v.18 n.50, jul./set. 2014

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa.

EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Eunice Nakamura, Unifesp Margareth Santini de Almeida, Unesp Túlio Batista Franco, UFF Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Claudio Bertolli Filho, Unesp Denise Martin Covielo, Unifesp Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ Editoras de Criação/Creation Editors/Editoras de Creación Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Scaglione Quarentei, Unesp Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Cintia Ribas, Enfance Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Paula Carpinetti Aversa, USP Renata Monteiro Buelau, USP

PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Cintia Ribas, Enfance Mariângela Scaglione Quarentei, Unesp Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro

PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Auxiliar administrativo/Administrative assistant/ Ayudante administrativo Nieli de Lima Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) María Carbajal (Espanhol/Spanish/Español) Web design Tortagade Manutenção do website/Website support/ Manutención del sitio Renato Antunes Ribeiro Jornalismo científico/Scientific jornalism/Jornalismo cientifico Felipe Modenese

Capa/Cover/Portada: Segunda-feira, Sertão Central, Ceará, foto de Renzo Taddei, 2005.


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francini Lube Guizardi, Fiocruz Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Jairnilson da Silva Paim, UFBa Janine Miranda Cardoso, Fiocruz Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Carlos Libâneo, UCG José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ

p

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Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Antônia Ramos de Azevedo, Unesp Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Marina Peduzzi, USP Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP Mònica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Mónica Petracci, UBA, Argentina Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Vânia Moreno, Unesp


APOIO/SPONSOR/APOYO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Bibliografia Brasileira de Educação <http://www.inep.gov.br>

. CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales

y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . Coleção SciELO Brasil/Coleção SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com> TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br


ISSN 1807-5762

Atenção Primária à Saúde

gestão do trabalho

úde

segurança alimentar e nutricion al

PET-Sa

Saúde mental

HIV/Aids

sertão

comunicação inovação Semiótica biopolítica

assist ênc pré-na ia tal

empoderamento ajuda interpares

rela

ção

clinica ampliada Educação superior

teoria social

ico-

paci en

te

Grupo focal

Pesquisa etnográfica

Renzo Taddei

méd

Interdisciplinaridade

Oncologia

pesquisa qualitativa reforma da saúde colombiana

lise aná onal i ituc inst

log ia

Saúde

Ecologia

ambiente virtual

refor psiquiá ma trica

emo

pia

otera

Music

Saúde Cole

tiva

Acompanhamento terapêutico

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2014; 18(50)

Comunidades quilombolas

Sistema Único de Saúde

processos saúde-doença

educação

epist

Educação Nutricional

consistência teórico-metodológica


Interface - comunicação, saúde, educação/ Unesp, 2014; 18(50) Botucatu, SP: Unesp Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I Unesp Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2014; 18(50)

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apresentação

na pesquisa qualitativa em saúde

449 Pesquisando na interface: problemas e desafios a partir da pesquisa qualitativa em saúde Helen Gonçalves; Renata Menasche

Ana Kalliny de Sousa Severo; Solange L’Abbate; Rosana Teresa Onocko Campos

557 Ouvir vozes: um estudo sobre a troca de experiências em ambiente virtual Octávia Cristina Barros; Octavio Domont de Serpa Júnior

571 Educação pelo trabalho: reorientando a formação de profissionais da saúde Graciela Soares Fonsêca; Simone Rennó Junqueira; Celso Zilbovicius; Maria Ercilia de Araujo

457 A expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva: usos e abusos da pesquisa qualitativa Daniela Riva Knauth; Andréa Fachel Leal

469 Comentários pertinentes sobre usos de metodologias qualitativas em saúde coletiva

585 “Ele é igual aos outros pacientes”: percepções dos acadêmicos de Odontologia na clínica de HIV/Aids Luiza Augusta Rosa Rossi-Barbosa; Raquel Conceição Ferreira; Cristina Andrade Sampaio; Patrícia Neves Guimarães

Mara Helena de Andréa Gomes; Denise Martin; Cássio Silveira

artigos 479 Avaliação da qualidade de evidências científicas sobre intervenções musicais na assistência a pacientes com câncer Vladimir Araujo da Silva; Eliseth Ribeiro Leão; Maria Júlia Paes da Silva

493 O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde

espaço aberto 597 Ser-estar no sertão: capítulos da vida como filosofia visceral Renzo Taddei

609 Relación médico-paciente y mercado de la salud en Colombia Jorge Márquez V

Marcia Ernani de Aguiar; André Mota

507 Grupos de educação nutricional em dois contextos da América Latina: São Paulo e Bogotá Kellem Regina Rosendo Vincha; Alexandra Pava Cárdenas; Ana Maria Cervato-Mancuso; Viviane Laudelino Vieira

521 Perspectivas de segurança alimentar e nutricional no Quilombo de Tijuaçu, Brasil: a produção da agricultura familiar para a alimentação escolar Andréia Santos Carvalho; Denise Oliveira e Silva

533 Acompanhantes terapêuticos na Grande Vitória, Espírito Santo, Brasil: quem são e o que fazem? Kelly Guimarães Tristão; Luziane Zacché Avellar

ISSN 1807-5762

545 A supervisão clínico-institucional como dispositivo de mudanças na gestão do trabalho em saúde mental

dossiê Sobre Usos e abusos

educação

619

livros

625

teses


comunicação

saúde

2014; 18(50)

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presentation dossier On: Uses and abuses

Helen Gonçalves; Renata Menasche

457 Expansion of the social sciences within public health: uses and abuses of qualitative research Daniela Riva Knauth; Andréa Fachel Leal

Ana Kalliny de Sousa Severo; Solange L’Abbate; Rosana Teresa Onocko Campos

557 Hearing voices: a study on exchanges of experiences in a virtual environment Octávia Cristina Barros; Octavio Domont de Serpa Júnior

571 Education through work: reorienting healthcare professionals’ education Graciela Soares Fonsêca; Simone Rennó Junqueira; Celso Zilbovicius; Maria Ercilia de Araujo

585 “He is like the other patients”: perceptions of dentistry students in the HIV/AIDS clinic Luiza Augusta Rosa Rossi-Barbosa; Raquel Conceição Ferreira; Cristina Andrade Sampaio; Patrícia Neves Guimarães

469 Pertinent comments about the use of qualitative methodologies in the public health field Mara Helena de Andréa Gomes; Denise Martin; Cássio Silveira

articles 479 Assessment of quality of scientific evidence on musical interventions in caring for cancer patients Vladimir Araujo da Silva; Eliseth Ribeiro Leão; Maria Júlia Paes da Silva

open space 597 Existing in the sertão: chapters of life as visceral philosophy Renzo Taddei

609 The doctor-patient relationship and the healthcare market in Colombia Jorge Márquez V

493 The Family Health Program in the Bom Retiro district, São Paulo, Brazil: communication between Bolivians and healthcare workers Marcia Ernani de Aguiar; André Mota

619

books

625

theses

507 Nutritional education groups in two contexts in Latin America: São Paulo and Bogotá Kellem Regina Rosendo Vincha; Alexandra Pava Cárdenas; Ana Maria Cervato-Mancuso; Viviane Laudelino Vieira

521 Prospects of food and nutritional security in the Tijuaçu Quilombo, Brazil: family agricultural production for school meals Andréia Santos Carvalho; Denise Oliveira e Silva

533 Therapeutic attendants in the Greater Vitória, Espírito Santo State, Brazil: who are they and what do they do? Kelly Guimarães Tristão; Luziane Zacché Avellar

ISSN 1807-5762

545 Clinical and institutional supervision as a tool for changes in mental health work management

of qualitative healthcare research 449 Researching at the interface: problems and challenges from qualitative health research

educação


apresentação

DOI: 10.1590/1807-57622014.0654

Usos e abusos da pesquisa qualitativa em saúde em análise Neste fascículo, número 50, completamos 17 anos do lançamento da Interface - Comunicação, Saúde, Educação, ocorrido em agosto de 1997. Ao longo desse período, Interface foi progressivamente caracterizando-se como um periódico dirigido para a publicação de pesquisas com abordagem qualitativa, pois a crescente presença desse tipo de metodologia em nossas publicações levou-nos a incluí-la como parte do escopo da revista. Ressalte-se que tal aumento do volume de publicação de pesquisas qualitativas, em Interface e em outros periódicos do campo da Saúde Coletiva, expressa o crescimento e a aceitação que essa produção alcançou nas últimas décadas e a relevante contribuição desses estudos, de caráter interdisciplinar, para o fortalecimento da Saúde Coletiva. Essa grande difusão da metodologia qualitativa em nossas pesquisas tem, por outro lado, revelado diversos problemas na qualidade do que tem sido produzido, como tematizado, sobre diferentes enfoques, no Dossiê “Usos e abusos da pesquisa qualitativa em saúde” que abre este fascículo. Seus autores aprofundam, nos textos aqui apresentados1-3, a rica discussão que conduziram na mesa-redonda de mesmo nome ocorrida no VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, realizado no Rio de Janeiro, em 2013. Fazemos um convite à leitura dos artigos que compõem este Dossiê, especialmente aos nossos colaboradores, pois muitas das razões de rejeição de artigos neste periódico, e em outros do campo, decorrem de problemas no desenvolvimento da pesquisa de natureza qualitativa, entre os quais podemos citar: ausência de um referencial teórico, apresentação de resultados quantificados, caráter muito descritivo e pouco analítico dos dados empíricos e limitada contextualização do objeto e campo do estudo. Antonio Pithon Cyrino editor-chefe

Referências 1. Gonçalves H, Menasche R. Pesquisando na interface: problemas e desafios a partir da pesquisa qualitativa em saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):449-56. 2. Knauth DR, Leal AF. A expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva: usos e abusos da pesquisa qualitativa. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):457-67. 3. Gomes MHA, Martin D, Silveira C. Comentários pertinentes sobre usos de metodologias qualitativas em saúde coletiva. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):469-77.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2014; 18(50):447

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presentation

DOI: 10.1590/1807-57622014.0654

Uses and abuses of qualitative healthcare research under analysis With this issue, number 50, we complete 17 years since Interface: Comunicação, Saúde, Educação was first launched in August 1997. Over the course of this period, Interface has progressively become characterized as a periodical directed towards publishing research with a qualitative approach, since the growing presence of this type of methodology in papers published here has led us to include this methodology as part of the journal’s scope. It should be emphasized that this increase in the volume of qualitative studies published, both in Interface and in other journals within the field of public health, expresses the growth and acceptance that such production has attained over recent decades and the important contribution of interdisciplinary nature that these studies have made towards strengthening the field of public health. This great dissemination of qualitative methodology in studies conducted in our field has, on the other hand, revealed a variety of problems regarding the quality of what has been produced. This topic is taken up, using several focuses, in the Dossier “Uses and abuses of qualitative healthcare research”, which opens the current issue. The authors of texts presented here1-3 deepen the rich discussion that they conducted at the round table of the same name that took place at the Sixth Brazilian Congress of Social and Human Sciences within Healthcare, which was held in Rio de Janeiro, in 2013. We invite you to read the papers that make up this Dossier, especially our contributing authors, since many of the reasons why papers submitted to this journal and to others in its field are rejected stem from problems relating to the use of qualitative methodology. Among these reasons, we can cite: absence of a theoretical reference framework; presentation of quantified results; treatment of empirical data that is very descriptive and non-analytical; and limited contextualization of the object and field of study. Antonio Pithon Cyrino editor-in-chief

References 1. Gonçalves H, Menasche R. Pesquisando na interface: problemas e desafios a partir da pesquisa qualitativa em saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):449-56. 2. Knauth DR, Leal AF. A expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva: usos e abusos da pesquisa qualitativa. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):457-67. 3. Gomes MHA, Martin D, Silveira C. Comentários pertinentes sobre usos de metodologias qualitativas em saúde coletiva. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):469-77.

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0263

dossiê

Pesquisando na interface:

problemas e desafios a partir da pesquisa qualitativa em saúde

Helen Gonçalves(a) Renata Menasche(b)

Gonçalves H, Menasche R. Researching at the interface: problems and challenges from qualitative health research. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):449-56.

There is a growing interest concerning the use of methodological procedures of qualitative research in various areas of knowledge where this kind of investigation was traditionally uncommon. Within healthcare, the importance of qualitative research for understanding health and disease processes is recognized. However, its credibility has been questioned, correlated with negligent use of qualitative approaches, such as the reduction of theoretical and methodological relevance. This misuse is most often noticed in publications in which a qualitative approach is used as a tool kit. Simultaneously, the institutions’ requirement that researchers should increase their productivity has forced them to review broader aims in their analysis and writing. Looking at a group or context requires a theoretical and methodological tool, in order to make inferences and to propose theoretical breakages and/or to demonstrate new points in relation to known topics.

Há crescente interesse e emprego de procedimentos metodológicos característicos da pesquisa qualitativa por diversas áreas do conhecimento que tradicionalmente não eram comuns. Na área da saúde, é reconhecida a importância da pesquisa qualitativa para a compreensão dos processos saúde-doença. Sua credibilidade tem sido questionada em vários âmbitos e relacionada a usos negligentes da abordagem qualitativa, como reduzir a relevância teórico-metodológica à aplicação de técnicas. O mau uso é mais frequentemente notado nas publicações quando a abordagem qualitativa é utilizada enquanto um kit de ferramentas. Simultaneamente, o “produtivismo” exigido pelas instituições tem obrigado os pesquisadores a rever objetivos mais amplos de análise/escrita. O olhar sobre um grupo/contexto requer um aparato teórico-metodológico, de modo a possibilitar inferir algo e propor rupturas teóricas e/ou evidenciar novos pontos sobre um tema conhecido.

Keywords: Qualitative research. Theoretical-methodological approach. Social theory. Scientific production.

Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Abordagem teórico-metodológica. Teoria social. Produção científica.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Rua Marechal Deodoro, 1160, 3o andar. Pelotas, RS, Brasil. 96020-220. hdgs.epi@gmail.com (b) Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFPEL. Pelotas, RS, Brasil. renata.menasche@ pq.cnpq.br

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pesquisando na interface: problemas e desafios...

Introdução Este texto, em sua primeira versão, compôs a discussão iniciada durante o VI Congresso Nacional de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (Rio de Janeiro, 2013), na mesa que teve por tema “Usos e Abusos da Pesquisa Qualitativa em Saúde”. Naquele momento, foram comentados alguns dos problemas e dificuldades do processo de pesquisa a partir da abordagem qualitativa, tendo sido mencionados, entre outros: a produção textual, o incipiente diálogo com as teorias, e as razões mais frequentes de negativas das revistas quando da submissão de artigos para publicação. Este trabalho, seguindo a reflexão sobre os incômodos e abusos (equívocos teórico-metodológicos) na pesquisa qualitativa em saúde, coloca-se como continuidade daquele debate, mas concentrandose, especificamente, em problemas detectados a partir da leitura de artigos e processo de pesquisa e/ ou escrita de artigos. Deve ser interpretado quase como um desabafo, no esforço de compartilhar, com colegas, inquietações decorrentes de nossas inserções e experiências de pesquisa e orientação de estudantes, caracterizadas por temas e projetos marcados pela interface da antropologia com outras áreas do conhecimento – especialmente a saúde –, de tradições de pesquisa muito distintas. Não nos deteremos, assim, em discutir como integrar a abordagem qualitativa às perguntas de pesquisa e vice-versa. Para isso, recomendamos alguns livros e artigos que, decorrentes de pesquisa do tipo, possibilitam uma boa apreensão dessas questões1-5. Citaremos, rapidamente, alguns exemplos de usos da pesquisa qualitativa em saúde, assim, teremos uma pequena amostra das possibilidades de investigação no campo. Uma gama de estudos de abordagem qualitativa na área aprofundam as razões pelas quais dado grupo de indivíduos mantém determinado comportamento considerado inapropriado à saúde, como: fatores que influenciam na não-adesão a tratamento medicamentoso ou alimentar, impacto da política de redução de danos sobre usuários de drogas ilícitas, razões para o uso irregular ou não-uso de preservativos em relações sexuais. Há, ainda, a possibilidade de a pesquisa qualitativa dar suporte a investigações com grandes amostras, interagindo com estudos “quantitativos”, entre outras: (a) indicando modos de abordar, nos questionários, tema específico antes não considerado definidor para alguns comportamentos, usando, no instrumento, o linguajar local, sugerindo categorias de respostas mais apropriadas; (b) apontando como os fatores socioculturais podem influenciar os serviços de saúde; (c) explorando, posteriormente, como as associações estatísticas podem ser mais bem compreendidas quando o contexto social ganha vida; (d) avaliando programas ou serviços de saúde e como processos sociais interferem em ambos; (e) demonstrando como as ideias de causalidade divulgadas pela mídia são apreendidas e se refletem em comportamentos em saúde. No entanto, ainda que a pesquisa qualitativa traga grande contribuição para a compreensão de processos saúde-doença e sua importância seja cada vez mais reconhecida na área, nem todos os trabalhos publicados demarcam a relevância teórico-metodológica inerente a sua abordagem. Nossa preocupação se assenta, inicialmente, nesse ponto. É o diálogo entre teoria e método que confere sentido aos ‘dados’, isto é, às racionalidades ou lógicas médicas, à experiência da doença e às lógicas histórico e socioculturais das várias instituições, por exemplo. Assim sendo, entre aqueles que usam indevidamente a abordagem qualitativa, é comum negligenciar a contextualização de relações hierárquicas e situacionais, descritas/apontadas por seus interlocutores e, a partir deles, trazidas aos textos sem que o pesquisador construa e medeie tais relações a partir do diálogo com seu aporte teórico: ele apenas ‘(re)produz’ no texto a fala do interlocutor. Nesse quadro, não é de surpreender que a qualidade de publicações identificadas como de estudos qualitativos venha sendo alvo de críticas e descrédito entre profissionais da área da saúde coletiva. No entanto, apesar de sua constância e consequências, é incomum que ocorra, publicamente, a formalização dessas constatações e, menos ainda, um debate aberto e autocrítico, com o intuito de contornar problemas entre profissionais de diferentes áreas, incluindo a da saúde. É importante ter claro e afirmar: ao pesquisador não cabe apenas o papel de transcritor6-8. Neste trabalho, as críticas aos abusos serão demarcadas em dois pares de categorias: teoria/técnica e tempo/desafio. Para ambas, demarcamos alguns aspectos que podem contribuir para sua ocorrência. Os aspectos escolhidos não pretendem esgotar o tema e talvez sequer sejam os mais importantes, mas se mostraram mais visíveis em nosso cotidiano. 450

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Gonçalves H, Menasche R

A título de exemplo, ver: http://www. equator-network.org/ reporting-guidelines

(c)

dossiê

Fala como resultado e teoria na referência Não é de estranhar que, para superar possíveis falhas na divulgação de resultados de pesquisas, algumas revistas internacionais disponibilizem guidelines (parâmetros) para que o artigo seja um texto e possua elementos suficientes para os leitores, atendendo à disciplina e a critérios científicos. Vários exemplos desses guias podem ser encontrados, em sites de busca, a partir dos termos guidelines and OR for qualitative studies(c). Algumas críticas a eles apontam o risco do engessamento, entendendo que os parâmetros adotados acabam por enquadrar os estudos em tradições positivistas, sufocando os aspectos interpretativos e criativos da pesquisa qualitativa9. As discordâncias podem ser didáticas e desafiadoras, daí vale a pergunta: como evitar o inadequado? Se a resposta for “depende”, certamente estará correta, porque, de fato, precisamos sempre pensar e criticar conforme o estudo, sem jamais desconsiderar os engodos do método10. Mas como avaliar a adequação diante da diversidade? Como o leitor, especialmente o que possui outra formação, não na área das ciências sociais, poderá apreender se o estudo abusou ou não? Como um aluno poderá apreender que o estudo falhou em vários sentidos? Voltamos a alguns pontos importantes, que merecem ser constantemente adequados aos temas de pesquisa. Essa possibilidade de constante adequação traz consigo a riqueza da abordagem, assim como sua fragilização, quando da utilização indevida. O problema do abuso ou mau uso é que, muitas vezes, ele não é fácil de ser medido ou mesmo detectado na redação dos resultados. Um estudo pode estar bem descrito e ter interpretações interessantes, mas não há garantias de que os procedimentos naquela situação tenham sido realizados com sucesso. Ou seja, em pesquisa qualitativa, as interpretações contemplam uma postura coerente do pesquisador entre teoria (que orienta a interação) e método (procedimentos para chegar à compreensão) em todo o processo do estudo, ambos entendidos como partes do mesmo social. Pesquisadores mais experientes podem perceber quando um texto está incompleto ou julgar que as interpretações estão desconectadas das falas selecionadas, entre outras tantas possibilidades. Há, ainda, a chance disso não ocorrer. Portanto, não estão totalmente claros todos os juízos necessários para uma avaliação do processo de pesquisa, e não é sem razão que não encontramos checklists para a publicação de estudos qualitativos em revistas de Antropologia, entre outras. É bastante provável que alguns abusos estejam somente vinculados ao pouco aprofundamento teórico-metodológico, visto que há muitos profissionais com conhecimentos teóricos e práticos distintos trabalhando com base nessa abordagem. Nessa ampla utilização, percebemos, ao circular por diferentes ambientes acadêmicos, que a importância dada ao método está, em grande parte, deslocada do estudo das teorias sociais ou socioantropológicas – que fundamentam o olhar “qualitativo” e a possibilidade de interpretação do social. Esse olhar, que nasce pelo interesse nas teorias sociais e culturais, nem sempre justifica a escolha profissional pela abordagem qualitativa. Há “pesquisadores qualitativos” que se reconhecem como tal por entenderem que são inábeis em lidar com números/cálculos. Nesses casos (e em outros), as questões históricas e socioculturais passam ao largo de fases importantes do processo de pesquisa – podendo ser notadas desde a confecção do projeto. As referências teóricas são apenas citadas entre parênteses, estão incompletas e/ou desatualizadas no item final da redação. A quantidade de publicações com essas características é exemplar das disparidades desses problemas na academia e dos critérios de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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escrita e de avaliação de um artigo baseado em pesquisa qualitativa entre revisores. Isto, podemos afirmar, não ocorre somente na área da saúde. Vale questionar, portanto, que tipo de contribuição os profissionais que trabalham com a pesquisa qualitativa nessa área têm ofertado ao conhecimento, sempre limitado10. Muitos estudos realizados por pesquisadores em antropologia do corpo e da saúde dialogaram com indicadores de saúde. Desse modo, as perguntas respondidas pelas pesquisas qualitativas pretendiam preencher lacunas do conhecimento atual sobre o que ocorre com dado grupo de pessoas em seu contexto ou como um comportamento/estilo de vida foi problematizado na saúde. Mas o desvelamento das lógicas do grupo, forma de entendimento de como o social molda e influencia os comportamentos, nem sempre é encontrado nessas publicações. Se invariavelmente o fizessem, relativizariam, questionariam e, assim, novas hipóteses seriam levantadas, em alguns casos, ações em saúde constituiriam propostas. Todas essas questões podem se complicar positivamente com interesse sobre o tema pesquisado. Ainda, são usos legítimos se o conjunto de informações coletadas e interpretadas e a estrutura teórica se suportam11,12. No entanto, boa parte dos estudos na área da saúde, ao explicitar somente as falas de interlocutores, se reduz a apontar crenças sobre doenças. As tendências teóricas que, de fato, possam ter norteado a escolha do método empregado, o referencial do pesquisador e suas influências nas interações e interpretações são relegadas a frases, ou estão fora dos textos. Caracterizaria um abuso ter parte desse processo realizado? Saber a quais perguntas a pesquisa qualitativa responde não configura um conhecimento teórico suficiente para o manejo do processo de pesquisar – necessário, mas não suficiente e, ainda menos, único. Optar pelo “quali” não garante que a fala por si seja apreendida em sua dimensão histórica e social, e que a compreensão de tudo estará garantida: pode apenas constituir uma hipótese a se confirmar em ‘campo’. A evidência da narrativa por si só não deve ser encarada como sinônimo de pesquisa qualitativa. Sem generalizar, vimos muitos resultados com uma quantidade de depoimentos pincelados das narrativas considerados como autoexplicativos, abusando da densidade ateórica. Como o mau uso não inviabiliza publicações, conforme salientado, a pesquisa qualitativa tem, igualmente, sido compreendida como sinônimo de conversa com “informantes”, cujos resultados apontam para o exótico (associações inesperadas), denotando diferenças entre o senso comum e o conhecimento científico. Na pesquisa antropológica, mais especificamente na discussão sobre o método etnográfico – que emprega, enquanto técnicas de pesquisa: observação participante, entrevistas semiestruturadas, conversas em grupo, entre outras –, é central a reflexão sobre a relação entre “pesquisador” e “pesquisado”. A relação dialógica buscada implica mais comumente a utilização, pelos antropólogos, do termo “interlocutor”, em detrimento de “informante”, empregado por outros em situação de pesquisa de “mão única”, em que o pesquisador se utiliza da entrevista para a obtenção de informações, em um processo extremamente limitado de interação13. Em razão da densidade ateórica, há acadêmicos que acreditam que esse tipo de pesquisa é “aquela” que se caracteriza por não precisar de “muitos informantes”, logo, mais rápida e fácil. Assim sendo, focar mais as falas do que os determinantes sociais de sua produção e comportamentos é prática corrente nesse grupo, descaracterizando um estudo “qualitativo”. Guardadas as limitações das áreas e do conhecimento, o mau uso publicado ou aceito nas universidades abre a possibilidade para que qualquer pessoa acredite fazer pesquisas qualitativas. Encontramos essa forma de apresentação de dados mais comumente nas seguintes situações: quando os estudos são realizados por profissionais de saúde – mas não apenas esses, também ocorre em outras áreas, como as agrárias, por exemplo – que entendem o “quali” como um kit de ferramentas deslocado do processo histórico que fortaleceu teorias e método, e em pesquisas cujos resultados são apresentados quantitativamente (listados basicamente por sua recorrência e com interpretações que não vão além do que a fala mostra). A popularidade desse tipo de pesquisa trouxe, em muitos casos, equívoco teórico-metodológico. Algumas origens dos usos incorretos foram mencionadas, assim como o que as promove. Profissionais atentos podem minimizar ou disseminar as considerações necessárias para estudos qualitativos. A apresentação minuciosa dos problemas mais frequentes que impedem os estudos 452

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qualitativos de serem publicados – ver o texto de Knauth publicado neste volume –, demonstra que essa preocupação já tem repercutido na avaliação dos trabalhos. Mas, não há a possibilidade de controle que abarque tudo o que é produzido e todas as edições de revistas, já que nem mesmo na área quantitativa – em que números alterados podem ser descobertos – isso é possível.

Tempo e “produção” em pesquisa: desafio atual Os financiamentos para as pesquisas pelas agências de fomento nacionais cobram, dos contemplados, um cronograma de atividades que finde, em geral, em dois anos. Após a confecção do projeto aprovado, um esforço grande será requerido ao pesquisador para que, ao final, consiga produzir um relatório com análises nem tão preliminares. Acreditamos que exigências desse tipo concorram para dificultar ou, mesmo, inviabilizar alguns tipos de pesquisa qualitativa, especialmente etnografias, com ou sem financiamento. Profissionalismo, convicção e paixão o manterão nos objetivos. Os desavisados podem acreditar que os dois anos sejam suficientes. Pesquisadores com formação em antropologia ou ciências sociais, por exemplo, sabem que o trabalho de campo ganha densidade quanto maior for a sua inserção no contexto de pesquisa. Nessa interação há uma série de barreiras da vida cotidiana que podem aumentar o período de imersão em campo. O tempo de pesquisa tende a ser aumentado, e não reduzido. A imersão nesse processo estimula novas perguntas, amplia a compreensão sobre o tema em questão e aumenta o tempo de pesquisa e análises. A necessidade constante de dialogar teoria e método, pergunta/objeto e método-teoria, grupo e tema/revisão sobre o assunto irá minimizar os abusos que muitos de nós criticamos. O que estamos produzindo e para quem são questões fundamentais. Todavia, apesar das pressões para cumprimento de prazo, é possível, em algum sentido, atingir objetivos se o método se adequar àquele tempo e responder à pergunta de pesquisa, mas dificilmente sem muito esforço. Traremos um exemplo com problemas para chegar a outro ponto dos abusos. Há cursos de graduação e especialização que exigem de seus alunos, para conclusão de curso, um trabalho de pesquisa em saúde. Os estudos qualitativos são, nesse momento, bastante privilegiados, o que não seria em si um problema, não fosse pelo fato de, muitas vezes, serem imaginados como mais fáceis, porque ‘não exigem cálculos’. Um fato ocorrido com uma de nós pode ser tomado como emblemático para uma autocrítica. Uma aluna de especialização solicitou orientação, já em uma fase adiantada de seu curso. Estava angustiada, não imaginara não ser possível receber apoio técnico, teórico-metodológico no grupo do curso. O tema era interessante e contemplava os requisitos tanto de uma pesquisa qualitativa quanto da área de seu curso. A construção do projeto deveria ser imediata, com pouco prazo para sua conclusão. Com muita vontade de aprender e fazer correto, conseguimos produzi-lo.Sua ideia era descobrir as dúvidas e impedimentos de pacientes para conversar com médicos sobre sexualidade/sexo/relações sexuais durante tratamento quimio ou radioterápico. Buscar o que a literatura aponta e com quem dialogar foi, então, a primeira orientação. No pouco tempo em campo, com tempo limitado para realizá-lo, a estudante conversou com todos pacientes que receberam tratamento para câncer (em estágios distintos de tratamento e doença) em um dia específico da semana. Conversou, assim, com trinta pessoas em tratamento, de ambos os sexos e idades variadas e, ainda, com alguns médicos que se dispuseram a recebê-la. Ela descobriu, durante o tempo de convívio com os doentes, que o constrangimento é grande, assim como as dúvidas. Anotou todas, indagou sobre o que seus médicos diziam e, ao fim, elaboramos um artigo, para sua defesa. Ela havia feito uma pequena revisão da literatura, pois são poucos os artigos publicados no Brasil sobre o tema, havendo mais material na literatura internacional, cujo acesso era prejudicado pela dificuldade de ler em outra língua. Diante da riqueza dos dados, da vontade de aprender e das condições dadas, como fazer algo mais denso? Ainda que a confecção de um artigo sem tanta densidade teórica não tenha sido barreira para a conclusão do curso e, tampouco, que tal limitação a tivesse impedido de formular perguntas e encontrar respostas para quem se encontrava em tratamento, se pode apontar que a impossibilitou o olhar e a escuta apurados, às entrelinhas dos diálogos, aos silêncios, aos valores morais. Sendo assim, falhamos!? Outras assertivas e ligações explicativas ou novas conclusões foram tolhidas pelas limitações apontadas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Caracterizaríamos tal exemplo como abuso ou uso limitado do método? Até então, vínhamos caracterizando tais estudos como abusos. O que mudou? Pouco e muito. Pouco no que diz respeito ao resultado – que foi basicamente descritivo. Ao fim do trabalho, construímos um folder explicativo, no modelo perguntas e respostas, sobre ter ou não relações sexuais durante tratamento. O folder incluía as dúvidas apontadas no estudo e estaria disponível aos pacientes do serviço de oncologia. Mas também muito, porque foi o caminho mais rápido e metodologicamente afinado com as necessidades de um estudo qualitativo e com uma redução em sua possibilidade de interpretação das dúvidas, da relação com a instituição, corpo e doença – entre outros aspectos. A ideia inicial da aluna, fomentada por seu aprendizado no local sobre a abordagem qualitativa, era somente elaborar um questionário com perguntas abertas sobre as dúvidas dos entrevistados. Nesse caso, estamos contextualizando, resumidamente, a situação, em outros não temos acesso à história. Se considerarmos um abuso, cabe evidenciar o papel dos pesquisadores enquanto professores ou tutores de alunos e que essa prática tem sido mais frequente do que se imagina. Nesse contexto, há que se levar em conta que, ainda que haja exceções – casos de pesquisadores muito ocupados que são particularmente perspicazes para captar, a qualquer instante, incoerências em um processo de pesquisa –, comumente professores mais experientes, que possuem projetos maiores, também são os mais atarefados com as atividades acadêmicas (aulas, orientações, congressos, palestras, reuniões) e, por isso, podem ter menos tempo para um olhar mais atento aos trabalhos de seus alunos. E é preciso ter claro que a falta dessa atenção, por essa ou outras razões, cobra seu preço na qualidade do que é produzido. Além desses aspectos, que dizem respeito a demandas de toda ordem, há a cobrança crescente dos programas de pós-graduação, para que a produção acadêmica dos professores pesquisadores se amplie e que seja concretizada, quando em artigo, em revistas bem conceituadas (ver, por exemplo: Castiel e Sanz-Valero14; Sguissardi15; Trein e Rodrigues16). A qualidade do que é produzido certamente não é imune ao chamado ‘produtivismo acadêmico’, visto que desconsidera que trabalhos decorrentes de pesquisa qualitativa, especialmente de tipo etnográfico, demandam mais tempo. Ainda, para dar conta das inúmeras atividades demandadas, é comum a muitos pesquisadores coordenarem equipes, que os auxiliam a realizar o trabalho de campo. Mas que tipo(s) de problema(s) decorre(m) da distância entre o pesquisador mais experiente e o campo? As consequências (positivas e/ou negativas) dessa prática poderiam ser objeto de outro artigo: limitamo-nos, neste momento, a apontar a questão, como um dos elementos a serem discutidos.

Considerações finais Muitos dos usos e abusos ocorridos se devem, paradoxalmente, à valorização das técnicas qualitativas por áreas outras que as das ciências humanas e sociais. Todavia, para responder às indagações científicas, o instrumental metodológico a ser empregado só produzirá respostas se teoria e técnica não forem dissociadas. Saber aplicá-la e interpretá-la à luz de categorias teóricas requer mais que compreender como um grupo focal se constitui e o que responde. A constante reafirmação de um campo de domínio e de características do pesquisador não significa, aqui, ode à endogenia. A compreensão de que a pesquisa qualitativa pode ter grande abrangência na área da saúde e que usada por diferentes profissionais enriquecerá o conhecimento de todos é positiva. No entanto, pesquisar não é somente aplicar técnicas e métodos. Para que o crescimento teórico-metodológico seja possível e interessante a todos, precisamos ser capazes de autocrítica e, não apenas, tentar aproximações que resultem em destacar as diferenças práticas entre as ciências, há muito conhecidas. Gerar uma compreensão alargada de saúde-doença como processo social não é simples, menos, ainda, dialogar entre áreas. O tempo e a resposta ao tempo, ao campo, precisam ganhar em conteúdo. Se existem pesquisas abusivas, qual é nosso papel? A ciência acontece com um olhar sobre um grupo/contexto/realidade, e esse olhar requer um aparato teórico-metodológico para inferir algo e propor rupturas teóricas e/ ou evidenciar novos pontos sobre um tema conhecido. Como bem resumiram Gomes e Silveira17, no exercício metódico de fazer pesquisa, a técnica é requisitada, contudo esse fazer está atrelado à base 454

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ontológica (teoria, método e técnica). Na área da saúde, a interface entre teoria e método faz com que os cuidados com a pesquisa qualitativa precisem ser reivindicados e praticados constantemente.

Colaboradores HG redigiu a primeira versão do artigo e RM realizou a revisão crítica do manuscrito. Referências 1. Victora CG, Knauth DR, Hassen MNA. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial; 2000. 2. Patton MQ. Qualitative research and evaluation methods. 3a ed. Califórnia: Sage; 2001. 3. Deslandes SF, Cruz Neto O, Minayo MCS, organizadores. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21a ed. Petrópolis: Vozes; 2002. 4. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6a ed. São Paulo: Hucitec; 2007. 5. Flick U. Coleção pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Penso; 2011. 6. Da Matta R. O ofício do etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: Nunes EO, organizador. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar; 1978. p. 23-35. 7. Durham ER. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas. In: Cardoso RCL. organizador. A aventura antropológica: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986. p. 17-37. 8. Cardoso R. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas no método. In: Cardoso RCL, organizador. A aventura antropológica: teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986. p. 95-105. 9. Chapple A, Rogers A. Explicit guidelines for qualitative research: a step in the right direction, a defence of the ‘soft’ option, or a form of sociological imperialism? Fam Pract. 1998; 15(6):556-61. 10. Fonseca C. Quando cada caso não é um caso. Pesquisa etnográfica e educação. Rev Bras Educ. 1999; (10):58-78. 11. Malinowski B. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural; 1976. 12. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC; 1989. 13. Cardoso de Oliveira R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: Cardoso de Oliveira R. O trabalho do antropólogo. 2a ed. São Paulo: Unesp; 2000. p. 17-35.

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14. Castiel LD, Sanz-Valero J. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad Saude Publica. 2007; 23(12):3041-50. 15. Sguissardi V. Centralidade da Pós-Graduação e produtivismo acadêmico. In: Sguissardi V, Silva Júnior JR, organizadores. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã; 2009. p. 191-232. 16. Trein E, Rodrigues J. O mal-estar na academia: produtivismo científico, o fetichismo do conhecimento-mercadoria. Rev Bras Educ. 2011; 16(48):769-92. 17. Gomes MHA, Silveira C. Sobre o uso de métodos qualitativos em Saúde Coletiva, ou a falta que faz uma teoria. Rev Saude Publica. 2012; 46(1):160-5.

Gonçalves H, Menasche R. Investigación en interfaz: problemas y desafíos a partir de la investigación cualitativa en salud. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):449-56. Hay un interés creciente en el empleo de procedimientos metodológicos de la investigación cualitativa por parte de diversas áreas del conocimiento. En la salud se reconoce la importancia de la investigación cualitativa para la comprensión de los procesos salud-enfermedad. Todavia su credibilidad se ha puesto en tela de juicio en varios ámbitos y se relaciona a usos negligentes del abordaje cualitativo, tal como reducir la relevancia teórico-metodológica a la aplicación de técnicas. El mal uso se observa más frecuentemente en las publicaciones cuando se utiliza el abordaje cualitativo como un conjunto de herramientas. Al mismo tiempo, el “productivismo” exigido por las instituciones ha obligado a los investigadores a revisar objetivos más amplios de análisis/ escritura. La mirada sobre un grupo/contexto requiere un aparato teórico-metodológico para inferir algo y proponer rupturas teóricas y/o poner en evidencia nuevos puntos sobre un tema conocido.

Palabras clave: Investigación cualitativa. Abordaje teórico-metodológico. Teoría social. Producción científica.

Recebido em 08/04/14. Aprovado em 06/05/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0274

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A expansão das Ciências Sociais na Saúde Coletiva: usos e abusos da pesquisa qualitativa

Daniela Riva Knauth(a) Andréa Fachel Leal(b)

Knauth DR, Leal AF. Expansion of the social sciences within public health: uses and abuses of qualitative research. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):457-67.

The expansion and consolidation of social sciences within healthcare has made it possible to place value on and disseminate qualitative research. Social scientists’ attention has been drawn to the increasing numbers of papers submitted to scientific journals on public health, along with theses and dissertations that use qualitative methodology in their researchs. The aim of this paper is to raise some points towards deepening the reflections on the implications of expansion of the social sciences within healthcare, particularly with regard to qualitative research. Our experience in evaluating studies within this field indicates that there is a low degree of incorporation of the epistemological perspective of the qualitative methodology and theoretical framework of the social sciencesin studies within public health. This results in studies without theoretical-methodological consistency that are empirical and contribute little to understanding phenomena within the public health.

Keywords: Qualitative research. Methodology. Social Sciences. Public Health. Medical Anthropology.

A expansão e consolidação da área das Ciências Sociais em Saúde possibilitaram a valorização e difusão da pesquisa qualitativa. O crescente número de artigos submetidos a revistas científicas da área da Saúde Coletiva, bem como de dissertações e teses, que utilizam a metodologia qualitativa em suas pesquisas tem chamado a atenção dos cientistas sociais. O presente artigo se propõe a levantar alguns elementos no sentido de aprofundar a reflexão sobre as implicações da expansão das Ciências Sociais em Saúde, particularmente no que concerne à pesquisa qualitativa. Nossa experiência na avaliação de trabalhos da área indica a baixa incorporação da perspectiva epistemológica da metodologia qualitativa e do referencial teórico das Ciências Sociais nas pesquisas em Saúde Coletiva, resultando em estudos sem consistência teórico-metodológica, empíricos e que pouco contribuem para a compreensão dos fenômenos da área da Saúde Coletiva.

Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Metodologia. Ciências Sociais. Saúde Pública. Antropologia Médica.

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(a) Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós Graduação em Epidemiologia, Rua Ramiro Barcelos, 2400. Porto Alegre, RS, Brasil. 90035-003. daniela. knauth@ufrgs.br (b) Departamento de Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil. fachel.leal@ufrgs.br

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O crescente número de artigos submetidos a revistas científicas da área da Saúde Coletiva, bem como de dissertações e teses, que utilizam a metodologia qualitativa em suas pesquisas tem chamado a atenção dos pesquisadores da área, particularmente dos cientistas sociais. Se, em um primeiro momento, este dado é positivo, pois atesta a aceitação e penetração desta metodologia na saúde, a análise dos produtos resultantes destas investigações tem levantado uma série de questionamentos. De uma maneira geral, destaca-se a fragilidade dos trabalhos, sobretudo no que se refere à consistência teórico-metodológica. Ou seja, os objetivos, universo de investigação e, sobretudo, a análise dos dados, carecem de um referencial teórico que sustente as escolhas metodológicas e caminhos analíticos adotados. Quais são as causas desta fragilidade e quais as possíveis soluções? Este é um debate que, necessariamente, tem de se dar na interface das duas áreas diretamente implicadas, as Ciências Sociais e a Saúde Coletiva. É também um debate que tem de ser público, isto é, não ficar restrito às conversas entre editores de revistas científicas ou avaliadores de trabalhos de pósgraduação. A publicidade do debate não apenas dá visibilidade ao problema, mas possibilita a adoção de diferentes estratégias no sentido de melhorar a qualidade das pesquisas qualitativas. É nesta direção que o presente artigo se propõe a levantar alguns elementos no sentido de aprofundar a reflexão sobre as implicações da expansão das Ciências Sociais em Saúde, particularmente no que concerne à difusão da pesquisa qualitativa.

A consolidação de um campo: Ciências Sociais em Saúde O crescimento logrado pelas Ciências Sociais em Saúde e, particularmente, pela Antropologia da Saúde, na década de 1990, na área da Saúde Coletiva é notável. Este período caracteriza-se não apenas pela expansão da área, mas, também, por sua consolidação. No Brasil, antes dos anos 1990, encontramos poucas publicações na área da Antropologia da Saúde, destacando-se os trabalhos de: José Carlos Rodrigues1, Maria Andréa Loyola2, Paula Montero3, Luiz Fernando Dias Duarte4 e Maria Cecília Minayo5. É possível identificar, no mínimo, três esferas de consolidação e expansão das Ciências Sociais em Saúde: a primeira, mais relacionada aos aspectos teórico-metodológicos aportados por esta área do conhecimento; a segunda, referente à consolidação da temática da saúde dentro da área das Ciências Sociais, e, por fim, a inserção das Ciências Sociais na área da Saúde Coletiva. Em termos teórico-metodológicos, são inegáveis os importantes avanços alcançados na discussão teórica em diversas temáticas de estudo, dentre as quais destacaríamos os estudos sobre: sexualidade, aids, corporalidade (embodiment), exclusão social e vulnerabilidade. Nestas temáticas, é possível identificar um grande aumento de trabalhos neste período, motivado, em grande parte, por “problemas sociais”, como a epidemia de aids. A produção do período retoma questões já clássicas da disciplina, como a religião, mas, agora, em sua intersecção com a questão da saúde – o que coloca novos desafios teórico-metodológicos, ao mesmo tempo que indica novas perspectivas de análise para estas temáticas. Podem-se identificar, também, avanços no sentido do desenvolvimento de estratégias metodológicas mais adequadas aos objetos de investigação (comportamentos reprodutivos, sexuais, experiências corporais etc.) e ao próprio campo. Neste sentido cabe mencionar a combinação de metodologias quantitativas e qualitativas, o desenvolvimento de técnicas qualitativas de coleta de dados mais “ágeis” (como Rapid Ethnographic Procedure – REP e grupo focal6), e o uso de programas de informática que facilitam a sistematização e análise de dados qualitativos (como, Nudist, Etnograph, NVivo, entre outros). Uma segunda esfera de consolidação diz respeito à inserção da temática da saúde dentro da área das Ciências Sociais. A Sociologia e, particularmente, a Antropologia da Saúde, sempre tiveram um status um tanto marginal dentro das Ciências Sociais por lidarem com temas tidos como menos sociológicos e, talvez, mais “naturais” (como o corpo e a doença), mas, sobretudo, por estabelecerem um diálogo mais próximo com outras disciplinas (Medicina, Enfermagem, Epidemiologia, Educação Física), e, ainda, por terem uma maior preocupação com a aplicação do conhecimento acadêmico (o que, muitas vezes, é visto como uma forma de corrupção do conhecimento sociológico, contrariando o modelo clássico das Ciências Sociais, basicamente teórico e pouco aplicado). Ainda assim, a 458

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(c) É interessante observar que, em 1991, a revista Physis dedica seu segundo número (v. 1) ao tema “A representação na saúde coletiva”; número este que é aberto por um artigo de Claudine Herzlich, uma das primeiras sociólogas francesas a trabalhar com a área, intitulado “A problemática da representação social e sua utilidade no campo da doença”. (d) Cabe salientar a procura e oferta crescentes de cursos de metodologia qualitativa na área de saúde, seja dentro dos programas de pós-graduação stritco e lato sensu, seja fora do modelo acadêmico, como é o caso, por exemplo, do Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, desenvolvido, a partir de 1996, por diversas instituições (IMS/UERJ, NEPO/UNICAMP, ISC/ UFBA, ENSP/Fiocruz, Instituto de Saúde/ SES-SP), com apoio da Fundação Ford/Brasil.

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Sociologia e a Antropologia da Saúde ganham progressivamente mais espaço e destaque. Isto deve-se, de um lado, aos avanços teóricos-metodológicos da área já destacados, e, de outro, à crescente interferência do conhecimento médico e biológico na vida social, criando a necessidade de compreensão sociológica deste fenômeno (não apenas como uma forma de “resistência” e contestação, como se caracterizavam os estudos das décadas de 1970 e 1980), mas como um objeto privilegiado para investigar as questões centrais que sempre ocuparam as Ciências Sociais, como a relação entre indivíduo/sociedade, natureza/cultura, relações de poder e de gênero. A consolidação da Sociologia e da Antropologia da Saúde pode ser percebida pela inclusão das Ciências Sociais e Saúde e, em particular, da Antropologia do Corpo e da Saúde, nos encontros da área – Reuniões da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Gradução em Ciências Sociais) e da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) – por meio de Grupos de Trabalho e Mesas Redondas. Estes espaços, por sua vez, passam a funcionar como uma forma de organização do próprio “campo”, articulando pesquisadores de diferentes regiões do país e, mesmo, do Mercosul, e, ainda, integrando sociólogos e antropólogos. Os Grupos de Trabalhos e Mesas Redondas na área das Ciências Sociais e Saúde atraem uma grande quantidade de participantes, seja por trazerem, para a discussão, temas bastante atuais – como aids, sexualidade, novas tecnologias reprodutivas, projeto genoma, entre outros, não se restringindo aos temas clássicos da área, como religião, cultura, família e parentesco –, seja por abrirem espaço para pesquisadores de outras áreas do conhecimento, como os pós-graduandos da área da Saúde Coletiva. A expansão da Sociologia e Antropologia da Saúde nas Ciências Sociais, no Brasil, é paralela à consolidação destas disciplinas dentro do campo da Saúde Coletiva, na década de 1990, no Brasil. Essa, por sua vez, também ganha relevância no cenário nacional, dentro das chamadas Ciências da Saúde, com a própria consolidação do Sistema Único de Saúde. Na área de Sociologia, encontramos importantes trabalhos já nas décadas de 1970 e 1980 (por exemplo, os trabalhos de Maria Cecília Donnangelo7,8, Madel Luz9, Roberto Machado10, Everardo Nunes11,12, Amélia Cohn13,14, entre outros), enquanto, na Antropologia, a consolidação ocorre, especialmente, na década de 1990. Outro indicador da penetração da Sociologia e da Antropologia no campo da Saúde Coletiva é a procura por referenciais teóricos da área, como é o caso, por exemplo, da literatura de gênero e de representações sociais(c) e, ainda, pelo crescente interesse por metodologias qualitativas aplicadas à saúde(d). Exemplos desta maior visibilidade são: a publicação do número especial da revista Cadernos de Saúde Pública, que aparece em 1993 (v. 9, n. 3), dedicado ao tema; a publicação, pela Editora da Fiocruz, em 1994, de uma coletânea de artigos na área, intitulada Saúde e doença: um olhar antropológico, organizada por Paulo Cesar Alves e Maria Cecília Minayo15, e, ainda, a publicação, em 1995, pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do livro Corpo e Significado, organizado por Ondina Fachel Leal16. Neste processo de consolidação da área das Ciências Sociais e Saúde, a organização do I (e único) Encontro Nacional de Antropologia Médica tem um papel determinante. É interessante notar que esta primeira tentativa formal de articulação do campo se dê a partir da Saúde Coletiva e, mais precisamente, a partir da II Conferência Brasileira de Epidemiologia (1994), por meio da constatação da grande demanda em relação ao curso oferecido de metodologia qualitativa15. Este encontro possibilitou o estabelecimento de uma rede de pesquisadores, que seguiram encontrando-se mais regularmente, agora, nos 459


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encontros da área da Ciências Sociais (até porque as reuniões da ANPOCS são anuais), sem deixar de estarem presentes nos Encontros da Saúde Coletiva. Destes encontros, resultou uma publicação – organizada por Luiz Fernando Dias Duarte e Ondina Fachel Leal17, intitulada Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas – e, talvez, poder-se-ia dizer, uma série de publicações da coleção Antropologia e Saúde, coordenada por Carlos Coimbra e Maria Cecília Minayo, editada pela Editora da Fiocruz. Dessa forma, ao menos no Brasil, a área da Antropologia da Saúde articulouse muito mais por seu viés temático – saúde – do que por seu viés teórico-metodológico, e muito impulsionada pelos pesquisadores que mantinham um diálogo mais próximo com a Saúde Coletiva. Talvez o reconhecimento da Antropologia da Saúde dentro da própria Antropologia deva-se, em parte (pois não podemos desprezar sua contribuição teórico-metodológica), à visibilidade (possibilitada pela articulação de um grupo de pesquisadores) que esta obteve por meio da Saúde Coletiva.

Difusão da Pesquisa Qualitativa na Saúde Coletiva A expansão da área das Ciências Sociais em Saúde, além de sua consolidação enquanto uma área de conhecimento, trouxe consigo um conjunto de aspectos que merecem destaque, visto que possuem importantes implicações para esta área. Primeiramente, deve-se salientar a valorização da pesquisa qualitativa em diferentes áreas do conhecimento. É inegável o crescimento e aceitação da metodologia qualitativa na Saúde Coletiva, não apenas nas áreas mais “soft”, como a Enfermagem e a Nutrição, mas, também, em áreas tradicionalmente mais “duras”, como a Medicina e a Epidemiologia. Estudos baseados exclusivamente na metodologia qualitativa ou na combinação de metodologias quanti e qualitativa têm se destacado nas publicações da área, tanto nacionais quanto internacionais. Revistas nacionais da área de Saúde Coletiva (como Cadernos de Saúde Pública, Revista de Saúde Pública, Ciência e Saúde Coletiva, Physis e Interface) e internacionais (Social Science and Medicine, American Journal of Public Health) recebem e publicam uma grande quantidade de artigos cuja pesquisa foi conduzida por intermédio de metodologia com abordagem qualitativa de investigação. Esta ampliação das estratégias metodológicas adotadas nas pesquisas permite, por sua vez, uma compreensão mais ampla dos fenômenos estudados. Isto é fundamental quando consideramos que os fenômenos da área da saúde pública são complexos e, em geral, sua compreensão exige abordagens multidisciplinares e a combinação de estratégias metodológicas de investigação. A difusão de estudos de cunho qualitativo para outras áreas da Saúde Coletiva possibilitou ainda a ampliação dos temas investigados. Os estudos de cunho qualitativo da área das Ciências Sociais que, até a década de 1990, se centravam em poucas temáticas – como concepções e práticas sobre determinada doença, busca por recursos de cura “alternativos” ou religiosos18, ou, ainda, no resgate da criação das políticas de saúde e participação popular (ver, por exemplo, o primeiro número da Revista Physis, publicado em 1991, com vários artigos dedicados aos temas) –, ganham um amplo leque de temáticas. As pesquisas passam a incluir uma variedade muito maior de doenças e a caracterizar comportamentos e concepções sobre doenças específicas (como câncer de mama, diabetes, hipertensão, entre outras), e a se debruçar sobre os avanços da tecnologia médica e suas implicações (como são os estudos sobre doenças genéticas, reprodução assistida, transplante, só para citar alguns). Mais recentemente, há um conjunto de estudos voltados para a própria produção do conhecimento na área médica e seus efeitos sobre a sociedade19. Ainda que a pesquisa qualitativa tenha ganho espaço, pontuamos que, em alguns temas relativamente mais novos no campo da Saúde Coletiva, como o são o tema da avaliação de serviços ou programas de saúde e o tema das políticas públicas (especialmente a partir da década de 1990), a preponderância segue sendo de estudos quantitativos. A centralidade de abordagens quantitativas em avaliações no Brasil espelha o que acontece com o monitoramento e a avaliação no cenário internacional. O tema das políticas públicas também entra para a agenda da Saúde Coletiva e, igualmente, tende a estar embasado em abordagens quantitativas.

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A qualidade das pesquisas qualitativas A difusão da metodologia qualitativa de investigação trouxe, também, uma série de consequências que requerem uma reflexão mais sistemática para que não se coloque em xeque a validade da pesquisa qualitativa. Nossa experiência na avaliação de teses e dissertações e na elaboração de pareceres de artigos submetidos a revistas científicas da área da Saúde Coletiva aponta para a forma como a pesquisa qualitativa tem sido incorporada no campo da Saúde Coletiva. De uma forma geral, pode-se afirmar que, paradoxalmente, o uso da metodologia qualitativa dentro da Saúde Coletiva parece prescindir de sua área-mãe, as Ciências Sociais. Assim, se, por um lado, a difusão desta abordagem metodológica deveu-se ao crescimento e consolidação das Ciências Sociais em Saúde, por outro, ao longo dos últimos anos, grande parte dos usos que têm sido feitos da pesquisa qualitativa mantém pouca relação com o referencial teórico das Ciências Sociais. Há, na verdade, o uso das técnicas de coleta de dados características da pesquisa qualitativa – como entrevista semiestruturada, grupo focal, observação – mas sem a devida incorporação desta abordagem metodológica enquanto uma forma de compreender o mundo social, isto é, sem a devida incorporação da discussão epistemológica que embasa o referencial metodológico das Ciências Sociais. Conforme Bourdieu20, Ao designar por metodologia [...] o que não passa do decálogo dos preceitos tecnológicos, escamoteia-se a questão metodológica propriamente dita, ou seja, a da escolha entre as técnicas (métricas ou não) por referência à significação epistemológica do tratamento a que será submetido, pelas técnicas escolhidas, o objeto e a significação teórica das questões que se pretende formular ao objeto ao qual são aplicadas. (p. 53)

A má compreensão da “pesquisa qualitativa”, como sendo o mero emprego de uma combinação de técnicas ditas qualitativas de coleta de dados (para não falar da extrema redução ao emprego de uma única técnica), tem implicado a produção de pesquisas que são superficiais e de má qualidade. Observamos, em publicações da Saúde Coletiva, o emprego, por exemplo, de uma técnica de análise de dados de pesquisa qualitativa (na forma de um software) chamada de Discurso do Sujeito Coletivo – DSC21, sem que haja, nestes estudos, qualquer referência aos conceitos ou teorias da Sociologia que fundamentam esta técnica, ou a como é extraído, do conjunto dos dados, um “discurso” tido como representativo do coletivo. Um exemplo do pouco diálogo com o referencial teórico são as propostas correntes de combinação de metodologias qualitativas e quantitativas de pesquisa22,23. O crescimento do uso combinado destas duas abordagens metodológicas parece ter tido pouco impacto numa reflexão mais aprofundada das diferenças epistemológicas entre as duas abordagens metodológicas, ou melhor, entre as duas áreas do conhecimento científico que, dentro da Saúde Coletiva, fundamentam métodos de pesquisa específicos, a Epidemiologia e as Ciências Sociais (e, mais particularmente, a Antropologia). As duas metodologias são tomadas apenas a partir de suas técnicas de coleta de dados, resultando em estudos paralelos, separados entre si, e não em uma combinação de metodologias24. Além de separados, a parte qualitativa da pesquisa tende a figurar como um apoio secundário, de modo que os dados qualitativos são utilizados, em geral, apenas para “ilustrar”, por meio de depoimentos de entrevistados, os percentuais e análises estatísticas apresentadas. O mesmo se passa com uma parcela significativa dos estudos ditos qualitativos. Nesses, a ausência da compreensão dos fundamentos da metodologia qualitativa é até mais evidente, visto que o “qualitativo” é reduzido ao emprego de uma técnica pinçada de uma lista de técnicas ditas “qualitativas” – usualmente a de entrevista ou a de grupo focal – e ao número reduzido de participantes do estudo, que não raramente somam apenas um dígito. Os resultados são apresentados na forma de uma lista de temas ou conteúdos, sem que os temas sejam relacionados entre si ou a um referencial teórico; com frequência, apresenta-se a transcrição de frases retirada do discurso dos entrevistados, que são tomadas de forma literal, e não interpretadas (o que, nas Ciências Sociais, é chamado de “beber na boca do informante”, incorporar de forma acrítica o discurso do COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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entrevistado, não como um discurso, mas sim como um dado sobre o real). Ainda, muitos resultados são apresentados na forma de percentuais apesar do reduzido número de sujeitos pesquisados. Em outras palavras, muitas vezes, os estudos ditos qualitativos na Saúde Coletiva apresentam descrições superficiais porque coladas à empiria, e não análises que explicam os fenômenos. Assim, seja combinada com o quantitativo, seja exclusivamente qualitativa, a expansão da pesquisa qualitativa na área da Saúde Coletiva se deu sem a devida apropriação do referencial teórico das Ciências Sociais. É deste referencial que vêm os pressupostos da metodologia, bem como é ele que possibilita uma análise mais aprofundada dos dados. Neste referencial estamos incluindo todo o conjunto variado e distinto de teorias que buscam explicar o funcionamento da sociedade e das relações sociais, sejam estas funcionalistas, estruturalistas, marxistas ou pós-estruturalistas. É somente a partir de uma perspectiva teórica e de categorias analíticas que é possível produzir uma interpretação consistente dos dados qualitativos, pois, como já afirmou Bourdieu20, os dados não falam por si. Isto é, os “resultados” de uma pesquisa qualitativa não derivam da mera contabilização das falas dos participantes ou da “extração” das “categorias” que “emergem” das falas ou no campo, como comumente é apresentado. Os resultados – a análise – emergem, sim, de um referencial teórico que guia a pesquisa desde a concepção dos instrumentos até a “leitura”, sistematização e análise dos dados em seu conjunto. A ausência de um referencial teórico para a análise dos dados é, sem dúvida, a principal fragilidade dos trabalhos resultantes de pesquisas qualitativas na área da Saúde Coletiva. Tem por consequência a produção de trabalhos (seja no formato de tese/dissertação ou de artigos) que apenas descrevem os dados empíricos encontrados. Pior, em grande parte dos casos, tais dados decorrem de questões equivocadamente formuladas, que só podem ter como resposta o que foi proposto, seja concordando ou apenas refutando a questão. A abertura proposta pela metodologia qualitativa, que é uma de suas vantagens em relação às abordagens mais diretivas, é já drasticamente limitada pelas questões formuladas aos participantes. Decorre daí que os “resultados” e “conclusões” do estudo apenas corroboram o que o pesquisador perguntou. É neste sentido que argumentamos que, de fato, a pesquisa qualitativa não foi apropriada enquanto uma metodologia, mas apenas enquanto um conjunto de técnicas de coleta de dados. A perspectiva metodológica, pela ausência de compreensão de seus pressupostos e de um referencial teórico que sustente desde a construção do objeto de investigação até a análise dos dados, não é de fato operacionalizada, produzindo estudos frágeis e que pouco contribuem para a compreensão dos fenômenos analisados. Dito de outro modo, não há uma compreensão da discussão epistemológica da pesquisa científica: da relação entre o que é um conhecimento científico verdadeiro e de como se pode produzi-lo, por um lado, com o objeto da pesquisa, e a escolha das técnicas de coleta e análise de dados, por outro. Para dar um exemplo deste equívoco, tomemos o caso de um estudo que se propõe a utilizar a metodologia qualitativa para compreender a implementação de uma determinada política pública de saúde; o dito estudo propõe um roteiro de entrevista em que se pergunta se o entrevistado conhece a tal política e qual sua opinião a respeito da política. O resultado, tido como inesperado, é o grande desconhecimento que existe por parte dos participantes em relação à política. Como tal estudo nos ajuda a compreender esta política no cotidiano dos serviços de saúde e de seus usuários? Ou seja, o grande potencial que a pesquisa qualitativa teria para fornecer subsídios a uma avaliação da implementação da política – inquirindo em que medida aquela política faz sentido ou se a política está sendo (ou pode ser) implementada naquele contexto – é completamente desperdiçado. Este tipo de exemplo de pesquisas qualitativas em que a questão inicial está formulada de maneira inadequada à abordagem metodológica, é bastante comum nos estudos qualitativos da área da Saúde Coletiva, e tem implicações importantes sobre a qualidade dos trabalhos resultantes. Ainda exemplificando, também com frequência, nos deparamos com pesquisas de abordagem qualitativa em que o pesquisador transfere, ao entrevistado, sua questão de pesquisa. Assim, formula, no roteiro de entrevista a ser empregado, perguntas genéricas e abstratas do tipo: “o que é para você ‘promoção da saúde’?” (ou qualquer outra expressão que, na realidade, o pesquisador propunha compreender como tal coisa era concebida ou representada) ou, ainda, “por que você não ‘adere 462

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ao protocolo x’?” (ou qualquer outro comportamento que o pesquisador se propunha a investigar). Enquanto em uma pesquisa com abordagem quantitativa provavelmente seria impensável uma única medida que respondesse à pesquisa, e haveria uma investigação de um conjunto de fatores que poderiam (ou não) estarem associados a um determinado desfecho, observam-se estudos de abordagem qualitativa em que se faz uma única pergunta ao entrevistado que é, de fato, o objeto da investigação. Outra evidência da falta de compreensão dos pressupostos da metodologia qualitativa e da ausência de um referencial teórico pertinente ao problema estudado é a apresentação dos dados sem nenhuma contextualização. Os dados são naturalizados e generalizados, esquecendo-se um princípio fundante da metodologia qualitativa que é o de que estes são produzidos em um determinado contexto e que este contexto deve ser considerado na análise, ou seja, as coisas são ditas a alguém, a partir de um determinado questionamento e em um local específico. Isto implica uma posição relativista perante o dado, visto que este pode ser diferente se algum dos elementos deste contexto for alterado, razão pela qual o contexto deve fazer parte da análise do próprio dado. Mais um princípio da pesquisa qualitativa que é “esquecido” em uma parcela significativa dos trabalhos de cunho qualitativo que temos tido a oportunidade de ler é o de que os indivíduos participantes do estudo devem ser considerados a partir de seu pertencimento social, cujos indicadores irão variar de acordo com o referencial teórico assumido (pois se, numa perspectiva marxista, estes marcadores podem ser a posição ocupada em relação aos meios de produção, em outras abordagens teóricas podem incluir características como gênero, raça ou etnia, capital social, entre outros). De toda forma, independente do referencial teórico adotado, o indivíduo é tomado enquanto um ser social, e, por isso, “representante” de um determinado grupo social previamente definido teoricamente. O sujeito pode pertencer e representar, inclusive, mais de um grupo social, mas não se entende que seja representante de um grupo no sentido estatístico, i.e. não se trata de uma amostragem, mas da ideia de um pertencimento a uma determinada comunidade com quem compartilha de uma linguagem, de algumas ideias, valores e práticas. É justamente este princípio que possibilita à pesquisa qualitativa trabalhar com um número reduzido de participantes, visto ela não estar trabalhando com indivíduos singulares, mas, sim, com indivíduos que compartilham um conjunto de características sociais. Contudo, se, por um lado, os dados da investigação não são contextualizados, por outro lado, esta ausência de contextualização produz uma certa homogeneização dos resultados, o que leva a conclusões que são, muitas vezes, generalizadas para “a população”. Aqui, novamente, perde-se o fundamento da pesquisa qualitativa, que é o de compreender em profundidade um determinado grupo social, cultura, classe ou posição social (todos teoricamente definidos). A possibilidade de generalização está restrita a estas definições teóricas e deve ser respaldada por estudos em contextos que possam ser comparáveis.

Como melhorar a qualidade da pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva Apontamos, ao longo deste artigo, as implicações da expansão das Ciências Sociais em Saúde para a difusão da pesquisa qualitativa. Destacamos a baixa incorporação, de fato, da perspectiva da metodologia qualitativa e do referencial teórico das Ciências Sociais nos estudos da área da Saúde Coletiva. Para alguns cientistas sociais, esta baixa qualidade das pesquisas realizadas atesta o equívoco e a impossibilidade de formar pesquisadores para a pesquisa de cunho qualitativo sem uma formação de base em Ciências Sociais. Já para outros, sinaliza a importância e a necessidade de ampliar e aprofundar o diálogo entre Ciências Sociais e as diferentes áreas da saúde que formam a Saúde Coletiva. A primeira posição, que sinaliza a exclusividade de saberes, foi dominante nas Ciências Sociais antes do período analisado neste artigo; talvez haja posições semelhantes entre pesquisadores com abordagem quantitativa, para os quais só podem fazer pesquisa quantitativa na Saúde Coletiva aqueles pesquisadores com formação de base epidemiológica. A segunda posição, de um modo geral, clama por um avanço no diálogo das Ciências Sociais com a Saúde, bem como na qualificação dos estudos produzidos nesta interface. Assumindo a segunda posição, e a partir do diagnóstico empreendido, gostaríamos de levantar algumas propostas, no sentido de aprofundar a complementaridade e a relação entre as diferentes COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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áreas do conhecimento, bem como qualificar e aprimorar as pesquisas qualitativas desenvolvidas na área da saúde. Primeiramente, não podemos ter a pretensão de formar um cientista social no tempo destinado ao mestrado ou doutorado (esfera privilegiada de formação de um pesquisador), particularmente nos cursos da área da Saúde Coletiva. Contudo, a inclusão de cientistas sociais nestes cursos é fundamental para garantir que, minimamente, os alunos tenham contato com as diferentes teorias socioantropológicas que buscam explicar a sociedade e que tenham acesso a um amplo leque conceitual, que possibilite a formulação de objetos de investigação consistentes com a proposta metodológica, bem como instrumentalizem a análise dos dados. Assim, além de cursos de metodologia qualitativa, os cientistas sociais podem ofertar cursos que permitam, aos alunos, o conhecimento de diferentes abordagens teóricas sobre o processo saúde-doença, destacando os conceitos operacionalizados nas análises. O pressuposto de que há uma certa coerência entre os diferentes elementos da vida social impõe que estudos sobre os grupos pesquisados, mesmo que tratando de temáticas relativas a outras esferas da vida social, devem integrar o conjunto de leituras realizadas. Não são poucas as vezes em que o entendimento de uma determinada prática ou concepção passa pela compreensão da organização social, dos valores, das práticas econômicas e religiosas de uma dada comunidade. Em segundo lugar, a partir do referencial teórico e das hipóteses estabelecidas, é importante investir na qualificação do universo empírico estudado. Contemplar no universo empírico uma maior diversidade possibilita identificar, na análise, as categorias de pertencimento social que incidem sobre o fenômeno observado. Permite, também, aprofundar a análise, indo para além do que é dito, buscando seu significado dentro de um universo mais amplo de referências. Nesta mesma direção, a combinação de dados de diferentes fontes permite uma análise mais complexa e aprofundada do objeto, sendo, também, uma estratégia para romper com uma visão ingênua20 e superficial do problema investigado. Em terceiro lugar, é preciso qualificar a discussão sobre metodologia de pesquisa, de modo geral, incluindo tanto a discussão da abordagem quantitativa quanto da qualitativa nos cursos que formam pesquisadores em Saúde Coletiva. Isto implica fazer uma discussão epistemológica para além de uma discussão técnica sobre a coleta de dados. Implica discutir o que é conhecimento científico, qual a relação entre o objeto de pesquisa, o referencial teórico, a abordagem metodológica, as técnicas de coleta de dados, de sistematização de dados e de análise de dados – isto é, a discussão dos modelos teóricos que orientam a formulação da questão a ser investigada e a análise dos dados. Exemplificando, precisamos fazer com que nossos alunos, futuros pesquisadores da área, compreendam que, assim como dominar o programa SPSS não é aprender a fazer pesquisa quantitativa, tampouco dominar o programa NVIVO (ou AtlasTI) é fazer pesquisa qualitativa. Em quarto lugar, precisamos levar a sério a ideia de complementaridade das diferentes abordagens metodológicas. Assim como a máxima, nas Ciências Sociais, cunhada por Durkheim, de que a sociedade não é a mera soma dos indivíduos, a pesquisa quanti-quali não pode ser entendida como a mera soma das pesquisas quantitativa e qualitativa. Ao partirmos do pressuposto de que de diferentes perspectivas percebemos diferentes dimensões de uma mesma realidade, a pesquisa quanti-quali deve fornecer uma nova visão, integrada, maior e mais complexa daquela realidade. Talvez a fusão do quanti com o quali implique a necessidade de uma nova epistemologia, numa epistemologia fundada a partir destas duas áreas do conhecimento. As tentativas de fusão, com acertos e erros, bem como a reflexão teórica sobre tal processo, no entanto, acarretam um tempo que é maior do que aquele tempo de que usualmente dispomos para nossas pesquisas, dadas as restrições em termos de cronograma e financiamento de pesquisas, bem como a pressão para a produção de artigos científicos.

Considerações finais Assim, se são inegáveis o crescimento e a consolidação das Ciências Sociais em Saúde e, em particular, da Antropologia da Saúde, tanto na área das Ciências Sociais quanto na da Saúde Coletiva, permanece, ainda, uma série de desafios. Estes desafios são de diferentes ordens, indo desde a 464

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produção de conhecimento e desenvolvimento de metodologias (de pesquisa e intervenção), até questões de ordem de política acadêmica. Em termos de produção de conhecimento, precisamos, ainda, de mais estudos que se debrucem sobre os modos de formulação e vulgarização do pensamento e das categorias médicas. Dispomos de poucos trabalhos que tomam os próprios profissionais da saúde, ou ainda o processo de formação do raciocínio profissional (em sua diversidade, que vai do clínico ao burocrata, por exemplo), como objeto de investigação25-27. Carecemos, também, de estudos que investiguem o processo de vulgarização deste conhecimento científico, suas mediações, diferentes interpretações (iniciado por Boltanski na década de 1960), identificando: o papel da mídia, dos “formadores de opinião”, da escola, dos serviços de saúde, da família, entre outras instituições sociais. Ainda em termos de construção do conhecimento, se faz necessário retomar alguns temas clássicos da área das Ciências Sociais e analisar como estes se redefinem em face dos avanços da tecnologia médica. Para dar um exemplo, podemos pensar em como se (re)colocam as relações entre natureza e cultura no contexto das novas tecnologias reprodutivas e do projeto genoma. Nesta mesma direção, seria importante refletirmos sobre as implicações sociológicas e antropológicas dos movimentos de, não mais apenas “medicalização”, mas de “biologização” do ser humano. Ou, ainda, como se colocam, na atualidade, teorias clássicas como as de estigma e discriminação social. No que concerne aos desafios metodológicos, além de qualificarmos os estudos qualitativos, temos de avançar na sofisticação da combinação de técnicas quantitativas e qualitativas de investigação que sejam capazes de produzir explicações mais complexas e aprofundadas dos diferentes fenômenos da área da saúde. Além disto, é necessário criarmos formas de análise que contemplem, simultaneamente, a dimensão quantitativa e qualitativa. O avanço nos últimos anos em termos de software para auxiliar na análise de dados qualitativos permitiu reduzir, em muitos casos, o tempo necessário para a sistematização de dados, porém os programas não fazem sozinhos a interpretação nem a análise. Assim como um software como o SPSS tornou mais amigável e rápida a possibilidade de se fazerem análises quantitativas, mas continua sendo necessário que um pesquisador, com um referencial teórico e hipóteses, pense sobre o que quer analisar e por que (e o que significam aqueles resultados), um software qualitativo não é capaz de produzir um sentido, por si só, dos dados qualitativos, nem uma interpretação com base em um referencial teórico. Conforme Pope e Mays24, é possível que o software qualitativo tenha ajudado na maior aceitação da pesquisa qualitativa no campo da saúde, pois, com o software, a análise qualitativa parece ser, ela mesma, uma questão meramente técnica. Conforme argumentamos ao longo deste artigo, ela não é. Outra área em que são necessários maiores investimentos é a de avaliação de programas e serviços. Já é consenso que os indicadores quantitativos são insuficientes, entretanto ainda não conseguimos estabelecer critérios qualitativos capazes de avaliar melhor aqueles aspectos de difícil mensuração, tais como: “acolhimento”, “boa relação médico-paciente”, “mudança de comportamento”, só para citar alguns. No campo do estudo de políticas públicas, precisamos, igualmente, de mais estudos com abordagens qualitativas, que empreguem o referencial teórico das Ciências Sociais. Conceitos e teorias empregados na sociologia, como “movimentos sociais” e o neoinstitucionalismo, podem e devem contribuir para a discussão de políticas sociais e, especificamente, de políticas de saúde. A abordagem metodológica qualitativa para o estudo de políticas e programas de saúde, da relação entre sociedade e Estado, dos agentes públicos encarregados de implementar as políticas, ou dos beneficiados pelas ações públicas, para citar alguns exemplos, pode ser extremamente produtiva e oferecer novos conhecimentos. Por fim, é fundamental que, neste movimento de intersecção entre as Ciências Sociais e a área da Saúde Coletiva, se tenha presente que não se trata apenas de uma estratégia metodológica, mas, sobretudo, de uma forma específica de conceber os fenômenos sociais (e também naturais) própria das Ciências Sociais. Isto é, junto com a metodologia qualitativa deve ser incorporada a maneira como as Ciências Sociais concebem as relações entre social e individual, entre natureza e cultura, entre universal e particular.

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Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de elaboração do manuscrito. Referências 1. Rodrigues JA. O tabu do corpo. Rio de Janeiro: Edições Achiamé; 1975. 2. Loyola MA. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel; 1984. 3. Montero P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal; 1985. 4. Duarte LFD. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Zahar; 1986. 5. Minayo MCS. A saúde em estado de choque. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; 1986. 6. Trotter RT. AppliedMedical Anthropology: praxis, pragmatics, politics and promises. In: Singer M, Erickson PI, editors. A companion to Medical Anthropology. Oxford: WileyBlackwell; 2011. p. 49-68. 7. Donnangelo M, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades; 1976. 8. Donnangelo MCF. Medicina e sociedade. O médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Livraria Pioneira; 1975. 9. Luz MT. As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia. Rio de Janeiro: Graal; 1979. 10. Machado R, Loureiro A, Luz R, Muricy K, organizadores. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1978. 11. Nunes ED. Ciências sociais em saúde na América Latina: tendências e perspectivas. Brasília (DF): Opas; 1985. 12. Nunes ED, organizador. Medicina social: aspectos históricos e teóricos: São Paulo: Global; 1983. 13. Cohn A. O sistema unificado e descentralizado de saúde: descentralização ou desconcentração? Sao Paulo Perspect. 1987;1(3):55-8. 14. Cohn A. Caminhos da Reforma Sanitária. Lua Nova. 1989; 19:123-40. 15. Alves PC, Minayo MCS, organizadores. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. 16. Leal OF, organizadora. Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: Ed. Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 1995. 17. Duarte LFD, Leal OF, organizadores. Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. 18. Langdon EJ, Follér M-L. Anthropology of Health in Brazil: a border discourse. Med Anthropol. 2012; 31(1):4-28. 19. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(N. esp):64-72. 20. Bourdieu P, Chamboredon J-C, Passeron J-C. O ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes; 1999. 21. Lefèvre F, Lefèvre AMC, Teixeira JJV. O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: Educs; 2000. 22. Béhague DP, Gonçalves H, Victora CG. Anthropology and epidemiology: learning epistemological lessons through a collaborative venture. Cienc Saude Colet. 2008; 13(6):1701-10.

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Knauth DR, Leal AF. La expansión de las Ciencias Sociales en la Salud Colectiva: usos y abusos de la encuesta cualitativa. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):457-67. La expansión y la consolidación de las Ciencias Sociales en Salud posibilitaron la valorización y difusión de la encuesta cualitativa. El creciente número de artículos presentados a las revistas de Salud Colectiva, así como disertaciones y tesis, que utilizan la metodología cualitativa en sus encuestas han llamado la atención de los científicos sociales. Este artículo presenta algunos elementos para profundizar la reflexión sobre las implicaciones de la expansión de las Ciencias sociales en Salud, particularmente en lo que se refiere a la encuesta cualitativa. Nuestra experiencia en la evaluación de trabajos del área indica la baja incorporación de la perspectiva epistemológica de la metodología cualitativa y del referencial teórico de las Ciencias sociales en los estudios de Salud Colectiva, resultando en trabajos sin consistencia teórico-metodológica, empíricos y que poco contribuyen para la comprensión de los fenómenos del área de la salud pública.

Palabras clave: Investigación cualitativa. Metodología. Ciencias Sociales. Salud Pública. Antropología Médica. Recebido em 30/04/14. Aprovado em 09/05/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0271

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Comentários pertinentes sobre usos de metodologias qualitativas em saúde coletiva Mara Helena de Andréa Gomes(a) Denise Martin(b) Cássio Silveira(c)

Gomes MHA, Martin D, Silveira C. Pertinent comments about the use of qualitative methodologies in the public health field. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):469-77.

This paper aims to contribute towards assessing production and dissemination of research based on qualitative methodologies within the field of public health. We sought to correlate the theoretical and methodological gaps with indicative values that traverse the processes of research and evaluation of published articles. In the absence of explicit statement of the values that lead to the choices intrinsic to research, some journals have recommended assessment resources that focus on formal technical procedures. Such assessments are complemented by guidelines for article compilation, including checklists of the items that are valued. These factors contribute towards theoretical and methodological reductionism and reinforce the idea that a single method exists. Lastly, we renew the appeal for imagination and diversity among the conceptions of matters that we desire to learn about.

Keywords: Qualitative research methodologies. Peer review. Public health. Social and human sciences.

Com este texto visamos contribuir para o debate sobre a avaliação da produção e divulgação de pesquisas que se baseiam em metodologias qualitativas no campo da saúde coletiva. Procuramos relacionar as lacunas teóricas e metodológicas a indícios valorativos que atravessam os processos de pesquisa e avaliação de artigos publicados. Na ausência de explicitação dos valores que conduziram às escolhas imbricadas nas pesquisas, alguns periódicos recomendam recursos de avaliação que privilegiam procedimentos formais e técnicos. A avaliação é complementada com guias de confecção de artigos, dentre os quais os check-lists, que fornecem os itens valorizados. Estes fatores contribuem para reducionismos teórico-metodológicos e reforçam a crença na existência de um único método. Por fim, renovamos o apelo à imaginação e à diversidade de concepções sobre o que pretendemos conhecer.

Palavras-chave: Metodologias de pesquisa qualitativa. Avaliação por pares. Saúde Pública. Ciências sociais e humanas.

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Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Rua Botucatu, 740, 4º andar. São Paulo, SP, Brasil. 04023900. maraandrea@ unifesp.br; denise.martin@ unifesp.br (c) Departamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. cassio.silveira@ fcmsantacasasp.edu.br (a,b)

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Introdução É notável a crescente importância da pesquisa qualitativa na área de Saúde Coletiva. Suas contribuições ao campo podem ser observadas na apresentação de estudos originais, realizados por meio de abordagens inovadoras proporcionadas por suas particularidades teórico-metodológicas. Tais “feitos” vêm sendo apontados nas últimas duas décadas, não sem certas preocupações. Neste artigo queremos apontar a perspectiva relacional como importante requisito para realização de estudos qualitativos, com o objetivo de dar continuidade ao diálogo sobre produção interdisciplinar de conhecimento, tendo por referência nossas leituras não sistemáticas de artigos publicados e de nossa experiência como pareceristas em periódicos do campo da saúde coletiva. Para isso, convidamos o leitor a refletir sobre possíveis inconsistências teóricas e metodológicas observadas em algumas análises. Com estes procedimentos, pretendemos contribuir para que a inserção das metodologias qualitativas ganhe força e contribua, no conjunto de conhecimentos produzidos em saúde coletiva, para a ampliação de um fazer ciência que seja, de fato, rigoroso e alicerçado em bases teóricas. Comecemos por um elemento comum entre os enfoques particulares proporcionados pelas diferentes ciências sociais e humanas: a postura crítica em relação ao que pretendem analisar nos processos de pesquisa. A nosso ver, essa virtude presumida não se completa sem que os pesquisadores não apliquem a si próprios a crítica que desenvolvem em relação às situações que pretendem analisar. Desta crítica relação, de “tripla mão”, instaurada pelo pesquisador – na sua relação entre aquilo que analisa e sua autoanálise como pesquisador, mediada pelas interações com outros pesquisadores –, resultam conflitos que dinamizam o processo de investigação. Evidentemente, não reivindicamos essa crítica relação e os conflitos que engendram como prerrogativa das ciências sociais e humanas, posto que são comuns a qualquer campo de conhecimento. Mas, refletir sobre ela sob uma perspectiva relacional é (ou deveria ser) a condição de operar das chamadas “humanidades” quando falamos de metodologias de pesquisa qualitativa. Enfatizar esta condição indica, também, uma preocupação crescentemente compartilhada em relação a certas maneiras com que essas ciências vêm sendo absorvidas no campo da saúde coletiva. Aqui, queremos sinalizar algumas formas de pensar, de julgar e de opinar como indícios valorativos – legítimos, diga-se – operados por pesquisadores, autores, especialistas ou peritos que contribuíram para tal propagação. Talvez, neste reconhecimento, esteja localizado o atributo que confere a particularidade reivindicada. Em matéria de contribuição, uma presença tão marcante poderia ser motivo de comemorações, não fora a ausência de aportes teórico-críticos (sociais e históricos), na mesma proporção em que experiências tão diversas vêm sendo realizadas e publicadas. Recentemente, Deslandes e Iriart1 mapearam usos teórico-metodológicos correntes nas pesquisas do subcampo das ciências sociais e humanas em saúde. Para estes autores, vários dos estudos analisados utilizam as técnicas de construção dos dados qualitativos de forma instrumental, caracterizando-se por um “empirismo a-teórico”, e também ressaltam vários casos de artigos que fazem usos inadequados de certas categorias analíticas e, mesmo, de técnicas e métodos. Outros autores, como Nakamura2 e Victora3, já haviam ressaltado fatos que, juntamente com nossas leituras, tornaram possível afirmar que uma boa parte dos trabalhos publicados caracteriza-se por reproduzir, ainda que de maneira renovada do ponto de vista técnico e operacional, certos modos de pensar e fazer predominantes em outros campos de conhecimento. No campo das ciências sociais em saúde, essas questões vêm sendo apontadas há mais de uma década por vários autores (por exemplo: Nunes4, Gomes5, Luz6, Canesqui7, Martin et al.8, Gomes e Silveira9, Loyola10, Bosi11 e Minayo12), salientando os conflitos próprios e decorrentes das relações institucionais e acadêmicas, mesmo quando pesquisadores são bem intencionados na direção do convívio e de trocas interdisciplinares, como se espera no campo da saúde coletiva. Entre muitos fatores, reconhecer essas condições de convívio e conflito conduz a indagar sobre a formação adequada de sujeitos pesquisadores. Uma formação que seja capaz de abarcar a densidade teórica e, simultaneamente, a generosidade necessária para compartilhar campos, conhecimentos e 470

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métodos de pesquisa. Significa supor que pesquisadores de áreas distintas se dispõem a conhecer e compartilhar conhecimentos no próprio processo e, assim, se constituírem como sujeitos críticos. Talvez o estranhamento/descrédito em relação a pesquisas qualitativas no campo da saúde coletiva refira-se, compreensivelmente, à ausência de sustentação teórica e ao uso (muitas vezes, abusivo) de técnicas como se fossem métodos. Maingueneau13 organizou a produção de autores que lidam com análise qualitativa, por exemplo, em grupos distintos de pensamentos que convergem quanto a esses usos, e apontou temas transversos entre eles. Embora se refira mais especificamente ao numeroso grupo que utiliza a análise de discurso como “método qualitativo”, é interessante a comparação que esta autora faz a respeito do uso de métodos como se estivessem disponíveis na “caixa de ferramentas” das ciências sociais e humanas. Enfim, essa questão não é nova e assume feições renovadas. Em tocante editorial do importante periódico nacional Cadernos de Saúde Pública, as editoras se perguntam: O que na verdade pretendemos com o texto científico? Que ele seja lido e que contribua, mesmo que modestamente, para a construção do conhecimento na área. Muitas vezes os autores esquecem que há um leitor ao final desse processo. A pressa para submeter o artigo torna os autores descuidados, o que, aliado à falta de prática e à pouca ajuda de pesquisadores mais experientes, traz para os editores e consultores a antipática tarefa de dizer: seu texto está muito ruim!14 (p. 1701)

Claro que as editoras não se referiram apenas a pesquisas qualitativas, mas, também, é claro que estão se referindo a abusos de diversos matizes: desde a própria confecção – descuidada – do texto, como a necessidade de experiência para a elaboração requerida por um texto publicável. De onde falamos, ou seja, das ciências sociais e humanas, “alcançar a realidade” implica tempo e formação para que a ‘realidade’ seja ‘alcançada’. Exige, portanto, amadurecimento intelectual. Embora requeira muito exercício, não se trata de um exercício ou tarefa para ser entregue ao final de um curso e se alcançar crédito. Neste último caso especialmente, contribui sim para o descrédito, como apontam, mais uma vez, Carvalho, Travassos e Coeli14. Às vezes dizemos isso com o coração apertado: a ideia é inovadora, a quantidade de trabalho investido na coleta dos dados e estudo é imensa, e... o resultado final é quase ininteligível. Outras vezes, temos um artigo bem escrito, sem erros gramaticais, mas que se perde em detalhes de tal forma que no final não se consegue entender onde o autor pretendia chegar. E mais: textos com descompassos entre introdução e discussão, entre objetivos e métodos. Sem falar no resumo, talvez a peça mais essencial e mais negligenciada de todo o processo. Não é incomum recebermos em CSP artigos cujo resumo não deixa claro o conteúdo do manuscrito. (p. 1701)

A intensificação do ritmo da “produtividade” acadêmica aferida pela quantidade de artigos publicados a qualquer custo também motivou nossa reflexão. Diante da apresentação de resultados de pesquisas majoritariamente em formato de artigo, parte dos relatos das pesquisas qualitativas acaba acompanhando certa tendência reducionista, sob dois pontos de vista: seja quando as conclusões apresentadas reclamam, quase invariavelmente, por mais políticas públicas para as mais diversas finalidades; seja por prescreverem comportamentos adequados para que as desejadas políticas possam ser implantadas5,15. A salutar tradição do campo das humanidades de produzir relatos ampliados. com a apresentação do detalhamento dos procedimentos metodológicos enquanto experiência pessoal do sujeito investigador, a exposição de extensos conjuntos de material empírico que permitam ao leitor verificar horizontes e limites da observação produzida, além da reflexão construída no próprio processo de pesquisa que permita ao leitor apreender os modelos teóricos interpretativos sobre o processo social investigado, são procedimentos que deixaram de ocupar espaço (em número de páginas, inclusive) nos veículos de publicação constituídos pelos periódicos. Se, por um lado, ganhamos com a agilidade de uma comunicação mais rápida e extensiva em seu alcance mundial, viabilizando a divulgação de nossas ideias em redes de bibliotecas virtuais (algumas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mais acessíveis, outras nem tanto), por outro lado, corremos o risco de perder a abrangência de análises profícuas sobre os fenômenos sociais de maneira geral, e de saúde em particular. Embora estas constatações estejam colocadas para o campo da saúde coletiva desde sempre, ainda nos surpreendemos com a açodada multiplicação de artigos nos quais já não nos reconhecemos como intelectuais de uma das áreas em relação, ao mesmo tempo em que não podemos nos reconhecer em outras. Uma vez que construímos nossas identidades acadêmicas e profissionais nessas relações, trata-se, então, de pensar novas modalidades de elaboração de pesquisas qualitativas que contemplem as possibilidades ofertadas pelas formações profissionais envolvidas nas práticas de saúde, ao mesmo tempo em que atentem para virtuais consequências dessas perdas e ganhos. Considerando que praticamente todas as categorias profissionais da área da saúde são solicitadas a produzir artigos (nutrição/saúde alimentar, profissionais da saúde ambiental, educação física, direito/ direito sanitário, serviço social, enfermagem, técnicos de enfermagem, odontologia, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, fonoaudiologia e medicina), as perdas podem ser relativizadas diante das possibilidades dos ganhos conquistados ao longo dos processos. Mas precisamos ficar atentos para os riscos de perda de inteligibilidade daquilo que produzimos.

A dissonância entre modos de fazer pesquisa qualitativa: o exemplo do Guia RATS Iniciativas para ajudar o autor a avaliar se seu manuscrito poderá ser aceito pelos editores são sempre bem-vindas, geralmente pela via de um check-list dos periódicos, no item “informações aos autores”. A necessária adequação ao formato do periódico é um caminho importante na submissão do artigo. Todavia, estas informações são somente orientações de ordem formal e estão muito distantes de uma proposta de avaliação crítica de um manuscrito. O Guia RATS (Qualitative Research Review Guidelines)16 nos fornece um bom exercício de reflexão. Adotado por alguns periódicos como referência para revisar um estudo qualitativo, pretende, no nosso ponto de vista, orientar os autores a checar, minimamente, a estrutura de uma pesquisa qualitativa. Sua contribuição pode ser positiva, uma vez que pode guiar os autores menos experientes para que se cumpram todas as exigências para a submissão de um manuscrito de maneira coerente e clara. O Guia abrange algumas etapas de construção formal de um estudo qualitativo: a relevância do estudo, se o método é adequado, se os procedimentos de amostragem foram adequados, como foram selecionados os participantes, se há informações sobre como foram coletados os dados, o papel dos pesquisadores, apresentação de resultados e ética. O Guia Rats chama a atenção dos avaliadores e dos autores interessados para a adequação do método qualitativo ao objetivo proposto, desde a seleção dos pesquisadores e participantes da investigação quanto ao conhecimento requerido para a pesquisa, até a justificativa adequada para o desenho que seguiu. Vejamos um subitem do Guia Rats : o método. Por ser um guia, o texto é bem curto e traz itens em duas colunas: “pergunte isto ao manuscrito” (coluna A) e “isto deveria estar incluído no manuscrito” (coluna B), indicando o que supostamente deveria estar presente no texto. Um dos itens trata da adequação do método qualitativo. Na coluna A, o guia sugere uma pergunta orientadora: A metodologia qualitativa é a melhor escolha para os objetivos do estudo? Em seguida, são citadas algumas alternativas, como: entrevistas (experiência, percepções, comportamento, prática, processos), grupos focais (dinâmica de grupo, conveniência, tópicos não sensíveis), etnografia (cultura, organização, comportamento e interação), análise textual (documentos, arte, representações, conversas). Na coluna B, sugere, portanto, que o desenho do estudo deve ser descrito e justificado, isto é, por que este método particular foi escolhido? Faremos um breve exercício reflexivo sobre um estudo cujo método escolhido é o etnográfico. O que significa buscar palavras como cultura, organização, interação ou comportamento? O que elas dizem sobre o referencial teórico que as sustenta? A Antropologia possui inúmeros conceitos de cultura que, quando usados corretamente, mostram possibilidades distintas de interpretação dos dados coletados. Por exemplo, uma leitura de autores pós-modernos sobre a cultura é radicalmente diferente das várias leituras dos clássicos, que também se diferenciam entre si. Da mesma forma, como definir o comportamento? Trata-se de uma palavra tão polissêmica e utilizada por tantas áreas do conhecimento 472

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que qualquer definição ateórica a torna um elemento vazio, sem significado. O mesmo vale para as palavras organização e interação. Supõe-se que o leitor do Guia tenha conhecimento dos itens citados ou, pelo menos, esteja ciente da necessidade de sustentação teórica de cada palavra citada. Afinal, guias são úteis para organizar ideias e não devem pretender, de modo algum, substituir textos mais densos ou teóricos. Os conceitos citados são muito mais exemplos dos itens que devem estar presentes no manuscrito. Do contrário, corre o risco de se tornar um modelo vazio que pode ser preenchido com tudo, sem nenhuma crítica ou teoria subjacente. Chama a atenção também, neste item, a maneira pela qual as entrevistas, grupos focais, etnografia ou análise de texto são uniformemente citadas como técnicas. Vários pesquisadores vêm ressaltando esta confusão ou mal-entendido entre técnicas e métodos2 e, o mais preocupante, o uso de técnicas como se fossem métodos. De fato, o que nos preocupa é que o uso despreparado do Guia Rats desloque o cerne da questão que estamos apontando: não se trata de uma discussão sobre técnicas, mas sobre maneiras de se fazer ciência. Quando o avaliador ou pesquisador, seguindo inadvertidamente o guia, se atém somente à estrutura formal do artigo, incorre no risco de engessar a criatividade, o insight e o texto originais. Realizar um checklist por si só pode significar não ter argumentação substantiva sobre fazer ciência e, muito menos, sobre o imenso e vasto campo de produções de estudos compreensivo-interpretativos. Poderíamos fazer este exercício com todos os itens citados no Guia, o que não invalidaria, necessariamente, sua utilidade para alguns. Nossa preocupação refere-se ao seu uso para avaliar estudos e julgá-los como se fossem ou não estudos qualitativos rigorosos e comprometidos com a ciência. De fato, não há nada de errado nele, muito pelo contrário. A apropriação superficial e inadequada dos métodos qualitativos por alguns pesquisadores tem confundido seu uso original, de ser somente um guia. Além disso, seu uso exclusivo revela desconhecimento da complexidade e profundidade teórica envolvida em estudos qualitativos. Em alguns casos, ocorre algo até pior, pois utilizam os guidelines propostos da mesma forma como são utilizados em estudos de outra procedência, sem que se dê conta da natureza diversa destas opções metodológicas distintas. Nesta linha de raciocínio, Martin et al.17 ressaltam a preocupação pelo fato de se avaliarem artigos sustentando-se ainda com critérios quantitativos, de certa forma travestidos com roupagem qualitativa. A natureza do Guia Rats não permite uma avaliação crítica sobre modos de fazer ciência, até porque não é seu objetivo. Todavia, um dos itens pouco considerados por autores e pareceristas refere-se ao autoquestionamento dos pesquisadores no que concerne ao exame crítico de sua própria influência na formulação do problema de pesquisa, no levantamento de dados e na interpretação dos resultados.

Sobre modelos de pesquisa qualitativa e o problema da uniformização Um tema importante nas pesquisas qualitativas que, de certa forma, vem sendo esquecido, é o de que não existe “um modelo de entendimento” ou “um método compreensivo-interpretativo”. Falar sobre um método compreensivo-interpretativo implica, além de explicitar uma escolha consciente e deliberada, entender o que é compreensão e interpretação nas ciências sociais e humanas. Não se trata de palavras autoexplicativas, mas de referências conceituais profundas, relacionadas a certas escolas de pensamento. Da mesma maneira, não se pode afirmar que o processo interpretativo seja o mesmo para todas as pesquisas qualitativas. No caso da Antropologia, por exemplo, embora se defina como uma ciência interpretativa18, encontramos, nela, várias maneiras de interpretar que, por sua vez, estão relacionadas a uma matriz disciplinar com distintos enfoques teóricos. Surge, então, um primeiro deslocamento conceitual importante para a avaliação de pesquisas qualitativas. Diante da diversidade de abordagens teóricas utilizadas nos artigos, tal como indicado por Deslandes e Iriart1, não se pode falar que se trata de um processo de sucessão, onde um paradigma sucederia a outro, invalidando-o ou tornando-o obsoleto. Muitas vezes subentendido em debates ou publicações científicas, este tipo de interpretação nada mais faz do que empobrecer as possibilidades de interpretação (entendidas aqui no seu sentido plural ou polissêmico) como desqualificar trabalhos valiosos. Há que se respeitar as diversas tradições intelectuais. Como afirmou Cardoso de Oliveira18: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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À diferença das ciências naturais, que os registram em sucessão – (os paradigmas) num processo contínuo de substituição –, na antropologia social os vemos em plena simultaneidade, sem que o novo paradigma elimine o anterior pela via das “revoluções científicas” de que nos fala Khun, mas aceite a convivência, muitas vezes num mesmo país, outras vezes numa mesma instituição. (p. 15)

Na ausência de crítica, corremos o risco de praticar apenas a apresentação de um jogo de conceitos, mais ou menos precisos em suas definições a priori, e instigar o leitor a aceitar o caminho certo, a rota precisa, a determinação. A que devemos tal reducionismo teórico e metodológico que imputa a certeza de que exista “um” método? Mais ainda, quem atribui a valoração que estabelece quais fenômenos seriam mais relevantes, e outros menos relevantes? Numa palavra: quem faz as escolhas? Uma convicção expressa na ideia de existência de um único método deixa de apresentar outros modelos teórico-interpretativos e nos deixa, como leitores, sem saber os porquês desta escolha. Essência da própria pesquisa qualitativa e mesmo do campo das ciências sociais como um todo, é o posicionamento que tomamos, não por ingenuidade e, menos ainda, por desconhecimento. Conferir à afirmação de um único caminho teórico-metodológico a designação de impostura intelectual19 não parece conter qualquer exagero. Pelo contrário, carregada de sentido, tal impostura deixa de expor justamente aquilo que as pesquisas sociais têm de mais enriquecedor à reflexão: o conjunto de referenciais teórico-metodológicos construídos e transformados, desde o século XIX, que permitem observar fenômenos sociais de variados ângulos e que constituem as matrizes de pensamento na área de ciências sociais. Uma rápida incursão pela sociologia compreensiva de orientação weberiana nos permite refletir sobre a possibilidade da produção de conhecimentos da sempre presente valoração imputada pelos sujeitos – aquele que observa e aquele cujas ações e pensamentos são observados nos processos de pesquisa. No limite, a afirmação de que: “não há uma metodologia, mas o exercício minucioso de uma criatividade que, longe de recuar diante dos desafios, nutre-se dos mesmos ao preço da renúncia à tranquilidade e ao conforto das conclusões definitivas”20 (p. 38), parece conter muito do que queremos dizer em nossos processos de produção de conhecimento, desde que tenhamos clareza e façamos a exposição ampliada sobre nossas escolhas e a adesão a determinados valores que as orientam. Autor de referência nas ciências sociais do século XX, em texto muito difundido nos meios de formação teórica para a pesquisa social, particularmente em sociologia, Wright Mills21 muito contribuiu para o ensinamento de uma característica fundamental à postura intelectual: a imaginação do pesquisador no que tange à produção de suas ideias e (por que não?) de suas ações enquanto pesquisador e, também, responsável pela difusão de conhecimentos por meio de seus escritos. A imaginação, diz-nos o autor, significa ter: Consciência da ideia de estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes de pequena escala. Ser capaz de usar isso é possuir imaginação sociológica.21 (p.17)

Mills nos fala sobre as grandes questões públicas que, a seu ver, deveriam constituir as verdadeiras preocupações da sociologia. Em meados dos anos 1950, o autor apresentava uma crítica acirrada a modismos teóricos que permeavam as ciências sociais desde então. Nas suas palavras, essas “modas intelectuais configura(va)m conjuntos efêmeros que pouco contribuem para a construção e difusão de conhecimentos mais duradouros e que permitam o exercício de uma crítica mais ampliada às sociedades industrializadas21. A imaginação sociológica é uma qualidade que compromete, aquele que investiga, ao entendimento das realidades menores e mais próximas e, muitas vezes, dentro de sua própria pessoa. Um entendimento que permite lançá-lo à ligação intelectual com realidades mais amplas, estruturas que cercam nossas vidas e constituem o conjunto de instituições que formam as sociedades complexas21. O autor denuncia determinados círculos que formam “corpos de técnicas burocráticas” cuja finalidade explícita é formular conhecimentos sobre o social, mas, simultaneamente, acabam 474

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por defender e divulgar conceitos obscuros que em nada contribuem para as questões de relevância pública21 (p. 27). Acreditamos, portanto, que aceitar a ideia de uma metodologia de pesquisa qualitativa significa negar as inúmeras possibilidades de interpretação que os métodos qualitativos oferecem, inviabilizando, assim, sua especificidade e riqueza.

Considerações inconclusas Apontamos alguns itens críticos na maneira como parte das pesquisas qualitativas tem sido produzida. Reconhecemos, todavia, que o desafio de entrar em áreas multidisciplinares, como é o caso da saúde coletiva, é também gratificante e provocativo para todos os que se reconhecem neste campo científico. Estamos sempre dialogando com outros campos semânticos, que, frequentemente, resultam em má interpretação ou incompreensão. É possível que estes efeitos sejam decorrentes da proximidade com as outras áreas, mas, de qualquer modo, acabam incorporando categorias das ciências bionaturais ao âmbito das pesquisas qualitativas em saúde de maneira inapropriada. Muitas vezes, o desejo de homogeneizar pesquisas qualitativas compromete epistemologicamente a qualidade e o rigor, além de conduzir ao descrédito do que poderia acrescentar em termos de compreensão. Devemos nos preocupar em trazer, ao leitor, as informações necessárias para uma compreensão clara de nossos propósitos. Explorar a complexidade do método e das técnicas escolhidos, seus limites e possibilidades, os horizontes que alcançam e, sobretudo, desenvolver um sentido crítico para a produção científica nos moldes que hoje se nos apresenta, são algumas tarefas importantes. Precisamos estar atentos a esta pretensão equivocada pela univocidade dos sentidos e sensibilizar a inteligência para outros horizontes, desconfiando das respostas rápidas. Este chamado a uma maneira de fazer ciência considera que sempre conhecemos de maneira tensa.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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Referências 1. Deslandes SF, Iriart JAB. Usos teórico-metodológicos das pesquisas na área de ciências sociais e humanas em saúde. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2380-6. 2. Nakamura E. O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica. Saude Soc. 2011; 20(1):95-103. 3. Victora CG. Uma ciência replicante: a ausência de uma discussão sobre o método, a ética e o discurso. Saude Soc. 2011; 20(1):104-12. 4. Nunes ED. Interdisciplinaridade: conjugar saberes. Saude em Debate. 2002; 26(62):249-58. 5. Gomes MHA. Apontamentos socioantropológicos sobre comunidade e saúde. Rev Saude Publica. 2006; 40(3):528-36. 6. Luz MT. Complexidade do campo da saúde coletiva: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, e transdisciplinaridade de saberes e práticas-análise sócio-histórica de uma trajetória paradigmática. Saude Soc. 2009; 18(2):304-11. 7. Canesqui AM. As ciências sociais, a saúde e a saúde coletiva In: Canesqui AM, organizadora. Dilemas e desafios das ciências sociais na saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 1995. p. 19-35. (Saúde em Debate, n. 92) 8. Martin D, Andreoli SB, Quirino J, Nakamura E. Noção de significado nas pesquisas qualitativas em saúde: a contribuição da antropologia. Rev Saude Publica. 2006; 40(1):178-80. 9. Gomes MHA, Silveira C. Sobre o uso de métodos qualitativos em Saúde Coletiva, ou a falta que faz uma teoria. Rev Saude Publica. 2012; 46(1):160-5. 10. Loyola MA. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saude Soc. 2012; 21(1):9-14. 11. Bosi MLM. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: panorama e desafios. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):575-86. 12. Minayo MCS. A produção de conhecimentos na interface entre as ciências sociais e humanas e a saúde coletiva. Saude Soc. 2013; 22(1):21-31. 13. Maingueneau D. Novas tendências em análise do discurso. 3a. ed. Campinas: Ed. Universidade Estadual de Campinas; 1997. 14. Carvalho MS, Travassos C, Coeli CM. Um bom texto. Cad Saude Publica. 2013; 29(9):1701. 15. Castiel LD, Sanz-Valero J, Red MeI-CYTED. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad Saude Publica. 2007; 23(12):3041-50. 16. Clark JP. The RATS guidelines modified for BioMed Central. How to peer review a qualitative manuscript. In: Godlee F, Jefferson T, editors. Peer review in Health Sciences. 2nd. ed. London: BMJ Books; 2003. p. 219-35. 17. Martin D, Andreoli SB, Pinto RMF, Barreira TMHM. Sobre fazer ciência na pesquisa qualitativa: um exercício avaliativo. Rev Saude Publica. 2012; 46(2):392-3. 18. Cardoso de Oliveira R. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1988. 19. Sokal A, Bricmont J. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro: Record; 1999. 20. Lazarte R. Max Weber: ciência e valores. Cortez: São Paulo; 1996. 21. Mills CW. A imaginação sociológica. 2a. ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1969.

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Gomes MHA, Martin D, Silveira C. Comentarios pertinentes sobre usos de metodologías cualitativas en salud colectiva. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):469-77. Con este texto nuestro objetivo es contribuir para el debate sobre la evaluación de la producción y de la divulgación de investigaciones basadas en metodologías cualitativas en salud colectiva. Buscamos relacionar las brechas teóricas y metodológicas con indicios de valoración que están presentes en los procesos de investigación y evaluación de artículos publicados. En la ausencia de explicación de los valores que llevaron a las opciones mostradas en las investigaciones, algunos periódicos recomiendan recursos de valoración que privilegian procedimientos formales y técnicos. La valoración se complementa con guías de elaboración de artículos, entre los cuales las check-lists, que proporcionan los ítems evaluados. Estos factores contribuyen para reduccionismos teórico-metodológicos y refuerzan la creencia en la existencia de un único método. Finalmente, renovamos la llamada a la imaginación y a la diversidad de concepciones sobre lo que pretendemos conocer.

Palabras clave: Metodologías de investigación cualitativa. Evaluación por pares. Salud colectiva. Ciencias sociales y humanas. Recebido em 30/04/14. Aprovado em 09/05/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0875

artigos

Avaliação da qualidade de evidências científicas sobre intervenções musicais na assistência a pacientes com câncer Vladimir Araujo da Silva(a) Eliseth Ribeiro Leão(b) Maria Júlia Paes da Silva(c)

Silva VA, Leão ER, Silva MJP. Assessment of quality of scientific evidence on musical interventions in caring for cancer patients. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):479-92.

This integrative review aimed to assess the quality of scientific evidence on musical interventions in caring for cancer patients. The search strategy was conducted in July 2013, using descriptors indexed in the Bireme, Cochrane Library, Medline, Embase, Web of Science, CINAHL and Scopus databases. We selected four randomized clinical trials (two of high and two of low methodological quality) and two systematic reviews (both of high methodological quality). The greatest limitations of the clinical trials were in the descriptions of the resources and musical structures used; and of the systematic reviews, in their focus on the methodological designs. Most of the studies had high methodological quality, but the resources and musical structures used were neither described nor discussed, thereby trivializing the therapeutic potential of music and limiting replication of the studies and incorporation of evidence into clinical practice.

Keywords: Medical oncology. Oncologic nursing. Neoplasms. Music. Music therapy.

Esta revisão integrativa pretendeu avaliar a qualidade de evidências científicas sobre intervenções musicais na assistência a pacientes com câncer, utilizando descritores indexados nas bases de dados: Bireme, The Cochrane Library, Medline, Embase, Web of Science, CINAHL e Scopus. Foram selecionados quatro ensaios clínicos randomizados (dois de alta e dois de baixa qualidade metodológica) e duas revisões sistemáticas (ambas de alta qualidade metodológica). As maiores limitações dos ensaios clínicos estão na descrição dos recursos e estruturas musicais utilizadas e das revisões sistemáticas, no foco nos delineamentos metodológicos, em detrimento da qualidade dos relatórios das intervenções musicais. Na maioria dos estudos foi apresentada alta qualidade metodológica, mas não foram descritos e tampouco discutidos os recursos e as estruturas musicais utilizados, banalizando o potencial terapêutico da música e limitando sua replicação e incorporação das evidências na prática clínica.

Palavras-chave: Oncologia. Enfermagem oncológica. Neoplasias. Música. Musicoterapia.

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(a) Doutorando, Programa de PósGraduação em Enfermagem na Saúde do Adulto, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo (EEUSP). Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419. São Paulo, SP, Brasil. 05403-000. vladimir_araujo_silva@ usp.br (b) Programa de Mestrado Profissional em Enfermagem, Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, Hospital Israelita Albert Einstein. São Paulo, SP, Brasil. eliseth.leao@einstein.br (c) Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica, EEUSP. São Paulo, SP, Brasil. juliaps@usp.br

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Introdução Diante da complexidade multidimensional que permeia o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico do câncer, inúmeras iniciativas, estruturadas em diversos referenciais teórico-filosóficos – Terapias Complementares Holísticas, Cuidados Paliativos, Antroposofia e Musicoterapia – têm utilizado a música como recurso de cuidado ao paciente com câncer. Enfatiza-se a constante contribuição da Enfermagem para a compreensão dos mecanismos que a música utiliza ao desencadear reações fisiológicas no ser humano, suas indicações e limitações1. Nessa perspectiva, a intervenção musical “pressupõe uma intrincada rede de sensações, emoções, sentimentos, significados simbólicos e culturais”, intrínseca a cada ser humano, capaz de ressoar e produzir diversos efeitos terapêuticos2 como: a redução da dor, do estresse e da ansiedade, a promoção de conforto, relaxamento muscular e dignidade às pessoas hospitalizadas, o resgate de reminiscências e identidade de idosos institucionalizados, dentre outros1. No que tange às emoções, seis mecanismos psicológicos – decodificação de informações que induzem emoções por meio da audição musical – são propostos: reflexos cerebrais (interpretação das percepções auditivas por meio de frequências consonantes e dissonantes que determinam sensações de prazer ou desprazer; excitação ou relaxamento); condicionamento avaliativo (pareamento repetitivo da música com outros estímulos); contágio emocional (influenciada pela expressividade emocional da composição); imaginação visual (interação entre a música e as imagens mentais evocadas durante a audição musical); memória episódica (evocação de memórias afetivas vinculadas aos eventos importantes da vida); expectativa musical (violação – inesperada ou pressentida – de uma característica fundamental específica da música, atrelada às experiências pregressas com o gênero musical em questão)3. Ressalta-se a importância da experiência musical para pacientes oncológicos, em cuidados paliativos ou que experienciam significativa angústia existencial e sofrimento2. Concernente aos cuidados paliativos, uma filosofia de cuidado interdisciplinar que vislumbra a qualidade de vida e a prevenção e o alívio do sofrimento de pacientes e familiares que convivem com doenças ameaçadoras de vida, um estudo de revisão bibliográfica concluiu que, quando utilizada com competência e sensibilidade, a música converge com os seus pressupostos filosóficos, por atuar terapeuticamente em todas as dimensões humanas, sobretudo por promover uma atmosfera que subsidia a expressão emocional e afetiva4. Nesse contexto, o encontro mediado pela música constitui um recurso no cuidado de Enfermagem que inspira vida aos dias dos doentes, imprimindo-lhes a sensação de cuidado e ressignificando seu existir no mundo com o câncer. A música pode subsidiar o compartilhar de experiências, expectativas e estratégias de enfrentamento, ou seja, o estar com o outro em sua fatalidade existencial5. Não obstante, os estudos experimentais acerca de intervenções musicais, que edificam o “estado da arte”, parecem ignorar a complexidade de estímulos musicais existentes, bem como os mecanismos pelos quais estes induzem efeitos terapêuticos nos seres humanos, ao descreverem suas intervenções. Diante do exposto, o presente estudo objetivou avaliar a qualidade de evidências científicas sobre intervenções musicais na assistência a pacientes com câncer, bem como a qualidade dos relatórios no que tange aos recursos e estruturas musicais utilizados.

Métodos Trata-se de uma revisão integrativa da literatura realizada em julho de 2013, estruturada em seis etapas: 1) identificação do tema e elaboração da questão de pesquisa; 2) estabelecimento dos critérios de inclusão e exclusão; 3) categorização dos estudos selecionados; 4) avaliação dos estudos incluídos na revisão; 5) interpretação dos resultados; 6) apresentação sintetizada do conhecimento6. A questão de pesquisa foi: quais são os efeitos terapêuticos da música sobre as dimensões humanas na assistência a pacientes com câncer?

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artigos

Os critérios de inclusão foram: ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas sobre intervenções musicais na assistência a pacientes adultos com câncer, sem restrição de idioma ou período de publicação. Os critérios de exclusão foram: intervenções musicais realizadas com crianças, adolescentes e cuidadores; intervenções realizadas no decorrer de tratamentos clínicos (quimioterapia, radioterapia, braquiterapia) ou cirúrgicos, procedimentos invasivos e/ou diagnósticos (biópsia, mamografia, colonoscopia), por envolver questões psicoemocionais (medo, ansiedade) relacionadas aos tratamentos e procedimentos, e não à doença propriamente dita. A estratégia de busca (“oncology”[MeSH Terms] OR “oncologic nursing”[MeSH Terms] OR “medical oncology”[MeSH Terms] OR “neoplasm”[MeSH Terms] OR “neoplasms”[MeSH Terms] OR “cancer”[MeSH Terms] AND “music”[MeSH Terms] OR “music therapy”[MeSH Terms]) resultou em 228 estudos nas seguintes bases de dados: Bireme (1), The Cochrane Library (3), Medline (35), Embase (21), Web of Science (57), CINAHL (6) e Scopus (105). Contudo, apenas seis estudos foram selecionados a partir da leitura dos títulos e resumos e, posteriormente, leitura na íntegra conduzida pelos critérios de inclusão. Foram excluídos: 89 estudos duplicados, 63 estudos que abordavam outros temas (geriatria, cuidados paliativos, práticas alternativas e complementares), vinte estudos realizados com crianças, adolescentes ou cuidadores, 12 estudos realizados durante tratamentos clínicos, dez estudos realizados durante tratamentos cirúrgicos, dez estudos realizados durante procedimentos invasivos e/ou diagnósticos, 11 estudos que utilizaram outras metodologias, seis estudos com resumos indisponíveis, e um estudo que não foi encontrado na íntegra. Além dos dados comumente coletados em estudos de revisão – referência do estudo, país, idioma, delineamento metodológico e desfecho –, os pesquisadores utilizaram as diretrizes para relatórios de intervenções musicais propostas por Robb et al.7. Os ensaios clínicos randomizados foram submetidos à análise de qualidade metodológica proposta por Jadad et al.8. Esta escala consiste em cinco critérios, e varia de 0 a 5 pontos, na qual o escore menor que 3 indica que o estudo possui baixa qualidade metodológica e, dificilmente, seus resultados poderão ser extrapolados para outros cenários9. As revisões sistemáticas foram submetidas à avaliação de qualidade AMSTAR10 e classificadas de acordo com o sistema de classificação utilizado pelo Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health (CADTH), cujo escore, que varia de 0 a 11 pontos, pode lhes conferir alta (9-11), média (5-8) ou baixa (0-4) qualidade11. As descrições das intervenções musicais foram avaliadas com base nas diretrizes supracitadas7.

Resultados Dos seis estudos selecionados, quatro (E1, E3, E5 e E6) são ensaios clínicos randomizados (ECR) e dois (E2 e E4) são revisões sistemáticas. Concernente à intervenção musical, três ECR (E1, E5 e E6) foram realizados nos Estados Unidos (EUA) por musicoterapeutas, e apenas um (E3) foi realizado em Taiwan, por enfermeiros. As revisões sistemáticas abordaram tanto intervenções realizadas por musicoterapeutas como por profissionais da saúde, e foram desenvolvidas por pesquisadores dos EUA, sendo uma (E2) em parceria com pesquisadores chineses. Os delineamentos metodológicos dos estudos estão apresentados no Quadro 1. De acordo com a análise de qualidade metodológica proposta por Jadad et al.8, embora não fossem descritos como duplo-cego, dois ECR (E1 e E3) apresentaram alta qualidade. Em contrapartida, os demais (E5 e E6) foram considerados de baixa qualidade, por não descreverem a sequência de randomização apropriadamente, conforme pode ser observado na Tabela 1. Baseado na avaliação de qualidade AMSTAR10 e em conformidade com o sistema de classificação utilizado pelo CADTH11, os estudos E2 e E4 obtiveram, respectivamente, escore 10 e 11 e, portanto, apresentaram alta qualidade, apesar de E2 não ter fornecido uma lista de estudos excluídos (Tabela 2). Em relação à avaliação da qualidade dos relatórios das intervenções musicais dos ECR, conduzida por meio do checklist, proposto por Robb et al.7 (Quadro 2), observamos descrição deficitária dos recursos e estruturas musicais utilizados.

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Quadro 1. Características dos estudos segundo país e ano de publicação, delineamento metodológico e desfecho. Brasil, 2013. Estudo País/ Ano

Delineamento metodológico

Desfecho

E112

EUA 2013

Ensaio clínico randomizado – abordagem de métodos mistos. N = 17 pacientes (grupo experimental: 10 e grupo controle: 7). Intervenção de comparação: lista de espera. Sexo: grupo experimental – 6 mulheres e 4 homens; grupo controle – 3 mulheres e 4 homens. Idade média: 59, 85 anos. Etnicidade: norte-americana. Diagnóstico: leucemia, não especificado ou outros. Estágio da doença: não descrito. Cenário: unidade de oncologia-hematologia de um hospital. Critérios de inclusão: ser capaz de ler e entender inglês, estar internado na unidade de oncologia, ter completado 3 sessões com os pesquisadores, ter 18 anos ou mais. Instrumentos: Escala de Bem-estar Espiritual – Terapia e Avaliação Funcional de Doenças Crônicas (FACIT-Sp) Entrevista semiestruturada (análise temática).

O grupo experimental apresentou maiores escores nas subescalas de paz e fé da Escala de Bem-estar Espiritual – Terapia e Avaliação Funcional de Doenças Crônicas no pós-teste em relação ao grupo controle.

E213

EUA/ China 2012

Revisão sistemática e metanálise. N= 3.181 pacientes – 32 ensaios clínicos randomizados (10 ingleses e 22 chineses). Nove bases de dados (6 de língua inglesa e 3 de língua chinesa – Cochrane, Medline, PsychINFO, AMED, CINAHL e EMBASE; CNKI, Wangfang e CBM, respectivamente). Sexo: não descrito. Idade: não descrita. Etnicidade: inglesa e chinesa. Diagnóstico: a maioria dos estudos incluiu vários tipos de câncer (mama, pulmão, cânceres maxilo-facial; carcinoma nasofaríngea, leucemia, e tumores malignos). Estágio da doença: não descrito. Cenário: não descritos. Critérios de inclusão: estudos randomizados controlados sobre os efeitos de intervenções musicais em desfechos físicos e psicológicos em pacientes com câncer; publicados em inglês e chinês a partir de 1966 ou início da base de dados até março de 2011; os termos de pesquisa (e suas variantes): “música” ou “musicoterapia” ou “intervenção musical” ou “música medicinal” e “câncer” e “dor” e “radioterapia” e “quimioterapia” e “oncology”; não houve restrições de idade, sexo, etnia ou tipo de cenário. Instrumentos utilizados: GRADE (Grading of Recommendations Assessment, Development, and evaluation). Intervenção de comparação: tratamento padrão sozinho, tratamento padrão com outras terapias ou tratamento padrão mais placebo. Os estudos com placebo envolveram a utilização de fones de ouvido sem música ou qualquer outro tipo de estímulo auditivo fornecido aos participantes.

Sete estudos de alta qualidade indicaram que a música teve efeitos positivos sobre o enfrentamento da ansiedade, avaliada pela Escala de Ansiedade de Autoavaliação; 2 estudos de qualidade moderada sugeriram que a música reduz a ansiedade, avaliada pela Escala de Ansiedade de Hamilton; 8 estudos de qualidade moderada revelaram que a música reduz a ansiedade, avaliada pelo Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE); 7 estudos de qualidade moderada demonstraram que a música melhora a depressão; 7 estudos de qualidade moderada observaram que a música teve efeitos positivos sobre o manejo da dor; 2 estudos de qualidade moderada sugeriram que a música piora a fadiga; 4 estudos de qualidade moderada indicaram que a música abaixa a frequência cardíaca; 3 estudos de baixa qualidade sugeriram que a música pode reduzir a frequência respiratória; 2 estudos de qualidade moderada indicaram que a música melhora a qualidade de vida. Ensaios clínicos randomizados individuais sugerem que a intervenção musical é aceita pelos pacientes e associada a melhores resultados psicológicos. São pequenos os efeitos da música nos sinais vitais, especialmente a pressão arterial. Ensaios de alta qualidade são necessários para continuar a determinar os efeitos da intervenção musical. continua

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Estudo País/ Ano E314

Taiwan 2010

E415

EUA 2011

Delineamento metodológico

artigos

Quadro 1. continuação Desfecho

Ensaio clínico randomizado. N= 126 pacientes (grupo experimental: 62 e grupo controle: 64). Intervenção de comparação: descansar na cama. Sexo: 88 homens (70%) e 38 mulheres (30%). Idade: variou de 18 a 85 anos, com média de 54 anos. Etnicidade: taiwanês. Diagnóstico: 51 cânceres de cabeça ou pescoço (41%); 25 gastrintestinal (20%); 16 hematológico (13%); 15 geniturinário (12%); 7 de pulmão (6%); 1 de osso (1%); 11 outros tipos (9%). Estágio da doença: 2 no estágio I (2%); 3 no estágio II (2%); 10 no estágio III (8%); 68 no estágio VI (54%); 33 forneceram informações insuficientes sobre o estágio (26%); 2 recidivas (2%); 8 não puderam ser mensurados (por exemplo, leucemia) (6%). Cenário: unidade oncológica, cuidados paliativos e unidades gastrenterologia e pneumologia. Critérios de inclusão: ter diagnóstico de câncer; dor habitual relatada nas últimas 24h; ter 18 anos de idade ou mais; ser capaz de falar chinês e/ou taiwanês; estar disposto e capaz de consentir. Foram excluídos pacientes que sofreram grandes cirurgias no mês anterior. Instrumentos: VAS – escala numérica verbal – consumo de analgésicos opioides e entrevista.

Oferecer opções de músicas culturalmente apropriadas e familiares foi um elemento-chave da intervenção. Os achados corroboram a teoria para dor oncológica de Good e Moore (1996) de que a música suave era considerada segura, eficaz e apreciada pelos participantes; o estudo proporcionou significativamente (p<0,001) maior alívio da dor oncológica do que analgésicos isoladamente. Assim, os enfermeiros devem oferecer música calma e familiar para complementar a analgesia de pessoas com dor oncológica.

Revisão sistemática. Tamanho da amostra: 1.891 pacientes com câncer (30 ensaios clínicos randomizados e quase experimentais). Diagnóstico: pacientes com câncer. Foram excluídos pacientes submetidos à biópsia e aspiração para diagnóstico. Estágio da doença: diversos. Cenário: diversos.

As intervenções musicais podem ter efeito benéfico sobre a ansiedade de pacientes oncológicos com redução de 11,20 unidades nos escores do IDATE e 0,61 em outras escalas de ansiedade. Os resultados sugerem impacto positivo no humor, mas não foram encontradas evidências em relação à depressão. Efeitos positivos sobre ansiedade, dor, humor, e qualidade de vida em pacientes com câncer, e pequenos efeitos sobre frequência cardíaca, frequência respiratória e pressão arterial. A qualidade de evidência científica dos estudos é baixa. Não foi possível comparar a efetividade entre as intervenções oferecidas por musicoterapeutas e por outros profissionais da saúde. continua

Com exceção da música Amazing Grace, timidamente referenciada, o estudo E1 não descreve as demais músicas utilizadas, tampouco sua estrutura global. O estudo E3 referencia apenas os estilos musicais utilizados, contudo, não descreve os recursos sonoros e estruturas das músicas utilizadas. Embora tenha relatado o álbum utilizado na intervenção, o estudo E5 menciona a utilização de outras seleções clássicas complementares, mas não as descreve. No estudo E6, o pesquisador não descreve as músicas e os materiais utilizados, nem a duração das sessões musicoterapêuticas.

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Quadro 1. continuação Estudo País/ Ano

Delineamento metodológico

Desfecho

E516

EUA 2001

Ensaio clínico randomizado (pré-teste e pós-teste). N= 8 pacientes (grupo experimental: 4 e grupo controle: 4). Intervenção de comparação: lista de espera. Sexo: mulheres. Idade média: 48 anos, desvio-padrão de 6,56 anos. Etnicidade: norte-americana. Diagnóstico: 7 com câncer de mama e 1 com câncer de ovário. Estágio da doença: não descrito. Cenário: consultório terapêutico. Critérios de inclusão: diagnóstico de câncer relacionado ao sistema endócrino ou imunológico (ovário, mama, próstata, endométrio, leucemia ou linfoma); faixa etária de 30 a 65 anos de idade; conclusão ou ausência de tratamento quimioterápico e/ ou radioterápico; abstinência de drogas, ausência de tabagismo e consumo limitado de álcool (≤ 10 doses por semana); ausência de terapia com prednisona; ausência de história de doença psiquiátrica aguda; função cognitiva/mental preservada. Instrumentos: Escala de qualidade de vida – câncer (QOL-CA); Perfil de estados de humor (POMS) (1971) – respondidos no pré-teste, no pós-teste e na 6ª semana de acompanhamento.

O grupo experimental apresentou melhor humor e qualidade de vida no pós-teste (uma semana após a última sessão) e no acompanhamento (e semanas após a intervenção) em relação ao grupo controle. Contudo, os subescores da escala de qualidade de vida – depressão e confusão – revelaram um discreto aumento no acompanhamento do grupo experimental.

E617

EUA 2003

Ensaio clínico randomizado. N= 80 pacientes (grupo experimental: 40 e grupo controle: 40) Intervenção de comparação: cuidados hospice de rotina. Sexo: masculino e feminino. Idade média: grupo experimental – 66 anos e grupo controle – 65 anos. Etnicidade: norte-americana – 25% negros e 75% caucasianos em cada grupo. Diagnóstico: diversos tipos de câncer. Estágio da doença: câncer em estágio terminal com prognóstico de 6 meses de vida ou menos. Cenário: ambiente domiciliar. Critérios de inclusão: diagnóstico de câncer em estágio terminal; adultos; residir em sua casa; prognóstico de vida de, pelo menos, 2 semanas de acordo com a avaliação da enfermagem na admissão; ser capaz de responder questões relacionadas à percepção de qualidade de vida; consentimento para participar da pesquisa. Instrumentos: Hospice Quality of Life Index-Revised (HQOLI-R), uma medida de autorrelato dado a cada visita; Palliative Performance Scale para avaliar o estado funcional dos sujeitos.

O grupo experimental apresentou melhor qualidade de vida do que no grupo controle. A qualidade de vida no grupo experimental aumentou ao longo do tempo em que receberam mais sessões de musicoterapia. Sem música, a qualidade de vida no grupo controle diminuiu. Não houve diferença significativa entre os grupos no que tange ao estado funcional dos sujeitos, duração de vida, ou tempo de morte em relação à última visita programada pelo musicoterapeuta ou conselheiro de suporte familiar.

Tabela 1. Avaliação da qualidade de relatórios de ensaios clínicos randomizados, segundo Jadad et al.8. Brasil, 2013. Estudos selecionados

Itens O estudo foi descrito como randomizado? O estudo foi descrito como duplo-cego? Houve descrição de exclusões e perdas? O método para gerar a sequência de randomização foi descrito e apropriado? O método de duplo-cego foi descrito e apropriado? Pontos

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E1

E3

E5

E6

Sim Não Sim Sim Não 3

Sim Não Sim Sim Não 3

Sim Não Não Não Não 1

Sim Não Não Não Não 1


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artigos

Tabela 2. Avaliação da qualidade metodológica de revisões sistemáticas, segundo Shea et al.10. Brasil, 2013. Estudos selecionados

Itens 1. Foi fornecido um projeto “a priori”? 2. Houve duplicação na seleção de estudos e extração de dados? 3. Foi realizada uma pesquisa/busca bibliográfica abrangente? 4. O status da publicação (ou seja, literatura cinzenta) foi utilizado como um critério de inclusão? 5. Foi fornecida uma lista de estudos (incluídos e excluídos)? 6. As características dos estudos incluídos foram fornecidas? 7. A qualidade científica dos estudos incluídos foi avaliada e documentada? 8. A qualidade científica dos estudos incluídos foi utilizada de forma adequada na formulação das conclusões? 9. Os métodos foram usados para combinar os resultados de estudos adequados? 10. A probabilidade de viés de publicação foi avaliada? 11. O conflito de interesses foi informado? Qualidade

E2

E4

Sim Sim Sim Sim Não Sim Sim Sim Sim Sim Sim 10

Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim 11

Em relação às revisões sistemáticas, observa-se que os pesquisadores focalizaram a avaliação da qualidade metodológica dos estudos. Entretanto, as descrições das intervenções musicais são limitadas, insuficientes, diversificadas e inconclusivas, impedindo uma análise comparativa. Os estudos E2 e E4 apontam a necessidade de desenvolvimento de novas pesquisas com descrição detalhada dos estímulos musicais utilizados. O estudo E4 sugere a avaliação da relação entre frequência e duração das sessões e os efeitos do tratamento.

Discussão O primeiro aspecto que nos chama atenção é o reduzido número de ensaios clínicos e revisões sistemáticas que se relacionem às dimensões humanas dos pacientes oncológicos, demonstrando que o raciocínio de procedimentos e manejo de complicações decorrentes da doença ainda é a tônica em nosso meio. Sabemos da ênfase dada ao modelo hierarquizado, que atribui graus de evidências de acordo com a metodologia empregada nos diferentes estudos. Justamente por serem tão valorizados, tornou-se de suma importância que os profissionais de saúde, ao lerem um ensaio clínico, sejam capazes de avaliar a sua qualidade e compreender suas limitações. Induz-se a ideia de que, se o clínico não se comportar, nos cuidados com os seus pacientes, de acordo com o que foi “demonstrado” em tal ou qual ensaio clínico, ou nas revisões sistemáticas e metanálises, está defasado no conhecimento e exercendo o cuidado “sem evidências científicas”. Os ensaios clínicos são uma ferramenta útil para a prática clínica, mas não podem ser usados de forma simples e massificados. Devemos buscá-los como fonte de evidência para orientar nossas decisões, mas não podemos fazê-lo como se este fosse um dogma inquestionável18. Embora o mesmo rigor metodológico requerido nos estudos clínicos seja aplicado em estudos que utilizam recursos de saúde mais integrativos, aspectos fundamentais das intervenções musicais têm sido negligenciados. Indiscutivelmente, as intervenções musicais na área da saúde têm evidenciado os efeitos terapêuticos da música, independentemente dos profissionais que as implementam. Todavia, o grande desafio de refletir por que isso ocorre e como a música atua e produz esses efeitos nos seres humanos2, tem sido pouco questionado, investigado e discutido. Esta tarefa torna-se, particularmente, mais difícil frente à forma como a descrição metodológica das intervenções musicais é apresentada. Em virtude da complexidade de estímulos musicais e outros COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 2. Descrição metodológica das intervenções musicais referentes aos ECR, segundo checklist proposto por Robb et al.7. Brasil, 2013. Checklist A. Referencial teórico: racional da música selecionada; especificar como as qualidades musicais podem desencadear os desfechos desejados.

E1

E3

Preferência musical do paciente. As intervenções musicoterapêuticas deveriam ser baseadas em três elementos de apoio contextual: estrutura, suporte à autonomia e participação ativa. Música de preferência do paciente ao vivo pode expressar sua individualidade e funcionar como um método de análise de eventos particulares.

Música tranquilizante, 60-80 batidas por minuto (bpm), sem letras, com qualidade melódica sustentada, e com volume e afinação controlada.

E5 Método Bonny de imagens guiadas e música – GIM.

E6 Abordagem cognitivocomportamental em que as intervenções musicoterapêuticas são projetadas para o tratamento dos problemas identificados e permitir a expressão de emoções, respeitando o processo inerente ao diálogo musical ao vivo.

B. Conteúdo da intervenção: detalhes da intervenção musical e descrição dos procedimentos de intervenções construídas com os indivíduos. B.1 Pessoa que seleciona a música: especificar quem seleciona a música – pré-selecionada pelo investigador; o participante seleciona de um repertório predeterminado; o participante seleciona de sua própria coleção; baseado na avaliação do participante.

Paciente seleciona de um repertório predeterminado.

Paciente seleciona de um repertório predeterminado.

Pré-selecionada pelo pesquisador.

Pesquisador, baseado na avaliação do paciente.

B.2 Música: quando gravação, indicar referência (álbum), partitura e análise musical; quando música improvisada ou original, descrever a estrutura global da música (forma, elementos, instrumentos etc.).

Amazing Grace (demais não descritas).

Canções folclóricas de Taiwan, hinos budistas, música instrumental – harpa e piano.

Coleção de música para imaginação e outras seleções clássicas (não descritas) para complementar a coleção, quando consideradas clinicamente apropriadas.

Não descrito.

B.3 Método (reprodução musical ao vivo): equipamento utilizado, fones de ouvido, quem determina o volume, limite de decibéis; tamanho e performance do grupo.

Música ao vivo.

Reprodução musical.

Imagens guiadas e música (GIM) reprodução musical.

Diversas técnicas musicoterapêuticas (música de escolha, música que evoca reminiscência, cantar, ouvir música ao vivo, análise da letra, tocar instrumento, paródia, cantar com acompanhamento usando o isoprincípio, planejamento de funerais de serviços memoriais, música presente, e música assistida para aconselhamento de apoio). continua

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artigos

Quadro 2. continuação Checklist

E1

B.4 Materiais da intervenção: especificar materiais musicais e não musicais.

Guitarra Fender FA 100 Acoustic e repertório musical.

Fitas de áudio e fones de ouvido.

Sistema de som com CD (Sony CDF 363); cadeira; sofá; gravador com microfone de lapela (Sony Wm D6C).

Não descrito.

B.5 Estratégias de intervenção: escrever as estratégias sob investigação (audição musical, composição, improvisação, análise da letra, estimulação rítmica da audição).

Audição musical. Cada sessão incluiu de 3 a 8 canções de preferência dos pacientes ou sugeridas pelo pesquisador.

Audição musical. Os participantes de ambos os grupos foram convidados, primeiro, a ouvir uma fita introdutória breve e escolher o tipo de música que eles achavam que iria relaxá-los ou distraí-los mais.

Audição musical. Discussão de questões que envolvem a doença e o humor atual e estabelecimento de metas de sessão (15 min.); Relaxamento e imagens: transição para a música (15 min.); Ouvir música (30 a 40 min.); Cliente comenta a experiência imagética e relaciona as imagens ao processo pessoal. Completa o POMS e a QV-CA (30 a 40 min.).

Visitas musicoterapêuticas. Audição musical.

C. Esquema da intervenção: número de sessões, duração, frequência.

Três sessões em dias consecutivos, com duração de 15 a 30 min.

Sessão única com duração de 30 min.

Dez sessões, semanal, com duração de 90 a 120 min.

Pelo menos 2 sessões (sem descrição de duração).

E3

E5

E6

D. Executor da intervenção: especificar as qualificações e credenciais do profissional que executa a intervenção; especificar quantos profissionais participam do estudo.

Musicoterapeuta.

Enfermeiro.

Musicoterapeuta credenciado com experiência no Método Bonny.

Três musicoterapeutas credenciados e 2 estagiários de musicoterapia sob supervisão clínica do pesquisador, ambos treinados pelo pesquisador.

E. Fidelidade do tratamento: descrever as estratégias utilizadas para garantir que o tratamento e/ ou condições de controle sejam conduzidos como pretendidos (treinamento, protocolos, monitoramento).

Monitoramento.

Monitoramento.

Protocolo.

Treinamento.

F. Cenário: descrever onde as intervenções foram realizadas, incluindo local, nível de privacidade e ambiente sonoro.

Unidade de oncologiahematologia de um hospital.

Unidade de oncologia, cuidados paliativos e unidades clínicas.

Consultório terapêutico.

Ambiente domiciliar.

continua

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Quadro 2. continuação Checklist

E1

G. População-alvo: especificar se as intervenções foram realizadas com indivíduos ou grupos (incluindo o tamanho do grupo).

Pacientes com câncer.

E3 Pacientes com câncer.

E5 Pacientes com câncer.

E6 Pacientes com câncer.

fatores intervenientes – como a escolha da música, o modo de entrega, ou a combinação de música com outras estratégias de intervenção –, a descrição metodológica de muitas intervenções musicais é insuficiente para permitir generalizações, comparações, replicações e exequibilidade7. Assim como as revisões sistemáticas avaliadas (E2 e E4), o presente estudo também evidenciou limitações nas descrições das intervenções musicais dos ensaios clínicos analisados. Esta reflexão nos reporta aos quatro princípios básicos que regem a utilização da música no cuidado de enfermagem, decorrentes de suas características universais. O princípio ontológico refere-se às experiências sonoro-musicais e à essência do ser humano enquanto ser musical. O princípio físico traduz o modo como o ser humano percebe e é afetado pela música, ou seja, como os estímulos sonoro-musicais, conduzidos através do nervo auditivo até o córtex, produzem respostas sensoriais fisiológicas, mentais e emocionais1. O princípio musical evidencia os elementos musicais inerentes à intervenção. Alguns estão atrelados à dimensão física, como o ritmo, outros às emoções, como a melodia. A dimensão social está contemplada no contexto histórico-cultural no qual a música se origina, o que possibilita a sensação de pertencimento a um grupo, um lugar, uma história ou uma época. Na dimensão espiritual – pouco compreendida e investigada – os elementos musicais convergem para articular todas as dimensões humanas, possibilitando um profundo contato com a própria essência, o universo, Deus, ou qualquer outra concepção de espiritualidade1. O princípio relacional traduz a relação interpessoal mediada pela música – um fenômeno criado por um ser humano. Enquanto recurso de cuidado, a música emerge da intencionalidade de cuidar, facilitando o encontro entre o ser cuidador e o ser cuidado, subsidiando a expressão de afetividade, compaixão e solidariedade, por meio de gestos, olhares, sorrisos, toques suaves inerentes à execução musical1. Todavia, o instrumento que avaliou a qualidade dos relatórios de intervenções musicais7 mostrou quão deficitária é a descrição dos recursos utilizados, sobretudo das estruturas musicais envolvidas – princípio musical – tonalidade, modo (maior ou menor), ritmo (binário, ternário, quaternário), andamento (bpm), gênero (erudito, popular, religioso) e timbres (agrupamento instrumental e/ ou vocal). A utilização de diversas técnicas musicoterápicas, em contextos distintos, também pode dificultar o controle das variáveis subjacentes e, consequentemente, interfere na avaliação dos efeitos terapêuticos da música. As revisões sistemáticas também focalizaram a avaliação dos delineamentos metodológicos, em detrimento da avaliação da qualidade dos relatórios, no que tange aos recursos sonoros e estruturas musicais utilizados. Pensando em prática baseada em evidências, questiona-se: em relação às propriedades da música, o que foi evidenciado? Destarte, evidenciam-se suas limitações e questiona-se a validade/confiabilidade das evidências e inferências publicadas, bem como sua replicação e incorporação na prática clínica. Em contrapartida, são muitos os relatos que sublinham os efeitos terapêuticos da música, como:

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artigos

A música conseguiu realizar três contribuições gigantescas no meu resgate: a primeira foi como um poderoso anestésico. Um suavizador das dores e sofrimentos. Desde as músicas para ninar da minha mãe, as brincadeiras do cantar de improviso, ‘ao desafio’ do meu pai, as paradas de sucesso dos radinhos de pilha, companheiro permanente nos hospitais. A música representava o começo de um fio da meada para a esperança.19 (p. 7)

Trata-se de experiências de pessoas que vivenciaram longos tratamentos, longas hospitalizações, que reconhecem, na música, um “anestésico” natural que ancorou esperanças em momentos difíceis – princípio físico. Todo estudo de caso ou experiência é único e tem seu valor inquestionável. Esses relatos descrevem estratégias individuais onde os elementos propostos para a análise das intervenções musicais podem até estar descritos, mas não costumam ser o foco da descrição e têm seu “n” limitadíssimo. Nesse sentido, músicos ligados ao ensino e à utilização da música na área da saúde reconhecem a dificuldade de se indicar especificamente alguma música, pois instrumento e músico interferem no resultado. A Cantoterapia, intervenção de abordagem antroposófica, embora seja estruturada a partir da história musical do paciente, esteja atenta às estruturas musicais (melodias que alternem modos maior e menor; músicas construídas sobre escalas pentatônicas ou modos litúrgicos, como o canto gregoriano; cânones) e, quando se trata de crianças, adapta-se às suas etapas de desenvolvimento afetivo/cognitivo, também resgata a relação profissional/paciente – princípio relacional – como o mais importante aspecto a ser considerado20. A unicidade de cada relação constitui um “ingrediente” a mais na análise dos resultados finais. Vale destacar o estudo sobre intervenções musicoterápicas realizado com o intuito de contribuir com o acolhimento na sala de espera de uma Unidade Básica de Saúde, onde os usuários podiam interagir sugerindo músicas, cantando, compondo ou tocando um instrumento musical, bem como por meio de movimentos corporais e expressividade emocional. Os resultados evidenciam: a valorização e integração dos profissionais e usuários, a expressão de sentimentos, a harmonização da paisagem sonora, a autonomia, o protagonismo e a autoconfiança dos usuários, bem como a descoberta de novas potencialidades e superação de limites, trazendo à atenção básica os benefícios consagrados na humanização hospitalar21. Embora seja perceptível a distinção e a articulação dos quatro princípios básicos supracitados, reverencia-se a importância da escuta qualificada e do sentimento de pertencimento inerente à intervenção, ou seja, o encontro com o outro – princípio relacional. Não obstante, os sentimentos e emoções expressos por meio da música – princípio ontológico – constituem um enigma que, por si só, é susceptível a riscos e ambiguidades, e no saber lidar com a equivocidade das estruturas que a compõem pode se ocultar o segredo do sucesso ou insucesso do projeto musical. Essa vulnerabilidade pode se apresentar em vários planos. Para o musicólogo Carl Dahlhaus, a expressão de sentimentos está, genuinamente, mais relacionada à interpretação musical do que à composição22. Ao discorrerem sobre a linguagem sonora, os autores enfatizam a responsabilidade que os profissionais da saúde devem ter ao proporem a utilização de um recurso sonoro ou “composto sonoro” com finalidades terapêuticas, pois a utilização inadequada da música pode acarretar efeitos indesejáveis23. A natureza polissêmica da música é a responsável pela dificuldade que encontramos em explicá-la e adotá-la de forma desejável para diferentes situações clínicas ou quando pensamos nas dimensões humanas para as quais queremos endereçá-la. Embora a vivência musical seja individual – o que, muitas vezes, fala a favor da adoção de um repertório musical individualizado –, os estudos em neurociência apontam que o processamento cerebral da música é mais fisiológico do que ditado por preferências individuais. Os elementos que constituem a música – quais sejam: a altura (diferente entoação das notas, do grave ao agudo), a duração (espaço de tempo em que soa o som), a intensidade (mesmo que volume) e o timbre (característica que qualifica e difere os sons) – são processados pelo cérebro humano. Com isso, queremos dizer que a preferência musical pode ditar um determinado comportamento (individual ou, até mesmo, coletivo, e é aprendido), mas não necessariamente guarda uma relação intrínseca com os efeitos psicofisológicos que são observados e relatados na literatura. Antes de pensarmos que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a música, na atualidade, busca ser um recurso terapêutico, na sua origem, encontram-se questões evolutivas (e que, portanto, nada tinham a ver com preferências). A base perceptual da música deriva de mecanismos auditivos, seus componentes sintáticos podem ter sido cooptados da linguagem, e seus efeitos nas nossas emoções poderiam ser acionados por semelhança acústica com outros sons de maior relevância biológica, tais como vocalizações ou sons emitidos pelos animais. Dessa forma, ela seria um antecedente evolucionário da linguagem, voltado à coesão social (como nas atividades grupais ligadas à guerra ou à religião) ou, mesmo, por seu efeito pacificador em bebês24. Por outro lado, as estruturas harmônicas e escalas de tonalidades dependem de aprendizado, o que faz com que existam as diferenças culturais no universo musical de cada povo. Todavia, quando relacionadas às emoções, como principal via de resposta humana à música, elas também não são suficientes para barrar seus efeitos. Cada vez mais, os estudos indicam que a resposta humana está intrinsecamente ligada ao material sonoro oferecido. Estudo conduzido com população nativa africana, que não conhecia o sistema de música ocidental, apresentou resultados semelhantes no reconhecimento de emoções básicas (alegria, tristeza, por exemplo) quando comparados às habilidades de ouvintes ocidentais familiarizados com este sistema tonal nesta mesma tarefa25. O que, mais uma vez, reforça a necessidade do domínio sobre a música e seus constituintes pelos profissionais que almejam fazer dela um recurso terapêutico, bem como de uma descrição detalhada das intervenções musicais utilizadas nos estudos científicos. A experiência musical, portanto, se alicerça em um tripé: o ouvinte, o material sonoro e o contexto; daí a relevância do terapeuta que conduz a intervenção de forma a criar o contexto necessário à utilização do material sonoro que mais se aplica aos objetivos terapêuticos que são determinados junto aos pacientes2.

Conclusão Em virtude da complexidade e multidimensionalidade inerente à assistência aos pacientes com câncer, inúmeros estudos sobre intervenções musicais são desenvolvidos, mas, muitas vezes, voltados aos efeitos adversos decorrentes dos tratamentos antineoplásicos e procedimentos diagnósticos, e não relacionados às dimensões humanas de um ser que experiencia uma doença (no caso oncológica), o que justifica a reduzida amostra do presente estudo. Ressalta-se a inexistência de ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas neste contexto, realizados no Brasil. De acordo com os instrumentos de avaliação utilizados, quatro estudos apresentaram alta qualidade metodológica e, embora a maioria dos itens do check list para relatórios de intervenções musicais tenham sido referenciados, os recursos e estruturas musicais – que valorizam o seu potencial terapêutico – não foram descritos, tampouco analisados e discutidos, demonstrando a complexidade da estratégia “música” como recurso terapêutico. Observa-se a tendência em não descrever os recursos e estruturas musicais utilizados nas intervenções musicais, mesmo posterior à publicação das diretrizes adotadas para análise neste estudo. Sem domínio de farmacocinética e farmacodinâmica, um profissional de saúde não prescreveria ou administraria um medicamento, todavia este mesmo cuidado não tem sido adotado em relação à intervenção musical. Nessa perspectiva, para sistematizarmos a utilização da música como recurso de cuidado, por meio da prática baseada em evidências, e evitarmos sua banalização, torna-se imprescindível que a elaboração de projetos e relatórios de futuras pesquisas com intervenções musicais seja conduzida por estas diretrizes.

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Colaboradores Vladimir Araujo da Silva responsabilizou-se por: concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados, e redação do manuscrito. Eliseth Ribeiro Leão responsabilizou-se por: concepção, delineamento, análise dos dados, revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada. Maria Júlia Paes da Silva responsabilizou-se por: concepção, interpretação dos dados, redação, revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada. Referências 1. Leão ER, Puggina AC, Gatti MFZ, Almeida AP, Silva MJP. Música e Enfermagem: um recurso integrativo. In: Salles LF, Silva MJP, organizadores. Enfermagem e as práticas complementares em saúde. São Caetano do Sul: Yendis; 2011. p. 155-74. 2. Leão ER, organizador. Cuidar de pessoas e música: uma visão multiprofissional. São Paulo: Yendis; 2009. p. 347-68. 3. Juslin PN, Västfjall D. Emotional responses to music: the need to consider underlying mechanisms. Behav Brain Sci. 2008; 31(5):559-621. 4. Seki NH, Galheigo SM. O uso da música nos cuidados paliativos: humanizando o cuidado e facilitando o adeus. Interface (Botucatu). [Internet] 2010 [acesso 2014 Mai 8]; 14(33):273-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v14n33/a04v14n33.pdf 5. Silva VA, Sales CA. Musical meetings as a resource in oncologic palliative care for users of a support homes. Rev Esc Enferm USP. [Internet] 2013 [acesso 2014 Abr 17]; 47(3):626-33. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v47n3/en_0080-6234reeusp-47-3-00626.pdf 6. Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto Contexto Enferm. [Internet] 2008 [acesso 2014 Abr 17]; 17(4):758-64. Disponível em: http://www.scielo. br/pdf/tce/v17n4/18.pdf 7. Robb SL, Burns DS, Carpenter JS. Reporting guidelines for music-based interventions. Health Psychol. 2001; 16(2):342-52. 8. Jadad AR, Moore RA, Carrol D, Jenkinson C, Reynolds DJM, Gavaghan DJ, et al. Assessing the quality of reports of randomized clinical trials: is blinding necessary? Control Clin Trials. 1996; 17(1):1-12. 9. Carvalho FD, Artuzo FSC, Chrysostomo TN, Andrade RC. Influência do seguimento farmacoterapêutico sobre o tratamento medicamentoso de diabetes mellitus tipo 2 no Brasil: revisão sistemática. Rev Bras Farm Hosp Serv Saude. 2011; 2(2):5-10. 10. Shea BJ, Grimshaw JM, Wells GA, Boers M, Andersson N, Hamel C, et al. Development of AMSTAR: a measurement tool to assess the methodological quality of systematic reviews. BMC Med Res Methodol. 2007; 7:10. 11. Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health – CADTH [Internet]. Canadian Agency for Drugs and Technologies and Health, 2011. [updated 2014; cited 2014 Mai 8]. Available from: http://www.cadth.ca/en 12. Cook EL, Silverman MJ. Effects of music therapy on spirituality with patients on a medical oncology/hematology unit: a mixed-methods approach. Arts Psychother. 2013; 40(2):239-44. 13. Zhang JM, Wang P, Yao J, Zhao L, Davis MP, Walsh D, et al. Music interventions for psychological and physical outcomes in cancer: a systematic review and meta-analysis. Support Care Cancer. 2012; 20(12):3043-53. 14. Huang ST, Good M, Zauszniewski JA. The effectiveness of music in relieving pain in cancer patients: a randomized controlled trial. Int J Nurs Stud. 2010; 47(11):1354-62.

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Silva VA, Leão ER, Silva MJP. . Evaluación de la calidad de evidencias científicas sobre intervenciones musicales en la asistencia a pacientes con cáncer. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):479-92. Revisión de integración cuyo objetivo fue evaluar la cantidad de evidencias científicas sobre intervenciones musicales en la asistencia a pacientes con cáncer y que fue realizada en julio de 2013, con descriptores indexados en las bases de datos: Bireme, The Cochrane Library, Medline, Embase, Web of Science, CINAHL y Scopus. Se seleccionaron cuatro ensayos clínicos randomizados (dos de alta y dos de baja calidad metodológica). Las mayores limitaciones de los ensayos clínicos están en la descripción de los recursos y estructuras musicales utilizadas y de las revisiones sistemáticas, en el enfoque de las delineaciones metodológicas, en perjuicio de la calidad de los informes de las intervenciones musicales. En la mayoría de los estudios se presentó alta calidad metodológica, pero no se describió, tampoco se discutieron los recursos y estructuras musicales utilizados, trivializando el potencial terapéutico de la música y limitando su replicación e incorporación de las evidencias en la práctica clínica.

Palabras clave: Oncología. Enfermería oncológica. Neoplasias. Música. Musicoterapia. Recebido em 30/10/13. Aprovado em 23/02/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0040

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O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde Marcia Ernani de Aguiar(a) André Mota(b)

Aguiar ME, Mota A. The Family Health Program in the Bom Retiro district, São Paulo, Brazil: communication between Bolivians and healthcare workers. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):493-506. This paper presents the analyzis of the interaction between the Family Health Program (PSF) and Bolivian immigrants in the Bom Retiro district of São Paulo, Brazil, through specific experience. To this goal, semi-structured interviews were conducted with Bolivians and healthcare workers at the Bom Retiro PSF, with the particular aim of ascertaining the dimensions of the worlds of work and housing and the great immigratory spatial mobility, thereby requiring flexibility within the cartographic logic of the PSF, with broadening of the concept of family and communicative strategies – hiring of a Bolivian healthcare agent, production of educational material in Spanish and use of Bolivian radio stations –, which would have the capacity to be translated into improved healthcare services.

Keywords: Healthcare communication. Ethnicity and health. Bolivian immigrants. Family Health Program. Bom Retiro district.

Este artigo tem como objetivo analisar a interação entre o Programa de Saúde da Família (PSF) e os imigrantes bolivianos localizados no bairro do Bom Retiro na cidade de São Paulo, Brasil, redundando em uma experiência particular. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com bolivianos e trabalhadores da saúde da Unidade de Saúde da Família do Bom Retiro, com a intenção de flagrar, particularmente, dimensões do mundo do trabalho, de moradia e da grande mobilidade espacial imigratória, exigindo a flexibilização da lógica cartográfica do PSF, com a ampliação do conceito de família e estratégias comunicativas – contratação de agente de saúde boliviano, produção de material educativo em língua espanhola e utilização das “rádios bolivianas” –, capazes de traduzir-se na melhoria do serviço em saúde.

Palavras-chave: Comunicação em saúde. Origem étnica e saúde. Imigrantes bolivianos. Programa Saúde da Família. Bairro do Bom Retiro.

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(a) Mestranda, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (FMUSP). Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, sala 2170, Cerqueira Cesar. São Paulo, SP, Brasil. 01246-903. marciaernani@uol. com.br (b) Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz, FMUSP. São Paulo, SP, Brasil. amota@museu. fm.usp.br

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Introdução O Programa de Saúde da Família (PSF), proposto em 1994 pelo Ministério da Saúde, atualmente definido como Estratégia Saúde da Família, foi instituído pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) como uma estratégia de reorganização da Atenção Primária à Saúde (APS), em substituição ao modelo tradicional de atenção1, tendo atingido, em janeiro de 2013, uma cobertura nacional de 105 milhões de habitantes (54%)2. Merhy3 e Paim4 sinalizam para a dificuldade de um único modelo responder às situações de saúde tão diversificadas e complexas existentes no Brasil. Com a expansão do PSF em grandes centros urbanos, em 2001 ocorreu a municipalização da saúde na cidade de São Paulo, com a implantação desse modelo no bairro do Bom Retiro, região central da capital paulista. Esse bairro constitui uma paisagem única, um microcosmo social, marcado, desde sua origem, no final do século XIX, pela presença de diversas etnias: recebeu, ao longo de sua história, grandes contingentes de imigrantes, com características culturais bastante particulares5. Atualmente, da população que o frequenta e habita, os coreanos e os bolivianos passaram a constituir os dois grupos de imigrantes de presença marcante no bairro, ambos inseridos na base material da indústria de confecção, uma vez que a produção têxtil é um dos eixos econômicos estruturantes do Bom Retiro5-9. A inserção dessa Unidade de Saúde da Família (USF), além de provocar a reflexão sobre as potencialidades e as dificuldades do PSF em grandes centros urbanos10,11, também suscita questões relativas à presença desses imigrantes, exigindo análises diversas em torno da temática da interação entre os profissionais de saúde e esses usuários.

Metodologia Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada na capital paulista, na USF do Bom Retiro – com quatro Equipes de Saúde da Família (EqSF) – , que é gerenciada pela Secretaria Municipal de Saúde em parceria com a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Em pesquisa qualitativa, para a definição da amostra, utiliza-se a amostragem por saturação dos temas. O número de participantes foi considerado suficiente quando os dados da pesquisa refletiram a totalidade das múltiplas dimensões do objeto deste estudo e se tornaram repetitivos12. Quanto à composição da amostra entre os usuários, utilizamos a seleção do tipo “bola de neve”, na qual um participante indica outro e assim por diante; porém, entre os profissionais de saúde, o critério foi de “tempo de serviço”. Para a coleta dos dados, empregamos a entrevista semiestruturada, tendo-se realizado nove entrevistas: três com usuários bolivianos e seis com profissionais de saúde da Unidade (a gerente, um médico, uma enfermeira, um técnico de enfermagem e dois agentes comunitários de saúde, um deles boliviano). As entrevistas foram gravadas e transcritas, e os participantes identificados com legendas: PS - Profissional de Saúde; UB - Usuário Boliviano, mantendo-se seu anonimato. As entrevistas tiveram duração média de 34 minutos, seguindo um roteiro com questões abertas. Para os profissionais de saúde, elas abordaram o bairro do Bom Retiro e sua composição étnica, dando espaço para: análise dos imigrantes bolivianos; a aceitação do cadastro pelo ACS; a adesão e o vínculo com a Unidade; as necessidades e as demandas desses usuários; as facilidades e as dificuldades na interação com eles, e as estratégias usadas para superar as dificuldades; e as atividades desenvolvidas com esses grupos de usuários. O roteiro de questões para os usuários bolivianos envolvia: sua inserção no bairro, sobretudo nas oficinas de costura, e sua fixação no bairro; suas necessidades e demandas de saúde; e a utilização da USF do Bom Retiro, sobretudo o acesso, o vínculo, a adesão e a comunicação com a equipe.

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Resultados e discussão O bairro do Bom Retiro - um palimpsesto O bairro do Bom Retiro compõe uma paisagem única, constituída, ao longo do tempo, pela permanência e pela circulação de grupos de diversas procedências; por acréscimos, substituições e inclusões, configurando uma paisagem escrita sobre a outra, uma confluência de camadas socioculturais definidas como um palimpsesto, nas palavras de Milton Santos13. Essa conformação teve início com os imigrantes italianos, os primeiros a chegar ao bairro, no final do século XIX – em consequência da imigração subsidiada pelo governo da Província –, destinados a compor a mão de obra nas fazendas de café no oeste paulista. O processo de constituição do bairro prosseguiu, quando, a partir da I Guerra Mundial, inúmeros estrangeiros originários da Europa Oriental, em sua maioria de origem judaica, chegaram ao Bom Retiro. Ali geraram as primeiras confecções e lojas, e o bairro passou a assumir uma função mais comercial. A partir de 1970, chegaram os coreanos, que fugiam de uma situação de guerra em seu país, e se inseriram nesse setor. A partir de 1980, o Bom Retiro começou a receber grandes levas de latino-americanos, sobretudo bolivianos, que, motivados pela crise econômica em seu país14, também se inseriram na cadeia de produção de roupas. Cabe ressaltar que todos esses imigrantes chegaram a São Paulo em busca de trabalho e, no caso do Bom Retiro, se concentraram no setor de confecção, que se configurou como um nicho de atividade econômica para os imigrantes nesse bairro. No centro da cidade, o Bom Retiro é percebido pelos bolivianos como um lugar com qualidades bem atraentes: a proximidade de espaços de sociabilidade e, sobretudo, dos contatos de trabalho; a possibilidade de construção de relações de vizinhança; e a acessibilidade ao transporte público. O bairro constitui um cenário de transição, em que a inserção é mais viável, no momento em que se chega à cidade, com poucos recursos e menos autonomia, o que facilita a colocação em alguma oficina de costura7. Entrevistador: “Como se dá o fluxo dos bolivianos para o Bom Retiro?” UB1 [dono da oficina de costura]: “A maioria deles não tem muita oportunidade lá na Bolívia, e se alguém aqui já se deu melhor comenta, e então todo mundo quer vir. Estão todos buscando uma vida melhor. A maioria deles vem assim, sem a intenção de ficar no Brasil, só trabalhar por um tempo e voltar para lá”.

Importa ressaltar que houve uma circularidade de vivências entre esses grupos que passaram e passam, historicamente, a conviver no bairro do Bom Retiro. Essas vivências permitem entender como se entrelaçaram o que é particular e o geral, conformando um tecido social de complexidade bastante interessante para essa área da cidade de São Paulo. Culturas que foram absorvidas pelo cotidiano das práticas sociais, no processo em que essas marcas culturais foram identificadas, mas nunca “enquistadas”, de tal modo que bolivianos se relacionaram com o “Bonra” (modo como os italianos se referiam ao Bom Retiro) dos italianos; com a cultura judaica, identificada nas igrejas e nas sinagogas, nos mercados e nos restaurantes; e, também, com os coreanos, com suas lojas, restaurantes, escolas, instituições culturais, esportivas e religiosas, identificadas por placas em português e em hangul, o alfabeto coreano.

Do altiplano boliviano ao Bom Retiro A partir de 1980, houve uma intensa imigração de bolivianos para a cidade de São Paulo, em busca de melhores oportunidades de trabalho, em decorrência das péssimas condições econômicas de seu país. Esses imigrantes eram predominantemente de origem rural, em sua maioria, jovens de ambos os sexos, solteiros e de escolaridade média14. Do ponto de vista espacial, já na década de 1990, concentraram-se em bairros como Bom Retiro, Brás e Pari, onde atuavam na indústria de confecção14. Atualmente, estão dispersos pelas áreas centrais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e periféricas da cidade, porém ainda com uma forte concentração naqueles bairros, onde estão 19,5% dos bolivianos residentes na cidade, reiterando a vocação dos bairros centrais como porta de entrada para imigrantes na capital paulista15, observada no Mapa 1.

Mapa 1. Distribuição da população nascida na Bolívia, residente na Região Metropolitana de São Paulo, em 2000. Fonte: Souchaud, 2008.

A presença de parentes e conterrâneos instalados no Bom Retiro tornou-se, ao longo do tempo, uma motivação para os bolivianos migrarem. Além disso, eles mantêm fortes laços com seu país de origem, o que resulta em uma tendência a um movimento circular, com idas e vindas entre São Paulo e a Bolívia, com um franco desejo de um dia voltar para lá14. “Eu cheguei aqui, para o centro mesmo, lá no Parque Dom Pedro [...]. Na primeira vez foi através de um colega que tinha trabalhado aqui no Brasil por quase dois anos, e ele chegou na Bolívia e comentou daqui, e eu queria ir lá, porque tem serviço, e eu trabalhava na área de costura em Bolívia. [...] Daí, no meio do ano, mudei para o bairro do Paraíso, tinha um coreano trabalhando lá. Trabalhei com o coreano até o fim do ano. Depois eu voltei e trabalhei na Bela Vista por quatro anos. Depois eu comecei a trabalhar só como empregado, costureiro, e depois de quatro anos, quase cinco anos, em 2000 comecei a montar uma oficina com meu irmão mais novo e comecei a trabalhar por conta própria[...]. Eu cheguei e aluguei um apartamento no Bom Retiro, na rua José Paulino, e ai comecei, montei e trabalhei por conta própria”. (UB1)

Em relação às estimativas quanto ao tamanho da comunidade boliviana em São Paulo, há uma enorme variação, que oscila de dez a trinta mil não regularizados, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, até duzentos mil (regulares e irregulares), de acordo com o Ministério Público. O dado 496

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mais recente fornecido pelo Censo de 200016 indica a presença de 8.909 bolivianos recenseados na região metropolitana de São Paulo17. O consenso entre essas estimativas é o fato de São Paulo abrigar o maior número de imigrantes no Brasil, mas a imprecisão dos dados sobre essa comunidade coloca desafios metodológicos para a construção de conhecimento científico sobre ela.

Oficina de Costura (conjugação entre moradia e trabalho) e o Programa de Saúde da Família Já no início do século XX, o bairro do Bom Retiro foi marcado pela presença de pequenas indústrias com características artesanais, muitas delas instaladas no mesmo espaço da moradia ou em espaço adjunto a ela, onde trabalhavam membros da própria família ou alguns poucos funcionários, moradores do próprio bairro. Essa era a característica industrial predominante na cidade na primeira metade do século XX, e marcou a paisagem no seu território, onde a associação entre moradia e trabalho, no mesmo lote ou edificação, era uma permanência e parecia ser uma regra, e não uma exceção, no bairro6. A expressão máxima dessa conjugação, nos dias de hoje, é representada pelas inúmeras oficinas de costura existentes ali, onde imigrantes bolivianos trabalham e moram. A formação das oficinas de costura com as características atuais teve sua origem em 1970, com a chegada dos coreanos ao Bom Retiro. Naquele momento, diante da necessidade de competir com os produtores nordestinos de São Paulo nas linhas de roupas de baixo preço e baixa qualidade, acumulando a produção e a venda no atacado, os coreanos se organizaram para trabalhar em casa, com a participação de familiares e conterrâneos, em longas jornadas de trabalho, a fim de reduzirem os custos de produção18. A chegada dos bolivianos ao Bom Retiro se deu a partir de 1980, num momento de franca ascensão econômica dos coreanos, que se afastavam do segmento de produção e passavam a assumir outro papel na indústria do vestuário, criando suas próprias marcas, que seriam vendidas em suas lojas de atacado19. Outro aspecto relevante foi o fato de que, naquele momento, a mão de obra nacional – essencialmente feminina e natural de outros estados –, que predominava no setor de costura, migrava para o setor de serviços, o que abriu espaço para a mão de obra boliviana no segmento de produção20. Essas mudanças em curso no Bom Retiro tiveram como pano de fundo a reestruturação da indústria de confecção paulista, com o objetivo de reduzir custos: convinha, então, consolidar a aparição e a difusão de oficinas de costura de pequeno e médio porte, subcontratadas9. Desse modo, os bolivianos foram, em um primeiro momento, contratados pelos coreanos para trabalhar nas oficinas e, posteriormente, passaram a ser donos das oficinas, tendo os coreanos como principais compradores de suas produções. Um aspecto peculiar é o fato de que – como já apontamos aqui – essas oficinas passaram a conjugar o espaço de trabalho e moradia para os imigrantes bolivianos, que acabavam de chegar ao bairro com pouco dinheiro, numa situação de clandestinidade; e trabalhar e morar no mesmo local era uma maneira de solucionar a questão da moradia, além de ser rentável aos empregadores, que podiam manter próxima sua força de trabalho14. “Eles [os bolivianos] moram no mesmo local que trabalham”. (PS5) “[...] se a gente for pensar nas oficinas, que hoje são lugares muito difíceis de ir, porque as pessoas moram, trabalham e lá convivem, com seus filhos e tal [...]”. (PS1)

As oficinas de costura no Bom Retiro constituíram lugares de inserção e ascensão social, sendo a informalidade e a flexibilização dessas organizações facilitadoras da integração no mercado de trabalho e da realização de um projeto migratório de quem, frequentemente “indocumentado”, sem conhecimento do mercado de trabalho e com domínio fraco da língua e dos usos da sociedade do país de destino, teria poucas chances de ficar em São Paulo20.

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“[...] Os coreanos são os donos do poder aqui das lojas do Bom Retiro. A outra parte é dos bolivianos, que também vieram para essa região porque se encontra grande mercado, por causa das lojas, das costuras. Eles trabalham para os coreanos. [...] Quem está se tornando grandes donos de oficinas e trazendo vários bolivianos para trabalhar na região são os próprios bolivianos. Bolivianos que antes tinham uma função de só costurar, hoje eles estão como dono de oficina que empregam outras pessoas para estar trabalhando para eles, produzindo mercadorias para as lojas. [...]”. (PS3)

Essas oficinas de costura, assim configuradas, conferiram uma singularidade a esse bairro, o que exigiu que a USF o compreendesse a partir de uma perspectiva multiterritorial, fugindo de um entendimento parcial, sob uma vertente jurídico-política, na qual a definição de recortes territoriais a partir apenas da quantidade de população, sem nenhuma proposta de tipificação desses territórios, limita a eficácia das ações21. Considerando a necessidade da USF de adequar suas normatizações, ao interagir com o Bom Retiro, uma questão que se coloca é como esse modelo, que tem na família seu objeto de ação, veio a compreender as oficinas de costura, espaço que conjuga trabalho e moradia para os imigrantes bolivianos. E, ao analisarmos os principais documentos oficiais do Programa Saúde da Família22-24, percebemos uma imprecisão sobre o conceito de família: limitam-se a defini-la a partir do espaço em que as pessoas vivem, o espaço-domicílio, ponto de partida para a lógica de adscrição domiciliar utilizada nessa proposta de organização. A escolha da família como fator determinante principal da saúde da população, núcleo central de intervenção para alterar o perfil de morbimortalidade e centro absoluto de abordagem dos problemas sociais, significa uma redução e um retrocesso na concepção da produção social do processo saúdedoença25. Sem dúvida, será positivo olhar para um “indivíduo em relação”, em oposição ao “indivíduo biológico”; e, onde houver famílias na forma tradicional, a compreensão da dinâmica desse núcleo será enriquecedora para o trabalho em saúde. No entanto, nem sempre esse núcleo está presente e nem sempre é o espaço de relação predominante, ou, mesmo, o lugar de síntese do modo de andar a vida das pessoas26. Isso posto, retornemos à realidade do Bom Retiro, onde os cadastros dos bolivianos são realizados nas oficinas de costura, tornando-se inevitável ampliar o conceitos de família. Nesse contexto, teremos um conjunto de imigrantes que têm em comum o fato de serem trabalhadores dessas oficinas, e aí também residirem. No entanto, as relações entre eles nem sempre são próximas e nem sempre se realizam27. Além disso, o fato de esses imigrantes serem trabalhadores que moram no local de trabalho, os coloca em situação de risco e dialoga com a necessidade de que a USF leve em conta os processos produtivos locais e identifique suas relações com a saúde dos trabalhadores e moradores28,29.

A “visibilidade” do boliviano por meio do PSF Segundo Cymbalista e Xavier30, haveria uma baixa visibilidade dessa comunidade em São Paulo, por tratar-se de um grupo praticamente ausente das estatísticas públicas. Estes autores apontam as oficinas de costura como espaço de “privacidade coletiva”, e sinalizam para a internalização da comunidade, com hipertrofia do local de trabalho, o que determinaria a invisibilidade do grupo e a pouca utilização, por parte dele, de equipamentos públicos, do comércio e dos serviços. Entretanto, as falas dos trabalhadores da saúde sugerem que a USF do Bom Retiro possa ter um outro significado para esse imigrante, que ali busca uma “identidade”. “Os bolivianos chegam aqui dizendo: “”“Vim fazer o cartão SUS”. É a primeira identificação que eles querem, “‘Cheguei e preciso do cartão SUS”. E eles têm uma rede muito própria e muito articulada. Acho que, quando eles se aproximam, eles já se aproximam para requerer uma identidade com essa Unidade de Saúde, no caso é o cartão SUS. Teve época aí da gente fazer mais de cem cartões SUS por semana [...]”. (PS1)

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Por outro lado, Xavier7 reiterou que a relação do imigrante boliviano com a USF assume um significado fundamental no processo de sua inserção na cidade, sobretudo no que se refere a sua identidade, pois o cartão SUS passa a funcionar como uma espécie de identificação – muitas vezes, a primeira que recebe no Brasil. Além disso, de acordo com Silva31 e Silva e Ramos32 , os bolivianos têm uma presença marcante na USF do Bom Retiro, reconhecida como um espaço de convivência, por ser um dos poucos espaços frequentados. “Quando eu ficava doente, antigamente, como eu era solteiro, e tinha oficina, frequentava a Beneficência Portuguesa, pagava a consulta. Agora consulta é muito caro, [...] comecei a usar o posto com meu filho e minha esposa que engravidou, e aí ela começou a fazer a consulta prénatal no posto de saúde. Daí que comecei usar posto de saúde do Bom Retiro”. (UB1)

A mobilidade dos imigrantes bolivianos no Bom Retiro e a cartografia do PSF O PSF tem seu princípio operacional baseado na adscrição de clientela, o que permite o estabelecimento de vínculo da Unidade de Saúde da Família com a população e possibilita, em tese, o resgate da relação de compromisso de corresponsabilidade entre profissionais de saúde e usuários dos serviços. Fica muito claro que, quando tratamos de um bairro como o Bom Retiro, é necessário flexibilizar normatizações, para que o vínculo entre os profissionais e os usuários, sobretudo os bolivianos estudados, seja preservado, uma vez que estes têm uma intensa movimentação no território, fruto de sua inserção como trabalhadores nas oficinas de costura. Caso não se tenha o cuidado de adequar as normas à realidade, correse o risco de impor barreiras de acesso ao serviço de ordem organizacional. Sendo assim, esse exacerbado caráter prescritivo do PSF pode comprometer a potencialidade de sua proposta26. Segundo Pereira e Barcellos21, a delimitação de áreas e microáreas de atuação, essencial para a implantação e a avaliação do programa, é, em geral, realizada com base apenas no quantitativo da população, sem considerar a dinâmica social e política, inerente aos territórios. Os imigrantes bolivianos circulam por vários espaços da cidade, com uma forte concentração na região central15. Essa mudança constante se deve à busca de novas colocações nas oficinas de costura. Esse aspecto é evidenciado na fala dos trabalhadores. “[...] eles [os bolivianos] hoje estão bastante espalhados, então fica aqui, dali a pouco eles vão para uma outra oficina.[...] Muda muito, de uma equipe para outra. A Agente de Saúde boliviana só cuida dos cadastros bolivianos, faz uma média de cinquenta, cem cadastros mês. Ela vai rodando, então o tempo todo eles vão mudando. Não sei se são melhores condições de trabalho, o que é enfim, porque eles moram todos juntos numas oficinas, e aí acho que é quando eles conseguem um espaço melhor, não sei”. (PS1)

O PSF se adaptando ao movimento “circulatório” dos bolivianos A territorialização e o vínculo de uma dada população às Equipes de Saúde da Família são ideias nucleares à proposta do PSF, que tem sua matriz teórica circunscrita prioritariamente ao campo da vigilância à saúde. Tendo em vista as características do Bom Retiro como um território “circulatório”, com bolivianos inseridos em oficinas de costura, com grande rotatividade e sempre em busca de melhores oportunidades, concordamos com Franco e Merhy26 quanto ao risco de o PSF desarticular sua potência transformadora, aprisionado em normas definidas, conforme o ideal da vigilância à saúde. “A Estratégia da Família, quando foi concebida, não foi concebida para esse ou aquele tipo, eu pelo menos não consigo ver diferença, e não acho que deva ter. É exatamente a mesma coisa, você vai cuidar de famílias. A única grande dificuldade é que existe uma mobilidade muito

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grande desse grupo de imigrantes [bolivianos]. Eles num mês estão num endereço e depois já estão mudando. Então isso, para a organização do serviço é muito complicado”. (PS2)

Um caso exemplar dessa compreensão flexível exigida por causa das mudanças frequentes de endereço dos bolivianos dentro do bairro é a adaptação feita na lógica do cadastramento nessa Unidade: habitualmente, quando um usuário se muda de uma microárea para outra, os Agentes Comunitários de Saúde procedem a uma transferência de cadastro entre eles. Quando isso ocorre entre ACS que pertencem a equipes diferentes, essa mudança inclui, também, a mudança do médico e do enfermeiro responsáveis pelo cuidado daquele usuário. Essa situação comprometia, exemplarmente, a continuidade do acompanhamento de pré-natal e o tratamento de imigrantes bolivianos portadores de tuberculose, doença muito comum devido às condições insalubres de moradia e trabalho33. Diante disso, a equipe acordou internamente que, quando houvesse uma mudança entre as áreas de abrangência das Equipes de Saúde da Família, seria mantido o cadastro inicial, garantindo o término desses acompanhamentos com a mesma equipe, com a qual já se havia estabelecido um vínculo. “[...] uma boa parte dos bolivianos tem problemas de saúde, é tuberculose. Então eu acho que deveria ter um cuidado diferenciado [...] as condições que eles vivem são condições bem precárias, não ter um espaço para dormir num momento que já está cansado, depois de trabalhar o dia todo[...]”. (PS5) “Muitas vezes, elas não fazem o pré-natal, inicia, mas não termina, é também pela mudança, elas mudam muito de oficina. De repente ela já mudou, inicia o pré-natal aqui, e depois já está em outro bairro e assim vai indo, é uma mudança muito grande, às vezes não só de bairro, mas de rua também. Então a gente tem que sair atrás, à procura, saber onde está. [...] Mesmo mudando de área, saindo da [microárea] azul e indo para vermelha, continua fazendo pré-natal com o [médico] que começou e vai até o fim. E no caso de tuberculose também”. (PS5)

Alguns trabalhos31,34,35 apontam para a importância da abordagem de questões culturais – sobretudo relacionadas ao parto –, durante o pré-natal de mulher boliviana, pois há muitos relatos sobre a dificuldade em realizar seus partos nos hospitais públicos na cidade de São Paulo: elas são resistentes a procedimentos como a cesariana, que possui significado pejorativo entre elas. Desse modo, somente será possível promover a discussão desses temas, com as gestantes bolivianas, com a continuidade de seu pré-natal e uma escuta diferenciada para essas questões.

A comunicação entre os imigrantes bolivianos e a equipe de Saúde da Família Ao tratarmos da interação entre os bolivianos e os profissionais de saúde no Bom Retiro, a questão da comunicação se impõe. Porém, devemos sublinhar a polissemia desse objeto, e é necessário delimitar o aspecto que nos importa, isto é, a rede de conversação envolvida na interação entre eles, seja dentro da USF, seja no território. Segundo Teixeira36, o trabalho em saúde possui uma natureza eminentemente conversacional dos processos de trabalho que se dão no encontro entre trabalhador e usuário. Nesse sentido, há muitas dificuldades relacionadas com a compreensão do idioma falado, uma vez que os bolivianos não constituem um grupo homogêneo do ponto de vista étnico: a Bolívia é uma sociedade pluriétnica e multicultural, com 26 línguas diferentes, que se subdividem em 127 dialetos37, conforme revela a narrativa apresentada: “[...] os bolivianos vêm de diferentes lugares da Bolívia [...] eles falam diferentes idiomas nativos. Nem eu entendo. [...] por exemplo, eu falo espanhol e outra língua nativa, e outras pessoas, falam outra língua nativa, também”. (UB3)

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Por outro lado, os trabalhadores do serviço de saúde referem uma dificuldade para compreender o que lhes é dito pelos bolivianos, e também identificam a dificuldade destes para compreender nosso idioma. “ [...]. Acho que os bolivianos, eles são difíceis de entender o português [...]”. (PS4) “[...] é o idioma, porque o castelhano dá para gente, como diz...ah... é com dificuldade, mas a gente entende alguma coisa [...]”. (PS5)

Observamos, então, que esse encontro pode ser atravessado por “mal-entendidos”, comprometendo a adesão às orientações e ao tratamento propostos. O boliviano receia que suas queixas não sejam compreendidas, e o profissional de saúde se surpreende com a falta de compreensão da sua mensagem. “[...] ele [o médico] não entende bem. Dava um pouco de medo assim... às vezes eles falam diferente, depois dá remédio, não sei. [...]”. (UB3) “[...] As dificuldades eu acho que são essas barreiras mesmas, de entender. Por exemplo, a gente outro dia estava fazendo uma atividade a respeito da dengue, então dizendo dos cuidados, a questão do vaso, água parada, e aí um desses bolivianos diz: ‘não, eu não pego, porque não sou deste país’, [...]”. (PS1)

Algumas estratégias foram propostas pelas EqSF para ampliar e melhorar a “conversa” entre bolivianos e profissionais de saúde da USF do Bom Retiro. Uma delas foi a contratação de ACS bolivianos, a partir de 2003, o que facilitou o acesso às oficinas de costura, além de possibilitar uma melhor compreensão da inserção desses imigrantes no território e de suas características culturais. O trabalho nas oficinas impõe desafios para a utilização da USF, pois a remuneração de seus trabalhadores depende da produção e, portanto, as interrupções no trabalho não são bem vistas nem pelos donos das oficinas, nem pelos costureiros. Soma-se ao fato a dificuldade de os ACS realizarem, nas oficinas, os cadastros, suas visitas domiciliares mensais ou qualquer outra atividade. Diante disso, os ACS bolivianos iniciaram uma sensibilização dos donos das oficinas para a necessidade de facilitar a interrupção do trabalho, a fim de possibilitar o acesso dos funcionários da Unidade de Saúde e de vencer o medo oriundo da situação de clandestinidade de seus costureiros. “[...] Eles [os bolivianos] têm receio de atender, de abrir a porta da sua casa para nos receber. Eles pensam que a gente não está ali pela saúde, mas, sim, de repente, por outro motivo, e aí a gente tem dificuldade mesmo. Eles não permitem a entrada[...] se o dono não está presente, o funcionário não pode estar abrindo a porta para que a gente possa entrar, estar conhecendo, conversando, entendeu? [...]”. (PS5)

A incorporação dos ACS bolivianos à EqSF permitiu uma maior aproximação da realidade vivida nessas oficinas e resultou num outro entendimento de muitas queixas feitas com frequência pelos bolivianos, sobretudo dores musculares de toda ordem, frutos de longas horas de trabalho nas máquinas de costura. E, para alívio dessas queixas, a EqSF tem desenvolvido atividades de exercício de alongamento nas oficinas. “Atualmente o adoecimento mais frequente acaba sendo a dor lombar, dor nos braços, isso é o adoecimento com o qual eles mais vêm à Unidade [...]. Estas queixas têm muito a ver com a forma de vida dos bolivianos, porque trabalham 14/15 horas seguidas, em posições, as mesmas, só param exclusivamente para comer. [...] tem muito exercício repetitivo. [...]”. (PS3)

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“A gente, na verdade, tem tentado fazer um trabalho laboral pelo menos para que elas saiam um pouco dessas máquinas, mas não é fácil, acho que é um trabalho bastante difícil e complexo, porque, como é que você compõe com o lucro e com essa necessidade, como é que se compõem essas duas coisas”. (PS1)

Outras ações para melhorar a comunicação se relacionam à criação de material educativo em espanhol e também à participação desses ACS em atividades educativas, muitas vezes realizadas nas próprias oficinas. Também foi construída, para a EqSF, uma cartilha com expressões para uso no dia a dia, visando permitir uma melhor interação entre os profissionais e os bolivianos. “[...] a equipe médica tem trabalhado para criar uma cartilha, uma espécie de vocabulário, um dicionário curto, pequeno, com as palavras básicas: ‘Bom Dia!’, ‘Boa Tarde!’, ‘O que está sentindo?’, ‘O que você precisa?’, ‘Como é que você está?’, ‘Aonde mora?’. Este dicionário foi feito nos três idiomas: português, espanhol e coreano, e isso já ajudou muito, para pelo menos ter um entendimento com as duas culturas”. (PS6) “Com relação aos bolivianos, a gente [os profissionais de saúde] também desenvolveu alguns cadernos de orientação à gestante, de hipertensão e diabetes, a questão da TB, alguns cadernos e folhetos que pudessem enfim, nos ajudar [...]”. (PS1)

Outro veículo utilizado pelas EqSF para melhorar a comunicação são as rádios bolivianas, muito relacionadas ao papel simbólico das áreas centrais como espaço de recursos urbanos, uma vez que só no centro é possível escutar essas emissoras, pois não se consegue sintonizá-las fora de um determinado e limitado perímetro. Nas oficinas de costura, é muito comum o rádio ligado todo o tempo, um veículo que leva informações de toda ordem; orienta sobre providências para a regularização da estadia no Brasil, sobre ofertas de emprego; e ajuda a localizar familiares e amigos, além de servir como uma voz amiga, reconfortante, que faz com que o boliviano não se sinta só na cidade7. Essas rádios também tratam da saúde, sobretudo alertando para o perigo da tuberculose, e fazem propaganda de unguentos e pomadas para dores de coluna e cãibras, corriqueiras entre eles. Sendo assim, a EqSF reconhece a relevância desse veículo e utiliza-o como canal de comunicação com essa comunidade, reconhece a importância de participar de espaços localizados no centro da cidade, nos quais os bolivianos buscam convivência e identidades de grupo, como a feira Kantuta, que ocorre aos domingos em um bairro próximo ao Bom Retiro. Ali se estabelecem múltiplas relações de ordem comercial, gastronômica, artística; oferta de trabalho e serviços, como corte de cabelo, fotografia, entre outros14. “[...] Agora as equipes têm participado muito de festas, como a festa da Kantuta, que é uma feira só dos imigrantes. Tem outras festas e outras feiras, outros lugares onde a gente tem sempre estado presente, levando sempre uma conversa. Tem uma rádio comunitária que é específica para os bolivianos, para as comunidades imigrantes, [...] os profissionais têm ido lá, para dar entrevista e falar sobre saúde [...]”. (PS1)

Apesar de a gestão do PSF, no que tange a sua organização, ter alto grau de normatividade na sua implementação, com uma regulamentação definida pelo Ministério da Saúde, é no dia a dia que a EqSF se defronta com as mais diversas realidades em seus territórios e pode identificar que aquela normatização é insuficiente, fazendo uso de saber gerado por um olhar mais integral, propondo variadas estratégias para melhorar a interação entre os serviços e os usuários. Segundo Mendes-Gonçalves38, esse saber, enquanto tecnologia (imaterial), é utilizado na produção de serviços de saúde. Entendemos a tecnologia como o conjunto de conhecimentos e agires aplicados à produção de algo. Merhy39, em sua proposta de tipologia, denominou “tecnologia leve” a tecnologia de trabalho usada para produzir saúde. Ainda com relação a isso, Ayres40 ressalta o lugar

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privilegiado do cuidado nas práticas de saúde, sublinhando ser útil para a saúde a sabedoria prática apoiada na tecnologia, mas sem resumir a ela a intervenção em saúde.

Considerações finais Apesar da normalização, as EqSF do Bom Retiro, ao estabelecerem vínculo com a comunidade, promoveram a flexibilização da lógica cartográfica do PSF, pois adequaram-se à territorialidade própria desses imigrantes no bairro. Nesse sentido, a incorporação do ACS boliviano teve grande importância na aproximação entre o serviço e os usuários, ao facilitar o acesso às oficinas de costura, o entendimento do seu dia a dia e ampliar o entendimento da produção social do processo saúde-doença. Embora o PSF tenha um caráter fortemente prescritivo, com intensa “vigilância” em determinado território, devemos ter o cuidado de, apesar de sua origem, não dogmatizá-lo aprioristicamente. Essa atitude poderá impedir o reconhecimento das potencialidades desse programa, quando a realidade do território se sobrepõe às normatizações ministeriais e revela experiências criativas. Este estudo sugere que o PSF pode proporcionar um conhecimento mais apurado sobre os imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo e promover maior visibilidade e reconhecimento na relação com o serviço, como um meio de construir outras identidades. Dessa forma, a USF do Bom Retiro passa a fazer parte da rede de conversação que essa comunidade construiu em seu cotidiano.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília (DF): MS; 2006. 2. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. População coberta pelas Equipes de Saúde da Família [Internet] [acesso 2013 Fev 1]. Disponível em: http://189.28.128.178/sage/ 3. Merhy EE. E daí surge o PSF como uma continuidade e um aperfeiçoamento do PACS. Interface (Botucatu). 2001; 5(9):147-9. 4. Paim JS. Saúde da Família: espaço de reflexão e de contra-hegemonia. Interface (Botucatu). 2001; 5(9):143-6. 5. Truzzi O. Etnias em convívio: o bairro do Bom Retiro em São Paulo. Estud. Hist. 2001; 28:143-66. 6. Mangili LP. Bom Retiro, bairro central de São Paulo: transformações e permanências (1930-1954). São Paulo: Alameda; 2011. 7. Xavier IR. Projeto migratório e espaço: os migrantes bolivianos da região metropolitana de São Paulo [dissertação]. Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2010. 8. Freitas PT. Imigração e experiência social: o circuito de subcontratação transnacional de força de trabalho boliviano para o abastecimento de oficinas de costura na cidade de São Paulo [dissertação]. Campinas (SP): Departamento de Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2009.

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Aguiar ME, Mota A. El Programa Salud de la Familia en el barrio de Bom Retiro, São Paulo, Brasil: la comunicación entre bolivianos y trabajadores de la salud. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):493-506. El objetivo de este artículo es presentar la análisiss de la interacción entre el Programa de Salud de la Familia (PSF) y los inmigrantes bolivianos localizados en el barrio de Bom Retiro en la ciudad de São Paulo, Brasil resultando en una experiencia particular. Para ello, se realizaron entrevistas semi-estructuradas con bolivianos y trabajadores de la salud de la Unidad de Salud de la Familia de Bom Retiro, con la intención de verificar, particularmente, las dimensiones del mundo del trabajo, de la vivienda y de la gran movilidad espacial inmigratoria, exigiendo la flexibilización de la lógica cartográfica del PSF, con la ampliación del concepto de familia y estrategias comunicativas – la contratación de agente de salud boliviano, la producción de material educativo en lengua española y la utilización de las “radios bolivianas”, capaces de traducirse en la mejora del servicio de salud.

Palabras clave: Comunicación en salud. Origen étnico y salud. Inmigrantes bolivianos. Estrategia Salud de la Familia. Barrio de Bom Retiro. Recebido em 15/04/13. Aprovado em 21/04/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0116

artigos

Grupos de educação nutricional em dois contextos da América Latina: São Paulo e Bogotá Kellem Regina Rosendo Vincha(a) Alexandra Pava Cárdenas(b) Ana Maria Cervato-Mancuso(c) Viviane Laudelino Vieira(d)

Vincha KRR, Cárdenas AP, Cervato-Mancuso AM, Vieira VL. Nutritional education groups in two contexts in Latin America: São Paulo and Bogotá. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):507-20. This study compared nutritional education groups regarding their theoretical and practical dimensions, within primary health care, between São Paulo and Bogotá. A descriptive study was conducted in stages: identification of the professionals; characterization of educational groups; identification of social representations about nutritional education; and comparison of the linkage between theory and practice in the groups, per city. Through interviews with 54 nutritionists 17 central ideas were identified, which were classified into thematic axes that related to the groups. In both contexts, the importance of participant empowerment was highlighted, with similarities in the profile of actions, but with differentiation of the mediators’ autonomy. It was found that the theory/practice of the groups was in transition from the traditional to a more humanistic approach. However, this was at a slow speed, compared with healthcare policies and needs.

Este estudo comparou grupos de Educação Nutricional (EN), na dimensão teórica e prática, dentro da Atenção Primária à Saúde, entre São Paulo e Bogotá. A pesquisa descritiva foi realizada em momentos: identificação dos profissionais; caracterização dos grupos educativos; identificação das representações sociais sobre EN; e comparação da articulação entre teoria e prática dos grupos por cidade. Foram identificadas, por meio de entrevista com 54 nutricionistas, 17 Ideias centrais, classificadas em eixos temáticos, que se relacionaram com os grupos. Nos dois contextos, destacou-se a importância do empoderamento dos participantes com semelhanças no perfil das ações, mas com diferenciação na autonomia dos mediadores. Verificou-se que a teoria/prática dos grupos está em transição da abordagem tradicional para outra mais humanista. Entretanto, em uma velocidade lenta comparada às políticas e necessidades de saúde.

Keywords: Primary Health Care. Health Education. Food and nutritional education. Educational groups.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde. Educação em Saúde. Educação alimentar e nutricional. Grupos educativos.

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(a-d) Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Avenida Dr. Arnaldo, 715, Consolação. São Paulo, SP, Brasil. 01255-000. kellemvincha@usp.br; apavac@usp.br; cervato@usp.br; vivianevieira@usp.br

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Introdução A Promoção da Saúde (PS) é uma estratégia propagada mundialmente para enfrentar os múltiplos problemas de saúde que afetam às populações1. Recomenda-se que seja um processo de capacitação da comunidade, voltado à melhoria da qualidade de vida e saúde, e que seja, sobretudo, desenvolvida pela Atenção Primária à Saúde (APS). Dessa forma, países da América Latina, como Brasil e Colômbia, caracterizados pela desigualdade social e iniquidade, encontram-se em um momento de fortalecimento da APS2. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) possui um cenário da APS privilegiado para a PS, denominado Estratégia Saúde da Família (ESF), que preconiza uma equipe multiprofissional dentro de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Em 2008, com o intuito de reforçar a ESF, criaram-se os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que contam com profissionais de diferentes áreas do conhecimento para apoiar e ampliar as ações da ESF3,4. De outro lado, na Colômbia, o sistema de saúde, denominado Sistema General de Seguridad Social en Salud, é formado por serviços privados e públicos, enquanto a APS, conhecida como Plan de Intervenciones Colectivas (PIC), é gratuita à população5. Diante das demandas da APS, uma prática reconhecida da PS são os grupos educativos, já que proporcionam discussão entre os indivíduos, de modo que possam superar suas dificuldades e viver mais harmonicamente com sua condição de saúde. Assim, tem-se observado sua crescente utilização, cada vez mais descritos em trabalhos acadêmicos e incentivados pelas políticas públicas de saúde6,7. As metrópoles de São Paulo (Brasil) e Bogotá (Colômbia), consideradas centros econômicos, assemelham-se no perfil populacional, dado que ambas possuem a peculiaridade do aumento das taxas de doenças crônicas não transmissíveis, o que exige ações de prevenção e tratamento de doenças e de Promoção da Saúde8. São Paulo, atualmente, é a cidade que possui o maior número de equipes de ESF e NASF do país, sendo que, em 2010, verificou-se que os nutricionistas destas equipes possuem os grupos educativos como a principal atuação9. Já em Bogotá, devido à ausência de uma política nacional da APS, a Secretaria Distrital de Salud (SDS) desenvolveu La Estrategia Promocional de Calidad de Vida y Salud, em 2005, cujas ações são realizadas por equipes multiprofissionais, incluindo o nutricionista. Recentemente, o governo nacional assumiu a APS como estratégia central de reorganização do sistema onde se atua com os PIC. Desde então, assim como no Brasil, esse nível de saúde é pensado na lógica da territorialização, buscando a prerrogativa de os profissionais estarem mais próximos da população, além de ter o enfoque na PS10,11. O presente estudo aproximou a mesma prática, grupos educativos, em dois países diferentes, com problemáticas de saúde similares, mas com magnitudes distintas entre contextos, histórias e desenvolvimento da saúde. Este estudo forneceu subsídios para discussões acerca dos conteúdos da PS, APS e Educação em Saúde, que se encontram em um momento de fortalecimento nas localidades, tanto da dimensão prática quanto teórica. Estudos que contrastam essas dimensões possibilitam a reflexão sobre o conhecimento e a percepção dos referenciais teóricos dos profissionais da saúde e seu impacto no cotidiano prático de trabalho. Assim, o artigo teve por objetivo comparar os grupos educativos, que trabalham a alimentação e nutrição, na sua dimensão teórica e prática, dentro da APS, entre São Paulo (Brasil) e Bogotá (Colômbia).

Metodologia Trata-se de uma pesquisa descritiva, que usou o método comparativo para reconhecer as características dos grupos educativos nas cidades de São Paulo e Bogotá, explicando as semelhanças e as diferenças que apresentam os processos de articulação entre teoria e prática de meios sociais distintos12. A coleta de dados foi formada por três momentos: (1) mapeamento dos profissionais; (2) questionário para a caracterização do profissional e dos grupos educativos, e (3) entrevista sobre Educação Nutricional (EN). Concretizou-se no período de julho a dezembro de 2012, primeiramente, 508

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A gestão de unidades de saúde do estado de São Paulo tem por característica possuir uma parceria com Organizações Sociais de Saúde, que são instituições do setor privado, sem fins lucrativos, que colaboram, de forma complementar, para a consolidação do SUS.

artigos

em Bogotá e, posteriormente, em São Paulo. Previamente foi realizado o teste-piloto dos instrumentos e a tradução transcultural dos instrumentos13. Consideraram-se, como dimensão prática, os dados coletados sobre as características dos grupos educativos e, como teórica, as percepções dos participantes sobre a EN em paralelo com os referenciais teóricos das políticas públicas que abrangem o campo dos dois países, como o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas14 e as Guías Alimentarias15. A população do estudo foi composta por nutricionistas, mediadores de grupos educativos, de São Paulo e Bogotá, que atuassem na APS. Optou-se pelo nutricionista, dado o reconhecimento do campo da Educação Nutricional dentro da PS. O mapeamento foi construído a partir de informantes-chave: em São Paulo, pelas Organizações Sociais de Saúde(e) e, em Bogotá, pela SDS. Diante da participação voluntária, os profissionais foram selecionados de acordo com a estrutura organizacional dos programas de APS das cidades, apresentado na Figura 1. Foram identificados 27 nutricionistas em cada cidade. Para a dimensão prática, aplicou-se o questionário online “Identificação dos Grupos de Educação Nutricional”, por Google docs. O questionário contemplou informações sobre: sexo, idade, formação, tempo no cargo atual e atividades de trabalho. Dos 54 participantes da pesquisa, 42 responderam ao questionário, sendo 18 de São Paulo e 24 de Bogotá. Para a caracterização dos grupos, foram identificados: nome, tipo de grupo (aberto ou fechado), população, número de participantes, local, frequência da ação, profissionais, temas abordados e materiais e/ou equipamentos utilizados. Para a análise dos grupos por convenção, selecionou-se o primeiro descrito por cada profissional que continha todas as informações solicitadas. Calcularam-se as médias aritméticas da idade, tempo de formação e tempo no cargo atual.

Figura 1. Fluxograma percorrido para o mapeamento da localização dos nutricionistas que atuam na Atenção Primária à Saúde em São Paulo e Bogotá, 2012. São Paulo

Bogotá

Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo Departamento de Atenção Básica

Coordenadoria leste

Secretaria Distrital de Saúde de Bogotá

Coordenadorias Regionais de Saúde

Coordenadoria sul

Coordenadorias norte, sudeste e centro-oeste

Rede hospitalar

Gerente do hospital Coordenador de Segurança Alimentar e Nutricional

Organizações Sociais de Saúde Coordenadores NASF

Direção de Saúde Pública

Plano de Intervenções Coletivas (PIC)

Nutricionistas NASF

Nutricionistas PIC

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Em relação à dimensão teórica, aplicou-se entrevista por um pesquisador previamente treinado, que se utilizou da questão: O que é ou o que significa a Educação Nutricional para você? As entrevistas, aplicadas no local de trabalho, foram gravadas e transcritas pelos pesquisadores. A análise deu-se por meio do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), técnica fundamentada na teoria das representações sociais, que consiste em selecionar, de cada depoimento individual, expressões-chave, que são os trechos mais significativos de uma resposta. Estas correspondem às Ideias Centrais (IC) que sintetizam o conteúdo discursivo e, a partir delas, constroem-se discursos-síntese, na primeira pessoa do singular, que são os DSC, os quais visam expressar o pensamento de uma coletividade. Assim, foram executadas as etapas: análise e extração das IC de cada depoimento; conexão das Ideias Centrais equivalentes, e formação dos discursos propriamente ditos. Após, categorizaram-se os dados por meio de unidades dos textos que se repetiram, agrupados e classificados em eixos temáticos, nomeados empregando-se parte dos discursos16. Para a comparação, obteve-se a segmentação dos dados por cidade, comparação e contextualização dos achados na ótica de Educação em Saúde, Educação Nutricional, grupo educativo, e contexto da Atenção Primária à Saúde nas duas cidades. Para a apresentação dos achados, realizou-se um paralelo da dimensão teórica, percepções encontradas nas entrevistas, com a prática, características dos grupos descritos no questionário. Por conveniência, adotou-se “S” para designar São Paulo e “B” para Bogotá na identificação dos discursos. Esta pesquisa faz parte do estudo “Educação Nutricional na Atenção Primária em Saúde”, consentida pela SDS de Bogotá, aprovada pelos Comitês de Ética da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Resultados e discussão Verificaram-se características semelhantes dos profissionais em relação ao sexo, idade, tempo de formação e tempo no cargo. Uma diferença a destacar é a formação profissional: enquanto todos os entrevistados de São Paulo possuem, pelo menos, um curso de pós-graduação, em Bogotá, apenas 25,0% contam com esse nível de formação. Sugere-se que essa diferença seja consequência do mercado de trabalho, dado que, em São Paulo, há 19 cursos de graduação em nutrição para uma população de 10.434.252 pessoas17,18, e, em Bogotá, há dois cursos para uma população de 7.363.78219,20. Dessa forma, devido ao número de profissionais formados em São Paulo, estes possuem, muitas vezes, a necessidade de se especializarem para se destacarem no mercado de trabalho. Observou-se que, entre os 18 participantes de São Paulo, somente quatro optaram por se especializar na área de atuação atual, enquanto a maioria buscou por cursos da área da nutrição clínica, como “Nutrição Funcional”, “Terapia Nutricional, Obesidade e Emagrecimento”, ao contrário dos profissionais colombianos. Verificou-se semelhança na descrição das atividades de trabalho, uma vez que a mais citada foi a mediação de grupos educativos, indicando que estes são efetuados devido às vantagens verificadas em comparação ao cuidado individual: favorece a comunicação entre os atores e propicia o encontro dos semelhantes no sentido da constituição de redes sociais e do estímulo à autonomia6,7.

Dimensão teórica e prática dos grupos educativos em nutrição Como resultado das entrevistas, dimensão teórica, identificaram-se 17 Ideias Centrais distintas, classificadas em seis eixos temáticos (Quadro 1). Esses eixos foram relacionados com as características práticas dos grupos educativos descritos, apresentados na sequência.

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Eixo temático

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Quadro 1. Classificação das Ideias Centrais por eixos temáticos, segundo a percepção dos entrevistados sobre a educação nutricional, em São Paulo e Bogotá, 2012. Bogotá

São Paulo

É transmitir os conhecimentos

IC-S1 – É a transmissão de conhecimentos para a população (n=7)

IC-B1 – Fornecer conhecimentos à população (n=10)

São padrões de alimentação sadia

IC-S2 – É gerar mudanças na alimentação da pessoa (n= 8) IC-S8 – É conscientizar as pessoas sobre alimentação saudável (n=3)

IC-B2 – Processo que promove a mudança de hábitos alimentares (n=11)

Um espaço do hábito alimentar

IC-S3 – É educar de acordo com a realidade da pessoa (n=8)

IC-B6 – Proporcionar mudanças considerando a multicausalidade da alimentação (n=2)

Processo de troca

IC-S7 – É a troca de saberes entre o educador e o educando (n=4)

IC-B3 – Construção coletiva do conhecimento (n=2)

Ter autonomia na escolha

IC-S4 – É um processo a longo prazo e contínuo (n=6) IC-S6 – É dar autonomia para o indivíduo (n=3) IC-S10 – É gerar multiplicadores sobre alimentação saudável (n=1)

-

Como? Quando?

IC-S5 – É uma ferramenta para a prevenção de doenças (n= 8) IC-S9 – É educar com recursos lúdicos (n=2)

IC-B4 – Técnicas utilizadas para trabalhar com a população (n=2) IC-B5 – Uma motivação em sentimento (n=1) IC-B7 – Trabalhar de forma prática com a comunidade (n=1)

É transmitir os conhecimentos Os entrevistados das duas cidades assinalaram a importância do conhecimento, especialmente o científico, conforme evidenciado: “É transmitir os conhecimentos acerca do consumo dos alimentos, a maneira como devem serem consumidos, a maneira que devem estar higienizados [...]” (DSC-B1). Essa abordagem centra-se em alguém que sabe e ensina a alguém que não sabe. A lógica é a de transmissão de conhecimentos com a expectativa de que o outro mude seu comportamento em função do que lhe foi ensinado1. Estudos questionam essa abordagem, pois mostram que o comportamento humano é influenciado por uma variedade de fatores – fisiológicos, psicológicos, sociais e ambientais. Além disso, experiências concluíram que ela é eficiente em aumentar conhecimentos, mas, com raras exceções, é ineficaz na mudança de práticas21,22. Contudo, verificou-se que as políticas públicas colombianas mencionam que o aumento de conhecimento dos indivíduos favorece mudanças nas escolhas alimentares, corroborando com o achado. Diferentemente do Brasil, que coloca a importância da valorização do conhecimento prévio dos participantes, porém, historicamente, essa abordagem era incentivada pelos serviços de saúde14,15. Dessa forma, averiguou-se uma herança histórica na concepção dos participantes brasileiros. Além da valorização do conhecimento científico, na prática, a demanda que o profissional necessita atender em função da sua disponibilidade de tempo pode interferir no formato e no tamanho do grupo. Os grupos descritos mostraram semelhança nesse aspecto. Em São Paulo, foram apontados grupos de sete a 55 participantes e, em Bogotá, de cinco a 55. Tal característica pode influenciar no processo educativo, pois sugere-se que grupos maiores tendem à transmissão de conhecimento, pois as trocas emocionais entre os membros ficam mais superficiais.

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São padrões de alimentação sadia Foi verificado que os entrevistados de ambas as localidades reconhecem que a EN é uma prática que tem como essência a mudança de comportamento: “Para o meu conceito, o primeiro paradigma que desvirtuei nos meus grupos comunitários foi que nós não ensinamos nutrição, porque nutrição é uma ciência que tem de aprender os médicos, as enfermeiras e as nutricionistas, o que nós ensinamos são padrões de alimentação sadia [...]”. (DSC-B2)

Compreende-se que essa percepção vai ao encontro da abordagem comportamentalista de Promoção da Saúde, que entende o homem como um produto do meio, que vivencia, constantemente, em todas as etapas da vida, três eventos: estímulo, resposta e reforço23. Observase que educar, segundo a percepção, é o profissional disseminar padrões de alimentação saudável, possivelmente, desconsiderando as realidades locais e singularidades individuais. Ainda nesse eixo, São Paulo apresentou a percepção da EN como uma conscientização: “Então o que a gente tem que conscientizar? [...] a importância de você ter uma alimentação saudável, os benefícios que você vai ter e aí você cita os benefícios e os malefícios, com isso você consegue conscientizar muita gente [...]”. (DSC-S8)

O comportamentalismo de PS e a conscientização também estão vinculados ao histórico da Educação em Saúde, que se respaldou nas recomendações de condutas certas e erradas de saúde, novamente dominado pelo poder científico24. Nesse eixo, responsabiliza-se unicamente o indivíduo pela saúde, já que o profissional expõe as condutas, oferecendo a opção de este seguir ou não. Aqui, segundo Gazzinelli et al.24, sempre há um agente externo causador da doença, que deve ser combatido como um ‘inimigo’, como o açúcar, o diabetes, o sal, as gorduras, não se relacionando a outros fatores do processo saúde-adoecimento, como sociedade, desigualdades sociais e de saúde, que são apontados como essências, na EN, pelas políticas públicas dos dois países14,15. Como observado no presente estudo, práticas educacionais em saúde empregadas em momentos históricos não desapareceram absolutamente. Não implica desconsiderá-las, mas, trata-se: [...] de perguntar se estas representações são suficientemente inclusivas para dar conta dos desafios colocados à educação em saúde nas sociedades contemporâneas ou se elas podem contribuir para aumentar a vulnerabilidade vivenciada por pessoas que não se incluem em suas descrições.22 (p. 1340)

Um dos desafios atuais da prática nas duas cidades é o aumento da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis. Nesse sentido, observou-se que os grupos descritos em São Paulo relacionam-se com tais doenças, especialmente a obesidade, apontados pelos nomes: perder para ganhar, emagrecendo com saúde, pesos e medidas, apertando o cinto, medida certa, entre outros. Já em Bogotá, verificaram-se nomes mais amplos, como tú vales e muévete comunidad, que são nomes dos programas da SDS. Assim, se diferenciam dos grupos de São Paulo, que são nomeados pelos profissionais de saúde e/ou participantes, além de possuírem o foco na Promoção de Saúde11. As características dos grupos, incluindo nome e população, podem influenciar no tipo de abordagem utilizada para a educação. Igualmente, sugere-se que o eixo temático aqui discutido ocorra com maior frequência em grupos de população homogênea, como os achados em São Paulo. Já que, “o diagnóstico de uma doença sempre parte de um princípio universalizante, generalizável para todos, ou seja, ele supõe alguma regularidade e produz uma igualdade”25 (p. 9), aludindo à tendência da desconsideração das singularidades individuais. Quanto à população para a qual os grupos se destinam, encontrou-se semelhança, dado que, nas duas cidades, as mais citadas foram idosas. 512

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Um espaço de negociação do hábito alimentar O eixo temático destaca a importância de se considerarem as experiências e conhecimentos dos participantes na ação, que são realçadas nas políticas públicas de ambas as localidades14,15. Nessa direção, houve semelhança nos DSC: “a EN [...] é um espaço de negociação dos hábitos alimentares, de um indivíduo, de uma população, mas de acordo com seu contexto, a sua parte cultural, a sua parte econômica, bem, toda essa série de situações que de alguma maneira estabelecem o padrão alimentar das pessoas e como se pode entrar a modificar ou a reestruturar sua alimentação de acordo com o que se viveu”. (DSC-B6)

O discurso direciona para a abordagem humanista de Promoção da Saúde, que tem o conceito de que o homem é arquiteto de si mesmo. A base do conhecimento repousa na experiência individual subjetiva e se concretiza a partir da interpretação pessoal e das relações com pessoas autorrealizáveis, flexíveis e adaptáveis criativamente23. Assinala-se a importância de uma escuta qualificada para o reconhecimento e o envolvimento das experiências e conhecimentos no processo educativo. Indica-se que esta pode ser ampliada na presença de mais de um profissional na ação, já que profissionais distintos possuem olhares diferentes do cuidado. Nesse aspecto, averiguou-se semelhança nos achados, pois ambas as cidades possuem mediação exclusiva do entrevistado ou compartilhada com outros mediadores. Em São Paulo, os mais citados foram: educador físico, psicólogo, fisioterapeuta e auxiliar de enfermagem. Já em Bogotá: assistente social, psicólogo, fisioterapeuta e agente educativo. Outro item importante de uma prática educativa humanista de PS é o espaço, pois se sugere que esta pode ser favorecida quando ocorre no local onde os indivíduos vivem e se relacionam, devido à aproximação da realidade em questão. No presente estudo, foi encontrada diferença entre as cidades. São Paulo destacou as Unidades Básicas de Saúde, enquanto, Bogotá, os equipamentos sociais, como salão comunal (espaço da comunidade), igrejas e escolas. Sugere-se que esse fato seja consequência da diferença de configuração de trabalho, pois os NASF possuem, por diretriz, estarem junto das equipes saúde da família que, por sua vez, localizam-se nas UBS4. Já em Bogotá, os profissionais dos Plan de Intervenciones Colectivas são favorecidos por atuarem nos cenários da vida cotidiana da população, classificados em: familiar, escolar, comunitário, trabalho e institucional10. Processo de troca Foi verificada semelhança na percepção dos entrevistados brasileiros e colombianos, uma vez que se constatou a valorização da EN como uma educação mais inclusiva: “Eu entendo que é um processo de troca né, do conhecimento teórico do profissional de nutrição com o conhecimento de vida né do usuário, do paciente em que tá no grupo. Acho que só acontece a Educação Nutricional se ambos têm abertura pra tal [...]”. (DSC-S7)

Essa abordagem, também localizada nas referências teóricas dos dois contextos14,15, assemelha-se, de acordo com Barker e Swift21, ao modelo de cognição social, que se respalda na construção coletiva de uma nova aprendizagem com base nos conhecimentos, atitudes e crenças dos participantes; e esses, por sua vez, são influenciados “[...] pela experiência coletiva, pelos fragmentos das teorias científicas e dos saberes escolares, expressos, em parte, nas práticas sociais e modificados para servir à vida cotidiana”24 (p. 202). Indica-se que a construção coletiva relaciona-se, na prática, diretamente aos temas abordados nos encontros, já que eles podem ou não serem construídos entre profissionais e participantes. Nesse aspecto, os grupos de São Paulo apresentaram temas como: pirâmide alimentar, porções de alimentos, fracionamento da dieta, leitura de rótulos, dietas da moda, oficina culinária e espaço para temas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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sugeridos pelos participantes. Em Bogotá: alimentação saudável, conceitos básicos de alimentação e nutrição, higiene e manipulação dos alimentos, frutas e verduras, alimentação por idade e ajustada para a família, rótulos de alimentos, trem da alimentação, segurança alimentar e nutricional, e direito à alimentação. Sugere-se que a variedade de temas entre os países seja decorrência da diferença das propostas de trabalho, pois os profissionais dos NASF são orientados a realizar ações que promovam a alimentação saudável, havendo uma abertura na escolha dos temas, seja pelos profissionais e/ou participantes, corroborando com o achado4. Pressupõe-se que as características dos grupos de São Paulo, incluindo os temas, são influenciadas pela experiência e formação do profissional. Todavia, retomando a informação de que a maioria é especialista na área da nutrição clínica, sugere-se a necessidade do cuidado para que, no desenvolvimento da ação, não prevaleça o conhecimento científico, pois segundo Campos, citado por Ribeiro, Pires e Blank26, a especialização excessiva cria, autoriza e legitimiza a fragmentação do cuidado. Já em Bogotá, foi observado que os temas citados pertencem aos guias dos programas, principalmente do tú vales e do muévete comunidad. Ambos os programas utilizam a metodologia de ações baseada na comunidade, usando a informação, comunicação, educação e o social como abordagem, apresentada pela secretaria da cidade como uma nova proposta de cuidado em saúde para a América Latina27. O primeiro tem por intenção incentivar o consumo de frutas e verduras, a prática de atividade física e a redução do tabagismo, enquanto o segundo tem o foco na atividade física11. Aponta-se, assim, que os membros dos grupos de Bogotá possuem menor autonomia nas escolhas dos temas, comparados aos de São Paulo. Ter autonomia na escolha Com relação à postura dos participantes no grupo, São Paulo diferenciou-se por apresentar a percepção da EN como estímulo à autonomia: “Pra mim Educação Nutricional é você capacitar ou passar essa educação pra pessoa ao ponto dela ter a ferramenta, de ser autônoma, dela ter autonomia na escolha [...]” (DSC-S6). A definição de autonomia é próxima do empoderamento, pois se refere à capacidade de os indivíduos e grupos poderem decidir sobre as questões que lhes dizem respeito nas múltiplas esferas, como saúde, política, economia, social e cultural, mobilizando-os para perceberem-se como parte integrante desse conjunto. Essa abordagem vai em direção à Educação Popular em Saúde (EPS), conceituada como uma filosofia e metodologia de educação28 que “busca trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos [...] de modo a promover o crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento”29 (p. 21). De acordo com Vasconcelos29, referenciado nas políticas públicas de saúde brasileiras, a EPS visa à ruptura da educação autoritária e normatizadora, concepção ainda enraizada, conforme verificado nesse estudo, pois “em vez de procurar difundir conceitos e comportamentos considerados corretos, procura problematizar, em uma discussão aberta, o que está incomodando e oprimindo os atores” (p. 21), delineando soluções. O autor refere que a EPS é um elemento inovador e pioneiro na saúde, sendo considerado um jeito latino-americano de fazer Promoção da Saúde. Todavia, constata-se que, apesar de seu reconhecimento teórico, há desafios de incorporá-la na prática, devido à complexidade institucional, como o pesado fardo das doenças, e da vida social como os apelos para o consumismo e o individualismo, além da dificuldade do diálogo entre profissional e população, devido à existência de bloqueios culturais e distanciamentos pela desigualdade de poder30. A SDS de Bogotá recomenda que os profissionais estimulem a autonomia da comunidade, com a articulação do saber científico e popular, para a construção de uma melhor qualidade de vida. Essa recomendação faz parte dos programas31, entretanto não foi encontrada nos discursos analisados. Esse achado vai ao encontro de um estudo realizado com 34 nutricionistas, de Medellín, que teve o intuito de explorar a percepção desses sobre o papel do saber popular na alimentação; e verificou-se que os profissionais reconhecem a sua importância, todavia com o sentido de explorá-los para removê-los da população, dado que não é um saber científico32. 514

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Sugere-se que a diferença do achado entre as cidades seja decorrência do destaque que o Brasil possui frente à EPS, tendo o papel pioneiro na sistematização metodológica do autor Paulo Freire. Ressalta-se que, recentemente, devido a sua importância dentro do país, foi aprovada a Política Nacional de Educação Popular em Saúde, com o intuito de fortalecer o protagonismo popular no cuidado e na gestão do SUS4,33. A EPS oportuniza a construção/desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, sendo uma delas o desenvolvimento da postura de multiplicador na comunidade34. Nessa perspectiva, São Paulo novamente diferenciou-se pelo discurso: “É de uma certa forma eles serem multiplicadores também, então conseguir atuar não só no grupo, mas em casa, em eventos” (DSC-S10). Apesar de essa percepção não ter sido apontada no discurso dos entrevistados de Bogotá, os programas tú vales e muévete comunidad possuem, na metodologia, o fornecimento de materiais educativos para os participantes, como cartilhas, financiados pela Secretaria Distrital de Salud, com o objetivo que esses sejam multiplicadores na comunidade11. Uma revisão realizada por Wiggins28 apontou que a EPS visa às melhorias: PS, mudança de comportamento, conhecimento em saúde, transformações de saúde e segurança alimentar. Todavia, é um método longo, já que implica um processo contínuo de reflexão-transformação. Nesse ponto de vista, foi verificado em São Paulo: “Acho que a Educação Nutricional é uma coisa que vai entrando na cabeça e que tem o exercício de mudar os hábitos alimentares durante toda a vida, então é um período um pouquinho longitudinal dizendo [...]”. (DSC-S3)

Por ser um método longo e contínuo, uma consideração fundamental da prática de grupos é a duração e frequência de seus encontros, se permitem ou não o tempo hábil para esse alcance. Em São Paulo, os grupos analisados possuem encontros quinzenais e mensais, com duração de meia hora a duas horas, e de seis a um número indeterminado de encontros, sendo a maioria classificada como grupo aberto. Já os grupos de Bogotá se distinguem por apresentarem encontros semanais a mensais, com duração de uma a quatro horas, com um a dez encontros por grupo, e todos classificados como fechado. Observa-se que essa diferença é novamente consequência dos programas. Em Bogotá, a SDS orienta a efetivação do grupo em quatro momentos: articulação do programa com a população, reconhecimento das necessidades, realização da ação com o número de encontros preestabelecido e avaliação11. Já em São Paulo, não há determinação para a prática, cabendo novamente ao profissional decidir tais características. Ambos os achados são questionáveis na proposta da presente abordagem, dado que, em Bogotá, são poucos encontros para um processo educativo e, em São Paulo, os grupos abertos podem dificultar a aproximação entre os membros e, consequentemente, a construção da educação. Como? Quando? Os entrevistados de São Paulo e Bogotá colocaram a importância de como fazer a EN, diferenciando-se dos eixos já citados, que apontam a abordagem teórica da educação. Nessa direção, em Bogotá, a EN diferenciou-se por ser reconhecida como uma estratégia pedagógica: “Para mim são as estratégias pedagógicas para ensinar alimentação e nutrição saudável para a comunidade” (DSC-B4). Também surgiu como uma ferramenta para disparar mudanças nos hábitos alimentares: “[...] Essa é a parte da educação alimentar que tem um componente de gerar interesse, mas também uma motivação em sentimento” (DSC-B5). Ainda na cidade, a prática foi enfatizada como essência do processo educativo: “é educar a comunidade, em quê? Como? Quando? Da alimentação, mas não de uma forma teórica, mas sim bem prática” (DSC-B7). Enquanto São Paulo diferenciou-se pela percepção da EN como uma estratégia de prevenção de doenças: “[...] é uma grande ferramenta que a gente tem pra agir na prevenção das doenças” (DSC-S5). Retoma-se aqui um dos princípios da APS – Promoção da Saúde. Entretanto, conforme COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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apresentado por Chiesa et al.35, há uma dificuldade da operacionalização de ações promotoras nos serviços de saúde, referindo que um dos motivos é a falta de compreensão dos profissionais em relação ao conceito, reduzindo-o, muitas vezes, à prevenção de doenças, como encontrado nessa pesquisa. No campo, várias estratégias práticas podem ser utilizadas para favorecer a participação de todos os atores de um grupo. Nesse sentido, São Paulo trouxe apreensão sobre os materiais educativos: “[...] e tem as dificuldades que a gente acaba enfrentando, né, que não depende tanto da gente, mas eu acho que a gente consegue fazer a diferença sim, mesmo você não tendo aquele material do sonho, né, aquela pirâmide alimentar que você queria”. (DSC-S9)

Apesar de os discursos diferenciarem-se no conteúdo, foi observado que as percepções centramse na prática, que podem relacionar-se com o uso de recursos materiais e/ou equipamentos. Nos grupos descritos, verificou-se que, em São Paulo, os mais citados foram: vídeos, pirâmide alimentar, fotos ou figuras de alimentos, folhetos, embalagem de alimentos e slides. Já em Bogotá: cartaz, trem da alimentação, vídeos, slides, alimentos in natura, fotos e figuras de alimentos e cartilhas educativas dos programas. Ressalta-se a similaridade no uso de representações gráficas de recomendações de consumo alimentar, pirâmide alimentar e trem da alimentação, e a diferenciação de Bogotá pelo fornecimento de materiais educativos pela SDS, apontando um apoio institucional de recursos para o desenvolvimento dos grupos. A utilização dessas estratégias pode favorecer a ação, como verificado em experiências, com o uso de vídeos36 e folhetos37.

Considerações finais Foi possível verificar semelhanças e diferenças entre São Paulo e Bogotá em relação à teoria/ prática dos grupos de Educação Nutricional. Considera-se que os eixos temáticos apresentados são permeáveis, porém acredita-se que há preponderância de uma abordagem em relação à outra na ação educativa. Destaca-se a diferença na autonomia de trabalho dos entrevistados, sendo essa uma possível consequência das políticas públicas de saúde. Em São Paulo, estas permitem maior flexibilidade na escolha das características dos grupos e das abordagens; assim, como influenciadores, indicam-se a experiência e o conhecimento do profissional, que podem estar próximos da perspectiva da Promoção da Saúde, como a Educação Popular em Saúde encontrada, ou não, como outras abordagens históricas também verificadas. Já em Bogotá, apesar de as políticas públicas apontarem para um cuidado ampliado, os programas restringem a autonomia profissional, impossibilitando a articulação das necessidades sentidas e manifestadas no processo educativo do grupo. O estudo contrastou a dimensão teórica e seu impacto na prática de trabalho; e sugere-se que São Paulo se destacou em relação a Bogotá na dimensão teórica, devido ao reconhecimento do estímulo da autonomia e de multiplicador, apontando um avanço no enfrentamento da complexidade dos cuidados primários. Porém, devido aos achados da dimensão prática, questiona-se se a presença do reconhecimento dessas subjetividades garante novos modos de produzir saúde. Compreende-se a existência de múltiplas barreiras que os profissionais enfrentam, no cotidiano de trabalho, para romper a atual lógica da saúde. Entretanto, foi possível verificar que as duas cidades, dentro de cada contexto político de saúde, possuem potencialidades dentro das ações promotoras de saúde coletiva, associada ao saber popular, que necessitam ser valorizadas e fortalecidas institucionalmente. Pois, se acredita que, por meio de um respaldo político, econômico e de gestão, a ideologia do cuidado integral se dissemine para outros espaços, conquistando o seu real valor. Quanto aos grupos, observou-se ampla variedade das características, em ambas as localidades. Compreende-se que algumas encontradas podem favorecer a educação em grupo, como: encontros nos territórios, número de participantes, mediação compartilhada, grupos fechados e uso de materiais educativos. Além das características, recomenda-se explorar o objetivo do grupo e o papel dos atores envolvidos, pois a formulação e o planejamento destes itens podem direcionar o tipo de abordagem 516

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que será utilizada. O papel do profissional aqui sugerido é de mediar a aprendizagem dos participantes e, esses, por sua vez, de serem produtores de novas subjetividades. Conclui-se que as práticas e as percepções dos profissionais encontram-se em um momento de transição de uma abordagem tradicional (focada no conhecimento cientifico) para outra mais humanista de Promoção da Saúde. Entretanto, considera-se urgente a qualificação dos recursos humanos de ambas as cidades para atender às demandas atuais das necessidades e das políticas de saúde. Dado que os dois países reconhecem que a abordagem vai em direção à Educação Popular em Saúde, sugere-se a sua incorporação como um instrumento de formação profissional, pois esses, assim como os participantes dos grupos, também possuem suas singularidades de saúde e de vida que devem ser acolhidas e problematizadas.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Cervera DPP, Parreira BDM, Goulart BF. Educação em saúde: percepção dos enfermeiros da atenção básica em Uberaba (MG). Cienc Saude Colet. 2011; 17 Supl. 1:1547-54. 2. Organização Pan-Americana de Saúde. La Atención Primaria en Salud Renovada en el contexto mundial y regional: un enfoque renovado para transformar la práctica en salud [Internet]; 2007 [acesso 2012 Dez 9]. Disponível em: http://www.gestarsalud.com/cms/ files/aps.pdf 3. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. 3a ed. Brasília (DF): MS; 2010. 4. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio a Saúde da Família. Brasília (DF): MS; 2009. 5. Lei nº 100, de 23 de diciembre de 1993. Por la cual se crea el sistema de seguridad social integral y se dictan otras disposiciones. Bogotá (DC): Republica de Colômbia; 1993. 6. Neto JLF, Kind L. Promoção da Saúde: práticas grupais na estratégia saúde da família. São Paulo: Hucitec; 2011. 7. Furlan PG, Campos GWS. Os grupos na Atenção Básica à Saúde. In: Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Cadernos HumanizaSUS. Brasília (DF): MS; 2010. p. 105-16. 8. Di Cesare M. El perfil epidemiológico de América Latina y el Caribe: desafíos, limites y acciones [Internet]. Chile: Colección Documentos de proyectos; 2011 [acesso 2013 Dez 16]. Disponível em: http://www.eclac.org/publicaciones/xml/9/44309/lcw395.pdf 9. Cervato-Mancuso AM, Tonacio LV, Silva ER, Vieira VL. A atuação do nutricionista na Atenção Básica à Saúde em um grande centro urbano. Cienc Saude Colet. 2012; 17(2):3289-300. 10. Secretaria Distrital de Salud de Bogotá. Direccion de Saúde Pública. Plan de Intervenciones Colectivas. Bogotá (DC): SDS; 2012. 11. Secretaria Distrital de Salud de Bogotá. Âmbito Comunitário. Guia Operativa: fortalecimiento de organizaciones desde la integralidad de los programas Tú Vales, Muévete Comunidad. Bogotá (DC): SDS; 2011.

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Vincha KRR, Cárdenas AP, Cervato-Mancuso AM, Vieira VL. Grupos de educación nutricional en dos contextos de América Latina: São Paulo y Bogotá. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):507-20. Ese estudio comparó grupos de Educación Nutricional (EN) en la dimensión teórica y práctica, dentro de la Atención Primaria de la Salud, entre São Paulo y Bogotá. La encuesta se realizó en momentos: identificación de los profesionales; caracterización de los grupos educativos; identificación de las representaciones sociales sobre EN; comparación de la articulación entre teoría y práctica de los grupos por ciudad. Se identificaron, por medio de entrevista con 54 nutricionistas, 17 Ideas centrales, clasificadas en ejes temáticos, que se relacionaron con los grupos. Se destacó la importancia del empoderamiento de los participantes con semejanzas en el perfil de las acciones, pero con diferenciación en la autonomía de los mediadores. La teoría/práctica de los grupos está en transición pasando del abordaje tradicional para otro más humanista. No obstante, a una velocidad lenta en comparación con las políticas y necesidades de salud.

Palabras clave: Atención Primaria de la Salud. Educación en Salud. Educación alimentaria y nutricional. Grupos educativos. Recebido em 02/03/14. Aprovado em 28/04/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0804

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Perspectivas de segurança alimentar e nutricional no Quilombo de Tijuaçu, Brasil: a produção da agricultura familiar para a alimentação escolar Andréia Santos Carvalho(a) Denise Oliveira e Silva(b)

Carvalho AS, Oliveira e Silva D. Prospects of food and nutritional security in the Tijuaçu Quilombo, Brazil: family agricultural production for school meals. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):521-32. Hunger and food insecurity are problems that affec­ts thousands of people around the world. In Brazil, around ten million families do not have enough income to ensure food security. In traditional Quilombo communities, there is a serious situation of food insecurity, relating to the constant threats to their power over their territory and precarious access to public policies. Using an ethnographic approach and its instruments, the study analyzed the symbolic and social perceptions of the Quilombo inhabitants regarding agricultural food provision to the Brazilian School Meals Program, to promote food and nutritional security. An ethnographic approach was used, with its instruments. The results showed that this community understands and appreciates “natural” food from the earth as a source of survival and local development. Even with the difficulties, the Brazilian School Meals Program will enable income generation for farming families and healthy school meals for students.

Keywords: Food. School meals. Food security. Sustainable agriculture. African continental ancestry group.

A fome e a insegurança alimentar são problemas que atingem milhares de pessoas no mundo. No Brasil, cerca de dez milhões de famílias não possuem renda suficiente para garantir a segurança alimentar. Nas comunidades tradicionais quilombolas constata-se uma grave situação de insegurança alimentar, relacionada à constante ameaça ao domínio dos seus territórios e ao precário acesso às políticas públicas. O estudo analisou as percepções simbólicas e sociais dos quilombolas, na oferta de alimentos agrícolas, ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, para promoção de segurança alimentar e nutricional. Utilizou-se a abordagem etnográfica e seus instrumentos. Os resultados mostram que a comunidade concebe e valoriza o alimento “natural” da terra como fonte de sobrevivência e desenvolvimento local. Mesmo com as dificuldades, o Programa Nacional de Alimentação Escolar possibilitará a geração de renda aos agricultores familiares e uma Alimentação Escolar saudável aos estudantes.

Palavras-chave: Alimentação. Alimentação escolar. Segurança alimentar. Agricultura sustentável. Grupo com ancestrais do continente africano.

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(a) Programa de Doutorado em Saúde Pública, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Av. Professor Moraes Rego, s/n, Cidade Universitária, Campus UFPE. Recife, PE, Brasil. 50670-420. nutdeia@yahoo.com.br (b) Programa Alimentação, Nutrição e Cultura, Diretoria Regional de Brasília, Fiocruz. Brasília, DF, Brasil. deniluz@fiocruz.br

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Introdução Quando se discute Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), fala-se de condições de vida e nutricionais adequadas, considerando as suas múltiplas dimensões. No entanto, o problema da fome e da insegurança alimentar tem uma dimensão global e acomete bilhões de pessoas no mundo. A pobreza é considerada a maior causa da Insegurança Alimentar e Nutricional (INSAN), por dificultar o acesso aos alimentos e aos meios de produção, e impedir o cumprimento de um direito básico, que é a alimentação1. No Brasil, cerca de dez milhões de famílias não possuem renda suficiente para garantir sua segurança alimentar2. Além disso, o mapa da fome brasileiro reflete as desigualdades econômicas entre as diversas regiões, sendo o Nordeste e o Norte as que concentram a maior proporção de pessoas com dificuldades de acesso à alimentação3. Nas comunidades tradicionais quilombolas, que são núcleos populacionais étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição com trajetória histórica própria, dotadas de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, observam-se problemas crônicos de INSAN, associados: à constante ameaça ao domínio e preservação dos seus territórios, ao precário acesso às políticas públicas, à exclusão social e aos atentados ao direito à vida e à integridade física, psicológica e moral4. Os quilombolas atribuem como fatores causais desta situação a falta de posse de terra e de renda monetária, a marginalidade e o analfabetismo5. No Brasil, temos 1,17 milhões de quilombolas com 1.711 comunidades certificadas pela Fundação Palmares, e na Bahia existem mais de quinhentas comunidades quilombolas, das quais 381 já foram certificadas6. Com intuito de reduzir as diferenças sociais e enfrentar o problema da fome, que é a principal expressão da INSAN, e com a finalidade de articular programas e projetos que modificassem as condições de nutrição e assegurassem o direito humano à alimentação adequada a toda população brasileira, sobretudo das comunidades tradicionais, foram implementadas várias políticas sociais no Brasil7. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é o maior e mais antigo programa de alimentação e nutrição do país, e tem por objetivo atender as necessidades nutricionais dos alunos, mediante a oferta de suplementação alimentar, durante sua permanência em sala de aula, por meio de transferência direta de recursos federais aos estados, municípios e Distrito Federal8. O PNAE beneficiou 43,1 milhões de estudantes da Educação Básica em 20129 e 208.409 alunos quilombolas em 201110. Quanto às comunidades tradicionais, o programa apresenta especificidades, como: maior valor per capita do recurso repassado (R$ 0,60 para quilombolas e R$ 0,30 demais estudantes), cardápio que atinja 30% das necessidades nutricionais diárias, superior em 10% ao estipulado aos demais estudantes11, e a resolução 38/2009 de FNDE, que estabelece que, no mínimo, 30% deste recurso sejam utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diversificados, diretamente da Agricultura Familiar, priorizando as comunidades tradicionais8. Essa aquisição é possível por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que possibilita a compra direta, sem a necessidade de licitação, além de promover e ampliar a inserção socioeconômica dos agricultores familiares12. Dessa forma, o PNAE é uma estratégia capaz de contribuir para a redução da INSAN dessas comunidades. Este estudo procurou analisar as percepções simbólicas e sociais relacionadas à oferta de alimentos de produção da agricultura familiar, ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por meio da implantação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) como estratégia de promoção da segurança alimentar e nutricional, na comunidade quilombola de Tijuaçu, Senhor do Bonfim, Bahia, Brasil.

Metodologia Neste trabalho utilizou-se a abordagem etnográfica e as técnicas da observação participante, dos diários de campo e das entrevistas em profundidade, que conduzem a uma descrição densa dos fenômenos no campo do social, do simbólico e da cultura, e possibilita ao investigador compreender as relações entre fenômenos específicos e uma determinada visão de mundo13. 522

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Praticar a etnografia é descrever densamente, retirar através de um peneiramento acurado, grandes interpretações de fatos extremamente pequenos, mas fortemente entrelaçados e apoiados no papel da cultura, na constituição coletiva e individual.14 (p. 21)

A comunidade Quilombola de Tijuaçu A comunidade remanescente de quilombo Tijuaçu localiza-se a 23 km da cidade de Senhor do Bonfim – Bahia, sede do município. Situa-se na área do Polígono das Secas, sem a presença de rios ou barragens de grande porte, por isso, apresenta uma grande deficiência de água. O clima predominante é o semiárido e seco, com predomínio de chuvas entre fevereiro e abril15. A comunidade negra de Tijuaçu é formada pela vila e pelos povoados: Quebra Facão, Alto Bonito, Olaria, Água Branca, Lajinha, Macaco 01, Macaco 02, Anacleto, Pato, Conceição, Barreira, Fazenda Canassista e Queimada Grande. A Comunidade faz divisa com mais dois municípios: Filadélfia e Antônio Gonçalves. Moram aí cerca de cinco mil pessoas, e as famílias negras de destaque são: Damasceno, Rodrigues, Fagundes e da Silva. Tijuaçu é um nome indígena, que significa “Lagarto Grande”, comumente chamado, na região, de “teiú”, que chega a ter dois metros de comprimento. Durante muito tempo, antes da oficialização do nome, o local foi chamado de “Lagarto”15. Para alguns, Tijuaçu surgiu após a abolição da escravatura, na primeira metade do século XIX, quando as famílias proprietárias de negros, que trabalhavam nas minas de ouro de Jacobina, lhes deram tarefas de terra. No entanto, para a comunidade, a origem do Quilombo deu-se quando três mulheres escravas fugiram de uma senzala do litoral baiano e chegaram ao local, dando origem a toda a história desse povo. Tijuaçu foi reconhecido como remanescente de quilombo em 1998 e fundou, em 2001, sua Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e adjacências, com intuito de fortalecer a autoestima do povo negro e ajudá-lo a defender-se de todo tipo de discriminação. Neste lugar, vivem alguns descendentes de portugueses, da família Muricy e Lola, que foram donos de senzalas na região. Hoje, em Tijuaçu, há uma economia enfraquecida, predominando a pequena produção nas roças, com cultivo do milho, da palma e do extrativismo do ouricuri. Alguns criam animais de pequeno porte, em pequena quantidade. Outros vendem milho assado e, sobretudo, o acarajé em Senhor do Bonfim. A prestação de serviços e o comércio também movimentam a economia local. Os assalariados são aqueles que trabalham como empregadas domésticas em Senhor do Bonfim. O comércio dentro de Tijuaçu limita-se aos descendentes de portugueses. O acesso a Tijuaçu é muito fácil. Ao chegar à localidade, encontra-se uma estrada de barro, com casas de alvenaria, bem diante da rodovia. Mais adiante é possível ver as primeiras ruas calçadas com paralelepípedo. Das 13 ruas, a principal é a do Comércio. Uma rua calçada, onde localiza-se a Igreja de São Benedito e acontecem todos os eventos do Distrito. Possui uma praça bastante espaçosa, com o chão formado de pequenas pedras vermelhas e brancas, bancos de cimento com as cores da diáspora africana e algumas árvores resistentes à seca. Serve de palco para apresentações culturais e religiosas e para pequena feira livre em todas as manhãs de segunda-feira. Quanto à Educação, a comunidade possui duas escolas que oferecem apenas educação infantil e Ensino Fundamental. É bastante forte a educação pela oralidade, na qual cultivam-se antigos costumes e geram-se novos hábitos. Os Tijuaenses sempre foram muito religiosos. Na comunidade existem duas igrejas católicas, cinco igrejas evangélicas e um terreiro de Candomblé. As principais comemorações religiosas são: Semana Santa, festas dos Santos Juninos e São Benedito. A principal manifestação cultural é o Samba de Lata, que começou nos tempos de seca, quando as pessoas iam buscar água nos tanques dos fazendeiros brancos, com letras retratando a vida daquele momento.

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Os Quilombolas de Tijuaçu A família é sinônimo de união e respeito para Tijuaçu. Geralmente, o núcleo familiar é composto pelos pais, filhos, e, às vezes, pelos netos. O comando da família é responsabilidade tanto da mulher quanto do homem. São pessoas pertencentes a 4ª geração de negros fugitivos da escravidão, no início do século XIX, que foram em busca de um local para viver em liberdade, resgatando suas crenças e tradições. A maioria é de adultos, jovens e crianças, com uma parcela significativa de idosos que alcançam seus noventa anos. Muito cedo, o sol nem ameaça aparecer e os adultos e idosos já estão acordados para buscar a matéria-prima do seu trabalho. Madrugam para preparar o acarajé, assar o milho e montar suas barracas. Vão cedo às roças para plantar ou colher alimentos, cuidar dos animais, buscar água, ou trabalhar como domésticas em Senhor do Bonfim. Outros vão para a consulta agendada na Unidade Básica de Saúde do Distrito. As crianças e os jovens vão ao colégio, mas observa-se muitos deles nos bares jogando sinuca e/ou consumindo bebida alcoólica.

Primeiras aproximações O trabalho de campo iniciou com o envio de uma carta à Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu, com descrição dos objetivos da pesquisa e a forma de abordagem para sua execução. Em seguida, realizou-se uma reunião com a comunidade para apresentar o projeto e convidá-la a participar do estudo. A abordagem etnográfica da pesquisa foi realizada entre dezembro de 2009 e outubro de 2010. A observação participante, por ser um procedimento metodológico que se caracteriza por um período de interações sociais intensas entre o pesquisador e os sujeitos estudados, no meio destes, foi estabelecida como caminho de aproximação desta pesquisa16. Foi uma das técnicas utilizadas devido à capacidade de captar uma variedade de situações às quais não se teria acesso somente por meio das perguntas realizadas. A observação deu-se em diferentes momentos: nas reuniões da Associação, nas manifestações religiosas, na feirinha local, na escola e no dia-a-dia da comunidade. Como nutricionista do PNAE municipal, sempre fazia visitas técnicas às escolas e isso facilitou a minha relação com a comunidade. Tinha consciência da necessidade de haver empatia, confiança e respeito entre o pesquisador e os pesquisados, por isso, durante os 54 períodos de observação e 177 horas que estive na comunidade pesquisando, participei de eventos festivos como: casamento, a comemoração da Semana Santa, além de ser voluntária no “Projeto Quilombonito”(c). A participação nele possibilitou-me uma maior familiaridade e interação com a comunidade, demonstrando conhecimento técnico, experiência e capacidade para intervir, e que não estava lá apenas para observar. Mesmo sendo conhecida pelos estudantes, fui chamada de “negra branca” por eles. Dessa forma, expressaram que me reconheciam como uma negra não pertencente àquela comunidade, por isso sempre me olhavam e tratavam como visitante. Aos poucos, essa dificuldade foi superada, à medida que fui adquirindo a confiança dos mesmos, pela presença mais frequente e maior interação com eles. Os informantes-chave foram identificados, inicialmente, pelo contato com lideranças políticas, culturais e das escolas em Tijuaçu. Como afirma Minayo17, os sujeitos sociais selecionados foram aqueles que detinham os atributos que se pretendia conhecer e que tivessem alguma relação com a comunidade, ou seja, que fossem quilombolas, produtores rurais, pertencentes à comunidade escolar ou 524

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(c) Projeto Quilombonito é desenvolvido pela Associação de pequenos produtores rurais e artesãs quilombolas da fazenda Alto Bonito, em Tijuaçu, no qual os produtores rurais plantam e beneficiam a mandioca e os produtos são distribuídos para as escolas e as famílias carentes da comunidade.


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com alguma relação direta com eles. Por isso, considerando que a fala tem significado direto, literal e explícito, deu-se voz aos: produtores rurais, membros do núcleo familiar, chefes de família de ambos os sexos, jovens e estudantes quilombolas, merendeiras e lideranças comunitárias de Tijuaçu, e um representante do poder público local (Secretário de Agricultura), totalizando 14 pessoas entrevistadas. As entrevistas em profundidade foram previamente agendadas e com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) como forma de garantir a segurança, integridade física e idoneidade dos envolvidos, bem como pelo sigilo das informações de uso exclusivo para pesquisa. Utilizou-se um roteiro semiestruturado, contendo questões norteadoras relacionadas às questões investigadas, apenas para atuar como um foco iniciador do diálogo. No entanto, o entrevistado tinha total liberdade para discorrer sobre o que achasse conveniente, com respostas livres e espontâneas, sem sequência predeterminada e parâmetros de respostas. Assim, a profundidade da entrevista seria alcançada, de acordo com os aspectos significativos identificados pelo entrevistador, utilizando como referência: o conhecimento, a percepção, a linguagem, a realidade e a experiência do entrevistado18. As entrevistas, em sua maioria, aconteceram na Vila de Tijuaçu ou em um dos povoados, sempre na casa do entrevistado, para proporcionar maior conforto, garantir a privacidade e poder se apreender o máximo de significados. Para eles, era preciso um momento exclusivo para depor, sem pressa ou compromisso de qualquer natureza. Apenas os estudantes tiveram suas entrevistas realizadas na escola e o representante do poder público em seu local de trabalho. As entrevistas duravam, em média, uma hora, sem distinção entre os entrevistados. Foram utilizados a gravação em mídia digital e o diário de campo para registrar os acontecimentos antes, durante e após a atividade, protegendo-se a fidedignidade delas e oferecendo maior segurança à fonte. O diário constou de um pequeno bloco de anotações de uso pessoal, no qual anotava, em ordem cronológica, todos os acontecimentos dos encontros, as observações, as minhas percepções e emoções. Procurava registrá-las logo após o término do evento, anotando dados como: data, local, tempo de duração do evento e outros registros adicionais, referentes a lembranças posteriores que mereciam ser pontuadas. A gravação foi um procedimento útil para o registro literal e integral dos dados obtidos na comunicação verbal, evitando perdas de informação e minimizando distorções. Ele só foi utilizado com a concordância prévia dos participantes, conforme consta no TCLE. Após cada encontro, houve a transcrição imediata, cuidadosa e fidedigna dos diálogos em meio digital, a fim de aproveitar melhor o conteúdo, pois o ambiente, as respostas e a contextualização estavam mais vivos na memória e, assim, as inferências e as análises puderam ser imediatas. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas pelo mesmo pesquisador. Para delimitar a suficiência dos dados e encerrar essa etapa, foi utilizado o ponto de saturação, que designa o momento em que o acréscimo de dados e informações em uma pesquisa não altera a compreensão do fenômeno estudado17. Após a leitura exaustiva de todas as entrevistas, das anotações da observação participante e dos diários de campo, foram realizadas as três fases de análise: (a) identificação das expressões-chave (ECH) de cada discurso; (b) formulação das ideias centrais (IC); (c) descrição dos significados. Segundo Lefèvre e Lefèvre19, as ECH são transcrições literais do discurso, que devem ser destacadas pelo pesquisador e que revelam a essência do depoimento. Com a descrição das ECH, são formuladas as ideias centrais (IC), que, segundo o mesmo autor, é a expressão que revela e descreve, de maneira mais sintética, precisa e fidedigna possível, o sentido de cada um dos discursos analisados. No entanto, a IC não é uma interpretação, mas uma descrição do sentido de um depoimento. Por fim, foram estabelecidas as categorias, que são as expressões adequadas para representar os depoimentos. A submersão nos conteúdos possibilitou o aprofundamento e a compreensão analítica, que estimulou a identificação dos significados/categorias de cada fala, a fim de aproveitar a riqueza dos dados. Os significados tornam os depoimentos e demais discursos equivalentes, porque expressam a mesma ideia. Minayo17 afirma que, nessa fase, é preciso compreender que os dados não existem por si só, que são construídos a partir do questionamento que fazemos sobre eles, com base nos fundamentos teóricos. 525


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Procurando uma visão mais realista do contexto estudado, foi utilizada a perspectiva de análise hermenêutica-dialética, a partir da síntese elaborada por Minayo17, que é a mais capaz de dar conta de uma interpretação aproximada da realidade. Essa metodologia coloca a fala em seu contexto, para entendê-la a partir do seu interior, e no campo da especificidade histórica e totalizante, em que é produzida. Com a hermenêutica, pudemos trabalhar a compreensão como categoria metodológica mais potente e os significados como balizas do pensamento. Já com a dialética, fizemos a articulação dessas ideias, utilizando a crítica e a oposição como transformadoras da realidade social. Os aspectos éticos foram contemplados em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 196/96, para pesquisa em seres humanos20. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães. Para assegurar o anonimato dos entrevistados, utilizou-se apenas o termo “quilombola”, acompanhado do gênero e da idade, para identificar os diálogos e, assim, manter preservada a identidade dos mesmos.

Resultados e discussão Durante o período de estudo, por meio da observação do cotidiano dos quilombolas, das suas falas e gestos, chegamos a um conhecimento mais próximo possível da sua realidade, por intermédio das representações que a pesquisa qualitativa nos possibilita, apreendendo a dimensão histórica e prática com a qual estas se elaboram e, consequentemente, o papel do PNAE na promoção da segurança alimentar.

Aspectos simbólicos sociais da produção agrícola: o desencantamento da roça Para a comunidade quilombola de Tijuaçu, a terra é sinônimo de sobrevivência, e sem ela está colocada em risco qualquer possibilidade de desenvolvimento, pois é dela que provém o alimento fonte de sua subsistência. Partindo deste princípio, fica comprometida a promoção da segurança alimentar e nutricional no seu contexto mais amplo. A agricultura sempre foi uma atividade desenvolvida pelos negros desde o período colonial, época da escravidão, e representava o seu modo de sustentabilidade. Na contemporaneidade, os descendentes de escravos, os quilombolas, procuram manter forte e valorizar suas tradições culturais, religiosas e o cuidado com a terra6. Marginalizados, sobrevivem da extração vegetal e animal de baixa intensidade, que tem por finalidade a subsistência ou comercialização para obter renda. “O potencial de Tijuaçu na agricultura é muito forte, mas já foi mais, mas até hoje continua forte, porque é um pessoal que a fonte de sobrevivência dele é a agricultura [...]. Tijuaçu já teve realmente período de safra para abastecer Bonfim [...]”, afirma o quilombola de 26 anos. No entanto, segundo os relatos nas entrevistas, as transformações ocorridas no país resultaram em mudanças no ritmo interno dessa comunidade. Subordinados às regras impostas pelo capital no campo, estes pequenos agricultores encontram-se desestimulados a plantar, embora confiantes que, superando as dificuldades, são capazes de produzir como outrora, pois a “roça é uma mãe, se você tiver fome e for na roça, você traz comida pra dentro de casa”. O universo da roça não é apenas uma identificação geográfica, mas uma produção política e cultural, em que seus moradores estabelecem, a partir da relação espaço-tempo, uma lógica que mistura sentimentos, imaginação, fatos naturais que se sobrepõem à lógica cartesiana racionalista na delimitação de limites e fronteiras, forma de ser e de estar como sujeitos sociais. Mudanças de hábitos, na forma de se relacionar com a natureza, com os outros e com o mundo, vêm ocorrendo cotidianamente na roça, mas sem favorecer uma ruptura no tempo e no espaço21. A comunidade reconhece que possuem condições de sobreviver do que é produzido na roça, porém, deixam claro que as limitações precisam ser superadas, mas que sozinhos eles não conseguiriam resolvê-las e, por isso, clamam por ajuda.

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A regularização das terras é apontada, pelos quilombolas, como o maior impasse para a produção agrícola, visto que é ela que propicia as condições de permanência, de referências simbólicas importantes, enfim, constitui um suporte para a manutenção do seu modo de vida, como afirma esse quilombola de 33 anos: “O maior problema que a gente tem hoje é justamente a falta de terra para trabalhar. A gente não tem terra para trabalhar, enfim a gente não tem nada, porque é da terra que tira nosso próprio sustento e ela que da partida para todo processo de desenvolvimento de uma sociedade”.

Os problemas das comunidades tradicionais quilombolas são inúmeros e são reconhecidos pela sociedade brasileira, que, por muitas vezes, adotou soluções paliativas sem impacto. Desde 1988, o Estado Brasileiro tem produzido políticas públicas buscando ajustar e corrigir injustiças, bem como garantir direitos mediante a promulgação de leis específicas e programas de governo, que não foram suficientes, fato que se verifica pelo grande número de comunidades que ainda não possuem a titulação de suas terras – cerca de vinte mil famílias22. Esse quadro demonstra a falta de vontade política e de prioridade dada aos direitos quilombolas, sobretudo reconhecimento e titulação dos seus territórios. Os pouquíssimos exemplos de titulações concluídas devem-se, em sua quase totalidade: à luta persistente do movimento quilombola, de organização parceiras e, também, a iniciativas de órgãos estaduais22. A titulação dessas terras é reconhecida como condição indispensável para a manutenção dos seus territórios e para a efetivação de seus direitos fundamentais. A terra, o terreiro, não significam apenas uma dimensão física, mas, antes de tudo, são um espaço comum, ancestral, de todos que têm os registros da história, da experiência pessoal e coletiva do seu povo23. Outras questões relevantes existem, como: as mudanças climáticas, a falta de implementos agrícolas, alto custo da produção e baixo preço de venda dos produtos atribuído pelos atravessadores, que são entraves potenciais tanto quanto a não-titulação das terras. Entretanto, o baixo preço de venda dos produtos agrícolas quilombolas pode ser um fator de proteção, na medida em que evita que passem fome, pois se o preço de comercialização é alto, vendem tudo pensando apenas no lucro e, por vezes, são obrigados a comprar os mesmos produtos com o valor reajustado, contribuindo para que a subsistência da família fique comprometida, como deixa claro uma moradora de 59 anos: “A gente plantava para consumir e pra comprar alguma coisinha [...] hoje em dia não dá, porque o feijão tá barato demais e umas horas é até bom o feijão ficar barato, que pelo menos todo mundo fica com seu feijãozinho, não vende tudo. Quando é caro, eles vendem tudo e fica passando fome, não é não? Ainda, acabam comprando esse mesmo feijão por três, quatro reais...”.

Diante de tantos problemas enfrentados, os agricultores familiares estão analisando muito, antes de fazerem o plantio. Essa situação acaba alimentando o descrédito do homem do campo com a terra, e esse sentimento passa a ser vivenciado por toda a família, sobretudo, os jovens, que seriam a garantia de perpetuação das tradições agrícolas. “Meus filhos vão, mas não vão de bom grado. Não é um trabalho que eles gostam. A turma nova de hoje não quer saber de roça não. Tem que estudar pra procurar uma coisa melhor, um emprego melhor [...].”, comenta outra quilombola (57 anos). Evidencia-se, nas falas e no comportamento dos jovens Tijuaenses, o desestímulo em trabalhar na roça, por não verem, nela, a valorização que desejam e a obtenção de renda de que necessitam. Os jovens estudam, sonhando em ter um trabalho bom, uma vida boa. Para um representante do governo local, essa “Era” de globalização, de tecnologia da informação gera um desencantamento da juventude pela roça, criando a ilusão de que as oportunidades e as condições de vida fora da comunidade são fáceis, não se atentando para a necessidade de uma qualificação diferenciada, para encarar uma sociedade que ainda mascara o preconceito e a discriminação. Afirma que essa situação pode ser justificada pelo modelo de ensino genérico, sem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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muita aplicabilidade na vida prática. Por isso, sugere que o ensino deve ser feito em fases, levando em consideração a contextualização na qual está inserida cada comunidade. A urgência de medidas reparatórias a favor da população negra e dos pequenos agricultores é insofismável, assim como a necessidade de esclarecer, às comunidades tradicionais, sobre a importância da transmissão oral, típica das sociedades africanas, a qual deve existir em concomitância com o ensino formal, para que os mesmos façam a integração entre os saberes, a teoria e a prática. Nesse sentido, o ensino formal deve ser direcionado para este fim. Com isso, evitar-se-á a ilusão de que a escola formal possa ser um elemento desarticulador de tradições, um empecilho para manutenção da tradição agrícola, como relata essa quilombola de 93 anos: “Depois que o Lula botou essa lição, só é ruim [pausa]. O menino não trabalha, é só fazendo arte quando sai da escola, de todo jeito [...]. Antes, cedo o pai levava o filho pra roça e hoje tem que ir pra escola”.

Uma relação desconhecida: PNAE e PAA O PNAE é um programa que foi criado com intuito de complementar a alimentação diária de crianças e jovens em idade escolar, mas, atualmente, assumiu um caráter suplementar, diante da quantidade de estudantes que fazem, dela, a sua única ou principal refeição do dia24. É considerado de extrema importância, especialmente no povoado de Alto Bonito, onde começou o quilombo e a área onde as pessoas mais carentes da comunidade residem. No povoado de Alto Bonito, as pessoas costumam fazer apenas uma refeição por dia, geralmente à noite, relata uma professora quilombola de 22 anos. Na escola, a alimentação “doce”, como o mingau de milho e o mungunzá, é rejeitada pelas crianças, pois o organismo não aceita bem, mas quando essa alimentação é “salgada”, um feijão tropeiro, uma sopa, eles “endoidam”. A salgada aqui representa o alimento energético, que provoca saciedade, afasta a sensação incômoda da fome e mantém o indivíduo hígido, com energia e disposição, coisa que o alimento doce não é capaz de fazer. Apenas é capaz de afastar, momentaneamente, a sensação de fome, pois não confere a plenitude gástrica. Uma mãe declara que se sente feliz com a alimentação escolar, pois, às vezes, não tem em casa o que oferecer aos seus filhos, mas tem a certeza de que, na escola, encontrarão o que comer. A alimentação é um poderoso símbolo de prestígio social e riqueza que favorece a identidade social de classe. Isso demonstra a necessidade de se repensarem algumas práticas, no cotidiano escolar, relacionadas à Alimentação Escolar, em especial, em comunidades tradicionais25. O caráter dinâmico da sociedade moderna provoca transformações no modo de vida dos sujeitos, mesmo nos mais recônditos dos lugares. A adoção de novos hábitos alimentares é imposta pela mídia ao cotidiano das pessoas, como a expressão de transformações sociais e culturais impostas pela sociedade industrial moderna26. Essas influências desencadeiam posicionamentos distintos: muitas vezes, há o apego às raízes, tradições, como forma de não perder o total reconhecimento de si mesmo; outros lutam por fazer e ser parte desse novo nicho social, assimilando seus paradigmas, valores, em um movimento de negação de sua identidade de origem; enfim, outros, sem perder o vínculo com as suas tradições, mantêm-se abertos para o espaço de negociação para além dos limites21. Para Tijuaçu, a alimentação escolar é uma possibilidade de perpetuação cultural, pois acredita ser importante a inserção de preparações e alimentos típicos da sua cultura, como o aipim, o milho, o vatapá, estando, assim, em consonância com os princípios do PNAE, no que se refere ao respeito aos hábitos alimentares saudáveis, a cultura, as tradições e a preferência alimentar local8. O PNAE é visto como uma estratégia capaz de reduzir a INSAN, à medida que ele não se limita apenas a atender a clientela que está inserida na escola, mas pensa na condição de sobrevivência das famílias desses estudantes, que, às vezes, nem essa refeição têm garantida. Em relação às comunidades tradicionais, traz mais algumas especificidades, ou seja, a forma que o Governo encontrou para “quitar” sua dívida histórica com esses povos e cumprir o princípio da equidade. “Era bom demais se tivesse um programa que garantisse a compra desses alimentos sem atravessadores e com preço bom. Até eu ia trabalhar desse jeito” (quilombola de 42 anos). O PAA é um instrumento de política pública que contribui para o desenvolvimento econômico local, por promover a inclusão social no campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. 528

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O Programa adquire os alimentos dos agricultores sem a necessidade de licitação, pagando preços bem melhores aos realizados nos mercados regionais. O agricultor planta já com a garantia de que seu produto será comprado pela Companhia Nacional de Abastecimento - Conab. Além disso, o PAA destina os alimentos adquiridos às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, atendidas por programas sociais locais, e demais cidadãos em situação de risco alimentar2. Para Tijuaçu, o PAA é algo pouco conhecido. Isso se deve, em parte, à ausência de uma sensibilização dos responsáveis pela implementação e na própria cultura dos órgãos envolvidos, que estão tradicionalmente impregnados pelo produtivismo, no qual cabe pouca ou nenhuma importância à questão da segurança alimentar e ao tratamento especial que possa ser dispensado a produtores com precário controle sobre meios de produção23. Esse desconhecimento pode estar associado ao fato de a maioria desses agricultores não estarem inseridos ou não acessarem o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF. Com o PAA, os quilombolas disseram que se sentiriam estimulados a plantar, pois os riscos da atividade produtiva estariam minimizados, teriam a garantia de renda para complementar as suas necessidades, amenizando, assim, o problema da INSAN. Balsadi12 acrescenta que o PAA ainda colabora para a exploração mais racional do espaço rural e é um incentivo à agrobiodiversidade. Entretanto, na formatação do PAA, há algumas exigências que precisam ser reavaliadas, e verificado até que ponto elas são indicadas como limitadoras ou facilitadoras da participação de muitos agricultores familiares no Programa, como a exigência de cooperativas e a falta de apoio técnico, que acabam inibindo a adesão do agricultor. Pois isso não pode constituir-se em um elemento de exclusão dos agricultores, já que são os mais frágeis e os que possuem maiores dificuldades nas relações com o mercado. No caso específico da comunidade de Tijuaçu, mesmo com todos os obstáculos, produzir para a Alimentação Escolar é concebido como uma estratégia capaz de melhorar seu futuro, gerando renda, aumentando sua autoestima, diminuindo o êxodo rural, preservando a cultura alimentar regional e promovendo saúde, como afirma a quilombola de 42 anos: “Acho bom o que planta ir pra escola, porque já vai dar uma renda pra gente. [...] já faz com aquele interesse, indo colher pra aquele futuro”. Opinião esta, ratificada por uma quilombola de cinquenta anos que diz: “[...] Com a compra pra alimentação escolar tem uma renda muito boa na sua família e poderia mudar a história da comunidade financeiramente e poderia também mudar a história da saúde da comunidade”. Vale ressaltar que os tijuaenses têm preocupação com os alimentos que vêm de “fora” da comunidade, pois fogem do seu olhar, do seu cuidado. O alimento de “fora” não é considerado natural, pois o homem engajado no modo de produção capitalista busca alternativas tecnológicas que favorecem uma produção com menor custo/benefício, visando, sempre, uma margem de lucro assustadora, sem mesmo se questionar sobre as consequências desse desenvolvimento tanto para a natureza como para a própria saúde humana27. O alimento que não provém do seu ambiente é, então, condenado, pois os tijuaensens prezam uma agricultura orgânica, natural, abominando a produção, nos latifúndios, da agricultura patronal, que usa grande quantidade de agrotóxicos e que trazem imensos impactos ambientais e à saúde. Observemos a fala de um quilombola (42 anos): “A gente está adoecendo porque esses alimentos estão doentes. Na época de minha mãe não tinha essas doenças que tem hoje. [...] É porque essas coisas que vem de lá de fora (da cidade, alimentos industrializados), de regração, tem remédio (agrotóxicos). Agora a nossa (alimentação) é saudável”.

A indústria alimentar transforma as matérias-primas perecíveis em produtos industriais não perecíveis por meio da utilização de insumos físico-químicos27, colocando, para o consumo, um alimento que teve sua composição natural modificada, e, por isso, são desconhecidas as implicações que essas “comidas da cidade” podem trazer. Para os quilombolas, esse tipo de comida é responsável pelas doenças da modernidade. Já a comida que cresce ali na terra, é sinônimo de saúde e prosperidade. Existe a associação entre o caseiro, o familiar, como sendo mais saudável e natural. Enfim, é difícil estabelecer uma definição exata do que seja um alimento natural, pois a separação entre ser ou não industrializado ou ter a adição de aditivos químicos não é suficiente; mas, para os COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Tijuaenses, o “natural” representa a valorização do campo, o trabalho do pequeno agricultor, que tem o cuidado com o alimento da terra, que garantirá sua sobrevivência. O alimento que é, antes de tudo, o reconhecimento da sua identidade.

Considerações finais Os Tijuaenses concebem a SAN como algo inerente a sua identidade quilombola, que resgata seus valores culturais, religiosos e sua alimentação, à base do alimento tradicional, “natural”, proveniente da sua terra, dos seus cuidados, e que, além de tudo, é capaz de fornecer renda e saúde. O PNAE, quando contempla o PAA, é reconhecido pelo quilombo como uma ação afirmativa capaz de promover a SAN das crianças da escola e de seus familiares. Os primeiros por meio de uma alimentação mais saudável, rica em alimentos “naturais”, produzidos na terra. Para a família, essa SAN é garantida por intermédio da geração de emprego e renda, que lhes proporcionam desenvolvimento e inserção social. Entretanto, ainda é necessária a superação dos principais obstáculos por meio de ações efetivas para enfrentar o problema da exclusão social do negro no Brasil, com a realização de novas pesquisas que possam compreender as necessidades, as representações sociais, os valores culturais e simbólicos, entre outros significados dessas comunidades tradicionais.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de elaboração do manuscrito. Referências 1. Food and Agriculture Organization. Declaração de Roma sobre a segurança alimentar mundial e plano de ação da cimeira mundial da alimentação. Italy: World Food Summit; 1996 [acesso 2010 Set 15]. Disponível em: http://www.fao.org/docrep/003/w3613p/ w3613p00.htm 2. Silva LIL. Projeto fome zero: uma política de segurança alimentar para o Brasil. In: Silva JG, Grossi MED, França, CG, organizadores. Fome zero: a experiência brasileira. Brasília (DF): MDA; 2010. p. 11-3. 3. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo agropecuário: resultados preliminares. Rio de Janeiro: IBGE; 2006. 4. Coimbra Júnior CEA, Santos RV. Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):125-32. 5. Silva DO, Guerrero AFH, Guerrero CH, Toledo LM. A rede de causalidade da insegurança alimentar e nutricional em comunidade quilombola com a construção da rodovia BR 163, Pará, Brasil. Rev Nutr. 2008; 21 Supl. 1:83s-97. 6. Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Quilombolas do Brasil. Brasília (DF): MinC; 2013 [acesso 2014 Mar 6]. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/2013/10/ representacao-da-fcp-minc-na-bahia 530

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Carvalho AS, Oliveira e Silva D. Perspectivas de seguridad alimentaria y nutricional en el Quilombo de Tijuaçu, Brasil: la producción de la agricultura familiar para la alimentación escolar. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):521-32. El hambre y la inseguridad alimentaria son problemas de millares de personas en el mundo. En Brasil, casi diez millones de familias no tienen renta suficiente para garantizar la seguridad alimentaria. En las comunidades tradicionales quilombolas, se constata una grave situación de inseguridad alimentaria, relacionada a la constante amenaza al dominio de sus territorios y al precario acceso a las políticas públicas. El estudio analizó las percepciones de los quilombolas en la oferta de alimentos agrícolas al Programa Nacional de Alimentación Escolar para proporción de la seguridad alimentaria y nutricional. Los resultados muestran que la comunidad concibe y valoriza el alimento “natural” de la tierra como fuente de supervivencia y desarrollo local. Incluso con las dificultades, el Programa Nacional de Alimentación Escolar posibilitará la generación de renta para los agricultores familiares y una alimentación escolar saludable para los estudiantes.

Palabras clave: Alimentación. Alimentación escolar. Seguridad alimentaria. Agricultura sostenible. Grupo de ancestrales del continente africano. Recebido em 04/10/13. Aprovado em 25/04/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0759

artigos

Acompanhantes terapêuticos na Grande Vitória, Espírito Santo, Brasil: quem são e o que fazem? Kelly Guimarães Tristão(a) Luziane Zacché Avellar(b)

Tristão KG, Avellar LZ. Therapeutic attendants in the Greater Vitória, Espírito Santo State, Brazil: who are they and what do they do? Interface (Botucatu). 2014; 18(50):533-44.

Therapeutic accompaniment (TA) is a tool that enables expansion and linkage of a mental health care network. The aim was to identify who the therapeutic attendantsare, in the Greater Vitória, Espírito Santo (ES), Brazil, and the characteristics of this practice. Ten partially structured interviews were conducted with professionals who were using or had used TA in public and/or private services. The data obtained were analyzed using thematic analysis. The results showed that the therapeutic attendantsin the Greater Vitória were mostly female psychology students, with various theoretical approaches, whose training in TA had not be accomplished through a course in this field. TA practices in the Greater Vitória are characterized by little use of accompaniment teams, use of pair work, time flexibility, interventions in the street and friendship.

Keywords: Mental health. Deinstitutionalization. Mental health services. Therapeutic accompaniment.

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma ferramenta que possibilita uma ampliação e articulação da rede de saúde mental. Com objetivo de conhecer quem são os acompanhantes terapêuticos (ats) da Grande Vitória/ES, Brasil, e as características dessa prática, foram realizadas dez entrevistas parcialmente estruturadas com profissionais que utilizam, ou utilizaram, o Acompanhamento Terapêutico na rede pública e/ou privada. Os dados obtidos foram analisados a partir da Análise Temática. Os resultados apontam que os ats da Grande Vitória são, em maioria: estudantes de psicologia do sexo feminino, de abordagens teóricas variadas, e cuja formação em Acompanhamento Terapêutico não é realizada a partir de curso da área. A prática de AT na Grande Vitória é caracterizada: pela pouca inserção em equipes de acompanhantes, atuação em dupla, flexibilidade do tempo, por intervenções realizadas na rua e pelo afeto.

Palavras-chave: Saúde mental. Desinstitucionalização. Serviços de saúde mental. Acompanhamento Terapêutico.

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(a,b) Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. Av. Fernando Ferrari, s/n, Goiabeiras. Vitória, ES, Brasil. 29075-910. kgtristao@hotmail. com; luzianeavellar@ yahoo.com.br

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Introdução A emergência do Acompanhamento Terapêutico O processo de desinstitucionalização pautado nos pressupostos da luta antimanicomial, iniciada no Brasil com o Movimento da Reforma Psiquiátrica, na década de 1970, vem sendo marcado por esforços no que tange à criação de estruturas substitutivas aos manicômios1. Com a redução dos leitos psiquiátricos e a alta de pacientes que se encontravam em internações de longa duração, fez-se necessária a criação de recursos alternativos à internação, que viabilizassem a rede de assistência a esses sujeitos2. Desta forma, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos e do Programa De Volta pra Casa3 tornaram-se recursos importantes para a viabilidade de tal processo4. Entretanto, há uma problemática no funcionamento dessa rede: o risco de reproduzir, em tais serviços, as características manicomiais de tutela, segregação e isolamento1,5. Amorim e Dimenstein5 apontam para a necessidade de políticas públicas que promovam a articulação da vida desses sujeitos com os espaços sociais, onde seja possível, a cada sujeito, circular e construir novas possibilidades de enfrentamento às situações do cotidiano. Podemos pensar o Acompanhamento Terapêutico como uma prática possível de se inserir nesse contexto, por se tratar de uma clínica que tenta articular a relação da loucura com a cidade sendo, portanto, uma prática inclusiva, sobretudo por auxiliar no desenvolvimento dos processos de autonomia e da construção de cidadania dos portadores de distúrbios psiquiátricos6,7. Sendo essa prática pertinente ao panorama de ampliação da rede(c) de assistência em saúde mental, pretende-se conhecer as características do AT na Grande Vitória. Para isto, iremos fazer um breve resgate histórico.

A construção do Acompanhamento Terapêutico O Acompanhamento Terapêutico, pode-se dizer, teve seu início ligado ao movimento da Reforma Psiquiátrica7-10. O objetivo principal era aproximar-se do paciente no que se refere aos aspectos do cotidiano, por meio de visitas a sua casa, reunindo-se com amigos, acompanhando-o a médicos etc. Nesse momento, o trabalho do acompanhante terapêutico era basicamente assistencial10, e era denominado, primeiramente, “auxiliar psiquiátrico” ou “atendente psiquiátrico”, mais tarde, evoluiu para “amigo qualificado”11-13. A partir da mudança desse exercício profissional para experiência clínica e terapêutica, o termo “amigo qualificado” foi substituído por “acompanhante terapêutico”. O termo “amigo qualificado” apontava para um elemento muito afetivo do vínculo9,14, por outro lado, o termo acompanhante terapêutico começou a ressaltar o componente terapêutico e profissional10,15,16. No Brasil, a prática se iniciou mais especificamente em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. A Clínica Pinel, em Porto Alegre, foi o primeiro lugar a ter a função de atendente psiquiátrico12,17,18, e a Clínica de Vila Pinheiros, RJ, foi a primeira a ter a função do “auxiliar psiquiátrico” no tratamento de pacientes psicóticos9,19,20. Segundo Barreto20 e Azevedo e Dimenstein21, após o fechamento das comunidades terapêuticas no Brasil, esses profissionais continuaram a ser solicitados por aqueles que procuravam alternativas à internação; desta forma, a prática foi se solidificando e os profissionais necessitando de especialização até serem reconhecidos como acompanhantes terapêuticos.

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(c) Atualmente, a rede de serviços em Saúde Mental na Grande Vitória é composta por quatro CAPS II (Saúde Mental), um CAPS i e três CAPS ad (sendo um CAPS III e dois CAPS II), Serviços de Saúde com internação e 17 Serviços Residenciais Terapêuticos. Disponível em: http://www.es.gov. br/Cidadao/Paginas/ dependentes_quimicos. aspx


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No Espírito Santo, a experiência de Acompanhamento Terapêutico iniciou-se no CAPS Ilha de Santa Maria, na cidade de Vitória, e no antigo Hospital Adauto Botelho, atualmente conhecido como Hospital Estadual de Atenção Clínica (HEAC), na cidade de Cariacica, em 1988, momento em que se realizou o I Curso de Acompanhamento Terapêutico no Estado, sendo o módulo prático realizado com usuários dos dois serviços. A experiência, no entanto, teve duração de apenas um ano, sendo possível somente a continuidade do trabalho pela via voluntária, devido a questões orçamentárias e políticas22. A partir do processo de desinstitucionalização do Hospital Adauto Botelho e do surgimento dos Serviços Residenciais Terapêuticos em 2004, a prática do Acompanhamento Terapêutico foi sendo reinserida paulatinamente em tais setores, a partir de projetos de extensão vinculados aos cursos de psicologia e terapia ocupacional. Moreira23 aborda as experiências em Residências Terapêuticas no Espírito Santo e relata a inserção do Acompanhamento Terapêutico nos processos de reinserção social dos usuários dos Serviços Residenciais Terapêuticos, a partir da atividade realizada pelos estagiários do serviço. Assim, dada a escassez de trabalhos no que tange ao acompanhante terapêutico no Espírito Santo, onde pouco se sabe sobre o profissional que exerce essa prática, se fazem necessários estudos e ampliação das divulgações da modalidade de tratamento em questão. Outra questão que se instala diz respeito à ausência de registro sobre o que é feito, como é feito e quais são os resultados obtidos a partir da prática. Assim, essa pesquisa se faz necessária para preencher essa lacuna no desenvolvimento do acompanhamento terapêutico da Grande Vitória. A fim de possibilitar reflexões acerca de quem realiza essa prática e como ela é realizada, objetivouse conhecer quem são os acompanhantes terapêuticos do ES e identificar características das práticas de Acompanhamento Terapêutico no Estado.

Metodologia A pesquisa foi realizada com dez profissionais que atuam na assistência em saúde mental da rede pública e/ou privada, e que utilizam ou utilizaram o AT como modalidade de atendimento. Nossa proposta foi trabalhar somente com acompanhantes terapêuticos de pacientes portadores de transtornos psiquiátricos. Foram realizadas entrevistas parcialmente estruturadas24, orientadas mediante um roteiro. A primeira parte do roteiro continha questões referentes a características dos acompanhantes terapêuticos da Grande Vitória. O panorama traçado permitiu organizar a amostra dos participantes a partir dos Quadros 1 e 2. A segunda parte abarcava questionamentos referentes às práticas e dificuldades do Acompanhamento Terapêutico, e ao cotidiano de trabalho. Para apresentarmos as práticas descritas pelos participantes, agrupamos os resultados nas temáticas: “equipe de acompanhantes terapêuticos”, “duração do AT”, “setting terapêutico” e “buscar o acompanhado em casa”. Foi utilizada a técnica de amostragem não probabilística: “bola de neve”, que consiste em solicitar, aos primeiros participantes contactados, que indiquem um participante em potencial25,26. Os acompanhantes foram convidados a participar das entrevistas e informados sobre o objetivo da pesquisa, a liberdade para encerrar sua participação em qualquer momento, sem prejuízo, e sobre a garantia de sigilo absoluto da identidade, conforme estabelece a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A presente pesquisa foi realizada em consonância com o Código de Ética Profissional do Psicólogo no que preconiza os aspectos éticos em estudos e pesquisas27. As entrevistas foram gravadas em local, data e horário previamente agendados com os participantes, e, posteriormente, foram transcritas. Os dados colhidos foram analisados com base na Análise Temática proposta por Minayo28. Após a transcrição das entrevistas, foi feita a leitura do material de forma a agrupá-lo em temáticas. Tal procedimento foi realizado tendo por critério a frequência com que as temáticas apareciam, considerando aspectos pertinentes aos objetivos da pesquisa, e realização de recortes, como frases e palavras-chave, viabilizando a categorização dos dados. Posteriormente, foi realizada a transformação de dados brutos em síntese do conteúdo, com a classificação dos dados. Em seguida, foi realizada a interpretação dos dados obtidos28. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Resultados e discussões Característica dos acompanhantes terapêuticos da Grande Vitória Tendo como objetivo conhecer as características do AT no estado, procuramos verificar quem são os acompanhantes terapêuticos. Desta forma, os resultados foram organizados em dois quadros. No Quadro 1, identificamos os dados pessoais e profissionais dos participantes.

Quadro 1. Dados pessoais e profissionais dos participantes. Participantes

Formação

Sexo

Condição de atuação em AT

Tempo de atuação em AT

1

Psicologia

F

Profissional

6 anos

2

Psicologia

F

Profissional

6 anos

3

Psicologia

F

Estudante

2 anos

4

Psicologia

F

Profissional

21 anos

5

Terapia ocupacional

F

Estudante

8 a 9 meses

6

Psicologia

F

Estudante

2 anos

7

Psicologia

M

Estudante

3 anos e 6 meses

8

Psicologia

F

Atuou como Estudante e como profissional

4 anos

9

Psicologia

F

Atuou como Estudante e como profissional

1 ano e 6 meses

10

Psicologia

M

Atuou como Estudante e como profissional

4 anos

A partir do Quadro 1, verificamos que, dos dez participantes, nove fizeram a graduação em psicologia, e apenas um graduou-se em Terapia Ocupacional. No que diz respeito ao sexo do participante, somente dois são do sexo masculino. Tais resultados vêm corroborar a pesquisa de Carvalho15 na qual foi avaliado que a prática de AT era realizada, predominantemente, por mulheres graduadas em psicologia. Desta forma, apesar de a literatura apontar para a não-existência de uma formação acadêmica específica para a prática de tal atividade, podendo ser realizada por trabalhadores de saúde de funções variadas13,19,29, na Grande Vitória, os acompanhantes são, em sua maioria, do sexo feminino e possuem graduação em psicologia. A inserção dos participantes no Acompanhamento Terapêutico se dá, em sua maioria, a partir de suas experiências como estudantes, nos estágios e projetos de extensão. Tal situação é semelhante à encontrada nos primeiros momentos do AT no Brasil, quando a realização dessa atividade era feita, inicialmente, por estudantes universitários (medicina, psicologia, enfermagem), que realizavam curso e Acompanhamento Terapêutico na própria clínica psiquiátrica8,16,17. Como exemplo, destacamos as falas de dois participantes: “[...] foi meu primeiro estágio, eu estava no terceiro período.” (P. 3) “Eu tomei conhecimento do AT, primeiro pelo projeto de extensão que eu participava ainda como aluna de graduação.” (P. 8)

Dentre os participantes, os dados mostram que alguns não continuaram a realizar o AT ao passarem para a condição de profissional, e a maioria não realiza tal atividade no momento da pesquisa. Ao serem questionados se estão realizando algum acompanhamento atualmente, somente dois participantes responderam que sim. Dos que responderam não, os participantes relataram que não estão realizando Acompanhamento Terapêutico, seja pela ausência de encaminhamentos ou 536

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por estarem impossibilitados no momento, devido ao envolvimento em outras atividades que não disponibilizam tempo. “Não, não. Depois eu cessei, assim que eu formei [...] Aí eu abri um consultório particular e eu tinha preferido só deixar... ficar com os clientes no consultório em dias específicos e nos outros dias para poder ficar com as coisas do mestrado.” (P. 7) “Não é que eu abandonei, é que o meu momento não me dava possibilidade.” (P. 9)

Carvalho15, ao pesquisar acerca do perfil do at, aponta que 71,9% dos acompanhantes terapêuticos realizam o AT como prática secundária, e atribui isso ao grau elevado de envolvimento pessoal que é exigido dos ats. Quanto ao tempo de atuação em AT, o Quadro 1 aponta que existe uma diversidade no que diz ao período de experiência nesta modalidade. Desta maneira, verificamos a existência de acompanhante que atua há 21 anos, e que atua há menos de dois anos. Carvalho15 aponta que as diferentes gerações atuantes no AT podem contribuir para que atividades inovadoras e reflexões coexistam com a tradição. Para melhor compreensão das características da atuação e formação dos acompanhantes terapêuticos na Grande Vitória, organizamos os resultados no Quadro 2.

Quadro 2. Características da atuação e formação dos ats na Grande Vitória. Participantes

*

Atuação em serviço Público/Privado

Abordagem teórica no AT

Formação em curso de AT

Abordagem teórica na prática psicológica

1

Privado

Sim

Winnicott

Esquizoanálise

2

Privado

Não

Não

Psicanálise

3

Público

Não

Análise institucional

Análise institucional

4

Privado

Sim

“Tudo o que for preciso”

Psicanálise lacaniana

5

Público

Não

John Beneton

--

6

Público

Não

Esquizoanálise

Esquizoanálise

7

Privado

Não

Análise do Comportamento

Análise do Comportamento

8

Privado

Não

“Não, não faço uso de nada não”

Psicologia Social

9

Público

Não

Múltiplo

Esquizoanálise

10

Privado

Não

Behaviorismo radical

Behaviorismo radical

*

Autor que utiliza a saúde mental voltada para a Terapia Ocupacional

No que diz respeito à atuação no setor público ou privado, os resultados apontam que os estágios são realizados no serviço público, enquanto os profissionais, em sua maioria, atuam, ou atuaram, no setor privado. Verificamos assim, que, no serviço público na Grande Vitória, o AT se restringe à atuação dos estagiários advindos dos projetos de extensão vinculados a alguns cursos de Psicologia e Terapia Ocupacional da Grande Vitória, ou dos voluntários, o que confere um caráter temporário à atividade. Destacamos uma fala de um dos participantes para exemplificar: “No serviço público, é mais feito por estagiários mesmo, né, porque não tem profissional de AT que faz isso, é, contratado pra isso né, sei que tem alguns estagiários que continuam fazendo essa prática, mas eu não vou saber falar pra você com propriedade como é que está indo.” (P. 9)

Com base nos resultados, verificamos que o Acompanhamento Terapêutico não se apresenta de forma estruturada no serviço público, tornando-se difícil ofertá-lo aos usuários. Tal situação pode ser COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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decorrente: do fato de as políticas públicas de saúde ainda não reconhecerem o acompanhante como parte da equipe23; da inexistência de leis para a contratação de acompanhantes terapêuticos no setor público, e da falta de uma normatização da prática do acompanhante7, o que dificulta a contratação de profissionais. Verificamos também, conforme apresentado no Quadro 2, que, dentre os entrevistados, somente dois fizeram curso de AT. “[...] foi mais na prática mesmo; é porque aqui não tem (curso).” (P. 9) “Fiz um curso na FAESA, agora o ano [...].” (P. 1) “[...] eu fiz um curso, um curso de 11 meses, no momento em que o AT chegou, começou no ES. [...] na década de 90.” (P. 4)

Em pesquisa realizada por Carvalho15 acerca do perfil dos acompanhantes terapêuticos no país, no que diz respeito à formação em AT, 53% dos participantes declararam ter realizado ou estar realizando curso de formação em AT. O Acompanhamento Terapêutico evoluiu muito desde as primeiras experiências nos anos 70 e, como resposta a tal evolução, algumas instituições passaram a oferecer curso de formação que contemplam os aspectos mais importantes do ofício de acompanhar.15 (p. 83)

Para a autora, os resultados vêm apontar uma solidificação do AT “[...] enquanto uma modalidade de tratamento e tem atraído profissionais dispostos a investir na própria formação”15 (p. 83). Na Grande Vitória, ao contrário, não há uma efetivação de instituições formadoras que venham a servir como referência aos acompanhantes terapêuticos, tornando-se um dificultador para a prática do AT no Estado. Com base no Quadro 2, pode-se apontar, ainda, que a abordagem teórica utilizada pelos entrevistados na prática de AT é bem variada, sendo que dois participantes dizem não utilizar qualquer tipo de abordagem, não sendo possível identificar uma referência compartilhada pelos acompanhantes terapêuticos entrevistados. Tais resultados não corroboram a pesquisa de Carvalho15 que aponta que um grande número dos acompanhantes apresenta uma referência teórica, sendo a psicanálise a abordagem psicológica de maior abrangência na prática do AT, representando 69% da amostragem encontrada pela autora. Verificamos também, com base nos resultados apresentados no Quadro 2, que a maior parte dos entrevistados, formados em psicologia, não utilizam, no AT, a mesma abordagem teórica que utilizam em sua prática profissional como psicólogos. Desta forma, os dados apontam que os acompanhantes terapêuticos fazem uso dos arcabouços teóricos que possam viabilizar a prática do AT, conforme exemplificado a seguir: “[...] normalmente eu utilizo tudo que eu posso para fazer um melhor AT, até inclusive a própria psicanálise.” (P. 4) “Era uma prática, assim, bem múltipla. A gente olha, às vezes eu via alguma coisa da psicanálise [...] a gente fazia estágio na clínica em psicanálise. Então assim, alguma coisa na supervisão a gente pensava em psicanálise, ou então esquizoanálise, utilizava também corporal. Não tinha uma abordagem em si; era o que o campo demandava.” (P. 9)

Tais resultados vão ao encontro da discussão de Abdalla, Batista e Batista30 de que o exercício da prática e conhecimento em psicologia, na atualidade, exige que o psicólogo desenvolva sua atuação profissional de forma a correlacionar seus objetivos, técnicas e teorias às necessidades sociais, isso faz com que o profissional, segundo Santos, Motta e Dutra31 (p. 382), “[...] busque uma articulação mais concreta entre a clínica e o social”. Assim, uma nova prática pode ser construída a partir do contexto 538

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no qual o sujeito se insere. Além disso, Carvalho15 aponta que “[...] é desejável que ao se consolidar enquanto modalidade de tratamento o AT confirme sua natureza interdisciplinar e possa receber importantes contribuições de diferentes abordagens psicológicas15 (p. 81).

Práticas de AT Ao buscarmos compreender as características das práticas de AT na Grande Vitória, encontramos as temáticas: “Equipe de acompanhantes terapêuticos”, “Duração do AT”, “Setting Terapêutico”, “Buscar o Acompanhado em Casa” e “Afeto na prática do AT” como resultados significativos. Sobre a “Equipe de acompanhantes terapêuticos”, destacamos os seguintes aspectos: “atuação do entrevistado em equipes compostas por acompanhantes” e “características do trabalho em equipe”. Verificamos, com base nos dados colhidos, que a maior parte dos profissionais entrevistados não estava inserida em equipes de acompanhantes terapêuticos. Ou seja, tal prática não se mostra comum na Grande Vitória, sendo priorizado o trabalho de um acompanhante terapêutico somente. Tal característica pode ser decorrente do desconhecimento da existência de outros acompanhantes ou da incompatibilidade de horário entre eles. A literatura, contudo, mostra que, em geral, o acompanhante faz parte de uma equipe multidisciplinar, composta, habitualmente, por: psiquiatra, o terapeuta individual, o terapeuta familiar e outros acompanhantes11,31. No que diz respeito às “características do trabalho em equipe”, verificamos que, nos espaços de estágio e extensão, o Acompanhamento Terapêutico é realizado em duplas de trabalho. Todavia, não encontramos relatos na literatura acerca do Acompanhamento Terapêutico em dupla, sendo uma característica do AT na Grande Vitória, em especial nos estágios oferecidos pelas instituições de Ensino Superior. Como podemos observar na fala que destacamos de uma das entrevistas: “A gente trabalhava em dupla, não abria mão disso e a gente se dividia entre duas casas, que era uma casa feminina e uma masculina.” (p. 3)

Outra característica importante do trabalho em equipe de acompanhantes na Grande Vitória, diz respeito às reuniões em que os mesmos participam para discutir o acompanhamento e os mecanismos a serem utilizados para lidar com a necessidade do acompanhado, desta forma priorizando o trabalho integrado. Os participantes relatam, também, que, algumas vezes, a reunião se dava com a presença do acompanhado, e discutiam o que poderiam fazer. Segundo Reis Neto, Pinto e Oliveira17: É comum que a equipe de profissionais envolvida em um determinado caso estabeleça formas de discussão do andamento do trabalho, o que dá a essa equipe um caráter interdisciplinar. Além das reuniões de equipe geral nas quais se discute o caso em andamento, as equipes de AT podem também fazer reuniões de mini-equipe, que incluem somente os ats que acompanham determinado sujeito, ou mesmo optarem por supervisores de sua preferência para abordarem aspectos específicos do caso atendido. (p. 33)

Na temática “Duração do AT”, constatamos, a partir dos relatos dos participantes, que existe um tempo de organização para a realização do AT, mas que o mesmo deve ser flexível, dependendo da programação para o encontro e, especialmente, da resposta do sujeito a esses encontros, sendo possível reduzir ou aumentar a duração, conforme a necessidade do acompanhado. Entretanto, os participantes pontuam que o tempo flexível não implica uma ausência de programação, ao contrário, é feito um contrato para a realização dos encontros, especialmente em relação ao seguinte. “[...] não adianta você tá com o tempo programado, no acompanhamento terapêutico, tem que ter mais flexível.” (P. 6)

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“Tem duração e hora, mas não tem uma duração padrão. Pode ser uma hora, duas horas, três horas, normalmente horas corridas, assim, não uma hora que é quebrada.” (P. 4)

A flexibilidade do tempo, apontada pelos entrevistados, encontra-se em conformidade com a literatura, a qual indica que o período juntos, habitualmente, é bem maior que de uma psicoterapia, sendo possível durar duas horas ou mais, e se estender para mais de uma vez por semana, de acordo com a necessidade do acompanhado6,11,15,17. No que diz respeito ao “Setting Terapêutico”, os participantes o definem como “[...] o espaço em que a pessoa será provocada pelo mundo, e que vai aprender a lidar com aquilo” (P. 8). Os resultados obtidos apontam para uma compreensão do setting como um espaço múltiplo de atuação, não tendo um espaço específico. Segundo os participantes, o espaço onde se encontravam era potencialmente terapêutico. Eles assinalam, ainda, a rua como um setting terapêutico. “[...] mas muito mais na rua, no dia a dia da pessoa tentando trabalhar a dificuldade dela.” (P. 1) “[...] é difícil falar de acompanhamento terapêutico se não falar de saída né, enfim né, de permitir transitar né, coisas que são típicas de um cotidiano que você esbarra.” (P. 8)

A literatura mostra que o setting terapêutico é bastante variável, sendo o contexto deste procedimento o espaço próprio do paciente, bem como as conjunturas nas quais foi estabelecida sua dificuldade11,13. Desta forma, a montagem do seu enquadre é bastante distinta da clínica clássica sendo, em geral, o horário, a duração e a localização bastante flexíveis15,32, saindo das instituições e começando a privilegiar o espaço social e de circulação pública, ainda que o público se restrinja ao desejo do paciente ou a uma residência33. Os participantes relatam que “buscar o acompanhado em casa” é uma característica da prática, sendo que o encontro com o paciente se inicia na residência deste. “Não encontra a pessoa na rua, por exemplo, não sei se é isso que você tá perguntando. Você vai até a casa da pessoa, faz um contato, você é recebido, você é recebido na casa da pessoa” (P. 8). Conforme a literatura, por ser indicado como uma clínica que acontece no cotidiano, o Acompanhamento Terapêutico irá se desenvolver em ambientes que fazem parte da vida do paciente; desta maneira, é muito comum o acompanhante terapêutico ir até a casa do paciente para, então, saírem, ou na porta do Hospital Dia, escola etc.11,15. A temática “Afeto na prática do AT” foi obtida a partir de um relato de caso, e, apesar de ter sido mencionada, somente uma vez, foi avaliada como significativa. Os resultados apontam que o afeto é importante para a relação no Acompanhamento Terapêutico, todavia, se faz necessário um limite no afeto, pois não se trata de uma relação de amizade, conforme podemos exemplificar: “A gente sempre enfatiza que existe um limite aí nesse afeto, que nós não somos amigos. Porque se não o acompanhamento terapêutico e todo o objetivo do trabalho se vai. Mas a gente tinha um envolvimento afetivo e isso se tornou muito evidente naquele momento e aí a gente começou a chorar junto com a usuária.” (P. 3)

Ainda que em alguns momentos a relação entre acompanhante e acompanhado parecesse ser de amizade: “[...] o acompanhamento tem uma relação de assimetria do ponto de vista vincular; ou seja, não poderá estabelecer laços afetivos fortes, de natureza pessoal com o paciente, visto que sua relação tem uma função terapêutica”13 (p. 63). Barreto20 pontua que o conceito de simetria refere-se a indivíduos que estejam em um mesmo nível, entretanto, isso não implica a ausência de discriminação e diferenças entre eles. Assim, a preocupação do at com uma relação de assimetria implica um caráter de submissão entre acompanhante e acompanhado. Desta forma, Barreto20 pontua que “[...] no AT existe uma singularidade na amizade ou no sentimento de solidariedade que é dado pela tarefa que

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define o encontro” (p. 193). Conforme o autor, a amizade no AT possibilita, ao acompanhado, seu desenvolvimento psíquico. Segundo Lancetti34 (p.25-6), “[...] o acompanhante em sua intimidade amigável pode conectar ao mundo, realizar agenciamentos”, desta maneira, a amizade é terapêutica por aliar-se à produção de um estilo de vida que objetiva transitar em mundos inacessíveis.

Considerações finais A pesquisa alcançou os objetivos desejados ao compreender quem são os acompanhantes e quais as características da prática do Acompanhamento Terapêutico na Grande Vitória. Apesar disso, verificou-se que ainda se fala muito pouco do AT, tanto dentro das universidades quanto em eventos realizados na Grande Vitória. Associando a isso a precariedade de cursos de AT e a inexistência de leis que viabilizem a normatização da prática de Acompanhamento Terapêutico, torna-se difícil tanto a divulgação quanto a realização da prática. Assim, chegamos à conclusão de que o AT parece se limitar à presença dos estagiários nos serviços públicos e a uma prática secundária exercida por poucos profissionais de nível Superior nos serviços privados. Conclui-se, também, que o AT possui um caráter de coadjuvante ao tratamento, e não como parte importante da rede de assistência em saúde mental no Estado. Além disso, a inexistência de cursos e de direcionamento teórico corrobora para que os acompanhantes não possuam uma referência da prática, seja para aprendizado, seja para discussões. Apesar das dificuldades, existem esforços para a realização do Acompanhamento Terapêutico na Grande Vitória, e podemos perceber algumas características concernentes à atuação nesta região, como: uma maior realização do AT por estagiários, geralmente em dupla, a importância do setting terapêutico, e uma maior flexibilidade no tempo de trabalho. Os resultados apontam a necessidade de realização de estudos acerca do Acompanhamento Terapêutico na Grande Vitória, visto que a problematização e divulgação da relevância e eficácia do AT para a ampliação da saúde mental possibilitaria uma maior discussão e desenvolvimento dessa prática na Grande Vitória.

Agradecimentos Este artigo foi elaborado com base na dissertação de mestrado entitulada “Acompanhamento Terapêutico: concepções e significados nas práticas em saúde mental em Vitória”. Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior ( CAPES) pelo financiamento a essa pesquisa, viabilizando assim, a execução da mesma. Colaboradores As autoras trabalharam juntas na análise do material investigado. Kelly Guimarães Tristão foi responsável pela redação do artigo e Luzianne Zacché Avellar pela sua orientação e revisão.

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acompanhantes terapêuticos na grande vitória...

Tristão KG, Avellar LZ. Acompañantes terapéuticos en el area metropolitana de Vitória, Espírito Santo, Brasil: ¿quiénes son y qué hacen? Interface (Botucatu). 2014; 18(50):533-44. El Acompañamiento Terapéutico (AT) es una herramienta de ampliación y articulación de la red de salud mental. nuestro objetivo fue conocer quiénes son los acompañantes terapéuticos (ats) de Vitória/ Estado de Espírito Santo y las características de esa práctica. Se realizaron diez entrevistas parcialmente estructuradas con profesionales que utilizan, o utilizaron, el Acompañamiento Terapéutico en la red pública y/o privada. Los datos se analizaron a partir del Análisis Temático. Los resultados señalan que los acompañantes terapéuticos son, en su mayoría, estudiantes de psicología del sexo femenino, de abordajes teóricos variados y cuya formación en Acompañamiento Terapéutico no se realiza a partir de curso de esa área. La práctica de AT investigada se caracteriza por la poca inserción en equipos de acompañantes, actuación en pareja, flexibilidad de tiempo, intervenciones realizadas en la calle y afecto.

Palabras clave: Salud mental. Desinstitucionalización. Servicios de salud y Acompañamiento Terapéutico. Recebido em 10/09/13. Aprovado em 17/02/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0520

artigos

A supervisão clínico-institucional como dispositivo de mudanças na gestão do trabalho em saúde mental Ana Kalliny de Sousa Severo(a) Solange L’Abbate(b) Rosana Teresa Onocko Campos(c)

Severo AKS, L’Abbate S, Onocko Campos RT. Clinical and institutional supervision as a tool for changes in mental health work management. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):545-56. The aim of Brazilian psychiatric reform is to make significant changes in care for people with mental disorders. In this context, clinical and institutional supervision is one of the main qualifying strategies for transforming the methods of work management and clinical care developed in substitutive services. This paper analyzes the experience of clinical and institutional supervision developed within the mental health network in a small municipality in northeastern Brazil. The theoretical and methodological framework of institutional analysis was used. The subjects were employees of a psychosocial care center and a family health support center. The main analysis parameters were the way in which supervision functioned, service management and municipal management. This tool promoted movement towards establishing a team, thereby providing a partnership between services and the municipal manager, and mobilization of workers as subject groups within the field of mental health.

Keywords: Psychiatric reform. Clinical and institutional supervision. Institutional analysis. Work management. Mental health.

A reforma psiquiátrica brasileira objetiva realizar mudanças relevantes no cuidado às pessoas com transtornos mentais. Nesse contexto, a supervisão clínico-institucional é uma das principais estratégias de qualificação para transformar os modos de gestão de trabalho e da clínica desenvolvidos nos serviços substitutivos. Este artigo analisa a experiência de supervisão clínico-institucional desenvolvida junto à rede de saúde mental de um município de pequeno porte do interior do Nordeste. Utilizamos o referencial teórico-metodológico da Análise Institucional. Os sujeitos envolvidos foram os trabalhadores de um Centro de Atenção Psicossocial 1 e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Os principais analisadores destacados: funcionamento da supervisão, gestão do serviço e gestão municipal. Esse dispositivo promoveu o movimento instituinte junto à equipe, proporcionando uma parceria entre os serviços e o gestor municipal, e a mobilização dos trabalhadores como grupos-sujeitos no campo da saúde mental.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica. Supervisão clínico-institucional. Análise institucional. Gestão do trabalho. Saúde mental.

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(a) Doutoranda, Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). R. Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”. Campinas, SP, Brasil. 13083887. kallinysevero@ yahoo.com.br (b,c) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. Campinas, SP, Brasil. slabbate@lexxa.com.br; rosanaoc@mpc.com.br

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Introdução: a supervisão clínico-institucional e sua função na política de saúde mental A Reforma Psiquiátrica brasileira objetiva a substituição do modelo de atendimento centrado na doença mental, cujo locus central é o hospital psiquiátrico, para um atendimento centrado na existência-sofrimento do usuário, tendo como locus de intervenções o espaço social no qual esse sujeito se insere. Essas mudanças precisam ser acompanhadas de novos modos de cuidado e clínica. Para tanto, reflexões em torno das práticas dos novos serviços substitutivos precisam ser constantes, sendo a supervisão clínico-institucional um dos principais dispositivos adotados na Reforma Psiquiátrica brasileira com essa finalidade. este artigo analisa a experiência de um processo de supervisão clínico-institucional na rede de Atenção Psicossocial de uma cidade do interior no Nordeste brasileiro, apontando as dificuldades e os desafios aí enfrentados.

A função da supervisão e a problemática da clínica e da gestão na Atenção Psicossocial A supervisão clínico-institucional destina-se à discussão das questões clínicas e institucionais dos serviços e da rede de saúde mental. A portaria nº 1.174, publicada pelo Ministério da Saúde em 2005, aponta: Art. 3º - Definir como supervisão clínico-institucional o trabalho de um profissional de saúde mental externo ao quadro de profissionais dos CAPS, com comprovada habilitação teórica e prática, que trabalhará junto à equipe do serviço durante pelo menos 3 a 4 horas por semana, no sentido de assessorar, discutir e acompanhar o trabalho realizado pela equipe, o projeto terapêutico do serviço, os projetos terapêuticos individuais dos usuários, as questões institucionais e de gestão do CAPS e outras questões relevantes para a qualidade da atenção realizada.1 (p. 38)

Essa portaria resultou, sobretudo, de deliberação do I Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), realizado em 2004, sobre a implantação de supervisão clínico-institucional, e da avaliação nacional dos CAPS (AVALIAR CAPS – BR/2005). Nesta, verificou-se a inexistência de acompanhamento e supervisão clínico-institucional regular na maioria dos CAPS de todos os estados e do Distrito Federal, bem como identificaram-se outras necessidades de qualificação2. O Ministério da Saúde tem apontado para a necessidade de a supervisão ser “clínico-institucional”, com a discussão dos casos clínicos associada ao contexto institucional, ao serviço, à rede, à gestão e à política pública, havendo o diálogo necessário entre a dimensão política e a dimensão clínica3. Tais diretrizes do Ministério da Saúde nos instigam a questionar: quais noções de clínica e de gestão têm sido adotadas? Há um movimento de criação de espaços inovadores/instituintes nas práticas de supervisão coerentes com a Atenção Psicossocial ou há uma reprodução do instituído? A singularidade do atendimento nos CAPS demanda a revisão de práticas e conceitos que sustentam o trabalho em saúde mental, a partir da formação acadêmica e de experiências no cotidiano laboral4. A saúde mental fundamenta-se em um amplo espectro de conhecimentos sem limites estabelecidos5, e quem aí trabalha precisa compreender a complexidade dos problemas e nas intervenções. Ao discutirmos os projetos terapêuticos e a clínica, entendemos haver uma indissociabilidade deles com a gestão do trabalho. Esta precisa ser problematizada constantemente, visando superar a fragmentação e a hegemonia do paradigma biomédico, presentes ainda hoje em muitos serviços de saúde6,7. Além disso, há dois paradigmas em embate nos serviços substitutivos: o paradigma asilar e o psicossocial. Segundo Costa-Rosa8, no modo asilar, os meios de trabalho incluem recursos multiprofissionais, mas não ultrapassam a fragmentação de tarefas e a supervalorização do saber médico. As formas de organização institucional são piramidais, com o fluxo do poder seguindo apenas em um sentido verticalizado e o poder de decisão e de coordenação concentrados no ápice da pirâmide8. 546

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Já o Paradigma Psicossocial propõe que a equipe interprofissional deve caracterizar o meio de trabalho, com a inserção de dispositivos diversificados8. A organização do trabalho deve apresentar uma lógica de cooperação entre diferentes profissionais, serviços e gestão-administração. O trabalho da assistência torna-se indissociado do trabalho da gestão, pois os processos decisórios devem perpassar o cotidiano dos serviços, existindo a horizontalização de saberes e de decisões9. Em relação à supervisão, Matumoto et al.10 analisam que o trabalho supervisionado remonta à Idade Média, e foi introduzido, nas ciências psicológicas, pela psicanálise. A supervisão foi sofrendo mudanças em sua concepção, metodologia e prática a partir das transformações da grupoterapia. Coimbra11 tece algumas críticas à supervisão, mais particularmente no campo psi, caracterizando-a como modelo autoritário e modelo liberal. No primeiro, o supervisor é aquele que tudo sabe e o supervisando aquele que nada sabe, o que reforça a relação de submissão e onipotência (do psicólogo) que se reproduz nas instituições. Já o segundo é de inspiração humanista, no qual o supervisor afirma ser um igual a seus estagiários, o que escamoteia as relações de poder aí existentes. Na inspiração humanista, “sensibiliza-se, critica-se e questiona-se, desde que seja dentro de certos limites, de determinado território”11 (p. 28). A autora critica a supervisão instituída no sentido de ser uma supervisão, um olhar superior de controle sobre o processo de formação. Campos6 também tece críticas à concepção taylorista que norteia a supervisão em saúde, na qual o supervisor controla e fiscaliza o cumprimento de normas. Já no sentido atribuído pela Saúde Mental, ele seria um agente externo que “se reúne com a equipe para instituir processos de reflexão crítica e de educação permanente”6 (p. 866). O supervisor assume, assim, a função de ajudar na identificação e enfrentamento de problemas, apoiando mudanças nas equipes de trabalho6. Não deve haver uma valorização demasiada do saber do supervisor, mas, sim, estímulo ao diálogo de todos os saberes da equipe, “fazendo circular o poder entre as diferentes categorias discursivas”12 (p. 93). Como dispositivo de controle da formação e do processo de trabalho, o termo supervisão vem sofrendo críticas constantes no campo da saúde, com proposições de novas denominações, como inter-visão e co-visão, admitindo que o olhar desse “externo” é um entre outros, que se junta ao olhar da equipe com a proposta de revisitar os caminhos trilhados por ela, de modo a propiciar a percepção de seu modo de sentir, pensar e agir6. Diante do dilema paradigmático vivenciado nos serviços e das diferentes tradições teórico-técnicas na supervisão, e da escassez de pesquisas sobre o assunto, faz-se necessário haver uma revisão crítica do que seja supervisão em saúde mental no âmbito da Estratégia de Atenção Psicossocial.

Referencial teórico-metodológico Adotamos, como perspectiva teórica e metodológica, a Análise Institucional. Rodrigues13 situa a Análise Institucional como movimento originado a partir de conflitos entre intelectuais, políticos e universitários, bem como diversos outros atores sociais. No contexto brasileiro, ela surge nos anos 1970, em departamentos e grupos de pesquisa de universidades brasileiras, havendo uma mistura de conceitos das duas vertentes, a socioanálise e esquizoanálise, junto às outras formas de trabalho grupal14. A tarefa da Análise Institucional é descobrir, desvelar o não dito das instituições, a partir da problematização, do questionamento às instituições ocultas15. Desse modo, as instituições formam uma rede social e acabam por unificar e atravessar os indivíduos, que, por meio de sua práxis, mantêm e/ou criam novas (instituinte)15. L’Abbate16 explica que Lourau trabalhou com o conceito de instituição a partir das contribuições de Castoriadis sobre a dialética instituinte/instituído e do modelo da dialética hegeliana de afirmação/ negação e negação da negação. Lourau reconhece três momentos nos quais uma instituição pode ser decomposta: o momento do instituído, ou o estabelecido, considerado o momento da universalidade; o instituinte, ou o acontecimento que não cessa de negar o momento anterior, e que constitui o momento da

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particularidade; e o terceiro momento, o da singularidade, resultado da articulação dialética entre os momentos anteriores, que tensiona a prática dos sujeitos, apontando para uma certa atualização, um “vir-a-ser” que é a institucionalização.16 (p. 238, grifos do original)

Além do conceito de instituição, a socioanálise introduz outros conceitos que são considerados regras: a análise da encomenda e da demanda; a autogestão pelo coletivo cliente; a regra do tudodizer; a elucidação da transversalidade; a análise das implicações e a elucidação dos analisadores17. Monceau18 analisa que, no final de 1980 e nos anos 1990, as modalidades de intervenção em socioanálise diversificaram-se, diferenciando-se da forma mais clássica da intervenção, que ocorria em período curto e com um desenvolvimento rápido. Desse modo, ele destaca que as regras devem ser consideradas princípios, e adota a denominação de “socioclínica institucional”19. Ele enfatiza mais o objeto e as intenções de análise do que as regras. A supervisão analisada neste artigo norteou-se por tais princípios e a intervenção foi considerada, também, como um momento de pesquisa, de construção de um saber sobre o processo de supervisão. Os princípios foram assim caracterizados18: (a) Análise da encomenda e das demandas: a encomenda escrita constitui o “diagnóstico” de alguém que, investido do poder, faz o pedido de intervenção ao socioanalista20, e este deve atentar para a produção das demandas no decorrer do trabalho, sendo essa análise o que sustenta a problematização18. (b) Participação dos sujeitos na abordagem, sob modalidades variáveis, por meio da participação em coleta de informações, aceitação de ser observado ou de participar de sessões de grupo com objetivo analítico18. As condições de análise das demandas envolvem a autogestão, com a escolha coletiva dos horários, do número de sessões, das ligações entre as sessões de análise, bem como de outras atividades cotidianas. Com a autogestão, pretende-se revelar o seu contrário, a ordem do estabelecimento. “A diferença entre as duas formas sociais, uma momentânea e analítica, outra permanente e funcional, é um analisador das relações instituídas”17 (p. 103). No caso da supervisão especificada, a autogestão foi flexibilizada, pois algumas regras de funcionamento foram estabelecidas via edital do Ministério da Saúde. (a) Trabalho dos analisadores dando acesso às questões que, normalmente, não se expressam: Os analisadores fazem a instituição falar, revelam o não dito21. Para Lapassade22, trata-se de uma reversão epistemológica, pois é o analisador que faz a análise, e o socioanalista deve validá-los e legitimá-los frente ao grupo participante. (b) Análise das transformações que se produzem à medida que o trabalho avança: estas expressam, simultaneamente, efeitos e materiais de análise, possibilitando desenvolver, junto aos sujeitos, a consciência dos efeitos da intervenção18. (c) Aplicação das modalidades de restituição que devolvem os resultados provisórios do trabalho aos parceiros de campo: restituição do não dito acerca da instituição e dos pertencimentos institucionais dos diversos membros do grupo, ao longo das sessões socioanalíticas17. (d) Análise das implicações primárias e das implicações secundárias do pesquisador e dos outros participantes (em suas respectivas instituições): “as implicações primárias atualizam-se no dispositivo de análise (e/ou de pesquisa) e as questões locais deste”, enquanto as “implicações secundárias são aquelas do interventor/pesquisador na instituição científica, mas também sua relação com a política”18 (p. 6). A aproximação do pesquisador e/ou analista com o campo gera alguns impactos sobre sua própria história e sobre o sistema de poder, que precisam ser constantemente analisados23. (e) Intenção de produção de conhecimentos: o trabalho desenvolvido a partir de uma encomenda leva a uma análise de um problema localizado, que produz dados que precisam ser analisados de forma mais ampla18. Para isso, pretendemos construir análises mais abrangentes sobre o dispositivo supervisão e seus efeitos no processo de gestão do trabalho dos serviços tipo CAPS. (f) Atenção aos contextos e às interferências institucionais nas quais estão envolvidos os pesquisadores e os outros participantes: as instituições que atravessam os sujeitos envolvidos produzem efeitos de conhecimento e de transformação18. 548

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Deve-se atentar para a análise dos vínculos/pertencimentos e das referências positivas ou negativas pelos diversos membros do coletivo em análise17, denominada de elucidação das transversalidades, assim definida: […] fundamento da função instituinte dos grupamentos, na medida em que toda ação coletiva exige uma perspectiva dialética da autonomia do grupo e dos limites objetivos dessa autonomia. A transversalidade reside no saber e no não-saber do grupamento a respeito de sua polissegmentaridade. É a condição indispensável para passar do grupoobjeto ao grupo-sujeito.24 (p. 270)

O grupo torna-se mais sujeito ou menos sujeitado, dependendo de seu coeficiente de transversalidade. O grupo-sujeito tem disposição de gerir a sua relação com as determinações externas e com a própria lei interna do grupo, dentro de algumas possibilidades25. Já o grupo sujeitado tende a ser manipulado pelas determinações externas e por sua própria lei interna. Como dissemos anteriormente, a gestão, a clínica e a supervisão comportam, historicamente, uma relação de saber-poder instituída, que precisa ser constantemente analisada. Nesse sentido, precisa-se investigar o lugar que o analista-pesquisador ocupa que “legitima o instituído, incluindo, aí, o próprio lugar de saber e estatuto de poder do perito-pesquisador”23 (p. 23).

Caracterização do município e de sua rede de saúde

Informações retiradas do Relatório de Buscativa em saúde mental no município, construído por Aragão e Assis27.

(d)

O município onde se realizou o processo de supervisão está situado no interior de um estado do Nordeste brasileiro. Segundo o IBGE, esse município tem uma população de 20.354 habitantes e possui uma área geográfica de 513 m2. Sua população urbana se distribui, segundo a área de domicílio, em 17.084 na zona urbana, e 3.270 na zona rural. De acordo com o sexo, tem-se 9.961 homens e 10.393 mulheres na cidade26. A rede de saúde do município é composta por vinte estabelecimentos de saúde. Na Zona urbana há: um hospital municipal, uma maternidade, uma policlínica, nove postos de saúde e seis pontos de apoio, prestando serviços à atenção básica, além do CAPS tipo I do município. Existe ainda, no município, uma equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). O CAPS I funciona desde 21 de julho de 2006, como referência no atendimento em saúde mental para a população de outros quatro municípios, somando uma população de, aproximadamente, 35.415 habitantes(d). A equipe do CAPS I era composta, no período da supervisão, por 16 profissionais, a saber: uma psiquiatra, uma psicóloga, uma enfermeira, uma nutricionista, duas assistentes sociais, um farmacêutico, uma auxiliar de enfermagem, duas auxiliares de farmácia, uma artesã, um técnico administrativo e coordenador do serviço e a equipe de apoio (uma chefe de cozinha, uma auxiliar de cozinha, duas pessoas que trabalham na limpeza e uma recepcionista). O CAPS I funciona de segunda a sexta, das 7h às 17h. Entre as atividades aí desenvolvidas estavam: oficinas terapêuticas, grupos terapêuticos, consultas psicológicas, orientações do serviço social, visitas domiciliares, passeios, entre outros. O serviço atendia 85 usuários divididos entre intensivos – que frequentam os dois turnos e fazem quatro refeições diárias – e semi-intensivos – que ficam apenas durante um turno do dia. A equipe do NASF era composta por dois fisioterapeutas, um psicólogo, um nutricionista e um educador físico.

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A cidade se localiza na quarta região de saúde do estado, cuja cidade principal é distante 282 km da capital. A partir de 2005, nessa região, o Ministério de Saúde começou a implantar uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico, com a formação de rede regional de saúde, culminando na instalação de um dos CAPS III em 200928. Essa região de saúde abrange 25 municípios, com uma população total de mais de 295 mil habitantes.

O processo de supervisão Foram realizados, de março de 2011 a fevereiro de 2012, 12 encontros de supervisão, um a cada mês, com carga horária aproximada de seis horas. Nesse artigo, analisamos os oito primeiros encontros de supervisão com as equipes do CAPS e do NASF. De forma sucinta, os temas dos encontros foram: (a) Primeiro encontro (março/2011) junto à equipe do CAPS: apresentação da proposta e discussão da encomenda e das demandas da equipe; (b) Segundo encontro (abril/2011) junto à equipe do CAPS: projeto terapêutico singular e equipe de referência; (c) Terceiro encontro (maio/2011) junto à equipe do CAPS: discussão de projetos terapêuticos singulares dos usuários do CAPS; (d) Quarto encontro (junho/2011) junto à equipe do CAPS: discussão de caso clínico e projetos terapêuticos singulares; (e) Quinto encontro (julho/2011) junto às equipes do CAPS e NASF: planejamento das atividades do CAPS e primeiro contato com a equipe NASF; (f) Sexto encontro (agosto/2011) junto às equipes do CAPS e NASF: papel do NASF na rede de saúde; (g) Sétimo encontro (setembro/2011) junto às equipes do CAPS e NASF: oficina de planejamento das atividades do CAPS e do NASF; (h) Oitavo encontro (outubro/2011) junto às equipes do CAPS e NASF: alcoolismo e redução de danos. Articulação serviço-gestão municipal. Desses encontros participaram cerca de quinze profissionais do CAPS e seis do NASF, com frequência variada, bem como o secretário de saúde do município. Este foi convidado três vezes para supervisão pela coordenação do serviço, e participou de uma reunião, ocasião em que foi convidado conjuntamente pela supervisão e coordenação do serviço, conforme será descrito a seguir.

A encomenda ou como tudo começou A encomenda da supervisão surgiu em novembro de 2010, a partir de um convite do consultor do Ministério da Saúde do Nordeste para realizar a seleção para projetos de financiamento para supervisão em saúde mental. Contudo, foi enfatizado que a supervisão seria para a rede de saúde mental, e não apenas restrita ao CAPS. Esse convite originou-se da publicação do edital Supervisão VI – Ad de 201029, no qual consta que o objetivo da supervisão seria possibilitar um espaço de discussão e de “estudo das equipes técnicas dos diversos serviços que compõem a rede de atenção psicossocial, a respeito dos casos clínicos, dos projetos terapêuticos, da dinâmica dos serviços, das articulações com o território onde o CAPS de referência se situa, dos processos de trabalho, da gestão e da clínica na perspectiva intersetorial”29 (p. 1, grifos nossos). Em dezembro do mesmo ano, foi divulgado o resultado e o projeto foi aprovado. A encomenda foi dirigida à primeira autora, sendo necessário analisar as demandas da equipe do CAPS. Para tanto, considerou-se as demandas como estando relacionadas “às solicitações, carecimentos e desejos dos participantes do grupo com o qual se vai trabalhar. Mas que, inicialmente afinadas com a encomenda, podem sofrer mudanças no decorrer do processo de intervenção”20 (p. 200).

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No âmbito deste artigo, selecionou-se, entre as várias dimensões do processo de supervisão, a discussão de alguns analisadores que ocorreram no decorrer dos encontros, uma vez que a análise mais completa da experiência será realizada na tese de doutorado da primeira autora.

Primeiro movimento – a desconfiança O funcionamento da supervisão Esse analisador emergiu diversas vezes ao longo dos encontros. A partir dele, discutimos, na supervisão, o seu conteúdo e a sua função de acordo com a análise das demandas da equipe. Durante a discussão da encomenda e das demandas, realizamos uma conversa acerca da proposta e metodologia de trabalho junto à equipe, enfocando, sobretudo, que o processo de supervisão seria realizado a partir de discussões de casos, da análise dos processos de trabalho e englobando diferentes serviços da rede de saúde e intersetorial. Ao se levantarem as expectativas da equipe sobre o processo de supervisão, foi mencionado que eles estavam sem supervisão há três meses, e que, anteriormente, a supervisão era realizada há três anos por uma mesma profissional, com a fundamentação teórica da psicanálise, centrada no estudo de caso. Algumas questões e dúvidas foram levantadas sobre o referencial teórico usado, se seria válida uma supervisão sem o referencial teórico da psicanálise. De acordo com uma das profissionais do serviço, a psicanálise ou você ama ou você odeia. Os demais trabalhadores se posicionaram, tiraram suas dúvidas, mas não se opuseram a uma supervisão em outra perspectiva teórica e metodológica. No entanto, a questão da supervisão com um norte diferente da psicanálise ressurgiu diversas vezes ao longo do processo de supervisão. No sexto encontro de avaliação da supervisão, outra trabalhadora explicou, ainda, que a supervisora anterior trabalhava com o transtorno até doer o juízo, com o enfoque na questão sintomatológica. Mas, complementou, comparando uma supervisão e outra, que cada um tem um modo de trabalhar diferente. A psicóloga e uma das assistentes sociais do serviço comentaram, ainda, que sentiam falta de mais discussões de casos clínicos. A psicóloga disse que, por meio da discussão do caso clínico, se consegue avançar bastante no atendimento. Nesse momento, compartilhamos, num processo de restituição ao grupo, o porquê, nos últimos encontros, de termos trabalhado mais os processos de trabalho. Restituímos, ainda, nossa preocupação em discutir os casos atendidos pela rede de serviços, conforme era previsto na encomenda do edital de supervisão, e apontamos que planejamos e combinamos algumas coisas para os encontros, mas eles tinham demandado, em supervisão, outros diálogos diante do momento que o serviço vinha vivenciando. Ainda nesse encontro de avaliação, o psicólogo do NAFS explicou que tinha sido um espaço importante, pois os profissionais precisavam da assistência que se estabeleceu, da escuta, de formação, e afirmou que já sentia os efeitos positivos da ação do NASF na saúde mental, pois, em um grupo formado com os usuários, os profissionais perceberam a diminuição do uso de psicotrópicos pela comunidade. Outra profissional dessa equipe explicou, ainda, que tinha sido importante a supervisão para que o NASF entendesse melhor seu papel em relação à rede de saúde mental, e para desconstruir uma relação de medo que, antes, essa profissional tinha em relação às pessoas que sofrem de transtornos mentais. Percebemos que a equipe CAPS apontava um anseio de saber sobre o transtorno mental, esperando encontrar uma resposta absoluta. Acreditamos que o saber sobre o transtorno deveria ser explorado nas supervisões, mas que seria imprescindível a sua articulação com o território e com a existência do usuário. Ao mesmo tempo, a equipe demandava falar sobre suas angústias, reapropriar-se de seu cotidiano, analisar suas relações dentro da equipe, com a rede, e com a gestão municipal, como veremos adiante. Essa demanda nos levou a adotar diversos saberes, não centrados no saber do supervisor e nem em uma única especialidade, mas englobando os saberes dos diversos sujeitos envolvidos no processo de supervisão.

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Nessa perspectiva, há, ainda, um movimento instituinte vivenciado nessas equipes em relação à própria supervisão, que aponta para uma apropriação da função do serviço na rede de atendimento de Atenção Psicossocial. A experiência dos dois modos de viver o momento de supervisão parece ora ser satisfatório, ora sentir falta de algo. Onocko Campos30 reflete sobre a experiência da mudança em equipes e afirma que nela está implicada uma escolha, na qual se ganham algumas coisas e perdem-se outras. Resta questionar: de quem foi a escolha? O que sabemos é que a mudança de supervisão era uma entre muitas outras que aquela equipe estava vivendo. Pensamos, ainda, que essas mudanças estiveram profundamente relacionadas à construção da demanda ao longo do processo de supervisão.

Segundo movimento – a análise do nível organizativo O analisador gestão do serviço O processo de análise sobre a gestão do serviço compreendeu um movimento entre a dificuldade da equipe de assumir as suas decisões (autogestão) e a heterogestão. A análise desse movimento instituído-instituinte se fortaleceu na medida em que houve o processo de restituição acerca dos rumos que a intervenção vinha tomando. Contextualizando essa discussão, todo o processo de supervisão foi acompanhado de dificuldades vivenciadas na gestão do trabalho em equipe: conflito entre o novo secretário de saúde e a antiga coordenação do serviço, que resultou na saída da coordenação, ficando apenas o administrador do serviço. O coordenador anterior ocupava a função, praticamente, desde o início do funcionamento do serviço. No primeiro encontro, foi discutido que a coordenação anterior sempre fazia tudo com muita agilidade, de forma dinâmica, o que diminuía a autonomia e possibilidade de participação de outros profissionais do serviço, e, ao mesmo tempo, sobrecarregava a coordenadora. Esse conflito retornou diversas vezes durante a supervisão, influenciando bastante os rumos da intervenção. Sobre as reuniões de equipe, o atual administrador do serviço, indicado para assumir a coordenação, apontava que os trabalhadores não se dispunham a participar das reuniões, afirmando não haver nada para ser discutido. Então, a equipe inicia um debate sobre quais seriam as características do papel do coordenador e do papel da equipe, e um dos trabalhadores afirma que “um coordenador é como um maestro que vai conduzindo e dando ritmo à equipe, e que isso é importante e que o administrador tem um papel mais burocrático”. Nesse sentido, a equipe do CAPS começa a construir coletivamente a função de coordenação do serviço. Encontramos aí uma dificuldade de o grupo construir estratégias de autogestão, terminando por responsabilizar uma figura central por isso. Onocko Campos30 retoma Pichon-Rivière sobre a função do coordenador de manter o grupo triangulando com a tarefa e, nesse sentido, operando. A equipe seria formada por pessoas diferentes, e o que irá diferenciar a gestão tradicional de uma democrática é que, na primeira, o sujeito é chefe, e, na segunda, o sujeito está coordenador, exercendo uma função que pode ser revezada. Paralelamente a isso, e relacionada à gestão do serviço, vimos ainda a necessidade de se construírem formas de gestão que propiciassem a participação dos usuários e familiares na avaliação das atividades do serviço. Assim, foi proposta (e realizada) a avaliação das atividades do serviço por meio de dispositivos, tais como as assembleias, que propiciaram a expressão dos trabalhadores e usuários do serviço. Apostar em processos autogestivos, nos quais os coletivos começam a reapropriar-se do seu cotidiano e dos saberes nele envolvido, implica adotar estratégias de horizontalização, entrando em um processo autoanalítico e produzindo sujeitos protagonistas na construção da realidade31.

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Terceiro movimento – a análise do nível organizativo O analisador gestão municipal

Isso se identifica com o que Neves32 analisa acerca do conjunto das práticas governamentais e gerenciais engendradas nas relações de trabalho ao longo da constituição do Estado brasileiro, como caracterizadas pelo patrimonialismo, clientelismo, autoritarismo e paternalismo. (e)

Nesse movimento, analisaremos a relação que a equipe CAPS mantinha com a gestão municipal, frente às ordens estabelecidas de forma vertical e pouco dialogada, negada por um movimento instituinte de maior diálogo e relação de apoio entre a equipe e a gestão. Desde os encontros iniciais, a equipe CAPS mostrava-se bastante angustiada diante da mudança do secretário de saúde do município, e, consequentemente, diante das alterações provocadas no CAPS e na rede de saúde. Dentre as dificuldades, foram citadas: a falta de medicação psicotrópica, problemas no transporte de alguns usuários em crise do CAPS I para CAPS III na cidade vizinha, e problemas no estabelecimento de diálogo com o secretário. Ao longo das discussões, o obstáculo apontado pela equipe para a ausência de diálogo eram as questões políticas e, sobretudo, o receio de represálias. Percebemos que duas questões explicitamente eram postas como justificativas para o silenciamento da equipe: o fato de nenhum trabalhador ser concursado e de que a política em cidade do interior é difícil, como explicado por uma das trabalhadoras. Nesse sentido, a precarização dos vínculos de trabalho articulava-se ao fato de a ocupação dos postos de trabalho estar sendo utilizada, culturalmente, como estratégia de favorecimento/desfavorecimento dos grupos e pessoas aliadas politicamente à gestão municipal(e). Questionamos um pouco se as coisas deveriam ser aceitas assim, se não haveria outro modo de agir, tentando dialogar mais com a gestão central. Algumas formas de tentar resolver a situação foram pensadas pela equipe: uma vereadora do município foi acionada pela equipe para mediar um diálogo, e a participação do secretário de saúde durante a supervisão para dialogar com a equipe. Assim, ele foi convidado para o momento de restituição e avaliação do trabalho e se disponibilizou, prontamente, a participar do que fosse necessário. Nesse encontro, levantamos o histórico do que tinha acontecido nos primeiros seis meses de supervisão, as dificuldades enfrentadas e, sobretudo, apontamos o movimento instituinte que víamos ser possível em meio àquele conflito, por meio de: reuniões constantes com o secretário, possibilidade de escolha da própria equipe sobre a coordenação (e não por indicação da secretaria de saúde) etc. O secretário de saúde justificou suas decisões, explicando as dificuldades do último ano, sobretudo financeiras, e evidenciou aquilo que foi possível fazer, quais as ofertas de atendimento que a prefeitura vinha estimulando e quais os avanços já conquistados nesse período. Além das carências anteriormente colocadas, a equipe tomou a fala e explicou a necessidade de contratação de uma arteterapeuta, e reforçou os problemas apontados. O secretário retomou a palavra, afirmando poder contratar uma arteterapeuta e estar de acordo com o fato de a equipe escolher um novo coordenador, mas solicitou que o comunicassem sobre a decisão. Ele acordou ainda com a equipe que esta planejasse suas atividades, e caso fosse preciso envolver outras secretarias, afirmou a necessidade de ele estar à frente para articular e viabilizar parcerias, apoiando as iniciativas do CAPS. Porém, solicitou que houvesse planejamento das atividades de acordo com as necessidades que os usuários apresentavam. Nesse analisador, aparecem as dificuldades de negociação com a gestão municipal acerca dos rumos e da autonomia do serviço. Os estilos de gestão e de atendimento da organização CAPS são influenciados por traços culturais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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da administração brasileira, com aspectos que tendem a facilitar a prática de valores nem sempre democráticos e a reprodução de uma lógica corporativista33. Vieira Filho e Nóbrega33 apontam que a análise das contradições vivenciadas nos serviços e a possibilidade da desconstrução-reconstrução institucional favorecem o surgimento de caminhos alternativos para as novas práticas de atendimento, com possibilidade de criação e invenção institucional. A democratização da gestão precisa vir acompanhada de algumas mudanças no perfil dos gestores, com habilidades como: a capacidade de arbitrar, lidando com a dimensão do encontro nos ambientes técnicos e humanos, e de gerir a dimensão histórica e singular de cada situação9. Acreditamos que o dispositivo supervisão auxiliou no desenvolvimento de habilidades gestoras que favoreceram a relação de apoio necessária nesse momento singular vivenciado pela equipe.

Algumas considerações: afinal o que esta experiência revela? A partir da experiência analisada, percebemos que há processos constantes de institucionalização dos modos de trabalho das equipes e que implicam transformações no modo de fazer supervisão. Onocko Campos30 explica que a supervisão institucional é um dos dispositivos usados para subverter as linhas de poder instituídas nos serviços. Como ferramenta de educação permanente, ela precisa ser um espaço não apenas de resolução, mas de problematização, no qual não se impõem os ideais do supervisor, desprivilegiando o desejo e o conhecimento dos trabalhadores das equipes. No processo vivenciado, evidencia-se a compreensão do gestor como um apoiador institucional, com ampliação do espaço de diálogo entre os gestores municipais e as equipes da rede de saúde, tentando desconstruir a lógica da gestão verticalizada. O gerente necessita de formação técnica em saúde e em gerência, além de exercer uma função de suporte para os grupos30. Nesse sentido, construímos um modo de fazer supervisão inacabado e que tenta colocar, em análise, o lugar de hierarquia de saber-poder que a supervisão tradicionalmente ocupa. As supervisões devem ser permeáveis à dinâmica do grupo, às características de seu contexto, aos seus saberes e afetos, às experiências vivenciadas pelos usuários. O caráter de construção permanente pode propiciar aumento do coeficiente de transversalidade no grupo, momentos de experimentação dos trabalhadores enquanto grupo-sujeitos.

Colaboradores Ana Kalliny de Sousa Severo responsabilizou-se por todas as etapas do trabalho. Solange L’Abbate responsabilizou-se pela revisão teórica do referencial teórico-metodológico. Rosana Teresa Onocko Campos auxiliou na revisão teórica sobre o tema supervisão e nas análises desenvolvidas no artigo. Referências 1. Portaria nº 1.174/GM, de 7 de julho de 2005. Destina incentivo financeiro emergencial para o Programa de Qualificação dos Centros de Atenção Psicossocial - CAPS e dá outras providências. Diário Oficial da União. 8 Jul. 2005. Seção I:38. 2. Grigolo T, Delgado PG, Schmidt MB. Avaliar CAPS: um retrato do funcionamento da rede de serviços substitutivos no Brasil. In: Campos Fb, Lancetti A, organizadores. Saúde e loucura: experiências da reforma psiquiátrica. São Paulo: Hucitec; 2010. v. 9, p. 371-90. 3. Ministério da Saúde. O ofício da supervisão e sua importância para a rede de saúde mental do SUS [Internet]. Brasília (DF); 2007 [acesso 2012 Dez 13]. Disponível em: http:// portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=31355

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Severo AKS, L’Abbate S, Onocko Campos RT. La supervisión clínico-institucional como dispositivo de cambios en la gestión del trabajo en salud mental. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):545-56. La reforma psiquiátrica brasileña pretende realizar cambios relevantes en el cuidado de las personas con trastornos mentales. En este contexto, la supervisión clínico-institucional es una de las principales estrategias de calificación para transformar los modos de gestión de trabajo y de la clínica, desarrollados en los servicios sustitutivos. Este artículo analiza la experiencia de supervisión clínico-institucional desarrollada con la red de salud mental de un municipio de la región Nordeste. Utilizamos el referencial del Análisis Institucional. Los sujetos fueron los trabajadores de un Centro de Atención Psicosocial I y del Núcleo de Apoyo a la Salud de la Familia. Los principales analizadores fueron: funcionamiento de la supervisión, gestión del servicio y gestión municipal. Ese dispositivo promovió el movimiento instituidor con el equipo, proporcionando una alianza entre los servicios y el gestor municipal y la movilización de los trabajadores como grupos-sujetos en salud mental.

Palabras clave: Reforma Psiquiátrica. Supervisión clínico-institucional. Análisis institucional. Gestión del trabajo. Salud mental. Recebido em 12/06/13. Aprovado em 08/05/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0680

artigos

Ouvir vozes:

um estudo sobre a troca de experiências em ambiente virtual

Octávia Cristina Barros(a) Octavio Domont de Serpa Júnior(b)

Barros OC, Serpa Júnior OD. Hearing voices: a study on exchanges of experiences in a virtual environment. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):557-69.

Through studying exchanges of experiences among people who hear voices in a virtual environment, this paper explored the ways in which these people create strategies for sharing their experiences in a group, thereby searching for an alternative to psychiatric knowledge regarding verbal auditory hallucination. It described the creation of the Intervoice network and its migration to the virtual environment. Use of netnography demonstrated that this environment is appropriate for exploring exchanges of experiences between people who hear voices and emphasizing the relationship with their use of medication and the ways in which they deal with the voices. This study also observed how people who hear voices use the virtual environment to create social bonds and a new way of existing in the world.

O presente artigo, por meio do estudo da troca de experiência entre os ouvidores de vozes em um ambiente virtual, explora como essas pessoas criam estratégias para compartilhar sua vivência em um coletivo, na busca de alternativa ao saber psiquiátrico acerca da alucinação auditiva verbal. Discorre sobre a criação da rede Intervoice e de sua migração para o ambiente virtual. O emprego da netnografia demonstra que esse ambiente é propício para explorar a troca de experiências entre os ouvidores de vozes, enfatizando sua relação com o uso da medicação e a forma de lidar com as vozes. Observa a forma como os ouvidores de vozes utilizam o ambiente virtual para criar laços sociais e uma nova maneira de estar no mundo.

Palavras-chave: Ambiente virtual. Ouvir vozes. Ajuda interpares.

Keywords: Virtual environment. Hearing voices. Peer support.

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Mestranda em Saúde Mental, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Av. Venceslau Brás, 71 fundos, Campus Praia Vermelha, Botafogo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22290-240. octaviacristinabarros@ yahoo.com.br (b) Instituto de Psiquiatria, UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. domserpa@ ipub.ufrj.br (a)

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ouvir vozes: um estudo sobre a troca de experiências...

Introdução Nosso interesse pelo tema relaciona-se à experiência prévia dos autores no cuidado de pacientes psicóticos acompanhados em diferentes contextos institucionais e que vivenciam o fenômeno da alucinação auditiva verbal, incluindo a pesquisa realizada no Laboratório de Psicopatologia e Subjetividade da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenada pelo professor Octavio de Serpa Jr.: Ouvir vozes: um estudo sobre alucinação auditiva verbal (financiamento FAPERJ E-26/171.369/2004), que foi inspirada em uma iniciativa inovadora realizada na Holanda. Esta experiência indicou que muitas pessoas que ouvem vozes aprendem a conviver com elas de forma positiva, contribuindo para demonstrar que o nexo entre a experiência de ouvir vozes e a presença de um transtorno mental não é tão firme assim1,2. A experiência alucinatória na população geral é apontada desde o estudo pioneiro de Sidgewick em 18943 – que indicou que 8% dos homens e 12% das mulheres, de uma amostra de dezessete mil pessoas, já tinham experienciado alguma vivência alucinatória – até o estudo de Tien, (1991)3 – que encontrou uma prevalência de fenômenos alucinatórios em 10-15% (2,3% ouviam vozes), numa amostra de 18.572 pessoas. Embora tradicionalmente classificada como uma alteração da sensopercepção, pelos manuais de Psicopatologia, a alucinação auditiva verbal – forma técnica de designar a experiência de “ouvir vozes” – já era percebida por alguns psiquiatras no século XIX e início do século XX (Baillarger, Seglas, de Clérambault, Ey, por exemplo) em sua particularidade com relação às alucinações relativas às outras modalidades sensoriais. Para estes estudiosos, a alucinação auditiva verbal deveria estar mais propriamente referida a alguma outra esfera do psiquismo, como a linguagem ou o controle das próprias ações4. Estudos contemporâneos em neurociência cognitiva5, fenomenologia6 e neurofenomenologia7 parecem confirmar esta intuição, indicando que a experiência de ouvir vozes decorre de transformações nos aspectos mais básicos, pré-reflexivos, da autoconsciência, mais especificamente no que diz respeito ao sentimento de agentividade, de modo que o sujeito atribui a outrem a origem de ações motoras ou mentais que ele próprio gerou. Este entendimento dá importantes pistas clínicas, sugerindo que criar condições para que o sujeito ouvidor de vozes possa se apropriar das suas experiências alucinatórias, ressignificando-as, pode ser um caminho para transformar o caráter doloroso e alienante que frequentemente marca este tipo de vivência. No final da década de 1980, uma iniciativa relevante na Holanda foi capaz de colocar, nesta direção, as práticas clínicas junto aos que ouvem vozes, a partir do encontro do psiquiatra Marius Romme1,8,9 e uma de suas pacientes que referia ouvir vozes1, que detalharemos adiante. Em 1987, Marius Romme e Sandra Escher1,8,9 fundaram um movimento que defende o emprego de novas abordagens, utilizadas por aqueles que enfrentaram positivamente as vozes1. Para melhor divulgar e promover a discussão da temática da audição de vozes, foi criada uma organização formal que oferece suporte administrativo e coordena a ampla variedade de iniciativas em diferentes países, chamada de Intervoice (The International Network for Training, Education and Research into Hearing Voices). Existem redes nacionais de ouvidores de vozes em 26 países e o movimento está entre os grupos de apoio de mais rápido crescimento no mundo. Estas redes nacionais de ouvidores de vozes são apoiadas pelo Intervoice, que atua como um órgão de coordenação internacional e é dirigido por um conselho constituído por pessoas que ouvem vozes e por profissionais especializados. O Intervoice organiza, anualmente, um Congresso Mundial sobre ouvir vozes e um Dia Mundial de Ouvidores de Vozes, em 14 de setembro. Em 2007, foi criada uma página do Intervoice no ambiente virtual (http:// www.intervoiceonline.org). A era digital configurou-se terreno fértil onde os ambientes virtuais aproximam pessoas em tempo real, e tornou-se propício à divulgação e compartilhamento das experiências dos ouvidores de vozes na perspectiva da ajuda interpares. Este trabalho propõe-se a pesquisar como os sujeitos ouvidores de vozes se relacionam entre si e se organizam no ambiente virtual, e de que maneira a troca de experiências pode contribuir para novas alternativas de tratamento, tomando como objeto de estudo o site Intervoice. Para fundamentar esta pesquisa, faremos uma breve conceituação da ajuda interpares (peer support), bem como um panorama do desenvolvimento do movimento de ouvidores de vozes, incluindo suas formas de organização no ambiente virtual. Posteriormente, apresentaremos a fundamentação metodológica, os resultados e a discussão da observação netnográfica realizada. 558

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Barros OC, Serpa Júnior OD

artigos

Ajuda interpares e saúde mental Para Mead et al.10, ajuda interpares é um sistema de dar e receber ajuda baseado em princípios fundamentais de respeito, responsabilidade compartilhada e acordo mútuo. Não se baseia em modelos psiquiátricos e critérios diagnósticos, mas busca compreender a situação do outro empaticamente, por meio da experiência compartilhada da dor emocional e psicológica. Os serviços de ajuda interpares fornecem a oportunidade para indivíduos em recuperação de doenças mentais auxiliarem seus pares a seguir em frente em suas jornadas para recuperação pessoal e a levar vidas significativas na comunidade. A ajuda interpares promove a responsabilidade pessoal pela recuperação. Segundo Dass et al.11, a ajuda interpares pretende normalizar o que tem sido apontado como anormal. Pessoas marcadas com transtorno psiquiátrico tornam-se vítimas de ostracismo social e cultural, e desenvolvem um senso do eu que reforça a identidade “paciente”. O movimento dos usuários na área da saúde mental procura a justiça social por intermédio da compreensão das doenças mentais em termos de direitos humanos e do enfrentamento da supressão social da diferença, buscando romper com o estigma alienante das pessoas que apresentam sofrimento psíquico. Na “Cartilha Ajuda e Suporte Mútuos em Saúde Mental”, Vasconcelos12 aponta que grupos de ajuda e suporte mútuos oferecem não só informações, mas troca de afetos, compaixão, humanidade, enfatizando a possibilidade de esperança na recuperação em saúde mental. Os grupos de ajuda e suporte mútuos surgem organizados por pessoas com vivências e problemas similares, proporcionando conforto, pois muitos participantes já ultrapassaram muitas fases difíceis, aprenderam com os próprios desafios, recriaram e reinventaram suas vidas, oferecendo o que os tratamentos convencionais não conseguem oferecer: a possibilidade de troca de experiências.

O movimento dos ouvidores de vozes A audição de vozes tem sido vivenciada por diversas pessoas, em diferentes épocas e contextos socioculturais, e constitui-se como um mosaico de experiências com significados bastante diversos, que variam conforme a história de vida de quem ouve vozes e consoante o sistema de ideias, valores e crenças da cultura na qual se está inserido. Em algumas culturas, a audição de vozes tem o estatuto de uma experiência situada no registro do sagrado, da espiritualidade3,13. Na cultura ocidental moderna, a audição de vozes é comumente associada à experiência da “loucura”, situada no âmbito da individualidade, da experiência subjetiva, passando a ser classificada, também, como um sintoma psiquiátrico passível de tratamento1. Os grupos de ouvidores de vozes surgiram na Holanda, no final dos anos 1980, com o intuito de oferecer a pessoas com esse tipo particular de vivência, a oportunidade de compartilhá-las em um coletivo1. A iniciativa parte da ideia de que o problema principal não reside no fato de ouvir vozes, mas na dificuldade de estabelecer algum tipo de convivência com elas. A troca de experiências e a produção de narrativas pessoais sobre o assunto surgem como uma alternativa ao saber psiquiátrico acerca da alucinação auditiva verbal. A nova estratégia permite que os ouvidores de vozes compartilhem vivências, e possibilita uma maneira diferente de estar no mundo, diferente daquelas dos manuais de psiquiatria, que se limitam a rotular um sujeito que manifesta o fenômeno da alucinação auditiva, enquadrando-o numa etiqueta diagnóstica. Rosenberg14 chama atenção para este papel central que os diagnósticos médicos adquiriram desde o século XIX e ao longo do século XX, naturalizados e tomados como entidades existentes, independentemente de qualquer perspectiva pessoal, cultural ou histórica, desvendadas por meio dos avanços da ciência. O autor identifica três fatores fundamentais no processo de consolidação das categorias diagnósticas na cultura ocidental: o desenvolvimento de tecnologias biomédicas; a centralidade que os hospitais adquiriram desde o século XIX enquanto locais de tratamento, mas também de formação e pesquisa; e o papel das práticas e estruturas burocráticas, que dependem de (ou engendram) procedimentos classificatórios operacionais e sistematizados, como os ensaios clínicos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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randomizados, as conferências de consenso e as convenções codificadas dos quadros nosográficos (DSM e CID). A criação de grupos de ajuda mútua compostos por pessoas que escutam vozes foi uma das estratégias propostas pelo psiquiatra Marius Romme1,8,9 a sua paciente Patsy Hage, a qual, diagnosticada como esquizofrênica, ouvindo vozes desde a infância, há muito procurava algo que lhe permitisse compreender suas vivências. Até que a leitura do livro The Origin of the Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, de Julian Jaynes15, deu-lhe a resposta procurada. Jaynes defendia que ouvir vozes, em certo ponto da história do desenvolvimento filogenético da espécie humana, era um fato normal, decorrente da “conversação” entre os hemisférios cerebrais. Dr. Romme1,8,9 sugeriu a Patsy que encontrasse outras pessoas que ouviam vozes e discutisse com elas suas ideias. Essa experiência os levou a participar de um programa de entrevistas muito popular na televisão holandesa na época – 1987. A repercussão foi imediata. Foram procurados por setecentas pessoas, das quais quatrocentas e cinquenta disseram ouvir vozes. Destas, trezentas afirmaram não saber como lidar com as vozes, e cento e cinquenta afirmavam ter descoberto alguma maneira de, pelo menos, manter as vozes sob controle. Em decorrência da resposta positiva que obtiveram, organizaram, em outubro de 1987, em Utrecht, um workshop para reunir estas pessoas. Deste encontro, surgiu uma organização de suporte mútuo, a Ressonance Foundation, que inspirou organizações semelhantes em outros países. Dessa iniciativa, originou-se o The Hearing Voices Movement, fundado por Romme e Escher1,8,9, defendendo o emprego de novas abordagens, além das tradicionais, utilizadas por aqueles que enfrentaram positivamente as vozes. Para divulgar e promover a discussão da temática da audição de vozes, foi criada uma organização formal que oferece apoio administrativo e coordena uma ampla variedade de iniciativas em diversos países, a Intervoice (The International Network for Training, Education and Research into Hearing voices). O trabalho junto aos ouvidores de vozes, desenvolvido na Holanda, foi apresentado por Romme e Escher1,8,9 no congresso La Questione Psichiatrica de 1988, em Trieste, despertando o interesse de Paul Baker da Associação MIND(c) (http://www.mind.org.uk/about/what_we_do/a_history_ of_mind), de Manchester. A troca de experiências que se estabeleceu entre eles culminou no convite para a participação de Baker no Congresso “Pessoas que ouvem vozes”, realizado em Maastricht, neste mesmo ano, organizado, conjuntamente, pela Ressonance Foundation e o Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburg. Seguindo os passos do The Hearing Voices Movement, foi criada, em Manchester (1989), a The Hearing-Voices Network, integrada por ouvidores de vozes, familiares e profissionais de saúde de diversos países, e que conta também com o apoio de Romme1,8,9 – é hoje a mais expressiva associação de suporte mútuo de ouvidores de vozes, atualmente com mais de cento e oitenta grupos de ajuda interpares. A comunidade internacional de ouvidores de vozes abrange mais de oitenta países, com grupos em diferentes regiões. Embora muitos de seus membros tenham um diagnóstico psiquiátrico, os grupos têm uma visão alternativa, onde a audição de vozes não é necessariamente vista como um indicativo de doença mental. A crescente produção de estudos a respeito da audição de vozes, a ampla diversidade de países vinculados à Intervoice e à The Hearing-Voices Network, e outras iniciativas grupais não necessariamente vinculadas às organizações formais, apontam para a importância que a temática da audição de vozes tem ganhado 560

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(c) Estabeleceu-se como Associação Nacional para a Saúde Mental em 1946, pela fusão de três grandes organizações de Saúde Mental: Associação Central de Assistência Mental, Conselho Nacional de Higiene Mental e Conselho de Orientação da Criança.


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em diferentes contextos culturais. A partir do ano de 2007, a Intervoice cria uma página no ambiente virtual, oportunizando maior participação dos interessados na temática.

Ambiente virtual e ouvidores de vozes: outras possibilidades O ambiente virtual é propício para explorar como se expressa a troca de experiências de ouvidores de vozes. Esses grupos, resultantes da tendência atual para a emergência de organizações descentralizadas, constituem poderoso instrumento de intervenção psicossocial e de mudança. Um desafio para todos aqueles que se interessam pela promoção do bem-estar, da saúde e dos direitos sociais. Lévy diz que a comunicação interativa e coletiva é a principal atração dos ambientes virtuais, e essa interação é um instrumento que parte do social e possibilita desenvolvimento, a partir da partilha da memória, da percepção, da imaginação, resultando na aprendizagem coletiva e na troca de conhecimentos entre os grupos16. Bauman17 compreende que, quanto maior o grau de confiança entre os membros de uma comunidade, maiores as chances de que as comunidades se desenvolvam em prol dos seus objetivos. O autor não trata das comunidades virtuais propriamente, mas traz uma visão sociológica dos ambientes virtuais na sociedade em redes. A inter-relação dos indivíduos favorece novos conhecimentos, anseios e relações, até mesmo novas linguagens e padrões. Esse tipo de comunicação facilita a discussão de assuntos importantes, abre espaço para individualidades, quebra tabus e diminui o tempo e os espaços “comuns”. Em 2007, foi criado o site Intervoice, de acesso público (http://www.Intervoiceonline.org/aboutvoices), com a proposta de iniciar uma comunidade on line interativa, segura para os ouvidores de vozes, facilitando a troca de experiências na busca por formas de superação das dificuldades enfrentadas pelas pessoas que ouvem vozes, destacando os aspectos mais positivos da experiência e sua importância histórico-cultural. Em 2009, foi criado o grupo Intervoice no Facebook (http://www.facebook.com/groups/ Intervoice/), que, em maio de 2013, contava com mais de mil e setecentos membros. O conteúdo das postagens é de acesso público, porém a associação ao grupo é feita por meio de solicitação de usuários já cadastrados no Facebook. Aceita a solicitação pelo moderador do grupo, os participantes podem postar comentários, fotos, vídeos e arquivos no grupo, funcionando como um fórum para discussões, apoio, conselhos e informação sobre escutar vozes, para qualquer um com interesse (ouvidores de vozes, familiares, amigos e profissionais). É válido ressaltar que, na internet, alguns usuários preferem usar seus nomes reais, outros preferem utilizar pseudônimos. Grupos abertos como este aparecem nos resultados de pesquisa no Facebook ou em ferramentas de busca tipo Google. Apesar de ser normal a discordância sobre crenças, estes grupos não são lugares para ataques/ piadas pessoais ou insultos. As discussões não são moderadas de forma estrita, contudo, há uma regra que prevê que os posts de insulto/ataque serão removidos. Como nos lembra Braga18, a possibilidade de anonimato e outras características da rede podem funcionar como facilitadores para laços sociais afáveis, mas acabam funcionando, também, para hostilidade e desrespeito. As ideias e opiniões expressadas não refletem pontos de vista do Conselho Intervoice (http:// www.intervoiceonline.org/about-intervoice/meet-the-board-2-), e sim dos muitos e diversos participantes do site. O público de interesse é direcionado pelo próprio site ao grupo do Facebook, considerado uma ferramenta dinâmica, com intensa troca de informação. Há uma série de fóruns indicados pelo próprio site. “Fórum de discussão” é uma ferramenta para páginas de internet destinadas a promover debates por meio de mensagens publicadas abordando uma mesma questão. Para participar, é necessário cadastro com e-mail, nome de usuário e senha. Com a expansão das modalidades de ferramentas virtuais e redes sociais, em 2011, foi criada a página no Facebook: “Hearing Voices Movement Media Watch” (https://www.facebook.com/ HVMMediaWatch), que tem mais de quatrocentos e setenta seguidores (maio/2013), e fornece informação regularmente sobre pesquisas e coberturas da mídia acerca de tópicos relacionados a ouvidores de vozes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Há, também, uma página no Twitter (https://twitter.com/VoicesUnLtd) com atualizações diárias e mil, seiscentos e quarenta seguidores (maio/2013), e um canal no YouTube (http://www.youtube.com/user/v01ce5000), criado em 2011. O canal fez, até o momento registrado, 4.745 exibições de seus 13 vídeos próprios, sem contabilizar todos os outros duzentos e trinta vídeos disponíveis em suas nove listas de reprodução. As listas de reprodução podem ser usadas c​ omo uma ferramenta organizacional, e os criadores podem usá-las como parte de uma experiência de visualização linear para seu público. Possibilitam que um canal crie conteúdo estendido para seus espectadores por meio de vários vídeos (https:// www.youtube.com/yt/playbook/pt-BR/playlists.html). Os vídeos disponíveis no YouTube variam entre experiências, notícias na mídia, esclarecimentos de profissionais da área e músicas sobre o assunto. Recentemente, foi criado um mapa no Google que indica grupos em 27 países(d), sendo que 22 países são contabilizados como redes nacionais: Austrália, Áustria, Canadá(e), Dinamarca, Inglaterra, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Japão, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Palestina, Escócia, Espanha, Suécia, Suíça, EUA, País de Gales. Uganda, Tanzânia, Cingapura, Quênia e Bósnia possuem grupos com atividades de troca de experiências. A intenção é garantir que a abordagem inovadora, de compartilhar experiências no ambiente virtual, seja mais conhecida por usuários, familiares, amigos e profissionais.

A observação netnográfica do site Intervoice O presente estudo tem como objetivo pesquisar e analisar, no ambiente virtual, expressões da experiência de ouvir vozes, bem como identificar estratégias que permitam ajuda mútua, contribuindo para que outras pessoas conheçam essa experiência no ambiente virtual e divulgando, para a sociedade, outras formas de atenção aos ouvidores de vozes. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório e abordagem interpretativa do site Intervoice (http://www.intervoiceonline.org), por meio de um estudo netnográfico. Segundo Kozinets19, a netnografia é um método de pesquisa derivado da técnica etnográfica desenvolvida no campo da antropologia, e que tem conhecido um crescimento considerável devido à complexidade das experiências da sociedade digital. Este método é constantemente utilizado por pesquisadores das áreas da comunicação, do marketing, da antropologia e da sociologia. Hine20 considera que a chegada da internet colocou um desafio significativo para os métodos de pesquisa porque toma como objeto de investigação as novas formações sociais que surgem quando as pessoas se comunicam e se organizam via e-mail, websites, redes sociais, telefones móveis etc.. O neologismo “netnografia” (nethnography = net + ethnography) foi, originalmente, cunhado por um grupo de pesquisadores norte-americanos21, para descrever o desafio metodológico de preservar os detalhes ricos da observação usando o meio eletrônico como campo etnográfico18. O termo netnografia mantém relação com o método etnográfico por buscar estudar grupos ou culturas; no caso da netnografia, on line22. As características da observação na netnografia são discutidas por Braga18,23, que considera impossível observar sem participar. Contudo, trata-se de uma participação muito peculiar, na medida em que é possível, para o pesquisador, tornar-se invisível, vendo sem ser visto, e não interferindo nas interações sociais observadas. Essa participação (ainda que invisível) permitirá a descrição e a compreensão dos significados compartilhados pelos membros do grupo em foco. 562

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Disponível em: https://maps. google.co.uk/maps/ ms?msid=20685466890 6561198640.0004d 62ee0abdfd28256e &msa=0&ie=UTF8&t =m&source=embed &ll=40.901058, -74.520264&spn= 2.503504, 4.938354 (d)

(e) O vídeo “Knowing You, Knowing You”, lançado em DVD, pode ser acessado em: http://www.youtube. com/watch?v=MB 869Pk390U


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(f)

Tradução nossa.

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Ao optar por fazer uma pesquisa de observação de um ambiente virtual, a netnografia é a ferramenta metodológica que mais se aproxima das nossas necessidades. A pesquisa foi realizada através de observação netnográfica – realizada de janeiro a maio de 2013 – das interações dos ouvidores de vozes em ambiente virtual. Na primeira etapa, foi realizada a observação e análise do site Intervoice a fim de se obterem informações de relevância para o contorno da pesquisa. Estas informações foram complementadas por um informante-chave (moderador do grupo Intervoice no Facebook) por meio de troca de mensagens eletrônicas. Na segunda etapa, foi feita a transcrição da observação das interações entre os ouvidores de vozes a partir das práticas comunicacionais dos membros do site. E, na última etapa, identificamos estratégias que permitem contribuir para novas alternativas de abordagem do fenômeno de ouvir vozes. Os sujeitos elencados nesta pesquisa são do sexo masculino e feminino, adultos e usuários do referido ambiente virtual, priorizando identificar as diferentes visões dos ouvidores de vozes, bem como as suas diferentes opiniões sobre esse fenômeno. Para esta investigação, foram selecionadas vinte postagens de acesso público dos usuários do site Intervoice. O site oferece as seguintes abas(f): “Quem Somos”, “Sobre as Vozes”, “Apoio e Recovery”, “Jovens”, “Publicações”, “Pesquisa e Notícias”. Na aba “Sobre as Vozes”, foram observadas cento e quarenta postagens de acesso público, e, na aba “Apoio e Recovery”, 113 postagens de acesso público. Essas abas foram as mais consultadas para esta pesquisa porque apresentam postagens que tratam das categorias descritas a seguir (uso da medicação e forma de lidar com as vozes), que permitem uma reflexão acerca da busca dos ouvidores de vozes pela construção de um modo particular de existir.

A experiência de ouvir vozes e como lidar com ela A partir deste trabalho de observação no site Intervoice, elencamos duas categorias que se destacaram nas postagens, “Uso da medicação” e “Forma de lidar com as vozes”, considerando que esses temas indicaram as ações de cuidados e (des)cuidados no tratamento psiquiátrico tradicional na visão dos ouvidores de vozes.

Uso da medicação No mundo contemporâneo, a indústria farmacêutica oferta drogas para uma ampla gama de estados mentais: para acelerar e desacelerar, para estimular e relaxar, para concentrar, alegrar, tirar medos etc.. Hoje, cada tipo de malestar cabe num diagnóstico, e, para cada diagnóstico, há um medicamento. Os sofrimentos cotidianos e contratempos da vida estão agora “medicalizados”, codificados como doenças que requerem tratamento. Embora a apropriação médica da experiência de ouvir vozes e sua categorização como alucinação auditiva verbal (sintoma de transtorno mental) não sejam eventos recentes e não se encaixem plenamente na definição de Conrad24 para medicalização – processo pelo qual problemas não médicos se tornam definidos e tratados como problemas médicos –, entendida como um processo mais característico da segunda metade do século XX em diante, as abordagens convencionais, em psiquiatria, para a alucinação auditiva verbal têm ignorado o significado da experiência dos ouvidores de vozes e se concentrado na remoção dos sintomas (alucinações auditivas) por meio do uso de medicamentos8. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Contudo, as fronteiras entre o que deve ou não deve ser definido como doença – medicamente tratável – não é um fato natural, sendo construídas em um processo24 que envolve a negociação entre diferentes grupos de interesse (médicos, indústria farmacêutica, seguradoras, pacientes, familiares etc.), de modo que categorias médicas podem se expandir ou contrair, no sentido da medicalização ou da desmedicalização, como veremos nos posts dos ouvidores de vozes. Embora a medicação antipsicótica seja útil para algumas pessoas, há uma proporção significativa (30%) que, ainda assim, experimenta os “sintomas” (como ouvir vozes), apesar do uso de doses muito altas de antipsicóticos25. Além disso, medicamentos antipsicóticos não propiciam, necessariamente, o processamento emocional e a construção de significado para vozes9. No decorrer da observação, algumas postagens feitas entre os anos 2011 e 2012 se destacam: Ouvidor 1 “Muitas pessoas que ficam marcadas com doença psiquiátrica não têm a oportunidade de recuperação, são encorajadas a permanecerem doentes por um sistema que, muitas vezes, impede o crescimento psicológico por uso de drogas psicotrópicas excessivas. Este excesso de uso de medicação também mata pessoas. As drogas causam uma longa lista de problemas, como: diabetes, obesidade, doenças cardíacas, etc.” Ouvidor 2 “Eu trabalho em um hospital estadual, onde uma das unidades tem estudantes de medicina e estagiários da Universidade Estadual de centro médico. Eu assisto às aulas de dois psiquiatras no hospital, não ensinam nada, apenas medicamentos, drogas, drogas! Eles nunca aprendem ouvir e falar com as pessoas.” Ouvidor 3 “Psiquiatras e médicos recebem uma lavagem cerebral pela doutrina que recebem. É difícil para eles ter mentes abertas, corações e espíritos. Também é muito difícil para as pessoas que podem sinceramente tentar “ajudar”. As pessoas devem ter escolha em um mundo livre. Onde está a opção para as pessoas que foram severamente danificadas?”

Alguns alegam que o movimento dos ouvidores de vozes normaliza vozes e outras experiências incomuns, oferecendo uma verdadeira alternativa para ajudar as pessoas a não existirem apenas como marginalizadas, medicalizadas, recuperando sua condição de cidadãos na comunidade. Ouvidor 4 “A psiquiatria tradicional não apoia o movimento dos ouvidores de vozes, quer nos trazer de volta ao redil. Sua mensagem é: se ouvirmos a voz da razão, vamos ver o erro dos nossos caminhos. Os métodos devem ser baseados em evidências e para isso é importante respeitar as tradições estabelecidas pelo paradigma psiquiátrico. Nossa força reside em fazer exatamente o que estamos fazendo, que é recusar a obedecer as diretrizes psiquiátricas tradicionais, o que implica num movimento de direitos civis. Ou, nos submeter como escravos a seus senhores, que possuem métodos sobre como nos libertar. Se fosse para aceitar as diretrizes e tradições do paradigma psiquiátrico, nossas vozes silenciadas desapareceriam, mais uma vez, e permaneceríamos como pacientes colonizados. Como podemos evitar a colonização?” Ouvidor 5 “Precisamos criar espaços de cura que não aprisionem o pensamento e estimulem a compreensão e a inclusão.”

Observamos, no ambiente virtual, um movimento originado dos ouvidores de vozes em criar estratégias para se libertarem do uso excessivo de medicação, que julgam “encarceramento”,

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assumindo a postura de recusa ao tratamento psiquiátrico tradicional, tomando para si a condução de sua vida, resgatando seus direitos civis, aprendendo a conviver com suas vozes. Ouvidor 6 “Optei por concentrar em apenas um aspecto, a diversidade, o poder e a beleza da música das nossas vozes.”

Forma de lidar com as vozes Existem pessoas que ouvem vozes e têm uma relação positiva com essa experiência. As vozes podem ser vivenciadas de forma integrada no cotidiano de uma pessoa, sem causar prejuízos ou dificultar tarefas. Pelo contrário, alguns consideram ouvir vozes como algo agradável, como algo a mais na experiência cotidiana ou, até mesmo, como algo que lhes faz companhia e cuja presença é reconfortante. A forma como cada pessoa lida com essa experiência é mais importante do que o fato de ouvir vozes em si. Ouvidor 7 “Você pode ter qualquer relacionamento que você escolher com as vozes. Na verdade, eu os vejo como anjos da guarda. O que você tem a fazer é estabelecer uma relação de trabalho com as vozes. Essa relação precisa ser positiva, as vozes são nossos anjos, onde podemos compartilhar todas as nossas experiências.” Ouvidor 8 “Obrigado por colocar este site. Eu li algumas de suas histórias, eu sou um engenheiro, também um acadêmico. Tenho ouvido vozes desde os últimos seis anos, e a voz me diz exatamente o que vai acontecer no futuro, em diferentes partes do mundo, e também me diz o que os meus colegas estão fazendo. Acredite em mim, eu me sinto seguro, mesmo contra desastres, porque a voz tem me alertado muitas vezes.”

Já aqueles que se sentem submetidos a essa experiência, de forma passiva, não conseguindo preservar seu cotidiano ou manter suas atividades, estão mais predispostos a desenvolver uma relação negativa com as vozes. É importante que essas pessoas encontrem formas e espaços que as ajudem a lidar com essa experiência. Falar das vozes e tentar situá-las no contexto de suas vidas pode ajudá-los a tornarem-se sujeitos de suas experiências26, 27. Ouvidor 9 “Eu tenho ouvido vozes nos últimos sete anos, às vezes elas parecem ser capazes de prever as coisas, e às vezes não conseguem dizer a verdade, sugerem várias ideias negativas.” Ouvidor 10 “Vozes nem sempre são boas e não devem ser tratadas como se fossem normais.” Ouvidor 11 “Tenho várias vozes e eu sei que elas são minhas, e tenho um certo grau de controle sobre elas, mas elas discutem umas com as outras, gerando um conflito. Na maioria das vezes elas são úteis, mas preciso ficar quieto. Qualquer ajuda de vocês será bem-vinda.” Ouvidor 12 “Eu considero a minha voz única e verdadeira família, sempre está lá para me ajudar.”

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Ouvidor 13 “Estou muito interessado em ter descoberto este site – é confortante ver tantas pessoas que resolveram encarar suas vozes como parte normal da sua experiência.” Ouvidor 14 “Só de ler alguns dos posts aqui, é ainda mais claro para mim que a experiência de cada um é diferente.”

Não queremos, contudo, dar a impressão de que a experiência de ouvir vozes é (ou deve sempre ser) vista como uma experiência banal, trivial, tranquila. Não é isso que assistimos no dia a dia da prática clínica. Para muitos, esta experiência é muito dolorosa, perturbadora, desesperadora. Ouvidor 15 “Intervoice salvou minha vida. Eu estava à beira do suicídio. Uma perspectiva esclarecida me trouxe para casa, para os meus sentidos.” Ouvidor 16 “Às vezes as vozes são benéficas e em outras vezes elas não são.”

Percebemos, nas postagens selecionadas, que a rede Intervoice permite, aos usuários, união, troca e fortalecimento de vínculos e, sobretudo, buscar formas individualizadas mais favoráveis para o enfrentamento dos problemas elencados.

Considerações finais Nosso campo de interesse foi analisar a forma como os ouvidores de vozes se expressam e se relacionam no ambiente virtual, na busca do apoio mútuo e troca de experiências. Observamos que os ouvidores de vozes utilizam o ambiente virtual para a promoção de laços sociais, muitas vezes difíceis de serem estabelecidos na vida em sociedade, em consequência dos preconceitos e da falta de compreensão do fenômeno. Ouvidor 17 “Eu gostaria de ter e-mails de pessoas que sofrem como eu, bom saber que não estou sozinho neste barco.”

Percebemos, ainda, que se posicionam contra a medicação, acreditam ficar cativos na condição de doentes e impedidos de praticar a autonomia e gestão de suas vidas. Nesse universo, poucas postagens evidenciam que o uso da medicação contribui para minimizar o sofrimento psíquico, tornando mais fácil o relacionamento com as vozes. Ouvidor 18 “Leve-a para ver um psiquiatra, fazendo uso da medicação vai parar as vozes. Não necessariamente parar as vozes, mas tornar mais fácil lidar com elas. (Em resposta a um ouvidor)” Ouvidor 19 “No começo vivia sem remédios, até não aguentar mais, e tive que recorrer a medicação. Tentei cinco tipos diferentes, antes de encontrar um que funcionasse.”

Existem pessoas que ouvem vozes e têm uma relação positiva com essa experiência. Outros se sentem submetidos a essa experiência de forma passiva e estão mais predispostos a desenvolver uma 566

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relação negativa com as vozes, porém utilizam o ambiente virtual para encontrar formas e espaços que os ajudem a lidar com suas dificuldades; como exemplo, uma resposta de um membro do site Intervoice a outro que busca ajuda: Ouvidor 20 “Você não diz a idade de seu filho, e assim que eu só posso imaginar, mas como uma pessoa que já trabalhou para uma série de serviços residenciais, tenho encontrado jovens retirados da sociedade, fortemente medicados e gerenciados através de rotinas e estruturas, em grande parte institucionalizados, o que na verdade faz mais mal do que bem [...] Você também não mencionou um diagnóstico, mas ouvir vozes em si não é um diagnóstico, prova de psicose, nem mesmo de “doença”. Há ainda uma série de mitos e estereótipos em torno da experiência de ouvir vozes, e há de fato numerosos ouvidores que lidam bem com isso, incluindo eu mesmo. Eu nunca considerei a minha experiência de doença mental como “sofrimento”, mas como um ponto de viragem na minha vida do qual eu era capaz de me definir como uma pessoa, identificar a minha área de paixão, o que me ensinou uma quantidade enorme sobre o que o Bem-Estar é realmente para mim. Nunca perca a esperança.”

Durante os meses de estudo e observação da interação dos ouvidores de vozes no ambiente virtual, identificamos que o mesmo surge como um dispositivo importante para o alcance de outras formas de arranjo nas relações com o mundo, possibilitando novas saídas apaziguadoras para o sofrimento psíquico, criando condições para que aqueles que ali participam compreendam e aprendam a conviver com suas vozes. Detectamos que muitas pessoas ouvidoras de vozes não se incomodam com elas ou já encontraram suas próprias maneiras de lidar com elas fora da assistência psiquiátrica. Isso é muito significativo, pois permite desenhar novas pesquisas nesta direção. No entanto, há também um número significativo de ouvidores de vozes que são esmagados pelos aspectos negativos e incapacitantes da experiência, que os impedem de desfrutarem de uma vida completa na sociedade. Mergulhando neste novo universo marcado pela busca permanente de respostas para a questão que se apresenta, as experiências desta pesquisa fomentaram conhecimentos, reflexões e atravessamentos que apontam novas perspectivas para esse campo de trabalho.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de produção deste trabalho.

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artigos

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Barros OC, Serpa Júnior OD. Oír voces: un estudio sobre el intercambio de experiencias en ambiente virtual. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):557-69. El presente artículo, por medio del estudio del intercambio de experiencias entre los que escuchan voces en un ambiente virtual, explora cómo esas personas crean estrategias para compartir su experiencia en un colectivo, en la búsqueda de alternativa al saber psiquiátrico sobre la alucinación auditiva verbal. Trata sobre la creación de la red Intervoice y de su migración para el ambiente virtual. El empleo de la netnografía demuestra que ese ambiente es propicio para explorar el intercambio de experiencias entre los que escuchan voces, enfatizando su relación con el uso de la medicación y la forma de enfrentar las voces. Observa la forma en que los que escuchan voces utilizan el ambiente virtual para crear lazos sociales y una manera de estar en el mundo.

Palabras clave: Ambiente virtual. Oír voces. Ayuda inter-pares. Recebido em 06/08/13. Aprovado em 25/04/14.

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622013.0598

Educação pelo trabalho: reorientando a formação de profissionais da saúde

Graciela Soares Fonsêca(a) Simone Rennó Junqueira(b) Celso Zilbovicius(c) Maria Ercilia de Araujo(d)

Fonsêca GS, Junqueira SR, Zilbovicius C, Araujo ME. Education through work: reorienting healthcare professionals’ education. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):571-83.

This study aimed to evaluate the Education through Work for Health Program (“PET-Saúde”) that had been instituted at the University of Sao Paulo, Brazil. The subjects were dentistry preceptors and students who took part in the proposal between the years 2009 and 2012. A qualitative approach was used, in which data were gathered through focus groups and evaluated through thematic content analysis. The results show that education through work is capable of assisting in the education process, through expanding students’ perceptions of the health/disease process and raising awareness regarding future actions within the sphere of the Brazilian Health System. One of the advantages is the establishment of interdisciplinarity in the education process. The results indicate that the program is a powerful instrument for inducing changes in the concepts among healthcare professionals.

Keywords: Dentistry. Health education. Human resources. Qualitative research. Higher education.

O trabalho se propôs a avaliar o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) instituído na Universidade de São Paulo, Brasil. Os sujeitos do estudo foram preceptores e alunos de odontologia que integraram a proposta entre os anos de 2009 e 2012. Foi utilizada uma abordagem qualitativa, sendo os dados coletados por grupos focais e analisados por análise de conteúdo temática. Os resultados evidenciam que a educação pelo trabalho é capaz de auxiliar no processo formativo, ampliar o olhar do estudante em direção ao processo saúde/doença e despertar para atuação futura no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma das vantagens apontadas consiste no estabelecimento da interdisciplinaridade no processo formador. Os resultados do estudo traduzem o programa como um poderoso instrumento de indução de mudanças nas concepções dos profissionais de saúde.

Palavras-chave: Odontologia. Educação em Saúde. Recursos humanos. Pesquisa qualitativa. Educação Superior.

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(a) Doutoranda, Departamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo (USP). Av. Professor Lineu Prestes, 2227. São Paulo, SP, Brasil. 05508-000. gracielafonseca@usp.br (b-d) Departamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia, USP. São Paulo, SP, Brasil. srj@usp.br; czilbo@usp.br; mercilia@usp.br

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Introdução Desde a criação do SUS, por meio da Constituição de 1988, e, posteriormente, com a Lei nº 8080/90 que o regulamentou, o debate acerca da formação de recursos humanos, para exercer suas profissões em um modelo de integralidade do cuidado, tem se aprofundado, já que o marco jurídico do sistema brasileiro de saúde o coloca como ordenador desta formação 1. Os cursos de graduação na área da saúde, especificamente a odontologia, historicamente, privilegiaram uma formação fundamentada no modelo que se caracteriza pela ênfase no tecnicismo, nas práticas curativas e individualizadas, e na fragmentação do conhecimento pelas especialidades. O ensino nutre-se, sobretudo, de conhecimentos que vêm de outros países 2, incoerentes com a situação econômica e com a realidade social do Brasil3, quando o que se almeja é sua vinculação às necessidades da sociedade4. Ao longo dos últimos anos, órgãos como os Ministérios da Saúde e da Educação, a Associação Brasileira de Ensino Odontológico (ABENO) e pesquisadores e profissionais da área de odontologia têm unido esforços no sentido de modificar essa realidade. Destaca-se a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em odontologia, acompanhando o movimento executado por outros cursos da saúde, como marco propulsor do processo de transformação. Implementadas em 2002, as definições contidas nas DCN sinalizam uma mudança paradigmática na formação, buscando materializar um profissional crítico, capaz de trabalhar em equipe e de levar em conta a realidade social. Propõem um cirurgião-dentista com perfil generalista, com sólida formação técnico-científica, humanística e ética, orientada para a promoção de saúde, com ênfase na prevenção de doenças bucais prevalentes 5. No contexto dessas transformações, a ABENO sugere que a organização dos cursos de odontologia, para atender às DCN, se dê em três eixos de abordagem: orientação teórica, abordagem pedagógica e cenários de práticas6. O eixo referente aos cenários de prática pressupõe a inserção de alunos em cenários de aprendizagem diferentes daqueles disponíveis no interior das Instituições de Ensino Superior (IES), como um dispositivo potencial para promover a formação adequada. As estratégias que propiciam uma maior articulação entre os serviços de saúde e as instituições formadoras ocasionam um maior contato dos acadêmicos com as práticas e o cotidiano do sistema em um diálogo educativo, o que permite mudar a concepção hegemônica tradicional baseada em um modelo biologicista e mecanicista 7,8. A interação entre as IES e os serviços de saúde é reconhecida como veículo para alcançar a adequação dos profissionais às demandas sociais da população2,9, visto que a vivência em serviço auxilia os estudantes no entendimento de como os fatores sociais, culturais ou econômicos influenciam no processo saúde-doença10. Dentro desse contexto, como dispositivos potencializadores, foram criados, pelos Ministérios da Saúde e da Educação, dois programas que focam a educação pelo trabalho como eixo central da mudança – o Programa Nacional de Reorientação da Formação em Saúde (Pró-Saúde), implementado em 2005, e o PET-Saúde, instituído em 2008. Este último, objeto de estudo deste artigo, destina-se a viabilizar o aperfeiçoamento e a especialização em serviço, bem como a iniciação ao trabalho, estágios e vivências, dirigidos aos professores, profissionais e estudantes da área da saúde, de acordo com as necessidades do SUS11. Na USP, o PET-Saúde foi iniciado no ano de 2009, com a participação de sujeitos ligados aos cursos de graduação em: medicina, odontologia, enfermagem, terapia ocupacional, fisioterapia e fonoaudiologia. No ano seguinte, foi estendido para os cursos de nutrição, psicologia, educação física e farmácia, com uma proposta interdisciplinar12,13. A interdisciplinaridade tem sido estimulada nos programas de educação dado o seu potencial para uma formação coerente com a lógica mundial 14. As atividades desenvolvidas pelo Programa expressam grande variedade e amplitude, indo desde acompanhamento da rotina das Unidades Básicas de Saúde (UBS) – atividade de sombra, conhecimento dos setores, vivência com os diferentes profissionais, entendimento dos fluxos e da demanda – passando por visitas domiciliares, até intervenções planejadas em conjunto de acordo com as necessidades do território, como feiras de saúde e ações educativas. 572

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O trabalho se propôs a avaliar o PET-Saúde instituído na USP, campus capital, focando o curso de odontologia.

Metodologia Optou-se por uma abordagem metodológica qualitativa. Os sujeitos foram os alunos de odontologia da USP (n = 17) e os profissionais dos serviços de saúde (n = 35) que faziam ou fizeram parte dos grupos tutoriais do PET-Saúde. Cada grupo tutorial é conformado por um tutor, seis preceptores e doze alunos de graduação em saúde. Os tutores são professores das IES que realizam a supervisão docente-assistencial, exercendo o papel de referência para os preceptores e/ou para os estudantes vinculados ao programa; já os preceptores são profissionais dos serviços que detêm a função primordial de supervisionar e orientar as ações dos alunos nas UBS11. Para coletar os dados, utilizou-se a técnica de grupos focais, visto que ela pode revelar dimensões da compreensão que comumente permanecem despercebidas pelas técnicas mais tradicionais de coleta de dados, como valores culturais ou normas do grupo15. Os grupos focais foram conduzidos por roteiros orientadores onde constavam os seguintes eixos: formação/qualificação para o SUS, conhecimentos sobre SUS e interação do ensino com os serviços de saúde. As discussões foram gravadas com auxílio de câmera filmadora, transcritas e analisadas por meio da análise de conteúdo temática16. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

Resultados e discussão Formação/qualificação para o SUS A análise dos dados evidenciou as potencialidades do PET-Saúde da USP, campus capital, no sentido de proporcionar modificações no processo de formação em saúde: “Agora, quanto a nossa formação, eu acho que, assim, a gente que fez o PET teve meio que uma oportunidade única porque ainda não é uma coisa que a gente tá próximo, né, de ficar, de saber como é, como funciona o trabalho no serviço público mesmo [...]. Eu acho que isso acrescentou muito pra nossa formação [...]”. (A1) “[...] A gente acaba sendo um profissional diferenciado quando a gente tá fazendo o PET. Quando a gente vê o trabalho da unidade, tem contato com a comunidade, conhecer melhor o sistema de saúde. Então acho que isso diferencia bastante a gente”. (A2) “[...] E eu vejo o PET hoje como uma oportunidade dos alunos entenderem mais o Sistema Único de Saúde, a Atenção Básica [...]”. (P4)

Os sujeitos reconhecem que a aproximação com os cenários de prática e com a comunidade é capaz de auxiliar no processo formativo, oferecendo benefícios na esfera profissional propriamente dita e no âmbito da cidadania e da humanização. Resultados semelhantes foram alcançados pelo PET-Saúde da Universidade Federal da Paraíba17. Além desse trabalho, os êxitos do Programa – no sentido de oferecer aos sujeitos em formação uma gama maior de conhecimentos acerca da realidade dos serviços de saúde – foram explicitados por outros autores, em diversas localidades do Brasil 18-29. Segundo Silveira30, as universidades devem oferecer, em seus cursos de graduação, uma formação capaz de desenvolver, no futuro profissional, a valorização do setor público e a sensibilidade social, sem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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negligenciar a qualificação técnica. Os espaços onde se dá o diálogo entre o trabalho e a educação constituem espaços de cidadania em que os profissionais do serviço, os docentes, os usuários e os estudantes estabelecem modos de ser e de ver o mundo 31. O conhecimento da prática no SUS incita e desperta os alunos para as possibilidades de exercício futuro da profissão no setor, o que corrobora a ideia de que o programa é um potente indutor de melhorias também nos serviços de saúde, com a inserção futura de profissionais mais bem preparados. “[...] só de você tá abrindo mais espaço pra Atenção Primária dentro da faculdade, cê já proporciona o aumento do interesse dos estudantes pela carreira depois que eles se formarem [...]”. (P1) “Eu pretendo trabalhar na área. E, quando eu entrei na faculdade, eu nem pensava muito nisso e aí depois veio o PET, depois eu fui conhecendo pessoas que já trabalham e tal”. (A2) “Eu tenho alunos da odonto que senta aqui e fala [...] ‘eu tinha um pensamento de formar, montar meu consultório, ir trabalhar, hoje não, hoje eu já penso diferente, hoje eu já penso em me formar e entrar na Atenção Básica e trabalhar como odontólogo na Atenção Primária porque eu tô vendo que é bem interessante, tem bastante coisa pra ser feita, é uma experiência muito interessante’”. (P5)

Associado a isso, são indubitáveis outras potencialidades do PET-Saúde, como a ampliação do olhar do estudante em direção ao processo saúde/doença, entendendo-o em sua complexidade, agregando conhecimentos específicos da área de formação à compreensão integral desse processo, o que aponta para a germinação de perfis profissionais críticos e reflexivos, em harmonia com as necessidades do SUS, como demonstrado a seguir: “Mas sabe uma coisa muito produtiva, quando a gente fez aqui o feedback dos alunos e que alguns alunos da odonto, falaram assim ‘hoje eu consigo ver que se ele tem cárie não é só porque ele comeu doce, mas é porque muitas vezes ele não tem escova de dente em casa, não tem o que comer ou, quando tem, divide a escova com a família inteira’. Então não olham mais pra boca, só pra boca”. (P2) “É que problema tem diversas definições então, a gente aprendeu que a moradia dele é um problema, a comida, tudo. Então, eu aprendi pelo menos, a ver de uma forma bem diferente o que é problema pra outras pessoas”. (A1) “[...] Você aprende a considerar não aquilo só como uma boca, como é o nosso caso, aquilo como um problema. Você tem todo um contexto por trás, um indivíduo muito complexo, você aprende a conviver, a cuidar dessas pessoas [...]”. (A1) “[...] Isso me mostrou que vai muito além do dente, da boca da pessoa. Eu não tenho que chegar e olhar pra boca como ‘eu sou dentista, eu só vou olhar pra isso’. Não, eu tenho que olhar pra pessoa, o que ela é, de onde ela vem, o que ela come, onde ela mora, pra depois pensar em abrir a boca dela pra ver o que tá de errado na boca dela, mas eu tenho que ver o que tá influenciando ela tá daquele jeito”. (A1)

É introduzido um conceito novo e/ou pouco explorado para os estudantes – determinação social da doença – ao passo que se torna possível compreender que, para além da biologia humana, as condições de vida e ambiente, e a organização política e social interferem diretamente na situação de saúde da população32.

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Os benefícios se estendem à formação humana e cidadã, indo além da esfera acadêmica e profissional. “[...] E, assim, eu acho que o PET ajuda não só pra nossa formação como profissional, mas como pessoa, né”. (A2) “Eu acho que, a partir do momento que o PET desenvolve a empatia na gente, porque o PET faz com que a gente crie empatia pelas pessoas, né, eu acho que isso já faz com que você cresça muito, né, como ser humano mesmo. E você crescendo como ser humano faz você agir melhor em qualquer área porque você vai ter essa característica de se importar com a dor dos outros como se fosse você mesmo [...]” . (A2)

A participação no PET-Saúde, sobretudo devido ao contato dos profissionais com os alunos de graduação, como admitido pelos preceptores, agrega conhecimentos que esmeram as práticas profissionais exercidas no serviço, colaborando com o aperfeiçoamento da Atenção Primária em Saúde (APS). A possibilidade de transformar as práticas profissionais existe, porque perguntas e respostas são construídas a partir da reflexão de trabalhadores e estudantes sobre o trabalho que realizam ou para o qual se preparam31. Segundo os preceptores, a vivência com os alunos induz e estimula a busca por conhecimento, uma vez que, no processo de aprendizagem em serviço, eles se tornam o maior referencial. “[...] Então, sempre tem aluno o tempo todo, mas isso é uma coisa que me policia pra fazer um trabalho cada vez melhor também. Eu sou exemplo pra aquela pessoa que tá ali. De alguma forma, ela tá aprendendo comigo. Se eu fizer um trabalho mal feito, ela vai aprender a fazer mal feito também [...]”. (P2) “A partir do momento que você tá com o aluno o tempo inteiro, o tempo inteiro você tem que tá estudando porque o tempo inteiro ele tá perguntando”. (P2) “No final a gente acaba também se olhando, né, porque o aluno aponta. A gente é obrigado também a se reciclar, mexer, enfim, porque no final ele apresenta uma avaliação”. (P3) “[...] muda a nossa postura profissional [...]”. (P4) “A gente se beneficia a partir do momento que a gente tem que pesquisar, tem que ler muito, tem que estudar pra fazer a discussão com os alunos. Então a gente acaba se obrigando a saber um pouco mais”. (P1)

Essas transformações, de maneira indireta, oferecem contribuições à melhoria do desenvolvimento do trabalho e da própria UBS. As falas a seguir reforçam isso: “[...] muda a organização da unidade [...]”. (P4) “[...] e a gente da prática acaba criando essas condições de melhorar nosso trabalho assistencial”. (P3)

Conhecimentos sobre o SUS Durante as entrevistas, o PET-Saúde foi mencionado como um dispositivo capaz de proporcionar uma melhor percepção acerca do SUS, especialmente da APS24,29,33, quebrando ideias e opiniões

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desfavoráveis criadas a priori. Ao romper os pré-conceitos no momento em que se deparam com a realidade, os alunos desmistificam o serviço público de saúde, o que ocasiona surpresa e admiração. “Eu acho que, às vezes, assim, por exemplo eu, antes de entrar no PET, eu tinha um pouco de preconceito com o SUS. Achava que era um sistema que não andava, que era um sistema que não tinha mais jeito [...]. Só que a gente entra em contato e a gente vê que não é assim. Existem formas organizadas dentro desse sistema, ele funciona sim”. (A2) “Eu também, eu também tinha muito preconceito [...]”. (A2) “Eu imaginava que era uma coisa meio bagunçada, assim, desorganizada. Eu cheguei lá, fui conhecer o setor, ele é dividido em zonas, assim, por cores, né, cada família tem um agente de saúde. Assim, eu achei bem legal. Na minha opinião, era bem pior, sei lá, quem chegar chegou e é atendido, não, não é assim, sabe”. (A2) “[...] você percebe que o SUS não é aquela visão que você tinha de TV, que nada funciona, você percebe que o SUS é muito mais amplo [...]”. (A1)

Situação semelhante foi relatada por Lucas et al.32 quando se referem aos alunos de odontologia que, após o reconhecimento dos campos de prática, substituem as percepções negativas registradas sobre o SUS por percepções mais positivas e de surpresa. Todas essas percepções e inquietações se tornam possíveis devido ao movimento constante que os alunos, de todos os cursos envolvidos, realizam entre o “mundo real” e “mundo estudado”, ou seja, existe articulação da teoria aprendida nas salas de aula com as práticas estabelecidas no interior das UBS, o que facilita e auxilia, significativamente, no processo de ensino/aprendizagem. As atividades práticas proporcionam a aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes condizentes com o mundo real 34. Um trabalho que objetivou traçar o perfil do estudante de odontologia da Universidade Federal da Paraíba, no que diz respeito aos seus anseios frente à atuação no mercado de trabalho, interesse sobre o campo da saúde coletiva e autopercepção da formação acadêmica, concluiu que 65,1% dos estudantes consideram os estágios na rede básica como indispensáveis para facilitar a apreensão da rotina de trabalho no SUS35. Oliveira e Coelho24, em estudo desenvolvido com alunos do PET-Saúde da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, alegaram que uma das potencialidades do Programa é a oportunidade de interrelacionar a teoria com a prática, auxiliando na compreensão da realidade social, cultural e econômica das áreas em que se desenvolvem as atividades. Ceccim e Feuerwerker 36 apontam que o eixo da integralidade da atenção como dimensão ampliada do cuidado no SUS deve nortear a formação dos profissionais de saúde, propiciando a estes a capacidade de acolher e criar vínculos em sua prática. As falas abaixo ilustram a importância atribuída à inter-relação da teoria com a prática para efetivar o processo de aprendizagem: “[...] Eles viram como é que funciona e não ficaram lendo”. (P1) “O que eu percebi com o pessoal que eu acompanho é que eles comparam bastante o que eles aprenderam na teoria com os que eles obtêm aqui”. (P2) “[...] a aluna falou assim ‘nossa, que legal, vocês tão falando o que realmente os livros falam pra gente, o que os artigos tão falando pra gente’”. (P3) “[...] É completamente diferente, por exemplo, você ler um texto sobre territorialização e sair pra visitar o território no mesmo dia com o aluno e discutir a relação pelo lado prático do que a experiência que eles têm com esses mesmos temas num curso formal [...]”. (P4)

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Para os alunos, a exposição teórica dos conteúdos e a vivência nas clínicas da faculdade não são suficientes para proporcionar um conhecimento efetivo, real. “Você poder viver o que é o serviço público porque o que a gente tem em aula eu acho que não é o suficiente, sabe? Poder entrar numa Unidade Básica de Saúde, ver como é, como funciona, o que tem na farmácia, os medicamentos, tudo assim, sei lá”. (A1) “Mas o que a gente aprende dentro da sala de aula é totalmente diferente do que a gente aprende dentro de uma UBS. Quando a gente chega lá, a gente vê que o que a gente aprendeu na teoria não tem muita coisa a ver, assim”. (A1) “E logo que a gente entrou no PET, a primeira coisa também foi ver o território, mas sem essas coisas de discussão demais. A gente foi conhecendo realmente o território, a gente foi andar pelo território, ver o que que tinha, o que que não tinha, né, o que dava suporte, escolas que tinham, as farmácias, a igreja, um monte de coisa e isso foi que fez a gente compreender. Não foi a aula que eu tive sobre território”. (A1) “A gente aprendeu na prática, né, o que é. Hoje a gente sabe o que é a Atenção Básica, os limites da Atenção Básica e é bem diferente do que a gente aprende na teoria”. (A1)

Nos recortes acima, ênfase foi dada, pelos alunos, às diferenças entre o que presenciavam e aprendiam nas disciplinas curriculares e o que observavam nas UBS. Essa constatação gera a reflexão sobre os conteúdos trabalhados pela Faculdade de Odontologia da USP e a coerência deles com as práticas em saúde bucal desenvolvidas pelo SUS. As falas permitem concluir que a formação é centrada na prática privada da profissão e os conteúdos clínicos são apresentados aos estudantes de forma dissociada da discussão feita pelas disciplinas ligadas à saúde coletiva. Por fim, os estudantes reconhecem a contribuição do PET-Saúde para efetivar o conteúdo das disciplinas que estão ligadas ao SUS. “A gente vê. Eu, pelo menos, já senti isso, que as pessoas que faziam o PET, naquele período entenderam mais o objetivo da matéria”. (A2) “Aí, quando eu entrei no PET, eu comecei a entender a matéria. Aí as matérias de sociais dá pra entender bem melhor quando você faz na prática. Muito melhor! Tem muito mais a aprender”. (A1) “Eu acho que tudo, gente, quando você leva pra prática fica mais interessante, entendeu? O grau de interesse é outro, quando você tá na prática. Eu acho que isso é uma coisa muito boa [...]”. (A2)

Integração ensino/serviço/comunidade A integração ensino/serviço/comunidade pode ser conceituada como o trabalho coletivo, pactuado e integrado de estudantes e professores das IES com os trabalhadores dos serviços de saúde, incluindo-se os gestores, e a comunidade, objetivando qualificar a atenção à saúde individual e coletiva e à qualidade da formação profissional31. Essa abordagem é fundamental para propiciar o entendimento da diversidade humana e da dinâmica da comunidade além de criar uma compreensão mais profunda dos desafios relacionados à saúde geral e à saúde bucal37. A perspectiva educacional da integração serviço/escola baseia-se numa abordagem problematizadora, que propicia ao aluno perceber que a prática de um profissional de saúde no SUS não está mais concentrada somente nos conhecimentos específicos de sua área, mas requer uma dimensão COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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transdisciplinar, em que, ao trabalharem em equipes de saúde, vários conhecimentos se integrem e convirjam para uma mesma direção38. Entretanto, muitas tentativas de integração da academia com os serviços de saúde apresentam limitações, visto que observar a realidade dos serviços e desenvolver algumas ações pontuais vinculadas a eles difere de conhecer a realidade em profundidade, ou seja, as visitas pontuais não se igualam à imersão do estudante no cotidiano dos serviços, o que poderia gerar intervenções efetivas e até sua transformação39. A inclusão de diferentes cenários pedagógicos fora dos limites da sala de aula, permitindo um diálogo com as práticas e processos desenvolvidos no SUS e voltados à promoção da saúde, e com o o foco não mais somente na doença, requer, também, uma mudança das estratégias de ensinoaprendizagem, em que o estímulo a um processo crítico-reflexivo por parte dos alunos é essencial, alterando de forma significativa a função do docente, pois a transmissão de conteúdo deixa, momentaneamente, de ser função central do mesmo e passa a ser, conjuntamente, de outros sujeitos como preceptores do serviço ou, mesmo, trabalhadores não envolvidos diretamente no processo 40,41. É manifesto que as mudanças nas estruturas curriculares, para alcançar esse ideal, vão demandar esforços diversos e tempo para se consolidarem. O PET-Saúde foi pensando como um fomentador e um catalisador desse processo, responsável por auxiliar na garantia da efetiva integração das IES com o SUS. Os trabalhadores dos serviços de APS, ligados à USP, desempenham suas atividades rotineiras com a presença constante de estudantes, oriundos das ações de integração dos cursos de graduação com os serviços de saúde e do PET-Saúde. Os preceptores discerniram a inserção de alunos ligados ao Programa e a introdução de estudantes por outros meios. Essas distinções não foram realizadas de forma a haver especificações dos outros tipos de inclusão de estudantes nos serviços, ou seja, os profissionais não declararam se estavam referindo-se a estágios curriculares supervisionados, a visitas supervisionadas ou a outras modalidades de inclusão dos alunos ou, quando o fizeram, generalizaram as inserções pelo termo “estágio”. Para tornar a compreensão mais exequível, foram sintetizadas, no Quadro 1, as principais diferenças apontadas pelos preceptores entre a inserção de alunos por meio do PET-Saúde e por intermédio de outros dispositivos.

Quadro 1. Principais diferenças entre a inserção de alunos através do PET-Saúde e por outros dispositivos de inserção. Características da inserção dos alunos através do PET-Saúde Definidos pelos grupos tutoriais, baseados nas demandas das UBS.

Definidos pelas disciplinas.

Longitudinal.

Pontual.

Horário para dedicar-se às atividades

Definido pelos alunos em harmonia com o horário de funcionamento da unidade.

Reservado nas estruturas curriculares.

Práticas desenvolvidas

Voltadas para o serviço, numa visão geral e de forma interdisciplinar.

Voltadas para assistência na área de formação.

Motivação para o desempenho das atividades

Compromisso com o programa e recebimento de bolsas.

Obrigatoriedade das disciplinas e avaliação por nota.

Grau de envolvimento com a rotina dos serviços

Maior.

Menor.

Objetivos

Inserção

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Características da inserção dos alunos por outros dispositivos

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Fonsêca GS, Junqueira SR, Zilbovicius C, Araujo ME

A análise da síntese do Quadro 1 inspira a ideia de que a inserção dos alunos pelas disciplinas, da forma como está sendo realizada, induz a criação de uma realidade adequada às necessidades do ensino, o que, consequentemente, mascara ou até anula a organização e a dinâmica real dos serviços. Essa situação gera prejuízos para a aprendizagem efetiva, tendo em vista que a inserção profissional futura não vai se dar atrás de máscaras. Além disso, a inserção veiculada pelo PET-Saúde é contínua e periódica. Os alunos selecionados permanecem no programa por um ano, podendo renovar a bolsa por igual período, e dedicam 08 horas semanais às atividades desenvolvidas nas UBS, o que possibilita o fortalecimento do vínculo entre os estudantes e o território vivo, palco das ações em saúde. As disciplinas curriculares, em oposição, comumente viabilizam a entrada dos estudantes nos equipamentos de saúde de forma pontual, com um menor número de visitas, dificultando a integração efetiva do aluno ao serviço de saúde e ao território. O estabelecimento da integração do ensino com o serviço propicia as vivências interdisciplinares 42. A interdisciplinaridade representa o embate com o excesso de especialização e com a fragmentação do conhecimento2. É necessário que os profissionais de saúde desenvolvam um trabalho interdisciplinar para aumentar os níveis de qualidade da atenção em saúde, sobretudo na atenção primária14. O potencial do PET-Saúde, no estabelecimento da interdisciplinaridade, já é uma verdade comprovada por diversos trabalhos18,28,29. Nas particularidades do cenário desse estudo, os alunos foram capazes de compreender e valorizar a interdisciplinaridade e os preceptores reforçaram o poder do Programa no sentido de garanti-la. “Uma coisa que eu achei bem interessante do PET é a interdisciplinaridade [...] eu consegui ver lá todo mundo trabalhando junto, assim, sabe? Onde um pode pegar um gancho no trabalho do outro. Então, a gente amplia muito mais o nosso horizonte e é onde a gente pode se inseri também”. (A1) “[...] Agora trabalhar junto é muito bom, né, trabalhar junto com os alunos tem uma intensidade fantástica. Acho que o grande ganho do PET é juntar várias profissões, juntar o estudante com o professor”. (P3) “São alunos da graduação, o contato com outros profissionais eu acho que não acontece fora do PET”. (P3) “[...] tem sempre um trabalho compartilhado na unidade”. (P3) “[...] e o que é legal do PET é essa, a gente interage com todas as profissões, os médicos, tem a da farmácia. Isso pra gente é muito bom. Pros alunos, então, nem se fala”. (P4)

Considerações finais Os resultados do estudo traduzem o PET-Saúde da USP, campus capital, como um poderoso instrumento de indução de mudanças na concepção dos profissionais de saúde. Ao proporcionar a imersão dos estudantes da área da saúde e, sobretudo, da odontologia na realidade dos serviços de saúde, o Programa contribui para o rompimento de pré-conceitos e para a desmistificação do SUS. O desafio de integrar o serviço às IES requer um importante processo de mútuo conhecimento e quebra de clássicos preconceitos. As IES devem reconhecer que o serviço pode representar um importante lócus de produção de conhecimento e, portanto, tornar-se agente pedagógico desde que, por outro lado, este se reconheça como tal e não enxergue as IES como estruturas ameaçadoras à rotina da assistência. As potencialidades descortinadas se estendem aos trabalhadores inseridos nos serviços ligados ao PET-Saúde, uma vez que a vivência com os alunos de graduação induz a reflexões sobre o próprio trabalho, que tende a se tornar acrítico e mecânico no cotidiano das práticas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Conclui-se que o Programa, ao conceber um processo de ensino-aprendizagem no qual o trabalhador do serviço é inserido como mediador da aprendizagem junto ao professor universitário, conforma uma aprendizagem significativa que engloba e afeta todos os envolvidos. O Programa toma como eixo da transformação a integração do ensino de graduação com os serviços de saúde com base na educação pelo trabalho. A investigação revelou as particularidades do PET-Saúde, nesse aspecto, entendendo-o como ponto de partida para o modelo ideal de integração. Acredita-se que diversas das características específicas reveladas podem ser incorporadas às modalidades de interação presentes nos componentes curriculares com o objetivo de torná-las mais condizentes. Um dos grandes diferenciais encontra-se nas práticas desenvolvidas, que, no caso do referido Programa, são voltadas para as demandas do serviço e planejadas e executadas com base na interdisciplinaridade, mantendo expressivo envolvimento com a rotina UBS.

Colaboradores Graciela Soares Fonsêca e Simone Rennó Junqueira responsabilizaram-se pelo desenho do estudo, coleta e análise dos dados, bem como redação do texto. Celso Zilbovicius e Maria Ercilia de Araujo responsabilizaram-se pela revisão do manuscrito e atualização bibliográfica.

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Fonsêca GS, Junqueira SR, Zilbovicius C, Araujo ME

Fonsêca GS, Junqueira SR, Zilbovicius C, Araujo ME. Educación por medio del trabajo: reorientación de la formación de profesionales de salud. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):571-83. Se propuso la evaluación del Programa de Educación por Medio de Trabajo para la Salud (PET-Saúde) instituido en la Universidad de São Paulo, Brasil. Los sujetos fueron preceptores y alumnos de odontología que integraron la propuesta entre los años 2009 y 2013. Se utilizó un abordaje cualitativo, siendo los datos colectados por grupos focales y analizados por análisis de contenido temático. Los resultados mostran que la educación por medio del trabajo es capaz de auxiliar en el proceso formativo, ampliar la mirada del estudiante en dirección al proceso salud/enfermedad y despertar para la actuación futura en el ámbito del Sistema Brasileño de Salud. Una de las ventajas consiste en el establecimiento de la interdisciplinariedad en el proceso formador. Los resultados traducen el programa como un poderoso instrumento de inducción de cambios en las concepciónes de los profesionales de salud.

Palabras clave: Odontología. Educación en Salud. Recursos humanos. Investigación cualitativa. Educación superior.

Recebido em 07/07/13. Aprovado em 23/02/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0160

“Ele é igual aos outros pacientes”: percepções dos acadêmicos de Odontologia na clínica de HIV/Aids

Luiza Augusta Rosa Rossi-Barbosa(a) Raquel Conceição Ferreira(b) Cristina Andrade Sampaio(c) Patrícia Neves Guimarães(d)

Rossi-Barbosa LAR, Ferreira RC, Sampaio CA, Guimarães PN. “He is like the other patients”: perceptions of dentistry students in the HIV/AIDS clinic. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):585-96.

This study sought to ascertain the perceptions and expectations of dentistry students at the State University of Montes Claros. MG, Brazil, regarding care provided for HIV/AIDS patients. Participant observation and semistructured interviews with nine students were used and three categories were identified: “Expectations from care provided at the HIV/AIDS clinic”, “Fear of becoming infection” and “Behavioral change”. It was seen that, before the students came into contact with patients, they constructed characterizations based on social stereotypes such as skinny individuals, male homosexuals and depressed appearance. Fear was observed through the tendency to overestimate the risks of transmission, with changes in behavior in relation to biosafety. Through using ethnographic methodology, the importance of dental clinical practice for students’ day-to-day routine could be seen, along with biosafety for breaking through paradigms and prejudice towards HIV/AIDS patients.

Keywords: Perception. HIV. Ethnography. Dentistry.

Este estudo buscou conhecer expectativas e percepções dos acadêmicos de Odontologia da Universidade Estadual de Montes Claros, MG, Brasil, em relação ao atendimento aos pacientes com HIV/ Aids. Utilizaram-se observação participante e entrevistas semiestruturadas com nove acadêmicos, sendo identificadas três categorias de análise: ”A expectativa do atendimento na clínica de HIV/Aids”, “O medo de infectar-se” e “Mudança de comportamento”. Percebeu-se que, anterior ao contato com os pacientes, as caracterizações construídas pelos acadêmicos eram estereótipos sociais, como: pessoas magras, homossexuais masculinos e aspecto deprimido. O medo foi observado pela tendência em superestimar os riscos de transmissão, mudando os comportamentos em relação à biossegurança. A etnografia proporcionou perceber a importância da prática clínica odontológica no cotidiano acadêmico, aliada à biossegurança no rompimento dos paradigmas e preconceitos com o paciente com HIV/Aids.

Palavras-chave: Percepção. HIV. Etnografia. Odontologia.

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(a) Departamento de Odontologia, Centro de Ciências Biológicas (CCBS), Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Campus Universitário Darcy Ribeiro. Montes Claros, MG, Brasil. 39401-089. luiza.rossi@unimontes.br (b) Departamento de Odontologia Social e Preventiva, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil. raquelcf@odonto.ufmg.br (c,d) Departamento de Saúde Mental e Saúde Coletiva, Unimontes. Montes Claros, MG, Brasil. cristina.sampaio@ unimontes.br; patricia.guimaraes@ mail.mcgill.ca

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Introdução A história da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids) no Brasil tem sido marcada por respostas socioculturais relacionadas ao medo, ao preconceito e à injustiça social, devido às concepções distorcidas ou completos desentendimentos sobre a forma de transmissão e contágio do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), agente etiológico da aids. A epidemia tomou forma nos meios de comunicação e, antes que tivesse, de fato, afetado a vida de um número significativo de pessoas, a resposta social foi de pânico e medo1. A evolução na história natural da infecção pelo HIV, dos estágios iniciais assintomáticos para as fases avançadas (aids), caracteriza-se por uma contínua e progressiva deficiência imunológica, que pode ser acompanhada e mensurada em termos de redução das contagens de linfócitos T CD4+ circulantes. Observou-se que a zidovudina (AZT) diminuía a quantidade de HIV circulante e aumentava a quantidade de células de defesa orgânicas, diminuindo as infecções oportunistas. Em 1996, descobriuse uma nova classe de medicamentos de alta potência, aumentando a sobrevida de indivíduos com infecção pelo HIV2. No início da epidemia, poucos cirurgiões-dentistas atendiam pacientes soropositivos para HIV devido ao medo do desconhecido. Posteriormente, de uma forma gradativa, foi aumentando o número de profissionais determinados a atender tais pacientes devido à conscientização e adequação nas medidas de biossegurança3, protocolo eficaz da Odontologia, que preconiza que todo indivíduo deve ser tratado como potencialmente infectado, por ser impossível diferenciar clinicamente pacientes infectados assintomáticos dos não infectados4. Durante a graduação, é fundamental o esclarecimento sobre a postura ética dos futuros cirurgiõesdentistas diante da infecção por HIV4; e a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) tem procurado atender às demandas social e ética dos usuários dos serviços de saúde oral, apresentando, também, como meta, a formação técnica, profissional e humanística dos seus discentes 5. Por acreditar ser importante a existência de um cenário da prática para formação profissional e mudanças de paradigmas e atitudes dos estudantes, o curso de Odontologia da Unimontes oferece espaço com atenção odontológica a pacientes soropositivos para HIV/Aids. Mas como têm sido as atitudes dos acadêmicos? Partindo desse pressuposto, a proposta deste estudo buscou conhecer as expectativas e compreender as percepções dos acadêmicos de Odontologia da Unimontes em relação ao atendimento aos pacientes vivendo com HIV/Aids.

Metodologia Estudo etnográfico, com uso das técnicas de observação participante e entrevistas semiestruturadas, realizado com os acadêmicos de Odontologia da Unimontes matriculados na disciplina Clínica Integrada IV do nono período. A clínica oferece atenção odontológica a pacientes soropositivos para HIV/Aids encaminhados pelo Centro Ambulatorial de Especialidades Médicas Presidente Tancredo Neves (CAETAN) e Centro de Testagem e Aconselhamento do Alto São João (CTA). Inicialmente, aconteceu uma pré-observação, um primeiro contato com todos os 22 acadêmicos durante um grupo de discussão da disciplina, cujo tema “Aspectos éticos no atendimento odontológico ao portador do HIV/Aids” foi discutido por todos. A observação participante realizada por uma das pesquisadoras ocorreu durante o segundo semestre letivo de 2011, nos dias em que há atendimentos odontológicos para pacientes soropositivos para HIV/Aids. Estes são realizados por acadêmicos e acontecem semanalmente, às terças-feiras, em uma clínica odontológica da Unimontes, cenário deste estudo. Cada dupla de acadêmicos atende, aproximadamente, dois pacientes no período de quatro horas, sob a orientação de três professores da disciplina. Toda observação foi registrada em caderno de anotações como um diário de campo para registrar tudo o que foi experienciado. O acolhimento do indivíduo no ambiente natural da pesquisa (“ settings” de saúde) é elemento fundamental de mobilização de interesse do entrevistador ao observar os detalhes da linguagem verbal 586

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e não verbal6. Por estudar os sujeitos nos “settings”, a etnografia pode constituir uma ferramenta poderosíssima para a compreensão desses intensos e complexos diálogos que são as práticas7. Nesse sentido, o método baseado na pesquisa de campo possibilitou a condução da pesquisa face a face com os participantes, interatuando com estes durante um período de tempo enquanto executavam suas rotinas. No final do semestre, após o processo de observação, a mesma pesquisadora realizou as entrevistas semiestruturadas com nove acadêmicos do curso de Odontologia, escolhidos aleatoriamente, seis do sexo feminino e três do masculino. A faixa etária variou de 21 a 34 anos. Esse número de discentes dependeu da recorrência dos dados, que se refere à sensação de saturação avaliada pela pesquisadora8. O tamanho da amostra depende das características do grupo que está sendo estudado. Se a população for muito diversificada, o número de entrevistados deverá ser o suficiente para se ter uma visão geral dos elementos diferentes. Em um grupo puramente homogêneo, considera-se uma única pessoa uma amostra legítima9. A entrevista etnográfica é interativa e de natureza aberta, podendo, também, ser possível conduzi-la de forma semiestruturada. Ela é feita em profundidade, ou seja, “seu objetivo é sondar significados, explorar nuances”9 (p. 62). As “questões não devem ser engessadas em uma lista, mas servir de roteiro para os assuntos principais da conversa”9 (p. 62). O roteiro usado para as entrevistas foi construído baseando-se nas situações observadas no cotidiano da clínica para pacientes HIV/Aids soropositivos, tais como: preparação dos materiais, abordagem com o paciente na sala de espera, abordagem durante a anamnese, postura durante o atendimento clínico, limpeza dos materiais. As entrevistas, realizadas em uma sala reservada, foram gravadas com a devida autorização dos informantes e, à medida que ocorriam, foram sendo transcritas. A análise dos dados consistiu de leitura detalhada de todo o material transcrito, na identificação dos significados compartilhados pelos informantes e observados nas repetições de assuntos. Juntaram-se, na análise, os dados obtidos no diário de campo para identificação das categorias empíricas deste estudo. Para identificar os participantes, utilizou-se a letra E, o número de ordem da entrevista seguido da letra M para masculino ou F para feminino, e a idade. A coleta de dados realizou-se conforme os aspectos éticos e legais, segundo a Resolução nº 196 de 1996 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta pesquisas com seres humanos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Montes Claros.

Resultados e discussão As expectativas e percepções dos acadêmicos foram observadas e surgiram três categorias principais: “A expectativa do atendimento na clínica HIV/Aids”, “O medo de infectar-se”, “Mudança de comportamento”. Durante a observação participante, pôde-se verificar a ansiedade dos acadêmicos em saber quem seria o paciente e como este se apresentava. Esta expectativa à nova situação revelou manifestações de medo. Ao se prepararem para a primeira clínica, um dos acadêmicos colocou proteção nas unhas por têlas cortado e comentou ter “uma exposiçãozinha”. Uma acadêmica relatou que já havia tido a oportunidade de atender um paciente e ficou surpresa quando ele disse “ser aidético por ser uma pessoa forte”. Percebeu-se, também, a resistência de um acadêmico para o atendimento. Ao término da atividade clínica, outra acadêmica comentou, admirada, sobre a motivação dos pacientes em viver. Notou-se, ainda, que uma dupla de acadêmicas utilizou de campo festonado e avental cirúrgicos para a retirada de um dente decíduo de uma criança. Na Clínica Infantil do sétimo período, procedimento idêntico em crianças da mesma idade não é realizado com todo esse aparato, o que demonstrou uma atitude diferente dos estudantes quando o paciente é sabidamente infectado. O protocolo para extração de dentes decíduos na Clínica Infantil, bem como no atendimento de crianças com HIV/Aids, não inclui o uso de campo festonado, por gerar medo e ansiedade nas crianças, utilizam-se as normas de biossegurança padrão. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Pode-se considerar, então, como excesso de zelo, pois o procedimento consistia na extração de um dente decíduo anterior, com muita mobilidade, e que poderia ser realizado de forma muito rápida e segura utilizando-se procedimentos padrão. Diante de todo esse aparato, o que seria um procedimento rápido tornou-se demorado, pois a criança ficou assustada e temerosa, desaparecida por debaixo dos campos. Houve necessidade de intervenção dos professores, com remoção do campo festonado, tranquilização da criança, para posterior intervenção e extração do dente decíduo. Em relação às entrevistas, ao iniciá-las perguntando a cada acadêmico o significado da aids, a pesquisadora esperava respostas arraigadas de sentimentos; porém, os acadêmicos a descreveram com termos científicos, conforme se pode confirmar nos exemplos das falas de E3, E4 e E8, provavelmente reproduzindo o conhecimento adquirido sobre “Etiopatologia da infecção pelo HIV” discutido nos momentos de aulas teóricas da Clínica Integrada IV HIV/Aids, que acontecem antes das atividades práticas. “Aids pra mim é um paciente com o sistema imune bem comprometido. O CD4+ abaixo de 200”. (E3, F, 34 anos) “A aids é a síndrome da imuno-deficiência adquirida, que acomete o sistema imunológico do indivíduo. É causada pelo vírus HIV e não tem cura. O indíviduo que é acometido permanece portador soropositivo desse vírus para sempre”. (E4, F, 22 anos) “Aids já é uma doença [...] manifestando aqueles sinais e sintomas dessa síndrome, é quando o paciente já está naquela fase sintomática”. (E8, F, 23 anos)

A expectativa do atendimento na clínica HIV Apesar de os acadêmicos saberem a diferença entre HIV e Aids, pois tiveram aulas teóricas sobre “Controle de infecção cruzada” e “Etiopatogenia da infecção pelo HIV”, vê-se que todos idealizaram uma imagem sobre a doença para com os futuros pacientes. Pelas respostas, nota-se que acreditavam atender pacientes abatidos, magros, jovens do sexo masculino, homossexuais, de baixa renda, cabisbaixos, introvertidos. “Eu esperava atender pacientes mais debilitados. [...] eu imaginava que eles fossem muito abatidos, magros”. (E3, F, 34 anos) “O perfil que eu esperava era de pacientes com comprometimento do corpo. Um paciente mais definhado, um paciente magro, um paciente, também, mais introvertido, e que não se comunicava muito, mais fechado”. (E4, F, 22 anos) “Eu acho que todo mundo [referindo-se à turma] foi meio preconceituoso porque a gente sempre acha que vai olhar e saber que a pessoa é doente, que é característico as pessoas que têm a doença, que a pessoa é mais caquética, mais magra, mais triste”. (E6, F, 23 anos)

Pesquisa realizada com população de migrantes de Fortaleza - CE e Teresina - PI demonstrou existir uma ligação direta entre a aids e a aparência física, ou seja, a crença de que um corpo bonito é saudável e impenetrável para HIV10. Em diferentes momentos históricos e diferentes sociedades, a infecção pelo HIV apresentou caracterizações culturais semelhantes na coletividade, como: o preconceito, a discriminação e o estigma relacionados ao indivíduo acometido pela epidemia 11. A doença apresentou quatro fontes preexistentes de estigmatização: a sexualidade; o gênero; a raça; a pobreza 12. “Eu esperava atender mais pacientes do sexo masculino, com idade em torno de 20 anos [...] por ser um grupo dito mais propício”. (E2, F, 23 anos)

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“Eu esperava atender muito homossexual. [...] solteiros; pessoas humildes, simples, de poder econômico mais baixo”. (E8, F, 23 anos)

Artigos da década de 1980 falavam de jovens homossexuais masculinos, que estavam, inexplicavelmente, contraindo doenças raras para pessoas de sua faixa etária, deixando-os debilitados; estavam morrendo em decorrência de algumas doenças, as quais, normalmente, não levariam pessoas saudáveis à morte13. Estudo realizado com adolescentes demonstrou que estes ainda acreditam que as situações de perigo ocorram quando a parceira é reconhecidamente de risco, desconhecida ou trabalhadora do sexo, e nas relações homossexuais masculinas14. “Eu esperava gente de baixa renda [...] Eu achava que seria como cita na literatura e na TV, que seriam pessoas debilitadas e magras”. (E7, M, 22 anos)

Vê-se, pela fala de E7, quanto a mídia influencia para formular uma imagem. As noções que a maior parte dos leigos tem não são através da produção científica, mas das narrativas veiculadas pela mídia, que reproduz simplificadamente o discurso científico 13. A mídia reforçou a caracterização inicial da Aids configurada pela morte, pelo contágio e pelo sexo, que comportam componentes emocionais profundamente enraizados pela cultura, causando impacto no plano simbólico 15. Ao interpretarem os fenômenos orgânicos, os indivíduos apoiam-se em conceitos, símbolos e estruturas de referências interiorizadas conforme os grupos sociais e culturais em que se inserem 16. Antes de se proporem estratégias, faz-se necessário conhecer os aspectos relacionados às crenças, mitos, estereótipos em saúde, aos saberes de cada um, dentre outros aspectos17, afinal, os fenômenos sobre saúde, doença e cuidado não são acontecimentos isolados, restritos à dimensão orgânica e física, mas tendem a expressar outras dimensões da vida social e cultural18.

Surpreendendo-se com o paciente HIV soropositivo O tratamento antirretroviral, sobretudo após 1996, com a terapia de alta potência (Hight-Active Anti Retroviral Theraphy - HAART), tem possibilitado transformar uma síndrome que, anteriormente, era percebida culturalmente como sinônimo de morte 11. A aparência saudável e o bom estado psicológico dos pacientes surpreendeu os acadêmicos, fato que aparece na fala dos entrevistados. “[...] o estereótipo não é aquele perfil que a gente sempre imagina. A gente se surpreende quando chega na clínica. É muito variado o tipo do paciente que procura a clínica de HIV/ Aids na Unimontes [...] pacientes aparentemente saudáveis, que se encontrasse na rua nunca diria que são acometidos”. (E1, M, 21 anos) “Mas, no entanto, a olho nu, é uma pessoa aparentemente saudável, você não percebe”. (E5, M, 27 anos) “ [...] muitos têm a aparência muito boa, e até o psicológico muito bom. Alguns têm alto astral, até mais do que a gente que não está doente. Eles procuram viver cada dia mais e melhor”. (E3, F, 34 anos) “Eu tive duas pacientes muito contrárias. Uma era extremamente alegre, ria o tempo todo, mais magra e a outra era extremamente forte e tinha um humor bem negro em relação à doença, bem engraçado até”. (E6, F, 23 anos) “Mas o que a gente vê, pelo menos as que foram na clínica, que elas passam por tratamento, então elas têm uma saúde melhorada, uma qualidade de vida razoável”. (E7, M, 22 anos)

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No início do semestre, durante a discussão em grupo, que antecedeu ao atendimento clínico, os acadêmicos respondiam perguntas dos professores baseando-se nos artigos que haviam lido previamente. Para um dos acadêmicos, o paciente com HIV deve ser atendido ao final do expediente. Tal atitude demonstrou falta de ética e o desconhecimento entre soropositivo para o HIV e a aparência. Como saber quem é e quem não é infectado? “[...] porque no paciente não vem escrito na cara que ele tem o vírus. Ele é igual aos outros pacientes”. (E9, F 22 anos)

A infecção pelo HIV/Aids evoca inúmeras respostas no que refere ao comportamento humano, sendo necessária uma disciplina para instigar, nos acadêmicos, este conhecimento da natureza humana19.

O medo de infectar-se As emoções são o resultado das representações emocionais da doença que ocorrem historicamente, mas que, ainda hoje, circulam no meio científico, nos meios de comunicação de massa e no pensamento popular. No atendimento da clínica odontológica da Unimontes, pode-se observar diferença nas atitudes dos discentes, um cuidado maior quanto à biossegurança. Ao serem entrevistados, alguns revelaram medo: “Medo eu acho que todo mundo tem, de você um dia fazer um exame e descobrir que tá doente”. (E6, F, 23 anos) “Eu tenho medo de me contaminar”. (E4, F, 22 anos) “Medo eu tenho, [...] Eu tenho medo de atendimento de criança, ela pula, grita e mexe muito então você pode cortar com qualquer coisa”. (E3, F, 34 anos)

Outros comentaram não ter medo, mas esse sentimento apresenta-se velado, como explicitado na sentença de E1: “Não é trabalhar com receio, não é isso, mas você utiliza paramentos completos”; e de E9: “... na hora que você sabe que o paciente tem HIV você se policia mais”. “Sinceramente, antes de vir para a clínica eu tinha receio, mas com a vivência com a prática clínica isso vai desaparecendo. Eu não tenho medo, aquele receio. É lógico que com o paciente comprovadamente com HIV ou Aids você tem um tratamento maior, melhor. Não é trabalhar com receio, não é isso, mas você utiliza paramentos completos. Nos outros pacientes também a gente utiliza, só que você faz uma moldagem sem os óculos ou você faz um exame clínico sem os óculos... muitas vezes sem a máscara... e no caso do paciente HIV/ Aids você não faz isso”. (E1, M, 21 anos) “Não [referindo a não ter medo de se contaminar]. É ter cuidado, coisa que a gente não faz muito com os outros pacientes. Eu sei que não deveria ter diferença, mas querendo ou não, na hora que você sabe que o paciente tem HIV você se policia mais ”. (E9, F 22 anos)

O medo do contágio é a principal fonte de ansiedade frente a pacientes infectados pelo HIV 4,20,21. O significado de que a doença não tem cura e que gera preconceito parece interferir na prática de atendimento. Apesar do risco de transmissão ser baixo, as consequências podem ser sérias e, geralmente, estressantes 20. Isso porque o cirurgião-dentista, embora tenha conhecimento científico, apresenta, também, confrontos pessoais e limitações humanas4. Uma cultura fornece, ao indivíduo, os limites dentro dos quais se operam as interpretações relativas aos fenômenos corporais, especialmente a doença e seus sintomas. As pessoas apoiam-se em conceitos, símbolos e estruturas de referências interiorizadas conforme os grupos sociais e culturais em 590

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que se inserem16. Antes que as pesquisas científicas fornecessem embasamentos, “teorias” foram elaboradas apoiando-se em dados relativos aos portadores e aos vetores22. Os objetos sociais estranhos evocam medo, porque ameaçam o sentido de ordem das pessoas23.

Biossegurança Com o aparecimento da Aids, houve maior preocupação com a biossegurança entre a equipe odontológica. Com a adoção universal, tornou-se possível prevenir a transmissão de todos os agentes infecciosos dentro do ambiente clínico, incluindo o HIV, que, por sinal, tem baixíssima infectividade, não representando um grande risco para o profissional3. Evidências científicas mostram que o risco de transmissão do HIV é de 0,2 (0,5%) em acidentes percutâneos, menor do que o risco de infecção para a hepatite B (HBV), que é igual a 5 (40%) e para a hepatite C (HCV), que é igual a 3 (10%)4,20,21. Apesar dos relatos em relação ao medo, as falas referiram haver segurança para realizar os procedimentos odontológicos. O fato de se dizerem seguros demonstra, apenas, uma reprodução das evidências científicas, mas, nas atitudes, se superprotegem em relação à biossegurança: “Não me sinto em risco, desde que eu siga toda a biossegurança”. (E2, F, 23 anos) “A gente sabe que pode se contaminar com sangue saliva ou outras secreções. Por isso tenta se proteger de todas as formas: usar óculos, máscara, lavar os materiais [...] tenta se precaver de tudo. E isso deve ser feito em qualquer clínica”. (E6, F, 23 anos) “Acho que exposto todo mundo está, mas com as regras de biossegurança, se elas forem seguidas corretamente estaremos protegidos”. (E9, F, 22 anos)

Pode-se observar uma ambiguidade de sentimentos, e isto fica claro tanto nas falas anteriores quanto no relato do E7 e E3, onde o receio faz com que seja mais rigoroso com a biossegurança quando se sabe que o paciente é soropositivo. A fala de E7 demonstra, também, que, até então, tinham uma imagem estereotipada. “O povo trata diferente a biossegurança, porque às vezes quando a pessoa não tem essa noção de paciente portador, pensando que ele não tem o HIV ou outra doença contagiosa, às vezes passam despercebidas algumas das normas [...] E sabendo que o paciente tem o HIV eles tomam mais cuidado. Eu sempre usei o EPI completo. Às vezes, com relação ao material, lavagem e tempo de esterilização, às vezes sou mais rigoroso quando sei que o paciente é portador”. (E7, M, 22 anos) “[...] quando eu atendia outras crianças eu não usei campo [referindo ao atendimento em outras clínicas e o uso de campo festonado e avental cirúrgicos para a retirada de um dente decíduo]. [...] eu usei todo o campo prá ter todo o cuidado comigo, porque eu sabia que era uma criança, ele podia debater [...] A professora até falou comigo que não precisava, o que eu não concordo, eu acho que precisa sim. A gente aprende que criança não pára quieta. Mas eu acho que foi um ato falho meu ter colocado [...] Depois que eu fui pensar. Mas se acontecesse de novo eu faria tudo igual, eu colocaria o campo. Mas aí a gente entra em contradição, né? E as outras crianças, será que não eram [infectadas]?”. (E3, F, 34 anos)

Pesquisa realizada na cidade de Natal (RN) revelou que alguns cirurgiões-dentistas não atenderiam pacientes com Aids, por não se sentirem preparados, e as razões foram: falta de informação sobre esse assunto, falta de condições psicológicas, falta de condições de biossegurança no local de trabalho; relataram, ainda, que o paciente soropositivo deve receber tratamento em local especializado, e houve, também, revelação quanto ao preconceito para com o paciente. Entre aqueles que afirmaram atender pacientes soropositivos, a maioria respondeu que utilizaria procedimentos especiais para o tratamento 24. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O cirurgião-dentista, ao invés de temer a Aids, deve adotar as normas universais de biossegurança e considerar que todo paciente é potencialmente portador de alguma doença infectocontagiosa 25. Mas, é muito difícil mudar preconceitos, estigmas e crenças. Os sentimentos vão além do conhecimento, da ciência, isto porque as fraquezas humanas e os conflitos morais se refletem no profissional enquanto indivíduo4. Uma das preocupações refere-se aos materiais perfurocortantes, e as agulhas são os objetos causadores do maior número de acidentes26. As injúrias percutâneas ocorrem no momento de reencapá-las27. Por essa razão, os discentes demonstraram receio com os materiais perfurocortantes: “A gente tem muito medo de reencapar a seringa, de perfurar o dedo”. (E3, F, 34 anos) “Nós, dentistas, mexemos com muito material pérfuro-cortante e o tempo todo corremos o risco de se contaminar. Eu sou um pouco desajeitada e tenho medo de me perfurar com algum material contaminado”. (E6, F, 23 anos) “A probabilidade da contaminação existe. [...] o protocolo de equipamento de proteção individual é muito bem seguido [...] mas, existe a probabilidade pérfuro-cortante”. (E1, M, 21 anos)

Mudança de comportamento Para compreender a importância da biossegurança, não bastou a teoria até então vista em períodos anteriores. Percebeu-se que as evidências científicas não garantiram segurança no atendimento. Staliano e Coêlho28 relataram que o conhecimento, por si só, não faz com que as pessoas tenham atitudes favoráveis. “[...] e é passado também no segundo período sobre biossegurança, no quarto período também é comentado. Na clínica de atendimento de prótese, por exemplo, nós já fizemos alguma moldagem sem os óculos, muitas vezes sem a máscara e tudo mais. Eu tenho certeza que isso não ocorreria aqui [na clínica HIV/Aids]”. (E1, M, 21 anos)

O conhecimento não implica, necessariamente, mudança, pois, entre o saber e o fazer, há uma série de fatores que influenciam o comportamento. Partindo desse princípio, torna-se relevante desenvolver habilidades que atuem diretamente na mudança de atitudes 28. Observou-se, então, a importância da prática clínica com indivíduos soropositivos para perder “aquela imagem do paciente portador do HIV” (E7), para dar “importância, o quão necessário se faz proteger” (E1), ou seja, verificar que o protocolo de biossegurança é “extremamente necessário” (E2). “O protocolo é para todos os atendimentos, com todos os pacientes. Mesmo porque nem todos os pacientes com Aids vão te falar. Meu cuidado melhorou com a clínica HIV/Aids. Com o passar do semestre você vai tomando cuidado, a importância, o quão necessário se faz proteger. A Clínica de HIV/Aids te ensina. O protocolo de proteção individual deve ser seguido. Eu me protejo melhor”. (E1, M, 21 anos) “A partir dessa clínica de HIV eu pude ver a importância de seguir esses critérios de biossegurança, até então o que eu achava desnecessário, hoje eu acho extremamente necessário. Então, eu acho que me abri mais prá isso”. (E2, F, 23 anos) “Depois que eu perdi aquela imagem do paciente portador do HIV como sendo um paciente mais debilitado, bem característico mesmo, eu vi que qualquer um dos pacientes pode ter HIV ou hepatite e pode ser transmitido, aí eu passei a ter essa consciência maior de cuidar dos materiais, da biossegurança com qualquer paciente. Na clínica de HIV é que foi

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passado mais normas de biossegurança, mais formas de manter os materiais estéreis e assépticos”. (E7, M, 22 anos)

Na verdade, não foram passadas mais normas sobre biossegurança, mas, sim, reforçadas, como se faz a cada semestre antes das práticas clínicas. O que se observou foi uma atenção maior dos acadêmicos a elas pelo receio de se contaminarem, por ser uma clínica sabidamente de indivídos soropositivos para HIV/Aids. Devido às características de transmissibilidade da Aids, as mudanças nos procedimentos de controle de infecção aconteceram rapidamente, o que anos de educação não haviam, até então, conseguido 4, pois a ruptura paradigmática acontece quando há um espaço concreto onde professores e discentes se movem criando um contexto de aprendizagem contrariando os pressupostos essenciais do velho paradigma. É importante uma disciplina que assista os acadêmicos “[...] na articulação de sentimentos e crenças, no seu processo de autopercepção, na percepção da alteridade do mundo, na percepção de diferentes comportamentos e potencialidades humanas [...]” 19 (p. 30) para formar indivíduos “[...] humanizados, sensíveis, preparados para lidar consigo e com seus pacientes, tarefa que exige trabalhar com os mais diversos valores inseridos em complexos contextos históricos, culturais e sociais” 19 (p. 30).

Considerações finais Os acadêmicos têm representações estereotipadas para com os futuros pacientes com HIV/Aids. As caracterizações são ainda estereótipos sociais, como: pessoas magras, homossexuais masculinos, com aspecto deprimido. Ao entrarem em contato com os pacientes com HIV/Aids, observaram-se mudanças nas concepções dos estudantes a respeito da imagem que faziam dos indivíduos soropositivos. Devido ao fato de a doença não ter cura e gerar preconceitos, a prática clínica foi enfatizada para as questões de biossegurança. O medo foi observado pela tendência em superestimar os riscos de transmissão pelo HIV, tanto pelas atitudes quanto nas falas dos acadêmicos, havendo mais cuidado ao atenderem aqueles sabidamente infectados, pois, nas demais clínicas, o protocolo não foi seguido em excesso como na Clínica Integrada IV HIV/Aids. Proporcionar uma dinâmica antes do atendimento clínico, para que os estudantes possam expor os aspectos relacionados às crenças, mitos, saberes de cada um, parece ser uma estratégia que ajudará na quebra de estereótipos. A etnografia, como caminho metodológico para se estudarem as percepções dos acadêmicos de Odontologia da Unimontes durante a clínica com indivíduos com HIV/Aids, nos mostrou ser importante a existência de um espaço no atendimento a essa população durante a graduação, para romper paradigmas e ratificar que a biossegurança deve ser a mesma para com todos os pacientes. É primordial a busca de uma formação para um perfil de profissional com iniciativa, criatividade, senso crítrico, mas, também, ético, humanizado e com visão ampliada de mundo, de modo que possa entendê-lo e atuar transformando-o em uma sociedade melhor.

Colaboradores Luiza Augusta Rosa Rossi-Barbosa responsabilizou-se pela observação participante, entrevistas com os estudantes, transcrições e elaboração do texto. Raquel Conceição Ferreira, Cristina Andrade Sampaio e Patrícia Neves Guimarães Ferreira, Sampaio e Guimarães responsabilizaram-se pela revisão bibliográfica e revisão do manuscrito.

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Rossi-Barbosa LAR, Ferreira RC, Sampaio CA, Guimarães PN. “Él es igual a los demás pacientes”: percepciones de los académicos de Odontología en la clínica de VIH/sida. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):585-96. Se buscó conocer las expectativas y percepciones de los académicos de Odontología de la Universidad Estadual de Montes Claros, MG, Brazil, en lo que se refiere a la atención a los pacientes con VIH/Sida. Se utilizaron observación participativa y entrevistas semiestructuradas con nueve académicos y a partir del análisis se identificaron tres categorías: “La expectativa de la atención en la clínica de VIH/Sida”, “El miedo de infectarse” y el “Cambio de comportamiento. Antes del contacto con los pacientes, las caracterizaciones construidas por los académicos eran estereotipos sociales. El miedo se observó por la tendencia de sobreestimar los riesgos de transmisión, cambiando los comportamientos en relación a la bioseguridad. La etnografía permitió percibir la importancia de la práctica en la clínica odontológica, aliada a la bioseguridad en la ruptura de los paradigmas y prejuicios con el paciente con VIH/Sida.

Palabras-clave: Percepción. VIH. Etnografía. Odontología.

Recebido em 05/02/14. Aprovado em 22/02/14.

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espaço aberto

DOI: 10.1590/1807-57622013.0777

Ser-estar no sertão: capítulos da vida como filosofia visceral

Renzo Taddei(a)

Introdução Este texto é sobre corpos em relação, de gentes e de bichos; sobre vísceras e sobre quem rasteja chuva no sertão do Ceará. Estive no Vale do Rio Jaguaribe, para minha pesquisa de doutorado, entre 2003 e 2006, dedicando-me a estudar etnograficamente formas de compreensão e vivência da atmosfera. Na tentativa de traçar redes e seguir conflitos, os períodos mais longos de observação participante deram-se em duas frentes: junto a meteorologistas, na agência meteorológica estadual, e entre agricultores conhecidos como “profetas da chuva”, por sua capacidade de elaborar prognósticos de chuva baseados na observação de animais, plantas e outros sinais. É ao redor destes últimos – e, particularmente, da forma como “leem” as chuvas futuras nos corpos, seus e dos animais – que se movem as reflexões aqui propostas. As ideias apresentadas neste artigo tiveram como provocação inicial o trabalho de uma teatróloga, Paula Cavalcanti Vaz. Eu a conheci no interior do Ceará, na cidade de Quixadá, num encontro de profetas da chuva, em 2007. Na época, ela fazia graduação em artes cênicas na UNIRIO e conduzia uma pesquisa de campo para a criação de uma obra teatral sobre os profetas. Em agosto de 2012, defendeu sua tese de mestrado1, e fui convidado a integrar sua banca. Em sua dissertação, Paula seguiu trabalhando o tema dos profetas e baseou-se no conceito de mimese corpórea como elemento central da sua pesquisa, trazendo tal conceito do trabalho do grupo LUME2, da Unicamp. Seu trabalho passava pelo intento de mimetizar o corpo das pessoas, por meio de trabalho de campo, no processo de criação de personagem. Na defesa de mestrado, argumentei que isso era impossível, por razões conceituais – eu pensava, naquele momento, na ideia de invenção de corpos no teatro como uma instância particular da invenção da cultura no mundo, do modo proposto por Roy Wagner3. O autor alega que o contato intercultural, marcado por uma dinâmica dialética, produz diversas coisas, mas não mimese, exatamente. Entretanto, no momento mesmo em que eu fazia a crítica, enquanto as palavras saíam da minha boca, tive uma epifania: dei-me conta de que, em certo aspecto, eu fora a campo para mimetizar os conceitos daquelas mesmas pessoas – o que era impossível, por razões corporais. Isso me fez pensar no papel da dimensão corporal no trabalho etnográfico, bem como na

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(a) Instituto do Mar, Universidade Federal de São Paulo. Av. Almirante Saldanha da Gama, 89. Santos, SP, Brasil. 11030-400. renzo.taddei@unifesp.br

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experiência do mundo de forma geral, inicialmente como mediação e, posteriormente, como mundificação4.

Paula Cavalcanti Vaz (em pé) no espetáculo Profetas da Chuva (b)

Alguns meses mais tarde, meu amigo Felipe Sussekind Viveiros de Castro me pediu para fazer um comentário a respeito do filme Rastejador, s.m.5, dirigido por Sérgio Muniz e produzido por Thomas Farkas, para um evento que ele organizava na época. Trata-se de um documentário, lançado em 1969, sobre Batista e Joaquim Correa Lima, indivíduos que, devido à sua capacidade de seguir rastros na caatinga, participaram da caçada a cangaceiros no sertão e ao bando de Lampião, em especial. Logo de saída, chama a atenção o uso da palavra rastejo em referência à atividade de seguir os rastros. Ainda que os significados atribuídos às palavras sejam sempre uma questão empírica, surge aqui uma tensão semântica estimulante: o fato de que rastejar não nos conduz, imediatamente, à ideia de leitura semiótica – da forma como rastro o faz. O rastejo é algo que se faz com o corpo, e não (usualmente) com as ideias.

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Fragmento da obra teatral pode ser visto em: http:// www.youtube.com/ watch?v=_XEgm_l-cIQ


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Vídeo disponível em: http://youtu.be/ T4B6VszMvGY

Cena do filme Rastejador, s.m., de Sérgio Muniz, 1969(c)

No filme, não vemos o rastejador literalmente rastejando, mas mimetizando mentalmente o rastejo do animal ou da pessoa a quem busca, de modo a ser capaz de simular seu movimento. Apenas um terço da trama, no entanto, faz referência à atividade de descobrir os rastros e movimentos na caatinga. A maior parte da obra mostra Batista cortando troncos e raízes; raspando e espremendo a polpa dos frutos; extraindo e ingerindo líquidos. A transição entre a narração de atividades de rastejo de cangaceiros e as atividades de extrair e ingerir substâncias é abrupta. O narrador, de maneira lacônica, diz apenas que o rastejador aproveita com astúcia o ambiente onde vive. O filme termina então com os versos: “a bala tem o seu destino / sede e fome têm sua sorte / Na caatinga, vida e morte / São coisas que eu bem atino”, e um disparo de espingarda de Batista. Um final surpreendente para um filme que se propunha a falar sobre “seguir o rastro ou pegadas”, como diz o verbete de dicionário mostrado logo em seu início. Eu encontrei essa concepção da leitura de sinais não como interpretação, mas como um saber mover-se no sertão; e o saber mover-se como ligado ao compartilhamento existencial – do qual a ingestão de substâncias é parte fundamental – por praticamente toda a minha experiência de campo na região central do sertão cearense. E, em adição a isso, a direcionalidade implicada em tal saber mover-se era recorrentemente entendida como dimensão visceral.

Profecia e garrafada Tomemos, por exemplo, o caso de João Ferreira de Lima, um agricultor, falecido em 2009, que residia no município de Quixadá durante o período mais extenso de minha etnografia. Apontado como “profeta da chuva”, João foi uma das primeiras pessoas com as quais conversei sobre o tema. Reproduzo, a seguir, um trecho da transcrição de minha primeira entrevista com ele 6.

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RT: O pai do senhor sabia fazer, sabia reparar também, não? Foi ele que ensinou o senhor ou o senhor aprendeu só? JFL: Não, eu aprendi sozinho, a pessoa quando ele nasce (sic) com um dote ele aprende por coisa dele e sabe responder tudo que você perguntar, como em qualquer matéria pode perguntar que eu lhe respondo bem direitin. ... Indico, sou quase um professor, dou indicação como é que a pessoa vive, dou indicação, toda indicação, qual é o dia próprio da gente sair sem medo. RT: Sair pra onde? JFL: Andar no mundo sem medo. RT: Ah, eu não entendi. Explica pra mim isso, como assim? JFL: A pessoa sair, tem o dia da pessoa sair sem haver abscesso, pra ver se tem algum aviso. Tudo no mundo a pessoa tem, tem aviso, tem aquela viagem não dá certo, se eu vou voltar de canoa, se não dá… RT: E como o senhor sabe isso, quais são, onde o senhor repara qual é, quais são os sinais? JFL: Sinais, sabe o que é, devido as instruções do coração palpita. RT: Palpita o coração. JFL: O coração palpita. No caso de eu já havia de sair ali no alto, bem pertim, e a mulher disse, “João, cê num foi, não?” [e eu disse] hoje o dia não é próprio pra mim ir ... pra canoa, mas eu não digo a ela nem o motivo como é. Se você num tivé cuidado, uma coisa e outra, aí se você precisar de uma oraçãozinha, faço uma oraçãozinha pra você ... você chega, o caba diz eu vou… como é teu nome? RT: Renzo. JFL: Eu vou matar já o Renzo, infiá a faca e tudo mais, mas quando [te] vê, [te diz] ah Renzo, coisa e tal, passa e vais’imbora. RT: E qual a oração? JFL: É uma oraçãozinha que tem um palpitezin, tem o dente de São Cipriano, tem o livro de São Cipriano, de capa preta... […] RT: Me diz uma coisa, as pessoas procuram o senhor pra perguntar [sobre chuva]? JFL: Pergunta, às vez faço uma garrafada, uma coisa... RT: O que é uma garrafada? JFL: Garrafada é raiz de pau, fazer uma garrafada de raiz de pau, porque a pessoa, por exemplo, tá com uma gastrite, tá com uma úlcera, tem mulher que tá inflamada, barriga inflamada ... eu sou quase um cientista natural (risos). RT: É um remédio? JFL: É remédio do mato, eu só trabalho com remédio do mato.

João Ferreira de Lima. Foto: Tiago Santana 7. 600

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Como se pode ver, eu tento, sem muito sucesso (para minha sorte), fazer com que a conversa mantenha-se focada na questão da suposta leitura dos sinais da natureza, usada na elaboração da previsão de chuvas. Ele, no entanto, faz referência constante ao tema da necessidade de se ter experiência no mundo sobre o qual se quer falar com autoridade e à forma como essa experiência se materializa na relação entre corpo e substâncias da terra. Em seus últimos anos de vida, João se apegou mais ainda às suas garrafadas – seus remédios feitos com raízes, acondicionados em garrafas PET –, carregando-as consigo por praticamente todo o tempo. Chico Mariano, outro profeta da chuva de Quixadá, usava como estratégia de mistificação dos jornalistas urbanos sua capacidade de “ler” existencialmente as pessoas; leitura que se dava por meio dos seus corpos. Ele era capaz de dizer se as pessoas haviam nascido à noite ou de dia a partir da observação de suas orelhas – em muitos anos de observação, não encontrei uma pessoa sequer que tenha afirmado ter ele se equivocado. Certa ocasião, Chico Mariano, em uma roda de jornalistas, pegou a mão de um deles, olhou-a por alguns segundos e disse, à queima-roupa, com inabalável confiança: “você trai a sua mulher”. Mais do que uma leitura de signos, trata-se aqui de uma interpelação de corpos: o próprio corpo, o corpo do jornalista ou o corpo dos animais, como veremos a seguir. No que diz respeito à previsão de chuvas, há uma série de estratégias aparentemente recorrentes na forma como a natureza e os animais (e seus corpos) participam do processo. O que é observado não são apenas sinais, mas indicadores de transformação da vida, da intensidade dos fluxos energéticos, fundamentalmente entendidos por meio da visceralidade dos animais e plantas. O princípio basilar parece ser a percepção da intensidade do devir-organismo coletivo, da reprodução orgânica dos seres vivos, dentro dos ciclos do ecossistema. Cito alguns exemplos: as formigas e cupins, se estiverem retirando comida velha de dentro dos ninhos, estão limpando-os e dando espaço para o advento de alimento novo – que só virá com chuva. Se estiverem abandonando ninhos em terras baixas, no leito seco dos rios, por exemplo, estão se salvando da inundação – que só ocorrerá com chuva. Se as árvores frutificam na véspera da estação de chuvas e se as fêmeas dos animais engravidam – gatos, cães, jumentos, pássaros, tatus e peixes – é porque o contexto cósmico se apresenta como propício à renovação da vida, que precisa da chuva para ocorrer (Os peixes precisam ser eviscerados para que se ateste a presença de ovas, remetendo a uma tradição antiga da leitura de vísceras animais que existe desde a Babilônia, passando pelos etruscos, pelos romanos e chegando aos nossos laboratórios, transmutada na prática da vivissecção). A posição da entrada do ninho do pássaro que chamamos, no Sudeste, de joão-de-barro, e que os cearenses chamam de maria-de-barro, é entendida como indício das chuvas futuras – o pássaro, às vésperas da estação chuvosa, fecha a entrada do lado por onde vêm as chuvas e abre outra entrada, do lado oposto, para que o ninho continue seco. Se não houver essa mudança, a ideia é de que não há o risco da umidade e, portanto, não há precipitação no horizonte. Embora, como podemos ver pelos exemplos acima, seja mais usual observar o comportamento animal para a previsão de chuvas, por vezes, também a espécie humana ocupa a mesma função. Em fevereiro de 2004, entrevistei um senhor idoso em Caicó, no Rio Grande no Norte, tido como um dos principais profetas da chuva da região, que estava certo de que um grande número de moças grávidas em sua cidade era sinal de chuva – retirando, assim, os humanos de sua condição de excepcionalidade em relação aos animais8. As coisas, obviamente, não são tão simples, nem tão determinísticas; há grande variabilidade na forma como os fluxos de energia se fazem sensíveis e vivíveis. A gravidez das gatas não é necessariamente sinal de chuva: isso depende do que ela faz com os filhotes. Se ela os come, tal fato é entendido como indício de que os bichos estão no modo de conservação, não de preparação para a renovação das substâncias. Se o juazeiro, árvore ícone do sertão semiárido, frutifica na véspera da estação de chuva, isso é, potencialmente, um bom sinal, mas apenas se os frutos não caírem antes de seu desenvolvimento. Aliás, o fato de o juazeiro ser um ícone – duas das mais importantes cidades do interior do nordeste, Juazeiro da Bahia e Juazeiro do Norte, no Ceará, levam seu nome – ocorre por ele não ser parte da vegetação xerófita da caatinga, aquela formada por espécies cujas folhas verdes desaparecem na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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estação seca e retornam, na forma de explosão, nos primeiros dias de chuva. O juazeiro, ao contrário, se mantém verde na seca. Há nisso um contraponto cósmico importante. A relação entre a produção da agricultura e os animais se desenvolve como sendo parte dos fluxos cósmicos. Os organismos vivos – plantas, bichos e o próprio corpo do profeta – mostram, metonimicamente, a condição do fluxo de energia e substância; e a agricultura é entendida como parte disso. Se as plantas e os bichos estão se reproduzindo, não há nada que previna a reprodução dos humanos; a agricultura impõe-se, então, como imperativo moral9,10(d), e quem se coloca contra isso – muitas vezes, justamente, a meteorologia – é entendido como injustificadamente pessimista, na melhor das hipóteses. O juazeiro, então, é usado estrategicamente (e, muitas vezes, tragicamente) no contrafluxo dos processos energéticos mencionados anteriormente: ele sugere que é possível sobreviver à seca. É convenientemente capturado por lógicas e discursos exógenos à vida na caatinga: aves, insetos e animais migram; o juazeiro não migra, porque não pode. Quem migra, migra porque pode. No caso da história do Ceará, uma das manifestações desse fenômeno era a propriedade de terras no Maranhão por parte dos fazendeiros do estado, de modo que o gado fosse para lá transferido na ocorrência de secas. O gado era beneficiado com a possibilidade da mobilidade, enquanto grande parte da população sertaneja era abandonada à própria sorte11. Salvava-se, assim, o que importava à elite cearense: as vacas e as formas de domínio da terra. Tais formas de uso da terra, introduzidas pelo colonizador português na forma de propriedade privada, e a decorrente privatização das fontes de água, são coisas que reduzem dramaticamente a mobilidade humana, para o desastre coletivo de todo o semiárido. O juazeiro se coloca como outro fluxo energético, de contracorrente, por assim dizer, e mais perigoso.

Sobre a visceralidade da experiência do mundo O fenômeno dos profetas da chuva, da forma como existe hoje, surge no momento em que decisões do governo de usar previsões meteorológicas em políticas públicas agrícolas fracassam e geram conflito no meio rural 12. O interesse da mídia das capitais pelo assunto do “conhecimento local” que se contrapõe à ciência criou o profeta da chuva como alguém capaz de performatizar, enquanto tal, diante de câmeras de TV13. No entanto, uma das dificuldades na relação entre as formas de vida do sertão e o conhecimento “científico” sobre o meio ambiente se dá em decorrência da hipervalorização que o pensamento ocidental coloca na ideia de ler sinais, dentro do fetiche funcionalista-desenvolvimentista do uso produtivo de informações (científicas) em decisões econômicas. A análise da forma como as previsões de chuva são realizadas mostra que os sertanejos não leem os sinais da natureza, mas vivem o ambiente na forma de movimento e fluxo 14. O corpo é elemento central nesse processo. No entanto, o corpo não “medeia”, pelo menos não no sentido mais pobre do termo mediação – aquele que implica um mundo, um indivíduo, e algo que os intercomunica. O corpo não existe aqui em relação (principalmente) metafórica, mas mimética e metonímica 15 com os fluxos do ecossistema. Nesse sentido, ele não se reduz a ser um mediador de “relação”, mas faz necessária a consideração das suas dimensões mais propriamente substantivas. Um aspecto importante da reversão da perspectiva metafórica para a metonímica na relação entre o estar no mundo e os fluxos do mundo é a desarticulação da distinção entre sujeito e objeto, bem como da separação entre dentro e fora do corpo. Sendo parte fundamental da vida em movimento e do 602

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Por razões distintas, a agricultura se impõe como imperativo moral mesmo quando os sinais não apontam para a aproximação de chuvas (ver Taddei10).


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movimento da vida, na condição de unidade analítica, o corpo precisa ser desmembrado e sua composição discutida. Na perspectiva da pesquisa em que essas ideias afloraram, uma conversa com a microbiologista Carla R Taddei a respeito da relação entre o cérebro e as bactérias que compõem a flora intestinal humana foi fundamental. Perguntei a ela se, dentro da ideia de que o corpo tem, no cérebro, seu comando central, este possui controle direto sobre as bactérias do intestino. Não, me respondeu ela, e isso ocorre, em parte, em função do fato de que essas bactérias estão fora do corpo . Frente à minha reação de incompreensão, ela me sugeriu pensar o corpo como um tubo, sendo o interior do aparelho digestivo a sua parte oca. O que está dentro do oco do tubo está, ao mesmo tempo, fora da materialidade do tubo, ou seja, fora do tubo enquanto coisa (ainda que esteja dentro do tubo enquanto figura geométrica). Essa perspectiva apresenta uma novidade radical à perspectiva fenomenológica: o sistema digestivo como superfície de contato com o mundo. Tal dimensão do sistema digestivo escapa à maioria dos autores que adotam uma perspectiva fenomenológica; com exceção de Nietzsche 16, que reconhece, em diversas passagens de sua obra, a centralidade das vísceras na forma como seres vivos experimentam o mundo e a vida. O contato entre o sistema digestivo e o mundo, no entanto, não se dá de acordo com um modelo cibernético, fundado na ideia de que comunicação é diferença, como, em geral, se pensa o papel dos cinco sentidos. Trata-se de um contato através da participação direta no fluxo de substâncias do mundo. Com base nessas reflexões, inspirado pela relação entre a ingestão de substâncias e a capacidade de mover-se no mundo, como sugerido pelos rastejadores (e outras fontes: em Alice nos país das maravilhas, por exemplo, a deglutição de substâncias tem papel central na forma como Alice aprende a navegar o mundo caótico em que se encontra17,18) – e propondo heuristicamente o contraste entre as formas como vísceras e cérebro, sistema nervoso e tubo digestivo participam dos processos da vida –, sugiro que as vísceras têm precedência sobre o sistema nervoso, e, particularmente, sobre o cérebro, na existência humana. Isso se dá porque, entre outras coisas, as vísceras, e particularmente o sistema digestivo, são as únicas partes do corpo que, como mencionado acima, estão dentro e fora ao mesmo tempo, além de estarem em movimento contínuo e serem a forma como a transformação no indivíduo (ou como o indivíduo como transformação) se conecta com as transformações no mundo. As vísceras não precisam de estímulo para existir, como comumente pensamos os sentidos – ou seja, como um sistema que, sem estímulo externo, volta a um suposto estado de equilíbrio. Também não funcionam (fundamentalmente) na base do estímulo-resposta, mas são transformação incessante, contínua. E seria possível mencionar, ainda, o fato de que a maior parte da serotonina é produzida no intestino, e não no cérebro19 (o que resulta, dentre outras coisas, na crescente popularidade de abordagens nutricionais no tratamento de depressão). O argumento – puxando a provocação ao seu limite, e ao mesmo tempo afirmando a literalidade dessa posição –, é que o sistema nervoso é que faz parte do sistema digestivo, não o contrário. Num viés mais performático, as vísceras, e mais especificamente o sistema digestivo, estão aqui apresentados como uma estratégia de des-orgãonização do senso comum sobre o estar no mundo “moderno”, um voltar-se para o corpo sem órgãos deleuziano20.

Conexões entre os sistemas nervoso e gastrointestinal 21

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Penso, então, que qualquer forma de cognição só tem sentido filosófico se entendida como meio de transformação digestiva (e não apenas antropofagicamente22,23). Essa abordagem se alinha com contribuições teóricas recentes que sugerem que, no contexto do que se convencionou chamar Antropoceno, não se pode pensar a existência (das coisas e das ideias) em modelos outros que não ecológicos 24. O que eu proponho aqui é que o intelecto é evocado, estimulado, posto para funcionar no contexto dos problemas postos por consumo, deglutição, digestão – de ideias e substâncias, em redes complexas de relações ecológicas. Finalmente, uma abordagem político-existencial que tome a dimensão visceral em toda sua importância, como um devir-visceral, é um caminho possível para a resolução do crescente imbróglio sobre a relação entre humanos e animais não humanos. Ou seja, ao invés de pensar essa relação partindo sempre da indagação sobre a possibilidade de que os bichos sejam conscientes ou sencientes – leia-se, daquilo que, pensava-se, os animais não tinham por definição –, é preciso criar as bases da coexistência com fundamento naquilo que os animais têm e compartilham com os humanos por definição; a saber, a visceralidade(e). Ao invés de evocar um “parlamento de humanos e não humanos” (o parlamento de coisas latouriano25), é preciso pensar a vida coletiva não como a capacidade expressiva de cada ser (ilusão habermasiana26 estendida ao infinito), mas como a possibilidade de coexistência de seres fundada na plenitude dos seus diferentes devires. Ainda que isso esteja longe de ser simples, não se pode ignorar a importância de tal mudança de perspectiva.

Arremate provisório A relação entre “profetas que leem os sinais da chuva” e a fonte dos sinais – plantas, bichos, o corpo humano – é menos a “produção de informação (sobre chuva) como subsídio à tomada de decisões agrícolas” e mais um processo de sincronia coletiva que une plantas, bichos e gentes, processo maior do que todos os indivíduos, sobre o qual não se tem controle e no qual, não raro, os indivíduos se predam mutuamente. O enquadre desse processo cósmico como uma imensa transformação, ou uma imensa rede de transformações de substância, à forma de peristaltismo cósmico, abre uma série de possibilidades teóricas e existenciais. Uma dessas possibilidades é o modo como a dimensão da visceralidade está ligada ao que eu chamo de experiência do mundo não mediada pela experiência do eu. Entender essa dimensão da existência humana, na qual a experiência do mundo não é mediada pelo que entendemos por subjetividade, é uma das fronteiras mais interessantes das ciências sociais: das muitas variações do que se convencionou chamar de espiritualidade ao fenômeno da multidão27, é preciso pensar formas não subjetivadas e não subjetivantes de se estar no mundo, como parte fundamental da constituição dos existentes (ontologias), sem relegar tais formas para um outro mundo28. Seria possível dizer que a visceração precede a existência, que precede a essência – não como encadeamento processual, mas como condição de existência: a visceração é a existência em movimento. O que os sertanejos acessam são as vísceras da terra; e vísceras são agentes de devir-transformação. Não se sabe se a terra pensa ou se comunica – e isso é irrelevante. Os profetas, como todos nós, são seres no estômago do mundo; o que entendemos por semiótica é não mais do que parte desse über-processo digestivo.

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Definir as regras do jogo em função daquilo que se crê que o oponente não seja capaz, como se faz com os animais recorrentemente, é coisa que seria considerada violência política entre humanos.


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Agradecimentos As ideias apresentadas neste trabalho desenvolveram-se no contexto de minha participação no Grupo de Estudos de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (GEACT), na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e, posteriormente, no Laboratório de Pesquisas em Interações Sociotecnicoambientais (LISTA), na Universidade Federal de São Paulo. A pesquisa de campo teve financiamento, em diferentes momentos, das seguintes instituições: CNPq, FAPESP, Wenner-Gren Foundation, Comitas Institute for Anthropological Study (CIFAS), International Research Institute for Climate and Society (IRI) e Center for Research on Environmental Decisions (CRED-Columbia University).

Referências 1. Vaz PC. A composição de personagens a partir do contato com culturas e pessoas do meio rural: os profetas da chuva (Nordeste) e os caiçaras (Sudeste) [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; 2012. 2. LUME. Mímesis corpórea [Internet]. Campinas: Unicamp; 2010 [acesso 2013 Set 6]. Disponível em http://bit.ly/18HKyd6 3. Wagner R. The invention of culture. Chicago: University of Chicago Press; 1981. 4. Ingold T. Caminhando com dragões: em direção ao lado selvagem. In: Steil CA, Carvalho ICM, organizadores. Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold. São Paulo: Editora Terceiro Nome; 2012. p. 15-29. 5. Muniz S. Rastejador, s.m [Vídeocassete]. São Paulo: Distribuição e Produção de Filmes Brasileiros Ltda.; 1969. 6. Taddei R. Of clouds and streams, prophets and profits: the political semiotics of climate and water in the Brazilian Northeast [tese]. Nova York: Graduate School of Arts and Sciences, Columbia University; 2005. 7. Martins KPH, organizadora. Profetas da chuva. Fortaleza: Tempo D´Imagem; 2006. 8. Ingold T. Humanidade e animalidade. Rev Bras Cienc Soc. 1995; 10(28):39-53. 9. Pennesi K. Improving forecast communication: linguistic and cultural considerations. Bull Am Met Soc. 2007; 88(7):1033-44. 10. Taddei R. Anthropologies of the future: on the social performativity of (climate) forecasts. In: Kopnina H, Shoreman-Ouimet E, organizadoras. Environmental Anthropology: future directions. London: Routledge; 2013. p. 244-63. 11. Villa MA. Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática; 2000. 12. Taddei R. Social participation and the politics of climate in Northeast Brazil. In: Latta A, Wittman H, organizadores. Environment and citizenship in Latin America: natures, subjects and struggles. New York: Berghahn Books; 2012. p. 77-93. 13. Taddei R. Oráculos da chuva em tempos modernos: mídia, desenvolvimento econômico e as transformações na identidade social dos profetas do sertão. In: Martins KPH, organizadora. Os profetas da chuva. Fortaleza: Tempo D’Imagem; 2006. p. 16170. 14. Ingold T. Lines: a brief history. Londres: Routledge; 2007. 15. Taussig M. Viscerality, faith and scepticism: another theory of magic. In: Dirks N, organizador. In near ruins: cultural theory at the end of the century. Minneapolis: University of Minnesota Press; 1998. p. 221-56. 16. Nietzsche F. Ecce homo: how to become what you are. Londres: OUP Oxford; 1888-2007.

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17. Carroll L. Alice no país das maravilhas. Itaipava: Editorial Arara Azul; 1865-2002. 18. Deleuze G. The logic of sense. Londres: Athlone Press; 1990. 19. Gershon MD. O segundo cérebro. Rio de Janeiro: Campus, Elsevier; 2000. 20. Deleuze G, Guattari F. A thousand plateaus: capitalism and schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press; 1987. 21. Furness JB. The enteric nervous system and neurogastroenterology. Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2012; 9(5):286-94. doi:10.1038/nrgastro.2012.32. 22. Viveiros de Castro E. Metafísicas caníbales: líneas de antropologia postestructural. Madri: Katz Editores; 2010. 23. Viveiros de Castro E. O medo dos outros. Rev Antrop. 2011; 54(2):885-917. 24. Latour B. An inquiry into modes of existence. Cambridge: Harvard University Press; 2013. 25. Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1994. 26. Habermas J. Theory of communicative action volume one: reason and the rationalization of society. Boston: Beacon Press; 1984 [1981]. 27. Taddei R. Devir torcedor. In: Ferreira AAL, Martins A, Segal R, organizadores. Uma bola no pé e uma ideia na cabeça: o que o futebol nos faz pensar. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; 2014. p. 27-52. 28. DaMatta R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e a morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco; 1997.

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Uma pesquisa etnográfica no sertão cearense, o conceito de mimese corpórea em produção teatral e um filme documentário sobre rastejadores de cangaceiros na caatinga são pontos de partida, neste texto, para uma discussão sobre a natureza do processo de “leitura de sinais” no mundo. As reflexões nele apresentadas sugerem que tais processos sejam entendidos menos como interpretação ou decodificação, e mais como um saber mover-se, no qual o compartilhamento existencial – e, em especial, a ingestão de substâncias – é elemento fundamental. Os materiais etnográfico e artístico analisados apontam, ainda, para o fato de que a direcionalidade implicada em tal saber mover-se é recorrentemente entendida como dimensão visceral. As vísceras, desse modo, transformam-se em locus privilegiado da experiência e ação no mundo, sendo superfície de contato e equipamento transformador ao mesmo tempo. Tal perspectiva traz novas e instigantes oportunidades à teoria social.

Palavras-chave: Vísceras. Profetas da chuva. Semiótica. Sertão. Ecologia.

Existing in the sertão: chapters of life as visceral philosophy An ethnographic study conducted in the sertão of Ceará, the concept of bodily mimesis in theater production and a documentary film on bandit hunters in the caatinga were the starting points in this text, for a discussion about the nature of the process of “reading signs” in the world. The reflections presented here suggest that such processes should be understood less as interpretation or decoding and more as knowledge on how to move, in which existential coexistence, and particularly ingestion of substances, is a fundamental element. The ethnographic and artistic materials analyzed additionally point to the fact that the directionality implicated in such knowledge is recurrently understood as a visceral dimension. The viscera thus become a privileged locus of experience and action in the world, such that they are a contact surface and equipment for transformation at the same time. This perspective brings new and enticing opportunities for social theory.

Keywords: Viscera. Rain prophets. Semiotics. Sertão. Ecology.

Ser-estar en el sertão: capítulos de la vida como filosofía visceral Una investigación etnográfica en el sertão (semiárido) del Estado de Ceará, el concepto de mimesis corpórea en producción teatral y un documental sobre rastreadores de cangaceiro sen la caatinga, son puntos de partida, en este texto para una discusión sobre la naturaleza del proceso de “lectura de señales” en el mundo. Las reflexiones que en él se presentan sugieren que tales procesos se entiendan menos como interpretación o decodificación y más como un saber moverse, en el cual la compartición existencial – y, en especial, la ingestión de sustancias – es un elemento fundamental. Los materiales etnográfico y artístico analizados apuntan también el hecho de que la direccionalidad implicada en el referido saber moverse se entiende recurrentemente como dimensión visceral. Las vísceras, de ese modo, se transforman en locus privilegiado de la experiencia y acción en el mundo, siendo superficie de contacto y equipo transformador al mismo tiempo. Tal perspectiva brinda nuevas e instigadoras oportunidades a la teoría social.

Palabras clave: Vísceras. Profetas de la lluvia. Semiótica. Sertão. Ecología.

Recebido em 11/09/13. Aprovado em 08/04/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0066

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Relación médico-paciente y mercado de la salud en Colombia Jorge Márquez V(a)

Medicina occidental, medicalización y biopolítica Con ayuda de la narrativa histórica, hay que delimitar primero varios conceptos y campos. Ante todo el campo de conocimiento llamado “medicina occidental”, no comprendido desde sus orígenes en el mundo griego, sino solamente desde su expresión universitaria en la modernidad. La medicina certificada por cursos, exámenes y diplomas, basada en una gestión regulada e institucional de la enseñanza médica y de la validación de títulos. La misma que se convirtió en Occidente en monopolio de instituciones refrendadas por los Estados y legitimadas internacionalmente a través de la producción colectiva y de la sanción social de conocimientos científicos y técnicos y sus aplicaciones. La misma que ha llegado a ser, políticamente, una herramienta hegemónica y que, al menos desde el siglo xviii, ha ampliado su poder hacia ámbitos externos, diferentes del cuerpo y la enfermedad, como la muerte, el nacimiento, la vejez, la infancia, la ciudad, la población. Esta extensión de dominios es lo que el historiador Michel Foucault llamó el “proceso de medicalización indefinida”1. Indefinida, por la forma en que se convierte en herramienta de una nueva tecnología de poder, sin prever de antemano sus límites ni a qué dominios de la sociedad y de la vida se podría extender. Lo que sí sabemos es que hemos llegado a un punto de una especie de “naturalización”, es decir, cada vez nos queda más difícil concebir la sociedad sin medicalización y sin gobierno biopolítico.

Mercado terapéutico y mercado global de la salud Otra manifestación de la modernidad es el fortalecimiento y la extensión del “mercado terapéutico” (“medical marketplace”). Este concepto, ampliamente utilizado y criticado por los historiadores, propuesto en 1986 por Harold Cook2, permite definir los diferentes oferentes de cuidados y sus consumidores, en un momento de la modernidad en que las instituciones oficiales controlaban muy poco el ejercicio de la medicina, de ahí que los investigadores lo hayan utilizado sobre todo para el estudio de momentos en que el mercantilismo, aunado a la incapacidad de las instituciones para controlar los diversos oficios médicos, deja ver más un mercado de cuidados abierto hacia los posibles compradores que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Depto. Estudios Filosóficos y Culturales, Facultad de Ciencias Humanas y Económicas (FCHE), Universidad Nacional de Colombia. Calle 59ª, nº 63-20, oficina 43-404. Medellín, Colombia. jmarquezvalderrama@ gmail.com

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una economía de la salud. En ese contexto, los médicos constituyen uno de los sectores económicos insertos en un mercado que se puede comprender como el conjunto de prestaciones de cuidados disponibles en un espacio determinado. Este concepto también ha sido determinante en la distinción de Brockliss y Jones3 entre “medical community”, para referirse a la medicina oficial, y “medical penumbra”, en la cual agrupan las artes de curar poco o nada reconocidas. Lo que se ha querido mostrar con los usos de este concepto, es la gran oferta de cuidados terapéuticos en el momento anterior a la formación de un monopolio de cuidados dominado por la medicina universitaria de pretensión científica. Según el historiador William Bynum4, en la transición del siglo xviii al siglo xix, en Norteamérica y en Europa (excepto Francia), se planteó la pregunta sobre si el diploma de médico era o no necesario para ejercer la medicina. La respuesta casi siempre fue negativa, pues el liberalismo triunfó en casi todas partes. Si hubo algunas formas de regulación del ejercicio de la medicina fue por iniciativas de autoridades locales que se limitaban a ciertas jurisdicciones, y no propiamente por leyes nacionales. Además, las pocas reglamentaciones fueron puestas en práctica solamente en las ciudades, y perdieron toda vigencia por fuera del recinto urbano. La organización gremial y la fundación de universidades no hicieron desaparecer ese liberalismo de las prácticas médicas. Incluso si los médicos universitarios del siglo xix conquistaron responsabilidades destacadas en situaciones sanitarias de peligro y en la organización de la salud pública, no contaban con los instrumentos ni con el apoyo políticos para lograr un monopolio de la oferta terapéutica4. Ese monopolio llegó de manera desigual a muchos países, pero se volvió internacional con las convenciones sanitarias internacionales de la segunda mitad del siglo xix y otros acuerdos de comienzos del siglo xx. Más tarde, en plena Segunda Guerra mundial, llegó a ser global, apoyado en los triunfos de la medicina científica. Difícil enumerarlos todos rápidamente: progresos en cirugía y en la lucha contra el dolor, mejoramiento de los medios diagnósticos (imagenología médica), inmunología y vacunas, terapéutica antibiótica, farmacología psiquiátrica, avances en genética, ensayos clínicos e industria farmacéutica, generalización y estandarización de las terapéuticas en la población mundial. Pero, sobre todo, quizás el logro más importante fue la consolidación de la prevención, basada en un conocimiento cada vez más exacto de las interacciones entre enfermedades evitables y medios de vida, en la observación cuantitativa de los fenómenos vitales y en la epidemiología. Todo esto ha hecho que la medicina occidental gane en confianza pública y en poder, y ha promovido un movimiento sanitarista desde el cual médicos y pacientes han luchado porque el estamento político reconozca la salud como un derecho fundamental. Por otra parte, desde el periodo de posguerra, la extensión de los sistemas de seguridad social a muchos países nos situó en otro punto. Hoy habría que referirse, no al “mercado terapéutico”, sino más bien al mercado global de la salud. Debemos reconocer esta actual doble cara del acceso a la salud: contractual-rentable y contractual-ciudadana. Ello es visible en varios aspectos: 1 La garantía de la salud depende de actores sociales privados y estatales. 2 En el mundo globalizado, la salud se concibe a la vez como una mercancía, un servicio y un derecho. 3 La salud sigue siendo un concepto individual5, pero solo puede ser garantizada a cada sujeto por vías institucionales, es decir, colectivas.

Médico general y profesión médica Volviendo a la narrativa histórica, mientras la medicina ganaba poder y confianza, se fue afianzando la relación médico-paciente y con ella la profesión, mediante una institución que, quizás por íntima, se ha caracterizado por su bajo perfil público y su gran penetración social: la medicina general, que ha sido a la vez una práctica, una institución y un modo de acceso de la gente común a los avances de la ciencia y la técnica. En ciertos lugares, se trata de una institución en declive, o ya desaparecida, tanto que por todas partes se habla hoy de recuperarla. Los más inescrupulosos mercaderes de la salud, al menos en Colombia, nos quieren hacer creer que todavía existe, pero lo cierto es que, con la privatización del sistema de salud, las funciones del médico general y de la medicina familiar se han desvirtuado y muy pocas personas pueden gozar de un seguimiento personalizado.

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La relación médico-paciente en las nuevas lógicas de mercado No voy a contar la historia que, en momentos diversos y por diferentes vías y modos, ha sucedido más o menos por todas partes: la del devenir hegemónico de la medina occidental, a la vez como oferta terapéutica, instrumento biopolítico y vía de distintas liberaciones y sujeciones del cuerpo. Evoqué el momento de la modernidad, cuando la medicina occidental, además de profesión liberal, se convirtió en herramienta política y cuando emergió la salud pública, porque estamos viviendo hoy una nueva mutación importante de nuestra historia que involucra de lleno a la medicina. Además, porque quiero denunciar la distorsión de la relación médico-paciente mediante la exposición de algunos acontecimientos recientes del caso colombiano, pero que no son exclusivos de él. Sin embargo, antes debo aclarar de qué manera comprendo la relación médico-paciente. Esta relación social y antropológica, llamada “coloquio singular” por algunos filósofos, tiene hoy gran vigencia, aunque la medicina basada en la evidencia pretenda que no trata con pacientes (realidades subjetivas), sino con fenómenos patológicos (realidades objetivas). El debate entre instrumentalismo y humanismo en medicina está vivo, y los médicos, los pacientes y todo el personal auxiliar de la medicina lo vive cotidianamente. Nunca la medicina había sido tan poderosa, nunca había tenido tan finas herramientas para abordar nuestra realidad vital, nunca se había enfrentado tan bien armada a la enfermedad y a la muerte, y al mismo tiempo nunca había sido tan cuestionada, precisamente, en su poder y en los límites de ese poder. Nunca antes, como en nuestros días, se le había usurpado tanto su poder. Para entender esta paradoja del poder médico del siglo xxi, hay que distinguir los poderes de la medicina y los que la rondan para apoderarse de ella. Ante todo, hay que distinguir el poder médico expresado en la medicalización creciente de la vida y el poder inherente a la relación médico-paciente. El filósofo François Dagognet ha descrito este último6. Argumenta que la relación terapéutica pierde sentido cuando el médico cede el poder inmanente de su oficio, cuando no puede decidir sobre la vida, la enfermedad y la salud, a partir de su función especial en la relación clínica. Y continúa Dagognet: […] hay que evitar, en toda circunstancia, que el médico y el paciente pierdan su campo de libre entendimiento, el que además garantiza la eficacia del tratamiento. Impidamos la confiscación de lo médico por un poder cuyo ejercicio debemos favorecer, pero cuyo dominio debemos reducir. No es que queramos, a cualquier precio, “una especie de extraterritorialidad” a favor de la terapéutica, lo que queremos es limitar la entrada de un tercero en el acto médico, un tercero que confiscaría para su propia ventaja ese momento o esa relación sin igual, fundada sobre la humanidad y el puro auxilio, fuera de todo imperativo económico o de seguridad6. (p. 256)

La salud como derecho fundamental Hecha esta aclaración, debo anotar que en Colombia, como en otros países del mundo, en la década de 1940 se estableció el derecho a enfermarse por la vía de la medicina del trabajo (Ley 90 de 1946). Este acontecimiento se inscribe en el proceso de instauración del Estado keynesiano, que impulsó la creación de instituciones para la atención de los servicios sociales7. Aunque no se trate todavía de una declaración constitucional del derecho a la salud, que solo llegará después de la Asamblea Nacional Constituyente y la nueva Constitución de 1991, y aunque haya funcionado de manera limitada, en la década de 1940 comenzó a operar un sistema de responsabilidad triple en el aseguramiento de la enfermedad y discapacidad de trabajadores y trabajadoras. Un tipo de seguro social en el cual el Estado, el empleador y el trabajador, cada uno en proporciones diferentes, financiaban con antelación la posible enfermedad o discapacidad del trabajador; es el comienzo del seguro social de enfermedad. Sin embargo, más que sus alcances, lo importante de este acontecimiento es haber generado el debate que dio nacimiento, en 1946, al Instituto Colombiano de los Seguros Sociales (ICSS)7. El seguro de enfermedad permitió hacer respetar el derecho a enfermarse, es decir que los trabajadores cesantes por causa de enfermedad o discapacidad pudieran seguir recibiendo su salario COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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o fueran recompensados en caso de enfermedad profesional o de accidente de trabajo. Este es el tránsito de un sistema asistencialista, en el cual los cuidados en salud son concebidos como una prebenda de los poderosos para con los débiles, hacia una política y una economía de la salud en cuyo marco comienza a debatirse la recuperación y la conservación de la salud como una reivindicación, primero, de los trabajadores y, más tarde, de la población en general. En la década de 1960 aparecerán la epidemiología social y la salud pública, desde las cuales se considerará la salud como un derecho de los ciudadanos en general. Al comenzar la década de 1990, cuando el sistema de seguridad social colombiano llevaba cuatro décadas en funcionamiento, es decir, cuando apenas dos generaciones de colombianos habían disfrutado de él, se inició su desmonte gradual por parte de gobiernos que obedecían las políticas de privatización del Banco Mundial y los intereses de multinacionales y de empresas locales del mercado de los seguros. El propósito gubernamental al finalizar el siglo pasado era aumentar la cobertura en salud en el país y convertir la salud en un servicio financiado por los propios usuarios. Lo que lograron fue convertir rápidamente la salud en una mercancía, mediante la construcción paulatina de lo que hoy en Colombia se llama el “cartel de la salud”(b). Con la Ley 100 de 1993, aprobada bajo el gobierno de César Gaviria Trujillo, presidente promotor de la apertura económica, el neoliberalismo y la privatización de las empresas estatales, se instauró el sistema de salud privatizada de gran cobertura, mediante la obligación para cada colombiano y colombiana de afiliarse a una aseguradora de salud o EPS (Entidad Promotora de Salud) y cotizar en ella mensualmente. Con este sistema, las contribuciones ciudadanas al sistema de salud, las llamadas “cotizaciones”, pasaron a ser administradas por empresas privadas o EPS, las cuales debían reinvertir los millonarios recursos en el mejoramiento del sistema de atención. Sin embargo, las más poderosas, sin ningún escrúpulo, robaron millonarias sumas para invertirlas en la construcción de canchas de golf, hoteles, resorts, clubes y condominios de lujo y en cuentas secretas en paraísos fiscales del mundo. Esto es lo que se conoce como “el escándalo de la salud”, de 20118. El proceso de privatización de la salud fue acelerado y fortalecido durante los dos gobiernos de Álvaro Uribe Vélez, entre 2002 y 2010. Como un ejemplo entre otros, en menos de 15 años, Carlos Palacino, presidente y uno de los principales dueños de una gran empresa, Saludcoop, creó un emporio de traficantes de la salud que llegó a mover 1.300.000 dólares al año, con 4 millones de usuarios cotizantes. A pesar de las denuncias del robo al Estado perpetrado por su compañía durante años, pero solamente denunciado penalmente en 2011 (denuncias confirmadas incluso por el actual presidente Juan Manuel Santos), hasta ahora la justicia no ha fallado en contra de los acusados, todos identificados(c). Este sistema de salud resultó ser muy rentable para empresarios privados (renta bruta de más 30 millones de dólares al año), pero totalmente contrario a la conservación de la salud y de la vida(d), al fomento de la vida digna. Al limitar el acceso a la salud, el sistema de salud colombiano ha contribuido a agudizar la desigualdad social. Las cifras recientes son desoladoras: la concentración del ingreso en el país creció en un 8% en 2012, y continúa en el mismo nivel y en la misma tendencia hacia la desigualdad registrada en 2003. Colombia es el segundo país más desigual de Latinoamérica, después de Haití10.

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Comúnmente, en nuestras sociedades, el funcionamiento asociativo en forma de cartel con fines de lucro es atribuido a organizaciones ilegales y mafiosas, pero cada vez más en las economías legales se utiliza este mecanismo por el cual se forman subrepticiamente monopolios para impedir la libre competencia en algún sector económico. Colombia es buen ejemplo de un país donde las aseguradoras y otras empresas del sector financiero han encontrado en el mercado de la salud un terreno fértil para adoptar el mecanismo del cartel, que les permite aplastar a los pequeños competidores y multiplicar los beneficios.

(b)

(c) Aunque no ha habido proceso penal, solo investigación, ya hubo un fallo de responsabilidad fiscal de primera instancia, emitido por la Contraloría General de la República, en el cual se condenó a Carlos Palacino, exdirector de la EPS SaludCoop, a pagar $1,4 billones de pesos, y se sancionó a 15 funcionarios de la EPS y empresas afiliadas9.

Véase al respecto: Foro “Análisis y alternativas de la reforma de la salud”, organizado por la Facultad de Medicina de la Universidad Nacional de Colombia el 21 de mayo de 2013. Los panelistas coincidieron en que la reforma a la salud es urgente y necesaria para el bienestar de los colombianos y para acabar con el negocio de las EPS11.

(d)


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(e) Algunos estudios recientes sobre este problema son los de Alzate et al.12 y Mario Hernández13.

(f) En Colombia, la mayor parte de los medicamentos esenciales cuestan dos veces más que en Europa o en Estados Unidos9.

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¿Cuáles son las razones del fracaso del sistema de salud colombiano? Un ejemplo: el “paseo de la muerte” La desigualdad aumenta la vulnerabilidad social, y el modelo neoliberal de administración empresarial de la salud, al menos en Colombia, fue un completo fracaso(e). Las razones de esto son múltiples, pero la principal ha sido la deficiente atención de los usuarios. El ejemplo más patético lo constituye la atención de urgencia en Colombia que, en los últimos años, ha sido frecuentemente negada. Se considera atención de urgencia la necesaria para evitar el peligro de muerte del paciente. Muchos pacientes se ven obligados a recorrer diversos centros de urgencias y hospitales de una o de varias ciudades, antes de morir por falta de atención. A esta situación los periodistas la han llamado “el paseo de la muerte”. Los centros hospitalarios que niegan la atención aducen razones como la falta de afiliación o la falta de identificación de los pacientes, quienes deben portar algún comprobante de afiliación u otras excusas semejantes, a pesar de que las leyes colombianas protegen la vida de las personas en peligro de muerte y prohíben la exigencia de requisitos en semejante situación14. Cito el ejemplo del “paseo de la muerte” por ser extremo y patético, pero habría que sumarle las trabas innumerables para la negación de servicios pre-pagados, las inmensas filas para cualquier trámite, los precarios servicios de urgencias que parecen enfermerías de guerra, las dificultades para acceder a los medicamentos(f), la disuasión a los médicos para que solo empleen 15 minutos con cada paciente y para que no prescriban ciertas pruebas diagnósticas y determinados tratamientos no incluidos en el Plan Obligatorio de Salud (POS). En fin, se trata de un sistema en el cual muchos pacientes mueren de enfermedades comunes y tratables, casos que, en su mayoría, no se reportan a los observatorios epidemiológicos, a causa del mismo déficit en la atención.

La urgente reforma del sistema de salud colombiano ¿En qué consiste la coyuntura actual de urgente reforma del sistema de salud colombiano?

(g) Se han cerrado muchos hospitales; han desaparecido varios hospitales universitarios y hay 14 hospitales públicos de distinto nivel que tendrán que cerrar por falta de fondos.

Del millonario desfalco, revelado en 2011, se beneficiaron de manera fraudulenta los grandes operadores privados o EPS. Estos, a su vez, llevaron a la quiebra a muchos de los pequeños operadores privados y a una parte de los centros de atención de la red hospitalaria pública(g). Hay que aclarar que los pequeños operadores privados (Instituciones Proveedoras de Servicios de Salud, IPS) y los hospitales públicos han trabajado de manera ardua durante años para las grandes EPS. Estas últimas, sea por la intervención estatal de que son objeto, sea porque se declaran ilíquidas o porque se niegan a hacerlo, no pagan sus enormes deudas a IPS y hospitales, y esa es la principal razón de que estos caigan en la bancarrota.

Los jueces deciden en lugar de los médicos A partir del gran desfalco revelado en 2011 se habla en Colombia de la “crisis de la salud”. Pero hacía tiempo que la salud colectiva ya estaba en crisis, pues, desde la adopción de la Ley 100 de 1993 la atención médica ya era muy precaria, debido a las intermediaciones burocráticas y a los múltiples obstáculos ya descritos arriba. Hace varios años que habíamos llegado a la situación en que estamos hoy, en la cual la justicia se convirtió en la vía más frecuente para garantizar la COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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prestación de servicios en salud y la salud como derecho fundamental, mediante los mecanismos jurídicos del “derecho de petición” y la “acción de tutela”. Esto ha provocado que en Colombia, en cientos de miles de casos (por ejemplo, las llamadas “enfermedades catastróficas”(h), sean los jueces quienes decidan qué procedimientos se deben hacer a los pacientes. A raíz de esta gravísima crisis y de los innumerables escándalos de corrupción en el sistema de salud colombiano, se han establecido foros ciudadanos permanentes de discusión de la reforma necesaria para mejorar el sistema. De ahí han salido varias propuestas y proyectos de ley(i). En los últimos dos años, entre otros, se han presentado ante las autoridades competentes un proyecto de Ley de reforma a la salud redactado por el senador Luis Carlos Avellaneda, y otro elaborado por la Alianza Nacional por un Nuevo modelo de Salud (ANSA, compuesta por 69 organizaciones de todo el país). Pero en las últimas semanas el Gobierno nacional y la Cámara de Representantes, mediante diversas artimañas, lograron que solamente se discutiera el proyecto de ley del gobierno (Proyecto de Ley Ordinaria número 210)(j) y la Ley estatutaria número 209, aprobada en junio pasado17, que limita el derecho a la salud mediante lo que llaman “plan de beneficios con exclusiones explícitas”, lo que quiere decir que el Gobierno puede eliminar del plan de salud de los colombianos, por decreto, cualquier servicio de salud que considere no viable, no pertinente o no financiable. Esta ley estatutaria, que reglamenta el derecho a la salud consagrado como derecho fundamental por la sentencia T-760 de 2008 de la Corte Constitucional de Colombia, limita este derecho y altera su naturaleza. A partir de esta ley este derecho se entiende únicamente como el servicio público de la atención en salud, o mejor, de la enfermedad. Por lo tanto, restringe este derecho a un plan de beneficios con inclusiones y exclusiones explícitas, de manera que los jueces de tutela no puedan aceptar como derecho sino lo que esté incluido por el Gobierno, que actúa en alianza con los intermediarios privados que estafaron recientemente a millones de usuarios y a pequeños operadores del sistema. El sistema de salud actual de Colombia está diseñado para favorecer a los grandes intermediarios financieros que son, al final, los únicos que ganan con el esquema. Esta situación y la del colapso actual del sistema han vuelto urgente y necesaria su reforma. Sin embargo, el proyecto de ley 210, que el Gobierno impulsa actualmente en el Congreso, no soluciona el problema de la intermediación –verdadero parásito del sistema– sino que le cambia de nombre. En lugar de llamarse EPS, ahora los intermediarios se llamarán GSS (Gestores de Servicios de Salud). Por otro lado, el Consejo Nacional Electoral certificó que varios partidos políticos recibieron financiación por parte de EPS en la pasada campaña electoral por las elecciones legislativas. De los 102 senadores actuales, 42 tienen intereses económicos en las EPS, sea porque les financiaron campañas o porque ellos mismos o sus familias se han beneficiado, y se benefician todavía hoy, directamente del negocio de la salud. El propio ministro de Salud y de la Protección Social, Alejandro Gaviria, impulsador del proyecto reforma del Gobierno, fue hasta hace poco miembro de la junta directiva de Bancolombia, empresa con intereses en el Grupo Asegurador Sura, uno de los grandes actores en el aseguramiento privado de la salud. La esposa del ministro, Carolina Soto, era hasta hace pocos meses la vicepresidenta ejecutiva de la Federación de Aseguradores Colombianos, Fasecolda, el gremio que agrupa a las compañías de seguros, de reaseguros y a las sociedades de capitalización en el país, dueñas del gran negocio de la salud.

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Enfermedades catastróficas: aquellas cuyo tratamiento involucra un costo directo igual o superior al 40% del ingreso del hogar donde hay un paciente afectado. Esta es la definición de KeXu adoptada por la OMS15.

(h)

Es difícil hacer aquí una descripción completa del debate sobre reforma a la salud y de la diversidad de proyectos y propuestas ya presentados, por eso remito al artículo de Vega16.

(i)

(j) El proyecto 210 se puede leer en la página web de la Presidencia de la República de Colombia. Disponible en: http://www. urnadecristal.gov.co/ gestion-gobierno/estees-proyecto-de-ley-dereforma-a-salud. Acceso el: 7 dic 2013.


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Por otra parte, o quizás como consecuencia lógica, los pacientes y los médicos han sido completamente ignorados por el Gobierno en el trámite de la actual reforma. Nadie del gobierno se pronuncia sobre la crisis de los hospitales públicos. Mientras tanto, poderosos intermediarios mantienen sus socios y lobistas como legisladores de la salud de los colombianos.

A manera de cierre Las siguientes líneas sirven de cierre, porque por ahora no puede haber conclusión, dado que estamos en un momento agudo de la crisis del sistema de salud colombiano. La situación del sistema de salud en Colombia se puede resumir así: mientras los hospitales se declaran en quiebra, los profesionales de la salud se empobrecen y su profesión es precarizada y los pacientes reciben atención deficiente, ciertos intermediarios de la salud y multinacionales financieras y farmacéuticas se enriquecen gracias a la privatización de hecho. Los juristas toman diariamente decisiones que deberían ser de la competencia de la relación entre el médico y el paciente. Gran parte de las decisiones médicas son resultado de fallos en procesos jurídicos (“acciones de tutela”); los economistas y los auditores deciden el gasto en salud, como si el médico, que es quien conoce la historia del paciente y lo ve en persona durante el “coloquio singular”, no supiera o no debiera estar capacitado por las facultades de medicina para tomar decisiones. Las compañías farmacéuticas se entrometen en la relación médico/enfermo, y la corrompen con su clientelismo y su tráfico de favores. Aquí también le corresponde a la sabiduría del arte médico oponerse al ensañamiento terapéutico. La relación médico-paciente debería respetarse en su ámbito propio de poder, es decir, no pervertirla con la intromisión de poderes ajenos a ella y a su objetivo. Esto vale también para el sistema de salud, en el cual los médicos deberían fortalecer su lucha actual por mantener su criterio profesional y humano en la defensa práctica del derecho a la salud y a la seguridad sanitaria. De la misma manera, en una escala mundial, le corresponde a la medicina evitar que los intereses comerciales se inmiscuyan en las decisiones sobre la seguridad sanitaria y sobre la salud de los pueblos. Es decir, evitar que la OMC piense por la OMS.

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7. Gómez J. La protección familiar en Colombia, 1946-1977 [tesis]. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Colombia; 2011. 8. Guía básica para entender el escándalo en el sector de la salud. El Tiempo. 2011 Mayo 7; Sección Justicia [citado el 2013 Dic 7]. Disponible en: http://www.eltiempo.com/ justicia/ARTICULO-WEB-NEW_NOTA_INTERIOR-9304308.html 9. Colombia, un país enfermo por el alto costo de los medicamentos. El País. 2013 Jun 2; Sección Economía [citado el 2013 Dic 9]. Disponible en: http://www.elpais.com.co/elpais/ cali/noticias/colombia-pais-enfermo-por-alto-costo-medicamentos 10. Molina N. Colombia, segundo país con mayor desigualdad en Latinoamérica. En: Foro Pobreza en Colombia 2012; 2012; Colombia [citado el 2013 Nov 11]. Disponible en: http://www.colombialider.org/colombia-lider/colombia-segundo-pais-con-mayordesigualdad-en-latinoamerica 11. Universidad Nacional de Colombia, Facultad de Medicina, organizador. Foro Análisis y alternativas de la reforma de la salud; 2013; Colombia [citado el 2013 Dic 7]. Disponible en: http://www.agenciadenoticias.unal.edu.co/ndetalle/article/la-salud-ganancia-paralas-eps.html 12. Alzate D, Oviedo DG, Velosa L. Derecho lucro-destructivo: vivencias de la ideología posneoliberal en salud. En: Abadía C, Góngora A, Melo M, Platarrueda C, organizadores. Salud, normalización y capitalismo en Colombia. Universidad Nacional de Colombia, Universidad del Rosario: Ediciones desde abajo; 2013. p. 233-66. 13. Hernández M. Reforma a la salud: el proyecto del Gobierno legitima el negocio. Razón pública [Internet]. 2013 abril 1 [citado el 2013 Nov 11]. Disponible en: http://www. razonpublica.com/index.php/politica-y-gobierno-temas-27/3646-reforma-a-la-salud-elproyecto-del-gobierno-legitima-el-negocio.html 14. Colombia. Congreso de la República. Proyecto de ley 050 de 2012, por medio del cual se hace una adición al código penal, se crea el tipo penal de omisión u denegación de urgencias en salud. 2012 [citado el 2013 Nov 9]. Disponible en: http://www.senado.gov. co/sala-de-prensa/noticias/item/14655-un-alto-al-mal-llamado-paseo-de-la-muerte. 15. Lifstchitz E. ¿Qué son las enfermedades catastróficas? Observatorio de Salud. 2011. Ago.; 1(2): [4 p.] [citado el 2013 Nov 11]. Disponible en: http://www.consultordesalud. com.ar/admin/ediciones/pdfs/PDF_201188135248602.pdf 16. Vega M, Eslava J-C Arrubla D, Hernández M, organizadores. La reforma sanitaria en la Colombia de finales del siglo xx: aproximación histórica desde el análisis sociopolítico. Gerenc Polít Salud. 2012; 11(23):58-84. 17. Colombia. Congreso de la República. Texto conciliado al proyecto de ley estatutaria número 209 de 2013 Senado - 267 de 2013 Cámara, por medio de la cual se regula el Derecho Fundamental a la Salud y se dictan otras disposiciones. 2013 [citado el 2013 Nov 11]. Disponible en: http://www.consultorsalud.com/docs/Ley_Estatutaria_de_Salud_ junio2013.pdf

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Este artículo versa sobre el deterioro de la relación médico-paciente por el sistema de salud colombiano basado en principios neoliberales del mercado de la salud. Son tan numerosos los datos y las evidencias del deterioro de la atención en salud en Colombia durante las dos últimas décadas, que se hace innecesario emplear una metodología cuantitativa de administración de pruebas para denunciarlo. Aquí se muestra la precarización de la relación médico-paciente en Colombia, mediante testimonios de expertos y observación propia como usuario del sistema.

Palabras clave: Relaciones médico-paciente. Historia de la salud. Biopolítica. Reforma de la atención de salud. Salud Colectiva. The doctor-patient relationship and the healthcare market in Colombia This paper addresses the deterioration of the doctor-patient relationship within the Colombian healthcare system based on neoliberal principles of the healthcare market. The data on and evidence of the deterioration of healthcare services in Colombia over the past two decades are so numerous that it is unnecessary to use quantitative test management methodology to denounce this. Here, the way in which the doctor-patient relationship in Colombia has become precarious is shown through expert testimony and personal observation as a system user.

Keywords: Physician-patient relationship. Healthcare history. Biopolitics. Healthcare reform. Collective health. A relação médico-paciente e o mercado da saúde na Colômbia Este artigo trata da deterioração da relação médico-paciente pelo sistema de saúde colombiano, baseado nos princípios neoliberais do mercado da saúde. São tão numerosos os dados e as evidências da deterioração dos serviços de saúde na Colômbia durante as últimas duas décadas, que não é necessário utilizar uma metodologia quantitativa de gerenciamento de teste para denunciá-lo. Aqui se mostra a precarização da relação médico-paciente na Colômbia mediante testemunhas de especialistas e observações próprias como usuário do sistema.

Palavras-chave: Relação médico-paciente. História da saúde. Biopolítica. Reforma dos serviços de saúde. Saúde Coletiva. Recebido em 22/02/14. Aprovado em 30/04/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0069

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Barros NF, organizador. Cuidados da doença crônica na atenção primária de saúde. São Paulo: Hucitec, Sobravime; 2012.

Marcela Jussara Miwa(a)

O livro Cuidados da doença crônica na atenção primária de saúde é resultado da linha de investigação “processo Saúde-Doença-Cuidado” do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (FCM/Unicamp), que envolveu docentes, alunos de graduação em medicina, enfermagem e fonoaudiologia e profissionais em saúde da atenção primária. O foco principal da obra recai sobre as percepções dos doentes crônicos em relação à própria doença, aos tipos de cuidados e tratamentos que utilizam, e seus itinerários terapêuticos. Para tanto, foi realizada uma pesquisa qualitativa, entre 2010 e 2012, junto a portadores de hipertensão arterial sistêmica (HAS) ou portadores de diabetes mellitus (DM), ou portadores de ambas as doenças, usuários de três centros de saúde na cidade de Campinas, SP. Os resultados das entrevistas semiestruturadas foram submetidos à análise temática e identificação dos núcleos de sentido dos discursos. Na introdução intitulada “Os autores”, apresentam-se as principais categorias que permearão as discussões dos capítulos subsequentes, como a distinção entre cuidado informal, popular e profissional, o conceito de integralidade em saúde, ressaltando sua

característica dialógica, e apontando para a complexidade de se efetivar o cuidado íntegro nos serviços públicos em saúde. O que chama mais a atenção na introdução é a descrição minuciosa do desenrolar da pesquisa: sobre a escolha dos locais de investigação, o “geoprocessamento”, como os autores denominaram; a identificação e seleção dos sujeitos estudados e o trabalho com o material coletado; aproximando esse relato a uma etnografia, não do campo de pesquisa como estamos acostumados a ver, mas uma etnografia da própria execução do projeto. São pormenores que os autores poderiam ter ocultado, no entanto, ao compartilharem esse conhecimento, contribuem para que jovens pesquisadores aprendam sobre métodos de pesquisa. No capítulo 1, “O programa de educação pelo trabalho em saúde como indicador da política de integração ensino-serviço (PETSaúde)”, poderíamos dizer que o “relato etnográfico” prossegue, agora enfatizando a organização e a dinâmica do grupo pesquisador. As dificuldades na comunicação entre os membros foram a principal característica desse relato: Pode-se afirmar que durante os 24 meses de desenvolvimento do

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(a) Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Av. Padre Nelson Antônio Romão, 1245, Nova Matão. Matão, SP, Brasil. 15990-590. marcelajmiwa@ yahoo.com.br

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Projeto houve problemas de comunicação. Ora a informação não chegava a todos, ora a comunicação não era clara, ou, ainda, conceitos eram veiculados para estabelecer posições diferentes. (p. 55)

Tais problemas foram superados, contudo, a própria execução do projeto foi um desafio dialógico entre as partes envolvidas, o que demonstra, aos estudantes, professores, aos profissionais da saúde e a nós, as dificuldades para a implantação e sucesso da integralidade em saúde no SUS, cujo um dos princípios é o dialogismo. Não se trata de sermos pessimistas, mas atentarmos para a complexidade comunicacional quando se refere a um sistema de saúde federal, considerando ainda suas especificidades regionais e microrregionais. Além disso, esse capítulo aponta para outra questão: como articular ensino e assistência em saúde? Suscitando outro questionamento: como pensar um serviço em saúde pautado pela integralidade, pela humanização, baseado em relações horizontalizadas, e dialógico, se ainda muitas instituições de assistência em saúde, como de ensino, apresentam estruturas marcadamente hierárquicas? Como os capítulos subsequentes evidenciaram, ainda existe notável assimetria na relação médicopaciente e falta de autonomia dos pacientes. Alguns dos autores (alunos e profissionais da saúde) explicitaram, em suas considerações finais, a necessidade, dos profissionais de saúde, de compreenderem melhor os conceitos e concepções dos doentes para poderem oferecer um tratamento mais eficaz (p. 72, 85, 97). Evidenciando a necessidade de se trabalhar uma escuta de qualidade, tão preconizada pela humanização em saúde. Fatores como falta de adesão ao tratamento, algumas características assintomáticas das doenças crônicas, problemas com o acesso e acolhimento nos serviços de saúde, constatados pelos pesquisadores, levaram-nos a ressaltar a importância de uma educação em saúde, de ações educativas que mobilizem tanto profissionais como a população. Revalorizando outros dois aspectos dos cuidados primários de saúde, quais sejam: a prevenção e a promoção de saúde, comumente negligenciadas pela concentração dos esforços e recursos na cura.

Um resultado interessante que emergiu nos discursos é a importância da fé/religião, como forma de cuidado utilizada pelos doentes crônicos, e do apoio emocional a esses sujeitos, reconhecendo que o cuidar significa muito mais do que tratar os aspectos biológicos do ser. O único item que não foi muito bem trabalhado no livro foi o que diz respeito à “percepção dos cuidadores informais, populares e profissionais sobre essas doenças” (p. 36), mencionado como fazendo parte desse estudo. Todas as entrevistas citadas restringiram-se às falas dos portadores de doenças crônicas. Localizamos apenas duas citações de praticantes do candomblé (p. 201), que constituiriam a percepção de cuidadores populares, porém, elas foram extraídas de outras obras. Não ficou evidente que o grupo tenha entrevistado cuidadores informais, populares nem os profissionais. Se levarmos em consideração os objetivos do PET-Saúde apresentados pelo livro: II – estimular a formação de profissionais e docentes [...] bem como a atuação profissional pautada pelo espírito crítico, pela cidadania e pela função social da educação superior, [...] V – contribuir para a formação de profissionais de saúde com perfil adequado às necessidades e às políticas de saúde do País; VI – sensibilizar e preparar profissionais de saúde para o adequado enfrentamento das diferentes realidades de vida e de saúde da população brasileira. (p.49)

Podemos afirmar que o projeto foi bem-sucedido, pois viabilizou a sensibilização, especialmente dos alunos, para as características do Cuidado e as necessidades e problemas das populações usuárias dos serviços públicos de saúde. As dificuldades relatadas pelo grupo tornam o livro enriquecedor para aqueles envolvidos com o ensino e a pesquisa, que lidam com dificuldades semelhantes ou pretendem trilhar caminhos parecidos. Esperamos que mais grupos possam se dedicar a esse tipo de experiência, não apenas pelos dados coletados, como, também, pela possibilidade de construção do conhecimento e da alteridade entre os envolvidos. Recebido em 30/01/14. Aprovado em 04/03/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0057

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Botazzo C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec; 2013.

Wilza Vieira Villela(a)

Bucalidade: a construção de um conceito e suas promessas para uma clínica ampliada É alvissareira a leitura do novo trabalho de Carlos Botazzo, “Diálogos sobre a boca”. Concebido como uma coletânea de artigos produzidos pelo autor sobre o tema nos últimos 25 anos, uns inéditos e outros já publicados, alguns revisados ou atualizados, o livro oferece, ao leitor, a oportunidade de acompanhar o processo analítico-reflexivo que funda o conceito de bucalidade. Processo este construído e protagonizado por um coletivo de odontólogos (posteriormente, autointitulados “bucaleiros”) comprometidos com a reforma sanitária brasileira, do qual o autor foi um participante expressivo. Marcado pela busca das articulações teóricas e políticas entre os sentidos historicamente atribuídos à boca, aos dentes e aos problemas aí localizados, e os modelos de organização das práticas voltadas para a atenção à saúde da boca, o volume pretende, ademais, inserir esta reflexão no conjunto mais amplo de questões que constituem e movem o campo da saúde coletiva brasileira. Pela análise das convergências e divergências que se estabelecem quando o objeto da prática é a boca (ou os dentes,

melhor dizendo) ou qualquer outra parte do corpo, e dos desafios da oferta do cuidado, bucalidade vai se constituindo, ao longo dos ensaios que compõem a coletânea, como um conceito central para que se possa pensar uma “saúde bucal coletiva”. Orientada pelos mesmos princípios que fundamentam e norteiam a saúde coletiva brasileira, dentre os quais a interdisciplinaridade, o rigor crítico e o compromisso político de aliar a reflexão acadêmica a propostas de ação, a saúde bucal coletiva teria como desafio observar as especificidades que, historicamente, orientaram as práticas sanitárias voltadas para os dentes, de modo a preservar as características do seu objeto que fizeram da odontologia algo distinto de uma “medicina dos dentes.” Na perspectiva do autor, uma saúde bucal coletiva não deve ser tomada como um conjunto de proposições tecnológicas ou organizacionais visando a extensão de cuidados odontológicos para um grande número de pessoas. A boca não é apenas uma cavidade passiva onde se alojam os dentes, objetos da odontologia; ao mesmo tempo, os dentes devem ser considerados em relação ao sujeito em cuja boca estão alojados. Sujeitos portadores de histórias, desejos e carecimentos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Rua Botucatu, 740, 4º andar, Vila Clementino. São Paulo, SP, Brasil. 04023-062. wilza.villela@gmail.com

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Tendo como pressuposto que a boca é a parte do corpo que medeia a relação do sujeito com o mundo, e assim o próprio processo de humanização, a saúde bucal coletiva seria a área do campo da saúde coletiva com a vocação de pensar a boca e seus mal-estares a partir de determinantes sociais e subjetivos. Ademais, construir uma área de pensamento e proposta de ação em relação à boca seria também um mote para se pensar a necessidade de uma clínica que, cada vez mais, incorpore a tentativa de capturar as nuances da relação sujeito-corpo-desejo, e suas repercussões sobre a experiência singular de sentirse saudável ou doente. Esta ampliação da clínica exigiria igual ampliação da escuta, do olhar e da concepção sobre o fazer clínico, e o diálogo com saberes oriundos de campos distintos do da saúde. O percurso de pensamento do autor na construção dos seus argumentos não é solitário. Como reiteradamente assumido ao longo dos textos, a elaboração das bases teórico-políticas de uma saúde bucal coletiva congrega o esforço de diversos odontólogos comprometidos com a reforma sanitária brasileira, como: Narvai, Frazão, Manfredini, Toledo e outros. A partir da experimentação de modelos de atenção à saúde bucal que pudessem melhor atender às necessidades da população, estes militantes foram se dando conta da insuficiência da tradução acrítica de algumas propostas teóricas gerais da saúde coletiva – como a diretriz epidemiológica, a ideia da programação subordinada à perspectiva do risco e outras – para esta área específica. Seria necessário demarcar melhor o objeto “boca”, para que pudesse haver uma apropriação mais adequada das proposições que alimentavam a consolidação daquele campo e da própria reforma sanitária brasileira. Como não podia deixar de ser, os textos apresentam a elegância e o fino humor que caracterizam a produção literária de Carlos Botazzo, ao lado da erudição que também marca seus trabalhos. Neste particular, chama atenção a sua referência a autores brasileiros que contribuíram de forma substantiva para a construção do campo da saúde coletiva no país, como Donnangelo e Mendes-Gonçalves, dando ao leitor uma nova oportunidade de comprovar o vigor e a atualidade dos seus pensamentos. Ao lado destes, pensadores/ativistas contemporâneos da saúde coletiva dialogam com autores clássicos de diferentes campos do 622

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conhecimento, como: Althusser, Elias, Hobsbawn e Levi-Strauss. O resultado é um texto denso, embora de leitura fácil e agradável. O percurso que o autor propõe se inicia com as suas reflexões a respeito do que poderia ser uma saúde bucal coletiva. Aí, o que é problematizado, ainda que de forma insipiente neste primeiro momento, é a relação entre a Odontologia e a Medicina. Esta reflexão, aparentemente, se fazia necessária para que fosse possível reivindicar uma saúde bucal coletiva como um campo autônomo em relação a uma saúde coletiva cuja construção estava fortemente marcada pela análise crítica da medicina como prática social e política. Sua âncora é a pergunta: Por que a Odontologia não se constituiu como uma especialidade médica, a exemplo do que seria a medicina dos diversos sistemas do corpo humano? A resposta é buscada na análise historiográfica da construção dos seus respectivos objetos: ao ser destacável, o dente se apresenta como um elemento autônomo. Os conhecimentos e práticas que se organizam em torno dos dentes poucas relações estabelecem com uma medicina que se constitui desde a intervenção nos interiores dos corpos. Embora seus desenvolvimentos tenham muitas coisas em comum, em especial no que diz respeito à ideia de que a saúde, dos corpos ou dos dentes, se conquista pela rigorosa observância de normas higiênicas e da contenção dos excessos, odontologia e medicina se constroem a partir de historicidades distintas. A partir desta linha de raciocínio, Botazzo defende que a especificidade da Odontologia exige uma especificidade semelhante de análise, visando a construção de um campo de saberes, práticas e proposições políticas que incorporem o cuidado com os dentes sem que a isto se restrinja, reconhecendo que os dentes fazem parte de uma boca, cujas múltiplas funções a colocam como central na constituição dos sujeitos. Isto posto, e considerando o cuidado metodológico na utilização das impressões e observações das experiências vivenciadas como modos de produção de conhecimento, o autor avança. Não se trata mais de discutir a especificidade de uma saúde bucal coletiva, mas de aprofundar a reflexão teórica sobre a boca de modo a fundamentar a consolidação do campo da saúde bucal.


o trânsito do conceito de bucalidade, que assim poderá ser pensado em relação a processos de produção de subjetividade e cidadania. O caráter reiterativo de algumas ideias se deve à própria lógica de organização da coletânea, que, de algum modo, testemunha a construção do pensamento do autor. Para o leitor, esta reiteração é uma vantagem, pois permite uma familiarização progressiva com o complexo pensamento do autor, facilitando seu entendimento e consolidação. Um pequeno reparo diz respeito à utilização, em quase todos os capítulos, do termo “homem” como sinônimo de sujeito universal, a despeito dos atuais esforços, por parte dos movimentos feministas e LGBT, de desconstrução deste paradigma desde a linguagem. Ao vanguardismo das ideias propostas no livro, talvez devesse se seguir um alinhamento linguístico mais contemporâneo. Esta ressalva, entretanto, não compromete a riqueza das ideias que o livro pode sugerir a seus leitores, sejam do campo da saúde, em qualquer área, ou de qualquer outro campo, desde que curiosos.

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Aprofundamento que se apresenta no capítulo 4, em que o autor retoma, a partir da psicanálise, as funções eróticas primárias da boca, e as interdições/transformações deste erotismo para a constituição da linguagem e da subjetividade de cada um. Configuração subjetiva que vem desafiar a ideia de que a boca é apenas o lugar onde se alojam os dentes, objetos da odontologia. A boca é o lugar do desejo, da paixão, e o suporte para interação com o outro, por meio da fala. A partir daí está bem demarcada a distinção entre a odontologia e uma saúde bucal, que não prescinde de bons dentes para se realizar, mas que exige uma abordagem referida tanto às demais funções da boca, como também, e fundamentalmente, ao sujeito de quem cada boca faz parte. A demarcação do campo da saúde bucal coletiva possibilita que o autor retome, com novo fôlego, temas atuais para a organização das práticas de saúde e a formação de profissionais, como a ideia de integralidade e suas possibilidades no interior da Estratégia Saúde da Família. Esta demarcação também permite

Recebido em 26/01/14. Aprovado em 06/03/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0262

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Inovação da assistência pré-natal a partir de uma tecnologia centrada no usuário Innovation of prenatal care from a user-centered technology Innovación de cuidado prenatal de una tecnología centrado en el usuario

Uma tecnologia da qual se possa lançar mão para inovar na assistência encontrará sempre receptividade por parte dos profissionais, bem como ambiente propício para sua aplicação na rede de atenção básica. Como resultado de uma tese de doutorado, uma pesquisa centrada em usuários, criou-se uma tecnologia de informação utilizando-se as plataformas Web e Android, com o recurso de imagens do processo gestacional, animadas e associadas às expressões técnicas e culturais. As informações são disponibilizadas em multimídia (texto, vídeo, áudio, animações e imagens) e retratam as alterações anatomofisiológicas e os cuidados com o corpo da gestante, bem como uma agenda dinâmica acerca das rotinas do prénatal individualizadas para cada mulher, sendo esta mediada por um sistema especialista. O sistema desenvolvido recebeu o nome de “Mamãe dia a dia”. Este oferece o serviço dentro das melhores práticas da área de engenharia de software, como escalabilidade, robustez, usabilidade e manutenibilidade, e, sobretudo, atende às necessidades dos usuários, identificadas a partir das entrevistas previamente aplicadas. Os requisitos técnicos utilizados foram: o servidor Apache como balanceador de carga e servidor HTTP, o Apache Tomcat como servidor de aplicação J2EE (no qual fica a aplicação), e o PostgreSQL como Gerenciador do Banco de Dados (local de armazenamento dos dados resguardados). De modo específico, para o desenvolvimento do aplicativo Web, utilizou-se a linguagem Java Server Faces - JSF, que é um

framework JAVA para a Web, apoiado pelos frameworks Spring e Hibernate. Para a criação da tecnologia em foco, inicialmente, foram entrevistados 16 enfermeiras do pré-natal e quatro gestores da Estratégia Saúde da Família, bem como 24 gestantes atendidas nas unidades básicas de saúde distribuídas em diferentes bairros da cidade de Fortaleza, estado do Ceará. Essa fase fundamentou-se, metodologicamente, nas narrativas, permitindo uma visão ampla das demandas, bem como uma sequência ordenada, finita e cronológica acerca do pré-natal e das necessidades informacionais das gestantes, assim como de inovações tecnológicas nesse referido serviço. Durante o desenvolvimento desta tecnologia, foram percorridos procedimentos de análise no intuito de certificar sua facilidade de aplicação por profissionais de saúde, ao mesmo tempo em que se atestou provisionar, às gestantes, informações contextualizadas acerca do corpo gravídico e dos cuidados na condução do pré-natal por meio de multimídias acessíveis e para diferentes plataformas. Tem relevância adicional ao contribuir na qualidade e na organização do serviço na rede de atenção básica em saúde, com enfoque no pré-natal. Mantém-se a consciência de que o produto tecnológico obtido necessita, ainda, ser submetido a extensiva validação como uma tecnologia que mereça ser transferida para os serviços de saúde e ser utilizada pelos seus atores sociais-alvo (profissionais e gestantes).

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Destarte, admite-se seu potencial para favorecer um maior conhecimento e gerência do corpo gravídico pela mulher, com pretensões de melhoria das condições de vida e saúde do binômio mãe-filho. Patrícia Moreira Collares Tese (Doutorado), 2014 Doutorado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza/UNIFOR pmcollares@yahoo.com.br

Palavras-chave: Tecnologia. Gravidez. Atenção Primária à Saúde. Keywords: Technology. Pregnancy. Primary Health Care. Palabras clave: Tecnología. Embarazo. Atención Primaria de Salud.

Recebido em 06/04/14. Aprovado em 17/04/14.

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ENVIO DE MANUSCRITOS

INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)

SUBMISSÃO DE manuscritos Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos serão submetidos à avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma autorização para publicação assinada por todos os autores do manuscrito. O modelo do documento estará disponível para upload no sistema. Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão.

Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. Forma e preparação de manuscritos SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até seis mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até seis mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até seis mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Teses - descrição sucinta de dissertações de mestrado, teses de doutorado e/ou de livre-docência, constando de resumo com até quinhentas palavras. Título e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Informar o endereço de acesso ao texto completo, se disponível na internet. Em relação à autoria, apenas o aluno (mestrando ou doutorando) deve ser citado como autor. É necessário informar a instituição onde o trabalho foi defendido. Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse para a revista, em interface com os campos das Artes e da Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc., de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, incluem-se quadros e excluem-se título, resumo e palavras-chave.

Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 20 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé: identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Nota importante: ao fazer a submissão, o autor deverá explicitar se o texto é inédito, se foi financiado, se é resultado de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, se há conflitos de interesse e, em caso de pesquisa com seres humanos, se foi aprovada por Comitê de Ética da área, indicando o número do processo e a instituição. Em texto com dois autores ou mais também devem ser especificadas as responsabilidades individuais de todos os autores na preparação do mesmo. O autor também deverá responder à seguinte pergunta: No que seu texto acrescenta em relação ao já publicado na literatura nacional e internacional? O autor pode indicar dois ou três avaliadores (do país ou exterior) que possam atuar no julgamento de seu trabalho. Se houver necessidade informe sobre pesquisadores com os quais possa haver conflitos de interesse com seu artigo. CITAÇÕES E REFERÊNCIAS A partir de 2014, a revista Interface passa a adotar as normas Vancouver como estilo para as citações e referências de seus manuscritos. CITAÇÕES NO TEXTO As citações devem ser numeradas de forma consecutiva, de acordo com a ordem em que forem sendo apresentadas no texto. Devem ser identificadas por números arábicos sobrescritos.

instruções aos autores

Projeto e política editorial


instruções aos autores

Exemplo: Segundo Teixeira1,4,10-15 Nota importante: as notas de rodapé passam a ser identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Casos específicos de citação: a) Referência de mais de dois autores: no corpo do texto deve ser citado apenas o nome do primeiro autor seguido da expressão et al. b) Citação literal: deve ser inserida no parágrafo entre aspas. No caso da citação vir com aspas no texto original, substituílas pelo apóstrofo ou aspas simples. Exemplo: “Os ‘Requisitos Uniformes’ (estilo Vancouver) baseiam-se, em grande parte, nas normas de estilo da American National Standards Institute (ANSI) adaptado pela NLM.”1 c) Citação literal de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (um enter antes e um depois), com recuo à esquerda. Observação: Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. Exemplo: Esta reunião que se expandiu e evoluiu para Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (International Committee of Medical Journal Editors ICMJE), estabelecendo os Requisitos Uniformes para Manuscritos Apresentados a Periódicos Biomédicos – Estilo Vancouver 2. REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem numérica, seguindo as normas gerais do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) – http://www.icmje.org. Os nomes das revistas devem ser abreviados de acordo com o estilo usado no Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). As referências são alinhadas somente à margem esquerda e de forma a se identificar o documento, em espaço simples e separadas entre si por espaço duplo. A pontuação segue os padrões internacionais e deve ser uniforme para todas as referências. EXEMPLOS: LIVRO Autor(es) do livro. Título do livro. Edição (número da edição). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Exemplo: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Sem indicação do número de páginas. Nota: Autor é uma entidade: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. *

Séries e coleções: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1). CAPÍTULO DE LIVRO Autor(es) do capítulo. Título do capítulo. In: nome(s) do(s) autor(es) ou editor(es). Título do livro. Edição (número). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. página inicial-final do capítulo Nota: Autor do livro igual ao autor do capítulo: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. Autor do livro diferente do autor do capítulo: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo. *

ARTIGO EM PERIÓDICO Autor(es) do artigo. Título do artigo. Título do periódico abreviado. Ano de publicação; volume (número/ suplemento):página inicial-final do artigo. Exemplos: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al. se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do artigo. *

DISSERTAÇÃO E TESE Autor. Título do trabalho [tipo]. Cidade (Estado): Instituição onde foi apresentada; ano de defesa do trabalho. Exemplos: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertação]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. TRABALHO EM EVENTO CIENTÍFICO Autor(es) do trabalho. Título do trabalho apresentado. In: editor(es) responsáveis pelo evento (se houver). Título do evento: Proceedings ou Anais do ... título do evento; data do evento; cidade e país do evento. Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Página inicial-final.


Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar a data de acesso (dia Mês abreviado e ano) e o endereço eletrônico: Disponível em: http://www......

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DOCUMENTO LEGAL Título da lei (ou projeto, ou código...), dados da publicação (cidade e data da publicação). Exemplos: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990. Segue os padrões recomendados pela NBR 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 2002), com o padrão gráfico adaptado para o Estilo Vancouver.

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RESENHA Autor (es). Cidade: Editora, ano. Resenha de: Autor (es). Título do trabalho. Periódico. Ano; v(n):página inicial e final. Exemplo: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTIGO EM JORNAL Autor do artigo. Título do artigo. Nome do jornal. Data; Seção: página (coluna). Exemplo: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. CARTA AO EDITOR Autor [cartas]. Periódico (Cidade).ano; v(n.):página inicialfinal. Exemplo: Bagrichevsky M, Estevão A. [cartas]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. ENTREVISTA PUBLICADA Quando a entrevista consiste em perguntas e respostas, a entrada é sempre pelo entrevistado. Exemplo: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista a Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. Quando o entrevistador transcreve a entrevista, a entrada é sempre pelo entrevistador. Exemplo: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista de Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.

DOCUMENTO ELETRÔNICO Autor(es). Título [Internet]. Cidade de publicação: Editora; data da publicação [data de acesso com a expressão “acesso em”]. Endereço do site com a expressão “Disponível em:” Com paginação: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [acesso em 20 Jun 1999]; 40. Disponível em: http://www.probe.br/science.html. Sem paginação: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [cited 2002 Aug 12]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/Wawatch. htmArticle Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos.

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Nota: Se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). Outros exemplos podem ser encontrados em http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html ILUSTRAÇÕES Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 300 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). Nota: No caso de textos enviados para a seção de Criação, as imagens devem ser escaneadas em resolução mínima de 300 dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12 cm e máximo de 18 x 21 cm. As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma pré-avaliação inicial, pelo Corpo Editorial. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores associados). Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos editores e do Corpo Editorial da revista. Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto quando identificado, está licenciado sobre uma licença Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial, desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/

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Exemplo: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [acesso 2013 Out 30]. Disponível em: www.google.com.br


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Project and editorial policy

SUBMITING ORIGINALS

INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)

Interface - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers can be submitted for publication. Translations of texts published in another language will not be accepted. Submissions must be accompanied by an authorization for publication signed by all authors of the manuscript. The model for this document will be available for upload in the system. Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Brief notes and Letters).

All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. Form and preparation of manuscripts SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to six thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to six thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to six thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Theses - succinct description of master’s theses, doctoral dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing abstract (up to five hundred words). Title and keywords in Portuguese, English and Spanish. Access address to the full text, if available in the internet, must be informed. The thesis’ advisor name do not figure as author. The institution where the thesis was presented must be indicated. Creation - Texts reflecting on topics of interest for the journal, at the interface with the fields of arts and culture, which in their presentation use formal iconographic, poetic, literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to strengthen and give consistency to the discussion proposed. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Note: In case of counting the text words, the tables with text are included and the title, the abstract and the keywords are excluded.

The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 20 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes: These should be identified using lower-case superscript letters, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. NOTE: during the submission process the author needs to indicate whether the text is unpublished, whether it was the result of a grant, whether it results from a master’s thesis or doctoral dissertation, whether there are any conflicts of interest involved and, in case of research with humans, whether it was approved by an Ethics Committee in its field, specifying the process number. In articles with two authors or more, the individual contributions to the preparation of the text must be specified. The author also must answer the following question: What your text adds to what has already been published in the national and international literature? Please indicate two or three referees (from Brazil or abroad) who can evaluate your manuscript. If you consider necessary, inform about researchers with whom there may be conflicts of interest concerning your paper. CITATIONS AND REFERENCES Starting in 2014, the journal Interface is changing over to the Vancouver standard as the style to use for citations and references in manuscripts submitted. CITATIONS IN THE TEXT Citations should be numbered consecutively, according to the order in which they are presented in the text. They should be identified using Arabic numerals as superscripts.


Example: According to Teixeira1,4,10-15 Important note: Footnotes will now be identified by means of lower-case letters, as superscripts, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. Specific cases of citations: a) Reference with more than two authors: in the body of the text, only the name of the first author should be cited, followed by the expression “et al.” b) Literal citations: These should be inserted in the paragraph between quotation marks (“xx”). If the citation already came in quotation marks in the original text, replace them with single quotation marks (‘xx’). Example: “The ‘Uniform Requirements’ (Vancouver style) are largely based on the style standards of the American National 1 Standards Institute (ANSI), adapted by the NLM.” c) Literal citation of more than three lines: in a paragraph inset from the text (with a one-line space before and after it), with a 4 cm indentation on the left side. Note: To indicate fragmentation of the citation use square brackets: [...] we found some flaws in the system [...] when we reread the manuscript, but nothing could be done [...]. Example: This meeting has expanded and evolved into the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), and has established the Uniform Requirements for Manuscripts Presented to Biomedical Journals: the Vancouver Style2. REFERENCES All the authors cited in the text should appear among the references listed at the end of the manuscript, in numerical order, following the general standards of the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) (http://www.icmje.org). The names of the journals should be abbreviated in accordance with the style used in Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). The references should be aligned only with the left margin and, so as to identify the document, with single spacing and separated from each other by a double space. The punctuation should follow the international standards and should be uniform for all the references. EXAMPLES: BOOK Author(s) of the book. Title of the book. Edition (number of the edition). City of publication: Publishing house; Year of publication. Example: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** Without indicating the number of pages. Note: If the author is an entity: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. In the case of series and collections: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1).

BOOK CHAPTER Author(s) of the chapter. Title of the chapter. In: name(s) of the author(s) or editor(s). Title of the book. Edition (number). City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page of the chapter. Note: If the author of the book is the same as the author of the chapter: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. If the author of the book is different from the author of the chapter: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the chapter, at the end of the reference. *

ARTICLE IN JOURNAL Author(s) of the article. Title of the article. Abbreviated title of the journal. Date of publication; volume (number/ supplement): first-last page of the article. Examples: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the article, at the end of the reference. *

DISSERTATION AND THESIS Author. Title of study [type]. City (State): Institution where it was presented; year when study was defended. Examples: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [thesis]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertation]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010.

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STUDY PRESENTED AT SCIENTIFIC EVENT Author(s) of the study. Title of the study presented. In: editor(s) responsible for the event (if applicable). Title of the event: Proceedings or Annals of ... title of the event; date of the event; city and country of the event. City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page.


Example: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brazil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [accessed Oct 30, 2013]. Available from: www.google.com.br * When the study has been consulted online, mention the data of access (abbreviated month and day followed by comma, year) and the electronic address: Available from: http://www...... LEGAL DOCUMENT Title of the law (or bill of law, or code...), publication data (city and date of publication). Examples: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

ELECTRONIC DOCUMENT Author(s). Title [Internet]. City of publication: Publishing house; date of publication [date of access with the expression “accessed”]. Address of the website with the expression “Available from:” With page numbering: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [accessed Jun 20, 1999]; 40. Available from: http://www.probe.br/science.html Without page numbering: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [accessed Aug 12, 2002]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/ Wawatch.htmArticle The authors should check whether the electronic addresses (URLs) cited in the text are still active.

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Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990. This follows the standards recommended in NBR 6023 of the Brazilian Technical Standards Association (Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT, 2002), with its graphical standard adapted to the Vancouver Style.

Note: If the reference includes the DOI, this should be maintained. Only in this case (when the citation was taken from SciELO, the DOI always comes with it; in other cases, not always).

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REVIEW Author(s). Place: Publishing house, year. Review of: Author(s). Title of the study. Journal. Year; v(n):first-last page. Example: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTICLE IN NEWSPAPER Author of the article. Title of the article. Name of the newspaper. Date; Section: page (column). Example: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. LETTER TO EDITOR Author [letters]. Journal (City). Year; v(n.):first-last page. Example: Bagrichevsky M, Estevão A. [letters]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. PUBLISHED INTERVIEW When the interview consists of questions and answers, the entry is always according to the interviewee. Example: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview conducted by Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. When the interviewer transcribes the interview, the entry is always according to the interviewer. Example: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview with Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.

Other examples can be found at http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html Illustrations: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 300 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Note: In the case of texts sent to the Creation section, images should be scanned at a minimum resolution of 300 dpi and be sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm and maximum of 18 x 21 cm. Submissions must be made online at: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will be submitted to a preliminary evaluation by the Editorial Board. If the text is approved, it will be reviewed by peers (two reviewers at least). It will be returned to the author(s) if the reviewers suggest changes and/or corrections. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (publishers and associated publishers). The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers. All content in the approved paper, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution, type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is permitted if the source is mentioned. See details in: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/





Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br Textos completos em . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

comunicação

saúde

educação

Publicação interdisciplinar dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas.




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