v.21 n.63, out./dez. 2017

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a a Filosofia, as Artes e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy, Arts and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la la Filosofia, las Artes y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITOR-CHEFE/CHIEF EDITOR/EDITOR JEFE Antonio Pithon Cyrino, Unesp EDITORES/EDITORS/EDITORES Denise Martin, Unifesp Lilia Blima Schraiber, USP EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORES JUNIOR/JUNIOR EDITORS/EDITORES JUNIOR Francini Lube Guizardi, Fiocruz Tiago Rocha Pinto, UFRN EDITORES ASSISTENTES/ASSISTANT EDITORS/EDITORES ASISTENTES Ana Flavia Pires Lucas D’Olveira, USP Claudio Bertolli Filho, Unesp Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES ASSOCIADOS/ASSOCIATE EDITORS/EDITORES ASOCIADOS Alejandro Goldberg, UBA, Argentina Ana Domínguez Mon, UBA, Argentina Aylene Emilia Moraes Bousquat, USP Cássio Silveira, FCM, Santa Casa Charles Dalcanale Tesser, UFSC Chiara Pussetti, Universidade de Lisboa, Portugal Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, UFRGS Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elisabeth Meloni Vieira, USP Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Janine Miranda Cardoso, FioCruz Joana Raquel Santos de Almeida, Universidade de Londres, Inglaterra Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa Luciano Bezerra Gomes, UFPB Marcelo Viana da Costa, UERN Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Mónica Petracci, UBA, Argentina Patrícia Natalia Schwartz, UnB Rosamaria Giatti Carneiro , UnB Rosana Teresa Onocko Campos - Unicamp Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITOR DE DEBATES/DEBATES EDITOR/EDITOR DE DEBATES Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti, Fiocruz EDITORA DE RESENHAS/ REVIEWS EDITOR /EDITORA DE RESEÑAS Francini Lube Guizardi, Fiocruz

EDITOR DE ENTREVISTAS/INTERVIEWS EDITOR/EDITOR DE ENTREVISTAS Pedro Paulo Gomes Pereira, Unifesp EDITORA DE CRIAÇÃO/CREATION EDITOR/EDITORA DE CREACIÓN Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Juliana Araújo Silva, Unesp Renata Monteiro Buelau, USP EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistant/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Rodrigo A. Chiarelli Gonçalves Assistente editorial/Editorial assistant/Asistente editorial Renato Ribeiro Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) Liane Christine L. P. Pilon (Português/Portuguese/Potugués) Félix Héctor Rígoli (Inglês/English/Inglés) Maria Jesus Carbajal Rodriguez (Espanhol/Spanish/Español) Web design Ester Campos Mello de Andrade Manutenção do website/Website support/Manutención del sitio Nieli de Lima

Capa/Cover/Portada: Felipe Alves, 2017


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alcindo Ferla, UFRGS Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Aluísio Gomes da Silva Junior, UFF André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE Angelica Maria Bicudo, Unicamp António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Fernando Altair Pocahy, UERJ Fernando Peñaranda Correa, UFPr Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz George Dantas de Azevedo, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Gustavo Nunes de Oliveira, UnB Helena Maria Scherlowski Leal David, UERJ Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE Jairnilson da Silva Paim, UFBa Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Miguel Rasia, UFPr José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Lia Geraldo da Silva Batista, UFPE Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp

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Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marco Akerman, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Raquel Rigoto, UFCE Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Ricardo Sparapan Pena, UFF Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sergio Tavares de Almeida Rego, Fiocruz Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Túlio Batista Franco, UFF


APOIO/SPONSOR/APOYO Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp Fundação para o Vestibular da Unesp - Vunesp Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Bibliografia Brasileira de Educação

<http://www.inep.gov.br> . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . Indice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Iresie) <http://www.iisue.unam.mx/iresie/revistas_analizadas.php> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . SciELO Brasil/SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . SciELO Citation Index (Thomson Reuters) <http://thomsonreuters.com/scielo-citationindex/> . SciELO Saúde Pública <www.scielosp.org.br> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com>

TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br


Uma textura de filme sujo com manchas de pó fino e resíduo de mancha de água . Criação: Felipe Alves (Design-Gráfico) 2017

ISSN 1807-5762

EDUCAÇÃO ADOLESCÊNCIA

CUIDADOS PALIATIVOS

SAÚDE DA CRIANÇA

FILOSOFIA

DIREITOS HUMANOS

ECOLOGIA DE SABERES EM SAÚDE

GLOBALIZAÇÃO RACIONALIDADES LEIGAS

SAÚDE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO CULTURA PARTICIPATIVA DEMOCRACIA TRABALHO TERAPIA OCUPACIONAL PSICANÁLISE

MODOS DE SUBJETIVAÇÃO MODELO MÉDICO HEGEMÔNICO BIOMEDICALIZAÇÃO MERCADO E SAÚDE DROGAS EDUCAÇÃO SEXUAL GÊNERO ARTE-CULTURA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

COMUNICAÇÃO interface

comunicação, saúde e educação 2017: 21(63)


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, 2017; 21(63) Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2017; 21(63)

editorial 753

Zika, uma agenda de pesquisa para (o pensar) nas Ciências Sociais e Humanas em Saúde Rosamaria Carneiro

dossiê O governo da Saúde Mental em Portugal e no Brasil 759

Apresentação

763

Loucura e diversidade cultural: inovação e ruptura nas experiências de arte e cultura da Reforma Psiquiátrica e do campo da Saúde Mental no Brasil

Maurice de Torrenté; Mônica Nunes

Paulo Amarante; Eduardo Henrique Guimarães Torre

775

Quando a cidade “escuta vozes”: o que a democracia tem a aprender com a loucura Simone Mainieri Paulon

787

O fosso de políticas. A saúde mental global em um país semi-periférico (Portugal, 1998-2016) Tiago Pires Marques

799

Racionalidades leigas e governação da Saúde Mental em Portugal Fátima Alves; Karine Wlasenko Nicolau

artigos 811

Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero Ana Paula Müller de Andrade; Sônia Weidner Maluf

823

Conexões na transformação do sofrimento psíquico: articulação entre memória e história Cláudia Pellegrini Braga

833

Saúde mental e atenção básica no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas Francéli Francki dos Santos; Alcindo Antônio Ferla

845

Do tratamento moral à atenção psicossocial: a terapia ocupacional a partir da reforma psiquiátrica brasileira Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri; Abílio da Costa-Rosa

857

Produção de cuidado em saúde centrado no trabalho vivo: existência de vida no território da morte Magda de Souza Chagas; Ana Lúcia Abrahão

869

Necessidades da vida na morte

881

Ambivalências no cuidado em saúde mental: a ‘loucura’ do trabalho e a saúde dos trabalhadores. Um estudo de caso da clínica do trabalho

Denise Stefanoni Combinato; Sueli Terezinha Ferrero Martin

João de Deus Gomes da Silva; Giovanni Gurgel Aciole; Selma Lancman

893

Sentidos de saúde, cuidado e risco para adolescentes residentes na favela da Maré, no Rio de Janeiro, Brasil Marcia Rodrigues Lisboa; Katia Lerner

907

Cultura participativa: um processo de construção de cidadania no Brasil

Carla Aparecida Arena Ventura; Marcela Jussara Miwa; Mauro Serapioni; Márjore Serena Jorge

921

Para uma “ecologia de saberes” em saúde: um convite dos terreiros ao diálogo

Rafael Afonso da Silva; Juan Carlos Aneiros Fernandez; Daniele Pompei Sacardo

933

Percepções de gestores de saúde e facilitadores da estratégia Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) em uma área do Nordeste do Brasil e Peru Alfredo Borda-Olivas; Matilde Palma-Ruiz; João Joaquim Freitas do Amaral

educação

ISSN 1807-5762

945 O uso das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) nos centros de saúde: a visão dos profissionais na Catalunha, Espanha Martí Oliver-Mora; Lupicinio Íñiguez-Rueda

957 Um grande surto de Legionella ausente do debate público Felisbela Lopes; Rita Araújo

969 Cuidados paliativos sob a ótica de familiares de pacientes com neoplasia de pulmão

Maria Edilania Matos Ferreira Furtado; Darla Moreira Carneiro Leite

981 Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (Projeto SBBrasil 2010): que propõem os coordenadores para futuros inquéritos? Fabíola Fernandes Soares; Maria do Carmo Matias Freire; Sandra Cristina Guimarães Bahia Reis

991 Conhecimentos e expertises de universidades tradicionais para o desenvolvimento de cursos a distância da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS) Rodrigo Alcantara de Carvalho; Miriam Struchiner

debates 1005 Disputas inter-capitalistas, biomedicalização e modelo médico hegemônico Celia Iriart; Emerson Elias Merhy

1017 Adele E. Clarke 1020 Sergio Resende Carvalho; Cathana Freitas de Oliveira; Henrique Sater Andrade

1024 Alcindo Antônio Ferla 1027 Réplica

espaço aberto 1031 Considerações para a elaboração de programas de prevenção do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) para as mulheres lésbicas e bissexuais Diana M. Palma; Linda Teresa Orcasita

entrevistas 1039 Estratégias, expertise e experiências de ouvir vozes: entrevista com Cristina Contini

Luciane Prado Kantorski; Ana Paula Müller de Andrade; Mario Cardano

resenhas 1049 Maternidade no novo ciclo: análise crítica do livro Maternidades en verbo: identidades, cuerpos, estrategias, negociaciones, de Patricia K. N. Schwarz Mónica Petracci

notas breves 1053 O Centro de Saúde-Escola Samuel B. Pessoa (Butantã, São Paulo, Brasil) completa 40 anos Mariana Arantes Nasser; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso; José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres; Ademir Lopes Junior; Miriam de Toledo Leitão Figueiro; Ricardo Rodrigues Teixeira; Rubens Kon; Maria Goreti Barros Salgueiro Pereira; Norma Sueli Colucci da Silva; Yessame Maria Gregório Correa; Lygia Maria de França Pereira

criação 1057 A seção de Criação na revista Interface: vinte anos de experimentação Elizabeth Lima; Eliane Dias de Castro; Eduardo Almeida; Gisele Asanuma; Juliana Silva; Renata Buelau; Mariangela Quarentei; Ricardo Teixeira


comunicação

saúde

2017; 21(63)

editorial 753

Zika virus, a research agenda for (thinking about) the Social and Human Health Sciences Rosamaria Carneiro

dossier The Mental Health government in Portugal and Brazil 759

Presentation

763

Madness and cultural diversity: innovation and rupture in experiences of art and culture from psychiatric reform and the field of Mental Health in Brazil

Maurice de Torrenté; Mônica Nunes

Paulo Amarante; Eduardo Henrique Guimarães Torre

775

When the city “hears voices”: what democracy has to learn from madness Simone Mainieri Paulon

787

The policy gap. Global mental health in a semi-peripheral country (Portugal, 1998-2016) Tiago Pires Marques

799

Lay rationalities and Mental Health governance in Portugal Fátima Alves; Karine Wlasenko Nicolau

811

Connections on transformation of mental suffering experience: relationship between memory and history Mental health and primary care in alcohol and drug users care

From moral treatment to the psychosocial care: occupational therapy in the aftermath of Brazilian psychiatric reform

Care production in health team focused on living work: the existence of life on death territory Magda de Souza Chagas; Ana Lúcia Abrahão

869

Vital needs in the dying process

881

Ambivalences in mental health care: craziness at work and health workers. A case study of the labor health clinic

Denise Stefanoni Combinato; Sueli Terezinha Ferrero Martin

João de Deus Gomes da Silva; Giovanni Gurgel Aciole; Selma Lancman

893

957 Why has a large Legionnaires’ disease outbreak been absent from public debate? Felisbela Lopes; Rita Araújo

969 Palliative care seen from the point of view of the lung cancer patients’ families

Maria Edilania Matos Ferreira Furtado; Darla Moreira Carneiro Leite

981 The 2010 Brazilian Oral Health Survey (SBBrasil 2010 Project): what do the coordinators propose for future surveys? Fabíola Fernandes Soares; Maria do Carmo Matias Freire; Sandra Cristina Guimarães Bahia Reis

991 Knowledge and expertise from traditional universities for the development of Open University of Brazilian National Health System (UNA-SUS) distance courses Rodrigo Alcantara de Carvalho; Miriam Struchiner

debates 1005 Inter-capitalistic disputes, biomedicalization and hegemonic medical model Celia Iriart; Emerson Elias Merhy

1024 Alcindo Antônio Ferla 1027 Reply

Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri; Abílio da Costa-Rosa

857

Martí Oliver-Mora; Lupicinio Íñiguez-Rueda

De-institutionalization experiences in the Brazilian psychiatric reform: a gender approach

Francéli Francki dos Santos; Alcindo Antônio Ferla

845

945 The use of information and communication technologies (ICTs) in health centers: the practititoners’ point of view in Catalonia, Spain

1017 Adele E. Clarke 1020 Sergio Resende Carvalho; Cathana Freitas de Oliveira;

Cláudia Pellegrini Braga

833

ISSN 1807-5762

articles Ana Paula Müller de Andrade; Sônia Weidner Maluf

823

educação

Health, care and risk: what do they mean to adolescents living in the Mare favela, Rio de Janeiro, Brazil

Henrique Sater Andrade

open space 1031 Considerations for the design of Human Immunodeficiency Virus (HIV) prevention programs for lesbian and bisexual women Diana M. Palma; Linda Teresa Orcasita

interviews 1039 Strategies, expertise and experience of hearing voices: interview with Cristina Contini

Luciane Prado Kantorski; Ana Paula Müller de Andrade; Mario Cardano

reviews 1049 Critical analysis of the book Maternidades en verbo: identidades, cuerpos, estrategias, negociaciones, by Patricia K.N.Schwarz Mónica Petracci

brief notes 1053 The School Health Center Samuel Pessoa (Butanta, Sao Paulo, Brazil) completes 40 years

907

Participatory culture: citizenship-building process in Brazil Carla Aparecida Arena Ventura; Marcela Jussara Miwa; Mauro Serapioni; Márjore Serena Jorge

Mariana Arantes Nasser; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso; José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres; Ademir Lopes Junior; Miriam de Toledo Leitão Figueiro; Ricardo Rodrigues Teixeira; Rubens Kon; Maria Goreti Barros Salgueiro Pereira; Norma Sueli Colucci da Silva; Yessame Maria Gregório Correa; Lygia Maria de França Pereira

921

Towards an “ecology of lore and knowledge” in health: an invitation from the terreiros to dialogue

creation

Marcia Rodrigues Lisboa; Katia Lerner

Rafael Afonso da Silva; Juan Carlos Aneiros Fernandez; Daniele Pompei Sacardo

933

Perceptions of health managers and facilitators of the Integrated Management of Childhood Ilness (IMCI) in Northeastern Brazil and Peru Alfredo Borda-Olivas; Matilde Palma-Ruiz; João Joaquim Freitas do Amaral

1057 The Creation section in Interface: twenty years of experimentation

Elizabeth Lima; Eliane Dias de Castro; Eduardo Almeida; Gisele Asanuma; Juliana Silva; Renata Buelau; Mariangela Quarentei; Ricardo Teixeira


comunicação

saúde

2017; 21(63)

editorial 753

Zika, una agenda de investigación para (el pensar) en las Ciencias Sociales y Humanas en Salud Rosamaria Carneiro

dosier O gobierno de la Salud Mental en Portugal y Brasil 759

Presentación

763

Locura y diversidad cultural: innovación y ruptura en las experiencias de arte y cultura de la reforma psiquiátrica y del campo de la Salud Mental en Brasil

Maurice de Torrenté; Mônica Nunes

Paulo Amarante; Eduardo Henrique Guimarães Torre

775

Cuando la ciudad “escucha voces”: lo que la democracia puede aprender con la locura Simone Mainieri Paulon

787

799

El foso de políticas. La salud mental global en un país semiperiférico (Portugal, 1998-2016) Tiago Pires Marques Racionalidades legas y gobernanza de la Salud Mental en Portugal Fátima Alves; Karine Wlasenko Nicolau

artículos 811

Experiencias de desinstitucionalización en la reforma psiquiátrica brasileña: una bordaje de género Ana Paula Müller de Andrade; Sônia Weidner Maluf

823

Conexiones en la transformación de la experiencia del sufrimiento síquico: articulación entre memoria e historia Cláudia Pellegrini Braga

833

Salud mental y atención primaria en atención a los usuarios de alcohol y otras drogas Francéli Francki dos Santos; Alcindo Antônio Ferla

845

Del tratamiento moral a la atención psicosocial: la terapia ocupacional a partir de la reforma psiquiátrica brasileña Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri; Abílio da Costa-Rosa

857

Producción de cuidado en salud centrado en el trabajo vivo: existencia de vida en el territorio de la muerte Magda de Souza Chagas; Ana Lúcia Abrahão

869

Necesidades de la vida en la muerte

881

Ambivalencias en el cuidado de salud mental: la ‘locura’ del trabajo y la salud de los trabajadores. Un estudio de caso de la clínica del trabajo

Denise Stefanoni Combinato; Sueli Terezinha Ferrero Martin

João de Deus Gomes da Silva; Giovanni Gurgel Aciole; Selma Lancman

893

Sentidos de salud, cuidado y riesgo para adolescentes residentes en la Favela da Maré, en Río de Janeiro, Brasil Marcia Rodrigues Lisboa; Katia Lerner

907

Cultura participativa: un proceso de construcción de ciudadanía en Brasil

Carla Aparecida Arena Ventura; Marcela Jussara Miwa; Mauro Serapioni; Márjore Serena Jorge

921

Para una “ecología de saberes” en salud: una invitación de los terreiros al diálogo

Rafael Afonso da Silva; Juan Carlos Aneiros Fernandez; Daniele Pompei Sacardo

933

Percepciones de gestores de salud y facilitadoresde la estrategia Atención Integrada a las Enfermedades Prevalentes (AIEPI) en una zona del Noreste de Brasil y Perú Alfredo Borda-Olivas; Matilde Palma-Ruiz; João Joaquim Freitas do Amaral

educação

ISSN 1807-5762

945 El uso de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) en los centros de salud: la visión de los profesionales en Cataluña, España Martí Oliver-Mora; Lupicinio Íñiguez-Rueda

957 Un gran brote de Legionella ausente del debate público Felisbela Lopes; Rita Araújo

969 Cuidados paliativos desde la óptica de familiares de pacientes con neoplasia de pulmón

Maria Edilania Matos Ferreira Furtado; Darla Moreira Carneiro Leite

981 Encuesta Nacional de Salud Bucal (Proyecto SBBrasil 2010): ¿qué proponen los coordinadores para futuros inquéritos?

Fabíola Fernandes Soares; Maria do Carmo Matias Freire; Sandra Cristina Guimarães Bahia Reis

991 Conocimientos y expertises de universidades tradicionales para el desarrollo de cursos a distancia de Universidad Abierta del Sistema Brasileño de Salud (UNA-SUS) Rodrigo Alcantara de Carvalho; Miriam Struchiner

debates 1005 Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico Celia Iriart; Emerson Elias Merhy

1017 Adele E. Clarke 1020 Sergio Resende Carvalho; Cathana Freitas de Oliveira; Henrique Sater Andrade

1024 Alcindo Antônio Ferla 1027 Respuesta

espacio abierto 1031 Consideraciones para la elaboración de programas de prevención del Virus de la Inmunodeficiencia (VIH) para las mujeres lesbianas y bisexuales Diana M. Palma; Linda Teresa Orcasita

entrevistas 1039 Estrategias, expertise y experiências de oír voces: entrevista con Cristina Contini Luciane Prado Kantorski; Ana Paula Müller de Andrade; Mario Cardano

reseñas 1049 Análisis crítico del libro Maternidades en verbo: identidades, cuerpos, estrategias, negociaciones, de Patricia K.N.Schwarz Mónica Petracci

notas breves 1053 El Centro de Salud-Escuela Samuel B. Pessoa (Butantã, São Paulo, Brasil) cumple 40 anõs

Mariana Arantes Nasser; Ana Sílvia Whitaker Dalmaso; José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres; Ademir Lopes Junior; Miriam de Toledo Leitão Figueiro; Ricardo Rodrigues Teixeira; Rubens Kon; Maria Goreti Barros Salgueiro Pereira; Norma Sueli Colucci da Silva; Yessame Maria Gregório Correa; Lygia Maria de França Pereira

creación 1057 La sección de Creación en Interface: veinte años de experimentación

Elizabeth Lima; Eliane Dias de Castro; Eduardo Almeida; Gisele Asanuma; Juliana Silva; Renata Buelau; Mariangela Quarentei; Ricardo Teixeira


Zika, uma agenda de pesquisa para (o pensar) nas Ciências Sociais e Humanas em Saúde Em toda sociedade são gerados não só padecimentos, mas atividades de atenção a eles. E dada a constante emergência e recorrência das diferentes variedades de padeceres, que vão desde as doenças crônicas até as consequências das violências, passando pelas pequenas dores da vida, todo sujeito e grupo social produz e reproduz representações, práticas e experiências sobre pesares, angústias, mal-estares e medos que os afetam1. (p. 267)

(a)

http://www.who.int/ csr/disease/en/

editorial

DOI: 10.1590/1807-57622017.0404

O mundo foi recentemente assolado com a noticia de uma nova epidemia. Dois eventos mundiais, a Copa do Mundo (2014) e as Olímpiadas (2016), aconteceram no Brasil, uma sociedade afetada pelo mosquito Aedes aegypti, um mosquito infectado pelo vírus da dengue, do chikungunya e, por último, pelo Zika virus. Um vetor para muitos males, mas também um epicentro analítico. Esse pequeno ser vivo, preto com listras brancas, que vive em águas limpas e que poderia passar desapercebido, tem avessamente mobilizado pessoas, relações sociais, corpos, leis, políticas públicas, direitos, organismos internacionais e nações. Mas o reverso também acontece. O próprio mosquito, esse pequeno ser da natureza, foi e tem sido (re)criado pelos Estados, desigualdade social, relações de produção, cidades desordenadas, atores sociais, Microbiologia, Epidemiologia, Clínica e assim sucessivamente. O interessante é que, em tais processos pendulares entre criador e criatura, parece ocorrer o mencionado pelo antropólogo argentino Eduardo Menéndez1 em “Sujeitos, saberes e estruturas”: reproduzimos representações, práticas e experiências sobre os adoecimentos e, assim, em última instância, a todo o tempo, os criamos. Esse processo é o que exatamente nos interessa e funciona como pauta de reflexão para as Ciências Sociais e Humanas em Saúde, para as quais este editorial se dirige, posto que o seu olhar ampliado e descentrado tensiona leituras puramente biomédicas. O Zika virus figura, atualmente, ao lado do que foi a gripe aviária em 2003, a influenza H1N1 em 2009 e o ebola em 2011, uma situação, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de “emergência de saúde pública internacional”(a). Em primeiro de fevereiro de 2016, tornou-se oficialmente uma preocupação mundial e institucional, mas muito antes disso já havia tocado casas miúdas de pequenas cidades, casais, afetos e emoções, barrigas e fetos2. Com isso, parece-nos, cada vez mais, que não podemos olhar para tal fato isoladamente, seja em uma escala macro ou em uma mirada microscópica. Não se trata, tão somente, de um assunto da Microbiologia, da vigilância sanitária, da Neurologia ou da Epidemiologia. Nem tampouco somente da gestão de políticas de saúde, prefeituras, Estados, políticas de fumigação, saúde da família, táticas de erradicação do mosquito ou linhas de cuidado para crianças e mães afetadas pelo vírus. Não só. Não parece-nos se tratar também somente de uma consequência das mazelas e desigualdades sociais estudadas e tematizadas pela Ciência Política, Sociologia ou Economia. E muito menos de estimulação precoce da Terapia Ocupacional, ou do desenvolvimento fetal do campo da Ginecologia e da reprodução ou, ainda, do debate sobre a legalização do aborto no Brasil. Não só. Ou não somente, mas talvez muitos desses aspectos a um só tempo. Ao pensar sobre a epidemia e a “consequente” microcefalia no Brasil, saltanos aos olhos como esse ser miúdo, o mosquito infectado que tanto já viveu entre nós, opera como epicentro analítico de muitas e diferentes leituras e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2017; 21(63):753-7

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EDITORIAL

áreas do conhecimento. Também salta-nos aos olhos como o enfoque relacional de análise, sustentado por Menéndez, funciona nessas situações, colocandonos diante de temas emergentes e transversais, que, antes de pertencerem a determinados territórios do saber, embaralham fronteiras, somando o micro ao macro, a biologia às emoções, os sujeitos às estruturas e assim sucessivamente. Se Menéndez assim se posiciona ao pensar sobre os estudos de Saúde Coletiva e/ou Saúde Pública, Bruno Latour3, um antropólogo francês, há um certo tempo tem escrito sobre o que chama de teoria ator-rede ou antropologia simétrica para pensar a “reagregação do social” e fugir dos esquemas epistemológicos dicotômicos que nos foram colocados com a ciência moderna. Ao elaborar tal teoria, Latour procura escapar da ideia de ação pautada na causa e consequência, colocando a ideia de rede como eventos distribuídos e não conectados por efeitos. Por isso, a rede não está lá pronta, mas é construída cotidianamente, por humanos e não humanos, coisas e pessoas, com o mesmo peso e influência. Trata-se de uma aposta alinhada ao que poderia ser pensado como pós-estruturalismo, mas muito mais aos pensamentos que buscam romper com o pêndulo das Ciências Sociais, descritos por Jeffrey Alexander4. Ou seja, leituras de mundo ora calcadas e ditadas por/em estruturas e instituições, à la Escola Francesa de Sociologia e seus discípulos, ora de leituras outras, lastreadas na escolha racional do ator, a principio weberianas, e que depois, pouco a pouco, resultaram nos debates mais recentes sobre agency. Latour, por um lado, e Menéndez, de outro, assim como tantos outros autores que poderiam ser aqui citados, conclamam-nos a outros modos de pensar: para além das categorias fixas de nosso modo de pensar modernos, mas, sobremaneira, relacionais, simétricos e reagregadores de dimensões outrora separadas, fora do movimento teórico das Ciências Sociais mencionado. No que isso resulta efetivamente? Essa resposta é ainda pouco palpável. Porém, no limite, pode nos lançar a formas de apreensão de mundo menos classificatórias e separatistas, mais transversais, emergentes e trans e/ou interdisciplinares, talvez a modos de pensar em rede. Termo aliás também empregado por Tim Ingold5, igualmente disposto a superar formas arcaicas de apreender o mundo. Se esse movimento acontece na Antropologia mais recente, na História também se verifica com o pensamento foucaultiano, sobretudo, em suas últimas publicações, sobre a ética e o cuidado de si, mas, já antes disso, quando nos coloca diante da ideia de que o poder sempre é ou resulta também em resistência, em um movimento de dois em um, em algo que soma, e é relacional. No campo da Psicologia e da Educação, esforços semelhantes também poderiam ser citados ao pensarmos na corrente da esquizoanálise e na noção de “rizoma” de Guattari e Deleuze6 ou no “pensar complexo” de Edgar Morin7. Ora, o campo de estudos da saúde não poderia passar ileso a um movimento geral de reflexão sobre o nosso pensar e, por isso, recentemente também tem se visto as voltas com ideias como transdisciplinaridade na Saúde Coletiva, um campo de práticas e saberes que busca coadunar o olhar macro da Epidemiologia ao olhar social das Ciências Sociais e Humanas e ao das estruturas políticas e administrativas tematizadas pela Gestão e Planejamento. Esse olhar por cima, a partir do meio e dos atores, mas também por meio de suas estruturas, complexifica a compreensão do fenômeno social de adoecer e cuidar, mostrandonos muitas esquinas e lócus de debate em intersecção com temas antes impensados por determinadas fronteiras do saber. A epidemia de Zika no Brasil e no mundo nos coloca diante da possibilidade desse pensar complexo ou complexificante e, por isso, emergente. Por meio dessa situação, tomamos de saída o microscópico e biológico para refletir sobre temáticas gerais e políticas. Senão, vejamos: 754

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O Zika virus (ZIKAV) foi isolado pela primeira vez em 1947 em macacos Rhesus na floresta de Zika em Uganda. Em 1948, foi encontrado nos mosquitos Aedes, e em 1952 foi isolado em humanos. Em 2007, o primeiro surto foi descrito em uma pequena ilha da Micronésia. Em 2013, houve um segundo surto na Polinésia Francesa. O terceiro grande surto da infecção começou no nordeste do Brasil, em maio de 2015, e ainda está em curso. Em outubro de 2015, quatorze estados brasileiros relataram casos de infecção e, na Colômbia, foram relatados casos entre os nativos8. (p. 431)

O vírus foi isolado nos laboratórios, mas logo atingiu Estados e organismos internacionais. Do considerado elemento da natureza, passou-se rapidamente e em larga escala à vida social doZika virus. Um organismo que, longe de isolar, tem conectado seres humanos e não humanos, natureza e cultura. Da epidemia podemos, por exemplo e escolha, deter-nos sobre as suas origens, sua mutação, suas características e sua viagem pelos seres humanos e, depois, por países e continentes. Especular sobre a sua entrada no Brasil e seus portadores. Pode-se, por outro lado, deter-se no mapeamento de regiões mais afetadas e suas características sanitárias e sociais, observando regionalidade e fragilidade social no Brasil contemporâneo. De maneira similar, pode-se um traçar perfil sociossanitário das pessoas acometidas pelo Zika, em termos de idade, sexo, raça/cor, residência, número de filhos, conjugalidade e assim por diante. Podese discutir historicamente sobre a erradicação do mosquito décadas atrás e a sua existência tão massiva atualmente. Pode-se, enfim, pensar concentradamente sobre o Aedes. Uma vez orientados aos seres humanos, seguindo pela teoria ator-rede, chegamos às pessoas infectadas e às políticas de cuidado. Um território de trabalhos que podem versar sobre os cuidados na gestação das mulheres infectadas, sobre a clínica dos sintomas e terapêuticas propostas e sobre o desenho de diagnósticos2. Esses mesmos estudos podem tangenciar os campos da Psicologia e outros campos que se dediquem ao estudo das emoções da mãe que gesta e que vai parir uma criança com deficiência, da saúde dos cuidadores, da assistência ao parto de bebês com microcefalia e/ou dedicados à análise da postura do Estado diante de tal emergência. Depois do nascimento da criança, outro leque de questões também se abre. Como vivem essa criança e essa mãe? Quais são os serviços de saúde destinados a elas e como operam efetivamente? No que consiste a “estimulação precoce”? Quais são as leituras sociais de deficiência? Como mulheres-mães e profissionais se organizam ao redor das necessidades dessa criança com microcefalia? Como os Estados mais e menos afetados se relacionam em termos de cooperação internacional? Como o Estado cuida de sua população e a protege de novas mazelas da epidemia? De que maneira, por exemplo, essas famílias têm recebido o benefício de prestação continuada (BPC) do governo brasileiro? Chega-se igualmente ao debate sobre aborto legal e interrupção da gravidez nos casos de microcefalia confirmada, abrindo espaço para reflexões sobre direitos sexuais e reprodutivos na atualidade e ética. A repercussão midiática da epidemia e o pânico social dela advindo poderia também, por exemplo, interessar aos estudos de comunicação ou imagem e som, de maneira geral. Assim sucessivamente, muitas podem ser as perguntas, as abordagens e as áreas de estudo relacionadas ao Zika, definitivamente uma agenda de pesquisa extremamente atual. Em outro sentido, deparamo-nos com a própria pesquisa sobre Zika nas Ciências Biológicas e nas Ciências Sociais, sobre os seus modos operandi, campos

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(b) Para mais informações, acesse http://portalsaude. saude.gov.br/index.php/ renezika.

e orientações de saberes e metodologias empregadas. Viu-se, com o desenho da Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas (Renezika)(b) no Ministério da Saúde, que equipes multidisciplinares foram constituídas a fim de compreender o fenômeno em suas múltiplas faces. Dessas equipes participam sociólogos, antropólogos, médicos, epidemiólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, psicólogos, administradores públicos, sanitaristas, entre tantos outros. Todos estão debruçados sobre o fenômeno que se inicia e tem como centro o pequeno mosquito, mas se estendem a tantos outros assuntos: políticas publicas, mídia, movimentos de mães, deficiência, serviços de saúde, vigilância sanitária, ética, aborto e saúde global. Sem mencionar que nesse interim também as metodologias de investigação passaram a ser conjugadas, com enfoques quantitativos e qualitativos, metodologias participativas e grupos focais. Ou seja, de larga escala até aquelas que exploram significados mais miúdos e atribuídos às ações sociais. Partindo desse cenário investigativo, ainda um pouco prospectivo, mas também já em curso, posto que muitas pesquisas já se encontram em andamento, a Interface convida os pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas em Saúde para submeterem seus textos sobre o Zika no Brasil para publicação, considerando ideias como relacionalidade, transversalidade e emergência de campos de saber, metodologias e temas de pesquisa. Com esse norte editorial, acreditamos que a revista se aproxima e partilha de um movimento muito mais amplo de revisão do próprio pensar, a partir de um fenômeno extremamente contemporâneo e urgente: o Zika virus e suas múltiplas conexões existenciais. Para além da urgência de respostas, pode importar também e/ou mais o pensar do que o conhecer. O pensar de Hannah Arendt9, aquele que procura compreender significados antes de identificar causa e consequência e que assim “é o modo de deitar raízes, de cada um tomar o seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos” (p. 166). O pensar das Ciências Sociais e Humanas... Rosamaria Giatti Carneiro Editora Associada Interface - Comunicação, Saúde, Educação Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília. Centro Metropolitano, conjunto A, lote 01. Brasília, DF, Brasil. 72220-275. rosacarneiro@unb.br

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1. Menéndez EL. Sujeitos, saberes e estruturas. Uma introdução ao enfoque relacional no estudo da Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2009. 2. Diniz D. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016.

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Referências

3. Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA-Edusc; 2012. 4. Jeffrey A. “O novo movimento téorico”. In: X Encontro Anual da ANPOCS - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais [Internet]. 1986; Campos do Jordão, Brasil [citado 14 Jul 2017]. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/ publicacoes/rbcs_00_04/rbcs04_01.htm. 5. Ingold T. Lines: a brief history. Routledge: Oxon; 2007. 6. Guattari F, Deleuze G. Mil platôs. São Paulo: Editora 34; 2011. v. 2. 7. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 3a ed. Porto Alegre: Sulina; 2007. 8. Rego S, Palácios M. Ética, saúde global e infecção pelo vírus Zika: uma visão a partir do Brasil. Rev Bioet. 2016; 24(3):430-4. 9. Arendt H. Responsabilidade e julgamento. Tradução: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras; 2004.

Submetido em 20/07/17. Aprovado em 21/07/17.

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Zika Virus, a research agenda for (thinking about) the Social and Human Health Sciences Afflictions are spawned in all of society, along with efforts to deal with them. And given the constant emergence and recurrences of different kinds of afflictions, that range from chronic diseases to the consequences of violence, as well as life’s minor pains, every subject and social group produces and reproduces representations, practices and experiences about the suffering, anxieties, troubles and fears that affect them1. (p. 267)

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http://www.who.int/ csr/disease/en/

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0404

News of a new epidemic recently swept across the globe. Two global events, the World Cup of 2014 and the 2016 Olympic Games, took place in Brazil, a country that is affected by the Aedes Aegypti mosquito, which carries the dengue, chikungunya and Zika viruses. This mosquito is a vector of many ills, as well as a epicenter of analysis. Although this small black creature with white stripes that lives in clean waters could pass unnoticed, it has nonetheless mobilized people, social relations, bodies, laws, public policies, rights, international bodies and entire nations. But the opposite is also true. The mosquito itself, this tiny being from nature was and has been (re)created by nations, by social inequality, production relations, disorganized cities, social actors, microbiology, epidemiology, clinical work and so on. What is interesting is that in the swing of the pendulum between the creator and the creature, the words of the Argentinian anthropologist Eduardo Menéndez1 in “Subjects, knowledges and structures” seem to ring true: we reproduce representations, practices and experiences about illnesses and thus, in the ultimate instance, we are all the time creating such illnesses. This process is exactly what interests us and serves as a basis for reflection for the social and human health sciences, to which this editorial is directed, in the belief that its broader and less focused lens challenges purely biomedical readings. The Zika virus takes its place alongside what was avian flu in 2003, H1N1 influenza in 2009 and Ebola in 2011, a situation, according to the World Health Organization (WHO) of “emergency in international public health”(a). On 1 February 2016, it officially became a global and institutional concern, but long before this the virus had already touched many silent homes in small cities, couples, loved ones and emotions, bellies and fetuses2. With this it seems to us that increasingly we cannot look at such a fact in isolation, either at a macro scale or through the lens of a microscope. It is not just about a subject from microbiology, from health surveillance, neurology or epidemiology. Nor is it just about the management of health policies, mayors’ offices, states, fumigation policies, family health, tactics for mosquito eradication or lines of care for children and mothers affected by the virus. Not only. It also does not seem to us to only be about the consequence of social ills and inequalities that are studied and classified in the political sciences, sociology or economics. Even less so is it about the early stimulation of occupational therapy, or fetal development in the fields of gynecology and reproduction or the debate about the legalization of abortion in Brazil. Not only. Or not only, but perhaps many of these issues at the same time. When thinking about the epidemic and the “subsequent” microcephalia in Brazil, what really stands out is how this tiny animal, the infected mosquito that has already lived for so long among us, operates at the analytical epicenter of so many varied readings and areas of knowledge. What also stands out is how the relational focus of analysis proposed by Menéndez works in these situations, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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placing us before emergent and cross-cutting themes that, before belonging to specific territories of knowledge, blurred borders and drew together the micro with the macro, biology with the emotions, subjects to structures and so on. If Menéndez positions himself thus when it comes to thinking about studies in collective health and/or public health, some time ago the French anthropologist, Bruno Latour3, has written about what is called actor-network theory or symmetric anthropology in order to think about the “reaggregation of the social” and to escape from the epistemological dichotomous schemes that modern science gave us. By such a theory, Latour seeks to flee from the idea of action based on cause and consequence, using the idea of the network as events that are distributed and not connected by effects. For this reason, the network is not something that already exists; rather it is constructed on a daily basis by humans and non-humans, objects and people, with the same weight and influence. It is a proposal that is aligned to what could be thought of as post-structuralism, but even more so to ideas that seek to mark a break with what Jeffrey Alexander4 wrote about as the pendulum of the social sciences: readings of the world that are either grounded and determined in/by structures and institutions, à la French School of Sociology and its supporters, or other largely Weberian readings based on the choice of the rational actor that slowly led to more recent debates about agency. Both Latour and Menéndez, as well as a host of other authors that could be cited here, call upon us to assume new ways of thinking: to go beyond the fixed categories of our modern ways of thinking and above all to think relationally, symmetrically and by reaggregating elements that had otherwise been considered distinct, going beyond the theoretic movement of the social sciences mentioned. So, what in effect is the result of all this? The answer is still far from being clear. But in the final analysis, it can lead us to ways of understanding the world that are less classificatory and separatist, and are more transversal, emergent and trans- and/or inter-disciplinary, perhaps to ways of thinking in networks. Indeed, this terms is also used by Tim Ingold5, another anthropologist who has sought to overcome archaic ways of understanding the world. If this movement is something more recent in anthropology, in history it is found in Foucauldian thinking and above all in his final publications about ethics and taking care of the self. But even before this, the idea is found in the idea that power always is or results from resistance, in a movement of two in one, in something that sums together, and is relational. In the fields of psychology and education, similar forces can also be cited if we think of currents in schizoanalysis and of Guattari e Deleuze’s6 notion of the “rhizome” or Edgar Morin’s7 complex thought. However, the field of study of health cannot be untouched by a general movement of reflection about our thinking, and for this reason, recently ideas such as transdisciplinarity have begun to take hold in collective health, a field of practices and knowledges that seeks to bring together the macro view of epidemiology with the social view from the social and human sciences, and with the political and administrative structures that fall under the auspices of management and planning. This view from above, looking at the means and the actors as well as at structures, adds a greater degree of complexity to our understanding of the social phenomenon of illness and care, showing us many corners and loci for debates at the intersect with themes that were unthought of in certain areas of study. The Zika epidemic in Brazil and elsewhere in the world leads us to address the possibility of this complex or complexifying thought which, as such, is emergent. It is through such a situation that we use the microscopic and the biological as a 754

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The Zika virus (ZIKAV) was isolated for the first time in 1947 in rhesus monkeys in the Zika forest of Uganda. In 1948, it was found in Aedes mosquitos and in 1952 was isolated in humans. In 2007, the first outbreak was described in a small island in Micronesia. In 2013, there was a second outbreak in French Polynesia. The third large outbreak of the infection, which has yet to be controlled, began in the Northeast region of Brazil in May 2015. In October 2015, 14 states in Brazil reported cases of the infection and in Colombia cases were reported among locals8. (p. 431)

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means of reflecting on themes that are general and political. Otherwise, we come to this:

The virus was isolated in laboratories, but soon affected nations and international organizations. The virus rapidly went from being an element of nature to being an entity that afflicted social life at scale: an organism that was far from being isolated and had connected human and non-human beings, nature and culture. From the epidemic we may, for example choose to focus on its origins, its mutations, its characteristics and its journey through human beings and then through countries and continents. We may speculate about how it arrived in Brazil and who brought it into the country. On the other hand, we may wish to focus our attention on mapping the regions that are most affected and their health and social profiles, observing the regional differences and social fragmentation of contemporary Brazil. Similarly, we may choose to portray the socio-medical profile of people afflicted by Zika, in terms of age, sex, race/color, residence, number of children, marital status and so on. We could open up an historical discussion about the eradication of the mosquito decades ago and its widespread existence nowadays. We can, in other words, think deeply about Aedes. Once we have cast our eye on human beings, and carried on to the theory of the actor-network, we arrive at infected people and policies for care. This covers a whole territory of studies that might include care for infected women during pregnancy, the clinical perspective on symptoms and proposed therapies, and the design of diagnostics2. These very studies may touch upon the fields of psychology and other areas that are concerned with the mother’s emotions when she is pregnant and going to give birth to a child with a disability, the health of carers, assistance during the birth of babies with microcephalia and/or the nation state’s response to such an emergency. After the birth of the child, a whole array of questions also opens up. How do the child and mother live? What health services are made available to them and how do they effectively operate? What exactly does “precocious stimulation” consist of? What are the social readings of disability? How do women-mothers and professionals organize around the needs of the child with microcephalia? How do the states that are more and less affected relate to one another in terms of international cooperation? How does the state care for its population and protect them from the new ills brought about by the epidemic? In what ways, for example, have these families received the policy known in Brazil as the ‘benefit of continued provision’ from the government? In turn, one similarly arrives at the debate about legal abortion and interrupting pregnancies in confirmed cases of microcephalia, opening up space to reflect on contemporary sexual and reproductive rights and on ethics. Repercussions in the media about the epidemic and the social panic that it provokes may also, for example, be of interest to students of communication or image and sound, more generally. Thus COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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(b) For further information, see: http:// portalsaude.saude.gov. br/index.php/renezika.

successively, there are many possible questions, approaches and areas of study related to Zika, which is without doubt a research agenda that is highly current. In another sense, we light upon research about Zika found in the biological sciences and the social sciences, about its modus operandi, areas and parameters of knowledge and methodologies used. In the case of the design of the National Network of Specialists in Zika and Related Diseases, Renezika(b) in the Ministry of Health, multidisciplinary teams were established in order to understand the phenomenon and its multiple facets. These teams were made up of sociologists, anthropologists, doctors, epidemiologists, social workers, occupational therapists, nurses, psychologists, public sector administrators, public health professionals, and many more. All of these actors are drawn into the phenomenon that began from and has at its center the tiny mosquito, but that then branches out into so many other areas: public policies, media, mothers’ movements, disability, health services, health surveillance, ethics, abortion and global health. That is without mentioning that in the interim the research methodologies also begin to become intertwined, with quantitative and qualitative focuses, participatory methodologies and focal groups. In other words, the issues range from the very large scale to those concerned with meaning at the micro level and those related to social actions. Taking this research context as the starting point, even if it is somewhat prospective, but also still going on since many studies are yet to conclude, the journal Interface invites researchers from the social and human sciences in health to submit for publication their texts about Zika in Brazil, giving consideration to ideas like relationality, transversality and emergence in fields of knowledge, methodologies and research themes. With this editorial remit, we believe that the journal addresses and draws upon a much broader movement of reviewing its own way of thinking, based on a phenomenon that is highly contemporary and urgent: the Zika virus and its multiple existential connections. Taking into account not just the urgency of the response required, one can also consider that thinking is as important or even more important than knowing. The thinking proposed by Hannah Arendt9 that seeks to understand meaning before identifying cause and consequence and thus “it is the human way of striking roots, of taking one’s place in the world into which we all arrive as strangers”. Thought in the social and human sciences… Rosamaria Giatti Carneiro Associated editor, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília. Centro Metropolitano, conjunto A, lote 01. Brasília, DF, Brasil. 72220-275. rosacarneiro@unb.br

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1. Menéndez EL. Sujeitos, saberes e estruturas. Uma introdução ao enfoque relacional no estudo da Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2009. 2. Diniz D. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016.

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References

3. Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA-Edusc; 2012. 4. Jeffrey A. “O novo movimento téorico”. In: X Encontro Anual da ANPOCS - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais [Internet]. 1986; Campos do Jordão, Brasil [citado 14 Jul 2017]. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/ publicacoes/rbcs_00_04/rbcs04_01.htm. 5. Ingold T. Lines: a brief history. Routledge: Oxon; 2007. 6. Guattari F, Deleuze G. Mil platôs. São Paulo: Editora 34; 2011. v. 2. 7. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 3a ed. Porto Alegre: Sulina; 2007. 8. Rego S, Palácios M. Ética, saúde global e infecção pelo vírus Zika: uma visão a partir do Brasil. Rev Bioet. 2016; 24(3):430-4. 9. Arendt H. Responsabilidade e julgamento. Tradução: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras; 2004.

Submetido em 20/07/17. Aprovado em 21/07/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0034

dossiê

Apresentação Presentation Presentación

Maurice de Torrenté(a) Mônica Nunes(b)

Redes translocais entre alternativas locais Os quatro artigos que compõem o presente dossiê temático remetem, de modo crítico e implicado, às lutas paradigmáticas que atravessam o campo psiquiátrico há mais de dois séculos. Uma das originalidades deles, contudo, é que enfocam as dialéticas contemporâneas globalizadas e locais do governo da Saúde Mental. A percepção moderna da loucura, nascida no âmbito da Revolução Francesa, porta elementos que até hoje carreiam ao louco o seu encargo social e estatuto antropológico. Em uma nova sociedade, que se ordenava pelo culto à razão, pela relação contratual e pela livre circulação de mercadorias, os loucos eram percebidos como irresponsáveis e incapazes de trabalhar, devendo ser administrados por normas que não os sujeitassem a tarefas e deveres da cidadania plena, inaugurando assim a gestão pela tutela, exercida pelo psiquiatra. Pinel simboliza o surgimento de uma Medicina social, ou seja, capaz de codificar uma problemática social, expressa na necessidade de controle do desvio, representado pelo louco. O corpus teórico da ciência alienista justifica o seu isolamento sob justificativa de apresentar uma proposta de cura. A essa ruptura originária correspondem, a partir de meados do século XX, duas inflexões históricas marcantes, com consequências decisivas sobre os debates contemporâneos em Saúde Mental: as conquistas em termos de direitos humanos e sociais pós-Segunda Guerra, de um lado, e a progressiva globalização neoliberal ainda em curso, do outro. No Ocidente traumatizado pelas crises econômicas e sociais dos anos 1930 (tragicamente ecoadas em vários eventos da atualidade...) e pelo horror nazifascista, o campo da Saúde Mental assiste a transformações expressivas, embora em ritmos e com características próprios a cada país, no aparato jurídicoinstitucional e no modelo de atenção. As chamadas reformas psiquiátricas se inscrevem, portanto, em momentos históricos marcados por crescimento econômico, reconstrução social, movimentos civis de luta contra as exclusões e preeminência de ideologias libertárias. No contexto sociomédico, destacam-se a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a,b) Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-040. mdetorrente@ hotmail.com; nunesm@ufba.br

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O GOVERNO DA SAÚDE MENTAL EM PORTUGAL E NO BRASIL: ...

descoberta dos medicamentos psicotrópicos, a popularização da Psicanálise e o nascimento da “Saúde Pública”. A continuidade desses movimentos solidários – e das configurações sociossanitárias que eles imprimiram no campo da Saúde Mental – é gradualmente colocada em cheque pelas mudanças sociopolíticas e econômicas desencadeadas pelo fenômeno da globalização, pela hegemonia do capital financeiro, pelas mudanças nos modos de produção, pela precarização do trabalho e pelo aumento exorbitante da exclusão social. O estado-providência entra em crise, tanto onde é uma realidade instituída quanto nos países periféricos onde estaria em construção. É importante insistir que a globalização, além das suas dimensões jurídicas e econômicas, configura também uma experiência antropológica. Abèlés1 aponta para a compressão espaçotempo, o compartilhamento de experiências por pessoas situadas a longas distâncias e as mudanças nas formas de consumo, com a volatilidade do desejo e a ênfase no superficial e no descartável. Concomitantemente à onipotência simbólica dos fluxos e da mobilidade, os despossuídos e os que ameaçam a ordem são, paradoxalmente, sempre mais reduzidos ao confinamento espacial2. Como pensar o reflexo desse quadro histórico no campo da Saúde Mental? Como o “estatuto antropológico” do louco se atualizaria ao longo da história e que aspectos ele assumiria em tempos de globalização? Que grau de inflexão ele sofreria, a partir de experiências locais, do governo (pensado nos seus aspectos macro e micropolítico) da Saúde Mental em países concretos? O que, de um momento de gênese da instituição psiquiátrica com suas representações e seus fazeres, asilares e (neo)kraepelinianos, permanece (ou ressurge a partir de movimentos de contrarreforma) e o que sofre refração a partir da incidência dos movimentos de reforma psiquiátrica, em cada contexto local? Que práticas concretas e que nós críticos aferem espessura às realizações atribuídas a cada um desses processos de reforma? E que novas lógicas, em uma economia globalizada, interceptam os avanços obtidos ou reorientam as prioridades ou horizontes ético-políticos? Ou, ao contrário, quanto das conquistas obtidas – de direitos, de respeito à alteridade, de novos lugares sociais, de poder de vocalização e de garantia de espaços de participação de pessoas com sofrimento mental – atribuem maior qualidade ao processo civilizatório das sociedades? E, ainda, quanto dos valores antimanicomiais seguem como recursos a serem defendidos por significarem a possibilidade concreta de contribuir com o fortalecimento da democracia? Neste dossiê, o recurso a descrições dos modos de operar das políticas, ou do governo da Saúde Mental, em Portugal e no Brasil, oferece subsídios para não se falar de modo abstrato, mas para situar os seus agentes e os seus feitos nas suas relações sociais, locais e globais. Se, de um lado, podemos identificar influências ou processos comuns, por outro lado, é necessário destacar suas originalidades, ou campos de experimentação social próprios, que, por sua vez, podem gerar esforços de tradução e efeitos de intercâmbio. Aqui reside o que Boaventura Santos3 aponta quando diz que o papel da teoria crítica é, portanto, tornar as alternativas e as formas de existência: “[...] conhecidas para além dos locais e criar, por intermédio da teoria de tradução, inteligibilidades e cumplicidades recíprocas entre distintas alternativas em diferentes locais” (p. 36). Algumas pistas nessa direção são traçadas nos artigos a seguir. Em uma abordagem crítica ao modelo de Saúde Mental global, Tiago Pires Marques situa influências concretas que ele exerce sobre o processo de reforma psiquiátrica portuguesa, que se exacerbam em um momento de crise econômica, com drásticas reduções das despesas do Estado, associada a taxas de desemprego estratosféricas. Um dos pontos críticos volta-se justamente para o mimetismo de sociedades semiperiféricas que buscam adotar reformas hegemônicas de países centrais que acabam por chocarse com racionalidades e práticas consideradas pré-modernas. Ora, essa crítica serve como bússola para problematizar novas configurações presentes nos governos da Saúde Mental, incidindo, modificando e, não raramente, entrando em conflito com trajetórias orientadas pelos princípios da reforma psiquiátrica democrática em diversos países, como o Brasil. A historicidade da análise, mais uma vez, identifica interesses, relações de força e jogos de poder que atravessam os processos socioculturais e suas dinâmicas. As categorias definidas por Pires Marques se mostram analisadores-chave para a leitura das realidades pós-modernas globalizadas. Sua crítica epistemológica aos múltiplos conceitos de saúde 760

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Torrenté M, Nunes M

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mental, apresentados especialmente a partir de estudos epidemiológicos, conformados por modelos teórico-metodológicos norte-americanos, revela a universalização de formas de sofrimento do Norte, naturalizadas como científicas e sem a devida contextualização da sua manifestação. Taxas de prevalência que, em um primeiro momento, podem parecer relevantes para ampliar o acesso de massas desassistidas de pessoas com sofrimento mental (o treatment gap) reproduzem, na prática, a iniquidade de hierarquizar grupos em função de interesses econômicos, privilegiando segmentos tanto potencialmente produtivos no mercado econômico quanto mais lucrativos no mercado de vendas de psicofármacos. Nesse sentido, indica Pires Marques, a não discriminação de duas diferentes realidades de sofrimento e de suas necessidades – o de pessoas com transtornos mentais severos e o daquelas com transtornos mentais comuns – termina por ofuscar e excluir grupos já socialmente marginalizados, como os psicóticos, pessoas em situação de rua, internos de hospitais de custódia, entre outros. Críticas dessa natureza, consubstanciadas por um trabalho empírico de fôlego que demonstra a participação da mídia na construção das necessidades de saúde mental, espelham ou antecipam tendências observadas em países em desenvolvimento, como o Brasil. Aqui, se é absolutamente legítimo voltar o olhar para segmentos com transtornos mentais comuns que não encontram com facilidade espaços de cuidado, focalizando a Atenção Básica como nível privilegiado para se investir nessa direção, por outro lado, há de se exercer uma vigilância ética na perspectiva de se evitarem desvios medicalizadores na interpretação dos problemas sociais subjacentes a esses sofrimentos e soluções psicofarmacologizantes para a miséria social e para o mal-estar na sociedade4. Os dois artigos seguintes enfatizam o protagonismo dos que experimentam a vivência do sofrimento mental na pele. No caso do trabalho de Fátima Alves e Karine Wlasenko Nicolau, é destacada a importância de um governo da Saúde Mental – tomado no seu aspecto da formulação e implementação das políticas, mas também da micropolítica operada nas práticas clínicas – aberto à interferência de racionalidades leigas. Esse conceito é utilizado nas suas possibilidades de remeter a concepções e ações que se produzem em situações práticas de pessoas (usuários e familiares), permitindo avaliar experiências concretas de terapêuticas e ações propostas para recuperar ou promover a saúde mental, mas que também é capaz de traçar e reorientar caminhos. A efetividade dos sistemas de atenção, no seu aspecto organizacional, pode ser baixa se ancorada em orientações padronizadas, que não levem em conta as concepções e percepções dos agentes. Escutá-las, por sua vez, não apenas gera uma possibilidade de aprendizagem significativa, mas cria espaços de autonomia, diálogo e participação. As racionalidades leigas aproximam-se de práticas que reconhecem a lógica pragmática que se origina das vivências, que valorizam o estar com o outro, em detrimento dos especialismos, e que apostam no que poderíamos chamar de uma coparticipação na definição de soluções para os problemas. Como o de Pires Marques, esse artigo orienta-se por uma crítica epistemológica da ciência, etapa imprescindível na produção de uma globalização contra-hegemônica. Remete ainda à tradição de estudos brasileiros, inspirados por Paulo Freire5, que adota o saber popular como saber relevante – e transformador, quando crítico: Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação, e não a ruptura, se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. (p. 15)

Traçando um longo período histórico que sustenta um estado de segregação da loucura, Simone Paulon lembra que permanecem práticas manicomiais nos serviços de Saúde Mental brasileiros: “formas de cuidado predominantemente hierarquizadas, prescrições tutelares, supermedicalização, processos de trabalho em saúde pautados no poder médico, hospitalocêntricos, ancorados em tratamentos morais [...]”. Situação intrigante em um país cuja política de Saúde Mental, desenvolvida em pelo menos 14 anos de governo progressista, foi vigorosamente elogiada por organismos internacionais. Menos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O GOVERNO DA SAÚDE MENTAL EM PORTUGAL E NO BRASIL: ...

surpreendente quando se pensa na dimensão continental do país, na sua heterogeneidade regional e descentralização política, além da sua enorme desigualdade social e enorme confluência entre pobreza e loucura, aspectos que poderiam complexificar essa análise. A aposta do artigo, no entanto, é outra. Busca outro argumento oportuno em um momento de recrudescimento do conservadorismo e do autoritarismo. Em um quase manifesto de exortação da loucura como condição ético-estética de pluralização do mundo, Paulon desenvolve um texto filosófico-poético, defendendo a importância da liberdade de expressão e circulação da loucura, retirando-a de uma condição de silêncio imposto. Aponta para a potência crítica e perturbadora que a loucura traz, o que parece anunciar sua natureza intrínseca nessa função para-raio para males produzidos pelo capitalismo, confrontando sua economia desejante de controle dos corpos e de subjetivização normalizadora. A libertação da loucura significaria ainda a restauração de um direito democrático das cidades de se constituírem como “universo dissonante e pluralista”, em um movimento politizador que reinventaria a polis. Nessa direção, o texto de Paulo Amarante vem materializar um tipo de experimentação concreta à moda brasileira, na qual a luta antimanicomial pôde avançar por meio do campo artístico-cultural, alçando a loucura a um novo lugar social. Referindo-se a esse novo campo capaz de mobilizar políticas de Estado específicas no sentido de induzir práticas e saberes que “articulam direitos humanos, diversidade cultural, arte, cultura, trabalho”, Amarante destaca a sua autonomia em relação ao campo técnico-assistencial. A valorização da diversidade cultural que porta a loucura, canalizada por esse movimento, abre espaço para o desenvolvimento de experiências culturais, que produzem mudanças no imaginário coletivo acerca da loucura, positivando-o, e novas formas de subjetivação e de identidades dos seus protagonistas, que, nesse espaço, deixam de ser reconhecidos pelo diagnóstico psiquiátrico e psicopatológico. Talvez essa descrição – com toda a riqueza de exemplos que lista, sobretudo, a diversidade de grupos artísticos no Sudeste do país – seja o que, empiricamente, chegue mais perto de uma situação de ruptura com o período quando a loucura ganhou estatuto de doença mental, com toda a tradição teórica que analisa a loucura como desvio. Sem dúvida, é um aporte que demonstra uma importante inovação tecnológica no campo da transformação cultural, atuando principalmente por meio de coletivos e vinculando-se à saúde especialmente pela sua promoção. Com esse texto, não se pode deixar de pensar no imenso patrimônio imaterial representado pela reforma psiquiátrica vinculada ao Sistema Único de Saúde. Um olhar atento seguirá os rumos do instituído por um outro governo da Saúde Mental, agora mudado e inscrito em um contexto que se aproxima do português, quando submetido a uma política de austeridade feroz, com particularidades brasileiras que tornam este país ainda mais vulnerável. Talvez aqui possamos usar da imprevisibilidade das transformações atuais a nosso favor, apostando em melhores e mais empoderadas ações, subjetividades e coletivos a intervirem no processo, contando, inclusive, com o que Santos3 (p. 36) chama de “redes translocais entre alternativas locais” para, quiçá, construir uma outra globalização.

Referências 1. Abélès M. Anthropologie de la globalisation. Paris: Payot; 2008. 2. Bauman Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar; 1999. 3. Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6a ed. São Paulo: Cortez; 2007. 4. Nunes MO, Onocko-Campos RT. Prevenção, atenção e controle em saúde mental. In: Paim JS, Almeida-Filho N, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. 5. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. Submetido em 27/01/17. Aprovado em 24/07/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0881

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Loucura e diversidade cultural: inovação e ruptura nas experiências de arte e cultura da Reforma Psiquiátrica e do campo da Saúde Mental no Brasil Paulo Amarante(a) Eduardo Henrique Guimarães Torre(b)

Amarante P, Torre EHG. Madness and cultural diversity: innovation and rupture in experiences of art and culture from Psychiatric Reform and the field of Mental Health in Brazil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):763-74.

This study seeks to reflect on the innovations that are emerging from psychiatric reform in Brazilian public health provision, particularly through an artistic-cultural movement that seeks to construct new ideas about madness and mental suffering. The article thus analyzes ruptures with the psychiatric paradigm that has been in operation, based on Brazilian artistic-cultural experiences, through a number of art-culture projects in the field of mental health, in which the actors involved in the psychiatric reform process have produced not only new possibilities for life, expression and social inclusion for the subjects of mental suffering, but also the construction of a new social place for madness. Finally, we reflect on changes in the social imaginary heading in the direction of solidarity, in the face of permanence and resistance to change and the emergence of other forms of exclusion and medicalization.

O presente trabalho busca refletir sobre as inovações produzidas pela Reforma Psiquiátrica para o governo da Saúde Mental no Brasil, especialmente por meio de um movimento artístico-cultural de construção de novas concepções sobre a loucura e o sofrimento mental. Desse modo, o artigo analisa as rupturas com o paradigma psiquiátrico que vêm sendo operadas a partir das experiências artísticoculturais brasileiras, por meio de inúmeros projetos de arte-cultura no campo da Saúde Mental, nos quais os atores do processo de reforma psiquiátrica vêm produzindo não só novas possibilidades de vida, expressão e inclusão social para os sujeitos em sofrimento mental, mas também a construção de um novo lugar social para a loucura. Finalmente, reflete-se sobre as mudanças no imaginário social no sentido da solidariedade, frente a permanências e resistências às mudanças e o surgimento de outras formas de exclusão e medicalização.

Keywords: Madness. Art-culture. Psychiatric Reform.

Palavras-chave: Loucura. Arte-cultura. Reforma Psiquiátrica.

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp). Rua Leopoldo Bulhões, 1.480, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21041-210. pauloamarante@ gmail.com; eduardo.torre33@ gmail.com

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Introdução Loucura e diversidade cultural: um novo campo de práticas e saberes para a Reforma Psiquiátrica brasileira Um novo campo de práticas e experiências está em construção por meio dos projetos e intervenções artístico-culturais do processo de Reforma Psiquiátrica (RP) no Brasil. Isso ocorre pela invenção de novas possibilidades de vida e participação para os atores sociais envolvidos e da construção de um novo “lugar social” para a loucura, no qual os protagonistas não se identificam pelo diagnóstico psiquiátrico ou psicopatológico, mas sim pela afirmação de direitos de cidadania e construção de possibilidades de reprodução social. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo demonstrar que está se desenvolvendo um processo de autonomização do campo artístico-cultural em relação ao campo técnico-assistencial nas políticas públicas de Saúde Mental. Dito de outra forma, as experiências artístico-culturais do processo de reforma psiquiátrica estão se tornando independentes em relação aos serviços de Saúde Mental ou instituições nas quais estiveram ligadas em sua origem. Muitas vêm surgindo de forma autônoma a um contexto de tratamento ou vínculo à equipe multiprofissional, o que afirma a RP como movimento social de construção de coletivos ativos e reprodutores de uma visão crítica sobre a loucura que rompe com a visão psiquiátrica tradicional, ou seja, que rompe com a compreensão de que a “doença mental” torna os sujeitos incapazes de trocas sociais, de convivência em liberdade e/ou de produzir algo válido do ponto de vista social ou econômico. De modo diverso, com a construção nas últimas décadas de um novo campo de atores sociais intersetoriais e múltiplos, e articulando direitos humanos, diversidade cultural, arte, cultura e trabalho em diversos dispositivos e estratégias de inclusão social, as intervenções urbanas, grupos e sujeitos envolvidos na RP e no movimento antimanicomial configuram um novo discurso e um novo olhar sobre a loucura em ruptura com a visão dominante na história da Psiquiatria no Brasil. As experiências de arte-cultura estariam produzindo rupturas em relação a pontos fundamentais do paradigma psiquiátrico, ampliando os espaços de cidadania e circulação social dos sujeitos em sofrimento mental ou situação de vulnerabilidade psicossocial. Tais rupturas dizem respeito ao deslocamento da ideia de doença mental como incapacidade e inferioridade; à crítica do discurso científico e técnico como lugar da verdade; à crítica da ideia de cultura como restrita à arte institucionalizada; e à crítica da noção de arte e cultura como terapêutica. Essas rupturas se relacionam ainda com uma redefinição de conceitos, com a ampliação e transformação do conceito de cultura e da noção de reforma psiquiátrica. Para a redefinição da noção de reforma psiquiátrica, dois pontos são centrais. Em primeiro lugar, a compreensão da RP como “processo social complexo”, que vai além de simples reforma técnica de serviços de assistência1. Em segundo lugar, o questionamento da ideia de doença mental como desvio, bem como a crítica dos conceitos de “desordem” ou “transtorno mental”, forjados a partir de uma visão biomédica e individual. Por sua vez, para uma ressignificação do conceito de cultura, existem duas abordagens importantes: primeiro, a discussão sobre a arte-cultura como linguagem dialógica que supera e transcende a racionalidade científica (rompendo com o discurso técnico e especialístico e com as relações de poder advindas do modelo biomedicalizante). A partir daí, a cultura deixa de ser restrita à arte institucionalizada ou a formalismos escolásticos para ser instrumento na construção de identidades coletivas e direitos de cidadania, funcionando como “resistência ao poder”2, questionando a noção de cultura dita nobre em superioridade à cultura popular e, portanto, rompendo com o discurso dominante no campo da arte e cultura. A segunda discussão é sobre a problematização da arte como restrita à terapia. Das oficinas terapêuticas e grupos nos hospitais psiquiátricos, e depois nos hospitais-dias e serviços de atenção psicossocial, as experiências artístico-culturais se desprendem de uma função estritamente terapêutica e se tornam intervenção na cultura, como estratégia de reconstrução de possibilidades de vida dos sujeitos em sofrimento mental. 764

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Reforma Psiquiátrica como processo social complexo O conceito de reforma é bastante problemático e tematizado por parte da literatura crítica em Saúde Mental. Pode-se considerar que muitas experiências de reforma psiquiátrica foram uma espécie de “renovação”, no sentido de que não produziram reformas no sentido pleno. Produziram reacomodações, mantendo muitos dos fundamentos tradicionais da Psiquiatria, em um processo que Rotelli et al.3 denominaram de “renovação da capacidade terapêutica da psiquiatria”. Seriam renovações do arsenal terapêutico psiquiátrico na forma de processos de “humanização” ou “modernização”, ou ainda, “psiquiatrias reformadas”. No Brasil, o processo de reforma se deu mais no sentido de politização das denúncias e críticas a partir dos movimentos sociais e das lutas contra o autoritarismo da ditadura e as instituições de violência que se tornaram “casas de horrores” (grandes hospitais ou asilos psiquiátricos). Por isso, a RP brasileira se constituiu como luta por liberdade e contra todas as formas de violência e tem como origem as lutas sociais e populares pelos direitos humanos e pela democracia. Portanto, nasce da sociedade civil, e não do Estado ou de interesses de grupos de poder, como reivindicação popular e por cidadania e direitos, estando muito mais próxima de uma noção de “reforma estrutural”, como proposto por Sonia Fleury4, uma reforma das relações entre Estado e sociedade, mais que uma renovação de velhos modelos no âmbito técnico-assistencial. Nas últimas décadas, o processo de reforma psiquiátrica no Brasil tem sido uma das mais importantes políticas de Saúde Mental e inclusão da diferença do mundo, levando a loucura do isolamento institucional nos manicômios à participação social e política, com ocupação da cidade e diferentes formas de inclusão social e intervenção na cultura5-7. A proposta de compreensão da RP como “processo social complexo” permite pensar os processos de mudança para além do agir instrumental8 e burocrático e das normas e regulações, e para além das políticas do Estado e do controle técnico. Ou seja, permite pensar a RP como um movimento social de redefinição da relação social com a loucura. Trata-se de um processo que passa pelo Estado, pelos dispositivos institucionais – mas não se reduz a eles, desdobrando-se na mobilização e lutas sociais –, pelas profissões de competência especialística e pelo controle normativo, mas não se esgota aí. É um processo composto por várias dimensões, que o tornam o que pode ser denominado de processo social complexo. Isso significa que, inicialmente, existe importante investida no âmbito teórico-conceitual, refletindo sobre os conceitos básicos e fundantes do campo da Psiquiatria e ciências afins (alienação, doença e transtorno mental, cura, tratamento, recuperação e reabilitação, medicalização, entre outros). Em continuidade, a partir da ressignificação de determinados conceitos e noções, pode ser possível reconfigurar a dimensão relativa aos dispositivos e estratégias de cuidado e atenção. Do modelo manicomial, que sugeria um modelo asilar, centrado nos dispositivos da disciplina, do controle e da vigilância, surge um referencial que abre a perspectiva do acolhimento e da produção de novas identidades e subjetividades, construídas na relação com os territórios e os sujeitos e instituições que os habitam. Na dimensão jurídico-política, pode-se perceber as várias possibilidades de luta e transformação da realidade por intermédio das instâncias judiciais e políticas, na construção da cidadania e inclusão social das pessoas em sofrimento psíquico. Finalmente, a dimensão sociocultural revela o forte processo de participação social na construção cotidiana das políticas e na transformação da relação que a sociedade mantém com a loucura ou com a diversidade. Daí o entendimento de que, na transformação da assistência psiquiátrica convencional por meio dos processos de desinstitucionalização no campo da Saúde Mental e da reforma psiquiátrica, as mudanças podem ser orientadas a partir de quatro grandes dimensões: teórico-conceitual, técnicoassistencial, jurídico-política e sociocultural9. Um aspecto fundamental de uma visão ampliada da RP é a de não reduzi-la a simples reforma de serviços e organização de rede de cuidados médico-psicológicos e assistenciais, ao passo que a possibilidade de uma dimensão sociocultural remete a transformações no imaginário social e ao espaço de ações coletivas, de mobilização e invenção de novos modos de reprodução social.

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Inovações da Reforma Psiquiátrica no Brasil: direitos humanos, Saúde Mental e diversidade cultural Desde o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, tem-se assistido a uma ampliação do conceito tradicional de direitos humanos, muito especialmente no campo da Saúde Mental. Além da luta contra a violência institucional, a opressão e a exclusão social dos sujeitos em sofrimento mental, em busca da extinção dos manicômios, registra-se uma visão que pode ser considerada como de discriminação produtiva, promocional dos direitos humanos; que é a do reconhecimento da diversidade dos sujeitos em sofrimento mental ou vulnerabilidade psicossocial. Isso implica em não apenas defendê-los da violência, mas em reconhecer a sua diversidade cultural e em promovê-la enquanto emancipação, cidadania, capacidade de trocas sociais e formas de reprodução das subjetividades. Em síntese, diversas inovações são marcantes e se destacam em sua potência de transformação das formas de lidar com a loucura. Uma dessas inovações está no campo do trabalho e da geração de renda, como nas experiências de economia solidária e cooperativismo10-12; uma outra inovação está no campo da cultura, como nos projetos de arte e cultura e a produção sociocultural dos atores da RP1316 . No campo da participação social, existem as lutas a partir do protagonismo dos usuários, familiares e outros ativistas em defesa dos direitos das pessoas em sofrimento mental. Finalmente, destacamse as inovações nas frentes jurídicas com a participação de atores do campo do Direito e da Justiça (Defensoria Pública, Ministério Público e outros órgãos e instituições). Tais questões remetem a um entendimento da RP para além da luta contra a violência e o isolamento institucional. Nessa direção, é possível perceber a constituição de processos de invenção de novas formas de inclusão social e de “produção de subjetividades”17 que rompem com a lógica da exclusão do diferente e do enclausuramento de sujeitos vulneráveis ou desfiliados socialmente18.

A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a autonomização do campo artístico-cultural Entre as maiores inovações nos processos de RP no Brasil nas últimas décadas, está a constituição desse novo campo das experiências artístico-culturais, com tendência à autonomia em relação aos equipamentos de Saúde. São experiências de intervenção cultural na cidade, com produção de bens e valores culturais. São, ainda, estratégias de criação de formas de inclusão social e familiar e participação em espaços de lazer, convivência, trabalho e mobilização coletiva. Nesse sentido, não estão restritas a iniciativas ligadas ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) ou a uma equipe de Saúde, nem se reconhecem necessariamente a partir da adesão a um tratamento médico-psicológico ou multiprofissional. Dito de outro modo, ainda que muitas das experiências e formas de utilização de recursos artísticos e atividades culturais tenham sido originadas no interior dos serviços, uma parte delas já se autonomizou e ganhou existência para além do campo técnico-sanitário. Em conjunto, as experiências de arte-cultura no campo da Saúde Mental constituem hoje um universo de novas formas de relação com a loucura e com a diferença, que contribuem para a mudança do imaginário social sobre a loucura. Tanto nas experiências de trabalho e economia solidária quanto nas experiências de arte e cultura na Saúde Mental, os sujeitos tendem a se expressar e se identificar não mais a partir do lugar da doença, mas do lugar de sujeitos de direitos, com experiências válidas e capacidades reconhecidas socialmente. Deixam de se reconhecer a partir de um diagnóstico psiquiátrico para relacionar-se socialmente e apresentar-se como artista ou produtor cultural, como trabalhador de um projeto coletivo ou, ainda, como militante de movimentos sociais. O projeto “Loucos pela Diversidade”19 foi uma das mais importantes iniciativas na área da Saúde Mental. Foi um projeto congruente com o “Programa Cultura Viva” e os “Pontos de Cultura”, por meio de uma visão da cultura como patrimônio coletivo e produção popular, a partir das tradições e movimentos sociais e comunitários. Com tais programas do Ministério da Cultura (MinC), a cultura passou a ser instrumento de transformação social e emancipação dos sujeitos e grupos sociais que produzem diferentes expressões culturais, presentes na imensa diversidade cultural brasileira. Além 766

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disso, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID/MinC), passou-se a construir políticas culturais para os segmentos considerados mais vulneráveis, como as comunidades indígenas, quilombolas, ciganos, pessoas com deficiência, comunidade LGBT, população de rua e religiões afro-brasileiras, bem como os “loucos” (pessoas em sofrimento mental), valorizando suas expressões artístico-culturais no que estas têm de diversidade e singularidade. Com o “Loucos pela Diversidade”, os projetos artístico-culturais do campo da RP entram nas políticas públicas culturais, ampliando territórios de circulação, trocas sociais e produção de vida. Por outro lado, com uma visão abrangente, em rompimento com a ideia de cultura “nobre” ou escolástica, foi possível dar sentido diverso a essa produção, constituindo-se ainda como possibilidade de ruptura com a concepção de “doença mental” e incapacidade na definição dos sujeitos em sofrimento mental e vulnerabilidade psicossocial. De outra forma, ainda deu início a uma ruptura com as concepções da arte restrita a “recurso terapêutico”, o que conduz a uma visão dos projetos culturais como construção de novas possibilidades de expressão e ressignificação de vida para que sujeitos diversos sejam repensados em relação ao ideal de normalidade social. O marco inicial do projeto foi a realização da “Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Pessoas em Sofrimento Mental e em Situações de Risco Social”, com participantes de vários projetos culturais do campo e de todas as regiões do país. Tendo como uma das referências fundamentais a “Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais – Unesco”20, a oficina teve como princípio estratégico formular e incentivar a implementação de políticas públicas que estimulassem ações transversais de promoção da diversidade cultural brasileira no campo da Saúde Mental. Como um dos desdobramentos do projeto, foi lançado o Prêmio Cultural “Loucos pela Diversidade – Edição Austregésilo Carrano” (realizado em 2009), que contou com a participação de quase quatrocentas experiências de todos os estados por meio de todas as linguagens artísticas; uma riqueza surpreendente de trabalhos de sujeitos e grupos culturais, ligados ou não aos serviços de Saúde Mental ou às instituições de assistência. Buscou-se, assim, uma nova visão de política cultural, bem como contribuir para a consolidação da cidadania cultural dos sujeitos em processos de inclusão social e reconstrução de vida, por meio das experiências de cultura e arte21-23. A nomeação de algumas das experiências, apenas como exemplo, pode dar uma dimensão do seu impacto no âmbito da cultura brasileira. Dessa forma, na música, surgiram os “Cancioneiros do IPUB”; “Harmonia Enlouquece”, “Sistema Nervoso Alterado”, “Heterogênese Urbana”, “Coral Cênico Cidadãos Cantantes”, “Lokonaboa”, “Trem Tan Tan”, “Mágicos do som”, “Grupo de Hip Hop Black Confusion”, “Devotos de São Doidão”, “Delírios Líricos de Lírio”, “Jacaré Gularstone”, “Loucos pela Vida – Nas Terras do Juquery”, “Zé do Poço e Sarieiro”, “Cantar e Dançar”, “Nosso Melhor Remédio”, “Tem Maluco no Pedaço”, “Samba na Cabeça – Mentaleiros na Comunidade”, “Nação do Maracatu Porto Rico”, “Capoeira Cidadã Arte e Cultura”, “Coral Nós com Voz”, “Os Impacientes”, “Grupo Cênico-Musical de Inclusão Social Trupe do Trapo”, “Rock na Tamarineira”, “Banda D’Inci”, “Banda Brilho do Nzinga”, “Doidodum – Banda de Percussão”, “Banda D’Lírios do Cuca”, o “Bloco de Percussão Desencuca – Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca”, entre muitos outros grupos e artistas individuais. No âmbito do teatro e artes cênicas, foram criados a “Companhia Teatral UEINZZ!”, “Trupe Maluko Beleza”, “Grupo do Teatro do Oprimido Pirei na Cenna”, “Companhia Teatral O Desconhecido”, “Grupo Sai no Vento”, “Os Nômades – Cia. de Teatro”, “Os Loucutores – Grupo de Teatro da Saúde Mental de Esmeraldas”, “Grupo de Teatro Vem Ser”, “Núcleo de Criação Sapos e Afogados”, “Grupo Liberarte”, “Cia. Sem Pressão”, “Iluminarte”, “Loucosmotivos da Arte”, “Grupo de Teatro Tá na Rua: Desencuca”, “Grupo Circense – Circuca”, “Grupo Teatral Nau da Liberdade”, entre outros. Na produção de vídeos, além do pioneiro “Projeto TAM TAM” (rádio e TV), houve a criação da “TV Pinel”, “Rede Parabolinoica” e a “TV Sã – Inverso Centro de Convivência e Cultura”. Na área de rádio, tem-se a “Rádio Antena Virada”, “Rádio Web Delírio Coletivo”, “Rádio Maluco Beleza”, “Rádio Cala a Boca Já Morreu”, entre outras. Finalizando a lista, existe a rica experiência do carnaval, uma das mais fortes expressões da cultura brasileira. As atividades relacionadas ao carnaval não se reduzem ao momento específico do desfile, 767


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na medida em que existe um vigoroso processo de preparação que dura o ano inteiro, por conta das oficinas e etapas na elaboração do samba, da confecção de figurinos e alegorias, escolha do tema, composições e votação do melhor samba-enredo, envolvendo as pessoas em diferentes frentes de trabalho e participação, tecendo coletivos inclusivos. A primeira atividade em carnavais parece ter ocorrido em 1992, quando se decidiu fazer um grupo de pacientes não para se divertir no baile no pátio do hospício, mas sim para organizar uma ala em um dos blocos mais famosos do Rio de Janeiro, o “Simpatia é Quase Amor”. Foi organizada, assim, a “Ala do Maluco Beleza”, em alusão à música de Raul Seixas, que teve grande repercussão no desfile e nos meios de comunicação. Nos anos posteriores, organizaram-se iniciativas semelhantes, até o ponto em que as escolas de samba desfilaram com alas e temas abordando a loucura, a diferença e a diversidade. Sobre as atividades carnavalescas da RP, que existem em um grande número de cidades, algumas merecem destaque, seja pelo aspecto histórico, seja pelo impacto na sociedade. São exemplos o “Cordão BiBiTanTã” e a “Ala Loucos pela X”, de São Paulo, o “Bloco Conspirados” de Ouro Preto e Mariana, o “Liberdade ainda que TamTam”, de Belo Horizonte, e alguns dos principais blocos do Rio de Janeiro: o “Bloco Maluco Sonhador”, o “Tremendo nos Nervos”, o “Tá Pirando, Pirado, Pirou” e o “Loucura Suburbana”. Os dois últimos foram aprovados como “Pontos de Cultura”, que, como dito, trata-se de uma estratégia inovadora na transformação da concepção de cultura no país.

Rupturas a partir do campo artístico-cultural da reforma psiquiátrica: crítica do conceito de cultura e crítica do conceito de doença Por todas essas experiências de arte-cultura, pode-se perceber a importância da dimensão sociocultural na transformação da relação social com a loucura, na medida em que estão construindo um novo cenário e determinadas rupturas24-27. Uma primeira ruptura diz respeito ao deslocamento da concepção de doença ou transtorno mental de experiência de erro ou incapacidade para experiência de diversidade psíquica, ou de “extranormalidade”. Caso contrário, corre-se o risco de restringirem-se as mudanças ao sair do manicômio, reproduzindo a cultura manicomial fora do hospital, e, em vez de ser criado um contexto de acolhimento do diferente, corre-se o risco de surgirem instituições de tolerância, no sentido discriminatório do termo, como colocado na “Carta de Nova York”, por Franco Basaglia28 em sua crítica à Psiquiatria preventiva norte-americana e aos processos de medicalização e psiquiatrização social como desafios ainda maiores para as experiências de RP e de abertura manicomial. Uma segunda ruptura refere-se ao deslocamento da arte como restrita à terapia e à reabilitação. É ainda uma ruptura com o tecnicismo, no sentido de pensar a arte-cultura como instância estética e cultural, do sentido da vida e da produção de sentido. Assim, do mesmo modo, a produção sociocultural da RP abre possibilidades para o surgimento de novos sujeitos de direito, ou seja, aqueles que, antes negativados na doença, passam a ser protagonistas nas experiências de arte-cultura. Isso significa dizer que a cultura passa a ser entendida não apenas como as linguagens artísticas, mas também como expressões dos sujeitos coletivos, como conjunto de valores da sociedade. A cultura pode então ser instrumento na transformação do lugar social da loucura. A cultura produzida pelos sujeitos que viveram ou vivem a experiência do sofrimento, da medicalização, da discriminação e do estigma, produzindo novos significados, novos sentidos, um novo imaginário social: “Não existe ‘folclore’ – o que existe é cultura […] Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação”29. Essa visão abrangente de cultura supera as dicotomias herdadas da visão colonialista e etnocêntrica de cultura e arte, abrindo as políticas públicas de arte-cultura para os “segmentos excluídos”, valorizando as expressões culturais e artísticas dos diferentes grupos e minorias e das diferentes comunidades no que elas têm de diversidade e singularidade. Desse modo, contribui-se para o fortalecimento e construção de políticas culturais para sujeitos e coletivos antes excluídos da visão de cultura e do acesso às políticas públicas em geral. Um dos pontos mais importantes para uma crítica do conceito de cultura é a questão da arte como linguagem dialógica que transcende a racionalidade científica. Está em curso uma transição 768

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paradigmática, que propõe questionamentos profundos sobre o paradigma científico moderno e sobre a noção de cultura dominante que desvalorizou os saberes populares e não científicos, produzindo discriminação de sujeitos e grupos sociais30. Para Boaventura de Souza Santos, uma razão “indolente” se apropriou das matrizes epistemológicas de produção do conhecimento; portanto, seria preciso descolonizar o pensamento, por meio da redefinição dos conceitos de cultura e de direitos humanos, rompendo com o estatuto de verdade do discurso científico e com as consequências da discriminação dos discursos extracientíficos como inferiores31.

“Nem um passo atrás, manicômios nunca mais”: o movimento antimanicomial como transformação da cultura Diversas formas de expressão devem ser lembradas como parte do movimento de intervenção artístico-cultural da RP, como inúmeras passeatas, atos públicos e shows históricos, como no Projeto “Canta Loucura”, na Estação das Barcas da Cantareira em Niterói/RJ. Outros eventos de destaque no cenário recente são a Mostra “Loucura e Cultura”, no Centro Cultural Banco do Brasil, um dos espaços mais importantes da cultura nacional, que abriu suas portas para o evento em 2005; o “Festival da Loucura”, em Barbacena; o “Festival da Diversidade”, no Rio de Janeiro; e o “Festival da Independência da Cultura”, ocorrido em 7 de setembro de 2010, com grupos da diversidade cultural de todo o país, incluindo a participação de artistas e grupos ligados ao movimento antimanicomial: um grande show musical e apresentação de danças e ritmos nos arcos da Lapa no Rio de Janeiro. A questão da participação social a partir da dimensão sociocultural da reforma psiquiátrica no Brasil sempre teve destaque, demonstrando o vigor do movimento e sua contundência na transformação da relação da sociedade com a loucura e a diferença. Por exemplo, tem-se as quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental (CNSM), sendo que a primeira e a segunda conferência ocorreram em 1987 e 1992, ou seja, no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, período de grandes mudanças para a RP, com o surgimento dos primeiros serviços de atenção psicossocial pioneiros no país. O período pós-Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001) tem sido um dos mais transformadores, com diversos avanços, como a diversificação de dispositivos, estratégias e experiências de transformação do modelo assistencial e ampliação das possibilidades de inclusão social sem precedentes. Além disso, a III CNSM, realizada em 2001 (Relatório IIICNSM) e a IV CNSM – Intersetorial, realizada em 2010 (Relatório IVCNSM), precedidas por conferências municipais e estaduais em todo o país, foram momentos de grande importância política para o movimento antimanicomial e para os atores da RP brasileira. Outros eventos dignos de registro foram os congressos e fóruns da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), fundada em 2007, com um total de cinco Congressos Brasileiros de Saúde Mental (2008; 2010; 2012; 2014 e 2016) – tendo o 3º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, ocorrido em 2012 em Fortaleza, contado com mais de sete mil participantes; e o 1º e 2º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental ocorridos em 2013 em São Paulo e em 2015 em João Pessoa (PB). Este último fórum contou com mais de três mil participantes. Existem ainda as comemorações do Dia Nacional da Luta Antimanicomial: o Dia 18 de Maio, que se consolidou no país em eventos espalhados por todos os cantos e com relevante visibilidade social. Tal comemoração tem papel de destaque no movimento antimanicomial brasileiro e já é adotado há quase trinta anos, geralmente como evento de ocupação de espaços públicos da cidade, em atos públicos e em passeatas, com utilização de recursos artísticos e intervenções culturais e políticas de diversos tipos.

Considerações finais Avanços, permanências e resistências na Reforma Psiquiátrica Este artigo abordou prioritariamente a dimensão sociocultural da RP brasileira, acentuando o fato de que esta não se reduz à dimensão técnico-assistencial, ao modelo assistencial. É necessário, no COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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entanto, relevar a importância do processo como um todo, destacando as transformações no modelo assistencial e no âmbito jurídico e político. Deve-se destacar que foram fechados cerca de sessenta mil leitos psiquiátricos nos últimos vinte anos, embora ainda existam cerca de trinta mil. Além disso, até 2014, tinham sido abertos 2.209 Caps e muitos outros equipamentos e dispositivos, como as mais de seiscentas residências de ex-internos de hospitais psiquiátricos (chamadas Residências Terapêuticas), os mais de quatro mil beneficiários do “Programa de Volta pra Casa” (que paga um auxílio financeiro para contribuir com o processo de reinserção social), os mais de cinquenta Centros de Convivência e Cultura, cerca de mil leitos de Saúde Mental em hospitais gerais e 110 “Consultórios na Rua”. Sob outra perspectiva, foram criadas centenas de iniciativas de trabalho e geração de renda, tais como cooperativas sociais e outras formas de empreendimentos de economia solidária. Foi também aprovada uma lei nacional da RP, a Lei 10.216/01, e muitas leis de âmbito estadual e municipal que versam sobre inovações no modelo assistencial e sobre os direitos humanos das pessoas em sofrimento psíquico32. A relação da sociedade com as pessoas com diagnósticos psiquiátricos está em processo de mudança; por um lado, porque mudam os serviços e as estratégias assistenciais. A visão tradicional de que “lugar de louco é no hospício” vai dando lugar a outras compreensões, na medida em que tais sujeitos passam a ser assistidos; mais do que apenas assistidos, a conviver em Caps, em cooperativas, em projetos culturais, em associações e em outros espaços coletivos. Um movimento interessante passou a ocorrer no campo cultural como um todo, com o surgimento de muitas iniciativas “externas” ao campo da atenção psicossocial. É o caso do filme “Bicho de 7 Cabeças”, de Laís Bodansky, baseado no livro “Canto dos Malditos”, de Austregésilo Carrano33, uma espécie de diário de sua internação em hospitais psiquiátricos. O filme expressa uma postura assumidamente antimanicomial! É o caso também do filme “Estamira”, de Marcos Prado, sobre a vida de uma catadora de lixo do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Há o caso da novela “Caminho das Índias”, do mais importante canal de televisão brasileiro, no horário mais nobre da programação, que se inspirou em situações decorrentes das experiências culturais aqui abordadas e que, inclusive, contou com a participação dos artistas desses projetos. Foi o caso também do “Loucos por Música”, com diversos artistas de renome da música brasileira tocando no mesmo palco de artistas dos projetos culturais da RP. Enfim, inúmeras exposições em museus e centros de cultura, montagens e apresentações teatrais, concertos e performances variadas passaram a ocorrer no país inteiro, com vinculação explícita ao processo da RP brasileira. O exemplo mais recente, de 2016, foi o longametragem “Nise – O Coração da Loucura”, de Roberto Berliner, sobre o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira, um dos ícones do movimento de questionamento das instituições psiquiátricas no Brasil. Embora a compreensão da sociedade sobre a loucura e o sofrimento mental possa estar em transição (em decorrência de todo o processo da RP, que vai da mudança do modelo assistencial até as estratégias de potencialização dos direitos e participação social), é preciso reconhecer a resistência dos processos imaginários tradicionais. Mesmo a substituição do termo paciente por “usuário” (associada a uma ideia de protagonismo) não se demonstra suficiente. Ao mesmo tempo em que se registra o surgimento de tantos projetos artístico-culturais, surgem iniciativas opostas às ideias de diversidade e de sujeitos de direitos. Ou seja, ao mesmo tempo em que diminui a vinculação da ideia de transtorno mental como sinônimo de internação hospitalar, ou concepções semelhantes, existem movimentos pró-institucionalizantes em outras frentes, como o referente à questão da dependência química. Há hoje no país uma importante expansão das denominadas comunidades terapêuticas, que são macroinstituições de natureza predominantemente religiosa, com uma visão moralista e conservadora. Recebem apoio de parcelas expressivas da sociedade e da classe política que tem interesses diretos nessas instituições, seja por atenderem a demandas assistencialistas, seja por motivações eleitorais ou financeiras34. Outro aspecto a observar é o da crescente campanha de medicalização da sociedade, feita por intermédio da mídia, da classe psiquiátrica, das universidades e da indústria farmacêutica. Por uma questão de mercado, e também por uma visão de exclusão social do diferente, tem ocorrido a ascensão de interesses na contramão da RP, com um visível processo de patologização dos comportamentos e expansão da psiquiatrização social e da medicalização da vida35-40. Esse fenômeno se relaciona com os novos modos de captura pelo poder psiquiátrico, que já não dependem dos 770

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espaços institucionais ou da reclusão asilar e que vêm ganhando os espaços de vida em sociedade, com clara hiperinflação diagnóstica, medicalização da infância e da vida cotidiana e de todo tipo de sofrimento psíquico da população. Isso também se reverte em clara tendência de aumento do consumo não apenas de medicamentos, mas também de consultas, exames e procedimentos em Psiquiatria, com consequências iatrogênicas e ganhos financeiros: “Esse foco na doença, e não na doença e em seu contexto, cristalizou uma visão de saúde pública que [...] criou uma espécie de ‘farmaceuticalização’. […] Isso significa que o direito à saúde é visto como dar ao cidadão acesso à tecnologia e ao fármaco.”40. Apesar da RP ter provocado uma redução significativa de recursos destinados a internações psiquiátricas em manicômios e um aumento progressivo nas despesas com serviços comunitários e substitutivos, a distribuição de psicotrópicos cresceu verticalmente, especialmente o custo com novas drogas antipsicóticas. A partir dessas questões, é possível uma compreensão de que o fechamento de leitos manicomiais não é acompanhado automaticamente de uma menor penetração dos psicotrópicos na sociedade, ou de uma prática concreta de desmedicalização nos serviços substitutivos ao manicômio e em outros serviços de Saúde e Saúde Mental. Nas últimas décadas, o avanço dos processos de abertura manicomial convive com um vertiginoso aprofundamento da disseminação dos psicofármacos e do discurso da medicalização da sociedade, relacionado à hiperinflação diagnóstica, à renovação da indústria da doença e ao recrudescimento dos interesses manicomializantes. Daí a importância de compreender como as inovações da RP brasileira podem produzir formas de enfrentamento do paradigma psiquiátrico e de concepções excludentes e permitir que os processos de desinstitucionalização transcendam a desmontagem da instituição psiquiátrica, alcançando a potência de desnaturalização da cultura manicomial – como ensinou Basaglia, “não basta abater a espessura dos muros do manicômio”, trata-se de lutar por cidadania e inclusão, na defesa da diversidade cultural e do direito à saúde e à vida.

Colaboradores Os autores participaram da discussão dos resultados, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Amarante P. Teoria e crítica em saúde mental: textos selecionados. São Paulo: Zagodoni; 2015. 2. Foucault M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes; 1984. 3. Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização: uma outra via. In: Nicácio MF, organizador. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. 4. Fleury S, organizadora. Reforma sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Cortêz; 1989. 5. Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015.

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6. Lancetti A, organizador. Saúde-Loucura no. 7: Saúde Mental e Saúde da Família. São Paulo: HUCITEC; 2000. 7. Campos FCB, Henriques CM, organizadores. Contra a maré à beira-mar: a experiência do SUS em Santos. São Paulo: Hucitec; 1997. 8. Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989. 9. Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. 10. Santiago E, Yasui S. Saúde mental e economia solidária: cartografias do seu discurso político. Psicol Soc. 2015; 27(3):700-11. 11. Lima IB, Silva JE, Cruz SS. Políticas públicas de saúde mental e economia solidária: construção de uma nova concepção. Rev Enferm UFPE. 2013; 7 Esp:1008-15. 12. Pinho KLR, Pinho LP, Lussi IAO, Machado MLT, organizadores. Relatos de experiências em inclusão social pelo trabalho na saúde. São Carlos: Compacta Grafica e Editora; 2014. 13. Amarante P, Costa AM. Diversidade cultural e saúde. Rio de Janeiro: CEBES; 2012. (Coleção temas fundamentais da reforma sanitária; n. 10). 14. Melo W, Ferreira AP. A sabedoria que a gente não sabe. Rio de Janeiro: Espaço Artaud, Universidade Federal de São João del Rey; 2011. v. 1. 15. Amarante P, Nocam F, organizadores. Saúde mental e arte: práticas, saberes e debates. São Paulo: Zagodoni; 2012. 16. Lima EMFA. Arte, clínica e loucura: território em mutação. São Paulo: Summus, Fapesp; 2009. 17. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. v. 1-5. 18. Castel R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes; 1998. 19. Ministério da Cultura (BR). Loucos pela Diversidade: da diversidade da loucura à identidade da cultura. Relatório Final da Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para pessoas em sofrimento mental e em situações de risco social. Rio de Janeiro: LAPS; 2008. 20. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco. Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais. Paris: UNESCO; 2006. 21. Souza AR. Direitos culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azougue; 2012. 22. Yúdice G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG; 2004. 23. Chauí M. Cultura política e política cultural. Estud Av. 1995; 9(23):71-84. 24. Amarante P, Freitas F, Nabuco E, Pande M. Da diversidade da loucura à identidade da cultura: o movimento social cultural no campo da reforma psiquiátrica. Cad Bras Saude Mental. 2012; 4(8):125-32. 25. Corbella L. Saúde mental e memória: o teatro dos andarilhos mágicos. Rio de Janeiro: FAPERJ, 7 Letras; 2015. 26. Wanderley L. O dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o objeto relacional de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Rocco; 2002. 27. Siqueira-Silva R, Moraes M, Nunes JA, Amarante P, Oliveira MHB. Reforma Psiquiátrica brasileira e estética musical inclusiva. Cad Bras Saude Mental. 2012; 4(8):105-14.

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28. Basaglia F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica – Franco Basaglia. Organização Paulo Amarante. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. 29. Gil G. Cultura: a argamassa de um novo projeto nacional. Almanaque Cultura Viva. Brasília: Ministério da Cultura; 2010. 30. Santos BS. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento; 1987. 31. Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Edipro; 2000. 32. Ministério da Saúde (BR). Saúde mental em dados – 12, ano 10, no 12. Informativo eletrônico. Brasília; 2015 [citado 22 Nov 2015]. Disponível em: http://www. mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Report_12-edicaodo-Saude-Mental-em-Dados.pdf. 33. Bueno AC. Canto dos malditos. São Paulo: Lemos Editorial; 2000. 34. Queiroz IS. Os programas de redução de danos como espaços de exercício da cidadania dos usuários de drogas. Psicol Cienc Prof. 2001; 21(4):2-15. 35. Angell M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Tradução Waldéa Barcellos 5a ed. Rio de Janeiro: Record; 2010. 36. Frances A. Voltando ao normal. Como o excesso de diagnóstico e medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomar o controle. Rio de Janeiro: Versal Editores; 2016. 37. Whitaker R. Anatomy of an epidemic: magic bullets, psychiatric drugs, and the astonishing rise of mental illness in America. Nova York: Crown Publishing Group; 2010. 38. Whitaker R, Cosgrove L. Psychiatry under the influence: institutional corruption, social injury, and prescriptions for reform. New York: Palgrave Macmillan; 2015. 39. Biehl J. Antropologia do devir: psicofármacos – abandono social – desejo. Rev Antropol. 2008; 51(2):413-49. 40. Biehl J. Antropologia no campo da saúde global. Porto Alegre: Horizontes Antropológicos; 2011.

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Amarante P, Torre EHG. Locura y diversidad cultural: innovación y ruptura en las experiencias de arte y cultura de la Reforma Psiquiátrica y del campo de la Salud Mental en Brasil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):763-74. El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre las innovaciones producidas por la reforma psiquiátrica para el manejo de la salud mental en Brasil, especialmente por medio de un movimiento artístico-cultural de construcción de nuevas concepciones sobre la locura y el sufrimiento mental. Siendo así, el artículo analiza las rupturas con el paradigma psiquiátrico que se han operado a partir de las experiencias artístico-culturales brasileñas, por medio de innumerables proyectos de arte-cultura en el campo de la salud mental, en las cuales los actores del proceso de reforma psiquiátrica han producido no solo nuevas posibilidades de vida, expresión e inclusión social para los sujetos en sufrimiento mental, sino también la construcción de un nuevo lugar social para la locura. Finalmente, se refleja sobre los cambios en el imaginario social en el sentido de la solidaridad, ante permanencias y resistencias a los cambios y el surgimiento de otras formas de exclusión y medicalización.

Palabras clave: Locura. Arte-cultura. Reforma Psiquiátrica.

Submetido em 13/11/16. Aprovado em 24/07/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0845

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Quando a cidade “escuta vozes”: o que a democracia tem a aprender com a loucura

Simone Mainieri Paulon(a)

Paulon SM. When the city “hears voices”: what democracy has to learn from madness. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):775-86.

This essay proposes a reflection on the processes of homogenization that biopower imposes on the many ways of inhabiting cities, with a resultant silencing of insurgent subjectivities. The article draws on poststructuralist readings about madness, which is understood as a radical experience of alterity, set against the crisis of the representative model of present politics. But contemporary cities are made up of many voices. And on this point, some alternatives can emerge. Seeking to listen to what all have to say is part of the duty of civilizing, and it can redefine and expand what we have come to understand as democracy in the current world. As such, creating spaces in the city’s meshes to allow for the circulation of difference represents a concrete possibility for repoliticization at a global scale of social practice, and it may echo in new forms of citizenship and the emergence of a world that is, at once, more plural and more welcoming of singularities.

Keywords: Democracy. Cities. Mental Health. Psychiatric Reform. Citizenship.

Trata-se de um ensaio que propõe a reflexão acerca dos processos de homogeneização que o biopoder impõe às muitas formas de habitar as cidades, com decorrente silenciamento de subjetividades insurgentes. Articula leituras pós-estruturalistas sobre a loucura, compreendida como experiência radical de alteridade, à crise do modelo representativo na atualidade política. Mas as cidades contemporâneas são feitas de muitas vozes. E, nesse ponto, algumas alternativas podem emergir. Buscar o que todas têm a dizer é parte da tarefa civilizatória e pode redefinir e ampliar o que vimos modernamente entendido por democracia. Criar espaços nas malhas da cidade à circulação da diferença constitui, por isso, uma possibilidade concreta de repolitização global da prática social e pode ecoar em novas formas de cidadania e produção de um mundo mais plural e acolhedor a todas singularidades.

Palavras-chave: Democracia. Cidades. Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica. Cidadania.

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Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcellos, 2600, Sala 212, Santana. Porto Alegre, RS, Brasil. 90035-003. simone.paulon@ufrgs.br (a)

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Introdução Há ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. Insurge-se, é um fato: é por isso que a “subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) se introduz na história e lhe dá seu alento”. Um delinquente arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco não suporta mais estar preso e decaído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso não torna o primeiro inocente, não cura o outro, e não garante ao terceiro os dias prometidos. Ninguém, aliás, é obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é obrigado a achar que aquelas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam da essência do verdadeiro. “Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo o que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e buscar o que elas querem dizer”.1 (p. 80, destaques da autora)

As cidades contemporâneas são feitas de muitas vozes. Buscar o que todas têm a dizer e compreender o que Foucault denunciava como “a indignidade de se falar pelos outros” é parte da tarefa civilizatória e pode redefinir e ampliar o que vimos modernamente como democracia. Escutar as vozes desviantes, dar espaço às “experiências à deriva”2, investigar demandas de segmentos historicamente amordaçados pelo poder hegemônico constitui, por isso, uma possibilidade concreta de contribuição das Ciências Sociais ao que Santos3 propõe como “repolitização global da prática social” (p. 271). Este ensaio inscreve-se como proposta reflexiva entre as contribuições possíveis às urgências sociais que as cidades contemporâneas nos apresentam. Para tanto, parte da compreensão de que, no silenciamento das pessoas que padecem de sofrimento psíquico, e dos movimentos a elas associados, há toda uma história de opressões e tentativas de controlar a loucura que extrapola a violação dos direitos à cidadania de uma parcela específica da população(b). Por decorrência, dar ouvidos a suas “viagens”, sensibilizar os espaços públicos a suas excentricidades pode fazer ecoar “novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania”3 (p. 271). Trata-se, portanto, como indicou Guattari, de explorar a potência inventiva de novos modos de ser e com-viver que paradoxalmente os espaços urbanos complexos comportam; afinal, “Uma ordem objetiva ‘mutante’ pode nascer do caos atual de nossas cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver”4 (p. 175). Remontar esse percurso de silenciamento dos loucos pode nos ajudar na tarefa aqui proposta de atualização das formas de exclusão que limitam a democracia e excluem o dissonante da composição de um tecido social mais plástico e enriquecido do diverso. Quando as portas dos já esvaziados leprosários no século XVII abriram-se para recolher desviantes de todas as ordens que infestavam as crescentes cidades com sua mundanidade insuportável à ordem burguesa, um longo processo de higienização dos espaços públicos estava apenas se anunciando. A violência social contra o radical diferente, que tomaria a forma institucional de enclausuramento da loucura, afirmar-se-ia soberana por mais de três longos séculos. Ao analisar os efeitos dessa “grande internação”5 (p. 9), Foucault5 alerta que os valores e as imagens associados à personagem do leproso permaneceriam, de algum modo, vinculados ao louco; pois “[...] é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado” (p. 9). Mas a expulsão e silenciamento dessas vozes desarrazoadas das cidades não evitaria que a humanidade tivesse que se enfrentar, de algum modo, com sua 776

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O segmento aqui genericamente designado por “loucos”, ou, neste parágrafo, “pessoas que padecem de sofrimento psíquico”, faz referência à parcela da população que, por decorrência de um diagnóstico psiquiátrico, em tempos anteriores às legislações da Reforma Psiquiátrica, teriam como único destino o asilamento. A equivalência dessas subjetividades desviantes a “doentes mentais” é tema de ampla análise nas obras de Foucault 5-9 e será debatida a seguir. Para as finalidades deste artigo, importa ressaltar que, na atualidade, há uma tendência a considerar os usuários de drogas ilícitas, principalmente crack, como os novos monstros sociais, ou os outsiders, a serem prioritariamente normatizados10-11. (b)


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Título de projeto de investigação “Alice: espelhos estranhos, lições imprevistas”, coordenado pelo professor Boaventura Santos na Universidade de Coimbra. No Brasil, publicado sob o título “Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade”3 (c)

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própria complexidade subjetiva. “Pois se existe razão, é justamente na aceitação desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura, é na clara consciência de sua reciprocidade e de sua impossível partilha”5 (p. 39). O que se perderia com esse processo de enclausuramento da loucura? Que destino teriam tais pluralidades humanas quando cerceadas do convívio sob a égide da razão? O que as cidades fariam para “con(?)-viver” com esse “vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens”5 (p. 18) que o louco apresenta? Em recente investigação acerca dos desafios da desinstitucionalização em Portugal, o grupo de pesquisadores introduz a apresentação dos resultados encontrados afirmando que “a doença mental é um dos temas que mais interpela as sociedades quanto à sua capacidade de lidar com a diferença e com o incomum”6 (p. 9), o que faz deste um importante analisador social, mais do que um assunto para especialistas. Assim entendê-lo, entretanto, implica outros enfrentamentos que também extrapolam, em muito, os limites disciplinares que ainda tentam circunscrever toda lógica de segregação atrelada ao poder psiquiátrico hegemônico no campo da Saúde Mental a um mero problema de Saúde. Apostando em outra direção e alinhado ao enunciado foucaultiano com o qual abrimos este texto em sua afirmação de que a história é feita na composição de subjetividades insurgentes, quer-se aqui afirmar que as vozes loucas, sentenciadas ao confinamento, têm algo a dizer à democracia contemporânea. Trata-se, nessa medida, de uma luta por direitos mais ampla do que aquela que os movimentos de reforma psiquiátrica e mesmo de Saúde Coletiva têm empreendido em âmbito internacional. Trata-se, também, de uma questão de cidadania que não se reduz aos direitos de um segmento restrito que padece de certo tipo de adoecimento. Como diz Boaventura dos Santos3 ao referir a necessidade de um pensamento heterotópico, quer-se aqui reforçar a urgência de repor para a atualidade uma “luta civilizacional por padrões alternativos de sociabilidade e de transformação social” (p. 342). A um modo guiado “pela mão de Alice”(c), este artigo aponta a possibilidade do diálogo com a desrazão que o acolhimento à loucura oferece ao constituirse em um dispositivo para transformação de saberes em direção a uma sociedade mais plural e justa, afinado aos princípios ético-políticos das reformas psiquiátricas dos países a que se destinam. Para fazê-lo, situar-se-á brevemente a lógica de segregação da loucura entre as constelações sociopolíticas sintomáticas do capitalismo financeiro para, em seguida, localizar os desafios que se colocam às práticas emancipadoras. O intuito será apontar em que medida a loucura, quando não enclausurada, pode ajudar a pensar a vida urbana e a crise mundial da democracia representativa, especialmente evidenciada no atual momento da política brasileira.

Da lógica do capital à loucura segregada No asilo, desenvolvem-se dispositivos pelos quais a palavra é desarticulada até não poder transformar-se em grito. A forma “grito” é-lhes tornada inacessível. O indizível enraíza-se no corpo. E um silêncio sem sombra faz-se matéria com o corpo7. (p. 230)

Um dos legados do projeto genealógico foucaultiano demostra como a Medicina social, calcada em princípios higienistas, serviu ao capitalismo, desenvolvendo dispositivos de poder sobre o corpo. Tomado como objeto de normatização e normalização para controle e melhoria da saúde da população, o corpo é progressivamente investido nas relações de poder, tornando-se uma COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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realidade biopolítica. Ao atuar não mais como o poder soberano no sentido de “fazer morrer ou deixar viver”, o biopoder prolonga os efeitos do poder disciplinar segundo a nova fórmula do “fazer viver e deixar morrer”. De alcance mais vasto, portanto, que o poder soberano, suas tecnologias têm como alvo o ser humano como ser vivo: “A vida em seu conjunto passa a ser objeto de preocupação do Estado, por meio da intervenção médica”8 (p. 158). Ao analisar o surgimento, a partir do século XVIII, de uma Medicina de Estado, Foucault a identifica como fundamental ao funcionamento do mercantilismo crescente e garantia da majoração da população produtiva. É assim que a vida individual e coletiva torna-se objeto de práticas de normalização, definindo uma “polícia médica”8, cujo poder político exercia-se “colocando os indivíduos uns ao lado dos outros, isolando-os, individualizando-os, vigiando-os, analisando o estado de saúde de cada um, [...] fixando assim a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado9 (p. 89). Atualizando tais modelos de Atenção à Saúde, estabelecem-se muitos paralelos: formas de cuidado hierarquizadas, prescrições tutelares, supermedicalização, processos de trabalho centrados no médico, tratamentos morais. A operação biopolítica de transformar profissionais de saúde em vigilantes guardiães de corpos dóceis data de mais de três séculos e tem suas raízes nas configurações de saber-poder exigidas em cada período do capitalismo. Como assinala Desviat12 ao iniciar avaliação do “Panorama Internacional da Reforma Psiquiátrica” com dados que apontam a desigualdade de renda no planeta, “[...] la salud no solo es esencial para el bienestar individual, sino que también lo es para el crecimiento económico y la reducción de la pobreza en los países” (p. 4616). Nesse sentido, a operação meticulosamente demostrada por Foucault5,9 de transformação da desrazão em doença mental foi apenas um dos desdobramentos a que o desenvolvimento do poder disciplinar levou a sociedade moderna. Ao fazer da loucura um problema de saúde e do poder psiquiátrico uma de suas ferramentas, o tratamento moral dispensado aos desarrazoados evidencia-se como poder normalizador sobre os modos de vida nas cidades. Inscreve-se, pois, entre as configurações de poder forjadas no seio da modernidade, cujas estruturas de controle extrapolam, em muito, o restrito campo da saúde. Seguindo semelhante análise, Torre e Amarante13 demonstram que a forma de produção de saberes e do exercício do poder sobre os sujeitos na modernidade opera o surgimento do sujeito da razão, enquanto afirmação da lógica cartesiana de um sujeito sadio igualado a “dono de si” e do universo. A loucura é o seu contraponto, seu negativo; por isso, “[...] é capturada como sujeito da desrazão” (p. 74). Pelbart14 faz equivalente leitura ao compreender que o sujeito alienado e, mais tarde, definido por doente mental, no imaginário do século das luzes, representa “o avesso do sujeito moderno” (p. 47), já que, segundo o autor, “Sanidade significa ordem, hierarquia, totalização, supremacia organizativa da consciência individual, do gênio. A loucura sobrevém quando esta hierarquia é subvertida” (p. 47). Essa percepção é ainda enfatizada pelo pesquisador da Reforma Psiquiátrica brasileira, Paulo Amarante15, que remonta às condições de possibilidade para exclusão do louco nas cidades e identifica que “A doença não é a condição única, nem a condição objetiva do ser humano que está doente, ao mesmo tempo em que o aspecto em que se encontra o doente é produzido pela sociedade que o rejeita e pela psiquiatria que o rege”15 (p. 75). Na injunção dos saberes modernos que se conjugam em torno de esconjurar tudo que escape à narcísica fantasia iluminista de um indivíduo dono de si e de seu universo, a Psiquiatria cumpre apenas um útil papel. Representando o que Foucault5 considerou tão somente um capítulo da história da loucura, o saber psiquiátrico se instaura soberano no século de proliferação dos manicômios e afirma seu poder científico-policialesco a favor de uma espécie de limpeza das cidades, livrando-as de qualquer heterogeneidade. Daí o desafio de pensarmos um contraponto à lógica segregacionista que invade o século XXI assumindo formas menos concretas do que os muros manicomiais, mas não menos invasivas e docilizantes dos corpos como demonstram as estratégias moralizantes e normatizadoras, amplamente utilizadas em serviços abertos. Enfrentá-la requer novas ferramentas não apenas metodológicas, mas fundamentalmente ético-políticas e, portanto, conceituais. Para tanto, repensar as cidades está entre as urgências de quem quer pensar a loucura de forma alinhada com nosso tempo, como sugerido por Pelbart16, para quem seria necessário: 778

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[...] voltar a pensar a cidade como um universo dissonante e pluralista, mundo do perspectivismo nietzschiano onde já não se trata de múltiplos pontos de vista sobre a mesma coexistência de cidadãos, mas múltiplas cidades em cada ponto de vista, unidos por sua distância e ressoando por suas divergências. Em vez do homem unidimensional e cosmopolita, detectar a cada esquina os forjadores de pluriversos, de multimundos16. (p. 48)

Tomar a cidade para reinventar a polis Situada a segregação da loucura como estratégia de normatização subjetiva no âmbito das formas de controle que o capitalismo vem utilizando, pode-se compreender os movimentos de reforma sanitária e psiquiátrica para além de um problema afeito a um setor ou relacionado a uma ou outra nação. Tal entendimento comparece em grande parte das produções científicas dessa área6,12,17 e indica a pertinência de que os movimentos de reforma psiquiátrica que se pretendam efetivos se engajem em lutas sociais mais amplas e reformem-se enquanto movimentos reformistas. Dito de outro modo, para cumprir a máxima basagliana de afirmação da “liberdade terapêutica”, há de se politizar os movimentos sociais que embalam e sustentam muitas das reformas em curso. A politização aqui diz respeito à concepção defendida por Santos3, que “significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada” (p. 271). Um movimento emancipador no campo da Saúde Mental sustentado nesta diretriz éticopolítica teria uma importante contribuição a dar naquilo que o sociólogo português tem defendido como necessária passagem de um paradigma dominante para o paradigma emergente. Na mesma obra supracitada, ao afirmar a necessidade dessa nova ecologia de saberes para a invenção de uma democracia ecossocialista, ele explica que “As coligações a favor do paradigma emergente são possíveis na exacta medida em que a eles aderem, uma a uma, às diferentes dimensões da subjectividade dos indivíduos e grupos sociais”3 (p. 345-346). É nessa dimensão de uma nova ecologia de saberes que a loucura vista em sua peculiar dimensão de “avesso da razão” pode trazer aos espaços públicos algo que sistemática, ideológica e progressivamente veio deles sendo extirpado: as vozes da diferença. Não é simplesmente uma questão terapêutica para aqueles que padecem de sofrimento mental (ainda que também o seja!). O direito à loucura circular na cidade é também o direito às cidades conviverem com muitas forças que compõem as subjetividades e o dever de todo estado democrático de criar espaços possíveis para que essas diferenças circulem livremente. Porque, entre os desafios que precisamos enfrentar na construção de uma nova política, alerta Santos18, é necessária uma ecologia de saberes suficientemente ampla para acolher “aspirações improferíveis” (p. 52). O autor assinala, entretanto, que elas assim se tornaram não porque não tivessem o que dizer, mas porque, depois de séculos de opressão, já não há linguagem, ousadia, palavras que deem conta daquilo que foi por tanto tempo emudecido. Mas ele também lembra: o silêncio é o resultado do silenciamento: “[...] esse é um dos desafios mais fortes que temos: como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução de silenciamento?” (p. 55). Trata-se, é claro, de um profundo e persistente processo de desinstitucionalização da loucura que, como defendemos em outro trabalho19, não pode ser confundido com desospitalização, afinal: “[...] se as instituições inscrevem-se nos jogos de saber-poder determinantes dos processos do desejo de um tempo datado historicamente, não cabe entendê-las como alheias ou estranhas aos projetos que traçamos para nossas vidas” (p. 185). Desinstitucionalizar, nessa perspectiva, implica um denso trabalho de crítica e revisão daquilo que das instituições nos constitui subjetivamente, integra nossos modos de viver e desejar e demanda transformações. Nesse ponto, a potência de desterritorialização que a loucura apresenta articula-se à urgência de uma epistemologia contra-hegemônica que ajude a pensar e a organizar novas formas e exercícios de cidadania coletiva3. Ao caracterizar uma “Sociologia das ausências” que predomina na racionalidade ocidental das Ciências Sociais, Santos18 apresenta várias “monoculturas” que desqualificam os conhecimentos diversos para afirmar o hegemônico como única verdade admissível. Entre elas está COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a “monocultura do saber e do rigor” (p. 29), que só crê no saber científico, e a “monocultura da naturalização das diferenças” (p. 30), por meio da qual todo diferente é inferiorizado na hierarquia social “por natureza”. Explorar, portanto, a potência crítica e perturbadora que a loucura traz em si como um dispositivo para a transição do paradigma moderno ao emergente fornece algumas pistas aos esforços teóricos que se fazem necessários no sentido de intensificar a democracia. Ainda segundo o sociólogo, tais esforços devem incluir, reunidas no sentido da transformação da prática social: “[...] uma ‘nova teoria da democracia’ que permita reconstruir o conceito de cidadania, uma ‘nova teoria da subjetividade” que permita reconstruir o conceito de sujeito, e uma “nova teoria da emancipação’ [...]”18. (p. 270)

Des-lo(u)car a cidade, reinventar a política As cidades de nossos dias, assim como as do passado, são territórios de fecundos conflitos, experimentações, lugar onde se produz a face do diverso, do estranho, do familiar, do estrangeiro. Local ao mesmo tempo de fabricação de práticas para acolhê-los, dar corpo às suas faces ou dissipá-los20. (p. 23)

Nesta via de mão dupla, em que a cidade se abre à diferença radical da loucura e o louco tem a possibilidade de inventar modos de viver e circular na cidade, já que não mais enclausurado, novos desafios se apresentam. Afinal, como alerta Baptista20, as cidades não são espaços de convivência harmônica, apenas, de modos hegemônicos de subjetivação. São territórios prenhes de conflitos, tão múltiplos e contraditórios quanto são os modos de viver que as habitam. Por isso, o conceito de território vem recebendo atenção no campo da saúde coletiva, entendido como território vivo, repleto de existências e de histórias de vida, no qual se dá a produção de saúde e a emergência de novas subjetividades. Nessa perspectiva, a contribuição do geógrafo brasileiro Milton Santos21 é indispensável, pois, para ele: O território é o chão e mais a população [...], o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população. (p. 96)

A inserção territorial dos serviços de saúde, em contraponto à lógica hospitalocêntrica, focada nos especialismos, tem-se orientado nesse conceito que, em seu sentido ampliado, comparece em vários documentos e legislações internacionais da saúde mental e no planejamento das políticas públicas22-25. Ao dialogar com outras áreas do conhecimento, Milton Santos26 traz a ideia de que o território geográfico é uma instância social, assim como a economia, a cultura e a política, indispensável para o entendimento do mundo presente, que se organiza na relação entre o global e o local. É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social [...] a interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território26. (p. 255)

O conceito de território, assim, torna-se diferencial a um modelo de atenção em saúde que compreenda a importância de compor um paradigma emergente e inventar junto com as subjetividades insurgentes seus modos singulares possíveis de viver no contexto comunitário. É essa a perspectiva do cuidado territorializado tão fundamental à tessitura de uma rede de atenção psicossocial, como hoje inscrita na política nacional brasileira para essa área, cujas diretrizes incluem, por exemplo, o: “[...] desenvolvimento de atividades no território, que favoreça a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania”25. A fim de se considerar os modos de organização e articulação próprios das populações, a territorialização do cuidado, na concepção que vem sendo incorporada às políticas públicas de saúde no Brasil: “[...] implica a recusa de atribuir legitimidade apenas ao saber técnico e de anular os repertórios de saberes dos usuários, dos familiares e das pessoas do território”27 (p. 199). 780

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Depreende-se daí que a invenção de novos modos de habitar e viver as cidades não está dissociada da criação de estratégias e dispositivos que permitam maior porosidade ao tecido urbano, tornando-o suficientemente sensível às forças instituintes, aos desvarios incabíveis às homogeneidades massificadas. É esse o sentido que nos parece enriquecedor à cultura democrática, se pensarmos que a ampliação de potenciais pontos de acolhimento à loucura possam transpor as barreiras sanitárias, constituindo redes afetivas de conversações28 nas quais o diálogo e o convívio com o diverso ganhem espaços na cidade. A compreensão da relação entre plasticidade cultural e ganhos civilizatórios, entre os muitos modos possíveis de se viver a vida e a grandeza de uma sociedade que é capaz de acolhê-los sem discriminações, torna-se neste ponto fundamental. É esse o sentido pedagógico que a singularidade do louco pode apresentar às subjetividades massificadas de nossas modernas cidades; um sentido que transborda as barreiras sanitárias, porque extrapola as demandas das pessoas que sofrem ou estão próximas àqueles que sofrem diretamente com algum transtorno psíquico. Tal como expresso pelo sanitarista Sérgio Arouca em sua clássica afirmação de que a Reforma Sanitária29, mais do que um novo Sistema de Saúde propunha ao país um “processo civilizatório”, a perspectiva do cuidado em liberdade promulgada pela Reforma Psiquiátrica anuncia a possibilidade da constituição de culturas mais afeitas à realidade dos humanos. Tem-se, assim, uma realidade que não é homogênea, mas mutante e inventiva4, como os indivíduos e as cidades. Dito de outro modo, o que as legislações de Saúde e Direitos Humanos induzem nossas cidades a fazerem, quando propõem transformar o modo de atenção asilar em Saúde Mental para um cuidado em rede psicossocial, é alinharem-se a um tempo em que se tornou incontornável, se não “comviver”, no mínimo confrontar-se com a existência desses radicais diferentes que já não podem ficar confinados em espaços a eles antes destinados. Lembrando a expressão que refere a loucura como “ausência de obra”5 (p. 529), no sentido de “obra” como conjunto de prescrições capturantes e alienantes instituídas socialmente, abre-se, aí, como acena o filósofo da História da Loucura, um interessante vazio: “[...] um tempo de silêncio, uma questão sem resposta, provoca um dilaceramento sem reconciliação onde o mundo é obrigado a interrogar-se” (p. 530). Confrontar a cidade moderna, planejada (ou pretensamente planejável) com o caos que ela produz é um modo de jogá-la ao “vazio de obra”, instigá-la a defrontar-se com os restos humanos que também a constituem. Apesar de a constituírem, desde o século XVIII, com as crescentes práticas higienistas até os mais refinados dispositivos de controle de que o biopoder se vale no contemporâneo – como a hipermedicalização e os padrões tirânicos de estética ou de padronização da saúde “perfeita” –, a cidade insiste em virar as costas a tudo que quebre sua patética fantasia de homogeneidade. Como romper tal silenciamento? Como borrar as paisagens esquadrinhadas por linhas horizontais e verticais, entre avenidas e prédios, para traçar outros planos de subjetivação? O que fazer para transversalizar os espaços estriados das duras arquiteturas montadas para grandes e silenciosas maiorias? No questionamento das formas enrijecidas que vão tomando conta de nossos espaços urbanos, encontro uma proposição transgressora na filosofia da diferença a subsidiar nossas reflexões: Mesmo a cidade mais estriada secreta espaços lisos: habitar a cidade como nômade, ou troglodita. Às vezes não bastam movimentos, de velocidade ou de lentidão, para recriar um espaço liso. Evidentemente os espaços lisos, por si só não são libertadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar30. (p. 214)

Nessa perspectiva de mudar a luta para inventar novos andamentos que fluidifiquem os movimentos nas cidades, Deleuze e Guattari apontam a pista metodológica de criação de espaços lisos como linhas de fuga aos estriamentos, verticalizações endurecedoras dos modos de vida urbana. Para os autores, espaços estriados correspondem àqueles demarcados pelas linhas duras do Estado, que são segmentados por formas fixas – verticalidades e horizontalidades ordenadas que limitam movimentos estranhos – e que constrangem experimentações existenciais incabíveis às sedentárias formas de vida instituídas. Já os espaços lisos, livres das segmentações institucionais, definem-se como uma “zona de indiscernibilidade própria ao ‘devir’”30 (p. 197). Nos espaços lisos, os pontos são definidos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pelos trajetos, enquanto o estriamento é que determina quais os pontos a serem percorridos por um trajeto desenhado a priori. Seguindo a linha da reflexão que emerge da necessidade de afrontar os obstáculos impostos pelo espaço estriado, os esquizoanalistas evocam a figura das máquinas de guerra para compor estratégias de resistência aos segmentos estatizados e afirmam ser possível “colocar a máquina de guerra a serviço da paz. Mas esta operação não passa pelo aparelho de Estado, ao contrário, ela exprime uma última metamorfose da máquina de guerra, e se realiza em espaço liso”30 (p. 199). Em um momento da história em que regimes democráticos arduamente conquistados se veem ameaçados sob o predomínio de tecnologias biopolíticas que constrangem os povos às segmentações do capital, pensar dispositivos de resistência que possam perfurar as aparentes homogeneidades monolíticas das formas de organização política dadas parece ser uma urgência que a nós se apresenta. A urgência da invenção de máquinas de guerra desterritorializantes do Estado, macro e micropoliticamente concebido, incluindo o Estado em nós, impõese com ainda maior clareza quando nos debruçamos sobre os acontecimentos políticos atuais da jovem democracia brasileira. O arrastado e juridicamente criticado processo de impeachment(d), que retirou a segunda de quatro presidentes da república eleitos por voto direto desde que o Brasil conquistou o direito de eleger desse modo seu chefe maior, após os 21 anos de ditadura militar, indica, no mínimo, a fragilidade de nossas estruturas democráticas. Importa lembrar, ainda, que, em tese, tais estruturas democráticas foram constituídas para garantir a estabilidade da representação política da diversidade que compõe a maioria da população do país. O estudo das democracias contemporâneas, elucidado pelo pensamento de Hart e Negri32, ajuda-nos a perceber quão distantes nos encontramos de uma experiência constituída de democracia. Apesar de isso ser válido não apenas para a realidade no Brasil, mas da grande maioria de regimes ditos democráticos do mundo, a conjuntura política brasileira vive uma excepcionalidade que torna ainda mais evidente a análise dos filósofos. A representação, como solução inventada para tornar o governo de muitos em governo de todos e para ampliar ao âmbito do Estado-Nação o que se praticava na polis, tem progressivamente evidenciado sua insuficiência frente aos problemas políticos atuais, colocados em uma sociedade globalizada, caracterizada pelo poder volatizado e em rede, a que os autores citados chamaram de “Império global”. Para os teóricos críticos do capitalismo avançado de nossa era, vivemos em um estado de guerra generalizada, que gera, por sua vez, um estado de exceção permanente, cuja consequência é a suspensão da democracia32 (p. 39). Na mesma linha crítica e fazendo uma análise dos movimentos insurgentes que têm eclodido no mundo desde a primavera árabe, o grupo de pensadores contemporâneos que assina seus textos sob o sugestivo codinome de “Comitê Invisível”33 alerta que vivemos uma época em que “Os dirigentes caminham entre abismos” (p. 12). Para os analistas de inspiração anárquica, o desafio de governar na era das redes é fundamentalmente o “desafio de assegurar a interconexão dos homens, dos objetos e das máquinas” (p. 126) de forma a produzir “uma democracia conectada, participativa e transparente” (p. 123). Tomando o advento da internet como “maior experimento envolvendo anarquia da história” (p. 123), afirmam uma utopia da cidade conectada e sustentam, na análise dos movimentos insurgentes pipocando em todo planeta por motivações iniciais bem diversas, que as pessoas estão protestando contra modelos devassados de governar:

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Em nota oficial emitida no dia 1º de setembro de 2016, logo após o afastamento da presidente Dilma Rousseff pelo Senado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), “expressa sua preocupação frente às denúncias sobre irregularidades, arbitrariedade e ausência de garantias do devido processo de impedimento”. As suspeitas levantadas em relação à garantia de defesa nas etapas do procedimento do processo, segundo o comunicado, assumem especial relevância para esta comissão internacional, na medida em que dizem respeito não só aos direitos humanos de uma pessoa, mas também às democracias latinoamericanas, por se tratar de uma chefe de Estado eleita por voto popular31. (d)


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Personagem retratada em documentário cinematográfico que leva seu nome, do diretor Marcos Prado, que recebeu 33 prêmios nacionais e internacionais, acerca da história real de uma louca que foge dos hospícios do Rio de Janeiro para se tornar catadora de lixo no aterro sanitário de Gramacho34. (e)

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Elas perderam a fé no governo e nas outras instituições centralizadas do poder... Não há nenhuma justificativa viável para que um sistema democrático limite a participação dos cidadãos ao simples ato de votar. [...] As mesmas tecnologias que nos permitem trabalhar a distância juntos criam a esperança de que nós poderemos nos governar melhor33. (p. 124)

O desafio é justamente porque a cidade da elite global, como denominada por Guattari em “Mil Platôs”30, é desmembrada e satelizada pelo capitalismo por todos os cantos. Já não se trata de uma grande e localizável metrópole primeiro mundista em que se visualiza o poder financeiro nos grandes símbolos a se fazerem alvos diletos e fáceis ao terrorismo também globalizado. A cidade do neocapitalismo também capilarizou-se em fluxos de poder velozes e voláteis. Exige, por isso, novas tecnologias de gestão, que podem tanto reproduzir e se render à homogeneização planetária dos equipamentos urbanos contemporâneos quanto fazer frente a ela, explorando a potência heterogênea e a pluralidade de movimentos de circulação que, paradoxalmente, também constituem a cidade. Afinal, como esclarece Pelbart16: “A forma-cidade é escape, exterioridade, dispersão, a forma-Estado é totalização, interioridade, estratificação. Isso significa que a cidade luta contra o Estado. Mas também contra o capitalismo, com o qual pretendem identificá-la, num jogo complexo” (p. 46). Ao lançar o desafio de se pensar uma cidade símbolo do possível, convocando arquitetos à criação de uma espécie de “Gaia Ciência no Urbanismo”, o filósofo propõe a pergunta: “Como defender uma cidade subjetiva que aponte para uma subjetividade ressingularizada, porém não segregativa?” (p. 47). Como não se armar, defendendo-se até os dentes, a partir do território existencial que se acredita ser e que não admite outros tantos territórios em agenciamento? Rir do fascista em nós, esvaziá-lo e fazê-lo suportar o susto que a experiência radical da alteridade nos coloca parece fundamental em tempos de políticas que insistem em afirmar a impossibilidade do encontro. Nesse sentido, o mal-estar trazido pela loucura, sempre em um plano que nos força a esgarçar os territórios instituídos, retorna aqui com sua virtual potência de criação! “Tudo que é imaginário tem, existe, é!” dispara Estamira(e), em sua desvairada lucidez retirada dos escombros humanos despejados no lixão em que se ergueu soberana e de onde aprendeu a filosofar sobre os destinos do lixo e da humanidade que o produz. “Eu sou a beira do mundo”, ela exclama convincente. “Esta – Mira”! Revirando lixos urbanos e encontrando vidas nos restos de todos nós (que somos nós?!). Estamira revira, junto, nossos “gostos de moralidade” e provoca indagações sobre o que nos tornamos. A potência heterogênea que a cidade subjetiva nos apresenta não é somente dos loucos ou dos artistas. Há cidades invisíveis que se escondem em cada encontro. Há universos que se abrem à medida que acreditamos ser mais além de nós mesmos, revirando-nos do avesso, em uma experiência que flerta com a loucura em sua dimensão criativa e produtora de mais mundos. Para além de criar mundos, é necessário ter a coragem do cego para se equilibrar na escuridão, arriscar caminhar pelo desconhecido que nos compõe e interroga, não com o intuito de criar respostas e logo fechar as feridas que se abrem, mas para ir além do que se via até o momento que antecedeu à criação. As dissonâncias e pluralidades subjetivas imanentes, ao enlouquecer, não estão aí para serem formatadas por um bloco homogêneo que as institui em uma nova tecnologia a ser comercializada e saqueada no que tem de potência desviante. O enlouquecer um pouco mais a cidade, o deixar o louco contaminar os espaços COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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estriados, apostando em encontros fora da órbita, servem-nos para produzir descontinuidades nas cidades tão pré-fabricas e fadadas a girarem em um caminho ensimesmado. São suspiros que fazem com que nosso corpo não exploda com a pressão advinda dos mecanismos de controle e de apagamento das singularidades. É reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço, como escrevera Calvino35 ao enaltecer as cidades invisíveis em sua potência de diferir das cidades cada dia mais cinzentas a que tanto nos acostumamos a viver. Enlouquecer a cidade para forjar “pluriversos”. Eis o desafio da criação de “multimundos” em que todas as cores e vozes tenham cabimento, mundo do diverso em que pichações como a que leio em um tapume da cidade já não cause espanto a quem passa: Eu tenho sérios “Poemas” Mentais...

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QUANDO A CIDADE “ESCUTA VOZES”: O QUE A DEMOCRACIA TEM ...

Paulon SM. Cuando la ciudad “escucha voces”: lo que la democracia puede aprender con la locura. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):775-86. Se trata de un ensayo que propone la reflexión sobre los procesos de homogenización que el bio-poder impone a las diversas formas de habitar las ciudades con el consecuente silenciamiento de subjetividades insurgentes. Articula lecturas post-estructuralistas sobre la locura, entendida como experiencia radical de alteridad, para la crisis de modelo representativo en la actualidad política. Pero las ciudades contemporáneas son hechas de muchas voces. En ese punto, pueden surgir algunas alternativas. Buscar lo que todas tienen a decir forma parte de la tarea civilizatoria y puede redefinir y ampliar lo que vimos modernamente entendido por democracia. Crear espacios en las mallas de la ciudad para la circulación de la diferencia constituye, por lo tanto, una posibilidad concreta de repolitización global de la práctica social y puede hacer eco en nuevas formas de ciudadanía y producción de un mundo más plural y acogedor para todas las singularidades.

Palabras clave: Democracia. Ciudades. Salud Mental. Reforma Psiquiátrica. Ciudadanía.

Submetido em 19/10/16. Aprovado em 15/05/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0861

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The Policy Gap. Global Mental Health in a Semi-Peripheral Country (Portugal, 1998-2016)

Tiago Pires Marques(a)

Marques TP. O fosso de políticas. A saúde mental global em um país semi-periférico (Portugal, 1998-2016). Interface (Botucatu). 2017; 21(63):787-98.

This paper analyzes the impact of the hegemonic paradigm of global mental health (GMH) on Portugal. We specifically argue that GMH in Portugal has effected a change of priorities in health policies, favoring the prevention and treatment of common mental disorders to the detriment of the deinstitutionalizing process. Diffused through the media, this model has negative effects, such as the medicalization of social suffering, the reorganization of mental health policy areas according to utilitarian criteria, and the risk of greater invisibility of users with serious psychiatric diagnoses. However, the GMH approach, bringing to the frontline the impact of all social policies on mental health, represents a new opportunity to politically address social suffering. Characterized as a semi-peripheral country, Portugal may be representative of observable trends in similar countries.

Keywords: Globalization. Mental health. Psychiatric reforms. Psychiatric epidemiology. Human rights.

Este artigo analisa o impacto do paradigma hegemônico da saúde mental global (SMG) em Portugal. Argumenta-se que a SMG em Portugal promoveu uma mudança de prioridades nas políticas de saúde, favorecendo a prevenção e o tratamento das desordens mentais comuns em detrimento do processo de desinstitucionalização. Difundindo-se nos media, este modelo tem efeitos negativos, ao contribuir para a medicalização do sofrimento social, o escalonamento de áreas de intervenção de acordo com critérios utilitaristas e o risco de uma maior invisibilidade dos usuários com diagnósticos psiquiátricos graves. Contudo, o enfoque da SMG no impacto do conjunto das políticas sociais sobre a saúde mental representa uma nova oportunidade para encarar politicamente o sofrimento social. Caracterizado como país semiperiférico, Portugal pode ser representativo de tendências observáveis em países similares.

Palavras-chave: Globalização. Saúde mental. Reformas psiquiátricas. Epidemiologia psiquiátrica. Direitos humanos.

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(a) Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087. Coimbra. 3000-995. Coimbra, Portugal. tmarques@ces.uc.pt

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Introduction In an article published in 2009 in the benchmark psychiatry journal The Lancet, and significantly entitled “Global mental health: a failure of humanity”, Arthur Kleinman contrasts advances in mental health in the USA with the realities observed in poor countries1. Notwithstanding enduring stigma and widespread recourse to prisons as mental healthcare facilities, he states, “mental health care in the USA is finally receiving renewed attention and resources aimed at closing the gap in parity with the rest of health care” (p. 603). He further added that “[the] worst abuses of the mental-health-care system are undergoing near constant, if unsustained, reform and patients’ rights are being better, if still not well, protected” (p. 603). Turning to the situation in poor societies, Kleinman expressed himself as follows: “Appalling, dreadful, inhumane — the worst of words pile on each other to name the horrors of being shunned, isolated, and deprived of the most basic of human rights.” (p. 603). Other leading authors in the field have voiced criticisms of the emerging discipline and policy model of global mental health (GMH). Tacking stock of a workshop held at the McGill University, Kirmayer and Pederson referred to an observed tension in GMH as follows2: Some of the disagreements and divergences of opinion in the debate on global mental health occur because opponents have in mind very different types of problems. For example, many proponents of GMH focus on the most severely mentally ill in low-income countries who currently receive little or no effective treatment and who may endure harsh conditions including long-term physical restraints, confinement, and noxious interventions that cause injury. On the opposite end, some critics of GMH focus on examples of people with milder cases of common mental health problems that overlap with everyday problems in living. (p. 12)

These articles suggest that analyses of the two ends of the spectrum between rich and poor countries might be characterized in relatively clear-cut terms. In technically high-income but still relatively peripheral countries, however, the mental health domain looks rather more contradictory and, perhaps due to this, analyses of the impact of GMH are scarcer. In this study, specifically observing the Portuguese case, we argue that the contrasting realities that co-exist in the psychiatric sector render the assessment of the impact of GMH particularly difficult. In order to tackle some of these difficulties, we employ the concept of ‘semi-periphery’ as proposed by Boaventura de Sousa Santos and specifically applied to Portugal3. According to Santos, semiperipheral societies attempt to mimetically accompany the hegemonic reforms of the central countries. However, these attempts clash with rationalities and practices that the paradigm of modernity terms ‘pre-modern’. In this context, more than simply encountering resistance, the models of the center become combined with structures, practices and rationalities typical of the peripheral countries (p. 47). This heterogeneity derives in part from the unaccomplished development of capitalism and modernity, the strong tutelage of the state and the strength and plurality of social assistance. The latter is particularly visible in the mental health sector in Portugal, where religious orders still take charge of a substantial proportion of psychiatric care, mostly with regard to chronic psychiatric patients. In addition, recent deinstitutionalizing trends have favored this feature by overburdening family and informal networks4 (p. 19). As far as mental health is concerned, we may, more concretely, bear in mind the epistemological criticisms of the epidemiological model observed in GMH. Among these, we may refer to its dependency on diagnostic-interviews performed by laypeople and based on constantly changing categories of mental disorders defined by the internationally dominant psychiatry, as well as the systematic elimination of social contexts5. This recourse to epidemiology translates local forms of social suffering into the language of mental health as diffused by the models of the center. Lastly, our perspective also takes into account the cultural critique developed by Kirmayer and Pederson2, based on the finding that GMH “is itself a product of international professional, economic, and political institutions”. Therefore, “the priorities of global mental health have been largely framed by mental health professionals and their institutional partners mostly located in wealthy countries” (p. 760). 788

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While our approach is explicitly based on a critical perspective, we undertake close empirical analysis of the concrete GMH meanings and interventions in Portugal. Specifically, this study combines historical analysis of major reform programs and international documents, epidemiological studies and media articles. The criteria for including sources into this analysis may be summarized as follows: serving as officially recognized programs for the implementation of mental health reforms (e.g. national plans and legislation); holding a key role in the scientific argumentation supporting the reform (e.g. epidemiologic studies quoted by official sources); proving instrumental in the technical elaboration of reforms (published working documents, international directives and reports); disseminating expert assessments of the reform’s accomplishments and its impending necessities in the media. We analyse these sources diachronically, looking at the interplay between their contents and their contexts, and specifically focusing on the vocabularies by means of which they described and elaborate their field of application. This implies the systematic observation of the changing ways in which they link social suffering and mental disorders. In addition, we analyse their incorporation, or their echoing, of international guidelines and, relatedly, the strategic re-prioritizing of mental health needs. This methodology thus enables us to diachronically observe the explicit and the subtle transformations of mental health policies as well as the ways in which, by mobilizing GMH references, these policies build up their legitimacy. This approach also allows us to identify positive lines of action in ongoing GMH projects.

Globalizing Portuguese Mental Health

We refer here to an abbreviated working document, the Plan’s Executive Resumé.

(b)

In 1998, a new law established the framework for the long desired psychiatric “deinstitutionalization” in Portugal6. Coming into being, first and foremost, as a means of regulating compulsory internments, the Mental Health Act consecrated a few great principles in view of a fully-fledged reform of psychiatry and mental health care. Among these principles featured the promotion of primary, secondary and tertiary mental health, as well the preference for care in the geographical proximity of services users. This law also established the aim of integrating psychiatry into general hospitals, a measure that went hand in hand with the gradual closing of psychiatric hospitals. In addition, the legislation imposed the observance of a charter of patient rights and duties as well as stricter rules for compulsory internment. In sum, in this law “mental health” amounted first and foremost, to the protection and care of psychiatry users and institutionalized persons. These principles closely followed the international standards handed down by the World Health Organization (WHO). Documents such as the Declaration of Alma-Ata (1978) established the ethical standards underlying the intended reform7. By 2006, in order to re-launch the reform, a newly appointed working commission produced a document entitled the National Mental Health Plan (Plano Nacional de Saúde Mental)8(b). This consisted of a more detailed set of guidelines aiming, once again, at the full reorganization of psychiatric care services. From its first few statements, this document brought epidemiological “evidence” to the forefront of its argumentation strategy. Opening the text, we may read that “[t]he most recent epidemiological studies show that psychiatric disorders and mental health problems have become the leading cause of disability and a major cause of morbidity in contemporary societies” (p. 5). The document further states that the burden of “mental disorders”, specifically, depression, alcohol dependency and schizophrenia, have been seriously underestimated. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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In explanation, the Plan states that the “traditional approaches” solely considered the indexes of mortality linked with mental disorders, ignoring the number of years lived with “the disability caused by the illness” (doença) (p. 5). This underestimation of the burden of mental disorders was all the more preoccupying as five among the ten leading causes of disability are “mental disorders” (perturbações psiquiátricas) (p. 6). Quoting the WHO-Europe Region and the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, the Plan referred to one in every five children as suffering from problems of “mental health” (saúde mental), and that this number was rising (p. 6). These excerpts demonstrate the differentiation between concepts of “mental disorder”, “illness” and “problems of mental health”. Nevertheless, undefined and virtually interchangeable, their differences become blurred in a single domain of phenomena. The passage that closes this section of the Plan further extends the domain of mental health: In addition to the people who have a diagnosable disorder, many have mental health problems that may be considered “subliminal”, that is, do not meet the diagnostic criteria for psychiatric disorder but are also suffering, and are thus to benefit from interventions8. (p. 5) [My emphasis; all translations from Portuguese sources are mine]

In sum, the Plan builds its own domain of intervention through a gradient of different, yet implicitly interlinked, phenomena: suffering, mental health problems, mental disorders, and mental illnesses. The document advances the desired types of interventions, again along the lines of the WHO directives. On top of this, we find the initiatives designed to promote access to care for all persons with “mental health problems” (p. 8). A few organizational and administrative principles are then stated, for example, “taking responsibility for a geo-demographic sector, with a dimension allowing essential care in the geographical proximity of the person’s place of residence” (p. 5). Among these interventions, we encounter the enhancement of user and family member participation (here without further specification; elsewhere with reference to the closing of psychiatric hospitals; p. 24), the integration of mental health into primary care, and close cooperation with the social sector on recovery and “continued care” programmes for “serious mental patients” (p. 7). The remaining sections of the Plan analyze the situation in Portugal. Underlying this analysis, there is the notion that the country still falls far short of meeting acceptable “treatment gap” indicators, as well as the principles of international organizations. Easy and universal access to basic mental health care, the centralised coordination of reference hospitals and local services, as well as the building of interdisciplinary teams - all emerge as central concerns. The Plan further expresses concern over promoting the rights of service users, especially the “right to adequate care, habitation and work” (p. 13). This concern materialized in the setting up of a Working Group on Humans Rights and Mental Health. Lastly, the Plan defines a few target groups of users as priority. Children and adolescents deserve particular concern with the focus on prevention. Again, “serious mental patients” become the object of measures interlinked with the closing of psychiatric hospitals and their integration into facilities within “the community” (p. 21-2). At a local level, the Plan articulates the intention to develop an integrated approach across the following subdomains: the case management of “serious mental patients” by benchmark therapists; a liaison program with the family health sector, in view of tackling “common mental troubles”; a support program designed for “elderly patients”; and a suicide prevention program (p. 24). In practice, the Plan was launched in 2008. Additionally that year, Portugal also signed the European Pact for Mental Health and Wellbeing. This is based on the assumption of a widely shared necessity for “a decisive political step to make mental health and wellbeing a key priority”, reflecting in targeted interventions taking into account the diversity of risk groups in the European population9 (p. 2).

Mental Health in Times of Crisis and Recession The Mental Health National Plan closed with a nine years calendar of initiative implementation spanning from 2007 to 2016. 2007 observed the first signs of the global financial crisis that would 790

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eventually lead to the so-called European sovereign debt crisis and the bailout of several Eurozone countries. The bailout of Portugal in May 2011 was followed by the fall of the Socialist government and the election of a right-wing coalition. Pressured by the European Central Bank, the European Commission and the IMF, from 2011 to 2015, the coalition applied “austerity” policies that included significant salary cuts and tax rises as well as drastic reductions to public expenditure10. At least in the government’s rhetoric, “austerity” became more than a financial and economic policy. In interviews and official discourses, the Prime Minister, the Ministers of Finances and influential opinion makers diffused values of resilience to hardship and concepts of virtue linked to entrepreneurship and the reduction of consumption habits11. In reality, these values did effectively adapt and apply to the rapidly changing living conditions, with unemployment soaring in 2012 before peaking at 17.4% in 2013 and declining only slightly thereafter (according to the OECD)12. However, the younger generation bore the most serious brunt of the crisis and the austerity politics that followed, with the youth unemployment rate rising from 16.7% in 2008 to a shocking 38.1 % in 201313. The National Mental Health Plan thus coincided with the austerity years, a coincidence that shaped its pace of implementation and set new priorities. In 2012, the Directorate-General of Health (DGH) (Direção-Geral de Saúde), the entity encharged with the Plan’s implementation, issued a report acknowledging this change of context14. The DGH viewed financial constraints as both a challenge driving the reassessment of priorities and an opportunity to undertake the reforms that had proved the most difficult to undertake, in particular “the adoption of guidelines for the rational prescription of psychotropic drugs and the involvement of non-medical professionals in therapeutic programs” (p. 4). According to the DGH, the crisis intensified the probability of a rise in the prevalence of some “mental illnesses”, coupled with a surge in the suicide rate. Therefore, the new context demanded stronger investment in community services, the promotion of prevention programs targeting suicide and depression, and the development of the capacity to intervene in acute crises (p. 4). From 2012, the expansion of rationales and procedures in GMH in Portugal underwent significant developments. A team based in Lisbon obtained the leadership of the Joint Action for Mental Health and Wellbeing, an international program involving 51 partners representing 28 EU Member States and 11 European organizations, with the aim of “building a framework for action in mental health policy at the European level”15. Launched as a development of the abovementioned European Pact for Mental Health and Wellbeing, and funded by the European Agency for Health and Consumers, the Joint Action started its work in 2013, with an agenda based on five strategic domains: 1) mental health at workplaces; 2) mental health in schools; 3) actions against depression and suicide, with a focus on the implementation of e-health 
approaches; 4) community-based and socially inclusive mental health care for people with severe mental disorders; and 5) the integration of mental health in all policies (p. 3). While care of persons with severe mental disorders still deserves mention, primary and targeted prevention now covers virtually the whole field of mental health. In combination with this initiative, a new institution came into being in 2015, the Lisbon Institute of Global Mental Health. Its principal functions consist of the formation of a new leadership in GMH and the development of a critical mass capable of issuing scientific and technical advice on the implementation of mental health programs16. The actualized version of the National Mental Health Plan15 acknowledged the Joint Action and the then emerging Institute, viewing them as allies in the implementation of its reform program. However, in its language and scope, the Joint Action took a further step in the expansion of the concept of “mental health”. For instance, while the Plan still employed the notion of “mental illness” profusely, the first major report published by the Joint Action significantly replaced it for the concept of “mental disorder” (seldom employed in the version of the Plan analysed above8). The Joint Action’s almost exclusive focus on prevention and the promotion of mental wellbeing is testified to by a new emphasis on the concept of “Mental Health in All Policies (MHiAP)”. Brought to the forefront of the project’s report17, MHiAP is defined as “an approach to promoting population mental health and wellbeing by initiating and facilitating action within different non-health public policy areas”. Set as one of the main pillars of the Joint Action, MHiAP targets the “impact of public policies on mental health determinants”, aiming to reduce “mental health inequalities”, and promote the inclusion of mental health variables in different policy areas. Covering all administrative levels, this strategy “aims 791


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to highlight the opportunities offered by mental health to different policy areas, and reinforces the accountability of policy-makers for mental health impact” (p. 6). In this article below, we analyze some of the implications of the intended expansion of the concept of mental health. At this point, we would stress the growing role of epidemiology in the reform of mental health services. Concretely, we must look at the scientific, economic and political rationales behind the epidemiological data presented as evidence and the ways in which these get communicated both to specialists and to the wider public.

The New Epidemiology and the Media Virtually all the above documents relative to mental health reform started with epidemiological data, presented as the factual grounds to the problems requiring attention. Thus, this represents the context for understanding a key document for the globalization of mental health in Portugal, a report entitled “National Epidemiological Study in Mental Health” (Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental)18. Published in 2013, this study was presented as part of an international enterprise, the World Mental Health Survey Initiative, undertaken by the University of Harvard and the WHO. This study was coordinated by two psychiatrists, José Miguel Caldas de Almeida, a leading international expert in the domain of GMH at the WHO (from 2013 also the leader of the abovementioned Joint Action); and Miguel Xavier, holder of a university chair in psychiatry in Lisbon. The involvement of these doctors in the design and implementation of the National Mental Health Plan and the acknowledged support of the Ministry of Health renders this study near official (p. 6). In planning since the late 1990s, this study eventually turned into the scientific umbrella for the Plan. First and foremost, the study aimed to map the prevalence of “psychiatric disorders” (perturbações psiquiátricas) in the Portuguese population. This, however, proved the entranceway into a series of other issues, in particular the degree of disability associated with disorders and the observation of their “natural history” alongside analysis of their possible causal factors. Lastly, and featuring prominently among its key problems, this epidemiological research assessed the usage of health services by individuals suffering from “psychiatric disorders” (p. 4). The study’s ultimate objective was to evaluate the necessity of mental health interventions among the population with a view to developing appropriate prevention and treatment strategies. The adopted focus on objective necessities, on the one hand, and actual responses, on the other, became encapsulated in the concept of a “treatment gap”, ubiquitous in the study’s report. The study attributed high scores to all “treatment gap” indicators, varying according to the gravity of disorders. Reaching 80% in cases of mild disorders, the “treatment gap” for serious mental disorders is still alarmingly high at 33.6% (p. 36). While these results are discussed in terms of access to care, emphasis is placed on prevalence rates. These show significant levels, with the highest being anxiety and phobic disorders (25.8%) and affective disorders (19.3%). The estimated lifetime prevalence of one psychiatric disorder in the adult population reaches 42.7%, while in the younger segment of the population (18 to 34 year olds) it soars to 50.1%. Compared to other countries participating in the World Mental Health Survey Initiative, the prevalence of mental disorders in Portugal proves startling. Adult lifetime prevalence (47.4%) is surpassed only by the USA, with countries usually compared to Portugal, such as Spain and Italy, showing figures significantly below the Portuguese (respectively 19.4% and 18.1%) (p. 30). It is worth noting that, obtained during the 2000s, these numbers do not reflect the consequences of the crisis on mental health. Reports preceding the National Epidemiological Study in Mental Health already pointed towards preoccupying prevalence rates of mental disorders18,19 (p. 137-41). Again, just after the onset of the crisis, but still before its peak, some media did signal, and with red flags, the growing public data regarding the mental health of the Portuguese. Let us then turn to the diffusion of these data in the media. An exploratory overview of the newspaper coverage of mental health issues proves of assistance in understanding the rationales behind the GMH model in Portugal. The oldest reference encountered to the epidemiological survey coordinated by Caldas de Almeida dates back to 201020. In October of that 792

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year, commemorating European Depression Day, an online newspaper reported a series of initiatives in the media to raise awareness of the “disease”, deemed to kill 1,200 in Portugal every year. The article quoted a then “recent pilot study into the state of Portugal’s mental health”, revealing “that one in five citizens suffer from some form of psychiatric problem, a higher incidence than any of the other six EU countries that participated in the project”. An article published in 2011, also specifically on depression, reported high rates as agreed upon evidence21: “Portugal is the European country with the highest rate of depression and the second in the world [after the USA], but it is estimated that one third of the population with severe mental disorders are not being treated”. These statements were attributed to psychiatrist Ricardo Gusmão, coordinator of the European Alliance against Depression, who tackled the contradiction involved in the awareness of high levels of consumption of anti-depressants in Portugal and the poor mental health indicators. Allegedly, the lack of treatment for depression stems from stigma and misconceptions among general practitioners providing primary care. The psychiatrist thus defended the necessity of fighting against the “stigma” of depression in the medical profession itself. This meant, in practice, diffusing the notion that depression constitutes an “illness of the brain”. Still according to the same article, Gusmão argued that people suffering from depression were not treated because of the stigma linked to antidepressants, and because of the “false belief” that antidepressants cause dependency. In this line of thought, Gusmão called for a change in the medical curricula, especially in placing the emphasis on the brain instead of focusing on psychological model. However, the same article went on to state that, according to the same European Alliance Against Depression, antidepressants sales had increased by 300%. In 2014, a study published by the WHO reported relatively low and decreasing levels of suicide in Portugal22. Confronted with these numbers, Gusmão and Álvaro de Carvalho, the latter the successor of Caldas de Almeida at the National Mental Health Plan, called into question the methodology employed by the WHO. In all probability, the suicide rate was getting underestimated. Nevertheless, they admitted that widespread recourse to anti-depressants might be playing a deterrent role with regard to suicides, especially among those left unemployed as a consequence of the prolonged recession. Social support given by family networks, particularly strong in countries such as Portugal and Spain, may also account for the low levels of suicide23. A similar argument on the underreporting of suicides was voiced in a public presentation of the official report published by the Directorate-General of Health24. In 2015, a team coordinated by Gusmão won a grant from the European Economic Area to implement a depression and suicide prevention program. As conveyed by yet another newspaper article25, the approach adopted consisted of training “900 experts in depression” in primary healthcare centers throughout the country. These experts include general practitioners, nurses, psychologists and social workers. Furthermore, they are then to diffuse their newly acquired knowledge to three thousand and four hundred professionals in their areas. In so doing, the project aims to reach one million primary healthcare users, and, particularly, increasing among them an estimated two hundred thousand depressed persons. The principal objectives of the program feature reducing the consumption of anxiolytics and suicide prevention through correct diagnosing, continued care by a reference expert and an online platform designed for patients meeting criteria such as “refusal in taking medication”. To train the experts, the team conducts an eight-hour training plan with an additional four hours of e-learning. The same article accounts for an interlinked activity undertaken by the project coordinator, aiming its expansion in the Portuguese speaking world. Gusmão – as quoted in the article – reminds us that Mozambique is the African country with the highest percentage of suicides and that Angola also has a higher suicide rate than Portugal. While this and other programs suggest cutting-edge approaches to mental health policies, other studies and newspaper articles point towards increasing asymmetries in the field. For instance, a newspaper article published in 2015 attributed a quote to psychiatrist Luísa Figueira, then president of the Portuguese Society of Psychiatry and Mental Health (PSPMH) detailing the need to revise the National Mental Health Plan26. This leading Portuguese psychiatrist deemed the poor funding model of the system accountable for the failings in responses to the mental health necessities of the population. 793


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Figueira quoted both the abovementioned epidemiological study and a special edition of The Economist Intelligence Unit, published in December 2014. This survey on the quality of mental health services ranked Portugal at 28 in a universe of thirty countries27 (p. 35). Nevertheless, the article focused mostly on the study promoted by the PSPMH on the deinstitutionalizing process carried out since 2009. For instance, with regard to the closure of one of the oldest psychiatric hospitals, Hospital Miguel Bombarda in Lisbon, a study coordinated by Palha conveyed the huge asymmetries in the responses given to inmates28. While some inpatients had been transferred to “Casa do Restelo”, a well-located community residence provided with human resources and appropriate infra-structures, many had been relocated to the Centro de Apoio Social do Pisão, which Palha described as a center with 320 interned persons “on a mountain more than 4 km distant from its nearest inhabited location”26. As already pointed out by Hespanha et al.4, both Palha and Figueira defended that the closing of psychiatric hospitals was being carried out without any real community-based alternatives. Instead of effectively “deinstitutionalized’, chronic psychiatric inmates were instead being “trans-institutionalized”. The two dimensions of mental health addressed in this article – the “treatment gap” observed in the general population and the needs of persons in psychiatric institutions – encapsulate much of the ambivalence encountered in the documents on the global mental health paradigm as applied in Portugal. The ratio of this ambivalence is also easy to pin down: tackling “suffering” at its roots has preventive effects on “common mental disorders” and on “serious mental illness”. Thus, from this perspective, a change of focus from the latter to the former reveals only a convergence between the economic and the health arguments. In this light, how the National Epidemiological Study explicitly leaves the following groups out of its scope becomes highly significant: residents in houses owned by a third person; residents in fosterhouses, hospitals and psychiatric institutions; residents in military barracks; prison inmates; individuals not fluent in Portuguese; individuals without any capacity to participate in the interview; homeless persons; and, psychotic persons18 (p. 12). This restriction is justified by the study’s objective of mapping undiagnosed and untreated disorders. While deinstitutionalization and the rights of psychiatry users still figure on the intention lists of these programs, the reduction in the “treatment gap” becomes the cornerstone of both research and health policies in mental health. In this context, our contention here is that such emphasis becomes instrumental to the actual concept of mental health proposed in the study. It reads indeed that far more than the absence of mental illness, mental health cannot be dissociated from the “the wellbeing and the efficient functioning of individuals”. This involves the capacity to “adapt to changes, of facing crises, establishing rewarding relationships with others and finding a purpose in life”. Therefore, mental health also constitutes a key factor for social inclusion and “full communitarian and economic participation” (p. 9). Cast in these terms, mental health proves a truly public health issue, deserving the attention of the media and politicians. Psychiatry users and institutionalized persons become a lesser priority: in a sense, they are already lost to “mental health”. To nobody’s particular surprise, the reform’s initial drive towards both deinstitutionalization and the protection of the rights of persons with serious mental disorders gradually got pushed to the bottom of the priority list.

Conclusion From Treatment Gap to Policy Gap The concept of mental health has expanded since its first appearance in the Charter of the World Health Organization in 1948. Initially deferring to a concept of social and individual wellbeing, with regard to which societies and states have moral responsibility, in the last few decades the definition of “mental health” looks increasingly receptive to the productivity and efficiency arguments. As an example, at Joint Action’s website29, among its first few statements, we may read the following: “Until 2020, the cost of depression will be tripled. 88% will be indirect, due to productivity losses”. 794

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The impact of health on economics certainly deserves to be considered. Serious questions arise, however, when social suffering becomes translated into individual mental disorders. The problem becomes all the more alarming as this re-writing of social suffering into mental disorders is applied to hierarchize the subjects of psychic suffering deserving political attention along a priority scale defined in terms of economic utility. The diffusion of the high prevalence rates of depression and other mental disorders in the media seeks public support for this redefinition of suffering. The fundamental message thus passed is that common mental disorders are individual health issues, the aggregate of which constitute a major public health problem: the more objective (in the terms of epidemiology), the more real; and the more prevalent, the more important. Within this line of thought, it is highly significant that the quoted epidemiological study eliminates social context in the construction of its data. And it is no less revealing that the same study leaves “psychotics”, prison inmates and institutionalized persons, among other groups, outside the “mental health” universe. Indeed, the evidence provided by Hespanha et al.4 and by Palha28 strongly suggest that, despite the GMH approaches typical of the “center”, as defined by Santos3, the lives of many of those belonging to these groups seem closer to the above description provided by Kleinman1. At any rate, the emerging GMH paradigm carries the risk of creating new forms of invisibility regarding frequent psychiatry users, institutionalized persons and psychiatric survivors. Rather than fostering their agency and actual rights, ethical declarations and charters of user rights can, in this context, function as an ideological screen for the ongoing poor living conditions of many of these persons and the degradation of the concrete ways in which they experience citizenship. It is still not clear whether the Mental Health in all Policies approach will prove yet another shortlived paragon with scant impact on social realities or, in the worst case scenario, a vehicle for further medicalizing life and rendering social suffering ever more adaptable to global capitalism. The high levels of consumption of psychotropic drugs and the emphasis on financial and economic arguments, rather than ethical concerns, give room to this pessimistic scenario. Yet, at this point, we should also consider the possibility of a more positive outcome, in particular, the potential of the Mental Health in all Policies approach to impact on social policies and contribute to changes in political culture. Knowledge on the impact of policies on mental health can be helpful in creating awareness, first, that political decisions result in consequences in terms of the psychic suffering of individuals; and, second, that these consequences are to be approached from a value-driven public health perspective. In advanced democratic societies, the engagement of psychiatry users in the design of mental health policies must feature prominently among the values underlying the design of health and social care services. However, the active engagement of users remains not only absent from healthcare reforms, but looks increasingly overshadowed by the GMH’s emphasis on medical expertise as the sole source of legitimacy in the design and management of services.

Aknowledgments The author gratefully acknowledges the financial support of the exploratory project “The Fabric of Mental Health. Medical Power, Secularity, and the Psychotherapeutic Field in Portugal (1940s –1990s).” funded by the Portuguese Foundation for Science and Technology (FCT) IF/01589/2013/CP1164/CT0005. The author would also like to thank Sílvia Portugal and the reviewers for their helpful comments for the improvement of this manuscript. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Marques TP. El foso de políticas. La salud mental en un país semi-periférico (Portugal, 1998-2016). Interface (Botucatu). 2017; 21(63):787-98. Este artículo analiza el impacto del paradigma hegemónico de la salud mental (SMG) en Portugal. Se argumenta que la SMG en Portugal promovió un cambio de prioridades en las políticas de salud, favoreciendo la prevención y el tratamiento de los desórdenes mentales comunes en perjuicio del proceso de desinstitucionalización. Al difundirse en los medios, este modelo tiene efectos negativos, puesto que contribuye para la medicalización del sufrimiento social, el escalonamiento de áreas de intervención de acuerdo con criterios utilitaristas y el riesgo de una mayor invisibilidad de los usuarios con diagnósticos psiquiátricos graves. Sin embargo, el enfoque de la SMG en el impacto de las políticas sociales sobre la salud mental representa una nueva oportunidad para enfrentar políticamente el sufrimiento social. Caracterizado como país semi-periférico, Portugal puede ser representativo de tendencias observables en países similares.

Palabras clave: Globalización. Salud mental. Reformas psiquiátricas. Epidemiología psiquiátrica. Derechos humanos.

Submetido em 19/10/16. Aprovado em 13/03/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0877

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Racionalidades leigas e governação da Saúde Mental em Portugal Fátima Alves(a) Karine Wlasenko Nicolau(b)

Alves F, Nicolau KW. Lay rationalities and Mental Health governance in Portugal. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):799-810.

The paper reaffirms the importance of lay rationalities that are produced in the Mental Health field as valid expressions of knowledge, with special attention to the ethical aspects related to the social use of knowledge. The paper argues that those rationalities should serve to create innovative strategies to effectively address the needs of people and act as a counterweight to the hegemonic logic. The context of governance of Mental Health in Portugal and the structural characteristics of the Portuguese society are reflected in the services as they are effectively implemented and in the users´ perception about their condition. The appreciation of lay rationalities in a context ruled by biomedical and technical aspects enables to reaffirm diversity as a human condition. Therefore it is a basic tenet for an approach to complex and plural realities such as mental health, incorporating the cultural dimension to the actions developed.

O artigo reafirma a importância das racionalidades leigas produzidas em Saúde Mental como expressões válidas de saber, com especial atenção aos aspectos éticos relacionados aos usos sociais dos conhecimentos gerados. Defende-se a ideia de que devem servir à criação de estratégias inovadoras que respondam efetivamente às necessidades das pessoas e como contrapoderes às lógicas hegemônicas. O contexto da governação da Saúde Mental em Portugal e as características estruturais da sociedade portuguesa refletem-se nos serviços efetivamente implementados e na percepção dos usuários a respeito da sua condição. A valorização das racionalidades leigas em um cenário hegemonicamente tecnicista e biomédico possibilita reafirmar a diversidade como condição humana. Nessa direção, insere-se como fundamento para a abordagem em realidades complexas e plurais como a Saúde Mental, incorporando a dimensão cultural às ações desenvolvidas.

Keywords: Lay rationalities. Portuguese mental health. Deinstitutionalization.

Palavras-chave: Racionalidades leigas. Saúde mental portuguesa. Desinstitucionalização.

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(a) Departamento de Ciências Sociais e de Gestão, Universidade Aberta, Rua Escola Politécnica 141-147, 1269-001 Lisboa, Portugal. CEF, Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, Calçada Martins de Freitas, 3000-456 Coimbra, Portugal. fatimaa@uab.pt (b) Faculdade de Ceilândia (FCE), Universidade de Brasília. Brasília, DF, Brasil. wlasenko@unb.br

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Introdução As potencialidades heurísticas das racionalidades leigas A expressão “racionalidades leigas em Saúde Mental” refere-se ao saber leigo sobre saúde e doença mental e se relaciona intimamente com o estudo dos conhecimentos e lógicas de ação e com os significados que as pessoas atribuem à doença mental, na tentativa de lhe conferir sentidos e de compreender suas causas, interpretando continuamente e de forma dinâmica a experiência vivida de acordo com os sentidos de seu grupo1, sendo por isso contingentes, subjetivas, processuais e dinâmicas2. O estudo das racionalidades leigas permite a aproximação da complexidade intrínseca às relações sociais estabelecidas em Saúde Mental, sempre muito aquém e além da normatividade nosográfica e diagnóstica que orienta o saber psiquiátrico. O conceito ampliado de racionalidades leigas1-6 pode ser localizado em publicações anteriores, pois aqui serão abordados os aspectos que se desdobram em relação ao conceito, ratificando sua centralidade para a formulação de políticas públicas e evidenciando potencialidades e desafios atuais no contexto da governação da Saúde Mental portuguesa. Em sua composição, o termo “racionalidades” remete à raiz rationalitas, termo do latim que remete à capacidade de raciocinar e argumentar7. Na acepção adotada e de modo simplificado, traduz-se diferentes formas de organizar ideias, conhecimentos, pensamentos e ações relativos à Saúde Mental por meio de um sentido lógico próprio, que pode incluir a linguagem psiquiátrica, embora com significados diferentes. Em outras palavras, as racionalidades leigas combinam de diversas formas as múltiplas dimensões e os conhecimentos plurais que integram, evidenciando as interdependências subjacentes às explicações e soluções que conduzem à busca por uma vida melhor. Assim, o conceito procura responder ao desafio da ação (revelando modos de fazer, respostas, estratégias e recursos) e ao da significação (dos sentidos que essa ação assume nos contextos nos quais é requerida). As racionalidades encerram em si, desse modo, uma pluralidade de possibilidades que em cada contexto específico podem ser mobilizadas2. Etimologicamente, o termo “leigo” deriva mais recentemente do latim laicus, que significa o que não pertence ou o que não está ligado a nenhuma religião8. No entanto, sua raiz pode ser localizada no grego laikós, “do povo”, tanto em oposição aos líderes quanto em relação aos diversos grupos populares em si9. Como qualificador de uma determinada expressão de conhecimento em Saúde, poderia ser identificado como aquele que não está vinculado diretamente à expertise profissional, mas que configura um dos campos do saber humano, baseado nas vivências cotidianas e no senso comum compartilhado. Refere-se a construções coletivas que se expressam em arranjos singulares. O campo de estudo das racionalidades leigas em Saúde Mental reconhece como condição humana a diversidade de crenças e de representações relativas à existência. Não pretende reforçar dicotomias ou estabelecer polarizações com o saber biomédico, mas conferir visibilidade à complexa trama que se desenvolve no estar com o outro e suas diferenças. Parte-se da premissa de que “as racionalidades leigas orientam as trajetórias sociais de saúde e de doença”1 (p. 248). Convém destacar que não se trata de um conhecimento estático, mas afeito à reflexividade10 e à reconstrução na interação, nas quais os discursos são transformados de acordo com contextos específicos para a resolução de problemas quotidianos identificáveis e concretos. Questões que envolvem a diversidade humana certamente não se limitam ao campo da Saúde Mental. Reconhecer os sujeitos como efetivamente capazes de interferir e participar dos processos que afetam suas vidas: eis a direção que o estudo das racionalidades leigas nos aponta. No entanto, há a necessidade de identificar o contexto em que tais racionalidades se expressam, do qual recebem influências e no qual são (re)elaboradas, modificando-se em meio às relações sócio-históricas. O artigo identifica o campo de estudos das chamadas racionalidades leigas como acesso privilegiado ao saber mobilizado no quotidiano que organiza e direciona interpretações, concepções e ações na construção de trajetórias sociais de saúde e de doença mental. 800

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Para tanto, fundamenta-se na reflexão resultante de investigações sociológicas desenvolvidas a partir do contexto português nas últimas décadas, no intuito de situá-las como contributos indispensáveis à efetivação das transformações no atendimento em Saúde Mental, em especial no que se refere à Reforma Psiquiátrica, iniciada no país há mais de cinco décadas.

Racionalidades leigas e desafios à governação da Saúde Mental O desafio de escutar as racionalidades leigas em torno da Saúde Mental, dando expressão às vivências e à voz dos leigos, às suas concepções e soluções, às múltiplas estratégias de cuidado e às lógicas de produção desse cuidado relaciona-se à criação de espaços de autonomia, diálogo e influência na necessária reconstrução dos sistemas de Saúde Mental oficiais2. Contudo, afirmar a importância das racionalidades leigas no contexto da reconfiguração dos sistemas de Saúde Mental exige que se compreendam os sistemas mais amplos nos quais os modos de produção social da saúde se constroem. O estudo das racionalidades leigas reflete mediações relativas às configurações socioeconômicas dos países e contextos locais nos quais se expressam. Aliadas às características estruturais das diversas sociedades, ratifica-se uma preocupação ética que se dirige tanto aos conhecimentos incorporados por essas racionalidades em si quanto ao contexto de governação da Saúde Mental. Tal questão se refere: [...] aos usos sociais do conhecimento que as racionalidades leigas podem proporcionar caso não se constituam como contrapoderes/saberes às lógicas hegemónicas que imperam neste campo (como por exemplo da biomedicina – que inclui organizações e profissionais; da administração e gestão), na criação de respostas inovadoras que respondam efetivamente às necessidades das pessoas e valorizem a importância das dimensões sociais e culturais da ação e que com elas se articulem. Ou seja, conhecer não para dominar nem para domesticar, catequizar ou colonizar com mais facilidade, mas para articular e criar sistemas mais humanos, favorecedores de reais cidadanias participativas, modelos eventualmente alternativos aos sistemas em vigor que continuam a não resolver o problema da equidade no acesso à saúde (seja pela falta ou desmantelamento de respostas, seja pela exigência de taxas e pagamentos cada vez mais elevados, sobretudo em grupos de risco ou em situação de vulnerabilidade social ou ainda pela diminuição ou corte nas comparticipações de medicamentos ou outros meios de diagnóstico e terapêutica, bem como do congelamento das reformas em curso2. (p. 113-4)

De acordo com Silva11 (p. 175), as racionalidades leigas referem-se a uma lógica pragmática de conciliação com os contextos em questão. Assim, a contradição que expressam é apenas aparente, pois, no “pensamento leigo, ter saúde não é apenas não ter sintomas de doença, mas é, em grande medida, ser capaz de resolver o mal-estar provocado pelos sintomas sem recorrer à medicina”, o que se impõe como desafio à formulação de políticas públicas, nas quais a acessibilidade apresenta-se como princípio fundamental. Sob outro aspecto, a idealização da loucura, seja de forma positiva ou negativa, parece dificultar o contato com as reais necessidades dessas pessoas que de facto parecem oscilar entre a proteção assistida e vivências mais ricas e significativas no âmbito social, psicológico, simbólico, corporal e espiritual. Na seara do atendimento e das chamadas “boas práticas”, a procura por evidências científicas em Saúde Mental pode conduzir, contraditoriamente, aos vazios resolutivos tão bem conhecidos e reafirmados pelas sucessivas legislações no país, fenômeno designado por Santos12 como desarticulação interna. O conhecimento que se produz no âmbito da avaliação técnica e na busca por evidências – no sentido estrito de se obter orientações padronizadas para a tomada de decisão, muitas vezes para a racionalização de custos sob a égide da efetividade, – ao não contemplar as concepções e percepções dos agentes, ignora fatores decisivos para o reconhecimento e para a efetividade dos serviços implantados. Para Carapinheiro e Correia13, constituem uma fonte de custos na saúde que não se vê COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e que, adensados em registros relacionais e culturais, não se deixam capturar por artefatos técnicoestatísticos. No âmbito da integração comunitária, por exemplo, metodologias de treinamento social inclusivo, como a Boston University Approach to Psychiatric Rehabilitation (BPR)14, que prevê o incremento da participação social em atividades laborais comunitárias com base em metas mais acessíveis e menos competitivas, destacam-se por valorizarem o autocuidado e despontam como alternativas viáveis, de baixo custo, se comparadas aos tratamentos usuais. No entanto, seu incentivo e fortalecimento não deve ignorar que o efetivo reconhecimento da diversidade deve extrapolar os muros do establishment, pois isso reflete a disposição para avançar sem estreitamentos e limitações identificados como potenciais fatores para o adoecimento psíquico1. Sob esse aspecto, a inclusão das racionalidades leigas no processo de pactuação desponta como fator crucial de preservação identitária, que Alves1 localiza como aspecto central no processo saúdedoença mental. Trata-se de um importante recurso a fim de não subsumir à “identidade deteriorada”, nos termos de Goffman15. De um ponto de vista sociológico e também psicológico, a identificação da vulnerabilidade em que se encontram aqueles que convivem com transtornos mentais deve caminhar pari passu com o direito que tais pessoas têm de vivenciar potencialidades no decurso de sua vida. Contudo, trata-se de um equacionamento que requer mais do que técnicas e saberes especializados, não sendo possível estabelecer a priori o que será recebido e identificado como efetiva assistência em Saúde Mental e o que se apresentará como cerceamento de liberdades e de autonomia16. O estudo das racionalidades leigas, em suas expressões plurais, permite a aproximação com arranjos singulares, carregados e constituídos de vivências coletivas, de rede de relações que transfiguram crenças e verdades relativas ao longo do caminho, como diria Foucault17, de modo mais ou menos intenso e mais ou menos duradouro. As respostas oferecidas pelos serviços de Saúde Mental, quando organizadas para atender a pressupostos de políticas formuladas sem a participação das comunidades e de seus saberes e contextos locais, diminuem consideravelmente sua legitimidade, como atestam, por exemplo, os estudos de Henderson e Fuller18. Segundo os pesquisadores australianos, as políticas de saúde criam um quadro discursivo para a compreensão das questões sociais por meio da produção dos problemas de determinado modo, excluindo representações alternativas da questão (principalmente em relação à população beneficiária) e limitando as possibilidades de intervenção. O processo investigativo empreendido pelos autores sobre a política de saúde australiana para pessoas com transtornos mentais revelou que a mera disponibilização de cuidados integrados para serem “escolhidos” pelos “consumidores” considerados responsáveis por sua saúde demonstrou pouco impacto sobre o acesso aos serviços. Os usuários do sistema de saúde não tiveram maior e melhor acesso aos serviços porque estes estavam disponibilizados formalmente. Algo escapou na formulação e no planejamento da proposta, comprometendo o resultado esperado. Nessa direção, pode-se afirmar que o incremento de leis, decretos, portarias e afins não garante mudanças no atendimento em Saúde Mental, pois a complexidade desse processo não se encerra nos discursos formais e deve incluir as racionalidades leigas, a fim de que tenha vida e movimento. Para Alves19, “as racionalidades leigas manifestam resistência à medicalização da vida e à psiquiatrização das sociedades, reivindicando a competência de gestão dos ‘sofrimentos’ do quotidiano” (p. 235), cuja representação é de normalidade, na medida em que são considerados integrantes da vida. O estudo descrito a seguir ratifica essa afirmativa.

Investigação em um serviço comunitário Em investigação recente conduzida em um serviço comunitário de referência na cidade do Porto20, ao norte de Portugal, as análises resultantes sugerem intrigantes percepções dos usuários sobre o processo de recovery, norteador das ações desenvolvidas na unidade, reconhecida no país como Pessoa Coletiva de Utilidade Pública e que atende pessoas que convivem com transtornos mentais do espectro esquizofrênico. 802

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A ideia de recovery relaciona-se, segundo revisão sistemática do conceito empreendida por Baccari, Onocko-Campos e Stefanello21, a uma condição que prioriza “o quão participativa pode ser a vida de um indivíduo na comunidade não obstante a doença” (p. 134) e que se refere, de acordo com Teixeira22, “a um processo profundamente pessoal e único de mudança de atitudes, valores, sentimentos, objetivos, competências e/ou papéis” (p. 19). Após observação participante das atividades desenvolvidas e de entrevistas semiestruturadas com usuários, os dados produzidos indicam que se confere à autoridade e às rotinas planejadas e preestabelecidas um caráter normalizador da vida que é valorizado como organizador e facilitador da inserção social. Paralelamente, verificou-se que os discursos dos utentes relativos à desinstitucionalização não se servem da luta contra as estruturas manicomiais em si, mas do maior encurtamento possível em caso de internação, considerada necessária e muitas vezes inevitável. No processo investigativo, verificou-se que as racionalidades leigas expressaram subjetividades moldadas em um cenário moderno e individualizante, voltado para o autocuidado e para a responsabilização por si. A despolitização dos usuários em relação a questões coletivas reafirmou-se, por um lado; e, por outro, os discursos revelaram o ânimo para a construção de um novo “modo de andar a vida”, como sugeriu Canguilhem23. Nessa direção e seguindo os passos do filósofo e médico francês, a saúde significaria estar doente e possuir a capacidade de se reestabelecer. No entanto, esse reestabelecimento dirigia-se para um ideal de “normalização” e reinserção no sistema social que parecem estar aquém da reconciliação com a sociedade “apesar da doença” (tomando-se como base a ideia de recovery). Em acréscimo, registraram-se orientações representativas que contrariam lógicas reformistas, em certa medida, pois abarcavam um ideário que envolvia cura e reajustamento. Sob outro aspecto, a possibilidade de convivência no meio comunitário apresentou-se como um valor ímpar. As atividades levadas a termo na comunidade foram reconhecidas como válidas e acolhidas pelos participantes. Dessa forma, não se pode afirmar que os resultados tenham sugerido a desvalorização do cariz aberto e de base comunitária que reorientou as reformas relativas à assistência em Saúde Mental pós-pineliana em diversos países, incluindo Portugal. Deve-se recordar que a centralidade médicohospitalar como recurso privilegiado de assistência em Saúde Mental manteve-se constante ao longo das décadas de Reforma Psiquiátrica no país. Esse fato se reflete na elaboração das racionalidades leigas, que, na investigação aqui descrita, em particular, identificaram a instituição hospitalar como um recurso imprescindível, ainda que não desejado. E também temido, de certo modo, por apresentar relações com as ideias de “queda” e de “fracasso”. Sob o ponto de vista histórico, relembre-se que o próprio Philippe Pinel, importante precursor da psiquiatria, entre o fim do século XVIII e início do século XIX, surge como um “reformista” e inspira movimentos por toda a Europa. A opção por desacorrentar os loucos no Hospital Bicêtre, em Paris, para a introdução do chamado tratamento moral, associa uma postura tolerante e humanista, que vem de encontro aos ideais iluministas da época e ao estudo racional e metódico do fenômeno da alienação mental24 (p. 114). Pinel passa a designar as pessoas acometidas por perturbações mentais como “doentes”, para os quais o isolamento por meio da internação era considerado indispensável. Movimentos de reforma posteriores, especialmente a partir da década de 1950, como a Psiquiatria Preventiva ou Comunitária, nos Estados Unidos; e Psiquiatria de Sector na França (inspiradora do movimento de Reforma Psiquiátrica em Portugal na década de 1960), não apresentavam como foco a extinção das instituições basilares, mas seu aperfeiçoamento por meio de reformulação interna como espaço de tratamento25. Essas raízes históricas não podem ser negligenciadas quando se trata de compreender as racionalidades leigas contemporâneas em Saúde Mental no país. Em relação à Psiquiatria de Sector, a fim de se avançar em análises mais profícuas, deve-se observar seu caráter revolucionário, e não apenas restringi-la a abordagens clínicas ou ergonômicas. Uma das bases fundamentais da Psiquiatria de Sector voltava-se para a transformação nas relações em Saúde Mental25. O próprio François Tosquelles, psiquiatra catalão e precursor do movimento, afirma que somente “na singularidade da experiência, na materialidade do percurso, algumas distâncias podem ser 803


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encurtadas”26 (p. 89), referindo-se à necessidade de se perceber quais as reais demandas de um determinado momento, não com base em especialismos ou ideologias, mas na capacidade de estar com o outro, indispensável àqueles que pretendem enveredar pela seara da Saúde Mental. Assim, entende-se que estar com o outro significa reconhecer quais são as racionalidades que orientam suas ações e, desse modo, estar mais apto a acompanhá-lo. A investigação empreendida sugere que a lógica comunitária apresenta-se permeada pela lógica manicomial, sem que isso signifique contradição. Trata-se de um arranjo complexo e plural que alia a disponibilidade dos serviços, respostas consideradas resolutivas e o desejo de preservação identitária. Abordagens que permitem a aproximação com a complexidade e a singularidade, como as que envolvem as racionalidades leigas, favorecem o contato com múltiplas dimensões humanas e permitem visualizar o fenômeno do adoecimento como um processo integral, no qual saúde e doença não se opõem, conforme descrito por Marcel Mauss27 em seus percursos antropológicos.

A governação da Saúde Mental em Portugal Em Portugal, o redirecionamento da filosofia hospitalar, no sentido da implementação de estruturas assistenciais de base comunitária, iniciou-se nos anos 1960 com a Lei de Saúde Mental no 2118, de 1963, inspirada na Psiquiatria de Sector Francesa. Mas, na prática, ela não foi implementada, ou melhor, a sua implementação ficou comprometida em vários períodos, apesar de sucessivamente legislada. A Lei de Saúde Mental lançou os princípios reformadores da política de assistência psiquiátrica vigente – setorização dos serviços psiquiátricos e criação de Centros de Saúde Mental – com o objetivo de desospitalizar a psiquiatria e de levá-la às comunidades. A implementação dessa filosofia tem sofrido importantes desvios relacionados com a grave deficiência em matéria de criação de serviços de apoio à integração na comunidade. No que respeita aos serviços comunitários, estes últimos trinta anos durante os quais a tendência para a não institucionalização de novos pacientes (suportada pela solidariedade primária da família e não pela efectiva implementação de uma política de base comunitária que exigia a criação de dinâmicas comunitárias que potenciassem a inserção social das pessoas com doença mental) teve lugar juntamente com a manutenção de doentes crónicos de evolução prolongada que permaneciam nos hospitais, os Governos não se preocuparam em criar serviços comunitários28. (p. 3)

A organização de serviços para as pessoas com doença mental nunca foi encarada pela Segurança Social: enquanto doentes, “pertencem” à política da saúde. Só com a reforma da Lei de Saúde Mental de 1998 é que se irá colocar a exigência da atuação interministerial para enfrentamento das necessidades específicas da Saúde Mental. A nova lei, publicada em 24 de julho de 1998 (Lei n.º 36/98 – Lei de Saúde Mental)29, não constituiu uma ruptura com os princípios aceites anteriormente, embora tenha acentuado e oficializado a necessidade de criação de uma rede diversificada de respostas articuladas entre si que exigem colaboração interministerial e com as organizações sociais comunitárias. Como apontou Alves1,19, no fim da década de 1990 e na primeira década dos anos 2000, os serviços públicos orientaram a sua atuação sobretudo para as consultas, internamento e também, embora com menos frequência, para as hospitalizações de dia. Os privados, além destes, utilizam de forma mais generalizada os métodos psicoterapêuticos (psicanálise, psicoterapia, terapia familiar, psicodrama, grupanálise, etc.) que, apesar de existirem nos hospitais públicos e apesar de, muitas vezes, a sua formação ser financiada por estes, não representam mais do que experiências pontuais. Em outras palavras, o sistema público não está organizado de forma que possa generalizar esse tipo de abordagem, dada a sua rigidez estrutural. Mais recentemente, de acordo com a publicação anual do governo português “Saúde Mental em Números – 2015”30, cujo objetivo é acompanhar as ações desenvolvidas no Programa Nacional para 804

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a Saúde Mental (PNSM), da Direção-Geral da Saúde (DGS), os melhores resultados relacionados ao processo de transição em Saúde Mental, no qual a desinstitucionalização e o desenvolvimento de cuidados na comunidade são considerados fundamentais, foram encontrados nas percentagens de realização nas áreas do desenvolvimento dos serviços de ambulatório em hospitais gerais e nas percentagens que indicam o aumento do número de camas nos hospitais gerais. Em âmbito comunitário, foram registradas expansões nos serviços de ambulatório, no desenvolvimento de equipes e na criação de alternativas residenciais na comunidade, especialmente por meio das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPPS). Quanto às barreiras ao processo de transição em Saúde Mental, o documento aponta para a baixa prioridade política e o financiamento insuficiente ou inadequado. Já o último “Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde”31 (OPSS, 2016) afirma que a Saúde Mental tem sido uma das áreas mais afetadas pela crise econômica nos últimos anos, destaca o subfinanciamento da área como um fator relevante e informa que em Portugal registra-se uma das mais elevadas prevalências de doença mental da Europa, com aumento das taxas de suicídio em idade ativa (<65 anos). Segundo o relatório, embora uma percentagem significativa de pessoas com doenças mentais graves permaneça sem acesso a cuidados em Saúde Mental, as que têm acesso nem sempre se beneficiam de modelos de intervenção atualmente considerados essenciais, como programas de tratamento e de reabilitação psicossocial. Concorda-se com Hespanha32 no que se refere à possibilidade de um novo falhanço em relação ao Plano de Acção 2007-201633, sem que se tenham executado as ações e as mudanças necessárias em nível governamental. No entanto, conforme o estudo das racionalidades leigas tem sugerido ao longo das últimas décadas, há que se destacar o modo como se concebem e se implementam serviços de saúde que as pessoas que convivem com transtornos mentais realmente queiram utilizar, aliado à criação de estratégias de proteção e de promoção da Saúde Mental da população de forma geral e não apenas no atendimento à crise ou a quadros psicopatológicos já instalados. Não se pode almejar que a expansão da rede de serviços comunitários por si transforme processos segregadores e excludentes enraizados nas representações sociais e na cultura. O registro histórico de pouca participação de profissionais e de movimentos sociais organizados para a consolidação da reforma da Saúde Mental portuguesa deveria favorecer o olhar para as relações que se estabelecem concretamente e avançar a partir delas, não contra elas. A resistência, seja corporativa ou leiga, não pode ser superada pela imposição de normas reformistas, ainda que se tenha apreço por seus princípios e diretrizes. Trata-se de um processo consideravelmente sensível às racionalidades leigas e que exige, portanto, diálogo, negociação e uma firme aposta na capacidade de participação e envolvimento das pessoas, do modo que for possível e que tais pessoas percebam como necessário. Processos de reforma que não se iniciem com abertura semelhante distinguem-se apenas em conteúdo de propostas consideradas antidemocráticas ou autoritárias. A base dos movimentos em Saúde Mental que obtiveram êxito, seja na italiana e democrática Trieste ou no inovador âmbito clínico francês de La Borde24, foi um desejo de transformação que envolveu os coletivos e, por isso, pôde se expressar com vigor, não de modo homogêneo, mas certamente com coerência e direção. Segundo Rosa, Alves e Silva34, a sociedade portuguesa apresenta-se estratificada e sob acentuado poder médico corporativo, o que torna ainda mais relevante o estudo das racionalidades leigas na qualidade de “saberes práticos construtores dos sentidos subjetivos de saúde” (p. 29). Tal pressuposto não é algo desconhecido do campo sociológico, em especial na Sociologia da Saúde, conforme apontado recentemente por Carapinheiro e Correia13. A condição de sujeito e a preservação identitária são fatores decisivos nas questões que envolvem o acompanhamento em Saúde Mental, conforme já destacado anteriormente. Em Portugal, apesar da existência de legislações sucessivas no campo da Saúde Mental, tais legislações não se traduziram na mesma medida em relação à implantação dos serviços e na execução de práticas alternativas. As raízes na Psiquiatria de Setor francesa mantêm laços estreitos com a 805


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centralidade hospitalar e com a própria Psiquiatria e seus profissionais. A divisão entre os âmbitos clínico/biomédico e psicossocial se revelam na rede de serviços: clínicos para as estruturas hospitalares e psicossociais para os serviços comunitários. Em função da necessidade participativa, as famílias apresentam potencial reivindicatório, porém, encontram-se sobrecarregadas. Iniciativas como a “Carta para a Participação Pública em Saúde”35 – lançada durante o segundo semestre de 2016 e resultante do projeto “MAIS PARTICIPAÇÃO, melhor saúde”, organizada por signatários que envolvem organizações, associações diversas e individualidades portuguesas, incluindo o sociólogo Boaventura de Sousa Santos – parece refletir a busca por suprir, de algum modo, uma lacuna histórica no que se refere à construção coletiva e participativa nos sistemas de saúde oficiais. No que tange à implantação de novos serviços, merece destaque o trabalho das associações no apoio à doença mental, ratificado pelos documentos oficiais do governo português anteriormente referidos30,31. Nessa direção, convém registrar as investigações de Portugal e Nogueira36 que apontam para potencialidades e fragilidades de tais associações, como a proximidade e o atendimento individualizado, informação e combate ao estigma, diminuição das internações hospitalações e recidivas, capacidade de trabalhar em rede, aliadas a dificuldades financeiras e escassez de recursos humanos. As autoras informam que a expansão das associações a partir da década de 1990 não se deve à organização de familiares e usuários, mas a dispositivos externos, notadamente no âmbito legislativo, fato que remete ao distanciamento das racionalidades leigas na configuração das políticas de saúde mental no país.

Considerações finais Para abrir a Saúde Mental ao mundo da vida A necessidade de articulação comunitária não restrita à integração nas famílias se apresenta como o fator decisivo no âmbito da reabilitação psicossocial, sem que se desconsidere a expansão dos serviços, obviamente. As investigações mais recentes sugerem o fato de que epistemologias que atentem para o paradigma aberto e comunitário em Saúde Mental e as metodologias de intervenção resultantes podem ser tão ou mais influentes do que a mera expansão dos serviços, como a história já o demonstrou. Isso significa conferir espaço à revisão dos diagnósticos e resgatar a direção nosológica em Saúde Mental, sem naturalizar o veredito psiquiátrico, algo incoerente com a proposta de acompanhamento e maior participação social das pessoas acometidas por transtornos mentais. A percepção do panorama contemporâneo da Saúde Mental em Portugal poderia apontar para o facto de que intervenções efetivamente substitutivas nos serviços resultariam de organizações estruturais dos sistemas de saúde no país. No entanto, um olhar micropolítico sugere que estruturas alternativas, no caso português, não se consolidarão (e tampouco ocorrerão) caso as bases epistemológicas sob as quais as intervenções estejam fundamentadas reflitam visões segregacionistas e institucionalizantes/transinstitucionalizantes de cuidados em Saúde Mental. Tais visões despontam em parte como resultado das representações configuradas historicamente em relação à loucura. Contudo, não se trata apenas de inventar algo novo, mas de lidar com o que já se produziu e de como se produz cuidados em Saúde Mental cotidianamente. Atravessa-se um momento histórico que poderá resultar em abordagens mais complexas no atendimento em Saúde Mental, principalmente em relação a quadros mais graves, para os quais a intervenção medicamentosa e a internação se apresentam como importantes referenciais nas representações de técnicos e utentes/usuários. Contudo, não há medicação que substitua por si o acompanhamento longitudinal e tampouco internações que possibilitem o desenvolvimento das competências necessárias à vida cotidiana no território comunitário. A transformação e a recriação das ações em Saúde Mental requerem preparo 806

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formativo e vivencial e uma concepção ampliada de saúde que permita acolher diversidades de entendimento e de expressão do adoecimento mental. Os desafios contemporâneos envolvem a potencialização de organizações substitutivas e o incentivo a novas bases epistemológicas para a formação profissional que incluam a elaboração de estratégias interventivas mais próximas das necessidades e dos universos simbólicos locais. Ainda que esse fato pareça traduzir o óbvio, fenômenos ainda muito atuantes, como a transinstitucionalização37, ou seja, a mera transposição da institucionalização de um local para outro, apresentam-se como obstáculos a efetivas mudanças em Saúde Mental. Ações que não se voltem para a reinserção comunitária refletem uma insidiosa lógica manicomial que insiste em se manifestar sob o horizonte do medo e não em possibilidades de vida e de movimento, por vezes mais restritas; em outras, surpreendentes. Com isso, pretende-se articular à esfera pragmática, fundamental na organização dos serviços de reabilitação psicossocial, posturas epistemológicas que estejam atentas e críticas aos seus próprios movimentos. Dirige-se contemporaneamente um chamado às ciências humanas e sociais para responder às questões emergenciais que se apresentam em realidades sociais permeadas por crises econômicas e políticas. No entanto, avançar socialmente implica questionar o instituído a partir dos limites do que se sabe, como diria Deleuze38; ou então reconhecer o potencial criador que se apresenta na instituição imaginária da sociedade, como nos apontou o grego Cornelius Castoriadis39 ao descrever os movimentos indeterminados que permitem transformações sociais com base na recriação do instituído.

Colaboradores As autoras participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Alves F. A doença mental nem sempre é doença. Racionalidades leigas sobre saúde e doença mental – um estudo no norte de Portugal. Porto: Afrontamento; 2011. 2. Alves F. Racionalidades leigas sobre saúde e doença mental - um estudo no Norte de Portugal. In: Fontes BASM, Fonte EMM, organizadores. Desinstitucionalização, redes sociais e saúde mental: análise de experiências da reforma psiquiátrica em Angola, Brasil e Portugal. Recife: Editora Universitária UFPE; 2010. p. 25-69. 3. Alves F. Racionalidades leigas e produção local de saberes em saúde. In: Carapinheiro G, Correia T, organizadores. Novos temas de saúde, novas questões sociais. Lisboa: Mundos Sociais; 2015. p. 113-28. 4. Silva L, Alves F. Compreender as racionalidades leigas sobre saúde e doença. Physis. 2011; 21(4):1207-29. 5. Alves F, Caeiro S, Azeiteiro U. Lay rationalities of climate change. Int J Clim Chang Str Manage. 2014; 6(1):2-4. 6. Viegas V, Azeiteiro UM, Dias JA, Alves F. Alterações climáticas, percepções e racionalidades. RGCI. 2014; 14(3):347-63. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Alves F, Nicolau KW. Racionalidades legas y gobernación de la Salud Mental en Portugal. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):799-810. El artículo reafirma la importancia de las racionalidades legas producidas en Salud Mental como expresiones válidas de saber, con especial atención para los aspectos éticos relacionados a los usos sociales de los conocimientos generados. Se defiende la idea de que deben servir para la creación de estrategias innovadoras que respondan efectivamente a las necesidades de las personas y como contra-poderes a las lógicas hegemónicas. El contexto de la gobernación de la Salud Mental en Portugal y las características estructurales de la sociedad portuguesa se reflejan en los servicios efectivamente implementados y en la percepción de los usuarios con relación a su condición. La valorización de las racionalidades legas en un escenario hegemónicamente tecnicista y biomédico posibilita reafirmar la diversidad como condición humana. En esa dirección, se insiere como fundamento para el abordaje en realidades complejas y plurales como la Salud Mental, incorporando la dimensión cultural a las acciones desarrolladas.

Palabras clave: Racionalidades legas. Salud mental portuguesa. Desinstitucionalización.

Submetido em 27/10/16. Aprovado em 26/01/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0760

artigos

Experiências de desinstitucionalização na reforma psiquiátrica brasileira: uma abordagem de gênero Ana Paula Müller de Andrade(a) Sônia Weidner Maluf(b)

Andrade APM, Maluf SW. De-institutionalization experiences in the Brazilian psychiatric reform: a gender approach. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):811-21.

This paper discusses gender issues present in the mental health field in Brazil developed during the de-institutionalizing process of psychiatric reform. It develops a data analysis from an ethnographic study conducted between 2010 and 2011, in the Brazilian cities of Joinville-SC and Barbacena-MG as well as in Turin, Trieste and Gorizia in Italy. The guiding questions for these discussions relate to the significant presence of gender in the experiences launched by the deinstitutionalization process along the psychiatric reform in Brazil, regarding the care practices and the modes of subjectivation of women and men as users of the services that substituted the psychiatric hospital.

Keywords: Gender. Modes of subjectivation. Mental health. Psychiatric reform.

Este artigo objetiva discutir algumas experiências de desinstitucionalização no contexto da reforma psiquiátrica brasileira, a partir de uma abordagem de gênero. Para tanto, desenvolve uma análise dos dados de uma etnografia realizada nos anos de 2010 e 2011, nas cidades brasileiras de Joinville-SC e Barbacena-MG, assim como em Torino, Trieste e Gorizia na Itália, que teve como sujeitos os usuários e as usuárias dos serviços de saúde mental. As questões que norteiam as discussões dizem respeito à presença significativa do gênero nas experiências de desinstitucionalização desencadeadas pelo processo da reforma psiquiátrica brasileira, nas práticas assistenciais e nos modos de subjetivação de mulheres e homens que frequentam os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.

Palavras-chave: Gênero. Modos de subjetivação. Saúde mental. Reforma psiquiátrica.

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Pós-doutoranda, Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas. Rua Barão de Santa Tecla, 1334 A/ 32. Pelotas, RS, Brasil. 96010140. psicopaulla@ yahoo.com.br (b) Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. soniawmaluf@ gmail.com (a)

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Introdução Este artigo visa discutir algumas experiências de desinstitucionalização no contexto da reforma psiquiátrica brasileira por meio de uma abordagem de gênero. Para tanto, desenvolve uma análise dos dados de uma etnografia realizada nos anos de 2010 e 2011, nas cidades brasileiras de Joinville e Barbacena, assim como em Torino, Trieste e Gorizia, na Itália, cujo objetivo foi fazer uma análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira a partir do ponto de vista das pessoas que usam ou usaram os serviços de saúde mental. As questões que norteiam este texto dizem respeito à presença significativa de questões de gênero nas experiências de desinstitucionalização desencadeadas pelo processo da reforma psiquiátrica brasileira, nas práticas assistenciais, e nos modos de subjetivação de mulheres e homens que frequentam os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Estas e outras questões demonstram a complexidade e a relevância de se abordarem as questões de gênero no âmbito da reforma psiquiátrica brasileira, visto que seus desdobramentos são expressivos tanto nos modos de subjetivação quanto nas práticas institucionais e singulares de experimentar a assistência psiquiátrica no Brasil.

Percurso metodológico O trabalho de campo etnográfico foi desenvolvido durante nove meses do ano de 2010 na cidade de Joinville/SC, e, também, em pequenas incursões etnográficas na cidade de Barbacena/MG (2010) e Torino, Trieste e Gorizia, na Itália (2011). Não se trata de um estudo comparativo, buscamos, em realidades distintas, elementos que aumentassem a capacidade de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Optamos pela abordagem etnográfica por entender que assim seria possível enfatizar os diferentes discursos e práticas sociais presentes no contexto investigado. Durante o trabalho de campo, utilizamos observações participantes, narrativas e entrevistas semiestruturadas. Os dados foram registrados em diários de campo. O trabalho de campo não se deu com um grupo ou local específico. Acompanhamos os sujeitos em atividades diversas, ligadas ou não à saúde mental, nas cidades em que moram. Ao conversar com os/as primeiros/as interlocutores/as sobre a pesquisa, estes/as indicavam pessoas que julgavam que poderiam participar. Estas, por sua vez, indicavam outras e convidavam para participar de outras atividades. Assim, o trabalho foi sendo desenvolvido, aos moldes das redes sociais, como sugerido por Bott1. Os sujeitos da pesquisa eram mulheres e homens adultos, em geral pertencentes às classes populares que frequentavam ou já tinham frequentado os serviços de saúde mental. Muitos/as eram egressos/as de hospitais psiquiátricos e alguns/algumas ainda eram internadas, por diferentes motivos, nos hospitais psiquiátricos existentes no Brasil. Todas/os usavam ou já tinham feito uso de psicofármacos.

Um breve panorama da reforma psiquiátrica brasileira A reforma psiquiátrica brasileira tem sido reconhecida tanto como um processo inovador, original e prolífero2 quanto como uma obra plural e em processo3. Esse processo teve seu início ainda nos anos 1970 e foi desencadeado por um movimento social protagonizado por trabalhadores/as, familiares, usuários/as, políticos/as, artistas, dentre outros, que reivindicavam uma transformação na assistência psiquiátrica dispensada aos considerados ‘doentes mentais’. Desenvolveu-se num contexto mais amplo de reformas psiquiátricas que vinham acontecendo em outros países, com uma concepção contra-hegemônica ao modelo vigente, baseado na custódia e no isolamento dos ‘loucos’ e suas ‘loucuras’. Tal modelo, à época, foi reconhecido como incapaz e ineficiente, nas suas vertentes práticas e teóricas, como mostram os trabalhos de Foucault4, Goffman5, Cooper6, dentre outros. 812

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Em sua análise sobre os diferentes movimentos de reforma psiquiátrica no mundo (Itália, França, Estados Unidos, dentre outros países), Desviat7 mostra como o contexto pós-segunda guerra, aliado a outros acontecimentos, como o advento dos psicotrópicos e da psicanálise, foram fatores propulsores destes processos que aconteceram de maneiras distintas nos países em que ocorreram. Para o autor, estes movimentos estiveram permeados pelas características próprias de cada país e, também, do que ele denominou como diferentes momentos históricos dos movimentos de reforma psiquiátrica no mundo, que teriam, como condições comuns, um clima político e social propício e uma legitimação administrativa favorável. Desviat7 considera dois momentos históricos dos movimentos da reforma psiquiátrica no mundo, sendo: o primeiro desenvolvido na França, na Itália, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá; e o segundo desenvolvido em países como o Brasil e a Espanha. Para o autor, este segundo momento estaria influenciado pelas reformas anteriores. Na sua avaliação, os riscos dos processos de transformação da assistência em saúde mental, enquanto psiquiatria pública alternativa estariam situados “por um lado, da crise de seu esteio principal – os serviços sanitários, sociais e comunitários do chamado Estado de Bem Estar Social – e, por outro, da evolução fármaco-dependente e rudimentarmente biológica da psiquiatria” (p.157). No Brasil, a reforma psiquiátrica iniciou seu processo concomitantemente ao processo de democratização do país e de reformulação no seu sistema de saúde, por meio da reforma sanitária; e passou a questionar os saberes e práticas psiquiátricos, além de fazer uma crítica radical ao hospital psiquiátrico como local de tratamento. Como consequência de mobilizações, de embates e negociações entre setores com interesses diversos e divergentes, após doze anos de tramitação no Congresso Nacional Brasileiro, a Política Nacional de Saúde Mental (Lei 10216/2001) foi aprovada. Tal política estabelece direitos para as pessoas denominadas como “portadores/as de transtornos mentais”; regulamenta o cuidado com a clientela internada por longos anos, e redireciona a assistência psiquiátrica no país, indicando a criação de uma rede de serviços comunitários que substitua os hospitais psiquiátricos. Desde a aprovação da lei, vários serviços e práticas vêm sendo desenvolvidos de forma heterogênea em todo o país, o que permite dizer que são muitas as reformas, não apenas na diversidade de práticas e teorias como naquilo que pretendem reformar. Considerando a heterogeneidade e a complexidade das mesmas, poderíamos denominar tal processo como ‘as’ reformas psiquiátricas ao invés de ‘a’ reforma, como apresentado por Fonseca et al.3 e também sugerido por Andrade8. Outros trabalhos também apontam para a diversidade dos processos de reforma psiquiátrica, bem como para sua complexidade. Rotelli et al.9, a partir da experiência italiana, comentam que o processo de transformação da assistência psiquiátrica é um processo dinâmico, conflitivo e não resolutivo. Tais autores aludem ao dito de Franco Basaglia – um dia após a aprovação da Lei 180, na Itália, em 1978 – de que “por sua lógica interna e pelas características do terreno na qual age, esta lei abre mais contradições do que as resolve” (p.49). Seja pela complexidade do processo como pelos aspectos que o compõem, as contradições e paradoxos presentes na atualidade destas transformações no Brasil extrapolam o campo da saúde. É, assim, um processo amplo, repleto de tensões e atravessamentos que têm colocado em evidência diferentes elementos, próprios à sua complexidade. O gênero é um desses elementos. Discutiremos, a seguir, aqueles aspectos que emergiram com maior vigor na pesquisa realizada, considerando o gênero como um elemento importante no contexto da reforma psiquiátrica brasileira.

Considerações sobre o gênero na reforma psiquiátrica brasileira A política nacional de saúde mental brasileira, traduzida pelo processo da reforma psiquiátrica, tem produzido transformações subjetivas e objetivas na vida de homens e mulheres que têm suas experiências de vida atravessadas pela mesma. Tal política congrega alguns planos, que podem ser situados entre o plano institucional e o plano das experiências singulares, em que o gênero tem se mostrado como uma dimensão política importante a configurar as relações de poder. Partimos do entendimento do gênero como uma construção sociocultural, histórica e relacional, que institui hierarquias, configura relações de poder e constitui modos de subjetivação. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No emaranhado de (re)posicionamentos subjetivos desencadeados por tais transformações, é possível perceber a articulação de certos modos de subjetivação(c) que possibilitam, ou não, rupturas com os lugares hegemonicamente instituídos aos homens e mulheres que têm suas experiências no campo da saúde mental. Como apresentado, o gênero é entendido aqui como um regime de subjetivação, como uma forma de constituição de sujeitos que configura relações de poder, tal como tem sido proposto por Judith Butler, Joan Scott e Teresa de Lauretis. Como apontam alguns estudos8,10-12, as mulheres são a maioria na maior parte dos serviços de saúde mental criados no processo da reforma psiquiátrica brasileira, como: trabalhadoras, usuárias e/ou familiares e, sobretudo, consumidoras dos psicofármacos prescritos nestes serviços. Entretanto, existem algumas particularidades quanto à maior ou menor presença das mulheres nestes serviços. Enquanto, nos serviços voltados para a atenção básica de saúde, a presença das mulheres é significativamente maior, nos serviços voltados para o atendimento de álcool e outras drogas, a clientela maior é formada por homens, o que indica diferenças socioculturais nos modos como homens e mulheres buscam alívio para seus sofrimentos. No contexto da pesquisa desenvolvida, percebemos que, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de tipo III(d), a clientela era distribuída de forma equivalente entre os sexos, conforme percebido no dia a dia do serviço e, também, pelas informações da coordenadora. Já no serviço que voltava suas ações para as questões de trabalho e renda, as mulheres não eram maioria. Nos demais serviços, como Ambulatório de Saúde Mental e Centro de Atenção Psicossocial tipo II, as mulheres predominavam como usuárias. Tais dados evidenciam configurações de gênero que tendem a reproduzir lugares historicamente constituídos para homens e mulheres e revelam que “as questões geradoras do sofrimento psíquico têm sua base nos estereótipos de gênero”13 (p.245). Além disso, demonstram que a busca por alívio para tais sofrimentos é marcada por determinantes socioculturais, tal como discutido por Silveira14. Além da significativa presença das mulheres nos serviços de saúde mental, durante a pesquisa também foi possível perceber a reificação do lugar de subalternidade ocupado por elas. Tal reificação pode ser percebida nos discursos e práticas institucionais e, também, nas falas de alguns/algumas interlocutores/as que, ao se referirem às experiências de algumas mulheres, faziam comentários do tipo “isso é fricote, dá coisa para ela fazer...”, “é aquela loucurada dos hormônios todos os meses...”, dentre tantas outras expressões reveladoras de uma maneira de pensar as diferenças percebidas entre homens e mulheres. Comentários com este teor se tornaram frequentes, e eram enunciados tanto por homens quanto por mulheres. Evidenciavam, de certa maneira, os aspectos socioculturais, históricos e relacionais neles presentes. Durante o trabalho de campo em Barbacena – MG(e), soubemos que uma das edições do Festival da Loucura, realizado anualmente na cidade com a finalidade de discutir a loucura, teve como temática a loucura das mulheres e, como slogan, “Festival da Loucura: a loucura delas...”. Tal slogan estava inscrito em uma camiseta cor de rosa vestida por uma mulher que trabalhava na recepção de um serviço turístico da cidade, e que relatou como havia sido, do seu ponto de vista, aquela edição do festival. Para ela, tinha sido uma oportunidade ímpar para discutir o sofrimento das mulheres, já que entendia que elas sofriam de uma maneira diferenciada dos homens. “É diferente entende, a gente tem uma coisa que é da mulher...”, disse ela, argumentando sobre a especificidade de um sofrimento feminino. 814

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Entendemos, por modos de subjetivação, os processos por meio dos quais os indivíduos se tornam sujeitos, tal como proposto por Michel Foucault. (c)

Os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) estão constituídos em diferentes modalidades, de acordo com os critérios de: população de abrangência, capacidade operacional, horários de funcionamento e clientela. Os Caps III funcionam todos os dias da semana, 24 horas por dia, e atendem homens e mulheres com “transtornos mentais”. Já o CAPS tipo II, tem funcionamento reduzido em dias e horários. (d)

Barbacena - MG tem uma experiência considerada paradigmática na assistência psiquiátrica brasileira. Foi considerada, por muitos anos, a “cidade dos loucos” por ter tido sete hospitais psiquiátricos, dos quais ainda restam três. Com o início do processo da reforma psiquiátrica no país, houve, no município, a criação de alguns serviços de saúde mental visando substituir os hospitais psiquiátricos, dos quais se destacam os serviços residenciais terapêuticos, onde moram homens e mulheres egressas dos hospitais psiquiátricos da cidade. (e)


Andrade APM, Maluf SW

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Foi possível nesta e em outras circunstâncias perceber quanto o gênero constitui discursos e práticas dos agentes do Estado, profissionais que atuam nos serviços públicos (não apenas na área de saúde, como visto no exemplo), e, também, de usuários e usuárias desses serviços. O gênero institui normativas que definem e configuram as relações entre homens e mulheres e de ambos com suas experiências de sofrimento, adoecimento e cuidado. Tanto os argumentos da trabalhadora sobre um sofrimento que seria específico das mulheres, quanto a cor e o slogan de sua camiseta são expressão de um discurso da diferença e relações de poder configuradas e estabelecidas pelo gênero. Mas não é apenas sobre as mulheres que tal configuração pesa. Os homens também são afetados pela ideia de que, sendo o “sofrimento mental” de “natureza feminina”, são deslocados do lugar conferido a eles em suas relações, como mostrou o relato de Daniel, um dos interlocutores. Enquanto falava dos transtornos mentais durante uma de nossas interlocuções, disse: “Transtorno Bipolar é coisa de fresco [homossexual].” Para ele, havia transtornos que eram específicos das mulheres, e o transtorno bipolar era um deles. Conforme aponta Laqueur15, o gênero tem estado presente nas concepções da medicina de forma significativa a partir do século XVIII; e o conjunto de conhecimentos que advém desse saber tem instituído uma série de interpretações ligadas, em especial, às questões reprodutivas e às assimetrias de gênero historicamente construídas. Tais concepções se inscrevem, também, no campo das interpretações quanto ao sofrimento ou aflições de ordem psicossocial, e atravessam os entendimentos quanto à sua etiologia e terapêuticas. Em sua análise sobre a construção da ginecologia como uma ciência da diferença, Rohden16 argumenta que é possível dizer “que as teorias da insanidade e das doenças dos nervos nas mulheres, baseadas no predomínio da função reprodutiva, foram predominantes no século XIX porque as mulheres também ‘experimentavam’ suas vidas reprodutivas como problemáticas” (p.30). Tais concepções perduram nos dias de hoje por meio da construção, consolidada pelos saberes hegemônicos e pelos regimes de subjetivação contemporâneos, de uma relação natural entre a vida reprodutiva das mulheres, seus hormônios, esse algo que “é da mulher”, “essa loucurada dos hormônios” com suas aflições e sofrimentos. Como sugeriu Butler17, o gênero se produz por uma complexidade discursiva, que é responsável por produzir corpos de homens e corpos de mulheres. Para a autora17, “o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (p.59). Assim como a construção social da loucura apontada por Foucault4, o gênero também tem sua genealogia, como mostrou Laqueur15. Ao analisar as concepções das categorias sexo e gênero, Laqueur15 argumenta que o sexo seria mais do que uma descoberta de verdade na natureza; seria uma construção social que responde aos valores de uma determinada época. Para o autor, o dismorfismo sexual foi uma categoria inexistente até o nascimento da medicina; e o sexo, tal como o concebemos atualmente, teria sido inventado no século XVIII como um fundamento para concepções culturais e sociais de gênero. Inventou-se o sexo, assim como se inventou a doença mental: fundamentos para práticas de controle dos sujeitos. No contexto dos serviços investigados, foi possível perceber como o gênero tem marcado as experiências dos sujeitos e as práticas assistenciais. Os dados da pesquisa encontraram ressonância com dados de estudos já desenvolvidos, como os de Santos18 e Silveira14, que também apontaram para o fato de que as práticas assistenciais apresentam uma marca significativa do gênero, tanto na busca de mulheres e homens para o alívio de seus sofrimentos nos serviços de saúde, quanto pelo relacionamento que estabelecem com seus pares no seu cotidiano, nos seus lugares de convivência e sociabilidade. Assim, compartilhamos do argumento de Maluf19 de que: No caso da temática genérica “saúde mental” e aflição, incluindo a questão da “doença dos nervos”, o gênero tem aparecido em sua relevância etnográfica – tanto quantitativa, ou seja, pelo alto índice de mulheres sofredoras desse tipo de perturbação, quanto qualitativa, pela forma como as representações e ideologias da diferença de gênero conformam as experiências sociais da doença e do sofrimento psicológico e físico-moral ou do nervoso. (p.24-5)

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Tal como pudemos perceber nos dados analisados, tanto os modos como as experiências de sofrimento são definidas no campo psiquiátrico ou psicológico quanto o gênero vêm constituindo regimes de subjetivação que se desdobram nas políticas públicas e nos modos de cuidar e buscar cuidados nos serviços de saúde mental. Ser mulher ou homem e/ou receber um diagnóstico de transtorno de ordem psiquiátrica são experiências que acabam prescrevendo concepções e modos de sentir e pensar por parte de usuários, usuárias e profissionais de saúde.

O gênero e suas declinações em práticas A partir dos dados etnográficos, foi possível compreender algumas declinações do gênero em práticas que tendem a reforçar as assimetrias baseadas no discurso da diferença sexual. Uma destas percepções está relacionada, conforme os relatos obtidos em campo, ao desencadeamento do que, grosso modo, poderíamos definir como a experiência de ‘adoecimento’, no campo da saúde mental. Os relatos analisados evidenciam que, mesmo presentes nas concepções hegemônicas, a dicotomia entre o privado e o público, o mundo da casa e o mundo do trabalho profissional e do ganho do sustento não necessariamente se reproduzem no contexto investigado. Conforme as falas das mulheres, ao lado de experiências como a perda de um filho ou um ente querido, separação conjugal e dificuldades de relacionamento com a família, também estavam presentes questões ligadas ao trabalho e ao sustento da casa, dupla e tripla jornada, demonstrando que a dicotomia público-privado não era homogênea e se diluía em experiências de confronto das mulheres com o mundo ‘público’. A discussão entre público e privado, nos estudos feministas, é antiga e não será aprofundada aqui; no entanto percebe-se que tanto o público quanto o privado sofreram modificações diante das transformações produzidas pela inserção das mulheres no mundo do trabalho e em outros âmbitos da vida pública, como revelam os dados desta pesquisa. Nilza, uma interlocutora pertencente às classes populares urbanas, com história de internações psiquiátricas e tratamentos nos serviços substitutivos, relatando sua experiência de adoecimento, mostrou como estes dois âmbitos (público e privado) apareciam de forma concomitante na sua vida. Segundo ela, suas dificuldades haviam iniciado quando, muito jovem, começou a trabalhar, e, dadas as pressões deste trabalho, como a intensa e extensa jornada de trabalho, adoeceu “da cabeça”. Contudo, ao falar de suas crises, disse que elas estiveram relacionadas: às condições de trabalho, à maternidade e às péssimas condições conjugais, configurando-se, assim, como dificuldades no âmbito público e privado. Numa de nossas conversas, ela fez o seguinte relato: “O Alberto (marido) não fazia nada, eu tinha que pegar a foice e cortar porque parecia uma capoeira [capoeira significa, neste contexto, mato alto] aqui, e cuidar do Tiago (filho) e da casa também e o Tiago não comia, e chorava de fome, mas não conseguia chupar a mamadeira (...) Aí a coisa foi ficando difícil, porque eu e o Alberto não tinha convivência, ele nunca conseguiu fazer nada pra casa [...] Aí, eu fui ali numa vizinha e falei com ela e ela disse que estavam precisando de gente para trabalhar numa cozinha industrial. Depois que eu casei eu não tinha trabalhado mais. E aí eu fui e achei uma creche e coloquei o Tiago, era aqui perto mas uma delas disse que ele não podia ficar ali pois o desenvolvimento dele não era normal e não dava. Eu fui lá falar com ela, pois achava que ele podia sim, mas ela disse que não e que ele era muito magrinho, que eu não dava comida pra ele. Me mandaram no conselho tutelar e eu tive que ir lá explicar que ele era de 8 meses. Daí depois eu levava ele lá no outro lado da cidade bem cedo, depois voltava aqui para trabalhar e no final da tarde ia lá buscar ele. Daí era só isso que eu fazia, ficava correndo de um lado para o outro. Como que não vai ficar louca? Trabalhando, o marido bate, xinga, tem que cuidar do filho [...]”

Neste relato fica evidente a articulação do público com o privado, demonstrando a diluição dos mesmos nas experiências dos sujeitos. Nilza mostra como as demandas socioculturais relacionadas às tarefas domésticas (“o Alberto não tinha convivência, ele nunca conseguiu fazer nada pra casa”) e à maternidade (“diziam que eu não dava comida para ele”) contribuíram para o início do seu processo de adoecimento. 816

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O relato também deixa antever outros aspectos que se relacionam com o gênero, tal como a perpetuação da violência doméstica, em geral, invisibilizada por diferentes circunstâncias, e a responsabilização unicamente das mulheres no cuidado dos filhos. No conjunto dos dados analisados, também foi possível perceber um discurso naturalizado que subjuga as mulheres, que não leva em consideração suas experiências singulares e as diferentes maneiras com que cada sujeito dá sentido às mesmas, estando tais experiências relacionadas a uma suposta ‘natureza’ feminina das questões de ordem psicológica e/ou psiquiátrica. A interpretação de uma suposta ‘natureza feminina’ esteve presente nas falas de alguns/algumas interlocutores/ as que frequentavam os serviços de saúde mental visitados durante a pesquisa. Como apontado anteriormente, foi um deles que, referindo-se à experiência das mulheres, disse: “não tem como não ficar maluca né?!?! Imagina que elas ficam com aquela loucurada dos hormônios todos os meses”. Do seu ponto de vista, as mulheres estariam predispostas aos transtornos mentais em função de uma condição biológica, ou seja, seu ciclo menstrual. A naturalização destes discursos, tal como discutido por Rohden16, estaria ligada à concepção de uma natureza feminina ligada a questões biológicas. Como diz a autora16: “Daí derivaria a ideia de que as doenças das mulheres nada mais seriam do que a expressão mesma de sua natureza. Na medida em que são mulheres, são também doentes e são doentes porque são mulheres.” (p.16) No âmbito das políticas públicas de saúde mental voltadas para as mulheres tal naturalização também aparece de forma significativa entre as preocupações ligadas aos direitos reprodutivos e à noção de ‘ciclo vital’ das mulheres, definido pelas diversas fases de seu ciclo biológico, como a gravidez, o parto, o pós parto e a menopausa, tal como apontou Maluf19,20. Entendemos que ainda são limitados os esforços para a compreensão mais ampliada das articulações entre o gênero e as experiências de sofrimento no campo da reforma psiquiátrica brasileira. Isso pode estar relacionado ao fato de que mesmo com a proposta de superação do modelo manicomial, de alguma maneira, ainda se incorre na repetição de algumas características deste modelo através da manutenção de assimetrias, neste caso, aquelas relacionadas ao gênero. Além disso, o que se pode perceber é que, como sugeriu Maluf19 [...] apesar de não haver uma política explícita e consolidada de gênero de saúde mental nos programas oficiais, percebe-se que na aplicação da política de saúde, no cotidiano das unidades de saúde e dos Centros de Atenção Psicossocial, uma política da diferença e um discurso da diferença de gênero se faz presente; na prática há uma política sendo implantada ou reproduzida, uma política que implica na medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público. (p.35)

Os efeitos de tal política se evidenciam na presença majoritária das mulheres como usuárias dos serviços de saúde mental, na hipermedicalização de suas experiências e sua articulação às assimetrias de gênero. Ao mesmo tempo, apontam para as possíveis limitações no acesso e no atendimento das demandas de saúde mental dos homens nestes mesmos serviços. Como apontado em Andrade12, o fato das questões de gênero não fazerem parte do rol de preocupações da reforma psiquiátrica demonstra a invisibilidade dos seus efeitos nesse contexto e indica a reprodução de uma cultura fortemente marcada pelas desigualdades de gênero.

Modos de subjetivação e seus desdobramentos em experiências Tal como discutido até aqui, o gênero enquanto um regime de subjetivação tem exercido uma grande influência nas formas de pensar e intervir no âmbito da reforma psiquiátrica brasileira. Como apresentado, o pouco reconhecimento de sua complexidade tem tido efeitos especialmente sobre as mulheres que buscam alívio para seus sofrimentos nos serviços de saúde mental, em geral ligados à centralidade da terapêutica medicamentosa prescrita às mulheres. Vale salientar que o sofrimento é entendido, em nossa análise, como uma experiência subjetiva atravessada pelos modelos e significados do processo de adoecimento e cura atribuídos por cada COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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sujeito ao mesmo, permeada pelas características socioculturais dos contextos em que se desenvolvem, e não apenas como uma categoria nosográfica, um evento biológico ou um conjunto de sintomas. Como pudemos perceber na pesquisa desenvolvida, o fenômeno da (hiper) medicalização é um imperativo presente e compartilhado entre todas as pessoas que fazem parte da reforma psiquiátrica, e se articula com questões de gênero invisibilizadas mas presentes nesse contexto. É uma questão que está presente no discurso de profissionais, familiares, usuárias e usuários, e assume diferentes perspectivas. Como apontado por diversos autores, as mulheres têm ocupado uma posição de destaque em relação ao consumo de psicofármacos, em especial os benzodiazepínicos (ver, por exemplo, Diehl et al.11), os quais estão entre as substâncias psicotrópicas mais consumidas de forma indiscriminada em todo o mundo. A partir da perspectiva de gênero, ocupar tal posição no ranking do uso dos mesmos é ‘justificada’ pelos prescritores (obviamente), considerando o favorecimento de um equilíbrio para as mulheres que, tendo suas angústias aliviadas, manteriam suas funções no contexto em que vivem, ainda que tais prescrições possam significar uma mordaça química que as impossibilita de descobrir outras formas de lidar com tais sofrimentos. No que se refere ao uso dos psicofármacos entre as mulheres(f), as queixas que ouvimos quanto ao uso dos mesmos giravam em torno: do enrijecimento do corpo, da diminuição da capacidade de articular as palavras, muitas vezes, em função da lentificação do pensamento, e ganhavam apoio da maioria no que diz respeito às modificações corporais advindas do uso da medicação. Em geral, as mulheres reclamam do ganho de peso, como fez Mariana, uma interlocutora, sobre o fato de ter aumentado 62 quilos durante uma de suas internações psiquiátricas. Fazendo coro com a maioria das mulheres e homens que se queixam dos efeitos dos psicofármacos em seus corpos, ela contou: “Quando eu entrei no São Pedro [se referindo ao hospital psiquiátrico de Porto Alegre/RS] eu tinha quarenta quilos e saí com 102. Era uma injeção por semana e 18 comprimidos por dia”. Por meio do seu relato, tentava tornar visível a dimensão de tais modificações e dos efeitos corporais do excesso de medicamentos. Mariana é uma mulher jovem, branca, que pertence às classes populares, e, ainda que fosse de uma geração que poderia ter tido acesso a outro tipo de assistência psiquiátrica, sentiu, subjetiva e objetivamente, os desdobramentos de uma internação em um hospital psiquiátrico, tendo aumentado mais que o dobro do seu peso, além dos demais efeitos adversos desencadeados pela medicação ministrada. Sua indignação durante seu relato não dizia respeito apenas às questões corporais, mas, sobretudo, aos efeitos da internação psiquiátrica em sua vida. Marta, outra interlocutora que frequentava um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico, em uma de nossas conversas, reclamou do excesso de medicamentos prescritos e ministrados. Para ela, que tinha tido sua primeira “crise” em função das exigências do mundo do trabalho e havia engordado muitos quilos com os tratamentos psiquiátricos feitos ao longo dos anos, suas queixas se justificavam pelo fato de ela não entender que as medicações lhe fizessem bem e a ajudassem a se sentir melhor. “Hoje eu não tô boa. Eu não gosto mais aqui do CAPS, de ficar aqui no CAPS. Eles dão muito remédio pra gente”, disse ela. Apesar disso, fazia uso da medicação que lhe era prescrita, resistindo, ao menos verbalmente, ao uso da mesma e alertando sobre seus excessos.

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(f) As mulheres com as quais conversamos haviam sido diagnosticadas como portadoras de transtornos mentais graves e persistentes, especialmente depressão, esquizofrenia e outros transtornos psicóticos; e, por isso, faziam uso de antidepressivos, antipsicóticos e outras medicações prescritas comumente no tratamento destes tipos de transtornos.


Andrade APM, Maluf SW

artigos

Como discutido anteriormente, a naturalização do sofrimento das mulheres é enfatizada em função da concepção de uma suposta vulnerabilidade relacionada ao que seria sua função reprodutiva19-21, e se desdobra em uma terapêutica correlata; para um suposto sofrimento de etiologia orgânica, uma terapêutica medicamentosa, supostamente eficaz. Entendemos que a discussão sobre os psicofármacos não está reduzida à prescrição, usos e abusos dos mesmos, mas se relaciona a questões de poder e controle mais amplas. No trabalho em que discutem o uso de ansiolíticos entre mulheres de uma unidade básica de saúde, Carvalho e Dimenstein22 alegam que, na relação destas com os serviços de saúde, se produz “um tipo de discurso naturalizado que subjuga a mulher, na medida em que não levam em conta os modos de existência particulares, as singularidades e a diversidade das maneiras de sentir e pensar de cada sujeito” (p.121). Silveira14 também faz referência ao uso dos benzodiazepínicos como terapêutica para mulheres nervosas, e mostra que “ao menos na perspectiva das pacientes e seus familiares, a medicalização de problemas sociais tem funcionado como solução para o médico, pois as pacientes, a despeito do uso de calmantes, continuam a ter crises” (p.80). Tais aspectos envolvem as relações entre prescritores/as e demandantes, e os contextos em que estão inseridos, uma vez que esses são marcados por regimes de subjetivação que reificam diferenças e lugares de poder. Para Basaglia23, a descoberta dos psicofármacos pode ter determinado a relação dos ‘pacientes’ com as instituições; no entanto não desencadeou mudanças nas relações em si, uma vez que o ‘louco’ segue sendo o ‘louco’, e suas experiências acabam sempre sendo interpretadas a partir de uma razão psicopatológica. Tal como argumentou o autor:23 Os medicamentos exercem uma ação indiscutível, da qual pudemos apreciar os resultados em nossos asilos e na redução do número dos doentes “sócios” do hospital. Mas a posteriori pode-se começar a ver como funciona essa ação, tanto a nível do doente como do médico, pois os medicamentos agem simultaneamente sobre a ansiedade enferma e a ansiedade daquele que a cura, evidenciando um quadro paradoxal da situação: através dos medicamentos que administra, o médico acalma sua ansiedade diante de um doente com o qual não sabe relacionar-se nem encontrar uma linguagem comum. Compensa, portanto, usando uma nova forma de violência, sua incapacidade para conduzir uma situação que ainda considera incompreensível, continuando a aplicar a ideologia médica da objetivação através do perfeccionismo da mesma. (p.128)

É possível reconhecer que, de alguma maneira, em meio às transformações na assistência psiquiátrica brasileira, deixou-se de controlar os loucos por meio do aparato asilar, entre os muros, e se passou a controlar a loucura presente nas experiências dos sujeitos, especialmente por intermédio do imperativo da medicação. Contudo, como a medicalização se dá em processos relacionais, os saberes são articulados de diferentes maneiras pelos sujeitos que frequentam os serviços de saúde mental pesquisados. Alguns relatos e observações foram bastante significativos desta articulação e possível subversão de tais prescrições (dos remédios e dos lugares), como o de Nilza, que, contando sobre sua experiência, disse: “Tá, aí eu vim pra casa, mas aqui eu não tomava mais os remédios, eu guardava assim atrás da língua e não tomava e na ala psiquiátrica também não tomava, quando ia tomar o café eu fazia de conta, mas jogava fora”. Por que? “Porque fica tudo duro assim (gesticula para me mostrar a rigidez dos braços e das pernas), a pessoa não consegue fazer nada. Eu cheguei em casa e não conseguia fazer nada, queria lavar uma louça não dava, queria caminhar não dava...” Por fim, foi neste contexto, que tende a hipermedicalizar as experiências, que foi possível compreender como os sujeitos, sobretudo as mulheres interlocutoras desta pesquisa, exercem, sobre tais prescrições, uma certa agência, por meio da qual criam linhas de fuga que, subvertendo ou aderindo parcialmente aos regimes hegemônicos de subjetivação, produzem novos significados para suas experiências com o sofrimento.

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EXPERIÊNCIAS DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA ...

Colaboradores As autoras participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Bott E. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1976. 2. Amarante P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1996. 3. Fonseca TMG, Engelman S, Perrone CM. Rizomas da reforma psiquiátrica: a difícil conciliação. Porto Alegre: Sulina, UFRGS; 2007. 4. Foucault M. História da loucura: na idade clássica. 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997. 5. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 7a ed. São Paulo: Perspectiva; 2001. 6. Cooper D. Psiquiatria e antipsiquiatria. 2a ed. São Paulo: Perspectiva; 1989. 7. Desviat M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. 8. Andrade APM. Sujeitos e(m) movimentos: uma análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira na perspectiva dos experientes [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2012. 9. Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização, uma outra via: a reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos “Países Avançados”. In: Rotelli F, Leonardis O, Mauri D, organizadores. Desinstitucionalização. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 17-59. 10. Maluf SW, Tornquist CS. Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas; 2010. 11. Diehl E, Manzini F, Becker M. A minha melhor amiga se chama Fluoxetina: consumo e percepções de antidepressivos entre usuários de um centro de atenção básica à saúde. In: Maluf SW, Tornquist CS, organizadoras. Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas; 2010. p. 331-65. 12. Andrade APM. O gênero no movimento da reforma psiquiátrica brasileira. In: Maluf SW, Tornquist CS, organizadoras. Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas; 2010. p. 273-93. 13. Zanello V, Fiuza G, Costa HS. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal. 2015; 27(3):238-46. 14. Silveira ML. O nervo cala, o nervo fala: a linguagem da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. 15. Laqueur T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2001. 16. Rohden F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001. 17. Butler J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003. 18. Santos AMCC. Gênero e saúde mental: a vivência de identidades femininas e masculinas e o sofrimento psíquico na sociedade brasileira contemporânea. Algumas reflexões a partir de relatos dos pacientes diagnosticados como portadores de transtornos mentais severos do CAPS - Araraquara – SP [dissertação]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2008. 19. Maluf SW. Gênero, saúde e aflição: políticas públicas, ativismo e experiências sociais. In: Maluf SW, Tornquist CS, organizadoras. Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas; 2010. p. 21-67.

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20. Maluf SW. Biolegitimacy, rights and social policies: new biopolitical regimes in mental healthcare in Brazil. Vibrant (Brasília). 2015; 12(1):321-50. 21. Maluf SW. Sofrimento, ‘saúde mental’ e medicamentos: regimes de subjetivação e tecnologias de gênero. In: Tornquist CS, Coelho CC, Lago MCS, Lisboa TK, organizadoras. Leituras de resistência: corpo, violência e poder. Florianópolis: Ed. Mulheres; 2009. p. 145-61. 22. Carvalho L, Dimenstein M. O modelo de atenção à saúde e o uso de ansiolíticos entre mulheres. Estud. Psicol (Natal). 2004; 9(1):121-9. 23. Basaglia F. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. 2a ed. Rio de Janeiro: Graal; 1985.

Andrade APM, Maluf SW. Experiencias de desinstitucionalización en la reforma psiquiátrica brasileña: una bordaje de género. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):811-21. El objetivo de este artículo es discutir algunas experiencias de desinstitucionalización en el contexto de la reforma psiquiátrica brasileña, a partir de una abordaje de género. Para ello, desarrolla un análisis de los datos de una etnografía realizada en los años 2010 y 2011, en las ciudades brasileñas de Joinville (Estado de Santa Catarina) y Barbacena (Estado de Minas Gerais), así como en Turín, Trieste y Gorizia en Italia, cuyos sujetos fueron los usuarios y usuarias de los servicios de salud mental. Las cuestiones que nortean las discusiones se refieren a la presencia significativa del género en las experiencias de desinstitucionalización desencadenadas por el proceso de la reforma psiquiátrica brasileña, en las prácticas asistenciales y en los modos de subjetivación de mujeres y hombres que frecuentan los servicios de sustitución del hospital psiquiátrico.

Palabras clave: Género. Modos de subjetivación. Salud mental. Reforma psiquiátrica.

Submetido em 22/10/15. Aprovado em 10/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0477

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Conexões na transformação da experiência do sofrimento psíquico: articulação entre memória e história Cláudia Pellegrini Braga(a)

Braga CP. Connections on transformation of mental suffering experience: relationship between memory and history. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):823-32.

The possibility of encountering others in the world is understood,among the diverse models of care, even coming from distinct conceptual bases, as a fundamental experience for people who experience mental suffering. This requires the invention of new practices, something that is being done, and revisiting key-concepts from fields such as psychoanalysis, that need reexamination. A theoretical and critical study about the key concept of memory, understood as constant re-entry of facts and events, was developed; this concept is intertwined with the concept of history, defined as a continuous reconstruction of a process with multiple connections. The analysis was developed in dialogue with philosophy and a literary narrative was presented to give basis to the arguments. The study reflected on the theoretical link between memory, history and mental suffering and reaffirmed that the transformation of mental suffering have links with a specific territory.

Nos modos de atenção aos sujeitos com experiência do sofrimento psíquico, mesmo que de diferentes bases teórico-conceituais, considera-se o encontro com outras pessoas no mundo como primordial para transformação de um processo. Essa posição exige a invenção de novas práticas, o que vem sendo feito, e a releitura de conceitoschave de campos como a psicanálise, que precisam ser reexaminados. Realizou-se um estudo teórico-crítico acerca do conceitochave memória, entendida como incessante reinscrição de fatos e acontecimentos, em uma articulação com o conceito de história, compreendida como reconstrução contínua de um processo com múltiplas conexões. A análise foi desenvolvida em diálogo com a filosofia, e uma narrativa literária foi apresentada para sustentar a argumentação. Refletiu-se sobre a articulação teórica entre memória, história e sofrimento psíquico, e foi assinalado que as possibilidades de transformação se dão, necessariamente, nas conexões com um território.

Keywords: Psychoanalysis. Philosophy. Interdisciplinary research. Mental health.

Palavras-chave: Psicanálise. Filosofia. Pesquisa interdisciplinar. Saúde Mental.

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Curso de Terapia Ocupacional, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05360-000. claudia.braga@usp.br (a)

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O cenário das práticas territoriais em saúde mental e dos modos de atenção inovadores junto a sujeitos com experiência do sofrimento psíquico conta, atualmente, com uma pluralidade significativa de proposições, e, mesmo que consideradas a partir de perspectivas distintas, um elemento comum é a afirmação de que o cuidado em liberdade e exercido em um tecido social é primordial. Essas diferentes práticas se baseiam em determinados conjuntos de teorias e conceitos específicos, de modo que alguns são intrínsecos às diretrizes atuais para a construção de novas práticas em saúde mental no campo da saúde pública, sendo expressiva a relevância da perspectiva da desinstitucionalização que afirma os direitos e a cidadania de sujeitos com experiência do sofrimento psíquico, enquanto outros exigem crítica e revisão para sua operacionalização nesse campo, tais como tradicionais conceitos do campo psicanalítico. Importante notar que, ainda que nos modos de atenção aos sujeitos com experiência do sofrimento psíquico seja possível encontrar distintos campos de referência nas discussões, na dimensão das práticas muitas propostas de atenção tendem a se localizar entre os campos, em um hibridismo. Assim, uma articulação entre diferentes campos ocorre na prática, e porque da prática emerge a necessidade de reinventar a teoria, é preciso, de um ponto de vista crítico, a reflexão e reproposição de conceitoschave tradicionais do campo psicanalítico, em uma releitura que compreende os atravessamentos de distintos campos de conhecimento. Nessa linha, entende-se que a reconsideração conceitual pode contribuir para a compreensão dos modos de atenção, reconhecendo as interfaces que são produzidas no próprio campo das práticas. Ora, tendo em vista o lugar social e histórico da psicanálise na construção dos modos de atenção em saúde mental, propõe-se retomar um de seus principais conceitos, o de memória, e compreender como podemos recolocá-lo no contemporâneo. De partida, assinala-se que, segundo Derrida, a memória é “a própria essência do psiquismo”1 (p.185), sendo preciso considerar o sofrimento psíquico em uma íntima relação com a memória. Nessa perspectiva, a matriz do sofrimento psíquico estaria relacionada à impossibilidade de conciliação de ser e tempo no interior da memória, com uma “quebra da capacidade de construir uma fala de si que seja a narração do trabalho da memória”2. Não sem razão os modos de atenção aos sujeitos com experiência do sofrimento psíquico, em particular os de orientação ou influência psicanalítica (doravante denominados de clínicas), se transformaram em clínicas das memórias, que compreendem o ato de rememorar como horizonte fundamental de intervenção, sendo o ato de intervenção o de reinscrição da memória em uma história. Desse modo e nessa chave de leitura, para a investigação teórica desse conceito e de tal clínica de um ponto de vista reflexivo e crítico, é preciso compreender a noção de memória na psicanálise e sua relação com a noção de história. Ainda, com o horizonte afirmado pela prática, de que é imprescindível a dimensão dos encontros com outros nos territórios para a compreensão e transformação da experiência do sofrimento psíquico, e porque é a prática que exige novos conceitos, nesse processo investigativo uma narrativa literária oferecerá a sustentação da discussão. Tal narrativa é apresentada enquanto uma escrita que se relaciona com um devir, no sentido de que o que é apresentado é “um processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido” que busca “instaurar uma zona de vizinhança [...] sob a condição de criar os meios literários para tanto”3 (p. 11). Nessa perspectiva, tais passagens literárias não se constituem “por excesso de realidade ou de imaginação”, mas seguem a “via inversa”; do lugar de fabulações, se instalam “descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau”3 (p. 13). Não se trata, pois, de relato de caso, mas, antes, de uma história que oferece subsídios para uma revisão crítica de conceitos-chave dessas clínicas.

O início de um percurso Miranda é um homem adulto com um histórico de experiência do sofrimento psíquico. Na época em que essa narrativa ocorreu, era um usuário de um serviço de saúde mental de base territorial, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Não tinha um diagnóstico médico preciso, sendo a ele atribuídas inúmeras identidades nosográficas e oferecidos diferentes psicofármacos como modos de tratamento em outras instituições no decorrer de sua vida. No CAPS, ao me apresentar, Miranda 824

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olha para mim e afirma: “não há nada aqui”. Assim mesmo. Afirmava uma não existência. Pergunto para ele: “como assim?”. E ele repete sua afirmação anterior, dizendo não existir. Declarava que frequentava tal serviço porque assim lhe era dito para fazer e acreditava que um dia alguém se daria conta de sua não existência. Naquela época lhe foi sugerida, por um profissional, a escrita de um livro de memórias. Miranda dizia que isso e a medicação eram “bobagens”. Mesmo assim, se, por um lado, recusava a medicação, por outro, afirmava que precisava aprender a mexer em um computador para escrever tal livro, afirmando que era algo que iria realizar; o CAPS e os profissionais eram um lugar de referência importante para ele. Passam-se alguns encontros com Miranda e sempre o encontro no serviço. A sua fala continuava a mesma: “para que tomar remédio se não existo?”, “não há nada aqui”, “preciso aprender a usar o computador”. Se, em um primeiro momento, a fala “não há nada aqui” anuncia um certo tipo de ser sem identidade, é preciso ir adiante em outra camada para compreender que a ideia de identidade, na chave de leitura da psicanálise, é antes de tudo ter a consciência de uma certa continuidade no interior do tempo, com a possibilidade de construção de uma história de si2. Justamente, nessa perspectiva, é a impossibilidade de o sujeito construir uma história de si mesmo, e de se implicar em sua história e em seus processos, que constitui experiências de sofrimento; dito de outro modo, a matriz de sofrimento psíquico é a não conciliação de ser e tempo no interior da memória com uma quebra da capacidade de construir uma fala de si. Assim, a aposta de uma leitura nessa perspectiva clínica, nesse caso, não está em “ele não é” no sentido de ele não existe, mas, antes, em que ele afirma sua não existência na medida em que não pode falar de si; ele experiencia um sofrimento porque não pode falar de si. Ou seja, haveria uma quebra da continuidade do ser. Tratava-se de um sujeito com uma experiência de corpo disciplinado, que diferentes profissionais que encontrou em sua vida buscavam ordenar sem se ater a um primeiro paradoxo posto: em tal perspectiva, como narrar uma história de si quando está anunciada a quebra da conciliação entre ser e tempo? Ora, submeter a vida a uma narrativa com uma rede de causalidades, como poderia ser a proposta de escrita de uma espécie de autobiografia, é, ao mesmo tempo, tomar posse dela e perdê-la. Assim, possivelmente, a aposta dessa estratégia parecia ser a de que Miranda, ao lembrarse de memórias suas, pudesse criar algum grau de realidade de si no mundo. No entanto, em uma perspectiva psicanalítica, essa perda da vida se dá, de certo modo, por não ser possível considerar o que estaria sob a forma de contingência pela tentativa de reordenar a continuidade histórica em uma suposta rede de causalidades. Nietzsche (p. 30) descreve um mundo em que os sujeitos são incapazes de esquecer e, por isso, incapazes de narrar o que acontece a não ser pela narrativa linear com relações causais – como se isso permitisse não apenas compreender, mas voltar a desejar; segundo o autor, “em meio a um excesso de história a vida se desmorona e degenera”, sendo necessário à própria vida o esquecimento4. O que temos a dizer não leva em conta as contingências dos acontecimentos, e, assim, narrar uma história não é necessariamente sinônimo de falar por si mesmo. Ademais, nesse tipo de proposição opera uma clínica que trata o processo saúde-doença como duas dimensões estáticas (saúde e doença), que necessitariam de intervenção externa para movimentálo. De outro modo, considera-se, aqui, a saúde em um processo e como a possibilidade de o sujeito criar novas normas de vida para si, onde “ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais”5; nesse sentido, a saúde é a “possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”5 (p. 148). Saúde é, então, poder de revisão e instituição de novas normas para si frente às instabilidades do meio, onde a norma é individual e é reinvindicação do uso de liberdade: as normas são produzidas pela vida para mais vida. Como afirma Canguilhem, “a vida é, de fato, normativa” (p.86) e a normalidade de alguém se refere à sua própria normatividade5. Ora, o limite entre normal e patológico (e, também, entre saúde e doença) se torna assim impreciso se considerarmos diversos sujeitos ao mesmo tempo, já que o “normal não tem a rigidez de um fato coercitivo coletivo, e sim a flexibilidade de uma norma que se transforma em sua relação com condições individuais”; o patológico ou a doença não é, então, a ausência 825


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completa de normas, mas, sim, é uma “norma inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma”5 (p.135). Assim, o sujeito doente seria um organismo completamente adaptado e fixo ao meio, que não tem possibilidades de se ajustar conforme as imponderabilidades da vida porque perdeu sua capacidade normativa; ele está doente “em relação a si mesmo”5 (p.97), sendo a doença uma nova dimensão do viver. Se viver é confrontar riscos e superá-los ou, como afirma Canguilhem, “estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar”5 (p.150), podemos considerar que o sofrimento é esse momento de crise, em que é preciso que o sujeito crie para si uma nova normatividade vital. Não se trata, pois, de ordenar uma suposta normalidade, mas, sim, de possibilitar que ele invente suas próprias normas nessa situação de sofrimento; em uma perspectiva da clínica, possibilitar que crie para si uma narrativa. Na compreensão exclusiva de uma causalidade orgânica não há histórias, e na tentativa de ordenação de uma série histórica podem surgir histórias lineares, mas, não, acontecimentos, sendo que qualquer possibilidade de transformação continua bloqueada. Justamente, a produção de acontecimentos transformadores é uma questão importante para as clínicas do sofrimento psíquico. Mas, mesmo assim, tantas vezes, percebe-se no discurso de profissionais diversos uma tentativa de ordenar fatos históricos de um sujeito em uma rede de causalidades formada pelo próprio profissional, de modo que, em discussões, os ‘casos clínicos’ acabam sendo apresentados de modo sequencial: conta-se quantos anos o sujeito tem, ocupação principal, parentescos e depois uma sucessão de fatos de sua história de vida em uma arranjada ordem cronológica, da infância à vida adulta, para assim poder ser apresentado ou formulado um diagnóstico ou uma leitura. Esse discurso está relacionado a um modelo de memória como estoque de experiências e de história como sendo de caráter linear; um modelo em que não há espaço para escuta da história tal como narrada pelo sujeito e da própria vida (e, tampouco, dos processos inconscientes). Este é o risco: a descrição de uma rede de causalidades na narração de uma biografia, como se isso, por si só, fosse explicar o sofrimento do sujeito e possibilitar a constituição de processos terapêuticos.

O entrelaçamento de memória e história na psicanálise Dando seguimento a seu projeto terapêutico singular e diante de sua afirmação de que precisava fazer um curso de informática, acompanhei Miranda a um outro CAPS que oferecia o tal curso; tratava-se de uma tentativa de aproximação de um entre-dois. Como o imponderável é constituinte da vida, naquele espaço, ele encontrou Paulo, com quem havia ficado institucionalizado em um hospital psiquiátrico por mais de 10 anos. Também inesperado era o fato de que eu também conhecia Paulo, pois ele participava das atividades de um grupo – um coletivo de criação –, do qual eu também fazia parte. Algo ali se passou para Miranda. Um entrecruzamento entre passado e presente. Um passado que nunca deixou de ser. Miranda foi convidado por Paulo (e não por mim) a participar desse grupo. Apareceu por lá e, continuamente, nos muitos encontros, afirmava a sua não existência – enquanto Paulo insistia em trazer à tona histórias do tempo em que estiveram institucionalizados juntos em um hospital psiquiátrico. As experiências estão nesse espaço que é da contingência. Por isso – porque a experiência é aberta, não é definida a priori – ao rememorar, o sujeito pode reconstruir seu lugar no mundo. Para Freud6, rememorar a experiência significa reelaborá-la a partir das experiências em ato, construindo outra história de si. Mas, nessa perspectiva, quando este processo está interrompido ou, mesmo, quando há uma ruminação incessante de um acontecimento sem sua elaboração, não sendo possível, ao sujeito, criar para si novas normas, tem-se a instauração de uma experiência do sofrimento psíquico. Da história, é dita ser contínua por se tratar de uma série em processo. Trata-se de um sistema de definições em que, ao acrescentar um outro acontecimento no interior desta série – que é a história –, todos os acontecimentos anteriores se reconfiguram2. O acontecimento é entendido, nessa concepção, como aquilo que deixa marcas mimésicas: para ser acontecimento, são necessários esses traços que modificam o universo simbólico. Assim, é por estar inserido nessa série que se pode dizer de um lugar

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subjetivo do sujeito, em que ele produz sentidos para sua existência quando acontecimentos criam marcas nessa cadeia e modificam todos os elementos anteriores, dotando de novos sentidos tais elementos. Esta concepção de história oferece a base para o conceito de rememorar elaborado por Freud6, pois, neste campo aberto de possibilidades de significações de toda a série histórica do sujeito, é possível a reorganização simbólica da mesma, reconstruindo e reescrevendo fatos e acontecimentos. Justamente, a clínica de orientação psicanalítica trata disso: repetir, rememorar e reelaborar para que, por meio de um acontecimento, o sujeito possa dotar de novos sentidos a sua história. Se o quadro teórico da psicanálise trata de compreender o psiquismo e sendo a memória a própria essência do psiquismo, é preciso considerar o sofrimento psíquico em uma íntima relação com a memória. Para a teoria psicanalítica, a memória tem papel essencial no aparelho psíquico e é um ato contínuo de reconstrução do passado a partir do presente. As representações de lembranças não são conteúdos arquivados, mas incessantes ressignificações que dialogam com o presente: a tríade passado-presente-futuro deixa de ser pensada como sucessão e passa a ser pensada como conexão, estando a memória ligada ao tempo. Ainda, para Freud6, rememorar a experiência significa reelaborar uma experiência, construindo outra história de si. Destarte, o rememorado nunca é um mero fato, já que o que é rememorado diz respeito às experiências do sujeito. Tendo em vista o próprio conceito de memória, rememorar não é a procura de objetos primeiros intocados e conservados em um estoque de experiências, mas, sim, a tentativa do sujeito em construir para si outras referências no mundo, criando novas associações que possibilitem tipos de agenciamento mais potentes para a produção de vida. Nessa linha, o ato de intervenção analítica é de reinscrição da memória. Pois é nesse sentido que, na clínica psicanalítica, a associação livre ocupa o lugar privilegiado de vencer as resistências da rememoração pela análise da “superfície psíquica apresentada pelo analisando, utilizando a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem e torná-las conscientes”6 (p. 195). Trata-se de um trabalho de deslocamento do problema para a análise das resistências do sujeito em rememorar; por isso, Freud afirma a necessidade de analisar a superfície psíquica e as resistências, partindo da ideia de que, superadas as resistências, o próprio analisando rememoraria. O trabalho na psicanálise é, então, compartilhado: o analista analisa as resistências e o sujeito analisado se sente liberado para trazer o material que provocou a situação que se encontra. Com a associação livre, a concepção de rememoração sofre um movimento: rememorar deixa de ser reviver o passado para se tornar um processo de construção. Com a criação da técnica da associação livre, o analisando não tem a tarefa de lembrar-se de algo, mas de, no setting psicanalítico, “conjurar uma fração da vida real”, ou seja, repetir6 (p. 202). O conceito de repetição, para Freud6, está vinculado à possibilidade de transferência: na cena psicanalítica, o sujeito repete aquilo que não pode acessar conscientemente porque está bloqueado, sendo a transferência um fragmento da repetição; o conceito de repetir tem como sentido atuar, posto que “o analisando não reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete”, sem que isso seja consciente6 (p. 200). Essa repetição é uma quebra da linearidade temporal, em que passado e presente se contraem em um tempo só, e essa é a condição para a rememoração ser possível. Isso leva à afirmação de que a transferência é fragmento da repetição, sendo a repetição transferência de um passado esquecido. Sendo assim, a repetição transferencial é uma das bases da clínica psicanalítica e consiste na aposta de que as resistências podem ser suspensas para uma posterior modificação da relação do sujeito com seu sofrimento. Dessa maneira, a associação livre e a repetição transferencial implicam uma forma de acessar um passado esquecido; e se, antes, o sofrimento psíquico deveria ser superado, com o método da associação livre e com a aposta na relação transferencial, o sofrimento passa a ser considerado como parte essencial do viver que, para perder sua força, tem de ser integrado à vida do sujeito; há o que Freud denomina de “reconciliação com o reprimido”6 (p.203). Tal mudança torna-se possível pela reelaboração ou rememoração da experiência de uma série histórica, com o sentido de trabalhar novamente, de retomar o processo em uma tomada de consciência.

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O entrelaçamento entre história e experiência do sofrimento psíquico: a conexão com o coletivo Em uma perspectiva crítica, a história deixa de ser considerada como uma arte narrativa de estocagem de lembranças7, para ser entendida como sendo dotada de uma função crítica. Nessa linha, rememorar a experiência significa reelaborar uma experiência, construindo outra história de si, de tal modo que a história é entendida como um tempo que admite rupturas e que visa à transformação de si. O sujeito, ao compreender o tempo do qual faz parte – na tomada de consciência –, pode se transformar. Porém, quando este processo está interrompido ou, mesmo, quando há uma ruminação incessante de um acontecimento sem sua elaboração – nos termos de Nietzsche, o não esquecimento –, não sendo possível, ao sujeito, criar para si novas normas, pode ocorrer a instauração de um sofrimento psíquico: “há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo ou uma cultura”4 (p. 10). A ideia de memória patológica encontra-se nesse cenário e está, necessariamente, relacionada com a dimensão histórica do ser. Assim, a capacidade de falar por si e de elaborar uma história, construindo normatividades singulares, é o que possibilitaria uma situação de saúde mental. Já estar estancado em um dado acontecimento, sendo o sujeito incapaz de esquecer, é a ideia da história como adoecimento, no sentido de que se articula a uma impossibilidade de o sujeito inventar outras formas de ser e estar no mundo frente a um dado acontecimento. Se, como afirma Canguilhem5, esse processo se dá em relação a um meio e se, como afirma Freud de modo geral em sua obra, um sujeito necessariamente precisa do outro para viver, é preciso afirmar que as histórias de uma sociedade e de um sujeito particular, com seus sofrimentos, estão profundamente interligadas: é na conexão com outros que um sujeito faz parte da história e pode reconstruir a história de si. Como afirmado, na transformação de uma história de si, com a compreensão do tempo em relação ao qual o sujeito faz parte, é possível a tomada de consciência. Isso se coloca porque, com o advento dessa concepção de história, a noção de consciência se altera. A depender da perspectiva, a ideia de consciência está vinculada a um ato de operações do pensar voltados para si mesmo – como evidenciado na segunda meditação cartesiana. Em outro entendimento, ter consciência significa habitar um tempo elástico, e não mais instantâneo, onde passado, presente e futuro se entrelaçam. Tal como Lacan afirma, “a história não é o passado. A história é o passado na medida em que é historiado no presente – historiado no presente porque foi vivido no passado”8 (p.21). Nesse sentido, a história pode impedir o “isolamento da consciência na figura do indivíduo atomizado, isto ao mostrar como a essência da consciência encontra-se na reconciliação de seu ser com um tempo social rememorado”2. O sujeito com seu sofrimento, necessariamente, faz parte de um coletivo que perdura no tempo. A história é, nesse cenário, ato contínuo de reelaboração porque é um processo de compreensão da experiência social e subjetiva dos sujeitos; e é quando a história traz a instabilidade dos conflitos passados, que os sentidos das tensões das experiências podem ser elaborados. Vale notar que o termo que defende por exclusão a consciência histórica é a consciência alienada, que não tem acesso à totalidade da experiência social. A consciência alienada é aquela que se encontra em um processo de reificação de algo porque só enxerga este algo, um fato específico; por não haver a compreensão histórica, não é possível a reconstrução de uma realidade. Justamente, retomando Nietzsche4, “é impossível viver, em geral, sem esquecimento”, e aquele que não esquece adoece; assim, como processo singular inserido em uma experiência social, é preciso que o sujeito: saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quando lembrar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura4. (p.11)

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Assim, as histórias de uma sociedade e de um sujeito particular estão profundamente interligadas: é na conexão com outros que um sujeito faz parte da história e pode reconstruir a história de si; a possibilidade de saúde tal como descrita por Canguilhem5 está inscrita nesse cenário, já que poder regular-se em relação a um meio, considerando o histórico e o a-histórico, é sinal de saúde. Se, em uma perspectiva, a história é entendida como simples descrição dos fatos em uma visão de testemunho, e o ato de rememorar é compreendido como estocagem; em outra leitura, pode-se compreender a história como ato de se apropriar conscientemente de nossas ações, refletindo sobre as mesmas. É, por meio da história, que ser e tempo se reconciliam no interior da memória2, sendo a memória esse espaço de conexão entre ser e tempo, e estando essa definição articulada ao que podemos entender por sujeito – a ponto de que um sujeito desprovido de memória (e história) é um alguém em estado de alienação. A aposta da escrita de um livro de memórias poderia ser a de que, supostamente, ao preencher o sujeito de memórias, ele seria retirado de um estado de alienação. No entanto, é o que essa proposição provoca de circulação no território e o reencontro com Paulo, que insistia em narrar a sua verdade histórica, mais com um caráter afetivo do que de conteúdo, e que já era, em si, uma reconstrução, que provocou deslocamentos; um reencontro nos territórios de vida.

O vínculo entre história e ser no interior do tempo Miranda fazia parte do coletivo de criação. Certo dia, fomos às ruas fotografar cenas urbanas para compor um vídeo. Dias depois, em outro encontro, Miranda olha para as fotografias já reveladas e espalhadas no chão e, nelas, olha para uma imagem de si mesmo, se reconhecendo. Assustado, questiona quem é aquele – e as pessoas lhe dizem que aquele era ele mesmo. Fica calado durante um longo período. Algum tempo depois, Miranda pede ao grupo um momento para falar: desenha uma cruz gamada – uma suástica invertida – e começa uma longa explanação sobre aquele símbolo, relacionando sua origem ao significado de mudança e comparando-o ao símbolo nazista. Os demais presentes apenas escutam e o olham sem entender o que era tudo aquilo. Subitamente, Miranda se levanta e vai embora. Naquele momento ninguém entendeu o que estava acontecendo com Miranda. Ele foi embora muito rapidamente. Diante do presente – afetos, pessoas, fotos –, ele parece ter organizado algo de um modo singular; pode ser que tenha havido uma articulação entre memória e história naquele momento. Em geral, o passado é campo de significação do próprio presente e está em constante movimento e reordenação; para Miranda, isso parecia estar paralisado, mas, naquele momento, algo foi deslocado em razão de um acontecimento. É a memória, no sentido vivo, e não no sentido de estoque de lembranças, que impulsiona a dinâmica de um processo bloqueado. Memória que está articulada à história, e história que é de mais de um: é de um coletivo. Aquele que se dizia não-ser parecia ter reconstruído uma história de si. O que restava saber era qual seria a possibilidade de Miranda de frente a um acontecimento reconstruir outra norma. Na semana seguinte, o encontro no CAPS. Ele está diferente e solicita conversar. Começa falando que saiu abruptamente daquele último encontro porque não entendeu o que estava fazendo ao falar sobre a suástica invertida. E narra que, ao entrar no ônibus, aquilo o estava incomodando profundamente, pois não conseguia encontrar uma explicação do porque havia falado aquilo para o grupo, não encontrava sentido no que havia feito. Então, em suas palavras, algo “destravou”, e ele afirmou: “eu percebi: eu falei aquilo porque sou louco! Eu sou completamente louco!”. Diante da minha surpresa, ele continua: “E aí eu entendi que se eu sou louco, eu sou alguma coisa...”. Olhou para mim e, enquanto tocava em seu próprio ombro, falava: “olha só, eu tenho corpo, faz barulho, eu estou aqui”. Uma dinâmica afetiva ganha estabilidade e novos horizontes. Vale destacar que não se trata aqui de buscar uma categoria nosográfica de qualquer ordem para esse sujeito. Mas, antes, assinalar que a possibilidade de transformação de uma experiência do sofrimento psíquico está relacionada com as conexões que podem ser produzidas no encontro com outros, nos territórios de vida.

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A clínica produz tentativas de ordenadores, mas a história apresentada pelo sujeito traz uma multiplicidade e tal imprevisibilidade que não pode ser contida por quaisquer clínicas. O sujeito está inserido em um campo de experiências compartilhadas, tomando parte em experiências sociais com outros. Assim, é preciso deixar a multiplicidade das relações, dos contextos e da vida invadir os modos de atenção e o espaço dos serviços, criando raízes com o mundo. Nesse sentido, a aposta necessária para a produção de saúde é de ultrapassar quaisquer paredes, seja de um serviço, seja de um enquadre teórico, e de explorar as potências das relações em um território social, abrindo para novos sentidos e redes de significações e compreensões. Como exemplo, vale a leitura da proposta de compreensão de Deleuze e Guattari9 acerca do caso O Homem dos Lobos10. Deleuze e Guattari9 (p.54), ressignificando esse caso, afirmam que o problema é que nenhum analista foi capaz de reconstruir o significado da ideia de lobo, ninguém explorou outras reverberações do significado, fazendo sempre um “retorno à unidade”. Ao contrário, era preciso abrir os sentidos, vincular a história trazida a outras dimensões, agenciar a rede de significações: “o lobo é a matilha, quer dizer, a multiplicidade apreendida como tal em um instante”9 (p.58); assim, mais do que compreender, é necessário explorar as ambivalências e intensidades das relações. Para tanto, para Deleuze, é preciso explorar os agenciamentos estabelecidos pelo desejo em um coletivo. Nesse caso, indagar: “onde passa meu desejo na matilha? Qual é minha posição na matilha? Sou exterior à matilha?”11. Ora, acerca do desejo, Deleuze afirma que esse “constrói agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores”, enquanto “a psicanálise nos reduz sempre a um único fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a mãe, ora não sei o que, ora o falo (...), ignora tudo o que é múltiplo”11. Deleuze, para exemplificar tal questão, relata que, certa vez, Jung contou a Freud que “sonhou com um ossuário”, e que Freud não compreendeu isso, afirmando que “se sonhou com um osso, é a morte de alguém, quer dizer a morte de alguém”; mas, para Deleuze, “Freud não compreende. Não vê a diferença entre um ossuário e um osso, ou seja, um ossuário são centenas de ossos, são mil, dez mil ossos”, concluindo que isso, o ossuário, “é uma multiplicidade, é um agenciamento”11. Assim, na perspectiva de Deleuze, as pessoas “desejam sempre um conjunto”11. Justamente, é nesse sentido que se pode afirmar que o delírio, que está “ligado ao desejo”, estabelece agenciamentos em um coletivo, de modo que “não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos”11. Nesse episódio da narrativa, portanto, não se trata de fazer qualquer tipo de interpretação, mas de assinalar a necessidade de procurar outros agenciamentos, complexificando a compreensão dos contextos e das múltiplas relações; em síntese, “o delírio é geográfico-político”11. Nesse sentido, é preciso afirmar que o sujeito está inserido em um campo de experiências compartilhadas, tomando parte em experiências sociais com outros, em camadas temporais que não se esgotam em uma individualidade. O processo da clínica não se ocupa apenas das experiências particulares, mas, também, dos impactos de experiências transindividuais, dos encontros. Nessa narrativa literária, em uma leitura a partir da perspectiva da clínica, a reconciliação entre ser e tempo no interior da memória se deu, duplamente e concomitantemente, por um processo singular de criação de outras normatividades diante daquele meio e pela vivência de experiências compartilhadas. A rememoração enquanto síntese do tempo em uma unidade implicou justamente nisso: Miranda pôde apresentar, para si mesmo, outra narrativa possível que significasse aquela experiência a partir do encontro com outros no mundo. Assim, o sofrimento psíquico vivenciado por um sujeito deixa de ter um caráter particular, para compor com o social e no social, sendo possíveis as transformações no encontro em um solo comum: Miranda, com os outros, se descobre louco. Vale destacar que não há um caráter determinista neste acontecimento, e não cabe aqui traçar uma relação causal do tipo: reencontro com antigo colega – retorno para experiências passadas – ver-se no presente – transformação do sofrimento. Novamente, não se trata de uma relação determinista, mas, ao contrário, de afirmar a necessidade de abertura

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para uma rede de possíveis significações que escapam de uma única unidade narrativa; afirmar a importância das conexões com o território, em uma rede de relações.

Um parêntese Afirma-se, aqui, que a possibilidade de rememoração está para além de uma relação dual. Ora, na clínica de orientação psicanalítica, a análise é uma experiência de reelaboração e só o sujeito pode operar esse processo. O que se defende aqui, é que, mesmo nesse cenário, as condições de enunciação da questão se dão para além de um encontro dual analista-analisando, dado que o processo de constituição psíquica ocorre em relações interpessoais. A intervenção dessas clínicas pode ocupar esse lugar de, em uma fala performativa, fornecer condições para que o sujeito possa organizar o sofrimento psíquico em uma história, organizando a história de seu desejo. Mas, esse processo de rememoração está profundamente ligado à história, que está inscrita em campo maior do que a vida particular do sujeito, que é a história de um coletivo. Assim, é preciso reconhecer a alteridade e a multiplicidade como constituintes do próprio psiquismo dos sujeitos, e valorar a própria repetição em seu sentido positivo, dando lugar, não para aquilo que se encadeia e que produz causalidade, mas para os esquecimentos e para o que é descontínuo e da contingência, que é de onde podem surgir acontecimentos.

Traços de uma conclusão De modo geral, como foi assinalado, na dimensão das novas práticas em saúde mental, compreende-se que, para a transformação de um processo, é necessário investimento em múltiplas conexões entre os sujeitos e um certo tecido social, abrangendo os territórios e os coletivos, com o cuidado exercido em liberdade. Na perspectiva da desinstitucionalização, afirmam-se, ainda, os direitos e a cidadania dos sujeitos com experiência do sofrimento psíquico, assinalando a necessidade de transformação das relações produzidas em um contexto social. Buscando avançar na compreensão de conceitos do campo psicanalítico, nesse estudo, foi feita uma investigação, em uma perspectiva crítica, que procurou desenvolver uma articulação teórica entre memória e história na interface com as discussões da filosofia, enfatizando a importância das conexões entre sujeitos e coletivos nos territórios. Assim, no âmbito das clínicas, é preciso investir em modos de atenção aos sujeitos com experiência do sofrimento psíquico que reconheçam que é apenas nos territórios reais de vida e em um contexto de múltiplas conexões com outros que é possível produzir transformações de si e de um tecido social.

Referências 1. Derrida J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva; 1995. 2. Safatle V. Epistemologia das ciências humanas. FFLH/USP [Internet]; 2013 [citado 12 Maio 2016]. Disponível em: http://filosofia.fflch.usp.br/es/node/1219. 3. Deleuze G. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Editora 34; 2011. 4. Nietzsche F. Segunda consideração intempestiva: as vantagens e desvantagens da história para vida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 2003.

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5. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. 6. Freud S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”): artigos sobre técnicas e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. 7. Derrida J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 2001. 8. Lacan J. O seminário: os escritos técnicos de Freud (livro 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1986. 9. Deleuze G, Guatarri F. Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. 10. Freud S. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia da Letras; 2010. 11. Deleuze G, Parnet C. L’abécédaire de Gilles Deleuze [vídeo]. Paris: Éditions Montparnasse; 1996.

Braga CP. Conexiones en la transformación de la experiencia del sufrimiento síquico: articulación entre memoria e historia. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):823-32. En los modos de atención a los sujetos con experiencia de sufrimiento síquico, aunque de diferentes bases teórico-conceptuales, se considera el encuentro con otras personas en el mundo como primordial para la transformación de un proceso. Esa posición exige la invención de nuevas prácticas, lo que se ha realizado, y la relectura de conceptos-clave de campos como el psicoanálisis que tienen que reexaminarse. De esa forma, se realizó un estudio teórico-crítico sobre el concepto-clave memoria, entendida como una incesante re-inscripción de hechos y acontecimientos en una articulación con el concepto de la historia, entendida como reconstrucción continua de un proceso con múltiples conexiones. El análisis se desarrolló en diálogo con la filosofía y se presentó una narrativa literaria para sostener la argumentación. Se reflexionó sobre la articulación teórica entre memoria, historia y sufrimiento síquico y se señaló que las posibilidades de transformación suceden, necesariamente, en las conexiones con un territorio.

Palabras clave: Psicoanálisis. Filosofía. Investigación interdisciplinar. Salud mental.

Submetido em 07/06/16. Aprovado em 01/11/2016.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0270

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Saúde mental e atenção básica no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas Francéli Francki dos Santos(a) Alcindo Antônio Ferla(b)

Santos FF, Ferla AA. Mental health and primary care in alcohol and drug users care. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):833-44.

The present article approaches the integration between care in mental health and basic attention in Brazilian Unique Health System (SUS). The focus of the discussion is tutors’ participation in Caminhos do Cuidado (Care Paths) ProjectTraining in Crack, Alcohol and other drugs given to Community Health Agents and Nursing Technicians and the contribution of Mental Health training for their professional lives. The tutors’ participation was analyzed using a secondary data base organized from electronic forms. From a total of 890 questionnaires, we analyzed three open questions using content analysis as a method. The training revealed itself capable of transforming prejudiced images in relation to other drug users and this change has awakened new possibilities for care in primary health care, as well as it developed pedagogical capacities to be used in permanent education in health.

Keywords: Crack, alcohol and other drugs. Primary health care. Caminhos do cuidado. Mental health. Permanent education in health.

Este artigo aborda a integração entre o cuidado em saúde mental e a atenção básica no Sistema Único de Saúde. Discute a participação dos tutores do Projeto Caminhos do Cuidado - Formação em crack, álcool e outras drogas para Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares e Técnicos de Enfermagem, e a contribuição da formação em Saúde Mental para sua vida profissional. A participação dos tutores foi analisada por banco de dados secundários, organizado a partir de formulários eletrônicos. Dos 890 questionários preenchidos, foram analisadas três questões abertas, utilizando-se a Análise de Conteúdo como método. A formação mostrou-se capaz de transformar a imagem de preconceito em relação aos usuários de álcool e outras drogas; essa mudança despertou novas possibilidades para o cuidado na Atenção Básica, além de desenvolver capacidades pedagógicas para a educação permanente em saúde.

Palavras-chave: Crack, álcool e outras drogas. Atenção Atenção primária à saúde. Caminhos do cuidado. Saúde mental. Educação permanente em saúde.

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(a, b) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Antônio Carlos Guimarães, 155, 1º Andar. 90050-382. Porto Alegre, RS, Brasil. francelifisio@gmail.com; ferlaalcindo@gmail.com

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Introdução Sobre o uso de drogas podemos dizer que esta é uma prática milenar e universal. Está presente em todas as sociedades, variando seus modos de uso, objetivos e alcance. Portanto, o uso de drogas data de tempos remotos e envolve questões religiosas, econômicas, culturais, políticas e sociais1,2. Petuco2, alicerçado por grandes historiadores do tema do álcool e drogas, nos remete a uma viagem no que ele chama de pequena história do cuidado e das políticas públicas às pessoas que usam álcool e outras drogas. Nesta historieta, percebemos que foi, apenas, no século XIX que os problemas de álcool e drogas, até então de ordem moralista e religiosa, começam a ser vistos pela medicina. Junto a esse movimento iniciava-se o olhar patologizante da questão do uso de álcool e drogas alastrando mundialmente a necessidade de proibição do uso. Esse discurso se fortalece balizado, também, na estratégia de enclausuramento de loucos e pobres em instituições hospitalares3. Na história do sistema de saúde brasileiro, um longo caminho foi percorrido para que o cuidado às pessoas que usam drogas fosse incorporado às políticas e endereçado aos serviços de saúde, e, em especial, na principal porta de entrada do sistema, que são as unidades de atenção básica. A atenção aos cidadãos em uso dessas substâncias inicia-se no princípio dos anos 1990, com a adoção de uma abordagem voltada para a Redução de Danos (RD), como no conjunto de ações de prevenção à AIDS e, posteriormente, em 2003, com a Política do Ministério da Saúde de Atenção Integral ao Usuário de Álcool e outras Drogas. A RD é incorporada nessa Política como um dos eixos principais no sentido de garantir a autonomia e o cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. A abordagem se opõe à da abstinência, o que não quer dizer que essa não possa ser um objetivo a ser alcançado, desde que seja um desejo do usuário. Enquanto a abstinência está articulada com uma proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a proposta de reduzir danos possui, como direção, a produção de saúde, considerada como produção de regras autônomas de cuidado de si4. Essas duas perspectivas ilustram uma grande diferença na perspectiva do cuidado, na medida em que, na lógica da abstinência, o centro da estratégia está nos serviços especializados e, na ‘força de vontade’ do sujeito e na perspectiva da RD, na rede de cuidados que opera no território. A Política de atenção integral ao usuário de álcool e outras drogas marca um novo olhar sobre o usuário, alicerçada na Lei Federal nº 10.216, de 2001. Conhecida como lei antimanicomial, propõe a estruturação e fortalecimento de uma rede de assistência centrada na atenção comunitária com ênfase na reabilitação e reinserção social dos usuários. Essa rede de assistência deve ser composta de dispositivos extra-hospitalares articulados com a rede de atenção em saúde mental, com seus diferentes serviços e níveis de atuação, sendo que os dispositivos devem estar ligados à perspectiva da RD e integrados ao meio cultural e comunitário em que vivem as pessoas em situação de uso. No atual desenho das políticas de atenção à saúde, cabe à atenção básica não apenas constituir-se como porta de entrada, mas mediar o percurso do usuário pelos demais serviços. A preconizada transformação da modelagem tecnoassistencial recoloca o papel da atenção básica na rede de atenção, e, no âmbito da política, amplia sua relevância na gestão do cuidado de todos os sujeitos que ocupam os territórios de referência das equipes. Entretanto, a referência ao cuidado na atenção básica inserida na política não se implantou imediatamente nas práticas de cuidado, sendo necessário um conjunto de iniciativas para essa transformação. No sentido de aproximar a atenção básica da saúde mental, o Governo Federal incentivou algumas ações junto às equipes de saúde da família. A qualificação profissional para atendimento das demandas de saúde mental foi foco de algumas dessas estratégias. Tomamos como base deste estudo o Projeto Caminhos do Cuidado, que teve, na formação de agentes comunitários de saúde (ACS) e auxiliares e técnicos em enfermagem (ATENF), seu objeto de intervenção. O Projeto Caminhos do Cuidado foi uma iniciativa: do Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Grupo Hospitalar Conceição e Universidade Federal do Rio Grande do Sul; visou à formação na temática do crack, álcool e outras drogas para o reconhecimento, atuação e intervenção desses profissionais junto à equipe de Saúde da Família, tendo a Reforma Psiquiátrica e a estratégia de RD como eixos principais5. A ‘formação’ a que nos referimos acima incluía ações de educação permanente em saúde (EPS), com dispositivos para a reflexão sobre a 834

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relevância do problema no âmbito de cada equipe e território, e conhecimentos e técnicas para uso no cotidiano da ação dos trabalhadores em formação e dos serviços a que pertenciam. O Caminhos do Cuidado teve, como meta de formação, a totalidade de agentes comunitários de saúde, além de um técnico ou auxiliar em enfermagem das equipes de saúde da família do país, durante os anos de 2013 a 2015. Essa meta foi alcançada e, ao final do período, foram envolvidos 290.197mil trabalhadores dessas categorias, além de 2.198 tutores formados6. A formação dos agentes e técnicos constituiu-se em cinco encontros semanais, intercalados por atividades de dispersão- atividades desenvolvidas em seu território e junto à sua equipe de saúde. O que esteve posto em tensão no processo formativo foi o modo de fazer o cuidado e a articulação entre as proposições das duas políticas, saúde mental e atenção básica, nos serviços de saúde do país inteiro. Além dos ACS e ATENF, o projeto envolveu profissionais que foram selecionados em editais públicos para a função de tutoria. Esses profissionais receberam uma formação que consistia em 40 horas de atividades, em forma de imersão junto à equipe pedagógica do projeto, e contemplava dois grandes eixos. Primeiro eixo: “Conhecendo o território, as redes de atenção, os conceitos, políticas e as práticas de cuidado em saúde mental”. Segundo eixo: “A caixa de ferramentas dos ACS e ATENF na Atenção Básica”, tendo como tema transversal a Reforma Psiquiátrica, RD e Integralidade do cuidado. Além da formação presencial, foi disponibilizado, ao tutor, um módulo de educação à distância, possibilitando seu acompanhamento pela equipe pedagógica ao qual deu suporte a sua atividade de tutoria, este módulo não será analisado nesse artigo. Este artigo é parte da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que objetivou discutir acerca da participação dos tutores do Projeto Caminhos do Cuidado e a contribuição da formação em saúde mental, para sua vida profissional. Por meio dessa discussão, analisamos as mudanças possíveis de ocorrerem nas equipes de saúde mental e de atenção básica, a partir do processo de trabalho do tutor, como resultado das novas aprendizagens adquiridas durante a formação de tutores e a prática da tutoria. Esses profissionais foram responsáveis pelas formações dos agentes comunitários de saúde e auxiliares/ técnicos em enfermagem em seu território de atuação, além de serem grandes potencializadores de discussões a respeito dessa temática em seu ambiente de trabalho, pois tinham como prérequisito serem profissionais ligados à docência, atenção básica ou saúde mental. Demonstrou-se que a participação dos tutores se constituiu numa meta não prevista inicialmente, mas com grande potencialidade de alterar modos de cuidar, modos de ensinar e modos de pensar o cuidado com usuários de álcool e outras drogas.

Metodologia A participação dos tutores foi analisada por meio da seleção de variáveis de um banco de dados secundários, organizado a partir de formulários preenchidos por eles como dispositivo de avaliação realizado pelo Projeto. Esses formulários foram enviados pela equipe de coordenação nacional do Projeto Caminhos do Cuidado para todos os tutores formados até julho de 2014, totalizando 1.600 tutores. Este instrumento foi disponibilizado entre os dias 14 a 28 de julho de 2014 por meio do formulário online. O instrumento original, que formatou o banco de dados, contou com 35 perguntas, sendo 17 delas qualitativas – podendo ou não serem respondidas pelo tutor. O formulário foi disponibilizado para 1.600 tutores, sendo 890 preenchidos, os quais foram utilizados na pesquisa, caracterizando, assim, uma amostra de conveniência. Por ser um amplo banco de dados, nos detemos em algumas questões que consideramos pertinentes para ajudar a responder os objetivos da pesquisa. Optou-se por utilizar as seguintes perguntas abertas do questionário dos tutores: “Deseja apontar outros aspectos positivos que podem ser destacados do processo de formação de tutor realizado presencialmente (40 horas)?”; “Qual (is) a (s) contribuição (ões) do Projeto Caminhos do Cuidado para sua formação?” e “Qual (is) a (s) contribuição (ões) do Projeto Caminhos do Cuidado para seu processo de trabalho?” COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Para a organização e análise dos dados qualitativos, optou-se pela Análise de Conteúdo7,8. A operacionalização da análise de conteúdo foi feita por meio da categorização temática, com apoio de tecnologias virtuais por meio do Software NVivo 10 for Windows. O uso de sistemas informatizados para essa atividade possibilita o acréscimo ao rigor da organização dos dados coletados e a manipulação de dados complexos7. Nesta pesquisa, não nos detivemos na análise quantitativa gerada por essas categorias empíricas, mas no que essas categorias nos revelaram – por intermédio da fala dos tutores –, sobre a temática do crack, álcool e outras drogas, tendo como disparador a vivência no projeto Caminhos do Cuidado – para o cotidiano de vida e do trabalho desses profissionais. Voltamos a atenção, também, sobre a possibilidade de discutir o cuidado no cotidiano das equipes para o encontro das Equipes de Saúde da Família com a Saúde Mental.

Resultados e discussão A categorização temática gerada na análise dos dados resultou em quatro grandes eixos de discussão: Metodologia e ampliação de conhecimentos; Quebra de paradigmas e mudança de olhar em relação ao usuário de álcool e outras drogas; Educação Permanente em Saúde; Ampliação da clínica.

Processo formativo O processo formativo era uma etapa da seleção de tutores para o Projeto Caminhos do Cuidado e acontecia em regime de imersão de cinco dias consecutivos. Segundo os tutores, esse foi um importante período para vivenciar o material didático, as dinâmicas e as discussões que futuramente seriam realizadas com os ACS e ATENF. A metodologia surgiu na análise com um expressivo número de respostas no que se refere aos aspectos positivos da formação e, também, aparece como sendo de grande contribuição para a formação profissional dos tutores, como podemos perceber de falas a seguir, levando a acreditar que metodologias ativas, como a utilizada no Caminhos do Cuidado, têm uma forte aceitação pelo seu caráter crítico-reflexivo, dinâmico e horizontal. “A metodologia ativa utilizada no processo de aprendizagem ficou como experiência para outras áreas do meu dia a dia no trabalho. A metodologia foi incrível, manteve o interesse da turma e possibilitou o entendimento sobre o saber construído através de muitos olhares.” “[....] Enfim é a primeira vez que tenho oportunidade de trabalhar com algo que é estimulante desde o primeiro até o último encontro.” “[...] O Caminhos do Cuidado é especialmente diferenciado no processo do “SABER”, onde o domínio do conhecimento não está em indivíduos, mas na construção coletiva, nos valores multipessoas. Contanto, isso me possibilitou ampliar meu olhar da formação para um saber ampliado e compartilhado.”

A formação do Caminhos do Cuidado reiterou a necessidade de se repensar novas práticas educativas para os profissionais de saúde, uma vez que a educação tradicional já não corresponde mais às expectativas e necessidades de profissionais submetidos a processos formativos de qualquer natureza. As metodologias ativas utilizam a problematização como estratégia de ensino-aprendizado, com o objetivo de se aproximar e motivar o estudante, pois, diante do problema, ele reflete, relaciona a sua história e passa a ressignificar as suas descobertas9. No caso do Projeto Caminhos do Cuidado, além de se utilizar a metodologia ativa, foram tomados como base os conceitos pedagógicos propostos por Paulo Freire. 836

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Paulo Freire10 propõe uma educação que enfatize a práxis, na qual o sujeito busque soluções para a realidade em que vive e, após a reflexão, possa transformá-la. Ao contrário da educação tradicional, bancária e verticalizada, a educação libertadora freireana se propõe a ser crítica, criativa, responsável e comprometida. Segundo Freire10, quem ensina, aprende ao ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender. Ainda no bloco anterior, foi possível perceber que os tutores estiveram diretamente ligados ao efeito de ensinar-aprender-ensinar, pois, um grande número deles relata que foi de extrema importância a troca de aprendizado e experiências com os ACS e ATenf. Esse aprendizado mútuo foi possibilitado por meio da ação problematizadora realizada pelos tutores e pelas experiências da prática vivida no território por esses profissionais; a discussão da prática permite o retorno ao campo de trabalho com outras ferramentas para intervenção. Na EPS, o processo de trabalho é tomado como objeto da reflexão participativa e ativa pelos trabalhadores. É a partir da realidade, de suas práticas, das concepções que portam e de suas relações de trabalho que se constroem os processos educativos11. Para Feuerwerker11, a EPS parte do pressuposto de que somente desde a realidade local e da singularidade dos atores é possível construir processos que façam sentido e que sejam, efetivamente, apropriados pelos trabalhadores em seu cotidiano. Dentre os aprendizados adquiridos pelos tutores, podemos destacar a RD como o tema que apareceu com mais frequência, tanto que mereceu uma categorização específica, já que é um dos eixos centrais da formação, junto com a reforma psiquiátrica – ao mesmo tempo em que alguns tutores colocaram a necessidade de ampliação da discussão sobre RD na carga horária destinada à formação de tutores. Temos a RD como uma estratégia de cuidado ao usuário de álcool e outras drogas, que se coloca contra-hegemônica no tratamento dessa população, pois desinstitucionaliza e desmedicaliza o cuidado, além de tornar o usuário o protagonista dessa relação durante o tratamento. Com base nesse argumento, podemos arriscar em dizer que, mesmo aqueles tutores que não relataram explicitamente a RD como conhecimento ampliado, foram tocados pela temática quando disseram que aprenderam sobre a construção de um novo olhar e novas abordagens em saúde para um cuidado integral. A temática da RD segue em mais um bloco de depoimentos: (Falando da contribuição do Projeto para sua formação) “Toda, não possuía formação alguma para trabalhar com RD, e atualmente já estou formando grupos dentro das UBS do município em que trabalho para atuarmos diretamente com os familiares dos usuários, pois assim poderemos conseguir uma adesão maior.” “O projeto ampliou minhas percepções a respeito do cuidado em saúde mental, sobretudo na questão do álcool, crack e outras drogas, assim como RD. Após a formação, me interessei pelo tema e tenho aprofundado cada vez mais os conteúdos.”

Quebra de paradigma e mudança de olhar em relação ao usuário de álcool e drogas Esta categoria empírica apresentou registros que apontaram para a mudança de olhar e desconstrução de preconceitos e paradigmas em relação aos usuários de álcool e outras drogas, gerada a partir do processo formativo presencial de 40hs, realizado pelos tutores do Projeto Caminhos do Cuidado. Um número considerável de tutores respondeu que a contribuição do Caminhos do Cuidado para a sua vida profissional foi transformar seu olhar (“enxergar além das aparências”) em relação aos usuários de álcool e outras drogas, deslocando a imagem de preconceito e receio em relação a esses indivíduos para a imagem de um indivíduo com desejos, singularidades e dotado de histórias de vida, quebrando paradigmas e construindo novas formas de ver o usuário. A mudança nesse ‘olhar’ também fez com que o profissional visualizasse possibilidades para mudanças de práticas, podendo criar alternativas para o cuidado e para o desenvolvimento da cidadania dessas pessoas.

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“Apesar de ser psicóloga, ainda tinha algumas barreiras com o dependente químico, depois da formação com certeza venho melhorando isso em mim a cada dia.”

Evidenciamos que a participação no Projeto fez com que esse profissional mudasse seu modo de ser e/ou agir a partir dos novos conhecimentos adquiridos. Isso também pode ser percebido nas falas que seguem, em que os mesmos relatam que há um deslocamento da imagem dos usuários de álcool e outras drogas, e que essa mudança possibilitou a abertura para novas formas de cuidado em saúde. Para Pinheiro e Ceccim12, uma prática cuidadora envolve o assistir e/ou tratar segundo os parâmetros do acolher e respeitar, isto é, dar lugar às singularidades, compreender as fragilidades e estar presente de maneira correspondente. “[...] a maior contribuição é a do relacionamento interpessoal, de criar laços, acreditar nas pessoas, de ver além da aparência, de saber que por trás de uma aparência existe um ser que é um oceano de subjetividade que é livre para escolher. Acima de tudo não julgar o outro por suas escolhas, mas criar possibilidades e alternativas.” “[....] Mudou o meu olhar em relação aos pacientes com transtornos mentais e em uso de substâncias psicoativas, porque antes agia em parte de forma preconceituosa, mas com o curso passei a ter um olhar diferenciado, a ver os pacientes como um todo, ou seja, com suas singularidades, histórias, sentimentos e não em parte, o que quero dizer é que passei a ver um ser humano e não a substância.”

Os tutores reconheceram o ambiente do Caminhos do Cuidado como privilegiado para mudanças formativas, o que não é percebido em espaços formais, como a universidade, que, em muitos casos, se abstém das discussões sobre o cuidado ampliado aos usuários de álcool e outras drogas, pois foge do escopo formal biomédico costumeiramente adotado pelas instituições de ensino em saúde. “O Projeto Caminhos do Cuidado foi o que mais me confirmou que é sim possível mudar o olhar que temos pré-estabelecido que vem da educação formal/conservadora. Hoje me sinto renovada com a possibilidade de mudanças/avanços em minha formação.” “A perspectiva de se trabalhar com um novo olhar para o usuário de álcool e outras drogas que de maneira nenhuma acontece nos espaços formativos normais!”

De acordo com Ceccim e Ferla13, a formação dos profissionais de saúde tem se mostrado de grande resistência aos avanços da cidadania em saúde, conquistada pela Reforma Sanitária Brasileira, sendo ainda desafiadora a formação dos profissionais de saúde para o trabalho no SUS. Sendo a formação uma tarefa socialmente necessária, ela deve guardar, para a sociedade, compromissos ético-políticos, e não pode estar atrelada aos valores tradicionais, mas ao movimento de transformações na sociedade14.

Educação permanente em saúde Após a análise dos questionários, ficou evidente a necessidade de os profissionais de saúde saírem dos seus ambientes de trabalho para interagirem com outras realidades do seu território ou compartilharem experiências do mesmo. Tal constatação foi possível pelo expressivo número de tutores que consideraram, como de grande relevância, a possibilidade que o Caminhos do Cuidado trouxe para a interação entre trabalhadores de saúde de diferentes formações profissionais e de diferentes estados e municípios; e a potencialidade que as trocas de experiências realizadas por eles acrescentou aos seus cotidianos de trabalho. Essa constatação pode ser evidenciada nas falas que seguem:

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“A integração de profissionais de vários municípios, com realidades distintas, além da multidisciplinaridade, proporcionou os diversos olhares e práticas, que enriqueceram o processo de construção de novos saberes.” “Troca de experiência com os profissionais das equipes dos diversos municípios, as dificuldades socializadas, as experiências exitosas desses profissionais comprometidos no fazer profissional.” “Muitas, em especial a interação com os ACS e ATENF, que trazem situações reais e práticas muito valiosas. De certa forma cada situação nos faz pensar e agir de maneiras diferentes e com certeza hoje a visão é outra.”

Nesses relatos, podemos perceber quanto foi valorizada, pelo tutor, a troca de experiências proporcionada pelo Caminhos do Cuidado tanto no momento da formação de tutores, como nos momentos em que estiveram próximos às equipes de Saúde da Família, nas atividades de formação dos ACS e ATENF. A possibilidade de socialização de dificuldades, ao mesmo tempo que eram absorvidas experiências exitosas para o cotidiano dos trabalhadores de saúde, fez com que esses momentos se tornassem grandes espaços de EPS. Para Mehry15, a “Educação Permanente é a prática sistemática de aprendizagem nossa (trabalhadores de saúde) com nosso próprio fazer do cotidiano do trabalho e com a capacidade criativa de inventar esse cotidiano”. Para ele, a EPS é capaz de “produzir mobilidades no território mesmo que esse território nos convida a imobilidade”. O envolvimento dos tutores com a temática foi tão grande que muitos relataram que o processo formativo instigou a busca de mais conhecimento na área da saúde mental para trabalhar com essa população, e até outras formas de aperfeiçoamento profissional, produzindo novas ‘mobilidades’ na vida pessoal e profissional desses trabalhadores. A EPS requer que seus atores se sintam convocados à criação, à abertura e ao coletivo. O investimento pedagógico é para poder quebrar o que está dado, ampliar as noções de autonomia do outro e construir espaços criativos e sensíveis na produção da saúde13. “Com as aulas aumentou meu interesse pelos conteúdos teóricos relacionados ao cuidado e problemática sobre álcool e drogas. Assim, as aulas ficam mais interessantes e eu me torno uma profissional mais interessante também[...]” “Muito aprendizado teórico e prático. Academicamente, um estímulo para a continuidade nos estudos na área de saúde mental. Pretendo cursar mestrado nesta área.” “Muito aprendizado, pois na sala de aula acontecem muitas trocas e a cada aula dada aprendo mais. Me fez também pesquisar sobre o tema para me apropriar mais sobre o assunto.”

Ampliação da clínica Como sabemos, a Atenção Básica deve buscar o atendimento integral e de qualidade aos usuários, além do fortalecimento da autonomia das pessoas sob seu cuidado, estabelecendo a articulação com a rede de serviços. De acordo com Neves e Paulon16, para que o princípio da integralidade deixe de ser uma indicação dogmática do SUS, a Atenção Básica deve ser compreendida e funcionar como espaço de acolhida para questões de saúde mental. Isso tudo estaria relacionado com a possibilidade de o usuário ser acompanhado em seu contexto social, “tratado nas tramas que organizam suas vidas”17 e sob a perspectiva de vínculos, escuta e acolhimento da equipe multiprofissional em Saúde da Família. Durante a leitura do banco de dados, podemos perceber que um número significativo de tutores considerou o projeto importante para ampliar seus modos de fazer saúde na atenção básica ou em outros locais de trabalho. Esses profissionais relataram que o projeto ampliou sua compreensão acerca das possibilidades de cuidado na atenção básica para com os usuários de crack, álcool e outras drogas. Como podemos perceber a seguir, há registro de um deslocamento nas imagens dos tutores sobre a interface entre pessoa necessitando de cuidados, uso problemático de drogas e atenção básica, que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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parece estabelecer possibilidades de outras relações entre os sujeitos – na cena do cuidado – mais próximas de um cuidado integral. Aqui, as imagens das relações entre atenção básica, pessoas e uso de drogas procura dar visibilidade a aspectos que tornam possível a oferta de uma combinação singular de tecnologias duras, leve-duras e leves com base na complexidade de necessidades do usuário dos serviços, conforme os conceitos formulados por Merhy18. “Mudança na minha percepção em relação ao usuário de drogas, sobretudo, em relação aos cuidados que estes devem ter na Atenção Básica.” “Trabalho há anos em saúde mental e tinha um certo receio, achava não ter perfil para trabalhar com usuário de drogas. Após a formação fiquei surpresa e percebi que na verdade eram alguns preconceitos que ainda existiam e que começaram a ser diluídos na formação. Hoje o olhar é muito diferente e contribui imensamente para um trabalho de qualidade e cuidado adequado.” “O projeto viabiliza a elaboração de propostas concretas de trabalho com a temática (possibilidades de cuidados), potencializando a Atenção Básica como espaço privilegiado de assistência à saúde mental, usuários de crack, álcool e outras drogas.”

Os registros destacados apontam algumas questões de relevância para a mobilização de práticas cuidadoras no âmbito dos serviços. Percebe-se uma conexão entre a Atenção Básica e o cuidado com pessoas usuárias de drogas, conectando potencialidades entre essas duas áreas de atenção, na mesma direção à qual apontam as políticas e a orientação do Caminhos do Cuidado. Percebe-se, também, deslocamentos de imagens prévias, demonstrando a tomada de consciência em relação ao preconceito, com a questão do uso de drogas. “Receio”, “preconceito” e um “olhar” marcado pela produção de uma “identidade fixa” ao usuário de drogas, ademais, o torna um “não possível” ao cuidado; e, ainda mais, na Atenção Básica, é reificar uma imagem âncora da vigência atual. Por fim, no último registro deste bloco, é afirmada a Atenção Básica como lugar “privilegiado” de cuidado às pessoas em situação de uso de drogas e da formação como oferta de possibilidades concretas para organizar esse cuidado. Que cuidado é esse de que estamos falando? Quais são os cuidados possíveis em Saúde Mental na Atenção Básica? Um cuidado que dá visibilidade, voz, vez? Do cuidado como direito do cidadão, não só constitucional, mas ético, inerente ao campo de conhecimento dos profissionais de saúde. Um cuidado que busca a autonomia, a capacidade do sujeito em gerir sua vida, segundo suas escolhas e singularidades. Esse é o registro nas diferentes políticas, mas, também, nas construções de pensamento que embasam as políticas e as teorias de cuidado. Parece ser, da mesma forma, um deslocamento apontado pelos tutores, conforme podemos perceber nas falas anteriores. Ações cuidadoras aos usuários de álcool e outras drogas requerem estratégias focadas no indivíduo e nas coletividades utilizando-se a rede de atenção à saúde-formal ou não17. O rótulo de ‘usuário de álcool e drogas’ é usado comumente como motivo para diminuir as chances de esse indivíduo receber cuidados, desconsiderando, inclusive, outras necessidades de saúde que acontecem ao longo da vida, como uma gestação, hipertensão, diabetes... Esses pacientes caem no que se pode chamar de buraco da rede: eles não são atendidos na Atenção Básica, porque estão em sofrimento psíquico, e não são atendidos na saúde mental porque estão com alguma doença que não se pode tratar ali19. Sabemos que esse tipo de ação é casual na Atenção Básica por diversas razões, uma das justificativas é a baixa capacidade dos profissionais para lidarem com essas questões16. Merhy18 nos faz refletir sobre a dimensão micropolítica do trabalho capaz de produzir atos cuidadores, independentemente da função técnica que esse trabalhador desempenha na equipe de saúde, em que as relações entre trabalhadores e usuários dos serviços toma a dupla dimensão de constituir uma natureza de tecnologias para o cuidado e, ao mesmo tempo, um dispositivo de regulação para padrões ampliados de cuidado. Como constituir uma relação trabalhador-usuário mais potente de cuidado se a imagem do outro está restrita a uma identidade fixa, facilmente capturada por uma interpretação moral que a desvincula 840

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da saúde e a conecta na configuração moral e na personalidade dos sujeitos? Essa questão nos faz pensar sobre a necessidade de utilização de outros recursos da caixa de ferramentas – conjunto de saberes que o profissional dispõe para a produção de atos de saúde – para a organização do trabalho nas equipes de saúde a fim de produzirem atos de saúde capazes de gerar ações cuidadoras resultantes não somente em cura, mas em promoção e proteção da saúde individual e coletiva. Trazemos essa reflexão para pensarmos as possibilidades de cuidado aos usuários de álcool e outras drogas que vêm sendo utilizadas pelos profissionais, e de quais possibilidades podemos lançar mão. Sobretudo, para organizar uma análise dos efeitos da formação do Caminhos do Cuidado no cotidiano na saúde, que, afinal, é a dimensão que pede visibilidade quando se pensa em EPS. Esta permite tomar o cotidiano como lugar aberto à revisão permanente e gerar o desconforto com os lugares ‘como estão/como são’; deixar o conforto com as cenas ‘como estavam/como eram’ e abrir os serviços como lugares de produção de subjetividade; tomar as relações como produção, como lugar de problematização, como abertura para a produção20. O trabalho em saúde vem adotando procedimentos altamente técnicos e que dispõem cada dia mais de um saber especializado, deixando em segundo plano as tecnologias leves20. Para Feuerwerker11, as lógicas de poderes que operam em nossa sociedade tendem a favorecer os núcleos vinculados às tecnologias leve-duras e duras. Superar essa conformação exige novos arranjos, novas combinações tecnológicas em que o peso das tecnologias leves seja maior e que as necessidades dos usuários ocupem um lugar central. Como podemos perceber, nos registros que seguem, os tutores percebem que a Atenção Básica é um local privilegiado para o cuidado dos indivíduos, e, por meio do Caminhos do Cuidado, conseguem, também, deslocar a imagem de cuidado em saúde mental vinculado apenas aos centros especializados. A possibilidade de ampliação da clínica passou pela incorporação de novos arranjos de cuidado com atendimento chamado de mais humanizado e a utilização da RD como mais uma ferramenta de cuidado. “Para minha formação enquanto psicólogo foi muito valiosa. Por possibilitar transmitir a diferença; e contribuir assim, para um tratamento mais humanizado à saúde mental.” “Trabalho em uma ESF e sou docente para o curso de graduação em enfermagem, e o conhecimento adquirido no curso tem melhorado muito o meu atendimento a este segmento da população, bem como tenho estimulado meus alunos a repensarem o atendimento destes pacientes[...].” “Qualificou minha intervenção na Atenção Básica, tanto no que se refere à Saúde Mental como em relação à qualidade do cuidado na Atenção Básica.”

Conclusões Na análise dos registros feitos pelos tutores do projeto Caminhos do Cuidado, percebeu-se que houve um deslocamento da imagem dos usuários de álcool e outras drogas, que passaram a ser vistos como indivíduos com desejos, singularidades e histórias de vida, abrindo-lhes a possibilidade de serem cuidados por estes profissionais nos serviços de saúde com algo a menos de receio e preconceito. Aliado à mudança no modo de ver o usuário, evidenciou-se que os tutores perceberam novas possiblidades de cuidado aos usuários de álcool e outras drogas, e compreenderam a Atenção Básica como espaço privilegiado para esse cuidado. Podemos dizer que o Caminhos do Cuidado potencializou a reflexão a respeito das práticas de cuidado para usuários de álcool e outras drogas, configurando, também, um importante passo para a ampliação da oferta de cuidado a esses indivíduos na Atenção Básica. Evidentemente que essa iniciativa não teve a capacidade de mudar a cultura dos serviços em relação aos usuários, mas as evidências nos registros dos tutores apontam para uma ampliação na capacidade de ver o problema como uma questão de cuidado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Apesar de os tutores do Caminhos do Cuidado também serem profissionais da Atenção Básica, é possível supor que esta formação, pontual, não será suficiente para mudar completamente conceitos e práticas adotadas ao longo de muito tempo. Por essa razão, será necessária a manutenção de processos de EPS com a mesma temática para outros profissionais. Inclusive, pelo fato de que, nas práticas do cotidiano, conceitos e imagens se transformam, mas, também, se reapresentam, pois esse não é um processo linear e isento de tensões e contradições. É de extrema importância os profissionais da Atenção Básica estarem afinados com a proposta do Caminhos do Cuidado para que possam acolher as demandas vindas do território, geradas a partir do processo formativo dos ACS e ATENF. Sobretudo, é fundamental que as questões que emergem sempre e por todos os lados no cotidiano do trabalho sejam objeto de autoanálise dos trabalhadores e das equipes, tornando-as dispositivos de adensamento das práticas e desenvolvimento do trabalho, conforme nos sinalizam Ceccim & Ferla13. Importante considerar que esse estudo analisou os registros realizados durante a formação, na fase de implementação do projeto, o que mostra mais a perspectiva que os tutores constituíram para atuar na função específica que tiveram no projeto. A avaliação do efeito da formação, nos tutores e nos agentes e técnicos, por certo, requer estudos específicos ao longo do tempo. Mas é importante registrar que, mesmo com os limites apontados, é possível identificar uma mudança de perspectiva no universo dos tutores que respondeu às questões formuladas na avaliação, demonstrando um efeito das ações de educação permanente na constituição de novas perspectivas para a ação educativa dos sujeitos. O Projeto Caminhos do Cuidado colocou o cotidiano do trabalho e a formação dos tutores em análise, potencializada por meio dos espaços de troca vivenciados por eles na formação de tutores, nos encontros com ACS e ATENF, bem como nos municípios por onde passaram. Esse espaço de EPS fez despertar, nos profissionais envolvidos, novas possibilidades de cuidado aos usuários de crack, álcool e outras drogas, estimuladas, também, por uma metodologia de formação crítico-reflexiva. A formação e o convívio com as turmas de ACS e ATENF proporcionaram, além disso, o acúmulo de novos saberes, ampliando, dessa forma, sua “caixa de ferramentas”, a ser utilizada no cotidiano do trabalho. Dentre as aprendizagens adquiridas, a RD foi a mais citada pelos tutores, a qual ainda aparece como uma temática desconhecida a muitos profissionais. O trabalho comprometido com o cuidado produz invenções, e é fundamental que essas invenções tenham condições de atravessar as práticas e serem compartilhadas pelos diferentes atores.

Colaboradores Os autores Francéli Francki dos Santos e Alcindo Antônio Ferla tiveram participação ativa na elaboração, revisão e aprovação final do manuscrito. Referências 1. Fonseca EM, Bastos FI. Os tratados internacionais antidrogas e o Brasil: políticas, desafios e perspectivas. In: Alarcon S, Jorge MAS, organizadores. Álcool e outras drogas: diálogos sobre um mal-estar contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 15-42. 2. Petuco DRS. Era uma vez: uma pequena história do cuidado e das políticas públicas dirigidas a pessoas que usam álcool e outras drogas. In: Teixeira M, Fonseca Z, organizadores. Saberes e práticas na atenção primária à saúde: cuidado à população em situação de rua e usuários de álcool, crack e outras drogas. São Paulo: Hucitec; 2015. p. 179-200. 3. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2010. 4. Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicol. Soc. 2011; 23(1):154-62. http://dx.doi. org/10.1590/S0102-71822011000100017

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artigos

5. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde. Projeto Caminhos do Cuidado: Formação de Agentes Comunitários de Saúde, Auxiliares e Técnicos de Enfermagem da Saúde da Família - em saúde mental ênfase em crack, álcool e outras drogas. Brasília, DF: SGTES; 2013. 6. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde. Caminhos do Cuidado: relatório 2015. Rio de Janeiro: Fiocruz/Icict; 2016. 7. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2008. 8. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010. 9. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(Supl 2):2133-44. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232008000900018 10. Freire P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra; 1996. 11. Feuerwerker LC. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. 12. Pinheiro R, Ceccim RB. Experienciação, formação, cuidado e conhecimento em saúde: articulando concepções, percepções e sensações para efetivar o ensino da integralidade. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA, organizadores. Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: Abrasco; 2011. 13. Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saude. 2009; 6(3):443-56. 14. Ceccim RB, Feuerwerker L. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65. http://dx.doi.org/10.1590/ S0103-73312004000100004 15. Merhy EE, EPS em movimento. [Internet]. 2014 [Citado 16 Ago 2015]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o-nApG0Wgks 2014>. 16. Neves R, Paulon S. Apresentação. In: Paulon S, Neves R, organizadores. Saúde mental na atenção básica: a territorialização do cuidado. Porto Alegre: Sulina; 2013. 17. Lancetti A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho MY, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. 18. Merhy EE. Saúde a cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec; 2007. 19. Macerata I. Vulnerabilidades do usuário e vulnerabilidades da atenção: apontamentos iniciais para uma clínica de território na atenção básica. In: Ramminger T, Silva M, organizadores. Mais substâncias para o trabalho em saúde com usuários de drogas. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. 20. Ceccim RB. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface (Botucatu). 2005; 9(16):161-77.

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Santos FF, Ferla AA. Salud mental y atención primaria en atención a los usuarios de alcohol y otras drogas. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):833-44. Este artículo aborda la integración entre el cuidado en salud mental y la atención básica en el Sistema Único de Salud. Discute la participación de los tutores del Proyecto Caminos del Cuidado – Formación en crack, alcohol y otras drogas para Agentes Comunitarios de Salud y Auxiliares Técnicos de Enfermería y la contribución de la formación en Salud Mental para su vida profesional. La participación de los tutores fue analizada por banco de datos secundarios, organizado a partir de formularios electrónicos. De los 890 cuestionarios llenados, se analizaron tres preguntas abiertas, utilizándose como método el Análisis de Contenido. La formación se mostró capaz de transformar la imagen de prejuicio en relación a los usuarios de alcohol y de otras drogas; ese cambio despertó nuevas posibilidades para el cuidado en la Atención Básica, además de desarrollar capacidades pedagógicas para la educación permanente en salud.

Palabras clave: Crack, alcohol y otras drogas. Atención primaria de la salud. Caminos del cuidado. Salud mental. Educación permanente en salud.

Submetido em 24/04/16. Aprovado em 14/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0202

artigos

Do tratamento moral à atenção psicossocial: a terapia ocupacional a partir da reforma psiquiátrica brasileira*

Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri(a) Abílio da Costa-Rosa(b)

Shimoguiri AFDT, Costa-Rosa A. From moral treatment to the psychosocial care: occupational therapy in the aftermath of Brazilian psychiatric reform. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):845-56.

A Literature review about the process of building occupational therapy as a health science, mainly through its evolution in the field of mental health, discussing the status differences of its activities in classical Psychiatry and in the Brazilian Psychiatric Reform;. The analysis shows the shifts in the concept of health and the working tools of Occupational Therapy seeking to abandon the Hospital-centric medicalized Psychiatric Paradigm aiming towards the Psychosocial Care Paradigm.

Keywords: Occupational therapy. Brazilian psychiatric reform. Psychosocial care. Mental health.

A partir de uma revisão bibliográfica sobre a constituição da terapia ocupacional como ciência da saúde, sobretudo quanto à sua evolução na Saúde Mental, discutem-se as diferenças do estatuto das atividades na Psiquiatria clássica e na Reforma Psiquiátrica brasileira. Os resultados da pesquisa revelam as transformações quanto à concepção de saúde e aos meios de trabalho da Terapia Ocupacional, buscandose abandonar o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador com vias ao Paradigma Psicossocial.

Palavras-chave: Terapia ocupacional. Reforma psiquiátrica brasileira. Atenção Psicossocial. Saúde mental.

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* Análises mais aprofundadas sobre a terapia ocupacional na Atenção Psicossocial foram feitas no trabalho de mestrado: “Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na saúde coletiva”1. (a) Terapeuta ocupacional. Rua José de Moraes, 20. Presidente Prudente, SP, Brasil. 19065 547. ashimoguiri@ crefito3.org.br (b) Departamento de Psicologia Clínica, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Assis, SP, Brasil. abiliocr@assis.unesp.br

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DO TRATAMENTO MORAL À ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: ...

A constituição da terapia ocupacional (TO) parte de bases históricas, culturais, econômicas, éticas, políticas e conceituais; por isso, é necessário compreender o percurso sócio-histórico da profissão. Nesta direção, fizemos uma revisão bibliográfica sobre os fundamentos epistemológicos que influenciaram a identidade profissional e a evolução da TO na Saúde Mental, sobretudo, depois da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb). Por considerarmos que o fazer atividades é uma das principais características das intervenções em TO, discutimos as diferenças quanto ao seu estatuto no Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador e no Paradigma Psicossocial, para tecermos algumas considerações sobre as práticas de trabalho contemporâneas, desenvolvidas no âmbito da Saúde Mental, na Rede de Atenção Psicossocial. O uso terapêutico da ocupação foi sistematizado enquanto campo do saber a partir do século XVIII, quando Pinel teorizou o Tratamento Moral, que assegurava a internação e o isolamento como a melhor resposta social para as tensões ocasionadas pela loucura2. Pinel foi propulsor do alienismo e propôs que o trabalho mecânico rigorosamente executado era capaz de garantir a manutenção da saúde3. Constituindo-se, portanto, como uma terapêutica, a laborterapia era supostamente capaz de fazer o alienado mental voltar à racionalidade, por restabelecer-lhe hábitos saudáveis e reorganizar seu comportamento. Assim, a doença que causava contradições da razão e atitudes antissociais poderia ser combatida pela ocupação, pelo trabalho1-4. Em si mesmo, o trabalho possui uma força de coação superior a todas as formas de coerção física, uma vez que a regularidade das horas, as exigências da atenção e a obrigação de chegar a um resultado separam o doente de uma liberdade de espírito que lhe seria funesta e o engajam num sistema de responsabilidade3.(p. 529)

O Tratamento Moral firmou o trabalho como “eixo regulador das mazelas da sociedade”4 (p. 37). Acreditava-se que a laborterapia desempenhava uma função corretiva e disciplinar, sendo o principal recurso para a organização e manutenção do ambiente asilar, porque contrapunha-se ao ócio desorganizador4. Neste contexto, a ocupação, no seu aspecto de trabalho, passou a ter grande valorização social, e foi neste esteio que a TO consolidou-se como ciência na área da Saúde Mental. [...] as atividades passam a ser utilizadas em procedimentos diagnósticos e a ser indicadas no tratamento de acordo com o diagnóstico dado ao paciente. Com a sistematização de tipos de trabalhos adequados a estados mórbidos buscava-se dar ares de ciência médica a essas práticas terapêuticas5. (p. 4)

Nos manicômios, a internação não seguia, necessariamente, uma racionalidade clínica, mas tinha caráter de limpeza social, era “reclusa toda a sorte de marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinquentes e, dentre eles, os loucos”6 (p. 40). Em “A História da Loucura na Idade Clássica”, Foucault3 traz reflexões importantes sobre as condições que resultaram no período da “grande internação”, propondo que a mesma foi decorrente de uma crise econômica na Europa. Relata que as internações existiram “como medida econômica e precaução social”3 (p. 89). O imperativo de manter-se ocupado associava-se não tanto ao tratamento psiquiátrico, mas à finalidade de extinguir a ociosidade e a mendicância, preocupantes num período de crise. Houve uma exigência financeira e moral para o trabalho4: “A valorização e dignificação do trabalho eram base para a construção de uma nova sociedade organizada em torno da produção capitalista que requeria a sujeição do ritmo da vida ao tempo da produção”5 (p. 4). Castel7, ao fazer um paralelo entre a psiquiatria e o liberalismo no séc. XIX, considera que há relações estreitas entre o capitalismo e os movimentos alienistas, que há analogias entre a exploração do proletariado nas fábricas e do ‘louco’ nos asilos. Andrade4 considera que “o capitalismo consolidou hegemonias secularmente mantidas tanto na produção de riqueza, na exploração do trabalhador pelos donos do capital, quanto pela produção de teorias e técnicas de tratamento da doença mental” (p. 39).

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Substituamos o ‘indigente’ por uma das múltiplas qualificações aplicadas hoje às diversas variedades de ‘excluídos’ de um sistema de exploração e normalização. Teremos a fórmula geral de uma política de assistência numa sociedade de classes, com o lugar marcado, também para todas as medicinas sociais ou mentais, passadas, presentes ou futuras. E também a chave da relação entre psiquiatria clássica e a problemática do trabalho7. (p. 141)

Dissimulando os interesses capitalistas, estabeleceu-se que o trabalho deveria ser a base dos tratamentos oferecido nos asilos, já que a ocupação, dado seu adjetivo de produtividade, era terapêutica1. Com efeito, o Tratamento Moral foi amplamente disseminado, e, mesmo depois de dois séculos da sua criação, continuou inspirando os tratamentos psiquiátricos do século XX. Nos Estados Unidos, na primeira metade dos anos 1900, Meyer desenvolveu um tratamento ocupacional, também chamado tratamento moral, baseado em ocupações de cunho ressocializantes que objetivavam alcançar a conduta adaptada ao social, consciência da realidade e o equilíbrio entre trabalho, lazer e ócio; avaliando-se o grau de consciência do ‘doente’ fazia-se a prescrição da ocupação adequada8. Outrossim, na Alemanha, Simon adotou o trabalho para combater a inatividade e desenvolver a responsabilidade do ‘doente mental’. Comparando o processo educacional dos doentes ao das crianças, fundamentou a “Terapia Ativa”, baseada no escalonamento da ocupação: o trabalho era dividido em etapas com graus de dificuldades, a fim de que todos fossem mantidos ocupados, e, por conseguinte, a ordem no ambiente manicomial, garantida8. Simon deixou sugestões de que uma determinada atividade aliviava um determinado sintoma, fundamentando a ideia de que as atividades possuem um caráter curativo intrínseco e pontual. Schneider deu continuidade a este pensamento, desenvolvendo o programa “Ocupação Biológica”, cuja premissa era: “atividades específicas escolhidas em função dos sintomas de cada doença ou síndrome”8 (p. 28). No mesmo enquadramento, Slagle desenvolveu o programa “Treinamento de Hábitos”, para adaptação social de indivíduos com distúrbios emocionais ou físicos; ela foi a introdutora da TO, e propunha que “a ocupação usualmente curativa serve para suplantar alguns hábitos, modificar outros e construir novos, para que ao final, as reações a hábitos sejam favoráveis à restauração e manutenção da saúde”8 (p. 33). Destarte, a TO se definiu enquanto profissão nas circunstâncias do retorno à filosofia do Tratamento Moral9. A primeira técnica foi registrada em 1917, objetivando a “ocupação de pacientes institucionalizados, tanto da área mental como da área física, com o propósito de promover seu retorno à sociedade”8 (p. 20) e, ainda, suprir os custos das internações, vistos que o que era produzido, por exemplo, produtos artesanais e agrícolas, era comercializado. Chamamos a atenção para o fato de que, mesmo passados duzentos anos da psiquiatria pineliana, o uso das atividades continuava ligado de alguma forma às antigas instituições asilares do século XVIII, com a preponderância do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador10 e das lógicas alienantes, que desprezam a potência disruptiva e inventiva das atividades5 para utilizá-las como ferramentas de controle que produzem subjetividades serializadas1. Nestes termos, sem uma análise crítica do que se pretende com o uso das atividades, quanto à ética e à política, é enorme o risco de se cair na repetição do instituído, na reprodução da alienação1,5. Barros et al.11 grifam que: “[…] a terapia ocupacional, utilizando-se acriticamente da atividade, estaria contribuindo para conservar e consolidar uma organização social que, ao mesmo tempo em que produz, segrega e pune todo um contingente de pessoas que escapam à sua ordem racional” (p. 97). No Brasil, não foi nas instituições psiquiátricas que as terapêuticas ocupacionais alcançaram reconhecimento, mas, sim, nos programas de reabilitação profissional instituídos pelo governo Vargas, nos quais a TO consolidou-se enquanto prática especializada no tratamento dos acidentados de trabalho, dos pacientes crônicos e dos deficientes sensoriais e físicos9,12. Com a evolução da Ciência Moderna13, extremamente positivista, os terapeutas ocupacionais brasileiros afeiçoaram-se ao biologismo14, sendo incorporados ao quadro profissional dos serviços especializados em reabilitação física e tecnologia15.

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As atividades terapêuticas eram analisadas sistematicamente em suas possibilidades de ação, relativas ao diagnóstico médico e às funções lesadas. Elas eram selecionadas, graduadas e estruturadas em etapas de complexidade crescente e seu exercício repetitivo promovia a completa recuperação funcional ou a minimização das seqüelas motoras. Na ocorrência de seqüelas, os pacientes eram treinados para readaptação nas atividades da vida diária (alimentação, vestuário, higiene pessoal...) e, quando possível, preparados para o retorno ao trabalho produtivo. Esgotadas as possibilidades funcionais do paciente, o médico (não o terapeuta ocupacional ou outro profissional) prescrevia a “alta” ou o desligamento do programa de reabilitação15. (p. 81)

O primeiro curso técnico de TO foi criado em 1959, voltado para a Reabilitação Física15; paramentados pelo paradigma flexneriano16, em que o funcionamento do corpo humano é comparado ao de uma máquina e as doenças são tratadas por uma etiologia exclusivamente fisiológica, os programas terapêuticos ocupacionais centravam-se nas afecções orgânicas15. […] a formação era restrita e específica das profissões técnicas de reabilitação (eminentemente clínica, referente à sintomatologia, à intervenção médica específica, aos princípios de indicação terapêutica etc.), sendo a Terapia Ocupacional responsável somente por membros superiores e pelas técnicas em atividades de vida diária”.14 (p. 34)

Durante dez anos, a TO esteve submissa ao ato médico, pois surgiu, primeiramente, como subdisciplina pautada na medicina14, de maneira que os terapeutas ocupacionais eram meros reprodutores da lógica de trabalho da gestão médica; as atividades eram prescritas pelos médicos e apenas administradas pelos terapeutas ocupacionais15. Em decorrência da tecnificação do trabalho e do conhecimento nas sociedades capitalistas9, em 1969 a formação em TO ascendeu ao nível Superior. Mesmo com a emancipação da medicina – já que a TO tornou-se um curso de graduação com um campo teórico-técnico próprio –, o modelo biomédico já perpassava as entranhas da profissão, portanto, a compreensão de saúde se deu a partir dos referenciais da biofísica e da bioquímica, predominantemente, o cinesiológico e o neurológico14,15. Para Cavalcante et al.9, “Isso representou a descontinuidade no processo de desenvolvimento da profissão no Brasil, ao assumir a concepção de uma profissão paramédica, orientada pelo modelo clínico” (p. 32). Quanto à Saúde Mental, em 1852, com a fundação do Hospício D. Pedro II, no Rio de Janeiro, foi registrado o primeiro uso da ocupação como terapêutica. Em 1898, começou a funcionar o Hospital Juqueri, em São Paulo, onde também foi introduzido o tratamento pelo trabalho12. Em 1911, foram abertas mais duas instituições de internação psiquiátrica, a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, e o Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro12. O Setor de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional merece destaque, porque foi coordenado pela psiquiatra Nise da Silveira, que até hoje exerce forte influência para TO17. Nise considerou que a estrutura hospitalar era por si só adoecedora, no entanto, a TO poderia modificar isso, pois, de acordo com ela, “os trabalhos produzidos nos ateliês e suas exposições eram também armas de combate ao manicômio e ao tratamento psiquiátrico hegemônico, aliadas na luta pela transformação cultural de certa concepção de loucura e do enlouquecimento”17 (p. 369). Comprometida em criar práticas de caráter humanista, Nise prezava por atividades que focassem “a progressiva ampliação do relacionamento com o meio social, e que servissem como meio de expressão”17 (p. 366); ela desenvolveu dezessete oficinas: encadernação, marcenaria, trabalhos manuais, costura, música, dança, teatro, etc. Dentre as oficinas, destacou-se o ateliê de pintura, onde as obras dos sujeitos em sofrimento psíquico intenso foram compiladas para compor o Museu de Imagens do Inconsciente. “As exposições das obras do acervo do Museu mostraram-se uma estratégia de agenciar essas produções, fazê-las entrar no circuito da produção cultural, transformando pacientes psiquiátricos em artistas”17 (p. 369). Consideramos que a experiência em Engenho de Dentro foi singular e inestimável, porque desvinculou as atividades dos objetivos comportamentais. Entretanto, hegemonicamente, o uso da ocupação no 848

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país seguiu os moldes dos tratamentos morais1, no intuito de ocupar o tempo dos ‘doentes’, controlar seus corpos, e, ao mesmo tempo, auferir renda para os estabelecimentos. A saúde mental só foi contemplada nos currículos de graduação a partir de 19709; por isso, constatamos que, durante muito tempo, as atividades foram utilizadas como recursos pedagógicos e normalizadores1. O uso da ocupação e das atividades no Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador recebeu alguns nomes: tratamento moral, tratamento do trabalho, terapia do trabalho, tratamento da ocupação, reeducação ocupacional, ergoterapia, laborterapia e praxiterapia8. A despeito dessas variações, o mais importante é perceber, como expõem Guattari e Rolnik18, que o movimento alienista gerou serialização das subjetividades. Embora as nomenclaturas tenham variado, há que se ponderar o fato de que as intervenções da TO, até então, sempre tiveram como meta eliminar a doença para promover adaptação social, que era o indicativo de saúde1. As primeiras transformações quanto às formas de assistência em Saúde Mental ocorreram concomitantes aos movimentos da Reforma Sanitária19 e da Reforma Psiquiátrica brasileira20 – RPb, que propunham uma outra concepção de saúde. A Reforma Sanitária delimitou a Saúde Coletiva como um campo de práxis marcado pela proposição positiva da saúde, como algo que pode ser promovido e melhorado, e não apenas recuperado. Os sanitaristas acreditavam que a saúde é efeito de uma produção social, por isso se opunham radicalmente ao fisicalismo, entendendo que um indivíduo saudável não é o equivalente ao bom funcionamento do seu corpo físico19. “A partir daí, desaparecem as razões para a artificial separação entre ações curativas e preventivas porque o ambiente social pode ter um papel curativo importante”19 (p. 236). Consequentemente, a saúde passou a ser entendida na ordem da intersetorialidade e da política.

A terapia ocupacional e a Reforma Psiquiátrica brasileira Para a RPb, os serviços de atenção psicossocial localizados na comunidade têm constituído a principal estratégia para fomento das ações de saúde mental no Sistema Único de Saúde21, pois propõem a inovação da clínica com enfoque no sujeito, nas suas vivências individuais e coletivas. Neste sentido, no ano de 2011, foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial22 (RAPS), em virtude da necessidade de tratamentos eficazes quanto à integralidade da saúde, por meio de uma rede de serviços articulados22. A RAPS visa garantir o acesso da população à atenção psicossocial, e, especialmente, supõe a construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na comunidade. Para tanto, há estabelecimentos de todos os tipos e níveis de atenção à saúde: Unidades Básica de Saúde; Centros de Convivência; Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); serviços de urgência e emergência; Unidade de Pronto Atendimento 24 horas; Serviços de Atenção em Regime Residencial; enfermaria especializada em Hospital Geral; entre outros22. As táticas de trabalho na RAPS abarcam a articulação de diferentes saberes e práticas, buscando superar a dominação de uma disciplina sobre as outras, evitando a concentração de saber-poder nas mãos da medicina psiquiátrica em virtude da priorização do trabalho intersetorial. Os estabelecimentos mais representativos da RPb são os CAPS20,21,23, onde a TO é bastante prevalente, ao lado da medicina, da enfermagem, do serviço social e da psicologia1. Nas últimas décadas, a TO tem emergido potencialmente como um dos dispositivos clínicos da Atenção Psicossocial; logo, veio a tornar-se uma das disciplinas elementares do Paradigma Psicossocial1,10. Nessa conjuntura, o fazer atividades novamente tomou a cena, agora, despido da roupagem do Tratamento Moral, se apresentando como instrumento de ações de reinserção social, num cunho mais político4. Como subversões possíveis das propostas medicamentosas e hospitalocêntricas, a atenção psicossocial vem propor formas de organização fundadas na interdisciplinaridade1,10,20,21 e no trabalho integrado, visto que a equipe não deve apenas ser composta por várias disciplinas, ser multiprofissional, mas os trabalhadores devem compor diálogos para desenvolverem um trabalho cooperado. Os ideais da Reforma Psiquiátrica24 fortaleceram a necessidade de produção de novas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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práticas em Saúde Mental, como tentativa de dar, aos sujeitos em sofrimento, outra forma de tratamento, não asilar e opressivo1,10,20,21. Entrementes, começaram a surgir questionamentos sobre as demandas atendidas pelas terapêuticas ocupacionais: Práticas que, muitas vezes, são vivenciadas como naturais pelos próprios pacientes: no cotidiano de regras, disciplina e violência das instituições asilares, o trabalho/ocupação se apresenta muitas vezes para o internado como única saída da situação em que se encontra. Entretanto, elas não se constituem numa oposição a essa situação – pelo contrário, a evidenciam, conservando a lógica de controle, sujeição e exclusão da própria instituição25. (p. 74)

Emergiram preciosas reflexões sobre o papel social e clínico da TO, cuja função “no mais das vezes, prestava-se a segregar uma parcela da população vítima de um sistema excludente, através de práticas justificadas pelo ‘tratamento’ em saúde e pelas ‘patologias’ individuais”15 (p. 83). Começavam a se desenhar outras concepções acerca do sofrimento psíquico e dos meios para tratá-lo, consoantes com os movimentos instituintes que traziam, no horizonte, a construção de uma sociedade mais solidária, em que as diferenças não mais seriam pretextos para a marginalização. A TO viveu um redimensionamento da sua prática, houve ampliação no conceito de saúde, não limitado à ausência de doença ou à compensação das limitações físicas, sensoriais e cognitivas, mas pensado a partir das necessidades cotidianas dos sujeitos, entrelaçadas a uma realidade sociocultural e coletiva. Ampliaram-se os ‘meios’ de trabalho, e a TO adquiriu uma identidade profissional dinâmica, caracterizada pela enorme variedade dos seus recursos terapêuticos, não restritos ao uso das atividades. No processo de reflexão sobre a atuação profissional do terapeuta ocupacional em instituições totais, como os hospitais psiquiátricos, a questão social passou a ser considerada como um dos principais pontos de análise. Havia ainda outras dificuldades. Entre elas, a exigência feita à terapia ocupacional (por vezes assumida pelos próprios profissionais) de escamotear o vazio institucional – sua face última de exclusão – por meio da ocupação individual ou em grupo: a distância entre os abstratos objetivos de sua intervenção, os esforços para alcançar uma inserção ou reinserção social e essa possibilidade efetiva; a distância entre os objetivos explícitos das instituições assistenciais e os resultados da ação institucional11 (p. 96).

Desse novo prisma crítico das relações sociais excludentes, originou-se a Terapia Ocupacional Social11, cujas críticas quanto às funções produtivas da profissão são importantíssimas. Qual modalidade de saúde e de subjetividade a TO produz? “O terapeuta ocupacional sente-se posto em questão ao perceber que sua práxis se inscreve em um processo histórico e que esta possui uma dimensão técnica e uma dimensão política inseparáveis”11 (p. 96). Tendo por hipótese que a saúde é socialmente produzida, na intersecção dos aspectos biológicos, psicológicos e sociais19, a RPb se contrapôs à Psiquiatria clássica em suas formas de tratamento pautadas no enclausuramento e na exclusão1,10,20,23,27. Vemos que os terapeutas ocupacionais redimensionaram seu papel técnico e político, incluindo, em suas práticas, os componentes socioculturais do adoecimento. Na onda dos movimentos de reforma, participaram, nos anos 1980, da idealização dos serviços psicossociais: em São Paulo, participaram da abertura do primeiro CAPS do Brasil, o CAPS “Prof. Luiz da Rocha Cerqueira”, e dos Núcleos de Atenção Psicossocial, em Santos26. Para atuação em Saúde Mental, a TO incorporou os pressupostos da Reabilitação Psicossocial como um referencial muito utilizado27. O paradigma da Reabilitação Psicossocial volta seus interesses e focos de ação para a perda de vínculos e para a fragilização das redes de suporte social das pessoas em sofrimento psíquico intenso, atenta para a precarização do habitar e para a exclusão laboral vivenciadas por elas27,28. Tem-se por meta a abertura de espaços de negociação social, com oportunidades de trocas de recursos e de afetos, buscando-se a reinserção social; o que se tem em vista é:

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O processo de facilitar ao indivíduo com limitações, a restauração, no melhor nível possível de autonomia do exercício de suas funções na comunidade. O processo enfatizaria as partes mais sadias e a totalidade de potenciais do indivíduo, mediante uma abordagem compreensiva e um suporte vocacional, residencial, social, recreacional, educacional, ajustados a demandas singulares de cada indivíduo e cada situação de modo personalizado.28 (p. 19)

No panorama da Atenção Psicossocial, que veio substituir as estruturas arquitetônicas e teóricotécnicas do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, a TO opera “levando em consideração as reais possibilidades individuais e coletivas, objetivando a promoção da autonomia e da independência para incorporação e participação ativa na sociedade”29 (p. 108). Para Malfitano e Ferreira29 : A institucionalização da terapia ocupacional, dada em seu início, resumidamente, pelos aspectos da ocupação como forma de tratamento dos doentes mentais nos manicômios e da reabilitação dos incapacitados físicos nos hospitais do Exército, modifica-se na medida em que passa a ter a função social de contribuir para legitimar as diretrizes constitucionais dos direitos sociais. Evoluindo de seu histórico enraizado em ações tidas como assistencialistas e caritativas para o novo contexto dos direitos sociais que focalizamos aqui na discussão das políticas de saúde, a profissão ganha novos espaços de ação, contribuindo para implementar efetivamente as políticas sociais e, portanto, o SUS, o que, consequentemente, amplia o desenvolvimento da categoria. (p. 108)

Há também, no âmbito da TO em Saúde Mental, trabalhos que dialogam com a Filosofia da Diferença, propondo práticas grupais que articulam experimentações com o corpo e com a arte; as mesmas têm sido entendidas como formas de resistência ao modelo societário instituído, intimamente ligadas aos processos de subjetivação30-33. A possibilidade de vivenciar fazeres artísticos fortalece a expressão, a comunicação, e redefine a participação social, então, a arte é vista como uma possibilidade de experimentar, fazer e exprimir-se31. [...] a proposta de trabalho com o corpo é pautada na validação dos sujeitos, de suas capacidades, de respeito aos desejos, necessidades e suas histórias [...] O corpo é uma fonte de conhecimentos, suas respostas e sua forma podem orientar a pessoa constantemente. A reunião da experiência somática e da linguagem ganha consistência quando estamos juntos, formamos grupos, criamos, trabalhamos, dançamos, passeamos e cuidamos uns dos outros [...]. É também no fazer artístico que as pessoas lidam com limitações, com seu entorno e com a realidade social. Nos desdobramentos das ações, percebem a si próprios e aos outros, reconhecendo possibilidades e dificuldades [...]. Pode-se afirmar que a arte é revolucionária, é experiência de confronto com o desconhecido, produz o novo, perturba a ordem vigente30. (p. 257-258)

Na RAPS, os terapeutas ocupacionais têm se dedicado aos espaços que são chamados de oficinas ou de ateliês, lançando mão das atividades estéticas1. As oficinas são respaldadas pelas críticas à psiquiatria asilar, sendo que esse dispositivo “não se define por um único modelo homogêneo de intervenção nem tampouco pela existência de um único regime de produção, ao contrário, é composto de naturezas diversas, numa multiplicidade de formas, processos, linguagens”34 (p. 7). Cumpre dizer que é imprescindível atentarmos para a diversidade de cenários nos quais a TO tem atuado, que se estendem mais além das oficinas, abrangendo também espaços que requerem abordagens comunitárias e sociais, por exemplo, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). As mudanças iniciadas pela RPb, além de desencadearem transformações no campo da Saúde como um todo, influenciaram a reinvenção da TO, sendo que as atividades passaram a ser valorizadas, sobremaneira, como recursos para socialização e para a cidadania11,27,35,36, visando a produção de subjetividades singularizadas. Segundo Barros et al.11 (p. 100), a eliminação dos sintomas deixou de ser a meta a priori: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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As atividades são compreendidas no interior de processos reais de vida. Elas são pensadas singularmente para cada pessoa, para cada situação, mas sempre referidas à história grupal, à classe social e ao universo simbólico. Abandona-se, assim, o pressuposto de que existam atividades cujas características abstratas possam ser estudadas separadamente e prescritas segundo grupos de patologias, sintomas ou situações hipotéticas.

Além dos objetivos de reinserção social, enfatizados pela Reabilitação Psicossocial, pela Filosofia da Diferença e pela Terapia Ocupacional Social, o uso das atividades na TO pode ainda ser pensado na clínica stricto sensu, mais voltada para o funcionamento psíquico. Tomando como referencial a psicanálise de Freud e Lacan, Shimoguiri1 refere que o fazer atividades na TO pode ser uma maneira de o sujeito elaborar os impasses e conflitos que a ele se interpõem. Essa característica particular das atividades é significativa se contextualizada ao diagnóstico clínico, por exemplo, conforme propõe Shimoguiri1: os sujeitos que chegaram a desencadear uma crise psicótica podem realizar um trabalho de reconstrução subjetiva utilizando-se das atividades artesanais1, como ocorreu na história de Arthur Bispo do Rosário, que conseguiu estabilizar seus delírios na medida em que reproduzia os materiais existentes na terra37. Para a psicanálise, trata-se de um tipo de fazer por meio do qual o sujeito “reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade”38 (p.153).

Algumas considerações sobre a terapia ocupacional no Paradigma Psicossocial Interessa-nos ressaltar que os atendimentos de TO, independentemente do referencial adotado, devem ser pensados para contemplar os interesses dos sujeitos: pintura, dança, modelagem, etc., sem atividades definidas e sem objetivos postos previamente; o essencial é que as propostas estejam alinhadas às motivações dos participantes, podendo abrir espaços para sua participação efetivamente protagonista, pois a ética da Atenção Psicossocial1,10 se baliza no respeito às singularidades. Sobre sua atuação como terapeuta ocupacional na RAPS, Shimoguiri1 (p. 72) aponta para o fato de que: O reconhecimento do sujeito do sofrimento como sujeito desejante e agente de mudanças que deve, necessariamente, estar implicado na sua demanda, foi minha questão inicial para instrumentalizar posicionamentos reversos às manobras de adaptação social pela via da pedagogização do comportamento; também, a divisão inicial que me levou a buscar outros referenciais, que considerassem o sujeito na sua singularidade, e, sobretudo, que pudesse caminhar rumo a uma ética da diferença.

O causalismo cartesiano, característico dos tratamentos morais e do Discurso Médico39, visa apreender e manipular as causas para prever e evitar a ocorrência de determinados fenômenos. O cuidado é tutelar, pois o sujeito é objetificado, sendo somente um depositário de intervenções, completamente passivo às ações de outrem, não há consideração do sujeito como subjetividade desejante. [...] houve um investimento de poder sobre o indivíduo moderno, caracterizado pela vigilância, pelo controle sobre suas atividades e pela sua normalização. Estas técnicas de disciplinarização dos corpos tomaram o homem enquanto objeto, ou seja, houve um processo de objetivação para transformá-lo em um cidadão útil40. (p. 29)

O pensamento positivista pretende dividir e quantificar para conhecer e controlar. As atividades utilizadas nesse paradigma compõem tecnologias disciplinares por meio das quais se produzem subjetividades massificadas1.

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Através das diversas etapas pelas quais se efetua o ato médico, ou seja, as etapas do diagnóstico, do prognóstico e da terapêutica, o que se configura é um discurso totalitário que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar”39. (p. 11)

Quando os laços sociais e intersubjetivos nos quais se realiza o tratamento são verticalizantes, os mecanismos psicopatológicos são mais importantes do que a própria produção de saúde, uma vez que a lógica que rege a hierarquia e a nosografia já infere pressupor um ideal de saúde, quer seja, de normalidade. Desde a RPb e a Reforma Sanitária, e depois, em 1988, com a consolidação da Constituição da República Federativa do Brasil41, lutamos por um conceito ampliado de saúde e pela desinstitucionalização que não se encerra no fechamento dos hospitais psiquiátricos. Os movimentos da RPb iniciaram um processo de transição paradigmática no campo da Saúde Mental Coletiva com vias ao Paradigma Psicossocial1,10. Neste caminho, é enorme o desafio da TO de rever-se enquanto profissão para inserir-se na RAPS, já que as terapêuticas ocupacionais outrora aplicadas nos asilos e manicômios certamente não servirão aos horizontes psicossociais. Concluímos que, para uma TO consoante à ética da Atenção Psicossocial1,10, é condição mínima compreender que não serão os recursos utilizados, os tipos de atividades – se serão chamados de ocupação ou de trabalho – que definirão os resultados produtivos em termos do tipo de saúde e subjetividade produzidas, mas, sim, a ética da qual se parte. Defendemos que esta ética deve ser a do desejo, do carecimento1,10. O principal ‘meio’ de trabalho da TO será sempre o fazer humano, mas considerando as atividades como dispositivos de subjetivação, em que, ao fazer, o homem faz a si mesmo e cria seus territórios existenciais1. Assim, o que está em pauta, mais do que renomear ou reformar as terapêuticas ocupacionais, é recuperar a dimensão simbólica-criativa-desejante das ocupações, das atividades. Somente assim será possível avançar na direção de suplantar os tratamentos morais alienantes pertencentes ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador.

Colaboradores A elaboração do texto é em maior parte de responsabilidade da autora Ana Flávia Dias Tanaka Shimoguiri. O coautor Abílio da Costa-Rosa contribuiu para a discussão dos resultados e para a revisão da versão final do trabalho. Referências 1. Shimoguiri AFDT. Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na saúde coletiva [dissertação] [Internet]. Assis: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; 2016 [citado 05 Fev 2016]. Disponível em: http://repositorio.unesp.br/ handle/11449/134320. 2. Pinel P. Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS; 2007.

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Shimoguiri AFDT, Costa-Rosa A. Del tratamiento moral a la atención psicosocial: la terapia ocupacional a partir de la reforma psiquiátrica brasileña. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):845-56. A partir de una revisión bibliográfica sobre la constitución de la terapia ocupacional como ciencia de la salud, principalmente en relación a su evolución en la Salud Mental, se discuten las diferencias del estatuto de las actividades en la Psiquiatría clásica y en Reforma Psiquiátrica brasileña. Los resultados de la investigación revelan las transformaciones en lo que se refiere a la concepción de salud y a los medios de trabajo de la Terapia Ocupacional, buscando abandonar el paradigma psiquiátrico Hospitalocéntrico Medicalizador con vías al Paradigma Psicosocial.

Palabras clave: Terapia ocupacional. Reforma psiquiátrica brasileña. Atención psicosocial. Salud mental. Submetido em 04/04/16. Aprovado em 07/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0262

artigos

Produção de cuidado em saúde centrado no trabalho vivo: existência de vida no território da morte Magda de Souza Chagas(a) Ana Lúcia Abrahão(b)

Chagas MS, Abrahão AL. Care production in health team focused on living work: the existence of life on death territory. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):857-67.

Death and life are dimensions involved in the process of health work and are crossed by the way society relates to diseases, patients and outcomes of this process. In this paper, we set out a qualitative research with a team of palliative care, in order to debate: why the health work process produces ways to prevent, camouflage and disregard something that follows the existence, i.e. death? Does death bring us nothing but pain and feeling of vulnerability and finitude? We build arguments that articulate the live work in action with death in the work process in health thus concluding that the professionals who participated in the study used live work in action based on a complex and dense space of living life even in the face of the death.

Keywords: Death. Patient-centered care. Attitude regarding death. Palliative care. Live work in action.

Morte e vida são dimensões presentes no processo de trabalho em saúde, e são atravessadas pela maneira de a sociedade relacionar-se com a doença, o doente e o resultado deste processo. Neste artigo, partimos de uma investigação qualitativa, com uma equipe de cuidados paliativos, com o objetivo de problematizar: por que, no processo de trabalho em saúde, produzimos modos de evitar, camuflar, desconsiderar o que nos acompanha e acompanhará a existência, a morte? Será que a morte não nos traz nada além da dor e o sentimento de vulnerabilidade e finitude? Construímos argumentos que articulam o trabalho vivo em ato com a morte no processo de trabalho em saúde, e concluímos que os profissionais que participaram do estudo empregaram o trabalho vivo em ato a partir de um complexo e denso espaço de viver a vida mesmo diante da morte.

Palavras-chave: Morte. Assistência centrada no paciente. Atitude frente à morte. Cuidado paliativo.Trabalho vivo em ato.

(a) Departamento de Saúde e Sociedade , Universidade Federal Fluminense. Rua Marquês do Paraná, 303, 3º andar, Prédio Anexo ao HUAP, Centro. Niterói, RJ, Brasil. 24033-900. magdaschagas@ gmail.com (b) Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgico, Universidade Federal Fluminense, Niterói. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. abrahao@vm.uff.br

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Introdução Atualmente, o nascer e o morrer são questões presentes no processo de trabalho em saúde, tendo o espaço hospitalar como cenário privilegiado. No entanto, foi a partir do século XVIII que este local, antes destinado ao atendimento assistencial para pobres, torna-se um local de nascer e morrer com a presença do saber clínico e da disciplinarização1. Esse movimento para dentro do hospital repercutiu profundamente na maneira de a sociedade ver e relacionar-se com a doença, o doente e o resultado deste processo. Se antes havia alguma autonomia das famílias no tratar um doente, suas dores e a possível morte, a partir da entrada da medicalização neste cenário, a relação de dependência foi se estabelecendo, consolidando-se, e está presente até os dias de hoje. A maneira como a sociedade passou a reconhecer a morte tem grande relação com esse espaço onde ela passou a ocorrer: o espaço hospitalar. Desta forma, quando Kóvacs2 aponta que “a sociedade ocidental insiste no caráter acidental da morte: acidentes, doenças infecções e velhice adiantada” (p. 39), a morte fica despojada do caráter de necessidade como processo vital. Nossa sociedade não sabe o que fazer com os mortos, com estes estranhos corpos que pararam de produzir; e o que deveria ser visto como natural passa a ser clandestino e jogado para o fundo da consciência. Algo que se faz presente, também, no modo como o trabalho em saúde opera nos hospitais, isolando, afastando, no silêncio das enfermarias, o processo de morrer. Elias3 considera que não é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas para os seres humanos. Para o autor, a morte é um dos grandes problemas biossociais na vida humana, uma vez que é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social. Por outro lado, existe uma ambiguidade explicitada pela fuga, vontade de esquecer e uma atração pelas notícias diárias de TV, jornais, filmes, além da morte cotidiana nas ruas, que atrai repetitivamente a proximidade de ‘curiosos’. Morin4 fala da dualidade que vive o ser humano em relação à morte ao se deparar com a consciência do fato da morte e a crença na imortalidade, isto a partir da afirmação da individualidade. A “dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto estiver presente e reconhecida: quanto mais o morto for próximo, íntimo, familiar, amado, respeitado, mais violenta a dor”4 (p. 32). Por mais reações negativas que se possa ter com a morte, ela mantém presença nas reflexões e, por que não dizer, na busca de sentido para a vida. Ao falar da morte é necessária atenção2, já que existe a morte final de vida e as tantas mortes que vivenciaremos no processo evolutivo (mortes parciais ou totais nas áreas somática, mental e social, perdas, separações, mudanças, saída de casa de um filho, etc.). Ou ainda, o que a experiência com a morte e o morrer deixa impregnada em cada um de nós e que será responsável pela nossa interpretação e vivências com as outras tantas mortes. As questões acima estão relacionadas com a maneira que escolhemos viver ou não viver o processo de morrer. Quando voltamos os olhos com mais atenção para os serviços de saúde, essas perguntas encontram-se acompanhadas pela conjuntura atual da sociedade, de como o modo de produção para acúmulo de capital encontra-se dependente das inovações tecnológicas, que são incorporadas cotidianamente nas ações de cuidado no campo da saúde. Neste sentido, o trabalho na saúde, apesar de não possuir características de um trabalho industrial, sempre sofreu e sofre influências das organizações produtivas hegemônicas no contexto da organização capitalista. De acordo com Pires5, mesmo com alguns momentos artesanais, o trabalho em saúde já se encontra compartimentalizado, e isso nos remete ao “fatiamento do usuário”, em atos de separação e clivagem do cuidado, do apartar vida e morte no processo de trabalho em saúde. No desenvolvimento das atividades diárias no mundo do trabalho, o trabalhador da saúde pode exercer protagonismo/liberdade ou protagonismo/reprodução, traduzidos como trabalho vivo ou trabalho morto, respectivamente, neste processo. Aproximando-nos desta intensa ação, podemos perceber que o “[...] momento do trabalho em si expressa de modo exclusivo o trabalho vivo em ato. Esse momento é marcado pela total possibilidade de o trabalhador agir no ato produtivo com grau de liberdade máxima”6 (p. 45). Operar sobre o trabalho vivo em ato7 é exatamente o trabalho no exato momento de sua execução, a produção do cuidado, um processo de intenso consumo de tecnologias. Tecnologias de 858

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diferentes tipos que interagem no modo de produzir o cuidado. Dependendo das formas e modos do uso das tecnologias, o processo de trabalho é mais ou menos criativo, centrado nas relações interpessoais, preso a normas e protocolos ou guiado pela lógica das máquinas. Neste caso, é possível reconhecer três tipos de tecnologias7 no trabalho em saúde: leve; leve-dura e dura, correspondendo às relações interpessoais, normas e equipamentos, respectivamente. Podemos considerar que o trabalho vivo opera com protagonismo no processo de trabalho no campo da saúde, ganhando formas distintas de acordo com a necessidade do usuário e a oferta do trabalhador, um movimento intenso que acompanha o nascer e o morrer. Assim, duas perguntas acompanham a elaboração deste artigo: Por que, no processo de trabalho em saúde, produzimos modos de evitar, camuflar, desconsiderar o que nos acompanha e acompanhará eternamente, a existência da morte? Será que a morte não nos traz nada além da dor, o sentimento de vulnerabilidade e finitude?

Metodologia Na tentativa provocadora de construir argumentos às questões lançadas neste artigo, nos propusemos um caminho metodológico que articulasse o trabalho vivo em ato e a morte, tomando como orientação a pesquisa qualitativa do tipo descritiva. Lançamos mão de explorar o banco de dados, no período de novembro de 2015 a janeiro de 2016, da pesquisa nacional “Implantação de atenção domiciliar no âmbito do SUS - modelagem a partir das experiências correntes”8, finalizada no ano de 2008. O desenho deste estudo toma como norte a investigação qualitativa, pois se apoia no pressuposto de que as sociedades são constituídas de microprocessos, em que a realidade não se configura como uma unidade maciça, mas “uma multiplicidade de processos sociais que atuam simultaneamente, em temporalidade diferenciadas, compondo, esses sim, uma totalidade”9 (p. 34). Neste sentido, para investigar – Por que, no processo de trabalho em saúde, produzimos modos de evitar, camuflar, desconsiderar o que nos acompanha e acompanhará eternamente, a existência da morte? Será que a morte não nos traz nada além da dor e o sentimento de vulnerabilidade e finitude? –, nos parece adequado o estudo qualitativo, por permitir explorar a realidade a partir de um processo com suas multiplicidades e várias composições. Optamos pelo desenho descritivo, por ele permitir a exposição, com exatidão, dos fatos e dos fenômenos de determinada realidade, podendo estabelecer relações entre as variáveis9; e, neste processo, construir argumentos que articulem o trabalho vivo em ato com a morte no processo de trabalho em saúde. Os participantes do estudo foram profissionais da saúde de formação interdisciplinar, usuários/ pacientes e familiares de um serviço de Cuidado Paliativo (CP) ligado à atenção domiciliar. Neste artigo abordaremos a perspectiva dos profissionais da saúde, cuja participação foi efetuada mediante leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, conforme Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi aprovada com o número 233/05 do CEP; o anonimato dos participantes foi garantido, e os critérios de inclusão dos profissionais foram: indivíduos que trabalhavam por mais de um ano e que participavam de atividade de atendimento aos usuários/ pacientes e familiares. Todos os participantes foram voluntários no estudo. As técnicas de coleta de dados empregadas foram: a observação participante e a entrevista. Na primeira, nos guiamos pelo emprego de todos os sentidos para examinar o evento, no seu contexto, e descrevê-lo. Esta técnica implica a necessidade de o pesquisador estar distante e próximo, ao mesmo tempo, das questões investigadas. Neste estudo foi confirmada que está ultrapassada a ideia de neutralidade do pesquisador. Trata-se, aqui, de construir mecanismos para avaliar os efeitos e as implicações do pesquisador no campo. O registro dos dados da observação participante foi realizado em diário de campo. As entrevistas seguiram como uma conversa informal sobre o processo de trabalho do profissional de saúde diante da morte; foram realizadas nos locais de trabalho dos participantes, gravadas com o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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auxílio de um gravador mp3 player, e transcritas na íntegra. A forma de abordagem foi definida pela aproximação estabelecida da pesquisadora com os participantes da pesquisa. O material coletado e armazenado no banco de dados da pesquisa possibilitou definir mais claramente o processo de trabalho articulado ao trabalho vivo em ato e a morte. Este material foi analisado e correlacionado com os registros da observação participante, com destaque para as reações, expressões e dinâmicas dos profissionais observados e as entrevistas que foram transcritas. Para garantir a privacidade e o anonimato dos envolvidos na pesquisa, foram criados nomes fictícios para os profissionais que tiveram trechos de entrevistas aqui apresentados. A análise foi realizada com o emprego da Análise de Conteúdo Temática. As fases da realização da Análise de Conteúdo adotadas para este estudo foram: a) A transcrição das entrevistas que constituem “o corpus da pesquisa e que foi submetido aos procedimentos analíticos”10 (p. 122); b) A leitura flutuante e globalizada dos dados – anotações do diário de campo e entrevista; c) A exploração do material por meio da codificação, efetuada por “recorte do texto em suas partes, para serem categorizadas e classificadas com vistas a uma decodificação do significado das partes em relação com o todo, permitindo atingir uma representação do conteúdo, ou de sua expressão”11 (p. 129). Em seguida, pela categorização – que é uma operação de classificação de categorias, as quais reúnem um grupo de unidades de registro sob um título genérico, agrupamento esse efetuado em razão das características comuns destes elementos10. Nesse estudo, o critério de categorização foi o semântico, ou seja, a significação. O tratamento dos resultados obtidos e a interpretação foram processados conforme as questões estabelecidas e a discussão com a literatura existente. Após interpretação, foram identificadas as linhas convergentes ou contrárias, ou seja, resultados similares ou contraditórios e, a partir dessas evidências, procedeu-se à análise12, que comportou a criação de duas categorias: Morte sob cuidados e Existe Vida Trabalhando com a Morte (?), que permitiram explorar a multiplicidade dos processos de trabalho vivo em ato e morte que atuam simultaneamente, em temporalidades diferenciadas, compondo a totalidade do cuidado em saúde.

Resultados/discussão A análise dos dados explorou o conteúdo das entrevistas e do diário resultado das observações que estavam contidas no banco de dados da pesquisa, apresentado abaixo em duas categorias.

A morte sob cuidados Essa categoria tem forte relação com a ideia de que a morte, presente na vida das pessoas, passou a ser ‘guardada’ nos hospitais com o desenvolvimento das sociedades, sobretudo a ocidental. Este processo nos remete à discussão sobre o processo de morrer e o local da morte. A análise do diário de campo (observação participante) aponta para a construção de um novo espaço que a produção do cuidado, do ‘trabalho vivo em ato’, construído pelas equipes de CP, do serviço estudado ou em serviços que trabalham diretamente com a morte e o processo de morrer, pois externaliza a complexa possibilidade de relação interpessoal entre profissionais da área da saúde, cuidador e paciente. Os profissionais se colocam diante da finitude, vivenciam e cuidam das pessoas no momento, no processo ainda temido pela humanidade, a morte13. Neste processo, de forma inesperada, expressam vida, vivências, apostas, desejos, sofrimentos dos próprios profissionais e dos outros. Como podemos ver no destaque abaixo e nos que surgirão no corpo deste texto. “[...] Hoje em dia eu penso muito mais em minha morte, do que eu pensava antes. Eu tenho medo do sofrimento, hoje está claro, para mim o que é morte... Mas eu sei separar morte e sofrimento, e tenho medo de sofrimento”. (Destaque de fala do trabalhador da saúde - João)

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“[...] Eu sei que eu gosto do meu serviço gosto de ajudar as pessoas, e eu não gosto de ver ninguém sofrendo! Eu acho que ninguém gosta! Então eu acho que cada vez que um paciente precisa de mim, eu me sinto bem com o meu serviço e saio muito bem por ele não precisar ir pro hospital”. (Destaque de fala do trabalhador da saúde - Pedro)

Uma via de mão dupla é criada e vivenciada sem que os construtores se percebam construindo o caminho em ato, ali naquele momento, passos, corpos, tudo em envolvimento. O desnudar-se ocorre entre as pessoas que se relacionam, alguns mais e outros menos, como em tudo na vida. Durante a observação participante foi possível identificar que o usuário, ao se mostrar vulnerável, ao se desnudar, provoca e possibilita o desnudar do profissional, seja em que grau for e, quem sabe, sendo seu facilitador num processo de autoanálise, como descrito nos trechos das entrevistas aqui destacados. “[...] Eu passei por várias crises... O que você faz com os sentimentos? Primeiro é duro assumir alguns sentimentos, pois têm alguns pacientes que gera raiva!! Eu achava: Imagina, eu ter raiva do paciente!? Nossa que tipo de profissional que eu sou?!...Porque tem paciente que causa, que são agressivos com você, tudo que você faz não está bom...E pensa que vai ficar bonzinho? Que nada, vai ficando pior!! Então tem paciente que gera raiva em você! Foi difícil aceitar isso!(...) Então assim, hoje eu aceito mais os sentimentos das pessoas, né?! E sei contornar a situação. Se o paciente me gera muita tristeza eu choro mesmo... Eu me permito ter sentimentos. Não dá para eu ver uma mãe que perdeu uma criança de 2 ou 3 anos chorando do meu lado e eu ficar, lá...Imagina, se fosse comigo? Eu queria matar todo mundo, se não quisesse me matar! Então eu me permito mais, hoje, ter sentimentos, né?!” (Destaque de fala da trabalhadora da saúde - Mariana)

Para Vasconcelos14, o trabalho em saúde enfrenta problemas complexos, carregados de múltiplas dimensões, em que o conhecimento científico tem respostas apenas para alguns aspectos e a razão é insuficiente para lidar com toda essa complexidade, exigindo, também, a intuição, a emoção e a acuidade de percepção sensível. Considerando que, para cuidar inteiramente de uma pessoa, é preciso estar presente como pessoa inteira, é preciso ter desenvolvido e integrado, em si, as dimensões racional, sensitiva, afetiva e intuitiva, sem o que a experiência de vulnerabilidade e dor dos pacientes tornar-se-á opressiva e sofrida, obrigando-os a se protegerem com uma série de mecanismos de defesa. A modalidade cuidado paliativo possibilita a revisão do envolvimento entre profissional e usuário, envolvimento esse falado e, com frequência, excluído do cuidado a partir das escolas de formação. Algo que penetra nos espaços terapêuticos, onde a pessoa que se envolve, com frequência, não é vista como ‘profissional’, onde outras dimensões do cuidado, para além da técnica, são pouco valorizadas pelos próprios profissionais de saúde15. Cassorla16, ao tratar da necessidade de acompanhamento no momento “da passagem para morte” (p. 15), afirma que “tecnologia, máquinas e objetos concretos, frutos de nossa sociedade moderna, não são suficientes para que a humanidade viva melhor. Seres humanos não podem viver sem a ajuda de outros seres humanos, em todas as circunstâncias vitais, e principalmente, em momentos-chave, como a Morte” (p. 15). Gleizer17, ao escrever sobre Espinosa e a afetividade humana, refere que, para aquele filósofo, “o corpo humano é um indivíduo extremamente complexo, sendo composto de vários corpos, cada um dos quais também muito composto. Graças a essa complexidade, ele é apto a afetar e a ser afetado de diversas maneiras pelos corpos exteriores, sendo capaz de reter as afecções, isto é, as modificações nele causadas por essas interações” (p. 22). “[...] Então você vivencia muito dentro da doença né?! Só de aprender a respeitar a hora que ele não queria mais “Por favor não faz mais, agora eu quero morrer, enquanto você tiver me

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salvando você vai tá eliminando a possibilidade da minha morte”. Então quando eu ouvi isso de alguém, que estava realmente preparado muito pra morte, né?! Aí eu passei a achar melhor não fazer nada. (...) Se não fizer bem eu me limito a não fazer, a respeitar a vontade do paciente, que isso é direito. Na realidade o que aquele paciente queria, pra mim, foi que ele queria morrer, que eu deixasse ele morrer”. (Destaque de fala da trabalhadora da saúde - Shirley)

Existe vida trabalhando com a morte (?) Ao se proceder a análise do material do banco de dados (entrevistas e o diário com as observações sobre o trabalho da equipe), observou-se que, como a filosofia registra, ver a morte, refletir sobre a morte faz a pessoa deparar-se com sua própria finitude, fragilidade, mortalidade. Desta forma, a experiência direta com o processo de morrer provoca, nas pessoas que trabalham diretamente com a morte, autoconhecimento, aprendem a lidar com imagens e histórias carregadas de simbolismos que expressam de forma sintética: dilemas, aprendizagem, medos e anseios presentes na profundidade do psiquismo. Este processo dependerá da disponibilidade de cada pessoa, da decisão de entrar em contato consigo e com o ‘eu’ do outro, mas, caso decidam por isto, caso decidam entrar em um diálogo mais profundo com os pacientes, irão confrontar-se cotidianamente com a vulnerabilidade humana, e terão de lidar com a dualidade que lhes foi imposta por meio do modelo biomédico. Romper com esta dualidade e vivenciar o drama e a existência humana de quem cuida é um grande desafio7. “[...] A morte, ela é assim pra mim...O que a gente tem falado... Você tem medo da morte? Não, eu não tenho medo da minha! Eu tenho medo das pessoas que eu gosto. Então assim, esse é o problema! Como as pessoas falam, “O pessoal da CP...Ficam todos contentes quando o paciente morre. Aí que horror! Lá fica todo mundo alegre!” Mas gente, o sofrimento é tão grande, tão grande que realmente você fica aliviado quando o paciente vai a óbito! Eu fico com dó é da família. É lógico! Mas quando ele vai a óbito não! Graças a Deus! Não pelo trabalho que ele deu, mas pelo sofrimento como ser humano. A gente tenta diminuir o que a gente pode, mas esse sofrimento da perda dos familiares, essa relação da equipe...A gente vai ficando muito próximo, não tem como você fazer cuidado paliativo sem se aproximar, sem se envolver, sem se colocar no lugar”. (Destaque de fala da trabalhadora da saúde - Mariana)

O depoimento acima destaca o sofrimento com a morte não como algo escondido, mas uma aproximação efetiva do trabalhador com o processo de morrer e a família. O lugar do sofrimento se reverte em alívio, um alívio consciente de que a vida, o processo do trabalho vivo em ato, amplia as possibilidades de produção do cuidado. “[...] Eu não pensei em me proteger (do contato com paciente), isso é um problema dele. A gente também encontra outros aí também. Porque eu acho que é um amigo que eu vejo. Ali eu não vejo um paciente só. Tanto que a amizade vem. Então é uma coisa, você procura se defender de um amigo?! É um contato permanente”. (Destaque de fala do trabalhador da saúde - Pedro)

Para Foucault, de acordo com Ortega18, a amizade é a soma de todas as coisas mediante as quais se pode obter um prazer mútuo, e o fato de a amizade ter sido abandonada na modernidade foi por ela desempenhar tarefas sociopolíticas. No entanto, a amizade que existia na antiguidade era um tipo de relação institucionalizada, que não deixava espaço para experimentação, além de ser utilizada na coação, sistemas de tarefas e obrigações. “A ética da amizade aponta para a intensificação da experimentação. A experimentação como fundamento ético concentra-se na percepção e no aumento do prazer próprio e do outro”. “A amizade representa uma saída para o dilema entre uma saturação de relações surgidas da dinâmica da modernização e uma solidão ameaçadora” (p. 167).

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O vínculo19 entre profissional da saúde e usuário é visto como modelador e facilitador do cuidado, uma vez que, nesse processo, é possível estabelecer uma relação de corresponsabilidade sobre o plano terapêutico. Uma maneira de operar e ‘trabalhar’ a questão do vínculo. Aqui o vínculo, unido ao contato físico e ao toque, ganha a dimensão dos humanos em contato. Não é necessário deixar de pensar no vínculo como modelador e facilitador do cuidado no seu aspecto ‘negativo’, se é que podemos ou devemos pensar dicotomicamente, mas o toque traz, ao vínculo, uma outra dimensão que lança, remete e aproxima. Uma tecnologia leve nem sempre incluída nos processos terapêuticos, do cuidar. Uma ligação afetiva que necessita de uma comunicação efetiva. Para que ocorra, para que se estabeleça o vínculo, é primordial a aceitação do outro como legítimo e portador de autonomia. “[...] Você acaba tendo o contato físico né?! Que é essa coisa da apalpação, do pegar, do tocar no paciente ele acaba inevitavelmente virando pra você um grande prazer e ele acaba te envolvendo. Esse paciente, até onde tu consegues, lógico né!? Até onde tu pode e é permitido. Mas a gente acaba se envolvendo muito com ele, eu trabalho muito com isso”. (Destaque de fala da trabalhadora da saúde - Silvia)

Profissionais da saúde que, no trabalho, constroem vínculos e amizades com usuários e familiares, encontram-se em franco uso de tecnologia leve. Assim, referente às tecnologias no trabalho em saúde (tecnologia leve, leve-dura e dura), é possível observar que os trabalhadores dos cuidados paliativos encontram-se envolvidos, operando com muita frequência as tecnologias leves, e transitam com facilidade em campos tão excluídos pela ciência como no caso da espiritualidade, religião, toque, envolvimento, afetividade15. “[...] São 10 anos de profissão. Eu já passei por todos os lados e não tem comparação! Quando você tá ali do lado de um doente que tá morrendo a gratificação é muito maior. Você leva, sabe? Aquilo dele! Você tem um instante assim, o finalzinho. Sabe assim, quando o ser humano ele fica tão aberto, tão assim vulnerável que você consegue assim descobrir tudo dele. É assim que ele fica, ele fica vulnerável, fica um pedacinho de gente. Sabe? Com todos os defeitos, todas as qualidades. Então você consegue pegar isso dele e consegue aprender muito mais com essa mulher que tá com problema, que tá com depressão”. (Destaque de fala do trabalhador da saúde - João)

O trabalho executado pelos profissionais da equipe de CP, embora em uso de tecnologias leve-dura e dura, com muita frequência difere do dia a dia de tantos outros profissionais. Eles redescobrem novos espaços e, ao reinventarem caminhos, fazem, na realidade, o que discutimos e idealizamos na atenção à saúde nos microespaços. Como diante do viver a autonomia do usuário/paciente diante da morte, ao aceitar o direito de a pessoa participar e/ou direcionar seu processo de cuidado, o profissional, mais uma vez, é posto diante de um desdobramento e, assim, busca respostas em perguntas não preparadas. A dificuldade de presenciar a primeira morte e perceber a necessidade de respeitar não apenas a vontade do paciente, mas reconhecer o próprio limite do seu agir profissional, foi relatado por um dos profissionais. A dificuldade de deixar morrer, de saber que o uso de uma técnica, um procedimento, impediria a morte de acontecer, respeitar o pedido do paciente e deixá-lo partir, entrar em confronto direto com a onipotência que pensa ter nas mãos. A onipotência de dar a vida-levar à morte. “[...] Mas antes eu tinha uma certa resistência com relação a deixar morrer. Eu entrei no CP eu acho que a 2 anos. Demorei 2 anos pra entender que nem todo paciente é possível fazer alguma coisa. [...] Que a minha característica pessoal de querer salvar todo mundo acabou se modificando, porque eu tinha assim uma necessidade, aquilo pra mim era uma coisa assim dificílima, não aspirar um paciente, não fazer alguma coisa enquanto ele tava ali

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ainda precisando de mim sabe? [...] Eu briguei muito com a minha consciência, com a minha espiritualidade com o meu profissionalismo, esse meu jeito de ser, pra poder lutar contra isso. Hoje eu deixo morrer, se precisar entendeu? Mudou minha visão um pouco quanto a isso! Não que eu não sofra com isso, sofro, mas ainda tô em aprendizagem, tô aprendendo com isso ainda. Mas me causa um “baque” bem grande quando eu perco um paciente. (Destaque de fala da trabalhadora da saúde - Silvia)

É importante destacar que, mesmo com experiências profissionais anteriores, estes trabalhadores não receberam preparação, nem nos locais de formação, nem nos espaços de trabalho, de como lidar com esse componente especial e comum que é o compartilhar, vivenciar relações, relacionamentos humanos diretamente interligados no trabalho que executam. O despreparo para lidar com a ‘dor emocional’, com o sofrimento do outro e com sua própria dor é reflexo do modelo assistencial que ainda é empregado, o modelo biomédico newtonianocartesiano. Neste modelo, o corpo é considerado uma máquina com suas peças analisadas e o papel dos profissionais que trabalham na saúde tem sido o de intervir física e quimicamente. Nesta perspectiva, a vida entendida globalmente não desperta interesse do modo científico de conhecimento que só se ocupa com o que é mensurável. Esse padrão de pesquisa e trabalho em saúde tornou-se hegemônico e instrumento aceito como legítimo de compreensão da vida e de definição dos caminhos de organização da sociedade, reduzindo as percepções oriundas dos sentimentos, da intuição, da inspiração poética e da vivência religiosa. Ao centrar o cuidado somente na proposta da ciência hegemônica, ao privilegiar e priorizar o uso de equipamentos, em detrimento do conhecimento da complexidade de viver e sentir daquele a que se atende, este modelo deixa de incorporar o que individualiza, deixa de levar em consideração que o processo terapêutico é uma trama também de agir-sentir. Kóvacs20 cita Kubler-Ross quando essa aponta, como uma necessidade de desenvolvimento nos profissionais, a compaixão, para todos os que trabalham na área da saúde, tendo a compaixão a capacidade de ‘curar’ qualquer coisa. Kubler-Ross21 considera que “se pudéssemos ensinar aos estudantes o valor da ciência e da tecnologia, ensinando a um tempo a arte e a ciência do inter-relacionamento humano, o cuidado humano e total ao paciente, sentiríamos um progresso real” (p. 22). Além do preparo para trabalhar com esse campo tão velho e tão novo, foi possível observar que o trabalho com a morte deixa marcas nos profissionais. Marcas que merecem ser olhadas de perto, acolhidas e processadas em equipe. Uma atividade vivenciada por equipes de saúde mental, nos espaços de supervisão/apoio, mas que, para outros trabalhadores em saúde, existe pouca oferta. O trabalho vivo em ato com a morte é a explicitação da possibilidade de incorporação de outro campo de tecnologias, o encontro de pessoas nas relações. Destaca-se um entregar-se. Como se a proximidade com a morte, mesmo do outro, este viver constante a vulnerabilidade e fragilidade humana, tocasse tanto que rompesse a linha tênue entre o ser profissional e ser pessoa. A morte e o processo de morrer operam aqui como revitalizadores da vida, das relações, da importância do contato humano. Trabalhando com a morte e com o processo de morrer, esses profissionais depararam-se com questões que continuam sendo marginalizadas pelo corpo social que resiste à reflexão sobre a finitude humana. No entanto, para eles, esta questão é latente. Pensar sobre a morte do outro provoca um desdobramento praticamente incontrolável sobre a sua própria condição de ser finito. Os profissionais observados expressaram a importância primordial de manter alegria e bom humor. Não como algo forçado, mas como expressão de vida, como necessidade, como momento de respiro para continuarem a caminhar entre as dores e os sofrimentos de quem eles cuidam, mas sem deixarem de ter e cultivar a leveza. Para Daniel Lins22, “sentir-se alegre, encontrar com a alegria é da ordem do encontro”, no entanto é difícil ficar feliz se a consciência for mantida. Para esse filósofo, “a alegria deve ser produtora da inconsciência e a pessoa perdendo a consciência perde os órgãos”. Perder os órgãos é ausência dos sistemas, é dar um tempo do corpo que é totalmente controlado pelo organismo. Nesse caso, estão no organismo os afetos negativos, as tristezas, e, na presença deles, é difícil ser feliz. O papel da alegria 864

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não é negar a morte, e sim conseguir, na realidade da morte, “trabalhar o saber morte com o sabor alegria”. “Pensar sobre a morte com afecções tristes é preguiça de ser feliz, de ser alegre”. A preguiça está presente porque a existência do outro prova que não estou sozinho, provoca reflexão já dada pela imprensa-imitação. A alegria é uma construção social e desejante, a alegria não está dada, ela é uma conquista, uma construção. Na construção do caminho, que se faz caminhando, o respeito às crenças do paciente/usuário surge em muitas falas e, neste caso, independe se o profissional pratica ou não alguma religião. A expressão de quem trabalha na equipe de CP refere-se a respeitar o movimento da pessoa e da família quando o movimento existe; ou tentar oferecer algo que os acompanha, que pode ser denominado de espiritualidade, religião, fé ou, simplesmente, Deus. De posse de conhecimentos que a vivência lhes apresentou, ou agindo como gostariam que fizessem com eles, operam e carregam o respeito às crenças como dispositivo para ajudar no manejo/cuidado do doente e diminuição do sofrimento da família.

Conclusão Nesse estudo, os profissionais que trabalham com pessoas que têm a morte anunciada operam não apenas, mas primordialmente, com as tecnologias leves, rompem com a situação, o lugar comum do morrer, e operam com a força do trabalho vivo. Uma vez que relações, sofrimentos, alegrias, autoconhecimento a partir do viver com o outro a dor, a angústia, a compaixão, a solidariedade, ofertar o corpo e a mente como instrumento do cuidado se exacerbam nestes profissionais, transformando, ou melhor, configurando esse modo de assistir como substitutivo às práticas operadas pela lógica do cuidado centrado no modelo biomédico. O trabalho da equipe de cuidados na morte reside na maneira com que vivenciam seus sentimentos e as novas experiências de autoconhecimento que trabalhar com a morte lhes proporciona. O que para muitos é dor, para eles, não deixa de ser, mas entram em contato, vivem a dor externa e interna, e continuam observando, cuidando respeitosamente da pessoa que morre. O trabalho vivo em ato dos profissionais estudados, produz um complexo e denso espaço de viver a vida daqueles e com aqueles que cuidam, sem deixar de lado o trabalho morto que também utilizam. Os trabalhadores do cuidado paliativo apresentaram descobertas e redescobertas, reconheceram e denominaram a importância de respeitarem os espaços do outro, o espaço autonomia, individualidade, pessoa, o espaço diferenças respeitadas e o espaço doméstico. Propuseram-se viver, aprender e apreender com: a alegria, tristeza, sofrimentos, perdas, ganhos, novas amizades, novas perdas, novos ganhos, autoconhecimento, reflexão. Viveram a morte não se furtando à vida. No processo de viver a morte do outro, refletiram sobre sua própria morte, suas fragilidades, vulnerabilidades, sua inserção profissional e no mundo. Produziram um novo sentido para o que é clandestino, e trataram a morte como um movimento natural da vida, mesmo diante da terminalidade. A cada dia, a cada novo contato, recriam a intensa experimentação da existência de vida no território da morte.

Colaboradores MS Chagas participou da concepção do projeto, realizou o trabalho de campo da pesquisa, discussão dos resultados, a revisão e aprovação da versão final do artigo. AL Abrahão participou da discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do artigo.

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Chagas MS, Abrahão AL

Chagas MS, Abrahão AL. Producción de cuidado en salud centrado en el trabajo vivo: existencia de vida en el territorio de la muerte. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):857-867. La muerte y la vida son dimensiones presentes en el proceso del trabajo en salud y son atravesadas por la forma en que la sociedad se relaciona con la enfermedad, con el enfermo y con el resultado de este proceso. En este artículo, partimos de una investigación cualitativa con un equipo de cuidados paliativos, con el objetivo de problematizar lo siguiente: ¿por qué en el proceso de trabajo en salud producimos modos de evitar, camuflar y desconsiderar lo que nos acompaña y acompañará siempre que es la muerte? ¿Será que la muerte no nos proporciona nada que no sea el dolor, el sentimiento de vulnerabilidad y la finitud? Construimos argumentos que articular el trabajo vivo en acto con la muerte en el proceso de trabajo en salud y concluimos que los profesionales que participaron en el estudio emplearon el trabajo vivo en acto a partir de un complejo y denso espacio de vivir la vida incluso delante de la muerte.

Palabras clave: Muerte. Asistencia centrada en el paciente. Actitud ante la muerte. Cuidado paliativo. Trabajo vivo en acto.

Submetido em 13/04/2016. Aprovado em 27/10/2016.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0649

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Denise Stefanoni Combinato(a) Sueli Terezinha Ferrero Martin(b)

Combinato DS, Martin STF. Vital needs in the dying process. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):869-80.

Due to the aging of the population and the increase in Non transmissible chronic diseases, the Family Health Strategy (ESF) is progressively facing the needs of people undergoing the dying process. By analyzing the work of health practitioners taking care of people who are dying, the aim of this paper is to discuss health needs through this process, in order to give support to those who work in this area in Primary Health Care. Eleven nurses and physicians linked to the ESF in Campinas, SP were selected for the interview after answering two questionnaires. Data analysis followed the theoretical and methodological framework of the historical-cultural Psychology. Results show that patients and families’ needs are not restricted to the particular life moment of the proximity to death, but also are related to social vulnerability conditions.

Keywords: Primary health care. Palliative care. Historical-cultural psychology.

Em função do envelhecimento populacional e aumento de doenças crônicas não transmissíveis, a Estratégia Saúde da Família (ESF) tem se deparado com as necessidades das pessoas em processo de morte. A partir da análise do trabalho de profissionais da saúde que cuidaram de pessoas em processo de morte, o objetivo deste artigo é discutir as necessidades de saúde nesse processo, a fim de subsidiar o trabalho com essa população, especialmente na Atenção Primária à Saúde. Participaram da entrevista, após serem selecionados por dois questionários, onze profissionais (enfermeiros e médicos) da ESF de Campinas/SP. A análise de dados foi pautada no referencial teóricometodológico da Psicologia históricocultural. Como resultado, tem-se que as necessidades dos pacientes e familiares não são restritas ao momento de vida (proximidade da morte), mas referem-se, também, às condições de vulnerabilidade social.

Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Cuidados paliativos. Psicologia históricocultural.

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* Artigo derivado de: Combinato DS. Cuidados no final da vida: análise do processo de trabalho na Atenção Primária [tese]. Botucatu-SP: Faculdade de Medicina de Botucatu; 2011. (a) Seção de Orientação Educacional e Departamento de Humanidades, Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Praça Marechal Eduardo Gomes, 50, ITA, sala 2207. São José dos Campos, SP, Brasil. 12228-900. denisesc@ita.br (b) Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (Unesp). Botucatu, SP, Brasil. stfm@fmb.unesp.br

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Introdução O trabalho é um processo que visa atender a necessidades1; então, para compreensão do trabalho em saúde, é preciso caracterizar as necessidades em saúde. Campos e Bataiero2 definem necessidade como aquilo “que precisa ser satisfeito para que a vida continue” (p. 607). De acordo com a Lei n. 8.0803, “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (art. 2), sendo que, para atender às necessidades de saúde, é preciso intervir nos determinantes e condicionantes do processo saúde-doença. Schraiber e Mendes-Gonçalves4 afirmam que a necessidade é o resultado das intervenções sobre os carecimentos que os indivíduos apresentam quando buscam algum cuidado em saúde. Há uma circularidade entre a produção, a distribuição e o consumo de serviços. Essa circularidade e as relações entre o individual e o social constituem algo problemático já que resultam de processo histórico e não escapam, portanto, das determinações da sociedade. O objeto do cuidado, tanto quanto as necessidades, não é natural. Na medida em que o homem é determinado historicamente, o corpo como objeto da Medicina5 (e poderíamos acrescentar outras áreas) não se reduz ao corpo anatomofisiológico; é um corpo social. Para atender às necessidades de saúde da população, portanto, o trabalho em saúde não pode ser definido com base em sujeitos abstratos. É preciso “tomar como objeto do processo de trabalho as necessidades dos indivíduos das diferentes classes sociais, que habitam um determinado território, e encaminhar a política pública de saúde na direção do direito universal”2 (p. 607). Considerando o princípio da integralidade presente no SUS e a perspectiva de continuidade do cuidado na Estratégia Saúde da Família – ESF/Atenção Primária à Saúde – APS(c), entendemos que a compreensão de integralidade do sujeito, dos serviços e dos cuidados deve incluir, necessariamente, o cuidado do sujeito em todas as fases da vida, inclusive no final. A APS orienta-se pelos princípios da “coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social”6 (p. 10). Pesquisas apontam a importância das ações da APS, em consonância com tais princípios, no que se refere aos cuidados no final da vida, como, por exemplo, a continuidade da assistência7 e o acompanhamento domiciliar, garantindo o controle de sintomas e a dignidade no processo de morte8. A partir da análise do trabalho de profissionais da saúde que atuam na APS/ ESF e que já cuidaram de pessoas em processo de morte (pessoas com doença incurável, progressiva, irreversível e em estágio avançado), o objetivo deste artigo é discutir as necessidades de saúde que se apresentam no processo de morte, a fim de subsidiar o trabalho com essa população, especialmente na APS.

Metodologia Selecionou-se um município e profissionais que fossem referência na área, entendendo que a análise de determinado fenômeno deve partir da sua forma mais desenvolvida9. Os critérios de seleção do município foram: ter a ESF como ação consolidada e indicativo de realizar cuidados no final da vida na ESF/APS. Os

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A ESF é uma estratégia de reorientação da Atenção Primária no Brasil, iniciada em 1994, cuja responsabilidade é “desenvolver atividades [...] com base no diagnóstico situacional e tendo como foco a família e a comunidade”, numa perspectiva de continuidade do cuidado e de articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação, redução de danos ou de sofrimentos6. (c)


Combinato DS, Martin STF

(e) A maioria dos participantes tinha acima de quarenta anos (média quarenta anos) e estava vinculada à ESF ou APS há mais de oito anos (média 11 anos), sendo três médicos com vínculo superior a vinte anos. Oito tinham especialização na área ou estavam cursando especialização em Saúde da Família na Unicamp, em cogestão com o município de Campinas e financiamento do Ministério da Saúde. Apenas uma participante (recém-formada, que não era concursada pela Prefeitura) não tinha e não estava cursando nenhuma especialização. (f) Os principais temas abordados na entrevista foram: a formação e o preparo para lidar com pessoas em processo de morte, as diretrizes para o atendimento dessa população no CS e as atividades desenvolvidas. (g) Vigotski foi um dos precursores da psicologia soviética (psicologia sóciohistórica ou históricocultural). Utilizaremos, neste artigo, a grafia Vigotski quando a referência ao autor estiver desvinculada de uma obra específica; e será mantida a grafia da publicação (Vigotski, Vuigotskij) nas citações e referências a uma obra.

critérios de seleção dos participantes foram: possuir nível Superior (enfermeiros, médicos e psicólogos)(d) e ter cuidado de pessoa no final da vida na ESF. Foram encaminhados trezentos e cinquenta questionários aos profissionais com nível Superior em Enfermagem, Medicina ou Psicologia de toda ESF do município, com objetivo de identificar, além dos interessados em participar voluntariamente da pesquisa, os profissionais que atendiam ao critério de inclusão de ter cuidado de pessoa no final da vida na ESF. Retornaram 151 questionários respondidos, sendo que 96 (63%) profissionais já tinham cuidado de pessoa em processo de morte na ESF. Considerando o número elevado de questionários que atendiam ao critério de inclusão e o interesse de 72 profissionais em participar da pesquisa, foi elaborado um segundo questionário com objetivo de verificar se a compreensão da expressão ‘pessoa em processo de morte’ correspondia à pessoa com doença incurável, progressiva, irreversível e em estágio avançado, e quais eram, em linhas gerais, as atividades realizadas pelos profissionais. Após o envio do segundo questionário a 72 profissionais, retornaram 19 questionários respondidos. Foram selecionados para entrevista os profissionais que tinham participado de todo o processo de cuidado, ou seja, aqueles que atuaram desde o diagnóstico até o momento da morte do paciente; e da família enlutada, inclusive após a morte. Foram entrevistados, individualmente, nos locais de trabalho ou em local indicado pelos participantes, 11 profissionais (quatro enfermeiras e sete médicos(e) do município de Campinas/SP, vinculados a oito Centros de Saúde (CS), sobretudo do Distrito de Saúde Norte. As entrevistas(f) foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Concluída a análise, fez-se uma devolutiva dos resultados ao grupo participante. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo município e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Ofício n. 349/08 de 01/09/2008 e Ofício n. 554/08, de 25/11/2008), atendendo à Resolução n. 196/9610. Fez-se análise qualitativa do material de acordo com princípios discutidos por Vigotski(g):

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(d) Tais critérios foram definidos em função dos seguintes fatores: 1) escolha de profissionais de nível Superior para identificar a formação sobre o tema tanatologia na graduação; 2) escolha de profissionais da Enfermagem e Medicina, por serem as profissões de nível Superior que compõem a equipe mínima da ESF, e profissões que atuam (ou deveriam atuar), mais proximamente, na APS, das pessoas que requerem cuidados no final da vida; e 3) escolha de profissionais da Psicologia, por ser uma profissão que tem (ou deveria ter) condições de oferecer subsídios, por meio da sua especificidade, para a formação de outros profissionais sobre o processo de morte, por intermédio, por exemplo, do apoio da Equipe Matricial na ESF.

A análise do processo, e não da coisa; a análise que descobre a ligação e relação dinâmico-causal real, e não a análise que decompõe os traços externos do processo, portanto uma análise explicativa e não descritiva e, por fim, a análise genética, que regressa ao ponto de partida e restabelece todos os processos de desenvolvimento de uma determinada forma, que, em seu aspecto presente, já aparece como uma fossilização psicológica. 11(p. 113)

A análise do processo, e não do objeto, orienta que a análise psicológica deve considerar os aspectos históricos e dinâmicos na constituição de um dado fenômeno. Os objetos não são estáveis ou fixos; eles têm uma história de desenvolvimento e podem se transformar. Analisar o significado de morte atribuído por nossa cultura atualmente, por exemplo, não é suficiente para a compreensão desse fenômeno. É preciso compreender os diferentes significados atribuídos pela cultura ocidental moderna ao longo da história e as determinações desses significados. Ariès12 explica que, até o século X, a morte fazia parte do ambiente doméstico; parentes, vizinhos, amigos e crianças despediam-se do moribundo

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que sabia que sua vida estava chegando ao fim. Além de se despedir, ele tinha a oportunidade de expressar seus últimos desejos, pedir perdão, receber a extrema-unção. Existia aqui o que Ariès12 denomina de “resignação ao destino coletivo da espécie” (p. 64). A partir do século XII, o ‘destino coletivo’ dá lugar à ‘preocupação com a particularidade de cada indivíduo’. Por meio da morte, o homem descobria sua individualidade ou tomava consciência de si. O terceiro período discutido pelo autor está relacionado à morte romântica, com manifestações de exaltação e dramatização da morte, não de si, mas do outro. Finalmente, a morte é deslocada para o hospital, onde é escondida e negada; moribundo e familiares vivenciam, de maneira solitária, os processos de morte e luto. Na terminologia utilizada pelo autor, a morte ‘domada’, que existiu até a metade do século X, foi substituída pela ‘morte de si mesmo’ no século XII, passando pela ‘morte do outro’ no século XVIII e, finalmente, chegando à ‘morte interdita’ no final do século XIX. Quando mencionamos que é preciso compreender as ‘determinações desses significados’, entramos no segundo princípio de análise: análise explicativa e não descritiva. Segundo Vigotski11, é preciso perguntar sobre o surgimento e seu desaparecimento, causas e condições, assim como as relações causais que constituem os fenômenos. Vigotski não desconsidera as manifestações externas do objeto, nem se limita à sua origem (ponto de vista genético). Ele se utiliza do enfoque ‘genético-condicional’ para considerar a esfera de possibilidades a que estão sujeitos os fenômenos. Por fim, o terceiro princípio rejeita os comportamentos automatizados ou os processos fossilizados. Para Vigotski, a análise deve regressar ao ponto de partida para entender o movimento de constituição do objeto, desnaturalizando os fenômenos. Em síntese, a análise caracteriza-se pela compreensão do processo histórico que constitui(u) o fenômeno em estudo (historicidade) – trabalho de profissionais da saúde que atuam na ESF e que já cuidaram de pessoas em processo de morte; a busca da sua essência, a fim de conhecer sua gênese e relações dinâmico-causais; a captação do movimento, contradições e transformação do objeto de estudo. Todos esses aspectos têm como finalidade a compreensão do fenômeno na sua totalidade (necessidades de saúde que se apresentam no processo de morte). Considerando o objeto de estudo e o objetivo desta pesquisa, a categoria analítica que orientou a análise das entrevistas foi a atividade, entendendo que, por meio dela, o homem expressa sua singularidade, apropria-se do mundo e constitui-se como tal.

Resultados De acordo com a literatura13-15, as necessidades das pessoas em processo de morte envolvem: receber cuidados especializados para o controle de sintomas (dor, dispneia, náusea, hemorragia, etc.); ter acesso a informações e participar das decisões sobre sua vida; ter suporte social e receber suporte emocional ou espiritual, se solicitado, e buscar o significado da vida. Se o processo de trabalho consiste, inicialmente, em atender necessidades, quais são as necessidades das pessoas em processo de morte? São apenas essas listadas pela literatura? “Eu (médica) tive um paciente [...] tabagista de muitos anos [...] com sintomas pulmonares. [...] A gente pediu um RX de tórax e veio uma imagem sugestiva de neoplasia. Encaminhamos pra tomografia imediatamente, [ele] fez, encaminhei pra oncologia [...] e foi um processo super rápido (período entre diagnóstico e morte do paciente). Esse paciente entrou pra mim em agosto e acabou falecendo em outubro, novembro. Então foi super intenso porque teve uma ligação muito forte. Ele vinha aqui todos os dias (ênfase ao falar “todos”). Ele nunca quis que eu escondesse nada dele. Então quando teve o diagnóstico, eu fiz a abordagem, eu fiz o diagnóstico e fui eu que contei pra ele o que era a doença dele (ênfase ao falar “eu”). [...] Então, nesses dois meses, a relação foi muito intensa”. (grifo nosso) (Médica)

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(h) Toda atividade é orientada por um motivo, aquilo que a estimula, “aquilo em que a necessidade se concretiza de objectivo nas condições consideradas e para as quais a actividade se orienta, o que a estimula”17. (i) A Bioética caracteriza-se por um processo de reflexão crítica sobre situações e valores; e que implica uma tomada de posição. Alguns referenciais que podem nortear essa reflexão crítica são: dignidade, autonomia, justiça, não maleficência, beneficência, solidariedade, vulnerabilidade, confidencialidade, responsabilidade, qualidade de vida21. (j) A expressão “cuidado no final da vida”, e não “Cuidados Paliativos”, foi utilizada porque os Cuidados Paliativos ainda não estão devidamente presentes na Atenção Primária. Além disso, historicamente, estiveram relacionados a serviços especializados.

Os Cuidados Paliativos são caracterizados como: “uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares no enfrentamento de problemas relacionados a doenças terminais, através da prevenção e do alívio do sofrimento pelo diagnóstico precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituais”22. (k)

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Esse paciente apresenta, inicialmente, problemas pulmonares e necessidade de ser diagnosticado e tratado. Com base nesses problemas e necessidades, a médica solicitou exames, teve uma hipótese diagnóstica, encaminhou para serviço especializado, comunicou o diagnóstico e acompanhou o tratamento. De acordo com a perspectiva histórico-cultural, esgotamos, aqui, as necessidades aparentes. E, no modelo hegemônico de atenção à saúde, o mais visível é o corpo físico, biológico. Não estamos dizendo que as necessidades biológicas são aparentes, mas que seria incompleto e superficial restringir a análise a essas necessidades. Para a análise do fenômeno na sua totalidade, é preciso ir além daquilo que é mais imediato. É preciso captar o conteúdo cognitivo, afetivo e o motivo do discurso16. As necessidades biológicas desencadeiam outras necessidades, de caráter social. As necessidades superiores de caráter social são motivadas pelas condições sociais de vida e podem incluir as necessidades de se relacionar com outras pessoas17. A relação estabelecida entre profissional e paciente foi ‘super intensa’: o paciente frequentava a unidade ‘todos’ os dias; a médica acompanhou todas as etapas do processo de cuidado, desde o diagnóstico até o luto da família. O prefixo ‘super’ expressa ideia de grandeza. Acoplado ao adjetivo ‘intenso’, temos uma flexão de grau, no caso, grau superlativo, que significa que uma qualidade torna-se amplificada18. Somando a análise morfológica com o conteúdo afetivo do discurso (expresso pela comunicação verbal e não verbal), o motivo(h) revelado da atividade (melhorar a qualidade de vida desse paciente) e a especificidade do processo de trabalho em saúde (produção e consumo simultâneos, portanto, influência da relação interpessoal no produto do trabalho), percebe-se que as necessidades colocadas para a atividade do profissional da saúde vão muito além do diagnóstico e tratamento biológicos. A essência é a relação, o vínculo estabelecido entre eles que compõe, na terminologia utilizada por Merhy19, as tecnologias leves do trabalho em saúde. A relação estabelecida entre usuário e profissional depende tanto de um como de outro: “o vínculo começa quando esses dois movimentos se encontram: uns demandando ajuda, outros se encarregando desses pedidos de socorro”20. Em função desse vínculo, o paciente revela seu desejo por informações (Ele nunca quis que eu escondesse nada dele), e a médica, atenta aos referenciais da Bioética(i), consegue atendê-lo (eu fiz o diagnóstico e fui eu que contei pra ele). Embora o paciente tenha sido encaminhado para fazer o tratamento em serviço especializado, quem diagnosticou, comunicou e acompanhou o paciente durante todo o processo de adoecimento e morte foi o profissional da Atenção Primária. Ou seja, mesmo sem uma clara definição, nas políticas nacionais e internacional, do que é pertinente a este nível de atenção em relação aos cuidados no final da vida(j), tem existido a demanda de acompanhamento e cuidado durante todo esse processo (desde o diagnóstico até o luto da família), e é exigida uma resposta do profissional. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), todos os países que apresentam Cuidados Paliativos(k) num enfoque de Saúde Pública devem integrar os serviços em todos os níveis de atenção para garantia de acesso a toda a população. Entretanto, não são delimitados os serviços específicos de cada nível de atenção22. Os serviços que integram os Cuidados Paliativos, conforme preconiza a OMS (manejo das complicações no tratamento e enfermidade; manejo de dor e outros sintomas; atenção psicossocial e espiritual aos pacientes 873


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e prestadores de assistência sanitária; cuidado ao moribundo e atenção diante do luto), podem se estender progressivamente a todos os níveis de atenção. Um médico contou que, após ter diagnosticado câncer de pulmão em um paciente e tê-lo encaminhado ao serviço especializado, o paciente sempre retornava à unidade para checar (com o médico da ESF) se o procedimento indicado pelo médico especialista estava correto. Além das necessidades técnicas relacionadas à doença, constata-se a importância do vínculo na prática do cuidado. Essa é justamente uma das necessidades de saúde descritas por Cecílio23: ter vínculos ‘(a)efetivos’ numa relação contínua entre profissional (ou equipe) e usuário. Entre outros aspectos, o vínculo facilita a compreensão e respostas a dúvidas e angústias das pessoas atendidas. “A gente (médico vinculado à ESF) tem mais tempo com o paciente do que um outro tipo de profissional. (médico especialista vinculado ao nível terciário)”. (grifo nosso)

Segundo Queiroz et al.24, o diferencial da ESF é justamente “o estabelecimento de vínculo assistencial ao longo do tempo” (p. 2621), o que proporciona o cuidado humanizado. É claro que apenas ‘ter mais tempo’ não significa, necessariamente, atender às expectativas e necessidades dos pacientes. Fazer o acompanhamento do paciente e da família ao longo do tempo (característica da ESF) influencia a criação e manutenção do vínculo, mas ele (vínculo) depende, essencialmente, da disposição de acolher e compreender o outro, do conhecimento, do afeto e do compromisso20. Nesse sentido, destaca-se a importância da formação e do desenvolvimento profissional (técnico, ético e interpessoal) para a realização do cuidado. De acordo com Andrade et al.25, a comunicação adequada é fundamental para a realização do “cuidado integral e humanizado” (p. 2524). Isso porque, por meio da comunicação, “é possível reconhecer e acolher, empaticamente, as necessidades do paciente, bem como de seus familiares” (p. 2524), além de ser uma “medida terapêutica” (p. 2527). A comunicação adequada também busca diminuir os conflitos, mal-entendidos e atingir os objetivos definidos para a situação. Dar notícias difíceis exige tempo, já que é um processo gradativo. O amplo conhecimento da organização familiar e sua relação com a estrutura social também são fundamentais para a compreensão das necessidades apresentadas pelos pacientes e familiares diante do processo de morte. “A família dele ainda mora, num lugar ali [...] que antes era uma fazenda, na verdade um haras [...] Cada cocheira é uma casa [...] Ele (paciente) morava ali com mais três filhos, dois deles casados, então moravam umas oito, dez pessoas. [...]. Então ele chegou a esse ponto de amputação e tudo porque ele não cuidava do diabetes, não cuidava da hipertensão, é... ele tinha uma alimentação super precária [...] A gente foi tensionando a situação com a família porque também deixavam ele sem comer, sem higienizar, eles tinham um problema sério de sobrevivência e o seu P. (paciente) pra eles, gradativamente, assim... virava mais uma fonte de renda porque ele tinha uma aposentadoria. [...] A gente percebia que não era exatamente por maldade ou por descaso [...] Cada um meio que cuidava de si”. (Médico)

Se estivéssemos simplesmente descrevendo essa família diante do processo de adoecimento e morte, diríamos que, mesmo apropriando-se da aposentadoria do paciente, a família não realiza adequadamente o cuidado e, portanto, não contribui para sua recuperação ou qualidade de vida. No entanto, uma das teses apresentadas por Vigotski11 para a análise dos fenômenos consiste em revelar as relações e os nexos dinâmico-causais, ou seja, explicar (não apenas descrever) o fenômeno pela sua origem real, e não pela forma externa. Nas palavras utilizadas anteriormente, captar a essência, extrapolando a aparência. Explicar as relações de (não) cuidado envolvidas nessa família implica desvelar as relações dinâmico-causais da realidade (tipo/condições de moradia; transporte; acesso a trabalho e educação das pessoas que moram na casa/cocheira; condições de alimentação e, sobretudo, motivos pelos quais tais condições existem) que se caracterizam por exclusão social e expropriação humana. 874

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Essa família não tem condições mínimas de vida humana; eles vivem (ou morrem) numa antiga cocheira de cavalo. Como pensar em qualidade de vida no processo de morte se todos, social e humanamente, estão morrendo (se é que um dia nasceram)?. Uma enfermeira relatou um caso envolvendo uma outra problemática psicossocial: “era jovem, tinha menos de 40 anos [...]. Além da doença (tuberculose e câncer de cólon de útero), ela tinha um conflito com a mãe [...]. [A mãe] era catadora de lixo [...]. Ela (a mãe) tinha uma suspeita também de câncer [...]. Conseguimos uma aposentadoria pra ela (mãe) [...] Além disso tinha suspeita de tráfico de drogas [...] tinha um irmão [da paciente] que era meio perigoso [...]. Depois tinha a parte da criança, do filho [da paciente, com cinco anos] [...] A mãe queria a tutela do filho, mas ela (paciente) não queria que a mãe tivesse a tutela do filho porque ela tinha conflito com a mãe. Aí o suposto pai [da criança] era uma pessoa totalmente ausente que ela também não queria que ficasse com a criança... Então foi uma coisa bem complexa [...] tanto a parte da doença como a parte social, emocional”.

Essa problemática, que vai além do cuidado específico no processo de terminalidade da vida, caracteriza-se como demanda para o serviço e profissional de saúde. A demanda é compreendida por Silva et al.26 como “fruto de uma relação e interação entre atores que têm necessidades, desejos e projetos institucionais distintos e que, portanto, devem ser considerados” (p. 240). Para o atendimento dessa demanda, é preciso garantir, por um lado, o acesso da população e, por outro, a responsabilização do serviço e da equipe em relação ao sujeito. Na ESF, algumas características do processo de trabalho são a “prática do cuidado familiar ampliado” e a “abordagem integral e resolutiva”6 (p. 26), considerando integralidade na perspectiva de totalidade do sujeito, das relações sociais familiares e comunitárias e da compreensão e intervenção no processo saúde-doença. A expectativa de consolidação da integralidade, juntamente com os outros princípios do SUS, foi um dos motivos que favoreceram a implantação da ESF para superação da “incapacidade do modelo hegemônico tecnicista, hospitalocêntrico e medicalocêntrico”27. Entretanto, a intervenção no processo saúde-doença extrapola a competência do profissional da ESF. Isso porque, mais que acesso a serviços de saúde e cuidado especializado, a saúde depende do acesso à educação, trabalho, alimentação, moradia, lazer, etc. que, de acordo com a Lei n. 8.0803, é explicado pela organização social e econômica do país. Ou seja, as estruturas sociais e econômicas determinam as condições de saúde da população. “O que eu acho pior é assim, a situação financeira das pessoas. A gente atende uma população carente [...] Não temos todos os recursos que seriam necessários”. (grifo nosso) (Médico) “Às vezes, a gente gostaria de poder fazer mais [...] Isso angustia muito a gente, a gente sofre muito mesmo”. (Enfermeira)

Estudos destacam que uma das maiores dificuldades para o profissional da saúde é a frustração de não ter conseguido salvar o paciente, ou seja, evitar a morte28-32. A dificuldade destacada aqui não é exatamente a morte em si, mas a condição de vulnerabilidade social das pessoas ou a condição que acarreta a morte (“A morte faz parte do meu processo de trabalho, é um processo da vida [...] A violência me assusta um pouco. [...] Não a morte em si. É como aconteceu e por que aconteceu” – Enfermeira). Talvez esta diferença esteja relacionada ao contexto e às características do processo de trabalho de cada grupo de profissionais: enquanto, no hospital, a morte é mais frequente e a participação se restringe ao momento da morte; na ESF, a frequência da participação no momento da morte é menor e a ênfase recai no processo de adoecimento e morte, além de, muitas vezes, implicar acompanhamento da família após a morte. Esses tipos de participações (momento e processo da morte) apresentam COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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características diferentes: participar do momento da morte de uma pessoa internada, por mais que se tenha acesso às informações de como seja sua vida, é diferente de vivenciar o cotidiano dessa mesma pessoa em processo de morte, proporcionado pelo trabalho na ESF. Em pesquisa realizada por Feuerwerker e Merhy33, as equipes de saúde admitiram ter grande diferença entre “indagar a respeito das condições de moradia e de vida e estar nas casas” (p. 184). Isso porque a atuação extramuros desvenda, aos profissionais, a carência e o desamparo social não só das pessoas atendidas, mas de toda a comunidade; condições essas que não são vivenciadas quando são noticiadas através do discurso de pacientes e familiares34. Assim como as estruturas sociais e econômicas determinam as condições de vida e saúde da população, elas também determinam, de certa forma, a morte. Embora universal, o momento e a maneira como se morre dependem das condições socioeconômicas. Por isso, um desafio em relação à morte, em um contexto de desigualdade como o nosso, é enfrentar a mistanásia – “abreviação coletiva da vida”35 (p. 53). A intervenção nessas condições de vida excede a atuação do profissional da saúde singular. E essa compreensão é fundamental para reconhecer os limites de sua atuação e não se sentir frustrado. Por outro lado, essa compreensão difere da aceitação da morte como processo que compõe a vida. Essas condições de vulnerabilidade social não são naturais, tão pouco devem ser toleradas. Nesse sentido, uma proposta de Cuidados Paliativos na Atenção Primária deve ter como pressuposto as necessidades da vida como direito. Zoboli e Fortes36 destacam o período atual como sendo da “bioética da saúde das populações” (p. 30), que se caracteriza pela ênfase nos determinantes da saúde (acesso a condições de vida promotoras de saúde a todas as pessoas) em detrimento das questões relativas ao avanço biotecnológico que atingem a uma minoria. Algumas possibilidades de atuação na ESF, diante de demandas principalmente sociais, são: “estimular a participação popular e o controle social”6 (p. 11), além de desenvolver “ações intersetoriais, integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde” 6 (p. 19). Queiroz et al.24 defendem a necessidade de uma assistência compartilhada para os Cuidados Paliativos nos diversos níveis de atenção à saúde e em conjunto com a comunidade. As necessidades podem ser atendidas se forem constituídos esforços intersetoriais em serviços de saúde e outros setores (assistência social, cultura, educação, habitação, por exemplo), numa perspectiva de garantir uma ampla integralidade da atenção. Barreto e Carmo37 destacam que a conquista de altos padrões de saúde depende de mudanças nas condições e modos de vida. Para tanto, ainda que as políticas de saúde tragam grandes benefícios, é necessário que se tenha uma articulação entre as políticas públicas dirigidas para os determinantes das doenças. “A esposa dele é uma paciente esquizofrênica que também faz tratamento no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Então a gente teve que juntar todo mundo, multidisciplinar, pra coordenar tudo que estava acontecendo [...] Os filhos menores de idade estavam trabalhando, um trabalho não muito adequado para criança assim, um trabalho que ficava dez, doze horas trabalhando durante o dia, trabalho pesado [...] Foi legal porque a gente conseguiu, dentro da Saúde da Família, dar uma estruturada um pouco melhor nessa situação”. (Médico)

A necessidade de integralidade dos serviços (referência e contrarreferência) é a grande ênfase dos estudos que consideram a Atenção Primária responsável pelos Cuidados Paliativos domiciliares em casos de baixa complexidade7,24,38,39.

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Considerações finais O que se percebe por meio da análise dos dados desta pesquisa é que, além das necessidades específicas envolvidas na terminalidade da vida, essas pessoas não estão isentas de problemas sociais, culturais, econômicos ou familiares. A morte aparece como pano de fundo de outras situações: moradia em cocheira de cavalo; alimentação precária; familiar envolvido em tráfico de drogas; trabalho infantil; cônjuge com esquizofrenia; idoso como fonte de renda (aposentadoria); inexistência de cuidado familiar numa luta pela sobrevivência. Isso reforça a tese de que a morte faz parte da vida – não apenas como fim de um ciclo de vida ou pelas mortes que existem na vida, mas porque a morte acontece na vida, com todas as suas necessidades. Assim, as necessidades das pessoas em processo de morte não são específicas do momento de vida – proximidade da morte, mas estão condicionadas pelo contexto de vida. Considerando os princípios da Atenção Primária6 de entender o sujeito na sua singularidade e, ao mesmo tempo, inserido num contexto sociocultural; além de desenvolver relações de vínculo, estabelecendo a continuidade no cuidado e a responsabilização pela população, identificou-se, nesta pesquisa, que existe demanda para os cuidados no final da vida na Saúde da Família, e que a essência da relação de cuidado no final da vida está no vínculo estabelecido entre profissional e paciente / família, ou seja, o vínculo é condição e técnica para o cuidado. Ressalta-se que a intervenção no processo saúde-doença extrapola a competência do profissional da saúde e que as necessidades das pessoas em processo de morte podem ser melhor atendidas se forem constituídos esforços intersetoriais e para a redução ou superação das desigualdades sociais.

Colaboradores Denise Stefanoni Combinato realizou a pesquisa (concepção, coleta e análise dos dados), responsabilizou-se pela elaboração e revisão do artigo. Sueli Terezinha Ferrero Martin orientou todo o desenvolvimento da pesquisa e participou da elaboração final do artigo, incluindo a revisão.

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Combinato DS, Martin STF. Necesidades de la vida en la muerte. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):869-80. En función del envejecimiento poblacional y el aumento de enfermedades crónicas no transmisibles, la Estrategia Salud de la Familia (ESF) se ha deparado con las necesidades de las personas en proceso de muerte. A partir del análisis del trabajo de profesionales de la salud que cuidaron de personas en proceso de muerte, el objetivo de este artículo es discutir las necesidades de salud en ese proceso, con el fin de proporcionar subsidios para el trabajo con esa población, especialmente en la Atención primaria de la Salud. Participaron en la entrevista, después de haber sido seleccionados por dos cuestionarios, once profesionales (enfermeros y médicos) de la ESF de Campinas/SP. El análisis de datos fue regido por el referencial teórico-metodológico de la psicología histórico-cultural. Como resultado, vemos que las necesidades de los pacientes y familiares no se limitan al momento de vida (proximidad de la muerte) sino que también se refieren a las condiciones de vulnerabilidad social.

Palabras clave: Atención primaria de la salud. Cuidados paliativos. Psicología histórico-cultural.

Submetido em 12/08/16. Aprovado em 07/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0559

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Ambivalências no cuidado em saúde mental: a ‘loucura’ do trabalho e a saúde dos trabalhadores. Um estudo de caso da clínica do trabalho João de Deus Gomes da Silva(a) Giovanni Gurgel Aciole(b) Selma Lancman(c)

Silva JDG, Aciole GG, Lancman S. Ambivalences in mental health care: craziness at work and health workers. A case study of the labor health clinic. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):881-92.

This is a case study of the Psychosocial Care Center (CAPS type III) from the interior of São Paulo regarding the perception of health workers about their work, according to (i) professional empathy, (ii) forms of collective work, (iii) collective decision mechanisms and (iv) negotiation of collective labor rules. The analysis of results was done using the theory of “work psychodynamics”. The ambivalences of care experienced by workers in the construction of collective rules and in the development of empathy and professional cooperation constitute the institutional constraints, resulting from the reintroduction of a neoliberal model in the management of the mental health service.

Trata-se de estudo de caso de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS tipo III) do interior paulista sobre a percepção dos trabalhadores da saúde acerca de seu trabalho, segundo: (i) empatia profissional, (ii) formas de trabalho coletivo, (iii) espaços de decisão coletiva, e (iv) negociação de regras coletivas de trabalho. Na análise dos resultados, utilizou-se a teoria da “psicodinâmica do trabalho”. As ambivalências do cuidado, vividas pelos trabalhadores na construção de regras coletivas e no desenvolvimento de empatia e cooperação profissional, representam constrangimentos institucionais resultantes da reintrodução de um modelo neoliberal na gestão do serviço de saúde mental.

Keywords: Mental health. Job satisfaction. Environment of health institutions. Health care reform. Public health.

Palavras-chave: Saúde mental. Satisfação no trabalho. Ambiente de instituições de saúde. Reforma dos serviços de saúde. Saúde pública.

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(a) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua Botucatu, 740, Vila Clementino. São Paulo, SP, Brasil. 04023-062. jdeusgomes@gmail.com (b) Departamento de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). São Carlos, SP, Brasil. giovanni.aciole@ gmail.com (c) Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. lancman@usp.br

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Introdução Os saberes e práticas alternativos/substitutivos ao modelo manicomial brasileiro estão associados às lutas populares contra o estado de exceção instalado pelo golpe militar (1964-1985), e inspiram-se nos processos de reorganização do trabalho em Psiquiatria, experimentados na Europa e nos Estados Unidos, depois da segunda guerra mundial. A aprovação da Constituição em 19881, a criação do Sistema Único de Saúde2, a aprovação da Lei Federal3 sobre os direitos dos/as pacientes psiquiátricos/ as, e o redirecionamento do modelo de atenção em saúde mental, configuraram as principais bases jurídicas do projeto de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) na direção de transformar as práticas de cuidado em saúde mental e garantir direitos humanos e de cidadania dos doentes mentais. E a alojam na reforma mais ampla, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB). A clínica da RPB, enquanto processo articulador das dimensões teórico-conceitual, técnicoassistencial, jurídico-político e sociocultural4,5, deveria inverter a lógica promovida pela psiquiatria, de modo a colocar a ‘doença entre parênteses’ e ocupar-se do sujeito em sua experiência singular de existir6,7. No Brasil, os primeiros serviços substitutivos, Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), surgiram na década de oitenta, seguidos pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que se estabeleceram como serviços intermediários e alternativos entre o hospital e a comunidade. Esperavase que o modelo dos CAPS caminhasse em direção ao modelo dos NAPS, dado o caráter descontrutor da clínica manicomial deste último. No entanto, ao longo do processo, observou-se uma redução inversa4. A reforma da organização do trabalho no âmbito da RSB pode ser descrita por analogias: (i) aos modelos tecnoassistenciais de atenção8,9; (ii) às diferentes perspectivas dos campos e núcleos de saberes e práticas em saúde10; (iii) às singularidades de cada caso e especificidades de cada coletivo11,12, e (v) às relações de gênero que permeiam o mundo do trabalho, particularmente, o mundo do cuidado13-15. O entrelaçamento destas reformas incide no trabalho e no trabalhar nos serviços de saúde mental, tanto na promoção ou impedimento da cooperação, quanto na ampliação ou redução da empatia profissional. A organização do trabalho nos CAPS somente pode ser compreendida por inferência ao real do trabalho vivo que, escapando aos métodos organizacionais, sempre deixa uma margem de manobra a ser posta em ação pela inteligência do/a trabalhador/a16-18. Este artigo apresenta resultados empíricos de um estudo que analisou as interfaces entre o conteúdo do trabalho em saúde mental e as vivências de prazer e sofrimento no trabalho em trabalhadores/as de um CAPS. Os eixos estruturantes para a organização das falas dos/as trabalhadores/as e demais registros da investigação foram definidos anteriormente ao trabalho de campo e privilegiaram os seguintes temas: (i) empatia profissional; (ii) as formas de trabalho coletivo; (iii) os espaços de deliberação coletiva, e (iv) a elaboração das regras coletivas de trabalho. Esperase colaborar nos debates que procuram evidenciar deslocamentos necessários à continuidade de um projeto de RPB em que a transformação do trabalho em psiquiatria esteja também articulada com a saúde e a emancipação dos/das trabalhadores/as de Saúde Mental.

A crise do trabalho em saúde e as ambivalências do cuidado em saúde mental A crise do paradigma da produção de cuidado em saúde remete a questões que tensionam sobre a construção de um modelo de clínica e de organização do trabalho fundamentada sob uma racionalidade instrumental que tem influenciado, historicamente, não somente a implementação das políticas públicas brasileiras, mas, também, os processos de formação profissional para o setor saúde. A crise no trabalho em saúde anunciada nos anos oitenta19 permanece atual, em termos de: (i) distanciamento do médico em relação aos interesses dos pacientes; (ii) isolamento deste profissional e o seu desconhecimento da importância das diferentes práticas profissionais; (iii) predominância de modalidades de intervenção centradas nas tecnologias duras, e (iv) saber estruturado reduzido à produção de procedimentos. Se o significado da reestruturação produtiva nas organizações de saúde e na configuração dos processos de trabalho e de formação pode ser percebido por um aumento e uso intensivo de 882

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tecnologias, a especificidade do trabalho humano, no âmbito da terapêutica e do tratamento, em termos de investigação, avaliação e decisão, tem impedido a redução dos postos de trabalho20. No entanto, os/as profissionais de saúde não têm sido devidamente preparados para pensar neles mesmos enquanto cuidadores e, consequentemente, como pessoas que também necessitam de cuidados21. Referida ao trabalho em geral, a clínica em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) permite evidenciar a tendência dos/as trabalhadores/as em amenizar o conflito entre a organização do trabalho, fonte de sofrimento, e o funcionamento psíquico graças às estratégias defensivas. Para Dejours16-18, esta saída encontrada para minimizar a percepção das pressões do trabalho é acompanhada pelo risco de maximização da alienação, e, se promovida a objetivo, transformar-se-á em “ideologia defensiva”. O resultado seria a implosão de conflitos de poder, gerando impasses entre os diferentes coletivos com graves repercussões, tanto no plano psicológico, quanto no plano social e técnico, podendo ameaçar toda a organização e a segurança das instalações. No campo das políticas públicas de Saúde Mental, em que a especificidade do conteúdo do trabalho repercute mais diretamente na intangibilidade da gestão dos serviços; na invisibilidade do trabalho, da realidade das condições de trabalho e das condições subjetivas do trabalho22, o risco de agravamento dessa crise pode ser aumentado. Ao se limitar a indicar os objetivos globais que são confiados à performance dos trabalhadores e negligenciar sua solução no plano da organização do trabalho, a racionalidade instrumental coloca uma questão crucial para os/as trabalhadores/as: como cuidar da loucura sem enlouquecer?

Metodologia Foi desenvolvido um estudo de caso num CAPS do tipo III da Rede de Atenção Psicossocial de um município do interior paulista. Sua escolha se deu por ter sido considerado um serviço modelo que oferece ações de diferentes complexidades e pelo interesse dos/as profissionais e da gestora local em participar da pesquisa. Em virtude da complexidade do sujeito abordado e na tentativa de melhor conhecê-lo e apresentá-lo em suas multiplicidades, foi utilizada uma combinação de diferentes estratégias de aproximação com o campo: diário de campo, entrevistas coletivas, análise de documentos, entrevistas individuais e observação participante. As categorias de análise foram definidas a partir do diálogo entre o material empírico que emergiu das fontes e o campo teórico da PDT. A discussão da demanda foi iniciada entre o pesquisador e a equipe pedagógica do setor responsável do Serviço de Saúde, por intermediar as aproximações com os serviços de saúde mental da rede, durante três encontros. Em seguida foram realizados oito encontros coletivos. Dois aconteceram com a participação de toda a equipe: o primeiro, para apresentação da metodologia e dos objetivos da pesquisa e formação do comitê de pesquisa, e o último, para apresentação e debate do relatório final. Os objetivos inicialmente apontados pelo pesquisador foram reorientados em função da demanda dos/ as trabalhadores/as. De um grupo de trabalho composto por doze profissionais que se apresentaram espontaneamente para participar das entrevistas coletivas, apenas metade deles reuniu-se efetivamente em seis encontros semanais, com aproximadamente uma hora e meia de duração cada. As entrevistas individuais foram num total de quatro, sendo com duas trabalhadoras e um trabalhador. A participação destes/as profissionais foi voluntária, a fim de preservar a autenticidade da palavra, tomada numa perspectiva hermenêutica16. A realização das entrevistas, que foram gravadas e transcritas, aconteceu entre julho e setembro de 2013; ao passo que as outras etapas do trabalho de campo foram desenvolvidas entre maio de 2013 e novembro de 2014. O campo epistêmico da análise dos resultados situou-se na Clínica do Trabalho, mais precisamente da PDT, mediado por noções emprestadas das ciências do trabalho, como forma de adaptação da PDT ao contexto brasileiro, que nem sempre parte de uma demanda nos termos canônicos, e resultou no agrupamento do que foi considerado relevante na pesquisa. Procurou-se interpretar as experiências intersubjetivas associadas à organização do trabalho no CAPS em termos de vivências de prazer e sofrimento no trabalho. O Projeto de pesquisa foi aprovado pelo CEP/Unifesp em 06/06/2012. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Contexto O CAPS está inserido numa rede de equipamentos assistenciais de saúde mental composta por: seis CAPS III; dois CAPS Álcool e Drogas (AD) II; uma Unidade de Acolhimento Transitório AD; um CAPS AD III; um Consultório na Rua; dois CAPS Infantis; cinco Centros de Convivência; três Projetos de Inclusão Social pelo Trabalho; Serviços Residenciais Terapêuticos; um Núcleo de Retaguarda, além de Projetos Complementares às Ações de Reabilitação Psicossocial. A gestão desta rede, aberta à representação do poder público estatal e da sociedade civil, se organiza sobre a forma de um convênio de cogestão estabelecido entre a Prefeitura Municipal e o Serviço de Saúde, firmado na década de noventa. O coletivo de trabalho do CAPS estudado é composto por 53 profissionais distribuídos em diferentes funções: um assistente administrativo; um assistente social; dois técnicos em farmácia; um auxiliar administrativo; cinco auxiliares de limpeza; seis enfermeiros; um farmacêutico; um gerente; dois médicos psiquiatras; um monitor de oficinas; um monitor de serviço de residência terapêutica; um motorista; seis psicólogos hospitalares; vinte auxiliares de enfermagem; três terapeutas ocupacionais; um vigia. O CAPS conta tanto com a participação de estagiários de diferentes núcleos profissionais e diferentes instituições de nível universitário e ensino técnico profissionalizante (Terapia Ocupacional, Psicologia, Assistência Social, Curso Técnico de Enfermagem) quanto com profissionais cursando pósgraduação sensu latu23.

Plano de Trabalho do Serviço As atividades descritas no Plano de Trabalho, que definem as agendas destes profissionais e compõem as ofertas do serviço, se apoiam na “escuta qualificada” como instrumento para oferecer ressonância necessária à construção de soluções pelos pacientes para os seus problemas cotidianos, e incluem: (i) saídas do serviço e acompanhamento terapêutico com vistas ao agenciamento de ações relacionadas ao acesso a benefícios previdenciários, pagamentos de pensão, compra de objetos de uso pessoal, passeios, visita domiciliar, consultas médicas, tratamentos dentários etc.; (ii) realização de grupos e oficinas abertos (sem um número fixo de pacientes) ou fechados (com número fixo); (vi) retaguarda noturna e internação com oito leitos, cujos pacientes são avaliados diariamente; (vii) planejamento, programação, e avaliação da assistência; (viii) reunião de equipe; (ix) supervisões clínicas e supervisões institucionais; (x) formação: campo de estágios para estudantes de graduação, aprimoramento, residência multiprofissional e residência médica; (xi) educação permanente com/ para os enfermeiros, e (xii) controle social: existência de um conselho local com representação das gestões, funcionários, pacientes e familiares23. Entre as atividades do(a) gerente, destacam-se: o planejamento, coordenação e avaliação de ações de saúde; gerenciamento de recursos humanos; acompanhamento e monitoramento do alcance das metas e dos indicadores no âmbito local; garantir ações de planejamento, capacitações e processos de educação permanente da equipe; garantir a formação e/ou manutenção de colegiado gestor da unidade; promover a democratização da gestão entre trabalhadores do SUS e usuários; garantir registro das ações em prontuários; definir áreas prioritárias para apoio multiprofissional para qualificar as ações matriciais; responsabilizar-se pela gestão administrativa; garantir o cumprimento de normas da vigilância sanitária23. De acordo com as entrevistas, estas atividades são avaliadas como atrativas, criativas e inovadoras, com restrições apenas ao que se considera sobrecarga de trabalho. No entanto, o potencial terapêutico destas ofertas passa a ser questionado quando a participação dos pacientes ocorre dissociada do projeto terapêutico individual, correndo o risco de perder o sentido além de acirrar disputas profissionais. A insuficiência de recursos financeiros e a falta de apoio de alguns em determinadas situações aparecem também como geradores de constrangimentos. Os arranjos coletivos para articular a rede para fora do CAPS são vistos como inovadores, e citados como não explorados em seu real potencial nem valorizados consensualmente pelos colegas; enquanto outros arranjos internos têm “utilidade questionável” (Entrevistado 04), a exemplo da definição do Atendente das Demandas Diárias (ADD), profissional definido, em regime de plantões, para se ocupar dos problemas do dia. 884

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Espaços de deliberação coletiva e empatia profissional As reuniões de equipe e de miniequipe, a supervisão institucional, a supervisão clínica, os espaços de formação, a assembleia mensal de funcionários, o colegiado de gestão do Serviço de Saúde, a reunião de coordenadores do distrito de saúde, o colegiado de saúde mental do município, são considerados espaços de deliberação na medida em que possibilitam o diálogo entre diferentes sujeitos (profissionais, pacientes, gestores, estudantes) a fim de discutir, interrogar, compor as regras de trabalho que precisam encontrar um ponto em comum na coordenação do cuidado. Desta maneira, vislumbra-se a construção de um coletivo ampliado com diferentes níveis de implicação na corresponsabilização pelo cotidiano do serviço. Estes espaços, ao favorecerem a tomada conjunta de decisões, são percebidos como lugares privilegiados para se formular uma crítica reflexiva do trabalho. A reunião semanal de equipe é definida no Plano de Trabalho23, como um espaço em que “[...] se discutem os casos de maior complexidade, os pacientes inseridos nos leitos noite, os indicadores construídos pela equipe, e, a própria interação da equipe como um todo; ou seja, espaço vital para o alinhamento assistencial. Nessa reunião é construída também a política e a ética de cuidado que ajuda alinhar a assistência”. (Entrevistado 1)

As narrativas dos/as entrevistados/as referem uma ‘crise de identidade’ que tem sido vivenciada enquanto ‘degradação da convivialidade’, que outrora integrava os diferentes núcleos e trajetórias profissionais. O aspecto neoliberal da gestão foi apontado como principal elemento disparador desta crise que, segundo referem, ameaça não somente a continuidade do serviço operando nos pressupostos da reforma psiquiátrica, mas, também, a manutenção do emprego destes(as) trabalhadores(as). Como consequência, os espaços de discussão coletiva, que deveriam ser mobilizadores para a deliberação das regras de cuidado, têm sido contaminados com o tema da gestão, sobre o qual a equipe não tem governabilidade, e esvaziados do conteúdo do trabalho. Esta ‘contaminação’ dos espaços de deliberação, a exemplo das reuniões semanais de equipe e de miniequipes, é percebida como ativadora de um ‘silêncio ruidoso’, com tendência a uma convivência distante e solitária que impede o fortalecimento da empatia profissional e da cooperação, necessários ao alargamento das possibilidades de construção do laço social.

Regras de trabalho, trabalho coletivo e clínica nostálgica Fala-se de uma ‘clínica nostálgica’ associada aos processos de ‘subserviência’ destes/as profissionais em relação a determinados aspectos da gestão municipal. Denuncia-se uma ruptura nos modos como o convênio da cogestão era operado, passando de uma cogestão participativa para um modelo tradicional de prestação de serviços que reduz a autonomia profissional, cuja ‘desresponsabilização’ crescente dos gestores municipais repercute negativamente na organização do trabalho, com consequente perda de entusiasmo e regressão da clínica da Saúde Mental. Implica, além disso, uma mudança no funcionamento da rede definida em termos de ‘piora’, ‘tragédia’ e ‘adoecimento’. Estas mudanças são vivenciadas, também, como ‘crise nostálgica’ em relação a um tempo em que o que prevalecia eram os princípios da RPB na organização do trabalho e na cogestão do cuidado. “[…] quando eu dizia de uma clínica nostálgica, que era uma maior liberdade por conta desse financiamento, dessa conversa com a prefeitura ser outra, a gente tinha uma autonomia no serviço de saúde, tinha uma posição que não era de subserviência, nós não nos submetíamos da maneira que eu acho que hoje se submete a essa cogestão, que não é mais uma cogestão, cogestão entende-se por duas partes e hoje não se tem mais isso e, acho que por conta disso tudo, aquilo que as pessoas que trabalhavam aqui mais prezavam é que é esse modelo de clínica da saúde mental, isso que era possível articular para fora do CAPS, esse cuidado mais próximo com o paciente [...] A gente está submetida a outro tipo de conversa que eu acho que acaba com o entusiasmo, uma conversa que vem de imposição, onde antes era uma COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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construção que eu acho que a gente fazia, hoje a gente tem de engolir algumas coisas que nunca precisou engolir porque a gente tinha uma posição, tinha um posicionamento mesmo. Hoje em dia não tem mais como fazer, e eu acho que começa dai, talvez, a degringolar isso que era tão interessante, desse entusiasmo dos trabalhadores, que não é, né, pelo valor salarial que ninguém engancha na saúde mental, não é pelo plano de cargos e salários porque não tem. Então, isso que eu acho que era a força motriz que carregava os profissionais, isso foi sendo massacrado”. (Entrevistado 04)

No dizer dos/as entrevistados/as, essa ‘lógica perversa’ de gestão do trabalho prioriza a fragmentação do cuidado em atos/procedimentos isolados, focados em processos individuais e descontextualizados da realidade. As atividades definidas no processo de elaboração dos indicadores quantitativos são percebidas como ‘maçantes’ e ‘repetitivas’, cuja finalidade é atender a uma lógica gerencialista dissociada da gestão do cuidado. Fala-se em ‘constrangimentos’ decorrentes da obrigatoriedade de estes/as profissionais priorizarem, muitas vezes, o preenchimento de formulários e o registro de procedimentos nos prontuários. Este ‘excesso de burocracia’, tanto no processo de avaliação do trabalho quanto no faturamento das finanças, repercute numa mudança de paradigma na clínica que prejudica a qualidade da atenção dispensada ao cuidado real com o paciente. Um (a) participante compartilha seu sentimento e suas hesitações em termos de que atitude tomar individualmente e coletivamente frente às dificuldades impostas pelo “gerencialismo” (sic) que avança na gestão, afirmando que este enfrentamento, contrariamente ao que deveria ser, tem tomado uma dimensão pessoal: “Agora o que eu sinto, tenho feito, não que eu ache que deveria, é um enfrentamento pessoal. Acho que o trabalho tem vindo de uma maneira tão maçante, tão pesada, tão difícil, tão truncada, por conta de toda essa burocratização que vem acontecendo... ah, isso não vai dar para a gente aceitar desse jeito, então, como que a gente pode se mobilizar em algumas coisas”? (Entrevistado 04)

Refere-se, também, a um processo de “afunilamento” que já adentrou as miniequipes, outrora, local de refúgio dessa “dificuldade alheia”, de um “respiro”, não restando mais espaço para se proteger do cansaço, conforme evidenciado na fala de uma participante: “se a gente andar aqui é muito interessante, a cozinha muitas vezes é nosso refúgio, pega seus prontuários, suas coisinhas e corre-se para a cozinha” (Entrevistado 03). A seu ver, as dificuldades não estão em fazer a articulação da rede, nem no cuidado com pacientes psicóticos, nem em fazer triagem, ou fazer diagnóstico de caso; tampouco em realizar contenção ou supervisão clínica, mas, sim, no lidar com a própria equipe. Outra entrevistada complementa afirmando que, se por um lado, a equipe se instrumentaliza para estas ações de cuidado com o paciente, por outro, quando a dificuldade no trabalho está associada à convivência com os colegas, os recursos escapam a este aprendizado. No seu entendimento esta dificuldade acaba despotencializando a rede, a supervisão, fragilizando lugares que seriam estratégicos para dialogar e se trabalhar junto, como é o caso da supervisão institucional, que, em sua opinião, está muito difícil. “A gente vai todo mundo fica calado, ninguém consegue se colocar, e ás vezes quando um vai e coloca... O negócio não se desenrola, sabe? Então esses lugares, essas nossas expertises, que são nossos instrumentos para trabalhar, para dialogar e para se comunicar também ficam fragilizados e perdem a potência, não sei, eu sinto isso, né”? (Entrevistado 01)

Por referência ao modo como o trabalho se organiza em cada miniequipe, fala-se de certo risco de as mesmas funcionarem como serviços isolados dentro de um mesmo equipamento assistencial, podendo gerar desassistência, ao fragmentar a identidade do coletivo de modo a incidir negativamente na cooperação. Esta questão tende a ser relativizada, por um lado, com a existência de profissionais que, ‘fugindo da regra’, atendem individualmente pacientes de outras miniequipes; por outro, pela 886

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oferta de atividades em grupos e oficinas abertos à participação de todos os usuários, bem como a possibilidade de substituição de um determinado técnico de referência de um paciente por outro profissional, de outra miniequipe. Sobre o fator desencadeante do que atualmente é vivenciado como fragmentação da ‘equipe’, citase a organização do serviço por divisão de territórios, e o período que o antecede é referenciado como a época de uma Clínica Nostálgica, referida anteriormente. “Eu acho que essa fragmentação que a gente vive na equipe começou fragmentando assim: tinha três equipes que deveriam trabalhar coligadas, essa fragmentação começou desligando as equipes, ai, tem uma equipe da psiquiatra A, uma da psiquiatra B e outra do psiquiatra C. A fragmentação começou dai, a gente já falava “nossa... cada um está funcionando dentro da sua miniequipe (a bolha) como se não estivesse no mesmo lugar, né?” Eu acho que esta fragmentação está atingindo de alguma maneira, eu não sei explicar como, mas as miniequipes também [...] Eu estou chamando de fragmentação esta dificuldade de comunicação e de trabalhar junto que está de alguma maneira penetrando as miniequipes também”. (Entrevistado 02)

Trabalho coletivo e clínica radical A descrição do trabalho no contexto geral do serviço foi referida como portando fortes características médico-centradas, sobretudo, no que se refere à presença da contenção química sem atender às normas de prescrição recomendadas para o manejo da crise. Embora a tomada de decisão no interior das miniequipes tenha sido descrita como compartilhada entre os diferentes profissionais, foram relatadas situações de desrespeito no tocante à atitude médica de certos colegas em relação aos demais profissionais. O nome dado a cada uma das três miniequipes por alusão ao nome de cada um dos seus respectivos médicos assistentes é citado como sendo apenas uma das evidências desta relação de poder que é marcada, também, por significativa diferença salarial em benefício destes. Comenta-se que, historicamente, os serviços que compõem esta rede foram separados por dois blocos que afirmam a hegemonia da clínica psicanalítica, por um lado, e a clínica da atenção psicossocial, por outro, embora a clínica psiquiátrica tenha prevalecido em ambas as direções. Falase que estas perspectivas têm se constituído num certo ‘radicalismo’ que impede a experimentação de outros referenciais teóricos para compor o ‘arsenal terapêutico’, sobretudo diante de casos para os quais a clínica em vigência se mostrou ineficiente num serviço onde o número de pacientes é considerado excessivo. Queixa-se que esta ‘radicalização’, levada aos limites, tem impedido uma discussão sobre a possibilidade de compor o projeto terapêutico de determinados casos extremos de retardo mental, por exemplo, com a utilização: da internação de longo prazo, de terapias cognitivas comportamentais e/ou de eletroconvulsoterapia, repercutindo, consequentemente, no ‘empobrecimento da clínica’.

A clínica da psicose: um trabalho que impregna no corpo Constatou-se que a especificidade do trabalho no CAPS apresenta sempre um risco potencial de produzir confusão entre as esferas da vida privada e da vida profissional, que pode ser agravado proporcionalmente ao quantitativo de horas trabalhadas. O trabalho emocional que tal mobilização subjetiva exige na relação estabelecida com o paciente é sentido como algo que impregna no corpo e causa inquietações de como agir para estabelecer limites e evitar que isso aconteça, como, por exemplo, a necessidade de investir noutros projetos pessoais e profissionais. “Eu faço trinta e seis horas no CAPS porque eu sou plantonista também. Diferente das meninas, eu faço trinta horas durante a semana e estas seis horas que sobram a gente faz dois plantões de doze horas no CAPS. Num mês parece que não é muito, mas é bem cansativo você estar a semana toda aqui e depois ter que vir no domingo o dia todo, e depois ter que estar aqui a semana toda de novo. A pessoa fica impregnada de CAPS, né, e ai demora a dar uma limpada no nosso corpinho, no nosso psiquismo para a gente cuidar do nosso trabalho aqui e também nossa vida lá fora. Nesse sentido

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toma muito espaço. Era disso que eu estava falando, de muito espaço que toma o CAPS, eu tenho repensando, né, quanto também que eu deixo isso ocupar dentro de mim, quanto que eu posso limitar isso, quanto que me cabe limitar, e quanto que é mesmo do trabalho, daquilo que é mesmo intrínseco do nosso trabalho, esse tomar do nosso corpo, né, do nosso afeto, né, da nossa mente que a clínica da psicose demanda, então, o meu plano é dentro de alguns meses poder deixar o meu plantão que é algo que eu acho que já vai abrir outros espaços, até para poder investir tanto mais aqui, porque eu tenho visto que eu tenho ficado cansada, até para eu cuidar do que eu já tenho que cuidar durante a semana. Para eu cuidar de outros projetos como dançar, do meu consultório, para cuidar de meus outros desejos, até para eu saber o que eu quero. Em longo prazo poder fazer vinte horas”. (Entrevistado 01)

Além da referência à redução da jornada de trabalho e a retomada de outros projetos pessoais, a prática de esportes radicais, a utilização de supervisão clínica individual custeada com recursos financeiros próprios e a participação em grupos de pesquisa sobre RPB foram citados como estratégias utilizadas para auxiliar no confronto com a tensão resultante do trabalho.

Trabalho, prazer e sofrimento O conjunto de atividades apresentado no plano de trabalho23 quando comparado com o conteúdo do trabalho acessado pelas entrevistas sinaliza para as barreiras existentes entre os elementos prescritos da organização do trabalho e os elementos reais do trabalho vivo no CAPS. Sua coordenação somente é possível graças à cooperação dos/as trabalhadores/as que, por meio do uso de sua inteligência prática16-18, preenchem as lacunas deixadas por esta organização prescrita, zelando para dar forma à existência de uma diversidade de atividades e ações que constituem o saber-fazer do serviço, a exemplo, de caminhadas; grupos terapêuticos; oficina de culinária; salão de beleza; grupo de costura; oficina de bijuteria; oficina de comunicação e escrita; grupo de esporte; grupo de sorvete e acompanhamento terapêutico. A coordenação deste trabalhar exige a experimentação de um ritmo de trabalho coletivo harmonioso para a execução de uma obra coletiva que aposta na construção do laço social para a integração do louco e da loucura na sociedade. “Então, eu acho que a gente precisa estar em sintonia no trabalho, se um começa a falhar no que deveria fazer, ai começa a sobrecarregar o outro. Porque eu acho que a potência do CAPS é ser uma equipe de trabalho”. (Entrevistado 03)

As ambivalências do cuidado no CAPS resultam de um confronto cotidiano no qual os relatos das vivências de prazer e de sofrimento dos/das trabalhadores/as representam apenas os sinais dizíveis de uma luta invisível pelo reconhecimento de situações reais que têm, na imaterialidade do trabalho, sua principal força motriz – a subjetividade24. “O que me causa sofrimento é o que está acontecendo no município (...) você fez toda aposta, todo investimento, toda construção de rede, tudo aquilo, e você não ter o reconhecimento do outro?” (Entrevistado 02)

Neste cenário as atividades grupais aparecem como lócus de fortalecimento de uma via de acesso à cooperação transversal na organização do trabalho coletivo. Seu potencial pode ser evidenciado, inclusive, com a participação de pacientes engajados na produção do cuidado de si e do outro, ajudando na promoção das atividades cotidianas para uma melhor integração por meio da convivência no serviço. “Quando eu faço o salão, eu chamo todo mundo lá para trás, então fica um grupo no jardim, onde eles ficam conversando, batendo papo. Eu quero que aquele salão seja um salão de

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beleza, onde as pessoas se encontrem e que conversem e que batam papo sobre a vida lá fora, então tem piada, tem música, tem tudo lá dentro. Então quando eu vejo que um salão de beleza pode propiciar isso eu vejo quantas seis horas eu jogo fora por semana sendo ADD”. (Entrevistado 04)

O CAPS pode ser visto como um lugar onde o protagonismo destes atores transcende o campo estritamente profissional, para se configurar num movimento de luta em defesa da democratização das relações de poder vis-à-vis da normatização dos indivíduos e da medicalização da sociedade pela biopolítica, nos termos empregados por Foucault25. As atividades desenvolvidas no serviço também evidenciam uma produção de relações empáticas que confirmam o deslocamento dos papéis dos sujeitos (equipe dirigente e internados) em favor de uma aproximação entre estes grupos, convergindo para o que Goffman26 caracterizou como liberação do papel institucional. As evidências de um gerencialismo anunciadas nas falas dos/as profissionais mostram as contradições enunciadas no Plano de Trabalho23, que, por um lado, destaca a importância do desenvolvimento de processos de trabalho inovadores e a promoção de um projeto coletivo de cuidado fortalecedor das práticas clínicas e gestoras; e, por outro, define indicadores de produtividade quantitativos para controlar a produção de procedimentos e ações de saúde desenvolvidos no serviço, como analisadores do desempenho individual e coletivo dos/as trabalhadores/as e do serviço. As saídas encontradas por estes/as trabalhadores/as para driblar tais regras, respondendo de uma forma meramente burocrática, remete aos constrangimentos atribuídos por Rastier27 à entrada da linguagem gerencial do mundo empresarial nos espaços de gestão pública, pela utilização, sobretudo, de métodos de avaliação quantitativos, que têm servido para submeter as instituições tanto politicamente quanto para lhes sujeitar às restrições financeiras. Seus objetivos: (i) tornar o processo puramente técnico, passando da avaliação pelos pares para a bibliometria; (ii) aumentar a produtividade, objetivo explícito dos indicadores de desempenho, e, finalmente (iii) aumentar a insegurança dos trabalhadores e trabalhadoras pelas técnicas de assédio moral. As diferentes estratégias de cuidado de orientação clínica, ética e política, identificadas neste estudo, podem, por um lado, contribuir para o processo de transformação qualitativa do conceito de clínica na RPB, pelo alargamento do horizonte de possibilidades da produção do cuidado em favor da destituição das estratégias manicomiais; por outro, a crise da cogestão do convênio evidencia de que maneira constrangimentos gerados pela introdução de um modelo neoliberal na gestão de um serviço público podem precarizar o debate sobre esta mesma clínica e dificultar a construção de regras coletivas de trabalho, o estabelecimento da empatia profissional e o desenvolvimento da cooperação. Entretanto, dentro deste coletivo de trabalho em que, ironicamente, o laço social deveria se constituir como objetivo principal do trabalho, são os espaços informais que aparecem como locais privilegiados para se falar da concretude do trabalho, isto é, “a gente vai tomar um cafezinho e o cafezinho vira quarenta minutos” (Entrevistado 04). Os dados clínicos deste estudo. ao reportarem uma ‘crise de identidade’ associada a uma ‘crise nostálgica’, corroboram com as evidências identificadas por Dejours e Gernet28, quando afirmam que as diferentes manifestações sintomatológicas que caracterizam as entidades psicopatológicas relacionadas às novas formas de organização do trabalho, podem ser reagrupadas esquematicamente sob o título, de um lado, de patologias da solidão, e, de outro, de patologias da servidão. As estratégias individuais, postas em ação no confronto com as diretrizes da gestão, vão ao encontro da abordagem da elucidação das causas das descompensações, pela PDT, que tem evidenciado o impacto causado pela introdução massiva de métodos de gestão sobre a relação subjetiva com o trabalho, paralelamente ao colapso dos recursos defensivos contra o sofrimento. Por fim, estes termos remetem ainda à noção de ‘crise de identidade profissional’29, associada ao emprego, ao trabalho e as relações sociais de classe, e consequência dos processos de modernização sobre a vida cotidiana dos indivíduos, suas condições de vida, salários e, sobretudo, sobre seus empregos.

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Considerações finais Pode-se afirmar que a tese da centralidade do trabalho, tomada como norteadora desta pesquisa, mostrou-se potencialmente eficaz para tratar as questões discursivas que impedem a saída dos/ as trabalhadores/as do registro da ‘crise’ para avançar na produção do cuidado em saúde mental nos pressupostos da RPB. Ao trazer para o centro as disputas produtoras de sofrimento vis-à-vis, uma teoria do trabalho foi capaz de demonstrar como o esvaziamento progressivo de falas sobre o conteúdo do trabalho, nos espaços de deliberação coletiva, pode colaborar para o acirramento destas disputas e para a degradação da clínica e do viver junto. A defasagem entre trabalho real e trabalho prescrito situou a discussão no campo das Ciências do Trabalho. Discussão que, ancorada nas categorias da PDT, permitiu um avanço na compreensão das repercussões do trabalho encarnadas em ambivalências que caracterizam as vivências de prazer e de sofrimento dos profissionais de Saúde Mental no contexto da RPB.

Colaboradores João de Deus Gomes da Silva e Giovanni Gurgel Aciole participaram da concepção, do estudo, coleta de dados, análise e discussão dos resultados; e elaboração e revisão da versão inicial e final do artigo. Selma Lancman participou da análise e discussão dos resultados e da revisão das versões iniciais e final do artigo. Referências 1. Ministério da Saúde (BR). Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União: 19 Set 1990. 2. Ministério da Saúde (BR). Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial União: 28 Dez 1990. 3. Ministério da Saúde (BR). Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União: 06 Abr 2011.

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Silva JDG, Aciole GG, Lancman S

artigos

4. Amarante P. Loucura, cultura e subjetividade: conceitos e estratégias, percursos e atores da reforma psiquiátrica brasileira. In: Fleury S, organizador. Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 163-85. 5. Amarante P. Sobre duas posições relacionadas à clínica e a reforma psiquiátrica. In: Quinet A, organizador. Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 103-11. 6. Basaglia F. A doença e seu duplo: propostas críticas sobre o problema do desvio. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamound; 2005. p. 161-86. 7. Basaglia F. A maioria desviante. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Tradução Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamound; 2005. p. 187-224. 8. Silva Junior AG. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campo da saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 1998. 9. Teixeira CF, Solla JJSP. Modelo de atenção à saúde no SUS: trajetória do debate conceitual, situação atual, desafios e perspectivas. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suarez JM, organizadores. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Abrasco; 2005. p. 451-79. 10. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):219-30. 11. Merhy EE, Feuerwerker LM, Silva E, Gomes MPC, Santos MFL, Cruz KT, et al. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Saude Debate. 2014; 52: 153-64. 12. Franco TB, Merhy EE. O reconhecimento de uma produção subjetiva do cuidado. In: Franco BT, Merhy E, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. Textos Reunidos. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 172-82. 13. Kergoat D. Se battre, disent-elles. Paris: La Dispute; 2012. 14. Brito J. Saúde, trabalho e modos sexuados de viver. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. 15. Molinier P. Le travail du care. Paris: La Dispute; 2013. 16. Dejours C. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. 17. Dejours C. Trabalho e emancipação. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; 2012. 18. Dejours C. Le choix: souffrir au travail n’est pas une fatalité. Montrouge: Bayard éditions; 2015. 19. Merhy EE. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde, uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: Campos CR, Malta DC, Reis AT, Santos AF, Merhy EE, organizadores. Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público: São Paulo: Xamã; 1988. 20. Aciole GG. O lugar, a teoria e a prática social do médico: elementos para uma abordagem crítica da relação médico-paciente no consultório. Interface (Botucatu). 2005; 8(14):95-12. 21. Silva E, Costa A. Saúde mental dos trabalhadores em saúde mental: estudo exploratório com os profissionais dos centros de atenção psicossocial de Goiânia/GO. Psicol Rev. 2008; 14(1):83-106. 22. Lancman S. Ação em psicodinâmica do trabalho: contribuições sobre o trabalhar em saúde mental. In: Lancman S, organizadora. Políticas públicas e processos de trabalho em saúde mental. Brasília: Paralelo 15; 2008.

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23. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado]. 24. Alheit P, Dausein B. En el curso de la vida. Educacion, formación, biograficidade y género en la modernidade tardia. Valencia: Editorial Denes; CREC; 2007. 25. Foucaul M. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985. 26. Goffmann E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva; 1975. 27. Rastier F. Apprendre pour transmettre: l’éducation contre l’idéologie managériale. Paris: PUF; 2013. 28. Dejours C, Gernet I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson; 2012. 29. Dubar C. La crise des identités: le lien social. Paris: PUF; 2010.

Silva JDG, Aciole GG, Lancman S. Ambivalencias en el cuidado de salud mental: la ‘locura’ del trabajo y la salud de los trabajadores. Un estudio de caso de la clínica del trabajo. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):881-92. Estudio de caso de Centro de Atención Psicosocial (CAPS tipo III) del interior del Estado de São Paulo sobre la percepción de los trabajadores de la salud sobre su trabajo, según: (i) empatía profesional, (ii) formas de trabajo colectivo, (iii) los espacios de decisión colectiva, y (iv) la negociación de reglas colectivas de trabajo. En el análisis de los resultados se utilizó la teoría de la “psicodinámica del trabajo”. Las ambivalencias del cuidado, vividas por los trabajadores en la construcción de reglas colectivas y en el desarrollo de empatía y cooperación profesional, representan restricciones institucionales resultantes de la reintroducción de un modelo neoliberal en la gestión del servicio de salud mental.

Palabras clave: Salud mental. Satisfacción en el trabajo. Ambiente de instituciones de salud. Reforma de los servicios de salud. Salud pública.

Submetido em 06/06/16. Aprovado em 07/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0842

artigos

Sentidos de saúde, cuidado e risco para adolescentes residentes na favela da Maré, no Rio de Janeiro, Brasil Marcia Rodrigues Lisboa(a) Katia Lerner(b)

Lisboa MR, Lerner K. Health, care and risk: what do they mean to adolescents living in the Mare favela, Rio de Janeiro, Brazil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):893-906.

This is a qualitative study about the meanings of health, care and risk to Brazilian adolescents living in the Maré favela, in Rio de Janeiro. The analysis is oriented by reflections on the epidemiological perspective that classifies this age group as a risk group, and the media impacts on social relations, through the increase of the circulation of information on the subject. The research had as source the group discussions with adolescents aged between 14 and 16 years old. The study showed competing discourses regarding the risk culture, family traditions and the context of violence in everyday life of the participants. The study highlights the mediation of mothers, physicians working in primary care and the media on the social construction of these meanings.

Keywords: Adolescence. Communication. Health. Care. Risk.

Trata-se de um estudo qualitativo acerca dos sentidos atribuídos aos termos saúde, cuidado e risco por adolescentes brasileiros residentes no conjunto de favelas da Maré, no município do Rio de Janeiro. A análise referencia-se em reflexões sobre a perspectiva epidemiológica de enquadramento dos indivíduos dessa faixa etária na categoria grupo de risco e o processo de midiatização social, que potencializa a circulação de informações a respeito da temática. O principal instrumento de coleta de dados foram discussões em grupo com adolescentes entre 14 e 16 anos. As dinâmicas permitiram observar a presença de discursos concorrentes da cultura do risco, de tradições familiares e do contexto de violência no cotidiano dos participantes. Destacam-se as mediações das mães, dos médicos que atuam na atenção básica e dos meios de comunicação na construção social desses sentidos.

Palavras-chave: Adolescência. Comunicação. Saúde. Cuidado. Risco.

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(a,b) Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde (Laces/Icict), Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4036/512, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-361. marcia.lisboa@icict. fiocruz.br; katia.lerner@ icict.fiocruz.br

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Introdução Os cuidados com a saúde vêm constituindo uma preocupação recorrente que se manifesta tanto no nível individual, nas práticas cotidianas dos sujeitos em relação ao seu próprio corpo, quanto em espaços coletivos, por meio da formulação de políticas públicas sobre o tema e de sua crescente visibilidade nos meios de comunicação. No entanto, a ideia de que o corpo e a saúde estão em risco e precisam ser protegidos pela ação humana não se apresenta de forma homogênea entre os distintos grupos sociais. Os contextos diversos trazem dinamismo aos sentidos que essas noções podem adquirir. Considerando tais questões, este artigo busca compreender os sentidos atribuídos por adolescentes residentes no Conjunto de Favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, às noções de saúde, cuidado e risco. A reflexão proposta origina-se de uma pesquisa qualitativa mais ampla, na interface da comunicação com a saúde acerca das formas de apropriação por esses adolescentes de produtos jornalísticos sobre cuidado e risco à saúde1. A análise ilumina, inicialmente, o forte vínculo entre a noção de cuidado com a saúde e o conceito epidemiológico de risco, que vem sendo estabelecido desde meados do século XX2. A partir da segunda metade da década de 1980 a ideia de risco à saúde assumiu maior complexidade, quando se tornou central na vida cotidiana, resultante de imbricações múltiplas de diferentes áreas do conhecimento. Neste cenário, que tem sido gerador de ações e embates no campo da promoção de saúde, a condição de adolescente adquire dimensões particulares por seu enquadramento na categoria grupo de risco. Um primeiro limite dessa perspectiva decorre da redução da adolescência a processos biológicos desencadeadores de padrões de conduta para qualquer pessoa nesse período da vida. Ao naturalizar a adolescência, abdicando do caráter instável do conceito como constructo social, forjam-se a criação de rótulos sobre o ser adolescente e a construção de uma tipologia frequentemente associada à ideia de geração3,4. A classificação dos adolescentes como grupo de risco é gestada em um ambiente de fobia ao risco que fundamenta ações calcadas no “hiperpreventivismo”5. Os apelos à prevenção de riscos à saúde desse segmento populacional apoiam-se em dados estatísticos epidemiológicos e na disseminação de formulações produzidas por especialistas de áreas médicas e afins – psiquiatria, neurociência, nutrição, entre outras – fomentando argumentos para a deflagração de dispositivos de vigilância. Uma das diretrizes da saúde pública nesta direção tem sido o estudo de comportamentos de risco dos adolescentes (ou da possibilidade de ocorrerem), seu monitoramento e a consequente intervenção. A investigação na qual se sustenta este artigo buscou fugir de rótulos comportamentais, tendo seguido o percurso de escuta dos adolescentes, por meio da interação em grupo, para observar os processos de construção de sentidos dos temas. O estudo orienta-se por reflexões teóricas que consideram esses indivíduos inseridos em um contexto de expansão e aprofundamento do modelo capitalista de produção, após a década de 1990. Especialmente relevante à pesquisa é a característica do novo capitalismo de reforçar a associação de atributos considerados típicos dos jovens contemporâneos à dinâmica do mercado de trabalho. Conforme analisam Boltanski e Chiapello6, uma das mudanças significativas quanto à antiga organização do trabalho é que o novo mercado aciona dispositivos de autocontrole, envolvimento pessoal e motivação a fim de obter adesão dos indivíduos sem necessidade de comando. Associada a esta, outra importante modificação despontada na última década do século XX refere-se à apologia da mudança, do risco e da mobilidade, que se contrapõe à ideia de garantia e estabilidade presentes anteriormente. A valorização de atitudes como ousadia, desafio à estabilidade e o inconformismo destaca-se nesse contexto, não mais voltadas a projetos de transformação social, e sim a processos de individuação, direcionados, sobretudo, aos jovens, considerados ‘cidadãos do futuro’. Em um contexto no qual a juventude é a norma, evidencia-se “um indivíduo heroico que assume riscos, em vez de buscar proteger-se deles por meio das instituições do Estado-providência”7 (p. 25). A lógica contraditória que atribui valor ao risco e, ao mesmo tempo, responsabiliza os indivíduos pelas consequências desse mesmo risco ao qual se submetem é potencializada pelo processo de midiatização da sociedade, definido por Sodré8,9 como uma forma exacerbada de mediação das 894

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tecnologias de informação e comunicação que perpassa as relações sociais. A midiatização ultrapassa os meios tradicionais de comunicação, ganhando projeção nos espaços virtuais de comunicação de múltiplos emissores. Particularmente provocativa para a pesquisa foi a reflexão sobre esse duplo traço da contemporaneidade – a cultura do risco e a midiatização social – no cotidiano de adolescentes de classes populares que convivem com situações discriminatórias pelo fato de residirem em uma favela, agravadas quando se trata de populações jovens10. O estudo considerou os participantes como sujeitos políticos em um território de múltiplas mediações, no qual diferentes atores sociais concorrem na disputa de sentidos.

Metodologia A pesquisa mais ampla combinou técnicas de observação direta e indireta: discussões em grupo, descrição densa dos contextos do campo de investigação, aplicação de questionário e produção de diagramas pelos participantes dos grupos. Para atender ao objetivo deste texto, qual seja, identificar os sentidos atribuídos, pelos adolescentes participantes do estudo, às noções de saúde, cuidado e risco, foram privilegiados os resultados obtidos no trabalho em grupo inspirado no instrumento de grupos de discussão. Trata-se de uma técnica que busca observar os processos interativos e discursivos dos sujeitos de pesquisa. Seguindo esta linha, o pesquisador não conduz a dinâmica, mas propõe um tema como ponto de partida, estimulando o diálogo entre os participantes, que podem fazer associações com outros assuntos, não previstos, redirecionando o debate11. A interlocução entre os sujeitos da pesquisa, por meio desta técnica, permite o afloramento dos sentidos circulantes sobre as noções de saúde, cuidado e risco para eles. As atividades ocorreram entre novembro de 2012 e junho de 2013, com três grupos de adolescentes, de 14 a 16 anos, sendo um deles composto por estudantes de uma escola pública municipal e os outros por participantes de projetos de duas organizações sociais. O primeiro grupo teve seis encontros e os demais, cinco. Quase todos os integrantes eram alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Apenas três cursavam séries anteriores. A entrada em campo condicionou-se à autorização das instâncias gestoras das instituições (incluindo as secretarias de Educação e de Saúde do Município do Rio de Janeiro) e ao consentimento esclarecido dos adolescentes e de seus responsáveis. A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Politécnica da Fundação Oswaldo Cruz, sob o parecer número 140.113. Participaram da pesquisa 33 adolescentes, somados os três grupos. Os encontros tiveram, em média, nove integrantes, e duração em torno de noventa minutos. Tendo em vista que o caráter voluntário da participação foi uma condição inquestionável, explícita no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado a todos (as) por ocasião do convite, considerou-se a evasão inferior às expectativas. A qualquer momento, o (a) adolescente poderia retirar seu consentimento e deixar de participar. Os dados analisados neste artigo foram coletados, primordialmente, no encontro que abordou a percepção dos adolescentes sobre saúde, cuidado e risco e o papel dos interlocutores que compõem suas redes discursivas na construção desses conceitos. A dinâmica teve início com a solicitação de que fizessem associações livres ao termo ‘saúde’. O diálogo continuou com perguntas sobre o que seria uma questão de saúde para os participantes e se pensavam no assunto em algum momento. Em seguida, o disparador foi o termo ‘cuidado’. Após fazerem as associações livres acerca dos sentidos da palavra, os adolescentes foram questionados sobre seus interlocutores a respeito do tema. O termo ‘risco’ deu continuidade às discussões em grupo.

Da ausência de doença ao bem-estar físico e mental A pesquisa tomou como pressuposto a não obviedade da correlação entre saúde, cuidado e risco para os adolescentes. As reflexões foram ancoradas em dois marcos: a passagem do grande modelo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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explicativo da vida, a religião, orientador das representações e práticas sobre a saúde, para o nascimento da medicina moderna, quando o saber médico assumiu a responsabilidade pelo gerenciamento dos corpos12; e a aproximação da saúde ao conceito de risco, fortalecendo a crença no poder da ação humana na antecipação da doença e na possibilidade de controle do adoecimento2,13. O entendimento da medicina como política aplicada ao campo da saúde individual, e da política como a aplicação da medicina no âmbito social, a fim de curar “os males da sociedade”14 (p. 302), estava na base do surgimento da medicina social14, no contexto da Revolução Industrial, com a incorporação de reivindicações relativas à saúde pelas classes trabalhadoras – especialmente em países como Inglaterra, França e Alemanha – e o posicionamento de médicos e filósofos em direção ao caráter social da medicina e da doença. No cenário de pós-guerra, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu, em 1946, a saúde como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença ou incapacidade”15(c) (p. 1). Alguns anos antes, Canguilhem16 já havia desvinculado o conceito de saúde à existência de patologia, em sua tese de doutorado em medicina, que se tornou um marco da epistemologia da saúde. Doença deixava de ter o caráter de desaparecimento de uma ordem fisiológica para ser considerada o aparecimento de uma nova ordem vital; e saúde seria a “margem de tolerância às infidelidades do meio”16 (p. 78). As intervenções iniciais feitas em um dos grupos da pesquisa revelaram a proximidade entre as maneiras como os adolescentes definiram ‘saúde’ e o conceito adotado pela OMS em 194615. As falas a seguir resultam da proposta de dinâmica na qual eles expressariam o que viesse à cabeça quando ouviam a palavra saúde. A fim de evitar possíveis constrangimentos aos participantes, optou-se por usar nomes fictícios. “Bem-estar físico e mental”. (Mariana) “Cuidado. Equilíbrio entre o físico e o mental”. (Guilherme) “O cuidado que a gente tem com essas coisas que o [nome do colega] falou”. (Vitor) “Às vezes a gente se preocupa muito com a saúde física, e esquece um pouco a saúde mental, cuida de um lado e acaba adoecendo do outro”. (Guilherme) “Eu penso primeiramente no médico [risos]. Saúde mental também faz parte, e a gente não pensa muito nisso”. (Alex)

No diálogo, observa-se a presença da ideia de saúde vinculada a equilíbrio – que remonta à mais antiga teoria naturalista sobre sofrimento, vida e morte, atribuída a Hipócrates17 – e sua associação imediata ao cuidado. Esta visão, no entanto, convive com a que vincula a saúde à figura do médico, segundo expressa Alex, mesmo ponderando não ser este um tema no qual pensasse com frequência. A nomeação do médico informa, ainda, sobre o estatuto deste profissional, seja por meio de histórias pessoais ou de representações sociais. Também se destaca, nas vozes dos participantes, o enfoque em relação à saúde mental, tema que voltou à pauta em momentos posteriores das discussões em grupo, com as associações feitas às condições de vida no ambiente em que estão inseridos. 896

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Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of disease or infirmity. (c)


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“Acho que chega uma certa etapa da nossa vida, como se tivesse, sei lá, 50 anos hoje, que a gente começa a pensar nisto [em saúde]. Talvez pelo que as pessoas ao nosso redor estejam passando ou uma preocupação brutal, como a que a gente falou na semana passada. [...]”. (Guilherme) “É, também quando acontece algum problema com alguém próximo assim, a gente fica mais ligada nas coisas”. (Verônica) “E também pelos meios de comunicação que a gente tem”. (Guilherme)

As falas remetem não a situações vivenciadas por eles mesmos, mas por pessoas próximas. Essa referência aparece na intervenção de outro participante do grupo, que vinculou o tema saúde ao “trabalho desgastante” e ao “esforço excessivo, trabalhar demais” (Vitor). Como exemplo, citou os pais. “Sobre o esforço físico, trabalhar demais mexe com as duas coisas: saúde física e mental. A mental, por exemplo, você trabalha o dia inteiro e só vê a família na parte da noite ou quando chega; e física também, por exemplo, se fica muito tempo parado em frente a um computador, no escritório, pode causar sedentarismo, e esforço físico mesmo no trabalho pode gerar uma lesão”. (Vitor)

Destacam-se, em sua fala, a familiaridade com expressões do vocabulário médico, como “sedentarismo” e “lesão”, além de elementos de construção semântica de discursos preventivos. Quando perguntado sobre como se informava sobre esses temas, ele atribuiu ao acompanhamento médico: “Desde cedo. A gente frequenta médico toda hora e eles sempre dão informações para a gente”. Em outro grupo (2), a correlação entre saúde, bem-estar e cuidado apareceu igualmente. “[Saúde é] Se sentir bem todos os dias”. (Daniel) “[Ter] Cuidados consigo mesmo”. (Paula)

Tanto neste grupo quanto no grupo 3 a saúde foi definida como um valor em si, altamente desejável, que remete a um conceito idealista. “Saúde é uma coisa importante. Em primeiro lugar é a saúde”. (Carol) “Para as pessoas continuarem vivas. Se não tiver saúde, você também não tem vida. Vai estar debaixo de um caixão”. (Stefany)

A clássica oposição saúde-doença apresentou-se nos três grupos, aproximada do binômio vidamorte e da noção de saúde como ausência de doença. Este é, de acordo com Almeida Filho17, um dos desafios para a saúde coletiva na contemporaneidade: transformar essa visão em uma concepção positiva de saúde. Ao serem questionados se pensavam em saúde em algum momento, foi recorrente a expressão: “Quando estou doente”. Como variante desta frase, uma adolescente citou a expectativa de ficar doente como algo que a faz pensar em saúde e expressou sua atitude diante da situação: “Aí, eu penso: ‘Não vou ficar doente’” (Paula). Percebe-se, no conjunto das frases, a presença de elementos concorrentes à ideia de antecipar-se ao dano, característica dos discursos sobre o risco, associada à lógica ambivalente do risco: “pensar positivamente” e “ser otimista” são algumas recomendações frequentes para a “boa saúde”.

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O tema da saúde no contexto das experiências pessoais de doenças foi abordado em um dos grupos: “Eu não me dou bem com saúde, ficar doente, essas coisas. Não fico doente direito assim...”. (Lucas) “Ah, direto, eu fico doente o tempo todo”. (Stefany)

No vínculo entre saúde e doença feito por Lucas, as duas palavras não estão em oposição, mas lado a lado, como uma única unidade discursiva. As falas dos dois adolescentes destacam, ainda, a relevância dada à frequência com que ficam doentes (“não fico doente direto” / “fico doente o tempo todo”), seja pela afirmação ou pela negação. Observa-se a correlação entre comportamentos e danos à saúde, mesmo que não tenham a prática que os exporia a tais danos, como relata Stefany: “Tipo câncer não é uma coisa que você pega numa relação, mas HIV é. Mas como não faço relação nenhuma, só fico no beijo, não tenho medo de pegar. O câncer você pega naturalmente”. Embora dois integrantes deste grupo tenham informado não pensarem em saúde, registrou-se uma preocupação com o tema, com elementos da cultura ‘riscofóbica’. Ainda que sejam menos sujeitos ao adoecimento do que adultos, estão inseridos em um contexto comunicativo marcado pela profusão de informações sobre a importância de cuidar do corpo. Não por acaso o risco direto ao próprio corpo, que mais apareceu nas falas, é aquele associado, frequentemente, ao comportamento de adolescentes e jovens, seja na mídia, na escola ou em outros espaços de circulação de informações: a contaminação pelo vírus HIV.

Alimentação saudável, camisinha e exercício físico A abordagem sobre os sentidos de cuidado para os participantes da pesquisa trouxe componentes ricos para o entendimento de seus processos de apropriação do tema. Se a vinculação entre saúde e cuidado, a partir da apresentação do termo ‘saúde’, foi imediata, ela não se reproduziu quando a palavra ‘cuidado’ tornou-se o objeto de discussão. Ou seja: quando os adolescentes fizeram associações livres acerca da palavra ‘saúde’, o termo ‘cuidado’ apareceu imediatamente, em todos os grupos, conforme apontado no item anterior; mas quando foram demandados a fazer associações livres com a palavra ‘cuidado’, não verbalizaram o termo ‘saúde’. No entanto, os participantes estabeleceram aproximações entre o termo ‘cuidado’ e elementos do campo discursivo da saúde, como ‘prevenção’ e ‘alimentação’, como se pode verificar adiante. Este dado foi observado à luz da análise foucaultiana, segundo a qual o princípio de que é preciso ter cuidados consigo estaria na base da existência, fundamentando a sua necessidade, comandando seu desenvolvimento e organizando sua prática18. Na abordagem com os adolescentes sobre o cuidado, um termo que surgiu espontaneamente, logo no início dos debates, foi o substantivo ‘prevenção’ e sua forma verbal ‘prevenir’, o que aponta não apenas o acesso a informações com este objetivo, como formas de apropriação desses conteúdos, conforme revela o comentário: “É muito aquela coisa que se falou: a gente só tem cuidado quando está doente. [risos] Não tem ‘a’ prevenção” (Guilherme). O adolescente sinalizou as aspas com o gesto manual, reforçando o artigo, da mesma forma que havia feito anteriormente em referência à saúde. Outros participantes concordaram. Embora o cuidado tenha sido associado à situação de doença, tal qual ocorreu quando o tema em discussão era a saúde, o registro acerca da prevenção sinaliza a forte presença de discursos nessa perspectiva no cotidiano dos adolescentes pesquisados. Um dos assuntos vinculados por vários participantes, nos três grupos, ao cuidado à saúde foram as práticas alimentares. No grupo 1, o debate partiu da manifestação de um adolescente sobre a preocupação com a “alimentação em excesso”. A referência ao vocábulo “besteira” sinalizou a autocrítica dos adolescentes em relação a seus hábitos, que incorpora o discurso da promoção de saúde associada à boa alimentação. As falas apontam para a apropriação de discursos circulantes sobre a “alimentação saudável”. Mesmo quando revelam práticas que contradizem as recomendações, elas são tomadas como referência. 898

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“A que alimentação você se refere? É quantidade ou o tipo de alimento que não faz bem?” (pesquisadora) “Qualidade e quantidade”. (Tiago) “Um pouquinho dos dois. Às vezes é aquela besteira que a gente gosta e quer comer toda hora”. (Vitor) “Também a qualidade”. (Guilherme) “O que vocês gostam de comer?” (pesquisadora) “Vários: Besteira” [risos]. “Tudo o que não pode” [risos]. (Rafaela)

Ainda na linha da autocrítica aos hábitos alimentares, um integrante do grupo 3 disse, com tom de preocupação, que pensava em saúde quando comia gordura. “Eu como muita fritura” (Lucas). A ideia de saúde foi também vinculada à autoimagem corporal e, secundariamente, à alimentação, por uma participante do grupo 2. Seu primeiro comentário ao tema sobre o momento em que pensava em saúde foi: “Quando me olho no espelho e vejo as gordurinhas. Tem que fazer dieta para emagrecer; é saúde” (Manuela). Embora fosse magra, a adolescente trouxe referências de um padrão estético difundido na atualidade. Outro assunto vinculado à saúde por uma participante deste grupo foi a atividade sexual: “Até na relação sexual a gente tem que pensar em saúde, tomar remédio, usar camisinha... Tem que se prevenir, senão pega doença” (Isabele). Em vários momentos, houve referências de integrantes do grupo a questões relacionadas à prática sexual (especialmente sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis). A circulação de discursos preventivos de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis mostrou-se intensa nos debates dos grupos. Alguns participantes manifestaram o esgotamento provocado pela repetição exaustiva de recomendações. No entanto, mesmo aqueles que expuseram a insatisfação com o volume de alertas sobre o assunto, consideraram importante a continuidade das campanhas e da divulgação ampliada. A prática de atividades físicas também foi associada à saúde por integrantes de dois grupos, como reporta Luciano: “A gente pensa [em saúde] na hora do esporte também”. Em outro grupo, foi feito um vínculo entre a incidência de doenças e a ausência de exercícios físicos. “[As pessoas que ficam doentes] são mais aquelas pessoas que não praticam nenhum exercício” (Henrique). Contudo, os participantes foram irônicos ao abordarem a experiência própria. Embora incorporem a ideia de que esporte faz bem à saúde, não o praticam com regularidade. O diálogo aponta o acesso a informações de especialistas, mas, também, o distanciamento entre a prescrição e a conversão em prática. “Eu não [pratico]”. (Daniel) “Eu pratico, todo dia. Acordar cedo”. (André) “Eu pratico todo dia. Acordo cedo, subo aquela passarela toda. Queima as calorias”. (Carol) “Ir para a escola”. (Isabele) “Eu pratico. Futebol”. (Henrique) “Ver televisão”. (André)

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“Computador”. (Caio) “Exercícios para os dedos”. (Paula)

Cuidados com a alimentação e prática de atividades físicas são temas destacados nos meios de comunicação como indicação médica de promoção da saúde(d). A pesquisa apontou que tais prescrições reverberam entre os adolescentes, ou seja, têm acesso às recomendações mas as transgridem, o que contribui para atestar a não linearidade entre apropriação de informações e mudanças comportamentais.

Discursos circulantes sobre o cuidado Um aspecto, observado nos três grupos, em relação ao tema “cuidado”, foi a forte referência à mãe, de modo especial, ou a algum outro familiar (muitas vezes, uma outra figura feminina, como a avó), como a principal interlocução direcionada ao cuidado. Os alertas, segundo relataram vários participantes da pesquisa, são diários. Os relatos permitiram identificar três blocos temáticos desses alertas: os conjunturais, relacionados ao contexto em que vivem, associados a situações de violência; os vinculados à memória, às tradições familiares e ao saber popular; e aqueles comuns a outros contextos, no Brasil e em outras regiões, na atualidade.

Quadro 1. Alertas da família (especialmente da mãe) Blocos temáticos

Conjunturais (ser morador da Maré)

Relacionados a tradições culturais

Comuns a contextos mais amplos no Brasil

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Alertas mencionados nas discussões em grupo

. Cuidado quando há tiroteio / “tiro na favela”. . Cuidado para não cair da laje. . Cuidado com o “caveirão” [Veículo blindado usado pelo

policiamento especial nas operações na favela]. . Cuidado com fogo [ao cozinhar]. . Cuidado quando vê uma notícia [sobre operação policial ou tiroteio na favela]. . Cuidado com os cracudos [usuários de crack].

. Não andar descalça para o pé não crescer demais. . Não sentar no chão quente para não pegar hemorroida. . Não comer gelo. . Não andar descalço para não pegar resfriado. . Não falar com estranhos. / Cuidado com as pessoas da rua . Cuidado com o estuprador. . Tomar cuidado para não ser atropelada. . Cuidado com roubo ou assalto. . Cuidado com a rua. . Tomar cuidado com a internet [relacionamentos virtuais]. . Não pegar carro [carona] com qualquer pessoa. . Tomar cuidado para não deixar o gás ligado em casa. . Quando vai a uma festa, cuidado com o copo. . Levar casaco e guarda-chuva. . Cuidado com quem vai se misturar. . Cuidado com qualquer coisa.

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Dado obtido do monitoramento sobre câncer no jornal O Globo e na Revista Veja, durante o período de janeiro a junho de 2012, no âmbito do projeto “Os sentidos do câncer: um estudo sobre sofrimento, mídia e narrativas biográficas”, coordenado por Kátia Lerner e com apoio do edital CNPq 43/2013 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. (d)


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Dentre os alertas relacionados ao contexto em que vivem, observa-se a presença da mediação jornalística na fala: “Cuidado quando vê uma notícia [sobre operação policial ou tiroteio na favela]”. O interesse pelo noticiário sobre os acontecimentos na Maré, especialmente aqueles relacionados à violência armada, aparece vinculado à temática do cuidado. A última recomendação, “Cuidado com qualquer coisa”, é reveladora da percepção sobre a amplitude dos perigos no contexto global contemporâneo, que guarda correspondência com o que Bauman19 define como a ubiquidade dos medos. A fala de uma adolescente toma esta direção: “Hoje em dia tudo é perigo, agora” (Carol). De acordo com os adolescentes, algumas recomendações são seguidas por eles, mas nem todas. As falas abaixo mostram posicionamentos divergentes em relação às orientações recebidas. Foram retiradas de grupos distintos, não sendo apresentadas na sequência dos diálogos. “Às vezes eu obedeço, às vezes, não”. (Isabele) “Mas a maioria só aprende quando vive”. (Sofia) “Ou quando alguém perto vive, né?” (Vitor) “Já aconteceu comigo de ficar nervosa. Já aconteceu com um amigo também. Sou muito medrosa. Se vou a um lugar e tiver muita gente estranha, já fico com medo, já quero ligar para a minha mãe, já quero ligar para o meu pai...”. (Daniela) “Quando eu estava sentada na calçada, minha avó falou: Está maluca! Eu falei: ‘O que foi, vó?’ E ela: ‘Vai pegar hemorroida!’ Estava muito quente. Estava com sol batendo na calçada. Eu saí na hora”. (Isabele) “Tipo assim, eu tenho mania de comer gelo. Aí minha avó fica: ‘Cuidado, vai ficar doente, vai pegar uma pneumonia, vai parar no hospital’. Mas eu não quero saber não, como mesmo”. (Paula) “Eu gosto de andar de skate e tem muito lugar que minha mãe diz: “Olha, não vai andar lá!”, e sempre que pego o skate, ando no lugar em que ela fala que não pode andar, porque são os lugares mais legais, por exemplo, onde passa muito carro”. (Alex)

Vale observar, no entanto, que nenhum participante mencionou os alertas da mãe e de outros familiares em tom de reclamação ou, mesmo, de insatisfação. Ainda que alguns ironizassem as recomendações, tomadas como atitudes intrínsecas a qualquer movimentação deles, as citações foram carinhosas, como a justificar o gesto de proteção. Um exemplo foi a entonação suave usada por Luís (Grupo 3) em referência à mãe: “Qualquer coisa ela fica preocupada”.

Do estupro à internação hospitalar: os medos expressos Assim como houve diferença nas formas de vincular ‘saúde’ com ‘cuidado’ e ‘cuidado’ com ‘saúde’, os participantes da pesquisa relacionaram, de imediato, os termos ‘perigo’, ‘cuidado’ e ‘risco’, articulando-os em suas falas, mas não fizeram, a priori, o vínculo entre ‘saúde’, ‘perigo’ e ‘risco’. A desconexão entre esses últimos, por associação livre, em contraste com a forte relação semântica feita entre perigo, cuidado e risco assinala o descolamento dos sentidos de saúde e risco para os participantes da pesquisa. A discussão sobre risco foi ampliada, trazendo a percepção de sua imprevisibilidade, que se aproxima da ideia de fatalidade, e não de perigo como algo evitável, presente na perspectiva de prevenção para o controle do risco, na modernidade20,21.

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“Acho que tudo tem risco, gente. A gente pode tropeçar e cair lá embaixo. O prédio cair”. (Guilherme) “Tudo pode acontecer”. (Luciano) “Pode cair e quebrar a perna. Tudo é risco. Tudo é muito imprevisível”. (Verônica)

O caráter ambivalente de ‘perigo’, que provoca medo e, ao mesmo tempo, atração, pôde ser observado nas frases: “Perigo é o que não pode”. (Nicole) “Eu já passei por coisas arriscadas que podem...” (Guilherme) “Adrenalina”. (Verônica)

A expressão ‘curiosidade’ foi recorrente neste grupo, considerada por eles como uma característica de adolescentes e jovens. A palavra aparece como justificativa da exposição a situações ‘perigosas ou arriscadas’. “É o que a [nome da colega] reclamou aqui no meu ouvido [risos]. Ela falou que tem muitos riscos necessários para a nossa vida, para a curiosidade que a gente tem. Pelo menos eu sou muito curioso, gente”. (Guilherme) “Eu também. Tudo o que é perigoso a gente gosta, né?” (Flávia) “Porque quebra a disciplina”. (Aline) “O que não pode, a gente quer fazer. Sair da rotina, do certo”. (Guilherme)

As falas, observadas fora do contexto mais amplo das discussões, podem provocar a percepção da existência de um grau de adesão aos parâmetros definidos para comportamentos de adolescentes, largamente difundidos pelos meios de comunicação. Entretanto, participantes deste grupo questionaram, em outro momento, discursos sobre a adolescência que os caracterizam como sujeitos volúveis e problemáticos. Os diálogos sobre os temas perigo e risco reportaram o sentimento de medo relacionado a situações contextuais, como a violência armada. O medo de ser baleado foi referido por alguns participantes da pesquisa. Nas discussões em dois grupos, o medo do estupro foi mencionado repetidas vezes, como na fala de Carol: “Eu tenho medo de estupro, que fazem mais com a gente que é pequena.” No grupo 3, o assunto suscitou relatos de episódios que envolveram pessoas próximas: uma participante citou o caso de abuso sexual de uma criança em sua família, por um parente próximo, sublinhando o impacto que isto gerou para todos, e para ela, especialmente; e um adolescente mencionou que uma amiga foi estuprada e morta por um amigo do pai dela. Assaltos e roubos também foram citados em um dos grupos (2), gerando controvérsias sobre quem seria alvo desses atos. O diálogo permitiu divergências quanto ao risco de ser roubado ou assaltado, e argumentações com base em experiências pessoais. A referência aos idosos como pessoas que estariam mais vulneráveis a esse risco foi feita por integrantes do grupo 3. Em contrapartida, participantes dos grupos 1 e 2 mencionaram a pedofilia como uma ameaça direcionada a adolescentes também. Além dos temores associados à violência, adolescentes do grupo 3 citaram medos relacionados à morte e ao sofrimento provocado por doenças. Novamente, a proximidade de experiências dolorosas

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foi vinculada ao sentimento, conforme o relato de um participante que perdeu um amigo vítima de câncer. Antes de citar o episódio e de nomear a doença, ele fez referência ao processo de sofrimento no ambiente hospitalar: “Só tenho medo de ficar internado” (Lucas). Quando questionado sobre o motivo, respondeu: “É, hospital público...” A discussão prosseguiu com a participação dos colegas: “Eu tenho medo de morrer carbonizada”. (Stefany) “Ficar em hospital”. (Sabrina) “Eu não tenho medo de morrer, eu sei que um dia a morte vai chegar. Se estiver programado que vou morrer naquele dia, vou morrer naquele dia”. (Stefany) “Ah, não! Eu tenho medo de morrer”. (Sabrina) “Eu tenho medo de coisa tipo: vai sofrendo, sofre, sofre, sofre, e depois vai morrer”. (Lucas) “É, isso é muito ruim”. (Sabrina) “Mas vocês conhecem casos de pessoas jovens que passaram por isto?” (pesquisadora) “Tem uma menina aqui na vila que morreu”. (Stefany) “Eu conheço. Meu amigo morreu de câncer”. (Lucas) “Teve que raspar a cabeça”. (Stefany) “Meu amigo tinha a minha idade. Ele tinha no pé. Depois cortou a perna e depois morreu, no ano passado”. (Lucas)

Em resumo, os medos manifestados pelos adolescentes estão relacionados a dois tipos de situações: morte e adoecimento; e violência.

Quadro 2. Medos manifestados pelos participantes da pesquisa Medo da morte e do adoecimento . Medo de morrer. . Medo de morrer carbonizada. . Medo de ficar internado . Medo de ter câncer. . Medo de pegar HIV.

Medo da violência

. Medo de ser estuprada. . Medo de ser baleado. . Medo sde ser assaltado ou roubado. . Medo de pedófilos.

O agrupamento dos medos em duas categorias buscou iluminar o forte impacto da violência nas manifestações dos participantes da pesquisa. Os relatos analisados na perspectiva da construção social de sentidos trazem à tona a convivência cotidiana com situações de violência na região onde vivem e, também, a violência simbólica, pulverizada em diferentes comunidades discursivas, em especial, nos meios de comunicação.

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Considerações finais A extensa produção bibliográfica que associa ‘risco’ a ‘adolescentes’ revela o grau de interesse pela temática, particularmente na área da saúde, em grande medida, para embasar estudos que os posicionam no foco das atenções da promoção de saúde. Esta constatação não se propõe a desqualificar as iniciativas de prevenção de riscos à saúde do adolescente. Tampouco desconsidera as reflexões surgidas a partir delas. Ao buscar compreender como esses indivíduos se apropriam das informações circulantes em suas redes discursivas sobre saúde, cuidado e risco, a pesquisa realizada propõe-se a contribuir para a reflexão sobre as políticas de promoção de saúde dirigidas a esse grupo populacional. A partir das atividades realizadas, foi possível observar a demanda ‘introjetada’ de discursos da cultura do risco, que reforçam a necessidade permanente de cuidar de si, por meio de mecanismos de autocontrole, manifestados, por exemplo: na autocrítica quanto ao consumo de alimentos que não seriam saudáveis (comer besteira), na prática de atividade física ou no uso de preservativos nas relações sexuais. Tais discursos concorrem com os argumentos de prevenção ao risco inscritos nas próprias construções que enquadram os adolescentes como grupos de risco. Ao justificarem algumas atitudes de submissão a riscos pela ‘curiosidade do adolescente’, participantes da pesquisa apontaram a contradição contida nos alertas ao cuidado de si. Esta correlação, feita de forma recorrente por vozes especialistas acionadas nos canais de comunicação, não apenas reduz as motivações de submissão a riscos à dimensão biológica, pelo crivo homogeneizador da faixa etária, como aponta um obstáculo intransponível para as estratégias de proteção desses indivíduos. Afinal, se a curiosidade é considerada uma característica constitutiva da adolescência, estaria justificada a maior submissão a riscos pelos indivíduos assim caracterizados, e pouco ou nada restaria a fazer por parte dos formuladores de políticas públicas de promoção de saúde e profissionais do campo. No que se refere às redes de sentidos dos participantes da investigação, o estudo apontou a forte interlocução com a família, especialmente com a mãe, e a percepção de que esta mediação traz, também, leituras e interpretações desses outros sujeitos a partir do acesso que fazem dos meios, atravessado, igualmente, pelo processo de midiatização, além dos acionamentos das tradições culturais desses atores sociais. Outros mediadores destacados nos diálogos nos grupos foram: os profissionais de saúde, em particular, os médicos que atuam na atenção básica, nos postos de saúde da Maré; e os meios de comunicação, em especial, o suporte televisivo e a internet. Embora as práticas dos adolescentes relativas aos cuidados com a saúde não tenham sido objeto de estudo, e sim os sentidos atribuídos por eles aos temas, a investigação trouxe elementos significativos para referendar a fragilidade da perspectiva que atribui o cuidado de si ao conhecimento do risco. Ainda que os indivíduos potencialmente expostos não tenham essa experiência, o acesso à informação sobre um determinado perigo é insuficiente para a tomada de atitude preventiva. Conforme sustenta Beck21, a capacidade de perceber riscos e convertê-los em referenciais para pensar e agir depende de as relações causais estabelecidas entre circunstâncias e projeções menos especulativas tornarem-se críveis e imunes a prováveis objeções. Os limites de estudos centrados no conhecimento e nas atitudes dos indivíduos foram ressaltados por pesquisadores como Paiva22, em análises sobre a prevenção ao HIV. Orientada pela perspectiva dialógica freireana, a autora aponta caminhos de interlocução para a composição de cenários culturais, por meio de espaços de interação e redes sociais. Adotando premissa semelhante, este artigo privilegiou a compreensão dos sentidos de saúde, cuidado e risco pelos participantes da pesquisa. Ao se analisarem os lugares de interlocução desses jovens, ou seja, o lugar social a partir do qual se comunicavam, associando-os aos diferentes contextos em que estavam inseridos23, acredita-se poder contribuir para a construção de um conhecimento que possibilite a formulação de políticas mais próximas de sua realidade. Tal aposta, materializada por uma estratégia metodológica que inclua os sujeitos de pesquisa como parte ativa na investigação, reforça a demanda por investimento no processo de pesquisa. 904

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Colaboradores Marcia Rodrigues Lisboa responsabilizou-se pela concepção do artigo, pela coleta e análise de dados e pela redação do texto. Kátia Lerner orientou a pesquisa, trabalhou na revisão crítica do manuscrito e auxiliou na normalização da versão final. Referências 1. Lisboa MR. Cuidado, ser adolescente é arriscado: formas de apropriação de produtos jornalísticos sobre cuidado e risco à saúde por adolescentes da Maré [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Fundação Oswaldo Cruz; 2014. 2. Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saude Colet. 2001; 6(1):63-72. 3. Freire Filho J. Retratos midiáticos da nova geração e a regulação do prazer juvenil. In: Borelli S, Freire Filho J, organizadores. Culturas juvenis no século XXI. São Paulo: Educ; 2008. p. 33-57. 4. Rocha E, Pereira C. Juventude e consumo: um estudo sobre a comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X; 2009. 5. Castiel LD, Sanz-Valero J, Vasconcellos-Silva PR. Das loucuras da razão ao sexo dos anjos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. 6. Boltanski L, Chiapello E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF/Martins Fontes; 2009. 7. Ehrenberg A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida: Ideias e Letras; 2010. 8. Sodré M. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes; 2002. 9. Sodré M. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes; 2014. 10. Novaes R. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In: Almeida, IM, Eugenio F, organizadores. Culturas jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar; 2006. p. 105-20. 11. Weller W. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes teórico-metodológicos e análise de uma experiência com o método. Educ Pesqui. 2006; 32(2):241-60. 12. Foucault M. Microfísica do poder. 8a ed. Rio de Janeiro: Graal; 1989. p. 79-112. 13. Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010 (Temas em saúde). 14. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? [Internet]. 1998 [citado 27 Jan 2012]. Disponível em: http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101998000400001&lng=en&nrm =iso. 15. World Health Organization. Basic documents. 47a ed. Genebra: WHO; 2009. 16. Canguilhem G. O normal e o patológico. 6a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. 17. Almeida Filho N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. 18. Foucault M. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 1985. 19. Bauman Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: J. Zahar; 2008.

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20. Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2001. p. 104-34. 21. Beck U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34; 2010. 22. Paiva V. Analisando cenas e sexualidades: a promoção da saúde na perspectiva dos direitos humanos. In: Cárceres C, Careaga G, Frasca T, Pecheny M, organizadores. Sexualidad, estigma y derechos humanos. Desafíos para el acceso a la salud en América Latina. Lima: FASPA/UPCH; 2006. 23. Araújo I, Cardoso J. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.

Lisboa MR, Lerner K. Sentidos de salud, cuidado y riesgo para adolescentes residentes en la Favela da Maré, en Río de Janeiro, Brasil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):893-906. Se trata de un estudio cualitativo sobre los sentidos atribuidos a los términos salud, cuidado y riesgo por parte de adolescentes brasileños residentes en el conjunto de favelas da Maré, en el municipio de Río de Janeiro. El análisis usa como referencias reflexiones sobre la perspectiva epidemiológica de encuadramiento de los individuos de ese rango de edad en la categoría grupo de riesgo y el proceso de mediatización social que potencializa la circulación de informaciones sobre la temática. El principal instrumento de colecta de datos fueron discusiones en grupo con adolescentes entre 14 y 16 años. Las dinámicas permitieron observar la presencia de discursos concurrentes de la cultura del riesgo, de tradiciones familiares y del contexto de violencia en el cotidiano de los participantes. Se destacan las mediaciones de las madres, de los médicos que actúan en la atención básica y de los medios de comunicación en la construcción social de esos sentidos.

Palabras clave: Adolescencia. Comunicación. Salud. Cuidado. Riesgo.

Submetido em 19/11/15. Aprovado em 08/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0941

artigos

Cultura participativa: um processo de construção de cidadania no Brasil

Carla Aparecida Arena Ventura(a) Marcela Jussara Miwa(b) Mauro Serapioni(c) Márjore Serena Jorge(d)

Ventura CAA, Miwa MJ, Serapioni M, Jorge MS. Participatory culture: citizenship-building process in Brazil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):907-20.

This study aims to describe the elements – context and resources –influencing social participation in a Municipal Health Council (MHC). It is a descriptive research using a qualitative approach. Data collection was done through direct observation of the MHC dynamics and semi-structured interviews with its members. Data analysis was based on thematic analysis, aiming to fit into the categories established by World Health Organization (WHO) regarding the dimensions of context and resources that influence participatory culture, such as: i) awareness related to political participation; ii) civil society organization; iii) structures and spaces; iv) resources; v) knowledge; and vi) impact of policies and past practices. As a result, authors found problems with regards to these components, as well as the fact that social participation is still weak and its biggest obstacles are related to communication between stakeholders and social institutions.

Keywords: Social participation. Municipal health council. Participatory culture.

Este estudo pretende descrever os elementos – contexto e recursos – que influenciam a participação social em um Conselho Municipal de Saúde (CMS). Trata-se de pesquisa descritiva com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de observação direta da dinâmica do CMS estudado e de entrevistas semiestruturadas com seus membros. A análise dos dados baseou-se na análise temática, visando aproximar as categorias obtidas com as categorias estabelecidas pela OMS sobre as dimensões do contexto e dos recursos que influenciam a cultura participativa, quais sejam: i) políticos conscientes da questão da participação; ii) organização da sociedade civil; iii) estruturas e espaços; iv) recursos; v) conhecimento; e vi) impacto das políticas e práticas anteriores. Como resultado, constatou-se que os componentes são deficientes e a participação popular é ainda precária, e os maiores obstáculos são aqueles relacionados à comunicação entre vários atores e instituições sociais.

Palavras-chave: Participação social. Conselho municipal de saúde. Cultura participativa.

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(a) Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP-RP). Av. dos Bandeirantes, 3900, Campus Universitário, Bairro Monte Alegre. Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14040-902. caaventu@eerp.usp.br (b) Pós-doutoranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP-RP. Ribeirão Preto, SP, Brasil. marcelajmiwa@ yahoo.com.br (c) Pós-doutorando, Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal. Investigador, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal. mauroserapioni@ ces.uc.pt (d) Enfermeira. Ribeirão Preto, SP, Brasil. marjore.serena@ hotmail.com

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Introdução A proposta de participação da sociedade em projetos políticos de qualquer natureza surgiu a partir da década de 1940 com duas finalidades: reforçar os mecanismos de democracia, abalados mundialmente pelas duas grandes guerras, e, também, como uma maneira de minimizar as responsabilidades crescentes do Estado moderno-neoliberal para com os cidadãos1. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o direito à saúde foi proclamado como um direito humano fundamental, consolidado com o Pacto Internacional das Nações Unidas sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Posteriormente, a Declaração de Alma Ata sobre Atenção Primária de 1978, além de outras Resoluções e Declarações aprovadas no contexto da Organização Mundial da Saúde (OMS), fundamentam a compreensão da participação social como meio de defesa do direito à saúde. Nesse sentido, embora o surgimento da prática da participação social tenha sido, inicialmente, motivado pela necessidade socialmente construída de fiscalizar e controlar o Estado, é possível, por meio dessa participação, lograr o avanço na construção de uma rede de serviços de saúde em que todos os envolvidos lutem por seus direitos e estejam comprometidos com o coletivo. No âmbito dos Conselhos Municipais de Saúde (CMS), a participação social pode contribuir para a organização de uma rede de saúde local mais resolutiva e equânime, emergindo como espaço democrático para a manifestação da participação social. Nessa perspectiva, a Organização Mundial de Saúde2 construiu um modelo de cultura participativa, enfatizando as dimensões de contexto e recursos que influenciam a participação social. Este estudo pretende descrever os elementos – contexto e recursos – que influenciam a participação social em um CMS do interior do estado de São Paulo. Visando-se alcançar tal objetivo, em um primeiro momento, apresenta-se a relação entre a participação social e o Sistema Único de Saúde, elencando os componentes necessários para a participação; posteriormente, abordam-se a história, estruturação e competências dos CMS; e, por fim, discutem-se a construção e as lacunas da cultura participativa do CMS estudado.

O Sistema Único de Saúde (SUS) e participação social Desde a Constituição brasileira de 1988, a participação social é assegurada no Sistema Único de Saúde, estimulando a compreensão, o controle e a fiscalização da sociedade sobre as ações do Estado. Constitui uma forma de realizar a democracia, que representa um sistema de governo em que as decisões políticas seguem as necessidades e as orientações dos cidadãos, por meio de seus representantes (vereadores, deputados e senadores) ou, diretamente, pelo povo. Com a participação social, os cidadãos podem interferir no planejamento, realização e avaliação das atividades do governo em relação à garantia do direito humano à saúde3. Contudo, mesmo com essa abertura democrática para manifestação política da sociedade civil, constatam-se deficiências na participação social. Já no início dos anos 2000, Baquero4 apontou que ainda prevalecia o princípio da exclusão social na política nacional, que “longe de estar construindo uma cultura política participativa e democrática, materializa-se como uma cultura política fragmentada e individualista, com pouco capital social” (p.103). Recorrendo à acepção latina de cultura, que deriva do verbo latino colere, significando cultivo ou cuidado, “uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém”5 (p.55), entende-se que a construção de uma cultura participativa, que respeita “a autonomia das pessoas e seus direitos”2 (p.18), demanda tempo, necessitando de um terreno propício para que as potencialidades possam florescer e se manifestar. Levando-se em conta que, no caso do Brasil, a exclusão social na política ainda se faz presente, paradoxalmente, deve-se contar com a colaboração dos governos e representantes políticos para a construção das condições necessárias para a emergência da participação social. Como forma de diminuir as desigualdades sociais em saúde, os governos podem criar mecanismos para facilitar a participação social, assegurando uma representatividade mais equitativa e visando 908

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Políticos conscientes da questão e motivados para lidar com ela

Estruturas e espaços

Políticas e práticas anteriores CULTURA

Recursos

Conhecimento

artigos

garantir “a legitimidade e dar voz a todas as partes envolvidas”2 (p.13). Isso se daria por meio da institucionalização de mecanismos formais, transparentes e públicos, oferecendo incentivos, subsídios, acesso à informação e treinamento às partes interessadas, aumentando a autonomia das comunidades, atingindo melhor os grupos carentes e lidando com os conflitos de interesse existentes. Por sua vez, a sociedade civil também deve se responsabilizar pela construção de uma nova cultura participativa. “O envolvimento das comunidades monitorando a responsabilidade sobre as decisões tomadas é particularmente importante”2 (p.18). Além do monitoramento sobre a implantação de políticas e seus resultados, a sociedade civil pode contribuir conscientizando o público sobre as iniquidades em saúde, ajudando as comunidades a se organizarem e defendendo uma governança mais inclusiva2. É o que Carvalho6 classificaria de “empowerment comunitário”: cujo “aspecto central é a possibilidade de que os indivíduos e coletivos venham a desenvolver competências para participar da vida em sociedade, o que inclui habilidades, mas, também, um pensamento reflexivo que qualifique a ação política” (p.1092). Segundo a Organização Mundial de Saúde2, além de governos e políticos sensíveis à questão da participação e de uma sociedade civil organizada e mobilizada em defesa de seus interesses e direitos, a construção de uma cultura participativa depende de quatro componentes fundamentais: a) estruturas e espaços que permitam que a participação ocorra, o que inclui estruturas políticas, físicas e institucionais, por exemplo, no caso da participação em saúde, é importante que haja instituições apropriadas para a manifestação e apresentação de demandas das comunidades. Além disso, é importante que esses locais apresentem infraestrutura adequada para receber os segmentos sociais, como: espaço físico adequado, horários de atendimento e reuniões acessíveis à população; b) recursos: as partes necessitam de tempo, dinheiro e capacidade institucional para promoverem sua participação e defenderem seus interesses. A disponibilidade de recursos não depende apenas do governo, a própria sociedade civil pode oferecer incentivos para a participação e “ajudar as comunidades a identificar as questões que deveriam priorizar”2 (p.19); c) conhecimento: as informações devem estar disponíveis ao público e os participantes devem possuir conhecimento suficiente para participarem e entenderem os processos burocráticos. A oferta de cursos de capacitação e treinamento, tanto para representantes dos diferentes segmentos sociais (gestores, profissionais e representantes dos usuários) como para a própria comunidade, contribui para a construção do conhecimento e fortalecimento da cultura participativa; d) o impacto de políticas e práticas anteriores na participação e sua relação com o governo: as experiências que os grupos sociais possuem sobre sua relação com os governos e instituições de participação podem influenciar as percepções e formulações políticas. “Grupos que sofrem discriminação serão muito refratários a integrarem mecanismos de participação”2 (p.19). A crise na representatividade, isto é, os segmentos sociais não se sentirem representados, também desestimula o cultivo de uma cultura participativa. A Figura 1 ilustra as dimensões do contexto da cultura participativa e dos recursos que influenciam a participação social.

Organizações da Sociedade Civil capazes de colocar a questão na agenda dos decisores e buscar para que seja desenvolvida

Figura 1. Dimensões do contexto e dos recursos que influenciam a participação social. Fonte: OMS, 2011.

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Nesse cenário, para auxiliar a sociedade no exercício da participação social na área da saúde, há várias esferas de participação popular no âmbito da hierarquia do SUS: as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde (federal, estadual e municipal). Este estudo foca o Conselho Municipal de Saúde como órgão de participação social.

Os Conselhos Municipais de Saúde no Brasil Em 1990, com a lei n°8.142/90, estabeleceu-se: a criação de conselhos de saúde em nível federal, estadual e municipal com caráter permanente e deliberativo, como órgãos colegiados compostos por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários7 com capacidade de avaliar e fiscalizar serviços e recursos em saúde, sendo responsabilidade dos Conselhos divulgarem os trabalhos e decisões para todos os meios de comunicação, incluindo informações sobre agendas, datas e local de reuniões. Os CMS têm, portanto, uma importância estratégica no processo de reestruturação da atenção à saúde e na reformulação das relações entre gestores, profissionais e usuários. Nesse sentido, esperase que os CMS funcionem como instâncias de participação social, como espaços de expressão de demandas e expectativas dos vários segmentos que os compõem8,9. Contudo, por vezes, os conselhos são pouco efetivos na inserção das camadas populares nos embates políticos e reivindicação de direitos pela precariedade da comunicação, e da transmissão de informações entre os conselheiros e entre eles e sua própria base de apoio10, o que desestimula o engajamento e a participação. Nesse contexto, a questão da representatividade também é problemática, pois “nem sempre os representantes dos usuários e as associações de pacientes conseguem ser representantes das necessidades de toda população e, sobretudo, dos setores sociais mais desfavorecidos”11 (p.4834).

Objetivos e métodos Este estudo apresenta como objetivo descrever as dimensões do contexto da cultura participativa e dos recursos que influenciam a participação social em um CMS do interior do estado de São Paulo. Trata-se de pesquisa descritiva com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de observação direta da dinâmica do CMS estudado e de entrevistas semiestruturadas com seus membros. Para a realização da observação direta, um dos autores deste estudo frequentou as reuniões do CMS, como ouvinte, durante o período da coleta de dados, com o intuito de obter maior número de informações sobre a dinâmica do CMS e a atuação dos conselheiros. Essa observação pautou-se em um roteiro preestabelecido sobre: a dinâmica das reuniões, quórum, segmentos que mais se manifestavam e a presença da população, fornecendo-nos dados sobre os elementos recursos, estruturas e espaços. Quanto às entrevistas semiestruturadas, propiciaram informações sobre: conhecimentos, políticas e práticas e cultura, assim como sobre as relações com o ambiente externo, especialmente, com políticos e organizações da sociedade civil. A análise dos dados coletados por meio de observação e entrevistas baseou-se na análise temática de Bardin12, por meio da leitura exaustiva do material para organização dos dados e posterior identificação e sistematização de unidades temáticas. Ressalta-se que essa análise procurou aproximar as categorias identificadas com as dimensões do contexto e dos recursos que influenciam a cultura participativa visualizadas na figura da OMS2, quais sejam: i) políticos conscientes da questão da participação; ii) organização da sociedade civil; iii) estruturas e espaços; iv) recursos; v) conhecimento; e vi) impacto das políticas e práticas anteriores. Primeiramente, dois autores realizaram a leitura minuciosa do material separadamente, revisando os dados da observação e as entrevistas, explorando, organizando e identificando unidades temáticas e suas subcategorias. Depois, os outros dois autores revisaram as análises e as categorizações, estabelecendo os temas principais. Os resultados dessa segunda etapa foram submetidos à apreciação de todos os autores até chegarem a um consenso sobre as unidades temáticas finais. 910

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O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, n° do protocolo: 1450/2011.

Resultados e discussão: cultura participativa – contexto e recursos Na época da pesquisa, foram identificados 26 membros titulares no CMS estudado, sendo que 13 (50%) eram representantes dos usuários do SUS e os outros 50%, representantes de entidade dos profissionais de saúde, prestadores de serviço, comunidade científica e governo. Nove foram entrevistados – dois gestores, dois prestadores de serviço e cinco representantes dos usuários – com tempo médio de atuação no CMS de cinco anos. Entre os entrevistados, seis eram homens e três, mulheres, que ocupavam as seguintes profissões: administrador de empresas, médico, farmacêutico, gestor administrativo, assistente social, serviços gerais, segurança, microempresário e aposentado. Desses participantes, apenas um era solteiro. Cada entrevista durou, em média, uma hora. A seguir, apresentam-se as unidades temáticas de acordo com as dimensões de recurso e contexto que influenciam a cultura participativa com base no modelo proposto pela OMS. i) Governo e políticos conscientes da questão da participação Dificuldades na integração entre o CMS e outros órgãos do Governo O funcionamento e atuação do CMS dependem de sua relação com outras esferas da sociedade, especialmente, o governo. Sobre esse assunto, os conselheiros mencionaram a necessidade de receberem maior atenção, por parte do governo, às suas solicitações. “Nossos governantes até enxergam a gente como Conselho quando há a necessidade de algum interesse próprio deles, mas quando nós vamos reivindicar, questionar que determinada ação está errada, aí eles perguntam, o que você está fazendo aqui. (...). Nossos governantes precisavam ouvir mais os Conselhos, ouvir mais a sociedade organizada, porque nós temos ideias gratuitas para levar e eles esquecem esse de espaço de discussão da comunidade”. (C1)

O pouco comprometimento das elites políticas brasileiras com a democracia leva à descrença da população na possiblidade concreta de efetivação democrática, acarretando a diminuição da participação da população no controle social e na situação de preservação e continuísmo de um regime autoritário13. Reconhece-se que a organização dos grupos sociais e o conhecimento dos trâmites burocráticos da esfera pública facilitam o diálogo com o Estado14,15. No entanto, grupos organizados com pouca representatividade, laços de pertencimento e projetos frágeis, atuando apenas por interesses, especialmente econômicos, não são capazes de ampliar as relações democráticas entre população e governo nem colaboram para a justiça e emancipação popular16. ii) Organização da sociedade civil Falta de quórum deliberativo Conforme mencionado anteriormente, uma sociedade civil organizada apresenta um diálogo melhor com o governo, entretanto, no caso do CMS estudado, notou-se uma desarticulação dos representantes dos segmentos sociais. Nas observações realizadas, percebeu-se que a falta de quórum deliberativo é um fator que gera incômodo nos conselheiros que frequentam e se comprometem com as reuniões do Conselho, pois declaram que disponibilizam tempo e energia para se dedicarem a uma causa que consideram importante e que são prejudicados por outros membros que não assumem a responsabilidade com o cargo de conselheiro, gerando mal-estar entre os presentes e a falta de motivação para participação futura. “É importante participar das reuniões, eu tenho meus compromissos, mas eu venho, mas tem gente que não vê desse jeito e não vem... tem vezes que a gente não consegue votar as coisas porque não tem gente suficiente...perde-se muito tempo”. (C9)

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Ainda com base na observação, infere-se que a presença dos gestores se fez maior devido ao papel que lhes é atribuído de conduzirem reuniões, trazerem o maior número de informações possíveis sobre os assuntos pautados e esclarecerem dúvidas que, por ventura, surgirem. O segmento dos usuários também apresentou elevado número de presença. A (Des)integração entre o CMS e a sociedade civil Segundo os entrevistados, o que prejudica a participação popular no CMS é o fato de a população se expressar de maneira individual e não organizada comunitariamente. Relataram perceber uma participação pontual de alguns membros do Conselho, uma vez que os representantes não se juntam à comunidade para trazerem suas demandas, ou seja, não há um canal efetivo de comunicação com a população. “Eu vejo uma participação muito individual”. (C6) “Acaba ficando restrita, por exemplo, a um representante de Associação de Moradores que é do Conselho, então um parente, um conhecido fica mais ou menos restrito ao meio de cada conselheiro”. (C7)

Tal fato indica um problema de representatividade, como já mencionado anteriormente11, prejudicando o interesse da população nas questões concernentes às ações e deliberações do CMS. Um dos meios utilizados pela população para resolver suas necessidades é a mídia televisiva. “Nem quando eles têm alguma dificuldade eles não vêm [...]. Hoje eles estão acostumados a ir pra mídia, pra imprensa (...)”. (C3)

iii) Estruturas e espaços Dificuldades físicas e institucionais para a participação O CMS estudado é composto por 26 (vinte e seis) titulares, sendo que 50% (treze) são representantes dos usuários do SUS, e os outros 50%, representantes de entidade dos profissionais de saúde, de prestadores de serviço, da comunidade científica, de entidades empresariais relacionadas com a saúde e representantes do governo. Segundo os conselheiros, as pessoas encontram dificuldades físicas, como sobrecarga de atividades, e institucionais, como o local e hora das reuniões, para cultivarem uma cultura de participação. “Por falta de informação e de abertura, ela não tem participado muito não, seria ideal que participasse muito mais. [...] sabemos que existe um esforço em dificultar o acesso, porque os usuários são pessoas que trabalham, uma reunião que é convocada às 14 horas, ele não pode participar porque ele está trabalhando [...] As reuniões do conselho são às 19h, mas somente uma reunião por mês”. (C4) “90% sabe mas não participa, não vêm [...]. As pessoas hoje vivem em função de levantar pra trabalhar, voltar 6 horas da tarde, fazer janta, lavar roupa, cuidar das crianças, não têm tempo pra vir nos conselhos, para participar até nas comunidades, nas associações de bairro”. (C3)

A fim de se obter maior participação popular, foi sugerido que o CMS se reunisse “uma vez ao mês com a população de cada região do município” (C4), com o objetivo de se aproximar da comunidade e entender melhor suas demandas. Foi também recomendado que houvesse uma maior divulgação, na mídia, sobre as realizações do CMS para que a população saiba como o CMS atua e quais as melhorias resultantes de suas ações na cidade.

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iv) Recursos Infraestrutura inadequada e falta de recursos financeiros No que diz respeito aos recursos para a participação, um estudo elaborado por Coelho15 relatou a situação de desvantagem da população, uma vez que não conta com disponibilidade de tempo, transporte, assessoria institucional, enfim, toda uma infraestrutura que deveria estar presente para que pudesse participar mais de órgãos como o CMS. No caso do CMS estudado, não é diferente, além de se depararem com algumas dificuldades no exercício de suas tarefas – como por exemplo: falta de infraestrutura adequada para pequenos encontros, estudo, pesquisa e discussão; dificuldade para participar em cursos de capacitação de conselheiros novos; escassez de recursos financeiros para custear as viagens e participação dos conselheiros em congressos ou outros encontros que tratem da saúde pública –, os conselheiros, especialmente do segmento dos usuários, ainda encontram dificuldades para apresentarem suas demandas, fato que pode prejudicar a construção da cultura participativa. “Eu acho que os membros podiam ganhar pelo menos a passagem de ônibus para participar das reuniões”. (C8) “Olha, foi com muito custo que conseguimos essa sala e esse computador, ainda é pouco, mas é melhor que nada, né?” (C5)

v) Conhecimento Lacunas na capacitação dos conselheiros A questão do conhecimento é importante para a qualidade da participação e da representatividade social. Nessa perspectiva, no CMS estudado, nota-se a necessidade de melhor capacitação por parte de alguns membros. Durante a observação, registraram-se algumas dificuldades referentes à dinâmica do conselho, tais como: desconhecimento com relação ao funcionamento do SUS, legislação, assuntos e termos técnicos da área da saúde; repetição das falas de outros conselheiros ou do mesmo assunto, várias vezes, durante uma mesma reunião; e a falta de estudo prévio dos assuntos tratados nas reuniões, apesar do recebimento das pautas. Além disso, em muitas situações, as discussões do Conselho restringiram-se a questões burocráticas, como prestação de contas e planos de saúde, que poderiam ser resolvidas nas próprias unidades de saúde, permitindo ao CMS tratar de assuntos de maior amplitude para o município. Observa-se, dessa forma, que o Conselho estudado ainda tem pouca autonomia para definir políticas de saúde, funcionando, muitas vezes, como instância burocrática e com articulação intersetorial mínima. Os próprios entrevistados mencionaram a necessidade de se melhorar a representatividade, com o conselheiro cumprindo adequadamente o seu papel, não apenas no que diz respeito à articulação conselheiro-segmento que representa, como a própria atuação do conselheiro durante as reuniões. Como sugestões para lidar com os problemas mencionados, foram citados: a criação de um curso de capacitação permanente para os conselheiros, assim como um processo mais criterioso de seleção. “[...] curso de capacitação de conselheiros permanente sobre as questões do SUS, como funciona, o que é verba vinculada, pois usamos muitos termos técnicos de difícil compreensão”. (C6)

O baixo número de conselheiros que recebem capacitação, antes de assumirem a função, expõe uma fragilidade do Conselho, que pode ser consequência da baixa oferta de capacitações na área da participação social e/ou uma espécie de “efeito colateral” do dispositivo legal de rotatividade mínima dos conselheiros. Nessa perspectiva, considera-se a capacitação como imprescindível para se alcançar a participação adequada e efetiva17-20.

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Ainda, comumente os projetos e cursos de formação/ capacitação para conselheiros de saúde não levam em conta as necessidades cotidianas, e as metodologias e referenciais pedagógicos utilizados, muitas vezes, não contemplam a diversidade e heterogeneidade dos grupos. Nesse sentido, é desafiadora a formatação de experiências que possam atender estas premissas, socializando conhecimentos ‘técnicos’, de forma que sejam “apropriados” por grupos heterogêneos como o de conselheiros21. Insuficiência de informações sobre participação social e o desconhecimento da população O desconhecimento e a insuficiência de informações compreensíveis à população sobre participação social não prejudicam apenas a participação dos conselheiros, como, também, a própria mobilização das pessoas. A maioria dos conselheiros citou o desconhecimento, por parte da população, a respeito de seus direitos na área da saúde, assim como de participação social, atribuindo esse fato à carência de fontes de informação e divulgação. “A saúde, como um direito universal do cidadão, não é divulgada como deve, e muitas vezes a própria imprensa [...] não dá as informações que deve, e não divulga todos os direitos”. (C3)

Salienta-se, nesse processo, a relevância da valorização de movimentos de educação em direitos, como passo imprescindível para o empoderamento dos usuários dos serviços de saúde, pois, apesar dos dispositivos legais e das políticas públicas existentes, vislumbram-se, ainda, dificuldades na compreensão do sentido de seus direitos pela população, que o vivenciam mais como um favor concedido pelo Estado, do que, prioritariamente, como direitos essenciais ao exercício de sua dignidade humana22. A mídia, como canal de comunicação e difusora de informações, foi bastante criticada pelos conselheiros, que relataram não receber seu apoio no sentido de divulgar as realizações do CMS e informar a população sobre esse espaço de democratização. “Os próprios meios de comunicação e a própria Secretaria [de Saúde] deixam a desejar com a divulgação [...] Pode ter certeza que se a população tivesse mais acesso às informações ela estaria participando mais”. (C4)

A divulgação e circulação de informações entre os representantes das instâncias colegiadas e seus representados é pressuposto básico para a efetividade da participação social no sistema de saúde. No entanto, a organização dos serviços de saúde, que ainda reflete o modelo centrado no ato médico voltado para ações curativas, não tem tido preocupação em despertar o sujeito para a participação social em saúde23,24. Nesse movimento, o CMS, por meio de seus representantes, poderia desempenhar um papel mais ativo junto aos segmentos representados, tendo em vista a formação e educação em direitos da população. vi) Impacto das políticas e práticas anteriores Conquistas do CMS O tema da efetividade da participação é bastante recorrente na literatura internacional dos últimos dez anos, já que a participação, necessariamente, implica a capacidade de influir junto a um processo público decisório. Para Entwistle25, “a noção de participação faz pouco sentido se faltar o potencial de influência” (p.1). Neste prisma, várias pesquisas nacionais têm ressaltado que, nem sempre, a voz dos representantes dos segmentos dos usuários consegue exercer uma influência sobre as deliberações dos CMS26,27. Os resultados deste estudo confirmam o desafio da efetividade da participação enfatizados tanto pela literatura nacional como internacional. Nesse sentido, esta pesquisa levantou opiniões diversas sobre o tema da influência, considerando-se, especialmente, que as experiências anteriores dos participantes, suas conquistas e as relações que estabelecem com os órgãos governamentais podem influenciar sua percepção sobre participação e as formulações políticas existentes.

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Apesar dos dados apresentados até o momento, que apontam lacunas nos componentes da cultura participativa, houve um aspecto positivo relatado e frisado pelos conselheiros: as conquistas do CMS. Segundo os participantes deste estudo, durante o mandato de 2009 a 2012, o Conselho obteve várias conquistas por meio de sua atuação. Temas como inauguração de Unidades de Saúde, reformas, alteração de leis ou códigos e prêmios recebidos foram considerados conquistas alcançadas, possibilitando, aos conselheiros, visualizarem a resolutividade de algumas ações, o que pode gerar, como consequência, motivação para a continuação de seu trabalho. Nessa perspectiva, as ações do Conselho devem ser divulgadas externamente, visando à valorização dos ganhos com a participação. Segundo os conselheiros, a percepção da influência do CMS na melhoria do sistema local de saúde colabora para o fortalecimento de uma cultura participativa entre a população. Eles argumentaram que observaram muitos avanços na saúde do município e atribuíram essas conquistas ao caráter aberto do CMS, à postura do presidente do Conselho e à organização da sociedade. “Nós conseguimos muita coisa nesse mandato aqui, não nos outros que era muita burocracia. E isso se dever à abertura da Secretaria, do secretário, o espaço que ele deu pra gente estar trabalhando junto com ele”. (C2)

Ao serem perguntados sobre sua participação, os conselheiros afirmaram que participam, conseguem se manifestar e são atendidos em seus pedidos. Ressaltaram, ainda, a abertura do Conselho e do espaço garantido que possuem para se manifestar. “Eu considero minha participação 100%, eu não abro mão, [...] fiscalizo 100%. Eu consigo me manifestar dentro do conselho, sem dúvida! [...] eu não venho aqui pra cobrar uma coisa que não é pra população, são coisas que realmente são necessárias, eu preciso de um médico na unidade, então cadê o médico? [...]”. (C3)

Reivindicações populares nem sempre são atendidas pelo CMS Em contraposição, outros conselheiros afirmaram que participam, conseguem se manifestar, algumas vezes são atendidos e, em outros momentos, não. “Eu acho que a minha participação é boa, eu consigo defender as minhas opiniões, as vezes eu consigo fazer com que ela prevaleça, as vezes não, mas isso faz parte do jogo [...]”. (C5)

As falas ressaltaram também a associação feita, pelos conselheiros, entre a participação social e a possibilidade de fiscalização do Estado, assim como a utilização da tática de se retirar da reunião, por alguns conselheiros, como meio de demonstrar sua insatisfação quanto às decisões tomadas ou ao fato de seus pedidos terem sido negados. Ainda, apesar de muitos conselheiros declararem que os representantes não cumprem seu papel de buscar as demandas das comunidades, ao avaliarem sua própria participação, dão-se por satisfeitos e, quando não, atribuem sua insatisfação à plenária do Conselho por não atender as reivindicações. Contudo, os conselheiros destacaram, também, que a população em geral perde o estímulo de participar, pois, muitas vezes, não tem suas reivindicações respeitadas quando leva suas necessidades ao CMS. “ Existe hoje um retrocesso nesse espaço de participação porque o cidadão acaba ficando frustrado por não conhecer esse espaço e quando ele chega a participar de um conselho local de saúde, ele acaba fazendo algumas reivindicações que os nossos governantes, gestores, não respeitam, então o que pesa hoje é a política partidária [...] porque eles esquecem que o poder emana do povo”. (C1)

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Falta de renovação dos conselheiros Outro aspecto que desestimula o engajamento popular nas questões relativas ao CMS é a falta de renovação dos conselheiros. “Eu acho que o CMS funciona bem, mas ele tem problemas de representatividade, são sempre os mesmos”. (C5)

Entretanto, no que diz respeito às experiências e participação dos conselheiros, de forma geral, houve uma avaliação positiva tanto pelas conquistas como pela atuação individual dos conselheiros entrevistados.

Participação social: uma cultura em processo de construção Alguns participantes do estudo relacionaram as dificuldades de participação popular dentro do CMS a uma questão cultural. “[...] dos 104 bairros, só tem 30 que estão com suas associações atuantes. Dos 30, somente 7 mandaram candidatos pra participar do Conselho [...] então essa participação é típica do brasileiro, o brasileiro não é de participar muito [...]. Quer dizer, o povo não se sente responsável pela própria história, [...], algumas mudanças a gente tem visto, há alguns sinais de que essa nova geração vem vindo com uma nova consciência, mas ainda é um movimento muito incipiente. Por isso que o político aqui faz campanha distribuindo bola de futebol, dentadura, é aquela coisa de prover, é o político provedor, você vai votar em mim porque eu vou te ajudar a hora que você precisar”. (C5)

Essa fala corrobora a forte cultura estadista existente no Brasil, na qual as pessoas, geralmente, responsabilizam o Estado pelas soluções de seus problemas cotidianos, condenando-se a uma situação de resignação, conformismo e impotência. Segundo Gastal e Gutfreind28, o Estado é percebido, em suas representações, como uma instância alheia à população e que a domina: uma esfera na qual habitam médicos, funcionários públicos, políticos e patrões, motivados por interesses particulares. Entretanto, a construção de uma cultura participativa não deve ser atribuída somente à relação estabelecida com o Estado e governantes, uma vez que envolve também o contexto no qual os sujeitos estão inseridos. Acesso deficiente à informação, escassez de recursos e precariedade na infraestrutura, além de frustração em tentativas precedentes de participação, contribuem para solapar o interesse e a mobilização da sociedade civil. O desinteresse e a imobilidade social, por sua vez, prejudicam o processo de mudança do contexto e da cultura participativa. Em síntese, retomando a figura esquemática das dimensões e dos recursos que influenciam a participação social elaborada pela OMS2, os dados coletados e analisados do CMS estudado podem ser representados conforme a Figura 2. Observando-se a figura, sobre as condições e elementos existentes para a cultura participativa em um CMS de uma cidade do interior paulista, constata-se que os componentes são deficientes e a participação popular é ainda precária. Os únicos elementos positivos relatados pelos conselheiros foram os relacionados às conquistas do CMS, que, apesar de serem aspectos importantes para o incremento da cultura participativa, demonstraram-se ainda pouco explorados e divulgados. A literatura enfatiza diferentes elementos que contribuem para a qualidade e efetividade da participação social, tais como a cultura política e a relação de poder entre os atores do CMS, que não dependem, exclusivamente, da informação e comunicação sobre as atividades desenvolvidas. Outrossim, neste estudo, estas foram ressaltadas pelos conselheiros como fatores relevantes para o desconhecimento popular frente às ações do Conselho estudado, influenciando negativamente a cultura de participação.

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Impacto das políticas e práticas anteriores Reivindicações populares nem sempre são atendidas pelo CMS Falta de renovação dos conselheiros Conquistas do CMS

Falta de integração entre o CMS e outros órgãos do Governo

Estruturas e espaços Dificuldades físicas e institucionais para a participação

Cultura participativa Visão paternalista do Estado Crise de representatividade Predomínio da visão individual

Recursos Falta de infraestrutura adequada e de recursos financeiros

Falta de quórum deliberativo e falta de integração entre o CMS e a sociedade civil

Conhecimento Desconhecimento da população Falta de capacitação dos conselheiros Falta de informação

Figura 2. Inter-relação entre os achados deste estudo e as dimensões do contexto e dos recursos que influenciam a participação social.

Considerações finais A cultura participativa, como cultivo ou cuidado para a plena realização das potencialidades políticas da população, ainda caminha com passos tímidos. O que se pode constatar com o presente estudo é que os maiores obstáculos a serem superados, para viabilizar a construção da cultura participativa, são aqueles relacionados à comunicação entre os vários atores e instituições sociais. Considerando a comunicação e a informação como alguns dos elementos que sustentam a participação, no que diz respeito às dimensões e recursos que a influenciam, o contexto analisado caracterizou-se pelas ausências por meio da: falta de articulação com outros órgãos do governo, falta de quórum, falta de integração entre CMS e sociedade civil, falta de infraestrutura e recursos, falta de capacitação, falta de informação, falta de renovação dos conselheiros. Dessa forma, a cultura participativa encontrou entraves relacionados à existência de relações assimétricas entre interesses e poderes dos diferentes atores envolvidos no CMS estudado. Estes entraves são acentuados com: a comunicação falha entre CMS e o governo, CMS e sociedade civil, e a dificuldade de comunicação entre os grupos da sociedade civil, além da precariedade da informação da população sobre as ações do Conselho e dos próprios conselheiros sobre as normas e dinâmica do CMS. Em contrapartida, os conselheiros destacaram muitas conquistas do CMS, elementos que poderiam incentivar a aproximação entre CMS e população. Contudo, a falta de divulgação dessas ações prejudica o processo de ‘empowerment comunitário’. Esperar que somente a mídia seja responsável por publicizar as conquistas do CMS e as reivindicações populares é repassar a outro algo que é de responsabilidade e interesse tanto do Conselho como da sociedade civil organizada. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nesse sentido, existem meios para dinamizar uma cultura participativa, muitos deles apontados pelos próprios conselheiros: acesso à informação, estratégia de busca ativa de demandas populares, curso permanente de capacitação de conselheiros, melhoria nos critérios de seleção de conselheiros, mudança no regime interno do CMS no que tange à reeleição dos membros, assim como apoio financeiro aos representantes do segmento dos usuários (para transporte, diária, etc.). Outra alternativa para que o CMS estabeleça relações positivas tanto com a população como com o governo e favoreça uma cultura de participação pode ser o investimento nos Conselhos Locais de Saúde (CLS). Os CLS são espaços próximos das comunidades, capazes de gerar laços de pertencimento e elaborar projetos em conjunto com os grupos sociais. Além de facilitar o acesso à informação e comunicação entre Conselho e população, a proximidade com o CLS pode auxiliar a população a restaurar a confiança e exigir de seus representantes, construindo, dessa forma, um maior diálogo e consciência sobre seus direitos e espaços democráticos para manifestar e cultivar sua cultura de participação.

Colaboradores Carla Aparecida Arena Ventura orientou a pesquisa e colaborou na concepção, redação e revisão final do manuscrito. Marcela Jussara Miwa colaborou na concepção, redação e revisão final. Mauro Serapioni colaborou na discussão dos resultados e revisão final. Márjore Serena Jorge colaborou na coleta de dados, redação preliminar do texto e revisão final. Referências 1. Testa M. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, Abrasco; 1992. 2. Organização Mundial de Saúde (OMS). Diminuindo as diferenças: a prática das políticas sobre determinantes sociais de saúde: documento de discussão. Rio de Janeiro; 2011. 3. Tribunal de Contas da União (BR). 4a Secretaria de Controle Externo. Orientações para conselheiros de saúde. Brasília; 2010. 4. Baquero M. Cultura política participativa e desconsolidação democrática – reflexões sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo Perspec. 2001; 15(4):98-104. 5. Chauí M. Cultura e democracia. Crít Emancip. 2008; 1(1):53-76. 6. Carvalho SR. Os múltiplos sentidos da categoria “empowerment” no projeto de Promoção à Saúde. Cad Saude Publica. 2004; 20(4):1088-95. 7. Lei n° 8.142/90, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área saúde. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. 8. Cortes SMV. Construindo a possibilidade de participação de usuários: conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde. Sociologias. 2002; 4(7):18-49. 9. Van Stralen CJ. Conselhos de saúde: efetividade do controle social em municípios de Goiás e Mato Grosso do Sul. Cienc Saude Colet. 2006; 11(3):621-32.

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Ventura CAA, Miwa MJ, Serapioni M, Jorge MS. Cultura participativa: un proceso de construcción de ciudadanía en Brasil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):907-20. El objetivo de este estudio es describir los elementos – contexto y recursos – que influyen en la participación social en un Consejo Municipal de Salud (CMS). Se trata de un estudio descriptivo con abordaje cualitativo. Los datos se colectaron por medio de la observación directa de la dinámica del CMS estudiado y de entrevistas semi-estructuradas con sus miembros. El análisis de los datos se basó en el análisis temático, con el objetivo de aproximar las categorías obtenidas con las establecidas por la Organizaciõn Mundial de Salud (OMS) sobre las dimensiones del contexto y de los recursos que influyen en la cultura participativa y que son los siguientes: i) políticos conscientes de la cuestión de la participación; ii) organización de la sociedad civil; iii) estructura y espacios; iv) recursos; v) conocimiento; y vi) impacto de las políticas y prácticas anteriores. Como resultado, se constató que los componentes son deficientes, que la participación popular todavía es precaria y que los mayores obstáculos son los relacionados a la comunicación entre diversos actores e instituciones sociales.

Palabras clave: Participación social. Consejo municipal de salud. Cultura participativa.

Submetido em 23/12/15. Aprovado em 30/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0180

artigos

Para uma “ecologia de saberes” em saúde: um convite dos terreiros ao diálogo

Rafael Afonso da Silva(a) Juan Carlos Aneiros Fernandez(b) Daniele Pompei Sacardo(c)

Silva RA, Fernandez JCA, Sacardo DP. Towards an ”ecology of lore and knowledge” in health: an invitation from the terreiros to dialogue. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):921-31.

Based on the analysis of a set of interviews with leaders of terreiro communities, this paper discusses the possibilities of an “ecology of lore and knowledge” in health and, more specifically, the possibilities for interaction between the African matrix knowledge and Western scientific medicine knowledge. Along the way, through the engagement in a dialogue between the “conceptual imagination” of authors and the one of their African matrix interlocutors, the paper explores the possible results of an “ecologizing” process between those two types of knowledge, its presuppositions and the barriers to its fulfillment. In this sense, rather than a onesided theoretical approach to the subject, the article seeks to make visible and valuable the conceptual elaboration of the interviewed leaders, building its argument from a transcultural imaginative effort.

A partir da análise de um conjunto de entrevistas com lideranças de comunidades de terreiro, este artigo discute as possibilidades de uma “ecologia de saberes” em saúde e, mais concretamente, as possibilidades de interação entre os saberes de matriz africana e os saberes da medicina científica ocidental. Nesse percurso, estabelecendo um diálogo entre a “imaginação conceitual” dos autores e aquela de seus interlocutores de matriz africana, explora os possíveis desfechos de um processo “ecologizador” entre aqueles dois tipos de saber, seus pressupostos e as barreiras para sua efetivação. Nesse sentido, no lugar de uma aproximação teórica unilateral ao tema, o artigo busca visibilizar e valorizar a elaboração conceitual das mães e dos pais de santo entrevistados, construindo seu argumento a partir de um esforço imaginativo transcultural.

Keywords: Ecology of knowledge in health. African matrix. Health equity. Brazilian National Health System.

Palavras-chave: Ecologia de saberes em saúde. Matriz africana. Equidade em saúde. Sistema Único de Saúde

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(a,b,c) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária Zeferino Vaz. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. rafonso@ fcm.unicamp.br; aneirosfernandez@ gmail.com; dsacardo@ fcm.unicamp.br

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PARA UMA “ECOLOGIA DE SABERES” EM SAÚDE: ...

A Margot Moraes, filha de Xangô, em memória(d) Este artigo(e) é resultado de um processo de pesquisa coletivo, construído em interações diversas entre pesquisadores acadêmicos reunidos em torno do campo da saúde coletiva e lideranças(f) de comunidades de matriz africana(g) convidadas: a expor seus conhecimentos e experiências sobre a produção de saúde e a especificidade dos cuidados em comunidades de terreiro, bem como a relatar suas experiências com o Sistema Único de Saúde (SUS) e a refletir sobre o sentido e as possíveis modalidades de interação entre o SUS e as comunidades de matriz africana. O artigo concentra-se no segundo território de investigação, mais especificamente, sobre o modo como nossos interlocutores abordaram o tema das possíveis interações entre os saberes em saúde presentes naqueles dois contextos de cuidado, conduzindo, assim, a reflexão para um campo de indagação mais amplo e menos específico, aquele das modalidades de relacionamento entre os saberes de matriz africana e os saberes da medicina científica ocidental. Na verdade, o que este artigo intenta apresentar não é tanto a perspectiva das lideranças de matriz africana participantes do projeto em relação ao tema em tela, quanto uma versão da “imaginação conceitual”1 coproduzida nas conversas entre os pesquisadores acadêmicos e essas lideranças em torno desse tema. Por isso, o que as páginas seguintes procuram relatar é a transformação da própria estrutura de imaginação conceitual de que partimos, enquanto grupo de pesquisadores, no contato com outras imaginações conceituais e suas potencialidades. Uma das preocupações convergentes que fundamentava a possibilidade do ‘agir comum’ do grupo de pesquisa era a questão da ‘colonização’ e da ‘descolonização’, sobre a qual nos debruçamos coletivamente instigados por uma literatura diversificada, mas, em especial, por escritos de Santos2,3. Essa literatura nos sensibilizava para a ‘diversidade epistemológica do mundo’ e a diversidade dos modos de viver e das práticas sociais que a mobilizam e reconstroem, em processos de implicação recíproca, bem como para os processos heterogêneos que a suprimem, obstruem e invisibilizam, produzindo distinções/iniquidades sociais e ‘monopolismos epistemológicos’. Em relação ao SUS, interessava-nos ampliar a compreensão dos sentidos de equidade/iniquidade, a partir da grade da ‘justiça cognitiva’, que se fundamenta em uma intenção ‘ecológica’, orientando-se pela perspectiva do reconhecimento, em termos igualitários, dos distintos saberes, e não apenas pela “ideia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico”2 (p. 57). Isso quer dizer que, além da preocupação legítima com a garantia da universalidade do acesso, com as dificuldades de implementação da equidade em um contexto de desigualdades sociais ordenadas por múltiplas linhas de distinção e com as dificuldades de implementação da participação social, deveríamos atentar para a questão da exposição ao ‘monopolismo epistemológico’ da medicina científica e seus efeitos na produção de uma ‘hipossuficiência’ dos agentes individuais/ coletivos no campo da produção da saúde e dos cuidados4. Exercício indissociável da indagação sobre a possibilidade de “promover a interação e a interpendência entre os saberes científicos e outros saberes, não-científicos”2 (p. 57), no contexto do SUS, na perspectiva da ‘copresença igualitária’ dos distintos saberes. Um texto(h) que informou o ‘agir comum’ do grupo de pesquisa destaca a importância de se analisar a ‘pluralidade de vetores e sentidos’ para a aproximação entre SUS e comunidades de terreiro, em vista das iniciativas recentes de ‘articulação deliberada e sistemática dos dois campos’. No mapeamento dos entendimentos a respeito da relação terreiros/saúde presentes na literatura acadêmica, identifica a possibilidade de uma ‘cartografia’ 922

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Margot Moraes, filha de santo de Iyá Vera de Oyá Laja, foi uma das interlocutoras do projeto. Mulher guerreira, filha de Xangô, que conquistou nossa admiração e nosso carinho. (d)

Texto decorrente de pesquisa realizada sob responsabilidade do Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação em Cidades Saudáveis – CEPEDOC, com financiamento do Ministério da Saúde/ SGEP/DAGEP, mediante celebração de Carta Acordo com a Organização PanAmericana da Saúde (OPS), sob n. BR/ LOA/1300019.001. Subprojeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp. (e)

Agradecemos a todos os participantes do projeto, especialmente, aos pais e mães de santo citados neste texto: Iyá Lúcia Omidewá, Iyá Vera de Oyá Laja, Mam’etu Odé Belogesi, Bàbá Tonican Mário de Ogum, Bàbá Moacir de Xangô, Tata Alassinanguê Akinjolê, Tata Geová de Kavungo e Tata Ngunz’tala. (f)

Optamos pela expressão “matriz africana” em virtude da pluralidade de tradições abrangidas pela pesquisa e da não identificação de alguns de nossos interlocutores – por razões vinculadas a sua cosmovisão e a modalidades particulares de “descolonização” da linguagem – com o termo “religião”. (g)

Fernandez JCA, De Francesco AA. Candomblé e saúde: entre a colonização e a ecologia de saberes. [Disponibilizado pelos autores para o grupo de pesquisa]. (h)


Silva RA, Fernandez JCA, Sacardo DP

artigos

heuristicamente orientada por três noções capturadas no bojo dessa literatura: alternativa, complementaridade e eficácia específica. A primeira compreende os entendimentos que destacam o recurso aos terreiros em busca de atenção/cura como a busca de uma alternativa ao campo da medicina oficial, seja em razão da indisponibilidade de serviços públicos, seja em virtude de escolhas culturais. A segunda abrange os entendimentos de relações de complementaridade relacionadas ao uso simultâneo ou alternado de práticas terapêuticas de ambos os campos. Comporta uma perspectiva integradora, que projeta uma articulação institucional entre os terreiros e serviços públicos de saúde. A última abordagem enfoca a eficácia específica dos terreiros na produção de saúde, independentemente das relações com o campo da medicina oficial e dos serviços públicos de saúde, destacando as diferentes concepções sobre o processo saúde-doença-cuidados presentes no universo dos terreiros, relacionadas à especificidade de suas experiências, seus saberes e sua cosmovisão. Na conclusão, os autores enunciam a possibilidade de ‘um novo tipo de solidariedade entre os atores dado pela ecologia de saberes’, uma solidariedade baseada no reconhecimento da inextinguível e infinita pluralidade de saberes e da potência da comparação/interpelação recíproca entre saberes para a composição da percepção (por cada saber) de seus limites e possibilidades, como diz Santos3. Os autores expõem a importância de se explorarem criticamente os riscos envolvidos nessas possíveis aproximações entre os dois campos. Grosso modo, apresentam dois tipos de risco: não levar a sério ou reduzir a eficácia específica dos terreiros na produção da saúde, encarando-a apenas como alternativa “potencializadora do tratamento médico”5 (p. 336), ou esvaziando-a em uma espécie de “simbólico inespecífico”, como efeito psicológico ou simbólico do fenômeno religioso de forma geral; projetar ou legitimar relações conducentes a “desfechos colonizadores”, como em uma prática integradora entre Candomblé e serviços públicos de saúde com “componentes de assimilação ou, no caso, de uma colonização de saberes”, explorando o “prestígio” e a “capilaridade” dos terreiros6 (p. 170) para potencializar as intervenções dos serviços de saúde, enquanto carreia uma lógica expansionista do tipo de saber que as informa. Como observa Santos2, não se pode subestimar “a importância do princípio da precaução quando lidamos com uma possível complementaridade ou contradição entre diferentes tipos de conhecimento”, sobretudo, porque os próprios mecanismos da colonialidade nos predispõem (inercialmente) a invocar “juízos abstratos baseados na superioridade abstrata do conhecimento científico” (p. 61). A revisão crítica da literatura levada a cabo no artigo acima referido e as discussões decorrentes contribuíram para que o grupo de pesquisadores incorporasse esse ‘princípio de precaução’ e construísse seu sentido no contexto específico da pesquisa.

Uma complexificação da perspectiva de complementaridade De saída, pode-se dizer que é, sobretudo, uma perspectiva de complementaridade entre os serviços de saúde e seus saberes e os saberes/práticas da matriz africana que emerge das considerações de nossos interlocutores. Vários deles referem um uso alternado ou combinado de recursos dos serviços de saúde e dos terreiros. Esse uso simultâneo ou alternado está inscrito em um modo singular de construir e interpretar a relação entre os campos e saberes implicados. Este se assenta no reconhecimento da diferença e da eficácia específica de cada um dos saberes/práticas como justificativa para esse uso. Essa posição é construída a partir de algumas premissas. A primeira refere-se ao reconhecimento da liberdade de escolha das pessoas na busca de assistência e cuidados na produção ou recuperação da saúde. Não há a pretensão ou o interesse de afirmar o controle exclusivo sobre as práticas terapêuticas e tecnologias de cuidados válidas, nem de suprimir a voluntariedade dos agentes na determinação de seu modo de produzir ou recuperar a própria saúde. Em algumas considerações de nossos interlocutores, essa premissa é mais explícita, como: na observação incisiva de Tata Ngunz’tala de que “não tem como ter saúde, não tem como ser saudável, se a pessoa se sentir violada” na sua singularidade; na insistência de Tata Alassinanguê Akinjolê em dizer que os saberes do terreiro não pretendem concorrer com os saberes da medicina científica, pois são espaços de cuidado, não de disputa de clientela; nas colocações de Mam’etu Odé COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Belogesi que sustentam um lugar para a agência/escolha do indivíduo na busca de solução para seus problemas de saúde. Em todos os casos, trata-se de uma perspectiva que não tem como pressuposto a ‘hipossuficiência’ do sujeito na produção/recuperação de sua saúde. Pelo contrário, é a capacidade do sujeito de avaliar o contributo prático dos distintos saberes para a solução de seus problemas de saúde o que é reafirmado nos discursos dos pais e mães de santo entrevistados, que, ademais, compreendem a agência do sujeito como fundamental no processo de produção/recuperação da saúde. A segunda premissa diz respeito ao reconhecimento da eficácia específica da medicina científica ocidental no campo da saúde. Tata Ngunz’tala, que defende a importância da pluralidade e da complementaridade de saberes na atenção à diversidade das demandas dos indivíduos em sua singularidade, observa que os “saberes da medicina também são sabidos”, reconhecendo os avanços na área dos conhecimentos biológicos como “um passo muito grande”. Alguns de nossos entrevistados explicitam que a medicina científica não está fora, mas participa da ordem do mundo regida pelas divindades, o que explica, também, o seu desenvolvimento. Para Bàbá Tonican Mário de Ogum, “profissionais médicos tendem a ser filhos de Obaluaê, uma divindade da cura, assim como farmacêuticos tendem a ser filhos de Ossaim, a divindade que domina as propriedades das plantas, folhas e raízes”. Encontramos argumentos semelhantes no discurso de Mam’etu Odé Belogesi, que se refere à inspiração de Katendê, Nkisi “dono das folhas”, no desenvolvimento da farmacologia. É preciso esclarecer que se trata do reconhecimento da eficácia específica da medicina científica ocidental, quer dizer, de seu contributo para a recuperação da saúde por sua ação específica sobre determinados problemas de ordem biológica. Mas, como é possível depreender dos ‘estudos de caso’, para nossos interlocutores, não são apenas os saberes biomédicos que são eficazes e produzem resultados no tratamento de desequilíbrios orgânico-fisiológicos dos indivíduos. Além disso, na perspectiva de nossos interlocutores, a produção/recuperação da saúde abrange outras e mais amplas dimensões (psicológicas, sociais, energéticas, cósmicas) e a própria eficácia dos saberes/práticas biomédicos em sua intervenção sobre a dimensão biológica das doenças depende de fatores não controlados por esses saberes/práticas. Por fim, a terceira premissa da perspectiva da complementaridade é o reconhecimento de limites para os saberes ou eficácia prática dos saberes dos terreiros. Esse reconhecimento é traduzido de diferentes maneiras, compreendendo desde considerações mais gerais – como no reconhecimento de Tata Alassinanguê da necessidade da abertura para a infinitude do aprender no contexto da pluralidade/diversidade de saberes e experiências de mundo –, até observações mais concretas, que reconhecem a insuficiência dos terreiros na solução de determinados problemas de saúde, o que demandaria a participação de outros saberes. É o reconhecimento de limites ou, colocado de outro modo, de diferentes efeitos e, portanto, de diferentes eficácias dos saberes/práticas dos terreiros e da medicina científica ocidental que permite sustentar a perspectiva da complementaridade. É assim que Bàbá Moacir de Xangô pode defender a necessidade de distinguir na atenção à saúde “onde nós temos que entrar e onde o médico tem que entrar”; é assim que Mam’etu Odé Belogesi pode dizer que “a gente tem de saber até onde pode ir o religioso” e que “tem coisas que [...] o médico humano que tem que fazer”; é assim que Tata Geová de Kavungo pode expor o entendimento de que há problemas que “você tem que cuidar do lado médico”. Pode-se dizer que a perspectiva da complementaridade depende, para usar as palavras de Tata Geová, de “saber o que nós podemos, dentro dos nossos conhecimentos, e o que não podemos”. Essa disposição para reconhecer os limites da eficácia de seu próprio saber no exercício comparativo com a eficácia de outro saber nos remete à perspectiva da “ecologia de saberes” defendida por Santos3, para quem “as possibilidades e os limites de compreensão e de ação de cada saber só podem ser reconhecidos na medida em que cada saber se propuser uma comparação com outros saberes” (p. 543). Aliás, é importante destacar outras zonas de proximidade com os “postulados” da “ecologia de saberes”: a disposição para o reconhecimento da dignidade e validade de todos os saberes; a inclinação para o que Santos2 chama de “pragmatismo epistemológico”, uma “epistemologia das consequências”, que recusa a discutir a validade dos distintos saberes sem considerar as condições situadas de sua produção e agenciamento e seus efeitos.

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Não se deve, contudo, encerrar a discussão com essa identificação de territórios isomórficos entre os discursos de pais e mães de santo entrevistados e o projeto de uma “ecologia de saberes”. Nossos interlocutores trazem, em suas falas, igualmente, uma dimensão de especificidade, relacionada ao contexto da saúde. Com efeito, e voltando à primeira premissa, quando se trata da saúde de um sujeito (individual ou coletivo), nenhum saber pode ser validado fora do território de normatividade definido pelo movimento da vida desse sujeito em sua singularidade, na medida em que é no quadro desse movimento que se produzem as consequências das práticas, e na medida em que é no quadro das formas de agenciamento desse sujeito que se definem os sentidos e objetivos que situam os critérios de avaliação dessas consequências.

Imunização contra os riscos colonizadores Em face das preocupações de que partimos, podemos perguntar se essas ‘premissas’ ou ‘disposições’ são suficientes para constituir uma posição avessa aos riscos das armadilhas ‘colonizadoras’ enunciadas mais acima. Nossa tendência é responder sim, pelas razões que seguem: 1) O reconhecimento da eficácia específica dos saberes/práticas da medicina científica não ocorre em detrimento do reconhecimento da eficácia específica dos saberes/práticas dos terreiros. A perspectiva de complementaridade é acompanhada por argumentos que apontam para a eficácia específica das práticas do terreiro, para o caráter distintivo da abordagem dos terreiros, centrada na noção de equilíbrio-desequilíbrio-reequilíbrio e na multidimensionalidade da abordagem etiológicoterapêutica por ela informada. Uma consideração de Tata Ngunz’tala ilustra bem essa posição: “Trazer, por exemplo, uma estrutura de saúde, de biomedicina, para dentro do terreiro, não vai tirar a fé na folha. A pessoa, um crente do Candomblé, que chegar para usar aquele sistema de saúde, ele vai chegar e vai tomar um banho de folha primeiro”. Como relatado por alguns de nossos interlocutores, no caso de iniciados ou frequentadores menos incidentais dos terreiros, os cuidados e orientações dos terreiros constituem o primeiro, e não o último recurso na busca de solução para seus problemas de saúde. Como diz Iyá Vera de Oyá Laja, “para povo de terreiro, sempre antes o orixá, aí, depois, vem a medicina convencional”, se for o caso; 2) O reconhecimento de limites para os saberes ou eficácia prática dos saberes dos terreiros é acompanhado do reconhecimento de limites para os saberes ou eficácia prática da medicina científica. Como salienta Tata Ngunz’tala, “ninguém dá conta de tudo”, e, “do mesmo jeito que a religião não dá para tudo, a medicina também não dá conta de tudo, não”. Os limites de eficácia de cada saber derivam, em parte, da natureza diferenciada dos saberes, que “trabalham com energias diferentes sobre energias diferentes, de modos diferentes”, segundo Tata Alassinanguê. Mas dependem, também, da singularidade de cada caso e da agência/participação da própria pessoa, como é possível depreender do discurso de praticamente todos os nossos interlocutores; 3) Uma demanda de não hierarquização entre os saberes fundamenta a perspectiva da complementaridade. Sob diferentes formas, encontramos a reivindicação da construção de contextos ‘simétricos’ para que os dois saberes possam ‘andar juntos’, interagir e interpelar-se reciprocamente, sem apagar suas diferenças. Iyá Vera invoca a necessidade de a “medicina convencional” (científica) “respeitar a oralidade, o saber natural”, com a enorme potência que carrega como reservatório de experiências e saberes acumulados por muitas gerações. De maneira ainda mais significativa, ela enfatiza a necessidade de “a medicina se familiarizar com essa medicina tradicional, que é um saber natural”. Tata Ngunz’tala afirma que “os saberes interagem e podem, sim, conviver sem nenhuma hierarquização”. Focalizando essa questão na relação que se estabelece entre os distintos saberes no contexto do SUS, Iyá Lúcia Omidewá registra o engodo da participação social no SUS, identificando a ausência de espaços “para a gente falar das nossas práticas com os médicos, com o pessoal da saúde”, uma incapacidade do SUS de engendrar um contexto de audição para que se possa “falar da medicina tradicional”; 4) As críticas aos efeitos iatrogênicos da biomedicina são não somente claras e incisivas, mas, também, fortemente enraizadas nos saberes dos terreiros, reforçando o reconhecimento das diferenças

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entre os dois saberes e de sua irredutibilidade a um denominador comum epistemológico. Iyá Vera critica a concepção de saúde “a partir da ausência de doença”, e localiza uma das limitações da perspectiva da humanização no âmbito do SUS, a incapacidade de facear efetivamente essa concepção em seu “miolo”, pois “humanização, para mim, é isto: é tirar a casca da ferida, tirar toda a casca”, reconhecendo que nada vai mudar enquanto “nós tivermos um SUS que só trabalha ausência de doença, ausência de febre, o câncer, isso”. Essa crítica, sob roupagens discursivas distintas, reaparece nas falas da maioria dos entrevistados, como quando Tata Ngunz’tala conceitua ser saudável como um modo de “estar no mundo, independente de como está funcionando determinada parte do corpo”, ou como estar “energeticamente bem”, “estar bem independente de ter uma doença fisiológica”. Essas considerações do Tata invocam a crítica ao biologicismo. Muitas das considerações de nossos interlocutores indicam, como um dos limites da medicina científica hegemônica, a dificuldade de desenvolver uma abordagem etiológica e terapêutica plural, incluindo, para além da dimensão biológica, outras dimensões existenciais, como a psicológica, a social, a energética. Iyá Vera de Oyá Laja refere a ausência do conceito de “doença imaterial” ou da noção de dimensões “imateriais” da saúde como uma lacuna da “medicina convencional”. Uma crítica à hiperespecialização atravessa também as falas de nossos interlocutores. “Dividiu-se tanto o ser”, diz Tata Ngunz’tala, que “não se olha para ele como um todo”. Segundo ele, no contexto de cuidados engendrado pelos parâmetros dados pela medicina científica, “você não é uma pessoa, ou você é só o fígado, ou o sistema urinário, você é só o olho”, e assim por diante. Uma crítica correlacionada a essa é aquela que se dirige à medicamentalização abusiva dos problemas de saúde, o “toca-lhe antibiótico”, que Iyá Vera considera como uma das consequências do não reconhecimento da resolutividade terapêutica de abordagens não centradas no corpo biológico. Deve-se sublinhar que tais críticas, embora dialoguem com correntes críticas desenvolvidas fora do universo da matriz africana, inclusive, com correntes presentes no campo da própria medicina científica ocidental, sedimentam-se em seu modo específico de conceituar a relação entre: natureza e cultura, exterioridade e interioridade, material e espiritual, individual e social, individual e cósmico, corpos, objetos, elementos do mundo etc., e, portanto, em pressupostos culturais (epistemológicos, ontológicos, éticos) específicos da matriz africana7,8.

Refazendo as “coordenadas” Casos de posicionamento alternativos ou de enfrentamento entre os dois campos são relatados, sobretudo, em relação ao modo de cuidar de problemas de saúde mental ou psicológica, em relação aos quais são destacados os limites dos saberes biomédicos e seus efeitos nocivos para a saúde. Aparecem também, em um número menor de casos relatados, em relação ao modo de cuidar de problemas de saúde física, como ilustrado por situações em que os procedimentos (cirúrgicos ou medicamentosos) recomendados por médicos são considerados inadequados ou agravantes em relação à saúde da pessoa. Em ambos os casos, a pessoa que busca orientação ou cuidado no terreiro é convidada a decidir entre caminhos alternativos, embasada por ‘diagnósticos’ alternativos. O interesse desses casos é que, de maneira mais patente, demonstram a capacidade de resistência dos terreiros ao monopólio da medicina científica para determinar o conteúdo/método adequado da atenção à saúde. Em relação à perspectiva da eficácia específica, ela não aparece como uma abordagem ao lado das outras, mas como fundante do posicionamento geral de nossos interlocutores, fundamento transversal presente tanto no embasamento da perspectiva da complementaridade, quanto da alternativa ou contradição entre os diferentes tipos de conhecimento. Para as mães e os pais de santo participantes do projeto, em qualquer aproximação das comunidades de terreiro com a medicina científica e seus espaços de atuação, é impossível abrir mão das explicações, das interpretações e dos recursos que apenas podem ter lugar no quadro da cosmologia de matriz africana e de suas formas de interação com o mundo. Foi essa compreensão que nos possibilitou rever o conjunto de nossas ‘coordenadas’, a fim de começarmos a construir outra grade a partir da perspectiva ‘ecologizadora’ coproduzida no diálogo com nossos interlocutores de matriz africana. Um primeiro ponto a estabelecer é que a noção de eficácia específica, na perspectiva de uma ‘ecologia de saberes’, não pode ser considerada como uma das possibilidades de relações entre terreiros 926

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e sistema médico ou entre terreiros e SUS. Trata-se, antes, de uma condição para o próprio processo ecologizador, uma condição essencial para que sejam construídas relações não colonizadas, quer dizer, não supressoras ou redutoras das particularidades e diferenças de cada saber. O enfrentamento das perspectivas que atribuem superioridade epistemológica a um saber, convertendo-o em padrão de aferição da validade dos outros saberes, é uma “epistemologia das consequências” que leve em conta a multiplicidade de ‘mundos possíveis’9, com suas próprias escalas de valor e de aferição de eficácia, pluralidade não apenas epistemológica, mas ontológica. Deste modo, a própria noção de eficácia e seus termos de comprovação dependem do sentido específico de eficácia projetada por cada saber, bem como dos agenciamentos específicos de que este participa e do sentido com que entra nesses agenciamentos. O reconhecimento da eficácia específica de cada saber é o reconhecimento da especificidade dos sentidos de eficácia que ele carrega e da especificidade do ‘mundo possível’ que ele exprime. A noção de complementaridade pode ser expressão de uma relação colonizada ou de um projeto colonizador, mas pode ser, também, expressão de relações não colonizadas, um dos desfechos possíveis de um processo de ecologização de saberes. Nesse caso, é o resultado da percepção dos limites e potencialidades diferenciais dos saberes em presença, seja no plano da construção de significações e sentidos, seja no plano das eficácias práticas especificamente visadas pelos sujeitos. Se dois ou mais saberes podem ser compreendidos como complementares e usados alternada ou simultaneamente por um sujeito específico (indivíduo ou comunidade), a medida de sua eficácia deve caber a esse mesmo sujeito, o único capaz de avaliar seu contributo prático e seu sentido. A noção de alternativa pode emergir da recusa a participar de um processo de ecologização de saberes, mas constitui, igualmente, uma possibilidade de um processo de ecologização. Com efeito, dois ou mais saberes podem ser compreendidos como alternativos, de modo que, reconhecendo e respeitando as diferenças e evitando qualquer expansionismo colonizador, há uma opção, mais abrangente (como modalidade de produção/recuperação da saúde) ou mais circunstancial (como solução de um problema específico de saúde), por um dos saberes ou pelas práticas a ele relacionadas. Mas a ‘ecologia dos saberes’ compreende ainda outra possibilidade. Ambas as formas (complementaridade e alternativa) remetem, no contexto da ‘ecologia de saberes’, a dois (ou mais) saberes/práticas sem levar em conta a possibilidade de sua transformação interna, a possibilidade de deslocamentos por parte dos saberes em presença a partir da troca e da ‘interpelação recíproca’ entre eles2. Nesse caso, os saberes são “confrontados com problemas que, por si, nunca poriam”, interpelados pelos outros saberes ou pelas questões que as práticas sociais constituídas ou a constituir nesse “território” colocam para os saberes em presença3 (p. 547). Encontramos, no curso das entrevistas, diversos exemplos de uma disposição para essa possibilidade transformativa da “ecologização”, como nas considerações de Iyá Vera sobre uma possível fertilização recíproca entre o “saber natural” dos terreiros e o “saber acadêmico”, ou no convite de Tata Geová para a percepção de limites de cada saber e a busca de possibilidades cruzadas entre os saberes em um diálogo aberto e alicerçado no respeito mútuo. Por fim, parece oportuno rever algumas das “coordenadas” da própria “ecologia de saberes” proposta por Santos. De certo modo, em alguns momentos, introduzimos algumas perspectivas que desbordam dessas “coordenadas”, como ao situarmos a questão da “eficácia específica” no contexto de uma multiplicidade de “mundos possíveis” ou de uma “pluralidade ontológica”, explicitando a conexão dessa abordagem com a reflexão de Viveiros de Castro. Embora identificando uma importante literatura antropológica em que buscar recursos analíticos e expressivos para tanto, fomos conduzidos a essa extrapolação menos pelo contato com tal literatura do que pela interlocução com as lideranças de terreiros participantes do projeto. Os conteúdos dessa interlocução merecem ser explorados em um texto específico. Mas vale, aqui, observar que todo um campo complexo de indagações se abre para a “ecologia de saberes” em razão da especificidade dos saberes presentes nos terreiros. Basta imaginar que interações deveriam ser desenvolvidas em um processo de “ecologização” com o que Iyá Vera chama de “saber natural”, que envolve: um apuro da capacidade sensorial/perceptiva na “vivência da Natureza”, o acionamento/produção de sentidos para “ler os sinais da Natureza”; ou com os “saberes” desenvolvidos no contexto do que Tata Alassinanguê apresenta como uma sensibilização da corporeidade inteira para captar “situações, comportamentos 927


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ou alimentos” que “fazem mal” para uma pessoa (“quizilas”) e, igualmente, as “substâncias que venham lhe fazer bem”. Em relação a esses saberes, podemos supor que, além da comparação recíproca, sugerida por Santos, passível de ser desenvolvida aqui na forma de uma comparação recíproca entre modalidades de “educação da atenção”10, é necessária, muito mais, uma disposição para uma experimentação recíproca, ou, nas palavras de Tata Alassinanguê, uma “experiência prática de vivência”(i). Podemos dizer, como Castro9, que a noção de “pluralidade ontológica” exige abordar as possíveis interações entre “mundos possíveis”, considerando que não há qualquer refúgio em um mundo “real” ou “mais objetivo” situado fora dos termos em relação, pois todos os fenômenos possíveis o são enquanto relações “sociais”, “coisas” e “sujeitos” que são “feitos para fazer”12 como “co-implicações”13 desse “mundo possível” acionado. Consideramos que a “pluralidade ontológica”, compreendida nessa complexidade, não é indiferente à reflexão de Santos2,3, uma vez que, para ele, o substrato da “pluralidade epistemológica do mundo” é a “infinitude” ou a “diversidade da experiência humana”; e o território da “ecologia de saberes” não é essencialmente gnosiológico, mas prático, envolvendo experimentações conduzidas como “artesanias práticas”. No entanto, assumindo a não separabilidade entre simbólico e material, subjetivo e objetivo, efetividade e efetivação, é preciso considerar que as possibilidades de “ecologização” extrapolam os limites dos dispositivos “ecologizadores” sugeridos por Santos: a comparação recíproca, a tradução recíproca, a interpelação recíproca. Como alguns autores têm sugerido14,15, as relações de “afetos” ou “afecções” que se estabelecem são muito mais plurais e imprevisíveis. A variedade de suas formas está implicada com a própria variedade das “partículas” colocadas em movimento na interação, envolvendo: “situações de comunicação involuntária e não intencional”14 (p. 160), “situações de comunicação” em contextos de total incomensurabilidade, de “apelos”, mais do que de interpelação, de experimentação recíproca, mais do que de tradução, situações de engajamentos que não são somente lógicos ou semânticos, mas corporais, multissensoriais, com desvios perlocutórios16 em seu poder de afetar e ser afetado e, ainda assim, “planos”, “ecologizadores”, em sua multiplicação de “mundos possíveis”. Nesse sentido, ao propormos uma revisão de “coordenadas”, o que desejamos não é propor novas “coordenadas”, mas explicitarmos que, como práticas sociais “emergentes” no sentido de Santos17, a “ecologia de saberes” também parte de “uma dupla carência: o conhecimento apenas parcial das condições que podem concretizar a possibilidade; o fato de essas condições só existirem parcialmente” (p. 246). Apenas a multiplicação de experimentos práticos de “ecologização” de saberes pode permitir uma “ecologização” de saberes sobre condições e meios para a “ecologia de saberes”.

Barreiras para a “ecologia de saberes” Nossos interlocutores têm plena consciência das dificuldades de realização de uma “ecologia de saberes” em saúde. Eles acusam alguns dos entraves a serem superados para tanto, dentre os quais: 1) A assimetria da disposição para ecologização. Nossos interlocutores reconhecem e respeitam os saberes da medicina científica como “sabidos”, ao passo que, no campo dessa medicina, os saberes dos terreiros sobre saúde e cuidados não encontram contrapartida semelhante. Como observa Tata Ngunz’tala, a medicina científica “não respeita os outros saberes”, enquanto 928

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Para uma compreensão mais abrangente dessas especificidades dos terreiros, sugerimos Bassi8, Goldman9, Rabelo e Santos11. (i)


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“eu”, afirma como liderança de terreiro, “busco respeitar todos os saberes, sem hierarquizar”. Vimos como as considerações de Iyá Vera e de Iyá Lúcia confirmam essa percepção do Tata: a primeira, ao registrar o desrespeito da “medicina convencional” em relação ao “saber natural”, secular, dos terreiros; e, a segunda, ao denunciar a ausência de espaços no SUS para o discurso e as práticas da medicina tradicional. Mam’etu Odé Belogesi, por sua vez, identifica, no próprio processo de cientifização, de redução dos problemas/soluções aos problemas/soluções enunciados pela ciência, uma das razões dessa assimetria. Como ela diz, “eles [os médicos] querem uma prova; a ciência precisa de prova, a ciência gosta de tudo aquilo lá testado no papel”; o médico “aceita aquilo que está comprovado nos cálculos, aceita aquilo que está comprovado radiograficamente, entendeu, ele não aceita aquilo [para o] que você não tem uma explicação cabal”. 2) A dificuldade da medicina científica de reconhecer as limitações do que sabe, de reconhecer a especificidade e os limites de sua eficácia, bem como os limites do que conhece sobre outros saberes e, especificamente, sobre os saberes dos terreiros. É uma referência a essa dificuldade que encontramos na percepção de Mam’etu Odé Belogesi, de uma postura arrogante que considera característica dos médicos: “Médico acha que ele é detentor de tudo”. Faltaria à medicina científica aquela postura professada por Tata Geová de “saber o que nós podemos, dentro dos nossos conhecimentos, e o que não podemos”. A partir das entrevistas com Iyá Vera, o pesquisador comenta que os terreiros “reconhecem limites para seus saberes e para a eficácia de suas práticas terapêuticas; não prodigalizam seus ‘diagnósticos’ na forma de certezas; admitem a permeabilidade de seus métodos a influências emocionais; não promovem a ilusão do isolamento de suas práticas da própria fluidez e incerteza da vida e da experiência; não têm a ilusão de controlar todas as variáveis envolvidas, nem mesmo a agência dos orixás”. Atitude que o pesquisador, aproximando-se das considerações de Laplantine18 sobre a “fé médica”, contrasta com a atitude mais geral no campo da medicina científica, que “não admite limites ou apenas os próprios limites, supostamente temporários e transponíveis, de seus conhecimentos atuais e suscita a crença de que o progresso infinito de seus conhecimentos levará à eliminação gradual de todas as doenças, alcançando uma eficácia crescente pelo controle das variáveis”. 3) A discriminação e o preconceito contra a matriz africana, seus sujeitos e seus saberes. Alguns estudos de casos trazem, de maneira clara e contundente, a constatação da persistência ou, mesmo, da acentuação da discriminação e da intolerância religiosa no contexto da atenção em serviços de saúde. Nossos interlocutores relatam casos de desrespeito a objetos de proteção, como guias e fios de conta, em exames físicos e procedimentos clínicos, de censuras explícitas à religiosidade dos membros de comunidade de terreiro por parte de profissionais de saúde, e, mesmo, de agressões verbais movidas pela intolerância religiosa. Iyá Vera, além de denunciar, como formas de violência, o desrespeito pelas guias e marcações, menciona, como outra expressão de violência simbólica, a negação da presença de práticas rituais de logística mais simples, como os banhos de ervas, em hospitais, para atender às necessidades de “um filho de terreiro”. De acordo com Iyá Lúcia, os profissionais do SUS não estão preparados para lidar com a diversidade religiosa, o que ela afirma a partir de diversas situações de “assédio religioso” que ela vivenciou como usuária do SUS, seja na forma de esconjurações ou da acolhida cristã de profissionais que, ao identificá-la por sua indumentária como “pessoa de axé”, a recebem com um “Jesus te ama”. Nesse sentido, ela questiona: “Como é que o Humaniza-SUS humaniza as pessoas, mas não capacita para a diversidade religiosa?”. Para ela, humanizar não se resume a “receber bem”, mas depende de um “saber com quem você está lidando”, de uma abertura para conhecer as necessidades diferenciadas relacionadas às diferenças culturais e religiosas. O “assédio religioso”, segundo a Iyalorixá, é um fator de adoecimento, efeito iatrogênico de um sistema de atenção à saúde que tende a varrer para debaixo do tapete as questões relacionadas à religiosidade.

Conclusão Depois dessas considerações, desejamos encerrar este artigo voltando ao tema da “justiça cognitiva”. É possível construir equidade no SUS sem “justiça cognitiva” ou sem incluir o princípio da promoção de interações sustentáveis, dinâmicas e radicalmente igualitárias entre os distintos saberes/ COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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práticas presentes nos territórios e o princípio da valorização da sua autonomia? Ou ainda: é possível construir equidade sem o princípio da autonomia dos diversos sujeitos na determinação da forma de lidar com esses saberes e produzir a forma de interconhecimento apropriada para atender a suas buscas e necessidades na produção/recuperação da saúde? Nossos amigos de matriz africana sustentam que NÃO. Como responderão a essas perguntas os profissionais de saúde e gestores do SUS? Como responderão os sujeitos envolvidos na formação dos profissionais de saúde? Como responderão os movimentos sociais que colocam a preocupação com a manutenção e expansão do SUS na sua pauta? Nossos amigos de matriz africana e nós, afetados pelo diálogo com eles, aguardamos ansiosamente por respostas.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Castro EV. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify; 2015. 2. Santos BS. Para além do pensamento abissal: linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010. p. 31-83. 3. Santos BS. Um Ocidente não-ocidentalista? A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez; 2010. p. 519-62. 4. Fernandez JCA, Westphal MF. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(42):595-608.7 5. Mota CS, Trad LAB. A gente vive pra cuidar da população: estratégias de cuidado e sentidos para a saúde, doença e cura em terreiros de candomblé. Saude Soc. 2011; 2(20):325-37. 6. Serra O, Pechine MCS, Pechine S. Candomblé e políticas públicas de saúde em Salvador. Mediações – Rev Cienc Soc. 2010; 15(1):163-78. 7. Bassi F. Revisitando os tabus: as cautelas rituais do povo santo. Relig Soc. 2012; 32(2):170-92.

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8. Goldman M. Formas do saber e modos do ser: multiplicidade e ontologia no candomblé. Relig Soc. 2005; 25(2):102-20. 9. Castro EV. O nativo relativo. Mana. 2002; 1(8):113-48. 10. Ingold T. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educ. 2010; 33(1):6-25. 11. Rabelo MCM, Santos RMB. Notas sobre o aprendizado no Candomblé. Educ Contempor. 2011; 20(35):187-200. 12. Latour B. Reflexões sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: EDUSC; 2002. 13. Zourabichvili F. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumara; 2004. 14. Favret-Saada J. Ser afetado. Cad Campo. 2005; 13(14):155-61. 15. Goldman M. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Rev Antropol. 2003; 46(2):445-76. 16. Bassi F, Tavares F. Efeitos, símbolos e crenças: considerações para um começo de conversa. In: Bassi F, Tavares F, organizadores. Para além da eficácia simbólica. Salvador: EDUFBA; 2013. p. 17-28. 17. Santos BS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev Crit Cienc Soc. 2002; 63: 237-80. 18. Laplantine F. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes; 2004.

Silva RA, Fernandez JCA, Sacardo DP. Para una “ecología de saberes” en salud: una invitación de los “terreiros” al diálogo. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):921-31. A partir del análisis de un conjunto de entrevistas con liderazgos de comunidades de “terreiro”, este artículo discute las posibilidades de una “ecología de saberes” en salud y más concretamente las posibilidades de interacción entre los saberes de matriz africana y los saberes de la medicina científica occidental. En este recorrido, estableciendo un diálogo entre la “imaginación conceptual” de los autores y la de sus interlocutores de matriz africana, explora los posibles resultados de un proceso “ecologizador” entre los dos tipos de saber, sus supuestos y las barreras para su realización. En ese sentido, en lugar de una aproximación teórica unilateral al tema, el artículo busca viabilizar y valorizar la elaboración conceptual de las madres y padres de santo entrevistados, construyendo su argumento a partir de un esfuerzo imaginativo transcultural.

Palabras clave: Ecología de saberes en salud. Matriz africana. Equidad en salud. Sistema Brasileño de Salud.

Submetido em 16/03/16. Aprovado em 28/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0718

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Percepciones de gestores de salud y facilitadores de la estrategia Atención Integrada a las Enfermedades Prevalentes (AIEPI) en una zona del Noreste de Brasil y Perú

Alfredo Borda-Olivas(a) Matilde Palma-Ruiz(b) João Joaquim Freitas do Amaral(c)

Borda-Olivas A, Palma-Ruiz M, Amaral JJ. Perceptions of health managers and facilitators of the Integrated management of childhood illness (IMCI) in Northeastern Brazil and Peru. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):933-43.

The objective of this study was to explore the Integrated Management of Childhood Illness (IMCI) strategy through the perceptions of the health managers and facilitators of strategy. A qualitative study was conducted using semi-structured interviews. Fourteen interviews were carried out, eight in the State of CearáBrazil and six in Peru, between May and June 2011. In general, participants expressed a positive perception of the IMCI strategy. Also was observed the predominance of the clinical component, compared with the community or the health services component. In Peru unlike Brazil, the government promoted the adoption of the strategy. In conclusion, this study shows a complex intervention of the IMCI strategy, with a predominance of the clinical component, evidencing the limitations in the integration of the components of the strategy.

Keywords: Integrated management of childhood illness. Qualitative research. Child health. Brazil. Peru.

El objetivo del estudio fue explorar las percepciones sobre la estrategia de Atención Integrada a las Enfermedades Prevalentes en la Infancia (AIEPI) de gestores de salud y facilitadores de la estrategia. Se realizó una investigación de tipo cualitativo mediante entrevistas semiestructuradas. Se llevaron a cabo 14 entrevistas entre mayo y junio del 2011, ocho en el Estado de Ceará-Brasil y seis en el Perú. En general los profesionales manifestaron una buena percepción de la estrategia AIEPI, observándose una predominancia del componente clínico, en comparación con el componente comunitario y de servicios de salud. A diferencia de Brasil, en el Perú hubo una promoción gubernamental para la adopción estrategia. En conclusión, este estudio muestra una intervención compleja de la estrategia AIEPI, con predominancia del componente clínico poniendo en evidencia las limitaciones en la integración de los componentes de la estrategia.

Palabras clave: Atención integrada a las enfermedades prevalentes en la infancia. Investigación cualitativa. Salud del niño. Brasil. Perú.

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Agencia de Evaluación de Tecnologías Sanitarias, Instituto de Salud Carlos III. Calle de Sinesio Delgado, 4. Madrid, España. alfredoborda@ gmail.com; mpalma@isciii.es (c) Departmento de Saúde Materno Infantil, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil. joaoamaral@ terra.com.br (a,b)

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PERCEPCIONES DE GESTORES DE SALUD Y FACILITADORES ...

Introducción En 1996, la OPS/OMS y la UNICEF desarrollaron la estrategia Atención Integrada a las Enfermedades Prevalentes en la Infancia (AIEPI) con el objetivo de reducir la mortalidad infantil, la incidencia y gravedad de las enfermedades y los problemas de salud que afectan a los niños y niñas, principalmente infecciones respiratorias agudas (en particular neumonía), diarrea, malaria, desnutrición y sarampión, así como la mejora del crecimiento y desarrollo durante los cinco primeros años de vida1. La estrategia AIEPI tiene como objetivo mejorar tres componentes principales: el desempeño de los profesionales de la salud; la organización del sistema de salud; y la práctica de la familia y la comunidad2. El niño es tratado en base a intervenciones probadas que incluyen instrucciones paso a paso sobre la forma de evaluar a los niños y niñas enfermos de forma integral, las cuales son factibles de implementar en los países donde la mayoría de las muertes infantiles se producen3. En el proceso de implementación de la estrategia se establecieron tres fases: la fase de introducción, cuyo propósito era asegurar la comprensión de la estrategia y sus implicancias por las autoridades de salud de los países beneficiarios; la fase de implementación temprana, con la puesta en marcha de la estrategia en un número limitado de distritos, para lo cual se requería la adaptación de las guías clínicas al entorno de un país específico, así como de políticas de salud; y por último, la fase de expansión para ampliar la gama de intervenciones de AIEPI a otros distritos del país4. A lo largo de los años, la estrategia AEPI ha sido implementada en más de 113 países con ingresos bajos5 con una magnitud de aplicación variable. En el Brasil y Perú se implementaron entre los años 1996 y 1997, siendo en Brasil principalmente a nivel de los estados del Norte y Noroeste6, zonas del país con menores indicadores de salud; y en el Perú se implementó en diversas regiones del país con menores indicadores de salud, pero centralizada desde el Ministerio de Salud7. Las circunstancias del Brasil y Perú en los inicios de la estrategia AIEPI se caracterizaban por tener indicadores de salud con alta mortalidad y elevada prevalencia de enfermedades infectocontagiosas y desnutrición, siendo la tasa de mortalidad infantil (menores de 1 año) por mil nacidos vivos en 1990 de 51 en el Brasil y de 56 en el Perú8. Por otra parte, la coyuntura del sistema sanitario en el Brasil se desarrollaba en un contexto de fortalecimiento del sistema integrado de salud, a través de Sistema Único de Salud (SUS)9, el cual estaba organizado sobre la base de la descentralización al nivel municipal; en cambio en el Perú, el sistema de salud se caracterizaba por una fragmentación, con subsistemas brindando servicios de salud a diferentes segmentos de la población, con variados formas de financiamiento (Ministerio de Salud, Seguro Social en Salud-EsSalud, Fuerzas Armas y Policiales, y servicios privados) y un grupo grande, en su mayoría pobres, sin ningún tipo de cobertura de salud10. A partir del año 1998 se empezó a realizar la evaluación multipaís de la estrategia AIEPI para medir su impacto en salud y la mortalidad de los niños, y evaluar si era costo-efectiva11. Perú y Brasil, además de Bangladesh, Tanzania y Uganda fueron los países seleccionados por algunas condiciones del país en relaciona a la estrategia como: la oportunidad en su implementación respecto a la evaluación, tamaño de la población cubierta por la estrategia, apoyo gubernamental y no gubernamental en la implementación de AIEPI y en las actividades de evaluación, estabilidad política de los países, presencia de áreas con diferencias en la prevalencia de malaria, entre otros12. Los diversos estudios realizados en Perú y Brasil, y en otros entornos, han demostrado algunos beneficios y también limitaciones de la estrategia13; sin embargo, los estudios realizados no han abordado la evaluación de AIEPI considerando la integralidad de los tres componentes que lo constituyen, abordando los diversos puntos de vista, como puede ser desde la mirada de los gestores de la estrategia.

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artigos

En este sentido, este estudio tiene como objetivo explorar las percepciones de los gestores de salud y facilitadores de la estrategia AIEPI, con el fin de contar con información que contribuía a identificar debilidades y oportunidades de la estrategia, que pueda servir para plantear soluciones en otros ámbitos y países, a fin de reforzar las líneas estratégicas de promoción, prevención y acción de la salud infantil.

Materiales y metodos En el presente estudio, de carácter exploratorio, se utilizó el diseño de investigación cualitativo, mediante entrevistas semiestructuradas, a personas claves, gestores de salud y facilitadores de la estrategia AIEPI, de organismos gubernamentales y no gubernamentales que tuvieron participación en algunas de las etapas de implementación de la estrategia AIEPI. El ámbito de estudio en Brasil, debido a su extensión y por la forma de implementación de la estrategia principalmente en la zona del nordeste de Brasil14, se realizó en el Estado de Ceará, ubicada al nordeste del Brasil, cuya capital es Fortaleza, con una población estimada para el año 2010 de 8’448 055 habitantes, una cobertura del programa de Salud de la Familia (2009) del 71,9% y una tasa de mortalidad infantil (2009) de 15,7 por mil nacidos vivos15. Por otro lado el Perú, con una población estimada para el año 2010 de 29’461933 habitantes, una población con protección en salud (2008) del 42%10 y con una tasa de mortalidad infantil (2010) del 17 por mil nacidos vivos8. Para las entrevistas se elaboró un guion semiestructurado, revisado y discutido (de forma presencial y virtual) entre los investigadores, a partir de la revisión de la literatura, sin descartar la posibilidad de que surgieran temas no contemplados en el mismo. El guion cubría los siguientes ejes temáticos: contexto epidemiológico y del sistema de salud; estructura, proceso y resultados de la estrategia AIEPI en sus tres componentes; puntos fuertes, necesidades sentidas y expectativas a futuro. Para la captación de los participantes se utilizó el muestreo no aleatorizado intencionado, seguido de muestreo en bola de nieve que continuó hasta la saturación de la información. En Ceará-Brasil (Fortaleza) se contactó a través de la Facultad de Medicina de la Universidad Federal de Ceará y en Perú (Lima) por intermedio de los entrevistados del Instituto Nacional de Salud del Niño. El trabajo de campo se llevó a cabo entre mayo y junio del 2011. La duración de las entrevistas osciló entre 45 a 75 minutos. Uno de los investigadores (con lengua materna español y estudios completos de portugués, más una estancia de tres meses en Brasil) realizó las entrevistas en forma presencial en portugués (Fortaleza-Ceará), y en español (Lima-Perú). Se registraron en audio (el audio en portugués se tradujo al español) y transcribieron literalmente. Para el análisis, se realizó un análisis narrativo del contenido16, leyéndose repetidamente las transcripciones, para encontrar relaciones significativas entre los temas que surgían. Dicha información fue complementada con la revisión de la literatura, siendo finalmente los resultados consensuados entre los autores. El estudio fue revisado y aprobado en la Universidad Federal de Ceará y se solicitó el consentimiento informado verbal de los participantes antes de las entrevistas.

Resultados Se realizaron catorce entrevistas a profesionales con experiencia en servicios de salud, 8 en CearáBrasil y 6 en el Perú. La mayoría de los entrevistados eran además profesores de universidades con actividades en servicios de salud infantil (Tabla 1).

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Tabla 1. Características de los entrevistados sobre la estrategia AIEPI en Ceará-Brasil y Perú. Año 2011. CODIGO

EDAD

PROFESION

1C

45

Médico-Pediatra

2C

60

Médico-Pediatra

3C

>60

Médico-Pediatra

4C

>60

Médico

5C

50-60

Enfermera

6C

50-60

Médico-Pediatra

7C

50-60

Médico-Pediatra

8C

50-60

Neonatología

LUGAR DE TRABAJO ACTUAL CEARÁ-BRASIL

EXPERIENCIA

Funcionario de UNICEF

Facilitadora de AIEPI en fase de introducción e implementación. Docente de Medicina en Fortaleza, Facilitadora de AIEPI en fase de Ceará. introducción e implementación Docente de Medicina en Fortaleza, Facilitadora de AIEPI en fase de Ceará. introducción e implementación Promotor de la Fundación Oswaldo Promotor del Programa de Agentes Cruz en Ceará Comunitarios de Salud (PACS) desde los 80’. Gestora de Municipio de Horizonte, Asesora y promotora del PACS desde Ceará. los años 80’. Docente de Medicina en Fortaleza, Facilitadora de AIEPI en fase de Ceará. introducción e implementación Personal del Hospital Estatal en Facilitadora de AIEPI en fase de Fortaleza, Ceará. introducción e implementación Colaborador en la secretaria de salud Atención de salud pediátrica-neonatal pública de Ceará. PERU Docente, funcionaria del Instituto Nacional de salud del Niño. Docente y personal de Instituto Nacional de salud del Niño. Funcionario de la OPS

1P

>60

Médico-Pediatra

2P

50-60

Médico-Pediatra

3P

50-60

Médico-Pediatra

4P

50-60

5P

30-40

Médico, Máster de Salud Pública Médico

6P

30-40

Médico

Funcionaria del Ministerio de Salud en el área de atención infantil. Jefe de establecimiento de salud de nivel primario de Ayacucho. Jefe de establecimiento de salud de nivel San Martín

Colaborador de AIEPI. Facilitador de AIEPI en fase de introducción e implementación. Promotor de AIEPI en el Perú, como funcionario del MINSA y OPS. Colaboradora de AIEPI. 10 años en atención primaria de la salud. 10 años en atención primaria de la salud.

El análisis de las entrevistas y la comparación de los discursos de los profesionales sobre la estrategia AIEPI permitieron identificar diversos contenidos organizados en las siguientes áreas temáticas, que se ejemplifican (entre comillas) con fragmentos de las narraciones de las personas participantes.

Visión general de la estrategia AIEPI En general los profesionales manifestaron una buena percepción de la estrategia AIEPI, aunque señalaron dificultades para su evaluación en términos de indicadores de salud y mortalidad infantil: “En la medida que veamos (solo) los indicadores, no va a ser fácil decir que (mejoras) se deben solo a la estrategia AIEPI” (2P). En el Perú, los informantes manifiestan una percepción positiva del impacto: “(La estrategia) AIEPI es una excelente estrategia [...] debe introducirse en el comportamiento del médico desde que el médico se está formando, al igual que a las enfermeras, las asistentas sociales, o sea todo el equipo de salud” (1P). Pero también manifiestan diversos problemas; por ejemplo, relacionados a los procesos administrativos, puntualmente con la gestión de los recursos económicos a través del mecanismo de presupuesto por resultado, los cuales según señalan pueden generar procesos desintegradores: “Incluso

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ahora que se habla de presupuesto por resultado, se realiza (atenciones de) IRA (Infección Respiratoria Aguda), atenciones de EDA (Enfermedad Diarreica Aguda), (atenciones de) inmunizaciones, cada uno con su propio presupuesto por resultados” (1P). En el Brasil, los informantes admiten cierta competencia de la estrategia AIEPI con otros programas sociales: “Aquí la influencia (de la estrategia AIEPI) fue pequeña, porque fue muy poco utilizada [...] el programa bolsa de familia y (el programa de) jubilación de ancianos [...], eso sí realmente generaron grandes cambios” (4C).

Contexto del Sistema de Salud y epidemiológico En Brasil a finales de la década de los 80’ se creó el Sistema Único de Salud, con la municipalización de la salud y el Programa de Agentes Comunitarios de Salud (PACS). Posteriormente se creó el Programa de Salud de la Familia- (PSF), estrategia principal de estructuración de la atención básica de los sistemas locales de salud. “La creación del SUS coincide con el movimiento de la redemocratización del país […] la introducción del agente comunitario de salud se da en momentos que se implementa la descentralización de la salud”. (5C)

En el Perú, a partir de la década del 90’, hubo un cambio en el nivel político, económico y social. Se creó el Seguro de Escolar gratuito en 1997, posteriormente ampliado al actual Seguro Integral de Salud (SIS). Los entrevistados perciben el Sistema de Salud como deficiente y limitado en recursos humanos y materiales: “Los establecimientos de salud de atención primaria están muy descuidados, muy poco abastecidos, (el personal) muy poco capacitados” (1P). Respecto al contexto epidemiológico, en los inicios de la estrategia AIEPI, en ambos países se observaba una alta mortalidad y prevalencia elevada de enfermedades infecto-contagiosas y desnutrición.

Desarrollo de la estrategia AIEPI Los profesionales de ambos países destacaron la participación de las diferentes instituciones, como las universidades, el ministerio de salud y sociedades de salud, bajo la dirección de la OPS. En el proceso de introducción se realizó la traducción y adaptación de los materiales de trabajo al entorno específico, con algunos matices. En el Perú hubo una adopción gubernamental de la estrategia como parte del Modelo de Atención Infantil de la Salud (MAIS): “Hay una resolución que adopta la estrategia AIEPI [...]. El Ministerio de Salud lo introduce como estrategia válida para la implementación de la atención integral en la etapa de vida niño [...] hemos adaptado la historia (clínica), la hemos convertido en una ficha única, basada en las priorizaciones, en la evaluación integral del niño”. (3P)

En cambio en el Brasil, los profesionales señalaron que no se incluyó la sistemática de la estrategia AIEPI en la atención de salud infantil, mencionan además que el gobierno de Brasil, redujo su participación en la capacitación de la estrategia AIEPI a pesar de su importancia para la salud infantil: “La estrategia AIEPI no está afianzada ni a nivel del país, ni del Estado [...]. Se suspendió el apoyo al AIEPI en los últimos 8 años” (2C). “La viabilidad técnica de (la estrategia) AIEPI es innegable, todos concuerdan de que es un buen programa. La viabilidad financiera también, las capacitaciones no son caras [...]. En este momento lo que falta es la viabilidad política”. (6C)

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Dicha información es refrendada en una publicación donde señalan que el gobierno del Brasil, desde el año 2003 redujo su participación en la capacitación en AIEPI, redefiniendo sus prioridades en la atención de salud infantil17. El componente clínico de la estrategia AIEPI El componente clínico es el componente que según los participantes, tuvo un mayor desarrollo en ambos país. En el Brasil, las personas entrevistadas informaron que se realizó una capacitación masiva inicial a las enfermeras y médicos generales, aunque con poco seguimiento. No hubo una priorización específica y se observó una alta rotación del personal: “En su inicio se realizó mucha capacitación. Primero para los médicos, luego para los enfermeros [...]. Hubo un momento que todo el mundo quería hacer AIEPI […]; (pero) no hubo seguimiento [...] se realizaba según el interés del municipio” (6C). En el Perú, según las personas participantes, se llevó a cabo una adecuación de la capacitación tanto en duración (modificando de dos semanas a una) como en la modalidad. Inicialmente la capacitación fue presencial y luego se impulsó la formación a distancia: “El curso clínico de (la estrategia) AIEPI está totalmente virtualizado para la capacitación a distancia. La OMS logró desarrollar un software, el ICATT (IMCI Computerized Adaptation and Training Tool, Material Computarizado para la Adaptación y Capacitación de AIEPI)” (3P). También se emprendió una selección de regiones prioritarias de acuerdo a las sus condiciones de salud, pero refieren una alta rotación del personal sanitario al cabo de uno o dos años. El componente comunitario de la estrategia AIEPI Los participantes señalaron, en ambos países, la escasa implementación de este componente. En Brasil, manifiestan una poca implementación, a pesar de tener el PACS, en la que la figura del agente comunitario está integrado al SUS (con remuneración), realizando actividades en la familia y la comunidad paralelas a la estrategia AIEPI: “(La estrategia) AIEPI no fue una prioridad (orientada a) los agentes comunitarios [...], el componente más enfatizado en Brasil fue en la capacitación de los profesionales [...]. Hubo fallas respecto a la organización de los servicios y sobre todo en la comunidad [...], a pesar de tener un gran programa de agentes comunitarios de salud”. (3C)

En el Perú, también manifiestan un predominio en la implementación del componente clínico, pero refieren un interés de involucrar agentes comunitarios (voluntarios) y a otros líderes sociales (alcaldes, profesores): “Las herramientas que más nos han ayudado es del (componente) clínico [...]. Se escribió el material de las prácticas dirigidas al alcalde [...] a los maestros” (3P). El componente de los servicios de salud de la estrategia AIEPI En ambos países los entrevistados evidencian una percepción poco definida respecto a este componente. En Brasil, el entorno del sistema de salud es más favorable, con un sistema descentralizado y programas de salud integrados. En el Perú, el entorno parece menos propicio, por la falta de organización del sistema de salud y fragmentación de los niveles de atención de salud: “[...] hay una suerte de perversión del sistema, son tres niveles de atención pero las relaciones no son de abajo arriba, si no que se saltan” (1P).

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Discusion En el presente estudio, uno de los resultados más importantes está relacionado con el proceso de la implementación de la estrategia AIEPI, donde se observa una intervención muy compleja, en varias fases y componentes, con una predominancia del componente clínico en comparación con los otros dos componentes de la estrategia. Ello podría estar evidenciando limitaciones de la estrategia en cuanto al desarrollo coordinado e integrado de los componentes que constituyen la estrategia. Por otro lado, se observa que en el Perú el gobierno promovió y oficializó (mediante resolución ministerial), la incorporación de AIEPI como estrategia de intervención dentro del Modelo de Atención Integral de Salud18; en cambio en Brasil, aunque en las etapas iniciales se observa un impulso del componente de capacitación de los profesionales19, en los años posteriores los programas e iniciativas desarrolladas en salud infantil20, aunque pudieran haber recogido conceptos o actividades de la estrategia, éstas no fueran explicitadas o se desarrollaron al margen de la estrategia AIEPI. Los resultados señalados en el presente estudio confirman los hallazgos de otras publicaciones. Así, Ahmend et al13 remarcan que en muchos países sólo se ha puesto en práctica el componente de capacitación del personal sin una reforma complementaria de los sistemas o la política de salud. Del mismo modo, Chopra M. et al21 en una publicación, señala que en la mayoría de los países, el componente comunitario y de los servicios de salud nunca fueron implementados o fueron implementados de manera limitada o inadecuada, observándose limitaciones en los sistemas de referencias y supervisión, y falta de suministros de medicamentos. Una aproximación que pueden explicar estos hallazgos del estudio, pueden estar relacionados a la priorización desde el momento de la concepción de la estrategia del componente clínico, en razón de la identificación a priori, de las condiciones de debilidad y fragmentación de los sistemas de salud22 y de las deficiencias en la estructura y organización de los actores de salud del componente comunitario y de la familiar23. Asimismo, respecto al componente de la práctica de la familia y la comunidad, la consideración del agente comunitario como un recurso humano en salud complementario ante la escasez de trabajadores de la salud24, y no como un vínculo entre la población y los servicios de salud, podría haber condicionado un poco empoderamiento de los agentes comunitarios, y por ende un limitado desarrollo del componente comunitario de la estrategia. Por otro lado, la participación limitada de los gobiernos en la implementación de la estrategia AIEPI17; con un menor involucramiento de autoridades locales con la necesaria autoridad y jerarquía, y dificultades en la coordinación con los organismos impulsores de la estrategia (ONU, OMS, UNICEF)25, podría explicarse por la insuficiente participación de los países beneficiarios en la concepción de la estrategia1, lo que podría haber condicionado un menor involucramiento en la implementación y expansión de la estrategia. Distinto a ello se observa en Brasil, con el desarrollo de diversas iniciativas concebidas dentro del ámbito local que surgieron y se desarrollaron en los periodos de la estrategia AIEPI como: la creación de comités para la prevención de la mortalidad infantil (2005), el pacto por la vida, para la reducción de la mortalidad (2006), iniciativas específicas (promoción de la inmunización, la lactancia materna y el alojamiento conjunto), mejoras en el acceso a la atención preventiva y curativa de la salud, incluyendo el SUS, el PSF, el PACS, de la Pastoral y, otros políticas y programas sociales que repercutieron en la mejora de la salud infantil20,26. No obstante a lo señalado previamente, es necesario resaltar que, frente a nuestros hallazgos que podrían considerarse poco alentadores, por otros aspectos de la estrategia, principalmente los relacionados del componente clínico, en estudios realizados en el Perú7,14,27, Brasil14,28,29 y en otros países del entorno, se observa diversos beneficios de la estrategia AIEPI; por ejemplo, en la formación y rendimiento de los profesionales en la atención de salud infantil6,30, reducción de los costos globales de los servicios de salud31 mejoras en el uso racional de medicamentos32, entre otros. Asimismo, un aporte importante de la estrategia ha sido el reforzamiento del concepto de la atención de salud integral, frente a la atención de salud fragmentada en programas verticales33, sin tener en cuenta la frecuente superposición de síntomas y la posible presencia de más de una enfermedad. Dichas concepción de atención, en los momentos actuales se hace necesario relanzar, frente a los nuevos modelos y perspectivas de atención de salud, y de políticas de salud, orientadas a la privatización y a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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la promoción de asociaciones público privadas de la salud34,35, en los cuales en algunos de los casos podrían orientarse a un afán puramente económico, que podría colisionar con la necesidad de una atención integral de la salud, no solo en el campo de la atención infantil, sino también en la atención de salud en cada una de las etapas de vida36. Los hallazgos presentados en este estudio deben ser interpretados tomando en cuenta algunas limitaciones del estudio. En primer lugar, la posibilidad de sesgo de información debido a la vinculación profesional de los entrevistados e investigadores, lo cual se procuró controlar, mediante el muestro en bola de nieve, solicitándose a los entrevistados identificar otras personas que puedan incluirse como entrevistados; sin embargo, consideramos que si existió alguna vinculación entre entrevistados e investigadores esta podría haber facilitado un mejor recojo de la información. En segundo lugar, la mayoría de las personas entrevistadas pertenecía a similar contexto académico, ello se explica por la orientación de la estrategia AIEPI, es decir, hacia los profesionales encargados de la atención infantil. Por último, se realizó poca profundización respecto a las percepciones del componente comunitario y de servicios de salud, lo cual se debió a la dificultad de identificar informantes claves con experiencia en dichos temas, que podría explicarse por el limitado desarrollo de estos componentes. Un desarrollo de entrevistas a profesionales asistenciales y agentes comunitarios podrían haber enriquecido el análisis, cuestiones que podrían ser abordadas en un nuevo estudio. En conclusión, en esta investigación se observa una intervención compleja de la estrategia AIEPI, con predominancia del componente clínico respecto al componente comunitario y de servicios de salud, poniendo en evidencia las limitaciones en la integración de los componentes de la estrategia AIEPI, lo que hace necesario un replanteamiento de la misma, con una orientación a su alcance real, es decir, al componente clínico, con mayores esfuerzos en la formación del personal de salud, involucrando también al sector privado, a fin de reforzar las líneas estratégicas de promoción, prevención y acción de la salud infantil.

Colaboradores Alfredo Borda-Olivas ha participado en la concepción del artículo, la recolección y análisis de datos, redacción y aprobación de la versión final. Matilde Palma-Ruiz ha participado en la concepción del artículo, el análisis de datos, corrección de los borradores y aprobación de la versión final. Joao Amaral ha participado en la recolección de datos, corrección de los borradores y aprobación de la versión final.

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Palavras-chave: Atenção integrada às doenças prevalentes na infância. Pesquisa qualitativa. Saúde da criança. Brasil. Peru.

Submetido em 17/08/16. Aprovado em 09/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0331

artigos

El uso de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) en los centros de salud: la visión de los profesionales en Cataluña, España Martí Oliver-Mora(a) Lupicinio Iñiguez-Rueda(b)

Oliver-Mora M Iñiguez-Rueda L. The use of information and communication technologies (ICTs) in health centers: the practititoners’ point of view in Catalonia, Spain. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):945-55.

The aim of this research is to identify experiences using information and communication technologies (ICTs) that are able to improve the public management of health centers in Catalonia (Spain), as well as being generated bottom-up by primary health care practitioners. We have compiled these experiences through eleven semi-structured interviews with primary care physicians and nurses. The result is a set of experiences that can improve public management in health centers through a) greater interaction between patients and primary health care providers; b) more patient-centred medical care; and c) greater participation and involvement of patients in their own health situation.

Key words: Public health. Health centers. Communications media. Diffusion of innovation. Qualitative research.

Esta investigación tiene por objetivo la identificación de experiencias en el uso de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) que sean capaces de mejorar la gestión publica de los centros de salud en Cataluña (España), y que hayan sido impulsadas “desde abajo hacia arriba” por parte de los profesionales de la atención primaria. Hemos recopilado estas experiencias mediante la realización de once entrevistas semi-estructuradas a profesionales médicos/as y enfermeros/ as de la atención primaria. El resultado constituye un conjunto de experiencias que pueden mejorar la gestión pública de los centros de salud a través de a) una mayor interacción entre pacientes y profesionales de la atención primaria; b) una medicina más centrada en el paciente; y c) una mayor participación e implicación de los pacientes en su estado de salud.

Palabras clave: Salud pública. Centros de salud. Medios de comunicación. Difusión de innovaciones. Investigación cualitativa.

Investigador predoctoral, Departamento de Psicología Social, Universitat Autònoma de Barcelona. Carrer Sant Adrià, 26-28. 08030. Cataluña, España. m_oliver_m@mac.com (b) Catedrático de Psicología Social, Departamento de Psicología Social, Universitat Autònoma de Barcelona. Carrer Sant Adrià, 26-28. 08030. Cataluña, España. lupicinio.iniguez@ uab.es

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Introducción Identificar experiencias capaces de mejorar la gestión de las instituciones públicas ha sido tradicionalmente –y sigue siendo a día de hoy– uno de los principales objetivos de políticos, gestores, y de todos aquellos profesionales interesados en mejorar la prestación de servicios de este tipo de instituciones. Sin embargo, la situación de recortes presupuestarios a la que están sometidas actualmente gran parte de las instituciones públicas en Cataluña –así como en el conjunto de España–, está provocando que “mejorar la gestión de las instituciones públicas” se entienda simplemente como una forma de reducir sus costes y aumentar su productividad. Una de las instituciones públicas donde se están aplicando ampliamente los recortes presupuestarios en Cataluña son los centros de salud, de los que nos ocuparemos en este artículo. Estos recortes, extendidos al conjunto del sistema público de salud, están suponiendo el cierre constante de ambulatorios, así como la retirada de numerosas ambulancias y camas en los hospitales. Al mismo tiempo, las movilizaciones de los profesionales del ámbito de la salud ponen de manifiesto las condiciones laborales cada vez más precarias a las que se les está sometiendo, y es por este motivo que resulta necesario problematizar hasta qué punto las políticas ejecutadas hasta el día de hoy son las únicas medidas posibles. Por el contrario, a partir de la consecución del objetivo planteado en la presente investigación, éste es, identificar experiencias en el uso de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) que sean capaces de mejorar la gestión pública de los centros de salud en Cataluña, y que hayan sido impulsadas “desde abajo hacia arriba” por parte de los profesionales de la atención primaria, argumentaremos que mejorar la gestión de los centros de salud no pasa por recortar sus presupuestos ni las condiciones laborales de sus trabajadores, sino por potenciar aquellas experiencias que contribuyan a una mejora de sus dinámicas, tanto sociales como organizativas o técnicas. De forma paralela, la progresiva introducción de las TIC en nuestro día a día está poniendo en evidencia las potencialidades de que disponen este tipo de herramientas para facilitar, entre otras cosas, nuevas formas de comunicación e interacción social1-3. En el ámbito concreto de la salud, la introducción de las TIC ha dado lugar a diferentes plataformas de interacción social –ya sea entre pacientes, entre profesionales de la salud, o entre pacientes y profesionales de la salud–, que están flexibilizando la concepción tradicional de la asistencia sanitaria. Así, el uso de las TIC en los centros de salud está haciendo que algunos de los problemas de las consultas presenciales, como los escasos minutos de que disponen los pacientes para interactuar con los profesionales médicos y de enfermería, se vean parcialmente solventados con las posibilidades de que disponen las TIC para ampliar estos canales de comunicación.

Método Hemos identificado las experiencias en el uso de las TIC en los centros de salud de Cataluña mediante la realización de once entrevistas semi-estructuradas de una duración de entre 45 y 90 minutos a informantes clave y a impulsores de experiencias con potencial de innovación seleccionados a través de la aplicación de la técnica de bola de nieve. Así, en primer lugar hemos entrevistado a profesionales expertos en atención primaria. Estas primeras entrevistas nos han proporcionado el contacto de profesionales de la salud que están impulsando experiencias, mayoritariamente relacionadas con la aplicación de las tecnologías Web 2.0 en el ámbito de la salud. En un segundo lugar, hemos entrevistado a estos profesionales, con un guion de entrevista focalizado en los objetivos y las características de cada una de las experiencias en cuestión. El Cuadro 1 resume los apartados que han estructurado estas entrevistas y los objetivos que han perseguido.

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Apartado

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Cuadro 1. Apartados y objetivos entrevistas a impulsores de experiencias Objetivo

1. Definición y objetivo

Definir la experiencia según las palabras de sus impulsores y los objetivos perseguidos.

2. El proceso de creación

Identificar cómo surgió inicialmente la idea y los actores implicados, sus motivaciones personales y profesionales, las fuentes de inspiración, las principales dificultades en su desarrollo, y cómo ha modificado su día a día como profesionales de la salud.

3. Funcionamiento y respuesta

Caracterizar las TIC utilizadas en el desarrollo de la experiencia, el personal encargado de su ejecución, las necesidades a las que intenta dar respuesta, y perfil del paciente destinatario.

4. Resultados obtenidos

Dar cuenta de los cambios que ha propiciado en el día a día de los pacientes, el grado de aceptación o rechazo por parte de otros profesionales sanitarios, sugerencias de mejora, y el grado de cumplimiento de los objetivos establecidos.

5. De cara al futuro

Identificar nuevos retos de cara al futuro.

6. Otras experiencias

Identificar las principales áreas de innovación en atención primaria, así como otras experiencias de Salud 2.0 relevantes.

Asimismo, y siguiendo a Barney Glaser y Anselm Strauss4, hemos analizado la información recopilada en las entrevistas mediante el método de las comparaciones constantes. Este método consiste en un proceso continuo de comparación entre las diferentes categorías que van emergiendo inductivamente a partir del análisis del material obtenido en el trabajo de campo, según la importancia que les atribuyan sus protagonistas. Hemos dividido este proceso de análisis en cuatro fases. En primer lugar, la fase de codificación de apertura ha consistido en establecer un primer grupo de códigos iniciales en los cuales hemos plasmado aquellos aspectos que, dada una primera impresión, nos han parecido más relevantes para las personas entrevistadas. Así, gran parte de los códigos de apertura han consistido en una clasificación general de las experiencias identificadas, por ejemplo, entre aquellas experiencias impulsadas por parte de los profesionales de la atención primaria y que hacen uso de las TIC para relacionarse con los pacientes, y aquellas que las utilizan para relacionarse con los profesionales de la atención secundaria. En segundo lugar, en la fase de segmentación, hemos utilizado la codificación de apertura previamente definida, para dividir el texto general en partes, las cuales han formado unidades de significado y unidades de trabajo. El objetivo ha sido constituir unidades segmentadas que den cuenta por ellas solas de los significados contextuales, y que a la vez puedan ser tratadas de forma intensiva. En tercer lugar, la fase de codificación focalizada ha consistido en crear subcódigos dentro de los códigos de apertura que sean capaces de dotarlos de una coherencia interna. Las reflexiones realizadas a lo largo del trabajo de campo, anotadas esquemáticamente en una libreta, nos han servido para realizar esta codificación focalizada. Así, por ejemplo, una clasificación realizada por uno de los profesionales entrevistados consistente en dividir las experiencias en gestión de los centros de salud según su carácter informativo o terapéutico, nos ayudó posteriormente en la aplicación de códigos focalizados, enfatizando en el carácter informativo o terapéutico de las demás experiencias. Paralelamente, tanto los códigos de apertura como los subcódigos de uno y otro segmento han sido comparados según todas las combinaciones posibles, estableciendo así las diferencias o similitudes existentes entre códigos y subcódigos de un y otro segmento. Finalmente, hemos clasificado los diferentes segmentos que contienen unos mismos temas, creando así lo que se ha llamado códigos fundamentados, es decir, códigos con una alta coherencia interna y con mucha diferencia respecto a los otros códigos fundamentados. En cuarto y último lugar, la fase de (re)contextualización ha implicado trazar el camino que ha seguido cada segmento y cada subcódigo hasta formar los códigos fundamentados. Esta cuarta fase es la que explica por qué los diferentes códigos fundamentados han terminado constituyéndose de una determinada manera, a la vez que permite entrever más claramente en qué difieren de los demás. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Resultados y discusión La introducción de las TIC en el sistema sanitario ha dado lugar a una batería de nuevos conceptos que han abierto el campo de la reflexión acerca de las potencialidades y limitaciones de la aplicabilidad de estas tecnologías en el día a día de los profesionales de la salud y de los pacientes. Mientras que de un modo más genérico, el término “eSalud” hace referencia al uso de Internet en el ámbito de la salud, con el más restrictivo “Salud 2.0” se da un paso más allá al introducir las nuevas oportunidades que ofrece la Web 2.05. El término “Web 2.0”, atribuido generalmente a Tim O’Reilly6, hace referencia a aquellas aplicaciones web – wikis, blogs, tagging, etc.– que posibilitan un uso más interactivo, participativo y personalizado por parte de los usuarios. En este sentido, también en Cataluña se han introducido recientemente herramientas propias tanto de lo que hemos definido como eSalud, como de Salud 2.0. Es así que retomando nuestro objetivo de investigación, en las páginas que siguen vamos a dar cuenta de las experiencias en el uso de las TIC que sean capaces de mejorar la gestión pública de los centros de salud, y que hayan sido impulsadas ‘desde abajo hacia arriba’ por parte de los profesionales de la atención primaria, que hemos podido identificar en Cataluña. Concretamente, nos centraremos en cómo la introducción de las TIC puede mejorar la interacción entre pacientes y profesionales de la atención primaria, fomentar una medicina más centrada en el paciente, y potenciar la toma de decisiones por parte de los pacientes en relación a su estado de salud.

Carácter sociópeto Tal vez resulte una obviedad decir que las TIC tienen un carácter sociópeto, es decir, que fomentan la comunicación y la interacción social. Es más, puede que fuese la función original por la cual nacieron. Lo que resulta más difícil es entender por qué en un contexto como el actual en el que las TIC inundan nuestra cotidianidad, nos encontramos tan alejados de ellas cuando se trata de relacionarnos con el sistema sanitario. No sólo entre los pacientes y el sistema sanitario, también existe una escasa comunicación, por ejemplo, entre los profesionales de la atención primaria y los profesionales de la atención secundaria. En este sentido, y a pesar del impacto que ha supuesto el uso del correo electrónico en nuestro día a día, no existía hasta hace muy pocos años un proyecto específicamente destinado a potenciar el uso generalizado de esta herramienta como una vía de interacción entre los pacientes y los profesionales de la atención primaria. De todas formas, esta ausencia no impidió que muchos profesionales optaran por potenciar este medio de comunicación por su cuenta: […] consultas electrónicas, yo las utilizo, pero lo utilizo a la chita callando y desde hace muchos años, porque en teoría no se pueden utilizar las redes porque es secreto, no son seguras, no están codificadas, no está encriptado y todo esto, pero yo hace muchos años que las estoy recogiendo. Las administrativas del centro lo hacen, hace mucho tiempo que están recogiendo los correos electrónicos de los pacientes, y si el paciente autoriza […] yo lo hago por correo electrónico, obviamente pidiendo antes permiso al paciente, le digo: “mira, qué te parece si envío un e-mail al [nombre del doctor] y le consulto tu electro”, entonces el paciente lo autoriza, yo lo pongo en el historial clínico, y digo: “acuerdo con el paciente enviar por correo electrónico al [nombre del doctor] para consultar”. (Margot)(c)

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Los nombres de las personas entrevistadas que aparecen en este artículo han sido modificados por los autores con el objetivo de preservar su anonimato. (c)


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Sin embargo, y como apunta el extracto anterior, el hecho de que los correos electrónicos no estén encriptados, ha limitado la generalización de esta herramienta como una vía de comunicación segura. Fue precisamente como respuesta a la inseguridad que supone la comunicación a través de correo electrónico sin encriptación, que la gerencia del ámbito de atención primaria de Barcelona Ciudad, puso en marcha, entre los años 2009 y 2011, una prueba piloto para implementar un sistema de comunicación mediante correo electrónico llamado eConsulta. Este proyecto consistió en poner en contacto los pacientes y los profesionales de la atención primaria a través de una plataforma virtual. Esta plataforma permitía que los pacientes realizaran preguntas y trámites de diferente índole a través del correo electrónico, evitando así la realización de consultas presenciales que perfectamente se podían solucionar telemáticamente. En su gran mayoría, se trata de funciones informativas como puede ser el hecho de haber olvidado algunos datos referentes a la prescripción de medicamentos, informar de los resultados favorables de una analítica, tramitar una baja médica, o enviar una determinada documentación. Sin embargo, un salto cualitativo en la comunicación entre los pacientes y los profesionales de la atención primaria viene dado por la conducción, por parte de estos últimos, de blogs destinados a los pacientes. En lo referente al carácter sociópeto, y en contraposición a otras herramientas como el correo electrónico o el teléfono, los blogs ponen a disposición de los pacientes informaciones complementarias como el calendario y el horario de consulta del médico, o la opción de pedir hora de consulta directamente a través del blog. Además, el mismo blog puede ser un canal para poner en manos de los pacientes diferentes informaciones de carácter general. Este es el caso, por ejemplo, de uno de los médicos entrevistados, que a través del blog informaba a sus pacientes, entre otras cosas, de los cambios en los horarios de apertura de su centro de salud, del cambio de ubicación que sufrió recientemente, de cómo los recortes podían afectar la prestación de determinados servicios, o incluso de si iría o no a trabajar durante una jornada de huelga general, con su respectiva justificación. Sin embargo, las mayores potencialidades de que disponen los blogs para pacientes no versan tanto sobre su carácter estrictamente sociópeto, como sobre su función de fomentar una actitud más crítica en el paciente en relación a su estado de salud, como abordaremos en el próximo apartado. Una de las herramienta de comunicación que está creciendo con mayor rapidez en el sistema sanitario catalán es ECOPIH (Herramienta de Comunicación entre Primaria y Hospitalaria, en catalán), una comunidad virtual que pone en contacto los especialistas en atención primaria con los especialistas en atención secundaria. Sin embargo, su principal virtud no reside en el simple hecho de poner en contacto los profesionales del centro de salud con los del hospital, puesto que dicha comunicación hace tiempo que se viene realizando a través de otros medios. El valor añadido de ECOPIH reside en que todos los médicos inscritos en la plataforma, sea cual sea su especialidad, pueden acceder a los comentarios realizados por parte de sus compañeros y participar en la discusión. Así pues, y aunque la idea es que en un primer momento el profesional de atención primaria sea respondido por parte de aquel profesional de la atención secundaria al que habría derivado el paciente, esta dinámica de pregunta-respuesta puede ser fácilmente complementada por los comentarios de otros profesionales, potenciando así el debate y la participación. Más aún, las dudas planteadas pueden ir acompañadas tanto de imágenes, como de documentos (artículos, protocolos, etc.), que pueden ayudar a comprender el caso y/o a difundir recursos de interés general. Tal y como apuntan Kathryn Horner, Ed Wagner et al.7, la ausencia de comunicación entre los profesionales de la atención primaria y los de la atención secundaria comporta un conjunto de errores en las derivaciones que normalmente se traducen en un aumento tanto del malestar de los pacientes, como de la ineficacia del sistema sanitario. Entre estos errores se encuentran básicamente las derivaciones innecesarias, las derivaciones erróneas, es decir, dirigidas al especialista que no corresponde con las necesidades del paciente, y la ausencia de la información requerida por parte del profesional hospitalario para llevar a cabo el tratamiento. Sin embargo, para estos autores las comunidades de consulta virtual entre los profesionales de la atención primaria y los de la atención secundaria – como es el caso de ECOPIH –, se presentan como una óptima solución para mejorar la calidad de las derivaciones.

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Carácter participativo Fomentar la participación de los pacientes en su estado de salud hace referencia a romper con la idea según la cual un paciente es alguien que, ante todo, tiene paciencia. A nivel mediático, casos como el de Dave de Bronkart, un paciente diagnosticado de un tipo de cáncer con un promedio de supervivencia de seis meses, y que desde entonces se ha convertido en un militante a favor de un mayor empoderamiento por parte de los pacientes, han hecho emerger la figura del e-Paciente8. Siguiendo a Kersin Adahl9, podemos entender por e-Paciente aquel paciente que usa Internet para mantenerse informado y para aprender sobre aquellos aspectos relacionados con la salud que le afectan directamente. En esta misma línea, el e-Paciente es alguien que busca comunicarse, ya sea con otros pacientes, ya sea con los profesionales médicos y de enfermería, a fin de disponer de un mayor conocimiento sobre su estado de salud. Es de este modo que la figura del e-Paciente se mueve en una doble dirección: por una parte, busca potenciar la capacidad y el empoderamiento de los pacientes para tomar decisiones médicas en su día a día, y por otra parte, promueve una medicina más participativa y centrada en el paciente. El primero de estos dos aspectos ha sido desarrollado ampliamente por Don Nutbeam10,11, quien lo ha dado a conocer con el nombre de Health literacy. Este autor distingue tres niveles de Health literacy. En primer lugar, la functional literacy constituye la capacidad básica de saber leer y escribir con la suficiente fluidez para poder actuar eficazmente en situaciones de poca complejidad. En segundo lugar, la interactive literacy da un paso más allá al implicar la capacidad de los pacientes de participar activamente en el sistema sanitario, extraer información de interés en relación a sus inquietudes, o comunicarse con médicos y pacientes para intercambiar opiniones. Finalmente, la critical literacy supone disponer de los conocimientos suficientes para poder discernir entre la información disponible, analizarla críticamente y tener la capacidad de aplicarla en el día a día para ejercer un mayor control sobre el propio estado de salud. Sin embargo, este autor reconoce que la fuerza de la health literacy no reside tanto en la capacidad del paciente de procesar la información sanitaria, como de desarrollar una mayor implicación en su estado de salud. De todos modos, y aunque necesario, no es suficiente que el paciente se sensibilice y apueste por una actitud más crítica en relación a su estado de salud, sino que al mismo tiempo es importante que el sistema público de salud acompañe estos cambios. Es precisamente a este rol de apertura del sistema sanitario hacia una mayor implicación de los pacientes a lo que hace referencia el segundo de los aspectos mencionados anteriormente. Para Kersin Adahl9, una medicina centrada en el paciente implica pasar de un paradigma en que el paciente es visto como un objeto al que aplicar un tratamiento, a verlo como un sujeto, en el sentido de que sus experiencias subjetivas deben igualmente tomarse en consideración a la hora de aplicar las decisiones e intervenciones médicas. Para que esta medicina centrada en el paciente sea efectiva, resulta obvia la necesidad de potenciar una relación más estrecha entre pacientes y profesionales de la atención primaria. Es en este sentido que las TIC pueden contribuir a esta labor potenciando una mayor participación de los pacientes en el sistema sanitario. Una de las experiencias capaces de mejorar el grado de participación de los pacientes en su estado de salud consiste en la conducción de blogs para pacientes por parte de los profesionales de la atención primaria. Como hemos avanzado anteriormente, la conducción de estos blogs da lugar a una relación con los pacientes que de otro modo sería inimaginable. Más allá del carácter estrictamente sociópeto, que como apuntamos en el apartado anterior, pueden cumplir estas herramientas, los blogs de médicos ponen a disposición de toda la comunidad virtual una gran cantidad de recursos para la formación permanente, contribuyendo así a mejorar la health literacy de los pacientes. De esta manera, las entradas realizadas por parte de los médicos en sus blogs, sirven a menudo para que sus propios pacientes obtengan una mayor información sobre su estado de salud, o sobre los tratamientos a los que van a someterse: [...] una entrada que realicé [en el blog] sobre el uso indebido que hacen de la toxina botulínica, que es esta, la del famoso Bótox, pues ahora tengo a una paciente que le envían a que la pruebe, y le pude decir: “mira, aquí está escrito”, así que yo supongo que sí, que poco a poco, 950

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el hecho de que vayas dando informaciones también para un sector de la población cada vez más elevado, pues que puede ser útil. (Antonio)

De todas formas, no es esta condición de intermediarios de la información lo que mejor define la actitud de muchos de estos médicos. Ante el aumento del fenómeno que algunos profesionales de la atención primaria llaman “Dr. Google”, caracterizado por el hecho de que el paciente busca información en Internet sobre una determinada enfermedad sin ningún tipo de intermediario –más allá del criterio que establece el servidor Google para dar respuesta a la búsqueda en cuestión–, podría parecer que los profesionales de la atención primaria deben cumplir con una función de intermediarios para que el acceso a dicha información por parte de los pacientes esté mejor dirigida. Sin embargo, la función de estos blogs para pacientes está más cercana a lo que Gunthen Eysenbach12 ha llamado apomediación (apomediation), a medio camino entre la intermediación (intermediation) y la ausencia de intermediación (disintermediation). Para este autor, la apomediación es propia de las posibilidades que ofrece la Web 2.0, y consiste en una estrategia de búsqueda de información en la que el paciente confía menos en la voz de los expertos, los tradicionales intermediarios de la información, para pasar a tomar en mayor consideración la voz de los legos, por ejemplo, mediante los comentarios de otros pacientes acerca de determinadas informaciones. Es así que la transmisión unidireccional de información profesional médico-paciente, es substituida por una trasmisión mediada por otros legos que se sitúan entre el trasmisor original de la información y el receptor final. En suma, podemos decir que la apomediación puede contribuir a substituir el paternalismo que caracteriza gran parte de las relaciones entre los profesionales de la atención primaria y los pacientes, por una actitud de mayor empoderamiento por parte de estos últimos: […] el objetivo es que el paciente tenga información, pero no la que yo le puedo proporcionar, que él piense […] sobre todo esto, pasar de una información direccional del médico de “usted tiene que hacerse estas pruebas, usted tal, tal”, a un modelo de compartir, que es lo que se llama Web 2.0. Pues compartir información y que el paciente tenga herramientas para responsabilizarse. Si el paciente acepta, entonces ningún problema, pero que él sepa. (Joaquín)

De esta forma, y como se apunta en el extracto precedente, el carácter participativo de los blogs viene dado, especialmente, por su componente de Web 2.0 que permite al paciente interactuar tanto con el conductor del blog, como con otros pacientes, contribuyendo así a romper con su estatus de agente pasivo. Finalmente, nos gustaría mencionar el caso de las comunidades virtuales de pacientes, otra herramienta que directa o indirectamente fomenta la participación y la apomediación en la transmisión de información médica para pacientes. En Cataluña, debe destacarse la experiencia de Forumclínic, una comunidad virtual coordinada por profesionales de centros hospitalarios y de atención primaria cuyo objetivo consiste en aumentar la autonomía de los pacientes en relación a su salud aprovechando las oportunidades que ofrecen para ello las nuevas TIC. La plataforma está organizada a partir de las diez comunidades, pertenecientes cada una de ellas a una enfermedad crónica diferente. Como en las otras experiencias de este tipo, la opción más interesante de Forumclínic consiste en el foro social existente para cada enfermedad, moderado en este caso por un equipo de profesionales sanitarios de la misma Corporación Sanitaria Clínic. Es precisamente a través de este foro social que Forumclínic adquiere un carácter de apomediación, dando la posibilidad a los pacientes de convertirse en agentes activos en interacción tanto con los profesionales médicos como con otros pacientes. En cada una de las comunidades, el usuario puede acceder, asimismo, a información específica sobre su enfermedad de interés, a noticias de actualidad sobre la misma, y a una sección de vídeos relacionados. En suma, las comunidades virtuales de pacientes pueden verse como una herramienta tanto para el fomento de la health literacy, potenciando la implicación y la sensibilización del paciente en relación a su estado de salud, como para el desarrollo de una medicina más centrada en el paciente. Así, se trata de un contexto donde los pacientes pueden expresar libremente sus malestares, a la vez que dialogar acerca de ello con otros pacientes y profesionales sanitarios. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Experiencias desde las trincheras Resulta llamativo que algunas de las experiencias abordadas en los apartados anteriores –como ECOPIH o la conducción de blogs para pacientes–, no cuentan con un apoyo institucional en términos de presupuesto o de tiempo. Por el contrario, se trata de experiencias que sobreviven gracias a la voluntad de sus impulsores, o como resaltan algunos de ellos, ‘por amor al arte’. Así, estas experiencias emergen y se desarrollan gracias al valor que les otorgan sus impulsores; un valor muy ligado tanto al hecho de haber surgido desde abajo, como al hecho de haber nacido como respuesta a una necesidad detectada en el día a día por parte de los profesionales de la atención primaria. Este es el caso, por ejemplo, de ECOPIH, una experiencia surgida de la voluntad de dos profesionales de la atención primaria que coordinan, moderan y administran esta plataforma virtual de comunicación entre la atención primaria y la secundaria: [ECOPIH] es una cosa que ha surgido desde abajo, es decir, que ha salido “desde las trincheras”, que se dice; se ha detectado, y nosotros mismos hemos puesto una solución que pensamos que es la más adecuada a lo que nosotros necesitamos, y ya está. ¿Esto qué quiere decir? Que donde lo presentamos, todo el mundo cree que irá muy bien, todo el mundo, obviamente siempre hay gente que no, pero en general la respuesta siempre es buenísima, y la gente confía que esto irá bien, y también desde la organización, pero digamos, la organización te apoya y nos ayuda a que esto vaya adelante, pero no ha hecho una apuesta decidida de decir: “vayamos a saco con esto, confiemos en este proyecto, y démosles todas estas herramientas” (Sergio). Del mismo modo, fueron los propios profesionales los que detectaron la necesidad de mejorar la comunicación entre la atención primaria y la secundaria, y los que decidieron movilizar los recursos que tenían a su alcance para dar una respuesta a esta deficiencia que limitaba su día a día como profesionales de la salud: Nosotros en primaria siempre tenemos el problema de que quieres consultar una cosa con el especialista, y este tema no está muy bien resuelto. Existen consultas presenciales de ver al especialista cada mes, dos veces al mes o cada semana, depende; hay un servicio que tiene correo electrónico, pero esto ya es una forma un poco más informal. Las consultas presenciales, claro, tienen limitaciones: tienes que estar en un momento concreto, depende de que el especialista no se haya tomado un día libre, si tú tienes una duda tal vez tienes que esperarte hasta el mes que viene porque vino ayer, después si lo quieres llamar tienes que llamar al hospital, encontrarlo a veces es complicado, y esto [ECOPIH] te permite tener esta comunicación fácil (Sergio). Asimismo, los blogs para pacientes son el resultado de la voluntad de abrir nuevas vías de comunicación entre los profesionales de la atención primaria y los pacientes. Sin embargo, no existen abundantes propuestas por parte de los equipos de atención primaria de crear una plataforma unitaria para suplir estas necesidades. Contrariamente, debemos entender su emergencia como el fruto de la emprendeduría individual de algunos de estos profesionales: […] una de las motivaciones íntimas es que en el equipo como tal, no había una gran proyección exterior y veías que como equipo, si tenía que esperar que se moviera todo, no lo lograríamos. Ahora, el director me dice: “a ver cuándo hacemos un blog para el equipo”, y yo le digo: “ningún problema, cuando quieras”. (Antonio)

Este es el caso, igualmente, de otro de los médicos que lidera un blogs para pacientes. Sin embargo, en esta ocasión, la decisión de poner en marcha un blog para pacientes no puede entenderse sin su experiencia previa en la dinamización de un blog para profesionales de la atención primaria: […] ahora hace tres años que empecé con el tema. Los médicos tenemos mucha información y pienso: “¿dónde guardo todos estos documentos que nos llegan?”, que es un problema que tenemos en el día a día. Entonces creé, en primer lugar, el que sería un blog profesional de interrelación entre médicos. […] fue hace un año que dije: “ahora ya tengo la información

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interprofesional, y también quiero que el paciente tenga información útil, ¿cómo lo hago?” En un blog, porque es una herramienta gratuita y fácil (Joaquín).

Finalmente, la experiencia de eConsulta constituye un caso paradigmático de experiencia surgida desde abajo y que ha terminado por institucionalizarse. Aún tratándose de una experiencia impulsada por parte de la gerencia del área de Barcelona Ciudad del Instituto Catalán de la Salud, el hecho de que su gerente fuese un médico de la atención primaria, buen conocedor de la realidad de los centros de salud, hace que podamos hablar de eConsulta como de una experiencia surgida para dar respuesta a las necesidades detectadas por parte de los profesionales de la atención primaria. En palabras de una de sus impulsoras: [eConsulta] surgió mientras yo estaba en la gerencia de atención primaria de Barcelona, y era porque había mucha gente que utilizaba el correo electrónico para comunicarse con sus pacientes, pero no creían que fuera la forma más segura, ni estaban cómodos dando su correo a los pacientes, entonces empezamos a preparar el proyecto […]. (Eva)

El éxito de eConsulta como una experiencia de interacción mediante correo electrónico entre pacientes y profesionales de la atención primaria en el área de Barcelona Ciudad, ha facilitado la implantación por parte del Instituto Catalán de la Salud de una nueva plataforma virtual con unas características muy similares para el conjunto de las áreas sanitarias de Cataluña, representando de esta forma la generalización de su uso.

Consideraciones finales En 1992, Ezekiel y Linda Emanuel13 publicaron un influyente artículo en que describían cuatro modelos de relación médico-paciente. Estos cuatro tipo de relaciones iban del modelo paternalista al modelo deliberativo, pasando por el modelo informativo y el interpretativo. A partir de estos cuatro tipos ideales, los autores marcaban un recorrido, el hilo conductor del cual era la medida en que se fomentaba la implicación del paciente en el control de su estado de salud, siendo el modelo paternalista el más cerrado a este tipo de implicación, y el modelo deliberativo el más abierto. Finalmente, abogaban por el modelo deliberativo, argumentando que la autonomía, la posibilidad de discutir con el médico, la persuasión frente a la imposición, y la medicina como un todo frente a la medicina de la abusiva fragmentación de los cuerpos, debían ser valores al alza en el sistema sanitario. Sin embargo, en estos más de veinte años las posibilidades de que disponen los pacientes para interactuar y participar en el sistema sanitario han cambiado enormemente. Así, y desde entonces, han ido surgiendo varios conceptos como “e-Paciente”, “Health literacy”, “apomediación”, entre otros, que expresan las posibilidades que ofrecen las TIC para implicar en mayor medida los pacientes en su estado de salud. Concretamente, la introducción de las TIC en el sistema sanitario puede contribuir a mejorar diferentes aspectos, entre los cuales nos gustaría resaltar: a) la relación de confianza entre los pacientes y los profesionales de la atención primaria; b) la formación de los pacientes entorno a su estado de salud; c) la constitución de redes de apoyo entre pacientes; d) la autonomía y la capacidad decisoria de los pacientes; e) una atención sanitaria más personalizada; f) la colaboración entre los profesionales sanitarios; y g) la calidad de las derivaciones de la atención primaria a la atención secundaria. De todas formas, y en el contexto actual de recortes presupuestarios realizados en Cataluña, las administraciones públicas no se están mostrando muy interesadas en potenciar este tipo de iniciativas. Es por este motivo que las experiencias identificadas, e impulsadas ‘desde abajo hacia arriba’ por parte de los profesionales de la atención primaria, obtienen mayor relevancia. Su implantación da cuenta de la voluntad de muchos de los profesionales de la atención primaria de continuar innovando a pesar de las condiciones adversas, a la vez que se presentan como una muestra de la capacidad de

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estos profesionales para hacer frente a los problemas de su día a día sin contar, necesariamente, con un apoyo institucional. Así, y aunque algunas de estas experiencias no disponen ni de un tiempo ni de un presupuesto destinados específicamente a ellas, se trata de medidas que, lejos de perseguir indiscriminadamente la quimera de la productividad y la optimización de los recursos, abogan por un cambio en las dinámicas sociales, organizativas y técnicas de los centros de salud, mejorando así la presentación de servicios de estas instituciones. En suma, consideramos que tanto los gestores públicos como los gerentes de las Áreas de Salud, responsables en última instancia de la organización horaria y presupuestaria de los centros de salud, deberían tener en cuenta los beneficios que la introducción de las TIC puede suponer para mejorar la prestación de servicios sanitarios en estas instituciones. Debemos dar un salto y considerar la asistencia sanitaria no únicamente como un servicio presencial, sino también telefónico y virtual, valorando a los profesionales que lo impulsan y abriendo estas posibilidades al conjunto de la población. Se trata de una apuesta que consiste, en definitiva, en flexibilizar la concepción actual de la consulta médica, extremadamente condicionada por los pocos minutos de que disponen los pacientes para interactuar con los profesionales sanitarios en la consulta presencial, a la vez que aprovechar las posibilidades de que disponen las TIC para mejorar estas condiciones.

Colaboradores Martí Oliver-Mora y Lupicinio Iñiguez-Rueda diseñaron el estudio y supervisaron todos los aspectos de su realización. Martí Oliver-Mora realizó el trabajo de campo, el análisis de los resultados y la redacción del artículo. Lupicinio Iñiguez-Rueda revisó críticamente el contenido intelectual del articulo y aprobó su última versión. Referencias 1. Gil A, Vall-llovera M, Feliu J. Consumo de TIC y subjetividades emergentes: ¿Problemas nuevos? Interv Psicosoc. 2010; 1(19):19-26. 2. Vayreda A, Domènech M. Psicología e internet. Barcelona: Editorial UOC; 2007. 3. Gálvez AM. Sociabilidad en pantalla. Un estudio de la interacción en los entornos virtuales. Rev Antropol Iberoam [Internet]. 2005 [acceso 31 Mar 2016]; 1-20. Disponible en: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=62309916 4. Glaser B, Strauss AL. The discovery of Grounded Theory: strategies for qualitative research. Chicago: Aldine; 2010. 5. Hughes B, Joshi I, Wareham J. Health 2.0 and medicine 2.0: tensions and controversies in the field. J Med Internet Res. 2008; 3(10):e23. 6. O’Reilly T. What is web 2.0: design patterns and business models for the next generation of software [Internet]. 2005 [acceso 31 Mar 2016]. Disponible en: http:// www.oreilly.com/pub/a/web2/archive/what-is-web-20.html 7. Horner K, Wagner E, Tufano J. Electronic consultations between primary and specialty care clinicians: early insights [Internet]. Commonwealth Fund; 2011 [acceso 31 Mar 2016]. Disponible en: http://www.commonwealthfund.org/~/media/files/publications/ issue-brief/2011/oct/1554_horner_econsultations_primary_specialty_care_clinicians_ ib.pdf

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8. Ferguson T. E-patients scholars working group. E-Patients. How they can help us heal health care [Internet]. 2007 [acceso 16 Feb 2015]. Disponible en: http://e-patients.net/ e-Patients_White_Paper.pdf 9. Adahl K. On decision support in participatory medicine supporting health care empowerment. Karlskrona: Blekinge Institute of Technology; 2012. 10. Nutbeam D. Health literacy as a public goal: a challenge for contemporany public health education and communication strategies into the 21st century. Health Promot Int. 2000; 3(15):259-67. 11. Nutbeam D. The envolving concept of health literacy. Social Sci Med. 2008; (67):2072-8. 12. Eysenbach G. Medicine 2.0: social networking, collaboration, participation, apomediation, and openness. J Med Internet Res [Internet]. 2008 [acceso 31 mar 2016];3(10):e23. Disponible en: http://www.jmir.org/2008/3/e22 13. Emanuel E, Emanuel L. Four models of the physician-patient relationship. J Am Med Assoc. 1992; 16(267):2221-6.

Oliver-Mora M, Iñiguez-Rueda L. O uso das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) nos centros de saúde: a visão dos profissionais na Catalunha, Espanha. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):945-55. Esta pesquisa tem por objetivo a identificação de experiências no uso das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) que sejam capazes de melhorar o gerenciamento público dos centros de saúde na Catalunha (Espanha), e que sejam impulsionadas “de baixo para cima” por parte dos profissionais da atenção primária. Reunimos estas experiências mediante a realização de onze entrevistas semiestruturadas com profissionais da medicina e enfermagem da atenção primária. O resultado constitui um conjunto de experiências que podem melhorar o gerenciamento público dos centros de saúde por meio de: a) uma maior interação entre pacientes e profissionais da atenção primária; b) uma medicina mais centrada no paciente; e c) uma maior participação e envolvimento dos pacientes em seu estado de saúde.

Palavras-chave: Saúde pública. Centros de saúde. Meios de comunicação. Difusão de inovações. Pesquisa qualitativa.

Submetido em 27/04/16. Aprovado em 14/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0048

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Why has a large Legionnaires’ disease outbreak been absent from public debate? Felisbela Lopes(a) Rita Araújo(b)

Lopes F, Araújo R. Um grande surto de Legionella ausente do debate público. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):957-67.

The Legionnaires’ disease outbreak that hit Portugal in November 2014 was the third largest worldwide and was declared a “great public health emergency”. Nonetheless, the Portuguese outbreak, despite killing 12 people and infecting 375 others did not promote extensive media coverage, nor did it make it into the political debate. We conducted a quantitative analysis of 83 news pieces on Legionella published in four national newspapers, and interviewed the journalists who covered this outbreak. The communication process was controlled by a small group of official sources and the outbreak was pushed away from news lineups due to two political scandals. The production of another news wave made the outbreak’s news wave to break prematurely.

O surto de Legionella que atingiu Portugal em novembro de 2014 foi o terceiro maior em nível mundial, constituindo “uma grande emergência de saúde pública”. Ainda assim, o surto português não promoveu uma longa cobertura mediática, apesar das 12 mortes e 375 pessoas infetadas. Nem entrou no debate político. Fizemos uma análise quantitativa das 83 notícias sobre Legionella publicadas em quatro jornais nacionais, e conduzimos entrevistas com os jornalistas que cobriram este surto. O processo comunicativo foi controlado por um pequeno grupo de fontes oficiais, e o surto foi rapidamente afastado dos alinhamentos noticiosos, sendo substituído por dois escândalos políticos. A produção de outra onda noticiosa fez com que a onda noticiosa do surto de Legionella se quebrasse prematuramente.

Keywords: Legionnaires’ disease. Disease outbreaks. Health communication. Journalism. News waves.

Palavras-chave: Legionella. Surtos de doenças. Comunicação em saúde. Jornalismo. Ondas noticiosas.

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Departamento de Ciências da Comunicação, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Campus de Gualtar, Universidade do Minho. Braga, Portugal. 4710-057. felisbela@ics.uminho.pt (b) Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho. Braga, Portugal. rita.manso.araujo@ gmail.com (a)

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Literature Review The media’s power in setting the public agenda Media have the power to set public and political agendas by promoting the coverage of certain issues instead of others. We argue that the agenda setting theory alone is not enough to explain the way certain issues or news sources become part of the media agenda, while others do not. Knowing the news making process is a result of journalists’ constant choices, one needs to take a step back and understand what kind of variables influence these options. We are referring to agenda building, which is a process that begins in Political Science and was first introduced in the literature by Cobb and Elder1 in a study on politics and the news in the 1970s. This process occurs before agenda setting and it is concerned with the reasons why some issues or sources climb the media agenda and others do not. Several authors, especially north-Americans, dedicated their research to studying agenda building and agenda setting, contributing to the birth of several concepts and perspectives. Indeed, agenda building can also be called “first-level” agenda setting, being its core theoretical assertion that the media concern with ‘objects’ in the news leads to an increased public concern with those same ‘objects’. In other words, the media tell the public what issues to think about2. Matthew Nisbet3 says that the agenda building refers to the “process by which media organizations and journalists feature, emphasize, and/or select certain events, issues, or sources to cover over others”. There are several factors influencing the agenda building process, from economic and cultural variables to the reporter’s perceptions towards the world he/she lives in. The north-American researcher Rita Colistra4 defines agenda building as the process of influencing media choices. Reporters’ choices are not random, and they are related to one’s previous knowledge, culture or background. The news frame, the news sources, and the reporter’s own characteristics may influence the agenda building process. In the past few years, there has been a growing organization and professionalization of news sources, which makes them have a more active role in news making. They have sophisticated public relations tools and often work in public relations offices where they have a great power in setting the media agenda. Nowadays, there are more sources and they are more organized than ever. Besides, they “are aware of the journalists’ work, which allows them to anticipate their limitations and expectations”5. According to the results of a research promoted by Len-Ríos and her co-workers6 on health news agenda building, “when developing health news reports, journalists often use information that comes in the form of ‘information subsidies’”. Information subsidies are ready-to-publish information usually fed to the journalists by organized sources. Routine channels used by public relations professionals, like press releases, press conferences and other pseudo-events are an example of these kind of information subsidies. In the area of science and health, the literature suggests that general assignment reporters depend on subsidies because they, themselves, may know less about the story subject, and that beat or specialty reporters may use them as a means to meet deadline pressures6. (p. 315)

Even though we do not reject the power of news sources in setting the media agenda, it is our belief that journalists must keep having a major role in this process. We perceive media agenda as a result of a commitment between journalists and news sources, which may or may not be organized ones. Hence, the agenda building process is a negotiation between journalists and news sources, and only a commitment between both parts can set the media agenda. The media’s power may be perceived by the generation of news waves, which happened in the outbreak of Legionnaires’ disease. “Every now and then the daily news media suddenly generate surprisingly high news waves on one specific story”7. The thing about news waves is that “hardly any news editor is able to resist the temptation of such an attractive story; it must be reported, because the competition is doing so, because it has consequences for main figures in the public arena and, of course, because the massive news wave itself is news7” (p. 509). 958

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Sometimes journalists go after a story that is not that important, which creates a separation between the reality and the media’s representation of reality. The media end up making their own reality, which turns that one story into the most important one for a few days or weeks. And “during these news waves, news coverage seems to develop a life of its own”7.

A news wave that has broken prematurely The news media tend to cover disruptive events (such as car crashes), routine events (like parliamentary discussions), or continuous events (an example would be a football championship). We face a news wave whenever an unexpected event manages to be on top of the news line-up for several days. This news wave is characterized by an intensive media coverage which then reaches a peak, when the news itself becomes even more important. The world’s third biggest outbreak of Legionnaires’ disease hit Portugal in November 2014 and it promoted a news wave that broke prematurely. This means that the news wave did not reach its peak, it broke just right before reaching its climax. When Portuguese authorities identified the ones responsible for this outbreak, the media stopped covering this event. On November 8th 2014 the Portuguese media began their coverage of the Legionnaires’ disease outbreak. The news framing was justified by a high number of hospitalized people (27). The day after it began, the outbreak hit the front pages of the main national newspapers, where it stood for roughly two weeks. At last, the authorities pointed out responsibilities on a fertilizers company and the outbreak left the top of the news line-ups. It was then replaced by a political scandal involving the illegal attribution of golden visas. A week later, it was pushed away to the news margins with the arrest of the Portuguese former prime-minister who was then a suspect of fiscal fraud, corruption and money laundering. This constitutes a classical example of a news wave, yet showing a single characteristic. The people responsible for the outbreak were soon identified but at that same moment Legionella is pushed away from the news, which is extraordinary. News focused on the high number of hospitalized people: they were led to the same hospital, at the same time. This is the key event characteristic of these kinds of phenomena7. The following days, this wave was supported by three news frames: the increasing number of people infected/killed; the search for responsibility; and the perceptions of the affected population. Frames are mainly focused on the first two aspects and they promote an intense news coverage during the first days of the outbreak. Had the news wave followed the normal behavior, and the intensity of the news coverage would have evolved towards the number of deaths and would reach its highest peak the day responsibilities were identified. However, when the authorities revealed they were close to finding whoever was responsible for the outbreak, the media lost interest in the coverage and they promoted a silence around this issue as soon as responsibilities were named. At the time, other two (political) events were drawing a huge amount of media coverage. Nonetheless, that could not have justified the media’s loss of interest in the outbreak. Because this was one of the biggest outbreaks of Legionnaires’ disease worldwide and it should have motivated an intense coverage, at least until the moment when responsibilities were named. Indeed, that did not happen and the interviews we conducted with the reporters who covered this outbreak show that they too recognize this case was an exception that should not have taken place. Almost every newspaper edition puts Legionella on the front page several times during the first week of the outbreak. This outbreak was perceived as a major news event, and newsrooms had two or three journalists working on it permanently. It was focused on a small dimension city (Vila Franca de Xira), nearly 40 km away from Lisbon, the Portuguese capital. Being so close to Lisbon, it had an intense coverage when it first began because most newsrooms are located there. After two weeks of intense news production, on November 21st people had the confirmation of responsibilities. Official news sources confirmed that the Legionella strains found in sick people were coincident with lab tests conducted on a cooling tower of ADP Fertilizers (a fertilizers company). At this point, this information had already been informally given to a number of journalists a week before. And it was then presented at a press conference by the Director-General of Health, who read a joint statement by a series of official organizations: the Directorate-General of Health; the National Institute COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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of Health; the Regional Health Administration of the Lisbon area; and the Environmental Inspectorate. These authorities formed a multidisciplinary task force whose job was to assess and investigate the outbreak, which shows a strong institutional presence. The joint statement by the task force should have been enough to keep the subject on top of news line-ups, since journalists had been looking for answers for days now, and one would expect the announcement of responsibilities to promote a media coverage at least as intense as previously. None of that happened, and part of the explanation lies in the unforeseen arrest of the Portuguese former primeminister José Sócrates, who was accused of fiscal fraud, money laundering and corruption. A week before, non-identified sources had already pointed out responsibilities in the outbreak. Likewise, this did not draw media’s attention because another scandal emerged: the illegal attribution of golden visas. It is visible that this news wave has particular characteristics, since the media stopped acting like a reflector/mirror of reality as soon as the outbreak reached its peak. The outbreak of Legionnaires’ disease becomes news on November 8th and has an intense coverage until the 15th. It is only on November 16th that the news wave starts to fade away, giving way to another news wave. From this moment on, journalists change their attention from the Legionnaires’ disease to the golden visas’ scandal, even though the outbreak was not yet solved. Quite on the contrary, there still were a lot of people being admitted to the hospital due to this disease. A week after, a new political scandal rises. On this very same day, official authorities identify those responsible for the Legionnaires’ disease outbreak, although this development is almost unperceivable in the news. And soon the outbreak is almost invisible. The appearance of several news waves reporting on serious events shows that the media are uncomfortable with more than one news wave. The appearance of a news wave soon replaces the previous one, and news criteria are not always taken into account. On this outbreak, the decrease of news coverage is coincident with a key-moment of the case. Even though news waves are always shallow water waves, since they form and fade away very quickly, some issues should be taken into account. Namely, the moment when they fade away may also be a newsworthy moment within the event. And this was the case with Legionnaires’ disease. We would say that news sources are not responsible for that, since media are the ones who chose to push this outbreak to the silent margins right at its peak. This happened because the media did not manage to promote two simultaneous news waves.

Methods This research is part of a broader PhD project on the coverage of health in the Portuguese press. Our goal was to analyze the way the Legionnaires’ disease outbreak was covered by the Portuguese press. We analyzed all the Legionnaires’ disease-related news published in four national newspapers: Público, Jornal de Notícias and Diário de Notícias (daily newspapers) and Expresso (weekly newspaper). Our sample is non probabilistic and we chose these newspapers because they have different periodicity and editorial lines. We analyzed the main sections of these newspapers and left aside op-eds. Our period of analysis is the month of November 2014 and is justified by the outbreak itself. We then conducted a quantitative analysis based on descriptive statistics, through the data analysis software SPSS. We studied the following variables: year of analysis, date, newspaper, title, disease, news genre, theme, time of the news, size, place of the news, presence and number of news sources. As for the news sources’ analysis, we were interested in knowing who they were and what their job was. In order to do so, we looked for the following variables: presence/absence of news sources; number of quoted sources; geographical place of the source; sex; identification; status; and medical specialty. This quantitative analysis allowed us to have a complete overview of the Legionnaires’ disease outbreak. Therefore, we conducted a qualitative analysis through interviews with the reporters who covered this outbreak within the analyzed newspapers.

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Interviews and participants We interviewed eight reporters, whose answers were emailed to us. The participants are two journalists from Jornal de Notícias, and Diário de Notícias, three from Público and one reporter from Expresso. Our sample has six female journalists and two males. Even though our interviewees did not ask for anonymity, we decided not to identify them because we believe it would not add relevance to our analysis. This is also consistent with the international trend8-10. We asked them the following questions: - What do you think was the main obstacle in covering this outbreak and what was helpful to the media coverage? - The Legionnaires’ disease outbreak did not make it into the political debate, even though it was a major outbreak; why? - Two weeks after the beginning, the outbreak disappeared from the front pages. This was also the moment when responsibilities were appointed; why? - During the coverage of this outbreak, did reporters promote social alarm or did they promote health literacy? Why? We aimed at answering some unanswered questions in our quantitative analysis by finding some different news frames. These questions seek to understand the whole news building process on the Legionnaires’ disease outbreak.

Results and discussion An outbreak that was invisible from political debate During two weeks, three of the main National daily newspapers (Público, Diário de Notícias and Jornal de Notícias) published 81 texts on Legionella, almost two daily news pieces. The weekly newspaper Expresso published one piece in each edition. So our corpus has 83 news pieces. As for the size of the news, our analysis shows that most texts are medium sized (55.4%) and a significant part is long sized (21.7%). Almost every newspaper edition put Legionella on the front page several times during the first week of the outbreak. In order to understand journalists’ perceptions, we conducted interviews to the reporters who covered this outbreak. And most of them chose the moment when the origin of the outbreak is revealed as one of the most newsworthy. However, they do not mention newspapers not highlighting that moment. Nonetheless, some reporters believe the arrest of a former prime-minister is a plausible explanation for the decrease in the outbreak’s coverage. Journalists explain the wave breaking by the absence of new admittances to the hospital and the fast detection of the outbreak’s origin. They admit there was no political responsibility and so the case would be transferred to the courts of law, where timings are different from media timings. “In a way, finding out the outbreak’s origin was the missing piece. From that moment on, the issue kept being updated with numbers of both admitted and deceased people but was no longer able to compete with daily news”, a journalist says. This is actually the opinion of most of the interviewees. Nonetheless, there are some loose ends in this outbreak’s media coverage, recognized by all the reporters who worked the case. “We are yet to understand what happened or will happen to those responsible for the outbreak”, a journalist says. Another reporter recognizes that “this event would deserve a lot more”, but “small newsrooms and the never-stopping daily news make it easy to forget an issue”. This journalist admits that “it would take a great amount of imagination, research and energy to bring an issue like that back to the media agenda”. Six months after the beginning of the outbreak, the Portuguese press would go back to its coverage: “Victims wait for outcomes”. During that time, there were 161 crime complaints COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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filed against unknowns and still with no replies. The judicial investigation was not solved and compensations were yet to be defined (Jornal de Notícias, May 9th 2015). On a first phase, the media speech contributed to informing people on the outbreak and to neutralizing social alarm situations. But the absence of discussion on the long run made it all the more difficult to help affected people. The analyzed newspapers show no comments from the political parties and the government did not contribute to speculations on the outbreak. The Portuguese press published statements the Ministers of Health and Environment made at press conferences, which are controlled environments, but soon the media lost interest in this outbreak, which is an unobserved behavior in these risk situations. Both Influenza A and Ebola outbreaks did not promote this media behavior. Even though the Ebola outbreak did not threat Portugal, it motivated a great deal of coverage in the Portuguese media11. During the Influenza A epidemic, there was an intense public debate that influenced both the political and the media fields. We even referred to a media pandemic, a pandemic that took place in the media rather than in the real life events. These results are shown in a research in which we analyzed 655 news published in three Portuguese newspapers12, 13. When it comes to the Legionnaires’ disease outbreak, the news wave suddenly vanished due to several factors. First, because responsibilities were soon named (two weeks after the beginning of the outbreak, both the Government and health authorities would hold a press conference presenting the name of the company with whom lied responsibilities). Second, because the political authorities would permanently inform the media, leaving (almost) no questions unanswered (thus neutralizing any possible speculation). This last factor was central to the similarity of the news discourse promoted by all the media. The Director-General of Health was a crucial actor, since he was the one controlling the strategy of communication. We will now analyze the news sources quoted by journalists during the Legionnaires’ disease outbreak. The research we have been conducting on the media coverage of health in the Portuguese press since 200814 shows that only a small percentage of news sources are non-identified. During the Legionnaires’ disease outbreak, 83.3% of the sources are identified and only 16.7% are nonidentified. Since the outbreak was focused in a city near the capital, almost half of news sources (44.1%) are located in the Greater Lisbon area. The other half talks on a national level, as the Minister of Health. More than 75% of news sources are people, which means that documental sources and media are not very present in our sample (8.4%). Male sources are predominant. When it comes to news sources status (see Table 1), there is a predominance of official sources. Nonetheless, the media made both the common citizen and patients quite visible (26.9%) in the news. They are the second most quoted group, but there are differences between these two categories. While official sources are represented by a small group of people who deal daily with the media and show a clear communication strategy, common citizens talk on an individual level and show no articulation among them. Therefore, even though their messages express complaints, they do not have half the impact they could if well-defined.

Table 1. News Sources Status Official sources Citizens Specialized sources Media Documents Others

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Within the health field Outside the health field Common citizen Patients Within the health field Outside the health field

% 25.5 4.2 21.3 5.6 13.4 11.4

Within the health field Outside the health field

2.7 0.3

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Totals 29.7 26.9 24.8 4.4 3 11.2


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The predominance of official sources is not a singular characteristic of Legionnaires’ disease coverage. Previous studies on the coverage of Influenza A12,13, E. Coli15 and Dengue16 showed a prevalence of official sources. What stands out during this outbreak is the visibility of patients (and their families) and the common-citizen. It promoted a significant number of news features that presented several sources. By increasing the number of sources quoted, journalists were able to include the common-citizen’s voice. These sources were often making complaints or expressing fears and anxiety towards an outbreak which treatment was unknown to them. Still, they were neutralized by an official discourse often made by three people: the Ministers of Health and of Environment, and the Director-General of Health. Even though these official sources eliminated any chance of a public debate, they were not responsible for the breaking of the news wave they would daily promote through the information conveyed to the media. As soon as the outbreak started, the media’s concern was shared between counting deaths and hospitalized people, on the one hand, and identifying responsibilities, on the other. Data was made available to the media. And the origin of the outbreak, which could become controversial, was soon silenced by Portuguese authorities, under a secrecy clause determined in the penal code which does not allow undergoing investigations to be disclosed. On November 7th, the Directorate-General of Health reported on an abnormal number of people infected with Legionnaires’ disease in Vila Franca de Xira. A task force was created right away, and the minister of health himself presided it and constantly monitored the situation. The media got a lot of attention. Besides the conveying of information to the media in general, official authorities also made themselves available to individual questions posed by a given newspaper (the specificity of some quotes makes this visible in the news). Despite the openness, officials felt the need to hide some information that was the most newsworthy: what was the origin of the outbreak. However, official sources led people into thinking that there was an undergoing investigation and that the outcome would soon be known. Five days after announcing the outbreak, newspapers changed from the public health frame to the legal one. “People responsible for Legionnaires’ disease outbreak may serve eight years in jail” (Diário de Notícias, front page). That same day, Jornal de Notícias published a small piece saying that “the responsible must be punished”. Official sources consistently refused to comment on this frame, which did not help journalists go deeper. Officials would not talk about an undergoing investigation and no information was leaked from the judicial field. On top of that, the issue would not reach the political field. So who would journalists talk to in order to widen this frame? Our sample shows 287 news sources, and only five belong to the judicial field. This frame was a dead end, since pursuing it would imply a violation of the law. It was only on November 21st that the origin of the outbreak was revealed, in a press conference promoted by the same small group of official sources who had been controlling and managing public information. The Minister of Health himself announces the name of the company responsible for the outbreak and says that this public health threat is now over. This becomes the last newsworthy moment of the two-week news wave. There was a circular structure of information spreading from official sources who would only make available information they thought suitable. This would then reach them the next day, as news they would be controlling. Citizens would complain about the lack of information and consequent social alarm (Jornal de Notícias, November 10th) and hospitals would claim that “there was a rupture caused by this situation” (Diário de Notícias, November 11th). However, none of these statements would be strong enough to stimulate a political discussion within the public space. Perhaps because those who were in charge of managing a crisis situation would keep talking – always delivering strategic statements. Several declarations were jointly given by the Ministers of Health and Environment, and the Director-General of Health. They used numerous communication strategies to express the same message. Besides describing the outbreak, press releases were a tool to tranquilizing people. The message conveyed by them was that the situation was serious, but it was under investigation. Plus, we would like to highlight that this Legionnaires’ disease outbreak did not involve pharmaceutical interests, since no medical product was ever an option. There are only two 963


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pharmaceutical sources from a sample of 287 quoted sources. This shows the lack of economic interests that could struggle for visibility in the public space, as it was the case during the Influenza A pandemic in 200912,13. Back then, pharmaceuticals had a genuine interest in promoting the need for a vaccine. Contrarily, the Legionnaires’ disease outbreak was mainly a public health and environmental crime case that was developed in a small. Part of the explanation to the loss of media interest could lie here. Since there was no health lobbying in order to keep this issue in the media agenda and political parties did not show an interest themselves, the media could easily push it to the silent margins. Also, the public’s interest was not so wide, since this outbreak only affected a small city. The interviews conducted to journalists show that not all of them agree this issue was hidden from political debate or totally pushed away to the silent margins. A reporter says that “the issue was discussed within the Parliament” and “non-governmental organizations in the environment area alerted for the outbreak”. However, that did not promote a national continuous debate. One journalist explains the lack of political discussion: “What was happening was not related to politics, it was an event whose responsibility was clearly on the polluter’s side and not on the regulator”. The realization that the outbreak was seen as a fatality for political power is common to other reporters: “All the political parties realized that this was a serious public health issue, and that the health and environment authorities gave an effective and fast answer”. Hence, both the task force that was created to control communications with the media and the quick investigation into the outbreak’s origin made public debate almost inexistent. From the very first day, this outbreak was always away from the political discussion and was seen as a technical matter. Eventually, that did not promote its public debate.

Final remarks In the past few years, public health has been threatened by severe outbreaks that were largely covered by the media, as Influenza A12,13, E. coli15 and Ebola11. However, this Legionnaires’ disease outbreak did not promote the same media coverage as others, although it was the world’s third largest outbreak. Why? We would point to a number of reasons that had the power to push this issue away from the news agenda. The Influenza A outbreak started abroad and promoted a global fear of contagion. On the contrary, the current Legionnaires’ disease outbreak was confined to Portugal, specifically to a small city. There was never a threat that it would travel, which did not raise panic among the population. Furthermore, the people’s interest in Legionnaires’ disease-related news was very small. And Vila Franca de Xira being a small city has also contributed to this (almost) lack of interest. Journalists were well aware of that limitation and knew that this outbreak would not be kept in the media agenda for long. During the Influenza A pandemic, there was a global threat; during the E. Coli outbreak, Europe was under risk of contamination. Those threats promoted a collective fear that did not respect borders, and so they motivated a wider coverage. The contagion effect was also felt within the media coverage of these cases. The main Portuguese newspapers had several reporters dedicated to this outbreak from the very beginning, and they worked the issue either from the newsroom or in the field. In the first week there was an investment from the media. Journalists interviewed specialists and, most importantly, they published infographics explaining the outbreak and focusing on health literacy aspects. Health and political authorities joined efforts from the beginning, in order to control information and to present the same description of the facts. Other than official statements, there was a clear silence from other types of sources. At the outbreak’s peak there were no leaks of information to promote any noise around this issue, which did not stimulate a public discussion. Hence, the Ministries of Health and Environment agreed on a communication strategy that would make the ministers themselves the spokespeople for this outbreak. They would communicate through press releases

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or press conferences, and they were always available to enlighten journalists. Communication was promoted through direct speech and on the highest level of authority, leaving press officers and nonidentified sources almost silent. Moreover, this outbreak was not surrounded by economic interests, since it did not involve vaccinations or great treatments. Unlike what happened with Influenza A or Ebola, the pharmaceutical industry had no particular interest in Legionnaires’ disease. This fact may also contribute to the (existence or absence of) news coverage of the outbreak. All of these may help explain this outbreak was pushed away from the news agenda so soon. However, they do not explain why the media’s decision not to follow-up on the outbreak during one of its most important moments, finding those responsible. The lack of media’s interest may be explained by the generation of another news wave that emerged from the political field and involved a public interest event: the suspicions of corruption by a former prime-minister. The media has difficulties in dealing with two different news waves, which has made the first news wave to break prematurely. That should not have happened, because those responsible for the outbreak should have been part of a wide coverage. They not being part of the news was a journalistic choice made by all the national newspapers. Newsrooms chose to cover the arrest of the former prime-minister by alleged corruption, and that was the event that swallowed the Legionnaires’ disease outbreak. Consequently, public authorities themselves would drop the case and the judicial follow-up would take so long that whoever was responsible was not forced to reward the victims within a short period of time. It all could have been different, had the media made room for both news waves. Without media pressure, the outbreak was kept away from the public scrutiny and from the priorities of institutions with the power to compensate all the victims. Six months later, there was a small news in one of the Portuguese newspapers that reported on 161 crime complaints against unknown people. These complaints were filled by those whose family died or became sick from the outbreak. Had the news wave not been broken so prematurely, and the outcomes could have been different. From the first day to the moment when the outbreak disappeared from the top of the news lineups, there is a clear presence of the agenda building process. When the media realizes they are facing an outbreak, they make an editorial decision and the Legionnaires’ disease outbreak is given high news-worthiness. This decision happens before the news sources make any moves, which indicates that journalists were the ones who made official sources go public and give information on a regular basis. On the other hand, despite the political powers’ concerns in controlling all the information that was made public, the media searched for alternative ways of telling this story. They left the newsrooms and published features while talking to the victims and their families, supporting their news texts with infographics that helped contextualize the outbreak. The Portuguese media coverage of this outbreak contributed to a representation of reality that was not always coincident with the official version. In spite of that, there were no radical differences between what was portrayed by the media and the information conveyed by the political power. In the end, journalists had so much control over the agenda building process that they pulled the outbreak from the news when the official sources most wanted it highlighted.

Collaborators Felisbela Lopes had an active participation in the discussion of results and in the review and approval of the final version of this work. Rita Araújo had an active participation in the discussion of results and in the review and approval of the final version of this work.

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Lopes F, Araújo R. Un gran brote de Legionella ausente del debate público. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):957-67. El brote de Legionella desencadenado en Portugal en noviembre de 2014 fue el tercero mayor en el ámbito mundial, constituyendo “una gran emergencia de salud pública”. Aún así, el brote portugués no promovió una gran cobertura de los medios, a pesar de las 12 muertes y 375 personas infectadas. Tampoco entró en el debate político. Realizamos un análisis cuantitativo de las 83 noticias sobre Legionella publicadas en cuatro periódicos nacionales y realizamos entrevistas con los periodistas que cubrieron el brote. El proceso comunicativo fue controlado por un pequeño grupo de fuentes oficiales y el brote fue rápidamente alejado de los alineamientos de noticias, siendo sustituido por dos escándalos políticos. La producción de otra onda de noticias hizo que la onda de noticias del brote de Legionella se rompiera prematuramente.

Palabras clave: Legionella. Brotes de enfermedades. Comunicación en salud. Periodismo. Olas de noticias.

Submetido em 18/02/16. Aprovado em 03/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0582

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Cuidados paliativos sob a ótica de familiares de pacientes com neoplasia de pulmão Maria Edilania Matos Ferreira Furtado(a) Darla Moreira Carneiro Leite(b)

Furtado MEMF, Leite DMC. Palliative care seen from the point of view of the lung cancer patients’ families. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):969-80.

The palliative care defend the use of relief therapy for patients suffering in case of life-threatening diseases, respecting their physical, mental, social and spiritual aspects. In this regard, it is intended to identify what the patients’ families understand about the relief therapy. This is an exploratory and qualitative study developed by the application of 11 semi-structured interviews with family caregivers. The data emerging from the interviews were subject to content analysis and integrated to the current literature on palliative care. Understandings of palliative care involves from the ignorance of the term to the notion of care of the disease. It is concluded that communication between team-families is essential in the construction of this understanding. Even most families do not acknowledge this fact, the results show a positive setting towards the implementation of the philosophy of palliative care.

Keywords: Palliative care. Family. Lung cancer. Communication.

Os cuidados paliativos defendem o emprego de terapêuticas de alívio do sofrimento de pacientes com doenças ameaçadoras da vida, respeitando suas dimensões física, psíquica, social e espiritual. Neste sentido, buscou-se apreender o que os familiares de pacientes com neoplasia de pulmão entendem por essa terapêutica. Trata-se de estudo qualitativo de cunho exploratório, no qual foram realizadas 11 entrevistas semiestruturadas com familiares cuidadores. Os dados obtidos foram submetidos à análise de conteúdo e articulados à literatura sobre cuidados paliativos. A compreensão dos cuidados paliativos vai desde o desconhecimento do termo à noção de cuidados com a doença. Conclui-se que a comunicação equipe-família é essencial na construção dessa compreensão e que, mesmo não havendo reconhecimento do termo pela maior parte dos familiares, os resultados mostram que o cenário da pesquisa é propício à implantação da filosofia dos cuidados paliativos.

Palavras-chave: Cuidados paliativos. Família. Neoplasias pulmonares. Comunicação.

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(a) Programa de Residência Integrada em Saúde, Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE). Av. Antonio Justa, 3161, Meireles. Fortaleza, CE, Brasil. 60165-090. edilaniafurtado@ gmail.com (b) Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart Gomes. Fortaleza, CE, Brasil. darlamoreiracl@ gmail.com

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Introdução Dentre as doenças crônicas não transmissíveis, o câncer tem grande incidência nas estatísticas de morbimortalidade apresentadas pelo mundo. As estatísticas no Brasil, para 2016/2017, apontam 28.220 novos casos dessa patologia, sendo 17.330 para homens e 10.890 para mulheres1. Apesar dos avanços tecnológicos, o câncer de pulmão nem sempre é diagnosticado precocemente, o que compromete a sobrevida do seu portador. Assim, diante da impossibilidade de tratamento curativo, resta a abordagem paliativa2, que visa ao alívio da dor e do sofrimento, por privilegiar a prestação do cuidado ao paciente e a sua família3-5. Em se tratando de família e adoecimento, muitas questões compõem a travessia que vai do diagnóstico ao luto vivenciado pela morte, o que requer cuidados para além de procedimentos técnicos. Requer, sobretudo, uma escuta sensível, como fator imprescindível a uma comunicação de qualidade6-8. Assim, pensando nos conteúdos dessa comunicação e nos sentidos que produzem, é pertinente questionar-se: Que compreensão têm os familiares de pacientes com neoplasia de pulmão acerca dos cuidados paliativos? A presente pesquisa tem como objetivo geral compreender os sentidos do termo Cuidados Paliativos para os familiares de pacientes com neoplasia de pulmão e, como objetivos específicos, apreender os sentidos dos cuidados paliativos e discutir a repercussão da comunicação equipe/família na construção desses sentidos. A relevância desta pesquisa reside no fato de as neoplasias se apresentarem enquanto segunda causa de morte por doenças no Brasil, bem como no aumento expressivo da incidência do câncer a cada ano1,9. Isso implica o aumento do número de pessoas que obedecem aos critérios estabelecidos para o recebimento de cuidados paliativos e de familiares cuidadores em contato com esse tema. A pesquisa contribui ainda para a produção literária sobre o tema, posto que na busca por estudos que subsidiassem sua fundamentação teórica, deparou-se com incipiente produção científica acerca da compreensão de familiares sobre cuidados paliativos.

Câncer e cuidados paliativos À medida que cresce em estatísticas, é comum se ouvir falar de câncer como doença incurável, e, diante do diagnóstico, mesmo havendo recursos terapêuticos, em se tratando do câncer, a antecipação da morte é experimentada pelas pessoas10. Quanto ao risco de desenvolvimento, o tabagismo é, ainda, sua principal causa1. A detecção da doença em estágio inicial é um desafio, considerando, para tanto, a busca postergada por tratamento e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde2. Apesar dos avanços, a toxicidade dos radioterápicos e quimioterápicos no tratamento do câncer é fator preponderante. Isso porque tais terapêuticas podem atingir órgãos e tecidos outros que não somente os que são alvo do tratamento11,12. Assim, justifica-se que o cuidado de patologias ameaçadoras da vida deve privilegiar uma abordagem que considere, além dos aspectos físicos, o bemestar global da pessoa adoecida13. Nessa perspectiva, surgiu o movimento hospice, na segunda metade do século XX, apostando na efetividade do cuidar4. O termo hospice vem do latim e significa hospedaria, seus primeiros registros remontam ao século V. Nesses locais, religiosos, em especial, exerciam a prática do cuidado com viajantes e peregrinos. Posteriormente, essa prática foi modificada, abrangendo o cuidado a doentes cuja patologia não tem cura14. A expansão do movimento hospice pelo mundo tem sua história marcada pela médica inglesa Cicely Saunders. Após a experiência com pacientes fora da possibilidade de cura, Saunders fundou em Londres, em 1967, o Saint Christopher Hospice, cujo modelo inspirou o surgimento de outros4,15. Saunders propôs o termo “dor total” para designar que o sofrimento físico é apenas uma das dimensões afetadas pelo adoecimento, e que o cuidado prestado às doenças que ameaçam a continuidade da vida deve englobar também as dimensões psicológica, social e espiritual. 970

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Desse modo, na impossibilidade de traduzir adequadamente o termo hospice, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou a expressão cuidado paliativo. Tal expressão, já utilizada no Canadá, é definida como [...] abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alivio do sofrimento. Requer identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza biofísica, psicossocial e espiritual16. (p. 26)

Diante dessa definição, Arantes17 observa que a abordagem desses cuidados deveria se estender a todos os pacientes com doenças graves, progressivas e que ameacem a continuidade da vida. O trabalho em cuidados paliativos requer uma equipe multiprofissional, composta, no mínimo, por: médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social. A depender da necessidade e da realidade, outros profissionais podem ser chamados a integrá-la3,14. Uma vez abordado o tema cuidados paliativos, é interessante traçar algumas linhas sobre a noção de família e a importância da comunicação em cuidados paliativos.

Família, adoecimento e comunicação em cuidados paliativos A noção de família, segundo a visão sistêmica, abrange um complexo de relações em interação e transformação constantes. Daí não ser possível uma definição que abarque a diversidade de arranjos familiares18. Nesse sentido, Franco defende que a “família pode ser entendida como um sistema no qual a soma das partes é mais do que o todo”7 (p. 358), acrescentando que aquilo que afeta o sistema afetará cada indivíduo. Para a autora, ao se depararem com acontecimentos que ameaçam o funcionamento desse sistema, esses indivíduos tentam restaurar o seu equilíbrio, seja por meio de seus papéis, padrões de enfrentamento ou regras de comunicação. A antecipação da perda e a morte iminente concorrem para a desorganização do equilíbrio familiar. Diante disso, a hospitalização torna-se mais um desafio a ser enfrentado, especialmente por despertar o conflito entre a vida e morte19,20. Nesse contexto, a comunicação é pedra angular, no sentido de favorecer ou dificultar a relação da equipe de saúde com a família. Kovács8 lembra quão importante é a questão da comunicação nas situações de cuidados paliativos. Para a autora, uma comunicação efetiva, harmoniosa e centrada nas necessidades do doente pode produzir contribuições valiosas para o controle de desconfortos físicos, minimizando o sofrimento de pacientes e familiares. Essa comunicação passa, também, pelo ato de escutar, estar atento ao que é dito e ao modo como é dito, incluindo expressões faciais, gestos e sentimentos. Isso se torna desafiador quando não se lhe reserva um tempo necessário. Não se trata, portanto, do simples ato de informar, mas de ser presença empática na dor do outro21. Caponero e Vieira22 definem comunicação como uma habilidade capaz de minimizar a ansiedade de pacientes e familiares por meio da oferta de informações e explicações adequadas. Comunicarse adequadamente é uma aptidão que pode ser desenvolvida e aperfeiçoada, bastando, para tanto, dispor do tempo para ouvir e permitir que o diálogo ocorra. Rosemberg23 acrescenta que o profissional de saúde já comunica alguma mensagem por meio de sua presença, mesmo que não intencione, pois a fala não é meio exclusivo de transmissão de mensagens. A entonação de voz, o silêncio e as pausas produzem algum sentido naquele que ouve. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo6 destaca a “excelente comunicação” como fator primordial no enfrentamento da doença por parte dos pacientes e seus familiares. A boa comunicação é atributo necessário à equipe profissional nos cuidados paliativos, por promover o conhecimento e a conscientização de todos os envolvidos no processo. O referido conselho assegura que, em cuidados paliativos, a ênfase deve ser atribuída à qualidade das relações. Considerando a doença em fase avançada, é imprescindível a comunicação honesta e completa. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A Política Nacional de Humanização (PNH), lançada em 2003, faz referência à comunicação como ferramenta no enfrentamento das relações de poder, trabalho e afeto. A ênfase à comunicação consiste nas mudanças possíveis de relacionamentos entre os atores que compõem o cenário da saúde: trabalhadores, usuários e gestores24. Para Deslandes et al.25, os princípios da PNH estabelecem relação estreita com as proposições de Habermas acerca do agir comunicativo. Segundo essa proposta, a ação comunicativa possibilita o entendimento por meio do diálogo. O que não significa, simplesmente, emitir ou compreender um conteúdo, mas, sim, conceber novas versões de mundo, sofrimento e cuidado. Nesse sentido, uma ação comunicativa abre espaço para a troca e considera o conhecimento do outro como válido. Independentemente da posição que ocupa no diálogo, suas proposições são aceitas, pois traduzem conhecimentos técnicos e vivenciais distintos25. Desse modo, buscar a compreensão de familiares sobre os cuidados paliativos é considerar que seus referentes sobre esse termo carregam elementos do contexto no qual compartilham a vivência da doença, especialmente no tocante à comunicação que circula nesse espaço.

Métodos e técnicas Desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório. Segundo Minayo26, o estudo qualitativo melhor se aplica a “situações particulares, grupos específicos e universos simbólicos” (p. 76). Por sua vez, a pesquisa exploratória permite considerar aspectos variados no tocante ao fato estudado, por possuir planejamento flexível27. O estudo foi realizado em um hospital terciário localizado na cidade de Fortaleza-CE, especializado no diagnóstico e tratamento de patologias cardíacas e pulmonares. É também referência, no NorteNordeste, na realização de transplantes de coração e pulmão. Os dados foram coletados entre agosto e outubro/2015 em uma unidade de pneumologia que dispõe de 30 leitos destinados à internação de pacientes em tratamento clínico, investigação diagnóstica e cirurgias. Do total de leitos, dois são apartamentos, destinados aos pacientes póstransplantados de pulmão. Essa unidade conta com uma equipe multiprofissional composta por: médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionista, psicólogo, assistente social e terapeuta ocupacional. Oriundos dessa mesma equipe, profissionais das categorias enfermagem, medicina, psicologia, terapia ocupacional e serviço social compõem a equipe de cuidados paliativos da unidade pesquisada. O critério para que o paciente seja atendido nessa perspectiva é definido pela avaliação clínica, que inclui, como protocolo, uma escala desenvolvida no Canadá e traduzida, preliminarmente, pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos, a Palliative Performance Scale (PPS). Essa escala inclui na avaliação: a capacidade de deambulação (caminhar), nível de comprometimento pela doença em atividades laborais, autocuidado, ingestão alimentar e nível de consciência3. Foi critério de inclusão na pesquisa: ser familiar e estar acompanhando o paciente, ter mais de 18 nos, e ter conhecimento do diagnóstico de câncer desse paciente. Como critério de exclusão, elegeu-se ser familiar de pacientes com diagnósticos de outras doenças pulmonares. A seleção dos entrevistados se deu por conveniência. Solicitou-se à equipe da unidade que indicasse os pacientes sob os cuidados paliativos. O número de participantes, no caso 15 familiares, foi definido pelo critério de saturação das respostas. Os dados do diagnóstico foram obtidos nos prontuários. Para a coleta de dados, realizou-se entrevista semiestruturada, gravada, destruindo-se as mídias após transcrição dos dados. As perguntas norteadoras, elaboradas pelas pesquisadoras, foram: 1) O que você conhece da doença do seu familiar? 2) Como você acha que é tratado o câncer? 3) O que você espera do tratamento que vem sendo realizado? 4) Como você entende a questão da cura no caso do câncer? 5) Cuidados paliativos, você já ouviu falar ou sabe o que é? Além dessas perguntas, coletou-se, também, idade, sexo, grau de parentesco e escolaridade dos entrevistados.

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Para tratamento dos dados, utilizou-se a Análise de Conteúdo, por se tratar de um conjunto de técnicas aplicadas à análise de discursos diversos, possibilitando, ao pesquisador, a compreensão e descrição dos conteúdos das mensagens28. Dentre as funções desse método, a função heurística enriquece a tentativa exploratória e aumenta a propensão à descoberta; já a função de ‘administração da prova’ parte da elaboração de hipóteses como tentativa de afirmar ou não as questões propostas. Após análise e compreensão do material coletado, as falas foram organizadas em unidades de registros, permitindo a eleição de categorias. No decorrer da discussão, essas falas serão indicadas pela sigla FC (familiar cuidador), seguidas do número correspondente de participação, assim aparecerão de FC1 a FC11. Em respeito aos aspectos éticos e legais, a pesquisa atendeu às recomendações da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 201229. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do hospital pesquisado e obteve aprovação.

Resultados e discussão Dos 15 entrevistados, 11 atenderam aos critérios de inclusão, compondo a amostra final. Desse total, nove eram mulheres e dois homens. A idade variou entre 18 e 59 anos. Referente ao grau de escolaridade, três tinham Ensino Fundamental (in)completo, sete com Ensino Médio (in)completo, e um com ensino técnico. Quanto ao parentesco, prevaleceram os filhos (as), no total de oito; os demais foram dois esposos (as) e um sobrinho (a). No tocante ao estádio da doença, todos os pacientes dos familiares entrevistados estavam no estádio IV, onde o câncer já compromete mais de um órgão e o tratamento ofertado é paliativo2. Da leitura do material coletado surgiram duas categorias: a primeira, ‘Compreensão da doença’ e, a segunda, ‘O saber não saber: sentidos de cuidados paliativos’. Dessa última emergiu a subcategoria “do desconhecimento do termo à construção de sentidos”. Finalizando a discussão dessas categorias, aborda-se a repercussão da comunicação equipe-família na construção dos sentidos de cuidados paliativos.

Compreensão da doença Essa categoria é representativa dos elementos que se destacaram na compreensão do câncer, tratamento e cura. Apesar de os entrevistados referirem conhecimento do quadro clínico de seus familiares, suas falas refletem elementos que sugerem desconhecimento acerca da doença ou, ainda, não terem sido devidamente informados sobre o câncer, como se evidencia a seguir: “Do que conheço é só o que ela tem, esse câncer, primeiramente ela veio com negócio de cansaço, aí aqui nós descobrimos esse câncer”. (FC2) “Eu particularmente não tenho muita informação sobre o câncer não. Só sei que é um câncer e sei também que não é uma coisa muito boa”. (FC5) “Eu entendo muito pouco e eu sei muito pouco. Só sei que é CA no pulmão, que é muito grave, que ela tá (sic) numa fase muito avançada, e já tá nos dois pulmões, pouca coisa que eu sei”. (FC1)

A esse respeito, Tesser30 entende que a construção da verdade e o seu uso pelo médico está relacionada com a missão social de curadores que os profissionais médicos recebem. Aos leigos apenas cabe confiar nessa verdade.

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O câncer revela a imagética da morte por meio dos sentidos de destruição. Aquilo que é estranho e sequer deve ser pronunciado torna-se também familiar, no sentido de ser socialmente compartilhado. A ideia de aniquilamento diante de um inimigo cujo arsenal é desconhecido31 atravessa a compreensão da doença. “Olha, pra mim, é como se fosse um... você joga uma pedra em um bicho que é feroz, né, ele sai correndo atrás de você, tentando te destruir, tentando te matar, sabe assim. É isso que tá... eu acho, que tá acontecendo com a minha mãe, essa coisa, que eu não quero nem dizer o nome, destruindo ela, destruindo a respiração dela [chora copiosamente]”. (FC3)

Esses achados corroboram a literatura sobre a crise que se instala na família diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, revelando a antecipação da perda e a morte iminente como concorrentes da desorganização do equilíbrio familiar7,19. No tocante ao tratamento da doença, todos os participantes demonstram conhecimento da terapêutica, citando a radioterapia e/ou a quimioterapia, mas os efeitos indesejáveis foram destacados pela maioria dos participantes, que referiram piora no quadro clínico como reação ao tratamento. As reações adversas desses tratamentos incluem: cansaço, enjoo, vômitos, fraqueza, perda de apetite, alterações no peso, feridas na boca, entre outras. Os efeitos indesejáveis se estendem à dinâmica familiar, podendo causar mais sofrimento, além do produzido pelo diagnóstico em si11,12,32. No que se refere à noção de cura, os participantes ressaltam a fé como recurso de enfrentamento da doença, mesmo reconhecendo a impossibilidade de cura pelo tratamento ofertado. É relevante citar que a dimensão espiritual integra os princípios dos cuidados paliativos, implicando o reconhecimento de que, diante das doenças ameaçadoras da vida, o suporte espiritual pode propiciar a ressignificação dessa vida, do sofrimento do paciente, da sua dor e morte11.

O saber não saber: sentidos de cuidados paliativos Essa categoria revela o movimento dos participantes na construção dos sentidos de cuidados paliativos. O saber não saber faz referência ao fato de que ainda que desconhecido para a maioria dos participantes, as tentativas de tradução do termo são alusivas ao que, de fato, constitui a filosofia desses cuidados.

Do desconhecimento do termo à construção de sentidos Ainda que demonstrando conhecer o diagnóstico e o prognóstico de seu paciente, alguns familiares não conseguiram atribuir sentido ao termo cuidados paliativos. Quando abordados sobre a questão, apresentaram falas que revelam desconhecimento desses cuidados. “Como assim? Não senhora, não, não. Nem tenho ideia do que seja. Cuidado com a doença é? Pois sim? Mas como assim? Ela não é contagiosa não, né? Ou é?” (FC4) “Não, se o médico falou eu não lembro”. (FC1) “A minha filha tinha falado e eu ouvi ontem, né, mas não lembro não”. (FC10)

Em outra fala, cuidado paliativo foi ‘confundido’ com ‘cuidado avaliativo’: “Não, assim, uma avaliação, né? Você tá ali olhando ela, ela tá melhorando, piorando, pronto. É uma avaliação que a gente tá tendo do paciente, entendeu?” (FC6). Aproximando-se o termo do vocábulo ‘avaliar’ no contexto dos cuidados paliativos percebe-se que, na prática, esses cuidados são também avaliativos, no sentido de avaliação de sintomas, que são tanto físicos quanto psicológicos, sociais e espirituais. Porém, ao ser esclarecido acerca do que efetivamente lhe foi perguntado, o participante considera o termo ‘paliativo’ como novo, desconhecido. 974

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“Não, não, nunca escutei falar. Mas eu creio que tenha a ver com avaliativo. É desconhecida, né, essa palavra, PA-LI-A-TI-VO [soletra]? É uma coisa nova e pouco divulgada, né? Porque se chegasse aqui e dissesse “vai ganhar mil reais pra me explicar o que é paliativo” eu tinha perdido esses mil reais”. (FC6)

A esse respeito, Pimenta e Mota33 concluem que, embora o alívio de sintomas seja tão antigo quanto a história do cuidado, o ressurgimento da ênfase no alívio da dor e na prática dos cuidados paliativos é recente, sendo reduzido o número de profissionais que a conhecem. Por sua vez, Figueiredo15 observa que, além de novo na área da saúde, o cuidado paliativo não é bem aceito, seja pela comunidade científica ou leiga. Diante disso, acredita-se que a dificuldade da equipe de comunicar adequadamente o significado do termo cuidado paliativo para os familiares deriva do fato de que se trata de novidade também para os profissionais, que devem, primeiro, incorporá-lo ao seu conhecimento. Concebe-se, ainda, para os cuidados paliativos, o sentido de ‘cuidado diferenciado’. Tal concepção parece estar vinculada ao reconhecimento de que conforme a doença progride e as chances de cura diminuem, faz-se necessário o cuidado dos sintomas indesejáveis14. “Como? Não. Tipo assim, como que fosse eu filha dela cuidasse dela? Eu acho que é isso. [E esse cuidado é só a família que pode oferecer?] Só não! Os amigos...e os médicos. Ele é um cuidado diferenciado, agora eu só não sei. Cuidado eu sei, mas paliativo não”. (FC8) “Não sei o que é. Se for o que eu faço, né? Porque eu cuido dela, tô (sic) aqui dia e noite, banho ela, dou alimentação dela, dou remédio, fico observando ela, pelo que eu sei só se for isso”. (FC2) “Eu já escutei, mas não sei te definir... cuidados que deve ter com o paciente? Até porque quem tá doente precisa de um cuidado maior, do que qualquer ser humano, né? Todos nós temos nossos limites, mas quem tá doente tá mais debilitado né? Precisa de mais cuidado”. (FC9)

Assemelhar o cuidado realizado aos cuidados paliativos adquire, nas falas anteriores, um sentido de cuidar na essência, sem, no entanto, se nomear que tipo de cuidado é esse. Para Volich, “cuidar pressupõe colocar-se ao do lado do sujeito, inclinando-se à sua dor”34 (p. 82). E o que têm feito esses familiares, senão cuidar de seus doentes? Igualmente, essa aproximação lembra que, na abordagem paliativa, cuida-se essencialmente dos sintomas para minimizar o sofrimento. Cuidar, portanto, não pressupõe salvar, tampouco abandonar, mas acompanhar, quando a cura não é o foco da atenção4,35, como referido por este familiar: “Aqui eu ouvi falar. Assim, paliativo eu acho que é as medicações, não sei se é isso, né? A medicação, a medicação dela que eles estão dando pra..., assim, ajudar a ela a... assim, respirar melhor, entendeu? É, assim no meu ver, é isso, né? Eles estão cuidando, os médicos estão cuidando dela no que possível, da maneira deles, né?” (FC3)

Na fala a seguir, a expressão cuidados paliativos adquire o sentido de uma terapêutica que visa minimizar o sofrimento e propiciar qualidade de vida, embora inclua outros elementos: “É um tratamento que ele vai dando mais qualidade de vida. A pessoa vai...não é assim como a quimioterapia em si, ele [cuidado paliativo] vai...é um tratamento que a pessoa vai sentir menos, pra ela não sofrer tanto. [...] pra ela ter mais uma qualidadezinha de vida [...] ela vai até o dia que Deus quiser [chora]. [...] é só esperar e cuidar bem, dar dignidade, só isso. Não adianta a gente querer forçar, tem que cuidar e cuidar bem!” (FC11)

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Pelo que se pôde observar na fala anterior, à medida que os cuidados paliativos são definidos, a referência à qualidade de vida é posta no diminutivo, do que se pode inferir o sentido de cuidados prestados ao final da vida. Já ao expressar “cuidar bem, dar dignidade”, o familiar remete ao que Guimarães4 observa ao referir que, independentemente do estágio da doença e dos tratamentos realizados, há sempre algo a ser feito para melhorar a qualidade de vida no tempo que resta. Ao que parece, esse familiar privilegia o cuidar em detrimento da obstinação terapêutica, ofertando mais qualidade de vida aos dias que restam ao paciente. Kovács13 define “obstinação terapêutica” como a tentativa de prolongar a vida a todo custo, mediante o emprego de atitudes que se distanciam da prática dos cuidados paliativos. Para a autora, os cuidados paliativos não apreciam a Eutanásia (apressamento da morte), tampouco a Distanásia (prolongamento da morte com grande sofrimento), mas encaram a morte como processo natural e um componente da vida, privilegiando a chamada morte com dignidade, ou Ortotanásia. Assim, acredita-se que a compreensão do termo cuidados paliativos pelos familiares é representativa do modo como circulam as mensagens sobre esses cuidados no cenário do estudo. Pelo que foi observado, algumas questões acerca da comunicação equipe/família podem ser elencadas. Como visto anteriormente, poucos referem conhecer de fato o que são os cuidados paliativos, e os que arriscam fornecer um sentido para o termo o fazem anunciando, previamente, desconhecê-lo. Pode-se inferir dessa circunstância a ausência de um agir comunicativo nesse cenário25. Observa-se ainda que a ausência de uma ação comunicativa pode comprometer o enfrentamento da doença. Basta que se considere a boa comunicação como atributo necessário à promoção do conhecimento e conscientização de todos os envolvidos no cuidado6. Para tanto, Kovács13 assegura que, em cuidados paliativos, a postura frente ao tratamento muda de uma posição paternalista para assimétrica. O que significa dizer que, na assimetria, todos os envolvidos (paciente-equipe-família) participam das decisões do tratamento. Pelos pressupostos da PNH24, acredita-se que a ausência de uma comunicação favorável à compreensão dos cuidados paliativos compromete o enfrentamento das relações de poder. Sobretudo, no que concernem as mudanças propostas quando se abre espaço de discussão aos atores do cenário da saúde. A partir das falas dos familiares, quando expuseram o estranhamento causado pelo termo cuidado paliativo, pode-se inferir que a comunicação equipe/família parece não favorecer a construção de um sentido para esses cuidados. Isso pode ser fruto da carência de informações técnicas fornecidas a esses familiares20. A inferência sobre a carência de informações técnicas no contexto da pesquisa tem por base o fato de que, apesar de os pacientes dos familiares entrevistados estarem em cuidados paliativos, à maioria referiu desconhecer o termo. A esse respeito, Kovács36 sugere o desenvolvimento da comunicação, por parte das equipes, como prioridade dos programas de cuidados paliativos. A autora defende que, além de funcionar como mediadora da relação equipe/paciente/família, a comunicação tem por finalidade promover a dignidade.

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Ademais, o profissional de saúde se situa nas esferas do conhecimento técnico e vivencial, o que o faz responsável pela transmissão de conceitos e ideias, dado o lugar que ocupa. Sua presença e suas práticas na sociedade são transmissoras de mensagens, tenha ele intenção ou não de comunicar23. Acredita-se, também, no desenvolvimento da comunicação adequada como habilidade a ser aperfeiçoada, desde que reconhecida como necessária à prática dos cuidados paliativos22. Afinal, em uma abordagem onde a cura não é foco, mas, sim, o cuidado, comunicar está para além do ato de informar, significa ser presença na dor do outro21. Diante do que foi exposto, pode-se inferir que os cuidados paliativos são pouco compreendidos e não são nomeados pelos familiares. Além disto, sua nomenclatura causou estranhamento a parte considerável dos participantes. Percebeu-se, ainda, que o desconhecimento do termo é atravessado pela comunicação que parece não favorecer o entendimento dessa terapêutica no espaço da pesquisa.

Considerações finais Pretendeu-se, com este estudo, alcançar certa compreensão dos sentidos do termo cuidados paliativos, por familiares, no contexto do câncer de pulmão, como, também, discutir a repercussão da comunicação equipe-família nessa construção. Os resultados mostram que os sentidos atribuídos aos cuidados paliativos surgem de um estranhamento em relação ao termo à aproximação da noção de cuidados com a doença. Poucos dos participantes apresentaram referentes do conceito e da filosofia dessa abordagem. Não foi possível identificar o que levou alguns participantes a adquirirem essa noção do que são os cuidados paliativos e outros não. No entanto, percebe-se uma falha na comunicação entre equipe e família. De que ordem é essa falha, não foi objeto desta pesquisa investigar, mas sugere-se a realização de estudos futuros que possam buscar a compreensão da equipe sobre os cuidados paliativos. Buscar a compreensão de cuidados paliativos junto aos familiares talvez tenha sido uma pretensão ousada, uma vez que essa prática é nova até para os profissionais, conforme dados apresentados anteriormente, sendo recente, também, no lócus da pesquisa. Desse modo, conclui-se que, apesar de os cuidados paliativos serem pouco compreendidos e não nomeados pela maioria dos familiares, os achados apontam que o terreno é fértil para se difundir a filosofia dessa abordagem, uma vez que esses cuidados já são realizados na prática da equipe da unidade pesquisada. Tais achados contribuem para a intervenção da equipe interprofissional junto aos familiares de pacientes em cuidados paliativos, uma vez que permitem atentar, especialmente, ao modo como a comunicação circula nesse cenário. Ressalta-se que a pesquisa sinaliza a necessidade de formação e difusão da prática dos cuidados paliativos, sobretudo, no que concerne à comunicação enquanto ferramenta de potencialização do cuidado ao outro. E, por fim, promove a contínua reflexão sobre saberes e práticas no contexto da saúde.

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Colaboradores Maria Edilania Matos Ferreira Furtado: participou ativamente da elaboração do artigo, de sua discussão, resultados e redação; Darla Moreira Carneiro Leite participou ativamente na orientação da construção e revisão final do texto. Referências 1. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2016: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2015. 2. Gampel O. Câncer de pulmão. In: Kovacs MJ, Franco MHP, Carvalho VA, organizadores. Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus; 2008. p. 130-3. 3. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2012. 4. Guimarães RM. Filosofia dos cuidados paliativos. In: Saltez E, Juver J, organizadores. Cuidados paliativos em oncologia. Rio de Janeiro: Ed. Senac Rio de Janeiro; 2014. p. 13-23. 5. Pessini L. Bioética e cuidados paliativos: alguns desafios do cotidiano aos grandes dilemas. In: Pimenta CAM, Mota DDCF, Cruz DALM, organizadores. Dor e cuidados paliativos: Enfermagem, Medicina e Psicologia. Barueri, SP: Manole; 2006. p. 45-66. 6. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo. São Paulo: Cremesp; 2008. 7. Franco MHP. A família em psico-oncologia. In: Kovacs MJ, Franco MHP, Carvalho VA, organizadores. Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus; 2008. p. 358-61. 8. Kovács MJ. Comunicação em cuidados paliativos. In: Pimenta CAM, Mota DDCF, Cruz DALM, organizadores. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina e psicologia. Barueri, SP: Manole; 2006. p. 86-102. 9. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) [Internet]. 2012 [citado 20 Maio 2016]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2012/c04.def 10. Ribeiro EMPC. O paciente terminal e família. In: Carvalho MMMJ, coordenador. Introdução à psiconcologia. Campinas: Livro Pleno; 2003. p. 197-218. 11. Fitch M. Necessidades emocionais de pacientes e cuidadores em cuidados paliativos. In: Pimenta CAM, Mota DDCF, Cruz DALM, organizadores. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina e psicologia. Barueri: Manole; 2006. p. 67-85. 12. França BAL. O tratamento do paciente com câncer. In: Angerami-Camon VA, Gaspar KC, organizadores. Psicologia e câncer. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2013. p. 117-38. 13. Kovács MJ. Comunicação nos programas de cuidados paliativos: uma abordagem multidisciplinar. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola; 2004. p. 275-86. 14. Doyle D. Bilhete de plataforma: vivências em cuidados paliativos. Tradução de Figueiredo MTA, Figueiredo MGMCA. Rio de Janeiro: Senac Rio; 2012. 15. Figueiredo MGMCA. Cuidados paliativos. In: Kovacs, MJ, Franco MHP, Carvalho VA, organizadores. Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus; 2008. p.382-7. 16. Matsumoto DY. Cuidados paliativos: conceitos, fundamentos e princípios. In: Carvalho RT, Parsons HA, organizadores. Manual de cuidados paliativos da ANCP. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2012. p. 23-30.

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artigos

17. Arantes ACLQ. Indicações de cuidados paliativos. In: Carvalho RT, Parsons HA, organizadores. Manual de cuidados paliativos da ANCP. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2012. p. 56-74. 18. Böing E, Crepaldi MA, Moré CLOO. Pesquisa com famílias: aspectos teóricometodológicos. Paidéia: 2008; 18(40):251-66. 19. Rolland JS. Ajudando famílias com perdas antecipadas. In: Walsh F, Mcgoldrick FM, organizadores. Morte na família: sobrevivendo às perdas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1998. p. 166-85. 20. Oliveira EBS, Sommermam RDG. Família hospitalizada. In: Romano BW, organizador. Manual de psicologia clínica para hospitais. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2012. p. 117-44. 21. Pessini L, Bertachini L. Novas perspectivas em cuidados paliativos: ética, geriatria, gerontologia, comunicação e espiritualidade. O Mundo da Saúde. 2005; 29(4):491-509. 22. Caponero R, Vieira DE. Urgências em cuidados paliativos. In: Pimenta CAM, Mota DDCF, Cruz DALM, organizadores. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina e psicologia. Barueri: Manole; 2006. p. 301-16. 23. Rosemberg B. Comunicação e participação em saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 795-826. 24. Ministério da Saúde (BR). Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização. Brasília: MS; 2004. 25. Deslandes SF, Mitre RMA. Processo comunicativo e humanização em saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2009 [citado 12 Jan 2012]; 13(supl 1):641-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v13s1/a15v13s1 26. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014. 27. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas; 2008. 28. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011. 29. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos [Internet]. Brasília, DF: CNS; 2012 [citado 20 Abr 2016]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso 466.pdf 30. Tesser CD. A verdade na biomedicina, reações adversas e efeitos colaterais: uma reflexão introdutória. Physis: Rev Saude Colet. 2007; 17(3):465-84. 31. Angerami-Camon VA, Gaspar KC. A subjetivação do câncer. In: Angerami-Camon VA, Gaspar KC, organizadores. Psicologia e câncer. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2013. p. 56-74. 32. David A, Windlin I, Gaspar KC. O paciente oncológico e a terapêutica quimioterápica: uma contribuição da psicologia. In: Angerami-Camon VA, Gaspar KC, organizadores. Psicologia e câncer. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2013. p. 295-311. 33. Pimenta CAM, Mota DDCF. Educação em cuidados paliativos: componentes essenciais. In: Pimenta CAM, Mota DDCF, Cruz DALM, organizadores. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina e psicologia. Barueri: Manole; 2006. p. 9-44. 34. Volich RM. O cuidar e o sonhar. Por uma outra visão da ação terapêutica e do ato educativo. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola; 2004. p. 71-85.

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35. Silva MJP. Comunicação com pacientes fora de possibilidades terapêuticas: reflexões. In: Pessini L, Bertachini L, organizadores. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola; 2004. p. 263-72. 36. Kovács MJ. Aproximação da morte. In: Kovacs MJ, Franco MHP, Carvalho VA, organizadores. Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus; 2008. p. 388-97.

Furtado MEMF, Leite DMC. Cuidados paliativos desde la óptica de familiares de pacientes con neoplasia de pulmón. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):969-80. Los cuidados paliativos defienden el empleo de terapéuticas de alivio del sufrimiento de pacientes con enfermedades que amenazan la vida, respetando sus dimensiones física, síquica, social y espiritual. En este sentido, se buscó captar lo que los familiares de pacientes con neoplasia de pulmón entienden por esa terapéutica. Se trata de un estudio cualitativo de cuño exploratorio, en el cual se realizaron 11 entrevistas semiestructuradas con familiares cuidadores. Los datos obtenidos se sometieron al análisis de contenido y fueron articulados con la literatura sobre cuidados paliativos. La comprensión de los cuidados paliativos va desde el desconocimiento del término hasta la noción de cuidados con la enfermedad. Se concluyó que la comunicación equipo-familia es esencial en la construcción de esa comprensión y que, incluso no habiendo reconocimiento del término por la mayor parte de los familiares, los resultados muestran que el escenario de la encuesta es propicio a la implantación de la filosofía de los cuidados paliativos.

Palabras clave: Cuidados paliativos. Familia. Neoplasias pulmonares. Comunicación.

Submetido em 10/06/16. Aprovado em 07/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0963

artigos

Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (Projeto SBBrasil 2010): que propõem os coordenadores para futuros inquéritos? Fabíola Fernandes Soares(a) Maria do Carmo Matias Freire(b) Sandra Cristina Guimarães Bahia Reis(c)

Soares FF, Freire MCM, Reis SCGB. The 2010 Brazilian Oral Health Survey (SBBrasil 2010 Project): what do the coordinators propose for future surveys? Interface (Botucatu). 2018; 22(64):981-9. The objective of this paper is to analyze the suggestions made by the coordinators of the 2010 Brazilian Oral Health Survey (SBBrasil 2010 Project) for future national oral health surveys . This is a qualitative cross-sectional study. Data collection was done through an electronic semistructured questionnaire. Participants were practitioners from the Brazilian National Health System (SUS) as well as university teachers who worked as the survey coordinators. Answers were classified into categories, according to Bardin’s content analysis. Suggestions were mainly related to changes in the sampling methodology and working team, operational aspects, financial aid, analysis and dissemination of results. We hope that this study may contribute to the discussion among the professionals of the field, seeking continued improvements of oral health surveillance in Brazil.

O objetivo deste artigo é analisar as sugestões dos profissionais que atuaram como coordenadores da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (Projeto SBBrasil 2010) para futuros inquéritos na mesma área. Trata-se de um estudo transversal, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de um questionário eletrônico e semiestruturado. Os participantes eram profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e docentes que atuaram como coordenadores do SBBrasil 2010. As respostas foram categorizadas segundo a análise de conteúdo de Bardin. As sugestões foram essencialmente relacionadas: às mudanças na metodologia de amostragem e equipe de trabalho; aspectos operacionais; financiamento; análise e divulgação dos resultados. Espera-se que este estudo possa gerar discussões entre técnicos da área, com vistas ao constante aprimoramento da vigilância em saúde bucal no país.

Keywords: Suggestion. Perception. Health surveys. Oral health. Work.

Palavras-chave: Sugestão. Percepção. Inquéritos epidemiológicos. Saúde bucal. Trabalho.

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(a) Departamento de Saúde Bucal, Secretaria Municipal de Saúde de Anápolis. Rua Prof. Roberto Mange, 152, Vila Santana. Anápolis, GO, Brasil. 75113630. fabiola.feso@ outlook.com (b) Departamento de Saúde Oral, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil. mcmfreire@ yahoo.com.br (c) Departamento de Epidemiologia, Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia. Goiânia, GO, Brasil. sandrabahiare@ gmail.com

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PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE BUCAL (PROJETO SBBRASIL 2010): ...

Introdução A Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (Projeto SBBrasil 2010) foi um inquérito epidemiológico multicêntrico, coordenado pelo Ministério da Saúde. Na sua execução, participaram as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde das cinco macrorregiões, com o apoio de entidades de classe odontológicas, universidades e institutos de pesquisa. O levantamento de base amostral foi realizado nas 26 capitais estaduais, no Distrito Federal e em cento e cinquenta municípios do interior de diferentes portes populacionais. Cerca de dois mil profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) das três esferas governamentais trabalharam na execução do SBBrasil 20101. Por ser uma atividade complexa, o inquérito contou com a divisão do trabalho. Havia um coordenador com funções específicas e definidas em manuais técnicos2 para cada região, estado, capital e município. Nos últimos anos, observa-se um crescente interesse por estudos que descrevem a experiência do processo trabalho de inquéritos em saúde, com enfoque nos aspectos operacionais, metodológicos e/ou éticos3-11. Contudo, a percepção dos pesquisadores foi abordada em apenas três estudos na literatura, que referem-se aos sistemas/ambientes de pesquisa no Brasil, sobretudo, no âmbito acadêmico12-14. Nenhuma publicação foi encontrada que abordasse a percepção dos participantes e o processo de trabalho desenvolvido em inquéritos de saúde realizados pelos serviços públicos. Tampouco foram constatados estudos sobre essa temática com abordagem qualitativa. Uma das possíveis explicações para esse fato remete ao rigor científico das publicações, que torna os periódicos cada vez mais restritivos em relação ao tamanho dos artigos, dificultando a inclusão de dados sobre as dificuldades operacionais e metodológicas dos ‘bastidores’ dos inquéritos de saúde8. A incorporação dessa dimensão nas pesquisas tem o potencial de proporcionar o compartilhamento e a discussão dessas informações é uma forma de enfrentamento das eventuais dificuldades. É relevante que inquéritos nacionais sejam periódicos e regulares, a fim de que se conheça a realidade epidemiológica da população, baseando-se em cortes transversais periódicos e sequenciados3. O SBBrasil 2010 aperfeiçoou e modernizou a proposta metodológica anterior (Projeto SBBrasil 2003)4. Para a próxima edição, é esperado que esse aprimoramento continue a ser realizado não só no campo metodológico, mas, também, no campo do processo de trabalho, com abrangência: dos aspectos operacionais, de condições de trabalho, satisfação dos envolvidos e demais vertentes que possam, de alguma forma, interferir na qualidade dos dados coletados. Estudos dessa natureza podem contribuir no aperfeiçoamento do processo de trabalho de futuros inquéritos, com possibilidade de melhorar, também, a qualidade das informações em saúde. Quando bem utilizadas, essas informações representam importante ferramenta na proposição de ações mais adequadas às necessidades em saúde das populações estudadas. O presente trabalho teve como objetivo analisar as sugestões dos profissionais que atuaram como coordenadores do SBBrasil 2010 para futuros inquéritos na área, buscando contribuir para o constante aprimoramento das ações de vigilância em saúde bucal no país.

Método Foi realizado um estudo transversal, com abrangência nacional e abordagem qualitativa. Os dados analisados foram coletados como parte de um estudo mais amplo realizado em 2014, com a finalidade de conhecer a percepção dos coordenadores que atuaram no SBBrasil 2010 sobre o processo de trabalho realizado. Os coordenadores eram, em sua maioria, trabalhadores do SUS na área de saúde bucal, além de alguns docentes de cursos de Odontologia do país. Para a coleta de dados, foi aplicado um questionário eletrônico semiestruturado, elaborado para o presente estudo, e enviado aos participantes via e-mail, após pré-teste. Para elaboração e disparo dos questionários, foi contratado um software especializado, o Survey Monkey. A questão analisada no presente estudo foi aberta e com resposta não obrigatória, o que permitiu aos indivíduos exporem voluntariamente suas sugestões com base em sua experiência como coordenadores do inquérito: 982

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Soares FF, Freire MCM, Reis SCGB

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“Você gostaria de registrar alguma sugestão para o próximo levantamento em saúde bucal?”. As demais questões, com foco no processo de trabalho, foram de natureza quantitativa e não foram incluídas na presente análise. A população de estudo foi composta por todos os indivíduos que atuaram como coordenadores da pesquisa no SBBrasil 2010 (n=225), assim distribuídos: coordenador nacional (coordenação geral) (n=1), membros do Comitê Técnico Assessor em Vigilância à Saúde Bucal do Ministério da Saúde (n=10), membros da coordenação executiva do SBBrasil nos Centros Colaboradores em Vigilância à Saúde Bucal (n=10), coordenadores estaduais (n=30), coordenadores municipais nas capitais (n=27) e coordenadores municipais no interior (n=147). Foram excluídas desse total: as duplicidades (indivíduos que exerceram funções de coordenação em mais de um nível ou local) (n=09); as autoras deste estudo (n=03) que atuaram como: coordenadora municipal, coordenadora executiva do SBBrasil nos Centros Colaboradores em Vigilância à Saúde Bucal e membro do Comitê Técnico Assessor em Vigilância à Saúde Bucal. Assim, a amostra totalizou 213 indivíduos. Na fase analítica das respostas, foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin15, na modalidade análise temática. Para o presente estudo, utilizou-se a operação descrita por Minayo16. Na primeira etapa, foram realizadas: leitura flutuante, contato direto e intenso com o material de campo; constituição do corpus, observando-se as seguintes normas de validade qualitativa: exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência; e formulação e reformulação de hipóteses e objetivos, com a retomada da etapa exploratória da leitura exaustiva. Nessa primeira etapa préanalítica, participaram três pesquisadoras, e foram determinados: a unidade de contexto, os recortes, a forma de categorização e a modalidade de categorização. Na segunda etapa, duas pesquisadoras procederam à exploração do material, com a categorização, que foi a redução do texto às palavras e expressões significativas. Após essa fase, realizaram-se a classificação e a agregação dos dados. As categorias e as subcategorias agrupadas após o processo descrito são apresentadas no Quadro 1. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, por meio da Plataforma Brasil.

Quadro 1. Distribuição das categorias e subcategorias relativas às sugestões dos coordenadores para os próximos inquéritos em saúde bucal. Coordenadores da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SBBrasil 2010) (n=90). Categorias Metodologia

Aspectos operacionais

Financiamento

Subcategorias Mudanças na amostragem Melhoria no treinamento Melhor divulgação da pesquisa antes e/ou durante a sua realização Aprimoramento no processo de calibração Inclusão de variáveis sobre higiene bucal Melhor suporte do nível federal, estadual ou regional às equipes locais Apoio à realização de levantamentos epidemiológicos locais nos estados e municípios Melhor organização do processo de trabalho Consolidação dos levantamentos como componentes da vigilância em saúde bucal Revisão da estratégia de financiamento Agilidade na realização da pesquisa Obtenção de diagnósticos estaduais e nacional a partir dos municípios Continuidade da pesquisa sendo realizada pelo SUS Incentivo aos profissionais dos municípios sorteados que executam programas de prevenção em saúde bucal Garantia de tratamento curativo na rede aos participantes da pesquisa Aumento dos valores pagos Agilidade no pagamento Bonificação das equipes com melhor desempenho continua

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Quadro 1. continuação Categorias

Subcategorias Melhores estratégias de divulgação Divulgação dos relatórios dos municípios aos gestores locais e/ou população

Resultados

Apoio técnico para a elaboração dos relatórios dos municípios que fizeram ampliação Agilidade na divulgação Utilização nas políticas de saúde bucal Recebimento de certificados Mudanças no tipo de profissional envolvido na coleta de dados Valorização profissional

Equipe de trabalho

Melhoria nas condições de trabalho Participação em todas as fases da pesquisa Educação permanente em Vigilância

Resultados Dos 213 indivíduos que atuaram como coordenadores do SBBrasil 2010, 161 aceitaram participar da pesquisa. A questão analisada no presente estudo foi respondida por noventa coordenadores. As categorias que emergiram das respostas foram, predominantemente, relacionadas: à metodologia da pesquisa, aspectos operacionais (realização da pesquisa), financiamento, resultados do inquérito e equipe de trabalho. No Quadro 1, foram relacionadas as principais categorias e suas subcategorias. Em geral, os respondentes apresentaram críticas ou relataram suas experiências, na maioria das vezes negativas, antes de fazerem sugestões para os próximos levantamentos. Na categoria metodologia da pesquisa, a subcategoria mais evidente foi a sugestão de mudanças na etapa de amostragem de futuros inquéritos de saúde bucal. Para solucionar algumas das dificuldades encontradas durante a coleta – como a necessidade de realizar inúmeras tentativas para encontrar os moradores nos domicílios selecionados e percursos geográficos longos –, os participantes apresentaram sugestões como a seguinte: “[...] uma metodologia mais simples, menos trabalhosa, sem que isso faça gerar vieses que comprometam a validade da pesquisa [...]” (Coordenador 43). Afirmaram também que a mudança metodológica poderia proporcionar uma maior autonomia aos municípios: “Metodologia mais simples de amostragem para que os municípios possam reproduzir sem a dependência de um especialista em cálculo amostral” (Coordenador 91). De acordo com a metodologia do SBBrasil, para que os dados coletados fossem representativos da população dos municípios e não somente para compor a mostra nacional, era necessário que a amostra de indivíduos sorteados para exame fosse ampliada. Alguns coordenadores demonstraram interesse nessa ampliação. Outros relataram ter feito ampliação, porém, por falta de apoio das demais instâncias, ainda não tinham analisado os dados coletados: “[...] nosso município fez a ampliação da amostra local mas, até hoje, não conseguimos apoio para a tabulação dos dados [...]” (Coordenador 64). Essa etapa encontrou também, como obstáculo, a não familiaridade dos pesquisadores locais com softwares frequentemente utilizados na análise dos dados: “Falta apoio para gerar os resultados da ampliação da amostra. O SPSS [Statistical Package for the Social Science] não é de domínio público, nem da prática em epidemiologia dos municípios” (Coordenador 78). Um coordenador apostou no desenvolvimento de um software que pudesse dar agilidade ao desenvolvimento da pesquisa e solucionar a dificuldade de análise e consolidação dos 984

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dados:“Desenvolver sistemas de informações [software] capazes de receber os dados do PDA [Personal Digital Assistant, equipamento de mão utilizado para registro dos dados coletados] e gerar relatórios parciais e/ou finais no âmbito estadual e/ou municipal” (Coordenador 25). A questão da comunicação também foi apontada pelos respondentes. Para dirimir as dúvidas que surgiram durante a realização do inquérito, os coordenadores sugeriram a criação de um número para ligações gratuitas, que representasse um canal de comunicação entre as coordenações: “Disponibilizar um 0800 para contato imediato em caso de dúvidas no momento que a equipe estivesse em campo” (Coordenador 79); “[...] um telefone grátis para informação, tanto para coordenação estadual, como federal” (Coordenador 24). Em relação aos aspectos operacionais da realização da pesquisa, a sugestão mais frequente foi a necessidade de melhor suporte do nível federal, estadual ou regional às equipes locais. Nesse aspecto, a proposta mais evidente nas respostas foi a de melhor apoio dos referidos níveis, tanto no suporte técnico (para resolução de dúvidas durante trabalho de campo, na análise dos dados e elaboração dos relatórios finais), quanto no quesito financeiro (incremento e celeridade nos repasses). Os coordenadores propuseram também que a realização da pesquisa fosse divulgada na mídia nacional e não somente pelos municípios. Para eles, essa estratégia poderia reduzir as taxas de recusas de exames, inclusive entre as pessoas selecionadas de maior nível socioeconômico. A divulgação dos relatórios finais aos gestores locais e comunidade foi apontada como necessidade a ser suprida, especialmente dos municípios com ampliação da amostra. Chamou a atenção, em determinados momentos, a diversidade das experiências vivenciadas e que foram manifestadas pelos respondentes. Enquanto alguns coordenadores reclamaram o não recebimento de certificados de participação na pesquisa, outros, que aparentemente os receberam, sugeriram que os certificados fossem expedidos com a real carga horária trabalhada, e não com horas padronizadas. Outra categoria que se mostrou evidente nas respostas foi a queixa sobre o valor da ajuda de custo fornecida aos profissionais envolvidos na pesquisa, bem como a demora no seu recebimento. Para essa questão, foi apontada a seguinte sugestão: “O fluxo de receitas do Ministério da Saúde deve ser mais ágil e o dimensionamento dos custos totais [deve] ser melhor planejado ao início da pesquisa” (Coordenador 36). A despeito das considerações encontradas na categoria financiamento, observa-se que alguns posicionamentos apresentaram-se mais ponderados: “[...] é evidente que as pessoas participam não em função do dinheiro, mas sim pela vontade de contribuir. Dessa forma, proponho que, pelo menos, seja obedecido o prazo do repasse dos pagamentos [...]” (Coordenador 43). Com relação à equipe de trabalho, a sugestão de mudança do tipo de profissional envolvido na coleta de dados foi defendida por alguns dos respondentes: “Que fosse contratada uma equipe de pesquisadores exclusivamente para atuarem na pesquisa, sem afastar o profissional de suas atividades diárias, o que muitas vezes deixa a população insatisfeita mesmo diante da divulgação do evento [...]” (Coordenador 11). Ainda sobre questões relacionadas à equipe de trabalho e suas condutas, observa-se que os aspectos éticos também foram abordados: “Tive conhecimento que em alguns interiores eram inseridas as informações no PDA ser [sem] se fazer exame algum”. (Coordenador 37)

“[...] o meu município foi privilegiado, mas houveram [houve] absurdos nas atividades de campo”. (Coordenador 46) Mesmo assim, alguns coordenadores se mostraram assertivos com relação às possibilidades do uso da epidemiologia em seu ambiente de trabalho: “Gostaria muito que a epidemiologia se tornasse um instrumento mais ‘leve’, acessível e mais presente no cotidiano do serviço, e que seu objetivo maior fosse alcançado, ou seja, o planejamento das ações, prioridades e estratégias mais apropriadas à realidade diagnosticada” (Coordenador 43). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Discussão Uma das questões metodológicas mais criticadas pelos participantes do presente estudo diz respeito aos planos amostrais. De fato, inquéritos domiciliares de abrangência nacional envolvem planos necessariamente complexos para contemplar a representatividade da amostra e do tamanho suficiente para conferir poder estatístico e precisão às estimativas17. Assim, a adequada compreensão dessa etapa pelos diversos indivíduos que atuam na pesquisa nem sempre é possível, enquanto as dificuldades operacionais são facilmente percebidas. A complexidade da metodologia pode extrapolar a questão da amostragem. Apesar do SBBrasil 2010 ter apostado em um modelo de inquérito epidemiológico passível de ser incorporado pelos serviços de saúde em suas práticas cotidianas, como ferramenta indispensável para as ações de planejamento e avaliação das ações e serviços de saúde6, questiona-se se seria factível de ser executado pela maioria dos profissionais do serviço e/ou tomadores de decisões. Os aspectos relacionados à forma de pagamento aos coordenadores foram fortemente apontados pelos respondentes e remetem ao modelo de financiamento empregado, que tem sido abordado em outras publicações sobre inquéritos de saúde. Santos (2006)18 relatou sua experiência e deduções como gestor e pesquisador em alguns inquéritos nacionais, afirmando que os recursos financeiros foram facilmente mobilizáveis pelo Ministério da Saúde, devendo constar do Plano Plurianual do Governo Federal para que o cronograma de pesquisas estabelecido seja assegurado. Malta et al. (2008)19 também defenderam a necessidade e responsabilidade de se inserir o inquérito a ser realizado nos Planos Plurianual e Nacional de Saúde, como forma de garantir a sua viabilização. Noronha et al. (2012)14 ressaltaram a grande debilidade política na negociação de orçamentos para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico nas instâncias do poder legislativo. O SBBrasil 2010, assim como os levantamentos nacionais de saúde bucal anteriores, caracterizouse por ter como recursos humanos profissionais do SUS. Pode ser que a participação dos mesmos na pesquisa tenha gerado a expectativa de recebimento de um valor mais alto que, pelas respostas, foi percebido como abaixo do esperado. Como esse tipo de pesquisa faz parte das atribuições inerentes à profissão, a insatisfação com o valor recebido pode remeter a um descontentamento com a própria remuneração no serviço público. A insatisfação pode ter sido agravada, ainda, pela demora relatada no recebimento. Acrescenta-se, também, a periodicidade dos inquéritos. Como os levantamentos não são realizados com tanta frequência, os profissionais acabam por não incorporar tal atividade como rotina no processo de trabalho habitual. As pesquisas realizadas no âmbito do serviço são geralmente conduzidas por instituições de ensino, com possibilidade de concorrerem com editais de fomento de projetos. Tais fatos contribuiriam para que, mesmo sabendo que se trata de uma atribuição inerente à profissão, os coordenadores do SBBrasil 2010 respondessem, conflituosamente, que a ajuda de custo não foi coerente com a atividade desenvolvida, por vivenciarem-na como uma atividade extraordinária. Uma modalidade de incentivo financeiro aos examinadores foi relatada em estudo sobre o levantamento epidemiológico realizado em Florianópolis (EpiFloripa 2009)8, que teve como objetivo conhecer a prevalência de agravos à saúde e investigar fatores de proteção e risco à saúde, em um estudo transversal de base populacional, com adultos residentes na zona urbana do município de Florianópolis (SC). Para as examinadoras, especialmente selecionadas e contratadas para esse fim, que apresentaram os melhores resultados (cumprimento de metas de entrevistas semanais sem atraso), foi incrementado o valor pago semanalmente por exame realizado. De forma semelhante, alguns coordenadores do SBBrasil 2010 sugeriram, para futuros inquéritos, tanto a bonificação das equipes com melhores desempenhos, como a contratação de outros profissionais para a realização dos exames. Isso se deve ao fato de que, para a realização da coleta de dados no SBBrasil 2010, o profissional se ausentou temporariamente da assistência clínica odontológica. Andrade e Narvai (2013)20 consideraram essa medida como problemática e conflituosa. A justificativa estaria embasada na “cultura institucional” dos pacientes, profissionais e, até mesmo, gestores (por conta da baixa repercussão, inclusive, eleitoral) em valorizar mais o trabalho clínico, em detrimento das ações coletivas. Sobre o trabalho de campo, de forma análoga a algumas declarações apresentadas no presente trabalho, Andrade et al. (2013)5 constataram que problemas éticos isolados na realização do SBBrasil 986

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2010, porém anômalos na coleta de dados, podem ter representado falha no treinamento e calibração e/ou fabricação de dados. Dois casos foram assim identificados e os exames clínicos correspondentes foram oportunamente refeitos. Porém, sob o prisma da ética da responsabilidade, houve infração e, mesmo que individual, poderia ter colocado em risco o trabalho de todos os envolvidos. Além das situações anômalas no trabalho de campo, há que se considerar, também, a infração ética de não se analisar, consolidar e, por conseguinte, não se publicizarem os dados já coletados nas ampliações de amostras realizadas, conforme informado por alguns coordenadores participantes. Apesar das dificuldades apontadas, é importante destacar que capacitar profissionais do SUS pode gerar certa autonomia do serviço na realização dos próximos inquéritos em saúde bucal. Esses servidores já apresentam experiência prévia e já são remunerados, o que pouparia tempo e recursos quando comparados à contratação e treinamento de uma equipe para esse fim. Além disso, pode representar uma forma de empoderamento dos profissionais por não desvincular nem distanciar a Epidemiologia de aspectos gerenciais, clínicos, preventivos, educativos e de promoção em saúde bucal, tanto na rotina do serviço como do saber odontológico. A exemplo do que o presente trabalho apresenta – sugestões e críticas dos profissionais que trabalharam no SBBrasil 2010 –, a experiência adquirida e acumulada em inquéritos anteriores pode contribuir para avanços nos futuros inquéritos e possibilitar que correções e ajustes sejam antevistos e aplicados de forma mais hábil e ágil. Nesse sentido, o desafio de capacitar trabalhadores do próprio serviço favorece uma formação profissional mais integrada e de maior expertise, além de poder ofertar uma assistência mais bem estruturada e mais equânime às reais necessidades da população por eles assistida. Existem ainda muitos aspectos a serem considerados no desenvolvimento teórico e metodológico dos inquéritos populacionais, e parte considerável das respostas aos questionamentos só encontrarão resposta à medida que a experiência e a reflexão sobre a realização dos mesmos forem sendo acumuladas e compartilhadas pela comunidade científica e pelos encarregados de sua realização3. Não obstante alguns entraves, e apesar dos anos decorridos desde a realização do SBBrasil 2010, foi possível observar que os coordenadores demonstraram disposição e interesse ao responderem uma questão de natureza não obrigatória, e de fazerem sugestões de aperfeiçoamento do processo de trabalho desenvolvido. A partir do material analisado, pôde-se observar que o tema estudado apresenta-se como um campo com potencial a ser explorado. Outras abordagens, incluindo, por exemplo, a percepção dos demais participantes dos inquéritos, que atuaram na etapa de coleta dos dados, são importantes para que a análise possa ter uma dimensão mais ampliada. As realidades vivenciadas foram diversificadas e, apesar de ter sido um levantamento nacional de grande porte, alguns consensos, por parte dos coordenadores do SBBrasil 2010 que participaram do presente estudo, puderam ser extraídos. As sugestões foram predominantemente sobre: mudanças na metodologia de amostragem, aspectos operacionais, financiamento, análise dos dados e divulgação dos resultados do levantamento, e, por fim, sobre a equipe de trabalho envolvida na coleta de dados. Dos resultados aqui apresentados, espera-se que possam gerar discussões propositivas, que culminem com o aprimoramento de futuros inquéritos e, por conseguinte, com as ações de vigilância em saúde bucal no Brasil. 987


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Colaboradores FF Soares participou da concepção e execução do projeto. MCM Freire e SCGB Reis contribuíram na orientação do trabalho. As autoras participaram ativamente na discussão dos resultados, na revisão e aprovação da versão final do trabalho. Este artigo é baseado em dissertação de Mestrado Profissional em Saúde Coletiva na Universidade Federal de Goiás, defendida pela autora principal em 2014. Referências 1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. SB Brasil 2010: Pesquisa Nacional de Saúde Bucal: resultados principais. Brasília, DF: SVS; 2012. 2. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Manual do coordenador Municipal. Brasília, DF: SVS; 2009. 3. Waldman EA, Novaes HMD, Albuquerque MFM, Latorre MRDO, Ribeiro MCSA, Vasconcellos M, et al. Inquéritos populacionais: aspectos metodológicos, operacionais e éticos. Rev Bras Epidemiol. 2008; 11 Supl1:168-79. 4. Roncalli AG, Silva NN, Nascimento AC, Freitas CHSM, Casotti E, Peres KG, et al. Aspectos metodológicos do Projeto SBBrasil 2010 de interesse para inquéritos nacionais de saúde. Cad Saude Publica. 2012; 28 Supl: s40-57. 5. Andrade FR, Narvai PC, Montagner MA. Responsabilidade ética no SBBrasil 2010 sob o olhar dos gestores do inquérito populacional. Rev Saude Publica. 2013; 47 Supl 3:12-8. 6. Silva NN, Roncalli AG. Plano amostral, ponderação e efeitos do delineamento da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal. Rev Saude Publica. 2013; 47 Supl 3:3-11. 7. Silva KS, Lopes AS, Hoefelmann LP, Cabral LGA, De Bem MFL, Barros MVG, et al. Projeto COMPAC (comportamentos dos adolescentes catarinenses): aspectos metodológicos, operacionais e éticos. Rev Bras Cineantropom Desempenho Hum. 2013; 15(1):1-15. 8. Boing AC, Peres KG, Boing AF, Hallal PC, Silva NN, Peres MA. Inquérito de saúde EpiFloripa: aspectos metodológicos e operacionais dos bastidores. Rev Bras Epidemiol. 2014; 17(1):147-62. 9. Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira MLFP, Conde WL, Souza Júnior PRB, et al. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cienc Saude Colet. 2014; 19(2):333-42. 10. Damacena GN, Szwarcwald CL, Malta DC, Souza Júnior PRB, Vieira MLFP, Pereira CA, et al. O processo de desenvolvimento da Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil, 2013. Epidemiol Serv Saude. 2015; 24(2):197-206. 11. Souza-Júnior PRB, Freitas MPS, Antonaci GA, Szwarcwald CL. Desenho da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol Serv Saude. 2015; 24(2):207-16. 12. Silva TR, Szklo F, Barata RB, Noronha JC. Avaliação do sistema de pesquisa em saúde do Brasil: algumas características dos pesquisadores e produção científica. Rev Electron Comun Inf Inov Saude. 2007; 1(1):9-18. 13. Noronha JC, Silva JC, Szklo F, Barata RB. Análise do sistema de pesquisa em saúde do Brasil: o ambiente de pesquisa. Saude Soc (São Paulo). 2009; 18(3): 424-36. 14. Noronha JC, Silva JC, Szklo F, Barata RB. O que os pesquisadores pensam do sistema de pesquisa em saúde no Brasil: um estudo piloto. Rev Electron Comun Inf Inov Saude. 2012; 6(1):12-8. 15. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009.

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16. Minayo MCS. Técnicas de análise do material qualitativo. O desafio do conhecimento. 11a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 303-60. 17. Barata RB. Inquérito nacional de saúde: uma necessidade? Cienc Saude Colet. 2006; 11(4):870-1. 18. Santos GF. Inquéritos nacionais de saúde: o gestor e o pesquisador. Cienc Saude Colet. 2006; 11(4):882-3. 19. Malta DC, Leal MC, Costa MFL, Morais Neto OL. Inquéritos Nacionais de Saúde: experiência acumulada e proposta para o inquérito de saúde brasileiro. Rev Bras Epidemiol. 2008; 11 Supl 1:159-67. 20. Andrade FR, Narvai PC. Inquéritos populacionais como instrumentos de gestão e os modelos de atenção à saúde. Rev Saude Publica. 2013; 47 Supl 3:154-60.

Soares FF, Freire MCM, Reis SCGB. Encuesta Nacional de Salud Bucal (Proyecto SBBrasil 2010): ¿qué proponen los coordinadores para futuros inquéritos?. Interface (Botucatu). 2018; 22(64):981-9. El objetivo de este artículo es analizar las sugerencias de los profesionales que actuaron como coordinadores de la Encuesta Nacional de Salud Bucal (Proyecto SBBrasil 2010) para futuras encuestas en la misma área. Se trata de un estudio transversal con abordaje cualitativo. Los datos se colectaron por medio de un cuestionario electrónico y semiestructurado. Los participantes eran profesionales del Sistema Único de Salud y docentes que actuaron como coordinadores del SBBrasil 2010. Las respuestas se categorizaron según el análisis de contenido de Bardin. Las sugerencias se relacionaron esencialmente: a los cambios en la metodología de muestreo y equipo de trabajo, a los aspectos operativos, a la financiación y al análisis y divulgación de los resultados. Se espera que este estudio pueda generar discusiones entre técnicos del área con el objetivo del perfeccionamiento contante de la vigilancia en salud bucal en el país.

Palabras clave: Sugerencia. Percepción. Inquéritos epidemiológicos. Salud bucal. Trabajo

Submetido em 06/01/16. Publicado em 09/12/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0027

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Conhecimentos e expertises de universidades tradicionais para o desenvolvimento de cursos a distância da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS) Rodrigo Alcantara de Carvalho(a) Miriam Struchiner(b)

Carvalho RA, Struchiner M. Knowledge and expertise from traditional universities for the development of Open University of Brazilian National Health System (UNA-SUS) distance courses. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):991-1003.

This study was developed in the context of the Open University of the Brazilian National Health System (UNA-SUS), an inter-institutional network model established between the health policy managerial department and educational institutions to develop distance education initiatives directed to the health workforce. Content analysis was performed on semi-structured interviews with qualified informants in four institutions, selected for the study. It aimed to identify how the educational demands of the Health System may mobilize knowledge coming from universities. The results show that team building processes are set up for distance learning courses development, influenced by pre-existing programs, that leverage the mobilization and cooperation of university units of host institutions in response to the demand for the health workforce education.

Keywords: Knowledge mobilization. Distance education. Health education. Permanent education in health. Distance courses development.

Este trabalho foi desenvolvido no contexto da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS), um modelo de rede interinstitucional firmado entre o setor de gestão de políticas de saúde e instituições de ensino, visando ao desenvolvimento de iniciativas de formação a distância da força de trabalho em saúde. Por meio da condução e análise de conteúdo de entrevistas semiestruturadas com informantes qualificados em quatro instituições selecionadas para o estudo, objetivou-se identificar como os conhecimentos das universidades são mobilizados a partir das demandas de formação para o Sistema Único de Saúde. Os resultados apontam que são desencadeados processos de constituição de equipes de desenvolvimento de cursos a distância, influenciados por programas preexistentes, que alavancam a mobilização e cooperação de unidades universitárias das instituições sede em resposta à demanda de formação da força de trabalho em saúde.

Palavras-chave: Mobilização de conhecimentos. Educação a Distância. Educação em Saúde. Educação Permanente em Saúde. Desenvolvimento de cursos a distância.

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Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Carlos Chagas Filho, 373, Centro de Ciências da Saúde, Bloco A1, sala 12, Cidade Universitária – Ilha do Fundão. 21941-902. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. rodrigoadcarvalho@ gmail.com; miriamstru@gmail.com (a,b)

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CONHECIMENTOS E EXPERTISES DE UNIVERSIDADES TRADICIONAIS ...

Introdução O papel das instituições de ensino e serviços de saúde passa por reformulações com a ampliação do conceito de saúde, que incorporou perspectivas sociais e ambientais e distanciou-se da noção de atenção à saúde, centrada na assistência curativa e hospitalar. Cresce, também, a demanda pela superação do modelo instrucionista e da prática pautada pelo enfoque biomédico do processo saúde-enfermidade1, e pela adoção de modelos que valorizem integralidade, cuidado humanizado e promoção da saúde2-4. Na formação em saúde, as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) e a modalidade da Educação a Distância (EAD) possibilitam a utilização de ferramentas pedagógicas capazes de democratizar e expandir as oportunidades educacionais, propiciando uma educação aberta e permanente em saúde, como se observa em diferentes programas e ações governamentais, como: Programa Telessaúde Brasil Redes (Telessaúde), Rede Universitária de Telemedicina (Rede RUTE), e Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS)5,6. A EAD, no âmbito da saúde, foi reforçada pela Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), que abriu precedentes para a criação da UNA-SUS, uma rede colaborativa de instituições de ensino, serviço e gestão do SUS, voltada para atender as necessidades de formação e educação permanente deste sistema, estimulando a criação de consórcios regionais e/ou nacionais para a oferta de cursos de capacitação e especialização7. Atualmente, identificam-se iniciativas de EAD em saúde, pela adesão de universidades ao modelo interinstitucional, originado pela parceria entre estas, o Ministério da Saúde (MS) e a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), impulsionando a constituição de Equipes de Desenvolvimento (EDs) de cursos a distância – nas quais os modelos pedagógicos, infraestrutura física, recursos tecnológicos e humanos disponíveis, sistemas logísticos e produção de materiais digitais são fatores a serem considerados8. Como a expansão da EAD é recente, seu estabelecimento em instituições acadêmicas presenciais coloca desafios de mudança de sua estrutura tradicional, baseada no conhecimento disciplinar, em áreas específicas, voltadas para a formação acadêmica de profissionais, em direção ao desenvolvimento de atividades que integrem estes conhecimentos às práticas de trabalho, ao atendimento das demandas sociais e à educação permanente destes profissionais9. Tendo em vista a multidisciplinaridade inerente a esta modalidade de ensino, os conhecimentos em saúde, TDIC, pedagogia e EAD, que conformam a EAD em Saúde, desenvolvidos e trabalhados nas instituições acadêmicas, tendem à aproximação e influência mútua, possibilitando a evolução integrada de suas áreas de conhecimento. Este estudo objetivou identificar quais e como os conhecimentos e expertises existentes nas universidades foram mobilizados para a constituição de Equipes de Desenvolvimento (EDs) de cursos a distância, no intuito de esclarecer as articulações que orientam a consolidação da UNA-SUS.

Referencial teórico Intervir na realidade de saúde requer parceria interinstitucional entre educação e saúde, objetivando a elaboração e manutenção de propostas educacionais que integrem conhecimentos destas áreas9. A formação em saúde deveria objetivar a transformação das práticas profissionais e organização do trabalho, a partir das necessidades de saúde das populações10, assumindo a Educação Permanente em Saúde (EPS) como processo educativo que considera o cotidiano do trabalho/formação em saúde permeável às realidades e às relações que o compõem, possibilitando a criação de espaços coletivos de reflexão dos atos produzidos11. Entretanto, o Ensino Superior tradicional desconhece as estratégias didático-pedagógicas que facilitam o aprendizado sob o eixo da integralidade4. Assim, cabe ao SUS e às instituições formadoras: coletar, sistematizar, analisar e interpretar permanentemente informações da realidade, problematizar o 992

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trabalho, as organizações de saúde e ensino, e construir significados e práticas com orientação social, e participação ativa dos gestores setoriais, formadores, usuários e estudantes10. A implantação efetiva de um sistema de EAD impõe desafios relacionados ao processo de institucionalização desta modalidade, em nível macro, como política governamental, e em nível micro, dentro das Instituições de Ensino Superior8. Em nível macro, no contexto das políticas de gestão e educação em saúde, a UNA-SUS configura-se como formadora de considerável parcela dos profissionais de saúde. A Figura 1 situa a UNA-SUS no contexto da política nacional, tendo como foco ações formuladas no âmbito federal, envolvendo a articulação entre universidade, gestão em saúde e prestação de serviços.

A política nacional de reorientação da formação profissional em saúde

2003

Ampliação e aprimoramento

Protagonismo universitário

Primeiras experiências

VerSUS

PRO-SAÚDE I

AprenderSUS

PRO-SAÚDE II

EnsinaSUS

PRO-SAÚDE III

2004

2005

Criação da SGETES

2007

2008

2010

Projeto Piloto UNA-SUS A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde

Figura 01. A UNA-SUS no contexto das políticas de gestão e educação em saúde Fonte: Adaptado de Dias et al., 2013. p.1615

No período de estabelecimento da PNEPS, foram desenvolvidos projetos que propiciaram: reconhecimento do SUS como espaço de ensino-aprendizagem (VerSUS); articulação do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (DEGES/SGTES) com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/ FIOCRUZ) e a Rede Unida para formações em saúde (AprenderSUS); contribuição com referenciais teóricos para a formação em saúde e a EPS (EnsinaSUS); expectativa de substituição do modelo de formação hospitalocêntrico (Pro-Saúde); favorecimento da associação – ensino, pesquisa e extensão, e integração ensino/serviço (Pet-Saúde)12. O projeto-piloto da UNA-SUS (2008) surge subsequentemente à criação dos núcleos acadêmicos de cooperação para implantação da Reforma

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CONHECIMENTOS E EXPERTISES DE UNIVERSIDADES TRADICIONAIS ...

Sanitária, apoiados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e formados, em sua maioria, nas áreas de saúde coletiva das Universidades13. Desta forma, as experiências das universidades tradicionais nestes programas abriram precedentes para: o enfrentamento de desafios do trabalho multidisciplinar, a superação de modelos pedagógicos fechados, além da integração entre ensino, serviços e demandas sociais fundamentais na produção de cursos a distância da UNA-SUS. Em nível micro, a estrutura administrativa, tecnológica, financeira, humana/intelectual exigida para constituição de instituições capazes de oferecer cursos pela EAD é complexa, de alto custo e difícil manutenção. Desta forma, o aproveitamento de instituições consolidadas de ensino presencial torna-se estratégica e economicamente viável, valendo-se de sua representação social14. Nas universidades, observa-se a necessidade de colaboração entre diferentes áreas de conhecimento para lograr a implementação da EAD. Potencializada pela sua inerente multidisciplinaridade, esta modalidade oferece oportunidade de alavancar a mobilização de diferentes unidades universitárias e suas respectivas áreas de conhecimento, seguindo a perspectiva da transdiciplinaridade da EPS10. Mais especificamente, a produção de conteúdos e de materiais de apoio à aprendizagem representa um dos desafios da EAD, fazendo-se necessário integrar competências e habilidades a partir de uma equipe multidisciplinar15. Uma equipe multidisciplinar de desenvolvimento de materiais requer a participação ativa e integrada dos profissionais, garantindo clareza, rigor científico, didático e metodológico16. A relação entre os sujeitos envolvidos no desenvolvimento de cursos a distância, assim como a configuração das equipes de produção, assumem diferentes estruturas, dependendo da iniciativa e dos elementos de EAD. Apesar do desenvolvimento de ferramentas autorais em TDIC permitirem a construção de conteúdos educacionais, seu manuseio complexo remove a possibilidade de autoria da maioria dos agentes educacionais17. Cursos distribuídos por meio das tecnologias devem possuir materiais desenhados por especialistas, que possam fazer o melhor uso destas18. Hixon (2008) e Caplan e Colege (2004) mapearam as expertises e funções das equipes multidisciplinares de produção de cursos ou recursos educacionais, definindo uma composição mínima19, e apontando as atribuições das cinco principais expertises e funções presentes em uma ED de cursos a distância20, quer sejam: gestor, especialista em conteúdo, designer instrucional, suporte tecnológico/produção, e tutor. Carmo (2010: p.288-289) propôs um modelo conceitual sobre a configuração dos elementos envolvidos nas instituições de EAD, e identificou três “subculturas”: subcultura acadêmica, que envolve os conteúdos curriculares e o rigor científico; subcultura pedagógica/tecnológica, que tem como foco a qualidade da mediatização; e subcultura burocrática, que preocupa-se com prazos e custos, critérios legais e financeiros. Aplicando esta matriz conceitual em estudo sobre a Universidade Aberta Holandesa (Open Universiteit), o autor concluiu que o sucesso desse sistema deve-se à gestão equilibrada das três subculturas. Em um contexto macro, característico de todo sistema de EAD, coexistem diferentes culturas21. Portanto, contando com os conhecimentos e setores que integram uma estrutura de EAD, considera-se possível observar a presença de diferentes subculturas22, identificáveis pelas funções dos sujeitos, na maioria das vezes, influenciadas por suas formações. Além disto, destaca-se a possibilidade de que o processo de formação em saúde desencadeado pela UNA-SUS também seja influenciado por programas prévios5,6, assim como pelos conhecimentos mobilizados a partir da universidade para constituição de EDs de cursos a distância, e pela formação dos sujeitos pertencentes a estas equipes.

Sujeitos e métodos A partir do levantamento das iniciativas de cursos a distância na UNA-SUS, no Portal do Profissional da Saúde da Plataforma Arouca (https://arouca.unasus.gov.br/), em março de 2013, foram selecionadas iniciativas de instituições universitárias, resultando em 14 instituições distribuídas entre quatro regiões brasileiras: centro-oeste (n=3), nordeste (n=4), sudeste (n=4) e sul (n=3). 994

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Em seguida, foram selecionadas quatro instituições para compor este estudo: duas na região nordeste - ED-01 e ED-2; e duas na região sudeste - ED-03 e ED-4. Para definição da amostra, os gestores identificaram, em suas EDs, os profissionais envolvidos especificamente com o processo de desenvolvimento dos cursos a distância. Todos os sujeitos convidados foram receptivos, concordaram em participar e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas23, conduzidas no segundo semestre de 2014, com 26 profissionais envolvidos nas EDs de cursos a distância para UNA-SUS, nas quatro universidades públicas selecionadas. Para isto, foram elaborados roteiros de entrevista, com base nas expertises e funções de Caplan e Colege (2004) e Hixon (2008), com questões referentes ao processo de articulação da universidade com a UNA-SUS, ao histórico de formação profissional dos sujeitos, e às funções e atividades exercidas nas EDs pesquisadas. As entrevistas ocorreram livremente, permitindo que os participantes relatassem suas experiências pessoais relacionadas às iniciativas nas quais encontravam-se inseridos. Estas foram gravadas e transcritas, e os dados obtidos foram tratados mediante análise de conteúdo24. A partir da leitura flutuante do material coletado, foram identificadas, nas transcrições das falas, as unidades de sentido relacionadas às categorias predefinidas neste estudo: iniciativas de formação continuada em saúde ou outra área no contexto da universidade, por meio de depoimentos sobre experiências pessoais na implementação de políticas públicas de formação em saúde, e sobre o histórico da parceria com a UNA-SUS; instâncias universitárias envolvidas no processo de constituição das EDs pesquisadas, por meio de depoimentos sobre as articulações intrainstitucionais em cada universidade; expertises, por meio de depoimentos sobre a formação dos sujeitos e as oportunidades de formação a partir da iniciativa da UNA-SUS; funções e atribuições dos sujeitos, por meio dos depoimentos sobre as atividades exercidas no processo de desenvolvimento de cursos a distância. Em seguida, foram elaborados arquivos específicos, agrupando as falas dos sujeitos relacionadas, respectivamente, com: a influência dos programas prévios, as unidades universitárias envolvidas, a origem das expertises, e a descrição de suas funções e atribuições nas EDs de cursos a distância da UNA-SUS. Estes arquivos foram, então, objeto de análises aprofundadas sobre cada uma das categorias de estudo, por meio tanto da identificação das suas características principais, quanto da observação de suas recorrências para fins de encontrar tendências entre os resultados obtidos. Desta forma, foi possível organizar os resultados e selecionar as transcrições que atendiam aos critérios de identificação, para fins de ancoragem das categorias relativas às temáticas definidas no estudo: influência de programas preestabelecidos nas instituições pesquisadas, participação de unidades universitárias e suas áreas de conhecimento, e formações e funções dos profissionais das equipes pesquisadas.

Resultados e discussão Influência de Programas Preestabelecidos nas Instituições Nas falas dos gestores (n=4) das EDs pesquisadas, os programas preestabelecidos mais recorrentes nas universidades, referências relevantes na constituição de EDs de cursos a distância UNA-SUS, foram: Universidade Aberta do Brasil (UAB); Programa Telessaúde; Rede RUTE; Programa Mais Saúde: Direito de Todos (Programa Mais Saúde); e os Planos Municipais de Saúde. Na ED-1, a tradição da Universidade em participar de projetos do MS e do Ministério da Educação (MEC) apoiou a articulação com a UNA-SUS, destacando os mais recentes: Telessaúde e UAB. “A Universidade tem uma história já tradicional de participar de todos os projetos do Ministério da Saúde. Então quando surgiu a oportunidade, de se trabalhar com a Universidade Aberta do SUS, ela veio no decurso de uma adesão da Universidade a um projeto anterior, que foi o projeto de Telessaúde.” (ED-1 - gestão)

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“[…] nós recebemos uma ajuda muito grande do pessoal da universidade que cuida da Universidade Aberta do Brasil.” (ED-1 - gestão)

Ainda na fala do gestor da ED-1, observou-se a importância da consolidação de projetos ligados à UNA-SUS, bem como a integração dos projetos prévios: Telessaúde e Rede RUTE. “[...] como eu tinha trabalhado desde o início dando todo o suporte técnico, não só para o funcionamento do Telessaúde, como para o funcionamento da UNA-SUS, então eles acharam que eu era uma pessoa capaz de poder tocar as duas coisas. E foi nesse momento em que eu fiz essa proposta pra direção da Universidade, pra administração superior de criar um Núcleo, que pudesse administrar esses dois projetos, e mais o projeto da rede RUTE, a Rede Universitária de Telemedicina [...].” (ED-1 - gestão)

Iniciativas prévias como a UAB estão ligadas à coordenação da ED-2, ampliando as ofertas educacionais a partir das possibilidades oferecidas pela EAD, em cursos de extensão, atualização, aperfeiçoamento e especialização. Identificou-se, ainda, que programas como Telessaúde, serviram não somente como referência de aprendizagem, mas de formação de visão crítica sobre diferentes modelos de EAD, sobretudo a partir da necessidade de adequação da oferta de cursos aos padrões sugeridos pela UNA-SUS. “Os Núcleos de Telessaúde foram criados com muita autonomia. Quando veio a iniciativa da UNA-SUS, ela disse o seguinte: não, a gente tem que ter um padrão mínimo.” (ED-2 - gestão)

O gestor da ED-3 ressaltou as experiências prévias de formação profissional em Saúde da Família, por meio do projeto municipal Vida: Saúde Integral, além do Projeto Mais Saúde. “[…] nos últimos três anos, nós ficamos totalmente envolvidos na formação da Saúde da Família. Então, nós trabalhamos com mais de 2000 profissionais.” (ED-03 - gestão) “Foi um projeto importante aqui, “Vida Saúde”. Naquele tempo não tinha a UNA-SUS ainda [...].” (ED-3 - gestão)

Além disso, o nível de integração e a relevância da articulação entre estes programas podem ser constatados pelo fato da ED-3 possuir uma coordenação superior de EAD, que envolve tanto a própria ED, quanto os programas preestabelecidos, como por exemplo, a UAB. “[...] a gente tem uma coordenação, coordenação de Educação a Distância da Universidade. Então é com o sistema Universidade Aberta do Brasil.” (ED-3 - gestão) “[...] Estar no sistema Universidade Aberta do Brasil é muito importante. Acho que a ligação nossa assim mais direta é com ela.” (ED-3 - gestão)

Na ED-4, observou-se relação entre o estabelecimento da UNA-SUS e a UAB, a partir da qual a instituição iniciou o desenvolvimento de cursos a distância na área da saúde, e pôde mobilizar profissionais para atender a demanda da UNA-SUS. “Então, sabidamente, mesmo os cursos da UAB, eles iniciaram pela área da saúde. Então assim, a gente já tinha uma experiência de Educação a Distância com os professores que participavam da UAB, que também foram inseridos no projeto da UNA-SUS.” (ED-4 - gestão)

Desta forma, programas prévios, que envolvem estratégias de formação em saúde, com ou sem uso de TDIC, foram experiências relevantes, que influenciaram o processo de articulação de competências 996

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e habilidades no estabelecimento de equipes multidisciplinares15 nas EDs pesquisadas. A UAB foi referência no processo de constituição das ED-1 e ED-4, e participa ativamente do sistema de trabalho da ED-3. O Programa Telessaúde possuiu importância na articulação da UNA-SUS com a ED-1 e no estabelecimento de uma visão crítica sobre diferentes modelos de EAD fomentados pelo MS na ED-2. A UNA-SUS, assim como o Telessaúde5, a Rede RUTE6, e o Mais Saúde, constitui um programa que tende a aproximar a universidade do trabalho em saúde, refletindo intencionalidades de políticas públicas de saúde, como a PNEPS11.

Participação de unidades universitárias e suas áreas de conhecimento Com o objetivo de compreender como as diferentes áreas de conhecimento da universidade se articulam e contribuem para constituição das EDs, foram levantadas informações a respeito das unidades universitárias de origem dos entrevistados (n=26), e agrupadas de acordo com suas áreas de conhecimento. Na ED-1, observou-se mobilização das unidades: Faculdade de Medicina (n=2); Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem (n=1); Instituto de Educação Física e Esportes (n=1); Faculdade de Educação (n=2); Centro de Humanidades (n=1); e Instituto Universidade Virtual (n=1). Portanto, na ED-1, há maior concentração de unidades relacionadas às Ciências da Saúde, por meio da vinculação da Universidade a projetos ligados tanto ao MS, quanto ao MEC. “Nosso atual vice reitor, desde a época que era diretor aqui da faculdade de medicina que se dedicou muito a vincular a faculdade de medicina aos projetos que eram iniciados, depois muitos deles se tornaram programas, tanto pelo Ministério da Saúde quanto pelo Ministério da Educação.” (ED-1 - gestão)

Observou-se, também, a valorização de profissionais da área de Ciência da Informação. “[...] uma coisa que nós fomos muito felizes foi em atrair pra cá profissional mais da Ciência da Informação. Há um reforço, quando você agrega a um grupo de pessoas com expertise na área de biblioteconomia.” (ED-1 - gestão)

Na ED-2, identificou-se a participação das unidades: Centro de Informática (n=6); Departamento de Enfermagem (n=2); e Departamento de Design (n=1). Portanto, na ED-2, observou-se a predominância de profissionais oriundos da unidade Centro de Informática. “[...] toda a minha pós-graduação em Ciência da Computação. Sou professora adjunta da Universidade Federal, e também atuo em algumas coordenações, dentro da Universidade, que respaldam essa minha atividade. Uma delas é de coordenadora geral da Universidade Aberta do SUS na (Universidade), e também ser membro do conselho gestor. Do órgão, a célula interna da universidade, que regula, que define diretrizes pra Educação a Distância.” (ED-2 - gestão)

Na ED-3, identificou-se a mobilização das unidades: Faculdade de Medicina (n=1); Escola de Enfermagem (n=2); Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (n=1); e Escola de Belas Artes (n=1). Constatou-se a presença de um órgão complementar, e a participação predominante da saúde. “[...] a Universidade criou um órgão, chama: órgão complementar. É um órgão que não é departamental, ele é supradepartamental, e ele pode trabalhar com vários departamentos ao mesmo tempo, e com várias unidades. E ele tem que tá ligado a alguma das faculdades, então ele é ligado à faculdade de medicina, mas aqui tem medicina, enfermagem, odonto, educação física, tem gente de todas as áreas trabalhando.” (ED-3 - gestão)

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A Faculdade de Medicina foi destacada pelo gestor da ED-3 como aquela da qual é proveniente a maioria dos profissionais. “[...] a maior parte do pessoal está ligada à área de saúde coletiva, a maior parte. E...ou assim, ou é enfermeira, que trabalha na clínica, trabalhou muito tempo, mas que tem uma ligação, tem um pezinho dentro da saúde coletiva.” (ED-3 - gestão)

Na ED-4, participam as unidades: Escola de Medicina (n=3), e Instituto de Ciência e Tecnologia (n=1). Constatou-se uma estratégia diferenciada de mobilização, envolvendo a apresentação do projeto e o recrutamento do corpo docente de diversas unidades relacionadas à área da saúde. “Nós fomos de departamento em departamento, 10 (dez) departamentos que participavam do projeto. Nove departamentos e o décimo era a própria pró-reitoria. Então era o departamento de informática em saúde por conta da experiência na Educação a Distância, os departamentos da área de saúde, então eu tinha uns departamentos vinculados à Escola (...) de Medicina, e da Escola (...) de Enfermagem.” (ED-4 - gestão)

A adesão à rede UNA-SUS alavancou a participação e cooperação de diferentes conhecimentos inerentes às áreas acadêmicas das universidades para constituição de suas EDs, para atender a demanda de formação em saúde. A integração de unidades universitárias relaciona-se à origem do grupo, ou profissional, gestor das EDs pesquisadas. Desta forma, observa-se que a origem dos profissionais componentes da ED1, ED-3 e ED-4 se caracteriza pela mobilização da área da saúde, enquanto, na ED-2, esta origem está relacionada à área de ciência da computação. Estes resultados convergem para a lógica da multidisciplinaridade, que propicia, no caso específico da formação em saúde, a democratização institucional, bem como o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem e docência. Pode-se afirmar que a relação de cooperação e parceria observada entre unidades de áreas de conhecimento diferenciadas sugere a oportunidade de avanço no conhecimento da universidade, bem como no campo de pesquisa da EAD, ainda que a área da saúde ocupe seu protagonismo. Em concordância com o pensamento de Ceccim e Feuerwerker10, identificou-se o estabelecimento de canais com a universidade, sobretudo por meio da área da saúde, no intuito de estimular a interlocução necessária para a implementação da PNEPS, desencadeando processos de mudança das relações internas e externas das instituições tradicionais para o atendimento da demanda de formação para a área da saúde. Com base nestes resultados, constata-se que, na constituição das EDs da UNA-SUS, adotou-se a estratégia de integrar instituições já consolidadas no ensino presencial, dispondo: de representação social institucional, da credibilidade acadêmica e do reconhecimento da instituição universitária14.

Formações e funções dos profissionais das equipes pesquisadas Identificaram-se as formações e funções dos 26 entrevistados no intuito de se compreender quais os conhecimentos mobilizados e identificar formações motivadas por mudanças das atividades regulares destes sujeitos, em função de seu envolvimento com a EAD. Em todas as EDs pesquisadas, foram encontradas as funções e expertises mapeadas a partir da literatura, no que se relaciona à composição mínima de uma ED de cursos a distância20, e às atribuições dos sujeitos envolvidos19. Na ED-1 (n=8), encontrou-se: médico, especialista, mestre e doutor em cirurgia - gestor; médico, mestre e doutor em saúde pública - especialista em conteúdo; pedagoga, especialista em design instrucional, e pós-graduanda em gestão escolar - designer instrucional; estudante de sistemas e mídias digitais - web designer; enfermeira, mestre em promoção da saúde, especialista em saúde da família - tutora; profissional da ciência da computação, mestre em ciência da computação e doutora em educação - coordenadora de tutoria; pedagoga, especialista em psicopedagogia clínica e instrucional 998

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- supervisora de tutoria; e bibliotecária, especialista em teorias da comunicação e da imagem e pósgraduanda em EAD - supervisora de monitoramento e avaliação. Na ED-2 (n=9), identificou-se: engenheira elétrica, mestre e doutora em ciência da computação - gestora; engenheiro de computação, mestre em ciência da computação e doutorando em ciência da computação - coordenador de projetos; enfermeira, mestre na área de saúde - especialista em conteúdo; profissional da ciência da computação, mestre em ciência da computação, e doutora em ciência da computação com ênfase em ambientes colaborativos de aprendizagem - coordenadora da equipe de tecnologia da informação; engenheira da computação e engenheira de produção programadora; profissional da ciência da computação, e técnico em design - líder da equipe de desenvolvimento web e design gráfico; estudante de ciência da computação - líder da equipe de desenvolvimento mobile; designer gráfico - designer gráfico; e enfermeiro, mestre em EAD aplicada à saúde - tutor. Na ED-3 (n=5), observou-se: médico, especialista em pediatria – gestor; enfermeira, psicóloga, psicanalista e filósofa - especialista em conteúdo; pedagoga, especialista em design instrucional, pós-graduanda em gestão da EAD, e mestranda da área de EAD - coordenadora do setor de design instrucional; profissional de artes visuais - designer gráfico; e profissional da educação física – tutora. Na ED-4 (n=4), detectou-se: médico, analista de tecnologia da informação - gestor; médico, especialista em medicina de família e comunidade, pós-graduado em psiquiatria, mestre e doutor em saúde coletiva - especialista em conteúdo; profissional da ciência da computação, administrador de empresas, pós-graduado em design hipermídia, pós-graduado em Informática em Saúde, mestrando do curso de Informática em Saúde - analista de infraestrutura; e médico, doutor em línguas orientais com ênfase em história e filosofia da medicina – tutor. A partir destes dados, observou-se que a atividade de gestão é desempenhada por profissionais com formação médica e áreas afins na ED-1, ED-3, e ED-4, e com formação em Ciência da Computação na ED-2. O fato de a atividade de gestão ser exercida, sobretudo, por profissionais da saúde indica a centralidade desta área no contexto da UNA-SUS, estabelecendo canais com a universidade por meio de áreas afins e facilitando a interlocução para a implementação da política de EPS, como parte deste programa25. As funções de especialista em conteúdo e tutoria são desempenhadas por sujeitos com formação na área da Saúde em todas as EDs pesquisadas, pelo fato de estas atividades serem centrais à temática dos cursos a distância de formação em saúde. A função de Designer Instrucional é desempenhada por sujeitos que mantêm vínculo nas universidades em duas das EDs pesquisadas. Suas formações são: profissional de educação com especialização em design instrucional (ED-1), e profissional de enfermagem (ED-3). Dentre as demais funções básicas das Eds, encontrou-se: webdesign e editor de vídeo - ED-1; programador, e designer gráfico - ED-2; designer gráfico - ED-3; e analista de infraestrutura - ED4, o que indica a participação de unidades das áreas de Ciência da Computação e Ciências Sociais Aplicadas. Outros profissionais provenientes das universidades desempenham funções diferenciadas, como: na ED-1, coordenação de tutoria (profissional formado em ciência da computação, e pós-graduado em ciência da computação e em educação), supervisão de tutoria (profissional formado em pedagogia e especialista em psicopedagogia clínica e instrucional), e supervisão de monitoramento e avaliação (profissional formado em biblioteconomia, especialista em teorias da comunicação e da imagem e pós-graduando em EAD); na ED-2, coordenação de projetos (profissional formado em engenharia de computação, pós-graduado em ciência da computação e doutorando na mesma área), coordenação de tecnologia da informação (profissional formado em ciência da computação, e pós-graduado na mesma área), coordenação da equipe de desenvolvimento web e da equipe de design gráfico (profissional formado em ciência da computação e técnico em design), e coordenação da equipe mobile (estudante de ciência da computação); na ED-3, coordenação do setor de design instrucional (profissional formado em enfermagem, pós-graduado em epidemiologia e enfermagem, e especializado em saúde pública). 999


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Observa-se que a constituição das EDs de cursos a distância é acompanhada de desafios, como desempenho de novas funções e atividades por profissionais pertencentes a diferentes áreas do conhecimento. Assim, evidencia-se a situação de inovação posta aos profissionais e às universidades com o ingresso da EAD em seus sistemas de ensino, motivadas por recursos e incentivos provenientes da área da saúde (UNA-SUS). No contexto macro, característico de todo o sistema de EAD21, levando em consideração a multidisciplinaridade inerente a esta modalidade de ensino, podem-se encontrar diferentes subculturas22, em coexistência, identificadas pelas funções dos sujeitos e influenciadas pelas formações dos mesmos. Esta identidade se expressa nas falas dos sujeitos entrevistados, ao descreverem suas atuações e preocupações centrais de trabalho inerentes às suas atividades nas EDs, como exemplificado a seguir: A subcultura acadêmica, que tem como foco os conteúdos curriculares e o rigor científico22. “Se vou trabalhar em Saúde da Mulher, eu tenho que buscar quais são os manuais mais atualizados, as políticas, se lançou alguma Portaria nova, alguma Legislação nova, e o que tem de preconizado pelo SUS mesmo, o que que o Ministério tá preconizando pra aquela área, pra aquela ação programática.” (ED-2 - especialista em conteúdo)

A subcultura pedagógica, preocupa-se com a utilização de diferentes tipos de mídias na apresentação do conteúdo aos estudantes, além do foco nas interações (estudante-conteúdo, estudante-estudante, e estudante-instrutor) das práticas educativas: “[...] a gente precisa pensar em todo um planejamento, como ... atrair os nossos alunos de forma com que eles consigam saber que aquilo é importante pra eles também. Não é apenas jogar o material e deixar pro aluno se virar, não é assim. A gente tem todo um acompanhamento, a questão de tentar colocar as estratégias certas, porque cada curso tem um público alvo diferente, a gente tenta atender esse público alvo.” (ED-1 - designer instrucional)

A subcultura tecnológica tem como foco a qualidade da mediatização, e preocupa-se com o desenvolvimento de processos e padrões que facilitem o monitoramento do processo educacional, o acompanhamento dos alunos, e o desenvolvimento e aprimoramento dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem: “[...] outra coisa que a gente tem avançado um pouco mais ... são sistemas de apoio acadêmico ... sistema de inscrição, sistema de avaliação curricular. A gente já tem uma plataforma de apoio à construção de Trabalho de Conclusão de Curso, ou seja, o aluno, ele tem um sistema específico pra interagir com o seu orientador e vai gerar o seu Trabalho de Conclusão do Curso.” (ED-2 - coordenação de projetos)

Finalmente, a subcultura burocrática, que ocupa-se com os prazos e custos, e com critérios legais e financeiros22: “[...] a Fundação ... de Pesquisa e Cultura. Tem sido a nossa parceira pra poder executar os pagamentos das pessoas, as compras das coisas que são necessárias. E nós fazemos um relatório do que é gasto, etc. A Fundação é quem presta conta realmente com os órgãos do governo, que monitoram o uso desse dinheiro.” (ED-1_01 - gestão)

Mesmo levando-se em conta que as diferentes culturas coexistem no complexo processo de produção de cursos de EAD, como é o caso das EDs de cursos a distância da UNA-SUS, foi possível observar que esta coexistência tende a ser assimétrica no contexto da amostra estudada. Embora cada cultura esteja representada por um conjunto de conhecimentos, práticas e preocupações igualmente relevantes e inerentes a este processo, a predominância da cultura acadêmica é ressaltada pelo fato 1000

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de que três das quatro EDs estudadas concentram a gestão de todo o processo na área da saúde, e suas conformações são influenciadas, sobretudo, por experiências em projetos e programas anteriores, mediados ou não pelas TDIC, especialmente na formação em saúde5,6. Embora este resultado emane de um recorte (n=4) a partir do conjunto de universidades (n=14) que estabeleceram suas equipes voltadas para atender as demandas da UNA-SUS, é possível explicar a primazia da cultura acadêmica22, cujo foco é a área de conteúdo, tendo em vista o papel que o reconhecimento científico da universidade dá às suas áreas disciplinares.

Conclusões e considerações finais No intuito de aprofundar o conhecimento sobre a UNA-SUS, buscou-se identificar quais e como os conhecimentos da universidade são mobilizados a partir das demandas de formação para o SUS. Os achados demonstram que, pelo fato de programas preestabelecidos poderem influenciar a constituição das EDs de cursos a distância em universidades presenciais no contexto estudado, podem representar uma válida contribuição para o desenvolvimento da área de EAD e campo fértil para pesquisa interinstitucional e multidisciplinar. Apesar de a UNA-SUS, como outros programas da área da saúde, aproximar a universidade do trabalho em saúde, indicando conformidade com os propósitos de políticas públicas de saúde, como a PNEPS11, ainda são necessários estudos sobre o processo de trabalho nas EDs pesquisadas, para elucidar de que forma consideram o cotidiano do trabalho/formação em saúde no processo de desenvolvimento dos cursos. Quanto à mobilização de conhecimentos das universidades para constituição das EDs pesquisadas, revelou-se que a adesão das universidades presenciais à rede UNA-SUS alavancou a mobilização e cooperação de diversas unidades universitárias, especialmente de três campos de conhecimento: Ciências da Saúde, Ciência da Computação e Ciências Humanas. Entretanto, são necessários estudos que apontem como a constituição das EDs pode influenciar o estabelecimento de espaços coletivos de reflexão para formação da força de trabalho em saúde. A presença destes três campos de conhecimento nas EDs pesquisadas sugere a possibilidade de identificação de diferentes subculturas22, em convivência, influenciadas pelas funções e formações dos sujeitos envolvidos. Nesta perspectiva, a multidisciplinaridade inerente a esta modalidade de ensino oferece não somente a oportunidade de constituição de grupos de trabalho heterogêneos, mas de pesquisa e desenvolvimento de diferentes áreas de conhecimento, atendendo às necessidades de acompanhamento da evolução tecnológica na qual encontramo-nos imersos, e motivadas pela demanda de formação para o processo de trabalho em saúde.

Colaboradores Rodrigo Alcantara de Carvalho participou ativamente do trabalho de campo, análise, discussão dos resultados, redação, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Miriam Struchiner participou ativamente da discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Agradecimento Apoio CAPES e CNPq.

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Carvalho RA, Struchiner M

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Carvalho RA, Struchiner M. Conocimientos y expertises de universidades tradicionales para el desarrollo de cursos a distancia de Universidad Abierta del Sistema Brasileño de Salud (UNA-SUS). Interface (Botucatu). 2017; 21(63):991-1003. Este trabajo fue desarrollado en el contexto de la Universidad Abierta del Sistema Brasileño de Salud, un modelo de red inter-institucional firmado entre el sector de gestión de políticas de salud e instituciones de enseñanza, con el objetivo del desarrollo de iniciativas de formación a distancia de la fuerza de trabajo en salud. Por medio de la dirección y análisis de contenido de entrevistas semi-estructuradas con informantes calificados en cuatro instituciones seleccionadas para el estudio, se buscó identificar cómo los conocimientos de las unidades se movilizan a partir de las demandas de formación para el Sistema Único de Salud. Los resultados señalan que se desencadenan procesos de constitución de equipos de desarrollo de cursos a distancia, con influencia de programas pre-existentes que apalancan la movilización y cooperación de unidades universitarias de las instituciones sede en respuesta a la demanda de formación de la fuerza de trabajo en salud.

Palabras clave: Movilización de conocimientos. Educación a distancia. Educación en salud. Educación permanente en salud. Desarrollo de cursos a distancia. Submetido em 30/07/16. Aprovado em 15/10/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0808

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Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico Celia Iriart(a) Emerson Elias Merhy(b)

Iriart C, Merhy EE. Inter-capitalistic disputes, biomedicalization and hegemonic medical model. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):1005-16.

This paper is situated on the field of study of the working/productive process and the technological transition in health care. It examines the entrance of financial capital groups in the health sector and their struggles with the medical-industrial complex. It puts forward a comprehension of how the capitalist sectors, leaders of the restructuration of the working process in health, bet on the power of the creation of new subjectivities in order to transform and consolidate the current hegemonic medical model and the production/reproduction of the ways of the capitalism’s agency role. We use the concept of biomedicalization to understand a radical stage of medicalization, a commonly used concept, albeit insufficient to understand the observed changes. The comprehension of these phenomena allows the recognition of resistances and “lines of flight” that could allow for non-mercantilist options in health, which may create autonomy and reinforce the value of individual and collective life.

Este artículo se sitúa en el campo de estudio de los procesos productivos y de la transición tecnológica en el cuidado de salud. Examina la entrada del capital financiero en el sector salud y sus disputas con el complejo médicoindustrial. Avanza en la comprensión de cómo los sectores capitalistas, que lideran la reestructuración productiva en salud, apuestan a la potencia de los procesos de creación de nuevas subjetividades en la transformación y consolidación del actual modelo médico hegemónico y en la producción/reproducción de modos de agenciamientos capitalísticos. Usamos el concepto de biomedicalización para entender la radicalización del proceso de medicalización, concepto que se viene mostrando insuficiente para comprender los cambios observados. Comprender estos fenómenos facilita reconocer resistencias y líneas de fuga que posibilitan apuestas no mercantilistas en salud, creadoras de autonomía y valorización de la vida individual y colectiva.

Keywords: Medical-industrial-financial complex. Hegemonic medical model. Biomedicalization. Resistances and creation of new subjectivities. Market and health.

Palabras clave: Complejo médico-industrialfinanciero. Modelo médico hegemónico. Biomedicalización. Resistencias y subjetivación. Mercado y salud.

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College of Population Health, University of New Mexico. 2400, Tucker Av. Albuquerque, New Mexico, United States. 87131. ciriart@salud.unm.edu (b) Faculdade de Medicina, Campus de Cavaleiros Macaé, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Macaé, RJ, Brasil. emerhy@gmail.com (a)

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Introducción Los debates públicos y las políticas regulatorias relacionados con las reformas del sector salud giran, predominantemente, en torno al financiamiento, control de costos y costo-efectividad. Las reformas que se debaten e implementan, son variaciones de modelos de seguro o de seguridad social basados en el financiamiento público, privado o mixto, y en quienes administran estos fondos y prestan los servicios (organismos gubernamentales, administradoras privadas o formas mixtas). Prácticamente no se discute el papel que los diversos actores tienen en la definición de los modelos de cuidado en salud que, en definitiva, delimitan la conceptualización del proceso salud-padecimiento-atención y, por lo tanto, el tipo de servicios de atención individual y programas de salud colectiva que se implementan, quiénes y cómo los financian y proveen, así como a qué sectores se destinan. Hay excepciones y tal vez las más notorias provienen de la producción brasilera que analiza los procesos productivos y la transición tecnológica en salud, enfatizando los efectos en la creación de nuevas subjetividades1. Muchos de estos análisis se centran en el papel de los trabajadores de salud en su capacidad de producir trabajo vivo en acto, el cual puede generar nuevos instituyentes en las formas de cuidar de individuos y colectivos, o su opuesto, es decir, profundizar formas capitalísticas al producir intervenciones médico-sanitarias. Estos análisis, así como nuestras investigaciones sobre la financialización del sector salud que se opera desde los ochentas, y que ha resultado en la conformación del complejo médico-industrial-financiero sirven de encuadre a este artículo2. La conformación del complejo médico-industrial-financiero refiere a la penetración del capital financiero como administrador, no sólo de seguros médicos, sino también de servicios de salud (hospitales, centros de diálisis, servicios de atención domiciliaria, centros de diagnóstico y tratamiento, servicios de emergencias, entre otros). Esto está muy avanzado en los Estados Unidos (EUA), y presente en algunos países latinoamericanos. Desde allí profundizamos en la comprensión de cómo los sectores capitalistas que hegemonizan la reestructuración productiva en salud, esto es, grupos ligados al capital financiero y al complejo médico-industrial, especialmente farmacéuticas, han apostado con sus estrategias a la potencia que los procesos de producción subjetiva tienen en la transformación y consolidación del actual modelo médico hegemónico para reproducir agenciamientos capitalísticos1,3. A partir de la comprensión de estos fenómenos proponemos la necesidad de desarrollar investigaciones que den cuenta de procesos en marcha que abren líneas de fuga y situaciones desterritorializantes del modelo médico hegemónico que buscan contrarrestar las estrategias mercantiles en salud.

Conceptos y métodos El análisis que usamos en este estudio sigue un enfoque analítico que propone la reinterpretación de estudios desarrollados por nosotros y por colegas en relación a las reformas que el complejo médico-industrial-financiero viene desarrollando durante los últimos veinte años(c). Nuestros estudios sobre las reformas que el capital financiero desarrolló bajo el concepto de atención gerenciada (managed care) fueron pioneros en evidenciar las estrategias que los grupos financieros usaron para controlar a los prestadores de servicios con el objetivo de disminuir gastos y convertir la atención de la salud en un bien de mercado. Estos trabajos mostraron los mecanismos ideológicos y las prácticas 1006

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Por las limitaciones de espacio solo citamos las referencias centrales de las numerosas usadas en el análisis. Aquellos lectores interesados pueden solicitarnos la lista completa. (c)


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desarrolladas por grupos ligados al capital financiero y a las agencias internacionales de cooperación y de financiamiento (OMS, Banco Mundial, entre otros) para cambiar el sentido común acerca de la conceptualización salud-padecimiento-atención, incluyendo la idea de que los pacientes/usuarios debían ser transformados en clientes/consumidores. Parte del cambio en el sentido común colectivo estuvo centrado en presentar a los administradores de fondos destinados a cuidados médicos como compradores inteligentes, capaces de racionalizar el excesivo consumo, negociar precios y coordinar el cuidado de salud aumentando la calidad mientras disminuían costos2. Estos objetivos requerían controlar a los principales estimuladores de la demanda, esto es, prestadores de servicios (profesionales de salud y prestadores de servicios de diagnóstico y tratamiento) y productores de bienes y servicios del sector salud, en especial farmacéuticas y compañías de tecnología médica. Durante el análisis de estos procesos, nuevas preguntas emergieron en relación a cuál sería la respuesta, por parte de quienes históricamente definieron la demanda en salud ante el objetivo del capital financiero de limitar el consumo. Para responder a estas preguntas usamos conceptos teóricos y aproximaciones metodológicas en el sentido foucaltiano de “cajas de herramientas”. Esto resultó en la utilización de conceptos y métodos provenientes de diferentes corrientes de pensamiento, en particular aquellas que no pretenden llegar a explicaciones totalizantes que den como resultados nuevas verdades monolíticas sobre la situación estudiada. En esa dirección usamos conceptos con probado poder analítico en otros de nuestros estudios, tal el caso de sentido común y reforma silenciosa, así como conceptos del campo de la micropolítica del trabajo y cuidado en salud. También usamos el concepto de biomedicalización, por su potencial de encontrar nuevos significados a la situación analizada4. Diversas aproximaciones metodológicas fueron útiles para crear un diálogo entre diferentes fuentes de datos. Dos fueron las más importantes para los análisis que acá presentamos: a) análisis situacional, que provee elementos para mapear diferentes actores sociales y discursos, y b) análisis de discurso usado como un lectura e interpretación deconstructiva de relaciones de poder y sus efectos en la creación de nuevas subjetividades5. El objetivo fue conectar procesos que aparecen desconectados en los discursos de los actores más poderosos que operan en el sector salud, el complejo médico-industrial y los grupos financieros. El concepto de poder lo entendemos como múltiples fuerzas operando en una situación y tiempo determinados de manera relacional. Este concepto lo usamos en relación con el concepto de gobernamentalidad en el sentido de fuerzas que operan estratégicamente para crear nuevas subjetividades, en el campo de las lógicas de gobernar las producciones de vidas, individuales y colectivas6. La idea principal fue entender las estrategias de la industria farmacéutica para contrarrestar los avances del capital financiero. En ese sentido un primer paso fue observar las disputas intercapitalistas, en tanto ejercicio de fuerzas entre el complejo médico-industrial y los grupos financieros que operan en el sector salud, por la participación en el mercado y por la hegemonía en la definición del concepto salud-padecimiento-atención. Para esto fue importante analizar si la industria farmacéutica había desarrollado estrategias para cambiar regulaciones con el fin de impactar la organización del sector salud y la conceptualización del proceso salud-padecimiento-atención, favoreciendo su posición en el juego de fuerzas por retomar el liderazgo del mercado de salud y en la producción de nuevas subjetividades. Primeramente, desarrollamos una recolección de datos no sistemática que analizamos siguiendo el método etnográfico de observar y analizar datos e información para describir la situación ampliamente. Siguiendo a Clarke, “definimos nuestro estudio como una investigación multisituada, en el sentido de que examinamos múltiples tipos de fuentes, interrogando los datos de estas fuentes desde una particular situación de interpelación”5 (p. 165). Las fuentes que utilizamos incluyeron publicaciones científicas y periodísticas, literatura gris y listas electrónicas de diseminación. Otra fuente importante fueron los materiales de difusión que en los EUA las compañías farmacéuticas envían por correo regular a potenciales consumidores de sus productos. Estos materiales abrieron nuevas opciones para obtener datos adicionales, tal el caso de nombres de empresas ligadas a las reformas impulsadas por el complejo médico-industrial, de actores sociales individuales y colectivos vinculados a la situación, así como estrategias impulsadas por las empresas para impactar las regulaciones del sector. 1007


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El extensivo análisis preliminar nos permitió comprender que las farmacéuticas estaban tornando en su favor la estrategia iniciada por las organizaciones de atención gerenciada de transformar a los pacientes/usuarios en clientes/consumidores. Por nuestros análisis preliminares también entendimos que la industria farmacéutica estaba impulsando reformas silenciosas para reposicionarse en el mercado. Decidimos que la línea de análisis que nos permitiría una comprensión más amplia y profunda sería a través de la utilización de dimensiones analíticas que captaran las reformas en las que la industria farmacéutica estaba envuelta y de las cuales se beneficiaba. Las dimensiones que definimos fueron los cambios regulatorios con capacidad de impactar la aprobación y comercialización de medicamentos y tecnología médica; las transformaciones en la definición y denominación de padecimientos; las modificaciones en los protocolos clínicos que favorecen el sobre diagnóstico de enfermedades, y los mecanismos utilizados para promover la demanda de procedimientos y medicamentos. Usando estas dimensiones, desarrollamos una revisión sistemática de la literatura científica y gris, y de documentos gubernamentales y de empresas para encontrar los datos (primarios y secundarios) que describieran cambios en las regulaciones, en los protocolos científicos y en los modelos de negocios consistentes con la idea de redefinir a los usuarios/pacientes como consumidores. Analizamos también folletos de difusión, portales de agencias de salud pública, asociaciones profesionales, de pacientes y consumidores, publicidades en televisión, revistas, diarios y periódicos, entre otros. Con todos estos materiales iniciamos un proceso de mapeo de la información obtenida en cada categoría para describir la situación y los resultados que las compañías están obteniendo al recrear el consumidor de salud y radicalizar la medicalización. Seguimos los procedimientos metodológicos explicados por Clarke en su libro y a él remitimos a los lectores interesados en entender estos procesos analítico-operacionales, ya que su descripción ameritaría un artículo específico5. Como resultado de este proceso obtuvimos una descripción analítica de las estrategias implementadas por la industria farmacéutica y las reinterpretamos a la luz de los conceptos de biomedicalización, tecnologías duras, blandas-duras y blandas y de la clínica del cuerpo sin órganos7. Esta reinterpretación nos permitió aumentar la comprensión de los efectos que los discursos que actualmente modelan el sector salud han tenido en la creación de nuevas subjetividades y biosocialidades, algunas como parte del discurso neoliberal que instituye el complejo médico-industrialfinanciero y otras cuestionándolo.

Reposicionamiento del complejo médico-industrial Como señalamos anteriormente, en varios artículos hemos analizado los procesos de reforma hegemonizados por el capital financiero que se iniciaron en los EUA a fines de los ochentas y desde allí se exportaron a otros países en los noventas. En este artículo sintetizamos las reformas que tienden a modificar los agenciamientos subjetivos de prestadores y usuarios, y que son el producto de las disputas iniciales y de los reagrupamientos entre el complejo médico-industrial y el capital financiero. El proceso de penetración del capital financiero en el sector salud introdujo nuevos actores sociales, cambios en la regulación del sector, y nuevos modelos de seguro que impactaron directamente la administración y la provisión de servicios. La masiva entrada de este capital y su lógica en el sector salud cambió no solo las reglas de juego a nivel económico, sino que también introdujo cambios en las subjetividades individuales y colectivas en relación a la concepción salud-padecimiento-atención. Decisiones profesionales fueron subordinadas a la de los administradores del sistema con el objetivo de maximizar ganancias, limitando la utilización de servicios, vía el control de prescripciones y derivaciones -encubiertas la mayoría de las veces- como decisiones sustentadas en lo que, desde los noventas, se dio en llamar medicina basada en evidencia. Los profesionales de salud, los administradores de servicios y las compañías productoras de medicamentos y tecnología médica fueron impactados por las transformaciones gerenciales. Estos procesos mostraron nítidamente que los capitales operando en salud comprendieron claramente que cualquier cambio efectivo en los procesos productivos en salud debe incidir en la micropolítica del trabajo vivo en acto, lugar donde se instituyen la producción del modelo tecno-asistencial, tanto en el sector público como en el privado. A esto ya había apostado el complejo médico-industrial, que históricamente dirigió la promoción de sus productos a los médicos, 1008

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detentadores privilegiados de la relación con los usuarios y, por lo tanto, potenciales inducidores de consumo y creadores de nuevas subjetividades en la producción de salud. Sin embargo, las gerenciadoras en salud avanzaron un paso más al no limitar su intervención a la captura del trabajo vivo de los profesionales de salud, sino que buscaron impactar la creación de nuevas subjetividades en los usuarios. Para ello capturaron el concepto de consumidor de salud, que en los sesentas había sido introducido por los movimientos de defensa del consumidor en los EUA. Sus estrategias comunicacionales fueron diseñadas para mostrar la necesidad de que los pacientes/usuarios se transformaran en clientes/consumidores informados de la oferta de servicios y seguros de salud, y de esta forma tomar decisiones racionales en términos de costo/beneficio. Cabe aclarar que, pese a las buenas intenciones de los movimientos progresistas estadounidenses, el concepto de consumidor es regresivo en relación al de usuario/ciudadano. El concepto de consumidor implica la posibilidad de ejercer poder a partir del acto de compra, el de usuario/ciudadano a través de una concepción de derecho social8. Los intereses del capital financiero confrontaron con los del complejo médico-industrial en los años iniciales de las reformas gerenciadoras. Hacia mediados de los noventas las grandes corporaciones farmacéuticas y productoras de tecnología comenzaron a generar silenciosas reformas para reposicionarse en el mercado, buscando redefinir a su favor el modelo salud-padecimiento-atención3. Estos procesos requirieron nuevos cambios en el modelo médico hegemónico que radicalizaron la medicalización, redefinida como biomedicalización4. La medicalización implica la expansión del diagnóstico y tratamiento médico de situaciones previamente no consideradas problemas de salud, como por ejemplo el embarazo y el parto. La biomedicalización, por su parte, supone la internalización de la necesidad de autocontrol y vigilancia por parte de los individuos mismos, no requiriendo necesariamente la intervención médica. No se trata solamente de definir, detectar y tratar procesos mórbidos, sino de estar informados y alertas de potenciales riesgos e indicios que pudieran derivar en una patología. De allí que, en especial, la industria farmacéutica apostó a poner más productos en el mercado, en la mayoría de los casos cambiando mínimamente la composición de algunos medicamentos, para ampliar el espectro de padecimientos para los que se podían indicar9. Esto fue reforzado por la intervención de expertos pagados por la industria en comités científicos que redefinieron diagnósticos y definieron nuevos cuadros nosológicos, en muchos casos transformando riesgos en enfermedades. Las asociaciones profesionales también contribuyen a estos procesos para asegurar que los seguros paguen a los profesionales al tratar ciertos pacientes. A finales de los noventas se comenzaron a redefinir numerosos padecimientos de los denominados de estilo de vida usando el procedimiento de mover la curva normal hacia la izquierda. Esto había sido introducido por Rose en 1985 en el caso de problemas de contaminación ambiental u otros riesgos similares, bajando, por ejemplo, los valores a los cuales la exposición a un determinado químico puede afectar la salud. Esto tenía por objetivo extremar precauciones y proteger un número mayor de personas expuestas a contaminación ambiental o química10. Pero aplicar este mecanismo, bajando los valores o ampliando el espectro de síntomas a los cuales se definen riesgos y padecimientos, implica que, de un día para otro, personas sanas son consideradas enfermas o con riesgos pasibles de ser medicados. Esto sucedió en los EUA al redefinirse a finales de los noventas los valores de hipertensión, colesterolemia, sobrepeso/obesidad y diabetes. Este procedimiento implicó que, sólo en ese país, 140.630.000 personas (75 por ciento de la población adulta) pudieran ser diagnosticadas y tratadas por algunos de estos padecimientos y riesgos10. Asimismo, la redefinición de trastornos relacionados con salud mental (depresión, déficit de atención, autismo, ansiedad, entre otros muchos, tanto en niños como en adultos) disparó las prevalencias y el consumo de medicamentos de dudosa eficacia y en muchos casos iatrogénicos11. A esto se suma la intensa difusión de nuevos tratamientos medicamentosos para problemas ya conocidos o de reciente definición, tales los casos de impotencia masculina y baja de libido femenina, osteoporosis, fibromialgia, síndrome de las piernas inquietas, trastornos premenstruales, y muchos más12,13. En la siguiente sección analizaremos las implicancias de la creación de nuevas subjetividades a través de la biomedicalización.

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Estrategias capitalistas y biomedicalización Varias fueron las estrategias que el complejo médico-industrial, en especial la industria farmacéutica, usó para renovar su influencia en la definición del modelo médico hegemónico y para capturar al usuario/paciente, redefinido para sus estrategias comerciales en cliente/consumidor. Estas estrategias varían según los países debido a las regulaciones internas, los ejemplos están basados en los EUA, que es donde primero se desarrollan y desde donde se diseminan globalmente. Desde mediados de los noventas, la industria ejerció gran presión para desregular la publicidad directa de medicamentos de venta bajo prescripción u otras modalidades de difusión; presionó para que se aceleren los procesos de aprobación y comercialización de nuevos medicamentos; penetró los cuerpos científicos que asesoran a los organismos de control de medicamentos, ganando influencia en las decisiones sobre los medicamentos que se aprueban y se prohíben; penetró los cuerpos científicoprofesionales encargados de definir protocolos clínicos y manuales diagnósticos para influenciar la creación de nuevas enfermedades, redefinición de otras y determinación del tratamiento a seguir; cooptó asociaciones de pacientes y familiares para que actúen como agentes de propaganda de sus productos; y creó nuevas modalidades de negocios3,11,14,15. El objetivo central fue retomar capacidad de influenciar los procesos subjetivos relacionados con el proceso salud-padecimiento-atención, a través de incidir en las decisiones de consumo vía los usuarios, ya que la llegada a los prescriptores estaba limitada por las estrategias de las aseguradoras. Pero la apuesta incluso no estuvo limitada a dirigir estrategias de mercadotecnia a los enfermos, sino en venderle medicamentos, procedimientos y equipamientos a los sanos. Este es el proceso más innovador que la industria desarrolló en los últimos veinte años. Para esto, como vimos anteriormente, diversificaron la oferta de medicamentos y tecnologías produciéndolos o rediseñándolos para cubrir potenciales riesgos y padecimientos llamados de estilo de vida. Pero lo que nos parece más importante y queremos destacar en este artículo son los mecanismos usados para crear una nueva subjetividad en el proceso salud-padecimiento-atención. Para explicar estos procesos utilizaremos el concepto de biomedicalización que diferenciamos del de medicalización, ya que mientras ésta se centra en el padecimiento, la enfermedad, el cuidado y la rehabilitación, la biomedicalización se enfoca en la salud como un mandato moral que internaliza el auto control, la vigilancia y la transformación personal. La biomedicalización implica la gobernamentalidad y regulación de individuos y poblaciones a través de la reconstrucción del discurso hegemónico en el campo sanitario, al que se presenta como la nueva verdad científica. Con la biomedicalización se pasa de un creciente control de la naturaleza (el mundo alrededor del sujeto) a la internalización del control y transformación del propio sujeto y su entorno, transformando la vida misma4. Otros conceptos útiles para avanzar los análisis son los de tecnologías duras, blandas-duras y blandas que operan en el cotidiano de las poblaciones facilitando que los intereses vinculados a esta tendencia biomedicalizante operen y vayan instituyendo su hegemonía en la definición del proceso salud-padecimiento-atención16. Por tecnologías duras entendemos, en el tema que nos ocupa y de manera general, aquellos equipamientos y dispositivos tecnológicos para diagnóstico y tratamiento utilizados en los servicios de salud, pero también medicamentos, pequeños aparatos de uso doméstico y computadores personales. Por tecnologías blandas-duras vamos a consideran el conocimiento organizado que, para el abordaje que estamos haciendo, son los protocolos clínicos, cuestionarios para detectar padecimientos, publicidades y otros instrumentos que codifican discursivamente signos y síntomas. Estas tecnologías blandas-duras posibilitan a los usuarios evaluar su riesgo actual o potencial de padecer alguna de las innúmeras patologías definidas por las asociaciones profesionales y organismos nacionales e internacionales, y aún aquellas que empiezan a circular, aunque no hayan sido todavía definidas oficialmente, pero que son pre-instaladas a través de los medios de comunicación y otros mecanismos comunicacionales que facilitan la circulación de ‘novedades científicas’. Por tecnologías blandas entendemos aquellas que se producen en el espacio relacional entre los usuarios y los prestadores, las empresas que venden bienes y servicios, las asociaciones científicas y/o profesionales, los organismos gubernamentales, etc., así como entre los mismos usuarios y también con sus familiares y amigos. Todos estos procesos relacionales adquieren numerosas 1010

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formas, excediendo el marco del contacto personal ya que se usan las redes sociales, portales y otros mecanismos semejantes para establecer estos ‘diálogos’ y ‘vínculos’. Veremos a continuación como operan para construir la hegemonía de un modelo médico que privilegia una clínica sin órganos supuestamente comandada por los usuarios. A nivel de las tecnologías duras hubo dos procesos que facilitaron que la biomedicalización hegemonizada por la industria de medicamentos y tecnología médica se instituya. Por un lado, la posibilidad de masificar el consumo de biotecnologías, incluyendo medicamentos, instrumentos diagnósticos y otros equipamientos. Este es el caso del acceso a bajo costo de tensiómetros, aparatos para controlar la glucosa, el pulso y el oxígeno en sangre, entre muchos otros equipamientos ahora de uso doméstico. Por otro lado, los desarrollos en computación y comunicaciones que, en tanto tecnologías duras, facilitaron la elaboración y la penetración de tecnologías blandas-duras vía la captura de enormes cantidades de datos de salud de individuos y colectivos por parte de las corporaciones, la diseminación masiva de información sobre enfermedades, padecimientos y riesgos, y las formas de detectarlos, tratarlos y prevenirlos. Como ejemplos de estos procesos se encuentran la creación de portales destinados al público desarrollados por empresas que, muchas veces, son subsidiarias de compañías farmacéuticas. Estos portales (tecnologías blandas-duras) invitan a los usuarios a un diálogo y vínculo virtual proponiéndoles la introducción de sus parámetros clínicos, los medicamentos que consumen, los tratamientos que siguen, entre otros datos, con la finalidad declarada de ayudarles a controlar su salud al recordarles cuándo controlar signos vitales y valores biológicos, tomar los medicamentos prescriptos, consultar al médico, qué preguntas hacer en la consulta, etc. Por un lado, con estas tecnologías blandas moldean la subjetividad de los usuarios que van centrando su atención sobre ciertos procesos y no otros, y se sienten empoderados en el manejo de su problema de salud con prescindencia de los profesionales. Un importante objetivo de las empresas es capturar enormes cantidades de información que usan para producir estrategias comunicacionales/relacionales y de mercadotecnia cada vez más precisas y elaboradas según grupos sociales, etarios, etc. Las tecnologías que consideramos duras en este análisis, computadores e internet, facilitan la diseminación del uso de medicamentos y su compra evadiendo en muchos casos las regulaciones nacionales. Asimismo, a través de los portales y de otros medios de comunicación (revistas de divulgación, canales de cable, circuitos cerrados de televisión en hospitales, y otros medios) se difunde detallada información sobre padecimientos y tratamientos. También se pone a disposición de los trabajadores de salud y de los usuarios cuestionarios cortos para evaluar los riesgos actuales o potenciales de padecer alguna de los padecimientos descriptos. Estos fenómenos facilitaron la creación de nuevos procesos de subjetivación, identidades y biosocialidades en torno al proceso salud-padecimiento-atención. Las redes sociales dedicadas a temas de salud ocupan un lugar destacado en la construcción de tecnologías blandas. Algunas de estas redes han sido creadas por reales usuarios y/o familiares, otras por la industria, otras son asociaciones científicas dedicadas a problemas de salud específicos (Asociación de Diabetes, del Corazón, etc.). Muchos de estos grupos han sido cooptados por la industria farmacéutica y de tecnología, vía el apoyo financiero que proveen15. Estas redes crean fuertes lazos identificatorios en los cuales los usuarios pasan a definirse o definir a sus familiares por el problema de salud que padecen o creen padecer. Los usuarios como consumidores son sujetos activos del propio proceso de biomedicalización de sí y no pasivos consumidores. Esta clínica del cuerpo sin órganos y su correlato a nivel colectivo en la denominada nueva salud pública, han desarrollado discursos ilusorios según los cuales se puede mantener cuerpo y mente jóvenes y energéticos ejerciendo estricto control sobre los riesgos que los amenazan, especialmente aquellos relacionados con los estilos de vida. Ese discurso se acompaña de una intensa diseminación del ‘conocimiento necesario’ vía las nuevas herramientas comunicacionales para acceder a él y para compartirlo con familiares y amigos. Organismos de salud pública nacionales e internacionales forman parte de esta estrategia que promueve la biomedicalización de la promoción y prevención de la salud11. Los Centros para el Control de Enfermedades y Prevención (CDC, por sus siglas en inglés) desde su sitio en la red ofrecen a los usuarios, tanto anglo como hispanoparlantes, información sobre diversas enfermedades y padecimientos, herramientas comunicacionales para difundir información entre familiares y amigos, e información de cómo pre-diagnosticar diversos problemas de salud. Los 1011


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temas son múltiples, déficit de atención e hiperactividad, sobrepeso y obesidad, autismo, síndrome de fatiga crónica, entre otros. Asimismo, desde el portal del CDC se puede conectar directamente con numerosas asociaciones de pacientes y familiares, que proveen información más directa sobre medicamentos, tipos de tratamientos y nombres de profesionales especializados en el tema. Los avances tecnológicos en internet y en comunicaciones son instrumentos claves para facilitar la radicalización de la medicalización, permitiendo a las corporaciones y también a los organismos de salud pública segmentar las estrategias comunicacionales por edades, géneros, nacionalidades, culturas, patologías, riesgos, etc. Estas tecnologías facilitan llegar a los usuarios a través de diversos medios según el grupo poblacional al que se destinan, esto es, computadoras personales, tabletas, teléfonos celulares, televisión, radio, etc. y usando diversos mecanismos comunicacionales, tales como portales, redes sociales, u otros. Los mensajes sobre salud-padecimiento-atención son presentados como mandatos morales, planteando que, si los individuos no controlan proactivamente su salud, los resultados de sus conductas crean un peso económico al resto de la sociedad. Esto va más allá de usar intervenciones médicas para recuperar la salud afectada por enfermedades o padecimientos, supone la biomedicalización de la prevención y promoción a través de la internalización del mandato moral de mantenerse saludable y prácticas de vigilancia sanitaria a nivel individual17. Estar saludable en el contexto de la biomedicalización significa que es una responsabilidad individual controlarse de potenciales enfermedades y padecimientos con exámenes de laboratorio, genéticos u otros, y consumiendo medicamentos, dispositivos médicos y otros productos biotecnológicos y servicios. Los instrumentos ofrecidos para cumplir con este mandato moral incluyen herramientas vía internet y otros mecanismos comunicacionales que ofrecen información a través de la privacidad de las computadoras personales, dispositivos de entretenimiento doméstico, y teléfonos celulares, o se difunden en otros espacios cotidianos, como escuelas o lugares de trabajo. Bajo el supuesto de controlar riesgos se instruye sobre enfermedades y padecimientos, así como la forma de diagnosticarlos y controlarlos, tal el caso de la presión arterial o los niveles de glucosa usando equipos domésticos y promoviendo el consumo de medicamentos18. En el contexto de la biomedicalización, los profesionales de salud en su tradicional papel de líderes del proceso de cuidado son más y más prescindibles debido a la nueva modalidad de negocios desarrollado por el complejo médico-industrial3. Como señalamos anteriormente, el proceso incluye la transformación de los pacientes en consumidores activos con derecho de recibir información de otras fuentes y cuidar de su salud por sí mismos, e incluso consumir productos sin intervención de un prescriptor. Asimismo, la industria ha desarrollado nuevas tecnologías blandas que forman parte de esta nueva relación directa que entablan con sus potenciales consumidores, para enseñarles cómo influenciar a los médicos y otros profesionales de salud para que les prescriba el ‘producto deseado’19. Los jóvenes son especialmente vulnerables a este tipo de mensajes que promueven la autoprescripción.

Los nuevos escenarios y sus consecuencias Las disputas por la hegemonía del sector salud entre el capital financiero y el complejo médicoindustrial han transformado profundamente el sector. Los poderosos competidores (capital financiero e industrial) obtuvieron una parte en la distribución del mercado y de las ganancias. Los sistemas públicos basados en derechos, los seguros de salud de los trabajadores, los prestadores de servicios y sobre todo la población son los afectados por estas disputas, que condujeron a una profundización de la mercantilización de la salud. Las corporaciones financieras que administran planes de salud y servicios asistenciales han desarrollado convenios con el complejo médico-industrial para utilizar sus productos y servicios recibiendo descuentos no disponibles al público3. Estos acuerdos favorecen la utilización de tratamientos basados en medicamentos y otros desarrollos tecnológicos que no siempre representan la mejor opción. Usuarios convertidos en consumidores son expuestos a la biomedicalización de sus vidas, a través de mecanismos sutiles que presentan la información como objetiva y creada para empoderarlos. Agencias regulatorias en todos los países están muy atrás en 1012

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su capacidad de regular y controlar la captura de datos y la comunicación que las corporaciones multinacionales dirigen directamente a la población. En principio, más acceso a información sobre salud debe ser considerado democrático y bienvenido, sin embargo, el problema radica en quién y cómo se genera esa información, y qué intereses están detrás. Asimismo, el proceso de mercantilización de la producción y circulación de información sobre salud implica que el acceso a la información es estratificado y afecta diferencialmente a grupos sociales y países. El ofrecer información para prevenir enfermedades no es en sí mismo el problema, sino que esto sucede en el contexto de la expansión de las políticas neoliberales y la extrema mercantilización de la promoción y prevención20. La expansión del concepto de prevención se sitúa más y más del lado de una clínica individual, del cuerpo sin órganos e hipercomercializada. El concepto de riesgo es un claro ejemplo de este proceso, ya que pasó de ser usado para dar cuenta de riesgos poblacionales a ser utilizado para caracterizar riesgos individuales, que paradójicamente se han posicionado subjetivamente como enfermedades, especialmente aquellos para los que existen medicamentos (colesterolemia, hipertensión, entre otros)10. En esta línea se instaló la conceptualización de situaciones preclínicas (prehipertensión, prediabetes, etc.) que muchas veces sólo generan iatrogenia, sufrimiento y mayores intervenciones médicas14. Los sectores más desprotegidos de nuestras sociedades reciben también estos mensajes que refuerzan el mandato moral de controlar su salud para no ser una carga para la sociedad. Para estos grupos la información es diseminada a través de las escuelas, ferias de salud, otros eventos públicos y, especialmente a través de los medios de comunicación, en especial la televisión, en programas dedicados a las mujeres, en los programas de noticias y aún en canales de cable totalmente dedicados a temas de salud. Bien intencionados profesionales de salud pública también reproducen esta concepción de salud-padecimiento-atención e implementan estos mecanismos comunicacionales sin entender, la mayoría de las veces, cómo operan y cuáles son sus consecuencias. Se estimula a la gente a usar sus limitados recursos económicos para controlar los niveles de colesterol, presión arterial, glucosa, y otras numerosas condiciones, y a buscar tratamientos (convencionales o alternativos) para controlar el riesgo de enfermar. Sin embargo, como se puede observar en las estadísticas de salud, los sectores más postergados de nuestras sociedades ‘fallan’ en lograr los resultados de salud de las clases más privilegiadas, en cambio estos grupos deben además sentir la culpa de no alimentarse adecuadamente, no hacer ejercicio y padecer estrés por situaciones socioeconómicas que los exceden. Los profesionales y trabajadores de salud también se ven afectados en su capacidad de ofrecer un servicio que no esté mediado por estos procesos mercantilistas y de control de la población que buscan atemorizar a la gente ante potenciales riesgos de enfermar o morir, o no cumplir con los valores estéticos de una cultura basada en el éxito, la apariencia física, la juventud, el consumismo de objetos efímeros y el alto rendimiento intelectual y físico. Los profesionales de salud se sienten muchas veces constreñidos a seguir mandatos de cómo tratar a los usuarios de los servicios de salud por la imposición de los protocolos clínicos y la denominada medicina basada en la evidencia y/o por el temor a ser comparados con aquellos profesionales que aplican tratamientos que están en consonancia con lo que los usuarios escuchan que es lo más avanzado. Esto se ve agravado por la falta de tiempo −dada la presión ejercida por metas financieras o de productividad laboral cuantitativas− para explicar a los usuarios por qué el tratamiento que solicitan no es el adecuado para su problemática de salud. Claramente esta es una situación que nos afecta todos, usuarios y prestadores de salud, pero también es una situación que todos tenemos la posibilidad de cuestionar y transformar.

Apostando a la potencia El objetivo que nos propusimos al escribir este artículo es, por un lado, analizar estos procesos que muchos viven en su cotidiano, pero que al presentarse fragmentadamente es difícil que alcancen a elucidar causas y conexiones, así como los actores sociales envueltos y los intereses en juego. Por otro lado, esperamos que los profesionales de salud entiendan la potencia que tienen al ejercer trabajo vivo en acto16. En nuestra práctica junto a trabajadores de salud en diversos países es común escuchar que no quieren ser meros prescriptores de actos definidos por otros, que cuestionan la explotación COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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por los financiadores del sistema, y que ven menos eficacia en sus intervenciones. Los usuarios se quejan constantemente por el poco tiempo que se les dedica, por la falta de escucha, por la falta de resolución. He aquí un potencial por un movimiento mayoritario de rebeldía ante un modelo médico que no genera condiciones de trabajo satisfactorias, que cada vez tiene menos asidero científico y muestra limitada eficacia en la lucha contra muchos padecimientos que afectan a las mayorías. Invitamos a investigar y a intercambiar las experiencias en curso relacionadas con las líneas de fuga que aparecen constantemente en el cotidiano de las prácticas de los servicios de salud y situaciones desterritorializantes del modelo médico hegemónico que buscan desmercantilizar y desmedicalizar las experiencias sanitarias.

Contribución Celia Iriart concibió la idea inicial del análisis, escribió el primer borrador, editó y aprobó la versión final. Emerson Elias Merhy contribuyó con los análisis, editó el primer borrador, revisó y aprobó la versión final.

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Iriart C, Merhy EE. Disputas inter-capitalistas, biomedicalização e modelo médico hegemônico. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):1005-16. Este artigo situa-se no campo de estudo dos processos produtivos e da transição tecnológica da produção do cuidado em saúde. Examina a entrada do capital financeiro no setor saúde e suas disputas com o complexo médico-industrial. Avança na compreensão de como os setores capitalistas, que lideram a reestruturação produtiva na saúde, apostam na potência dos processos de criação de novas subjetividades na transformação e consolidação do atual modelo médico hegemônico e na produção/reprodução dos modos de agenciamentos capitalistas. Usamos o conceito de biomedicalização para entender a radicalização do processo de medicalização, que vem se mostrando insuficiente para compreender as mudanças observadas. A compreensão desses fenômenos facilita reconhecer resistências e linhas de fuga, que possibilitam apostas não mercantilistas na saúde, criadoras de autonomia e valorização da vida individual e coletiva.

Palavras-chave: Complexo médico-industrial-financeiro. Modelo médico hegemônico. Biomedicalização. Subjetivação. Mercado e saúde.

Submetido em 27/09/16. Aprovado em 21/11/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0242

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Commentary on Celia Iriart and Emerson Elias Merhy: “Inter-capitalistic disputes, biomedicalization and hegemonic medical model” Comentários sobre o texto de Iriart e Merhy: “Disputas inter-capitalistas, biomedicalização e modelo médico hegemônico” Comentarios sobre el texto de Iriart y Merhy: “Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico”

Adele E. Clarke(a)

I had read Celia Iriart’s work on biomedicalization previously and was so impressed I emailed congratulations to her. Hence I am not surprised but still thrilled to see the stunningly sophisticated use of biomedicalization as a set of analytic tools in this paper written with Emerson Merhy. When we wrote about biomedicalization1-4, we intended not only to describe a series of changes from the rise of medicine to medicalization to biomedicalization5, but also to provide a set of analytic tools with which to assess whether, when, and how such changes have happened under different “conditions of possibility” in different nations and regions6. Our own case studies and the book “Biomedicalization” all focused on the U.S. with its distinctive “non-system” or chaotic and rapidly changing situation of health care provision. We knew some trends in biomedicalization would appear elsewhere, but knew too that such manifestations would be distinctive to their locales, histories and regimes of governmentality. This paper provides an excellent overview of health care developments in Latin America. Iriart and Merhy put the concepts of biomedicalization to work in various valuable ways. To me most important is their deepening of a sectoral approach “within” capital and their analyses of struggles and negotiations among participating entities. They extend the primary actors to include not only various providers and patients/consumers and their subjectivities (under considerable and at times coercive pressure), but also pharma and most important, they carefully distinguish the financial sector. In the U.S. this might be called or at least include venture capital, the financial sector seeking new products and markets in which to invest in order to extract. The authors also take up the significant targeting of “providers” as well as the transformation of “patients into consumers”, both important. The overall degradation of the professional autonomy of medicine has occurred fairly rapidly in the U.S. But it is primary care physicians and internists (and nurse practitioners and related upper level non-physician providers) who are particularly targeted vis-à-vis promotion of particular drugs and treatments and diagnostic changes precisely because they have the most contacts with patients/consumers. In COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Doctoral Sociology Program, University of California San Francisco. 3333 California Street, Rm 455N. San Francisco, CA, EUA. adele.clarke@ucsf.edu

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COMMENTARY ON CELIA IRIART AND EMERSON ELIAS MERHY: ...

the U.S. this has resulted in dramatically fewer physicians pursuing such medical practices. In short, the cheapest doctors are squeezed hardest, while more expensive specialists using more expensive biomedical technologies generate more profit for the venture capital sector. The shift from patient to consumer and the increased responsibilitization of the consumer within the health care realm has been intense. Supermarkets were early progenitors, requiring the shopper rather than a store clerk to assemble the goods desired. But the shift from patient to consumer has been complexified (at least in the U.S.) by a simultaneous and often seductive enhancement of patient access to medical knowledge and involvement in medical decision-making. But buyer beware! Of course, these are double edged swords, and we increasingly feel the burdens of more direct involvement. And some are now clerical! I recently made an appointment with a new provider and was sent the patient forms electronically so that I would do that “paperwork” for the practice rather than the physician having to pay a medical clerk! Excellent analytic tools offered by Iriart and Merhy include their “soft, soft/hard and hard technologies” in health care. Their inclusion of “soft technologies,” those produced in the relational spaces between users and providers, is especially valuable. I am reminded of a now classic sociology article by Granovetter7 “On the Strength of Weak Ties,” which points to the intense valence of relationalities in all kinds of decision-making. Simply stated, any tie is usually better than no ties. As Iriart and Mehry ably point out, these are sites of our greatest vulnerability to manipulation and coercion. The increasing reach and sophistication of the mediatization of society only deepens such vulnerabilities (e.g., Couldry & Hepp8). One of my few disappointments with this wonderful paper was that while it promised discussion of lines of flight toward alternatives that open up what care can be and do, such discussion was very limited. I hope the authors will write an article on this soon, and there are a few works I want to mention which might be useful vis-à-vis these topics. The first is a recent feminist theoretical intervention. In conceptualizing “the economization of life,” Murphy9,10 noted that she: unfaithfully departs from Foucault to resituate the history of the co-dependent politicization of national economy and population as, one, unfolding within cold war and postcolonial geopolitics and, two, crucially achieved through sexed bodies and reproduction...[P]opulation reinvigorated temporalized logics of modern and backward, giving an economic alibi, and new lease, on old evolutionary hierarchies of human worth, … human waste, human surplus, unproductive life, and life in excess of economic value… Thus the measures of economized life could underwrite violent, coercive, and racist projects, as much as foster voluntary or even feminist ones… (p. 143-4, 148, emphasis added; see also 2017)

Murphy’s “economization of life” offers another superb toolbox with which to examine health care. Further, social marketing and other media are used to manipulate affect and engender desired actions in health care and two exceptional recent books take this up. Like Iriart and Merhy, Briggs and Hallin’s11 “Making Health Public: How News Coverage is Remaking Media, Medicine, and Contemporary Life” uses the biomedicalization toolbox, but they studied “biomediatization”, its patterns and consequences. Research in this vein on Latin Americas sites would be most provocative. Couldry and van Dijck’s12 “Researching Social Media as if the Social Mattered” furthers our capacities to unpack social media not only as individualistic but as social and discursive, relentlessly constructing new social realities (see also Couldry & Hepp8). I was also delighted that Iriart and Merhy found the method of situational analysis13,14 distinctively useful as well. It is a relentlessly empirical approach to qualitative inquiry which makes it particularly flexible hence able to travel well. In sum, this is a powerful and important synthetic article breaking new ground in the study of intra-capitalist negotiations in the formations of health care in Latin America. Iriart and Merhy’s work should also travel well and widely, and provoke excellent further work. The time has come for more ambitious “comparative” national and regional research on neoliberalism and its manifestations in health care. The toolbox provided by Iriart and Merhy will be invaluable in such endeavors. 1018

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Submetido em 24/04/17. Aprovado em 24/04/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0279

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Medicina biotecnológica e o fenômeno da (bio)medicalização: tensões e disputas no campo das práticas de cuidado em saúde Biotechnology medicine and the phenomenon of (bio) medicalization: tensions and disputes in the field of health care practices Medicina biotecnológica y el fenómeno de la (bio)medicalización: tensiones y disputas en el campo de las prácticas de cuidado en salud Sergio Resende Carvalho(a) Cathana Freitas de Oliveira(b) Henrique Sater Andrade(c)

Convidados a dialogar com o texto de Iriart e Merhy1, optamos, entre outras possibilidades, por focar o diálogo em torno da problemática da (bio) medicalização, que parece constituir uma discussão absolutamente importante e atual. Observamos que os autores do artigo se afastam da leitura e da perspectiva crítica, hegemônica no Brasil, da medicalização como algo suspeito e perverso que derivaria da incorporação de problemas não médicos ao aparato da Medicina, sendo este um fenômeno no qual os profissionais, médicos principalmente, teriam o direito e o dever de interferir sobre problemas sociais diversos, o que resultaria na ampliação de mecanismos de controle e na vigilância de indivíduos e população2,3. Buscam, nesse contexto, atualizar o debate sobre essa problemática trazendo um aporte a um conjunto de investigações críticas que têm refletido sobre as mudanças dos fatores geradores da medicalização2; a perda da acurácia analítica, banalização e transitividade do conceito3,4; a possibilidade de ocorrência de processos de medicalização com conotação positiva5,6; para o papel ativo dos indivíduos na sua condição de sujeitos livres e reflexivos, para o processo de automedicalização e para o influente papel das biotecnologias na conformação de novos saberes e práticas de cuidado em saúde7,8. No texto, os autores discutem um conjunto extenso de questões que, sem sombra de dúvida, constitui um aporte importante para os debates sobre políticas públicas, gestão de organizações e processos de trabalho e práticas clínicas no contemporâneo. Demonstram, de passagem, o potencial de um conjunto de ferramentas conceituais, derivadas do diálogo com a produção de pensadores pós-estruturalistas, para desvelar questões e apontar caminhos ainda não trilhados pela tradição crítica sobre o fenômeno da medicalização. Após afirmarem ser fundamental (re)pensar as políticas e reformas do setor saúde levando em consideração o papel de diversos atores na definição dos modelos de cuidado em saúde que delimitam a compreensão sobre o que denominamos de processo saúde-padecimento-doença, os autores apontam para a singular e importante produção brasileira sobre essa problemática. No interior desta última, encontram, na vertente que tem procurado problematizar 1020

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(a,b,c) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas (Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária, Zeferino Vaz. Campinas, SP, Brasil. 13083887. 2srcarvalho@ gmail.com; cathanaoliveira@ gmail.com; hsatera@gmail.com


a micropolítica do trabalho vivo e cuidado em saúde9,10, conceitos e ideias que julgam ser úteis para tarefa descritiva e analítica da problemática investigada. Temos, aqui, plena concordância sobre a importância dessa questão para os debates sobre a reforma e com a compreensão que os autores têm sobre a potencial contribuição da produção brasileira para eles. Ficamos com dúvidas, porém, sobre se este debate seja marginal nos países “centrais”, conforme nos parece que o texto afirma. Perguntamo-nos, por exemplo, se nas disputas em países com Sistema de Saúde Universal consolidados de uma medicina que privilegia a prática generalista, da Redução de Danos e da Reforma Psiquiátrica (Reino Unido, Suécia, Canadá e Cuba, entre outros) em torno da Atenção Primária à Saúde não teriam, como um dos focos principais, diferentes perspectivas dos atores em disputa no que se refere à conformação dos modelos de atenção à saúde e à definição do processo saúde-doença-intervenção. No texto, os autores investigam as transformações tecnológicas e dos processos de trabalho junto com as práticas de cuidado em saúde dialogando, no processo, com a instigante produção teórica de Clarke et al.8 e, em especial, com alguns dos eixos que estas últimas consideram centrais na caracterização do fenômeno, qual sejam: a) mudanças profundas nos saberes e práticas de cuidado – medicina inclusive – sob o influxo das inovações biotecnológicas; b) a transformação dos corpos humanos, objetivando acrescentar-lhes novas características e propriedades, tendo como objetivos a diminuição da susceptibilidade dos indivíduos aos agravos à saúde e a otimização da vida; c) reconstituição político-econômica do vasto setor da biomedicina; d) ênfase a estratégias de supressão do risco e ao aumento da vigilância; e e) transformações no modo com que os conhecimentos biomédicos vêm sendo produzidos, distribuídos e consumidos. Destacamos, no artigo, a apresentação de resultados de investigações sobre o sistema de saúde norte-americano que corroboram a constatação de que vivemos na atualidade cada vez mais sob a égide de importantes transformações do diagrama de governo11 que tem, entre suas características principais, a demanda e o estímulo a um tipo de cidadania na qual se exige de todos o exercício de autonomia sob a égide do mercado12. E, não menos importante, evidenciam a importância do setor saúde no processo de produção da subjetividade capitalística no momento em que, cada vez mais, observamos mecanismos que buscam induzir os pacientes a se transformarem em consumidores ativos e responsáveis dos serviços e produtos médicos, de farmacêuticas a tecnologias reprodutivas e testes genéticos7. Gostaríamos de assinalar, e talvez complementar no debate que nos é ofertado, a importância central no fenômeno da (bio)medicalização e crescente incorporação pela medicina – e pelos saberes e práticas de cuidado a saúde – dos avanços biotecnológicos que têm como foco de atuação não o corpo dos órgãos13, mas o “corpo orgânico molecular”. Essa biomedicina – diferente da que hegemoniza o campo do cuidado no Brasil – constitui um dos alicerces de uma nova política vital que se constitui enquanto um campo de disputa. Trata-se de uma política da vida, que é objeto de uma ampla biocapitalização e de implementação de novas formas de governo das condutas e, ao mesmo tempo, que é um território de oportunidades e possibilidades para muitos que buscam afirmar a vida como potência3,7. Essas mudanças são, em nosso entendimento, de grande relevância para o entendimento dos processos aqui discutidos e se encontram, conforme relatam Clarke et al.14, na adição do prefixo “bio” ao termo “medicalização”, que busca descrever esse novo fenômeno. Essas transformações, conforme discute o texto, influenciam e impactam a organização do processo de trabalho e o papel dos experts. No contexto da biomedicalização, os médicos já não hegemonizam como antes o processo do cuidado compartilhando o exercício do poder e do governo da conduta com outros “centros de poder” que se localizam em locais díspares, como o complexo médico-industrial, as farmacêuticas, o aparato biotecnológico e “centros” que exercem seu poder a partir de interesses e desejos de consumidores e/ou cidadãos1,2,7. Nesse processo, os médicos permanecem tendo um papel simbólico de autoridade e expertise, porém, seu lugar social vai sendo paulatinamente modificado, dividindo suas antigas atribuições com outras profissões da saúde e, mais do que isto, com experts como biólogos, químicos, matemáticos e engenheiros. Merece aqui especial menção profissionais “que, no interior dos laboratórios, investigam incessantemente o corpo humano” em suas dimensões genética, molecular e proteômica e “inventam” tecnologias que têm como objetivo intervir sobre os corpos e a vida humana como um todo7. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Sergio Resende Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS

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MEDICINA BIOTECNOLÓGICA E O FENÔMENO DA (BIO)MEDICALIZAÇÃO: ...

Consideramos, como os autores, que esse processo tem reforçado os mecanismos de controle do capital, mas que está, também, aberto a n pontos de contestação. Gostaríamos, neste contexto, de ouvir um pouco mais dos autores sobre outras potentes estratégias de resistência, de contracondutas e de produção de linhas de fuga – além das comentadas no texto – em relação ao fenômeno da biomedicalização que, conforme descrevem com propriedade, faz-se presente em distintos planos da vida sociopolítica e cultural. Finalizamos este diálogo ponderando que ainda restam dúvidas se, perante uma mudança tão ampla dos condicionantes do fenômeno da “biomedicalização” vis-à-vis ao da “medicalização”, seria correto afirmar que a anterior representaria uma radicalização do fenômeno da medicalização. Não se tratariam, neste caso, de fenômenos de natureza distinta nos quais, mais do que como continuidade, estaríamos observando possibilidade de rupturas paradigmáticas? Agradecemos, de antemão, a oportunidade do debate!

Colaboradores Sergio Resende Carvalho foi responsável pelo eixo argumentativo do texto participando das distintas etapas de elaboração do mesmo. Cathana Freitas de Oliveira e Henrique Sater Andrade contribuíram discutindo argumentos, propondo aprimoramentos e participando da elaboração e redação final do texto em questão. Referências 1. Iriart C, Merhy EE. Disputas inter-capitalistas, biomedicalización y modelo médico hegemónico. Interface (Botucatu). 2017. In press. http://dx.doi.org/10.1590/180757622016.0808. 2. Conrad P. The shifting engines of medicalization. J Health Soc Behav. 2005; 46(1):3-14. 3. Carvalho SR, Rodrigues CO, Costa FD, Andrade HS, Carvalho SR, Rodrigues CO, et al. Medicalização: uma crítica (im)pertinente? Introdução. Physis. 2015; 25(4):1251-69. 4. Zorzanelli RT, Ortega F, Bezerra Júnior B, Zorzanelli RT, Ortega F, Bezerra Júnior B. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Cienc Saude Colet. 2014; 19(6):1859-68. 5. Parens E. On good and bad forms of medicalization. Bioethics. 2013; 27(1):28-35. 6. Camargo Jr KR. Medicalization, pharmaceuticalization, and health imperialism. Cad Saude Publica. 2013; 29(5):844-6. 7. Rose N. The politics of life itself: biomedicine, power, and subjectivity in the Twenty-First Century. Oxford: Princeton University Press; 2007. 8. Clarke AE, Shim JK, Mamo L, Fosket JR, Jennifer R, Clarke AE. Biomedicalization: technoscientific transformation of health, illness and U.S. Biomedicine. 2003; 68(2):161-94. 9. Merhy EE. Enfrentar a lógica do processo de trabalho em saúde: um ensaio sobre a micropolítica do trabalho vivo em ato, no cuidado. In: Carvalho SR, Ferigato SH, Barros MEB, editores. Conexões: saúde coletiva e políticas de subjetividade. São Paulo: Hucitec; 2009. p. 276-300. 1022

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10. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. 11. Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martin Fontes; 2008. 12. Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martin Fontes; 2008. 13. Merhy E. A clínica do corpo sem órgãos, entre laços e perspicácias. Em foco a disciplinarização e a sociedade de controle. Lugar Comum. 2009; (27):281-306.

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Sergio Resende Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS

14. Clarke A, Mamo L, Fishman J, Shim JFJ. A theoretical and substantive introduction. In: Clarke A, Mamo L, Fosket J, Fishman J SJ, editors. Biomedicalization technoscience, health and illnesses in the US. Durhan: Duke University Press; 2010. p. 1-44.

Submetido em 15/05/17. Aprovado em 30/05/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0323

Trabalho em saúde, corpo e subjetivação capitalística Work on health, body and capitalist subjectivation Trabajo en salud, cuerpo y subjetivación capitalística

Alcindo Antônio Ferla(a)

A primeira manifestação sobre o artigo de Célia Iriart e Emerson Merhy é comemorar a contribuição ao campo da Saúde Coletiva nos últimos vinte anos da vertente que nos habituamos a denominar de “micropolítica do trabalho em saúde”1, envolvendo estudos que tornam visíveis arranjos tecnológicos e forças em sistemas e serviços de saúde que não são captáveis por leituras disciplinares e pelas perspectivas mais clássicas. Os estudos de Iriart sobre reformas do setor de saúde e as estratégias de regulação da assistência, controle de custos e qualidade dos sistemas de cuidado2 em diversos países contribuíram com a constituição do campo da Saúde Coletiva1,2. Merhy é líder e artífice da produção sobre micropolítica do trabalho e, desde a década de 1980, produz análises que permitem identificar, ao mesmo tempo, questões estruturais e a dimensão relacional do trabalho no cotidiano, em análises mais complexas do que modelos assistenciais caracterizados centralmente pelo efeito de políticas e interesses corporativos1,3. Parte das produções de ambos foi feita em parceria, gerando conceitos que estão sendo reinterpretados no artigo. As “modelagens tecnoassistenciais” que se tornam visíveis a partir da vertente “micropolítica” são a materialização da vitalidade do campo da Saúde Coletiva, quando compreendido a partir de tensionamentos interdisciplinares e na relação com o cotidiano dos sistemas, como descreve Madel Luz4. A análise das estratégias de regulação/indução do consumo por parte do complexo médico-industrial, incidindo sobre o usuário para modular demandas aos sistemas de saúde, é contribuição importante da produção teórica dos autores. Apenas com a tradição de análises centradas no estudo da organização e do funcionamento geral dos sistemas de saúde percebem-se insuficiências para compreender a complexa trama de forças que atuam nesse cenário e para propor mecanismos de regulação pública capazes de incidir na produção social da demanda. A dificuldade de superar a visão dicotômica de lógicas diversas entre o público e o privado produz discursos centrados na denúncia e proposições frágeis para regular relações de consumo e de produção, inclusive dos imaginários dos diferentes atores. Essa crise de pensamento gera desencontros visíveis entre expectativas de cuidado e o cuidado efetivamente prestado, com um “triunfo” 1024

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(a) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua São Manoel, 963, Bairro Rio Branco. Porto Alegre, RS, Brasil. 90620-110. ferlaalcindo@gmail.com


da lógica capitalística, seja pelo predomínio de modelos embasados em tecnologias duras e leve/duras, seja pela vigência da lógica do problema-solução, empobrecendo a clínica no cotidiano. A ideia da “clínica de um corpo sem órgãos” é relevante para pensar o cuidado e, sem dúvida, também para analisar a produção de imaginários e mecanismos de microrregulação do consumo de bens e serviços. É interessante a construção analítica apresentada no artigo, que toma a produção de subjetividades para o consumo a partir da transformação do usuário em consumidor, como na biomedicalização da vida. Em trabalho com as ofertas assistenciais de planos e seguros privados de saúde, identificamos um mix de arranjos em que as estratégias de regulação utilizadas pelas empresas recaiam sobre os usuários, seja limitando o acesso à maior densidade tecnológica pela captura da autonomia profissional ou até fornecendo um “esclarecimento” sobre direitos em relação ao Sistema Único de Saúde5, induzindo ações de judicialização. No artigo em debate, os autores desvelam uma estratégia importante de articulação entre a clínica “das doenças” e a biomedicalização da prevenção e promoção à saúde, com estratégias de subjetivação que instituem um mandato moral de “vida saudável” aos usuários, ao tempo em que os constituem como vigilantes também das ofertas assistenciais que “devem” consumir. Em pesquisa sobre retórica utilizada na divulgação científica em capas de revistas impressas e comercializadas em bancas de jornais6, coordenada por Madel Luz, chamou-nos atenção a visibilidade sobre as práticas integrativas e complementares e sobre hábitos saudáveis de vida. Tal processo é similar ao observado pelos autores nas estratégias do capital financeiro e, da mesma forma, parece inicialmente um movimento centrado no “esclarecimento” sobre os diferentes riscos à saúde a que estão submetidas pessoas e coletividades. Como na análise dos autores, identificamos uma transposição da imagem do corpo configurado anatomicamente como um conjunto equilibrado de órgãos e submetido às diferentes especialidades para uma produção mais próxima da vigilância e do controle de pessoas e grupos, com a produção de uma “cultura utópica de saúde” que se expressava em “práticas saudáveis, incluindo um higienismo preventivo presente nos discursos das Biociências, combinado a um projeto de promoção da saúde apoiado em práticas biocientificamente embasadas”6 (p. 345). Entretanto, diferentemente das estratégias do capital financeiro analisadas pelos autores, na produção científica divulgada pelas revistas parece haver, logo em seguida, a reprodução do corpo/ organismo, revelando uma “superfície interna”7 que, embora atravessada por relações sociais e pelos modos do andar a vida, precisa materializar-se em imagens físicas para a indução de um processo de subjetivação do leitor pelo “esclarecimento”. É o caso de cérebros “turbinados” com raios e força elétrica, imagens de órgãos e tecidos tratados graficamente de tal forma a retirar o sangue e os fluidos e animados por movimentos virtuais quadridimensionais, entre outros, buscando o convencimento sobre valores da saúde e da doença. Reforço aqui “dobra” sutil da análise sobre a retórica das capas de revistas: há uma tensão entre um “corpo” despido “de seus aspectos corpóreos, tais como: sangue, tecidos, sistemas, fluidos e volume”6 (p. 345), similar às estratégias analisadas pelos autores, e um corpo/organismo reconstruído com uma aparência estética mais sedutora e uma dinâmica vital mais “didática”, próxima àquela gerada pelas tecnologias de apoio diagnóstico de ponta, com a produção de “órgãos transcorporais”. Como dissemos naquela ocasião, o discurso imagético que é fartamente utilizado na divulgação científica parece induzir um imaginário que supera simbolicamente a natureza biológica do corpo humano tal qual é representado desde o fim do século XVI, na nascente da ciência moderna e da biomedicina. O “corpo de órgãos transcorporais” da retórica das revistas de divulgação científica não está dotado de “devir” ou singularidades, mas de uma nova objetividade revelada pelas imagens tratadas tecnologicamente, objetividade necessária para embasar a constituição de consumidores de recursos tecnológicos e terapêuticos sempre renovados, mas “bem prescritos”, ou seja, em acordo com as “melhores evidências científicas”. Longe de acreditar que a ciência vigente se descola completamente dos interesses do complexo médico-industrial e do processo capitalístico de subjetivação, parece adequado perceber um pequeno espaço de defasagem entre as duas estratégias, facilmente associáveis a interesses e relações de poder ou, como acenam os autores, de “disputas intercapitalistas”. O “regime de produção de verdades” que está diretamente associado aos interesses do complexo médico-industrial e, em COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ferla A

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TRABALHO EM SAÚDE, CORPO E SUBJETIVAÇÃO CAPITALÍSTICA

particular, à indústria de medicamentos, parece voltado ao forjamento de subjetividades para o consumo de equipamentos e insumos, apostando em regular o trabalho dos profissionais. Por outro lado, para o capital financeiro que ingressa fortemente na área da Saúde a partir dos anos 1980, a racionalização de custos é relevante, apostando em um certo grau de autonomia e responsabilização dos consumidores. A produção científica embasa um padrão de subjetividade que, embora inclua o imaginário de um corpo distinto da sua representação biológica clássica, constitui uma compreensão dependente do “domínio científico” e, portanto, tem maior necessidade de reconstituí-lo novamente pela sua dimensão objetiva, devolvendo aos profissionais uma “autonomia” subordinada à ciência7, como saber estruturado. Essa reflexão se articula com o artigo em debate também pela aposta no trabalho vivo em ato no cotidiano e por uma produção pedagógica intensa3 no trabalho de cuidado, de gestão, de formação e de participação que permitam avançar na qualidade da atenção oferecida às pessoas e coletividades e na afirmação da saúde como direito das pessoas. Esse movimento somente se realiza com alianças e laços vigorosos entre trabalhadores e usuários, com o fortalecimento de relações democráticas no trabalho e na sociedade e com uma formação ética dos profissionais, tornando-os capazes de usar sua autonomia para ativar a potência e o devir do corpo de cada pessoa e avançar na produção de integralidade.

Referências 1. Merhy EE. Saúde: cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. 2. Iriart C. El sistema de salud de los Estados Unidos: mitos y realidades (Parte I). Saúde em Redes [Internet]. 2016; 2(1):7-21 [citado 28 Maio 2017]. Disponível em: http://revista. redeunida.org.br/ojs/index.php/rede-unida/article/view/665/pdf_26. 3. Ceccim RB, Merhy EE. Um agir micropolítico e pedagógico intenso: a humanização entre laços e perspectivas. Interface (Botucatu). 2009; 13 Supl 1:531-42. 4. Luz MT. Complexidade do campo da Saúde Coletiva: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade de saberes e práticas – análise sócio-histórica de uma trajetória paradigmática. Saúde Soc [Internet]. 2009; 18(2):304-11 [citado 28 Maio 2017]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18n2/13.pdf. 5. Ferla AA, Trepte RF, Possa LB, Schweicardt JC, Lima RTS, Plentz LM. A interface entre os sistemas privado e público de saúde na política de saúde mental: a construção de linhas de cuidado. In: Lozer AC, Godoy CVC, Coelho KSC, Leles FAG, organizadores. Conhecimento técnico-científico para qualificação da Saúde Suplementar. Brasília: OPAS; 2016. p. 85-98. 6. Luz MT, Ferla AA, Machado AS, Dall Alba R. Retórica na divulgação científica do imaginário de vida e saúde: uma proposta metodológica de análise. Interface (Botucatu). 2017; 21(61):333-47 [citado 28 Maio 2017]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ icse/v21n61/1807-5762-icse-1807-576220150797.pdf. 7. Ferla AA. Clínica em movimento: cartografias do cuidado. Caxias do Sul: EDUCS; 2007.

Submetido em 26/06/17. Aprovado em 26/06/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0443

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Respuesta Reply Réplica

Celia Iriart(a) Emerson Elias Merhy(b)

Agradecemos a los colegas que respondieron a la invitación de Interface para comentar nuestro artículo. Sus comentarios tan positivos sobre la utilidad de los análisis nos conmovieron y energizaron para seguir desarrollando este tipo de investigaciones que combinan metodologías científicas rigurosas con activismo social y político, a las cuales denominamos investigaciones militantes. Este tipo de investigaciones se proponen llegar a aquellos que trabajan en el campo de salud, no sólo en la academia, sino en los servicios de salud y junto a los movimientos sociales. Estos últimos son los espacios con mayor potencia, a nuestro entender, para producir acontecimientos que abren líneas de fuga y de creación de VIDA que merece ser vivida así, con mayúsculas. En el artículo comentado nos centramos en utilizar conceptos que ayudan a analizar las disputas y nuevas reacomodaciones de la máquina de guerra capitalística, y en mostrar el entramado de nuevos actores/socios que, no sin disputas, apuestan a producir nuevas subjetividades y formas de govermentalidad en el espacio sanitario, centrados en la ganancia y en obtener más espacios para la reproducción capitalista, cada vez más concentrada. Creemos que es importante reconocerlos y entenderlos, no para paralizarnos, sino para ayudarnos a construir espacios de resistencia que confrontan con los proyectos neoliberales y emergen de su interior para crear líneas de fuga. Los conceptos y metodologías que propusimos para nuestros análisis también pueden ser aplicados para descubrir acontecimientos con potencia de transformar esta realidad opresiva. En nuestra respuesta, queremos enfatizar sobre la importancia vital de los procesos de creación de nuevas subjetividades, tanto para producir cambios hacia formas más igualitarias de vida, como para generar su opuesto. En los noventas analizamos la entrada del capital financiero en el sector salud en Latinoamérica, incluyendo los fondos de riesgo y de pensión/jubilación que, partiendo en muchos casos desde los Estados Unidos, han estado operado en el mundo entero. Mostramos, analizando el caso de Argentina y usando el concepto de reformas silenciosas, cómo las reformas privatistas empezaban transformando la subjetividad colectiva usando mecanismos comunicacionales COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Emerita Associate Professor, College of Population Health, University of New Mexico. Argentina. iriart@unm.edu (b) Faculdade de Medicina, Campus de Cavaleiros Macaé, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Macaé, RJ, Brasil. emerhy@gmail.com

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RESPUESTA

que apuntaban a cambiar el sentido común en torno al proceso salud-padecimiento-atención1,2. Los mecanismos usados fueron muy efectivos, la privatización y las políticas neoliberales avanzaron con gran poder destructivo en varios países latinoamericanos. La excepción fue Brasil que, en ese período, desarrolló políticas redistributivas y aumentó el acceso a los servicios de salud para numerosos grupos que lo tenían negado. A comienzos del nuevo siglo, hubo un freno parcial a las políticas neoliberales en Latinoamérica, debido a las profundas crisis económicas que tornaron ingobernable la situación y dieron lugar a nuevas gestiones gubernamentales que, por un tiempo, fueron capaces de generar políticas más inclusivas. Sin embargo, los grupos que promueven las políticas neoliberales estaban al acecho para dar el golpe y así recapturar los dispositivos que facilitan la recreación de subjetividades capitalísticas y el retroceso en derechos sociales, laborales, políticos y económicos que nos retrotraen a comienzos del siglo XX. Estos grupos provocaron un golpe institucional en Brasil y manipularon campañas electorales o crearon profundas desestabilizaciones en otros países. En esta etapa, estas fuerzas reaccionarias están reinstalando las políticas neoliberales con una ferocidad y velocidad que nos deja cuasi paralizados y muchas veces sólo denunciado o apostando a la fantasiosa idea de que en las próximas elecciones la gente se dará cuenta y votará por el “bien”. Estas situaciones se están dando no sólo en Latinoamérica, sino también en países con gobernanza democrática más consolidada como los Estados Unidos, y también en países con estados de bienestar más afianzados como Reino Unido, Canadá y Suecia, para mencionar los países que los colegas señalan que podrían estar conteniendo los embates del modelo neoliberal en el espacio sanitario. La democracia liberal está herida de muerte y el estado policial/militar/judicial avanza de la mano de gobiernos elegidos vía procesos electorales cada vez más manipuladas por “expertos informáticos” que crean la fantasía de opiniones compartidas por millones, o por aquellos que se hacen del poder a través de juicios políticos espurios que destituyen, bajo reglas “democráticas,” a aquellos que proponen una distribución de la riqueza más igualitaria. El poder judicial, al servicio de estos procesos, encarcela a potenciales oponentes bajo causas armadas de corrupción, para interpelar la moralidad de la “gente de bien”, mientras protegen a sus “patrones” de las denuncias legales por lavado de dinero, negociados espurios, asociaciones ilícitas, etc. Los medios de comunicación cómplices, completan la tarea ayudando a recrear subjetividades afines a los intereses de los grupos dominantes. Esta es la situación que estamos enfrentando actualmente y que avanzó con una dramática aceleración en los pocos meses desde que terminamos el artículo. Pensamos que hay que incluir estos procesos en futuros análisis, porque están impactando en el sector salud y en la salud de la gente. Nuestros colegas apropiadamente llaman la atención acerca de la necesidad de avanzar los análisis de las líneas de fuga. Muchos grupos y movimientos sociales los conocemos y somos partícipes de sus luchas y creaciones, pero hay muchos más por conocer. Uno de nosotros (Merhy), con muchos otros colegas, se embarcaron en esta tarea de mapear en Brasil grupos con potencial de crear acontecimientos que perforan el instituido e inventan nuevas posibilidades de futuro. Estas experiencias las publicaron recientemente en portugués3, pero hay mucho más por conocer, no sólo en Brasil sino en otros países. Por esta razón, al desafío propuesto por los colegas participantes del debate, respondemos invitándolos a ellos y a otros a tomar parte en el proceso de reconocer y difundir este tipo de experiencias. Pensamos que esto debe ser un proceso colectivo de investigadores-militantes en muchos países. Adele Clarke nos pone en contacto en su comentario y a través de sus libros con autores de habla inglesa, los colegas brasileros con sus propias investigaciones y otras que circulan en sus espacios. Hay numerosos grupos y movimientos sociales que son contestatarios a estos procesos de biomedicalización y existen revistas académicas (y destacamos Interface en este esfuerzo que acerca lectores/autores de habla portuguesa, española e inglesa) y algunos medios masivos y redes sociales que publican sus análisis y/o dan cuenta de sus prácticas. Mapearlos, estudiarlos y comprender su potencia es una tarea muy importante y es fundamental que se haga en distintos países. Los resultados que se obtengan sería interesante publicarlos en diversas lenguas y vía múltiples medios de diseminación, con la idea de crear conexiones e intercambios, y aumentar la potencia. Pensamos que esto facilita escapar de la denuncia paralizante y enfocarnos en una búsqueda que pone en evidencia lo nuevo, los movimientos alternativos y sus formas de crear VIDA.

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Iriart C, Merhy EE

Referencias 1. Iriart C, Waitzkin H. Argentina: no lesson learned. Int J Health Serv. 2006; 36(1):17796. 2. Iriart C, Merhy EE, Waitzkin H. Managed care in Latin America: the new common sense in health policy reform. Soc Sci Med. 2001; 52(8):1243-53. 3. Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H. Políticas e Cuidados em Saúde: livro 1 - Avaliação compartilhada do cuidado em saúde. Surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016.

Recibido en 09/08/17. Aprobado en 09/08/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0443

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Reply

Celia Iriart(a) Emerson Elias Merhy(b)

We are thankful to the colleagues who responded to the invitation from Interface to comment on our article. Their very positive comments regarding the utility of the analyses touched and energized us, and also energized us to continue developing these types of studies that combine rigorous scientific approaches with social and political activism, which we call militant research. The purpose of such studies is to reach out to those who work in the health field, not only in academia, but also in healthcare services and in social movements. From our perspective, social movements are the spaces that have more power to produce events that open up lines of flight and creation of LIFE that deserves to be lived in capital letters. In the article commented on, the focus of the analyses was applying concepts that are useful for studying disputes and new realignments of capitalistic war machines, and for showing the complex web of of social actors/partners who, although facing challenges, are betting on their ability to produce new subjectivities and governmentality in the space of health care. These subjectivities and governmentality are focused on making profit and creating additional spaces for capitalistic reproduction, which is increasingly concentrated. We think that it is very important to recognize and understand these processes, not to be paralyzed, but to help us to create spaces of resistance, which confront the lines of flight with neoliberal projects and emerge from them to create vanishing lines. The concepts and methodologies that we proposed in our analyses can be applied to discover powerful events that have the ability to transform this oppressive reality. In this response, we want to emphasize the vital importance of creating new subjectivities in producing changes toward both, more egalitarian forms of living, or their opposite. In the nineties, we analyzed the entrance of financial capital groups in the health sector in Latin America, including venture and pension/ retirement funds, which in most cases originated in the United States, but have operated worldwide. By analyzing the Argentinean case and using the concept of silent reforms, we showed how the privatization of healthcare services started transforming the collective subjectivity using communicational mechanisms to change the common sense regarding health/illness/care processes1,2. The COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Emerita Associate Professor, College of Population Health, University of New Mexico. Argentina. iriart@unm.edu (b) Faculdade de Medicina, Campus de Cavaleiros Macaé, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Macaé, RJ, Brasil. emerhy@gmail.com

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REPLY

ideological mechanisms utilized were very effective, privatization and neoliberal policies advanced with a huge destructive power in several Latin American countries. The exception was Brazil, which in this period developed redistributive policies and increased access to health care for those previously deprived of it. At the beginning of the new century, neoliberal policies were partially halted in some countries in Latin America. This was caused by deep economic crises that made the situation ungovernable and opened the field up to new governmental administrations, which for a while were able to partially develop more inclusive policies. However, the groups that promote neoliberal policies have been waiting to attack by using different means to recapture the control of social and economic mechanisms in order to facilitate the recreation of capitalistic subjectivities and turn back social, labor, political and economic rights to the situation that existed at the beginning of the 20th century. These groups provoked an institutional coup d’état in Brazil and manipulated electoral campaigns and created deep governmental destabilization in other countries. Currently, these reactionary forces are reinstalling neoliberal policies with a ferocity and speed that leave us almost paralysed and most of the times, we are only denouncing the situations or betting on the fantasy that in the next elections people will realize their mistake and vote for the “good.” These situations are taking place not only in Latin America, but in countries with more consolidated democratic governance, such as the US, but also in those countries with more solid welfare states, such as UK, Canada and Sweden. The last are the countries mentioned by our colleagues in their responses to our article, suggesting that they could be supporting the offensive of the neoliberal model in the health care sector. The liberal democracy is fatally wounded and the police/military/judicial state has expanded by governments selected through electoral processes, which are increasingly manipulated by “expert in informatics,” who create the fantasy of shared opinions by millions of people, or by those who took over the governments through spurious political impeachments that removed, under “democratic” rules, governments that propose a more egalitarian wealth distribution. In the service of these processes, the judicial branch imprisons potential opponents using false accusation of corruption in order to interpelatte the morality of “good people,” while protecting their “bosses” against legal denunciation for money laundering, spurious businesses, illegal associations, etc. Their media accomplices complete the task by helping to create subjectivities that serve the interests of dominant groups. This is the situation that we are currently confronting, which has advanced with dramatic speed in the few months since we finished the article under debate. We think that these processes need to be included in future analyses, because they are impacting the health sector and the health of the people. Our colleagues appropriately drew attention to the need to move further in the analyses of lines of flight. We know and participate in several groups and social movements as part of their struggles and creations, but there are so many more to learn about. With several colleagues, Merhy has initiated the process of mapping these groups in Brazil, which have the potential events that are able to perforate the “instituted” and create new possibilities for the future. These experiences were recently published in Portuguese3, but there is much more to know, not only in Brazil but also in other countries. For this reason, in response to the challenge proposed by colleagues who participated in the debate, we invite them and others to take part in the process of recognizing and spreading the word about these types of experiences. We think that this needs to be a collective process developed by researchers who are politically and socially engaged, working in many countries as possible. Adele Clarke, in her comment and in the books that she edited, put us in contact with English-speaking authors, Brazilian colleagues with their own studies, and others studies who circulate in their spaces. There are many groups that question the biomedicalization process. There are also academic journals (we highlight Interface in the present effort to bring Portuguese, Spanish and English-speaking readers and authors closer) and some mass and social media that disseminate information about their analyses and practices. Mapping, studying and understanding their power is a very important task and it is fundamental to developing these analyses in different countries. It could be interesting that the results of these studies could be published in several languages and through multiple means of dissemination, with the idea of creating connections and exchanges, and increasing the power of these experiences. We think that this will help avoid being paralyzed by denunciation and keep the focus on searching for and putting out evidence about the alternative movements and their ways to create LIFE. 6

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debates

Iriart C, Merhy EE

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Received in 09/08/17. Approved in 09/08/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0790

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Considerations for the design of Human Immunodeficiency Virus (HIV) prevention programs for lesbian and bisexual women Diana M. Palma(a) Linda Teresa Orcasita(b)

Introduction In the last decade, the increased percentage of women affected by HIV has encouraged the implementation of several intervention strategies in order to reduce these rates and address its effects. According to the Joint United Nation Program on HIV/AIDS1,2, 50% of the people living with HIV are women. Although nearly seven thousand cases of HIV positive lesbian and bisexual women (LB) are estimated in the United States3, the global numbers remain invisible in global reports, even when HIV transmission between them has been scientifically proven4,5. This is a great weakness in the characterization of the epidemic among this group, particularly in places with a high burden of HIV cases, such as Africa, where it has been demonstrated that women from sexual minorities face particular social and structural susceptibilities related to sexual stigma and violence, which significantly exposes them to HIV6. Despite the fact that some women voluntarily report their sexual orientation when the HIV diagnosis occurs, many others prefer to remain silent while this unknown figure keeps quietly increasing. Thus, there is an important task of developing intervention guidelines for this population to prevent the growth in figures of women affected by HIV, not only to fulfill a gap in the attention of their particular needs, but also to extinguish the traditional resistance to include them in several programs and policies that have invalidated their existence7,8. This invisibility is the consequence of their traditional absence and exclusion in HIV prevention due to the ignorance of their vulnerability; gender bias regarding normative conceptions towards women that underrepresent LB women at communities and institutional levels; and a heteronormative approach that has delimitated the design of programs by assuming heterosexual identities as a natural norm for women9,10. As suggested by Richardson11, the non-risk perception of LB women has been built and perpetuated among several social agents over the past couple of decades. As stated by this author, the HIV risk perception toward this community has sociohistorical roots and this fact have reduced the endeavors and resources granted to this population11. In comparison with men, who have been the target of several prevention programs designed according to their sexual orientation and practices7, the COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a,b) Department of social Sciences, Faculty of humanities and social sciences, Pontificia Universidad JaverianaCali. Calle 18 No 118250. Santiago de Cali, Colombia.dmpalma@ javerianacali.edu. co; ltorcasita@ javerianacali.edu.co

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inclusion criteria in HIV prevention programs for women are neutral to their sexual orientations, barely considering lesbian and bisexual practices in their prevention strategies. In HIV prevention programs for women, multiple social and gender factors that shape their vulnerability have been addressed beyond their sexual practices, including biological, epidemiological, social and cultural components12. Aspects such as poverty, inequity, lack of education and gender violence have been related to HIV exposure in women around the world13. Therefore, recognizing the fact that gender entails a large spectrum of experiences that include sexual orientation and identity, we face the challenge of including LB women on prevention programs and addressing their particular health care needs due to the intersectionality that occurs among gender, sexual orientation, ethnicity and other social characteristics10. Human rights are universal and protect dignity and freedom, including the right to health. This is not referring exclusively to a proper health care; it also includes receiving accurate information, participating in health care programs, being treated equally and without discrimination. As suggested by Fish and Bewley, the silence and invisibility that has surrounded LB women in the HIV epidemic is a violation of their human rights14. In fact, HIV prevention programs designed for this population are almost nonexistent, but few efforts have been reported in high-income countries7,15,16. Although those programs have different perspectives regarding the proper strategies for approaching sexual orientation and sexual practices, they all agree that identity must be a fundamental component of HIV prevention for this population. In those programs, the sexual transmission pathway is prioritized while other ways of transmission, such as drug abuse are not addressed. This is still a challenge for prevention programs oriented towards LB women8.

Key topics in HIV prevention for LB women Throughout the HIV/AIDS epidemic, sexual practices and health behaviors have been widely addressed by prevention programs. However, specific topics have been approached depending on the characteristics, experiences, and needs of every population. Due to the low number of interventions reported within this group, it is important to discuss key aspects to have in mind while designing an HIV prevention program for LB women. They must address the ways in which particular individual, social and structural factors configure their particular HIV vulnerability10. Among the ‘individual factors’, the basic topics in prevention programs are HIV knowledge and safer sex strategies. Particularly in this population a low level of knowledge about HV and STDs have been reported, both in low and high-income countries, showing that the discourses of public preventive messages might not adequate enough to reach this population17-19. Likewise, the performance of safer sex strategies, such as condoms or latex barriers, has been found to be hindered by their low-risk perception and knowledge about how to use them20,21. Therefore, programs oriented to this population should emphasize these components because sexual education for LB women is significantly lower in comparison with heterosexual women22. This situation may affect the quality of health care and social support, because the information provided by different agents such as family, teachers, peers, health professionals and media, is generally detached from their needs, concerns, sexual practices, and experiences14,23. Beyond providing information about HIV, programs must use strategies to address ethnical, cultural and gender factors of female sexual health. This includes overcoming barriers to talk about sexuality; broadening the definition of sexuality and detaching it from their reproductive function exclusively; preventing gender violence and discrimination; creating communication and negotiation skills and recognizing and engaging in social support networks13,24 25. Other individual risk factors that have been reported for women’s sexual health that must be addressed in prevention programs, such as the increased use of alcohol and drugs in comparison with their heterosexual peers26,27; and an increased risk of suicidal thoughts and attempts28. Likewise, a higher HIV prevalence has been found in high-income countries when comparing LB Intravenous Drug 1032

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Users with heterosexual women27, proving that not only sexual transmission needs to be considered in intervention strategies designed for them. In previous research with women, participants have reported that the programs succeeded due to the inclusion of topics that impacted their mental health, such as their affection and emotions, in addition to their sexual practices and knowledge24. At a ‘social level’, sexual identity development and its disclosure is an important task for LGBT people and this process exposes them to several stressors such as: seeking individual and social acceptance of their sexual identity; disclosing their sexual orientation to family, friends, work/ study partners; and facing possible reactions of different socialization agents. In this situation, the dampening effect of social support networks is essential29. However, the relationship between low social support, perceived family distance, and risky sexual practices has been widely reported in the population30. Therefore, addressing feelings and experiences linked to sexual orientation disclosure and family reaction could be necessary for programs oriented to LB women, because these variables are linked to their sexual practices and to the image they have built about themselves. Authors working with similar populations such as MSM and transgender women, who also go through this process of acceptance, have indicated the relevance of considering the developmental needs and interests according to the age of the participants, as well as providing skills to cope with different reactions and empower them to make healthier choices24,25. These could be achieved by using strategies and activities adjusted to cultural, ethnic and gender aspects of the target population. It is suggested to provide spaces in which LB women can express their concerns and experiences about their sexual practices and their identity as women. It would also be pertinent to approach issues related to family and partners and their perspectives on future and maternity because these topics are not commonly discussed in any other social spheres. Discrimination and violence against the identity of vulnerable populations (MSM and transgender people) have been widely included in HIV prevention31. In these interventions, participants appreciated when they are taught how to access existing resources and social networks, as well as discussing the social expectations about love and intimacy32. It has also been reported that successful programs are those that have an integral approach to health, because they address specific health needs, social inequalities and discrimination33. Considering that these appreciations converge with studies that have demonstrated the need to strengthen social support networks in LB women22, these components must be included in programs. Another component that should be addressed in this population is intimate partner violence (IPV). This concept refers to an abuse within an intimate relationship that can be psychical, sexual or psychological34. Studies from high-income countries, such as the United States, have found an alarming rate of IPV in the LGBT population35,36. A longitudinal study in LGBT people reported a 45% incidence of IVP. Especially, they found that the odds of suffering IVP if they were lesbian or bisexual females were 76% more than in gay men. Another study also found a higher rate of physical and sexual IPV in LB when compared to gay men37. Authors such as Miller et al.35 have suggested that the obstacles that have hindered the recognition of IPV in LB women are ingrained in gender norms because programs and policies have been created by focusing on heterosexual women and they have neglected the people outside that category. Thus, poor law enforcement towards same-sex IVP; poor social support; stigma within the judicial system and health care centers; and social and individual perceptions of less severity towards same-sex IVP, have contributed to the low attention and underreporting of this issue34. It is important to mention that, although the association between IVP and HIV exposure has been described in heterosexual women and gay men, because it reduces condom negotiation34,38, the link is still understudied in LB women, but it is important to address it in prevention programs due to the mentioned rates. Additionally, greater efforts to characterize IVP in LB women should be made, especially in low-middle income countries, to be able to strengthen existing units for IVP attention from a sexual diversity approach. On the other hand, ‘structural drivers’ related to HIV vulnerability for LB women are lower rates of access to healthcare in high and low-income countries. Few studies conducted in the population have COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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revealed that LB women feel that health workers do not meet their needs; prefer to hide their sexual orientation in health services out of fear or services are often denied6,16,39. This situation may delay the detection of possible irregularities and treatment on time for this population. In order to ensure their human right to health, this structural level in health care systems must be addressed and physicians must be trained about LGBT healthcare needs. This goal implies providing skills for demanding accurate attention and revealing the sexual orientation in health care services, as well as integrating risk reduction with other specific needs of LGBT people, such as empowerment and social concerns, in individual prevention efforts. Including structural approaches in HIV prevention, addressing underlying risks such as stigma, health care access, discrimination, and violence, may lead to more successful strategies40. Recently, the link between human rights violations and HIV vulnerability was confirmed in a sample of LB women in Africa6. One relevant issue that maximizes the risk of HIV in LB women is the figures of sexual harassments reported by them. Studies have reported figures from 8% to 30% of sexual abuses related to sexual orientation in countries like the United States, Africa and Colombia6,26,41. Therefore, in order to safeguard the human rights of LGBT people, as it was established by the United Nations Human Rights Commission42, states have the legal obligation to plan and develop actions to mitigate this situation and protect them from sexual violence and discrimination. This situation shows how important is to include political aspects on HIV prevention for LB women. Previous studies focusing on this group have revealed this need. In the study conducted by McAlister and Neil22, participants reported the urgency of designing programs that merge the individual and political aspect. This means promoting empowering and self-discovering through the activities used. The pertinence of this political approach in HIV prevention programs for LB women was also stated by Morrow7, because improving political awareness could also enhance health access and demand of proper attention, participating in policy making, community building, and advocacy. The previous suggestions illustrate how specific characteristic in regard to gender, sexual orientation, age, ethnic and others configures the vulnerability of the population. This intersectionality, the way in which different identities and individual characteristics converge to shape particular experiences and vulnerabilities10, must be addressed in HIV prevention programs for LB women and must be adjusted to the culture in which they are implemented. Other general aspects that could be considered while designing an HIV prevention program targeting LB women are: (a) Creating a baseline about their knowledge, attitudes, and behaviors due to the scarcity of information about HIV and LB women; (b) including intervention topics based on a human rights and gender perspective; (c) approaching sexuality in all their functions (biological, erotic and communicative); (d) justifying its theoretical and methodological model in regard to previous successful experiences and backgrounds in the community; (e) allowing the discussion of their concerns in a safe place through the activities suggested. Implementing programs with small groups could be useful in this aim, because it allows a major exchange and debate among them; (f) training facilitators with an affirmative perspective that allows them to recognize and value the identity and needs of participants; (g) including community leaders in the design to ensure the pertinence and adjustment of the strategies used; (h) monitoring and assessing the activities and strategies used in the program to verify their effectiveness, improve them and adjust them according to their characteristics; (j) spreading the intervention experiences in education institutes, health centers and community-based organizations aiming to ensure that the endeavors to protect sexual health become visible to several agents and organizations. In conclusion, programs oriented to the LB community must address the way in which pleasureseeking, risk perception, identity exploration, lack of knowledge, sexual abuse and drug abuse; create a particular vulnerability that sets this population at risk for HIV and other STDs. They should avoid exclusive biomedical perspectives that ignore the existence of social and structural drivers that may increase this risk10,26. Furthermore, given the lack of research about this topic, more studies are needed in low, middle and high-income countries to characterize the mentioned variables in order to create effective and sensible intervention strategies.

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Collaborators DM Palma conducted the literate review and wrote the first draft of this paper; LT Orcasita gave feedback and supported the reflections on the contents included in the final version submitted for publication. References 1. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. 2012 World AIDS Day Report [Internet]. Geneva: UNAIDS; 2012 [cited 16 Aug 2015]. Available from: http://www.unaids.org/ en/media/unaids/contentassets/documents/epidemiology/2012/gr2012/JC2434_ WorldAIDSday_results_en.pdf. 2. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Global Report: UNAIDS report on the global AIDS epidemic 2013 [Internet]. Geneva: UNAIDS; 2013 [cited 20 Jul 2015]. Available from: http://www.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/ epidemiology/2013/gr2013/UNAIDS_Global_Report_2013_en.pdf. 3. Teti M, Bowleg L. Shattering the myth of invulnerability: exploring the prevention needs of sexual minority women living with HIV/AIDS. J Gay Lesbian Soc Serv. 2011; 23(1):69-88. doi: 10.1080/10538720.2010.538009. 4. Fethers K, Marks C, Mindel, Estcourt C. Sexually transmitted infections and risk behaviours in woman who have sex with woman. Sex Transm Infect. 2000; 76(5):345-9. 5. Kwakwa HA, Ghobrial MW. Female-to-female transmission of human immunodeficiency virus. Clin Infect Dis. 2003; 3(3):e40-1. 6. Poteat T, Logie C, Adams D, Mothopeng T, Lebona J, Letsie P, et al. Stigma, sexual health, and human rights among women who have sex with women in Lesotho. Reprod Health Matters. 2015; 23(46):107-16. doi: 10.1016/j.rhm.2015.11.020. 7. Morrow KM. Culture-specific HIV/STD prevention programming for lesbian and bisexual women [dissertation] Michigan: Western Michigan University; 1996. 8. Palma DM, Munévar J, Orcasita LT. Percepción de riesgo frente al VIH/Sida en mujeres homosexuales: retos y desafíos actuales desde la investigación. In: Soriano E, González A, Cala V, editors. Retos actuales de educación y salud. Almería: Editorial Universidad de Almería; 2014. v. 2. 9. Joint United Nations Programe on HIV/AIDS. Woman who have sex with woman, in all their diversity: putting their needs and right on the HIV agenda. Community innovation: achieving sexual and reproductive health and rights for women and girls through the HIV response [Internet]. Geneva: UNAIDS; 2011 [cited 13 Mar 2013]. Available from: http://www.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/ document/2011/07/20110719_Community%20innovation.pdf. 10. Logie C. (Where) do queer women belong? Theorizing intersectional and compulsory heterosexism in HIV research. Crit Public Health. 2015; 25(5):527-38. doi: 10.1080/09581596.2014.938612. 11. Richardson D. The social construction of immunity: HIV risk perception and prevention among lesbians and bisexual women. Cult Health Sex. 2000; 2(1):33-49. 12. Herrera C, Campero L. La vulnerabilidad e invisibilidad de las mujeres ante el VIH/SIDA: constantes y cambios en el tema. Salud Publica Méx. 2002; 44(6):554-64. 13. Dunbar M, Dufour M, Lambdin B, Mudekunye- Mahaka I, Nhamo D, Padian N. The SHAZ! Project: results from a pilot randomized trial of a structural intervention to prevent HIV among adolescent women in Zimbabwe. PLOS One. 2014; 9(11):e113621. doi:10.1371/journal.pone.0113621.

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CONSIDERATIONS FOR THE DESIGN OF HUMAN IMMUNODEFICIENCY VIRUS ...

Several strategies and guidelines for HIV prevention in different population groups have been established throughout the epidemic. However, there is an urgent need to include lesbian and bisexual women (LB women) in prevention programs and address their particular health care needs. This paper discusses key aspects that must be considered in the design of HIV prevention programs oriented toward this specific population. Due to the lack of research assessing prevention strategies for LB women, these reflections emerged by reviewing literature in similar groups and by the direct work of the authors within this group. Their inclusion in the HIV prevention agenda is essential to safeguard their right to health care in terms of receiving accurate information about sexuality and health, participating in health care programs and being treated equally and without any discrimination.

Keywords: HIV. Sex education. Prevention. Lesbian women. Considerações para a elaboração de programas de prevenção do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) para as mulheres lésbicas e bissexuais Várias estratégias e diretrizes para a prevenção da epidemia do HIV foram estabelecidas para diferentes populações. No entanto, há uma necessidade de incluir as mulheres lésbicas e bissexuais (mulheres LB) em programas de prevenção e resposta às suas necessidades de saúde particulares. Este artigo discute os principais aspectos que devem ser considerados na elaboração de programas de prevenção do VIH voltadas para essa população específica. Devido à falta de pesquisas avaliando estratégias de prevenção para as mulheres LB, essas reflexões emergiram através da revisão da literatura em grupos similares e pelo trabalho direto dos autores nesse grupo. A sua inclusão na agenda da prevenção do VIH é essencial para salvaguardar o seu direito a cuidados de saúde em termos de receber informações precisas sobre sexualidade e saúde, participe de programas de saúde e ser tratados com igualdade e sem discriminação.

Palavras-chave: VIH. Educação sexual. Prevenção. Mulheres lésbicas. Consideraciones para la elaboración de programas de prevención del Virus de la Inmunodeficiencia (VIH) para las mujeres lesbianas y bisexuales Se establecieron diversas estrategias y directrices para la prevención de la epidemia de VIH para diferentes poblaciones. Sin embargo, hay una necesidad de incluir a las mujeres lesbianas y bisexuales (mujeres LB) en programas de prevención y respuesta a sus necesidades particulares de salud. Este artículo discute los principales aspectos que deben considerarse en la elaboración de programas de prevención del VIH, enfocados para esa población específica. Debido a la falta de investigación que evalúe estrategias de prevención para las mujeres LB, esas reflexiones surgieron por medio de la revisión de la literatura en grupos similares y por el trabajo directo de los autores en ese grupo. Su inclusión en la agenda de la prevención del VIH es esencial para salvaguardar su derecho a cuidados de salud en lo que se refiere a recibir informaciones precisas sobre sexualidad y salud, participación en programas de salud y tratamiento con igualdad y sin discriminación.

Palabras clave: VIH. Educación sexual. Prevención. Homosexualidad femenina.

Submetido em 31/08/16. Aprovado em 03/03/17.

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Estratégias, expertise e experiências de ouvir vozes: entrevista com Cristina Contini Strategies, expertise and experience of hearing voices: interview with Cristina Contini

entrevistas

DOI: 10.1590/1807-57622017.0031

retirada do filme: “Il canto delle sirene”, de Donato Robustella

Estrategias, expertise y experiências de oír voces: entrevista con Cristina Contini

Luciane Prado Kantorski(a) Ana Paula Müller de Andrade(b) Mario Cardano(c)

O MOVIMENTO DOS OUVIDORES DE VOZES O movimento de ouvidores de vozes começou na Holanda no fim dos anos 1980, resultante do encontro do psiquiatra Marius Romme e sua paciente Patsy Hage, diagnosticada como esquizofrênica, com risco de suicídio, em uso de antipsicóticos e ouvidora de vozes. Patsy estava em busca de formas de conviver com as vozes quando encontrou o livro em que Julian Jaynes1 argumenta que até 400 a.C. a mente era concebida como sendo dividida em duas partes (os dois hemisférios cerebrais) que se comunicavam, uma parte de Deus (onde estavam as vozes) e outra humana. Somente a partir desta época que tais vozes começaram a ser consideradas anormais, saindo da ordem do divino. Essa leitura foi muito importante para Patsy passar a conviver com as vozes. O psiquiatra Marius Romme sugeriu a ela que buscasse outras pessoas que ouvissem vozes para compartilhar sua experiência. Então eles participaram de um programa popular da televisão holandesa e convidaram pessoas que ouviam vozes a entrar em contato com a emissora. Cerca de setecentas pessoas fizeram contato e, destas, aproximadamente 150 relataram que haviam encontrado formas de controlar as vozes. Assim, em Utrecht (Holanda), eles organizaram um workshop e, em seguida, grupos de mútua ajuda2-5. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rua Gomes Carneiro, 1, Centro. Pelotas, RS, Brasil. 96010610. kantorski@uol.com.br (b) UFPEL. Pelotas, RS, Brasil. psicopaulla@ yahoo.com.br (c) Dipartimento di Culture, Politica e Societá, Universita degli Studi di Torino. Torino, Piemonte, Italia. mario.cardano@unito.it

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Em 1987, nasceu o Movimento dos ouvidores de vozes – The Hearing Voices Movement –, fundado por Marius Romme e Sandra Escher. Para divulgação das experiências, foi criada uma organização formal que oferece apoio administrativo e coordena uma ampla variedade de iniciativas em diversos países, denominada Intervoice (The International Network for Training, Education and Research into Hearing Voices). Em 1989, em Manchester (Reino Unido), foi criada a The Hearing Voices Network, integrada por ouvidores de vozes, familiares e profissionais de saúde de diversos países, uma importante associação de suporte mútuo de ouvidores de vozes2-5. Na Itália, a rede Noi e le Voci(d) é a rede que integra a informação dos congressos, formação, grupos de ajuda mútua de ouvidores de vozes e se articula com outros países e com a rede internacional Intervoice. A rede italiana tem Cristina Contini como vice-presidente e foi fundada em 2011 após a realização de três congressos nacionais – que ocorreram em Reggio Emilia (2008 e 2009) e em Milão (2010) – e um congresso internacional que aconteceu em 2011, em Savona. Em 2005, Cristina Contini havia participado da associação Noi e le voci como vice-presidente e em 2013 criou a associação Sentire le voce(e), a qual preside até hoje. Cientes da importância da experiência de Cristina Contini6,7 tanto para o movimento de ouvidores de vozes na Itália e no mundo quanto para as transformações que esta tem produzido no âmbito do cuidado a pessoas que ouvem vozes, identificamos na sua entrevista uma oportunidade privilegiada de compreender os efeitos de sua experiência singular na construção de estratégias terapêuticas para o enfrentamento da experiência de ouvir vozes.

O ENCONTRO Esta entrevista faz parte de uma etnografia realizada por uma das autoras, entre março de 2015 e janeiro de 2016 na Itália, acompanhando ouvidores de vozes. O trabalho de campo iniciou-se com o acompanhamento de alguns ouvidores de vozes que frequentavam o grupo no Centro de Saúde Mental de Settimo Torinese, experiência acompanhada e divulgada em livro8 pelo professor Mario Cardano, da Universidade de Turim, supervisor deste estudo etnográfico. O trabalho de campo incluiu, além do acompanhamento no grupo em Settimo Torinese, a entrevista com Cristina Contini, a realização de seminários formativos em Reggio Emilia e Bologna, o seguimento de reuniões de um grupo de ouvidores de vozes em Savona – coordenado pelo psiquiatra Marcello Macario – e a participação do 7o Congresso Mundial de Intervoice, em Alcalà de Henares – Madri, Espanha. Nesse percurso etnográfico se deu o encontro com Cristina Contini, uma expert por experiência9. Essa mulher, uma ouvidora de vozes que tinha uma preciosa história, fez do dom de ouvir vozes um ofício (em italiano, um mistiere) e, em seu percurso de vida, não foi capturada pela psiquiatria. A entrevista ocorreu em Reggio Emilia, em 17 de setembro de 2015, e é Cristina Contini que fala de sua experiência pessoal, do seu percurso e de suas descobertas.

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http://www. parlaconlevoci.it/ (d)

http://www. sentirelevoci.it/ (e)


EXPERIÊNCIA PESSOAL: SILÊNCIO E DESCOBERTAS Pessoalmente, comecei a ouvir vozes aos vinte anos, depois do coma. Para mim, foi fácil associar um trauma físico ao evento que gerou as vozes. As vozes nunca foram um problema para mim, a não ser pelo fato que davam voz aos significados que eu não conhecia. Significados profundos, essenciais e vitais. Eu as chamava de minha biblioteca viva. Então eu, dos vinte aos 23 anos, estive em silêncio. Um silêncio aparente, somente externo, porque era um silêncio involutivo, implosivo. Uma confusão que eu busquei não administrar e sofri sozinha, sem buscar uma compreensão. Assim, fiquei no silêncio. Não expus para ninguém aquilo que, para mim, naquele momento, era um problema. Continuei trabalhando com muito cansaço, já que continuava a dormir apenas aquele pouco que conseguia. Estive, sobretudo, calada. A única coisa certa que eu fiz. Isto é, a única coisa que reconheço depois de tantos anos que fiz certo é ter ficado em silêncio com meus irmãos e os meus pais. Eu reconheci que eles eram ótimos educadores, mas não podiam me educar sobre as vozes. Porém, o fato de eu ficar em silêncio fez com que a minha “panela de pressão” pudesse explodir a qualquer momento, porque eu estava cheia. Eu tinha consciência que se fosse ao médico, ou se tivesse falado com meu irmão que era muito intolerante e católico, a alternativa teria sido o psiquiatra. Ou seja, eu não sabia há vinte, trinta anos atrás a diferença entre um psicólogo e um psiquiatra, mas sabia que se fosse a um médico, ele teria me dado remédios. Depois, aos 23 anos, tomei uma decisão. A decisão de falar com as vozes, encarando-as. Essa decisão coincidiu com a escolha de viver. Ou seja, eu, aos vinte e poucos anos, tinha a síndrome de sobrevivente (denominada no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) como transtorno de estresse pós-traumático). Ninguém me celebrava, mas ainda estava viva. Ou não me sentia viva ou me sentia mais viva que os outros, e via todos os outros mortos. Mortos espiritualmente e em todas as suas manifestações. No momento em que eu decidi viver, eu disse: “OK, decido tomar conta da minha vida, mas vocês, vozes, precisam me ajudar”. Isso coincidiu com o meu casamento. Meu marido permitiu que todas as noites eu me comunicasse, escrevendo aquilo que as vozes me diziam. Desta forma, eu abri um canal – isto tendo em mente que há trinta anos não havia internet, não existia o Google, não se falava de espiritualidade, não existia a new age, não tinha livros, nem seções específicas em livrarias, enfim, não existia nada. Eu havia encontrado apenas um livro sobre o coma em que, em 250 páginas, havia apenas duas linhas dizendo que quem tivesse estado em coma era possível que ouvisse vozes. Isso foi a única confirmação, ou seja, a única possibilidade de confirmação do que estava acontecendo comigo. A minha grande descoberta foi encontrar uma correspondência nas vozes para significados em uma profundidade que eu não possuía em mim. Um mundo que comecei a definir espiritualmente, que me ensinou muito e que me ajudou a permanecer em equilíbrio. Eu nasci em Carpi, uma cidade na província de Modena, com uma educação cristã, que celebrava os sacramentos. Depois do coma, todas aquelas caixinhas que eu havia aprendido caíram. Expressões como “estado de graça” e “espiritualismo” não faziam parte nem da minha linguagem, nem da minha educação. Para mim, não existiam; não existiam sequer em livros. Então, para mim, foi uma descoberta junto às vozes, a qual até então eu não queria saber ou não conseguia entender quem eram e tampouco que fossem a melhor parte de mim. Assim, fiz 12 anos de silêncio, de crescimento pessoal com as vozes. Os ensinamentos que obtive das vozes, ou seja, aquilo que aprendia, eu metabolizava e aplicava. Para mim, foi um devir. Eu comecei a ver as pessoas por aquilo que eram e por aquilo que poderiam vir a ser e o meu sentir foi totalmente modificado. Isto é, havia tomado conta da minha vida e buscava não um sentido de Cristina com as vozes, mas um sentido que nunca havia me dado antes.

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ESPIRITUALIDADE, CIENTIFICIDADE E O DESENVOLVIMENTO DE UM SENTIDO Encontrei-me com Igor Sibaldi(f) e fizemos alguns exercícios juntos, porque logicamente a extra sensorialidade havia aumentado muito. Muitos ouvidores de vozes também apresentam fenômenos de clarividência que não tem nada que ver com espiritualismo e, por isso, de início devem dar-se conta de que é uma telepatia normal, de que é uma clarividência verdadeira e de que é uma sensibilidade. Para mim, aconteceu que, depois de 12 anos, decidi colocar-me a serviço, isto é, fui até um centro de estudos e experimentação em Roma, para que me certificassem e para que eu pudesse tomar consciência de verdades totalmente desconhecidas para mim. A minha profissão é, de toda maneira, no âmbito financeiro e econômico; por isso, muito objetiva, muito racional. Sentia-me uma grande matemática, uma grande filósofa. Nunca havia lido nada e resolvi buscar neste centro algumas respostas. Depois de longas entrevistas, disseram-me: “Olha, te colocamos à disposição os instrumentos para que tu te conheças, porém, eles são muito limitados a um poder mental, a uma força mental que tu tens, talvez, mais que outros”. Assim, me avaliaram dizendo que o meu sentir ia além. E, então, ali os meus caminhos foram divididos, isto é, eu deveria escolher se seguia um caminho científico ou um caminho espiritual, e eu não conhecia nenhum dos dois. O universo me levou adiante em perspectivas cientificas “além do oceano”, isto é, a perspectiva de usar pessoas como nós para encontrar tesouros escondidos no oceano. E, então, uma série de questionários eram feitos em algumas cidadezinhas onde havia muito suicídio. Quanto mais vinha prospectado o percurso científico, mais sentia que aquilo não me pertencia. Por isso, segui um conselho de Igor Sibaldi: “tenta te experimentar no âmbito espiritual”. O meu ponto de vista era totalmente diferente. Eu fiz a semana italiana, isto é, uma semana do ano dedicada a certos tipos de pessoas, somente italianas. Durante a semana trabalhávamos das nove da manhã até às dez da noite, de modo que me vi envolvida, sob pressão mental e espiritual. O resultado é que, se fizesse um trabalho mental, depois de duas horas estava cansadíssima. Então me dava conta dos meus limites e da minha força pessoal. No trabalho espiritual, íamos até a meia-noite e pela manhã estávamos renovados. Ali tive uma das grandes confirmações. Ali aprendi a dormir, a me disciplinar e comecei a dar um sentido, porque, de certa maneira, tudo começou a se encadear. Ali eu comecei a colocar-me à disposição de pessoas que tinham necessidade de comunicar-se com as vozes que eu ouvia. No período dessa dezena de anos, até colocar-me à disposição, encontrava as pessoas desequilibradas, isto é, vinham até mim neste centro espiritual pessoas que paradoxalmente não tinham ainda sido engolidas pela psiquiatria, buscando um percurso intermediário. Assim, encontravam-se no único âmbito que a Itália oferece: paradoxal à psiquiatria, o espiritual. Ali eu não sabia como mover-me, porque, obviamente, sim, podia ver o campo áurico das pessoas, podia perceber, mas não sabia como ajudar a disciplinar. Por isso, comecei a fazer contatos com os psiquiatras, ainda que na realidade, enquanto eu pensava isso, tenha sido a psiquiatria que me contatou, porque, nesse ínterim, eu tinha os grupos com pessoas que queriam lidar com as vozes.

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Igor Sibaldi nasceu em Milão, em 1957. Teólogo e historiador, é o autor de obras sobre as Escrituras e xamanismo, ficção e drama. Traduziu várias obras de literatura russa (romances e contos de Tolstoi); o Evangelho de João, do grego antigo; o volume do código secreto do Evangelho e parte de Gênesis; e o livro da Criação, do hebraico antigo (http://www.igorsibaldi. org/). (d)


PRIVACIDADE E SENTIDO DE VIDA Lá onde há um sofrimento e queremos ajudar, onde há uma doença, sempre se pensa: além da vida, além da morte, existe uma vida, não? Contudo, eu aprendi a perguntar-me: existe vida antes da morte? Então, o meu ajudar é pelo meu sentido. O meu sentido se transformou em ajudar os outros a encontrar o próprio sentido, em plena liberdade, sem criar dependência de ninguém, nem dos fármacos, nem dos profissionais. É algo que vai além da empatia, que vai além da consciência. Trata-se de reconhecer como a pessoa está a cada momento, por que está bem, por que está mal, “hoje estou bem”, “amanhã estou muito mal”, “hoje não estou bem como ontem”, isto é, começar a olhar-se e ser crítico, ser pretensioso consigo e, sobretudo, confrontar-se com as técnicas. Isto é, não é a lição, não é o livro que muda a tua vida, é desafiar-se, enfim, experimentar. De toda maneira, as minhas vozes se transformaram em professoras porque eu era livre para viver minha vida. Pensei por muitos anos que, de certa forma, não havia nenhuma pessoa que conseguisse e/ou que pudesse me ajudar. Então, quando eu decidi viver, disse “OK” para a vida, e então me abri para o mundo. Busco ser serena. Sou uma sobrevivente de um coma, portanto, decidi: farei uma vida, vou me casar, ter filhos e, para isso, pedi ajuda às vozes. Ou seja, as vozes são o problema? Vejamos então se são também a solução. Quando eu cheguei na psiquiatria, o enfrentamento para mim era a palavra mágica: enfrenta teus medos, isto é, enfrenta as coisas que as vozes te dizem. Eu sempre uso o exemplo do Alberto, um ouvidor de vozes. Alberto parou de ir para a universidade, estava aterrorizado de tal maneira que não movia sequer o pescoço, depois de dois meses ouvindo as vozes. Então, todas as manhãs às seis, uma voz interna o acordava e dizia: “Alberto! És um deficiente, és um estúpido, és um cretino. Vai para a universidade”. Ele então parou de ir para a universidade, porque esta voz o ofendia continuamente. No momento em que o vi pela primeira vez, lhe perguntei: “Alberto, perguntaste para a voz porque ela te chama de estúpido?” Ele me respondeu: “Não, pergunta tu”. Isto é, pedia que eu enfrentasse as vozes. E aí, eu perguntei para as vozes: “Por que dizem isso a Alberto, toda manhã?” E as vozes responderam: “Alberto, eu te quero bem, quero que retomes tua vida e te levantes cedo e estudes”. Então é aquilo que nos manuais está escrito: positivar uma voz. Na realidade, Alberto não positivou a voz, mas descobriu que era uma parte sua que estava sugerindo que ele fizesse algo de bom. Conto isso para dizer que, na minha escolha, a privacidade não existe. No momento em que eu faço esta escolha por coerência, então, não existem segredos ou coisas que não devem ou não possam ser ditas. Antes de tudo, eu aprendi a não falar nada que não me fosse solicitado. Na verdade, quem quer muito tutelar sua privacidade é aquele que na realidade nunca ativa sua privacidade para si mesmo, mas quer manifestar aquilo que é, aquilo que faz. Para mim, não é um segredo a minha privacidade, ou seja, o acesso a ela é livre, assim como aos meus limites. O sentido da minha vida já encontrei. E isto encontrei também na doença. Em um determinado momento, com quem estava próximo, com o meu silêncio, o meu desaparecimento devido a uma doença que não fiz alarde, que não publiquei nada, porque não tinha nada de bom a divulgar. Então, na minha história de isolamento, como fazem os elefantes que vão morrer longe em silêncio, busquei me fortalecer e encontrar um sentido na doença.

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SOBRE A EXPERIÊNCIA DE OUVIR VOZES Na Austrália, falam dos cinco pilares do ser humano – corpo, mente, família, trabalho e espírito –, com os quais me reencontrei imediatamente como visão, ou seja, nos quais existe um excesso ou um defeito, isto é, uma falta, que seja a família, que seja o espírito, a mente ou o corpo naquela pessoa que demonstra um distúrbio mental. É necessário intervir. Então, a minha experiência pessoal demonstra que, onde existe um distúrbio, um excesso ou um problema de qualquer natureza sobre o qual não se reconhece a origem, se ele se manifesta com as vozes, é possível enfrentá-lo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Primeiramente, é preciso identificar qual é o problema, ou seja, entender se a pessoa enlouqueceu porque perdeu o emprego, porque foi abandonada, porque ouve vozes excessivamente negativas ou porque teve uma experiência mística na qual não conseguiu controlar-se. Nos meus trinta anos de experiência, sempre vi esses excessos. Além disso, eu creio que o medo acomete todas as pessoas, qualquer pessoa, para além de seu crescimento e educação. No momento em que ouve ou vê uma voz, ainda que a visão seja menos aterrorizante, a pessoa é acometida pelo medo. O auditivo é mais penetrante. O medo é um sentimento que acomete todos. Para o(a)s último(a)s 150 menin(o)as, por meio do banco de dados ou por e-mail, perguntei: “Qual é o primeiro sentimento que experimentastes?” Se a origem das vozes é um trauma, o medo acomete a todos. Medo e terror, e a exigência de compreender. A primeira emoção que dizem é o medo e a raiva; terror e raiva. Assim, busca-se entender em que espaço elas emergem. Busca-se o reconhecimento logístico das vozes, ou seja, é voz interna? É voz externa? Se tenho voz interna, escapo? Não tenho escolha? Se tenho vozes externas, escapo? Faço mal aos outros porque fico agressivo? Contudo, sempre há medo. Então, na primeira entrevista com o(a)s menino(a)s, buscamos normalizar a experiência dizendo: “É normal ter medo, diga porque tens medo”. Não são as vozes que geram medo, mas aquilo que dizem é que gera medo. Se as vozes são positivas, mas não existe o controle, o medo advém da falta de controle. Assim, as pessoas começam a entender do que têm medo, pois a voz própria e verdadeira, externa, que diz “És uma cretina” gera medo em absolutamente todos, inclusive em mim. Neste mundo das vozes, em que 99% dos problemas são existenciais, uma voz que diz “Te mata” quer te dizer “Muda teu modo de existência”. Então, para dar um exemplo, o último caso, aquele mais flagrante, foi uma comerciante de 45 anos, sem vontade de ir trabalhar. Até a última semana, trabalhava bem, até que foi fazer um percurso de peregrinação em Santiago de Compostela. Voltou duas semanas depois, de trem, e começou a ouvir uma voz que dizia: “Te mata, te mata, te mata”. Depois de três dias, perdeu o controle. Cronificada por quatro anos usando fármacos, depois desse tempo, perto do departamento de Grosseto, alguém mencionou o meu nome. Ela me ligou, adquiriu um manual, o leu e ao telefone me disse: “Sobre aquela voz que me dizia para matar-me... se alguém tivesse me dito que o significado escondido por trás das vozes era que eu mesma estava me dizendo ‘Agora, muda ao teu modo, busca o teu próprio sentido da tua existência’, eu teria feito, porque de qualquer maneira, em quatro anos perdi todos meus clientes, fechei meu comércio, sou massacrada mentalmente e não encontrei a chave do problema”. Logo, respondi-lhe: “Veja, a chave do problema, volta ao trem e muda o teu modo de existir”. Somos forçadas a entender que há um sentido na vida, ainda que se tenha vinte, quarenta, ou mesmo sessenta anos. E daí em diante, o que acontece? Quando o problema é existencial, com um pouco se consegue. Com uma estratégia de controle das vozes, consegue-se diminuir o volume, eliminar as vozes e, logo, faz-se um percurso conjunto, ou seja, a pessoa passa a caminhar com suas próprias pernas. Assim, como posso dizer... é lógico que se trabalha em colaboração com a neuropsicologia e a psicoterapia, porque tem uso de drogas e se fazem testes. A partir daí, a estratégia de controle pode ser uma estratégia para um problema neurológico e/ou outra para um problema existencial. Fazse a mesma entrevista, junto ou separado, compartilha-se e, então, por exemplo, percebo que o que eu vejo a outra pessoa não vê e vice-versa. Compartilhando, faz-se um percurso conjunto. Nós planejamos de três a seis meses de trabalho com as entrevistas e se avalia qual a melhor estratégia.

GRUPOS: DAS LIMITAÇÕES E INCERTEZAS DA ESPIRITUALIDADE E CIENTIFICIDADE Comecei a fazer os grupos de pessoas que queriam disciplinar as vozes por fora da psiquiatria. No momento em que os profissionais da psiquiatria me contataram, eles sabiam perfeitamente aquilo que eu fazia fora e os grupos que eu tinha e me disseram: “Nós precisamos ajudar algumas pessoas cujas vozes não explicamos”. 1044

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Desde então se abriu um mundo em que a psiquiatria me pediu ajuda. Na realidade, eu queria criar um serviço informativo que partisse do paradoxo espiritual versus psicopatológico pesado, para fornecer um caminho alternativo que rompesse com esse divisor de águas de modo mais sutil. Nesse percurso, a psiquiatria me pediu que organizasse os primeiros congressos. No terceiro congresso nos encontramos com Mario Cardano e com a coordenação nacional e fomos para Austrália. Ainda em Reggio Emilia, para dar visibilidade para aqueles resultados que estávamos alcançando com os grupos de ouvidores de vozes, decidimos fazer a primeira associação – Noi e le voci (Nós e as vozes) –, que depois se transformou na coordenação nacional. Atualmente, a coordenação nacional está dedicada com mais afinco à formação nos distritos sanitários, isto é, aquilo que eu fiz de 2005 a 2013: fazer formação dos trabalhadores com o objetivo de formar os grupos de ouvidores de vozes. Nesses locais, nos anos de 2011 e 2012, eu dizia: “Eu estou cansada de viajar pela Itália e reproduzir, porque, de toda maneira, nós nos encontramos em um estado terminal, emergencial, hipercrônico e ajudávamos muitas pessoas”. Nesse ínterim, eu também ensinava sobre as vozes em uma faculdade de psicologia clínica em Padova e nas escolas de especialização e aos recém-formados, para desmanchar nós e normalizar a experiência de ouvir vozes, ao menos para os psicólogos. Buscava proporcionar uma visão mais existencial do problema do que a visão da psicopatologia e da colocação da experiência “em caixinhas”, como faz o DSM. E eu, paralelamente ao percurso feito com a coordenação nacional, levei adiante esse discurso para a universidade. Faz dois anos, desde que veio a minha doença, que eu não tenho mais a possibilidade nem de trabalhar no consultório. Eu tenho uma invalidez, uma expectativa de vida bastante dolorosa, e, então, não posso andar pela Itália e fazer formação. Assim, há dois anos criei esta associação, que é um motor para o que eu já havia criado. E não estou falando do discurso espiritual porque, na Associação Sentire le voci (“Ouvir as vozes”), temos os grupos, os seminários, os grupos de recuperação e um grupo de mediunidade; fazemos consultas individuais; e temos usado a sede da associação para acolher todos aqueles que nestes três anos disseram: “Para quem mandamos essas pessoas/menin(a)s? Para quem mandamos os familiares?” A coordenação nacional tende a deixar os cuidados mais para os distritos sanitários, enquanto nós, enquanto associação, acolhemos diretamente o(a)s menino(a)s e seus familiares.

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ASSOCIAÇÃO: COMO FUNCIONA Eu recebo trezentos e-mails ao mês, de pessoas/menino(a)s e familiares que me pedem ajuda. Isso significa sete, oito, no máximo dez novos e-mails ao dia, dos quais com a metade se consegue estabelecer um diálogo contínuo, no qual primeiro me pedem informações, contam suas histórias e o percurso que fizeram e depois perguntam sobre as estratégias, ou seja, “o que eu faço com o(a) menino(a)?” Perguntam também se devem ou não lhe dar os remédios. Então, há dez anos, respondia e-mails de pessoas que vinham só da psiquiatria. Agora, vêm pessoas que estão em um quadro intermediário no qual os pais, antes de chegar na psiquiatria, perguntam: “O que podemos fazer?” Nos anos anteriores, de 2005 a 2013, enquanto fazíamos uma viagem de formação, conheci muitos psiquiatras e psicoterapeutas nos vários lugares que fomos. Nesse tempo, construímos duas importantes equipes, uma em Roma e uma em Bologna. Em Roma são três psicoterapeutas e um psiquiatra e em Bologna, dois psicoterapeutas, um psiquiatra e uma neuropsicóloga. Praticamente a pessoa vem até mim, a família vem com o menino ou a menina e fazemos a primeira entrevista. Ouço os pais, o(a) menino(a), a identificação das vozes, o que está fazendo, o que já fez e combino se a pessoa quer realmente ser ajudada ou não e o que significa “ser ajudado” para a pessoa. E deste momento em diante, já depois da primeira entrevista, damos-lhes uma primeira estratégia de controle, que ela experimenta por um mês, um mês e meio. Há possibilidade também de contato por telefone ou por e-mail. Não tendemos a monopolizar ninguém, ao contrário, tendemos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a enviar os pais para fazer psicoterapia porque, de qualquer maneira, em geral, creio que por trás de um(a) menino(a) problemático(a), tem primeiro uma família problemática. Então, com a psicoterapia se encarregando mais dos pais e eu do(a) menino(a), acompanhamos a situação com um compartilhamento contínuo, mesmo que telefonicamente. Dos últimos 152 meninos(a)s acompanhado(a)s, 50% tinha de 15 a 25 anos. Existe ainda uma dezena de casos de sete, oito, dez anos e, nesses casos, há a colaboração com a neuropsiquiatria e a pediatra do território, além da colaboração da escola.

UMA ALTERNATIVA PARA O ATENDIMENTO Na Itália, atualmente, a alternativa para os ouvidores de vozes ou é o exorcista ou é o psiquiatra. Em 2005, eu comecei ajudando uma pessoa de 55 anos, que a psiquiatria tinha me dito “Não há nada a fazer”. Já tinha quarenta anos que ouvia as vozes, havia se separado e depois de seis meses já não ouvia mais as vozes negativas, com uma estratégia de controle e uma participação no grupo de ouvidores. Na realidade, também com ajuda de psicoterapeuta e de psiquiatras, com um olhar um pouco mais amplo e cauteloso sobre o uso dos fármacos. Em geral, é sempre a dose que muda, o que pode fazer a diferença; existem a dose homeopática ou a dose para cavalo. Eu dou sempre o exemplo de quando me aproximei da psiquiatria. Se o meu filho tivesse um acidente grave com uma moto scooter, eu estaria de acordo em fazer ele ter um coma farmacológico, porque isso evitaria que ele sentisse dor e daria a possibilidade de o corpo físico se reestabelecer e de não ter a memória daquele sofrimento. Por isso, é certo que em situações gravíssimas se possa sedar e aos poucos se diminua o uso do medicamento com um objetivo. A psiquiatria não oferece isso, nem na Itália, nem no resto do mundo. Na realidade nem mesmo os psicólogos sabem fazer isto se não lhe ensinam sequer um modo de enfrentamento específico. Então, esta é a razão pela qual eu disse: “OK, continuamos a fazer isto com os/as menino(a)s e seus pais, já que em geral esta gente está rodando a Itália há cinco anos”. Sobretudo porque todos nós conseguimos oferecer um trabalho e, por isso, decidimos um processo no qual dissemos: “OK, primeira entrevista, orientação, com Cristina, os pais terão acompanhamento em outros locais”. Se a pessoa tem necessidade, ela se move. A escolha foi essa. Atualmente, estamos buscando produzir um material para dar formação a distância. Buscamos produzir um material para fazer e vender. Vender a preço baixíssimo, de tal modo que possa chegar à casa de todos, com as informações, com os manuais, com as estatísticas. O meu objetivo é ajudar, não publicar. Logo, visto que a casuística começa a ser importante, dissemos: “OK, comecemos a avaliar, fazer um bom monitoramento, com os indicadores bem precisos para um dia dizer que isto foi experimentado e que, analisando isto e aquilo, aí está.”

ESTRATÉGIAS As estratégias são tarefas, na forma de exercícios, um livro de exercícios. Do ponto de vista prático, pode ser um diário, em que se escreve aquilo que as vozes dizem, todos os dias, e assim se cria, a

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cada vez, uma segunda história. Por exemplo, uma menina que estuda e ouve vozes, registra. Escreve sobre o controle que quer voltar a ter. Com ela, começamos com uma parte daquilo que quer controlar e buscamos descobrir desta parte, onde e como ouve as vozes. Então ela, enquanto ela estava aqui, experimentamos com um fone de ouvido, com água, com ruídos e descobrimos que sob os ruídos ela não ouvia as vozes. Então, tal como quando lê e não consegue entender o sentido, não consegue mais estudar e se deu conta no banheiro que, abrindo todas as torneiras, ela conseguia ler. E, então, o que aconteceu? Na realidade, isto para dar um exemplo de estratégia, ela contava que para ela o mais perturbador eram os ruídos. Ou seja, a sua mente, além de criar as vozes, chegou aos ruídos. Assim, eu mantenho os ruídos e seus problemas e faço com que eles se transformem em um recurso, no sentido de que, para ela, o problema é o ruído, pego o problema e mostro que, na realidade, o ruído é um recurso que a coloca na situação de fazer exatamente aquilo que ela quer. Nesse caso, foi construída uma estratégia para evidenciar parte dela mesma e permitir a expressão de sua parte criativa, porque ela não conseguia mais manter a objetividade, a disciplina mental, ou algo do tipo. A estratégia desenvolve mais a parte criativa, ou mais a parte objetiva da mente. Por exemplo, pedi a uma menina de 23 anos que fizesse um gráfico de sua vida. Ela fez o seu gráfico e não te conto a viagem mental que fez enquanto me contava as coisas. Ao fazer isso, ela ficou bem por duas semanas, enquanto fazia. Assim, um exercício banal que tu encontras aqui, praticamente, se a pessoa é muito presente e inteligente, dou-lhe isso e lhe digo: “Tu o fazes, depois de um mês me traz aqui, e conforme as respostas eu sei onde devo trabalhar mais.” Outras vezes, eu inicio qualquer coisa e vejo como está, exatamente daquilo que acontece ou não acontece para ela e daí pode surgir uma segunda e no máximo uma terceira estratégia. Contudo, já na segunda estratégia, a pessoa já descobriu o sofrimento que viveu e quer elaborar mais a morte desta coisa que viveu e é um momento belíssimo. Assim, ao fazer isso me disse: “Eu descobri que o mar...” ou seja, existem coisas que a nossa criatividade nos dá, que são associações de recordações e de emoções, que dão a possibilidade de encontrar a estratégia. Trabalhamos sobre o belo. Isto é, na realidade, precisa reencontrar o belo que te dá a vida e que te dá vontade de desejar. Desejar faz bem, faz surgir a vontade de fazer o bem e estar bem. Assim, não existem estratégias, nem protocolos. A introspecção, dizemos, é aquilo que é mais usado, onde têm vinte vozes te dizendo vinte coisas diferentes, em que todos os dias são vinte vozes novas, o diário é um instrumento único e incomparável. É muito importante transcrever meia hora, uma hora, todos os dias, os momentos em que tu ouves somente aquilo que te dizem as vozes. Aí podes fazer o teste, lendo os registros de todas as vozes, ver se encontras um denominador comum, que pode ser a perda de energia, pode ser o sangue, que pode ser qualquer coisa, mas sempre tem um denominador comum que te remete a um incidente, a um bullying. É aquela famosa correlação que pode fazer um ouvidor. Assim, a partir daí, acontece alguma coisa de belo. A partir daí, não prendemos a pessoa, porque nesse ínterim é quebrado dentro, é fragmentado, a enviamos logo para a psicoterapia de modo a fortificá-la. Porque, no tempo de poucas semanas, ou poucos meses, a pessoa está bem, porém, precisa logo trabalhar sobre si, porque logo é maltratado na sociedade, na escola, nas novas relações que não é capaz de sustentar. E, assim, o trabalho em rede é fundamental. Eu conheci tanta gente bela ao longo do caminho, em tantos contextos, com tanta competência e eu queria um pouco estar com elas, fazendo minha parte, e queria que cada um fizesse a sua.

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entrevistas

Kantorski LP, Andrade APM, Cardano M

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ENTREVISTAS

Referências 1. Jaynes J. The origin of consciousness in the breakdown of bicameral mind. New York: Houghton Mifflin, Marines Books; 1976. 2. Romme M, Escher S. Na companhia das vozes: para uma análise da experiência de ouvir vozes. Lisboa: Editorial Estampa; 1997. 3. Baker P. The voice inside: a practical guide to coping with hearing voices [Internet]. Toronto: Canadian Mental Health Association; 2012 [citado 10 Jun 2015]. Disponível em: http://toronto.cmha.ca/files/2012/09/A-Practical-Guide-to-Coping-with-Hearing-Voices. pdf. 4. Coleman R, Smith M. Lavorare con le voci. Torino: EGA; 2006. 5. Barros OC, Serpa Junior OD. Hearing voices: a study on exchanges of experiences in a virtual environment. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):557-69. 6. Contini C. Sentire le voci: manuale di affrontamento. Vignola: Self publishing; 2013. 7. Contini C. Sentire le voci: manuale di affrontamento – esercizario per l’uditore. Vignola: Self publishing; 2013. 8. Cardano M, Lepori G. Udire la voce degli dei: l’esperienza del gruppo voci. Milano: Franco Angeli; 2012. 9. Coleman R. Lavorare per guarire. Carcare: Magema & Cooperativa sociale “Il Casello”; 2004.

Palavras-chave: Ouvir vozes. Saúde mental. Experiências. Keywords: Hearing voices. Mental health. Experience. Palabras clave: Oír voces. Salud mental. Experiencia.

Submetido em 07/02/17. Aprovado em 14/03/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0963

resenhas

Schwarz PKN. Maternidades en verbo: identidades, cuerpos, estrategias, negociaciones: mujeres heterosexuales y lesbianas frente a los desafíos de maternar. Buenos Aires: Editorial Biblos; 2016.

Mónica Petracci(a)

Maternidade en el nuevo siglo En “Maternidades en verbo. Identidades, cuerpos, estrategias, negociaciones: mujeres heterosexuales y lesbianas frente a los desafíos de maternar”, el libro de Patricia K.N. Schwarz publicado por Editorial Biblos, la maternidad es abordada como temática que se despliega en la “[…] arena política de definición de espacios de poder” (p. 17). El libro, que se terminó de escribir en 2014, reúne los hallazgos de dos investigaciones empíricas (o de una investigación en dos etapas). La primera – realizada entre 2005 y 2010 – consiste en una investigación cualitativa basada en entrevistas, grupos focales y observaciones a mujeres heterosexuales y lesbianas de 25 a 35 años de sectores medios, y entrevistas a médicos y médicas ginecólogos y obstetras, en la Ciudad de Buenos Aires. La segunda –realizada entre 2011 y 2012 como consecuencia del interés que provocó en la autora la sanción de la ley 26.618/2010 de Matrimonio Igualitario para poner en diálogo los hallazgos iniciales– consiste en una investigación cualitativa basada en entrevistas a mujeres lesbianas de 25 a 38 años de sectores medios en la Ciudad de Buenos Aires.

La consideración de la normativa mencionada, además de las puertas abiertas a la investigación, responde a la mirada teórica y política desde la perspectiva de derechos presente a lo largo de las páginas del libro. En la Argentina, a partir de 1983, con disímiles estridencias y énfasis en las agendas, los temas de derechos sexuales y reproductivos salieron definitivamente del ostracismo y, si bien con deudas pendientes para con la sociedad –especialmente para con las mujeres– como en el caso del aborto, la sanción de la ley 26.618/2010 colocó a la Argentina como primer país sudamericano en legalizar los matrimonios entre personas del mismo sexo. Desde todo punto de vista, para una estudiosa de la experiencia de la maternidad/ maternazgo, ese hecho político era insoslayable. La reflexión teórica y la búsqueda analítica de Patricia K.N. Schwarz fueron pensadas desde los procesos contradictorios y paradojales de la modernidad tardía y ancladas en un minucioso andamiaje teóricoconceptual feminista y de género. En los capítulos analíticos, la autora buscó responder a interrogantes sobre la maternidad y sus cambios en la sociedad contemporánea a través de un doble movimiento: el de la experiencia de la maternidad y el de la COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Instituto Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires. Dirección: Pte. J. E. Uriburu, 950, 6º piso, C1114AAD. Ciudad de Buenos Aires, Argentina. mnpetracci@gmail.com

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RESENHAS

significación de la maternidad para la identidad genérica, esa identidad provocadora de la inquietud que llevó a la autora a la escritura, tal como lo anuncia en las primeras líneas del libro. Varios interrogantes sobre la maternidad guiaron la investigación: […] ¿cuáles son los entramados normativos a los que las mujeres responden cuando deciden tener un hijo? ¿cuál es la configuración identitaria genérica que dialoga con ello?, ¿cómo interviene la iterabilidad normativa en la performance de las mujeres en lo que a la maternidad se refiere?, ¿es posible desandar el camino de la maternidad compulsiva?, ¿cuál es la construcción significativa que articula la maternidad con la identidad genérica de las mujeres?, ¿qué actores constituyen la red intersubjetiva de experiencia en el campo de la maternidad? (p. 23-4)

A través de cinco capítulos analíticos del material cualitativo relevado que reseñaré, brevemente, a continuación, en el libro se enhebran la relevancia otorgada a la temática desde siempre y en la sociedad contemporánea; los cuerpos; las voces plurales de las mujeres y de los.as profesionales de la salud y la riqueza de sus respuestas; las configuraciones mutuas de la maternidad y la identidad; las prácticas sociales traducidas como estrategias y negociaciones. Y vuelvo al título del libro a través de una pregunta cuya respuesta retomaré más adelante: ¿es maternar un desafío?. “Socialización de género en la trayectoria de las mujeres”, capítulo en el que la autora – desde su formación sociológica– observa cómo el proceso socializador que refuerza estereotipos de género atraviesa con especificidades las trayectorias de vida de las mujeres pero que, a su vez, presenta “destellos” (p.121) no conflictivos y con sutiles diferencias para la búsqueda de experiencias múltiples, la legitimidad de la participación de la mujer en el mercado laboral, la individuación de la experiencia materna y de la mujer en tanto sujeto. Identidad genérica y maternidad”, capítulo en el que la autora observa cómo la construcción de la identidad de las mujeres estudiadas se encuentra enredada en una 1050

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paradoja: “[…] existe una puja de fuerzas entre el aparato de significados ´madre´ (que encierra la figura mítica de ´madre´ o condición maternal) versus el aparato de significados ´mujer´(que se conecta con la construcción de inteligibilidad en tanto sujeto de la modernidad tardía)” (p. 141).

En el capítulo, en síntesis, se complejiza el análisis de la vigencia de las estructuras normativas de sujeción de la mujer. “La maternidad en acción”, capítulo en el que la autora refiere a las percepciones y, fundamentalmente a las prácticas, mencionadas por las entrevistadas acerca de la maternidad. Y es allí donde, con nitidez, aparecen los cuerpos de las mujeres como escenarios de otras prácticas. Estas últimas, las prácticas del poder, no son más que las acciones de los sectores más conservadores de la sociedad, en todas sus instancias, para impedir cambios y logros en temas de derechos sexuales y reproductivos. “El día tiene veinticuatro horas: maternazgo y construcción de la identidad individual”, capítulo en el que la autora refiere a la persistencia de visiones esencialistas en distintos campos hegemónicos y resalta la sobrecarga generada por la denominada doble jornada de actividad en paralelo con otras exigencias como disponer de tiempos propios. “Un nuevo escenario para el proyecto y la práctica de las maternidades: la ley de Matrimonio Igualitario y las maternidades lesbianas”, capítulo en el que la autora completa su línea investigativa para “[…] establecer una nueva aproximación a la luz de los datos previamente construidos” (p. 251). Si bien la autora, en el inicio del capítulo, aclara que la profundidad del tema no será complejizada, sienta las bases para visibilizar identidades, cuerpos y prácticas con las cuales dialogó a lo largo del análisis. Abrió un diálogo. Desde mi perspectiva, una puesta en diálogo es enriquecedora respecto de la narración analítica comparativa de respuestas sobre la maternidad de mujeres heterosexuales y lesbianas por la distancia temporal entre las dos investigaciones, y por la necesidad teórica argumentativa que la comparación requiere. A lo largo de los capítulos queda claro que la autora está lejos de considerar a la maternidad como algo natural pero que, a su vez, de acuerdo


[…] Me gusta pensar en este libro como un micrófono abierto, una ventana de oportunidad para reflexionar juntos con el lector acerca de las cosas que se nos juegan a mujeres y varones en esto de ser madres, padres, hijos. […] Si este libro despierta en el lector una inquietud, que empuje,

que moleste y que lo lleve a buscar más, el objetivo que me propongo estará cumplido. (p. 18-19)

Pienso que el libro consigue su propósito. Tanto estudiosas y estudiosos de estas temáticas, y también otros públicos como tomadores de decisión, periodistas y comunicadores sociales, representantes y militantes de organizaciones no gubermantales encontrarán en “Maternidades en verbo. Identidades, cuerpos, estrategias, negociaciones: mujeres heterosexuales y lesbianas frente a los desafíos de maternar”, el libro de Patricia K.N. Schwarz publicado por Editorial Biblos, es una contribución al conocimiento y el debate.

Submetido em 08/01/17. Aprovado em 25/01/17.

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resenhas

al análisis de las entrevistas, la construcción social y política que visibiliza busca – como siempre lo ha hecho y la autora lo destaca– mantener el mito de la mujer-madre en el proyecto individual. Dicho en otras palabras: la normativa genérica persiste. Indudablemente, ”maternar” es un desafío para la autora, y el libro un reto que Patricia K.N. Schwarz hace al lector.a:



DOI: 10.1590/1807-57622017.0427

notas breves

O Centro de Saúde-Escola Samuel B. Pessoa (Butantã, São Paulo, Brasil) completa 40 anos

Mariana Arantes Nasser(a)* Ana Sílvia Whitaker Dalmaso(b) José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres(c) Ademir Lopes Junior(d) Miriam de Toledo Leitão Figueiro(e) Ricardo Rodrigues Teixeira(f)

O Centro de Saúde-Escola Samuel B. Pessoa (CSEB) é a unidade de Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) responsável pelo desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão em Atenção Primária à Saúde (APS). O CSEB opera, desde 1977, inicialmente por meio de uma parceria estabelecida entre a FMUSP e a Secretaria de Estado da Saúde (SES), para o desenvolvimento de um projeto com características docente-assistenciais, assentado na APS. Em virtude de seu duplo vínculo, com a universidade e com a SES, foi possível ao CSEB implantar-se como polo formador de recursos humanos para a área de APS, seja apoiando a parcela dos cursos de graduação dedicada à Saúde Coletiva e à APS, seja propiciando campo de aprendizado para residentes de diferentes áreas e, ainda, participando de processos de capacitação de profissionais que já atuam na rede de serviços municipais e estaduais de Saúde. Na graduação, inicialmente, as escolas de Medicina e Enfermagem incluíram estágios em serviço de Atenção Básica e, mais recentemente, com as mudanças das bases curriculares nos cursos da Saúde, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional e Odontologia, ampliaram as disciplinas de Atenção Primária na grade curricular. Também na especialização, ampliou-se a atenção para a formação dos residentes médicos na APS, com estágio em serviço, e foram abertos programas de residência para outros profissionais, a residência multiprofissional, incluindo programas na área de Saúde da Família e outros. As diretrizes curriculares atuais ampliaram a demanda por estágios nas redes de serviços básicos municipais, mas também colocaram para os serviços-escola o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Rubens Kon(g) Maria Goreti Barros Salgueiro Pereira(h) Norma Sueli Colucci da Silva(i) Yessame Maria Gregório Correa(j) Lygia Maria de França Pereira(k) *

Os autores integram a Comissão Centro de Saúde-Escola Butantã 40 anos. (a,b,d,e,g,h,i,j,k) Centro de SaúdeEscola Prof. Samuel Barnsley Pessoa, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Vital Brasil, 1490, Butantã. São Paulo, SP, Brasil. 05503-000. csebsbp@gmail.com; manasser@usp.br; anaswd@usp.br; ad.lopesjunior@gmail.com; miriamfigueiro@gmail.com; rubens.kon@gmail.com; goretisalgueiro@hotmail.com; ncolucci@usp.br; yessamegregorio@usp.br; lygiamaria@usp.br (c,f) Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. 01246-903. jrcayres@usp.br; ricardo.rodrigues.teixeira@ gmail.com

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NOTAS BREVES

desafio de aumentar sua carga de ensino, com a atenção acoplada à população, e o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem no território, na rede de serviços e no trabalho em equipe multiprofissional. Esse mesmo duplo vínculo, universidade e Atenção à Saúde, de uma população adscrita tem inspirado, ainda, projetos de investigação em torno do desenvolvimento de tecnologias de Atenção à Saúde que permitam maior efetividade das ações no âmbito da APS, em acordo com os princípios gerais que orientam o Sistema Único de Saúde (SUS). Desde a década de 1980, o CSEB participa da proposição dos cuidados integrais à saúde da criança, saúde da mulher, saúde do adolescente, saúde do homem, saúde mental; da Atenção Primária domiciliar; e da atenção à demanda espontânea, contribuindo com a formulação de diretrizes e com o estabelecimento de estratégias nesses campos. O CSEB é ainda referência para procedimentos de Enfermagem, como curativos e vacinação. O sistema de informação, o campo da educação em Saúde e cidadania, a área de educação permanente e a vigilância à saúde são outros núcleos de investigação e produção de tecnologias. Na área de atenção à demanda espontânea, o CSEB desenvolve, desde a década de 1990, tecnologia de integração das atividades de recepção e pronto atendimento com consultas individuais e grupos agendados, de modo a responder às demandas e identificar necessidades dos usuários, realizando ações de promoção e cuidados de saúde e doença na Unidade Básica de Saúde (UBS) e encaminhamento pertinente quando necessário. Dessa forma, alcançamos boa resolutividade integrando o atendimento não agendado com atividades de promoção e cuidado da saúde e da doença. Desde 2001, o CSEB desenvolve atividades de pesquisa e atuação relacionadas à Saúde da Família, buscando formas de integrar tecnologias e conceitos dessa estratégia com abordagens programáticas relacionadas aos ciclos vitais, abordagens de integração entre atenção individual e Saúde Pública e respostas a temas complexos e interdisciplinares de alta relevância, como a violência doméstica. A assistência à população ganha aqui uma dupla dimensão: como base territorial e humana para a viabilização de proposição de ensino em serviço e pesquisa operacional; e como compromisso ético com uma população pertencente a uma área geográfica adscrita ao CSEB, que depende da sua oferta de serviços como alternativa viável para acesso ao SUS. O CSEB é responsável por uma área de 25 mil habitantes, englobando dois núcleos descontínuos, com heterogeneidade socioeconômica, demográfica e de condições de saúde e de vulnerabilidade ao adoecimento: a) área adjacente à Avenida Vital Brasil (cerca de dez mil habitantes, com escolas, comércio e residência universitária na Universidade de São Paulo – USP); e b) uma área que envolve diversos bairros, como São Domingos, Bonfiglioli, Cidade Bandeirantes e outros, com cerca de 15 mil habitantes. Até 2006, o CSEB foi sustentado por um Convênio de Assistência à Saúde, celebrado entre a SES e a Universidade de São Paulo, cujos termos aditivos permitiam um repasse de recursos financeiros necessários à operação do CSEB. Com a inserção do município de São Paulo no SUS, a partir de 2001, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP) tornou-se a interlocutora privilegiada, dada sua responsabilidade pela gestão da APS na cidade. O CSEB vem mantendo íntima articulação com as instâncias regionais da SMS, implementando em sua área de abrangência os diferentes programas propostos pela SMS. Por sua vez, a SMS tem dado suporte ao serviço fornecendo materiais e medicamentos. Apesar dessa estreita colaboração entre a USP e a SMS-SP, não se conseguiu, até o momento, formalizar essa parceria por meio de um instrumento legal, como convênio ou contrato, que permita explicitar os termos em que essa cooperação pode se dar, atendendo aos interesses das instituições envolvidas. De outro lado, as obrigações de ensino e a extensa área de cobertura têm tornado os recursos humanos disponíveis insuficientes para dar conta das necessidades de saúde com a presteza e a qualidade almejadas, gerando dificuldade de acesso e tempo de espera prolongado, além de prejuízos na manutenção do acompanhamento de saúde em todas as áreas. Com a situação financeira atual das universidades estaduais paulistas, a situação está mais grave, uma vez que foi interrompido 1054

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o preenchimento de claros existentes e adiada a médio prazo a ampliação de quadros. Com dois programas de demissão voluntária da USP implantados entre 2015 e 2017, tivemos uma redução de um terço dos funcionários, com impacto significativo nas atividades de apoio ao ensino e à assistência. Para dar conta da formalização da articulação do CSEB à Rede Municipal de Saúde e da cobertura da população da área e para manter as atividades de ensino, pesquisa/inovação de tecnologia e extensão, está em negociação um convênio FMUSP-SMS, mediante o estabelecimento de um instrumento de cooperação e provimento de recursos. Essa foi a alternativa encontrada para sustentar o funcionamento de outros dois serviços-escola do município, o CSE Geraldo de Paula Souza, vinculado à Faculdade de Saúde Pública da USP, e o CSE Barra Funda, vinculado à Irmandade da Santa Casa. Entre os muitos desafios atuais de um serviço-escola voltado para o ensino da Atenção Primária, destacamos: - A própria organização da Atenção Primária em regiões metropolitanas, articulando um conjunto de serviços e formas de cuidar da saúde e doença em um território complexo, que exige cuidados de saúde e estratégias de organização renovadas conforme necessidades, valores, ofertas e produção de trabalho em Saúde. A Estratégia Saúde da Família (ESF) continua como principal modalidade assistencial, já com longa data de implantação, mas que, em muitos locais, tem investido mais na atenção à doença de incidência individual do que na saúde da família e em ações de promoção da Saúde e redução de vulnerabilidades no território. Mesmo a atuação em equipe, integrando médico e equipe de enfermagem, e a potencialidade do trabalho dos agentes comunitários não encontraram pleno desenvolvimento. - A atenção integral também tem encontrado diferentes formas de organização, mediante a incorporação de profissionais de diferentes áreas de formação, como nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), ainda reclamando maior amadurecimento na forma de integrar conhecimento e trabalho em equipe. - A Atenção Primária como disciplina de graduação das diversas áreas da Saúde dá oportunidade ao aluno tanto para uma formação mais integral quanto multiprofissional. No entanto, as grades curriculares e a estrutura das escolas enfrentam o desafio de se modernizarem e responderem a novos objetivos e estratégias de formação. - O ensino em serviço para grandes contingentes de alunos de graduação e especialização coloca para os municípios o desafio de articular assistência à população e atividades de ensino em uma estrutura física não concebida com essa finalidade e, muitas vezes, com recursos humanos restritos. Os contratos de gestão de Organizações Sociais (OS) para a ESF muitas vezes não contemplam metas condizentes com atividade de ensino em serviço, causando tensão entre profissionais e gerência-OS e SMS-universidades. Iniciativas como o Contrato Organizativo de Ação Pública de Ensino-Saúde (Coapes), portaria do Ministério da Saúde, atualmente encampado pela SMS de São Paulo, são promissoras como espaço de planejamento e avaliação de estágio em serviços municipais. No CSEB, a gestão do serviço orientada pela prática democrática e participativa é um princípio e também um constante desafio: cenário de trabalho compromissado, disputa diária de projetos, escassez de recursos, necessidades de saúde, pressões sociais, tensões e distensões entre a valorização do apontamento da direção e o compartilhamento de responsabilidades enriquecem, mas constantemente tornam complexo o exercício da gestão. Por isso, essa tem sido também, em si mesma, uma área de investigações e de proposições, com a organização de espaços de participação, compartilhamento de projetos e ferramentas gerenciais. O CSEB, ao longo de sua história, desenvolveu diferentes experiências com o registro, tomado não apenas como modo de sistematizar os acontecimentos em cada encontro assistencial, mas também como forma de organizar as propostas do serviço para o trabalho com diferentes grupos populacionais. O serviço também elaborou sistema de informação próprio, tendo um histórico dos atendimentos pelos quais é possível observar propostas em curso, produção assistencial, características sociodemográficas e de saúde da população adscrita, vigilância epidemiológica, controle de exames alterados, faltosos e registros de procedimentos. Campo de pesquisas avaliativas nos trabalhos de alunos, as práticas e os conhecimentos produzidos no CSEB também estiveram a serviço da construção de propostas para a avaliação da APS. 1055


NOTAS BREVES

Desde sua fundação, o CSEB tem contribuído com a formulação de tecnologias e políticas de Saúde, participando da proposição e implantação de diretrizes em diferentes níveis de gestão, incluindo linhas de produção de cuidado, matriciamento, educação permanente, diagnóstico de saúde, planejamento e avaliação. As atividades de comemoração dos quarenta anos do CSEB são um momento de celebrar esse serviço e sua trajetória, com registros da memória e reflexões sobre os aprendizados, mas também um momento político, de debate coletivo sobre os desafios, de buscar atenção e estratégias para os novos caminhos e a reinvenção de possibilidades para a manutenção desse projeto. Essas atividades se estendem de julho a novembro de 2017 e incluem: •  Conferência “Medicina comunitária e centros de saúde-escola: contribuições do Centro de Saúde Escola Prof. Samuel B. Pessoa”, por Lilia Blima Schraiber •  Lançamento do livro “Saúde, sociedade e história”, de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (organização de José Ricardo Ayres e Liliana Santos) •  Mesa sobre a APS em grandes centros urbanos, com André Mota, Gastão Wagner Campos e Marina Peduzzi •  Debate sobre os desafios da APS, com Antonio Pithon Cyrino e José Guedes A programação ainda inclui o compartilhamento de experiências de formação e trabalho na APS e na Saúde Pública e depoimentos de funcionários, alunos, usuários, professores e pesquisadores sobre o CSEB, narrativas vivas e cheias de ensinamentos. Por fim, cabe agradecer pela participação de todos e pelo apoio da Diretoria da FMUSP, dos órgãos de divulgação desta instituição, da USP, do Hospital das Clínicas e de associações ligadas à APS, Saúde Pública e Saúde Coletiva. Com transmissão em tempo real e gravação, as imagens e os áudios das palestras, das mesas, dos debates, dos depoimentos, etc. compõem documentação disponibilizada no site site do CSEB/FMUSP(l). Ocasiões especiais como esta nos enchem de esperança de que sejam cada vez mais fortalecidos os laços profissionais e afetivos que nos trouxeram até aqui e que seguirão dando frutos nos anos vindouros.

Submetido em 01/08/17. Aprovado em 09/08/17.

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Para acessar a gravação, imagens e áudios do evento, acesse www.fm.usp.br/cseb. (l)


DOI: 10.1590/1807-57622017.0357

criação

A seção de Criação na revista Interface:

Imagem 1

vinte anos de experimentação

Eliane Dias de Castro(a) Eduardo Augusto Alves de Almeida(b) Gisele Dozono Asanuma(c) Juliana Araújo Silva(d) Renata Monteiro Buelau(e) Mariangela Scaglione Quarentei(f) Ricardo Rodrigues Teixeira(g) Elizabeth Maria Freire Araújo Lima(h)

Programa de Pós-Graduação Internunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo (USP), integrante da equipe de Criação da Interface. Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional, USP. Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05360-160. elidca@usp.br (b,c) Doutorandos, Programa de Pós-Graduação Internunidades em Estética e História da Arte, USP, integrante da equipe de Criação da Interface. São Paulo, SP, Brasil. eduardun@ hotmail.com; gisele.asanuma@ gmail.com (d) Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UNESP-Assis, integrante da equipe de Criação da Interface. São Paulo, SP, Brasil. juliana.arsi@gmail.com (e) Curso de Terapia Ocupacional, USP, integrante da equipe de Criação da Interface. São Paulo, SP, Brasil. renatabuelau@usp.br (f) Terapeuta ocupacional e artista independente, foi editora de Criação da Interface. São Paulo, SP, Brasil. mariquarentei@gmail.com (g) Faculdade de Medicina, USP, foi editor de Criação da Interface. São Paulo, SP, Brasil. ricarte@usp.br (h) Curso de Terapia Ocupacional, USP, editora de Criação da Interface. São Paulo, SP, Brasil. beth.lima@usp.br (a)

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CRIAÇÃO

Inventar e reinventar a Criação A revista Interface nasce em agosto de 1997, com intenção de estimular o debate e a difusão de conhecimentos em torno das questões contemporâneas que desafiam seus campos de interesse. Em seu primeiro número, ela já apresentava um diálogo gráfico-textual com sua interdisciplinaridade, dando lugar a experimentações estéticas variadas. Pensar nos vinte anos da seção de Criação desta revista mobiliza questões antigas, e também atuais, que atravessam a equipe editorial em 2017. Queremos problematizar o que, por que e como ela opera num periódico científico indexado e arbitrado por interlocutores de diferentes áreas do conhecimento. Seção que se firmou com publicações de caráter inventivo, provocativo ou reflexivo, que se apresentam com linguagens diversas ou utilizam recursos visuais, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc. O intuito de tais recursos é promover outras possibilidades de interlocução e também oferecer diferente tessitura às discussões, em diálogo com as artes e a cultura em geral. O nome da revista já apresenta a sua intenção de abertura. E o nome da seção, o que enuncia? A que vem um espaço para a Criação em uma revista alojada no Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina e Instituto de Biociências da UNESP de Botucatu? Um interesse de acolher múltiplas formas de intervenção e práticas de saúde, a formação universitária e continuada atravessada por campos diversos, em especial: a educação e a comunicação, a filosofia, as artes, as ciências sociais e humanas, com ênfase nas pesquisas qualitativas e na Saúde Coletiva. Trata-se de um espaço aberto a pesquisas estéticas, atravessadas pelo pensamento crítico, que não se enquadram na formatação científica das demais seções da revista. É importante destacar que “criação” não significa, necessariamente, “arte”. E, também, que a maior liberdade formal da Seção de Criação, para além das normas tradicionais de publicações acadêmicas, não implica menor rigor dessas produções. Ao longo destes vinte anos, tal proposta tornou públicas ideias ousadas, inquietantes, experimentais, que acolhem algo valioso – e, por vezes, esquecido – do trabalho de estudo e pesquisa: a experimentação. Os processos, as invenções, as errâncias e as forças criativas são aqui necessárias para problematizar os próprios modos de fazer e pensar a produção de conhecimento. Ao mesmo tempo, e justamente por conta desse desejo por formas inventivas, cada criação submetida à apreciação da equipe editorial vem acompanhada de questões ainda não consideradas: provocam debates, exigem reformulações, mantêm todos num processo vivo de pensar a própria seção, a que ela vem e como se enuncia. Nas próximas páginas, apresentamos: recortes da multiplicidade de vozes que contam a nossa história, algumas tentativas de pensar a seção de Criação ontem e hoje, além de outros possíveis caminhos para a sua constante – e necessária – reinvenção.

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TOMAR A PALAVRA Eu vivi isso mais à distância... Publiquei na Criação número 2, em fevereiro de 1998, a convite da Maria Lúcia, que disponibilizou o espaço para um texto meu. Meus escritos nem sempre eram bem-vindos no programa de pós-graduação que frequentava por "não servirem para discussão". Hoje, vejo que era isso mesmo, não me interessava o discutir, mas sim o tomar a palavra. Acompanhei com muito entusiasmo a seção Criação desde o seu início, por ser de uma revista científica acadêmica e também por estar ligada à área da saúde, de escolas médicas públicas e tradicionais. Admirei a ousadia, a abertura ao novo, a coragem dos editores e também a generosidade com outras formas de conhecimento, com o que poderia surgir desses diálogos / interlocuções / interdisciplinaridades / interseções / intercessões de linguagens. Convidada a dar parecer sobre as propostas encaminhadas à Criação, comecei a sugerir trabalhos e convidar pessoas a publicarem, pois sabia que estritamente na Criação as suas produções, com reflexões sobre o campo da saúde e da educação, seriam partilhadas... Tomariam a palavra. A seção de Criação se constituiu no doar espaço ao que estaria destinado ao silenciamento ou à invisibilidade em outras revistas científicas... Ou nem chegaria a essas terras. Dar a palavra e dar a ver têm sido a potência dessa seção. Um dispositivo, no sentido Foucaultiano : mais do que desvelar o poder, exercê-lo. Um breve sobrevoo no site da Interface e a leitura da última publicação na Criação – "Dos estilhaços de uma pesquisa" – me trouxeram “O prazer do texto”, como disse Barthes . Na mestiçagem de conhecimentos e linguagens. 20 anos de Criação valem muitas vidas! Mariângela Quarentei


CRIAÇÃO

Outras linguagens para o saber

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A revista Interface foi idealizada por um grupo interdisciplinar de estudos do tema da Educação e da Comunicação no campo da Saúde, em um momento em que diversos projetos de integração entre a universidade, a comunidade e os serviços de saúde estavam sendo criados e experimentados tanto no ensino de graduação quanto na pós-graduação em Saúde, envolvendo as várias profissões dessa área1. A epígrafe que a acompanhou por muitos anos foi a frase de Pierre Lévy2, que descreve a interface como superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes. Intenção que articula a revista diretamente com as novas bases para as cartografias científicas contemporâneas. Uma tentativa de ampliar o entendimento do homem em sua universalidade, diversidade e diferença. Incertezas, indeterminações, imprecisões e a complexidade nas formas de conceber e fazer ciência são mostradas e acentuam as redefinições dos laços sociais em curso, instaurando redes, redimensionando o imaginário, adensando-o como círculo comunicacional onde a invenção valoriza a ética, num exercício estético-político que inclui certas poéticas como formas ativas de encarar o real3.

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criação Desalinho do tempo ­(i) Arte-educadora e pesquisadora interdisciplinar de artes, epistemologia e educação, foi fundadora da Escola Creare e professora do Departamento de Educação do Instituto de Biociências, UNESP. No número 18, de 2005, da Revista Interface, a Seção de Criação publicou, em sua homenagem, “Composição Lúcia”, que pode ser acessada em: http://www. scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid= S1414-32832005 000300021&lng= en&nrm=iso (j) Médico sanitarista, professor da Faculdade de Medicina da USP, com estudos nas interfaces entre saúde coletiva, comunicação, filosofia, ciências humanas e inteligência coletiva. (k) Terapeuta ocupacional e artista, pesquisadora dos atravessamentos entre processos de criação e a produção de saúde, trabalhou como Terapeuta Ocupacional da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista – UNESP.

A presença de Maria Lúcia Torrales Pereira(i) e Ricardo Rodrigues Teixeira(j) na equipe que concebeu a revista foi crucial para a Criação, que, entre 2009 e 2014, teve como editora Mariângela Quarentei(k). Essas presenças marcaram profundamente a concepção editorial da revista, que se manteve no desafio de tornar expressiva sua vocação interdisciplinar, buscando produzir e afirmar interfaces entre diferentes discursos e linguagens, na exploração de um diálogo gráfico-textual. Em 2009, o projeto gráfico da revista passa a ser pensado a partir do conteúdo publicado na seção, de forma a produzir uma integração entre a capa, as interferências gráficas nos textos, a rede imagética e textual de conceitos e temáticas presentes em cada número, além de imagens organizadas em pranchas intercaladas entre os artigos publicados na edição impressa. Em 2013, o formato digital provocou a equipe com novos desafios e possibilidades. A seção expandiu a gama de experimentações no projeto gráfico, com a articulação de textos, cores, imagens, e agora, também, vídeos e áudios nas suas criações. Foram publicados nesta seção: textos literários, poéticos e teatrais; ensaios críticos sobre artes plásticas, teatro, cinema, dança e fotografia; pinturas em tela e pinturas corporais; autorretratos; escultura e instalações; gravuras e xilogravuras; colagens e mosaicos; costuras e bordados; desenhos, esboços e projetos arquitetônicos; ensaios fotográficos; registros e relatos de mostras, exposições, performances e espetáculos; cartografias de expedições urbanas; acompanhamentos de festas populares; estudos etnográficos; entre outros materiais entrelaçados. Por meio dessa diversidade de linguagens e composições, foram abordados temas variados, entre eles: interfaces entre ciência e arte, pesquisa e experimentação; crise da ciência e crise da representação; produtivismo na academia; ressonâncias entre loucura e criação; diferentes estratégias de humanização em saúde e de inclusão sociocultural; oficinas de atividades artísticas; aspectos do corpo e da corporeidade; comunicação, formação e educação em saúde; produção de saúde e produção de subjetividade; olhares sobre a cidade; cotidiano e modos de vida; amor, solidão, vulnerabilidades; e reflexões sobre os processos de criação, de escrita e de pesquisa.

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Escrever com...

Imaginar entre pesquisar e aprender opera uma máquina de inventar.

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Rosimeri de Oliveira Dias, 2012, p.127

As aproximações com a seção de Criação da revista Interface se dão a partir de acontecimentos, estudos e pesquisas produzidos por uma rede de profissionais à espreita do trabalho vivo que constitui certas proposições. Numa tessitura relacional, fazeres e encontros conduzem a colaborações desejantes, com expressões de experiências poéticas e críticas que requerem um lugar de acolhimento para sua publicação fora dos formatos tradicionais da academia. Expõem-se, de maneira próxima e afetiva, experimentações com linguagens que aferem singularidades do exercício de pesquisar atrelado ao ato criador e à inventividade, e que, em alguns momentos, envolvem, também, a participação coletiva no processo da pesquisa. As publicações evocam a participação e a emancipação, em especial, daqueles que habitam as margens do projeto científico e artístico hegemônico. A seção de Criação busca alojar, assim, alguns vestígios dos acontecimentos, proporcionando outras visualidades e reflexões que acionam, na prática, mudanças no pensamento e deslocamentos sensíveis.

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O que toca? O que conecta? O que produz leituras menores ou estabelece pontes? Fazeres e cuidados não hegemônicos são colocados em marcha na escolha das imagens, dos textos, na elaboração da montagem e das composições da edição. Trabalha-se junto, trabalha-se com cada autor, acompanham-se experiências para efetuar formatos que problematizem a pluralidade de formas de produzir conhecimento e agreguem, ao projeto da publicação científica, a complexidade de articulá-lo aos acontecimentos do presente. Trata-se de realizar intervenções delicadas e pertinentes numa coleta do mundo onde a criação é um problema vital para produzir certas aberturas na fixação dos lugares tecidos na durabilidade e especialização do projeto científico, cunhando, na edição, outras temporalidades e espacialidades, outras formas de imersão na linguagem, com a apresentação de possibilidades expressivas que instaurem “capacidades de sentir e falar, de pensar e agir, que não pertence a nenhuma classe em particular, que pertence a qualquer um”5 (p. 43). A seção de Criação acolhe certas vitalidades no processo de pesquisa acadêmica ou em suas bordas, atualizando formas do cuidado em saúde, inventando modos de ensinar e produzir pensamento e contato implicados na amplitude do ato de pesquisar. Operam-se, portanto, intensidades que fazem ver: forças, trajetos, afetos, sensações, que transbordam, por aproximações ou por distanciamentos, do projeto científico dominante.

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"Uma imagem, pois, deslocada das palavras, “Uma imagem, pois, deslocada das vozes, histórias, lembranças, espaço, que palavras, vozes, histórias, lembranças, espaço, rompe 'a combinação de palavras e o fluxo de que rompe ‘a combinação de palavras e o vozes' e ' força as palavras a tornar-se imagem, fluxo de vozes’ e ‘ força as palavras a tornarse imagem, movimento, canção, poema’. movimento, canção, poema'. Assim, a imagem Assim, a imagem desfia esta linguagem que desfia esta linguagem que nos aprisiona e nos aprisiona e sufoca, linguagem repleta sufoca, linguagem repleta de cálculos, de cálculos, lembranças, histórias, hábitos. lembranças, histórias, hábitos. As palavras por As palavras por si só, dadas suas aderências, si só, dadas suas aderências, não conseguem não conseguem esse ‘desligamento’, a menos esse 'desligamento', a menos que justamente que justamente elas sejam empurradas e elas sejam empurradas e reviradas, mostrando 6 reviradas, mostrando seu fora.” (p. 41) 6 seu fora" (p. 41).


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Questões de linguagem, implicações políticas Entre as diversas questões que se colocam durante o trabalho desta editoria, cabe destacar uma, que diz respeito à linguagem, e uma segunda, cujas implicações são políticas. Talvez ambas fiquem mais evidentes se convocarmos, com intuito de interlocução, algumas ideias de Jacques Derrida, conforme aparecem no debate transcrito e publicado sob o título de Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo7. Assim, perguntamos: que forças são tensionadas nesse espaço, dito de “criação”, que propõe acolher outras formas de produção intelectual, as quais vêm acompanhadas não somente do desejo de se fazerem, mas, também, da potência intrínseca ao resultado que vem a público; desejo e potência que se realizam, justamente, porque encontram, na criação, tanto um gesto (ato criativo) quanto um espaço (de publicação). A questão de linguagem, mencionada acima, encontra-se num constante embate com a normatização acadêmica, pois quer forçar os seus limites e experimentar formas diversas. Ela também traz conflitos em si mesma; e são os conflitos, mais do que os apaziguamentos, que sugerem caminhos alternativos. Derrida aborda o problema da relação entre imagem e texto, que apresenta um paradoxo complexo, no sentido de que toda imagem convoca palavras e toda palavra é prenhe de imagens. O filósofo quer saber o que resta da imagem após o escrito. Questão que, no caso das publicações científicas, deveria ser fundamental; pois há sempre a tendência de que a palavra predomine – como formadora de discurso –, enquanto a imagem assume papel de ilustração, com sua força expressiva domesticada, posta a serviço do texto. Por que motivo e em que momento a academia rebaixou a linguagem visual – a qual, curiosamente, predomina no cotidiano contemporâneo? A comunicação, no âmbito ordinário, é cada vez mais icônica. Porém a produção intelectual, em geral, se faz apenas com palavras. Por mais instigante que seja a sua investigação, os artigos científicos convencionais abrem mão da potência sensível das demais linguagens, entre elas, a imagética. Há também várias outras. O que se perde nessa tradução da experiência viva para as letras – e somente as letras? É uma pergunta que a Criação tenta se fazer por outra via, que é a de ceder espaço a experimentos com linguagens variadas, como a fotografia, o vídeo, o áudio e, até mesmo, o texto, quando este escapa da norma e se apresenta pelo viés poético. Derrida ainda deseja saber: se respondemos a um texto com palavras, podemos responder a um estímulo visual com outra coisa que não uma imagem? Porque, de alguma maneira, transferir as demais linguagens ao registro verbal implica perverter o que é próprio delas. A questão cabe a toda forma de produção de conhecimento. Em nosso caso: por que traduzir para o texto as questões que afetam nossas vivências e pesquisas em comunicação, saúde e educação? O que ganhamos e o que perdemos durante esse processo? Que tipo de conhecimento estamos privilegiando? Em outras palavras: por que não produzir uma imagem, um filme, uma música? Uma aula, um movimento, um toque? Por que não responder à afetação do pesquisador com uma forma sensível? A segunda questão, que citamos no início, diz respeito a um posicionamento político; às escolhas e, também, às consequências da publicação. Esse ato de criar e publicar os produtos da nossa pesquisa contém uma vontade de compartilhálos e, também, uma tentativa de impedir que se percam. Tal operação é, segundo o filósofo, uma operação de poder, com implicações evidentemente políticas, no sentido amplo do termo. Que sempre vêm à tona durante as edições da revista. Primeiro, por parte dos próprios autores, que se propõem a localizar, classificar, hierarquizar a sua produção. Em segundo, por parte da equipe editorial, responsável pelo delicado – e, ao mesmo tempo, violento – trabalho de deliberação, ou seja, de escolher, avaliar e institucionalizar a produção do outro. Trabalho delicado porque requer lidar com a alteridade, a diversidade e a produção intelectual dos autores. Trabalho violento porque não há arquivamento sem seleção, e não se pode guardar tudo, portanto arquivar é, também, um ato de destruição. Como identificar limites, como operar com essa finitude? Se há critérios precisos para avaliar artigos acadêmicos convencionais (adequação à forma, ineditismo, relevância no campo, clareza etc.), como avaliar propostas que, justamente, desejam escapar à norma? 1066

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Editoração: equipe e proposta em processo

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A seção sempre foi desafiada pelas contribuições dos autores, fazendo com que o processo de criação se tornasse inerente à própria seção. A equipe instaurou uma rede de trabalho sensível e afetivo, que potencializa experiências singulares e coletivas, múltiplas formas de expressão da vida e do pensamento reflexivo. Explorar o que instaura uma zona de comunidade a partir da confiança e da junção de pequenos coletivos que vislumbrem tentativas de provocar estados de invenção e trabalhar as publicações para o projeto editorial final. O pouso do olhar sobre a diferença permeia o processo de reflexibilidade e responsabilidade; encontram-se, nos afetos, a alegria, a potência e a complexidade, efeitos ressonantes para intensificar publicações num periódico científico interdisciplinar.

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Esses embates ressurgem a cada edição da revista. Se a rigidez normativa não compete à seleção das propostas submetidas, há, ainda, um rigor e uma ética que nos cabe pensar, inventar e operar. Além de uma maneira de trabalhar que só pode ser gentil, tanto na recepção das propostas, no diálogo com os autores e na publicação. Gentileza que, se não chega a ser um método, ao menos, é um princípio a orientar a edição e a reinvenção constante que o processo todo requer.


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Festejar ...

“Celebram-se vinte anos da seção de Criação da revista Interface. Seção de um periódico acadêmico que celebra, há vinte anos, a criação, a invenção, a experimentação, a liberdade formal, abrindo espaço para a publicação de produções que não cabem nos moldes da comunicação acadêmica. Acho importante enfatizar que só pode ser esse o sentido de se chamar esta seção de Criação: o de celebrá-la! Jamais no sentido de que esta seria a seção em que estaria confinada a “criação”, que não estaria presente nas demais seções da revista. De modo algum! A expectativa é sempre de que toda produção científica que mereça ser publicada contenha uma boa dose de criação nas mais diversas etapas de sua produção, da concepção da pesquisa à exposição dos resultados. Nesse sentido, a seção chamada Criação não reivindica ser o espaço da criação na revista, mas o da sua celebração. E a criação é festejada seguindo os padrões de toda festa: a busca de uma verdade fundada na beleza, na alegria e no desejo de estarmos juntos, que redesenha vozes, palavras, corpos e gestos, ao arrancá-los de determinados esquemas formais, seja o das normas da vida cotidiana, seja o das regras do jogo científico. Rompem-se limites, invertem-se lugares e, como se festejássemos o divino, uma criança é coroada a cada nova edição para lembrar quem é que, de fato, reina nos territórios da ciência e da razão, na medida em que eles continuam a ser territórios da vida. Quando a presença por vinte anos desse espaço numa revista acadêmica é cuidadosamente revisitada e analisada, como foi feito no presente artigo, descobre-se a consistência do conhecimento aí construído/compartilhado. Consistência fundada na possibilidade de se “acolher certas vitalidades no processo de pesquisa” que não encontram vias de expressão nos espaços extremamente regulados da produção e comunicação de conhecimento acadêmico; consistência fundada na capacidade de se “acionar mudanças no pensamento e deslocamentos sensíveis” e, sobretudo, no forte desejo de se “provocar estados de invenção” Celebrar a criação, festejá-la num espaço aberto à liberdade e às experimentações expressivas, é sempre um modo de emular a divindade, de manter vivo o apetite pela invenção, motor indispensável da produção científica e filosófica, tanto quanto da arte. Por fim, cabe dizer que comemorar os vinte anos da seção de Criação da revista Interface é, também, relembrar sua origem enquanto um gesto criativo no campo da editoria científica e o dever de homenagear alguém que teve uma grande importância nesse gesto, a arte-educadora Maria Lúcia Torrales Pereira, que abriu espaço para a criação por onde passou na sua trajetória profissional, da educação infantil à Educação Superior. E, do mesmo modo, homenagear e agradecer a todos que têm recriado a Criação, a cada novo número da revista, ao longo de todos esses anos, único modo dessa rica experimentação editorial ‘perseverar na existência’”... Ricardo Rodrigues Teixeira

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Para onde vai a forma quando a matéria cede passagem

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Palavras (nunca) finais

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Belezas e precariedades estão presentes nos encontros e chamam à interferência todos os participantes em horizontalidade. Aqui, a mutação da sensibilidade faz com que se apreendam significados surpreendentes onde, normalmente, só se vê repetição ou impossibilidade. Geram-se outros sentidos de vida que permitem ir ao cotidiano, viver as experiências de maneiras diversificadas, tanto social quanto culturalmente, trabalhando para o desmanchamento de violências cristalizadas, disseminadas e agudas. Na imanência dos trabalhos, sempre singularizados, compartilham-se força e alegria ao se encontrarem linguagens para reinventar a arte e a vida. Para a celebração dos vinte anos da seção de Criação da revista Interface, revisitamos todos os trabalhos publicados, querendo estreitar o pensamento e o contato sensível que permitiriam esta reflexão. Se é impossível mencioná-los um a um, deixamos o convite para o leitor acessá-los no site da revista e se contaminar com o que, pela resistência sempre inventiva, ainda é possível.

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Colaboradores Os autores participaram colaborativamente dos processos envolvidos na elaboração deste material. Eliane Castro, Eduardo Almeida, Gisele Asanuma, Juliana Silva, Renata Buelau e Elizabeth Lima realizaram a pesquisa ativa nos números da Revista Interface, com levantamento de todos os artigos publicados na seção de Criação e mapeamento de imagens, temas e palavras; e elaboraram o texto e as composições de imagens. Mariangela Quarentei e Ricardo Teixeira contribuíram com textos-depoimentos e participaram, juntamente com os outros autores, da revisão e finalização do material. Referências 1. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP, Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista interface – comunicação, saúde, educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68. 2. Lévy P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: 34; 1993. 3. Carvalho EA. A declaração de Veneza e o desafio transdisciplinar. Rev Margem Educ. 1992; 1(1): 91-103. 4. Dias RO. Imaginar. In: Fonseca TMG, Nascimento ML, Maraschin C, organizadores. Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina; 2012. p. 127-30. 5. Rancière J. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2012. 6. Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições; 2013. 7. Derrida J. Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo. In: Derrida J. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: UFSC; 2012. p. 91-144.

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As imagens e composições de imagens presentes neste artigo foram produzidas pela equipe da seção de Criação, a partir de fotos, desenhos e outras produções extraídas de artigos publicados nesta seção nos vinte anos da Revista Interface. Imagem 1 - Rede de palavras. Imagem 2 - Montagem de imagens de Elisandro Rodrigues, publicada no artigo “Dos estilhaços de uma pesquisa”. Interface n.61. Imagem 3 - Composição a partir de: Montagem de imagens de Eliane Castro, Nara Isoda e Renan Duarte, publicada no artigo “Composições… palavras… imagens… costuras…”. Interface n. 46; Desenho de Andréa Zemp, publicado no artigo “Teremos um título?”. Interface n. 35. Fotografia de Radilson Carlos Gomes, publicada no artigo “Uma desmontagem humanizada através de fotografias em Saúde Coletiva”. Interface n. 47. Imagem 4 - Composição a partir de: Montagem de imagens de Eliane Castro, Nara Isoda e Renan Duarte, publicada no artigo “Composições… palavras… imagens… costuras…”. Interface n. 46. Fotografia de Isabela Valent, publicada no artigo “Sightseeing – paisagens arquivadas”. Interface n. 44. Colagem de Gisele Asanuma, publicada no artigo “Poética do inacabado: postais cartográficos das expedições urbanas”. Interface n. 34. Desenho de João Monteiro, publicado no artigo “O Corpo e a Saúde”. Interface n.14. Registro de Performance de André Nunes, publicada no artigo “Pêlos pelos fora da ordem”. Interface n.19. Fotografia de Jaqueline, publicada no artigo “Exposição de fotografias: o hospital pelo olhar da criança”. Interface n. 21. Fotografia de Mosaico coletivo de Claudia Pereira Martins Ribeiro e Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa, publicada no artigo “Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel: o lugar da materialidade no campo da Terapia Ocupacional”. Interface n. 49. Fotografia de Arthur Amador, publicada no artigo “O Coletivo (com) Preguiça: encontros, fluxos, pausas e artes”. Interface n. 56. Desenho de Andréa Zemp, publicado no artigo “Teremos um título?”. Interface n. 35. Imagem 5: Desenho de Guilherme Santos Torres, publicado no artigo “Dos estilhaços de uma pesquisa”. Interface n. 61. Imagem 6: Fotografia de Rodolfo Gomes do Nascimento e Ronald de Oliveira Cardoso, publicada no artigo “O modo de vida do idoso ribeirinho amazônico em imagens e linguajar cultural”. Interface n. 55. Imagem 7: Colagem com fotografia de Nice Gonçalvez, publicada no artigo “Mulheres da Norô”. Interface n. 60. Imagem 8: Fotografia de Arthur Omar. Antropologia da Face Gloriosa. São Paulo: Cosac Naify, 1997. Imagem que integra o projeto gráfico-textual da Interface, vol.13, supl.1, 2009. Imagem 9: Fotografia de Nara Isoda, publicada no artigo “Processos de criação e de escrita: a experiência das Exposições IN PACTO”. Interface n. 40. Imagem 10: Tríptico de fotos. Fotografia de Juliana Araújo Silva, publicada no artigo “Habitando uma vitrine-membrana: entre dentro e fora”. Interface n. 45. Fotografia de Angela Alegria, publicada no artigo “Nenhuma ferida fala por si mesma. Sofrimento e estratégias de cura dos imigrantes por meio de práticas de ethnography-based art”. Interface n. 58. Fotografia de Helena Rios, publicada no artigo “Teremos um título?”. Interface n. 35.

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Créditos das imagens


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Para celebrar os vinte anos da revista Interface, a equipe de Criação mergulhou no conjunto de materiais que foram publicados na seção de Criação desde o primeiro número da revista. O resultado é esta bricolagem de imagens, palavras e reflexões, que constituem recortes da multiplicidade de vozes que contam essa história. São tentativas de pensar a seção de Criação ontem e hoje, além de outros possíveis caminhos para a sua constante – e necessária – reinvenção.

Palavras-chave: Criação. Linguagens. Pesquisa em saúde. Interdisciplinaridade. Grupo de editoração. The section on Creation at the journal Interface: twenty years of experimentation To celebrate the 20th anniversary of the journal Interface, members of the team responsible for the Creation section immersed themselves in a range of materials that have been published in the section since the journal’s very first issue. The result is an assortment of images, words and reflections that gives an insight as to the multiplicity of voices that tell this story. They represent attempts to think about the Creation section both nowadays and in the past, along with possible pathways for its on-going – and essential – reinvention.

Keywords: Creation. Languages. Health research. Interdisciplinarity. Publishing group. La sección de Creación en la revista Interface: veinte años de experimentación Para conmemorar los veinte años de la revista Interface el equipo de creación revisó profundamente el conjunto de materiales publicados en la sección de Creación desde el primer número de la revista. El resultado es este conjunto de imágenes, palabras y reflexiones que constituyen recortes de la multiplicidad de voces que cuentan esta historia. Son tentativas de pensar en la sección de Creación ayer y hoy, además de otros posibles caminos para su reinvención constante y necesaria.

Palabras clave: Creación. Lenguajes. Investigación en salud. Interdisciplinariedad. Grupo de edición.

Submetido em 06/07/2017. Aprovado em 20/07/2017.

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Na entrevista “Da inspiração à formulação da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Os três momentos da PHC que toda teoria verdadeiramente crítica deve conter”, com número de DOI: 10.1590/1807-57622017.0001 , publicado no periódico, Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 2017; 21(62):711-24, na página: 711:

errata

DOI: 10.1590/1807-57622017.0404

Onde se lia: Professor Emérito, Universidade Estadual de Campinas Unicamp. Faculdade de Educação. Rua Ministro de Godói, 969, 4º andar, Perdizes. São Paulo, SP, Brasil. 13083-970. Caixa postal: 6166. (a)

Leia-se: Professor Emérito, Universidade Estadual de Campinas. Unicamp. Faculdade de Educação. Rua Bertrand Russell, 801, Cidade Universitária Zeferino Vaz Cidade Universitária, Campinas, SP, Brasil. 13083-865. (a)

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