avaliação formativa e a gestão do processo de trabalho em hospital. Ressalta-se que participaram dos GF residentes da turma do segundo ano e, na ocasião, o curso de formação de preceptores estava iniciando suas atividades. Outros estudos podem ser realizados, no que diz respeito à avaliação da residência, buscando identificar os desdobramentos e as repercussões gerados pela RIMUSH no hospital, além do impacto da capacitação de preceptores no processo ensinoaprendizagem na residência.

Considerações finais Entre os preceitos da RMS, está o fomento do trabalho multiprofissional e interprofissional, sendo necessária a apropriação teórica e prática dessas dimensões, por todos os atores envolvidos neste processo, vislumbrando, inclusive, a concretização de princípios e diretrizes do SUS. Percebe-se que o trabalho em saúde, na RAS, necessita de profissionais que compreendam a importância das práticas colaborativas na produção do cuidado em saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A percepção do preceptor sobre residência contemplou reflexões sobre o processo de trabalho estabelecido. A residência foi capaz de trazer ferramentas que potencializam o trabalho interprofissional e a integralidade do cuidado em saúde, em se tratando de atenção terciária, em um hospital-escola. Se, por um lado, trata-se de um grupo de residentes capacitados por meio de sua formação em serviço, por outro lado, há o trabalhador/preceptor também modificado, pela mobilização, para a práxis. Nessa perspectiva, compreender a percepção de preceptores e residentes constatou-se estratégico, uma vez que viabilizou a identificação de fragilidades e fortalezas, propulsores de movimentos de planejamento e reestruturação do(s) programa(s) de residência. Neste cenário, a EP emerge como uma dimensão fundamental, podendo ampliar o leque de desdobramentos favoráveis advindos da RMS. Os resultados deste estudo indicaram avanços e desafios relativos à multiprofissionalidade e à interprofissionalidade no âmbito de uma residência em saúde hospitalar.

Colaboradores Thaise Anataly Maria de Araújo participou da concepção e desenho do estudo, coleta e análise e interpretação dos dados, e participou ativamente da escrita e da revisão e aprovação final do trabalho. Ana Claudia Cavalcanti Peixoto de Vasconcelos, Talitha Rodrigues Ribeiro Fernandes Pessoa participaram da discussão dos resultados com os demais, escrita e revisão e aprovação final do trabalho. Franklin Delano Soares Forte participou da concepção e desenho do estudo, coleta, análise e interpretação dos dados, e participou ativamente da escrita e da revisão e aprovação final do trabalho. Referências 1. Interprofessional Education Collaborative Expert Panel. Core competencies for interprofessional collaborative practice: Report of an expert panel. Washington, D.C.: Interprofessional Education Collaborative; 2011. 2. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010; 376(9756):1923-58. 3. Bezerra TCA. Programa de residência multiprofissional em saúde: construção de um instrumento avaliativo [dissertação]. Recife: Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira; 2011. 4. Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, Silva JAM, Souza GC. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev Esc Enferm USP. 2013; 47(4):977-83. 5. Alvarenga JPO, Meira AB, Fontes WD, Xavier MMFB, Trajano FMP, Neto GC, et al. Multiprofissionalidade e interdisciplinaridade na formação em saúde: vivências de graduandos no estágio regional interprofissional. Rev Enferm UFPE. 2013; 7(10):5944-51. 6. Batista NA. Educação interprofissional em saúde: concepções e práticas. Cad FNEPAS. 2012; 2:25-8.

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Araújo TAM, Vasconcelos ACCP, Pessoa TRRF, Forte FDS. Multi-profesionalidad e inter-profesionalidad en una residencia hospitalaria: la mirada de residentes y preceptores. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):601-13. Se buscó comprender la percepción de residentes y preceptores sobre la multiprofesionalidad y la inter-profesionalidad de una Residencia Integrada Multi-profesional en Salud Hospitalaria. Se realizó un estudio con abordaje cualitativo, envolviendo al grupo de opinión como estrategia de producción de datos, analizados por medio del análisis de contenido de Bardin. En la práctica, los conceptos sobre multi-profesionalidad e interprofesionalidad todavía están fragilizados. No obstante, se enumeraron herramientas que pueden auxiliar en esa efectivación, incluso con el objetivo del fomento del trabajo colaborativo. Hay confusión y dualidad en relación al (re)conocimiento del papel de los residentes en los escenarios de práctica. El preceptor es un importante actor en las Residencias Multi-profesionales en Salud. A pesar de los avances percibidos, la viabilidad de la inter-profesionalidad todavía se configura como un desafío del sector salud. En ese contexto, los procesos formativos continuos, con base en la educación inter-profesional, constituyen herramientas estratégicas.

Palabras clave: Trabajo en equipo. Preceptoría. Educación inter-profesional. Colaboración inter-profesional. Residencia multi-profesional en salud.

Submetido em 18/04/16. Aprovado em 07/09/16.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0642

artigos

Ensaio sobre ‘cegueiras’: itinerário terapêutico e barreiras de acesso em assistência oftalmológica

Natalia Carvalho de Lima(a) Tatiana Wargas de Faria Baptista(b) Eliane Portes Vargas(c)

Lima NC, Baptista TWF, Vargas EP. Essay on ‘blind spots’: therapeutic itinerary and access barriers in eye care. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):615-27.

The paper deals with the barriers of access to specialized services in ophthalmology found in the therapeutic itinerary of patients from the Benjamin Constant Institute (IBC), in Rio de Janeiro, Brazil. The analysis was founded on theoretical and methodological frameworks of the social sciences and health, enabling to recognize the social dynamics that crisscross those itineraries. As methodological strategies we used analysis of official documents, surveys of healthcare in the state of Rio de Janeiro, interviews with patients and staff of IBC; participant observation. The study identified the following features: (1) illness and risk; (2) the paths that were followed; (3) the use of private services and family support; (4) discontinuities in and lack of comprehensiveness in public care (SUS); (5) the outstanding place of the points of view. The results show the itineraries and the barriers faced as a social and cultural construction bounded by material and symbolic conditions of the group under research.

O artigo trata das barreiras de acesso a serviços especializados em oftalmologia, a partir do itinerário terapêutico de pacientes assistidos no Instituto Benjamin Constant (IBC), no Rio de Janeiro, Brasil. Referenciais teóricos e metodológicos das ciências sociais e da saúde apoiaram a análise, possibilitando reconhecer as dinâmicas sociais que atravessam os itinerários. Foram estratégias metodológicas: análise de documentos oficiais, levantamento da assistência no estado do Rio de Janeiro, entrevistas com pacientes e funcionários do IBC; observação participante. O estudo possibilitou identificar as seguintes características do tema: (1) adoecimento e risco; (2) itinerários percorridos; (3) recurso aos serviços privados e apoio familiar; (4) assistência pública descontinuada e não orientada pela integralidade (SUS); (5) lugar destacado das óticas. Os resultados apontam os itinerários e barreiras encontrados como uma construção social e cultural delimitada pelas condições materiais e simbólicas do grupo da pesquisa.

Keywords: Therapeutic itinerary. Health services accessibility. Eye health. Ophthalmology. Delivery of health care.

Palavras-chave: Itinerário terapêutico. Acesso aos serviços de saúde. Saúde ocular. Oftalmologia. Assistência à saúde.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Doutoranda, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz). Avenida Leopoldo Bulhões, 1480, sala 715, 7º andar, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21041-210. cdlima.natalia@ gmail.com (b) Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. twargas@ ensp.fiocruz.br (b Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. epvargas@ioc.fiocruz.br

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Introdução A deficiência visual apresenta-se como um problema de saúde pública brasileiro invisível que, no entanto, faz-se presente internacionalmente. Diferentes saberes informam as construções teóricas e práticas relativas aos problemas relacionados com a visão e norteiam a atuação de especialistas e profissionais. A expressão ‘deficiência visual’, a partir de uma perspectiva biomédica, refere-se ao espectro que vai da cegueira total até a visão subnormal(d) ou baixa visão1. Entre a cegueira total e a baixa visão, estão situadas patologias como: miopia, astigmatismo, estrabismo, ambliopia, hipermetropia, que não constituem, necessariamente, deficiência visual, mas devem ser identificadas e tratadas o mais rápido possível2. Em outra perspectiva, há autores que abordam a cegueira como um evento que, ao atravessar as fronteiras disciplinares, encontra-se irremediavelmente relacionado com as concepções de corpo que prevalecem em uma dada sociedade3. Para Weid (2015), em nossa sociedade, determinado “corpo teórico-prático” orienta não só os especialistas, mas, também, os modos de estar no mundo de pessoas cegas, o que amplia a compreensão da cegueira para além da abordagem biomédica de deficiência. Nessa direção, cabe aprofundar os conhecimentos e práticas que informam as pessoas cegas em termos de percepções e habilidades para estar no mundo. No Brasil, o Censo Demográfico 2010 revelou que 23,9% da população total apresentava alguma deficiência visual e que, aproximadamente, 6 milhões de brasileiros declaravam grande dificuldade para enxergar4. O número de cegos estimado estava entre 0,4% e 0,5% da população, distribuídos de forma desigual pelo país. As principais causas da cegueira estavam associadas aos erros de refração, glaucoma, catarata e doenças da retina5. Estudos revelam que a busca por atendimento em oftalmologia ocorre, frequentemente, quando o indivíduo identifica dificuldades específicas, como: baixa visão ou cegueira, problemas de aprendizado, lesões e outros problemas considerados mais graves, inexistindo uma cultura de prevenção6,7. Mediante a magnitude do problema, observa-se que vários fatores interferem no desenvolvimento de práticas de cuidado e assistência ao deficiente visual. Estes se relacionam tanto à dificuldade de entendimento individual dos riscos da doença ocular quanto às suas possibilidades concretas de recuperação, incluindo: a existência de obstáculos para a realização do diagnóstico precoce, a ausência de ações preventivas e de organização de uma rede de atenção que garanta acesso nos diferentes níveis de atenção8. Corrobora, nesse cenário, o fato de a assistência oftalmológica ser uma área que exige tecnologia de alto custo e manutenção contínua, com profissionais especializados, procedimentos e terapia medicamentosa caros. Portanto, manter uma rede de atenção com assistência em todos os níveis é um investimento alto e, muitas vezes, de difícil concretização, o que resulta em barreiras de acesso significativas. Na trajetória das políticas públicas e de ações na área de saúde ocular, o Ministério da Saúde instituiu, em 2008, a Política Nacional de Atenção em Oftalmologia, com ações e estratégias de prevenção e promoção da saúde ocular para os três níveis de atenção à saúde. Essa Política apontou a necessidade de promover o atendimento integral em oftalmologia aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), com a organização de uma linha de cuidado prevista para perpassar todos os níveis da assistência, visando garantir a integralidade(e) da atenção à saúde9,10.

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Alteração da capacidade funcional decorrente de fatores como: o rebaixamento da acuidade visual, redução importante do campo visual e da sensibilidade aos contrastes e limitações de outras capacidades. (d)

Integralidade e linha de cuidado são conceitos que reforçam o sentido da organização e integração do sistema e dos serviços assistenciais, sendo referidos no contexto das políticas públicas como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema de saúde. (e)


Lima NC, Baptista TWF, Vargas EP

‘Paciente’ refere-se aos sujeitos, entrevistados na pesquisa, que buscam tratamento/ acompanhamento no IBC, sendo terminologia presente nos documentos institucionais e na fala de profissionais e usuários do serviço. ‘Usuário’, termo também acionado na pesquisa, emerge do diálogo com as análises críticas sobre a atenção em saúde. Este foi problematizado na cartilha da Política Nacional de Humanização (2010), e indicado como mais abrangente por englobar, além da pessoa em atendimento: o acompanhante e sua família, o trabalhador, o gerente da instituição e o gestor do sistema que usufruem do serviço/ sistema. A utilização dessas terminologias no artigo destaca a importância de se qualificar a discussão acerca do usuário e os direitos a ele associados no âmbito do sistema de saúde. (f)

artigos

Nessa proposta, o cuidado iniciaria na atenção básica por intermédio da promoção da saúde, da prevenção e de recuperação dos danos, bem como de ações clínicas voltadas ao controle das doenças oculares por meio das quais decorrem e/ou resultam as alterações oftalmológicas. Diretrizes de atenção à saúde ocular, como a definição do teste do olhinho, contribuem com a detecção precoce de doenças oculares na infância11. A atenção especializada seria responsável pela ação diagnóstica e terapêutica específica, de modo a garantir o acesso do usuário portador de doenças oftalmológicas aos procedimentos de média e alta complexidade, quando necessário. Alguns componentes da Política destacam-se: o acesso à assistência farmacêutica especializada, a recursos ópticos e não ópticos, e a outras ajudas técnicas disponibilizadas pelo SUS9. Todavia, a existência de portarias e pactuações no plano das políticas de saúde não, necessariamente, garante a existência de acesso universal e integral dos indivíduos com demandas oftalmológicas. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre barreiras de acesso a serviços de saúde públicos especializados em oftalmologia no estado do Rio de Janeiro, a partir do relato dos itinerários percorridos por pacientes(f) atendidos no Instituto Benjamin Constant (IBC), localizado na capital. O objetivo central do estudo foi abordar como se apresentam os obstáculos presentes na rede de atenção oftalmológica no estado do Rio de Janeiro, de modo a discutir as barreiras de acesso na atenção à saúde nessa área. Apresentaremos especificamente: os aspectos ligados à busca tardia do tratamento; as concepções relativas à doença e à percepção de risco; as invisibilidades em torno da oferta de serviços; o lugar destacado das óticas; o recurso à assistência privada e à família no apoio ao tratamento. Ao se considerar a complexidade desse tema e a impossibilidade de analisá-lo em sua totalidade, pretende-se, a partir do ponto de vista adotado, contribuir para a análise do modelo de atenção em oftalmologia, dando maior visibilidade para questões a serem aprofundadas no âmbito da saúde coletiva, considerando a relevância do problema. Almejamos descrever, em meio aos caminhos percorridos e narrados pelos pacientes, as alternativas e estratégias de enfrentamento do problema adotadas pelos indivíduos e famílias na obtenção do tratamento necessário.

Referenciais teórico-metodológicos do estudo O estudo beneficiou-se de referenciais teóricos e metodológicos que conjugam abordagens realizadas no campo das ciências sociais12 e da saúde coletiva13. Esses referenciais permitem considerar que não só as doenças, mas, também, os percursos trilhados em busca de assistência são expressão das dinâmicas sociais, e não restritos às experiências individuais. São, portanto, experiências coletivas na medida em que exprimem as desigualdades entre os diferentes grupos sociais14. Dois conceitos apoiaram a análise: acesso e itinerário terapêutico. Acesso aos serviços de saúde consiste em uma categoria abrangente que se refere à obtenção de assistência à saúde quando necessário, pressupondo uma porta de entrada de fácil reconhecimento pelo usuário. Contudo, ocorrem barreiras de acesso que impossibilitam a concretização do atendimento, como: a disponibilidade e a organização na oferta de serviços, considerando aspectos geográficos ligados à localização dos serviços disponíveis; aspectos financeiros

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que interferem tanto na busca do primeiro atendimento como na continuidade do tratamento; e aspectos socioculturais relacionados à percepção da doença e do próprio cuidado15. Já o conceito de itinerário terapêutico remete ao entendimento do percurso seguido pelos usuários na busca por atendimento. O itinerário terapêutico é determinado pelo curso de ações, planos e estratégias que têm como objetivo tratar as aflições. Conforme Rabello et al. (1999), os indivíduos e grupos sociais encontram diversas maneiras de resolver seus problemas de saúde. O itinerário não se restringe, portanto, apenas à disponibilidade dos serviços de saúde ou à utilização de métodos de cura, mas, também, abarca a compreensão do processo sociocultural implicado na escolha do tratamento16. A procura por cuidados tende a ser variada, complexa e diferenciada entre indivíduos e entre grupos, contendo as marcas que a delimitam como uma experiência cultural e como parte da dinâmica de uma determinada sociedade. Ela pode também variar entre episódios distintos de doença. No entanto, a procura por cuidados de saúde encontra-se sujeita a questionamentos repetidos a cada uma das etapas do processo de manutenção da saúde. De fato, a natureza e a sequência da procura por cuidados, bem como dos encaminhamentos, são determinadas por uma série de variáveis sociais e culturais, psicológicas e econômicas, como, também, de outras relativas ao sistema de saúde, que informam certo pertencimento sociocultural que repercute no acesso aos serviços. Ressalte-se que a procura de cuidados se encontra delimitada não apenas culturalmente em termos de atitudes, valores e ideologias, mas, também, pelos perfis da doença, assim como pelas condições materiais de existência e de acesso às tecnologias e recursos disponíveis14. Em estudos antropológicos, observa-se não haver modelo único para o itinerário, sendo estes construídos a partir de aspectos individuais, que são informados por representações socioculturais referentes à doença e aos próprios sistemas de cura, bem como por condições socioeconômicas e estruturais modeladoras do acesso12. Esses referenciais possibilitaram explorar os relatos daqueles que buscaram atendimento. Na perspectiva sociocultural, as escolhas e caminhos trilhados pelos usuários são pautados por: visões de mundo, interpretações e percepções sobre o processo de adoecimento e morte, representações sobre os serviços de saúde e sobre o cuidado. A disponibilidade de recursos também contribuirá no processo de escolha do indivíduo, em que ele irá reconhecer qual serviço de saúde pode atendê-lo dentro das suas possibilidades financeiras. Portanto, apenas considerando o indivíduo em sua rede de interações e seu contexto sociocultural se podem compreender as decisões por ele tomadas, isto é, a tentativa de solucionar seus problemas de saúde se inscreve no cotidiano, uma vez que o enfrentamento da doença dele faz parte12. Assim, assumimos, neste estudo, que o itinerário individual não é predeterminado, mas se norteia por uma experiência social e coletiva compartilhada em diferentes cenários da vida cotidiana. A construção do itinerário refere-se, também, a uma consciência de possibilidades disponíveis e, idealmente, acessíveis aos indivíduos. É no ato da escolha e tomada de decisão que o indivíduo começa a interpretar a situação na qual se encontra e idealizar as condições mais adequadas ao seu tratamento16. Trataremos, particularmente, neste estudo, dos itinerários percorridos por pacientes do IBC em busca de assistência oftalmológica. Suas aflições correspondem às alterações de visão percebidas, como: dificuldade para ler e enxergar, dor ocular, turvamento, e outras que levam os indivíduos a procurarem a assistência à saúde e/ou tratamento para uma doença ocular específica. Procuramos observar, nos sujeitos da pesquisa, como ocorreu o processo de escolha por atenção à saúde no IBC, e qual foi o caminho percorrido a partir da identificação do problema.

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Lima NC, Baptista TWF, Vargas EP

artigos

Campo e estratégias metodológicas O IBC é uma instituição pública, de referência nacional na área de deficiência visual, vinculado ao Ministério da Educação, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Suas principais atividades consistem na educação escolar de deficientes visuais e na oferta de assistência oftalmológica à comunidade. A prestação da assistência objetiva a formação de médicos oftalmologistas, priorizando o atendimento de casos de interesse às necessidades desta formação. O IBC não possui vínculo formal com o SUS, e as regras para acesso são definidas pelo próprio instituto, não levando em consideração o perfil de necessidades da população e as diretrizes da política de saúde. As condutas de assistência adotadas na instituição não garantem a integralidade do cuidado. O desembolso financeiro pelo paciente é uma prática, tanto para a realização de exames como para procedimentos cirúrgicos em continuidade aos tratamentos, e aquele que apresenta impossibilidade financeira para o pagamento poderá ficar desassistido. Assim, o IBC é um órgão público voltado ao atendimento da comunidade em diferentes níveis de complexidade, mas que não funciona na lógica do SUS, no qual a universalidade e a integralidade da atenção são preconizadas. A não integração do IBC ao sistema público de saúde, sendo este também um órgão público, confunde usuários, prestadores de serviço e profissionais, que buscam ou referenciam o IBC para obtenção de uma assistência de maior complexidade e encontram barreiras diversas de acesso. Foram adotadas as seguintes estratégias metodológicas no estudo: a) análise de documentos oficiais do IBC, da política nacional e estadual de saúde; b) levantamento de informações sobre a assistência oftalmológica no estado do Rio de Janeiro; c) entrevistas com pacientes e profissionais do Instituto. A observação participante atravessou todo o trabalho de campo e possibilitou um entendimento mais abrangente do IBC no contexto do sistema de saúde estadual. Essas estratégias conjugadas facilitaram a compreensão das barreiras de acesso existentes na assistência oftalmológica do estado do Rio de Janeiro, ainda que a assistência prestada no estado não tenha sido, particularmente, objeto de análise, sendo importante ressaltar, sobretudo, não ter sido o objetivo da pesquisa realizar uma avaliação do IBC. Os pacientes foram selecionados em dois setores: o ambulatorial e o das clínicas oftalmológicas de catarata, retina e glaucoma, por serem estas consideradas como as principais doenças oculares que atingem a população em todo o mundo. Nos casos em que os pacientes apresentaram algum dano na visão, saúde debilitada ou menor de idade, as entrevistas foram realizadas conjuntamente com o acompanhante. Foram abordados 21 pacientes e entrevistados 19. A idade dos entrevistados variou entre trinta e 84 anos, tendo apenas um entrevistado de oito anos (entrevista realizada com a mãe). No Quadro I, apresentamos dados dos entrevistados de modo a caracterizar o perfil dos que participaram da pesquisa. Dois profissionais atuantes na organização do acesso ao IBC também foram entrevistados com o objetivo de identificar as percepções acerca das demandas e as orientações e soluções adotadas com esses pacientes. O estudo atendeu às exigências do Comitê de Ética em Pesquisa. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram identificados com nomes fictícios.

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Quadro 1. Perfil dos pacientes entrevistados no Instituto Benjamin Constant (IBC) Entrevistados Idade Escolaridade Paulo

José Joana

84

Fundamental completo

69

Fundamental incompleto Fundamental completo

67

João

74

Lucia

64

Diego *relato pela mãe Luiza Eloisa

8

35

Carmem

70

Rui

75

Luiz

67

Judith

69

Marlene

71

Wanda

71

Ricardo

30

Carlos

78

Manoel

75

Orlando

62

Maria

67

Lourdes

53

Fundamental incompleto Fundamental completo Fundamental -cursando

Idade da Serviços Conhecimento Conhecimento Plano primeira oftalmológicos de serviços da doença e de consulta com próximos à oftalmológicos riscos Saúde oftalmologista residência do SUS Bangu 64 Conhece a Não Não Não doença, mas não os riscos Duque de 67 Sim Não Sim; clínica Não Caxias particular Santa Cruz 50 Não conhece Não Não Não a doença, mas acredita que pode ficar cega Duque de 50 Não Não Não Sim Caxias Realengo 40 Não Não Não Sim Local de residência

Irajá

Fundamental Guaratiba incompleto Fundamental Guadalupe incompleto Fundamental São João incompleto de Meriti Fundamental Piabetá completo Fundamental Vidigal incompleto

Fundamental incompleto Nunca frequentou escola Ensino Médio completo Superior completo Fundamental completo Ensino Médio completo Fundamental completo Ensino Médio incompleto

1

Sim

Não

Não

Sim

2

Sim

Não

Não

Sim

60

Sim

Não

Sim

55

Não

Não

Não, só clínica particular Não

62

Sim

Não

49

Não

Sim, clínica particular Não

Sim

Não, só clínica particular Não

Não

Realengo

Não lembra

Não sabe a doença mas acredita que pode ficar cega Sim

São João de Meriti

51

Sim

Não

Quintino

7

Não

Sim; Posto de Saúde

Sim

São Cristovão Sulacap

74

Sabe a doença, mas não sabe os riscos Não

Não

Não

Sim

44

Sim

Não

Não

Não

Paciência

42

Sim

Sim

Sim; Posto de Saúde

Sim

Campo Grande Campo Grande

64

Não

Não

Não sabe

Não

23

Não sabe a doença, mas acredita que pode desenvolver glaucoma

Não

Sim; clínicas conveniadas a óticas

Não

Fonte: Entrevistas com pacientes atendidos no IBC17.

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Não

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Não

Sim

Sim


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artigos

Itinerários terapêuticos e barreiras no acesso Faixa etária e prevenção: busca tardia pelo tratamento “[...] Desde que me entendo por gente eu tenho problema na vista, desconfiava na escola, mas antigamente não tinha condição de tratamento [...] só vim botar óculos depois de velha [...] Vim no oftalmologista assim mesmo porque foi da firma [...] aí viram que eu tinha problema na vista [...] aí botei meu primeiro óculos.” (Lourdes, 53 anos, moradora de Campo Grande)

A busca tardia por tratamento foi um primeiro aspecto que ‘saltou aos olhos’ no estudo. O primeiro atendimento oftalmológico, para a maioria dos entrevistados, ocorreu na faixa etária entre 40 e 65 anos, indicando uma busca tardia por atendimento e a ausência de cuidados preventivos na juventude. As exceções apresentaram-se para pacientes que, ainda na infância, reuniam alguma alteração ocular que comprometia a visão, e, sobretudo, as atividades escolares. Observamos que a procura por atendimento oftalmológico acontece, especialmente, se há alguma alteração ocular que inviabilize as atividades diárias, como a leitura, ou mostre-se visivelmente grave, com alterações no aspecto. Caso contrário, o indivíduo pode passar anos sem realizar qualquer consulta oftalmológica, não tendo sido observada a procura por atendimento oftalmológico como medida de prevenção. Esse dado converge com os estudos da área que indicam as dificuldades para a consolidação de uma política de cuidado18,19.

Concepções sobre a doença: desconhecimento e risco “[...] Diz eles se for catarata que a gente fica cego da noite pro dia, durmir enxergando e acordar cego, já pensou?! [...].” (Joana, 67 anos, moradora de Santa Cruz)

O desconhecimento dos pacientes quanto à doença diagnosticada também foi observado. A perda da visão, relatada por alguns pacientes como sendo um risco ao qual estariam expostos se a doença não fosse tratada, serviu de estímulo para buscar atendimento, ainda que, comumente, nas narrativas, o entendimento acerca da doença estivesse ausente. A preocupação com a perda da visão esteve muito presente, mas nenhum dos entrevistados recorreu a uma consulta oftalmológica como medida de prevenção. O desconhecimento da população sobre as doenças oculares e sobre os cuidados com a saúde ocular contribui para a busca tardia por atendimento e para o agravamento de quadros. Somam-se, a esse contexto, a escassa oferta de serviços e a dificuldade na disseminação de informações pelo sistema de saúde.

Serviços de saúde oftalmológicos: (in)visibilidades “[...] Nada, primeiro se tem clínica particular eu não posso pagar [...] o posto de saúde que me trato é lá na Sulacap, mas tem oftalmologista? Não, lá é só clínico geral, dermatologista, psiquiatra, tem tudo, mas oftalmologista não tem não [...].” (Marlene, 71 anos, moradora de Realengo)

O desconhecimento ou a constatação da ausência de serviços de saúde oftalmológicos públicos próximos à residência dos entrevistados foi um aspecto que possibilitou reunir pistas sobre como está organizada a rede de atenção à saúde em oftalmologia no estado do Rio de Janeiro. Entre os entrevistados, 13 participantes relataram não ter serviço público oftalmológico próximo da sua casa, e somente dois citaram haver posto de saúde. Clínicas particulares e óticas foram citadas por três entrevistados como opção para o atendimento. A percepção da inexistência de serviços é um dado que indica uma dificuldade para assistência nesse âmbito, e uma barreira no acesso aos que procuram ser atendidos nas proximidades do seu bairro. Além desta, foi possível identificar a dificuldade de conseguir o atendimento e de reconhecer locais para atendimento oftalmológico no estado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ENSAIO SOBRE ‘CEGUEIRAS’: ...

Por vezes, para utilizar serviços do SUS, é preciso se deslocar para bairros mais próximos, mas, no caso da oftalmologia, é ainda mais difícil. A proximidade de um serviço com a residência evitaria gastos com transporte e deslocamentos para a realização do atendimento. Procurar atendimento oftalmológico particular não é uma alternativa para a grande maioria, pela dificuldade concreta em pagar as consultas. A dificuldade de acesso a serviços oftalmológicos, associada a uma concepção de saúde e doença alheia às especificidades da saúde ocular, reforça uma prática de busca por atendimento oftalmológico em óticas. A oftalmologia está “escondida” no nível secundário de atenção, sendo comum encontrar a dificuldade em acessar o serviço a partir do nível primário de atenção. A presença de serviços oftalmológicos próximos à residência foi sinalizada, pela maioria dos entrevistados, como ausente, mas há o reconhecimento das instituições federais como referência em oftalmologia no estado. Pelas narrativas, foi possível apreender como a atenção especializada em oftalmologia no SUS, no estado do Rio de Janeiro, apresenta-se em número insuficiente para as demandas existentes. A atenção primária parece não estar estruturada para prestar cuidados em saúde ocular. O atendimento prestado, quando existente, restringe-se ao exame de acuidade visual e ao encaminhamento para a atenção especializada, havendo uma carência de profissionais capacitados na área. “Lá não faz tratamento [...] é igual ótica, bota as letras.” (Eloisa, 35 anos, moradora de Guaratiba)

De acordo com os documentos oficiais, a rede de atenção oftalmológica estadual está distribuída entre média e alta complexidade. Os hospitais de referência (federal, estadual e municipal) estão concentrados na capital. Nos demais municípios, prevalecem algumas poucas clínicas particulares conveniadas ao SUS. Algumas unidades básicas de saúde também prestam assistência oftalmológica nos municípios. No município do Rio de Janeiro, apenas alguns bairros contam com assistência nesse âmbito da atenção.

Itinerário terapêutico e barreiras de acesso: escolhas possíveis “[...] Olha do SUS é difícil, você tem que se cadastrar na clínica da família pra aguardar uma chamada, pra chegar a sua vez demora muito, você fica muito na dependência do SUS [...].” (Orlando, 62 anos, morador de Paciência)

Conseguir acessar os serviços de saúde dependerá das possibilidades das escolhas individuais e das condições associadas à situação sociocultural na qual os sujeitos encontram-se inseridos, permitindo tomar decisões, definir a importância da doença e os meios de tratá-la12. As motivações que iniciam a busca por atendimento oftalmológico não podem ser generalizadas. Observamos que o percurso terapêutico se iniciou, sobretudo, mediante a percepção de que a enfermidade não seria simplesmente resolvida sem cuidado médico. O primeiro acesso, em geral, aconteceu quando a dificuldade em enxergar começou a comprometer a rotina; e o início do itinerário coincide com os obstáculos encontrados no serviço de saúde para realização do acompanhamento contínuo ou tratamento. Na busca por atendimento, apenas sete entrevistados optaram, primeiramente, pelo SUS, e todos encontraram diversas dificuldades para iniciar o tratamento ou mantê-lo. Os principais problemas relatados foram: fila de espera, demora em agendar consultas, ausência de oftalmologista e precarização dos equipamentos. Os obstáculos presentes nos serviços públicos comprometeram o acompanhamento contínuo e acabaram, em algum momento, impulsionando os entrevistados a procurarem outro serviço. Outro conjunto de entrevistados relatou ter ficado anos sem realizar nenhum atendimento, por desconhecimento ou dificuldades em encontrar outro serviço disponível.

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Lima NC, Baptista TWF, Vargas EP

artigos

Entre 12 pacientes que procuraram atendimento particular como primeira opção, a situação foi um pouco diferente. O acesso a esses serviços não apresentou as mesmas barreiras descritas para o serviço público, sendo a barreira financeira o principal obstáculo, impedindo a continuidade do tratamento. Nesse grupo, a busca de clínicas particulares como primeira opção sinalizou o desconhecimento do funcionamento da rede e serviços disponíveis, bem como o reconhecimento das dificuldades presentes no SUS. Verificou-se que o pagamento por consultas a preço popular tem garantido a chance de atendimento sem demora para muitos entrevistados, mas o problema surge quando há o diagnóstico de alguma alteração oftalmológica que extrapola os cuidados oftalmológicos mais comuns. A dificuldade no pagamento das consultas e exames específicos leva à procura de serviços de saúde públicos. Por isso, notamos, nesse grupo, ter início o itinerário quando não há possibilidade de custear o tratamento exigido. Assim, pacientes diagnosticados com catarata, doenças retinianas ou outras afecções mais específicas, que precisam de intervenção médica (cirurgia, tratamento medicamentoso ou avaliação com profissional especialista), acabam por buscar atendimento no serviço de saúde público.

O recurso à família no apoio ao tratamento “[...] se eu não tiver dinheiro eu peço para minha filha, quando eu não tenho ela me dá o dinheiro, agora mesmo o colírio que eu estou usando custa R$ 140 aí ela falou: “Mãe, isso tá muito caro! Vou dividir”. Mas dura porque é uma vez por noite, aí ela compra pra mim, compra no cartão [...].” (Joana, 67 anos, moradora de Santa Cruz)

A ampliação da cobertura dos serviços de saúde que atenda à necessidade local e à demanda espontânea da população ainda é uma realidade desigual em muitas cidades brasileiras13. Os limites encontrados pelo usuário no acesso aos serviços ainda permanecem, e quando estes obstáculos estão relacionados com a acessibilidade, acaba-se prejudicando o primeiro contato, retardando o diagnóstico e o tratamento, sendo, em alguns casos, nocivo ao quadro clínico do paciente.15 As barreiras ainda estão presentes, sobretudo, na continuidade do tratamento. Alguns entrevistados relataram que, embora tenham realizado consulta oftalmológica, encontraram dificuldades de assistência para uma doença oftalmológica específica, sendo preciso, portanto, custear o tratamento em serviços de saúde privados. O pagamento por exames, assistência médica e medicamentos consiste em alternativa adotada, pelas famílias e pacientes, para obter o acesso ao tratamento necessário. “[...] Aí eu arrumei dois trabalhos, ficava trabalhando em horário integral pra poder conseguir pagar os exames dele e as consultas, aí paguei a primeira consulta e o primeiro exame, a época a consulta foi R$ 150 e o primeiro exame R$ 295 [...] aí a médica falou que ele tinha uma cicatriz no fundo de olho [...] aí passou uma porção de exames [...].” (Luiza, mãe de Diego, moradora de Irajá)

Observamos esse recurso em pacientes com glaucoma que precisavam utilizar diariamente medicamentos para reduzir a pressão intraocular. Embora, neste estudo, não tenha existido, entre os entrevistados, a descontinuidade do tratamento, por conta de dificuldades financeiras em comprar o colírio, acreditamos ser uma realidade presente em diversos pacientes sem condições de arcar com a despesa da terapia medicamentosa. Os relatos apresentados expressam a atuação da família em situações de vulnerabilidade descrita por todos os entrevistados. Nos serviços de saúde públicos, diversas barreiras restringem o acesso, e este, por si só, não garante a resolução do problema de saúde, seja no âmbito do SUS ou do serviço privado. Ainda que elas sejam superadas, não há integralidade no cuidado. Pagar pela assistência nos serviços privados torna-se inviável, sendo comum recorrer à família para apoio financeiro. Assim, a família desponta como referência importante na continuidade da assistência, sobretudo, quando a doença exige o acompanhamento e/ou tratamento durante um longo período.

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As óticas: um lugar acessível “[...] Onde diziam que tinha uma ótica boa eu ia [...] bem antigamente na rua tinha alguém vendendo óculos, aí lia, enxergava a letra e comprava o óculos! [...].” (Joana, 67 anos, moradora de Santa Cruz)

As óticas, na representação sociocultural, são conhecidas popularmente como um lugar onde se resolve a dificuldade em enxergar. Quando o primeiro sintoma ocular aparece, e geralmente é a visão reduzida, ele é imediatamente associado ao problema de acuidade visual. Dificilmente, o indivíduo pensa em doenças oculares. Assim, espera que o problema ocular que o acomete seja resolvido com o uso de óculos, recorrendo, simplesmente, a óticas ou qualquer estabelecimento que venda óculos, como camelôs e farmácias. O relato acima expressa o papel das óticas no cotidiano popular, mas a venda de óculos em camelôs é também uma prática. Assim, não é raro encontrarmos pessoas que utilizam óculos sem a realização de nenhum exame oftalmológico. O desconhecimento da doença ocular interfere e retarda a busca por assistência. Muitos relatam ter buscado atendimento em ótica por não saberem da necessidade de um acompanhamento médico e de tratamento para doenças oftalmológicas. Há aqueles, contudo, que buscam óticas por encontrarem dificuldades para acessar o serviço público de saúde, e somente se engajam nessa busca quando já necessitam de acompanhamento especializado. Por outro lado, desconfiar da assistência prestada nas óticas também foi comentado por vários entrevistados. “[...] Nenhum desses hospitais a gente consegue, só nesses mesmo que anuncia pela rua, acho que foi isso que estragou a minha vista, sei lá [...] as óticas quer vender, depois agora há pouco tempo que a minha filha falou: Vai ver que eles vendem óculos sem precisar, só pra poder vender [...].” (Joana, 67 anos, moradora de Santa Cruz)

Observamos a importância que as óticas assumem no itinerário terapêutico dos entrevistados. Elas desempenham a assistência atribuída ao nível primário de atenção, como a aferição da acuidade visual para confecção de óculos, sobretudo, mediante escassez ou ausência de serviços oftalmológicos públicos. Elas também reforçam uma cultura de automedicação associada a uma razão prática: alternativa rápida para a resolução, pelos indivíduos, do seu problema visual.

Considerações finais A partir dos itinerários apresentados, tendo em vista os referenciais teórico-metodológicos adotados, diferentes barreiras de acesso aos serviços oftalmológicos puderam ser descritas: desconhecimento da doença acarretando a busca tardia do tratamento; o recurso frequente a serviços privados com o apoio familiar devido aos altos custos dos tratamentos; descontinuidade da assistência pública decorrente da inexistência do princípio de integralidade previsto no SUS. O pressuposto inicial da pesquisa foi de que o IBC seria um local de refúgio para aqueles não atendidos na rede do SUS, correspondendo esta instituição ao ponto final de resolutividade na percepção individual. Contudo, os percursos deixam entrever uma problemática mais ampla envolvendo o acesso aos serviços de saúde oftalmológicos. Diferentes lógicas orientadoras da busca de acesso foram observadas informando inexistir um sistema integrado entre o IBC e as redes de atenção à saúde. Ademais, a organização da rede de

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atenção em oftalmologia no SUS no estado do Rio de Janeiro, na perspectiva dos pacientes, não lhes pareceu clara e nem acessível. Inexiste informação sobre onde e como acessar serviços, percebida, também, entre os que acessam os serviços, o que se expressa na recorrência de formação de itinerários terapêuticos protagonizados por pacientes desorientados quanto à assistência, que ultrapassam as fronteiras municipais. Na literatura, os itinerários baseiam-se em escolhas dos caminhos de tratamento percorridos a partir das visões de mundo e interpretações realizadas pelos pacientes, sobretudo em relação ao funcionamento dos serviços de saúde e sobre o cuidado a ser prestado. Neste estudo, os dados sugerem haver uma percepção naturalizada dos pacientes quanto aos obstáculos de acesso ao serviço especializado. No entanto, tais obstáculos para acesso e continuidade ao tratamento especializado, quando descritos por quem os vivencia, demonstram aspectos estruturais de funcionamento da rede pública de saúde estadual, mas, também, privada, por meio da precarização dos planos de saúde, com evidente sobrecarga do apoio familiar em termos financeiros. Ressalte-se que a pesquisa se restringiu aos itinerários de pacientes que acessaram o Instituto e que, portanto, superaram as barreiras de acesso existentes à assistência em oftalmologia. Uma pesquisa sobre itinerários em serviços do SUS ou entre indivíduos que não conseguiram acessar o IBC talvez pudesse identificar outras questões não contempladas neste estudo. De todo modo, os itinerários apresentados apontam as dificuldades e barreiras existentes nesse contexto, apresentando-se como parte de uma problemática mais ampla que os transcende. De modo similar, o estudo não teve por objetivo discutir a assistência em oftalmologia a partir da rede de atenção no SUS. Optamos pelo IBC como campo para a análise do tema sendo, portanto, apenas tangenciadas as ações nesse âmbito, bem como a relação da instituição com o SUS. A principal implicação dessa escolha foi reconhecer como a dinâmica de atendimento do IBC reflete nas barreiras de acesso sem a intenção de proceder a uma avaliação dessa instituição. O reconhecimento de sua dinâmica e a lógica que a norteia pautada no aprendizado/ensino médico foram relevantes, sobretudo para as reflexões acerca das razões que justificam a dissociação entre as ações de saúde do Instituto e aquelas preconizadas pelo SUS. Neste ensaio, no qual sinalizamos parte das dificuldades presentes para a concretização das políticas públicas na área da saúde ocular, o termo “cegueiras” designa os modos e as relações estabelecidas entre os usuários (não só entre os pacientes) e os serviços de oftalmologia no estado do Rio de Janeiro. A cegueira, em uma perspectiva mais ampla do que aquela que identifica a ausência de visão como deficiência visual, encontra-se não somente ao lado dos usuários que demandam atendimento, mas, também, do sistema público de saúde. Nessa perspectiva de análise, a cegueira não se restringe à explicação dos problemas da falta de visão e do acesso a tratamentos à existência individual, visto que se trata de experiência coletiva, como nos mostraram os entrevistados; tampouco se restringe à perspectiva biomédica na compreensão desse tema de saúde pública que tende a reduzir a cegueira à patologia, à clínica e ao órgão da visão. Trata-se de uma conversão do olhar sobre a deficiência da visão para um campo mais amplo – concebida, no senso comum, como restrita ao indivíduo e sua doença –, em direção às invisibilidades da atenção prestada pelos serviços de saúde. Há um distanciamento entre as propostas preconizadas por leis/portarias para ampliação e consolidação do cuidado oftalmológico e a realidade dos serviços de saúde para a população que busca acessar esse cuidado. As barreiras presentes, tanto no serviço público quanto no privado, indicam as fragilidades presentes na saúde ocular enquanto política pública. A articulação e organização das redes de atenção oftalmológicas, sobretudo com a restruturação da atenção primária, constituem um desafio para o avanço da saúde ocular, em termos de acesso e integralidade do cuidado como previsto/defendido na construção do SUS. Enfim, a descrição dos itinerários aponta que as situações particulares daqueles que buscam tratamento oftalmológico expressam experiências coletivas de adoecimento e de busca por atendimento que são delimitadas pelas condições materiais e simbólicas da existência.

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Colaboradores Natalia Carvalho de Lima, Tatiana Wargas de Faria Baptista e Eliane Portes Vargas, definiram juntas a concepção do artigo, trabalharam na análise dos dados, redação e revisão final do artigo. Natalia Carvalho de Lima realizou as entrevistas, observação participante, levantamento e análise preliminar dos dados. Referências 1. Hernandes RB. Um estudo de princípios norteadores para a formação continuada de educadores que atuam na profissionalização das pessoas com deficiência visual [Internet]. São Paulo: USP; 2005 [citado 6 Ago 2013]. Disponível em: http://www4.fct.unesp.br/ pos/educacao/teses/renata.pdf. 2. Marta Gil. Deficiência visual [Internet]. Brasília: Ministério da Educação; 2000 [citado 27 Jan 2015]. 80 p. (Cadernos da TV Escola). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ seed/arquivos/pdf/deficienciavisual.pdf. 3. Weid OV. O Corpo estendido de cegos: cognição, ambiente, acoplamentos. Sociol Antropol. 2015; 5(3):935-60. 4. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). População residente, por tipo de deficiência, segundo as grandes regiões e Unidades de Federação [Internet]. Brasília: IBGE; 2010 [citado 6 Ago 2013]. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoacom-deficiencia/pdfs/populacao-residente-por-tipo-de-deficiencia-segundo-as-grandesregioes-e-as-unidades-da-federacao-2013-2010/view. 5. Kara Jose N, Arieta CEL. South American Programme: Brazil. Community Eye Health. 2000; 13(36):55-6. 6. Pereira JM. Avaliação dos serviços de assistência ocular em população urbana de baixa renda da cidade de São Paulo – Brasil. Arq Bras Oftalmol. 2009; 72(3):332-40. 7. Gentil RM, Leal SMR, Scarpi MJ. Avaliação da resolutividade e da satisfação da clientela de um serviço de referência secundária em oftalmologia da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Arq Bras Oftalmol. 2003; 66(2):159-65. 8. Temporini ER, Kara-José N. A perda da visão: estratégias de prevenção. Arq Bras Oftalmol. 2004; 67(4):597-601. 9. Ministério da Saúde (BR). Portaria No 957 de 15 de maio de 2008 [Internet]. 2008 [citado 4 Fev 2015]. Disponível em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/ Port2008/GM/GM-957.htm. 10. Medina NH, Muñoz EH. Atenção à saúde ocular da pessoa idosa. BEPA, Bol Epidemiol Paul (Online). 2011; 8(85):23-8. 11. Ministério da Saúde (BR). Secretária de Atenção à Saúde. Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e intervenção precoce para prevenção de deficiências visuais. 1ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. 40 p. 12. Ferreira J, Espírito Santo W. Os percursos da cura: abordagem antropológica sobre os itinerários terapêuticos dos moradores do complexo de favelas de Manguinhos, Rio de Janeiro. Physis Rev Saude Colet. 2012; 22(1):179-98. 13. Travassos C, Oliveira E de, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Cienc Saude Colet. 2006; 11(4):975-86. 14. Gerhardt TE. Itinerários terapêuticos em situações de pobreza: diversidade e pluralidade. Cad Saude Publica. 2006; 22(11):2449-63. 15. Starfield, B. Atenção primária: equilíbrio entre as necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Ministério da Saúde - UNESCO; 2002. 726 p.

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16. Rabelo MC, Alves PC, Souza IMA. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Experiência de doença e narrativa. 1a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. 17. Lima NC. Ensaio sobre ‘cegueiras’: o itinerário terapêutico de pacientes assistidos no Instituto Benjamin Constant [dissertação]. Rio de Janeiro-RJ: Escola Nacional de Saúde Pública ENSP; 2015. 18. Guedes RA. As estratégias de prevenção em saúde ocular no âmbito da saúde coletiva e da Atenção Primária à Saúde - APS. Revista APS. 2007;10(1):66-73. 19. Rodrigues MLV. Prevenção de perdas visuais. Medicina (Ribeirão Preto). 1997; 30(1):84-9.

Lima NC, Baptista TWF, Vargas EP. Ensayo sobre ‘cegueras’: itinerario terapéutico y barreras de acceso en asistencia oftalmológica. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):615-27. El artículo trata sobre las barreras de acceso a servicios especializados en oftalmología, a partir del itinerario terapéutico de pacientes asistidos en el Instituto Benjamin Constant (IBC), en Río de Janeiro, Brasil. Referenciales teóricos y metodológicos de las ciencias sociales y de la salud dieron apoyo al análisis, posibilitando el reconocimiento de las dinámicas sociales presentes en los itinerarios. Fueron estrategias metodológicas: análisis de documentos oficiales, levantamiento de la asistencia en el estado de Río de Janeiro, entrevistas con pacientes y funcionarios del IBC. observación participante. El estudio posibilitó identificar las siguientes características del tema: (1) enfermedad y riesgo; (2) itinerarios recorridos; (3) recurso a los servicios privados y apoyo familiar; (4) asistencia pública descontinuada y no orientada por la integralidad (SUS); (5) lugar destacado de las ópticas. Los resultados señalan los itinerarios y barreras encontrados como una construcción social y cultural delimitada por las condiciones materiales y simbólicas del grupo de investigación.

Palabras clave: Itinerario terapéutico. Acceso a los servicios de salud. Salud ocular. Oftalmología. Asistencia a la salud.

Submetido em 14/07/16. Aprovado em 20/09/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0334

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Gestação e morte cerebral materna: decisões em torno da vida fetal

Rachel Aisengart Menezes(a) Naara Luna(b)

Aisengart Menezes RA, Luna N. Pregnancy and maternal brain death: decisions on the fetal life. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):629-39.

This paper presents cases of brain death of pregnant women in different countries, that were published in the press, aiming to reflect about the decision making process on the prolongation of somatic support of vital functions of the women, in order to keep fetal development until they reach viability. Based on the analysis of the positioning of the different social actors involved, such as family, medical staff, religious authorities and Justice officials among others, this paper reveals the values that are present in each context and situation.

Keywords: Brain death. Pregnancy. Fetus. Vital support. Decisions.

Este artigo apresenta casos de morte cerebral de gestantes de diversos países, publicados na imprensa, com o objetivo de refletir sobre o processo de tomada de decisões referentes ao suporte das funções vitais da grávida, para possibilitar o desenvolvimento do feto, até sua viabilidade. A partir da análise dos posicionamentos divulgados na mídia, dos distintos atores envolvidos, como familiares, equipe médica, representantes religiosos, agentes da justiça, entre outros, consideramos ser possível o acesso aos valores presentes, em cada contexto e situação.

Palavras-chave: Morte encefálica. Gravidez. Feto. Suporte vital. Decisões.

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Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Horácio Macedo, s/n, Ilha do Fundão, Cidade Universitária. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21941-598. raisengartm@ terra.com.br (b) Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Seropédica, RJ, Brasil. 23890-000. naaraluna2015@ gmail.com (a)

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Introdução Na segunda década do século XXI, o número de notícias na mídia sobre gestantes com morte cerebral aumenta. A conjuntura exige uma tomada de decisão: manter ou não as funções vitais da gestante, para possibilitar o desenvolvimento fetal. Distintos atores sociais se posicionam: familiares, médicos, religiosos, agentes da justiça, jornalistas, entre outros. Instâncias governamentais e não governamentais são demandadas a se pronunciar. Neste artigo, apresentamos casos publicados em diferentes países, com as polêmicas referentes às possíveis decisões de manutenção da vida da grávida. Com base nestes dados, empreendemos uma análise antropológica dos valores que aparecem nos relatos dos casos, a partir dos impasses e das decisões tomadas. O caso de uma mulher de 27 anos, com 22 semanas de gestação, ocorrido em 1983, é descrito por Margaret Lock1 em seu estudo sobre morte cerebral e transplante de órgãos. Lock1 se baseou em caso ocorrido em 1983, publicado em 1988 em artigo de Field et al.2 A grávida foi internada para investigação em hospital nos Estados Unidos, com vômitos e desorientação, teve exames clínicos com resultados normais, exceto um aumento da pressão medular. Ela sofreu parada cardíaca, foi reanimada e transferida para unidade de cuidados intensivos, com suporte respiratório. Após dois dias, confirmouse o diagnóstico de morte encefálica, as funções fetais permaneceram normais. Em concordância com o desejo do esposo e pai, a equipe médica forneceu suporte cardiorrespiratório, objetivando oferecer condições de desenvolvimento do feto até a viabilidade, para intervenção e nascimento. Na 28ª semana de gestação, uma infecção conduziu à cesariana, no 62º dia de internação. O bebê, do sexo masculino, nasceu com baixo peso, foi internado na unidade de terapia intensiva neonatal; com três meses, foi transferido para outro hospital e se desenvolveu bem. Após a cesariana, a aparelhagem foi desligada e a mãe teve a (segunda) morte decretada. Segundo Lock1, não há menção, no artigo médico de Field et al.2, acerca da discussão ética sobre os sentimentos da equipe da unidade intensiva, quanto ao trabalho de cuidar do corpo de uma mulher com morte cerebral e de seu feto. Não há também referência à participação do marido e pai. Por fim, é ressaltada a ambiguidade criada com a escolha por manter um “cadáver vivo”1 em estado híbrido por mais de dois meses. Ainda de acordo com Lock1, em artigos médicos sobre o tema, desloca-se o foco, do debate ético para a prescrição dos modos de controle e cuidados para o desenvolvimento fetal. O artigo de Lock1 contempla uma dúvida: uma vez que há tecnologia disponível para manutenção das funções vitais de gestante em morte cerebral, trata-se de rotinizar e normatizar este procedimento. O caso ocorreu em 1985. Desde então, os recursos para diagnóstico e tratamento se desenvolveram, novas leis e normas foram criadas, novas sensibilidades e subjetividades emergem, diante de cada caso. Os debates permanecem, com a participação de diferentes atores sociais. Via de regra a divulgação de notícias acerca do tema mobiliza a comunidade, aciona posicionamentos da sociedade. Diante de cada circunstância, frequentemente o debate se polariza: de um lado, a defesa do direito à vida do feto; de outro, o direito de autonomia da mulher. A possibilidade de manutenção da vida fetal, em caso de morte encefálica materna, acarreta um problema específico, ao se tratar de uma grávida. Se, no caso do aborto voluntário, o debate ético contrapõe a autonomia da mulher em torno de decisões reprodutivas ao direito do feto à vida, essas posições se apresentam em distinta configuração quando há morte cerebral materna. O feto somente terá chances de vida e desenvolvimento se as funções vitais maternas forem preservadas, o que é possível apenas com suporte de aparelhagem e recursos terapêuticos.

Tecnologia e novas possibilidades de gestão dos limites da vida: normas e leis Após a metade do século XX, são criados aparelhos e desenvolvidas tecnologias que propiciam a preservação da vida, como: o respirador artificial, a hemodiálise e outras. Acrescentam-se os tratamentos que prolongam a vida, em doenças degenerativas como câncer, enfermidades autoimunes e neurológicas. Em contrapartida ao modelo de gestão do processo do morrer considerado desumano, frio e tecnologizado, denominado por Philippe Ariès3 de modelo de morte moderna, surgem novas propostas 630

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artigos

de cuidados e deliberações ao final da vida. Discursos inovadores são veiculados com designações para novos dilemas, concernentes aos diferentes modos de gestão da vida, de cuidados e no processo do morrer. “Morte com dignidade”, “distanásia”, “encarniçamento terapêutico”, “ortotanásia”, “morte suficientemente boa”4, entre outras expressões, são utilizadas tanto por defensores da manutenção da vida quanto por militantes pelo direito de livre arbítrio em torno da própria vida e morte. Por vezes, há polissemia de algumas expressões como “boa morte”4 ou “com dignidade”4. Para uns, somente é possível alcançá-la por meio de assistência paliativa, enquanto, para outros, apenas mediante agência individual que conduza ao término da vida – por suicídio assistido ou eutanásia5. Desde o final do século XX, um debate vigora no Ocidente, cujo foco incide sobre o direito a não sofrer6,7. Este se insere em dois movimentos: de um lado, as preocupações com o genocídio da Segunda Grande Guerra; de outro, as consequências das novas tecnologias dirigidas à criação, prolongamento e manutenção da vida7. No primeiro, situam-se a formulação dos direitos humanos e as normas bioéticas para pesquisas ‘em’ e ‘com’ seres humanos. Os princípios morais e os valores que regem a conduta humana são continuamente questionados. Para Giorgio Agamben8, trata-se de uma discussão sobre as diferenças entre corpo biológico e corpo político, entre vida nua e vida digna ou, em sua terminologia, entre “zoé” e “bios”. O século XX assistiu ao maciço desenvolvimento de tecnologia voltada à vida, por novos recursos. Distintas deliberações são possíveis, com o uso dessa aparelhagem. Novas categorias e conceitos (morte encefálica, vida digna, doação e transplante de tecidos corporais e órgãos) conduzem à elaboração de novas normas e leis, em cada contexto. Novas sensibilidades e insensibilidades são configuradas, associadas a cada situação5. A possibilidade de preservação das funções vitais da gestante, para que o feto alcance condições de viabilidade para seu nascimento, consiste em situação análoga à manutenção do funcionamento de órgãos de pessoas com morte encefálica declarada, para fins de doação. À semelhança dos debates em diferentes países e contextos, em torno do diagnóstico de morte encefálica, da preservação de funções vitais para retirada e doação de órgãos, quando uma grávida tem morte cerebral, emergem questionamentos acerca da dignidade (ou não) da manutenção de uma vida vegetativa (da gestante) em prol da vida fetal. A pesquisa pioneira de Lock1 evidencia a diferença de valores e aceitação da morte cerebral, doação e transplantes de órgãos nos Estados Unidos e no Japão. Entre norteamericanos, o conceito e o diagnóstico de morte encefálica são aceitos pela sociedade em geral, enquanto, para japoneses, houve – e ainda há – ampla rejeição social da possibilidade de retirada de órgãos para doação e transplante. Ao termo dignidade são atribuídos diferentes significados, sobretudo no que concerne ao fim da vida e ao processo do morrer. De acordo com o valor preeminente em cada contexto, é possível a classificação de dignidade ou condição não digna. Nesse sentido, para os que consideram a vida como valor supremo e defendem a manutenção das funções vitais da gestante para preservação da vida fetal, tratar-se-ia de condição digna para a mulher, pois teria uma finalidade digna. Partimos aqui do pressuposto de que a demarcação das fronteiras entre vida e morte envolve fatores culturais, sociais, religiosos e políticos, referentes à gestão da pessoa. Concepções as mais diversas sobre o significado de pessoa, seu estatuto e direitos propiciam entendimento de aspectos presentes na polêmica atinente às deliberações relativas ao início e final da vida. Vida e morte são conceitos estruturantes dos valores compartilhados em cada cultura, que possibilitam acesso às concepções vigentes de pessoa9. Todo grupo social elabora sua definição de pessoa como agente social10-12. Cada cultura demarca quando a pessoa é reconhecida socialmente. Historicamente, no Ocidente, vida e morte foram objeto de definições religiosas pautadas pela tradição judaicocristã12. Com os processos de secularização13 e a crescente medicalização14, se deslocaram, da esfera religiosa para a da ciência, acepções de vida e morte. A crença generalizada na razão como leitura objetiva da natureza se tornou prevalente no Ocidente15. Quanto à autonomia da grávida em relação ao direito de vida fetal, distintas possibilidades se apresentam. A partir da metade do século XX, o tema dos direitos adquire preeminência e centralidade. Os usos do corpo, de substâncias corporais, prolongamento da vida de enfermos terminais, interrupção da gravidez e doação de órgãos passam a integrar os debates dos direitos16. Duas posições se destacam: 631


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da sociedade laica e de instâncias religiosas. As propostas de legalização do aborto, da eutanásia e do suicídio assistido são responsáveis pela polarização entre o direito de livre arbítrio individual – seja da gestante, seja do doente terminal – e a santificação da vida17. O debate sobre o estatuto do embrião18,19 encerra disputas jurídicas, éticas e religiosas. Estudos antropológicos sobre limites da vida apontam diferenças e semelhanças no estatuto de pessoa, nos casos do embrião e do doente terminal, sobretudo com diagnóstico de morte cerebral. O feto e o enfermo terminal possuem a mesma característica: ambos estão situados em um tempo provisório20 e contam com uma diferença. No início da vida, há um reconhecimento da condição social da pessoa, enquanto, no final, ocorre uma transformação, de ser vivo para outra categoria. Para manter as funções vitais de gestante com morte cerebral, são necessários conhecimentos, tecnologia e profissionais de saúde habilitados para lidar com aparelhagem para suporte da vida. Em levantamento sobre o tema, encontramos artigos biomédicos, apresentados a seguir, abordando dilemas e posicionamentos referentes às possíveis decisões e consequências. O levantamento foi efetuado na Internet por meio do mecanismo de busca Google, para encontrar matérias da mídia sobre o tema após 2014, até abril de 2015, e de artigos científicos, a partir das seguintes palavras: gestação, morte cerebral, decisões sobre a vida fetal, considerando, também, os equivalentes em língua inglesa. Foram encontradas notícias da mídia referentes a doze casos de gestantes com morte cerebral. Dentre os casos, selecionamos três para análise, pois os posicionamentos da família, equipe médica e a decisão judiciária foram distintos em cada um deles, o que permitiu um aprofundamento e reflexão em torno do processo de tomada de decisões. Vale referir que os artigos publicados em periódicos biomédicos, da área da justiça e do campo da ética também foram encontrados a partir da mesma busca na Internet por meio do Google, pois não efetuamos busca em bases científicas. Uma vez que a possibilidade de manutenção das funções vitais de gestante com a finalidade de preservação da vida fetal é recente, tendo em vista o desenvolvimento de recursos tecnológicos, o número de artigos da área biomédica é restrito: apenas quatro. A busca foi efetuada nos anos de 2014 e 2105.

Biomedicina e questões éticas Em 2004, foi publicado artigo acerca do caso da morte cerebral de uma mulher na 13ª semana de gestação21. O foco incide sobre a decisão de manter suporte das funções vitais maternas para atingir a viabilidade fetal. Os batimentos cardíacos fetais cessaram no oitavo dia após a morte cerebral materna. Os autores consideram mãe e feto como dois organismos distintos. Embora sem limite mínimo de tempo de gestação, a manutenção das funções somáticas maternas depende do tempo para atingir a viabilidade fetal, com o ideal de 32 semanas. O artigo cita o máximo de prolongamento de 107 dias, após os quais ocorreu o parto. No caso, seriam necessários 133 dias para atingir a viabilidade. Os autores julgam ético o prolongamento somente quando há esperança de sucesso. O texto menciona o direito de autonomia da mãe, mas o foco é a atribuição de primazia à vida materna ou do feto. As opiniões de parentes também devem ser consideradas. Os autores apontam três perspectivas: 1. considerar a mãe como sujeito autônomo, respeitando seus desejos expressos; 2. a percepção da mulher como incubadora, sem direitos autônomos, com ênfase nos direitos fetais; 3. considerar a mulher como doadora voluntária de órgãos, segundo opinião previamente expressa. Em termos legais, a legislação europeia varia quanto à concessão de direitos ao feto20. Na Irlanda, o feto tem direito à vida desde a concepção, mas, em outros países, não são atribuídos direitos legais a um feto de 13 semanas. Na Irlanda, mesmo com suporte legal ao feto, o imperativo da manutenção do suporte materno é exercido quando há probabilidade de nascimento. Para João Paulo de Souza et al.22, a morte cerebral na gravidez é rara e demanda uma decisão. Conforme o tempo de gestação, medidas devem ser tomadas para a homeostase do corpo da mulher após a morte cerebral, visando manter a vida fetal até sua viabilidade. O texto apresenta um caso no Brasil: mulher de 40 anos que sofreu hemorragia intracraniana na 25ª semana de gestação. Com o diagnóstico de morte cerebral, a paciente passou a receber: suporte respiratório e nutricional, drogas vasoativas, hormônios, controle da temperatura, intervenções para prolongar a gestação. As decisões foram em consenso com a família. As condições da mulher se mantiveram estáveis por 25 dias de 632

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suporte, mas após alterações nas condições do feto, a equipe médica decidiu efetuar uma cesariana. O menino foi internado na unidade neonatal de cuidados intensivos, teve alta sem sequelas após quarenta dias. Artigo de Anita Catlin e Deborah Volat23 enfoca a prática de enfermagem na morte cerebral de gestante. A pergunta consiste na manutenção (ou não) de suporte vital da grávida por mais de 5 meses, para o desenvolvimento fetal. O texto reflete sobre o processo decisório, e, a partir de exemplos, analisam-se dilemas éticos referentes: à mulher, ao feto, à família e equipe de enfermagem. Seria necessário definir o que é vida e morte para avaliação da mãe. O imperativo kantiano é citado pelas autoras – não usar uma pessoa como meio – e contrastado com o pensamento utilitarista de Mill, quanto a maximizar a felicidade para o maior número de pessoas. É indagado se deve ser ignorada a assinatura, pela mulher, de diretiva sobre o fim da vida, com recusa de procedimentos heroicos. O texto questiona se o preenchimento de ficha para doação de órgãos significaria aceitação de medidas para prolongamento de sua vida. É possível comparar a morte cerebral de gestante com decisão pela doação de órgãos? Questões são indicadas, como: quem deve decidir; quais as deliberações quando há conflito de interesses. Quanto aos dilemas éticos, coloca-se uma indagação: se o feto pode ser considerado vivo quando a mãe tem morte cerebral. O artigo apresenta a preocupação em conduzir o feto a uma condição de viabilidade para seu nascimento, como se ele fosse um indivíduo com direito a tratamento. Essas perguntas são explicitadas: semanas ou meses devem ser empregados para salvar a vida do feto? Esse cuidado seria um tratamento experimental, sem consentimento da mulher ou do feto? Por fim, as autoras afirmam que os casos refletem o ambiente religioso do país em que o estudo foi conduzido. Majid Esmaeilzadeh et al.24 apresentam uma revisão sistemática nas bases Medline, Embase e Central sobre casos de grávidas em morte cerebral com suporte somático prolongado. Conforme referido, este artigo foi encontrado em busca na Internet. Entre 1982 e 2010, foram encontrados trinta casos. A idade gestacional média no diagnóstico de morte cerebral foram 22 semanas, e o tempo de gravidez até o parto, de 29 semanas e meia. Doze crianças viáveis nasceram e sobreviveram. Os autores afirmam ser possível sustentar as funções somáticas da gestante em morte cerebral por longo período. Não haveria limite definido para a idade gestacional mínima a partir da qual os esforços médicos têm chance de desenvolvimento fetal. A decisão deve ser para cada caso, segundo a estabilidade materna e o crescimento fetal. O artigo lista os procedimentos médicos de suporte e apresenta considerações obstétricas, fetais e neonatais, e sobre doação de órgãos. Quanto às questões éticas, alguns profissionais não concordam com a manutenção do corpo da mulher após sua morte cerebral para usá-la como recipiente do feto. A posição oposta é considerar a mulher incubadora cadavérica sem direitos autônomos, atribuindo preeminência aos direitos fetais. Outros autores comparam o prolongamento da vida materna a um transplante de órgãos, no qual o feto seria o receptor. O artigo conclui que a decisão deve ser tomada por especialistas, em conjunto com a família da gestante. A possibilidade de extensão da vida em casos de morte cerebral apresenta um problema específico, quando se trata de gestante. No caso de morte cerebral materna, o feto somente tem chance de se tornar viável se há medidas para manter as funções vitais da mãe. Na página da “Pontifícia Academia para a Vida” no portal do Vaticano25, o tema da morte cerebral é mencionado em documentos sobre eutanásia e morte com dignidade. No manual Key to Bioethics26, a discussão sobre o direito à vida se apresenta em tópicos associados à proteção do embrião desde a concepção, envolvendo: reprodução assistida, uso de embriões em pesquisas com células-tronco, diagnóstico genético pré-implantação, diagnóstico pré-natal, clonagem e aborto. O debate sobre a morte com dignidade surge na abordagem da eutanásia e doação de órgãos. Apesar da menção ao conceito de morte cerebral, não há referência à morte encefálica materna e continuidade da gestação. O manual condena qualquer forma de aborto e manipulação do embrião, exceto para estender sua vida. É categórico quanto ao consentimento informado na doação de órgãos, opondo-se a diretivas para o fim da vida, como os contratos para interrupção de suporte vital em caso de coma irreversível. O texto rejeita qualquer modalidade de ação para reduzir a vida do paciente terminal, a seu pedido ou de sua família. 633


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As orientações isoladas conduziriam a dois movimentos contraditórios em relação à morte cerebral da gestante: 1. respeitar a ausência de autorização para doação de órgãos, o que significa não utilizar recursos para manutenção de suporte vital; 2. manter suporte das funções vitais da gestante, segundo o pressuposto de que o feto tem direito à vida desde a concepção, para propiciar o desenvolvimento fetal. Nossa hipótese é que o Vaticano assuma a última interpretação, com base no exemplo da gestação de anencéfalo, em que documentos do magistério defendem que a gravidez seja mantida até o final, para dar o direito à vida a um ente inviável. A polêmica em torno do direito à autonomia da gestante em morte cerebral e do direito à vida do feto em seu corpo é uma disputa de direitos, na configuração individualista de valores do Ocidente Moderno. O feto e a gestante em morte cerebral são considerados indivíduos: “o ser moral, independente, autônomo e, por consequência, essencialmente não social, que veicula os nossos valores modernos e ocupa o primeiro lugar na nossa ideologia moderna do homem e da sociedade”11. A igualdade e a liberdade são traços fundamentais da configuração individualista de valores, característica das sociedades ocidentais modernas. O ideal de autonomia se impõe ao modelo de pessoa como indivíduo: “o ser de razão, o sujeito normativo das instituições”, “como testemunham os valores de igualdade e de liberdade”27. Este indivíduo é o sujeito de direitos26, do ponto de vista normativo.

Os casos: dilemas sobre a continuidade da vida Dentre os casos reportados na mídia, escolhemos três: um irlandês, outro canadense e um norteamericano. Expomos a legislação sobre aborto em seus países, para revelar os contextos das situações. A escolha por referir o aborto e as normas em torno deste procedimento se baseia em possível interpretação da não manutenção das funções vitais da gestante com morte encefálica como opção que equivaleria à interrupção da gravidez com a morte fetal, como nos casos de aborto. A Irlanda é um país com legislação restritiva acerca do aborto. A constituição irlandesa reconhece tanto o direito à vida do nascituro quanto o direito à vida da mãe. Uma decisão da Suprema Corte permite o aborto em caso de risco à vida materna. É permitido viajar ao exterior para interrupção da gravidez e para informações sobre a intervenção28. O caso em questão não previa o aborto. Constatou-se a morte cerebral de uma grávida de 16 semanas. Os pais manifestaram o desejo de desligar os aparelhos de suporte vital. A recusa dos médicos baseou-se na legislação sobre aborto, que garantiria direito à vida do feto. Em última instância, significava o desenvolvimento do feto após a morte cerebral da mãe. A primeira notícia previa que, se o caso chegasse à Justiça, o Estado deveria “designar um advogado para defender o feto contra seus avós”, que pleiteavam a retirada do suporte das funções vitais da gestante29. O Supremo Tribunal autorizou o desligamento dos aparelhos30, supondo tratar-se de “um exercício inútil” e uma “angústia inimaginável” para o pai. O tribunal julgou que autorizar a retirada de suporte vital materno seria “do interesse do nascituro”30. O caso é relatado em dois jornais. No primeiro, os pais da gestante se manifestam. No segundo, a decisão do tribunal se refere apenas ao sofrimento do pai. Médicos usaram a lei do aborto como justificativa para não interromper o suporte vital da gestante, contra a vontade manifesta de seus pais. Nesse sentido, o feto teria direito à vida, independente da situação materna. Essa perspectiva dos médicos retrata um posicionamento hierarquizante, entre os direitos da gestante e do feto. Segundo Dumont27, o princípio social da hierarquia implica o englobamento do contrário. Embora a mulher seja a portadora do feto, ao hierarquizar – ou ao priorizar a vida do feto –, este passa a englobar a gestante. A notícia seguinte revela o desdobramento do caso. A decisão do tribunal desfaz o primeiro englobamento, invertendo-o, argumentando que seria do interesse do feto a interrupção do suporte vital da gestante. A gravidez era recente (16 semanas), quando ocorreu a morte cerebral materna. O segundo aspecto concerne à vontade da família de concluir o processo. O argumento clínico acerca do tempo de gestação considera que, quanto mais avançada a gravidez, mais fácil manter o suporte materno para o desenvolvimento fetal até sua viabilidade. Talvez os familiares não se apegaram a um feto em estágio inicial. Ainda não seria uma pessoa, um neto ou filho desejado, em contraste com a certeza da morte da gestante. Quando a mulher não pode mais responder nem 634

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redigiu um documento, a declaração é responsabilidade dos familiares próximos. A lei irlandesa trata, simultaneamente, o feto como sujeito de direitos e interesses, inclusive, com a decisão do tribunal de retirada de suporte vital materno sob argumentação de que também seria de seu interesse. Segundo Agamben8, o feto foi reputado pela Justiça como “bios”, vida digna do sujeito político. Seria de seu interesse interromper o suporte materno para impedir seu desenvolvimento e evitar que se tornasse “zoé”, vida nua8. O Canadá não conta com lei restritiva do aborto. A intervenção foi descriminalizada em 1988, é tratada como procedimento médico e regulada por leis das províncias e normas médicas30. Em contraste com a Irlanda, não há ambiente legal de feição pró-vida que influencie decisões médicas e da família. Apesar desse contexto, houve reação pública à decisão do marido de Robyn Benson e dos médicos de não desligamento de suporte da gestante. Ela recebeu diagnóstico de morte cerebral após uma hemorragia, quando a equipe médica constatou o desenvolvimento normal do feto. O intuito foi permitir que ele alcançasse 34 semanas. Uma comunidade na internet arrecadou cerca de 150 mil dólares canadenses, sinal da mobilização em torno do caso31. A morte cerebral ocorreu em dezembro de 2013, quando a mulher tinha 22 semanas de gravidez. Iver nasceu prematuramente de cesariana em fevereiro de 2014, com 28 semanas32. O caso ficou conhecido porque o pai relatou a experiência em blog e no Facebook, fez apelo para arrecadar fundos, para tirar licença sem vencimentos de alguns meses para cuidar do filho33. Esse caso ocorreu em ambiente jurídico diferente do primeiro. Não há referência a leis em defesa do direito à vida do feto. A gestação estava mais adiantada. As notícias divulgam a possibilidade de nascimento sem sequelas. O desenvolvimento normal do feto teria motivado a equipe médica e o marido à decisão de manutenção do suporte vital. Em contraste com o caso anterior, não houve menção a conflito familiar, mas acordo entre equipe médica e o marido. Os interesses da gestante não são referidos, a manutenção do suporte vital para a mulher servir de incubadora para desenvolvimento do feto implica perda de dignidade. Ela é tratada como sujeito que serve como meio para outros e não para si, contrariando o imperativo kantiano de não usar uma pessoa como meio para um fim23. Assim, a mulher é englobada pelo feto que contém, em um processo de hierarquização27. A mulher, na tipologia de Agamben8, retrataria “zoé”, a vida nua, o corpo biológico, enquanto o feto representa “bios”, a vida qualificada. Tal desdobramento é oposto ao da Irlanda e, também, a outro caso, do Texas, Estados Unidos. Por decisão da Suprema Corte em 1973, o aborto é legal nos Estados Unidos27. A despeito da decisão, o Texas é um dos estados que mais restringem o procedimento, por táticas regulatórias34, e conta com forte movimento antiaborto34. Esse é o contexto do caso de Marlise Muñoz, que sofreu uma embolia pulmonar e teve diagnóstico de morte cerebral na 14ª semana de gravidez. Sua família recebeu a notícia da manutenção do suporte vital no hospital. A decisão médica se baseou em lei estadual que proíbe a suspensão do suporte em gestantes. O marido se opôs, pois Marlise havia manifestado, anteriormente, o desejo de não ser mantida viva por máquinas35. Ele foi à Justiça, argumentando que, além do respeito à vontade de Marlise, a lei previa manutenção de suporte vital em gestantes em coma, e não em morte cerebral. O feto não foi considerado viável no tempo gestacional de 22 semanas, a imagem de suas extremidades inferiores evidenciava deformidades. O juiz ordenou o desligamento dos aparelhos, supondo que Marlise teria decidido pelo aborto, pelos danos no feto36. Marlise Munõz foi a única gestante que havia declarado previamente sua vontade. O desenvolvimento de má-formação fetal foi fator em contraponto à lei estadual pró-vida do Texas. A família considerou desumana a manutenção do desenvolvimento do feto. A lei do Texas hierarquiza em favor do feto: não é possível desligar aparelhagem de suporte vital de gestante. Entre os três casos, pela primeira vez, a grávida é tratada como indivíduo sujeito de direitos26, cuja vontade é válida após sua morte. O valor da autonomia da mulher como sujeito teve preeminência sobre a lei de proteção ao feto na decisão final. Com base na tipologia de Agamben8, a equipe médica considerou a mulher “zoé”, vida nua, defendendo o feto como “bios”, em sua dignidade de sujeito político. A perspectiva da família se distinguiu ao considerar a mulher como sujeito autônomo, “bios”, corpo político. Tal posicionamento foi seguido pela decisão judicial.

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Considerações finais Os três casos evidenciam um movimento em defesa da “santidade” da vida, segundo a concepção de Dworkin16, tanto dos que valorizam o desenvolvimento fetal, como dos atores sociais que priorizam a autonomia das gestantes em morte cerebral. Ao refletir sobre os extremos da vida (aborto e eutanásia) e as diferentes possibilidades de decisão, este autor aborda a “santidade da vida” e a dignidade – definida como o respeito “ao valor inerente de nossas próprias vidas”. Para ele, “a dignidade [...] encontra-se no cerne de ambos os argumentos” – em prol ou contra aborto e eutanásia. Ainda segundo Dworkin16, no debate em torno das diferentes possibilidades de gestão dos limites da vida, apresenta-se mais uma categoria: a liberdade individual, valor preeminente na cosmologia ocidental moderna6. Trata-se do que Luiz Fernando Duarte6 aponta como características ideológicas gerais da “cultura ocidental moderna”6, com os seguintes valores estruturantes: “individualismo ético”, “hedonismo”, “naturalismo” e “racionalização corporal”6. A primeira expressão, o individualismo ético, enfatiza o primado da escolha pessoal, da presumida liberdade individual. Para Duarte6, o qualificativo ético se refere à tradição weberiana e sua ênfase na associação da racionalidade moderna com o desencantamento do mundo. A segunda linha de força – o hedonismo – significa o privilégio do prazer a ser obtido no mundo. O naturalismo concerne à importância da categoria natureza na cosmologia moderna. No terreno moral, está presente uma associação com um estado “natural”, um “direito natural”, característico das sociedades humanas6. A partir dessa perspectiva, é possível refletir sobre as tensões explicitadas nos casos em pauta. De um lado, a vida como valor fundamental em nossa cultura, valor que remete à dimensão holista27, da totalidade, de um plano transcendente e englobante do indivíduo, que também está articulado com a visão de natureza6. Quanto ao valor da vida, prosseguir o desenvolvimento do feto em uma gestante em morte cerebral seria contraditório com a morte da mulher (definição de morte encefálica) e à natureza, em seu apelo à tecnologia de suporte de manutenção vital, mas enfatiza a vida do feto. Com respeito à noção individualista de pessoa, seria considerar o feto um sujeito e a mulher um meio, suporte para o desenvolvimento do primeiro. Por outro lado, invocar o direito desta, mesmo morta, à autonomia, é enfatizar sua condição de indivíduo, em contraposição ao direito do feto à vida. Esses valores referentes à vida e à natureza estariam em íntima conexão e imbricamento com a categoria dignidade, como respeito ao valor inerente à vida16. Já no que tange à liberdade, segundo Dworkin16, a liberdade de consciência pressupõe a responsabilidade pessoal de reflexão, conforme a dimensão do individualismo ético reportada por Duarte6. Os casos sem condições de refletirem sobre a própria vida e liberdade, como demências ou morte cerebral, propiciam dilemas complexos: quem pode/deve responder pelas decisões? Faz-se necessário analisar cada situação. Diante da criação e desenvolvimento de cada nova tecnologia ou recurso terapêutico dirigido à criação ou manutenção/extensão da vida, emergem novas formulações referentes a: normatização, conduta ética de profissionais de saúde e cientistas, critérios, prognósticos e diagnósticos, possibilidades de controle de condições de vida/dor/sofrimento, entre outras – do direito, da medicina e da sociedade em sentido amplo. No caso de morte cerebral de gestante, configura-se uma equação de difícil solução, na qual a exaltação da vida como valor supremo e a liberdade individual ocupam posições relevantes. Todas as situações e casos aqui referidos evidenciam um valor crucial em nossa sociedade ocidental contemporânea: a vida. Contudo, visto que, cada vez mais, a biomedicina busca e consegue produzir vida a partir de formas inovadoras; e, também, manter a vida do feto sob condições anteriormente impensáveis, como é o caso da morte cerebral materna, dilemas éticos emergem, conduzindo à demanda de reflexões, não apenas de especialistas, como da sociedade mais ampla. Em cada situação, diferentes atores sociais possuem lugar central na tomada de decisões. No exame dos aspectos envolvidos em cada contexto, buscamos refletir não apenas sobre os posicionamentos dos atores sociais, mas acerca de suas posições políticas, pois partimos do pressuposto de que vida e morte não constituem noções definidas pela ciência. Antes, tais categorias são conceitos políticos, que adquirem significado somente na vigência de uma decisão médica e/ou jurídica.

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Colaboradores As autoras participaram, igualmente, do levantamento de notícias da mídia e da pesquisa bibliográfica, da análise dos dados, da redação do artigo e, também, da revisão e elaboração da versão final do texto. Referências 1. Lock M. Twice dead: organ transplants and the reinvention of death. Berkeley: University of California Press; 2002. 2. Field DR, Gates EA, Creasy RK, Jonsen AR, Laros Jr. R. Maternal brain death during pregnancy: medical and ethical issues. JAMA. 1988; 260(6):816-22. 3. Ariès P. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1981. 4. Menezes RA, Ventura M. Ortotanásia, sofrimento e dignidade: entre valores morais, medicina e direito. Rev Bras Cienc Soc. 2013; 28(81):213-29. 5. Menezes RA. Biomedicina e gestão contemporânea do morrer. In: Ewald A, Soares JC, Severiano MF, Aquino CAB, Mattos A, organizadores. Subjetividades e temporalidades: diálogos impertinentes e transdisciplinares. Rio de Janeiro: Garamond; 2014. p. 285-310. 6. Duarte LFD. Ethos privado e racionalização religiosa. Negociações da reprodução na sociedade brasileira. In: Heilborn ML, Duarte LFD, Peixoto C, Lins de Barros M, organizadores. Sexualidade, família e ethos religioso. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. p.137-76. 7. Menezes RA. A medicalização da esperança: reflexões em torno de vida, saúde/ doença e morte. Amazônica: Rev Antropol. 2013; 5(2):478-98. 8. Agamben G. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2010. 9. Gomes EC, Menezes RA. Aborto e eutanásia: dilemas contemporâneos sobre os limites da vida. Physis. 2008; 18(1):77-103. 10. Mauss M. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva; 2003. p.369-97. 11. Dumont L. Ensaios sobre o individualismo: uma perspectiva antropológica sobre a ideologia moderna. Lisboa: Dom Quixote; 1992. 12. Duarte LFD, Giumbelli EA. As concepções de pessoa cristã e moderna: paradoxos de uma continuidade. Ann Anthropol. 1994; (93):77-111. 13. Weber M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira; 1992. 14. Zorzanelli RT, Ortega F, Bezerra Jr B. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Cienc Saude Colet. 2014; 19(6):1859-68. 15. Camargo Jr KR. Biomedicina, saber & ciência: uma abordagem crítica. São Paulo: Hucitec; 2003. 16. Dworkin R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes; 2003. 17. Diniz D. Quando a morte é um ato de cuidado: obstinação terapêutica em crianças. Cad Saude Publica. 2006; 22(8):1741-8. 18. Salem T. As novas tecnologias reprodutivas: o estatuto do embrião e a noção de pessoa. Mana; 1997; 3(1):75-94. 19. Luna N. As novas tecnologias reprodutivas e o estatuto do embrião: um discurso do magistério da Igreja Católica sobre a natureza. Genero. 2002; 3(1):83-100.

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Aisengart Menezes RA, Luna N. Gestación y muerte cerebral materna: decisiones en torno de la vida fetal. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):629-39. Este artículo presenta casos de muerte cerebral de gestantes de diversos países que fueron publicados en la prensa con el objetivo de reflexionar sobre el proceso de toma de decisiones referentes al soporte de las funciones vitales de la embarazada para posibilitar el desarrollo del feto hasta su viabilidad. A partir del análisis de los posicionamiento divulgados en los medios, de los distintos actores envueltos, tales como familiares, equipo médico, representantes religiosos, agentes de justicia, ente otros, consideramos ser posible el acceso a los valores presentes en cada contexto y situación.

Palabras clave: Muerte encefálica. Embarazo. Feto. Soporte vital. Decisiones.

Submetido em 25/04/16. Aprovado em 30/08/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0206

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Significados, para os familiares, de conviver com um idoso com sequelas de Acidente Vascular Cerebral (AVC) Rogério Donizeti Reis(a) Elaine Cristina Pereira(b) Maria Isabel Marques Pereira(c) Ana Maria Nassar Cintra Soane(d) José Vitor da Silva(e)

Reis RD, Pereira EC, Pereira MIM, Nassar AM, Soane C, Silva JV. Meanings to family members living with an elderly affected by stroke sequelae. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):641-50.

The objective of this study is to identify the meanings for relatives who live with an elderly with stroke sequelae. The study participants were family members cohabiting with elderly men and women with stroke sequelae. The sample consisted of 15 family members. Data was gathered using a questionnaire on personal and family characteristics of the participants and semi-structured interviews. We used the Bardin Content Analysis in order to extract the main ideas. The emerging categories for the theme ‘meaning of living together’ were ‘a painful experience’, ‘habits and life changes’, ‘a very difficult situation’, ‘to be resilient’ and ‘the difficulty of the individual in accepting the disease’. We conclude that living with elderly individuals with stroke sequelae has physical, psychological and familial implications.

Keywords: Elderly. Stroke. Family.

O objetivo deste estudo é identificar os significados para os familiares de conviver com idosos com sequelas de AVC. Os participantes do estudo foram os familiares que conviviam com idoso do gênero masculino e feminino. A amostra foi constituída por 15 membros familiares. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram questionário referente à caracterização pessoal e familiar dos participantes e o roteiro de entrevista semiestruturada. Para extração das ideias principais, foi utilizada a Análise de Conteúdo de Bardin. As categorias emergentes do tema ‘Significado de conviver’ foram ‘Experiência dolorosa’, ‘Mudança de hábito e de vida’, ‘Uma situação muito difícil’, ‘Ser resiliente’ e ‘Dificuldade da pessoa em aceitar a doença’. Conclui-se que conviver com idosos com sequelas de AVC assume caráter com implicações físico-psicológicas e familiares.

Palavras-chave: Idoso. Acidente vascular cerebral. Família.

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Acadêmicos, Curso de Enfermagem, Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (EEWB). Rua Ana Campos Gonçalves, 69. Itajubá, MG, Brasil. 37503172. rogerioreisfisio@ yahoo.com.br; ela_cris25@hotmail.com (c,d) Enfermeiras. Itajubá, MG, Brasil. isamp@hotmail.com; anamariasoane@ bol.com.br (e) Departamento de Enfermagem, EEWB. Itajubá, MG, Brasil. enfjvitorsilva@oi.com.br (a,b)

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Introdução Vários são os estudos que nos mostram a importância da saúde e qualidade de vida (QV) do ser idoso e do processo de envelhecimento populacional. Isso se torna relevante a partir do momento em que o idoso adoece e tem sua capacidade física, social, psicológica e espiritual transformada, deixando de ser um idoso ativo e produtivo para ser um sujeito totalmente dependente, como nos casos das doenças crônicas degenerativas, dentre as quais o acidente vascular cerebral (AVC). O idoso enfrenta restrições, no dia a dia, da sua caminhada, desde aspectos psicológicos, emocionais, sociais e, sobretudo, físicos, como: lentificação da marcha, instabilidade postural, presbiacusia e déficit visual. Esses são exemplos de deteriorações que o levam a um quadro de dependência acerca das atividades de vida diária e, no caso do idoso com AVC, tais limitações são nítidas, diminuindo, assim, sua autonomia. As restrições do dia a dia levam a família a se responsabilizar pela prestação de cuidados na saúde e na doença dos seus entes queridos. É na família que se aprende o autocuidado, adquiremse comportamentos de bem-estar, prestam-se cuidados a diferentes membros ao longo do seu desenvolvimento e durante as diferentes transições do ciclo vital. Habitualmente, os diferentes membros que a compõem apoiam-se uns aos outros em atividades de promoção de saúde e nos processos de doença aguda e/ou crônica1. É na especificidade do cuidar de um familiar em nosso país que surgem, ainda, sentimentos ambivalentes que se caracterizam por satisfação, generosidade, afeto e amor, assim como por sobrecarga, sofrimento, incerteza e estresse. Em todos os países, existe uma preocupação com o envelhecimento da população. Segundo Fabrício2, vários estudos voltam-se para um envelhecimento saudável e ativo, pautados em experiências positivas e oportunidades seguras de saúde, com potencial para o bem-estar físico, social e mental, com valorização da capacidade funcional. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística3, a expectativa de vida do brasileiro subiu para 74,9 anos em 2014. Em 2013, a expectativa era 74,6 anos. Esse índice aumentou em 11 anos nas últimas três décadas, o que é um fato positivo, porém preocupante, pois, com o aumento, existe maior prevalência de doenças crônicas degenerativas, e, sem dúvida, um melhor preparo dos profissionais de saúde se torna necessário para atender as necessidades das famílias, do idoso e da comunidade2. Os acidentes vasculares cerebrais são um importante problema de saúde pública, com uma taxa de alta letalidade e uma percentagem significativa de sobrevivente dependente. Com efeito, a cada ano, 15 milhões de pessoas no mundo sofrem um AVC. Gomes4 diz que, deste número, cinco milhões de pessoas morrem e outros cinco milhões sobrevivem com uma incapacidade permanente, causando graves consequências em termos pessoais, familiares e de comunidade. Nessa conjuntura, o AVC tem grande capacidade de gerar déficit no funcionamento físico, sensorial e cognitivo, com impacto no dia a dia e no desempenho do indivíduo, no que diz respeito às atividades da vida diária. No Brasil, apesar do declínio das taxas de mortalidade, o AVC representa a primeira causa de morte e incapacidade no país, o que interfere em grande impacto econômico e social. Dados provenientes de estudo prospectivo nacional indicaram incidência anual de 108 casos por 100 mil habitantes, taxa de fatalidade aos trinta dias de 18,5%, e, aos 12 meses, de 30,9%, sendo o índice de recorrência após um 1 é de 15,9% (datasus)5. Para Girardon6, a incapacidade funcional dos atingidos, muitas vezes, resulta na restrição ou limitação dos movimentos, tornando-os incapazes de realizarem sozinhos suas atividades da vida diária e outras tarefas. Perante a limitação, passam a depender do auxílio de outrem. Essa restrição que cerceia suas ações acaba por lhes comprometer, também, a capacidade de decidir sobre o que e quando desejam realizar determinada atividade, perdendo, assim, sua independência e autonomia. Araújo et al.7 relatam que as sequelas e os sentimentos de angústia afetam diretamente o cuidado prestado ao ser e, por fim, a oferta de maiores esforços para a qualidade de vida do paciente. Para primar pela melhora da independência e autonomia do outro, esses sentimentos devem ser controlados. Os cuidadores devem se apresentar dotados do sentimento de cuidar, pois, dessa forma, 642

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é possível atrelar o cuidado aos aspectos imperativos da individualidade do ser, seguindo o modelo holístico de cuidado, bastante defendido pela enfermagem atual, que leve o sujeito à maior autonomia e independência. Considerando o que foi exposto anteriormente, o objetivo deste estudo constitui identificar o significado, para os familiares, de conviver com um membro idoso com sequelas de AVC.

Método O presente estudo foi elaborado de acordo com a abordagem qualitativa do tipo exploratório, descritivo e transversal. Os participantes do estudo foram os familiares que conviviam no dia a dia com o idoso com sequelas de AVC. Este estudo teve como cenário a cidade de Itajubá/MG no que tange aos seus diversos bairros, tanto da zona urbana quanto rural, onde viviam pessoas idosas com sequelas de AVC e seus familiares. A amostra constituiu-se de 15 cuidadores informais após técnica de saturação e a amostragem foi a técnica Snowball (bola de neve). Os critérios de inclusão foram: Ter um membro familiar idoso com sequelas de AVC e que necessite de ajuda nas atividades de vida diária; Ser cuidador informal; Conviver com o idoso com sequelas de AVC, prestando-lhe cuidado direto há, pelo menos, seis meses. O critério de inclusão de ter, no mínimo, seis meses de experiência deve-se ao fato de que, segundo Monteiro8, toda adaptação a qualquer situação nova ocorre, geralmente, após o período de vivência e experiência; Ser maior de 18 anos; Aceitar participar do estudo, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O critério de exclusão se limitou a serem cuidadores informais de idosos com capacidade cognitiva e de comunicação comprometidas. O presente estudo obedeceu aos preceitos estabelecidos pela Resolução nº 466/12, de 12 de dezembro de 2012, do Ministério da Saúde, que trata da ética em pesquisa envolvendo seres humanos. O parecer consubstanciado que aprova a realização do estudo encontra-se sob o nº 889.895/2014. Os dados foram colhidos nos domicílios. A coleta de dados teve início após a aprovação do estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz. Foi obtida a anuência do entrevistado por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A entrevista foi realizada após agendamento prévio com cada um dos participantes, em local e data determinados pelos familiares. Antes da realização da entrevista, os pesquisadores explicaram os objetivos do estudo, assim como o desenvolvimento de todo o trabalho, e foram esclarecidas todas as dúvidas. Teve-se o cuidado de manter um ambiente calmo e tranquilo, isento de ruídos, proporcionando privacidade e segurança. Após a entrevista gravada, foi feita a transcrição. Para a entrevista, foram utilizados dois instrumentos durante a coleta de dados: um questionário referente às características sociodemográficas do cuidador; e, o segundo, constituiu um roteiro de entrevista semiestruturada, contendo uma pergunta norteadora: ‘Fala para mim o que significa conviver com um idoso com sequelas de AVC?’ Na estratégia de análise de dados, o método escolhido foi a Análise de Conteúdo de Bardin9.

. . . . .

Resultados e discussão Diante do levantamento das características pessoais e familiares dos participantes da pesquisa, obtivemos, como resultado, a prevalência do sexo feminino, com 73,33%; a idade média foi de 58,20 anos (DP=16,70); 46,67% concluíram o Ensino Médio. Dentre as profissões, destacaram-se: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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comerciantes, do lar, técnico de enfermagem e enfermeira, com 13,33% cada, e 53,33% não são aposentados. Os que professam a religião católica perfizeram 60%. De todo o universo entrevistado, 40% eram filhas, e o tempo de convivência variou entre um e dois anos, equivalendo a 33,33%. No que se refere à caracterização dos familiares entrevistados, 53,33% eram membros de uma família extensa. No que concerne à renda familiar, 26,66% possuíam de três a quatro salários. Os que residiam em casa própria totalizaram 86,66%. Do tema explorado: ‘conviver com idoso com sequelas de AVC’ emergiram as categorias do Quadro 1.

Quadro 1. Categorias relacionadas ao aspecto conviver Conviver

Frequência

Experiência dolorosa

11

Mudança de hábito e de vida

10

Uma situação muito difícil

7

Ser resiliente

7

Dificuldade da pessoa em aceitar a doença

3

Fonte: dos autores.

Em relação ao aspecto ‘conviver com idoso com sequelas de AVC’, foram evidenciadas cinco categorias descritas abaixo: ‘experiência dolorosa’, ‘mudança de hábito e de vida’, ‘uma situação muito difícil’, ‘ser resiliente’, ‘dificuldade da pessoa em aceitar a doença’. Refletindo a categoria ‘experiência dolorosa’, o participante relatou: Eu nunca tinha passado por essa experiência, não esperava passar. É muito triste, principalmente ver a mãe da gente sofrendo assim. A gente fica muito nervosa, aflita, sem saber o que fazer... Perdida. É complicado. A gente vai dar comida, não quer. Dá remédio, ela cospe. Sabe? Se vai trocar, ela grita. Não é fácil não. Dar banho, acamada, não vira, não se mexe, então, vai complicando. Começa a aparecer cada dia uma coisa nova: um dia está irritada, outro dia brava. É a pior coisa que eu já passei na minha vida, sinceramente. (p. 4)

É possível perceber que cada família é única e passa por processos diversificados, vivenciando-os de maneira particular. Portanto, é necessário conhecer e compreender os seus comportamentos. Diante de uma doença crônica, cada membro da família reage de forma inesperada: enquanto alguns assumem atitudes de superação, outros regridem no seu caminhar definitivamente. Alguns não assumem quaisquer cuidados, abstêm-se inteiramente devido ao sofrimento mútuo. Ainda há aqueles em que a relação pode se desenvolver sem participação e envolvimento harmonioso entre ambos, inclusive na falta de interesse e retribuição pelos idosos com sequelas de AVC. Diante do exposto, quando se depara com uma situação de doença na família, o que se evidenciam, muitas vezes, são experiências difíceis, atribuladas e que causam grande comoção. O sofrimento é nítido devido à capacidade do ser humano para se compadecer com a fragilidade do outro. Para Mendonça, Garanhani e Martins10, sentimentos como revolta, frustração e clausura podem ser empiricamente evidenciados no ambiente em que se encontra o idoso com AVC. O AVC pode ser considerado um evento novo e inesperado na vida tanto do paciente quanto daqueles que formam sua rede social. Do mesmo modo, é importante que a família, também adoecida, esteja amparada nesses momentos de crise, dúvidas e incertezas. Portanto, é imprescindível pensar nas necessidades e desejos destes sujeitos, objetivando prepará-los para o cuidado no domicílio11. Ainda segundo Paiva e Valadares11, as doenças crônicas degenerativas, como o AVC, evidenciam o papel da família como centro de prestação de cuidados.

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Frente ao adoecimento de um membro, todos os outros são atingidos. Cabe pensar que é no contexto familiar que a doença evolui, surgem os problemas e as possíveis soluções. Os familiares vivenciam e se envolvem em todas as fases do adoecer, oferecendo suporte no cuidado ao doente. Assim, a doença, especialmente a crônica, é sempre um acontecimento estressor que produz efeitos no paciente e na família, e esta, ao vivenciar a crise, experimenta, inicialmente, um desequilíbrio em sua capacidade de funcionamento normal, provocando alterações que envolvem afeto, finanças e relações de poder, implicando um processo de reorganização familiar. O cuidado familiar surge, então, como parte importante das ações de manutenção da autonomia, integração e participação do idoso nas relações e na sociedade12. Concomitantemente à experiência dolorosa, há, também, uma mudança de hábito e de vida, fato evidenciado na fala do participante: Significa toda uma mudança de hábito, de vida, de hora, de tudo. Tivemos que construir uma nova vida, uma nova caminhada. Por que antes nós não pensávamos no outro. Assim, saia sem se preocupar, não tinha hora pra chegar. Quando o pai teve o AVC e levamos ele lá pro hospital... Nossa um AVC! O que vai ser da nossa vida agora? O que vai ser da vida do pai agora? Ele, que era uma pessoa tão ativa, tão pra frente. Aí, traz ele pra casa desse jeito, ele completamente debilitado. No começo foi muito difícil. A gente teve que fazer tudo pro pai. Muito difícil. Então, foi uma mudança radical nas nossas vidas. Então, assim, é um reaprender, um reviver de novo. A gente está lutando contra essas mudanças, mas está sendo difícil. Cada dia é um dia. A gente sai, mas sai pensando na pessoa que está com ele. O que será que está acontecendo? Será que está bem? Será que não está? E ele assim... Hoje o pai, o pai é uma criança grande, por que mesmo tendo a cabecinha aparentemente normal, o pai é uma criança. Não tem mais suas vontades próprias. Ele vive em função do que a gente fala. Faz isso, faz aquilo, levanta, acorda. Então ele vive em função nossa e a gente em função dele. (p. 3)

Nota-se que o membro familiar teve de construir uma nova vida, uma nova caminhada e uma nova identidade, cujo desafio de conviver tornou-se aspecto crucial. O membro familiar que assume o convívio deve adquirir novos hábitos. A sua vida é toda transformada. Há uma mudança por completo, que vai desde assuntos menos relevantes do cotidiano, até temas significativos, como viagem, férias e privacidade. Com isso, o cuidador se vê na necessidade de aprender a encontrar atalhos no dia a dia para contornar as diversas situações que acarretam mudanças radicais do seu agir, da sua convivência e, sobretudo, da sua vida. Salienta-se que a mudança no hábito de vida é um reaprender e um desafio de reviver. As alterações sociais são situações preponderantes que levam à estagnação da continuidade de uma qualidade de vida harmoniosa, fato percebido quando o cuidador se depara perante um familiar idoso que necessita de assistência continuada. E isso provoca revolta, angústia e insatisfação, privando-o de alguns prazeres. É de suma importância a identificação das mudanças que ocorrem no cuidador que está envolvido no convívio com a pessoa em situação de AVC, para, assim, poder evitar os efeitos mais negativos, promovendo a saúde das pessoas, tanto com dependência quanto de si próprios, e contribuindo para a estabilidade e melhorias nas relações familiares. Ao prestar cuidados, o cuidador passa a ter menos tempo para cuidar de si, descansando menos e trabalhando mais, ou seja, privando-se do convívio social, uma vez que o doente acometido por AVC se torna o centro das atenções. Esses fatores levam o cuidador à reacomodacão de suas práticas diárias, privilegiando as atividades exigidas em favor do quadro da doença, submetendo-se, assim, a uma sobrecarga física e emocional relacionada à intensidade de cuidados prestados7. A sobrecarga é um fator preocupante, pois leva o indivíduo ao desenvolvimento da fadiga ocupacional. Quando somada à prestação de cuidados, atividade que exige determinação, destreza e atenção, por parte do executante, pode levar ao desgaste emocional e, possivelmente, ao desequilíbrio no processo de saúde e doença. Daí a necessidade de que tanto ele quanto o idoso acometido por AVC tenham necessidade de cuidados especiais7. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ohara et al.13 são sucintos ao dizer que, por se tratar de uma síndrome multifatorial, é de grande importância compreender as relações entre o idoso fragilizado e seu contexto familiar no que refere ao cuidado, porque o cuidar do idoso de alta dependência no domicílio modifica toda a dinâmica da família. Para Pavin e Carlos14, o ato de cuidar e o convívio demandam responsabilidade e tempo de quem exerce tal função. Os cuidadores vivenciam diversas situações difíceis, permeadas por mudanças em suas vidas, as quais podem ser de ordem econômica, física, emocional e espiritual. Assim, é necessário que o cuidador disponha de tempo para a realização de suas atividades diárias e, também, para a elaboração de estratégias de enfrentamento dos aspectos negativos advindos do processo de cuidar e conviver, pois isso acarreta mudanças, influencia o surgimento de doenças, sobrecarga de responsabilidades e tarefas ao familiar. Nota-se que, quando há uma mudança da rotina diária, o cuidador começa a vivenciar uma situação muito difícil, como ficou explícito no seguinte discurso: Então, desde 97 meu pai tem o AVC. Então, no caso, eu era muito criança. Cresci vivendo esta situação de dificuldade. Agora, na minha família desestruturou tudo, porque querendo ou não, ele ficou dependente, ou seja, algumas coisas que ele tinha que fazer, ele tinha que depender de alguém. No caso na fala, tem coisa que ele fala e que você não entende. Aí alguém tem que estar pra interpretar o que ele está falando. Para andar, às vezes, ele precisa de apoio. Ele apoia a mão nos ombros, no caso, ou da minha mãe ou no meu ombro para estar levando onde ele quer ir. Então, assim, o choque maior foi mais pra minha mãe, porque os dois são companheiros até hoje. Eles saíam muito, iam muito na igreja e, depois que ele teve isso, ele... Como se diz? Perdeu a vontade de viver. Não aceita ajuda. Entendeu? Não é porque a família não quer. A família até procura ajudar. Somos em 9 filhos. Somos unidos e sempre ajudamos, incentivemos e falamos: pai, vamos fazer uma fisio, fazer uma fono? Ele mesmo fala: eu já perdi o gosto de viver. Então, ele não sai de casa. Ele não sai de casa pra nada, a não ser só pra ir ao médico ou ao banco só. Tem vergonha dos outros. Não fala. Entendeu? Então, pra gente, isso, como se diz? Foi um susto, porque uma pessoa saudável, sempre trabalhou, gostava de falar, de sair e teve o AVC. Então, não só pra gente, mas pra ele também foi um baque. (p. 12)

Quando se deparam com situações de doença crônica de um idoso na família, sentimentos como medo, preocupação, espanto e aflição são inseridas no seu contexto diário. Percebe-se que essas circunstâncias se dão pela dificuldade da limitação que a doença proporciona, fragilizando-a no decorrer da vida. A vida das pessoas envolvidas é transformada, sendo que ambos necessitam se adaptar às necessidades e ao tempo. As dificuldades apresentadas ficam evidenciadas quando os cuidados são voltados para o domicílio, e isso causa um transtorno, pois, na maioria das vezes, faltam: experiência, compreensão, conhecimento, paciência e suporte de modo geral. Salienta-se que grande parte da população idosa, por si só, já se encontra parcialmente dependente, seja de ordem motora, psíquica ou social. Esse grau de dependência realça-se quando o idoso adoece, ficando à mercê dos cuidados familiares. Depois das experiências por nós comungadas, foi possível perceber a desestruturação do idoso, que, até então, era ativamente saudável e, de repente, se encontra totalmente vulnerável. Fato incontestável o envelhecimento ser um processo natural e cuja evolução pode modificar-se desde que haja ambiente e assistência adequados. O processo de recuperação e reabilitação pós AVC pode ser prolongado e requer paciência e perseverança por parte do paciente e da família. Dependendo do déficit neurológico específico decorrente do AVC, um paciente em casa pode necessitar de diversos serviços prestados por profissionais de saúde. A família é informada de que o paciente pode se cansar facilmente, pode se tornar irritadiço e contrariado por pequenos eventos, e pode estar menos interessado por eventos do que o esperado15.

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O suporte familiar é fundamental para uma prestação de cuidados de qualidade ao membro mais velho. Todavia, prestar cuidados em casa para pessoas dependentes é uma tarefa árdua que pode acarretar consequência para o cuidador e para a família como um todo16. Araújo et al.17 afirmam que o cuidador é exposto a eventos diversificados que causam sofrimento. Ele sofre por não saber o futuro do idoso com sequelas de AVC e pelas incertezas quanto à doença e ao tratamento do AVC. O sofrimento é de ambos, tanto do cuidador como do ser cuidado, pelo fato de vê-lo sofrendo e, também, por sentir-se impotente em se reconhecer incapaz de livrar o outro do sofrimento. Diante de vários transtornos, o cuidador familiar tem a experiência de se transformar e de se encontrar verdadeiramente na resiliência; e ser resiliente é a capacidade de se aproximar do ser Supremo, pois é por meio desta aproximação que se cresce internamente e se desenvolve uma força pessoal para sair de diversas situações de adversidades. O que reforça este conceito é o estado de superação, ficando evidente nos cuidados prestados, na maneira de conduzir, adaptar-se e enxergar as limitações do idoso. Destaca-se, também, que a resiliência é uma transformação do ser que proporciona uma entrega, uma aproximação, um encontro com aquele que está fragilizado. Esse modo de ser e agir proporciona mudança de como os enfrentamentos são vivenciados, além de influenciar diretamente aquele que cuida, no que toca sobre como lidar consigo e com o ser cuidado, da transição da doença crônica até o equilíbrio da sua recuperação. Isso pode ser sinalizado na fala: Significa uma maneira de transformar-se, humanamente falando. De doar-se ao outro, de entregar-se, de amar. Porque o idoso com AVC, ele se torna limitado e nós temos que, de certa forma, adaptarmos a esta limitação. Limitação que nos leva a acreditar que é uma forma de sairmos de nós mesmos. De repente ficarmos numa total entrega. Entrega que exige o ser inteiro da gente naquele momento. É um momento onde nós aprendemos a nos aproximarmos, a encontrar, no meu caso, a mãe como mãe e a filha como filha. (p. 6)

O cuidador desenvolve a sua capacidade de resiliência à medida que se autoavalia frente às dificuldades enfrentadas no cuidado, confronta-se e permite conhecer o que realmente é importante perante a vida que lhe é confiada. Dotado dessas ferramentas, é capaz de dar um novo sentido e mudar de forma significativa sua maneira de ver as coisas e os relacionamentos. A resiliência é um processo ativo de resistência, reestruturação e crescimento em resposta à crise e ao desafio. A capacidade de superar os golpes do destino ultrajante desafia a sabedoria convencional da nossa cultura: de que o trauma precoce ou grave não pode ser desfeito; de que a adversidade sempre prejudica as pessoas mais cedo ou mais tarde; e de que os filhos de famílias perturbadas ou “destruídas” estão condenados18. Cuidar de um familiar adoecido configura grande responsabilidade e desafio. Novos recursos de enfrentamento precisam ser adotados pela família que se encontra afetada e desestruturada. A partir do significado que atribui ao evento de adoecimento, a família busca um equilíbrio, objetivando adaptar-se à nova realidade e auxiliar na recuperação do familiar acometido por uma doença11. Para Garces et al.19, além da capacidade de enfrentar a vida, a resiliência é a capacidade de vencer e sair encorajado de situações adversas e transformado. É um processo que excede o simples “superar” essas experiências, já que permite sair fortalecido por elas, o que, necessariamente, afeta a saúde mental. Diante de tudo que foi exposto, há toda uma transformação da vida do cuidador familiar, porém a dificuldade da pessoa em aceitar a doença torna o processo de adaptação e recuperação mais comprometedor. Nota-se esse fato por meio do conteúdo explicitado pelo participante a seguir: Foi uma experiência bastante complicada, porque foi tudo novo. E o que mais achei complicado foi a pessoa aceitar a doença e que ela vai precisar de um tratamento longo pra poder voltar os movimentos. Eu achei que foi, assim, muito complicado em lidar com isso, por que o paciente

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que está com AVC não tem muita paciência pra esperar a recuperação. A gente, às vezes, sem experiência com isso também, ficava meio atribulado e a pessoa também fica, por que a gente quer ver a pessoa melhorar, quer ver a pessoa andando bem, tendo o movimento normal de novo. Só que a recuperação é lenta, dura muito tempo e com muita fisioterapia. Então, a maior dificuldade que eu vi com isso daí, com paciente com AVC, foi isso daí. Foi a pessoa aceitar a doença e aceitar que a recuperação vai ser longa, que a recuperação não vai ser rápida. Foi uma grande dificuldade que nós enfrentamos aqui. Até a gente controlar tudo isso... Até a gente entender, captar a mensagem, já passou muito tempo, já teve muita coisa que aconteceu. A pessoa ficou nervosa. A gente fica nervoso com toda situação. Hoje, nós estamos sabendo controlar bem isso daí, mas passamos muita dificuldade com isso, nesse ponto da pessoa aceitar a doença e ver que a doença tem uma recuperação lenta. Eu acho, assim, que até é bom a pessoa que sai de um quadro desse ter um acompanhamento com um psicólogo pra explicar toda situação, pra preparar a pessoa pra receber isso daí, o que não é fácil. (p. 11)

O grande desafio encontrado em nossa profissão, seja nos cuidados da fisioterapia ou da enfermagem, é nos depararmos com um idoso fragilizado, tanto emocional quanto espiritualmente. Abalado devido à doença, o que dificulta no dia a dia da reabilitação, tratamento e reinserção sociofamiliar, trazendo à tona o desequilíbrio na família. A não aceitação da doença, o constrangimento com o auxílio na higiene e no vestir-se, assim como o fato de se sentir inválido e da alteração da autoimagem, são exemplos de situações relevantes quanto ao não aceitar a condição total ou parcial de dependência. Para Guedes20, as práticas sociais discriminatórias podem restringir substancialmente a autonomia e independência do idoso. Por exemplo, a recusa de emprego ou demissão das pessoas mais velhas; tratá-las como incapazes; recusar-lhes pensões que lhe permitam dar conta das necessidades básicas; no nível institucional, oferecer um ambiente excessivamente despersonalizado, onde a pessoa idosa seja tratada como incapaz, sem poder de decisão e dificultar-lhe o acesso a serviços de saúde. Outro ponto relevante no âmbito familiar é que o idoso fragilizado, muitas vezes, é obrigado a sair do seu lar e conviver com outro familiar que cuidará dele. Isso pode gerar resistência e dificuldade na reconstrução da vida, e o que era para ser um estreitamento familiar, pode tornar-se uma situação conflituosa. Por mais que alguns idosos não aceitem a sua dependência, existem muitos que acabam tornandose totalmente dependentes do cuidador, não aceitando cuidados de outras pessoas ou, inclusive, não se esforçando para fazer algumas atividades consideradas impossíveis por eles, acomodandose e provocando transtorno na rotina de vida do cuidador, gerando uma sobrecarga emocional e, consequentemente, um isolamento social21.

Considerações finais Os resultados do presente estudo permitiram concluir que o cuidador familiar que convive com um idoso com sequelas de AVC assume caráter com implicações do ponto de vista físico, psicológico, social e, sobretudo, na dinâmica familiar. A família que convive com um idoso debilitado em razão do AVC passa por mudanças inesperadas e, nem por isso, a vida deixa de ter significado. Salienta-se que, diante do desconhecido, surgem respostas que transcendem o eu, desencadeando sentimentos de frustração e fragilidade. Na maioria das vezes, o cuidador assume um papel de forma isolada. Contudo, diante das mudanças, este sujeito deve ser concebido como um elo entre o ente cuidado, a família assistida e os profissionais de saúde. Dessa forma, o cuidador, mesmo com a nitidez do sofrimento pessoal por estar com dúvidas e incertezas, é fundamental para a equipe multidisciplinar, para que essa, por sua vez, possa traçar intervenções para conduzir as atividades corretas no acompanhamento do idoso e de seus familiares.

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Portanto, sabe-se que o coexistir com o idoso com sequelas de AVC torna-se uma experiência dolorosa, provocada pela enorme mudança de hábito e de vida e pela dificuldade do enfermo em aceitar a doença. Apesar de a maioria dos cuidadores terem relatado que a convivência é uma situação muito difícil, para outros, ocasionou uma transformação do ser e uma aproximação com aquele que está fragilizado, o que chamamos de resiliência.

Colaboradores Rogério Donizeti Reis e Elaine Cristina Pereira participaram ativamente na elaboração, preparação, coleta, análise, interpretação dos dados e na discussão dos resultados. Os demais autores contribuíram de forma igualitária na discussão, revisão e aprovação da versão final do manuscrito. Referências 1. Araújo I, Santos A. Famílias com um idoso dependente: avaliação da coesão e adaptação. Rev Enferm Ref. 2012; 3(6):95-102. 2. Fabrício SCC, Rodrigues RAP. Revisão da literatura sobre fragilidade e sua relação com o envelhecimento. Rev Rene. 2010; 9(2):113-9. 3. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. @Cidades [Internet]; 2014 [citado 10 Jun 2014]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/. 4. Gomes MJAR. Vidas após um acidente vascular cerebral: efeitos individuais, familiares e sociais. Portugal. [Tese]. Minho: Universidade do Minho; 2012. 5. Ministério da Saúde (BR). DATASUS. Banco de dados do Sistema Único de Saúde [internet]; 2016 [citado 06 Jul 2016]. Disponível em: www.datasus.gov.br. 6. Girardon-Perlini NMO, Hoffmann JM, Piccoli DG, Bertoldo C. Lidando com as perdas: percepções de pessoas incapacitadas por AVC. REME. 2007; 11(2):149-54. 7. Araújo JS, Silva SED, Santana ME, Vasconcelos EV, Conceição VM. A obrigação de (des) cuidar: representações sociais sobre o cuidado a sequelados de acidente vascular cerebral por seus cuidadores. REME. 2012; 16(1):98-105. 8. Monteiro I. Antropologia: uma nova concepção. Petrópolis: Vozes; 2007. 9. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 10. Mendonça FF, Garanhani ML, Martins VL. Cuidador familiar de sequelados de acidente vascular cerebral: significados e implicações. Rev Saude Colet. 2008; 18(1):143-58. 11. Paiva RS, Valadares GV. Circunstâncias que influenciam na significação da alta hospitalar: estudo de enfermagem. Esc Anna Nery. 2013; 17(2):250-62. 12. Pereira RA, Santos EB, Fhon JRS, Marques S, Rodrigues RAP. Sobrecarga dos cuidadores de idosos com AVC. Rev Esc Enferm USP. 2013; 47(1):185-92.

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SIGNIFICADOS, PARA OS FAMILIARES, DE CONVIVER COM UM IDOSO ...

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Reis RD, Pereira EC, Pereira MIM, Nassar AM, Soane C, Silva JV. Significados para los familiares de convivir con un anciano con secuelas de Accidente Cerebrovascular (AVC). Interface (Botucatu). 2017; 21(62):641-50. El objetivo de este estudio es identificar los significados para los familiares de convivir con una persona anciana de la familia con secuelas de AVC. Los participantes del estudio fueron los familiares que convivían con un anciano con secuelas de AVC del genero masculino y femenino. La muestra estaba formada por 15 miembros de la familia. Los instrumentos utilizados para la colecta de datos fueron: cuestionario referente a la caracterización personal y familiar de los participantes y el guión de entrevista semi-estructurada. Para la extracción de las ideas principales se utilizó el Análisis de Contenido de Bardin. As categorías emergentes del tema ‘Significado de convivir’ fueron: ‘Experiencia dolorosa’, ‘Cambio de hábito y de vida, ‘Una situación muy difícil’, ‘Ser resiliente’ y ‘Dificultad de la persona para aceptar la enfermedad. Se concluye que convivir con ancianos con secuelas de AVC asume carácter con implicaciones físicas, psicológicas y familiares.

Palabras clave: Anciano. Acidente cerebrovascular. Familia.

Submetido em 23/03/16. Aprovado em 15/08/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0228

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O cuidado longitudinal difícil de uma usuária em situação de grave cronicidade: análise de caso emblemático José Roque Junges(a) Raquel Brondísia Panizzi Fernandes(b) Noéli Daiam Raymundo Herbert(c) Francine Tomasini(d) Leonice Werle(e)

Junges JR, Fernandes RBP, Herbert NDR, Tomasini F, Werle L, Pereira C, et al. The difficult longitudinal care of a female patient in a severe chronic situation: analysis of an emblematic case. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):651-9.

Ethical problems faced by professionals of primary care are complex, due to their emergence in unique situations, caused by the multiple dimension of care. The followup of patients resistant to treatment, which are difficult to care are cases that demand a differentiated handling. The article reports the analysis of a case of tough follow-up by a primary care team. The case emerged in a qualitative research about ethical problems, which took place in a municipality of the metropolitan region of Porto Alegre. The data collected by focus discussions regarding ethical problems and its possible ways of solution. To overcome the difficulties of the therapeutic relation between users and practitioners, the results pointed out to the need to enlarge the understanding of the health needs, recognizing the relational context of the application of clinic proceeds and the significance of the subjective experience of illness.

Keywords: Primary health care service. Health services needs and demands. Delivery of health care. Communication barriers. Bioethics.

Os problemas éticos, enfrentados pelos profissionais do nível primário, são complexos, porque surgem de situações únicas pela variedade de dimensões do cuidado. O acompanhamento de pacientes resistentes ao tratamento, difíceis de cuidar é uma dessas situações que necessita de um manejo diferenciado. Para discutir esta questão, será analisado um caso de difícil acompanhamento, relatado por uma equipe da atenção primária. O caso emergiu numa pesquisa qualitativa sobre problemas éticos realizada num município da região metropolitana de Porto Alegre. A coleta de dados foi por meio de discussões focais sobre problemas éticos, e seus cursos de solução. Para superar as dificuldades da relação terapêutica entre usuários e profissionais, os resultados apontaram para a necessidade de ampliar a compreensão das necessidades em saúde, de reconhecer o contexto relacional da aplicação dos procedimentos clínicos e a importância da experiência subjetiva do adoecimento.

Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Necessidades e demandas de serviços de saúde. Assistência à saúde. Barreiras de comunicação. Bioética.

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Cátia Pereira(f) Andressa Wagner Moretti(g)

(a,c,d,e,f,g) Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Av. Unisinos, 950, São Leopoldo, RS, Brasil. 93022-630. jrjunges@ unisinos.br; noherbert@ hotmail.com; fran_tomasini@ yahoo.com.br; werleleonice@ gmail.com; catiaef@ gmail.com; andressa.moretti@ hotmail.com (b) Curso de Psicologia, Campus Santiago, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Santiago, RS, Brasil. 97700-000. raquel.b29@ hotmail.com

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Introdução Em geral, define-se o nível terciário hospitalar da atenção à saúde como complexo, devido à sua gradativa tecnificação, mas, quando se parte de uma visão ampliada do processo saúde doença, a complexidade está presente, primordialmente, no âmbito primário, porque ali se manifestam os determinantes psicológicos, sociais e culturais de uma atenção continuada desse processo. No atendimento terciário, estão mais implicados recursos tecnológicos, conformando os problemas éticos do cuidado dos pacientes. Na atenção primária, o cuidado é configurado pelas delimitações humanas e socioculturais do usuário, que é acompanhado longitudinalmente em seu percurso existencial. Por isso, os problemas éticos enfrentados pelos profissionais do nível primário são mais complexos, porque implicam a incidência de determinantes humanos diversificados e imbricados entre si, ligados à vida da pessoa, fazendo emergir situações únicas e instigantes para o cuidado. Uma dessas situações desafiadoras para os profissionais são os pacientes resistentes ao atendimento e difíceis de cuidar. Saber lidar com suas reações e comportamentos necessita de um atendimento diferenciado. Por isso o acompanhamento longitudinal primário de pacientes difíceis tem uma complexidade própria, porque implica a integralidade do acolhimento e a temporalidade do cuidado, isto é, compreendidos na singularidade do seu caso e certos de uma atenção continuada do percurso temporal dessa situação. A questão dos pacientes difíceis é pesquisada na literatura. A discussão é geralmente sobre a causa dessa dificuldade, identificada com a associação da doença com estados psiquiátricos e psicopatológicos1-5. Para esses autores, o problema está nos comportamentos dos pacientes que estressam o atendimento dos profissionais. Mas não se perguntam por que o paciente reage negativamente diante daquilo que lhe é proposto como benefício. Por isso, nos últimos tempos, o acento mudou para as relações entre os pacientes e profissionais que são difíceis. Um estudo de coorte mostrou que o problema na interação é causado pelas expectativas e nível de satisfação dos pacientes com a atuação do profissional. Geralmente, tratamse de pacientes com uma diversidade de sintomas severos, estado funcional muito deteriorado, alta utilização de serviços clínicos associados a desordens mentais. Por outro lado, nesses encontros difíceis, os profissionais manifestam atitudes psicossociais inadequadas e pouca experiência em tratar de pacientes com um quadro terapêutico difícil6. Tendo presente essa mudança de perspectiva, os artigos mais recentes procuram propor estratégias para superar as dificuldades e melhorar os encontros. O profissional dar-se conta de como os elementos singulares desse caso podem incidir para dificultar a relação; como ele se sente em tratar esse paciente, e como o seu atendimento entra na sua agenda do dia. Tomar, com antecedência, consciência da singularidade desse paciente pode criar as condições para um encontro com melhores resultados7. Trata-se de passar de uma atitude defensiva para colaborativa com os pacientes que se mostram difíceis, partilhando a responsabilidade pelo seu cuidado e usando estratégias de coping. Para isso, o profissional precisa coletar informações para entender a totalidade do doente em sua família e contexto sociocultural, refletindo sobre o modo de levar a consulta, facilitando o coping do paciente a partir desses dados e evitando o estresse no encontro8. Para Fiester9, colocar o problema nas patologias físicas e mentais do paciente não é apenas uma explicação insuficiente, mas eticamente irresponsável, porque não explora dinâmicas causais mais aprofundadas. Por isso, defende que é necessário repensar completamente o modo de entender e tratar o paciente difícil, colocando o foco nas relações e considerando sua fratura e dificuldade como uma questão ética. Se o paciente não se experimenta bem tratado, dificultando a relação, embora o médico tenha tido as melhores das intenções, isso gera o dever ético, para o profissional, de reparar e emendar essa sensação. Essa obrigação independe se esse dano é real ou não, mas como é percebido. Se o comportamento do profissional é reativo em relação ao paciente, a solução é mudar a percepção sobre ele para poder melhorar o clima do encontro e a conduta do paciente na relação. Portanto, se o problema está nas relações difíceis, trata-se de uma questão ética para os profissionais9. Se essa análise vale para qualquer relação clínica, muito mais quando ela acontece num serviço de atenção primária, porque ali existe um acompanhamento mais próximo inserido no contexto 652

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vivencial do paciente e um cuidado que se prolonga pelo percurso de vida da pessoa. Nesse contexto de acompanhamento da saúde, as relações difíceis são mais frequentes do que em qualquer outro serviço, sendo indispensável analisar essas situações para ajudar os profissionais a se darem conta dos elementos que estão interferindo na qualidade do encontro e a melhorar o clima da relação clínica. Por isso é importante avaliar a atenção primária na perspectiva do acolhimento, vínculo-responsabilização e qualidade da atenção, pois a efetivação desses conceitos pode incidir na construção da integralidade10. Tendo presente o referencial teórico, se irá discutir um caso de difícil acompanhamento de uma usuária com um quadro severo de doença crônica, que surgiu numa pesquisa sobre problemas éticos na atenção primária de um município da região metropolitana de Porto Alegre. Discute-se o caso que foi relatado durante a discussão focal para a coleta de dados de um estudo qualitativo, desenvolvido em sete equipes de saúde da família, com vistas a reconhecer os problemas éticos que os profissionais experimentavam em sua prática e quais os cursos de solução para estes. Numa das equipes foi feito um longo relato, descrevendo detalhadamente: o quadro clínico, a prática de atendimento e as dificuldades do acompanhamento de uma usuária poli queixosa que causava muito estresse nos profissionais. Achou-se que valia a pena tomar esse relato como um caso emblemático de cuidado longitudinal na atenção primária a ser analisado e discutido. O projeto foi aprovado pelo CEP da universidade, com a Resolução 031/2013, e todos os profissionais assinaram o Termo de Consentimento.

Relato do caso A longa descrição feita pela equipe foi resumida no relato abaixo, procurando recolher os elementos básicos importantes para entender o caso da usuária chamada, ficticiamente, de Rosa. Rosa tem 67 anos, analfabeta, não tem filhos, foi profissional do sexo, atualmente vive com um companheiro, mas ausente, porque passa trabalhando fora. Por isso está sozinha a maior parte do tempo, atendendo a um bar e, como mora na frente de um cemitério, aproveita para vender flores. Rosa é cadeirante em decorrência de uma amputação anterior de membro inferior e apresenta graves lesões nos dedos da mão, ocasionadas por questões vasculares, diabete, hipertensão, acrescidas por tabagismo pesado e com grande dificuldade de adesão ao tratamento e mudança de estilo de vida. Durante o processo de cuidado mostra-se poli queixosa solicitante telefonando diversas vezes para a unidade; dirige-se aos profissionais com palavras de baixo calão agredindo-os verbalmente, mas, por outro lado, cria intimidade presenteando a equipe com flores; à revelia da equipe, solicita a ajuda de uma vizinha manicure para curativos das lesões e a mesma, até retira unhas e tecidos necrosados, utilizando alicates de unha. Pautada por essa sua inciativa, Rosa sugere que a enfermeira realize os curativos da mesma forma que a vizinha, tentando conduzir o modo como a profissional deveria realizar o procedimento. A equipe acompanha a mesma três vezes na semana para os curativos, sendo os outros dias realizados por essa vizinha que não segue as orientações médicas e de enfermagem para realizá-los. A complexidade do caso de Rosa demanda da equipe uma abordagem não tradicional pautada pela equidade, uma vez que o atendimento é realizado em seu domicílio, exigindo um atendimento permanente e diferenciado. Entretanto a própria equipe se pergunta se esse atendimento é equidade, pois a usuária ultrapassa os limites da relação ao solicitar ações domésticas que não fazem parte do cuidado e ao tentar conduzir a forma como a equipe deve agir nos procedimentos clínicos. Além disso, qualquer sucesso que a mesma apresente em relação as suas lesões, são, segundo ela, em decorrência do trabalho da vizinha, e isso é declarado verbalmente. A independência e desorganização de Rosa quanto às medicações e à falta de adesão ao tratamento com o consequente agravamento do quadro clínico criam sérias dificuldades para o cuidado. Essas dificuldades provocam nos profissionais o sentimento de frustração, impotência, desânimo, esgotamento e impaciência. Esses sentimentos levam a equipe a automatizar o atendimento e a fazer um revezamento dos profissionais no cuidado prestado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Discussão do caso Diante do caso de Rosa não se pode, simplesmente, culpar a usuária pela dificuldade do acompanhamento, mas perguntar-se quais elementos e circunstâncias interferem no relacionamento para tornar o encontro difícil para os profissionais. Por outro lado, é preciso questionar o modo como os profissionais veem a usuária, provocando neles atitudes defensivas que podem ser a origem dos próprios comportamentos estressantes da paciente Rosa. Isso significa assumir uma perspectiva ética para analisar o caso, em que é necessário colocar o acento na relação, especialmente nos dois sujeitos dessa relação, a usuária e os profissionais. Ambos têm de dar-se conta dos fios que tecem essa relação e como esses fios incidem na qualidade do encontro. Mas a iniciativa desse caminho de conscientização tem de ser dos profissionais, pois a insatisfação de Rosa torna-se, para eles, uma responsabilização ética. Eles terão de perguntar-se, tomar consciência e reagir a essa dificuldade, melhorando quanto possível a qualidade da relação clínica. Trata-se de superar a reação defensiva para uma atitude propositiva. Três questões merecem análise no caso de Rosa, pois parecem incidir na qualidade do encontro terapêutico: 1) O acompanhamento definiu, com a usuária, as suas reais necessidades em saúde ou apenas leva em consideração as suas demandas? 2) O atendimento dos profissionais está pautado pela relação ou foi reduzido a uma pura automatização de procedimentos clínicos? 3) O modelo de clínica, aplicado ao caso, consegue ter presente a subjetividade da usuária ou responde a puros parâmetros biomédicos? Pode-se notar que os três elementos estão intimamente implicados e imbricados em qualquer atendimento clínico de atenção primária: necessidades de saúde, relação terapêutica e atenção à subjetividade.

Necessidades de saúde da usuária Geralmente, a procura de um profissional da saúde por assistência responde à experiência de um carecimento, sendo sua intervenção entendida como o consumo de algum insumo ou procedimento que tem custo e caracterizada como demanda. O resultado dessa intervenção e a própria intervenção são reconhecidos como necessidades, e os serviços se organizam para responderem a essas demandas. Para racionalizar essas demandas, foram organizados os três níveis de atenção: primária, secundária e terciária. Essa estratificação responde ao consumo de uma diversidade de intervenções tecnológicas que respondem a necessidades conhecidas e naturalizadas como demandas, mas pode-se perguntar se não existem outras necessidades não nominadas que estão para além dessas intervenções definidas. No caso estudado, os profissionais procuram responder da melhor maneira possível às demandas de Rosa, entendidas como procedimentos que possam melhorar o seu estado de saúde. Mas ficam decepcionados porque ela não adere ao tratamento, mas, ao contrário, prefere as medidas tomadas pela sua vizinha manicure quanto às graves lesões nos dedos de sua mão. Essa atitude deixa os profissionais estressados, mas não chegam a se questionar se Rosa não tem outras necessidades de saúde que não são solucionadas pelos procedimentos estritamente clínicos. Não se perguntam nem incentivam narrativas de Rosa sobre os seus projetos de felicidade11. O fato de ela confiar mais na manicure não é uma alternativa ao procedimento clínico da equipe, mas sinal de uma outra necessidade de saúde, a que os profissionais não respondem, ligada à estética pessoal e à sua antiga profissão, apontando para um projeto de felicidade. Em vez de estressar-se por essa aparente rebeldia, eles poderiam perguntar-se a que necessidade aponta essa atitude que não é satisfeita por eles. Mas, para isso, é necessário deixar que essas necessidades escondidas apareçam e sejam reconhecidas. Por isso, Schraiber e Mendes-Gonçalves12 propõem a criação de espaços de emergência de necessidades na organização dos serviços que não são dominadas pelos profissionais. Trata-se de carecimentos da vida cotidiana, relacionados com o adoecimento e a recuperação, que não são assumidos pela ciência tradicional e não incluídos nos processos de atendimento. Isso significa resgatar e instaurar outros valores que foram negados pela racionalidade científica e excluídos da organização social, por estarem identificados com a subjetividade. Esse, certamente, é o caso de Rosa, sendo necessário criar, na organização do serviço, um espaço de reconhecimento de necessidades não respondidas. 654

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Isso significa, segundo Schraiber e Mendes-Gonçalves12: 1) Evitar a redução das necessidades de saúde a processos fisiopatológicos nas concepções dos serviços, redução esta que tem impedido de compreender a diferença que há entre complexidade científica das patologias e a complexidade tecnológica do trabalho em saúde... 2) Revalorizar a busca por assistências progressivamente totalizadoras do cuidado produzido, ao invés da somatória dos atos especializados... 3) Instituir a dimensão subjetiva das práticas em saúde como parte da inovação tecnológica, revalorizando, ..., uma prática cujas relações interpessoais também resguardem o sentido humano das profissões em saúde. (p. 34)

No relato do caso, nota-se uma forte preocupação dos profissionais pelas necessidades de saúde ligadas a processos fisiopatológicos, demonstrada pela inquietação com as lesões nas mãos, inviabilizando um cuidado mais totalizador e desconsiderando a dimensão subjetiva interpessoal no uso das tecnologias de saúde. Cecílio13 (p. 114-5) aponta para a importância de uma taxionomia das necessidades de saúde, que engloba: desfrutar de “boas condições de vida”, sejam elas funcionais e ambientais; poder acessar e consumir tecnologias de saúde, de todos os tipos, quando necessárias para recuperar e melhorar a saúde; estabelecer vínculo com uma equipe e/ou profissional como referência e confiança para o cuidado, e, por fim, alcançar níveis gradativos de autonomia para poder lidar com a saúde e levar a vida. Rosa busca boas condições de vida, expressas em necessidades de saúde entendidas em sentido amplo e integral, muitas vezes não respondidas por procedimentos clínicos. Por isso, toma iniciativas para alcançar o seu bem-estar dentro do seu projeto de felicidade, solicitando tecnologias que melhorem seu estado; e, para isso, por um lado, quer vínculo com a equipe, chamando-os frequentemente para ações em seu favor, e, por outro, demonstrando autonomia, quando solicita a ajuda da vizinha manicure para necessidades que os profissionais não atendem.

Encontro terapêutico entre usuária e profissionais A dinâmica desenvolvida no encontro terapêutico depende do modo de organizar os processos de trabalho num serviço de saúde, e essa organicidade depende dos elementos que configuram a micropolítica do trabalho em saúde. Aqui é preciso introduzir duas distinções de Merhy14 entre tecnologias duras, duras/leves e leves e entre trabalho morto e trabalho vivo em ato, essenciais para analisar essa micropolítica. A imbricação das diferentes tecnologias nos processos de trabalho é fundamental para entender a qualidade do encontro terapêutico. O encontro terapêutico de Rosa com a equipe é difícil, e essa dificuldade pode estar ligada ao papel das tecnologias nos processos de trabalho, que é determinante para a organização do serviço. Esse fato aponta para o segundo elemento que incide na relação difícil: a dinâmica do trabalho Os três tipos de tecnologias que intervêm na dinâmica do trabalho são: as duras, que se identificam com os diferentes insumos e instrumentos técnicos usados no atendimento; as duras/leves, que compreendem os saberes necessários para definir o diagnóstico e a terapêutica; e as leves, que conformam a relação, a confiança e o vínculo que se estabelece no encontro entre o profissional e o usuário14. Os três tipos de tecnologias estão presentes na relação clínica de Rosa com a equipe: instrumentos e insumos para melhorar o seu estado; saberes para entender o caso e definir medidas terapêuticas; e, por fim, a tecnologia central neste caso: relação, acolhimento, vínculo e cuidado. A questão é: se o uso de técnicas e saberes acontece num contexto relacional de cuidado. Dependendo da presença e implicação dessas diversas tecnologias na intervenção terapêutica, pode-se falar de trabalho vivo em ato ou de trabalho morto. O primeiro tem como acento a relação de vínculo que se estabelece entre o profissional e o usuário. O uso das outras tecnologias depende desse foco relacional que serve de contexto para a sua intervenção. Nesse sentido é um trabalho vivo, porque permanece aberto, pela relação que continua. Enquanto o trabalho morto seria aquele que acentua a realização de um procedimento, porque termina, morrendo na sua execução e no seu COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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resultado esperado. Nada permanece do encontro, do produto alcançado, ao menos formalmente, já que o procedimento foi aplicado14. A dinâmica do trabalho terapêutico realizado pelos profissionais não alcança os resultados esperados em Rosa, tornando a relação clínica difícil e estressante, porque o cuidado termina nos procedimentos aplicados, caracterizando o trabalho como morto. Tanto é isso que os profissionais estabeleceram um revezamento na ida à casa de Rosa para fazerem os curativos, por quererem fugir do encontro, automatizando, com isso, o próprio cuidado. Mas não é possível o cuidado, neste caso, sem relação de acolhimento e de vínculo que estão dificultados por empecilhos na dinâmica relacional. Nesse sentido, os profissionais estão mais preocupados com o êxito técnico, isto é, com a dimensão instrumental da sua ação, constatável pelos resultados clínicos mensuráveis dos seus procedimentos, do que com o sucesso prático que é a dimensão valorativa, demonstrada pelas implicações simbólicas, relacionais e materiais das ações terapêuticas na vida cotidiana de Rosa15.

Modelo clínico de cuidado da usuária A atenção às necessidades de saúde de Rosa e a presença da dinâmica relacional no encontro terapêutico com a equipe dependem do modelo de clínica presente nos processos de trabalho do serviço. Em muitos casos, esse modelo já está naturalizado e automatizado a ponto de os profissionais e a equipe não se darem conta de como ele funciona, como acontece no relato do caso. A tomada de consciência desse modelo é a base para uma responsabilização ética dos profissionais. Para o modelo tradicional, a clínica está baseada pela racionalidade instrumental expressa num conjunto de conhecimentos, artefatos e intervenções para prevenir, diagnosticar e tratar doenças com o objetivo de reverter ou controlar lesões ao funcionamento do corpo. Essa clínica abstrai do sujeito que sofre, de como esse sofrimento tem consequências sobre a biografia da pessoa, pois o que importa é a detecção do problema, definir a ação clínica e esperar o produto previsível e quantificável. As insuficiências dessa clínica tradicional levam a propor um modelo alternativo16. O insucesso terapêutico no caso de Rosa se deve à inconsciência da equipe quanto ao modelo de atendimento que está sendo usado no acompanhamento clínico da usuária. A solução seria os profissionais se darem conta desse caminho equivocado e buscarem uma via alternativa. Essa via seria a proposta da clínica do sujeito16 que supera fragmentações e reducionismos biológicos, afirmando o papel ativo do sujeito na relação clínica por meio do eixo do vínculo que ajuda a reconhecer as reais necessidades da pessoa sob cuidado17. Os profissionais não estão conseguindo dar um papel ativo à Rosa no reconhecimento das suas necessidades de saúde e na definição dos seus itinerários clínicos. Isso significaria transformar o encontro terapêutico numa prática de conversação que possibilita narrar a vida e o sofrimento, sentindo-se acolhido18. Isso poderia significar trazer a manicure para essa conversação, já que ela se tornou o elo de confiança para Rosa, embora seja o pomo da discórdia com os profissionais. Essa clínica ampliada do sujeito é a base para o cuidado, entendido como: “uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento físico e mental e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde”11 (p. 22). Será que os profissionais estão abertos ao narrar de Rosa sobre os sentidos da sua experiência existencial de adoecimento? Esse conhecimento é fundamental para a equipe como contexto terapêutico para a aplicabilidade e a adaptação das diferentes tecnologias da saúde à particularidade do caso de Rosa. Do contrário, acontecem ruídos na relação clínica, que dificultam o encontro e o cuidado, por falta de capacidade no profissional: 1) de escutar e acolher a demanda da usuária; 2) de articular conhecimentos gerais e específicos para entender o problema, e 3) de inserir as tecnologias da saúde no projeto terapêutico individualizado da usuária19. Todos esses três ruídos estão presentes no acompanhamento terapêutico de Rosa devido à falta de escuta atenta ao seu contexto existencial de adoecimento. Mas é necessário também ter presente que esse cuidado acontece em teia e depende de uma rede de atenção que está para além dos profissionais e da equipe local20. Certamente, o caso de Rosa necessita a assessoria de outros profissionais, como psicólogos e assistentes sociais, acessados 656

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a partir da rede, o que não acontece nesse caso. Mas, para viabilizar esse acesso à rede, os próprios profissionais precisam entender-se como atores em rede. A visão macropolítica das Redes de Atenção à Saúde depende da presença das redes na micropolítica dos processos de trabalho em saúde, porque o planejamento de arranjos organizacionais não pode ficar preso a uma matriz normativa com uma preocupação puramente estrutural, mas reconhecer a presença e a formação de microrredes no interior da organização como eficazes para a condução de projetos terapêuticos, pois o bom funcionamento e comunicação da rede ao nível macro do sistema depende do diálogo e das relações em rede ao nível micro do serviço21. Os profissionais têm dificuldade de se entenderem como atores de microrrede na sua própria unidade de saúde, porque revezam o cuidado de Rosa como forma de escapar do estresse de encontrá-la, e, por isso, automatizam, sem autogestão, o atendimento, não havendo uma autoanálise em grupo para potencializar a presença da sua subjetividade, criando novos percursos terapêuticos na prática do cuidado de Rosa.

Considerações finais O caso de Rosa é emblemático para analisar os “nós” e ruídos que dificultam e tornam difícil uma relação clínica. O problema não está na personalidade de Rosa, mas na relação que se estabelece entre ela e os profissionais. É mais fácil chamar o doente de difícil, do que se perguntar sobre quais elementos estão interferindo para que o encontro não seja benéfico para a enferma e agradável para o profissional. Esse questionamento sobre a qualidade da relação cabe ao profissional, porque ele tem a responsabilidade ética pelo cuidado do doente. Três questões foram discutidas para análise do caso, reveladoras da causa de ruídos na relação: necessidades de saúde, os processos de trabalho e o modelo de clínica. Os resultados podem contribuir para a prática de profissionais da atenção primária que lidam com usuários crônicos de difícil acompanhamento. Antes de mais nada, é necessário que eles conversem em equipe sobre esses casos para pactuarem caminhos de superação da relação difícil, sem rotular o usuário como difícil. Para isso, não reduzir a discussão do caso aos puros aspectos clínicos, mas trazer para a conversa os aspectos que estressam a relação e perguntar se o paciente não tem outras necessidades que eles não conseguem responder, tendo presente um leque mais amplo de demandas de saúde. Para que emerjam essas necessidades específicas, é preciso que a aplicação dos procedimentos terapêuticos aconteça num contexto relacional que facilite o diálogo e a comunicação, possibilitando, ao usuário, expressar a experiência subjetiva do seu adoecimento, relatando como a doença crônica afeta o seu modo de levar a vida e seus projetos de felicidade.

Colaboradores José Roque Junges participou ativamente da discussão dos resultados, da proposta do artigo, de sua escrita, revisão e aprovação final; Raquel Brondísia Panizzi Fernandes participou ativamente da discussão dos resultados e da proposta do artigo; Noéli Daiam Raymundo Herbert, Francine Tomasini, Leonice Werle; Cátia Pereira e Andressa Wagner Moretti participaram da coleta dos dados, da discussão e da busca de referências.

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O CUIDADO LONGITUDINAL DIFÍCIL DE UMA USUÁRIA ...

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Junges JR, Fernandes RBP, Herbert NDR, Tomasini F, Werle L, Pereira C, et al. El cuidado longitudinal difícil de una usuaria en situación de grave cronicidad: análisis de caso emblemático. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):651-9. Los problemas éticos enfrentados por los profesionales del nivel primario son complejos puesto que surgen de situaciones únicas por la variedad de dimensiones del cuidado. El acompañamiento de pacientes resistentes al tratamiento, difíciles de cuidar, es una de esas situaciones que precisa un manejo diferenciado. Para discutir tal cuestión se analizará un caso de difícil acompañamiento relatado por un equipo de atención primaria. El caso surgió durante una encuesta cualitativa sobre problemas éticos realizada en un municipio de la región metropolitana de Porto Alegre. La colecta de datos se realizó por medio de discusiones en grupo sobre problemas éticos y sus cursos de solución. Para superar las dificultades de la relación terapéutica entre usuarios y profesionales, los resultados mostraron una necesidad de ampliar la comprensión de las necesidades de salud, de reconocer el contexto relacional de la aplicación de los procedimientos clínicos y la importancia de la experiencia subjetiva de la enfermedad.

Palabras clave: Atención primaria a la salud. Necesidades y demandas de servicios de salud. Asistencia a la salud. Barreras de comunicación. Bioética.

Submetido em 05/04/16. Aprovado em 26/08/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0024

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Trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para atenção primária à saúde Rodrigo Alves dos Santos Silva(a) Fátima Corrêa Oliver(b)

Silva RAS, Oliver FC. Teaching career path and training of occupational therapists to primary health care. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):661-73.

This study aimed to identify and analyze the teaching career path and training of occupational therapists for Primary Health Care (PHC) in the state of São Paulo, Brazil. It is a qualitative research through interviews with 17 occupational therapy teachers. Data were categorized into two topics. 1) Teaching career path identified with PHC due to training experiences, professional practice and desires of changes to the clinical possibilities of territorial and extra-mural action and community occupational therapy. 2) The teachers reported training for PHC in courses through different teaching strategies, research and extension. Teaching career path in PHC and practicetheoretical learning needs to be valued in the training of occupational therapists acting in PHC.

Keywords: Occupational therapy. Training of health professionals. Work in health. Primary health care. Brazilian National Health System.

Objetivou-se identificar e analisar a trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para Atenção Primária à Saúde (APS) no estado de São Paulo, Brasil. Pesquisa de abordagem qualitativa por meio da realização de entrevistas com 17 docentes de terapia ocupacional. Os dados foram categorizados em dois temas. 1) A trajetória docente foi identificada com a APS a partir de experiências de formação, de prática profissional e de anseios de mudanças para as possibilidades extramuros de atuação territorial e comunitária da terapia ocupacional. 2) As docentes apontaram a realização da formação para APS nos cursos por meio de diferentes estratégias de ensino, pesquisa e extensão. A trajetória docente na APS e a aprendizagem teóricoprática deve ser valorizada na formação de terapeutas ocupacionais para APS.

Palavras-chave: Terapia ocupacional. Formação de profissionais de saúde. Trabalho em saúde. Atenção primária à saúde. Sistema Único de Saúde.

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(a) Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional, Departamento de Terapia Ocupacional, Laboratório METUIA, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Rodovia Washington Luís, km 235 - SP310. São Carlos, SP, Brasil. 13565-905. rodrigosilva.to@ gmail.com (b) Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. fcoliver.usp@usp.br

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Introdução A formação de terapeutas ocupacionais para a Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil se desenvolve a partir dos anos 1980 e 1990, quando se inicia a abrangência da formação para o cuidado nos três níveis de atenção à saúde, por meio da publicação do Currículo Mínimo de Terapia Ocupacional de 19831. Esse documento alargou a formação dos profissionais de terapia ocupacional para além da reabilitação, ao contemplar as ações de prevenção de doenças e agravos e de promoção da saúde2. Nesse contexto, tal mudança de perspectiva na formação de terapeutas ocupacionais se desenvolveu, sobretudo, devido à participação de docentes e profissionais da área, em processos de luta por cuidado integral, como nas Reformas Sanitária e Psiquiátrica brasileiras e pela luta e conquista de um sistema de saúde público para todos3. Esse marco da formação em 1983 e a participação de terapeutas ocupacionais nos processos de luta e mobilização social por direitos políticos, sociais e humanos do público-alvo de suas ações, somou-se à trajetória de capacitação de docentes para o desenvolvimento de pesquisas em diferentes áreas do conhecimento, como: saúde coletiva, educação, psicologia, educação especial e ciências sociais4. Esse processo vem sendo fortalecido com a recente criação de programa de pós-graduação stricto sensu em terapia ocupacional na Universidade Federal de São Carlos. Um outro marco importante nesse cenário foi a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais de Terapia Ocupacional de 20025 e as Políticas de formação de profissionais de saúde para o SUS (como o Pró-Saúde, Pet-Saúde, Ver-SUS, residências multiprofissionais), que apontam para a necessidade de uma formação geral e específica de profissionais para serem aptos a trabalharem de maneira interprofissional no contexto do SUS, a partir das realidades locais, em serviços de diferentes níveis de atenção, tanto de APS como nos serviços especializados6. Diante das transformações no campo da formação de terapeutas ocupacionais, são necessários esforços desse campo profissional para se refletir sobre a trajetória docente e a formação que é realizada nos cursos públicos e privados de terapia ocupacional para a APS, a fim de atender a inserção e o trabalho desse profissional nesse âmbito assistencial; como, também, às necessidades de pessoas que se encontram prejudicadas em sua inserção e participação social e na realização das suas atividades cotidianas6,7. Desse modo, o objetivo deste artigo foi identificar e analisar a trajetória docente e a formação de terapeutas ocupacionais para APS no estado de São Paulo.

Percurso metodológico O presente estudo caracteriza-se como de abordagem qualitativa. Fruto da pesquisa de mestrado sobre a ‘Formação Graduada de Terapeutas Ocupacionais para o Cuidado na APS no Estado de São Paulo’. Foi realizada a análise das múltiplas realidades subjetivas produzidas pelas trajetórias e experiências das participantes docentes na formação de terapeutas ocupacionais para a APS8. A pesquisa teve como recorte empírico os cursos localizados no estado São Paulo, que possui o maior número de cursos do país: 14 cursos de terapia ocupacional, cinco cursos públicos e nove cursos privados, de um total de 43 cursos públicos e privados em funcionamento no Brasil, no ano de 2015. O estado de São Paulo também possui o curso público mais antigo do Brasil, em funcionamento desde o ano de 19569,10. De maneira a promover e contribuir para o debate sobre a formação em saúde e de terapeutas ocupacionais para a APS, realizamos a análise da trajetória de 17 docentes de cinco cursos públicos e quatro privados de terapia ocupacional do estado de São Paulo, que são responsáveis pela formação de terapeutas ocupacionais para APS nesses cursos. Assim, para a construção dos dados, foi utilizado como instrumento de pesquisa: o Roteiro de Entrevista com Docente responsável pela formação para a APS, previamente construído com a contribuição de sete especialistas que possuem experiências no campo da pesquisa, ensino e prática profissional, relacionados aos campos da APS. 662

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O critério de escolha dos participantes foi intencional, a partir de autorização de participação na pesquisa de nove cursos de terapia ocupacional de um total de 14 que estavam em funcionamento no estado de São Paulo no ano de 2015. Nesse sentido, atendendo a indicação de cada coordenador dos nove cursos, chegamos a 17 docentes, que realizam a formação de terapeutas ocupacionais para APS. O processo de coleta dos dados foi realizado nas instituições de ensino dos participantes da pesquisa. Assim, após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foram registradas, em gravador de áudio, 17 entrevistas com as docentes, com duração total de 11 horas e 26 minutos, que foram transcritas, revisadas, organizadas e armazenadas em banco de dados. As transcrições foram encaminhadas às participantes via correio eletrônico a fim de possibilitar a análise de seus conteúdos e, se necessário, modificar algo que se julgasse pertinente. Apenas duas docentes recomendaram mudanças na transcrição, mas não houve alterações significativas que prejudicassem o conteúdo das falas iniciais. A partir do banco de dados criado, foi realizada a leitura exaustiva, o tratamento do material construído em campo e a categorização de temas associados ao objetivo do estudo. Para essa pesquisa, foi utilizado o processo de categorização, onde os dados construídos foram fornecidos ao sistema de categorias à medida que iam sendo encontradas11. Para este artigo, foram escolhidas as seguintes categorias: a trajetória de formação profissional e acadêmica das docentes terapeutas ocupacionais na APS; as atividades de formação nos campos do ensino, pesquisa e extensão, e as metodologias de ensino-aprendizagem. Os dados construídos foram analisados à luz das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional5 e dos referenciais teóricos e metodológicos da terapia ocupacional e da Saúde Coletiva, além das pesquisas e evidências científicas produzidas no campo da formação em saúde e em terapia ocupacional. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (CEP/UFSCar), em conformidade com os princípios da Resolução 466/201212 e parecer favorável a sua realização.

Resultados e discussão A trajetória de formação profissional e acadêmica das docentes terapeutas ocupacionais na APS As trajetórias com a APS das 17 docentes participantes dessa pesquisa possibilitaram reconhecer seus percursos de formação, tendo como eixo estruturante a criação do SUS em 1990. Conforme demonstrado no Quadro 1, sete docentes cursaram terapia ocupacional antes do SUS e dez docentes após esse marco legal para o cuidado à saúde no Brasil.

Graduação em Terapia Ocupacional antes do SUS A formação graduada em terapia ocupacional dos anos 1970 e 1980 foi marcada pelas reivindicações de mudanças no caráter formativo de uma profissão eminentemente técnica para uma formação humanística, técnica, política, e que tinha como necessidade o desenvolvimento do campo de conhecimento próprio para responder às necessidades da população1. Como fruto dessas reivindicações, em 1983, instituiu-se o Currículo Mínimo para os cursos de graduação de terapia ocupacional. Esse currículo propôs inúmeras transformações, com destaque para a mudança na formação de um modelo clínico-biológico para um modelo de saúde, que integrasse o enfoque psicológico e social ao biológico1. Diante desse contexto de transformação, na trajetória de graduação em terapia ocupacional das docentes antes do SUS, observamos, nos excertos das entrevistas, as ‘diferentes estratégias’ que as levaram a ter a formação para a APS.

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Quadro 1. Caracterização das docentes Participantes Graduação Antes do SUS Docente 6 Docente 17 Docente 15 Docente 8 Docente 7 Docente 2 Docente 1 Graduação pós SUS Docente 5 Docente 3 Docente 4 Docente 9 Docente 14

Ano de Formação em TO 1979 1980 1981 1983 1985 1986 1988 1997 1999 2001 2001 2002

Docente 12

2002

Docente 11 Docente 13 Docente 10 Docente 16

2005 2007 2008 2010

Pós-Graduação de maior nível Doutorado em Psicologia Social – 1999 Doutorado em Medicina (Saúde Mental) – 2000 Doutorado em Filosofia da Educação – 2012 Doutorado em Engenharia de Produção – 2004 Doutorado em Saúde Coletiva – 2000 Doutorado em Psicologia – 2009 Doutorado em Medicina Preventiva – 2012 Doutorado em Saúde Coletiva – 2014 Doutorado em Saúde Coletiva – 2013 Doutorado em Saúde Pública – 2008 Doutorado em Educação – 2013 Mestre em Psicologia da Saúde – 2011 Esp. em Administração de Recursos Humanos – 2008 Especialista em Docência do Ensino Superior – 2009 Especialista em Tecnologia Assistiva – 2012 Doutorado em Educação Especial – 2015 Mestre em Saúde Pública – 2013

Tempo na IES e tempo vinculado a formação para APS 31 anos/ 16 anos 13 anos/13 anos 17 anos/10 anos 10 anos/8 anos 29 anos/29 anos 5 anos/5 anos 1 ano/8 meses 1 mês/ 1 mês 8 meses/8 meses 10 anos/10 anos 2 anos/2 anos 2 anos e 6 meses/1 ano 7 anos/6 meses 6 anos/3 anos 3 anos/3 anos 1 ano e 6 meses/6 meses 1 ano/6 meses

“Em relação à trajetória da minha formação de [1976-1979] para APS: eu não tive. O que eu tive foram experiências de movimento estudantil. Nós fazíamos discussões sobre a questão da assistência à população na rede pública, íamos na periferia conhecer o que era um centro de saúde [...] Na época, ficava a dúvida o que um terapeuta ocupacional faz junto à população no centro de saúde [...] O que ficou disso? Ficou que: quando você está na comunidade, quando você está no território, quando você está perto da população, os problemas aparecem de um jeito diferente do que aquele de quando você está no hospital ou em uma instituição especializada [...]”. (Docente 6) “Olha, eu acho que eu vivi em um período da minha graduação [início dos anos 1980] que nós elaborávamos muito criticamente a própria formação que recebíamos [...] Eu não tive nenhuma aproximação com essa temática [da APS]. Pelo menos não formalmente. Eu me lembro que nos encontros de estudantes que naquela época se chamava Encontro Nacional dos Universitários de Reabilitação (ENUR), tivemos contato com a questão muito fortemente associada entre a atenção básica e a prevenção [...]” (Docente 7) “Me formei entre [1983-1986], a única possibilidade de relacionamento com essa área [da APS] foi em um estágio [bem curto] em UBS [...] Participei um pouco junto com os delegados que foram para Brasília para a 8ª Conferência de Saúde de 1986 [...]”. (Docente 2) “Eu me formei em 1980, não tínhamos nem a constituição de 1988. Eu tive práticas, não com o nome de atenção primária, mas foram práticas com a perspectiva de atenção primária, em creches para a promoção da saúde com as crianças [...] eu fui também para presídios, para zonas de prostituição para promover a saúde [...]”. (Docente 17)

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As docentes tiveram aproximação com o campo da APS a partir de suas experiências e de seus anseios de mudanças para as possibilidades extramuros de atuação territorial e comunitária da terapia ocupacional, e reconheciam a APS como um possível cenário de atuação. Essas experiências perpassaram, também, a participação nas prévias para a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde e nas discussões do movimento estudantil e dos movimentos sociais, tanto na perspectiva de redemocratização do país como pela conquista de direitos para populações vulneráveis. Nas trajetórias docentes, havia, também, uma inquietação sob a questão social no país, como observamos nessa fala: “Não discutíamos Atenção Primária [na minha formação inicial], mas desde o meu primeiro ano do curso, eu fui convidada para participar de uma atividade que se chamava Oficina de Brinquedos e essa oficina era um pouco dessa possibilidade de pensar, no território, quais eram as crianças que estavam vivendo em uma situação de vulnerabilidade ou de risco social. Então era uma questão não necessariamente de Atenção Primária à Saúde, mas era uma questão de já pensar a questão social [...]”. (Docente 15)

Algumas docentes apontaram uma reflexão crítica quanto à questão social na saúde a partir das contribuições da Saúde Coletiva, como campo de conhecimentos, pesquisa e de práticas, que permitia, em parte, às docentes terapeutas ocupacionais, alargarem o escopo da profissão para além de um modelo clínico-biológico¹.

Graduação em terapia ocupacional pós-SUS As docentes que representam o grupo de trajetória de formação em terapia ocupacional pósSUS, tiveram a finalização da sua graduação a partir de 1997; nessa época, já tínhamos a Estratégia de Saúde da Família, seu financiamento e as diretrizes estruturadas por meio da Norma Operacional Básica - NOB/1996. Em relação ao cuidado em saúde na APS, o Brasil encontrava-se na fase de descentralização dos serviços. Quanto à Educação Superior e à graduação de terapeutas ocupacionais, essas docentes vivenciaram as mudanças promovidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996)13 e pelas discussões e formulação das Diretrizes Curriculares Nacionais de Terapia Ocupacional em 20025. Além da organização docente via a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa em Terapia Ocupacional (RENETO). A aproximação dessas docentes aos conteúdos da APS ocorreu por meio de disciplinas como: Saúde Pública, Saúde Coletiva ou Saúde Mental, como podemos ver na descrição das docentes sobre suas ‘Trajetórias na Graduação’: “Esse tema [APS] foi abordado na minha formação diluída em outras disciplinas, como em noções de saúde pública [...]”. (Docente 5) “Eu tive algumas disciplinas que passavam pelo campo transversal da Atenção Primária, que tinha uma perspectiva da saúde mental [...] muito aplicada a Atenção Primária eu tive a disciplina de saúde coletiva [...]”. (Docente 16) “Durante a minha formação eu tive a disciplina de saúde pública [única que discutiu APS], então eu aprendi basicamente os princípios do SUS, as leis que regem, as principais ações que realiza[...]”. (Docente 10)

Outro aspecto que permitiu a aproximação das docentes com a APS foi a realização de estágios no contexto territorial e comunitário, seja em Unidade Básica de Saúde (UBS), centros comunitários ou em Unidades de Saúde da Família.

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“Durante a minha formação eu não tive uma disciplina relacionada à APS, mas ao longo dos estágios [no centro comunitário] mais especificamente, foi quando eu tive maior experiência com atenção primária [...]”. (Docente 14) “[...] Um dos meus estágios foi em uma UBS, inclusive estávamos começando a pensar o serviço de Terapia Ocupacional dentro dessa UBS e, de uma maneira muito particular, pensando no modo como as pessoas faziam uso daquele serviço, então fazíamos grupos, íamos nos inserindo em alguns grupos que a Enfermagem já fazia [...]”. (Docente 12)

Essas experiências na graduação já traziam a utilização de ferramentas importantes para terapia ocupacional na APS, como a estratégia de acompanhamento em grupo sendo utilizada fora das instituições tradicionais em que a terapia ocupacional atuava como centros de reabilitação, instituições filantrópicas e serviços de saúde mental. O conhecimento e o manejo do trabalho com grupos são essenciais na formação e no trabalho do terapeuta ocupacional na APS, por ser esse um potente instrumento de experimentação de convivência social e para promover, por meio de coletivos afetivamente significativos, ações de educação em saúde, de circulação e participação das pessoas de forma mais ativa em suas comunidades14. Outra contribuição importante para a formação do terapeuta ocupacional na APS, segundo as docentes, foi a Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC). Como podemos notar nas seguintes falas: “[...] Eu fiz estágio de disfunção física com enfoque em RBC, que tinha como uma das frentes de atuação uma unidade de saúde [...] estágio voltado principalmente à atenção de pessoas com deficiência física[...]”. (Docente 4) “Eu participei de um estágio supervisionado, que era Reabilitação Baseada na Comunidade. Eu tenho certeza que muito do que eu aprendi [na graduação], eu acabo utilizando com os alunos [...]”. (Docente 13)

A RBC pode contribuir para a formação de terapeutas ocupacionais na APS à medida que consiga, a partir da reflexão crítica sobre as práticas convencionais de reabilitação, sensibilizar o fazer do desenvolvimento e de participação comunitária, construindo um olhar diferenciado sobre a deficiência, as incapacidades e as desvantagens sociais vividas por pessoas em seu contexto social e cultural15,16.

Trajetórias das docentes na prática profissional Mesmo que o estado de São Paulo tenha tido diferentes movimentos em relação à implantação de serviços da APS. De uma maneira específica, a cidade de São Paulo iniciou tardiamente a municipalização dos serviços de saúde, somente a partir da gestão de Marta Suplicy, em 2001. Tal situação decorre porque a construção do SUS, iniciada na gestão municipal de Luiza Erundina (entre 1989-1992), fora abortada pela contradição sanitária, o Plano de Atendimento à Saúde (PAS), de Paulo Maluf e Celso Pitta17. Na cidade de São Paulo, no início dos anos 2000, começaram os projetos de Qualidade Integral à Saúde (Qualis/PSF) vinculados à Fundação Zerbini e ao Hospital Santa Marcelina. O projeto Qualis/ PSF da Fundação Zerbini, liderado pelo importante sanitarista David Capistrano Filho, desenvolveu iniciativas de renovação do sistema de saúde por meio do reconhecimento das necessidades, da participação popular e da formação de conselhos locais de saúde17. Cabe destacar a aproximação das trajetórias das terapeutas ocupacionais docentes com a APS, já na gestão de Luiza Erundina e, depois, junto ao projeto Qualis/PSF, seja por meio da prática profissional ou da pesquisa, como relatam as docentes: “Quando eu fui fazer o mestrado, era o início da implementação, na época, do Programa de Saúde da Família no estado de São Paulo. Então o início ali dos anos 2000, eram as primeiras

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equipes sendo implementadas e eu fui fazer o mestrado sobre isso, com o enfoque na educação popular[...]”. (Docente 4) “Em 2000, eu fui trabalhar na Atenção Primária e eu fiquei até 2010 na Saúde da Família, que ainda estava começando o Programa de Saúde da Família no município de São Paulo, que era o projeto Qualis[...]”. (Docente 5) “Eu só trabalhei no SUS, e com certeza essa [prática profissional] é guia de todo meu pensar como uma profissional de saúde coletiva [...] e agora na docência na atenção primária[...]”. (Docente 1)

A prática profissional no SUS construiu o pertencimento que influencia as docentes terapeutas ocupacionais a promoverem a formação de futuros terapeutas ocupacionais para APS. Nesse tocante, percebemos que a trajetória de formação profissional e acadêmica das docentes terapeutas ocupacionais na APS demonstra que a terapia ocupacional vem promovendo diálogos com esse campo desde o processo da Reforma Sanitária até os dias atuais. Isso reforça a importância de sistematização das contribuições próprias dessa profissão para a APS, a fim de reconhecer suas trajetórias e colaborar com a formação de futuros terapeutas ocupacionais.

As atividades de formação nos campos do ensino, pesquisa e extensão para a APS Cabe destacar que os Cursos de Terapia Ocupacional das instituições participantes dessa pesquisa apresentam aproximações com o campo da APS desde sua criação, inicialmente de maneira incipiente e, após as Diretrizes Curriculares de Terapia Ocupacional de 20025, com maior inserção teórico-prática desse âmbito assistencial nos currículos. Isso é observado nos excertos a seguir: “Eu entendo que, desde o período que eu entrei nesse curso (isso é 1986), a APS está colocada[...]”. (Docente 7) “A mudança do currículo [em 2008], que foi de acordo com as diretrizes de mudanças curriculares deu uma ênfase maior na Atenção Primária[...]”. (Docente 3) “Nossa IES já implantou seus cursos dentro do referencial das diretrizes curriculares [de 2002], já tínhamos a preocupação em formar as pessoas para o SUS e para a atenção primária, desde 2006, quando os cursos foram implantados[...]”. (Docente 1) “O curso começou em 2002, mas, acredito que em 2006 ou 2007. Nesse ano, foi criada a disciplina de Terapia Ocupacional em Atenção Básica, que passou a fazer parte, então como uma disciplina obrigatória[...]”. (Docente 8) “O ensino da APS enquanto um campo teórico, temos há muitos anos, como uma temática dentro do ensino da saúde pública, esse conteúdo era garantido, mesmo que minimamente. Como campo prático, é interessante saber que no início dos anos 2000 começaram algumas experiências na cidade de São Paulo, acopladas ao movimento do Qualis/PSF, que tinha como prioridade a Atenção Básica. E aí, abriu-se um campo de estágio (optativo) em São Paulo, que estava ligado à T.O. social, porque não tinha nenhum outro campo para se fazer um convênio[...]”. (Docente 4)

Além das mudanças curriculares provocadas pelas Diretrizes Curriculares de Terapia Ocupacional de 2002, como relataram as docentes 3, 1 e 2, tivemos as falas das Docentes 7 e 4 que apontaram a APS como relevante para a área de terapia ocupacional, mesmo antes dessa indução, o que mobilizou fluxos que já permitiam a formação voltada para APS. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Dessa maneira, na perspectiva do ‘Ensino’, Oliver et al.6 – ao discutirem a formação para APS a partir dos debates do grupo de trabalho sobre Formação do Terapeuta Ocupacional para APS, realizados durante o I Seminário Nacional de Terapia Ocupacional em APS, em outubro de 2011 –, atestaram um consenso de que os cursos têm gradativamente incorporado a formação na APS, embora com variações na forma e carga horária dedicadas ao campo. Essa tendência também é observada nos diferentes relatos: “O curso é dividido por eixos específicos que são da terapia ocupacional e os eixos comuns que é o eixo o ser humano e sua dimensão biológica, o eixo do ser humano e sua inserção social e o eixo do Trabalho em Saúde (TS). A TS fala sobre território, insere o que é uma abordagem territorial, explica o que é SUS para os alunos. Depois no estágio em APS, trabalhamos bastante o específico [Terapia Ocupacional] nesse campo e eu tenho um enfoque da abordagem territorial e comunitária mais voltada para pessoas com deficiência[...]”. (Docente 1) “Com conteúdos teóricos e práticos já vinculados a alguma atuação do estudante na entrevista, na avaliação, na proposta de intervenção junto aos usuários da APS temos a disciplina específica [Terapia Ocupacional em Atenção Básica no terceiro ano], e tem outras disciplinas que estão organizados por ciclos de vida [...]”. (Docente 8) “No segundo ano os alunos vão para a Atenção Básica. Eles são divididos em quatro subgrupos e divididos em seis Unidades Básicas de Saúde ou Unidades de Saúde da Família. A gente tem privilegiado que sejam Unidades de Saúde da Família, esses alunos, eles são acompanhados no campo por um preceptor, que é um terapeuta ocupacional vinculado à rede de Atenção Básica, e aqui na universidade, eles recebem a supervisão de um facilitador, no caso sou eu, para fazer a reflexão sobre essa prática[...]”. (Docente 3)

Essas diversas experiências nos possibilitam visualizar a construção das estratégias de intervenção e cuidado que estamos proporcionando na formação para atuação do terapeuta ocupacional nos serviços de APS6. No campo da ‘Pesquisa’, observa-se a presença das docentes terapeutas ocupacionais em grupos de pesquisa que envolvem a APS, além da possibilidade do desenvolvimento de pesquisas da terapia ocupacional na APS por meio de Programa de Pós-Graduação. “Dentro da pesquisa, estou como docente e pesquisadora de um grupo chamado Laboratório de Estudos e Pesquisas em Formação e Trabalho em Saúde, estamos realizando um estudo chamado de Redes de Cuidado em Saúde[...]”. (Docente 1) “Como aqui na IES temos o Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional (PPGTO), a Atenção Básica também está aberta para pesquisa no PPGTO[...]”. (Docente 3) “Participo de um grupo de pesquisa que aborda os contextos psicossociais e nele se contemplam as pesquisas na Atenção Básica[...]”. (Docente 8)

Por outro lado, o PET – Saúde, mesmo sendo um dispositivo de reorientação da formação que privilegia os cenários de prática – muitas vezes, articulados institucionalmente, como campos da extensão de serviços à comunidade –, aparece nos relatos das docentes como uma estratégia importante para a realização de pesquisas no campo da APS. “A pesquisa funciona muito em função dos projetos de extensão e também pelas Iniciações Científicas (IC). Eu tenho trabalhado com o PET/materno infantil, tenho feito pesquisas sobre essa clientela de mulheres, de gestantes e de crianças[...]”. (Docente 2)

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Além disso, as docentes abordaram a necessidade de ampliar a participação em grupos de pesquisa, que envolvam a APS e a realização de pesquisas nesse contexto. “Quanto à pesquisa: fazemos bem pouco. E isso, eu sempre falo com os alunos e faço a minha mea culpa, que é o quanto que a Terapia Ocupacional podia contribuir mais com produção científica, até para dizer, desse nosso lugar, da onde a gente está falando[...]”. (Docente 12)

Como percebemos, há uma necessidade de ampliação na realização de pesquisas, e esse perfil tem experimentado mudanças com o aumento do número de cursos de terapia ocupacional e pesquisadores vinculados à pós-graduação e a grupos de pesquisa. No campo da ‘Extensão’, os projetos apresentados foram bem diversos, e isso demonstra uma pluralidade quanto às contribuições da terapia ocupacional para APS nesse campo. “A maior parte dos projetos de extensão [da APS] está voltada para a capacitação e a educação permanente dos profissionais[...]”. (Docente 3) “Na extensão, temos a Rede de Bem Estar e pegamos os casos mais necessitados de apoio do território para fazer um acompanhamento [...] Uma outra extensão, que se chama Baú de Histórias, trabalhamos com as crianças da sala de espera[...]”. (Docente 2) “Na Extensão, eu coordeno um projeto vinculado a um grupo de agentes comunitários[...]”. (Docente 8) “Eu tenho um projeto de extensão que acontece na estratégia saúde da família do município, dentro da linha de cuidado materno-infantil[...]”. (Docente 9)

Também foram citadas, no campo da Extensão, estratégias de formação para APS do Ministério da Saúde, como o PET-Saúde e o Ver-SUS. Essas estratégias de extensão possibilitam, aos estudantes de terapia ocupacional, o contato com alunos de outras formações e com o cotidiano dos serviços da APS6. “Quando você tem o PET e tem uma política que claramente coloca a atenção básica no centro do interesse e como uma estratégia importante para desenvolver o próprio SUS [...]”. (Docente 7) “Vários deles [alunos] conseguimos fazer com que participassem do Ver-SUS durante a formação [...]”. (Docente 9)

É importante destacar que o PET-Saúde, na perspectiva de Fonsêca e Junqueira18, contribui para potencializar, nos estudantes, a compreensão compartilhada de problemáticas e necessidades de saúde, bem como o cuidado de pessoas e famílias no nível local de cada território.

Metodologias de ensino-aprendizagem Atualmente, na área da saúde, surgem questionamentos sobre as metodologias de ensino e sobre o perfil da formação do profissional, sobretudo, com inquietações relativas à tendência de especialização precoce e ao ensino caracterizado por parâmetros curriculares baseados no modelo biomédico19. Diante desse contexto, as docentes expressaram diferentes aspectos sobre as metodologias de ensino-aprendizagem com o foco na formação do estudante de terapia ocupacional para APS, tais como o uso de: Metodologias Ativas; Metodologia “Tradicional” e Ensino Baseado em Evidências de Artigos Científicos. Além disso, também houve crítica à universalização do modelo de metodologia ativa e construtivista como uma tendência universal para a formação de profissionais de saúde na APS. As ‘metodologias ativas’ utilizam a problematização como estratégia de ensino-aprendizagem, com o objetivo de alcançar e motivar o estudante, pois, diante do problema, ele se detém, examina, reflete, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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relaciona a sua história e passa a ressignificar suas descobertas19. Esse tipo de estratégia é exposto pelas docentes. “Do ponto de vista metodológico temos tido como referencial não só para o ensino da Atenção Primária, mas para o curso como um todo, as metodologias ativas de ensinoaprendizagem[...]”. (Docente 3) “Trabalhamos com metodologias ativas, o propósito é que o aluno vá descobrindo, damos o conteúdo teórico, ele vai para a prática vivenciar o que ele viu na teoria, só que essa vivência é muito maior, porque conseguimos explorar muito mais, por que estamos em campo[...]”. (Docente 2)

Por outro lado, as IES que não adotaram os pressupostos pedagógicos inovadores oficiais (a partir do Pró-Saúde, por exemplo) passaram a ser chamadas de ‘tradicionais’. E o não falar, não escrever ou não defender as possíveis vantagens das metodologias ativas passou a ser quase um delito no campo da formação de profissionais de saúde20. Esse aspecto se repete no discurso exposto abaixo: “As aulas são planejadas dentro de uma metodologia mais tradicional. Porém, eu gosto bastante de utilizar metodologias ativas. Não tem como modificar e dizer que “eu aplico metodologias ativas”, por que não é uma proposta da Universidade. Para eu aplicar metodologias ativas, de forma geral, eu teria que ter uma mudança não só no meu planejamento, mas na estrutura de aula, da turma e da Universidade[...]”. (Docente 9)

Temos, também, docentes que relataram utilizar diversas estratégias metodológicas na formação do estudante para a APS. Em relação ao aspecto “tradicional”, esse ficou restrito a metodologia de lecionar aulas, como podemos observar na seguinte fala. “Sempre abordamos vários tipos de metodologias, temos aula expositiva tradicional, onde o professor leva o conteúdo através de data show e slides, temos uma parte onde utilizamos a discussão de textos, fazemos debates, principalmente na parte de legislação, debatemos com os alunos a questão dos direitos que foram conquistados e o que é hoje cumprido ou vigente[...]”. (Docente 10)

Uma outra maneira expressa pelas docentes foi ‘o ensino baseado em evidências de artigos científicos’. Em relação a esse aspecto, entendemos que a contribuição do acúmulo teórico no campo da terapia ocupacional poderá provocar movimentos para a produção de cuidado com qualidade nos cotidianos de encontro entre terapeutas ocupacionais e a população na APS. “Como, a atenção básica, é uma prática ainda muito recente para os terapeutas ocupacionais, buscamos sempre embasamento em artigos e aí depois tentamos identificar alguns pontos de ação dentro da prática [...]”. (Docente 11) “A nossa estratégia de aproximar da [APS] é a partir do uso que eles têm dos serviços e a partir de discussão de artigos científicos [...]”. (Docente 12) “Eu utilizo muito a articulação teórico-prática até pela questão da própria carga horária das disciplinas e do curso, elas serem bastante reduzidas [...]”. (Docente 16) “No estágio [deficiência física na APS] não damos nenhum texto. É a prática, tem que fazer. Na medida em que vamos fazendo o estágio, “Ah surgiu uma dúvida em relação a inclusão escolar”, então vamos pegar uma discussão sobre inclusão escolar e vamos trazer[...]”. (Docente 6) 670

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Diante dessas considerações das docentes, trazemos a contribuição de Bassi2, que, ao discutir os aspectos referentes à formação e à prática do terapeuta ocupacional na APS, alegou que muitos profissionais da área passaram a remodelar o seu trabalho na APS por meio dos estudos e experiências acumuladas. No entanto, entendemos que essa não pode ser a única maneira de se trabalhar a formação de terapeutas ocupacionais para APS. Do mesmo modo, como aborda Conterno20, ao ‘criticar a universalização da metodologia ativa’ como indispensável à formação dos profissionais de saúde, ao trazer a reflexão de que se está forjando um consenso sobre as metodologias ativas, como as únicas formas progressistas de se responder aos problemas na formação dos profissionais de saúde. Essa crítica é exposta pelo seguinte relato: “Essa discussão sobre [metodologia de ensino aprendizagem] é bem cara para mim, porque na educação a forma de ensinar e de aprender é um debate antigo, mas atualmente o modelo “correto” tem que estar baseado na pedagogia construtivista e nas metodologias ativas. Faço essa discussão na minha tese e concluo que nesse modelo a figura do professor desaparece. Outros elementos compõem o cenário: tutor e preceptor, que devem intermediar o aprendizado. Não compartilho com a ideia da aprendizagem centrada na figura do aluno, excluindo o professor dessa relação. Não acredito que se o aluno tiver alguma orientação, a partir das suas necessidades/interesses, por si só ele aprenderá[...]”. (Docente 15)

Dessa forma, é preciso cautela para que os processos formativos direcionados para APS não venham a fortalecer a lógica de um sistema de saúde de atendimento restrito a serviços de baixo custo, destinado à maioria da população, voltados mais às atitudes pessoais dos alunos e, menos, ao domínio do conhecimento já produzido20. Nesse sentido, faz-se necessário, como apontou Conterno20, a discussão sobre as metodologias de ensino na formação do campo da saúde, visto que esse elemento é importante para a construção do SUS e para a qualidade do cuidado prestado pelos profissionais de saúde à população.

Considerações finais Ao entrelaçar a trajetória docente, a formação nos campos do ensino, pesquisa e extensão, juntamente com a discussão das metodologias de ensino utilizadas para a formação de terapeutas ocupacionais para a APS, percebemos a potência que o campo da APS proporciona para a formação em terapia ocupacional. Entretanto, há a necessidade do desenvolvimento do núcleo profissional e interdisciplinar nesse contexto, acompanhado do aumento do número de profissionais envolvidos na pesquisa, na prática profissional e no ensino na APS. Nesse sentido, é importante que o estudante experimente na sua formação: a riqueza da trajetória dos docentes, a formação nos eixos do ensino, pesquisa e extensão, e que vivencie práticas que exijam dele a aprendizagem de estratégias de atuação e cuidado resolutivas e que permita a comunicação com o outro no lugar dos serviços e das práticas na APS. Mesmo sendo representativo o recorte empírico do estudo, por o estado de São Paulo possuir o maior número de cursos do país, temos esses achados circunscritos à realidade paulista; ao passo que enxergamos as riquezas e problemáticas nas diversidades das formações realizadas pelo Brasil, o que deve ser fonte de investigação de novas pesquisas sobre formação em terapia ocupacional para o trabalho interprofissional nos contextos do SUS.

Colaboradores Rodrigo Alves dos Santos Silva e Fátima Corrêa Oliver participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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Referências 1. Soares LBT. Terapia ocupacional: lógica do capital ou do trabalho? São Paulo: Hucitec; 1991. 2. Bassi BGC. Terapia ocupacional na atenção básica à saúde no município de São Carlos: um enfoque nas pessoas com deficiência e nas pessoas com sofrimento mental [dissertação]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2012. 3. Soares LBT. História da terapia ocupacional. In: Cavalcanti A, Galvão G, organizadoras. Terapia ocupacional: fundamentação & prática. Rio de Janeiro: Koogan; 2007. p. 3-9. 4. Emmel MLG, Cruz DMC, Figueiredo MO. An historical overview of the development of occupational therapy educational institutions in Brazil. South African J Occup Ther. 2015; 45(2):63-7. 5. Ministério da Educação e Cultura (BR). Resolução CNE/CES, nº 6, de 19 de fevereiro 2002. Instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2002. 6. Oliver FC, Pimentel A, Uchôa-Figueiredo LR, Nicolau SM. Formação do terapeuta ocupacional para o trabalho na Atenção Primária à Saúde (APS): contribuições para o debate. Cad Ter Ocup UFSCar. 2012; 20(3):327-40. 7. Oliveira RH. Terapia ocupacional na estratégia saúde da família: reflexões e perspectivas. In: Bourget MMM, organizadora. Estratégia Saúde da Família: a experiência da equipe de reabilitação. São Paulo: Martinari; 2008. p. 78-96. 8. Sampieri RH, Collado CF, Lucio PB. Metodologia de pesquisa. São Paulo: McGraw-Hill; 2013. 9. Palm RCM. Catálogo latinoamericano de asociaciones, carreras y postgrados de terapia ocupacional. Curitiba: CLATO; 2012. 10. Ministério da Educação e Cultura (BR). Portal do e-MEC [citado 29 Jan 2016]. Disponível em: http://emec.mec.gov.br. 11. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 12. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde . Resolução nº 466, de 12 de Dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília (DF): Conselho Nacional de Saúde; 2012. 13. Ministério da Educação e Cultura (BR). Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN/1996. Brasília (DF): Ministério da Educação; 1996. 14. Nicolau SM. Grupos na atenção básica: enraizar-se em uma comunidade. In: Maximino V, Liberman F, organizadoras. Grupos e terapia ocupacional: formação, pesquisa e ações. São Paulo: Summus; 2015. p. 264-74. 15. Oliver FC, Tissi MC, Aoki M, Vargem EF, Ferreira, TG. Participação e exercício de direitos de pessoas com deficiência: análise de um grupo de convivência em uma experiência comunitária. Interface (Botucatu). 2004; 8(15):275-88. 16. Oliver FC, Almeida MC. Reabilitação baseada na comunidade. In: Cavalcanti A, Galvão G, organizadoras. Terapia ocupacional: fundamentação & prática. Rio de Janeiro: Koogan; 2007. p. 125-32. 17. Lancetti A, Gouvêa IGC. Projeto qualis: a revolução interrompida. In: Santos L, Andrade LOM, organizadores. Saúde Pública: meu amor. Campinas: Saberes; 2013. p. 119-27. 18. Fonsêca GS, Junqueira SR. Programa de educação pelo trabalho para a saúde: ressignificando a formação dos profissionais de saúde. Curitiba: Appris; 2014.

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artigos

19. Mitre SM, Batista RS, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(Supl 2):2133-44. 20. Conterno SFR. Pressupostos pedagógicos das atuais propostas de formação superior em saúde no Brasil: origens históricas e fundamentos teóricos [tese]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2013.

Silva RAS, Oliver FC. Trayectoria docente y la formación de terapeutas ocupacionales para la atención primaria a la salud. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):661-73. El objetivo fue identificar y analizar la trayectoria docente y la formación de terapeutas ocupacionales para la Atención Primaria a la Salud (APS) en el estado de São Paulo, Brasil. Encuesta de abordaje cualitativo por medio de la realización de entrevistas con 17 docentes de terapia ocupacional. Los datos se categorizaron en dos temas: 1) La trayectoria docente se identificó con la APS por medio de experiencias de formación, de práctica profesional y de anhelos de cambios para las posibilidades extramuros de actuación territorial y comunitaria de la terapia ocupacional. 2) las docentes señalaron la realización de la formación para APS en los cursos por medio de diferentes estrategias de enseñanza, investigación y extensión. La trayectoria docente en la APS y el aprendizaje teórico-práctico debe valorizarse en la formación de terapeutas ocupacionales para APS.

Palabras clave: Terapia ocupacional. Formación de profesionales de salud. Trabajo en salud. Atención primaria a la salud. Sistema Brasileño de Salud.

Submetido em 29/01/16. Aprovado em 11/07/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0273

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Fundamentos éticos na tomada de decisão de discentes de fisioterapia Talita Leite Ladeira(a) Aluísio Gomes da Silva Junior(b) Lilian Koifman(c)

Ladeira TL, Silva Junior AG, Koifman L. Ethical foundations of decision-making in physical therapy students. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):675-85.

Clinical decision-making should encompass technical and ethical aspects. It is necessary to recognize the ethical conflicts and to understand the moral values involved in order to provide efficient responses to ethical issues present in practice. This descriptive qualitative study aimed to understand the perception of students of physical therapy about the moral values that should guide care actions and to identify the ethical foundations of the decision-making process. The study included 13 students of physical therapy of a Federal University in Brazil. The study applied individual semi-structured interviews proposing an hypothetical moral dilemma correlated with professional practice. We noted deficiency in the bioethical reference framework of students exposed to conflicts. Thus, there is a need to rethink the professional education in order to promote a more conscious and responsive healthcare decision-making.

Keywords: Bioethics. Decision-making. Physical therapy.

A tomada de decisão clínica deve abranger aspectos técnicos e éticos. É preciso reconhecer os conflitos éticos e compreender os valores morais envolvidos, para, enfim, fornecer respostas eficientes às questões éticas presentes na práxis. Este estudo qualitativo descritivo teve como objetivos compreender a percepção dos discentes de fisioterapia sobre os valores morais que devem pautar as ações de cuidado e identificar os fundamentos éticos que embasam a tomada de decisões. Participaram da investigação 13 discentes de fisioterapia de uma Universidade Federal brasileira. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais, com aplicação de um dilema moral hipotético correlacionado com a prática profissional. Observamos deficiência no referencial bioético dos discentes frente aos conflitos expostos. Assim, há necessidade de repensarmos a formação, a fim de fomentarmos tomada de decisões em saúde mais conscientes e resolutivas.

Palavras-chave: Bioética. Tomada de decisões. Fisioterapia.

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Curso de Fisioterapia, Centro Universitário Estácio Juiz de Fora. Av. Pres. João Goulart, 600, Cruzeiro do Sul. Juiz de Fora, MG, Brasil. 36030-142. talitaladeira@ yahoo.com.br (b,c) Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil. agsilvaj@gmail.com; liliankoifman@id.uff.br

(a)

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FUNDAMENTOS ÉTICOS NA TOMADA DE DECISÃO DE DISCENTES

Introdução A atuação do fisioterapeuta surgiu em um contexto de grandes guerras mundiais e grande industrialização, o que contribuiu para o primeiro perfil profissional, caracterizado pela missão de atenuar e reabilitar os organismos lesados fisicamente. Regulamentada no Brasil em 1969, a profissão teve suas raízes históricas vinculadas ao modelo biomédico, cartesiano(d), com uma visão reducionista2-5. Assim como os demais profissionais de saúde, o fisioterapeuta está inserido em um contexto de formação focado na doença, mas de forma mais acentuada, já que é visto como “o profissional da reabilitação”, atuando, exclusivamente, quando a doença, lesão ou disfunção já foi estabelecida6. Ao longo dos anos, a fisioterapia solidificou-se como profissão de saúde e ampliou seus campos de intervenção. Hoje, os fisioterapeutas dispõem de autonomia e possuem grandes responsabilidades dentro das equipes interdisciplinares. Participam, cada vez mais, das tomadas de decisão, trazendo, para si, a problemática dos dilemas e das responsabilidades éticas mais complexas no exercício da profissão7. Estão expostos a uma variedade de conflitos éticos que podem estar presentes na práxis, gerando a necessidade premente de que sejam contemplados conteúdos formativos voltados para tais questões éticas. A profissão requer um desenvolvimento moral consistente para encarar os desafios e as mudanças enfrentadas8. Segundo as Diretrizes Curriculares da graduação do curso de Fisioterapia, o perfil desejável do egresso é: Fisioterapeuta, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado para: atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor científico e intelectual. Detém visão ampla e global, respeitando os princípios éticos/bioéticos, e culturais do indivíduo e da coletividade.9 (p. 22)

Certamente, nos últimos anos, houve um significativo aumento do reconhecimento da bioética como conteúdo fundamental para uma formação profissional no Brasil10. Entretanto, no curso de fisioterapia, a aproximação com a bioética ainda é muito incipiente10. As temáticas que envolvem as duas áreas estiveram, ao longo da história da profissão nacional, fundamentadas em conceitos deontológicos, limitadas ao código de ética profissional e aos aspectos legais10,11. Em relação à produção científica, um levantamento bibliográfico de 201310 aponta que ainda nos encontramos no nível primário do desenvolvimento da reflexão bioética em fisioterapia. Por meio da busca pelos descritores “fisioterapia” e “bioética” e seus derivados, Lorenzo e Bueno encontraram somente cinco artigos nacionais publicados em revistas indexadas de 2000 a 2011. O cenário também retrata que há “deficiências conceituais, distanciamento das teorias mais modernas e dos modelos desenvolvidos no Brasil e falta de consideração dos contextos socioculturais e econômicos como elementos que influenciam a geração de conflitos”10 (p. 763). As discussões nacionais sobre as questões éticas e a sua relação com a fisioterapia emergiram apenas a partir de 2002, e, além da carência de estudos, percebe-se a ausência da discussão sobre essa temática entre fisioterapeutas11. Nesse contexto emergem os objetivos desta pesquisa: (1) compreender a percepção dos discentes de fisioterapia sobre os valores morais que devem pautar as ações de cuidado, e (2) identificar quais os fundamentos éticos que embasam a tomada de decisões. 676

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Refere-se ao modelo proposto pelo filósofo francês René Descartes (1595-1650), que propõe a divisão do todo em partes e as estuda em separado, isoladamente1. (d)


Ladeira TL, Silva Junior AG, Koifman L

artigos

Percurso metodológico Trata-se de uma pesquisa empírica de abordagem qualitativa, no escopo da ética descritiva, desenvolvida na Faculdade de Fisioterapia de uma Universidade Federal brasileira. Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense/FM/UFF/HU Antônio Pedro, obedecendo determinações da Resolução CNS/MS 466/1212. Participaram do estudo 13 discentes de fisioterapia, do 9º e 10º períodos do curso, sendo que todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantia do anonimato, foram caracterizados pela letra “D” acrescida de numeração. Não houve nenhuma intencionalidade de delineação amostral por parte da pesquisadora, e a amostragem foi por saturação. Os critérios de inclusão foram a disponibilidade e aceite em participar da pesquisa, e a necessidade de estarem cumprindo o estágio curricular. O critério de exclusão foi a falta de experiência prévia em outro local de estágio. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais, com aplicação de um dilema moral hipotético, as quais aconteceram no ambulatório de fisioterapia da faculdade, no mês de março de 2014. A situação expõe um conflito referente à práxis fisioterapêutica, com intuito de aproximar os discentes da realidade e estimular reflexões para a tomada de decisão mais pertinente, segundo seus próprios valores. A situação foi descrita em terceira pessoa, mencionando o curso de ação elaborado pelos profissionais. O dilema foi narrado pela pesquisadora e, em seguida, procuramos explorar e compreender as percepções frente à seguinte situação: “Sr. M., sexo masculino, 65 anos de idade, lúcido e orientado, está internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com diagnóstico de Insuficiência Respiratória Aguda (IRA). O mesmo faz uso de ventilação não-invasiva, por máscara facial. Desde sua admissão na UTI, o paciente mostrou-se ansioso e preocupado com a possibilidade de ser conectado ao ventilador mecânico, sendo taxativo que não gostaria de ser submetido a este procedimento. Após dois meses de internação, a gasometria arterial e o hemograma começam a apresentar alterações progressivas, com quadro de taquipneia e uso exacerbado da musculatura acessória. O paciente também apresenta diminuição do estado de consciência e confusão mental. Após análise do quadro clínico pela equipe multidisciplinar, levanta-se a possibilidade de iniciar a ventilação mecânica (VM), a fim de diminuir o desconforto respiratório e restabelecer as trocas gasosas. É estabelecido um embate entre os profissionais. Eles hesitam, mas por fim optam por intubar o paciente”.

As entrevistas foram gravadas e transcritas. Logo após, foram realizadas leituras em profundidade de todo o material, iniciando a sistematização e categorização que emergiu das falas dos participantes e seguiu o critério semântico. Para análise dos dados, utilizamos a análise de conteúdo de Bardin13. Todo o processo de entrevistas e análise dos dados foi realizado por somente uma pesquisadora.

Resultados e discussão De acordo com o perfil dos discentes de fisioterapia participantes, 12 cursavam o 10º período e um cursava o 9º período. Somente um era do sexo masculino, e a média de idade foi de 24,5 anos. A seguir, apresentaremos como os mesmos posicionaram-se mediante o dilema, apontando os conflitos de valores, os problemas éticos fundamentais, bem como os cursos de ações propostos e suas tendências, destacando falas mais representativas. Inicialmente, após leitura, podemos depreender que, de um modo geral, a situação exposta gerou desconforto, preocupação e dúvida, sendo reconhecida como conflito ético pelos discentes, exceto D6. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“Porque o objetivo é que o paciente melhore né. E... se é necessário... ele já não tá mais lúcido... e tudo... [...] A intubação não é uma coisa assim tão absurda né. Mas pro paciente que é leigo e... pode achar né, muito estranho. E ele vai tá sedado e tudo... não vai incomodar tanto... Se é pro bem dele né”. (D6) “[...] Aí a partir do momento que ele... ele perdeu a capacidade de responder por si... [...] eu acho [...] que a equipe [...] tomou a decisão correta”. (D10)

Ao serem questionados se concordam ou não com a decisão tomada pelos profissionais, houve unanimidade na defesa da intubação, sendo justificada por muitos, em decorrência da inconsciência do paciente, logo incapacidade de decidir, e pela necessidade do procedimento. Além da inconsciência, D6 justifica a intubação por meio da finalidade de melhora do paciente. Percebemos, também, indícios de desqualificação do outro, na medida em que é considerado leigo e, dessa forma, parece não entender a necessidade da intervenção. Acredita, ainda, que por estar sedado, não haveria grandes malefícios. Para Beauchamp e Childress14, realizar um procedimento em um paciente incapaz, sendo que, enquanto capaz, relatou recusa, é uma violação à autonomia do mesmo, desrespeito e insulto à pessoa. Com base nas linhas argumentativas referentes ao que mencionaram ser ideal nesse caso, procuramos abordar quais foram os valores éticos e morais, bem como princípios éticos norteadores, que lhes motivaram a optar a favor ou contra a intubação. Vale ressaltar que, em alguns casos, percebemos presença de argumentações multivariadas complementares, representadas por mais de uma perspectiva que justificasse a tomada de decisão. Para grande parte dos participantes, essa tomada de decisão foi considerada difícil. Há reconhecimento unânime do princípio bioético da autonomia, que surge como valor a prima facie. Em contrapartida, foram expostos outros valores em conflito, os quais serviram para embasar as tomadas de decisão frente ao dilema exposto. Tais conflitos de valores resumiram-se à: autonomia versus manutenção da vida, autonomia versus beneficência, autonomia versus não maleficência, autonomia do paciente versus autonomia da equipe, autonomia versus valorização de dados técnicos. O conflito entre respeito à autonomia do paciente e preocupação com a manutenção de sua vida foi, de maneira geral, citado pela maioria dos entrevistados, sendo, a última, relevante para a resolução do dilema proposto, por parte de muitos discentes. “[...] Mas ao mesmo tempo a gente também quer lutar pela vida do paciente... é o nosso papel lutar pela vida do paciente. [...] Nesse embate de vida ou morte temos que estabelecer a vida de qualquer jeito”. (D5)

Conforme exposto, passar por cima da vontade do paciente é algo que gera um conflito ético, entretanto, é justificado pela necessidade imperativa de manter a vida, mesmo que, para isso, custe impor um tratamento a alguém que não deseja se submeter a ele. Tal concepção corrobora com o ponto de vista moral que embasa o Princípio da Sacralidade da Vida (PSV), o qual afirma que “a vida é sempre digna de ser vivida, ou seja, estar vivo é sempre um bem, independente das condições em que a existência se apresente”15 (p. 24). Existe a premissa absoluta de que a vida consiste em um bem, possuindo, assim, um estatuto sagrado, não podendo ser interrompida, nem mesmo por expressa vontade de seu detentor15. Esse princípio é discutido amplamente na bioética, sendo utilizado para reafirmar as discussões contrárias à eutanásia. Sobre essa condição da vida como um bem em si mesmo, Siqueira Batista15 defende que a competência de julgar sobre a vida cabe ao próprio titular da existência. Acreditamos que atribuir nossos valores à vida de outrem é, acima de tudo, ferir a alteridade, na medida em que não somos capazes de nos colocar no lugar do outro, com base no diálogo e valorização das diferenças existentes. Deve haver uma necessidade moral premente de responsabilizarmos pelos relacionamentos com base no reconhecimento no contexto alheio, e não, baseados apenas em nossos imperativos morais. Isso requer o saber ouvir, indo mais além, o saber se relacionar, sem julgamentos, aberto às diferenças. 678

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Em contrapartida, um dos discentes faz referência não só à vida em si, mas que ela tenha qualidade, com o mínimo de prejuízo possível. A importância da tomada de decisão a favor da intubação está na sobrevida do paciente, somada à minimização dos riscos e danos e maior benefício (beneficência). “[...] você pode até esperar mais um dia e depois conseguir reverter o caso, mas não consegue reverter tudo, porque podem ter microlesões. [...] Você pode conseguir fazer com que ele sobreviva, mas só que ele pode ter mais prejuízo. A meta é manter o paciente vivo no melhor estado possível. Não esperar [...] até o último momento, quando ele tá quase... aí que vai resolver? Não. Será que não seria mais benéfico pra ele a gente intubar antes?” (D4)

Consoante explicitado, o ato desempenhado no intuito de minimizar prejuízos é compreendido como ato intuitivo de fazer o bem. Assim, o discente acredita que a demora na decisão por intubar pode diminuir a chance de recuperação com o máximo de benefícios e mínimo de prejuízos. Por conseguinte, seria mais benéfico para o paciente que ele fosse submetido ao procedimento o quanto antes. O objetivo maior passa a ser a vida, mas que o paciente viva qualitativamente bem. Esta perspectiva corrobora com a proposta do Princípio da Qualidade de Vida (PQV). Este princípio é antagônico ao PSV e desconsidera o valor intrínseco da vida, que passa a ter sentido somente se é provida de um certo número e grau de qualidades histórica e socioculturalmente construídas, e aceitas pelo titular de uma vida particular16. Em muitas falas, percebemos que a manutenção da vida do paciente parece estar interligada com o dever de natureza hipocrática do profissional de saúde. D10 menciona que seria difícil lidar com a situação de deixar de fazer algo que poderia ter sido utilizado para salvar a vida. “Ah... eu acho que é muito assim... a visão de que a gente sempre tem que oferecer... assim... o máximo de recursos... de tratamento, de condutas que pudessem, de alguma forma, dar todas as chances daquele paciente continuar vivendo. [...] Mesmo que ele deixasse por escrito, tudo certinho... e... os profissionais [...] não fizessem a intubação, eu acho que também seria muito complicado saber que algo a mais poderia ter sido feito, mas o paciente não quis”. (D10) “[...] Mas aí entra em conflito com tudo o que a gente aprendeu, com tudo que a gente sabe, com tudo que a gente pode dispor de melhor pra pessoa... entendeu?!” (D2)

Nesse âmbito, podemos perceber, também, um conflito entre a autonomia do paciente e a autonomia do profissional, que acontece no momento em que o paciente não pode mais decidir por si, gerando um embate para os profissionais entre: o que o paciente permite que faça com ele versus o que a equipe deseja fazer pelo paciente. “Porque a gente sempre quer dar o melhor né. Então a gente sempre considera que o nosso saber é o melhor pra pessoa”. (D2)

O embate entre respeitar a autonomia do paciente ou garantir a melhora da condição clínica (beneficência) - autonomia versus beneficência - parece ser justificado pela necessidade de melhorar seu quadro clínico. Outro argumento muito defendido pelos discentes de fisioterapia a favor da intubação baseia-se no princípio bioético da beneficência. “O benefício que o paciente vai ter depois né. Se for analisado, realmente isso vai ser bom para o paciente, aí eu acho que isso justifica”. (D12) “[...] pelo quadro clínico do paciente e pra ele melhorar, porque se não ele ia entrar... ele ia falecer, provavelmente. [...]”. (D3)

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Em caso de risco de morte, há tendência de refutação da autonomia em favor da beneficência. Muitas vezes, o respeito à mesma é menos importante do que manifestações de beneficência14. Na nossa visão, existe um risco de justificarmos as ações mediante o imperativo de fazer o bem a qualquer custo. Sob tal ponto de vista, podemos abrir prerrogativas para situações injustas, na medida em que, pelo nome do bem, podemos deliberar pela vida do outro segundo nossa própria consciência, o que poderia gerar ações paternalistas. Por serem responsáveis por bens primários, já que têm em suas mãos o mais precioso da vida das pessoas – vida e morte –, os profissionais passam a ter o poder e a autoridade para definir o que é benéfico para as pessoas17. Tal prerrogativa está alicerçada em duas falácias: nega a autonomia do paciente para definir o que quer e atribui, ao profissional, a obrigação de definir o benefício17. Conforme preconizado por Gracia17, defendemos que, nas ações de saúde, deveriam ser os direitos dos cidadãos – agentes sociais–- que definissem os deveres dos profissionais, e não, o contrário. A percepção de redução de riscos e danos também pode ser observada nos trechos que se seguem: “[...] o fato dele tá... dele ter piorado né, os sinais dele assim, terem piorado... o quadro clínico ter piorado e também o fato dele ter entrado em coma, dele tá com confusão mental. [...] Seria para evitar que ele piorasse cada vez mais. [...] Eu acho que quando intuba um paciente, diminui a chance de morrer né... assim... ele fica estável”. (D9)

Muitos mencionaram a possibilidade de causar danos e a preocupação com a possível piora do quadro clínico do paciente, caso a intubação não fosse realizada. Assim, o valor da não maleficência é visto pela execução do procedimento. “Tem os pontos positivos, tem os pontos negativos. Além dessa decisão dele, que ele chegou consciente, não querendo. A gente tem que respeitar isso. Só que isso tem que tomar cuidado pra não ir contra essa... eh... pra causar malefício para o paciente”. (D7)

Percebemos que esse enfoque aparece interligado à necessidade de evitar a morte – visto como mal maior –, logo, salvaguardar a vida do paciente, como podemos perceber nas falas seguintes sobre o que poderia ter levado a equipe a decidir pela intubação. “O quadro do paciente né. Já está internado há tanto tempo e só tá piorando né... aí o quadro dele, pra não ficar pior...”. (D6) “Eu acho que é esse fato que eu falei, de tá com risco de morrer”. (D1)

Na perspectiva valorativa, o profissional teria um dever, e o seu não cumprimento causaria dano a terceiros, podendo culminar em morte. Assim, esse dano ocorreria após falha do profissional ao cumprir esse dever moral14. Na bioética, não há unanimidade sobre a diferenciação entre os princípios da não maleficência e beneficência. Contudo, “combiná-las num mesmo princípio obscurece distinções relevantes”14 (p. 210). Beauchamp e Childress14 compreendem que a prevenção de danos e a eliminação de condições prejudiciais relacionam-se à beneficência, e não à não maleficência, já que requerem atos positivos de beneficiar o outro, e, não, simplesmente se abster de realizar atos nocivos. Entretanto, percebemos, mediante o que foi exposto, que o fato de evitar a piora – risco de dano – do paciente parece estar mais ligado à diminuição de chance de morte – “mal maior” –, do que, necessariamente, obrigação de fazer o bem. A referência aos aspectos técnicos e biológicos para a tomada de decisão clínica também foi constante nas argumentações. Os estudantes, de uma maneira geral, mencionaram que levariam em consideração os dados clínicos apresentados pelo paciente, o prognóstico e a necessidade fisiológica da ventilação mecânica, desconsiderando as questões éticas envolvidas no caso. Isso reforça o reducionismo do problema ético no âmbito técnico18. 680

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“Acredito que, claro, os sinais clínicos do paciente, os dados do exame físico, de tudo, gasometria e priorizando realmente o bem estar dele, que ele saia da UTI bem”. (D7)

Outra conduta que pareceu defensável para os discentes refere-se ao conhecimento acerca “do que é melhor para o paciente”, embora exista o reconhecimento de que é importante considerar a vontade do mesmo. Há clara supervalorização dos conhecimentos que a equipe detém com relação ao que é estipulado como sendo “o melhor” para o paciente. “[...] E mostrar pra ele também que a gente não passou por cima da vontade dele. A gente levou em consideração... assim... a gente equipe, a gente levou em consideração o que que você queria, o seu medo, a sua ansiedade, mas... o melhor pra você foi isso que a gente resolveu. (D4)

Nessa visão, o fato de esse conhecimento ser compartilhado pela equipe e reafirmado pela maioria garante maior segurança na deliberação. Esse caráter coletivo é apoiado por Gracia17, quando menciona a importância da deliberação coletiva, com discussão de diversos pontos de vista e justificações para enriquecer o diálogo. Contudo, ao mesmo tempo, transmite-nos a ideia de que, de certa forma, essa divisão de responsabilizações aliviaria a responsabilidade individual mediante o embate moral. Percebemos que, em todas as tentativas de valorização da autonomia, há menção às questões jurídicas: “[...] Se ele não quiser receber qualquer tratamento que qualquer profissional estiver propondo, a gente tem que respeitar essa autonomia do paciente. [...] Então se ele expressa esse desejo de não ser intubado e não receber nenhum tipo de tratamento que prolongue a vida dele, eu acho que ele tem total autonomia de decidir por isso. [...] Mas deveria estar documentado. Isso, porque caso contrário também poderia reverter a situação contra os profissionais. [...] Os profissionais tem que ser prudentes tanto olhando a questão do paciente quanto olhando também a questão deles, assim”. (D10)

Podemos reconhecer, no primeiro trecho, a preocupação do discente com a liberdade do sujeito em decidir sobre sua própria vida, todavia, a imperatividade da regulamentação legal para que isso ocorresse foi maior que esse princípio prima facie. Assim, a realização do procedimento somente com documento por escrito e devidamente assinado correlaciona-se com um grande caráter legalista para assegurar a autonomia do paciente, e demonstra certa heteronomia na tomada de decisão, visto que a exigência documental foi colocada como garantia de uma não punição. Tal caráter legalista é ainda mais enfático na fala seguinte: “Eu não vou responder criminalmente por isso”. (D5)

Zoboli18 questiona que, muitas vezes, os profissionais reduzem às questões técnicas e jurídicas, quando, na verdade, são conflitos de valores. E, com isso, oferecem soluções baseadas apenas em determinações técnicas e legais. Não colocar os conflitos de valores no âmbito da ética, que é seu verdadeiro espaço, acaba por comprometer a deliberação e as decisões prudentes; parte-se de um equívoco e chegase a outro, mas, sem dúvida ameniza-se a angústia que os profissionais de saúde sentem ao terem de lidar com problemas éticos, pois o que deve ser feito já vem definido por instâncias exteriores, consideradas superiores e que determinam o que deve ser feito [...]. Não resta ao profissional, senão acatar tais mandos externos, em uma atitude heterônoma que está na base das falácias da Bioética.18 (p. 284)

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Convencionalmente, não existe obrigatoriedade do documento, e a existência deste não exime de responsabilidade ou culpa17. É fato que o consentimento informado é de suma importância como recurso jurídico concreto e palpável. Por outro lado, “consentimento livre e esclarecido é mais que obter um documento assinado. Envolve troca mútua de informações, compreensão, confiança e consentimento entre o paciente e o [profissional]”19 (p. 9). “Entendemos que o consentimento esclarecido deve ser componente de uma relação ética de cuidado, na qual há reconhecimento do direito da pessoa em fazer suas escolhas baseadas em seus próprios valores”20 (p. 158). “Esse respeito envolve ação respeitosa, e não meramente atitude respeitosa”14 (p. 143). Acreditamos que a essência do consentimento não está na imposição da mera burocratização, pois são necessárias mais que obrigações de não intervenção nas decisões das pessoas. Em contrapartida, devemos incluir obrigações para sustentar as capacidades dos outros para escolher autonomamente, diminuindo temores e outras condições que arruinarem sua autonomia. O respeito pela autonomia implica tratar as pessoas de forma a capacitá-las a agir autonomamente14. Outros estudantes acrescentam que concordam com a intubação desde que o profissional converse com a família. Acreditaram que desta forma, a solução permite cuidar do paciente e ter o consentimento dos familiares. Um entrevistado defende que, no caso de impedimento do paciente, o consentimento informado deve ser dado pela família, por meio da decisão substituta, que é a tomada de decisões no lugar do paciente não autônomo ou cuja autonomia é incerta14. Diante dessa possibilidade, pode haver diversos impasses, por exemplo: O paciente tinha capacidade decisória com discernimento? As evidências são confiáveis para determinar a preferência do paciente? O mesmo foi devidamente esclarecido para tomar sua decisão conscientemente? Até que ponto o decisor não usará os seus valores como prerrogativa para decidir sobre a vida do outro? É lícito anular as diretrizes de ação deixadas pelo próprio paciente anteriormente autônomo, em prol dos possíveis benefícios dos tratamentos? A decisão do substituto representa integralmente a decisão do próprio paciente? Juridicamente, “a recusa à tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas, embora bastante discutida na doutrina, deve ser respeitada, salvo se colidir com a vida, hermeneuticamente considerada como um bem maior”21 (p. 35). Destarte, a vida é considerada um direito fundamental, salvaguardado pela constituição brasileira. Constitucionalmente, também há garantia do respeito à dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, como garantir a dignidade, se os valores morais e religiosos de uma pessoa estão sendo desrespeitados? “Podemos entender que a dignidade está também em ter autonomia de decidir mediante seus valores, sobre o curso de sua vida, mas também, pela sua morte digna, se for o caso”20 (p. 150). De acordo com o Código de Ética de Fisioterapia22, existe respaldo ético para ambos os cursos de ação. No Artigo 14, é dever fundamental do fisioterapeuta respeitar o princípio bioético de autonomia do paciente de decidir sobre sua pessoa e seu bem-estar. Também é dever “respeitar a vida humana desde a concepção até a morte, jamais cooperando em ato em que voluntariamente se atente contra ela, ou que coloque em risco a integridade física, psíquica, moral, cultural e social do ser humano”21 (p. 85). O Artigo 10 menciona, ainda, que é proibido ao fisioterapeuta recomendar, prescrever e executar tratamento, ou nele colaborar, quando praticado sem o consentimento formal do paciente ou de seu representante legal ou responsável, quando se tratar de menor ou incapaz. Gracia17 defende que o principal direito dos doentes é o do consentimento informado, que é o símbolo da passagem do absolutismo médico clássico à teoria liberal do exercício da profissão. É a garantia jurídica do direito à liberdade no tema de gestão do corpo. De acordo com o que defendemos como cuidado integral e ético, o consentimento ultrapassa os limites jurídicos, mas incumbe o paciente

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a se tornar ativo no seu processo de tomada de decisão, no juízo do diagnóstico, prognóstico e terapêutico17. Como defendemos anteriormente, é preciso que se estabeleça um canal de comunicação entre profissional e paciente, e que este receba todas as informações acerca do seu quadro clínico, prognóstico, riscos e benefícios, para que a decisão seja consentida consciente e autonomamente22. Para finalizar as discussões acerca do dilema apresentado e tendências apontadas pelos discentes, gostaríamos de ressaltar que “não há comunicação adequada sem apoio emocional”17 (p. 316). Esse apoio deve enfatizar que o profissional de saúde tem de abandonar o paternalismo e respeitar a capacidade de autogoverno do paciente. “Não se pode fazer as pessoas felizes à força. Ou melhor, há que deixar que cada um viva de acordo com sua ideia de felicidade”17 (p. 313). Por conseguinte, acreditamos que a tomada de decisão ética não deve ser analisada somente sob a seara dos valores inerentes aos profissionais, mas é imperativo que haja valorização do outro e responsabilização conjunta por essa relação. Nessa perspectiva, apoiamos a proposta de uma ética do cuidado, que fundamente a tomada de decisões ética em saúde, de forma que a moralidade seja referente à responsabilidade do cuidar advinda do vínculo para com os outros20.

Considerações finais Mediante o dilema moral proposto, muitos entrevistados relataram a importância de se respeitar a vontade do paciente. Mas, observamos que essa autonomia – prima facie – passou a ser desconsiderada quando o paciente já não é capaz de se expressar com lucidez. É nesse momento que o conhecimento acerca “do que é melhor para o paciente” – na opinião do profissional – e o dever moral de fazer o bem (beneficência) – característico do pensamento hipocrático – ofereceram uma possibilidade de conduta defensável. Quando ponderaram sobre a autonomia do paciente, observamos forte correlação entre a sua garantia e a necessidade de um consentimento informado e devidamente documentado, primeiramente, pelo próprio paciente, e, em caso de não lucidez, pelos familiares diretos. Isso denota a forte referência legalista na garantia da autodeterminação do paciente. A beneficência parece ser um valor de grande relevância para os entrevistados, tendo maior validade nas tomadas de decisão em detrimento da autonomia do paciente. A partir do que foi relatado pelos discentes de fisioterapia, é provável que o valor intrínseco da vida somado ao caráter hipocrático beneficente possam fundamentar a moralidade do cuidado. Concluímos, também, que a tomada de decisão em fisioterapia valoriza, em supremacia, os aspectos técnicos aos éticos, o que gera a necessidade de repensarmos a formação, para que os futuros fisioterapeutas possam cuidar reconhecendo e valorizando o indivíduo, em uma inter-relação ética e humana. Pensar somente nas condições clínicas do paciente seria limitar o escopo de visão de todos os componentes dessa “clínica”, do cuidado integral à saúde do ser humano. É preciso questionar, refletir, analisar e ponderar todos os aspectos envolvidos; sejam eles físicos, psíquicos, ético/morais, sociais, culturais e religiosos. Por fim, depreendemos que há deficiência no referencial bioético dos discentes frente aos conflitos presentes na relação de cuidado. Faz-se necessário avançarmos com a finalidade de se ultrapassarem as questões deontológicas e de cunho legalista, capacitando os discentes para as diversas decisões morais que o cuidado fisioterapêutico contempla. Nesse sentido, acreditamos que a bioética faz-se relevante no intuito de fornecer ferramentas para as ações em saúde, aprimorando as competências e habilidades éticas e morais dos discentes e futuros fisioterapeutas.

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Colaboradores Talita Leite Ladeira participou da elaboração, condução da pesquisa e análise dos dados, concepção e redação do artigo. Aluísio Gomes da Silva Junior orientou a pesquisa e participou da revisão crítica do texto. Lilian Koifman participou da revisão e redação final do artigo. Referências 1. Silva AL, Ciampone MHT. Um olhar paradigmático sobre a Assistência de Enfermagem: um caminhar para o cuidado complexo. Rev Esc Enferm USP. 2003; 37(4):13-23. 2. Almeida AJ, Guimarães RB. O lugar social do fisioterapeuta brasileiro. Fisioter Pesqui. 2009; 16(1):82-8. 3. Bispo Junior JP. Formação em fisioterapia no Brasil: reflexões sobre a expansão do ensino e os modelos de formação. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2009; 16(3):655-68. 4. Ghizoni AC, Arruda MP, Tesser CD. Integrality: the perspective of physiotherapists from a medium-sized town. Interface (Botucatu). 2010; 14(35):825-37. 5. Silva ID, Silveira MFA. A humanização e a formação do profissional em fisioterapia. Cienc Saude Colet. 2011; 16 Supl 1:1535-46. 6. Gallo DLL. A Fisioterapia no Programa de Saúde da Família: percepções em relação à atuação profissional e formação universitária [dissertação]. Londrina (PR): Universidade Estadual de Londrina; 2005. 7. Swisher LL. A retrospective analysis of ethics knowledge in physical therapy (1970-2000). Phys Ther. 2002; 82(7):692-706. 8. Purtillo RBA. Time to harvest, a time to sow: ethics for a shifting landscape. Phys Ther. 2000; 80(11):1112-9. 9. Parecer CNE/CES 1210/2001. Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional. Diário Oficial da União. 10 Dez. 2001. 10. Lorenzo CFG, Bueno GTA. A interface entre bioética e fisioterapia nos artigos brasileiros indexados. Fisioter Mov. 2013; 26(4):763-75. 11. Badaró AFV, Guilhem D. Bioética e pesquisa na Fisioterapia: aproximação e vínculos. Fisioter Pesqui. 2008; 15(4):402-7. 12. Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. 13 Jun. 2013. 13. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 14. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. 5a ed. São Paulo: Loyola; 2002. 15. Siqueira Batista R. Às margens do Aqueronte: finitude, autonomia, proteção e compaixão no debate bioético sobre a eutanásia [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2006. 16. Schramm FR. Vida: sacralidade e/ou qualidade? Cad Atual Debate. 1995; 34(1):44-69. 17. Gracia D. Pensar a Bioética: metas e desafios. São Paulo: Loyola; 2010. 18. Zoboli ELCP. Deliberação: leque de possibilidades para compreender os conflitos de valores na prática clínica da atenção básica [tese]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2010.

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19. Tavares MR. Aspectos bioéticos do consentimento livre e esclarecido. Rev Bras Cir Cabeça Pescoço. 2003; 31(2):7-11. 20. Ladeira TL. Significados, sentidos e vozes do cuidado integral: aspectos bioéticos na formação do fisioterapeuta. Niterói. [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2014. 21. Consalter ZM, Jaremczuk, P. Direito à vida versus recusa ao tratamento vital. Prism. Jurid. 2010; 9(1):35-53. 22. Resolução nº 424, de 8 de julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. Diário Oficial da União. 1 Ago 2013.

Ladeira TL, Silva Junior AG, Koifman L. Fundamentos éticos en la toma de decisión de discentes de fisioterapia. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):675-85. La toma de decisión clínica debe incluir aspectos técnicos y éticos. Es necesario reconocer los conflictos éticos y comprender los valores morales envueltos para, finalmente, proporcionar respuestas eficientes a las cuestiones éticas presentes en la praxis. Este estudio cualitativo descriptivo tiene como objetivos comprender la percepción de los discentes de fisioterapia sobre los valores morales que deben regir las acciones de cuidado e identificar los fundamentos éticos que sirven de base a la toma de decisiones. En la investigación participaron 13 discentes de fisioterapia de una universidad federal brasileña. Se realizaron entrevistas semi-estructuradas individuales, con aplicación de un dilema moral hipotético relacionado con la práctica profesional. Observamos deficiencia en el referencial bioético de los discentes antes los conflictos expuestos. Por lo tanto, existe la necesidad de que repensemos la formación, con el fin de fomentar la toma de decisiones más conscientes y resolutivas en salud.

Palabras clave: Bioética. Toma de decisiones. Fisioterapia.

Submetido em 18/04/16. Aprovado em 26/08/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0385

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Sentidos sobre agroecologia na produção, distribuição e consumo de alimentos agroecológicos em Florianópolis, SC, Brasil Deise Warmling(a) Rodrigo Otávio Moretti-Pires(b)

Warmling D, Moretti-Pires RO. Meanings of agroecology in the production, distribution and consumption of agroecological food in Florianópolis, Santa Catarina State, Brazil. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):687-98.

The study aimed to describe the meanings attributed to agroecology by stakeholders involved in the production and use of the agroecological food network, in Florianópolis. Five participants in the study were: an agronomist, a nutritionist, a farmer, a seller in the market and a consumer. The methodological and epistemological perspective was social constructionism. Meanings described included: the healthy food, fit for certification; sustainable production; fair trade; farmers’ culture; relations of reciprocity. After analyzing the results, there are two main axes: meanings directly and indirectly related to the insertion of agroecology in the markets; and meanings related to agroecology as a movement geared towards building a different model of society. The multiplicity assumption prevailed, where the various narratives allow us to broaden the debate and perceptions on the topic.

Keywords: Agroecology. Agroecological food. Susteinable agriculture. Social constructionism.

O objetivo deste estudo foi descrever os sentidos atribuídos à agroecologia por atores da rede de produção e consumo de alimentos agroecológicos, no município de Florianópolis. O estudo contou com cinco participantes: um agrônomo, um nutricionista, um produtor, um comerciante e um consumidor. O referencial epistemológico e metodológico foi o construcionismo social. Os sentidos descritos foram: o alimento saudável e apto à certificação; a produção sustentável; o comércio justo; a cultura do campesinato; as relações de reciprocidade. Na análise dos resultados, encontraram-se dois eixos principais: sentidos relativos, de forma direta e indireta, à inserção de agroecologia nos mercados; e os sentidos relativos à agroecologia como um movimento em direção à construção de um outro modelo de sociedade. Prevaleceu o pressuposto da multiplicidade, na qual as diversas narrativas nos possibilitam ampliar o debate e percepções sobre a temática.

Palavras-chave: Agroecologia. Alimentos agroecológicos. Agricultura sustentável. Construcionismo social.

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(a) Doutoranda, Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Campus Reitor João David Ferreira Lima. Florianópolis, SC, Brasil. deisentr@gmail.com (b) Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, UFSC. Florianópolis, SC, Brasil. rodrigo.moretti@ufsc.br

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Introdução Nos últimos anos, as pesquisas sobre agroecologia têm se intensificado, destacando a temática, tanto no Brasil como no cenário mundial. A agroecologia surge associada a discursos tais como: o desenvolvimento sustentável, a promoção de saúde, a segurança alimentar e nutricional, e a autonomia do agricultor. Também há os movimentos sociais que têm por base a prática agroecológica e a defendem por ser uma questão urgente, a ser reforçada por políticas públicas. Em meados de 1970, surge o discurso de agroecologia nos movimentos sociais, que emerge como um movimento composto por técnicos, agricultores e lideranças do campo, e se fortalece a partir de referências científicas como uma forma estratégica de produção de alimentos1. Segundo Carvajal2, a agroecologia não nasce em um campo científico ou em uma discussão específica para solucionar o impacto do homem na natureza. Ela tem suas origens nas práticas tradicionais do campesinato latinoamericano, por meio do resgate dos conhecimentos de comunidades tradicionais, como os camponeses e indígenas da América e da Ásia. Sua origem está num movimento popular de oposição ao agronegócio que engloba, também, as questões relativas à forma de organização social, a autonomia e a relação do agricultor com a terra2. Na literatura, a sustentabilidade aparece como eixo central da agroecologia, por meio da aplicação dos princípios ecológicos para a consolidação do desenvolvimento sustentável2,3. Segundo Altiere4, a agroecologia é a ciência que se fundamenta em princípios ecológicos para o manejo de sistemas de produção sustentáveis e de preservação de recursos naturais. Destaca-se a sua importância enquanto uma alternativa para se reverterem os impactos econômicos e ambientais do agronegócio. Na perspectiva do potencial emancipatório para o agricultor, a temática tem por objetivo a implantação de um sistema produtivo sustentável nas dimensões sociais, além das ambientais e econômicas5. A agroecologia pode ser definida por um modelo de produção de alimentos e, também, de satisfação de outras necessidades dos seres humanos, de forma a minimizar os impactos negativos no meio ambiente e, sobretudo, na sociedade, abarcando ideais sociais6,7. O modo de produção agroecológico enfoca a justiça social, o fortalecimento das ações locais e da identidade do agricultor familiar, resgatando suas raízes culturais e sua autonomia2,8,9. Embora a agroecologia contemple inúmeros conhecimentos de técnicas agrícolas, sementes e manejo da terra, ela os transcende, pois contempla saberes derivados da interação de diversos campos científicos, tais como: a ecologia, economia, ciências sociais, agronomia e antropologia4. Em relação à produção de alimentos, a agroecologia contribui, ainda, com o comércio local de pequeno porte, no qual é possível a construção de relações mais horizontais de produção e consumo. Onde se tornam possíveis ações coletivas que envolvam cooperação e reciprocidade entre agricultor e consumidores5. Na perspectiva da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), o discurso da agroecologia se expandiu no Brasil em contraponto aos impactos da chamada “Revolução Verde”, que ocorreu a partir de 1960. No período, houve expansão do uso de sementes selecionadas, insumos químicos e alta tecnologia no campo, com o objetivo de aumento da produção de alimentos e redução das taxas de fome até o século XXI10. De fato, houve expansão da produção, entretanto a fome persistiu, pois a quantidade total de alimentos não é o ponto crítico do problema, mas, sim, a desigualdade social1. Caporal e Costabeber10 afirmam que o Brasil possui um impacto negativo em relação à quantidade de alimentos produzidos por meio do agronegócio. Por meio do padrão agrícola dominante, tem-se obtido supersafras de alguns grãos, como soja e milho, que são commodities relevantes para a economia brasileira. Todavia, em geral, são destinados para exportação ou alimentação animal. Desta forma, defende-se que, para se assegurar a SAN da população brasileira, são necessárias políticas públicas que destinem recursos para a produção de alimentos que sejam compatíveis com os hábitos alimentares regionais e promovam a transição do modo de produção convencional para o agroecológico11. A agroecologia, que tem por base a agricultura familiar e a diversificação de culturas, seria estratégica para a ampliação da produção de alimentos para o consumo da população10. O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) definido pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e aprovado em legislação brasileira, tem por base 688

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a agroecologia. Pois aborda em suas diretrizes: a promoção da agricultura familiar, as práticas agroecológicas e a utilização sustentável dos recursos naturais5,12. Há, também, discursos que tratam a temática com um enfoque estratégico para a promoção de saúde. A relação entre ambas as áreas se fortaleceu no Brasil no ano de 2012, com a divulgação do Dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, denominado “Um Alerta sobre os Impactos dos Agrotóxicos na Saúde”. O dossiê teve por objetivo alertar tanto a população quanto o Estado brasileiro sobre o uso abusivo de agrotóxicos em nosso país, assim como a contaminação ambiental e o impacto negativo sobre a saúde humana13. Desta forma, a agroecologia contribuiria tanto para a saúde ambiental, como humana, em relação ao agricultor e consumidor, devido a uma “produção limpa”. A institucionalização da agroecologia no Brasil é recente, com marco inicial no evento mundial Rio+20 – conferência assim conhecida por ser realizada no Rio de Janeiro e marcar os vinte anos da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92) e definir a agenda de desenvolvimento sustentável para as próximas décadas. Neste evento foi lançada a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), por meio do Decreto nº 7.794 de 20 de agosto de 2012. A PNAPO tem por objetivo a promoção da transição agroecológica e a produção orgânica como base para o desenvolvimento sustentável. A partir dela, espera-se proporcionar melhoria da qualidade de vida à população com a oferta de alimentos saudáveis e sustentáveis14. Dentre suas diretrizes, apresenta: a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional, a promoção do trabalho digno, a função social de sustentabilidade da propriedade privada, a redução das desigualdades sociais e da pobreza. Para a sua consolidação, ela apresenta seis eixos centrais, dentre eles podemos destacar dois relevantes para a área de alimentação e nutrição: a ampliação da produção e processamento de alimentos de base agroecológica e orgânicos, priorizando-se os agricultores familiares e povos tradicionais; e a ampliação do consumo dos produtos orgânicos e agroecológicos, priorizando-se o comércio local, e, para isso, aumentando-se as compras feitas pelo Estado14. Conforme o exposto, identificaram-se alguns discursos na literatura científica que dão sentidos e constroem a agroecologia, que, por meio destes, pode ser entendida por: um movimento social, um meio para o desenvolvimento sustentável, uma possibilidade de emancipação para os produtores, uma estratégia de promoção de saúde, ou, ainda, uma alternativa para a segurança alimentar e nutricional. Compreende-se que a construção dos sentidos estabelecida pelos atores sociais envolvidos influencia na maneira pela qual a agroecologia se consolida. Desta forma, considera-se relevante a descrição e análise das narrativas dos atores sociais relacionados ao ciclo de produção e consumo de alimentos agroecológicos, entrelaçando-se com os discursos científicos. Assim, o objetivo do estudo foi conhecer os sentidos e descrever os efeitos das narrativas sobre agroecologia dos diversos atores envolvidos na rede de produção e consumo de alimentos agroecológicos, no município de Florianópolis.

Percurso metodológico Este estudo possui caráter metodológico descritivo, com abordagem qualitativa, e visa descrever sentidos atribuídos à agroecologia. O referencial teórico utilizado foi o construcionismo social, o qual entende que as pessoas estão, a todo momento, construindo sentido sobre suas experiências. Na perspectiva construcionista, não se utiliza de uma metodologia fechada, com uma avaliação que trará uma verdade em detrimento das demais, mas, sim, de um percurso que levará à compreensão de sentidos. Nesse caso, o pesquisador assume uma postura reflexiva nos processos de investigação15-17. Não há a expectativa de se obter um consenso entre os diversos sentidos que emergirem dos diferentes participantes, e valoriza-se o pressuposto da multiplicidade. O local do estudo foi o município de Florianópolis/SC, que tem se destacado na produção e expansão de locais de venda de alimentos agroecológicos. Santa Catarina possui características fundiárias, sociais e culturais que organizam cerca de 90% dos agricultores na lógica da agricultura familiar, o que torna o desenvolvimento da agroecologia favorável18. Em Florianópolis, são promovidas, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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semanalmente, quatro feiras urbanas agroecológicas: uma delas acontece na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), duas na região sul, e a quarta na região leste da ilha. Outra característica relevante no município, no âmbito da agroecologia, foi a conquista de um box exclusivo para a comercialização de alimentos agroecológicos na Central de Abastecimento (CEASA) de Santa Catarina, em dezembro de 2012. O instrumento de pesquisa utilizado foi a entrevista semiestruturada, onde o entrevistado é convidado a falar sobre o tema a partir de questões norteadoras19. Elaborou-se um roteiro para inspiração da pesquisadora, que serviu para aprofundar as reflexões estabelecidas durante as conversas entre pesquisador e participantes20. As entrevistas versaram sobre os seguintes aspectos na rede de produção e consumo de alimentos agroecológicos: i) como se iniciou a aproximação, quais foram os fatores que impulsionaram a adesão e permanência; ii) quais são os benefícios identificados a partir da prática agroecológica; iii) quais as expectativas em relação à expansão, quais seriam os benefícios e beneficiados; iv) se houve alguma experiência exitosa a ser compartilhada. Os participantes de pesquisa foram selecionados por atuarem na região central da cidade, local onde se identificou haver grande fluxo de distribuição e consumo de alimentos agroecológicos. A escolha dos cinco atores sociais se deu por conveniência, sendo: um agrônomo, um nutricionista, um produtor e feirante, um comerciante e um consumidor. Conforme os pressupostos epistemológicos do construcionismo social15-17,20, não há intenção de se inferir o resultado desse estudo para o município em sua totalidade. Mas, sim, conhecer os sentidos construídos para agroecologia no contexto estudado. Desta forma, assumiu-se que cada um dos participantes, compunha um grupo distinto na rede de produção, distribuição e consumo de alimentos agroecológicos. Para a seleção destes, considerou-se a relação de cada participante com instituições ou organizações do campo da agroecologia, conforme exposto no Quadro 1.

Quadro 1. Descrição da atuação dos atores sociais entrevistados na rede de agroecologia de Florianópolis, SC Ator social

Local de atuação na rede de agroecologia

Agrônomo

Organização não governamental promotora de agroecologia, que atua em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Nutricionista

Setor do Governo Estadual de Santa Catarina

Produtor e feirante

Feiras e mercados agroecológicos e orgânicos, região central de Florianópolis

Comerciante

Mercados agroecológicos e orgânicos, região central de Florianópolis

Consumidor

Feiras e mercados agroecológicos e orgânicos, região central de Florianópolis

A realização da pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina. Foram consideradas as normas da Comissão de Ética com seres humanos, conforme a Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde21. A análise dos dados foi realizada de acordo com os seguintes passos: imersão nas gravações e transcrições das entrevistas; descrição dos sentidos sobre agroecologia; seleção de trechos da entrevista que ilustrem os sentidos, e discussão com base na literatura e nos conteúdos construídos. Algumas falas relevantes foram acrescentadas na análise para oferecer uma visão representativa aos sentidos atribuídos por cada ator social. Preservou-se o anonimato dos atores, registrando-se apenas a posição social que ocupam na rede de agroecologia, a fim de contextualizar as narrativas em relação ao local de onde fala cada entrevistado.

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Resultados e discussão São expostos, a seguir, os resultados que emergiram a partir da análise propriamente dita das narrativas. Apresenta-se a compreensão do processo social pesquisado, bem como busca-se ampliar o olhar para o sentido dado pelos atores sociais participantes.

Sentidos sobre agroecologia De acordo com Spink22, a produção de sentidos é definida por quatro tempos – longo, vivido, curto e prospectivo. Entende-se que o relato das entrevistas é uma construção em tempo curto, mas que, também, trazem vozes do tempo vivido, as quais não são exclusivas do entrevistado. Mas, sim, de um entrelaçado de discursos que compõem sua percepção e experiência com a temática. Do tempo longo, são as vozes e significados estabelecidos socialmente, alguns consolidados em literatura ou normativas; e, também, as expectativas futuras, desejos e fé que se manifestam na vontade de continuar, constituindo o tempo prospectivo. Nesse contexto, são apresentados, no Quadro 2, os sentidos que emergiram da análise das entrevistas realizadas com os atores sociais da rede de agroecologia.

Quadro 2. Sentidos sobre agroecologia para os atores envolvidos na rede de produção e consumo de alimentos agroecológicos Agrônomo

Produção alternativa; solo saudável; cultura do campesinato; modelo de sociedade transformador

Nutricionista

Promoção de saúde; objeto para políticas públicas

Produtor

Produção bonita, limpa e sustentável; alimentos aptos à certificação participativa; promove relações de reciprocidade

Comerciante

Comércio justo; alimentos saudáveis e aptos à certificação orgânica

Consumidor

Alimentos orgânicos e saudáveis; produção sustentável; promove relações além das mercantis

Um sentido atribuído à agroecologia que foi comum entre vários entrevistados (nutricionista, consumidor, comerciante) foi o atributo de saudável. Os benefícios da agroecologia para a saúde são estabelecidos a partir de exemplos de acometimentos por intoxicações com agrotóxicos e câncer. “Tem um agricultor que teve doenças seríssimas pelo agrotóxico e ele foi para Garuva para plantar banana orgânica”. (Nutricionista) “A saúde é a principal característica. Por que você vai escolher comer veneno? A vantagem entre o orgânico e o convencional é a saúde. É um caminho sem volta, as pessoas estão se conscientizando e, os médicos também. A gente tem clientes em tratamento, inclusive de câncer, que vem aqui no mercado, tem bom resultado e agradecem muitíssimo. E tem outro público que não quer ficar doente. Por que eu vou comer uma maçã com 40 aplicações de veneno? [...] O câncer, antes se ouvia falar, hoje está na casa de quase todas as famílias”. (Comerciante)

Desta forma, o saudável é construído a partir dos riscos de se desenvolver doenças. Segundo Beck23, os riscos relativos aos resíduos de agrotóxicos nos solos, água e alimentos, são imprevisíveis e incertos. Eles podem ter efeitos catastróficos globais, ser invisíveis e irreversíveis, uma vez que não são controláveis por um indivíduo e nem por grupos específicos, alcançando-se uma dimensão planetária. Para nos proteger desses riscos, são necessárias escolhas diárias, amparadas em conhecimentos científicos. Os quais também são extremamente instáveis, pois são colocados em cheque a cada nova pesquisa científica divulgada. Isso faz com que as decisões cotidianas tornem-se cheias de incertezas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e angústias para os leigos e fortemente influenciadas por pressões políticas e econômicas para os especialistas24. Ao entrelaçar os discursos sobre a sociedade de risco23 e a saúde, compreende-se que a insaciabilidade dos riscos relacionados à saúde move também o sistema econômico, criando novos produtos. As necessidades básicas, como alimentar-se, morar, vestir-se, podem ser satisfeitas, mas os riscos civilizatórios hoje vivenciados são um “poço sem fundo” de necessidades infinitas, tornandose um lugar importante para o mercado23,24. Assim, é preciso refletir sobre o efeito da construção do saudável a partir do risco, que desencadeia a geração de novos produtos. Ao ser incentivado o consumo de alimentos agroecológicos a partir da centralidade do risco, reforça-se a incorporação da agroecologia ao mercado. Sendo que este efeito é concorrente em relação aos ideais agroecológicos mais amplos, de movimento em oposição ao agronegócio, desde a forma de organização social à autonomia em relação ao mercado. Também se destacou o sentido de alimento apto à certificação, ou seja, que deve ser certificado para que, de fato, seja um alimento agroecológico, nas falas do comerciante: “Para os que plantam e não possuem certificação, não se realiza a compra. Não tem o selo, mas não tem veneno, não se vende no mercado [...] Não quero correr nenhum risco em relação à lei” (Comerciante). Segundo Portillo e Casteñeda25, os sistemas de certificação no Brasil estão em transição, passando das convenções sociais e da confiança pessoal para processos ligados à lógica industrial, com objetivo de padronização para a formação de commodities, tal como as certificações. Os autores consideram que a institucionalização da agricultura agroecológica valorizou critérios que validam a qualidade do produto final, e não o processo em si, sendo o último bem mais amplo e relevante para o movimento agroecológico. O processo de produção de alimentos agroecológicos certificados necessita da técnica, e que, na sociedade capitalista, está atrelado à racionalidade instrumental26. Tem-se um processo de homogeneização e massificação, característico da indústria cultural; este sacrifica o poder emancipatório, pois produz bens culturais em forma de mercadoria27. A padronização e a técnica se sobrepõem à autonomia na produção e anulam a originalidade do produto28. O discurso do caráter de industrialização do selo de certificação nos convida a interpretá-lo como uma representação de marca, a qual, de maneira fetichizada, empresta personalidade ao objeto, além de agregar a ele valores subjetivos. Ainda, o selo de certificação aproxima a agroecologia do mercado enquanto ‘produto cultural’28 e distancia-se da perspectiva do movimento agroecológico. Foi trazido, também, o sentido do comércio justo, pelo comerciante. “A filosofia do comércio justo é essa: você não explora quem está na terra. Estamos fazendo um esforço muito grande para quebrar isso. A motivação para isso vem do fato de “ser humano”. Pensar no lucro não como um fim, mas como um meio. Oxalá, que todas as empresas pensem desta forma! [...] Reduzir o número de atravessadores, buscando melhor preço, para aumentar o número de clientes”.

Na literatura, o comércio justo vem sendo definido por práticas socioeconômicas alternativas aos comércios convencionais, regidos por regras globais e injustas, em especial, para os agricultores familiares. O comércio justo e solidário deve estabelecer relações de equidade, confiança e interesses compartilhados entre produtores e consumidores29. Buscou-se analisar a resolução do Parlamento Europeu30 que dispõe sobre o comércio justo e apresenta as práticas a serem seguidas nesta modalidade, a fim de refletir sobre a coerência do discurso do comerciante. Observou-se que o mercado referido na narrativa é uma empresa privada, em que, numa ponta, estão os proprietários, que detêm o capital, e, na outra, os agricultores fornecedores, que detêm a sua força de trabalho. As despesas e receitas da comercialização dos alimentos não são distribuídas equitativamente entre os envolvidos no processo de produção e venda, assim, não se pode assegurar uma relação orientada pelos princípios do comércio justo. Também deveria haver um acréscimo de um valor monetário 692

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adicional sobre o produto, a ser repassado integralmente aos produtores, para o seu fortalecimento. Embora não tenha se falado sobre essa prática durante a entrevista, a partir da necessidade de preços inferiores deste mercado em relação às grandes redes de supermercados, para a sua manutenção no setor, supõe-se que a aplicação desse incremento no preço não seja possível no local. Junto aos hortifrutis comercializados no mercado da comerciante entrevistada, consta apenas a informação do município e estado de procedência, junto ao preço. Não são apresentados outros elementos que deem visibilidade à origem e aos valores culturais e históricos dos alimentos ofertados. Ao olhar para o discurso do comerciante a partir do discurso teórico sobre o comércio justo, o mercado em questão se aproxima mais de um empreendimento econômico, que precisa atender uma logística de mercado, engessado, sem mobilidade para alcançar outros horizontes mais justos. Nas narrativas do produtor e do consumidor, destaca-se, também, a sustentabilidade enquanto um sentido atribuído à agroecologia. Ela é pouco explorada em ambas as narrativas, pois é tratada como um consenso, uma verdade já firmada, não parecendo ser necessário, aos entrevistados, discorrerem mais sobre este sentido. Este fato é corroborado pela crítica de Boff31 (p. 37), “o conceito de sustentabilidade atualmente é tão usado e abusado, que já se transformou num modismo, sem que o seu conteúdo seja esclarecido ou criticamente definido”. Em consonância com esse discurso, o sentido de sustentabilidade é sucintamente justificado pelo consumidor da seguinte forma: “O sustentável é: ambientalmente, economicamente, socialmente”. Entretanto, é relevante abordar que o conceito hegemônico de sustentabilidade deriva de acordos internacionais, tal como o Relatório de Brundtland32, os quais constroem a sustentabilidade a partir de uma visão de mundo eurocêntrica, onde o padrão de desenvolvimento a ser alcançado é a generalização do padrão de consumo dos países ricos31. O conceito de sustentabilidade econômica está atrelado ao crescimento, medido pelo Produto Interno Bruto (PIB) com vistas ao desenvolvimento. No entanto, os termos desenvolvimento e sustentabilidade são contraditórios, pois o primeiro é linear, crescente e supõe a exploração da natureza, a qual gera desigualdade. Já a sustentabilidade, nas suas ciências de origem (biologia e ecologia), tem um caráter circular e includente31. O discurso do desenvolvimento sustentável inverte a raiz de causalidade da crise ambiental e, por essa, responsabiliza o subdesenvolvimento, e desconsidera a desigualdade produzida pela economia capitalista, apresentando-se socialmente excludente. As três dimensões da sustentabilidade, citadas pelo consumidor – ambiental, social e econômica –, não estão em uma relação de igualdade, e, segundo Boff31, tornam o discurso do tripé da sustentabilidade vazio e retórico. O agrônomo aborda outros sentidos sobre agroecologia, que se aproximam mais do seu caráter ideológico contra-hegemônico, tais como: a cultura do campesinato e um modelo de sociedade transformador. “A motivação para plantar é muito forte em um aspecto: a questão da cultura do campesinato. [...] Eu acredito nisso. E além da agroecologia, eu atuo na agricultura campesina. Isso tudo para sair das grandes corporações dos alimentos, são quatro empresas querendo dominar o alimento no mundo, isso pra mim é diabólico. Agroecologia é o modelo de sociedade que eu quero. Não quero vender veneno, abrir uma agropecuária, fazer licenciamento ambiental. A gente está aqui por um modelo de sociedade que a gente quer, que estamos construindo”. (Agrônomo)

As sociedades camponesas ou campesinas se caracterizam por grupos que tem a centralidade da unidade de produção para reprodução da família, e não na comercialização. Essa categoria difere do agricultor familiar, que embora também busque a soberania alimentar no âmbito da sua família, está integrado a um mercado, respondendo às suas exigências33. Este discurso produz a compreensão de que, na prática do campesinato, os trabalhadores da terra atuem na luta contrária às dominações políticas e econômicas. Ao analisar a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), ela traz, por diretriz, a promoção de sistemas justos e sustentáveis de produção com vistas ao apoio de agricultores familiares14. Porém, não faz menção em nenhuma das diretrizes às terminologias: camponês, campesino ou campesinato. Neste cenário, têm-se: os efeitos da normatização pelo Estado, a redução do caráter tradicional da agroecologia e o reforço da adequação ao sistema econômico presente. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O consumidor e o produtor também consideram, entre os sentidos para a agroecologia, as relações além das mercantis, com o caráter de reciprocidade, que pode ser entendido por sinônimo de solidariedade. Na perspectiva antropológica, a reciprocidade corresponde a uma relação intersubjetiva, e não apenas uma simples troca de bens ou de objetos34. De acordo com Sabourin35, a venda direta favorece o encontro entre produtor e consumidor, e, além do valor de troca, existe o contato direto que favorece uma relação de reciprocidade, propiciando sentimentos como: amizades, valorização e reconhecimento mútuo, fidelidade e confiança. Essas situações dão lugar: às relações humanas, a conversa sobre o produto, o trabalho, a troca de experiências de vida. Ao encontro desta definição, segue a descrição do consumidor, ao relatar suas experiências ao frequentar a feira agroecológica: “[...] tem também aquele Almoço Hare Krishna, que é maravilhoso, você vai lá e senta com eles, conforme a filosofia deles e compartilha. Tem coisa mais nutricional que isso?!”. Entretanto, as políticas públicas já estabelecidas, estão mais voltadas para as práticas de mercado, desenhando-se a necessidade de que elas se voltem, também, para as práticas de reciprocidade35,36.

Agroecologia: inserção nos mercados ou um movimento pela construção de um novo modelo de sociedade A partir da descrição dos sentidos e seus efeitos, entrelaçando-se narrativas e discursos teóricos, encontram-se dois eixos principais: i) sentidos relativos, de forma direta e indireta, à inserção de agroecologia nos mercados, e ii) sentidos relativos à agroecologia na qualidade de um movimento em direção à construção de um outro modelo de sociedade. Na primeira linha, eles se dividem em: relativos à inserção nos mercados, de forma direta e indireta. Na forma direta, referem-se às propostas: de aumento da produção e escoamento para mercados, de aumentos dos pontos de venda, e de fomentos estatais por meio de políticas públicas. Já na forma indireta, referem-se aos sentidos de: estilos de vida saudáveis, sustentabilidade, certificação de orgânico; pois se considera que esses atributos são construídos a partir de riscos, com a finalidade de se criarem novos produtos. O saudável, o sustentável e o selo de certificação são formas de agregar valor. Além do valor de uso e de troca do produto, são adicionadas, ao produto, ideias, ligadas a valores subjetivos e oferecidos ao consumidor, tais como: cuidado com a saúde, meio ambiente e segurança. A partir disso, entende-se que se constroem produtos fetichizados, onde as relações entre homem e ambiente, relativas a todo o processo de produção, distribuição e aquisição, passam a estar contidas no selo de orgânico, ou na informação científica comunicada por algum especialista da área sobre os benefícios relativos à saúde e/ou ambiente. A fetichização se dá pelo processo de agregar as relações humanas ao produto e se esvaziarem os sentidos e atenção ao processo e aos envolvidos37. Esses sentidos, ligados à inserção da agroecologia no mercado, foram os mais frequentes nas narrativas acima descritas. Já a segunda linha: sentidos relativos à agroecologia como um movimento em direção à construção de outro modelo de sociedade foram trazidos apenas, pelo agrônomo, de forma mais enfática. E, pelo consumidor, de forma bem mais tímida, e, ainda, junto com outros sentidos relativos à adequação da agroecologia ao sistema econômico vigente. São duas formas distintas apresentadas, possíveis, da construção da agroecologia: uma com vistas à sua expansão, adequando-se ao modelo econômico e às regras já estabelecidas; e outra, de resistência ao que está imposto, de valorização das minorias e das culturas tradicionais, de militância, contrahegemônica. Nos sentidos presentes nas narrativas, considera-se dessa segunda forma: a cultura do campesinato, o modelo de sociedade transformador, a reciprocidade e as relações além das mercantis. São duas formas concorrentes. Inclusive, a adaptação ao mercado, carrega consigo o reducionismo da temática ao produto, o que parece bastante problemático, considerando-se a sua complexidade. Nas narrativas dos entrevistados, percebeu-se que a ideologia da agroecologia é mais forte nos atores que se aproximam do espaço da academia, como com o agrônomo, especialista na temática. Quando se operacionaliza a proposta, o mercado passa a ser central, e os demais valores, relativos às questões humanas, passam a ser componentes do produto que lhe agregam valor, enquanto deveriam ser principais. 694

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No âmbito da comercialização, de acordo com Comunello38, há uma separação entre as organizações: os circuitos agroecológicos (ONGs, movimentos sociais, agricultores familiares e feirantes) e os circuitos orgânicos (supermercados e agricultores empresários). No primeiro, os interesses são centrados em valores mais equitativos e solidários, já no segundo, buscam propriamente o lucro. Ao perceber que a distinção entre orgânicos e agroecológicos não é feita em várias das narrativas (produtor, comerciante, consumidor), entende-se que a linha de separação entre os dois circuitos, orgânicos e agroecológicos seja muito tênue. Talvez a percepção de que há duas formas de expansão da agroecologia – uma incorporando-se ao sistema e outra de resistência a ele, buscando outro modelo de sociedade – contribua para a separação dos dois circuitos e possibilite impulsionar a agroecologia, em seu contexto amplo.

Considerações finais Para a compreensão da diversidade de discursos que a temática engloba, foram levantados cinco principais discursos sobre agroecologia: o movimento agroecológico, a sustentabilidade, a autonomia do agricultor, a promoção de saúde e a Segurança Alimentar e Nutricional. Na análise das entrevistas, foram registrados sentidos referentes à narrativa de cada ator colaborador da pesquisa. Estes foram analisados a partir de outros discursos teóricos, não com o objetivo de deslegitimá-los, mas, sim, de promover a reflexão sobre eles. A proposta problematizadora das narrativas se deu no intuito de apontar lacunas, possibilidades e outros olhares sobre os discursos que vêm sendo enfatizados nas políticas públicas. Também se discorreu e analisou sobre os efeitos produzidos em cada narrativa e o potencial de cada um deles, tanto em contribuir com a consolidação da agroecologia, ou de maneira inversa, reduzi-la ao produto sem agrotóxico, que compõe um nicho de mercado. Com os discursos, narrativas e reflexões estabelecidas, não se alcança um fim em si, mas oportunidades de se construírem outras formas de pensar e agir no que tange à prática agroecológica, com maior visibilidade sobre quais interesses e discursos são legitimados e quais são silenciados. E, ainda, com maior clareza sobre as implicações éticas de cada discurso e quais movimentos que eles têm possibilidade de estimular. Assim, tais reflexões continuam e se manifestam com potencial de embasar novos direcionamentos no campo da agroecologia.

Colaboradores Deise Warmling participou da concepção e delineamento do estudo; coleta, processamento, análise e interpretação dos dados; pesquisa bibliográfica e elaboração do manuscrito. Rodrigo Otávio Moretti-Pires participou da concepção e delineamento do estudo, elaboração e revisão crítica do manuscrito. Os autores aprovaram a versão final do manuscrito e declaram serem responsáveis por todos os aspectos do trabalho.

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Warmling D, Moretti-Pires RO. Sentidos sobre agroecología en la producción, distribución y consumo de alimentos agroecológicos en Florianópolis, Estado de Santa Catarina, Brasil. Interface (Botucatu). 2017; 21(62):687-98. El objetivo de este estudio fue describir los sentidos atribuidos a la agroecología por actores de la red de producción y consumo de alimentos agroecológicos en el municipio de Florianópolis. El estudio contó con cinco participantes: un agrónomo, un nutricionista, un productor, un comerciante y un consumidor. La referencia epistemológica y metodológica fue el construccionismo social. Los sentidos descritos fueron: el alimento saludable y apto para la certificación, la producción sostenible, el comercio justo, la cultura campesina, las relaciones de reciprocidad. En el análisis de los resultados, se encuentran dos ejes principales: sentidos relativos, de forma directa e indirecta, para la inserción de agroecología en los mercados y los sentidos relativos a la agroecología como un movimiento en dirección a la construcción de otro modelo de sociedad. Prevaleció el presupuesto de la multiplicidad, en la cual las diversas narrativas nos posibilitan ampliar el debate y las percepciones sobre la temática.

Palabras clave: Agroecología. Alimentos agroecológicos. Agricultura sostenible. Construccionismo social.

Submetido em 22/04/16. Aprovado em 09/08/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0313

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Entre saúde e educação: sobre um ambulatório de saúde mental infantojuvenil

Pedro Moacyr Chagas Brandão Junior(a) Fernanda Canavêz(b) Patricio Lemos Ramos(c)

Introdução O artigo insere-se na lógica que busca o reordenamento das políticas públicas de saúde, que vem se dando nos últimos anos em nosso país, primando pela integração entre o campo da saúde mental e aquele da atenção primária1. Essa transformação incide diretamente sobre a atuação das equipes que compõem a rede de assistência em saúde, na medida em que estas são convocadas à tarefa de construção de uma rede de serviços articulada que extrapola o paradigma tradicional da prática clínica. No que tange ao trabalho do psicólogo nesse campo, também as práticas psicoterápicas restritas ao atendimento ambulatorial, nos moldes dos consultórios particulares, precisam ser revistas e ampliadas. Essa mudança deve ser compreendida à luz da Reforma Psiquiátrica, processo político e social presente em diversos países que objetiva, em última instância, reformar o modelo de assistência em saúde mental2. Constituindo-se como política pública no Brasil, tal orientação endereça críticas contundentes ao modelo hospitalocêntrico que embasou historicamente as políticas de assistência em saúde mental em nosso país3,4. Expressivas conquistas do movimento da Reforma ocorreram no âmbito legislativo, entre as quais é possível citar a promulgação da Lei Federal 10.216, em 20015. Esse importante passo na história do processo brasileiro de desinstitucionalização tornou necessário fomentar, organizar e implantar serviços que pudessem operar de acordo com uma nova lógica de funcionamento, visando acolher os egressos de internações psiquiátricas, sobretudo os de longa permanência. Além disso, preconizou a urgência da oferta de serviços em saúde mental afinados à construção de uma rede comunitária de cuidados. Sendo assim, vimos delinear a rede de atenção em saúde mental, da qual fazem parte os Centros de Atenção Psicossocial em suas diferentes modalidades (CAPS, CAPSi, CAPSad); os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), como indicam Ribeiro6 e Furtado7, respectivamente; assim como os leitos de saúde mental em hospitais gerais e, no quesito da chamada baixa complexidade, os ambulatórios de saúde mental8. Tradicionalmente, os CAPS foram privilegiados entre os serviços substitutivos de saúde mental na reorganização da assistência, em função de possuírem um COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Uniabeu Centro Universitário. Rua Itaiara, 301, Belford Roxo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 26113-400. pedromoacyr@ uol.com.br (b) Departamento de Psicologia, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. fernandacanavez@ gmail.com (c) Prefeitura Municipal de Muqui. Muqui, ES, Brasil. patricio.patricioramos@ gmail.com

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papel preponderante na articulação da rede de serviços e nos encaminhamentos dados aos casos considerados graves, de modo que seus usuários recebem assistência intensiva e de alta complexidade. Segundo Tenório9, eles surgem como uma forma de repúdio ao hospital psiquiátrico e, no que diz respeito ao tema do presente artigo, em resposta à insuficiência dos ambulatórios caracterizados por consultas espaçadas e curtas; à repetição burocrática de prescrições medicamentosas; aos procedimentos igualmente burocráticos de admissão e de desligamento do tratamento; e, por fim, à pouca resolutividade e flexibilidade para o acompanhamento de casos mais graves9. Entretanto, apesar de serem os CAPS imprescindíveis para o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira – na medida em que acompanham e assistem aos sujeitos com grave sofrimento psíquico –, eles deixam de atender um grande contingente de sujeitos acometidos por sofrimentos considerados pela política pública de saúde como sendo de baixa complexidade e que necessitam de acompanhamento menos intensivo. Estimativas do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde apontam que 3% da população necessita de cuidados contínuos de saúde mental por sofrer de transtornos mentais graves, severos e persistentes – aos quais seriam reservados os CAPS – e outros 9% precisariam de atendimento eventual, já que seu sofrimento seria menos grave10. Vale ressaltar que, no campo da saúde mental, a medida entre a alta e a baixa complexidade dos casos deve ser relativizada, uma vez que os quadros clínicos não são lineares em sua apresentação nem seguem um prognóstico claramente estabelecido. Verificamos na prática clínica que as equipes deste campo devem lidar com diferentes nuances e situações que não podem ser previamente identificadas. Dessa maneira, propomos que a dualidade alta e baixa complexidade seja abordada pelo viés da necessidade de tratamento de maior ou menor intensividade. Esta visada prima pela ideia de que os CAPS devem entrar em ação toda vez que determinado caso demandar uma atenção mais intensiva, permanecendo os ambulatórios dedicados àqueles atendimentos onde for necessária uma menor intensividade de tratamento. A título de esclarecimento, chamamos de intensivas as ações que extrapolam o contexto dos atendimentos ambulatoriais, mesmo os ampliados, quais sejam, aquelas que envolvem atendimentos de diferentes profissionais da equipe; e também os realizados no território e na comunidade. A problemática da divisão entre alta e baixa complexidade ainda guarda mais um impasse. Além de não manter o que denominamos acima de linearidade ou estabilização contínua dos casos, com prognóstico claramente estabelecido, também o próprio público atendido em ambos os serviços (ambulatório e CAPS, em suas diversas modalidades) deve ser relativizado. O CAPS, assumindo seu lugar de ordenador da rede, pode entrar em ação não somente para realizar o atendimento stricto sensu, mas também pode oferecer suporte clínico, com o fim de que uma equipe ambulatorial sustente, ela própria, suas ações com determinado paciente. Esse trabalho se aproximaria de nosso tema, a saber, o apoio matricial. Nessa concepção, os casos de saúde mental, todos eles, ganham um caráter de alta complexidade, podendo envolver o atendimento de um único serviço ou de vários outros, de acordo com o quadro apresentado por determinado sujeito. Então, a complexidade a que nos referimos é justificada por demandar uma escuta atenta e uma ação singular para cada caso. Além disso, ainda que tenham sido realizados muitos avanços no que diz respeito à assistência em saúde mental dispensada à população adulta – a despeito dos obstáculos enfrentados no processo da Reforma Psiquiátrica –, o mesmo não pode ser afirmado no que diz respeito à clientela infantojuvenil. Como aponta Couto11, crianças e adolescentes com um padrão de saúde tido como desviante continuam, em grande escala, relegados ao limbo de instituições basilares à margem do sistema formal de saúde mental, sob a justificativa de necessitarem de “proteção” e de “cuidado”. Em paralelo, quando o quadro não chega ao extremo da institucionalização, podem ainda ser observadas outras medidas consideradas protetivas que acabam por desconsiderar o fato de crianças e adolescentes serem sujeitos singulares que podem (e devem) falar por si, inclusive a respeito de seu sofrimento. Nessa segunda tendência, destaca-se o que se chama de medicalização da vida12 – como um movimento que reduz análises que conciliariam inúmeros fatores e disciplinas com a lógica médico-patologizante – e, mais especificamente no caso de crianças e de adolescentes, de medicalização da educação13. Assim, fenômenos anteriormente tomados como inerentes ao processo ensino-aprendizagem são elencados como índices de patologias que demandam, quase sempre, uma 700

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intervenção medicamentosa, concorrendo para o incremento dos encaminhamentos endereçados à rede de assistência em saúde mental. Esses dados falam a favor da construção de dispositivos de assistência em saúde mental, no estabelecimento de redes de atendimento, que sigam as diretrizes e a lógica da Reforma Psiquiátrica e do SUS, sobretudo no que diz respeito a crianças e adolescentes. A partir desse referencial, convidamos o leitor à discussão sobre o caso específico do ambulatório de saúde mental infantojuvenil do município de Nova Iguaçu, que se propôs a funcionar conforme a lógica apresentada de 2007 a 2013: usando a estratégia do matriciamento como forma de intervenção com a rede municipal de ensino desse município, uma experiência que pode servir de referência para os demais profissionais que atuam no campo da saúde. Apresentamos a aposta, neste artigo, no lugar privilegiado dos ambulatórios de saúde mental no processo de integração da saúde mental à chamada atenção primária ou básica por meio da proposta de uma experiência de matriciamento, constituindo o desdobramento de discussões apresentadas previamente14. Para isso, detalhamos a seguir o funcionamento do ambulatório em saúde mental infantojuvenil, assim como a metodologia do apoio matricial e, finalmente, o caso específico da tentativa de matriciamento realizada por esse ambulatório junto com os Agentes Pedagógicos de Educação Especial (APEDES) da Secretaria Municipal de Educação do referido município.

A assistência em saúde mental de Nova Iguaçu: implantação do ambulatório infantojuvenil O município de Nova Iguaçu está localizado na baixada fluminense, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, com uma população de aproximadamente 800 mil habitantes15. Até o ano de 2000, Nova Iguaçu ocupava o segundo lugar no Estado do Rio de Janeiro em internações psiquiátricas de adultos. Segundo o relatório do Fórum Interinstitucional para o Atendimento em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes no Estado do Rio de Janeiro, em 2001, o município também ocupava a mesma colocação no ranking de internações de crianças e adolescentes no Hospital Isabela Martins (Antigo Hospital Vicente Resende), unidade do Instituto Municipal Nise da Silveira. Conforme antecipado, o ambulatório de saúde mental infantojuvenil de Nova Iguaçu foi instaurado em fevereiro de 2007 como produto de uma proposta de descentralização e regionalização dos atendimentos em saúde mental do município. O objetivo era promover maior acessibilidade à rede de saúde mental, evitando as frequentes filas que se formavam na frente do serviço, local em que ocorria a distribuição de senhas, fazendo com que muitos usuários chegassem às cinco horas da manhã para garantir seus atendimentos. Acrescida a essa situação, também a direção dos tratamentos não era claramente definida, resumindo-se, em geral, à repetição da prescrição medicamentosa. Quando iniciou seus atendimentos, o ambulatório funcionava no centro da cidade, exatamente no mesmo endereço do ambulatório de saúde mental destinado a adultos, da emergência psiquiátrica e do CAPS II municipal. Dentro do projeto de reestruturação da assistência em saúde mental, seguindo, portanto, as lógicas da clínica ampliada e da descentralização16, os serviços foram transferidos para outros bairros e unidades básicas de saúde (UBS) de todo o município. O ambulatório infantojuvenil foi, então, instalado em duas UBS distintas, cuja interlocução foi favorecida pela realização de reuniões de equipe e de supervisão clínico-institucional, espaços dos quais participavam as equipes de ambas as unidades. O serviço em questão foi projetado para oferecer atendimento diário, com uma equipe que objetivava trabalhar pela concepção da transdisciplinaridade17, tendo como principal referencial a concepção de clínica ampliada e compartilhada18. Esta prevê que os sujeitos devem ser considerados para além da visão organicista oferecida tradicionalmente pelo modelo biomédico. Nessa perspectiva, destacamos a seguir algumas particularidades do ambulatório quanto ao seu funcionamento e à sua estrutura. A primeira se refere à equipe e à sua hierarquia. Diferentemente da hierarquia encontrada nos hospitais ou ambulatórios tradicionais, nessa proposta, todos os profissionais assumem a mesma posição, de forma que nenhum dos saberes seja sobreposto pelos demais. Em segundo lugar, cabe COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mencionar características inerentes ao funcionamento do ambulatório. Como mencionamos, o referencial adotado pelo ambulatório era o da clínica ampliada e compartilhada. A equipe teve, por isso, reuniões semanais e supervisão clínico-institucional que buscavam fomentar as discussões e o processo de construção dos casos acolhidos e atendidos pelo serviço. Adicionalmente, os profissionais da equipe tinham parte da sua agenda de atendimento dedicado ao trabalho com a rede assistencial. Vale também demarcar o processo de construção dos casos clínicos. Com essa expressão, enfatizamos a consideração pelos diferentes saberes que integram a equipe, posicionamento que extrapola a hegemonia dos modelos diagnósticos propostos pelos manuais de classificação psiquiátrica. No lugar de reduzir os sujeitos em sofrimento aos processos psicopatológicos que dele fazem parte, propomos um diagnóstico também ampliado, em consonância com a lógica da clínica supracitada, que leva em consideração a comunidade da qual o paciente faz parte e o modo como este se relaciona com aquela, com sua família e com sua própria doença. Nessa visada, não há um saber previamente determinado que oriente a conduta do quadro clínico, mas a escuta das particularidades de cada caso que prima por sua constante construção. Como consequência, a medicação deixa de ser a principal ferramenta de ação, de modo que o trabalho de escuta ganha novo valor a partir do encontro entre a clínica ampliada e a Reforma Psiquiátrica. Em outros termos: as possibilidades desse encontro fazem surgir uma perspectiva de trabalho na qual as particularidades de cada sujeito atendido são escutadas e valorizadas e, a partir disso, novas possibilidades de manejo clínico podem ser desenvolvidas e aplicadas. A última característica diz respeito ao percurso dos pacientes em atendimento. Os sujeitos assistidos pelo ambulatório passavam por três momentos: acolhimento, recepção e atendimento. No primeiro momento, todos eram acolhidos por qualquer técnico do ambulatório, sem precisar de encaminhamento ou hora marcada. O técnico devia avaliar a gravidade do caso, se havia demanda de atendimento naquele exato momento ou se era possível aguardar o agendamento de uma entrevista de recepção. No momento da recepção, o profissional acolhia a demanda, escutando-a e se responsabilizando pelo seu destino, seja direcionando o caso para outro serviço, indicando um trabalho específico com a rede, ou encaminhando para o atendimento ambulatorial19. Ressaltamos que tal proposta é diversa do funcionamento dos ambulatórios tradicionais, nos quais é frequente encontrarmos longas listas de fila de espera e datas de recepção que muitas vezes são abertas apenas mensalmente. Feita essa breve apresentação a respeito das características do ambulatório em questão, é possível passar à discussão da metodologia do matriciamento, responsável por orientar a interlocução realizada à época primeiramente com a rede de saúde e, posteriormente, com a rede de Educação, como demonstraremos na próxima seção.

A proposta de matriciamento da rede de saúde em Nova Iguaçu De acordo com Chiaverini20, o matriciamento “é um novo modo de produzir saúde em que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica” (p. 13). Trata-se de modelo idealizado por Campos21 que tem direcionado os sistemas de saúde no intuito de reformular a lógica clássica predominantemente hierárquica que embasava, por exemplo, os encaminhamentos de casos. Tradicionalmente, o ato de encaminhar um caso era correlato à transferência de sua responsabilidade, o que gerava efeitos de burocratização e de pouca resolutividade no tocante aos tratamentos dispensados. Para melhor entender os referidos dispositivos, cumpre destacar que a política nacional de saúde mental está inserida no sistema único de saúde (SUS), no qual a Atenção Básica à Saúde (ABS) vem ocupando lugar de grande destaque no fomento e execução das políticas de saúde. Sua rede de assistência é formada por centros ou unidades de saúde, pelo Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e pela Estratégia Saúde da Família (ESF), que devem funcionar como porta de entrada do usuário à rede de assistência e desenvolver ações preventivas e de promoção à saúde22. Nesse âmbito, a lógica do matriciamento é integrada pelas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), disposto pela Portaria GM no 154, de 24 de janeiro de 200823. 702

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A aproximação com os profissionais da rede básica tem como objetivo facilitar a articulação entre os serviços, não só no que se refere aos atendimentos, mas também para ampliar sua ação na expectativa de promover, por meio do suporte, a discussão de casos clínicos e a problematização da abordagem tradicional de atendimento, comumente marcada pelo reducionismo biológico. Essa lógica acaba por concorrer para a fragmentação no modo como o sujeito é considerado, contradizendo o princípio da integralidade na atenção em saúde. Nesse sentido, o Ministério da Saúde lembra que a proposta da clínica ampliada não se restringe ao combate às doenças, mas se destina à possibilidade de transformação, “de forma que a doença, mesmo sendo um limite, não a impeça [a pessoa] de viver outras coisas na sua vida”24 (p. 22). Portanto, a clínica nessa perspectiva tem como base o deslocamento do eixo tradicional saúde/ doença para a consideração da existência de um sofrimento subjetivo associado a todo o processo de adoecimento. Como resultado, os profissionais tomam como exigência ética de sua atuação aquela de lidar com os pacientes também em sua dimensão social, cultural, econômica e subjetiva, e não somente biológica. Para isso, mais recursos terapêuticos se fazem prementes, indicando a necessidade de um trabalho que congregue efetivamente vários saberes. Os ambulatórios que funcionam na lógica da clínica ampliada não se restringem a realizar atendimentos em consultórios isolados, sem conexão com o lugar e com a comunidade em que estão inseridos, muito menos sem considerar as diretrizes da Política Pública de Saúde Mental e do SUS. Trata-se de um grande desafio, pois a própria estrutura dos serviços ambulatoriais e seu modo de organização direcionam seus profissionais para um atendimento individualizado e precipitam um funcionamento voltado exclusivamente para a demanda, que, em curto espaço de tempo, acaba por ocupar toda a agenda dos técnicos, que são, assim, impedidos de executar outras ações. Dessa maneira, crescem as filas de espera e o contato com os outros profissionais e serviços da rede acaba sendo impossibilitado. Acreditamos que as ações de um ambulatório considerado ampliado devem objetivar algo além do atendimento automático à demanda. Essa ação deverá ser direcionada a um momento anterior à chegada dos pacientes ao ambulatório. Faz-se necessário também um trabalho capaz de envolver as equipes que falam em nome do sujeito que poderá ser atendido, de modo a viabilizar que os técnicos, serviços e instituições que encaminham pacientes para atendimento na saúde mental possam também se responsabilizar por seus encaminhamentos. A lógica de um encaminhamento implicado parece ainda mais importante quando se trata da rede de educação, tendo em vista a necessidade de o sujeito que encaminha tomar sua posição na queixa escolar que constrói. Conforme Souza25, é fundamental que a queixa escolar seja apreendida como fragmento de uma complexa rede de relações, contemplando as mais diversas forças, entre as quais encontra-se a criança, a família, a escola, o sistema educacional e assim sucessivamente. Assim, uma das contribuições oferecidas pelos técnicos da saúde mental é cuidar para que o paciente não seja reduzido à doença ou à queixa que apresenta, mas que se considere “que, em concreto, não há problema de saúde ou doença sem que estejam encarnadas em sujeitos, em pessoas”18 (p. 852). Quando esse trabalho é possível, o sujeito, que já possui um destino traçado por um diagnóstico e fica sob a responsabilidade de um único dispositivo, retorna para a rede, e essa responsabilidade passa a ser das equipes que a integram. Para que o trabalho entre equipes de diferentes dispositivos e áreas distintas possa funcionar, é preciso que a rede se torne pública para si própria, ou seja, que a lógica e o funcionamento de cada dispositivo seja de conhecimento das equipes envolvidas. Para tal, é preciso conhecer e ser conhecido por esses dispositivos. No que tange à experiência que teve lugar no município de Nova Iguaçu, o matriciamento foi pensado também em relação ao trabalho com a rede de educação. A proposta de trabalho com o matriciamento por parte das equipes ambulatoriais de saúde mental foi oficializada no Plano Municipal de Saúde da cidade, aprovado no ano de 2008. O documento considerava que o modo de assistência prevalente até aquele momento estava centrado no supracitado modelo reducionista, isto é, com efetiva saturação do serviço pela demanda que chegava a ele, além de uma considerável demanda reprimida. De acordo com esse cenário, o plano propunha a mudança da lógica do serviço ambulatorial para outra orientada pela clínica ampliada e compartilhada, que se fundamentaria nos seguintes 703


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preceitos: uma prática clínica que abordasse o sujeito em sua complexidade, considerando os fatores de seu cotidiano (social, familiar, econômico, etc.); o atendimento realizado por equipes interdisciplinares; um trabalho que primasse e desse a devida relevância para a atuação no território; a garantia de uma constante reavaliação dos serviços por meio da supervisão clínico-institucional; e o princípio da tomada de responsabilidade. Nessa perspectiva, foi proposta a divisão dos ambulatórios em uma modalidade de atendimento para adultos e outra especificamente voltada para o público infantojuvenil. Esses serviços ambulatoriais deveriam funcionar em espaços distintos, com equipes e supervisões também distintas. Como previsto, demos início ao processo de descentralização do serviço ambulatorial para as Unidades Básicas de Saúde do município, objetivando a integração com a atenção básica e a utilização desta como potente dispositivo para ampliação da rede de saúde mental. Uma das prioridades seria favorecer o acesso do usuário aos serviços e aumentar a capacidade de atendimento destes, assim como a sua resolutividade. Considerando que essa implantação deveria ser progressiva, em virtude da necessidade de tempo para que Saúde Mental e Atenção Básica pudessem assumir o desafio de utilizar a rede básica como um dispositivo dentro da política de saúde mental, o projeto foi dividido em quatro fases distintas. Na primeira etapa, haveria a descentralização do ambulatório de saúde mental, com alocação de equipe de saúde mental em Unidades Básicas, operando na nova lógica e contando com ações de acolhimento, atendimento psicoterápico e psiquiátrico individual; na fase seguinte, ocorreria a incorporação da equipe de saúde mental às Unidades Básicas de Saúde, com as ações já descritas. Ocorreria ainda a realização de atendimentos em grupo, cujo objetivo era o reconhecimento de casos de alta hospitalar de pacientes crônicos estabilizados e de pacientes em uso abusivo de benzodiazepínicos com necessidade de desmedicalização; em um terceiro momento, haveria o encaminhamento dos casos citados na segunda fase (com necessidade de manutenção de acompanhamento) para as equipes da Atenção Básica (médicos, clínicos, enfermeiros). Nesse momento, entraria em pauta o trabalho de matriciamento da equipe de saúde mental do território correspondente e, assim, iniciaríamos a quarta fase. Esta previa a manutenção do matriciamento para os casos citados e para os novos casos que não necessitassem de acompanhamento constante por serviço especializado. Nesse momento, a equipe vinculada à UBS manteria um trabalho muito próximo à proposta do NASF23, cuja publicação da portaria ministerial é contemporânea à nossa proposta. É digno de nota que os ambulatórios não tenham conseguido aderir à proposta apresentada à rede de Atenção Básica. Um dos fatores que pode ter contribuído para esse quadro foi a constante mudança dos cargos de gestão do município. Sabemos que o apoio da gestão é imprescindível para o trabalho com as resistências dos profissionais, até então habituados ao antigo modelo de trabalho. Além disso, havia uma considerável fragilidade dos vínculos empregatícios, que foi responsável por frequentes mudanças dos integrantes de ambas as equipes. No entanto, no que se refere ao trabalho com crianças e adolescentes, verificamos que a maior fonte de encaminhamentos para tratamentos não provinha da própria rede de saúde, mas sim da rede pública de educação. Vale ressaltar que, até aquele momento, a educação realizava seus encaminhamentos a partir de uma lista mensal a uma única fonoaudióloga. Essa profissional era responsável pelos tratamentos infantojuvenis, mas sem a realização de nenhuma conversa ou discussão de caso entre os profissionais envolvidos. Além de prioritariamente fonoaudiológico, também observamos que, no caso de atendimento psicoterápico, as intervenções constantemente se resumiam à orientação aos pais. Essa conjuntura permitiu a adequação da proposta original à efetiva demanda do município, dando início à tentativa de matriciamento com a rede pública de educação.

A proposta de matriciamento da rede pública de educação de Nova Iguaçu Antes de apresentarmos com mais detalhes nossa experiência, cabe esclarecermos que a proposta de matriciamento com a rede de educação guarda um caráter de originalidade, tendo em vista que, em sua origem, o apoio matricial constitui-se como uma ação dentro da própria rede de saúde. Além disso, em pesquisa bibliográfica sobre o tema, verificamos uma escassez de publicações de relatos dessa natureza. 704

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No caso específico que estamos discutindo, a saber, aquele do ambulatório infantojuvenil de Nova Iguaçu, eram inúmeros os encaminhamentos feitos pela rede municipal de educação. Com o tempo, foi possível perceber que o ambulatório recebia pacientes de diferentes formas, para além dos encaminhamentos das professoras itinerantes. Estas envolviam demandas também endereçadas pelas professoras regulares, pelos orientadores pedagógicos e pelos diretores. Entretanto, independente de quem os endereçava, havia uma característica comum: a rede parecia não ver necessidade de fazer contato com o ambulatório, seja para discutir o encaminhamento ou para comunicar a sua realização. De maneira análoga, o sujeito que enunciava a queixa escolar não se via implicado na construção dessa demanda. Esse modo de realizar os encaminhamentos e a dificuldade para absorver tamanha demanda acabaram contribuindo para que as APEDES solicitassem formalmente dez vagas semanais para atendimento, que seriam exclusivas para os alunos encaminhados ao serviço de saúde mental. Esse panorama fala a favor de um raciocínio reduzido a números burocráticos, furtando-se à discussão mais ampla sobre as situações que os preconizavam. A partir disso, iniciamos o diálogo com essas profissionais no sentido de acolher e debater seus encaminhamentos a partir das premissas que norteavam o funcionamento do ambulatório, sejam as da Reforma Psiquiátrica ou as da clínica ampliada, até que pudemos fazer um calendário mensal de reuniões entre o ambulatório e as APEDES, encontros nos quais a experiência de matriciamento ocorreu. Cabe uma pequena digressão para salientar que a equipe do ambulatório destacava a forma como os encaminhamentos eram feitos como um dos pontos privilegiados para as discussões a serem travadas no trabalho com a educação. Por exemplo, verificamos que muitos pacientes que chegavam ao serviço a partir dessas demandas não sabiam ao menos as razões que os levavam até aquele espaço, alegando apenas cumprirem uma exigência colocada pela escola. Percebemos, assim, que havia uma clara distância entre a queixa da escola e uma possível demanda de atendimento. Esse hiato fazia com que a equipe não tivesse acesso à história da criança encaminhada e ao trabalho que já havia sido feito com ela e com seus familiares. Vale mencionar que os primeiros encontros da equipe do ambulatório com a da educação especial (APEDES) foram marcados por impasses e sérias dificuldades: a equipe de educação queixava-se de se sentir avaliada por nossa equipe, como se nosso fim fosse questionar seu trabalho e competência. Por outro lado, para a equipe da saúde, era um grande complicador compreender a natureza, a quantidade e os motivos dos encaminhamentos. Esses impasses geraram conflitos internos na própria equipe de saúde mental, que diversas vezes pleiteou recuar e desistir do trabalho com a educação. No entanto, nosso objetivo era avesso às primeiras interpretações das APEDES, pois almejávamos a corresponsabilidade dos casos20. Ademais, percebermos que, para além dos impasses e das queixas de ambas as equipes, as reuniões se mantinham com a presença de todos os atores envolvidos e os casos eram levados para discussão, fator que motivou a continuidade do trabalho. As APEDES circulavam em todas as escolas da rede municipal de Nova Iguaçu, o que as tornava uma importante ferramenta ao acesso desse público à rede de serviços. Fazia parte de suas funções receber as queixas das escolas e, após triagem, realizar o encaminhamento para o local que julgavam adequado, sem se apropriarem do “tratamento”. A aproximação entre as equipes foi importante para que entendêssemos a lógica de funcionamento das APEDES e apresentássemos a nossa forma de trabalho, propondo, então, uma parceria. O objetivo não era extinguir as diferenças nas duas formas de trabalhar, mas sim compreender que o número excessivo de encaminhamentos poderia ser acolhido como pedido para um trabalho em conjunto. Dessa forma, foi possível incluir essas duas ações na rede de assistência da infância e da adolescência. Na época, a equipe das APEDES tinha integrado o Fórum Municipal da Infância e da Adolescência, atualmente extinto. A construção do Fórum foi um importante passo na construção da rede, uma vez que aquele buscava fortalecer os diversos serviços que compõem a rede a partir de debates coletivos que primam pela inclusão social. Sendo assim, constituía um espaço de interlocução privilegiado para que a rede se tornasse pública para si mesma. Além disso, mantivemos reuniões mensais com a equipe da educação, com uma mudança em relação às primeiras conversas. Agora, era a equipe de saúde 705


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mental que se deslocava para se reunir com as agentes pedagógicas, no dia estipulado por elas. O que aparenta ser uma modificação de cunho burocrático apresentou-se como uma importante ferramenta que proporcionou uma decisiva modificação na relação estabelecida entre as equipes. A equipe do ambulatório pôde se familiarizar com o estatuto específico da educação e com o funcionamento e organização da rede municipal de educação, favorecendo a melhor formulação das propostas da saúde mental para que, assim, possam ser mais bem acolhidas e aceitas. Como resultado, tivemos a redução do número de encaminhamentos realizados pelas APEDES ao ambulatório, algo em torno de 70%. Essa redução, por si só, não fala a favor da consecução de nosso objetivo inicial, uma vez que poderia ter sido ocasionado justamente pela falta de articulação e de compreensão de nossa proposta de matriciamento. Para tomá-la como um índice de uma experiência bem-sucedida, é preciso ainda atentar para outra mudança. Além desse decréscimo, foi possível perceber duas outras diferenças no que entendemos como a qualidade desses encaminhamentos, produzindo um melhor uso do nosso dispositivo. Os casos já não eram mais encaminhados em um papel com dados/diagnósticos pré-definidos, nos quais havia um espaço somente para escrever o nome da criança e o que ela “era” (“dificuldade de aprendizagem”, “distúrbio de comportamento” ou “agressividade”). Ao contrário, foi possível encontrar relatos de crianças com trajetórias singulares, cujas situações podem ser abordadas de maneira mais ampliada, que extrapola a vertente de reeducação pedagógica e, por conseguinte, de uma expectativa de adequação social. A outra diferença verificada já nas últimas reuniões foi que as APEDES não tinham mais a intenção exclusiva de encaminhar alguns alunos para atendimento ambulatorial, mas pensálos e discuti-los buscando estratégias de manejo dessas situações no âmbito escolar. Essa sim pareceu constituir uma grande mudança que vem complementar a primeira mencionada, a saber, a redução do número de encaminhamentos, de modo que ambas estiveram intimamente relacionadas.

Considerações finais A despeito do que consideramos como um ganho no sentido da construção compartilhada da rede, salientamos que outros passos seriam necessários ao efetivo trabalho de apoio matricial. No caso apresentado, foi possível transmitir outra forma de abordagem dos pacientes, mas o acompanhamento e o suporte à equipe da educação, também em se tratando dos casos que não eram eleitos para atendimento na saúde mental, ainda deixavam a desejar. Chegamos a ter notícias desses casos por meio dos encaminhamentos feitos diretamente pelas escolas, que escapavam à avaliação das APEDES, indicando que estas não conseguiam regular o fluxo de encaminhamentos. Cabe considerar que, por se tratar de uma proposta pedagógica ainda muito nova na época do desenvolvimento deste trabalho, o matriciamento era uma proposta nova também para a equipe do ambulatório de saúde mental e, por isso, a sua execução (especialmente a transmissão de uma forma de fazer específica a sua função) representou uma dificuldade para todos os técnicos do ambulatório26. Entretanto, acompanhar os resultados dos encontros e as mudanças iniciais da forma como os encaminhamentos passaram a ser realizados; participar da discussão e da construção dos casos; e perceber a apropriação por ambas as equipes de conceitos de seu interlocutor garantiram – tanto na equipe de saúde mental quanto na equipe das APEDES – a força motriz para continuar com as reuniões. Entendemos, baseados na própria definição de matriciamento20, que, ao longo daqueles encontros, uma proposta pedagógica esteve em curso, na qual os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica eram transmitidos e na qual os casos que eram ali apresentados e discutidos eram tomados por ambas as equipes como sendo de sua responsabilidade. Infelizmente, a proposta de construção dessa rede compartilhada foi interrompida pela suspensão da implantação dessa lógica nas atividades do ambulatório, em 2013, bem como, conforme anteriormente explicitado, do Fórum da Infância e da Adolescência do município de Nova Iguaçu. Com a sua interrupção, também o matriciamento das APEDES da Secretaria Municipal de Educação deixou de ocorrer. 706

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De acordo com a nossa concepção, esses fatos podem ser interpretados à luz de dois comentários principais: em primeiro lugar, indicam um verdadeiro retrocesso na possibilidade de articular saúde e educação em ações que primem pela integralidade no cuidado e que se contraponham à lógica medicalizante que faz recair sobre crianças e adolescentes o predicado da exclusividade do “cuidado” a partir de terapias medicamentosas. Em segundo lugar, partindo da ideia de que a Reforma Psiquiátrica é um processo social e político, convém destacar a exigência de vontade política para que seja efetivamente implantada, o que exige um reposicionamento da gestão27, ressignificando a lógica que tradicionalmente esteve atrelada a pessoas com sofrimento psíquico, sejam crianças, adolescentes ou adultos.

Colaboradores Todos os autores participaram ativamente da discussão dos resultados, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de ações programáticas estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. 2. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial da saúde – saúde mental: nova concepção, nova esperança [Internet]. Genebra: OMS; 2002 [citado 02 Maio 2012]. Disponível em: www.who.int/en. 3. Amarante PDC, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. 4. Tenório F. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; 2001. 5. Presidência da República (BR). Lei 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. 9 Abr 2001. 6. Ribeiro AM. Uma reflexão psicanalítica acerca dos CAPS: alguns aspectos éticos, técnicos e políticos. Psicol USP. 2005; 16(4):33-56. 7. Furtado JP. Avaliação da situação atual dos serviços residenciais terapêuticos do SUS. Cienc Saude Colet. 2006; 11(3):785-95. 8. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Relatório Final da 3ª Conferência Nacional de saúde Mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2002. 9. Tenório F. Questões para uma atualização da agenda da reforma psiquiátrica. In: Couto MCV, Martinez RG, organizadores. Saúde mental e saúde pública: questões para a agenda da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: NUPPSAM/IPUB/UFRJ; 2007. p. 13-27. 10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: a clínica ampliada. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. 11. Couto MCV. Por uma política de saúde mental para crianças e adolescentes. In: Ferreira T, organizador. A criança e a saúde mental: enlaces entre a clínica e a política. Belo Horizonte: Autêntica/FHC-FUMEC; 2004. p. 61-74.

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12. Illich I. A expropriação da saúde: nêmeses da medicina. Rio de Janeiro: Forense; 1982. 13. Guarido RA. A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátricos seus efeitos na Educação. Educ Pesqui. 2007; 33(1):151-61. 14. Brandão PMC Jr, Ramos PL, Valente VA, Barbosa M, Pimentel A. Psicologia e educação: uma experiência de clínica ampliada no ambulatório infanto-juvenil. In: Anais do 6º Congresso Norte Nordeste de Psicologia; 06 a 09 de maio de 2009; Belém, PA. 15. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2011 [citado 03 Maio 2012]. Disponível em: www.censo2010.ibge.gov.br. 16. Tenório F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: histórias e conceitos. Hist Cienc Saúde-Manguinhos. 2002; 9(1):25-59. 17. Ribarry IN. Aproximações sobre a transdisciplinaridade: algumas linhas históricas, fundamentos e princípios aplicados ao trabalho de equipe. Psicol Reflex Crit. 2003; 16(3):483-90. 18. Campos GWS, Amaral MA. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Cienc Saude Colet. 2007; 12(4):849-59. 19. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2005. 20. Chiaverini DH, organizadora. Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011. 21. Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):393-403. 22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: MS; 2006. 23. Ministério da Saúde (BR).Portaria GM n. 154, de 24 de Janeiro de 2008. Cria os núcleos de apoio à Saúde da Família – Nasf. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2008. 24. Ministério da Saúde (BR). Clínica ampliada e compartilhada. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009. (Série B. Textos Básicos de Saúde). 25.Freller CC, Souza SP, Angelucci CB, Bonadio AN, Dias AC, Lins FRS, et al. Orientação à queixa escolar. Psicol Estud. 2001; 6(2):129-34. 26. Costa FRM, Lima VV, Silva RF, Fioroni LN. Desafios do apoio matricial como prática educacional: a saúde mental na atenção básica. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):491-502. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622013.0816. 27. Righi LB. Apoio matricial e institucional em saúde: entrevista com Gastão Wagner de Sousa Campos. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1:1145-50.

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O trabalho discute a função da assistência ambulatorial regida pelos princípios da Reforma Psiquiátrica a partir da experiência de uma equipe interdisciplinar do ambulatório infantojuvenil de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. O objetivo é relatar uma experiência pautada na lógica de uma assistência ambulatorial ampliada em articulação com o campo da educação. O matriciamento foi a metodologia utilizada nesta experiência. Trata-se de uma forma de produzir saúde pela construção do compartilhamento de responsabilidade entre duas equipes; neste caso, a equipe de saúde mental infantojuvenil e a equipe de agentes pedagógicos de educação especial da Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu.

Palavras-chave: Saúde mental. Educação. Assistência ambulatorial. Between health and education: a clinic for youngsters and children’s mental health This paper discusses the role of ambulatory health care governed by the principles of psychiatric reform based on theexperience of an interdisciplinary team caring for children and teen outpatients in Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil. Its objective is to report an experience guided by the logic of an expanded ambulatory care in related to the educational domain. The matrix support was the methodology used in the reported experience as a way to produce health through the construction of shared responsibility between two teams, in this case the child and youth mental health ambulatory team and the team of pedagogical agents of special education of the correspondent Municipal Department of Nova Iguaçu.

Keywords: Mental health. Education. Ambulatory care. Entre la salud y la educación: sobre un ambulatorio de salud mental infanto-juvenil El trabajo discute la función de la asistencia ambulatorial regida por los principios de la Reforma Psiquiátrica a partir de la experiencia de un equipo interdisciplinario del ambulatorio infanto-juvenil de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. El objetivo es relatar una experiencia pautada en la lógica de una asistencia ambulatoria ampliada en articulación con el campo de la educación. La matriciación fue la metodología utilizada en esta experiencia. Se trata de una forma de producir salud por la construcción de compartir responsabilidad entre los dos equipos; en este caso el equipo de salud mental infanto-juvenil y el equipo de agentes pedagógicos de educación especial de la Secretaría Municipal de Educación de Nova Iguaçu.

Palabras-clave: Salud mental. Educación. Asistencia ambulatorial.

Submetido em 20/04/16. Aprovado em 10/02/17.

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Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter From inspiration to the formulation of Historical-Critical Pedagogy (PHC). The three PHC moments that every truly critical theory must contain

entrevistas

DOI: 10.1590/1807-57622017.0001

De la inspiración para la formulación de la Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Los tres momentos de la PHC que toda teoría verdaderamente crítica debe contener

Dermeval Saviani(a)

Foto cedida por Bruna Cortes

Esta entrevista foi uma adaptação da conferência proferida pelo professor Saviani no Seminário “Dermeval Saviani e a educação brasileira”, realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em outubro de 2016. O próprio Saviani se responsabilizou pela adaptação, sugerindo as questões que poderiam orientar a síntese de sua teoria.

(a) Professor Emérito, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Faculdade de Educação. Rua Ministro de Godói, 969, 4º andar, Perdizes. São Paulo, SP, Brasil. 13083-970. Caixa postal: 6166. dermeval.saviani.2013@ gmail.com

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As principais palestras apresentadas e debatidas no referido Seminário são objeto do Dossiê publicado neste fascículo, apresentando a retrospectiva dos cinquenta anos da carreira acadêmica de Saviani e a síntese das bases teóricas da pedagogia que construiu. Deixo de apresentar os dados curriculares do professor, uma vez que sua biografia está muito bem contemplada no primeiro texto do Dossiê. Apenas expresso a minha satisfação pessoal, como ex-aluna de Saviani nos idos de 1976 e 1977 e de cujas ideias nunca me afastei, de reencontrá-lo como autor de Interface nos vinte anos da revista e de rever mais uma vez as bases teóricas que problematizaram a minha prática de educadora e alimentaram minhas reflexões, dentro e fora da Universidade. Reafirmo, também, a relevância de sua obra e destaco suas publicações vencedoras do Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). Em 2008 seu livro “História das ideias pedagógicas no Brasil”, da editora Autores Associados, conquistou o primeiro lugar da categoria Educação, Psicologia e Psicanálise.

Em 2014 e 2016 conquistou o segundo lugar da categoria Educação, respectivamente com os livros “Aberturas para a história da educação” e “História do tempo e tempo da história: estudos de historiografia e história da educação”, da mesma editora.

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Saviani D

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Como o próprio Saviani se expressou ao receber a premiação em 2014:

Foto cedida por Bruna Cortes

“Embora eu escreva movido pela necessidade de atender aos compromissos decorrentes de minha condição de educador, sem esperança de recompensa, não deixa de ser relevante ser contemplado com o mais importante prêmio literário nacional, pois isso significa que venho exercendo de forma satisfatória o papel que me cabe no campo da educação.”

Foto cedida por Ana Carolina Galvão Marsiglia

Miriam Foresti, editora sênior Interface - Comunicação, Saúde, Educação

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Preliminarmente, pode nos esclarecer como você se inspirou para elaborar uma nova teoria pedagógica? Saviani: É claro que a inspiração ocorre geralmente em um contexto de rica experiência com vários elementos concorrendo para sua emergência. Assim, enquanto estudante de filosofia nos anos de 1964 a 1966 na PUC de São Paulo, em um contexto de debate sobre a reforma universitária e de resistência à ditadura, vinham à baila as insuficiências educacionais e as limitações políticas, instigando-nos a procurar compreender os problemas enfrentados e a formular alternativas de superação. No entanto, em termos sistemáticos, posso dizer que uma primeira experiência marcante que me inspirou a formular as primeiras teorizações sobre a educação deu-se na disciplina Teoria do Conhecimento que cursei no terceiro ano de filosofia em 1965. A disciplina foi ministrada pelo professor Michel Schooyans, belga, da Universidade de Louvain, que tinha vindo para o Brasil. Ele introduziu os trabalhos com uma análise da estrutura do sujeito cognoscente tomando como referência o curso de Georges Van Riet, Notions d’epistemologie (notes d’étudiants), ministrado na mesma universidade belga. A referida descrição fenomenológica do sujeito cognoscente procurava responder a perguntas do tipo: como está constituído o sujeito cognoscente? Qual a sua estrutura? Ou seja, de quais características ele é dotado que lhe permitem exercer a atividade de conhecer? Ora, o sujeito cognoscente é o homem. Portanto, a referida descrição fenomenológica do sujeito cognoscente não é outra coisa senão a descrição fenomenológica do sujeito humano. Essa descrição foi, para mim, um achado. Propus-me, assim, a tomar a análise da estrutura do homem como referência para equacionar o problema da educação. E, tendo sido convidado, no ano seguinte, 1966, quando cursava o quarto ano de filosofia, a trabalhar no segundo semestre na cadeira de Filosofia da Educação no curso de Pedagogia, elaborei o programa da disciplina a partir da referida análise da estrutura do homem. E, dando um passo além, tomei-a como referência para efetuar a análise da estrutura do homem brasileiro tendo em vista a elaboração de uma espécie de teoria da educação brasileira. Tal descrição fenomenológica impressionou-me por fornecer uma visão de certo modo completa da estrutura do homem, mas apresentava um resultado paradoxal, pois punha em evidência um ser constituído por elementos opostos. Com efeito, pelo aspecto empírico com os seus quatro a priori (físico, biológico, psicológico e cultural), o homem se caracterizava como um ser situado, determinado pelas condições materiais, condicionado pelo meio em que vivia. Já pelo aspecto pessoal, ele se afirmava como um ser livre capaz de opções e de intervir na situação para aceitar, rejeitar ou transformar. Por fim, pelo aspecto intelectual, ele se manifestava como um ser consciente capaz de transcender as opções pessoais e as determinações situacionais para compreender a realidade e se comunicar com os outros seres humanos. O que a análise fenomenológica revelava, portanto, era que o homem se constituía como um ser paradoxal, ou seja, um ser estranho cujos aspectos se negavam entre si. Diante desse quadro, propus-me a incorporar essa abordagem, mas indo além, superando o paradoxo pela via da dialética. Assim, ao elaborar minha tese de doutorado tratando do problema da existência ou não de sistema educacional no Brasil, lancei mão da referida análise para buscar responder à pergunta: como pode o homem sistematizar? Ao discutir o problema metodológico, passei em revista os vários métodos que poderiam ser adotados, a saber, o método lógico-conceitual, o método empírico, o empírico-logístico, o fenomenológico, o dialético para, finalmente, articulando os dois últimos, adotar o método que chamei de fenomenológico-dialético. Seguira esse caminho por entender que não é possível chegar à compreensão dialética do todo, isto é, como um conjunto dinâmico que se movimenta pela ação e reação de seus múltiplos aspectos sem a mediação da análise que possibilita identificar os vários elementos que formam o todo. Tal formulação obtinha respaldo em Lefebvre, Sartre e Marcuse, sendo que este último chegara a afirmar “Só uma síntese de ambos os métodos – uma fenomenologia dialética – que é um firme método de extrema concreção – permite à historicidade da existência humana tornar-se adequada”1 (p. 80). Logo, porém, de modo especial a partir do estudo detido do texto “O método da economia política”, de Marx2, compreendi que esse movimento que parte da síncrese (a visão caótica do todo) 714

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e chega, pela mediação da análise (as abstrações e determinações mais simples), à síntese (uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas) constitui o próprio método dialético. Consequentemente, não havia necessidade, para nomear o método, de anteceder o termo ‘dialético’ pelo prefixo ‘fenomenológico’. A partir daí fiz um percurso em busca de uma teoria da educação efetivamente dialética, especificamente baseada no materialismo histórico. Nessa caminhada, a primeira constatação a que cheguei foi que nas matrizes do materialismo histórico não encontramos uma teoria sistematizada da educação. Nem Marx e Engels, nem Lênin, Lukács ou Gramsci, assim como os mais recentes como Mészáros, dedicaram-se direta e especificamente à elaboração teórica no campo da educação. O que encontrei foram estudos que buscaram identificar no conjunto da obra as passagens referidas à educação ou extrair das análises marxianas e marxistas sobre a história, economia e sociedade derivações de sentido para a educação. Busquei, então, nos escritos de autores marxistas sobre educação e nas experiências dos países socialistas, a sistematização teórica ou, pelo menos, elementos que apontassem na direção de uma teoria histórico-dialética da educação. Foi assim que, além de ler os estudos marxistas sobre educação, ministrei disciplinas cuja bibliografia incluía autores como Pistrak, Makarenko, Manacorda, Lucio Lombardo Radice, Dina B. Jovine, G. Betti, F. Lombardi, Snyders, Schmidt-Kowarzik, Suchodolski e textos analisando as experiências pedagógicas na União Soviética, China, Cuba, República Democrática da Alemanha. Concluí, então, que, para a construção de uma pedagogia inspirada no materialismo histórico, não basta recolher as passagens das obras de Marx e Engels diretamente referidas à educação, como o fizeram Dommanget3, Dangeville4 e Manacorda5, que acrescentam lúcidas e pertinentes reflexões úteis, sem dúvida, à construção de uma pedagogia marxista. Também não é suficiente perscrutar as implicações educacionais do conjunto da obra dos fundadores do materialismo histórico, como o fez Suchodolski6. Penso que a tarefa da construção de uma pedagogia inspirada no marxismo implica a apreensão da concepção de fundo (de ordem ontológica, epistemológica e metodológica) que caracteriza o materialismo histórico. Imbuído dessa concepção, trata-se de penetrar no interior dos processos pedagógicos, reconstruindo suas características objetivas. Em suma, quando tomei conhecimento da afirmação de Vigotski7, em seu trabalho “O significado histórico da crise da psicologia”, que “A psicologia precisa de seu Capital – seus conceitos de classe, base, valor etc., com os quais possa expressar, descrever e estudar seu objeto” (p. 393), ocorreu-me que o caminho que percorri me colocou nessa mesma situação de considerar que também a pedagogia tinha necessidade do seu ‘Capital’. É verdade que Vigotski conseguiu avançar bem mais na formulação da psicologia dialética do que eu até agora pude fazer na formulação da pedagogia dialética. Mas, assim como ele contou com colaboradores que deram continuidade a sua iniciativa, felizmente também conto com companheiros que vêm se dedicando resolutamente à construção da pedagogia dialética identificada com a pedagogia histórico-crítica.

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Saviani D

Então, quais são os três momentos da pedagogia histórico-crítica que, em seu entender, toda teoria verdadeiramente crítica deve conter? Saviani: Sinteticamente, os três momentos são os seguintes: a) Aproximação ao objeto em suas características estruturais de modo a apreendê-lo em sua concreticidade. b) Contextualização e crítica do tratamento dado ao objeto pelas teorias hegemônicas. c) Elaboração e sistematização da teoria crítica. No caso que nos ocupa, trata-se de: a) Apreender a essência da educação identificando suas características estruturais. Importa, pois, compreender e explicitar a natureza e especificidade da educação. b) Empreender a crítica contextualizada das principais teorias que vêm hegemonizando o campo da educação. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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c) Elaborar e sistematizar a teoria crítica da educação representada, no caso, pela pedagogia histórico-crítica. Importa, de antemão, lembrar que, como momentos, esses três pontos não devem ser considerados formalmente ou cronologicamente em sequência mecânica. Trata-se de momentos que se interpenetram relacionando-se e se condicionando reciprocamente, ainda que, no plano da exposição, nós os abordemos um após o outro. Gostaríamos de entender melhor a especificidade de cada um desses três momentos. Em que consiste o primeiro momento? O que significa o enunciado “Aproximação ao objeto em suas características estruturais de modo a apreendê-lo em sua concreticidade? Saviani: De forma geral, o que nos move a investigar determinado objeto é o fato de lidarmos com ele como algo relevante, sendo que, a partir de algum momento, se nos apresenta como problemático. E sua problematicidade pode se revelar em diferentes circunstâncias e de diferentes maneiras. Assim, no campo da educação, o problema pode se revelar em nossa prática cotidiana diante de questões que nos cabe resolver; em nosso contato com as teorias disponíveis que se contrapõem entre si, obrigandonos a verificar a razão das discordâncias e o grau em que elas dão conta de explicar o objeto ao qual se referem; na insatisfação com as orientações emanadas das políticas e diretrizes oficiais; na exigência de compatibilizar nossa ação educativa com as opções que fazemos nos campos teórico-filosófico, ideológico-político, econômico-profissional, ético-moral, estético-cultural, etc.; e eu poderia prosseguir arrolando outras situações que se nos apresentam como problemáticas. Diante dessas situações, o enfrentamento dos problemas exige que procuremos compreender a natureza da educação, pois é aí que encontraremos os critérios para equacionar os problemas enfrentados. Assim, por exemplo, se o problema enfrentado foi provocado pela insatisfação com as teorias disponíveis, é possível que se comece pela crítica a essas teorias, mas é certo que não iremos longe nessa crítica se não procurarmos nos aproximar do entendimento da natureza da educação, pois é aí que encontraremos os critérios para efetuar a crítica teórica. Para esclarecer melhor essa questão, consideremos o procedimento adotado por Marx. Procurando compreender a essência humana, correlato de denominações como natureza humana e realidade humana, Marx8 faz uma série de considerações que registra nas notas que ficaram conhecidas como “Manuscritos econômico-filosóficos de 1844”. E encontra a resposta na atividade do trabalho. O conteúdo da essência humana reside no trabalho. Portanto, já se encontra aí de forma clara a ideia que será desenvolvida depois de forma sistemática, objetiva e científica: o ser do homem, a sua existência, não é dada pela natureza, mas é produzida pelos próprios homens. Deixado a si mesmo, submetido ao jugo da natureza, o homem perece ou, se por alguma circunstância fortuita e excepcional vier a sobreviver, não assumirá a forma humana. Diferentemente dos outros animais que têm sua existência garantida pela natureza bastando-lhes adaptar-se a ela para sobreviver, o homem necessita fazer o contrário. Precisa agir sobre a natureza transformando-a e ajustando-a às suas necessidades. Em lugar de adaptar-se à natureza, tem de adaptar a natureza a si. E esse ato de agir sobre a natureza, transformando-a, é o que se chama trabalho. Portanto, é pelo trabalho que os homens se produzem a si mesmos. Logo, o que o homem é, o é pelo trabalho. O trabalho é, pois, a essência humana. Mas, diz Sánchez Vázquez9, “quando Marx vai à realidade histórico-social, só vê essa essência – ao contrário de Hegel – por seu lado negativo. O trabalho que ele encontra na existência real, concreta, do homem é justamente o trabalho alienado” (p. 415-6). Assim, a essência humana só se manifesta como essência alienada, isto é, negada nas relações reais que os homens mantêm com os produtos de sua atividade, com sua própria atividade e com os outros homens. Portanto, a concepção marxiana da essência humana se distingue da concepção corrente, de caráter especulativo e metafísico que se contrapõe à existência histórica e social dos homens. Marx se empenha em compreender a essência humana no desenvolvimento histórico, no qual ela se manifesta como negação, mas também como realização. Assim entendido, o conceito desenvolvido nos ‘Manuscritos’ não coincide com a “ideia metafísica de uma essência humana abstrata e universal que não dá lugar a sua realização histórica e social”9 (p. 418). Igualmente essa concepção não se reduz 716

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à ideia também abstrata e universal da essência humana “como conjunto de traços característicos de todo indivíduo”, uma vez que, no entender de Marx, “enquanto não se chega historicamente à fusão de essência e existência os indivíduos vivem na negação de sua essência”9 (p. 418). Consequentemente, em sua leitura do texto de Marx, Sánchez Vázquez entende haver um problema na concepção de essência humana alienada apresentada nos ‘Manuscritos’: se toda a história, até agora, se apresenta como a negação da verdadeira essência humana, de onde surgiu esse conceito de essência humana? Não poderá ter surgido da própria história, isto é, das relações reais ou do comportamento concreto dos sujeitos humanos. Resulta, pois, que esse conceito foi construído pela negação ideal, no plano do pensamento, da existência efetiva dos homens. Segundo essa leitura, haveria, pois, ainda, um caráter especulativo na concepção de essência humana exposta no texto dos ‘Manuscritos’, o qual consiste no entendimento de que a essência humana não se dá efetivamente na história, pondo-se, antes, como uma possibilidade a ser realizada em uma situação futura. Ainda que Sánchez Vázquez discorde de Althusser10, para quem teria havido uma radical ruptura epistemológica na concepção de Marx expressa no texto “A ideologia alemã”11, redigido entre 1845 e 1846, que separaria o ‘jovem Marx’ do ‘Marx maduro’, a leitura que faz dos ‘Manuscritos’ o aproxima dessa interpretação. É certo que ‘A ideologia alemã’ significou uma alteração de fundo na concepção marxiana, pois, segundo as próprias palavras de Marx, por meio dessa obra, ele e Engels teriam feito um ajuste de contas com a própria consciência filosófica anterior, atingindo o objetivo de ver claro neles mesmos. No entanto, considerando a crítica que já se manifesta explicitamente no terceiro manuscrito, tanto no que se refere à economia política como à filosofia hegeliana, parece mais apropriado considerar que houve, na passagem dos ‘Manuscritos econômico-filosóficos’ para ‘A ideologia alemã’, não uma ruptura, mas um maior aprofundamento na compreensão dos conceitos que agora se enraíza na análise histórica e uma mudança na terminologia que, esta sim, ainda guardava, nos ‘Manuscritos’, alguns resquícios especulativos. Reconhecendo o trabalho meticuloso e o rigor da análise dos ‘Manuscritos’ efetuada por Sánchez Vázquez12, permito-me discordar da interpretação segundo a qual o conceito de essência humana foi obtido negando, no pensamento, a realidade humana, o que lhe confere um caráter especulativo que consiste em admitir idealmente uma essência que não se encontra efetivamente na realidade objetiva. O que Marx evidenciou – e, nesse sentido, indo além de Hegel e Feuerbach, – foi que o homem é um produto do trabalho que, assim, define sua essência. Ora, isso é um dado histórico, uma constatação, e não uma especulação. O trabalho alienado é, igualmente, uma constatação histórica que supõe o trabalho como instituidor do homem, portanto, como sua essência. E é isso o que se explicita na ‘Ideologia alemã’. A alienação, em lugar de ser o fundamento explicativo da situação humana, é considerada como um fenômeno social que, por sua vez, é fundamentado e explicado por outro fenômeno histórico, a saber, a divisão do trabalho. Ora, se é a divisão do trabalho que provoca a alienação, não podemos falar rigorosamente em trabalho alienado no comunismo primitivo. Com efeito, etimologicamente, a palavra ‘alienação’ deriva do adjetivo latino alius, alia, aliud. Alius significa, simplesmente, ‘outro’. Deste adjetivo deriva alienar, alienação, alienado. E são essas expressões que tanto podem significar ‘tornar outro’, ‘tornado outro’, isto é, objetivar, objetivação, objetivado, como ‘passar para outro’, ‘passado para outro’ ou ‘apropriado por outro’. A primeira acepção traduz o significado positivo de alienação que prevalece em Hegel, ao passo que a segunda acepção corresponde ao significado negativo destacado tanto por Feuerbach como por Marx. É desta segunda acepção que vem o sentido mais corrente de alienação e alienado para se referir àqueles que não têm consciência de sua própria situação, que não se sabem como sujeitos da história, aqueles que perderam sua condição de sujeitos de seus próprios atos, de suas próprias obras. Portanto, o conceito de trabalho alienado corresponde ao significado de passado para outro, apropriado por outro. E isso pressupõe a divisão do trabalho e, mais tipicamente, a divisão da sociedade em classes. Logo, não podia se manifestar no comunismo primitivo. É de se notar, ainda, que esse entendimento do trabalho como sendo o elemento determinante da vida humana, o definidor da essência do homem, Marx manteve em toda a sua trajetória, como podemos ver em “O capital”13. No capítulo V, após descrever com minúcia as características do processo de trabalho, Marx afirma: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais. (p. 208)

Repito, frisando: o trabalho “é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais”. É essa constatação que se constitui como critério para identificar e aferir as formas particulares de trabalho como trabalho comunal, trabalho escravo, trabalho servil, trabalho livre, trabalho assalariado e, obviamente, trabalho alienado. Em verdade, o que Marx faz no referido capítulo V de ‘O capital’ é identificar as características estruturais do objeto trabalho, apreendendo-o em sua concreticidade. E é à luz dessa compreensão da essência humana que ele desenvolve a crítica das teorias econômicas e elabora sua própria teoria. Cumpre, ainda, observar que o constitutivo essencial de determinada atividade independe do grau de consciência dos agentes relativamente aos atos que praticam. Assim, os homens que agiam sobre a natureza para produzir os meios de satisfação de suas necessidades vitais não tinham consciência de estarem trabalhando e que o trabalho era uma necessidade natural eterna da vida humana. Mas, obviamente, não era isso que tornava seu trabalho alienado. Nas condições do comunismo primitivo, dadas as necessidades prementes que precisavam ser atendidas, essa consciência não podia, ainda, aflorar. Mas não se tratava, naquelas condições, de trabalho alienado. O papel da teoria é, exatamente, explicitar o conteúdo objetivo dos fenômenos, o que, aliás, corresponde ao entendimento de Marx sobre o significado do conhecimento: produzir o concreto de pensamento, ou seja, reconstruir, em pensamento, o concreto real. O acesso a esse conhecimento do objeto em suas múltiplas determinações permite afastar as explicações fantasiosas ou unilaterais e fragmentárias, fornecendo à consciência um conteúdo objetivo que, retroagindo sobre a prática, a torna mais consistente, coerente, orgânica e eficaz. É isso o que cabe à teoria crítica da educação fazer: resgatar, no plano da consciência, as características essenciais da educação, que se fazem presentes em sua prática há séculos e que as teorias correntes, não as alcançando ou delas se afastando, acabam por desvirtuar seu sentido contribuindo para sua alienação. Eis por que afirmei que o primeiro momento do processo de elaboração de uma teoria verdadeiramente crítica é a aproximação das características estruturais do objeto, de modo a apreendê-lo em sua concreticidade. Em que consiste, então, o segundo momento? Como proceder à contextualização crítica das teorias hegemônicas? Saviani: Ninguém adentra ‘inocente’, tanquam tabula rasa, em algum campo profissional. De modo especial, no caso da educação, quem assume a condição de agente educativo para exercer determinadas funções já terá passado de algum modo pela escola. Dessa forma, já teve contato, ainda que de maneira espontânea, assistemática, com teorias educacionais. E, quando se é apresentado a uma teoria de maneira mais formal, dominantemente o primeiro movimento tende a ser de adesão pré-crítica. Esse caráter pré-crítico denuncia um fenômeno relativamente comum: as flutuações da consciência pedagógica, que podem ser definidas como “a adesão pré-crítica da consciência pedagógica a estruturas conceptuais limitadas pelos interesses das várias teorizações e práticas humanas centradas em seus objetos específicos”14 (p. 6). Isso significa que os professores e os pedagogos tendem a passar de uma orientação teórica a outra dentre aquelas que se encontram em circulação, ao sabor das circunstâncias configurando certo modismo pedagógico. E as teorias que se encontram em circulação com algum poder de atração sobre a consciência pedagógica são aquelas que correspondem às ideias dominantes que, como lemos em “A ideologia alemã”11, são as ideias da classe dominante. Trata-se, pois, das teorias hegemônicas que dão expressão universal aos interesses da classe dominante, apresentando-os como correspondentes aos interesses de toda a sociedade. 718

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O papel da teoria crítica – isto é, aquela teoria que, por colocar-se na perspectiva dos interesses dos dominados, consegue ver os limites, as insuficiências e inconsistências das teorias hegemônicas – é desmontá-las contextualizando-as histórica, social e epistemologicamente. Historicamente, a desmontagem implica mostrar quando, como e em que contexto surgiram e se desenvolveram; socialmente, cabe indicar a que interesses ocultos elas servem e como justificam esses interesses; epistemologicamente a desmontagem evidenciará seus pressupostos, a concepção sobre a qual se apoia, a lógica de sua construção com as incoerências, inconsistências e contradições que a caracterizam. Tudo isso sem deixar de reconhecer seus possíveis acertos e eventuais contribuições, que serão incorporados ao serem superados pela teoria crítica. Em suma, a desmontagem das teorias hegemônicas se movimenta na luta pela hegemonia, que consiste em um processo de desarticulação-rearticulação: trata-se de desarticular dos interesses dominantes expressos nas teorias hegemônicas aqueles elementos que estão articulados em torno deles, mas não lhes são inerentes, e rearticulá-los em torno dos interesses populares que, expressos na teoria crítica, adquirem a consistência, a coesão e a coerência de uma concepção elaborada. Mas os trabalhadores não podem aspirar à hegemonia sem passar da condição de classe-em-si para a condição de classe-para-si, o que implica a elevação cultural das massas, que é obra da educação. A elaboração de uma teoria da educação radicalmente crítica se põe, portanto, como um instrumento necessário para orientar a intervenção deliberada e sistemática nos vários níveis e modalidades das redes de ensino, visando assegurar a toda a população uma educação de elevado padrão de qualidade, adequado aos seus interesses e às suas necessidades.

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E o terceiro momento? O que você nos diz sobre a elaboração e sistematização de uma teoria da educação efetivamente crítica? Saviani: Como já adiantei, esses momentos não são estanques. Eles se interpenetram. Isso significa que a elaboração da teoria crítica começa a ocorrer já no primeiro momento, quando da aproximação às características estruturais do objeto cuja compreensão é o alvo e a razão de ser do esforço teórico empreendido. Mas a formulação e sistematização da teoria ocorre, especificamente, neste terceiro momento. Isso porque, conforme advertiu Marx13, é preciso distinguir o método de exposição do método de investigação: A investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori. (p. 16)

Assim, efetuado o percurso investigativo indicado ao final da resposta à primeira pergunta, cabe expor, de forma sistematizada, o resultado da investigação que penetrou no interior dos processos pedagógicos e reconstruiu suas características objetivas, capacitando-se, portanto, a formular as diretrizes pedagógicas que possibilitarão a reorganização do trabalho educativo sob os aspectos das finalidades e dos objetivos da educação, das instituições formadoras, dos agentes educativos, dos conteúdos curriculares e dos procedimentos pedagógico-didáticos que movimentarão um novo éthos educativo voltado à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura, um novo homem. Eis aí como se dá a construção da ‘pedagogia dialética’ correlata da construção da ‘psicologia dialética’, tal como se propôs Vigotski7. Aliás, quando Vigotski afirmou que a psicologia estava precisando de seu Capital, ele estava se referindo à necessidade de uma teoria dialética mediadora, uma psicologia geral, entre a ciência geral da dialética e a ciência psicológica. Daí ter ele observado que, assim como as ciências sociais, especificamente a história, precisam da mediação do materialismo histórico para passar do materialismo dialético à ciência dialética da história, também a psicologia necessita de uma teoria geral mediadora, um materialismo psicológico, para passar do materialismo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dialético à ciência dialética da psicologia. E poderíamos acrescentar: assim igualmente a pedagogia precisa de uma teoria geral mediadora, um materialismo pedagógico, para passar do materialismo dialético à dialética da pedagogia entendida como a ciência dialética da educação. E, para deixar ainda mais clara sua argumentação, Vigotski vai além, levantando a seguinte e absurda conjectura: imaginemos que Marx tivesse operado com as categorias e os princípios gerais da dialética como conexão universal, quantidade-qualidade, tríade em lugar das categorias históricas do valor, classe, capital, mercadoria, renda, força produtiva, base, superestrutura! Seria, diz ele, “uma monstruosa estupidez”! Destaco, por fim, dois aspectos apontados por Vigotski, que também me orientaram na elaboração da pedagogia histórico-crítica, embora, quando assim procedi, eu ainda não havia tido contato com a teoria vigotskiana: o primeiro se refere à sua observação de que, para se produzir as teorias mediadoras, é preciso descobrir a essência do campo fenomênico de que se está tratando; e o segundo aspecto diz respeito à sua assertiva de que o que se pode procurar nos mestres do marxismo não é a solução do problema, mas o método de sua construção. Enfim, pode nos dizer se e como a pedagogia histórico-crítica cumpriu ou vem cumprindo a exigência expressa nos três momentos que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter? Saviani: De início, devo responder que a pedagogia histórico-crítica vem cumprindo, isto é, vem procurando atender à referida exigência. Não cabe dizer que já cumpriu por duas razões: em primeiro lugar, porque se trata de uma teoria em construção que se desenvolve coletivamente com o concurso de um conjunto cada vez mais amplo de participantes e estudiosos dos diferentes aspectos que caracterizam os processos educativos. Em segundo lugar, porque se trata de uma teoria que procura acompanhar atentamente o movimento da história, respondendo aos desafios educacionais por ele colocados como, aliás, é próprio de toda teoria tributária do materialismo histórico. Dessa forma, ela nunca estará plenamente acabada. Como assinalei antes, os três momentos não ocorrem em sequência cronológica, mas se imbricam e se condicionam reciprocamente em relação dialética. Por isso vou responder a esta última pergunta em bloco, contemplando, de forma relacionada, os três momentos. Pela abordagem que fiz dos antecedentes, origem e desenvolvimento da pedagogia históricocrítica é possível ver como foi acontecendo a aproximação das características estruturais do fenômeno educativo. Respondendo, no final dos anos de 1960 e no decorrer dos anos de 1970, aos desafios postos pelo ensino na educação básica e superior; participando do processo de organização do campo educativo com a criação e atuação de entidades no final dos anos de 1970 foram sendo formulados certos elementos basilares em direção a uma teoria educacional crítica, de base marxista, explicitados em artigos que depois foram sendo reunidos em livros. Um marco do processo de formulação da pedagogia histórico-crítica foi o lançamento, em 1983, do livro “Escola e democracia”. No prefácio à 35ª edição14, redigido em agosto de 2002, quando se comemorava o septuagésimo aniversário do lançamento do “Manifesto dos pioneiros da Educação Nova”, afirmei, contra algumas interpretações, que esse livro não podia ser considerado como um “antimanifesto de 1932”, acrescentando: Se for lido como manifesto tratar-se-á, no caso, do manifesto de lançamento de uma nova teoria pedagógica, uma teoria crítica não-reprodutivista ou, como foi nomeada no ano seguinte após seu lançamento, pedagogia histórico-crítica, proposta em 1984. Sim. Este livro pode ser considerado o manifesto de lançamento da pedagogia histórico-crítica. Lido como manifesto, eis sua estrutura: O primeiro capítulo apresenta o diagnóstico das principais teorias pedagógicas. Mostra as contribuições e os limites de cada uma delas. E termina com o anúncio da necessidade de uma nova teoria. O capítulo segundo é o momento da denúncia. Pela via da polêmica se procura desmontar as visões que se acreditavam progressistas de modo a se abrir caminho para a formulação de uma alternativa superadora [...]. 720

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O capítulo terceiro apresenta as características básicas e o encaminhamento metodológico da nova teoria que passou a se chamar de pedagogia histórico-crítica, esclarecendo-se, no capítulo quarto, as condições de sua produção e operação em sociedades como a nossa, marcadas pelo primado da política sobre a educação. (p. xxv-viii)

Como se vê, o primeiro e o segundo capítulos do livro ‘Escola e democracia’ já operam, de modo sistemático, a crítica contextualizada das teorias hegemônicas. E o terceiro capítulo dá início à elaboração sistemática da teoria no espírito do terceiro momento. De fato, no terceiro capítulo, registro o significado da educação como mediação no interior da prática social, razão pela qual o método da pedagogia histórico-crítica tem a prática social como ponto de partida e ponto de chegada da educação. E também se explicita, aí, a fundamentação no texto de Marx “O método da economia política”, que fornece uma orientação segura “tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (o método científico) como para o processo de transmissãoassimilação de conhecimentos (o método de ensino)”14 (p. 59). E no ano seguinte ao lançamento desse livro é redigido, em 1984, o texto “Sobre a natureza e especificidade da educação”, no qual se compreende o trabalho educativo como pertencendo à produção não material na modalidade em que o produto não se separa do produtor, sendo definido como “o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”15 (p. 13). A partir daí, a mobilização em torno da pedagogia histórico-crítica vem se adensando e passou a contar com um número crescente de colaboradores que vêm contribuindo com a explicitação de novos elementos constitutivos da estrutura do fenômeno educativo. Nesse âmbito, é preciso atentar para uma peculiaridade da educação como objeto de pesquisa científica. Com efeito, a pedagogia tem seu estatuto de cientificidade frequentemente contestado, seja pelo entendimento segundo o qual a educação é uma atividade prática não suscetível de ser teorizada cientificamente, seja porque a educação é tida como um objeto de várias ciências carecendo, portanto, de autonomia e unidade teórico-científica. Ou seja, a educação tem sido dominantemente abordada por disciplinas científicas externas à educação, estruturadas em função de um objeto próprio que, em sua especificidade, não coincide com o fenômeno educativo. Era necessário, portanto, dar um novo passo que implicava passar de uma abordagem externa para uma abordagem interna à educação, o que se constituía como uma exigência para a formulação de uma teoria propriamente pedagógica. É nesse âmbito que se situa a pedagogia histórico-crítica. Esclareçamos essa diferença entre a abordagem externa e interna em sua implicação para a pesquisa educacional tal como se manifesta na pós-graduação que, na estrutura universitária, é o espaço privilegiado de formação de pesquisadores e de desenvolvimento da pesquisa. Se é verdade que a pesquisa é inerente a toda e qualquer forma de pós-graduação, o mesmo não ocorre com a pesquisa educacional. Nem mesmo é verdade que pesquisa educacional seja inerente a toda e qualquer forma de pós-graduação em educação. Aqui se patenteia com nitidez a diferença entre a educação e as áreas científicas cujo campo de conhecimento se encontra bem delimitado. Assim, em se tratando de um curso de pós-graduação em biologia, por exemplo, não faz sentido propor-se uma área de concentração em pesquisa biológica. Com efeito, qualquer que seja a modalidade de estudos pós-graduados em biologia, tratar-se-á sempre, de modo explícito, de pesquisa biológica. O mesmo ocorre com a medicina – para citar um exemplo retirado do domínio das ciências aplicadas (tecnologia). Em educação, porém, a situação é bem outra. Um curso de pós-graduação em psicologia educacional, por exemplo, envolverá certamente pesquisa. Já não é tão certo, porém, que envolverá pesquisa educacional. É bem provável, como ocorre mais frequentemente, que se trate aí de pesquisa psicológica. Esse problema pode ser traduzido com propriedade pela seguinte citação de Orlandi, referente aos estudos de sociologia da educação:

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É certo que eles iluminam uma séria e fecunda perspectiva aberta aos especialistas de uma dada disciplina sociológica, a sociologia da educação. Todavia, esses textos são apresentados não raramente como guias e modelos de pesquisa em educação. Não discuto – torno à precaução

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tomada anteriormente em relação à colaboração dos psicólogos – a validade desses trabalhos e nem relego a segundo plano as elaborações que, filiadas a eles, passaram a equacionar novas pesquisas ligadas à educação. Saliento, isto sim, que a interiorização de certos textos sociológicos – transformados em guias e modelos de pesquisa em educação – denota uma flutuação sociológica da consciência pedagógica, isto é, essa consciência não se dá conta de um circuito muito simples, qual seja: o ponto de partida e o ponto de chegada desses textos são a sociologia da educação e não a educação. O que neles se destaca são os admiráveis cortes que circunscrevem o objeto de pesquisa de uma dada disciplina sociológica. Ora, essa situação não traria maiores problemas se a estrutura desse objeto coincidisse plenamente com a estrutura do objeto de pesquisa educacional. E basta lembrar as possíveis conexões da educação com a conjuntura econômica, por exemplo, para se ter uma ideia da não identidade dessas estruturas.16 (p. 11-12)

Passando para as áreas técnico-profissionais, nota-se que a pesquisa vai diluindo-se até quase o desaparecimento ou descaracterização. Em se tratando, por exemplo, de ‘administração escolar’, ‘orientação educacional’, ‘meios instrucionais’, etc., que tipo de pesquisa pode ser aí detectado? Diante desse quadro, é nossa convicção que a pesquisa educacional só poderá ter lugar e se desenvolver operando-se a inversão do circuito ao qual se referiu Orlandi. Quer dizer, transformandose a educação em ponto de partida e ponto de chegada das nossas investigações. No circuito original, a educação é ponto de passagem: ela está descentrada. O ponto de partida e o ponto de chegada estão alhures. Isso significa que as pesquisas no âmbito da sociologia da educação (e isso vale também para as demais áreas como psicologia da educação, economia da educação, antropologia educacional, biologia educacional, etc.) circunscrevem a educação como seu objeto, encarando-a como fato sociológico (psicológico, econômico, antropológico, biológico, etc.) que é visto, consequentemente, à luz das teorizações sociológicas (psicológicas, econômicas, etc.) a partir de cuja estrutura conceptual são mobilizadas as hipóteses explicativas do aludido fato. O processo educativo é encarado, pois, como campo de teste das hipóteses que, uma vez verificadas, redundarão no enriquecimento do acervo teórico da disciplina sociológica (psicológica, etc.) referida. Invertendo-se o circuito a educação, enquanto ponto de partida e ponto de chegada, tornase o centro das preocupações. Note-se que ocorre agora uma profunda mudança de projeto. Em vez de se considerar a educação a partir de critérios psicológicos, sociológicos, econômicos etc., são as contribuições das diferentes áreas que serão avaliadas a partir da problemática educacional. O processo educativo erige-se, assim, em critério, o que significa dizer que a incorporação desse ou daquele aspecto do acervo teórico que compõe o conhecimento científico em geral dependerá da natureza dos problemas enfrentados pelos educadores. Evidentemente, tal atitude supõe um aguçamento do espírito crítico dos educadores. É por esse caminho que poderemos chegar a uma ciência da educação propriamente dita, isto é, autônoma e unificada que irá adquirir um lugar próprio e específico no sistema das ciências. Mas é óbvio que essa profunda mudança de projeto não se efetivará caso se continue a considerar a pesquisa educacional como algo inerente a toda e qualquer forma de pós-graduação em educação. É preciso perseguir esse objetivo explícita e intencionalmente. É nessa direção que vem se empenhando a pedagogia histórico-crítica, como está indicado no livro “Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações”, publicado em 1991: Se a educação, pertencendo ao âmbito do trabalho não material, tem a ver com ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, habilidades, tais elementos, entretanto, não lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem. Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupação das chamadas ciências humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denominou de “ciências do espírito”, por oposição às “ciências da natureza”. Diferentemente, do ponto de vista da educação, ou seja, da perspectiva da pedagogia entendida como ciência da educação, esses elementos interessam enquanto é necessário que os homens os assimilem, tendo em vista a constituição de algo como uma segunda natureza.15 (p. 13)

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Eis aí como se posiciona a pedagogia histórico-crítica na pesquisa em educação no Brasil na atualidade, desenvolvendo projetos que, sempre tendo a educação como ponto de partida e ponto de chegada, envolvem: a) O aprofundamento de determinados aspectos teóricos nos campos da filosofia e das chamadas ciências da educação e, especificamente da pedagogia. b) A investigando de problemas no campo da política educacional. c) A investigando de aspectos relativos aos níveis e modalidades de ensino no âmbito da educação básica e da educação superior. d) A análise crítica das tentativas que vêm sendo encetadas de aplicação da pedagogia históricocrítica nos vários campos de atuação educativa no contexto brasileiro atual. Para ampliar a abordagem do primeiro momento relativo à aproximação às características estruturais do fenômeno educativo, seria desejável mencionar os diversos trabalhos que foram e estão sendo realizados pelo coletivo de professores e pesquisadores que vêm participando do processo de construção da pedagogia histórico-crítica. O mesmo se pode dizer da contextualização das teorias pedagógicas hegemônicas que vêm sendo feitas sistematicamente de diversas formas, em diferentes oportunidades e pelos vários integrantes da construção coletiva da pedagogia histórico-crítica em articulação com a elaboração da teoria nos seus múltiplos aspectos. Mas fazer um inventário dessa produção demandaria um tempo maior e estenderia essa entrevista para além dos limites estabelecidos pela revista.

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Fotos cedidas por Bruna Cortes

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Palavras-chave: Pedagogia histórico-crítica. Trabalho. Educação. Método. Keywords: Historical-critical pedagogy. Work. Education. Method. Palabras clave: Pedagogia Histórico-Crítica. Trabajo. Educación. Método.

Submetido em 03/01/2017. Aprovado em 17/01/2017

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2017; 21(62):711-24


DOI: 10.1590/1807-57622016.0788

resenhas

Bikes vs cars. Direção e roteiro: Fredrik Gertten. Suécia; 2015. Documentário. 90 min.

Mathias Roberto Loch(a) Paulo Henrique Guerra(b)

Bikes vs Car: análise crítica do documentário de Fredrik Gertten O documentário “Bike vs Carros”, lançado em 2015, levanta importantes reflexões sobre a questão da mobilidade urbana e a crescente expansão das cidades. O diretor sueco Fredrik Gertten aborda o tema tanto em uma perspectiva histórica quanto por meio do posicionamento e da representação profissional de pessoas que vivem em cinco diferentes cidades do mundo (São Paulo, Los Angeles, Copenhague, Bogotá e Toronto). Apesar de não abordar diretamente a questão da saúde (apenas no fim do documentário é mencionado que as cidades estão produzindo pessoas doentes), o documentário possibilita importantes reflexões sobre a questão da Promoção da Saúde (PS). A presente resenha foi elaborada com base nos principais tópicos abordados pelo documentário, com objetivo de facilitar a organização do texto. Intersetorialidade e pertencimento A primeira cena, que mostra uma ambulância parada em um engarrafamento, com a sirene

tocando, faz pensar sobre como a saúde deve ser tratada de maneira intersetorial, o que é coerente com importantes documentos da PS, inclusive com a carta da Primeira Conferência Internacional de Promoção da Saúde1 e com a mais recente (oitava), que tem como mensagem central a ideia de que a saúde precisa ser considerada em todas as políticas2. Outra questão que o documentário aborda e dialoga com o ideário da PS é a questão da solidariedade e a noção do pertencimento. Por mais que o ato de pedalar seja individual (no sentido de que não se trata de uma atividade na qual há a necessidade de um “outro”), parece haver alguma sinergia entre os praticantes, que os leva a ter alguma necessidade de aproximação. Talvez isso aconteça, pelo menos em parte, devido à própria necessidade de se organizar para mostrar e ter maior força nas reivindicações. Importante mencionar que a solidariedade é um valor fundante da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)3 e a noção de pertencimento se faz fundamental. No momento em que muitas pessoas já não se adequam ou não se interessam pelas formas tradicionais de pertencimento (em instituições como partidos políticos, igrejas, sindicatos,

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(a) Departamento de Educação Física, Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Centro de Educação Física e Esporte, Universidade Estadual de Londrina (UEL). Rod. Celso Garcia Cid, PR 445, Campus Universitário. Londrina, PR, Brasil. 86051-980. mathiasuel@hotmail.com (b) Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Chapecó, SC, Brasil. paulo.guerra@ uffs.edu.br

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etc.), movimentos com causas mais específicas parecem exercer um papel relevante e crescente na sociedade. Indústria, lobby e o carro enquanto uma necessidade No documentário, questiona-se o alto investimento financeiro que parte dos setores imobiliário e automobilístico faz nas cidades e que muitas vezes cria uma relação de interdependência entre eles: cada vez mais as cidades recebem novos empreendimentos imobiliários e estes muitas vezes são afastados dos centros das cidades, onde trabalha a maior parte das pessoas. Assim, cria-se a noção de “necessidade” de se adquirir carros, e, em vista da constante expansão territorial, propulsiona-se a necessidade de ampliação das ofertas para o seu tráfego. Como exemplo, é apresentada a trajetória histórica dos transportes em Los Angeles. Nos anos iniciais do século XX, considerável número de pessoas fazia uso da bicicleta enquanto seu principal meio de transporte, com ciclovias que interligavam os principais pontos da cidade. Entretanto, quando a indústria automobilística se tornou um dos principais setores do desenvolvimento industrial dos Estados Unidos da América (EUA), Los Angeles foi projetada como a “capital automobilística do mundo”, recebendo para tal forte investimento e lobby. Rodovias foram construídas sobre as estruturas das ciclovias existentes, assim como sobre parte considerável da malha de trens e bondes. Ao mesmo tempo que as novas rodovias favoreceram o uso do carro, propiciou-se o surgimento dos bairros mais distantes do centro da cidade. Meio ambiente e o risco coletivo Em relação ao meio ambiente, o documentário se desenvolve a partir da reflexão sobre a paixão por carros que muitas pessoas têm. São apresentadas cenas de um encontro de amantes de carros, nos EUA, nas quais aparecem carros de vários modelos, tamanhos e épocas. O ex-diretor de marketing de algumas empresas automobilísticas, Joel Ewanick, representa o ponto de vista dos amantes de carros. Ele menciona que, mesmo amando carros, aquelas 726

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pessoas estão também preocupadas com o aquecimento global e querem contribuir com a causa do meio ambiente. Porém, deixa claro que não vai vender seu carro para isso e que seus pares pensam da mesma maneira. Não é nossa intenção duvidar das reais intenções ou refletir sobre o quanto de fato os amantes de carros estão dispostos a contribuir com a causa ambiental. Sem dúvida, a “importância”, a “paixão” e a “história” não podem ser menosprezadas. Assim como os ciclistas acabam desenvolvendo entre si a noção de pertencimento, o documentário mostra que isso também ocorre entre os amantes de carro. Porém, nesse segundo caso, não pode ser desconsiderada a questão do impacto ambiental, que afeta, de alguma maneira, a todos. Podemos fazer uma analogia com a questão do tabaco. Durante muito tempo, o hábito de fumar foi encarado como algo que só causava mal ao próprio fumante. A partir do momento em que se acumularam evidências de que o cigarro também poderia afetar a saúde de pessoas não fumantes, mas que inalavam a fumaça do cigarro fumado por outros, somadas à mobilização de diversas instituições e segmentos da sociedade, surge no Brasil, como uma das estratégias de controle do cigarro, sua proibição em lugares fechados. Cabe dizer também que essa mudança na lei foi aprovada apesar da resistência de muitas pessoas. Fato é que a percepção de que o uso excessivo de carros e, consequentemente, do aumento de poluição (além, é claro, dos impactos na saúde mental causados por excesso de engarrafamentos, etc.) nem sempre é vista como algo que afeta a saúde de todos. Em 1992, William Rees utilizou a expressão “pegada ecológica”4, que tem sido utilizada como um indicador de sustentabilidade ambiental, que pode inclusive ser usado para estimar o impacto do estilo de vida individual no meio ambiente. Para esse autor, um novo aspecto precisa passar a ser considerado nos nossos comportamentos individuais, que é o impacto destes no meio ambiente. De passagem, vale lembrar que nossas escolhas não são tão “individuais” como alguns pensam, já que nosso modo de vida é determinado por um conjunto complexo de fatores, inclusive de ordem econômica, social e cultural. Tal como o atual estranhamento a respeito das antigas campanhas publicitárias


Riscos ao se andar de bicicleta, mobilidade segura e cultura da paz Os riscos envolvidos ao se andar de bicicleta também é uma pauta de interesse ao longo do documentário. Um dos temas prioritários da PNPS (2014)3 é a promoção da mobilidade segura. Esse item compreende as redes de atenção básica e de urgência e emergência para a produção do cuidado e redução da morbimortalidade decorrente do trânsito, a busca de um planejamento integrado entre os diferentes setores e a própria sociedade, buscando um planejamento integrado e um avanço nas políticas educativas, legislativas, econômicas, ambientais, culturais e sociais que promovam, ambos, uma mobilidade mais segura. Fica claro, nesse aspecto, que medidas isoladas não são suficientes, o que levanta a necessidade de um conjunto de ações, que vão desde atividades de educação no trânsito até a organização da rede de urgência e emergência, passando pela construção de espaços seguros para o deslocamento de pedestres e ciclistas. Nesse sentido, vale mencionar que nem sempre essas ações são bem aceitas por alguns setores e pessoas, tais como as ações que buscam reduzir a velocidade máxima permitida de carros em determinadas vias, que objetivam a diminuição de acidentes. Aqui, vale refletir sobre uma característica importante da prevenção de doenças/agravos. Muitas pessoas precisam aderir a determinadas ações para que “poucos” eventos sejam evitados. Exemplo disso é a utilização do cinto de segurança por milhares de pessoas para que um “pequeno” número de mortes seja evitado. No plano individual, é muito difícil estimar com precisão se o cinto foi o responsável por evitar a morte de uma pessoa. Entretanto, no plano populacional, é possível ter uma boa ideia de quantas vidas foram salvas em função disso. Imagine agora com a questão da redução da velocidade máxima dos veículos: milhares de veículos precisam se adequar às

novas velocidades (menores) para que algumas “poucas” mortes sejam evitadas, e é impossível saber se uma determinada pessoa morreria se o limite de velocidade fosse outro. Ademais, como a maioria das pessoas está acostumada a considerar como acidentes imprevisíveis casos assim – julgando que acontecem meramente por falha, imprudência ou descuido humano, e não como algo que poderia ter sido evitado –, muitas vezes é difícil fazer com que estas se sensibilizem com a importância desse tipo de ação. O documentário também levanta a questão ética e a cultura da paz, principalmente a partir de cenas que mostram a insensatez e a negligência de um motorista que atropelou um ciclista (arrancando-lhe o braço e não prestando socorro). A ética é um dos valores fundantes da PNPS e pressupõe “condutas, ações e intervenções sustentadas pela valorização e defesa da vida, sendo pautadas pelo bem comum, com dignidade e solidariedade”3 (p. 69). Outro elemento que aparece com destaque na PNPS (2014) é a “cultura da paz e de direitos humanos”, que é um dos temas prioritários dessa política.

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da indústria do tabaco, talvez no futuro nossos netos e bisnetos estranhem quando souberem que boa parte das pessoas do início do século XXI andavam com seus carros particulares e sozinhos na maior parte do tempo, sem muito se importar com o impacto no ambiente.

As experiências de Copenhague e Toronto Em Copenhague (Dinamarca), uma das cidades consideradas modelo para o uso da bicicleta, é apresentada a visão de um taxista que não aprecia a ideia de compartilhamento do espaço viário junto com os ciclistas. Seu posicionamento pode ser atestado pelas falas “os ciclistas foram tão mimados que acham que podem tudo” e “[os ciclistas] são como insetos que se proliferam”. Vale refletir em relação ao fato de que o compartilhamento do espaço viário requer o reconhecimento dos limites das próprias ações, assim como as possibilidades de ações dos outros. A experiência de Toronto (Canadá) é abordada no documentário a partir da eleição do prefeito Rob Ford (que teve mandato entre 2010 e 2014). Uma das suas principais plataformas de campanha foi a reestruturação do trânsito na cidade, o que ocasionou um grande apoio das pessoas que residiam nos bairros mais distantes do centro, onde se vê aumentada a necessidade do carro e o número reduzido de ciclovias. Em suas ações iniciais, ordenou a remoção de ciclofaixas, que facilitavam o acesso ao centro da cidade, e a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dissolução do comitê de ciclistas responsável por aconselhar a prefeitura no desenvolvimento de ciclovias e rotas pela cidade. O valor simbólico do carro O apelo à “necessidade” de possuir um (ou mais) carro(s) tem sido amplamente trabalhado pela publicidade. Para tanto, o publicitário Fabio Mendonça menciona que existem carros para “todos os gostos” e que acabam sendo um cartão de visita para a pessoa apresentar suas características (solteira, rica, mulher, ecológica, etc). Na parte específica sobre Bogotá (Colômbia), fica claro que o carro é um sinal simbólico de inclusão e que ainda muitas pessoas associam o uso de bicicleta às pessoas pobres. Talvez em países mais desenvolvidos essa representação já tenha se modificado, pois, em alguns lugares, como Copenhague, andar de bicicleta passou a ser um hábito socialmente desejável e compartilhado. Em algumas teorias e modelos que buscam explicar os comportamentos relacionados à saúde, como nos modelos da ação racional e do comportamento planejado, são utilizados, entre outros, o conceito de normas subjetivas, que dizem respeito ao grau de motivação para um determinado comportamento em função da aceitação, pelo indivíduo, de crenças e valores de outras pessoas consideradas importantes para esse indivíduo. Ou seja, o sujeito vai levar em conta o que pessoas importantes para ele pensariam, se ele, por exemplo, mudasse um determinado comportamento. É plausível imaginar que em uma sociedade na qual a maioria das pessoas ainda pensa que andar de bicicleta é “coisa de pobre”, promover o uso de bicicletas é muito mais difícil quando comparado a lugares onde andar de bicicleta é considerado “cult”. A inserção da bicicleta enquanto elemento de Educação em Saúde Ainda sobre as cenas que se passam em Bogotá, destaca-se uma ação feita nas escolas por meio de passeios orientados de bicicleta pela cidade, introduzindo o hábito de pedalar ainda na infância. Na perspectiva da PNPS (2014)3, essa atividade é coerente com o princípio da autonomia e com o eixo operacional “educação e formação”. Vale destacar que, em alguns 728

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casos, o papel transformador da educação para promover comportamentos saudáveis nos parece superestimado. Com base nas teorias socioecológicas e na literatura existente sobre PS, acreditamos que a Educação é, sem dúvida, parte da solução, mas que, se tratada de maneira isolada, não será suficiente para alicerçar mudanças mais amplas, sendo, para isso, necessária uma articulação entre diversos setores. Jovens, modelos alternativos de transporte e uma perspectiva sobre o futuro da indústria automobilística Apesar do trabalho publicitário de décadas que torna o carro um fetiche para muitas pessoas, o futuro dessa indústria é colocado em questão pelo já mencionado Joel Ewanick, quando este observa que os filhos dos amantes de carro já não dão tanta importância ao assunto como seus pais e que a indústria terá que se adaptar a essa nova realidade. Uma das formas de adaptação da indústria se dá pela apropriação do discurso, que também acontece em relação ao “ecologicamente correto”. O documentário mostra que na Alemanha existe um selo de eficiência para os carros, mas que este foi elaborado pela própria indústria automobilística, fazendo com que aconteçam algumas situações questionáveis, uma vez que o cálculo é feito com base não apenas na emissão de gases poluentes de cada carro, mas também a partir de seu peso. Dessa forma, considerando-se termos absolutos, carros mais leves e menos poluentes são considerados mais poluentes do que carros pesados e mais poluentes. Uma outra reflexão possível a partir da fala sobre o menor interesse dos filhos sobre carro é a questão da mudança de valores e mesmo de comportamentos, que acontece de uma geração para outra. Isso nos leva a refletir sobre a velocidade com que algumas ações demoram para ter impacto. Talvez parte desse aparente menor interesse por carros da geração que hoje está entrando na idade adulta possa ser atribuído ao movimento ambientalista, que inclusive estimula um consumo mais responsável. Do mesmo modo, é possível que a criação de novas ciclovias não irá fazer automaticamente com que milhares de pessoas passem a usar a bicicleta cotidianamente, mas é mais provável que essa seja uma mudança que pode levar anos, talvez décadas, inclusive porque a existência de ciclovia


centrais do documentário é que as cidades são planejadas para os carros, e não para as pessoas, e essa lógica precisa ser urgentemente modificada. Por fim, consideramos que as mensagens do documentário destinam-se a um público ampliado, não exclusivo a especialistas na área de planejamento urbano ou da PS. Assim, essa obra pode ser vista tanto por pessoas que não têm um grande nível de apropriação nessas temáticas quanto por seus estudiosos. O documentário pode inclusive ser utilizado como recurso didático para estudantes de diferentes áreas, uma vez que aborda uma temática atual e diz respeito a diversos setores e áreas do conhecimento.

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não é a única variável que as pessoas levam em consideração ao decidirem usar bicicleta. A própria questão da sustentabilidade deve ser considerada, pois em alguns casos pode se questionar se as ciclovias construídas irão permanecer e serem ampliadas ou se essa é mais uma política pontual, que pode ser modificada com outro prefeito e/ou por pressão de grupos contrários às ciclovias. A questão da sustentabilidade, por exemplo, é um dos princípios da PNPS (2014)3. As políticas tendem a ter uma maior sustentabilidade quando elementos de participação social estão presentes, não apenas na escolha das ações políticas a serem realizadas, mas em todo o processo. Vale destacar que a questão da participação social é um tema muito caro à PS. Fazer com que as pessoas e comunidades se empoderem e tenham uma participação ativa nas decisões que afetam suas vidas é fundamental. No contexto brasileiro, isso se faz ainda mais importante, haja vista certa falência de um sistema político centrado na democracia representativa, no qual supostamente poucos “eleitos” representam a população. Entretanto, esses “eleitos”, em sua maioria, representam mais os interesses do capital do que das pessoas. Vale destacar que esta não é uma característica exclusivamente brasileira, sendo que o filme aponta elementos nessa direção, que acontecem também em outros países. Na PNPS3, a participação social também é um princípio, baseado na “visão de diferentes atores, grupos e coletivos na identificação de problemas e solução de necessidades”. Com esse entendimento, as pessoas e comunidades precisam ser consultadas sobre seus desejos e necessidades e, para tal, precisam ter acesso a boas informações sobre os mais diversos temas.

Referências 1. World Health Organization. The Ottawa Charter for Health Promotion. The first International Conference on Health Promotion [Internet]. Geneva: WHO; 1986 [citado 17 Jun 2015]. Disponível em: http://www. who.int/healthpromotion/conferences/previous/ ottawa/en. 2. World Health Organization. The Helsinki Statement on Health in All Policies. In: The 8th Global Conference on Health Promotion [Internet]. Geneva: WHO; 2013 [citado 17 Jun 2015]. Disponível em: http://www.who.int/healthpromotion/ conferences/8gchp/en/.

Conclusões

3. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2446, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Diário Oficial da União. 19 Nov 2014. Seç. 1, p. 68.

Em síntese, o documentário “Bike vs Carros” permite a reflexão sobre diversos aspectos que dialogam com o tema da PS. Uma das mensagens

4. Wackernagel M, Rees W. Our ecological footprint: reducing human impact on the earth. Gabriola Island: New Society Publishers; 1996. (The new catalyst bioregional series).

Submetido em 13/09/16. Aprovado em 03/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0898

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O que pode o corpo? Corpografias de resistência

Mayna Yaçanã Borges de Ávila(a) Alcindo Antônio Ferla(b)

foto: Mayna de Ávila, 2014 (a) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). R. São Manoel, 963, Rio Branco. Porto Alegre, RS, Brasil. 90620-110. mayna.avila@gmail.com (b) Departamento de Assistência e Orientação Profissional, Escola de Enfermagem, UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil. ferlaalcindo@gmail.com

Remetendo à pergunta realizada por Espinosa e citada por Deleuze em sua obra “Espinosa e o problema da expressão” (1968). Pergunta respondida por Espinosa da seguinte forma: “A estrutura de um corpo é a composição da sua relação. O que pode um corpo é a natureza e os limites do seu poder de ser afetado”. (c)

Neste trabalho apresenta-se a criação de uma narrativa fotográfica – resultado do trabalho de campo realizado pela primeira autora no centro de Porto Alegre, guiada pelo questionamento de Espinosa: “o que pode o corpo?”(c) – composta de fotografias de acontecimentos cotidianos relacionados ao corpo e às suas relações com os espaços públicos da cidade. Compondo entre as dizibilidades e as visualidades na construção de um texto que transita entre o lúdico, o poético e o teórico, e onde a imagem é o lócus-sensacional, realização do virtual presente nos corpos1.

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A partir das imagens, busca-se multiplicar os deslocamentos para além daqueles fotografados, oferecendo as imagens aos leitores e buscando promover novos encontros, novos investimentos de desejo, novas criações. O campo foi construído buscando inspiração na abordagem cartográfica, proposta por Deleuze e Guattari como uma prática do conhecer sobre as estratégias do desejo2, e transitando entre a observação participante e a imersão no território da fotoetnografia de Achutti3, e a flanerie de Baudelaire4, errando por becos e ruas, largos, parques e praças, buscando descobrir a realidade social e cultural da cidade. Em uma perspectiva histórica, a concepção de corpo evolui de um aspecto dualista, baseado no ideal platônico de divisão em corpo e alma, para o aprofundamento dessa cisão com o desenvolvimento do cristianismo. O corpo é reduzido a uma realidade inferior e há uma valorização da razão, sendo, sua sede, a alma5. Essa divisão permanecerá no pensamento cartesiano moderno no qual o corpo é reduzido a uma funcionalidade simétrica e previsível, inspirada no funcionamento de uma máquina. Cabe, para desfazer essa cisão, entender o corpo como uma construção discursiva, abordando sua percepção e interpretação, além de como ele vem “sendo distintamente vivido; investido pelas mais diversas tecnologias e meios de controle; incorporado em diferentes ritmos de produção e consumo”6 (p. 98). Para Foucault7, o corpo é a superfície de inscrição do que nos tornamos a partir dos valores e regimes de verdade de uma sociedade. Em “História da Sexualidade I”, Foucault8 diz que há uma ligação entre biológico e histórico, uma ligação de complexidade crescente conforme vão se desenvolvendo tecnologias modernas de poder que têm a vida como alvo. O autor afirma que, a partir do século XVII, são desenvolvidas duas das principais estratégias de controle sobre a vida. Em um primeiro momento, desenvolvem-se os dispositivos do poder disciplinar, para o qual o corpo é visto como uma máquina. Os sistemas de controle são eficazes e centrados no adestramento, com o objetivo de aumentar as capacidades e aptidões desse corpo, ampliando sua utilidade e docilidade. Em um segundo momento, por volta da metade do século XVIII, o controle se volta para o corpo-espécie, o corpo como suporte dos processos biológicos. Isso se traduziu em uma biopolítica da população com o controle sobre os nascimentos e mortes e sobre os níveis de saúde8. Na segunda metade do século XX, surgirá um novo processo de dominação, denominado por Deleuze de sociedade de controle, a partir dos estudos de Michel Foucault. Os recursos da sociedade disciplinar, que não deixam de funcionar apesar de enfrentarem uma crise generalizada, passam a conviver com a ampliação do disciplinamento por meio do controle contíguo e da comunicação instantânea. O controle se torna tão sutil que ele passa a fazer parte do sujeito, ou seja, se inscreve diretamente no corpo9. Deleuze, inspirado a partir das concepções espinosianas de corpo, diz que o corpo é definido pelos afetos que é capaz de criar/provocar, não pela forma dos seus órgãos ou sua função orgânica, nem como substância ou sujeito10. Deleuze e Guattari11 propõem juntos mais que um conceito, um conjunto de práticas denominado de Corpo sem Órgãos (CsO): Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso.11 (p. 13)

Essas intensidades operam por fluxos e se encontram no plano das relações entre os sujeitos e entre os sujeitos e as coisas. O CsO não é o contrário dos órgãos, ele é a oposição à organização dos órgãos na forma de um organismo. O organismo, para os autores, é um estrato sobre o CsO, “que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil”11 (p. 19-20). Desfazer o organismo não significa o mesmo que se matar. Significa, ao contrário, abrir o corpo a conexões que supõem agenciamento, passagens e distribuições de intensidade, assim os autores ressaltam a importância da prudência na busca desejante do CsO11.

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Quando pensamos nas relações entre corpo e cidade, evocamos uma noção de território, de lugar. Para Milton Santos, o lugar é onde acontece a vida e, sendo assim, está diretamente relacionado ao corpo e à história do corpo. Essa história do corpo permite compreender o espaço12. Além dos corpos se inscreverem e contribuírem para a criação da cidade, as memórias desta também se inscrevem no corpo. Esse processo será chamado de “corpografia urbana” por Jacques e Britto13. “A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade”13 (p. 3). As diferentes corpografias são resultado das experiências de cada pessoa. Sennet14 estudou algumas cidades em períodos históricos específicos para mostrar as relações entre as experiências corporais e os espaços. Os atenienses, durante o período da Guerra do Peloponeso, usavam seus conhecimentos fisiológicos do corpo para criarem as formas urbanas, contando com espaços cobertos e expostos, contendo calor e frio; espaços construídos de forma a permitirem a projeção ou abafamento da voz. Na Roma (do Imperador Adriano), o corpo humano emprestava a geometria das suas proporções (que correspondiam ao desenho de um quadrado inscrito em um circulo) às formas que a cidade assumia. A geometria do espaço disciplinava o movimento corporal direcionando o olhar para as formas e induzindo as pessoas a olharem para frente. Durante a Alta Idade Média e inicio da Renascença, são as crenças cristãs sobre o corpo que passam a influenciar de forma importante o desenho urbano. Com o crescimento urbano de Paris, os asilos, hospitais e conventos passam a exercer uma influência moral sobre parte da cidade, definindo parâmetros e tornando-se referência, mesmo sem abranger toda cidade14. A cidade moderna será marcada pelo individualismo e pelo isolamento. A presença de diferentes grupos étnicos, políticos, sociais não é capaz de produzir conversações. Quando confrontadas pela diversidade da grande cidade, as pessoas assumem uma atitude passiva, desviando olhar e evitando qualquer contato físico. Com vias rápidas, a cidade faz com que as pessoas não consigam enxergar o que acontece fora quando estão conduzindo seus carros, transformando os espaços em lugares de passagem, não permitindo a contemplação14. A aglomeração urbana também provocou o crescimento da violência. Contudo, a principal estratégia sutil de condução da vida e de organização das grandes cidades não será a violência em si, mas o medo da violência15. De que forma resistimos a essa política de construção do medo e a do individualismo? Como pode o corpo se libertar das amarras produzidas pela sociedade de controle? A hipótese é a de que a diversidade nas cidades encontra espaços para se expressar por meio do corpo, incluindo a dimensão do CsO, e não apenas considerando o corpo de órgãos. Richard Sennet14, ao falar sobre a passividade e o isolamento nas relações urbanas, traz um questionamento importante: “O que poderá tornar as pessoas mais conscientes umas da outras, mais capacitadas a expressar fisicamente seus afetos?” (p. 17). Ele mesmo responde: “Obviamente, as relações entre corpos humanos no espaço é que determinam suas reações mútuas, como se veem e se ouvem, como se tocam ou se distanciam”14 (p. 17). Os aparelhos de captura do Estado buscam constantemente controlar o espaço, instaurar o espaço estriado da coerção, buscando se apropriar das máquinas de guerra, que, a seu passo, tentam constituir o espaço liso das linhas de fuga: Definimos a ‘máquina de guerra’ como um agenciamento linear construído sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a máquina de guerra não tem, de forma alguma, a guerra como objeto; tem como objeto um espaço muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga. O nomadismo é precisamente essa combinação máquina de guerra-espaço liso. 16 (p. 47)

Para Deleuze e Guattari17, o espaço estriado possui uma definição espacial rígida, produzida pelas estrias que vão sendo criadas para deter os fenômenos que possam escapar do planejamento territorial. Já o espaço liso seria um espaço amorfo, mas não homogêneo. É justamente nessa busca por diferentes ocupações e vivências do espaço urbano que serão constituídos os espaços lisos. Nos encontros, nas relações, produzindo corpos resistentes ou gestos

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de resistência. Deleuze e Guattari17 afirmam que as máquinas de guerra possuem uma potência de metamorfose, permitindo serem capturadas pelos Estados e resistindo a essa captura, renascendo sobre outras formas e com novos e diferentes objetos. Das diferentes vivências do campo que passam pelas relações entre corpo e cidade, foram selecionadas duas: a dos corpos arte e a dos corpos coletivos. Escolhidas, em meio a tanta vida capturada, pela sua potência de criar fissuras, de inventar vida.

fotos: Mayna de Ávila, 2013

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criação fotos: Mayna de Ávila, 2015

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Corpo arte Silva18 afirma que os artistas de rua se espacializam pelo seu corpo e, a partir dessa espacialização, irão interpretar a cidade e propor usos não previstos para o espaço urbano, reinventando continuamente a cidade. São verdadeiros corpos nômades, estando, a cada dia, em um lugar, ou no mesmo lugar, mas não há nada fixo, resistem, escapam às imposições, redesenham caminhos e criam outros e novos possíveis, propõem novas configurações sociais. O nômade encontra a si mesmo como diferente no deslocamento, e na desterritorialização ele irá constituir seu território. “[...] sempre outro, sempre o mesmo, sempre novo, novamente, sempre retorno, sempre devir, sempre porvir”1 (citação. 82). A ação performática não propõe uma transformação do lugar (físico, político, social, cultural etc.), mas a criação de uma situação de encontro e confronto do sujeito com o mundo. E seu poder reside, justamente, em revelar e provocar as transformações no mundo19. A busca do Estado por controlar o espaço vai reduzindo e impedindo a circulação lúdica e criativa nos espaços públicos, e a ação artística se dá como acontecimento corporal ativo, promovendo a parada dos espectadores em meio ao fluxo urbano. Nessa parada, nos surpreendemos, nos incomodamos, pois na(s) máscara(s) do artista vemos várias facetas de nós mesmos. É corpomovimento, corpo produzindo movimento e colocando o(s) outro(s) em movimento. A resistência como modo de ser, como dobra, produzindo múltiplas singularidades. É no corpo e a partir dele que irão acontecer os encontros possíveis e serão articuladas as ações. A arte daria forma externa e coletiva às emoções, às sensações experimentadas apenas na subjetividade. É por meio dessa dimensão coletiva que a arte nos permite compartilhar o sentir20. E, no encontro com o público, há um adensamento na produção desejante. Segundo André21, na dança, a fala do corpo é expressa como movimento total, expressão infinita do desejo no espaço dançado. Rudolf Laban, um importante estudioso do movimento corporal, entendia a dança como a poesia da linguagem do movimento capaz de penetrar no que ele chamava de mundo do silêncio, e promover uma consciência mais profunda sobre o mundo22. Barbosa22 conta que Laban insistia na dança como uma experiência, e não como uma forma de apresentação. Assim, a busca era pela livre expressão da corporeidade e pela criação e experimentação de corporeidades inéditas, valorizando a improvisação como uma das modalidades na dança. A improvisação seria a capacidade de se dedicar ao esquecimento, permitindo entrarem em jogo as possibilidades múltiplas do fluir do movimento, deixar-se ir sem total consciência deste, mas permitindo-se descobrir o corpo que se move22. O improviso é um elemento comum e muito presente nessas artes de rua. Artes que se baseiam na produção de encontros, acontecimentos que nos colocam diante do inédito, do desconhecido. No teatro também há uma fala corporal, como na dança, mas que não é mais somente movimento, pois são introduzidas a palavra e a cena. Estas transformam o território cênico em um espaço falado e habitado por multiplicidades21. Se o corpo do ator é, já em si mesmo, território cênico, onde o movimento dos gestos e dos olhares e as máscaras naturais do rosto são dança de afetos e jogo de emoções na lúdica construção da personagem, o espaço do palco é um prolongamento do corpo do ator e se o corpo do ator é um corpo vivo e dinâmico também o espaço do palco em que esse corpo se movimenta é um espaço vivo e dinâmico, habitado por tensões, forças, conflitos, com múltiplos centros correspondentes ao corpo dos outros atores.21 (p. 21)

Nos espaços públicos de Porto Alegre, o teatro e o circo são presenças constantes, ocupando esquinas, praças e, sobretudo, parques, fazendo das ruas, das sinaleiras ou das calçadas próximas às mesas de bares seus palcos. E nessa efervescência das artes de rua, desde 2009 acontece o Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre (FITRUPA). No site do evento, Marcelo Bones23 afirma que o festival não oferece apenas uma série de apresentações ao público, mas é proponente de um discurso reflexivo sobre a própria cidade.

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O circo tem sua expressão essencialmente pelo corpo, mas há uma busca pela superação ou subversão das capacidades desse corpo: contorcionismos, malabarismos, mágicas, clowns, equilibrismos, força. Segunda Draetta24, o público tem um papel importante, e a comunicação entre este e o artista seria, sobretudo, por meio das sensações causadas pelo desafio da própria existência. O espectador é confrontado com a tensão entre o erro e o acerto e entre vida e morte. O palhaço seria o artista que traz a denúncia e a transgressão das limitações impostas pela vida, mostrando a incoerência da obrigatoriedade do acerto24. A forte relação do circo com o espaço público é o fundamento do projeto “O Circo volta às praças” do grupo porto-alegrense Circo Híbrido. Segundo o material de divulgação do grupo sobre o projeto, o objetivo é a retomada dos espaços públicos para a apresentação de espetáculos, pois, historicamente, as praças e largos eram espaços de encontro e festejo. Segundo Rocho25, na passagem entre os séculos XIX e XX, os projetos de urbanização deram início a um processo de higienização e organização do espaço urbano e disciplinamento do convívio social em Porto Alegre, buscando dificultar a aglomeração de pessoas e induzir os grupos à circulação e ao passeio contemplativo. O disciplinamento do corpo da cidade incluiu a doutrinação do corpo das pessoas. Esses são os corpos do trabalho, da circulação rápida, do movimento cadenciado. Diferentes dos corpos circenses flexíveis, que se contorcem e equilibram, que permanecem, que quebram a norma e o ritmo, que produzem o espaço que se quer na cidade, que criam outros tempos, paradas, pausas. Rauter26 atribui uma função desterritorializante às artes, argumentando que é essa característica que faz com que a arte nos permita tocar o plano pré-individual, plano de intensidades. Quando Rauter26 traz a noção de desterritorialização, refere-se à possibilidade dos sujeitos de se abrirem e engajarem em linhas de fuga, mudando de curso e destruindo antigos territórios. A reterritorialização seria a tentativa de reinvestir fluxos desejantes na composição do novo território. Assim, após uma experiência artística, no retorno ao mundo das palavras e da racionalidade, há a possibilidade de utilizar outros ângulos de interpretação capazes de dar novos sentidos ao conhecimento e às práticas. Isso porque a experiência da arte acontece no limite entre mundo-subjetividade, está dentro e fora simultaneamente27. Essas quebras do instituído se apresentam como aberturas de um plano estético para a cidade. Plano estético no qual corpo e cidade constituem alteridades. Permanecem, assim, normas da cidade moderna, enquanto outros modos de existência são instaurados. Para os artistas da rua, o corpo tem um papel fundamental no processo de decifração de sensações, de criação e de comunicação com o público. O corpo é suporte, cenário, linguagem – gestos, movimento, ritmos, pausas (espaço e tempo). E é na relação com outros que ele se faz, ao “[...] tocar e ser tocado, ver e ser visto, sentir e dar a sentir, afectar e afectar-se”28 (p. 399). Silva28 afirma que será nessas relações entre o corpo do artista e o dos outros que a produção de desejo criará um corpo virtual, o CsO, e um “meio”, que permitirá o contato à distância. O corpo do artista é um corpo que é através dos devires, devires que partem do CsO durante o ato criativo. Corpo-arte, corpoesia.

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criação fotos (sentido horário): Mayna de Ávila, 2014, 2015

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Corpos coletivos Maria Cristina Carvalho da Silva29 conta que, percorrendo Porto Alegre para a preparação e realização da I Conferência Municipal de Saúde Mental, percebeu o surgimento de outras cidades dentro da própria cidade, a partir da “auto-organização de pessoas e grupos para forjar lugares de existência ou resistir às serializações urbanas”. Para a autora29, a cidade é protagonista, um território de multidões, de negociação, do convívio com o outro, com a diversidade, sendo suas ruas locais de encontros e de criação de coletivos. Neves30 afirma que desejar compreende a criação de mundo, a construção de modos de estar, ser e experimentar em conexão com os elementos do entorno e os diferentes arranjos possíveis entre estes. E isto só se dá no acontecimento e em conjunto. Para Deleuze31, o acontecimento é incorporal, evento que vem da mistura dos corpos e que dá o sentido dessa mistura. O desejo de deslocamento que dá início à experiência. Deslocar, pôr em movimento, é produzir a possibilidade de o outro sair do seu lugar, articular áreas de resistência e se experimentar outro, propagar a potência da vida1. A noção de coletivo assumida neste texto refere-se à proposta por Escóssia32, para a qual o termo coletivo não se refere à dicotomia indivíduo-sociedade, não podendo ser confundido nem com um social totalizado, nem com a interação entre seres individuados. O coletivo é apreendido a partir de dois planos distintos: o das formas, plano da organização, do instituído, seja individual ou coletivo; e o das forças, que é aquele da constituição/criação das formas individuais e sociais, plano de imanência, instituinte ou das relações. O coletivo seria o espaço-tempo entre o individual e o social, interstício, plano de movimento e onde se originam as mudanças. Ele não se dá a partir da mera interação entre termos já constituídos, mas, sim, a partir de uma relação de produção de novos e diferentes termos. Alguns coletivos parecem promover o que Duarte e Santos33 chamam de “perturbação criativa dos fluxos urbanos capitalistas” (p. 41), ou seja, questionam práticas e discursos, buscando mostrar outras possibilidades de ser da vida na cidade. Eles têm suas corpografias redesenhadas, corpografias de resistência, produzidas pelos usos outros que fazem da cidade. Não há intenção de tomada absoluta de poder, nem de reprodução do biopoder, mas a criação permanente de outros modos de viver a vida, de baixo para cima. A oferta desses coletivos é de alternativa, inventando “modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder, (...) mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles. Mas os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos”16 (p. 116). Construir devir-coletivo é encontrar o acesso ao não constituído e inventar outras formas de articulação, de resistência às subjetividades impostas, algo que precisa do sentir das vozes, dos corpos e do movimento34. Se o corpo será cenário para o controle, será também o de sua resistência. Essas resistências que se dão no cotidiano, onde as fissuras dão espaço a novas práticas de existência mais conectadas com as demandas dos sujeitos que a cidade não responde. “Resistir é afirmar. Resistir é criar. Resistir é produzir diferenças. Pensar os limites e potências da criação. Criação como produção de diferenças, diferenças como necessidade de experimentação”1 (p. 44). Corpos que ocupam um lugar inesperado e se lançam à desterritorialização, à criação de mundos. Puro desejo, processo, experimentação incessante. Corpos para os quais as fronteiras não são limites, mas espaços entre dois, assim como Certeau35 sugeriu. Assim, as fronteiras seriam territórios para potenciais encontros e trocas. Tais coletivos questionam não apenas o isolamento atomizado do indivíduo contemporâneo, mas também as velhas formas hegemônicas do viver em comum, baseadas em comportamentos violentos, excludentes ou de inclusão domesticadora da diferença. Segundo tal perspectiva política, tão importante quanto obter vitórias políticas concretas é engajar-se, manifestar-se e experimentar novas formas de viver coletivamente na cidade, novas formas de vida que se singularizam no plural.33 (p. 53)

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Há, assim, uma emergência de práticas corporais coletivas que são oferecidas de forma gratuita, e/ ou autogestionadas, em espaços públicos. São práticas que buscam promover o encontro, divergindo das práticas individualizantes de academias, centradas na busca do corpo e da saúde ideais. Três exemplos de coletivos que estão promovendo ações nesse sentido são: o Coletivo Namaskar, que promove o “Yoga para mudar o mundo”, grupo que se reúne em diferentes espaços públicos da cidade para a prática de yoga, agregando desde principiantes a adeptos; o Medita POA, movimento que organiza encontros em espaços públicos para a prática de meditação, yoga e danças voltadas para o despertar da consciência; e a Comunidade CirculAção, que promove encontros de danças circulares sagradas em parques e praças, buscando o prazer de dançar ao ar livre, perto da natureza.

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A cidade, para Guattari36, funcionaria como uma “máquina enunciadora”, ou seja, produz sentidos e sensações que podem operar tanto para a uniformização quanto para a liberação das subjetividades individuais e coletivas. Deleuze e Guattari11 ressaltam, porém, a importância de experimentar, buscar movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, fluxos, mas sem deixar de ter sempre um pedaço de nova terra. É preciso selecionar os bons encontros, aqueles que aumentam nossa potência. Os escapes através das linhas de fuga são capazes de alisar espaços inicialmente estriados, ampliando o movimento em direção aos espaços lisos, entre desterritorialização e reterritorialização. “Evidentemente, os espaços lisos por si só não são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários”17 (p. 214). A organização rizomática desses coletivos de multiplicidades desierarquizadas possui uma potência que não está nos pontos dessas redes, mas nas linhas, nos movimentos constantes e nas conexões múltiplas. “Faz-se multidão não necessariamente a partir de muitos corpos, mas a partir de corpos múltiplos, que se interconectam em um movimento horizontal e contínuo de resistência”37 (p. 79). Pires1 afirma que a multidão é um devir, e que a resistência se dá insistindo no poder criativo desse coletivo para construir condições de liberação e experimentação dos devires dos corpos no lugar das suas cristalizações. Por fim, são citados dois dos diversos movimentos e coletivos que vêm surgindo nesse mesmo cenário de discussão sobre os espaços públicos e os rumos do planejamento urbano: a Mobicidade(d), Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta; e o Serenata Iluminada, movimento de ocupação do Parque Farroupilha, no período noturno, buscando mais segurança e a utilização festiva e artística de espaços públicos. Durante o campo, a Mobicidade promoveu uma intervenção, chamada “E se aqui fosse uma praça?”, com o objetivo de ocupar um espaço público, que serve, habitualmente, para a passagem de carros e estacionamento, ressignificando o local na forma de uma praça. A associação preparou um telão onde foram exibidos slides com o texto (parcialmente) transcrito abaixo intercalado com exemplos de mudanças em espaços públicos de outras cidades, evidenciando a necessidade da discussão de um planejamento urbano voltado para as pessoas, e não para os carros. [...] O Espaço Público muitas vezes é visto como um espaço de passagem ou área de lazer. Nas cidades brasileiras cerca de 70% do espaço publico é destinado ao transito e estacionamento de veículos. Mas existem outros modelos que incentivam relações e interações. As mudanças não apenas criaram mais espaço para as pessoas, mas elevaram a velocidade media nos deslocamentos em veículos. [...]

A discussão também nos remete à noção de não-lugar, trabalhada por Augé em sua obra. Segundo Sá38, Augé definiu os não-lugares como o inverso dos lugares antropológicos, estes últimos marcados por serem identitários, históricos e relacionais. Exemplos de não-lugares seriam: as autoestradas, grandes supermercados, aeroportos, centros comerciais de grande porte. A disputa é também por povoar não-lugares, criar mais espaços de conexão, não de passagem. Resistir à serialização da vida e promover a parada ou a lentificação da vida que é empurrada para a velocidade e para o consumo. Além da imposição da velocidade, as cidades convivem com processos constantes de segregação social, onde o discurso da revitalização e melhoria dos 742

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Disponível em: http:// www.mobicidade.org/. Acesso em: 30 maio 2015. (d)


(e) Disponível em: https://pt-br.facebook. com/SerenataIluminada. Acesso em: 2 jun 2015.

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espaços localizados em áreas urbanas de interesse para o mercado é usado para tirar do foco o objetivo real, que é o da substituição do público que frequenta, habita e utiliza uma área por públicos de classes mais altas. Esse processo é denominado de gentrificação, segundo Rena, Berquó e Chagas37. Outro elemento utilizado como argumento é o aumento da segurança, questão que, na prática, não vem sendo resolvida pelas iniciativas de revitalização. No caso do Parque Farroupilha, o debate mais intenso que vem crescendo é sobre o seu cercamento. Debate que se insere no contexto da gentrificação e que centra seu argumento no aumento da segurança do parque e dos seus frequentadores. Segundo Ling39, cercar um espaço público não aumenta a sua segurança, apenas desloca a violência deste lugar para outro no seu entorno. Isto acontece porque os espaços públicos, além de oferecerem um local para a prática do lazer, assumem outras funções importantes nas cidades, como promover encontros democráticos entre cidadãos e servir de palco para manifestações cívicas. O autor também apresenta a situação de parques europeus que foram cercados e o caso do parque Ibirapuera, em São Paulo, como exemplos nos quais os espaços deixaram de ser ocupados pela população para protestos e resistência política e social. O que está em jogo é controlar as pessoas, designar quem tem direito a determinados espaços da cidade e aqueles que deverão ser removidos. Processo que se dá em meio à tentativa de valorização imobiliária do bairro Cidade Baixa, que fica próximo ao parque e foi, historicamente, ocupado por negros libertos e imigrantes de origem italiana, bairro dos boêmios40. O movimento Serenata Iluminada(e) surgiu em 2012, com o objetivo de ocupação do espaço público do Parque Farroupilha durante a noite, período no qual as pessoas costumam evitar parques e praças por questões relacionadas à segurança. A ocupação costuma reunir diversos grupos de pessoas e promover diferentes manifestações artísticas, manifestando-se por mais segurança, pelo direito à cidade e contra o cercamento do parque. O movimento promoveu também uma edição no Cais da Mauá, após a apresentação da proposta de “revitalização” do espaço prevista por meio de parcerias com empresas privadas. Pelbart41, em seu texto “Elementos para uma cartografia da grupalidade”, apresenta alguns tópicos conceituais diferentes entre si para ajudar a pensar a grupalidade, mas que se complementam e ajudam a pensar sobre os coletivos citados anteriormente. No primeiro tópico, destaca-se a noção de “corpo múltiplo” e o conceito de “plano de composição”. O autor argumenta que, se o corpo é definido pela nossa potência de afetar e de ser afetado, a principal questão nas relações é como os seres podem compor uns com os outros para ampliar as suas potências sem perderem as potências individuais. Assim, se os seres compõem com outros para se tornarem maiores, poderia se pensar na constituição de um “corpo múltiplo”, ou seja, um corpo grupal, constituído a partir das variações contínuas entre elementos heterogêneos em uma composição de velocidade e lentidão. E é para pensar a consistência desse conjunto de potências singulares que Pelbart41 citará o “plano de composição”, de Deleuze e Guattari, como um plano de proliferação, povoamento e contágio, onde acontecem conexões variáveis, relações de velocidade e lentidão, a dissolução de formas e pessoas, estratos e sujeitos. O segundo tópico destacado diz respeito à noção de “comum”. O autor afirma que é justamente na potência de vida da multidão que é possível identificar a principal fonte de riqueza do capitalismo, e isso fará com que o comum seja alvo de constantes tentativas de captura. Mas o comum escapa, justamente, porque esse agrupamento é fragmentado, feito de interrupção, de seres singulares e de seus encontros, ao contrário da tradicional visão da 743


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comunidade como sendo um todo fundido e uniforme. “Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria anorgânica, um corpo sem órgãos, um ilimitado (apeiron) apto às individuações as mais diversas”41 (p. 4). Para o autor, a resistência passa, assim, pela experimentação do comum, pelas modificações que promovem e pelos novos possíveis que surgem a partir disso. Esses coletivos, ao mesmo tempo em que se formam a partir de uma reunião de singularidades que se mantêm heterogêneas, se dissolvem com facilidade, dando espaço para a expressão de resistência dessas singularidades. E é nessa facilidade com que se dissolvem que reside o temor daqueles que detêm um poder em relação a esses grupos. “[...] dispersão sempre iminente de uma “presença que ocupa momentaneamente todo o espaço e, no entanto, sem lugar”41 (p. 7).

Sobre a criação Pelbart41 diz que não sabemos quanto podemos afetar e ser afetados. É necessário experimentar. Aprender a selecionar o que convém e o que não convém ao corpo, o que amplia ou reduz a sua força de existir, selecionar encontros. No caminhar da pesquisa, o olhar da fotógrafa voltou-se para retratar esses encontros. Foi necessário transformar encontros em encantos, troca de afetos, bons encontros. Encantos que viraram imagens, buscando fotografar e pensar sobre as coisas menores, não aquelas da macropolítica, mas aquelas que, no cotidiano, instauram o problema, a divergência, dão vazão às microrresistências. Com os sentidos, usando a câmera fotográfica como extensão do corpo, vasculhando os acontecimentos, ouvindo os murmúrios, sentindo os cheiros que traduzem as experiências das quais esteve próxima. Retratar e contar aquilo que pede passagem na vivência dos corpos no cotidiano da cidade, na sua superfície, e os modos como isso se dá. Os enquadramentos possibilitando a seleção da atenção e a fluidez da criação existente em quem vê a fotografia. Fotografar não é a criação de algo totalmente consciente e finalizado no momento do clique, mas algo que se constitui momentos depois, revendo a imagem formada, onde estão presentes outros elementos que sequer estão fotografados, mas que compõem sua bagagem anterior e que foi sendo ampliada ao longo do pesquisar. Lançando-se no jogo entre o movimento do corpo que busca, que investe, que cria, e o fragmento estático que é a imagem fotográfica. Buscando desacelerar o fluxo de acontecimentos para perceber as sutilezas das relações humanas, do perder-se para se encontrar outro, no outro, com o outro.

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Colaboradores Mayna Yaçanã Borges de Ávila participou da elaboração do artigo, da revisão bibliográfica, de sua discussão e redação e da revisão do texto, bem como da criação artística. Alcindo Antônio Ferla participou de discussões, da revisão e da aprovação final do texto. Referências 1. Pires E. Cidade ocupada. Rio de Janeiro: Aeroplano; 2007. (Tramas urbanas; v.2). 2. Rosário NM. Mitos e cartografias: novos olhares metodológicos na comunicação [acesso 30 Abr 2014]. Disponível em: http://corporalidades.com.br/site/wp-content/uploads/ downloads/2013/12/2008_4.pdf. 3. Achutti LER. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS, Tomo Editorial; 2004. 4. Baudelaire C. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996. 5. Assmann SJ. Por uma política da vida a partir da relação entre corpo e vida. In: Fraga AB, Carvalho YM, Gomes IM, organizadores. As práticas corporais no campo da saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 23-51. 6. . Gallagher C, Laqueur T. The making of the modern body: sexuality and society in the nineteenth century, 1987. In: Fraga AB, organizador. Corpo, identidade e bom-mocismo: cotidiano de uma adolescência bem-comportada. Belo Horizonte: Autêntica; 2000. p. 97-103. 7. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2001. 8. Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 12a ed. Rio de Janeiro: Graal; 1997. 9. Hissa CEV, Nogueira MLM. Cidade-corpo. Rev UFMG. 2013; 20(1):55-77. 10. Ramacciotti BL. Deleuze: “como criar um corpo sem órgãos”? Psican Barroco Rev. 2012; 10(2):112-26. 11. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34; 1996. (Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 3). 12. Sant’Anna DD. Horizontes do corpo. In: Bueno ML, Castro AL, organizadores. Corpo, território da cultura. São Paulo: Annablume; 2005. p. 119-34. 13. Jacques PB, Britto FD. Corpografias urbanas: as memórias das cidades nos corpos. Semin Hist Cid Urban. 2008; 10(3):1-11. 14. Sennet R. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record; 2001. 15. Silva EA. Corpo, técnica, cidade: artesanais entre pesquisa e cotidiano. Polis Psique. 2011; 1(2):111-29. 16. Deleuze G. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Ed. 34; 1992. 17. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34; 1997. (Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 5). 18. Silva LT. Acontecimento urbano: os escapes na cidade. [dissertação]. Salvador (BA): Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia; 2007. 19. Cartaxo Z. Ações performáticas na cidade: o corpo coletivo [acesso 20 Maio 2015]. Disponível em: http://webartes.dominiotemporario.com/performancecorpopolitica/ textes%20pdf/a%C3%A7%C3%B5es%20performaticas%20na%20cidade%20o%20 corpo%20coletivo%20zalinda%20cartaxo.pdf. 20. Lévy P. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34; 1996.

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CRIAÇÃO

Neste texto são apresentados os resultados de um projeto de criação fotográfica, desenvolvido pela primeira autora do trabalho, inspirado pela pergunta de Espinosa “O que pode o corpo?”, fotografando acontecimentos cotidianos relacionados ao corpo e às suas relações com os espaços públicos do centro da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. Após a experiência em campo foram selecionados dois temas, o corpo arte e os corpos coletivos, para construir uma reflexão a partir de um componente textual e outro visual, oferecendo ao leitor diferentes linguagens, as dizibilidades e as visualidades das relações entre corpo e cidade, capazes de criar novas corpografias: corpografias de resistência.

Palavras-chave: Saúde coletiva. Corpo. Cidade. Arte de rua. Coletivos. What a body can do? Bodygraphics of resistance In this paper the results of a photographic creation developed by the first author were presented, inspired by Spinoza’s question “What can a body do?”, by photographing everyday events related to the body and its relations with the public spaces in the center of Porto Alegre, RS, Brazil. After the field experience two themes were selected, the body art and the collective bodies, to build a reflection presented as a textual component and a visual component, offering the reader different languages, the speakable and the visible of the relationship between body and city, capable of creating new bodygraphies: bodygraphies of resistance.

Keywords: Public health. Body. City. Street art. Collectives ¿Qué puede hacer el cuerpo? Cuerpografías de resistencia En este texto se presentan los resultados de un proyecto de creación fotográfica, desarrollado por la primera autora del trabajo, inspirado por la pregunta de Espinosa “¿Qué puede el cuerpo?”, fotografando acontecimientos cotidianos relacionados con el cuerpo y sus relaciones con los espacios públicos del centro de la ciudad de Porto Alegre, RS, Brasil. Después de la experiencia en campo se seleccionaron dos temas, el cuerpo arte y los cuerpos colectivos, para construir una reflexión desde un componente textual y otro visual, ofreciendo al lector diferentes lenguajes, las afirmaciones y las visualidades de las relaciones entre cuerpo y ciudad, capaces de crear nuevas corpografías: corpografías de resistencia.

Palabras clave: Salud pública. Cuerpo. Ciudad. Arte en la calle. Colectivos.

Submetido em 29/06/2016. Aprovado em 29/11/2016.

748

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2017; 21(62):731-48


INTERFACE Superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes

Pierre Lévy

2017; 21(62) ISSN 1807-5762

UNESP

2017; 21(62)


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