LUME
ANO 01 - EDIÇÃO 01 JANEIRO DE 2016
MODA AUTORAL: É A CARA DELAS MOOD | Ensemble | Fridíssima | Noiga | Ma Ma Vie | Ovelha Negra Underwear
REPORTAGEM COM ELAS
Claudia Regina Emilly Gama Renata Penna
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Revista LUME
ENTREVISTA COM ELA
Uma conversa com a designer Silvania de Deus
RESENHA SOBRE ELAS
As Sufragistas, dirigido por Sarah Gavron
OPINIÃO DELAS
Amara Moira Evelyn Queiróz Rhaiza Oliveira
NOSSO
sumário
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nosso EDITORIAL
reportagem COM ELAS
Um olhar de mulher
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A tradução de belezas em vestidos
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Uma moda que é a cara delas
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Amara Moira Evelyn Queiróz Rhaiza Oliveira
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Mulheres cidadãs
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entrevista COM ELA
reportagem COM ELAS
opinião DELAS
resenha SOBRE ELAS
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NOSSO
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ntrinsecamente ligada às relações sociais, a Moda pode e deve dialogar com questões urgentes. Ela dita os must have da estação, mas também oferece mil e uma ferramentas para dar vazão ao que cada pessoa tem de único. Ela padroniza belezas e comportamentos, mas também liberta. E agora não consigo pensar em outra palavra que defina melhor feminismo do que liberdade. Ou, pelo menos, uma busca por ela. Uma liberdade possível. E esse é o sentimento que, direta ou indiretamente, perpassa as diferentes pautas dessa nossa primeira edição. Na reportagem de capa, trazemos seis marcas que estão garantindo seu espaço no mercado de moda autoral. Algumas de Fortaleza – CE, outras de Curitiba – PR, são iniciativas de empreendedoras que elaboram produtos nos quais colocam muito de suas personalidades, o que faz com que suas criações sejam a cara delas. Falamos também sobre fotografia, mas com uma especificidade: conversamos com fotógrafas feministas que retratam mulheres. De todos os jeitos, de todos os corpos, de todas as cores… Todas livres para serem o que são na frente das câmeras. Essas são as “reportagens com elas”. Na sessão “entrevista com ela”, a primeira personagem é Silvania de Deus. Mais uma representante da moda autoral, Sil reside e trabalha há muitos anos na Praia de Iracema e hoje possui duas marcas: o “Ateliê da Sil” e a “Nega Assanhada”. Essa última, uma forma de a designer mostrar para inúmeras meninas que estão por aí que muitas das experiências ruins podem ser ressignificadas, como foi o caso do apelido pejorativo que passou a dar nome a vestidos lúdicos e alegres. Já a “opinião delas” vem trazer assuntos diversos que as convidadas considerem temas importante a serem debatidos. Mesclando textos e ilustrações, esse é um espaço reservado para que elas exponham suas opiniões e levantem discussões pertinentes à vivência de cada uma. E, para finalizar, serão analisadas obras – artísticas, cinematográficas, fotográficas ou de qualquer outra linguagem – feitas por mulheres. Nessa “resenha sobre elas”, refletimos sobre o filme “As Sufragistas”, que estreou no último 24 de dezembro e conta a história das mulheres que lutaram pelo direito ao voto na Inglaterra do início do século XX. A LUME foi pensada como um meio de contribuir para uma melhor representatividade feminina. Esperamos que todos vocês, leitores, apreciem essa oportunidade de conhecer mulheres talentosas que têm muito a dizer, a fazer e a mostrar para o mundo. Boa leitura.
Gabriela Custódio
editorial
Gabriela Custódio Redação Fotografia Projeto Gráfico Naiana Rodrigues Orientação João Paulo Matos Colaborador | Fotografia
Agradecimentos Alexandra Pinto Aline Richter Amara Moira Beatriz de Borba Bruna Luyza Prof. Chico Neto Claudia Regina Dilli Dias Edilson Junior Emanuela Fernandes Emilly Gama Evelyn Queiróz Evelyne Pretti Isa de Paula Gualberto João Paulo Matos Juliana Castro Kelviane Lima Leticia Delespinasse Lígia Nântua Marcela Pinto Custódio Maria Eduarda Malucelli Marianna Calixto Marina Pinto Custódio Rachel Schramm Renata Penna Rhaiza Oliveira Silvania de Deus
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UM OLHAR DE MULHER Claudia Regina, Emilly Gama e Renata Penna enxergam mulheres diferentes por tr谩s das lentes do femininismo por Gabriela Cust贸dio
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reportagem COM ELAS
Renata estudou fotografia enquanto frequentava o colégio. Anos depois, com o nascimento de suas filhas, voltou a praticar e a atividade tornou-se sua profissão. (Foto: Renata Penna)
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ideia de corpo perfeito é uma construção cultural que enaltece certas características em detrimento de outras. Em uma sociedade que valoriza o corpo magro e jovem, estar “em forma” é uma maneira de conquistar prestígio e está ligado, no senso comum, à felicidade. É nesse sentido que a antropóloga Mirian Goldenberg se refere a um “corpo como capital”. Na contramão dos ensaios sensuais que costumam estampar revistas voltadas ao público masculino e de fotografias que mostram mulheres cujos corpos seguem um mesmo padrão estético, alguns projetos fotográficos se propõem a retratar a beleza do corpo feminino de acordo com suas particularidades. Feitas por mulheres a partir de um olhar feminista, essas imagens são iniciativas que buscam contribuir para o empoderamento feminino. Claudia Regina, Emilly Gama e Renata Penna são responsáveis por três iniciativas que seguem essa proposta, o “Ensaio Mulher”, o “Ordinárias” e o “Bonita é a mãe!”, respectivamente. Cada um com seu conceito específico, os três ensaios têm em comum a intenção de retratar as mulheres sem esconder características que normalmente são apontadas como O primeiro ensaio do "Ordinárias" aconteceu com uma amiga de Emilly, ainda sem um conceito definido. Com as sessões seguintes, a ideia foi se tornando mais completa. (Foto: Emilly Gama)
“defeitos” e deixando-as livres para decidirem o que vão usar e se vão se maquiar ou não – expressando, assim, o máximo possível de suas personalidades. “Precisamos pensar na beleza com outro olhar, mais respeitoso com a pluralidade, com o indivíduo”, defende Renata Penna, que visa retratar, no “Bonita é a mãe!”, as particularidades do corpo após a gestação. Ao participar de grupos em que mulheres discutem questões femininas relacionadas ao período da maternidade, Renata percebeu que a recuperação da autoestima após o nascimento dos filhos é uma questão “delicada” e “dolorida” para muitas mães. Pensando em suas próprias questões e em como poderia contribuir para modificar essa relação das mães com o próprio corpo após dar à luz, a fotógrafa botou em prática a sua iniciativa. Nas imagens que produz, os personagens principais são o corpo e as mudanças sofridas por ele após o parto, por isso as fotografadas aparecem ou de lingerie, ou sem roupa. “Isso é escolha delas, mas não é um ensaio vestido”, explica a fotógrafa. Simplicidade também faz parte do conceito do “Ordinárias”, no qual Emilly Gama propõe que as mulheres sejam retratadas sem artifícios de produção. “Apenas suas
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reportagem COM ELAS histórias e seus corpos em um ambiente caseiro”, afirma a fotógrafa, que criou o projeto ao perceber sua necessidade de dialogar com outras mulheres e de investigar “esse ser e estar no mundo”. Junto às fotografias, Emilly divulga um texto escrito pela própria retratada, buscando tornar o trabalho uma autoria de ambas, além de ser uma forma de conhecê-la e pensar as fotos que serão feitas. Já o “Ensaio Mulher”, encerrado no final de 2014, foi realizado para “celebrar” esses corpos, de maneira mais natural e “sem truques de photoshop”. Com a metodologia da técnica de Direção Afetiva, a agora ex-fotógrafa Claudia Regina buscou captar a espontaneidade das mulheres que fotografou. Partindo de experiências pessoais, sua proposta foi aplicar problematizações feministas nesse tipo de trabalho, fugindo da estética dos ensaios sensuais, que, de acordo com ela, são caracterizados pelo olhar masculino, heterossexual e tradicional, pela objetificação da mulher e pela visão tradicional da beleza e da sensualidade. “Tudo totalmente contra o que eu acredito”, enfatiza. Projetos fotográficos com esse olhar feminista têm impactos tanto “micro” quanto “macro”. O foco destes trabalhos é a relação da mulher fotografada consigo mesma, porém eles também podem contribuir para modificar costumes já instituídos socialmente. Ao serem expostos e atingirem público diverso, essas imagens podem auxiliar o surgimento de discussões, trazer à tona temas considerados tabus e promover a representação de mais modos possíveis de ser mulher.
“Acredito muito no conceito de mulheres que se ajudam, ‘mulher empodera mulher’.” Renata Penna Para Cecília Faria, 38, fotografada por Claudia, o “padrão de beleza” é um conceito fabricado para gerar desejo e consumo e que não leva em consideração a diversidade, ao contrário destas iniciativas que o contestam. “Acho que a proposta do Ensaio é relevante porque cada mulher tem sua beleza”, defende. Já Emanuela Fernandes, 22, fotografada por Emilly, relata que o ensaio funcionou “como uma terapia”, sendo um momento de autoconhecimento. “Participar do Ordinárias foi muito lindo, foi uma autoafirmação da mulher que eu sou hoje, muito mais consciente do que é ser mulher, muito mais forte e segura”, afirma. FEMINISMO EM IMAGENS
São muitos os argumentos feministas contrários aos estereótipos do papel da mulher na sociedade. Muitas são as possibilidades de quem está fotografando se
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posicionar, através de seu trabalho, e propor questionamentos. Em relação à representação do corpo feminino, Claudia explica que a parte mais “superficial” do Ensaio, por se tratar de imagem, é o confronto a padrões estéticos – mas também afirma que ele vai além e problematiza vários outros aspectos, como a constante atribuição de culpa à mulher pelas suas decisões no cotidiano. Sendo uma linguagem, a Fotografia carrega em si discursos. Pelo maior costume que se tem com as mensagens verbais, para que os códigos visuais sejam compreendidos é necessário cuidado por parte dos fotógrafos e sensibilidade dos observadores. E para que seja de fato feminista, essas imagens devem apresentar características específicas. O tipo de luz que foi escolhida, a pose adotada, a roupa utilizada e a pós-produção aplicada, quando alteram o corpo da retratada, segundo Claudia, já fazem com que a fotografia exerça papel contrária ao conceito de empoderamento. Para além do plano visível, Emilly acrescenta que um projeto realmente feminista deve promover debate, conscientização e envolvimento de outras mulheres. Ter uma mulher por trás das câmeras, para esse tipo de produção fotográfica, é outro aspecto que faz diferença. O fato de as duas terem vivências parecidas facilita a interação entre as participantes, o que não acontece quando é um homem quem comanda o ensaio. Para Claudia, isso se dá porque não é criado um ambiente de segurança para a mulher. Além disso, Renata destaca o papel da sororidade – expressão feminista para definir a empatia e o companheirismo que se estabelece entre mulheres – no momento da sessão de fotos. “Acredito muito no conceito de mulheres que se ajudam, ‘mulher empodera mulher’”, afirma. MODA, BELEZA E AUTOEXPRESSÃO
A Moda é um campo que dialoga com a arte e utiliza estratégias visuais para atrair e seduzir. Com isso, o corpo – vestido ou não – está constantemente presente em revistas, campanhas, editoriais, outdoors e comerciais. Essa onipresença, quando só um tipo de corpo com pequenas variações é mostrado, pode ter impactos na sociedade. Se, por um lado, a Moda permite experimentações e expressões pessoais através de combinações diversas entre roupas, acessórios e maquiagem, quando os veículos só exaltam uma maneira de ser mulher, inúmeras outras possibilidades deixam de ser representadas. É a essas possibilidades que Claudia se refere quando diferencia a “moda oficial”, de lojas e meios de comunicação, da “moda underground”, que ganha voz e é potencializada através da internet. Ela afirma que a moda e a publicidade “oficiais” são “danosas” por mostrarem “aquelas mesmas mulheres de sempre, magras, sem dobras e brancas”. Por outro lado, em blogs e tumblrs, mulheres de diferentes biotipos e etnias vem postando selfies (autorretratos) e compartilhan-
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Durante o ano de 2014, Claudia viajou todas as capitais brasileiras ministrando wokshop de "Direção Afetiva", no qual repassou suas técnicas a outros fotógrafos. (Fotos: Claudia Regina)
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do imagens que mostram que podem utilizar os produtos que quiserem, mesmo que o mercado de moda não lhes direcione muitas alternativas. “A vantagem é que hoje a gente pode se autorrepresentar”, conclui. Seguindo o mesmo pensamento, Emilly defende o poder que a moda tem de exprimir personalidade, opiniões e posicionamentos pessoais. “Eu acho a moda uma maneira fantástica de expressar a arte no corpo, ter arte no dia a dia a partir do que vestimos. Algo totalmente pragmático, o vestir, torna-se um ato artístico e político”, defende. Sobre uma suposta padronização da beleza que é imposta, ela considera que há um discurso construído que, com o tempo, vira senso comum. Para Cecília, deve ser feita uma reflexão acerca da influência que a moda exerce na vida e na satisfação pessoal de cada uma. “E também acho que (as mulheres) precisam ser menos críticas em relação às outras, porque a pressão do meio também é forte”, acrescenta. Segundo Emilly, a desconstrução desses padrões estéticos é possível a partir de uma reeducação do olhar e de acesso a informações sobre discursos de poder. “Libertar-se disso é um processo que recompensa. É um caminho de empoderamento”, afirma. Participar deste tipo de ensaio pode ser um primeiro
Renata afirma que seu contato teórico com o feminismo se deu após a maternidade, mas que, intuitivamente, sempre foi feminista. (Foto: Renata Penna)
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passo para esse processo de libertação de padrões. Emanuela afirma que, antes da sessão de fotos, já vinha se questionando sobre aspectos do seu comportamento e, segundo ela, a experiência lhe trouxe uma oportunidade de reflexão, auxiliando na mudança de alguns hábitos cotidianos. São atitudes simples, mas que mudam a relação da mulher com o próprio corpo. No seu caso, uma dessas mudanças foi a sua relação com as roupas íntimas. “Até ali não usava sutiã sem bojo de jeito nenhum – agora me libertei e adoro sair sem sutiã”, exemplifica. Essa atitude de enfrentar conceitos já diluídos socialmente envolve tanto uma produção diferente, que não apresente a retratada a serviço de ninguém além dela mesma, quanto uma outra maneira de perceber o mundo, reconhecendo a pluralidade de sujeitos que existem. Este é um trabalho árduo, segundo Renata, mas necessário, e deve incluir mulheres de todas as idades, inclusive as crianças. Sendo utilizada para este fim, a fotografia pode ajudar a enfraquecer alguns dos mecanismos de opressão à mulher que ainda existem. “Precisamos começar a educar nossas meninas para um olhar diferente sobre si e sobre o outro. (…) É uma luta diária, para todas, a desconstrução desse padrão, a busca da autoestima e do autorrespeito”, esclarece Renata.
A única exigência de Emilly no ensaio é que seja realizado na casa da fotografada, para conferir intimidade às fotos. (Foto: Emilly Gama)
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A TRADUÇÃO DE belezas em vestidos por Gabriela Custódio
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entrevista COM ELA
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ão falta alegria no número 660 da Rua dos Tabajaras. É com muita simpatia e conversa boa que cada pessoa que entra no Ateliê da Sil é recebida. Em entrevista para a REVISTA LUME, a designer Silvania de Deus nos contou detalhes sobre diferentes assuntos, como o início do seu trabalho com moda, o seu processo criativo, as inspirações, a transparência no dia a dia de produção do ateliê e as viagens que tem feito por todo o País com seu Ateliê Itinerante. Uma coisa nos chama atenção na sua fala: o carinho com que a Sil se refere à “Nega Assanhada”, sua outra marca. É cativante a maneira como ela explica como conseguiu ressignificar um apelido pejorativo de infância e dele fazer nascer uma marca descontraída, a “nega” ou “neguinha”, como ela chama. Talvez sem se dar conta, de forma implícita, Sil consegue unir a sua Moda a um discurso hoje facilmente reconhecido como feminista quando afirma que busca empoderar suas clientes ao mostrar como é bom e bonito ser uma Nega Assanhada. REVISTA LUME Você começou a desenvolver roupas ainda na adolescência. Como foi o processo para que essa se tornasse a sua profissão? SILVANIA DE DEUS Não foi um processo claro. Começou, na verdade, como um exercício a partir de um desafio que minha mãe lançou. Ela foi a costureira do bairro a vida toda e, na época de adolescência, sempre fui meio exigente com o visual. Minha mãe me jogou um desafio porque eu não queria vestir mais as roupas que ela costurava, e ela, um belo dia, falou: “Olha, ou você anda nua, ou você veste o que eu fizer, ou você faz suas roupas”. E aí eu comecei a fazer as minhas roupas, as amigas gostavam, me perguntavam e eu dizia “minha mãe que fez”. Quando perguntavam para a minha mãe, ela falava: “Não, não fui eu quem fiz, eu só executei. Quem fez foi ela. Eu nem sei fazer isso aí que ela gosta”. E aí as meninas me pediam e eu dizia para elas “olha, eu só sei fazer se você deixar que eu pense algo para você”. E sempre dava certo. Como eu era muito menina, acho que eu não tinha ideia de que eu já fazia um grande trabalho de pesquisa. É uma paixão desde sempre, desde pequena. Meu brinquedo preferido eram bonecas de papel, fazendo roupas para elas. Então, eu já estudava muito sobre moda, mas era independente. Eu não dizia que eu ia fazer aquilo na vida. Mas, eu já trabalhando, no meu segundo emprego, era muito engraçado porque eu sempre ia para qualquer lugar, com minha bolsa e uma bolsa de roupa do lado. Quando eu conheci o pai do meu filho, que era um artista e adorava o que eu fazia, ele estimulava muito. E eu dizia para uma amiga “mas o Max quer que eu pare o que eu faço para ir fazer Moda, para ir fazer roupas, mas não é isso que eu quero”. E aí essa amiga foi muito importante, porque ela falou “mas como não, se você faz isso muito bem? Você já faz isso, só quem não percebe é você”. Acho que, na verdade, inconscientemente eu já fazia” (risos). Mas foi sempre uma área a qual eu me dediquei muito. Foram muitos in-
Residindo na Praia de Iracema desde o início da década de 1990, hoje Silvania realiza o FUÁ, evento que incentiva a ocupação das ruas por parte da população. (Foto: Gabriela Custódio)
vestimentos. Dedicava muito tempo, muita atenção, muitos estudos, muita pesquisa, muito tudo. Era o que eu fazia com muito desejo. Acho que essa transição se deu a partir dessas pessoas que eu fui encontrando pelo caminho. Um belo dia, saí do emprego, o Max já tinha montado loja, já tínhamos ateliê em casa, minha mãe costurava, executando o que eu queria. Então, já estava em um processo longo há muito tempo, na verdade. Como tinha esse apoio afetivo, que me dava muita segurança, acho que criei mais coragem. LUME A sua produção não é massificada. Como você definiria o tipo de Moda que você desenvolve? SIL Eu acho que é uma moda autoral, de ateliê, como antigamente. Como só pode ser desse jeito, porque se eu construo uma peça uma a uma, não tem como ser uma quantidade grande, né? Eu acho que é isso, moda de ateliê. Eu prefiro que os outros definam. Eu não gosto muito de definir não, porque eu sempre vou me permitir o direito de mudar de opinião. Aí vai que eu defino uma coisa e vão me cobrar por essa definição... E eu mesma sou uma pessoa sagitariana com a lua em gêmeos… é melhor não definir nada porque eu sei que no meio do caminho tudo pode acontecer (risos). LUME Como você avalia o atual mercado de moda autoral?
É uma cena bem mais interessante do que quando eu comecei. No começo, eu achei que poderia trabalhar em algum lugar, desenvolvendo para alguma marca. Mas ninguém me contratou, porque achavam que o que eu fazia não tinha mercado, era um produto “sem futuro”. E foi bem frustrante. Porque, como eu não tinha maturidade para entender, eu achava que o problema era comigo e não o contrário. A questão é que tava muito à frente do tempo. Na verdade, é muito interessante o processo de criação. Porque o meu se deu e continua se dando exatamente dentro do contexto de qualquer lugar que eu esteja. Eu trabalho respeitando e resolvendo criativamente a partir do que eu tenho, fazendo o melhor com o que eu tenho. Desde a matéria-prima que eu possa encontrar no mercado, até as condições de tudo, do ponto físico, de como eu vou expor, de como eu vou chegar ao cliente. E eu comecei a fazer isso porque eu não conseguia e eu nem sabia fazer diferente. Mesmo quando eu fui estudar design, continuei aperfeiçoando o que eu já fazia porque eu acho que cada um também tem que reconhecer o que sabe fazer bem e defender isso. Eu sou criadora, tenho que fazer todo dia, tenho que criar (…) eu adoraria hoje já ter uma condição de ter um ateliê até maior, com mais pessoas produzindo. Porque eu tenho muita efervescência... eu tenho muita coisa que eu vou engavetando porque vou perdendo a paciência, porque demora para construir uma peça bem feita.
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LUME Onde você estudou design?
Eu fiz no Centro de Design do Ceará. Eu tenho muito orgulho de dizer isso, porque foi um curso maravilhoso. Tive o
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entrevista COM ELA privilégio de ser primeira turma. Foi um curso completo, com uma grade curricular excepcional. Infelizmente, não houve continuidade, mas era muito bom. LUME Qual o perfil do seu público consumidor?
SIL Engraçado, todo mundo faz essa pergunta. É bem relativo,
porque o meu público consumidor nem fica dentro de uma grade de idade. Eu posso ter cliente de 20 anos e cliente de 70 anos. O que vai definir essas mulheres é o jeito de estar na vida. São mulheres que, mesmo quando são jovens, já têm um empoderamento que trazem de si, sabe? Coisas próprias, que dão uma certa certeza do estar no mundo, defendendo o que gostam e o que querem. Têm um olhar... especial? Não sei qual adjetivo usar nesse momento... E ao longo da vida elas vão só firmando isso, sabe? Uma força, uma garra, não sei... vieram já entendendo alguma coisa, uma luta que elas têm que travar para se impor e, se impor, lindamente, assim, com o que ela tem de melhor, que é o feminino.
“Eu posso ter cliente de 20 anos e cliente de 70 anos. O que vai definir essas mulheres é o jeito de estar na vida.” LUME Você falou em “se impor lindamente”. O que é ser belo para você? SIL É muito simples. O que eu mais busco na minha roupa é resolver a baixa autoestima, tirar isso da mulher. É dar para ela, a partir do que ela põe no corpo, levantar essa autoestima. É ela se ver ali bem poderosa, mesmo, se ver como ela tem que se ver todo dia. Eu gostaria muito disso, com todas. Eu acho que é a minha grande busca. Acho que é por isso que eu fui trabalhar com vestido, que acho que é o maior símbolo de feminino. Mas não porque eu acho que tem que andar de vestido. Eu acho modelagem tão difícil e eu queria escolher uma peça e exercitar muito isso. Porque tem tanto desafio. Tem tantos anos que trabalho e todo dia eu me deparo com coisa e penso: “putz... não vou saber resolver isso”. É por aí. LUME O que te inspira na hora da criação?
O feminino, normalmente. São as mulheres. Hoje em dia, o meu processo criativo se dá a partir do conhecimento geral do corpo das mulheres que me buscam, que eu encontro. Tanto é que eu passei a batizar os vestidos a partir das donas. A Beta (cliente que estava no Ateliê no momento da entrevista) me pediu um vestido para defesa dela de tese de doutorado e nasceu o vestido Beta. E assim vamos. Mas é um estudo mesmo de traduzir esses corpos, essas mulheres, com todas as suas diferenças. Os corpos “P”, mas com peito médio, com quadril diferente, sem cintura, com cintura… mas todos são
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corpos lindos. E como a gente soluciona isso? Como eu coloco o que vai estar mais legal para ser mostrado nesses corpos e que vai valorizar essa mulher? Algo que vai trazer para esse rosto e para esse ser feminino a alegria que ela vai ter quando se olhar no espelho e se sentir mais bonita. LUME Já que você trabalha dessa maneira… você trabalha com coleções? SIL Eu trabalho com linhas. Eu faço hoje como se fossem mini coleções. Eu tenho uma linha mais alfaiataria. São vestidos que eu penso para um trabalho mais executivo, mais formal. A partir da desconstrução da alfaiataria, eu vou criando umas bossas, uns shapes, umas coisas que vão deixar essa mulher mais interessante sem perder aquela formalidade. Eu tenho uma linha que é mais criação, mais traço. Eu tenho uma linha de moulage da qual eu não abro mão, faz parte total do meu trabalho, que são as construções a partir do corpo de prova. Eu amo, porque é a partir da moulage que saem minhas modelagens mais arrojadas, que são muito “eu”. Tem uma outra linha que é mais sensual, para uma mulher que gosta de corpo mais delineado. Tenho uma mais lúdica, mais divertida, para você usar a qualquer hora. Tem uma outra linha mais sofisticada, tem uma formalidade que não é necessariamente madura, mas você pode ir a um casamento diurno, a um jantar, a um almoço, a uma reunião de trabalho, a uma banca. Tem outra que eu não abro mão, que é o meu trabalho com estampas. (...) Ah, tem uma coisa muito legal que já tem um tempo que eu faço. Eu invento uns desafios. Eu persigo umas modelagens clássicas e as vou traduzindo a partir do meu olhar. Atualmente, eu já fiz a minha 14ª tradução do bom e velho clássico tubinho e do kaftan. LUME A “Nega Assanhada” também é uma linha?
SIL A Nega é uma segunda marca, na verdade. É um xodózinho.
Como foi que você viu a necessidade de criar uma segunda marca? SIL Não tinha necessidade, não. Teve uma coleção que eu fiz, de roupas pintadas à mão, que teve tanto sucesso, ficou tão bem resolvida, tão bem contextualizada, que ficou durante muito tempo. Quantos anos, exatamente, não sei. E a Nega veio muito como um certo resgate atualizado dessa linha. Ela é mais lúdica, tem estampa própria, diferente da outra, na qual faço o tratamento e uso muita técnica sobre técnica, tem um processo manual que eu nem consigo repetir e é muito elaborada. A Nega não, ela ia por um caminho mais simples, mais rápido, mais lúdico, mais divertido, mais leve. Ela é bem verão e tem outras especifidades. Então, ela tinha tão outra cara, mas também era Sil, que eu resolvi que era outra marca. E esse nome era um apelido LUME
entrevista COM ELA pejorativo de infância. Não de assanhamento legal, mas por causa do cabelo. E eu resolvi ressignificar na marca. Então, nasceu a neguinha. E é uma neguinha, a logo. E aí eu achei também que eu fazia um trabalho bacana, de empoderar um monte de neguinhas assanhadas de todas as cores e jeitos que estão no nosso País, com todas essas questões que vão lá na autoestima da menina e que detonam pra caramba. Então, era um outro trabalho. A partir disso, contar a minha história e dizer “olha, a gente pode ressignificar”. E por isso ela também é tão lúdica. Para pegar o que era pesado e transformar em leveza, em diversão. Em 2014, você fez uma parceria com a artesã Ada Rúbia e deu um novo uso a punhos de rede na sua coleção. Você costuma realizar essas parcerias com frequência? SIL Costumo. Meu projeto final de Design foi justamente a partir disso. Já era uma pesquisa antiga, eu persigo muito sobretudo o crochê, a trama, as rendas. E inclusive levou o primeiro lugar no projeto final, foi o melhor do curso. Era uma pesquisa em Moda, artesanato com design e foi justamente com crochê. É uma coisa muito, muito antiga que eu já faço. Esse projeto final foi em 1998, imagina… Já fiz muitas consultorias no CEART, SEBRAE, outros órgãos nesse setor. Só que era mais tímido, isso não era muito falado. E aí como eu também queria muito fazer um trabalho como cordão, o punho da rede, que eu acho maravilhoso, acho um fio incrível, eu precisava ter uma artesã fixa, ali, desenvolvendo comigo. E aí eu tinha experimentado algumas, deu certo com ela, e aí rolou. E eu gosto muito de dizer “tá aqui, oh”, apresentar “é ela”. Sempre foi um trabalho… hoje, a Catarina Mina tem essa preocupação, mas eu sempre respeitei e acho que essa preocupação tem que existir mesmo, a artesania tem que ser trabalhada com respeito, com valor, de pagamento bem digno, decente.
tem como, se você tem uma relação de pagamento decente, não tem como, não sobra. Se sobrasse, meu ateliê era outro, muito mais sofisticado, e minha casa também. Minha casa é mais aberta ainda, o FUÁ acontece nela. Então, é um estilo de vida mesmo, um jeito de ser e de estar, não tem diferença do meu trabalho para a minha vida. É tudo uma coisa só, tudo junto e misturado. Acho que o que eu faço sou eu e não tinha como ser de outro jeito. Essa relação se dá a partir disso, do respeito ao humano. A gente trabalha junto, inclusive eu trabalho mais horas do que todo mundo. É uma coisa muito bonita, uma relação muito linda de respeito, carinho, cuidado e atenção.
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LUME Em abril de 2015, você participou do Fashion Revolution Day, na Universidade Federal do Ceará. Como você aplica questões como sustentabilidade e transparência do processo produtivo no seu Ateliê? SIL De todo jeito (risos). O ateliê é transparente, para começar. Ele é aberto. (chamou para mostrar o setor de costura e modelagem e apresentar os funcionários) O ateliê é de portas abertas, todos os clientes têm acesso, todo mundo entra, conversa… A gente tem de fato uma relação de muita abertura. O acesso a eles (funcionários) é direto. Tem um monte de cliente que adora, viraram amigos. E essa é uma prática que eu faço desde sempre, eu não saberia trabalhar de outro jeito. A minha relação de construção precisa de uma proximidade e de uma afetividade. E se você não é honesto nisso não tem como ter um produto honesto. E é tudo simples, minha casa é simples. Eu digo para as pessoas: não sobra, não existe lucro. Tem gente que pode achar a minha peça cara, mas não
LUME Você tem viajado bastante levando o seu ateliê até outras cidades do País. Como tem sido essa experiência do “Ateliê Itinerante”? SIL Bem legal. Teve uma construção inicial, lógico. O Rio foi o primeiro lugar no qual eu comecei a fazer esse trabalho itinerante, acho que por isso ele hoje é mais consolidado do que os outros. Teve um trabalho inicial de construção da rede, que demorou, mas hoje ele tá bem estável. Vão ter mudanças esse ano, estamos fazendo o planejamento anual, eu e o Enrico, meu sócio há 5 anos. E hoje são vários lugares, acabaram de entrar o Crato e Brasília. Fico bem feliz de o Crato estar, pois minha família é do Cariri. Se vai ser sempre assim, não sabemos. Vamos ver, por enquanto, sim, vamos trabalhar na itinerância por um tempo. LUME E como é a recepção do público nessas outras cidades? SIL Super legal. É sempre uma rede de amigos. A continuidade do que eu sou aqui, levo para esse atendimento. E hoje, em todas as cidades, tem uma rede bem bacana. É claro que isso também se dá a partir do trabalho, que, enfim, ele é o principal, é tudo junto, sou eu. Mas é essa relação também de você vestir a roupa e ela ter a durabilidade, a qualidade. E tá ali tudo o que foi dito, mesmo silenciosamente, você sentir que isso existe, que vai fazer que você tenha o prazer de chamar outra para fazer parte da rede. Tá bem legal, eu amo. Tenho várias amigas novas a cada momento.
Com produção em pequena escala, a designer elabora modelos que destacam a beleza de cada tipo de corpo, buscando elevar a autoestima de suas clientes. (Fotos: João Paulo Matos)
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entrevista COM ELA LUME Porque você escolheu morar e abrir o ateliê na Praia de Iracema? SIL Eu não escolhi nada na vida. Quem dera! Eu não tive esse privilégio (risos). Eu adoraria ter sido uma menina assim, de privilégios, mas eu não sou não. A vida que escolheu. E não sei se se fala em destino, em pré-destino, se já tava aí… Essa casa aqui foi a casa que a gente construiu pra vida, para tê-la. Ou ela me chamou, não sei. Mas é minha casa com meu marido, que não está mais com a gente, eu sou viúva. E por isso eu vim pra cá. Fiz o ateliê aqui porque era onde o meu dinheiro poderia fazer, na minha própria casa. Coincidentemente, era na Praia de Iracema (risos). Podia ter sido na Cidade 2000, no José Walter, sei lá… onde fosse a minha casa. LUME E como surgiu a ideia de fazer o FUÁ?
eu faço uma coisa para depois das 22h”, então todo mundo tá saindo daqui e vai pro Bem Bem, do Bem Bem pro Mambembe… (risos). Tá bem legal, o menino do açaí é quem ama, sempre vem nos agradecer porque nesse dia ele vende super bem (risos). E eu sou muito apaixonada pelo FUÁ, porque ele é um resultado do que somos nós. LUME Agora, entrando para a especificidade da Revista. Você se reconhece como feminista? SIL Acho que sim. (pausa) Mais do que machista (risos). Do meu fio de cabelo até meu último pedaço de unha do dedão do pé, sempre fui a favor de combater isso (o machismo), que é uma doencinha muito nociva e nos faz muito mal. Pros meninos e pras meninas, no geral. Eu venho de uma família, graças a Deus, bem especial. Três homens e eu. Na minha casa, meus irmãos todos costuram, todos cozinham, todos limpam a casa. Numa relação bem assim, desde sempre… Tô mais pra isso do que o contrário. Mas num processo, de entendimento e de policiamento. Em todos os sentidos. Porque é a mesma sociedade que forma o machista… Então tem que estar o tempo inteiro alerta.
SIL O FUÁ é lindo, ele é a construção de várias coisas, é o resultado desses vários experimentos. A gente tava há um tempo sem fazer evento, queria juntar a rede. E aí, acho que como a gente já tinha experimentado tanto, foi mais fácil construir o FUÁ. A ideia principal é trocar afetos. É uma ocupação do nosso bairro, da nossa rua, da nossa calçada. Convidar as pessoas a estar na rua, já que nós viramos uma cidade onde as pessoas não caminham mais, têm medo, não ocupam as ruas. LUME Você acha que pode existir uma relação entre Moda e E nós amamos as ruas. Eu amo andar a pé, eu não tenho carro Feminismo? (risos). Eu amo morar na Praia de Iracema, eu adoro tomar SIL Eu acho que tudo pode ter relação né? Agora, esmiuçar banho de mar nela, eu adoro passear. E eu acho que era legal isso… é complexo, né? São duas… uma bandeira é bem inteas pessoas da cidade entenderem que o bairro é nosso e que ressante de levantar, sobretudo nesse momento delicado do a gente tem que ocupar e fazer isso nos outros também. Na País que nós estamos vivendo, com todos os Apartheids aí em nossa cozinha, a gente convida uma chef com o acordo de diversos cantos. E a Moda... é muito louco, porque ela é isso, ela apresentar sempre dois pratos de até no máximo R$15, uma discussão social. Então é lógico que tem uma relação. Só para todo mundo ter acesso a uma comida legal com um pre- fico aqui pensando, a partir do momento que chega essa perço bem bacana. E a música é na calçada, são sempre músicos gunta… como… eu sou meio lenta, não sei, isso vai ficar coindependentes. É aquela ideia mesmo de músico de rodoviá- migo e eu vou elaborando, talvez ainda fale com você muitas ria, de aeroporto, de rua, que chega, tira seu instrumento e vezes sobre isso porque é uma questão interessante. Mas eu toca. Se o músico quiser trazer sua caixa, ninguém vai repri- acho que a Moda ela certamente segue… ela é bem resultado mir. Quem somos nós? Pelo contrário, fique bem à vontade do que no momento é mais latente. (risos). E é bem legal porque a gente tem um cachê, que a O Ateliê da Sil está aberto para quem quiser conhecer gente fez um cálculo e diz ‘a seus funcionários e o local de trabalho. gente pode até aqui, se você (Foto: João Paulo Matos) topa é um prazer’ e normalmente todos topam e vão felizes. E aqui em baixo o ateliê fica também de portas abertas, mostrando as novidades. E o FUÁ é uma coisa muito leve, ele é cedo, de 5h às 22h, no máximo. E o mais legal é que ele agora movimenta a rua. Por exemplo, o Café Bem Bem tem sempre chegado junto e dito “vamos estender,
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UMA MODA QUE ร A CARA DELAS No Nordeste ou no Sul, em Fortaleza ou em Curitiba, a "moda autoral" vem ganhando forรงa. Conheรงa esse formato de mercado que tem a cara das suas criadoras. por Gabriela Custรณdio
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Economia Criativa é um dos eixos econômicos que têm se mostrado estratégicos para o desenvolvimento de diversos países no século XXI. De acordo com o Relatório de Economia Criativa 2013, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a criatividade e a inovação, tanto em nível individual quanto coletivo, são as bases para esse setor. A partir do ano de 2008, a Conferência das Nações Unidas Sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) passou a definir Economia Criativa como atividades que mesclam economia, cultura e tecnologia com ênfase em produtos e serviços que tenham conteúdo criativo, valor cultural e objetivos de mercado. Neste setor, operam as Indústrias Criativas, nas quais há mais bens intangíveis embutidos. Segundo este órgão, os empreendimentos desse setor são divididos em nove subgrupos: artes visuais, edição e mídia impressa, design, novas mídias, serviços criativos, audiovisual, artes dramáticas e patrimônio cultural. Como muitas dessas empresas ainda não possuem loja física, algumas estratégias têm sido desenvolvidas por esses empresários. Uma das possibilidades é a reunião de diferentes marcas em um mesmo espaço, são as chamadas lojas colaborativas. Outra opção é a realização de eventos pontuais que reúnem música, moda, decoração, dentre outras vertentes: são as feiras criativas, que vêm ocorrendo em várias cidades do País. Em Fortaleza, existem alguns eventos que promovem a integração entre os produtores independentes locais, como o Babado Coletivo, a Feira Mambembe, o Mercado Transversal e a Quarta Coletiva. A Moda é um dos expoentes da Economia Criativa e uma nova maneira de pensá-la, produzi-la e consumi-la vem ganhando força: o criador quer executar peças que mostrem sua identidade e o consumidor busca produtos diferenciados. Ao longo do ano de 2015, o termo “moda autoral” passou a ser mais utilizado para se referir a esse mercado “alternativo”, que foge do que normalmente é comercializado em shoppings e em redes de fast fashion. DA CABEÇA AOS PÉS
Indo contra a produção em massa e os preços baixos dos grandes magazines, as marcas “autorais” realizam sua produção em um ritmo menos acelerado e em menor escala, além de a relação entre produtor e consumidor se estabelecer com mais aproximação. Mais do que peças de roupa, essas
Em Fortaleza, um dos lugares onde ocorrem feiras criativas é o Mercado dos Pinhões, no centro da cidade. (Foto: Gabriela Custódio)
empresas têm a preocupação de criar uma identidade inovadora e de proporcionar experiências para o consumidor no momento da compra. Neste cenário, algumas marcas são uma verdadeira atração que mantêm um público fiel, como é o caso da Fridíssima, idealizada por Lígia Nântua. Seu carro-chefe são as sandálias confeccionadas a mão, uma por uma, supercoloridas e cheias de personalidade. Mesmo sem ter feito nenhum curso ou disciplina de calçados na faculdade, Lígia começou a desenvolver sandálias de forma intuitiva, contando com a ajuda dos funcionários dos comércios onde compra os materiais para tirar dúvidas sobre o processo de montagem. Do início dessa produção informal até a Fridíssima se tornar o centro das suas atenções, foi um curto período de tempo. Com a produção a todo vapor e com a extinção da faculdade em que cursava Design de Moda, a empreendedora decidiu abrir mão do diploma, por enquanto, para se dedicar exclusivamente à marca. A Fridíssima, de acordo com sua criadora, é uma empresa jovem e feita para pessoas com esse mesmo espírito. “Como indica o nome no superlativo, tem em sua essência intensidade e destaque. ‘Fridíssima’ é tudo que se entende por cool, moderno, pioneiro, autêntico, seja a sandália ou a pessoa que a usa”, explica. Dois anos depois e agora contando com venda online e com revendedoras nas principais capitais do País, um dos desafios de Lígia é sempre inovar em suas criações. Além disso, ela afirma que tem que deixar sempre claro para o mercado que a empresa é pequena e o processo de produção, manual – o que demanda mais tempo. “O mercado é brutal, ele não espera a sua marca se estabilizar pra te deixar crescer, ele te empurra e você tem que aprender a voar pra não cair”, afirma. Para Lígia, a palavra que define essa moda autoral é “autenticidade”. Ela defende que, para se encaixar nesse segmento, além de atender à demanda de mercado, o produto deve se diferenciar e ser uma criação “original” – e isso exige que o processo e o resultado sejam personalizados, fugindo das releituras ou das revisitações. Dessa perspectiva, ela garante que a Fridíssima é autoral do começo ao fim. Além de planejar todas as etapas de produção, imprimindo sua identidade, cada modelo é produzido manualmente por ela e por sua irmã. “De uma forma geral as tendências me influenciam, porque me rodeiam, afinal
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Em edições temáticas, o Babado Coletivo reúne designers, chefs e artistas locais. Nas imagens acima, em sequência de duas fotos: Fridíssima, MOOD e Ensemble (Fotos: Gabriela Custódio)
também sou consumidora, mas na hora de produzir é o que me define que se sobressai nas peças”, explica. Mas nem só de sandálias ela se mantém. Tanto no stand das feiras criativas quanto no e-commerce, os clientes também podem encontrar produtos como tops – que também são produção local – e acessórios – alguns de produção própria, outros de “garimpos” que Lígia faz em viagens. Ela explica que a intenção é sempre crescer, expandir o mix de produtos desde calçados até brincos, colares, pulseiras, roupas e peças de decoração. Tudo para oferecer às “fridíssimas” o estilo de vida da marca. DE DENTRO PARA FORA
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“Verdade” é uma das palavras que Isa de Paula Gualberto usa para descrever a produção da MOOD, da qual é proprietária em sociedade com Rachel Schramm. O negócio começou a partir de Isa, e, logo no início, Rachel se mostrou disponível para ajudá-la. Após percebe-
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rem que trabalham bem juntas, a parceria se firmou e, então, a ideia foi realmente ganhando forma, tornando-se uma interseção das duas personalidades, dos dois estilos. “Acho que não poderia ser outra pessoa. Teria que ser nós duas para ser a MOOD. Se fosse outra pessoa seria outra marca, porque ela diz muito sobre a gente”, afirma Isa. Normalmente, as coleções da MOOD são desenvolvidas a partir de temáticas que inquietam Isa e logo viram conceito para a criação. Quando algo desperta sua atenção, a designer faz pesquisas, reúne referências imagéticas, e só então as sócias criam as peças, cujos shapes seguem a linha minimalista, atemporal. Isa explica que os temas são sempre relacionados ao autoconhecimento, ao ser humano, à mulher e a Fortaleza, o que faz com que a consumidora se identifique. “Como são sempre temáticas reais e verdadeiras, isso acaba fazendo com que as pessoas se identifiquem e se sintam abraçadas e representadas por aquela temática, por aquele produto”, afirma. E a proposta é que essa peça adquirida faça parte de diferentes momentos da vida de quem a comprou. Para isso, a MOOD se propõe a oferecer produtos confortáveis,
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com tecido de qualidade, bom caimento e boa modelagem, garantindo que tenham uma longa duração. Graduanda em Design de Moda pela Universidade Federal do Ceará, Isa foi além da vivência na prática e levou a moda autoral para sua pesquisa acadêmica. A partir de seus estudos, ela aponta como algumas características deste segmento o “feito a mão”, a confecção em pequena quantidade e a preocupação com a sustentabilidade. Outro fator é a questão da identidade no produto. Tanto por parte do criador, que tem mais liberdade para se expressar, quanto por parte do cliente, que, por motivos subjetivos, se torna fiel às marcas por se identificar com elas. “Tudo o que eu te falei sobre o que eu acredito que seja moda autoral, eu acredito porque vivo isso, a questão de o cliente ter uma identificação com você. Quando o produto carrega em si o ‘a mais’, o cliente entende isso, mesmo que ele não saiba o porquê”, pontua. Além das questões estéticas e de produção, outra preocupação da dupla é a valorização cultural da cidade no seu posicionamento frente ao mercado. “Fortaleza não é importante só porque a gente está nela”, comenta a designer,
que considera necessário incentivar a moda local e o pequeno empreendedor como forma de fazer a cidade se desenvolver economicamente. E para ela a cena autoral da cidade está crescendo com força por não se restringir a uma única atividade. “Acho que isso é um movimento completo, não só na moda, e acredito que é por isso que é forte, porque não são casos isolados”, comenta. Pensando nessa valorização, a MOOD faz parcerias com artistas locais, como aconteceu com Laura Moreira, proprietária da marca de bordado livre LAU, que desenvolveu bordados para peças da coleção “Urbana”. “A gente tem, na nossa proposta, uma questão de muita valorização cultural de Fortaleza. A gente cria pensando em Fortaleza, a gente produz pensando em Fortaleza e no Ceará como um todo”, explica. Apesar de qualquer obstáculo encontrado ao longo dessa trajetória, a designer afirma que ver a materialização de ideais nos quais se acredita compensam todo o investimento. “Não existe
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orgulho maior do que você produzir uma coisa em que você acredita 100%. É incrível, pra mim é muito satisfatório, e inclusive isso paga”, conclui. LADO A LADO
Para Beatriz e Juliana, um dos diferenciais das feira criativas é o cliente comprar diretamente de quem produz, sem intermediação de vendedores. (Fotos: Gabriela Custódio)
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Vários desses empreendimentos de moda no cenário da economia criativa surgiram da vontade de suas proprietárias de fazerem algo diferente do que o mercado oferece. Além da Fridíssima e da MOOD, também assim nasceu a Ensemble. A marca foi criada por Beatriz de Borba e Juliana Castro após as duas amigas serem demitidas da empresa na qual trabalhavam. Unindo a incerteza do que fazer no futuro ao desejo de terem um negócio próprio e à dificuldade de encontrarem produtos que considerassem a cara delas, resolveram se tornar empreendedoras. Depois do susto da demissão, as sócias se organizaram para pesquisar fornecedores, modelistas, cortadores e costureiras, com a intenção de conhecer o mercado local. Após esse período de preparação, começaram um e-commerce e ocuparam um espaço na loja colaborativa “Elabore Collab Store”. Nos dois anos em que trabalham juntas, também já conseguiram montar uma loja física, porém, com uma queda no movimento do shopping no qual estava localizada, resolveram fechá-la. Hoje, continuam na Elabore e investem em eventos, como as feiras criativas e o Bazar La Boutique, no qual diversas lojas vendem seus produtos com descontos. Para as designers, as feiras criativas são um bom lugar para conquistar novos clientes que já as frequentam à procura de um produto que não seja efêmero como as tendências da estação. Nelas, é o momento de o
público “conhecer a marca e se apaixonar”, começar a seguir nas redes sociais e se tornar fiel, como explica Bia. Diferente do público do Bazar La Boutique, que é atraído pelas promoções de grandes lojas, esses eventos reúnem pessoas que buscam peças quase exclusivas, com um estilo particular. “O cliente vai procurar a gente por ser moda autoral para não ir na festa e encontrar uma roupa igual a dele”, afirma Juliana. Após aplicarem modificações na dinâmica de criação e na forma como comunicam seu conceito, elas se mostram mais felizes com o resultado – e a Ensemble, em um momento de mais maturidade. “(Nosso produto) ficava a cara de Fortaleza, mas não era a proposta que a gente queria. Então, continuamos com os tecidos leves, só que com uma coisa mais lisa, mais moderna, uma mulher mais urbana, mais minimalista.”, explica Beatriz. Das dificuldades enfrentadas no início, as designers apontaram o custo de investimento e o acúmulo de funções para apenas duas sócias. “Somos só nós duas e mais ninguém. A gente faz tudo”, afirma Bia. “A gente cria, acompanha modelagem, leva para a costureira, traz da costureira, leva para o cortador. E a gente até cortava no começo…”, complementa Juliana. Uma vez no mercado, não adianta apenas se intitular autoral. O maior desafio para a Ensemble é se manter fiel a essa nomenclatura e trazer novidades para atender a demanda. Atualmente, além das roupas femininas, a marca também produz biquínis. Mas nem por isso deixam de lado aquelas peças coringas que as clientes adoram. “A gente vai inovar, mas tem que fazer o que a gente sabe que o público já gosta. Não podemos ter uma coleção sem saia godê, sem uma blusinha básica”, exemplifica Bia. UNIÃO ONLINE E OFFLINE
Em meio à pressão para produzir e expor seus produtos em tempo hábil, que não deixa de existir nesse mercado autoral, mesmo que sob uma lógica diferente do tradicional, não falta cooperação entre os criadores. Questionada acerca da relação entre as empreendedoras, Lígia Nântua afirma que há um grande apoio mútuo. Desde as pequenas necessidades – como o troco que faltou ou a maquineta que falhou – até os grandes “perrengues”, uma está sempre disposta a ajudar a outra. As feiras são os momentos em que todos ficam mais próximos, mas essa união reverbera após o evento. “A gente se apoia diariamente pelas redes sociais pra tornar mais forte esse movimento de valorização do produto autoral. Além dos laços criados no âmbito do trabalho, as amizades também surgem diante das afinidades e das experiências que passamos juntas”, finaliza.
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A ATMOSFERA AUTORAL DE CURITIBA
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m Curitiba, no Paraná, a cena de moda autoral também tem muito fôlego. Em um fim de semana de agosto 2015, as lojas Arad, Tristano e o ateliê Luis Lopes, localizados na avenida Vicente Machado, no centro da cidade, foram tomados por jovens empreendedores durante a 10ª edição da feira Vicentina. Na calçada, parklets estavam instalados e, onde antes um carro estaria estacionado, várias pessoas estavam sentadas, conversando e dando vida à rua quase deserta. Uma grata surpresa para quem chegou à cidade a tempo de presenciar a feira e de conhecer marcas locais de diferentes segmentos. Logo na entrada, acessórios com formatos inusitados chamavam atenção. Os brincos, os anéis e as pulseiras que estavam expostos, feitos a partir da tecnologia de impressão 3D, resultaram do Trabalho de Conclusão de Curso da designer de produto Evelyne Pretti. Hoje, dando continuidade à produção, ela encabeça a marca Noiga em sociedade com Renata Trevisan. Para começar a desenvolver acessórios em 3D, a criadora conta que teve dificuldade de achar materiais de estudo nacionais, precisando recorrer a fontes importadas. Além disso, um canal importante para sua formação foram as palestras da conferência TED. Aliando Design, Moda e Tecnologia, a Noiga uti-
liza um processo de produção que ainda é uma novidade para grande parte da população e que não é comum em produtos de uso diário. Por esse motivo, a designer explicita que uma das dificuldades para se inserir no mercado é o custo dessa tecnologia, além do trabalho de marketing para que o público possa reconhecer o valor da marca. Para isso, a dupla utiliza, desde o momento de pesquisa de aceitação do público, as mídias sociais como principal meio de divulgação. “A gente adicionava as pessoas e via o retorno que tinha. Eram muitas pessoas comentando ‘até que enfim alguma coisa diferente’. Foi aí que a gente percebeu que elas gostavam do nosso produto e resolvemos colocá-los de fato no mercado”, explica. O nome “Noiga” foi inspirado no título da revista concretista “Noigandres”, termo que apareceu em uma poesia do trovador Arnaut Daniel e por muito tempo, foi considerado uma “palavra-enigma”, pois ninguém sabia ao certo sua definição. Depois de muitos estudiosos, como Emil Levy, pesquisarem o termo, chegou-se à conclusão de que ele significa “antídoto do tédio”. Evelyne explica que esse termo chamou sua atenção por estar diretamente relacionado à proposta das sócias. “A gente falou ‘tudo a ver, né? Nós queremos fazer alguma coisa que tire as pessoas do tédio, que faça elas fugirem do tédio, do normal, do boring’!”, diz. A primeira coleção, chamada DNA, carrega a essência da Noiga. O slogan “é seu, é único” sugere a exclusividade dos acessórios e a expressão da personalidade do consumidor. As demais coleções também possuem slogans que apontam para esse campo subjetivo. O mercado autoral curitibano vem crescendo e cada vez mais empresas nascem e mais pessoas se interessam por consumir esses produtos. “É um burburinho de coisas novas, de produtos novos surgindo. É um mercado crescente, a gente percebe que isso tá bem forte”, afirma Evelyne. MOSAICO CULTURAL
Na Vicentina, também tem lugar para os pequenos. Letícia Delespinasse, há mais de um ano, resolveu criar a Ma
Evelyne Pretti e Renata Trevisan se conheceram em um intercâmbio de estudos na Itália e, em 2014, fundaram a Noiga. (Foto: Gabriela Custódio)
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peças é complicada em relação a marcas com produção menor, pois o número de produtos a serem confeccionados é grande para uma facção, mas não é o suficiente para uma fábrica de maior porte. PROTAGONISMO E REBELDIA
A maneira “tradicional” de retratar mulheres em propagandas de lingerie incomoda Maria Eduarda Malucelli e Aline Richter. Pensando nisso, elas deram início à Ovelha Negra Underwear, uma marca autodeclarada feminista. O projeto surgiu em 2013, fruto do Trabalho de Conclusão de Curso de Maria Eduarda, que se Letícia Delespinasse é formada em Design de Moda e fez cursos nas áreas de Consultoria de Imagem e Produção de Moda em Paris. (Foto: Gabriela Custódio) uniu a Aline, graduada em Publicidade e Propaganda e é pós-graduMa Vie e produzir peças para o segmento infantil com um anda em Marketing Digital. diferencial: o seu conceito propõe explorar criativamente o Entre bodies, croppeds, hot pants e conjuntos, as colemundo através dos olhos de uma criança. O nome escolhi- ções se dividem em três linhas: Diamante, Plissan e Vazio. As do casa com a ideia e tem um duplo significado para Letícia: peças da linha Diamante têm função modeladora e são feitas tanto porque a empresa carrega muito da sua personalidade com tecidos tecnológicos. Na Plissan, encontram-se os modequanto por considerar que é o amor quem rege a relação en- los mais sensuais, com rendas e cinta-ligas, mas sem perder o tre mães e filhos. “Ela é muito ‘eu’, tanto que o nome quer conforto. Já a Vazio traz o lado mais conceitual, com recortes dizer ‘minha minha vida’. A marca é muito a minha vida mes- estratégicos e transparências que dão ao corpo um visual oumo, além de ter o sentido de mãe e filho, essa união, um é sado e com personalidade marcante. vida pro outro”, explica. Antes, os produtos eram feitos exclusivamente sob De vestidinhos leves para o calor a casacos de tricô medida, mas agora podem ser encontrados para pronta enpara aquecer no inverno, passando por calças saruel e jardi- trega no showroom da Ovelha Negra. Mesmo com essa mudanneiras, a marca oferece diversos modelos para crianças de 3 ça, elas continuam tendo o cuidado de pensar em diferentes meses a 4 anos de idade. Com muita cor e modelagens confor- tipos de corpo. “A gente mostra que a mulher não é só um P, táveis, a designer afirma que todos os materiais são selecio- M, G. A mulher é do tamanho dela, e a gente faz do tamanho nados para garantir qualidade, praticidade e originalidade às que ela for”, aponta Aline. peças. Em seu processo criativo, a criadora franco-brasileira Através das campanhas e do posicionamento nas se inspira nas mais variadas culturas para produzir suas cole- mídias digitais, as sócias dão uma nova roupagem à relação ções. Da Austrália à Croácia, passando pelos Himalaias, as re- feminina com esse tipo de peça. “A gente quis se posicionar ferências mundiais aparecem entre as tramas que compõem de uma maneira diferente porque a ideia sempre foi fazer cada peça. lingerie de mulheres para mulheres, para elas comprarem Apesar de a marca ser relativamente nova, Letícia já para si mesmas e não mais para agradar os outros. Disso veio alcançou um nível diferenciado de produção. Além de parti- já todo um contexto de mais rebeldia, porque é uma posição cipar de feiras, em sua grande maioria autorais, em Curitiba, que tem influência em todas as áreas da vida dela, até na proSanta Catarina e São Paulo, no momento a Ma Ma Vie conta fissional”, explica Maria Eduarda. “(É a mulher como) procom uma loja física, um e-commerce e retagonista da vida dela”, complementa vendedoras em vários estados. Com todos Aline. esses pontos de venda para suprir, Letícia Além do contato mais próximo explica que a questão da contratação de com as clientes, o que faz com que se empresas que executam a confecção das forme uma “rede de amizades” em que o
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público interage diretamente com as criadoras, Aline afirma que uma das vantagens das redes sociais é o rápido feedback. O processo criativo das coleções não segue tendências de mercado e, por isso, esse relacionamento estreito é, inclusive, uma fonte de pesquisa. A partir de questionários, elas coletam informações úteis que auxiliam momentos criação. Com todas as especificidades que a moda íntima exige para modelagem, corte e costura, é necessário contar com profissionais qualificados para que o produto final seja satisfatório. E é exatamente esse um dos fatores que as empreendedoras apontam como maiores dificuldades do negócio, afinal, um bom trabalho com remuneração justa aos profissionais reflete no preço. “É difícil que Em parceria com a Velvet Underwear, voltada para o público masculino, a Ovelha Negra desfilou e você consiga ter um produto de muita qualiexpôs seus produtos no Living Lab do 1º ID Fashion, em outubro de 2015, em Curitiba. (Foto: Gabriela Custódio) dade e um preço muito baixo. Acho que essa é a maior dificuldade que a gente encontra: de adequar o preço do produto à expectativa das clientes. Por ATMOSFERA 935 Além da produção autoral, Evelyne, Renata, Maria ser uma marca pequena, a gente não consegue comprar o te- cido barato, a gente não consegue uma mão de obra barata Eduarda e Aline têm mais uma coisa em comum: elas se uniram às proprietárias das marcas Austral, Louis - coisas ilus(…)”, esclarece Maria Eduarda. Eventos autorais, como a Vicentina, ajudam a mo- tradas e Que comam doces! para formar o coletivo Atmosfera vimentar esse mercado, que está em expansão, e a promover 935. A proposta é que esses empreendimentos cresçam em marcas de pequeno porte. Os criadores ganham a possibili- conjunto. Com a intenção de promover um intercâmbio de dade de dar visibilidade à sua marca, e o público consegue encontrar produtos que prova- público a fim de impulsionar empresas pequenas, o grupo velmente não estariam sendo realiza o Atmosfera Criativa, um evento itinerante que reúvendidos em grandes centros ne criativos das áreas de Moda, Arte, Música e Gastronomia. “(O coletivo) busca fazer eventos que tragam só moda autocomerciais. Para Maria Eduarda, a po- ral aqui de Curitiba, gente mais preocupada com a produção, pulação local está se mostran- com a procedência do material também”, explica Maria Edudo “bem crítica” em relação a arda. Tanto em Fortaleza-CE quanto em Curitiba-PR, asesse tipo de consumo. Não só a qualidade do produto é ava- sim como em muitos outros estados do Brasil, percebe-se liada como também o posicio- essa inquietação de uma parcela mais jovem da população, namento das marcas. “Pra gen- que está, cada vez mais, buscando meios para se expressar, te tem sido de muito aprendizado, seja produzindo ou consumindo de uma forma diferenciada. Mais do que uma tendência de comportamento, é bastante feedback direto, o legal de estar presente aqui nessas feiras é urgente que haja reflexão acerca das condições de trabalho exatamente isso, você ter o contato e dos reais custos que estão por trás das peças à venda. E a direto com o cliente”, afirma. Letí- produção e o consumo conscientes se mostram como uma cia, por sua vez, avalia que ainda há saída para essa questão. Como pouco conhecimento em relação ao afirma Evelyne Pretti, “acho que produto local. “O curitibano tem que o nosso futuro é muito criativo, do conhecer mais o que é feito aqui, ainda trabalho local, de a gente voltar às valoriza mais o que vem de fora”, critica. nossas raízes”.
A princípio, a Ovelha Negra trabalha com as cores branco e preto. Aos poucos, são feitos testes para introdução de estampas nas coleções. (Foto: Divulgação | Pâmela Oms)
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Feminismo radical e banheiro para pessoas trans texto por Amara Moira
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s feministas radicais que querem banheiro feminino exclusivo para mulher cis partem do pressuposto de que a mulher trans é perfeitamente identificável na multidão, de que nossos genitais estão estampados na nossa cara para quem quiser ver. Nada mais enganoso. Ainda que eu não esteja no rol das trans que são lidas como se fossem cis, existem várias nesse grupo, várias mulheres trans que ninguém imaginaria que têm (ou um dia tiveram) pênis entre as pernas. Como essas feministas gostariam de ter certeza: olhômetro, revista vexatória, nudez, apresentação de documentos, auto-identificação? Auto-identificação descartada de cara (quem confiaria, né?), o olhômetro já se mostrou ineficiente, seja pras trans que passam perfeitamente por cis, seja pras cis que apresentam uma aparência mais máscula e/ou andrógina, por conta disso sofrendo transfobia mesmo sem serem trans. Além disso, nenhum documento de porte cotidiano apresenta a informação do sexo de nascimento, tornando a inferência do mesmo arbitrária, especialmente quando as feministas radicais estão interessadas em negar acesso a banheiros femininos mesmo às mulheres que tiveram seus documentos retificados na justiça. Revista vexatória e nudez também seriam insuficiente, dado o alto grau de sucesso das atuais cirurgias de redesignação sexual (a famosa cirurgia de mudança de sexo)… No final das contas, a conclusão é só uma: se a mulher tiver que provar que não é trans para usar aquele banheiro, isso valerá pras cis como pras trans e a investigação terá que ser minuciosa, transformando a experiência de ir ao banheiro público num inferno. Não basta parecer mulher cis, nem se auto-identificar, nem apresentar documentos, nem ficar nua: tudo isso pode ser contornável, qualquer discrepância do esperado se transformando num pesadelo pra pessoa
que quer somente o direito de fazer suas necessidades básicas, quem sabe lavar as mãos, usar o espelho. O que as feministas radicais não percebem é que um homem cis não precisa se vestir de mulher para ter acesso ao banheiro feminino e lá poder assediar e estuprar suas vítimas: basta que ele se declare homem trans, uma vez que a terapia hormonal à base de testosterona engrossa rápido a voz, dá barba, pêlos corporais fartos, às vezes até calvície, traços que garantiriam uma leitura social da pessoa como homem (homens trans são muito mais facilmente lidos como homens do que mulheres trans são lidas como mulheres). A lógica excludente das feministas radicais vale pra mim, que não sou lida como mulher cis (ou melhor, que tenho uma passabilidade trans mais pronunciada do que a cis), assim como para as tantas cis que cada vez mais reivindicam o direito de apresentar uma aparência mais masculina, andrógina. Em que banheiro colocariam Teresa Brant, Thammy Miranda? Antes de querer que provemos que não somos trans, as feministas radicais vão penar pra provar que são cis. E, olha, não é nada difícil que essa provação se torne inconcludente em boa parte dos casos. A verdade é uma só: pessoas trans existem e cada vez menos pedem desculpa ou licença para existir, para ocupar todos os espaços possíveis da sociedade. Uma vez que existimos e ocupamos, os espaços antes reservados apenas para pessoas cis terão que ser repensados para incluir também nossas demandas, nossas especificidades. Banheiro público terá que decidir se será “feminino” (e, com isso, estará aberto para mulheres, independente se cis ou trans) ou se será baseado em genital, não importando a aparência que a pessoa portadora desse genital tenha. E, acima de tudo, terá que decidir como vai fazer para provar que somente pessoas acordes a esses atributos acessarão esse espaço.
Glossário Feministas radicais: Grupo que foca sua atuação militante apenas nas pessoas designadas do sexo feminino ao nascer, ou seja, apenas nas pessoas que foram criadas para ser mulher. Cis e Trans: Cis é o exato oposto de trans. Pessoas cis foram criadas para ser homem (ou mulher) e existem para si e para a sociedade enquanto homem (ou mulher), enquanto pessoas trans foram criadas para ser homem (ou mulher) mas resistem a essa criação e reivindicam existir de acordo com as regras que vigoram para o gênero oposto. Homem trans: É toda pessoa que foi criada para ser mulher mas que reivindica para si uma existência de homem. A maioria faz uso de testosterona para masculinizar sua aparência e faz ou deseja fazer a mamoplastia masculinizadora (cirurgia que não só retira as mamas, como também masculiniza o peitoral).
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Negahamburguer Ilustração de Evelyn Queiróz
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Que todas as nossas histórias importem texto por Rhaiza Oliveira
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inha aproximação com o feminismo não se deu quando eu era criança. Não poderia dizer que desde pequena eu sabia o que era esse movimento e o tanto que ele significaria na minha vida hoje. Mas do machismo eu soube. Desde cedo eu o conheci. E foram muitos os encontros com o machismo. Encontrava na minha própria casa, na figura do meu pai. Violência doméstica, física e psicológica, continuam sendo parte da minha rotina. Na rua, os assédios constantes parecem ter um peso enorme. O que apenas me envergonhava quando era mais nova hoje me assusta e aterroriza. E se eu responder algo? Se eu mostrar meu dedo do meio? Como posso garantir que um homem aleatório na rua não vai me bater ou me estuprar? Hoje vejo que não sou a única que receia andar na rua. Não sou a única que receia voltar pra casa com medo do que o próprio pai fará ao ter tomado uma ou 25 doses de whisky. Não estamos sós. Creio que a aproximação de muitas mulheres no movimento feminista se fortalece no reconhecimento com tantas outras protagonistas de uma mesma história em cenários diferentes. Existir como mulher é, acima de tudo, resistir. E resistir sozinha é muito difícil. Unimos nossas histórias e nossas dores em comum para recebermos acolhimento, força. O feminismo, como movimento heterogêneo que é, permite que nossas impressões e vivências, apesar de terem um ponto em comum, não sejam exatamente as mesmas. O feminismo interseccional, vertente da qual me aproximei e venho militado durante algum tempo, busca explicitar como outras opressões interagem com a opressão de gênero. Uma mulher negra como eu, ou uma mulher pobre, uma mulher lésbica, trans ou neuroatípica, não vivencia o machismo da mesma maneira que uma mulher branca, de classe média, heterosexual. A meu ver, não podemos estar militando no femi-
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nismo sem enxergar que não podemos falar somente em igualdade de gêneros e por vezes ignorar que essa igualdade perpassa por muitas instâncias. E que não adianta lutar por igualdade só para um grupo de mulheres – brancas, cis, hétero e de classe média. Não há somente uma demanda a se atender. É urgente que o feminismo não ignore a realidade de outras mulheres, que lute não só contra a opressão de gênero. É muito importante falar de misoginia, violência que atinge e mata mulheres de todas as classes, mas é imprescindível falar da transfobia que também segrega e mata diariamente as pessoas trans, a violência contra homossexuais, a violência que extermina as populações negra e indígena. É preciso lutar contra as opressões sociais que excluem pessoas com deficiência, pessoas neuroatípicas, pessoas gordas, entre outras milhares. Estar inserida em um coletivo feminista me fez perceber como a interseccionalidade não é um conceito abstrato. Sou uma mulher negra que convive com a depressão há alguns anos, além de não ter a mesma classe social que muitas das minhas companheiras. Vejo a união, a amizade e o apoio muito mais forte entre as mulheres mais privilegiadas do grupo no qual milito. Em muitas vezes não me sinto à vontade, não me sinto acolhida nem pertencente. É possível perceber, como mulher negra e neuroatípica, como é difícil praticar a interseccionalidade em um grupo heterogêneo. Mas afirmo que não vai sempre ser assim. Tenho que estar nos espaços de militância para ocupar um lugar que é meu por direito também. Não desisto, pois mesmo passando por dificuldades, reconhecer privilégios e lutar contra opressões é tarefa importante no feminismo, e, por consequência, é também minha tarefa. Por um feminismo para negras, lésbicas, trans, gordas, mulheres do campo, periféricas e neuroatípicas. Por um feminismo para todxs!
Mulheres cidadãs Com atuação de Carey Mulligan, Helena Bonham Carter e Meryl Streep, "As Sufragistas", filme dirigido por Sarah Gavron, relata a história da luta feminista pelo direito ao voto na Inglaterra do início do século XX. por Gabriela Custódio
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resenha SOBRE ELAS O filme “As Sufragistas” (Suffragette, no título original), dirigido pela britânica Sarah Gavron (Village at the End of the World, de 2012, e “Um Lugar Chamado Brick Lane”, de 2007) e escrito pela roteirista Abi Morgan (“A dama de ferro”, de 2011), estreou nos cinemas brasileiros na véspera do último Natal. O elenco traz nomes de peso, como Carey Mulligan, Helena Bonham Carter e Meryl Streep para relatar a luta feminista pelo direito tanto ao voto quanto a outras questões, como a guarda dos filhos e salários mais justos. O enredo é baseado na iniciativa de ativistas que fizeram parte da organização União Política e Social das Mulheres (WSPU), que optou por uma estratégia mais combativa, uma vez que com a luta pacífica as reivindicações estavam sendo ignoradas. Ao longo da trama, é mostrada a violenta repressão sofrida pelas militantes – tanto em protestos quanto no sistema carcerário – e as condições de trabalho nas fábricas – onde começavam a trabalhar desde meninas, recebiam baixos salários e sofriam assédio. Emmeline Pankhurst, na foto acima, fale Para isso, o filme aborda a história de Maud ceu em 1928, semanas depois da aprovação da lei que concedia às mulheres o diWatts (Carey Mulligan), mãe, pobre e trareito ao voto. (Foto: Topical Press /Agency Getty Images.Fonte: Jornal The Guardian) balhadora de uma lavanderia, que aderiu à causa feminista e desde então passa a enfrentar reações do marido e da polícia. No início, a personagem foi convidada a se juntar ao movimento por Vilet Miller (Anne-Marie Duff), mas, relutante, resolveu manter distância. Com o passar do tempo, ao ter contato com as reivindicações e ao repensar criticamente acontecimentos anteriores da sua vida, ela se envolve com as líderes do movimento e se torna aliada. Maud é uma personagem fictícia, A equipe por trás das câmeras também foi composta por mulheres, contando mas representa a atuação das muitas com Faye Ward e Alison Owen como produtoras. (Foto: divulgação) operárias que viveram a História. O lons cores verde, branco e roxo aparecem em diversos ob- ga traz também personalidades verídicas, como Emmeline jetos: na bandeira empunhada, nos broches ostentados, Pankhurst (Meryl Streep) e Emily Davison (Natalie Press). Conhecida por realizar greves de fome, Emmeline nas flores que adornam os chapéus. Poderia ser apenas mais um detalhe, mas tem um significado relacionado a uma das fundou, em 1903, a WSPU junto com suas filhas, Christabel, causas pelas quais inúmeras mulheres foram às ruas, quebra- Sylvia e Adela Pankhurst. A organização fez frente à militânram vitrines e explodiram caixas de correio na Inglaterra do cia pacífica da União Nacional das Sociedades de Sufrágio das início do século XX: o direito ao voto. As cores eram uma for- Mulheres (NUWSS) e teve como lema a máxima “ações, não ma de as aliadas se identificarem. Em inglês, são green, white palavras”, bastante presente na obra cinematográfica. Intere violet. As iniciais, GWV, referem-se a Give women votes. Dê pretando a líder que estava foragida, Meryl Streep faz uma voto para as mulheres. Elas não queriam infringir as leis, elas breve aparição no filme, mas é constantemente referenciada pelas outras ativistas, com admiração e obediência, e pela poqueriam fazer as leis. Ao longo do ano de 2015, muito se falou sobre femi- lícia, que a procurava para prendê-la. Emily Wilding Davison foi uma das militantes mais nismo, on ou off-line. De relatos individuais a hashtags que fi- caram nos trend topics do Twitter, das ruas ao Exame Nacional ativas da WSPU. Depois de ser presa nove vezes, de também do Ensino Médio (ENEM), o tema foi amplamente discutido fazer greves de fome e de passar por alimentação forçada, e eis que, nos últimos dias do ano, chega às telas de cinema. protagonizou um trágico acontecimento, mas importante
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resenha SOBRE ELAS para o curso das manifestações. Em uma tentativa de chamar a atenção para a causa sufragista, Emily invadiu uma pista de corridas e foi atropelada pelo cavalo do Rei George V. Quatro dias depois, ela faleceu e seu funeral se tornou uma grande passeata, contando com a presença de milhares de mulheres e com a cobertura da imprensa. Cenas reais do seu velório ilustram os minutos finais do filme. O MESMO OBJETIVO, PAÍSES DIFERENTES
Gavron nos apresenta também uma lista com nome de Países e as respectivas datas em que o voto feminino foi alcançado. Na relação, constam os Estados Unidos, cuja luta pelo sufrágio feminino também foi tema de filme. Nesse caso, a obra é “Anjos Rebeldes” (Iron Jawed Angels, no original), de 2004, dirigido pela alemã Katja Von Garnier, que também traz perCarey Mulligan foi indicada ao prêmio de melhor atriz no British Independent Film Award e no sonagens verídicos. Satellite Award pelo seu papel em Suffragette. (Foto: Divulgação) Nele, a personagem central é Alice Paul (Hilary Swank), que voltara da Inglaterra, onde estudou e teve contato com o movimento sufragista e ativa e não está entre as personagens. Além disso, também com Emmeline Pankhurst. Nos Estados Unidos, Alice se en- não é colocado em pauta a questão da mulher negra. Nessa volve com a causa local, rompe com a associação da qual fazia época, o feminismo era encabeçado por brancas e de classes parte e funda o “Partido Nacional das Mulheres”, que tinha sociais elevadas, levando em consideração basicamente as como objetivo a aprovação de emenda constitucional que necessidades desse grupo. permitisse que todos os cidadãos, sem distinção de gênero, Mas, em tempos nos quais se clama por mais repudessem votar. No momento, as mulheres tinham esse di- presentatividade – na mídia e em todos os outros setores da reito apenas em alguns estados. sociedade –, como ficar indiferente aos outros lados da His Tanto em Suffragettes quanto em Iron Jawed Angels, tória? E como aceitar que não exista negros nem entre as fivemos a reação popular às ações das sufragistas. Enquanto o gurantes? Esse, inclusive, é um ponto que distingue os dois primeiro retrata essa rejeição a partir de críticas que os vizi- filmes, uma vez que, em Anjos Rebeldes, a questão do racismo nhos faziam diretamente a Maud Watts, Katja Von Greiner é discutida. mostrou a população revoltada em As Sufragistas também causou polêmica quando as meio aos atos das militantes, atrizes principais apareceram em fotografias para a revista numa tentativa de atrapalhar o Time Out com uma camiseta com a seguinte frase estampada: movimento. “prefiro ser uma rebelde a ser escrava”. Trecho de um discurso proferido por Emmeline Pankhurst, a citação se referia POLÊMICAS FORA DAS TELAS à “escravidão” das mulheres brancas perante seus maridos Não é por falar de femi- e um sistema que lhes negava direitos, o que mostra que as nismo que Suffragette negras, verdadeiras escravas no contexto dessa fala, eram exesteve imune a vários cluídas do movimento feminista. e certeiros questio- Apesar dessa falta de representatividade observada namentos feministas. por parte do público, a obra passa a mensagem que pretenDurante a divulgação de, de acordo com o recorte escolhido por suas produtoras. do longa, muito se de- Conseguimos acompanhar, através da boa atuação de Mullibateu acerca da falta de gan como Maud Watts, a resistência, ainda atual, que muirepresentatividade das tas sentem antes de se declararem feministas. Mas também minorias étnicas. A princesa podemos ver nela a coragem que só a crença em um futuro indiana Sophia Duleep Singh, mais justo nos dá para seguirmos em frente em prol do que por exemplo, foi uma militante acreditamos. O evento de estreia de “As Sufragistas”, em Londes, foi marcado por um protesto contra a violência doméstica. As atrizes principais se posicionaram a favor do ato no tapete vermelho. (Foto: divulgação)
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