Ano 01 | Edição 02 Abril de 2017
MODA AGÊNERO
A diversidade de gêneros chega às iniciativas de moda tradição e inovação
A história dos bilros e a renda como fonte econômica
entrevista
Patricia Dawson, do Coletivo As Travestidas
opinião
Marianna Calixto Nerice Carioca Rosiane Melo Silvelena Gomes
2ยบ CAPA
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Revista LUME
nosso EDITORIAL
Idealização e Projeto Gráfico
Gabriela Custódio Diagramação
Elogio da desconstrução
Miguel Cela
P
reto e branco; logos e pathos; cultura e natureza; bem e mal; homem e mulher. O pensamento ocidental fundou-se nos binarismos, nas oposições desde sua mais tenra reflexão. Guerras e revoluções aconteceram, inovações e celebrações se ergueram nesse trânsito entre dois extremos. Mas a realidade cotidiana se complexificou a tal ponto que os pares de opostos não são suficientes para dar conta da política, do corpo e da alma na contemporaneidade. O filósofo Jacques Derrida com sua visão pós-estruturalista já nos convidava a rever nossos conceitos. Suas ideias de desconstrução e différance não se restringem ao campo da linguagem, dialogam com correntes antropológicas, sociológicas e inspiraram também o jornalismo aqui apresentado. Em um esforço para sair da caixa preta do lugar comum, a turma da disciplina Jornalismo Especializado: Jornalismo de Moda, ministrada em 2016.1, no curso de Jornalismo, na Universidade Federal do Ceará, aceitou o desafio de pensar pautas e compor reportagens que primam pela desconstrução dos padrões estabelecidos pela moda enquanto área de interesse jornalístico. É esse o berço de nascimento da Revista Lume, um projeto jornalístico idealizado pela então estudante concludente de Design de Moda, Gabriela Custódio, no ano de 2015. Com a proposta de desconstruir o estereótipo feminino “bela, recatada e do lar”, Gabriela elaborou a primeira edição do projeto com um viés feminista. Agora, a segunda edição, realizada por estudantes de Design de Moda e Jornalismo, amplia o escopo da desconstrução e transita pelo campo minado da moda agênero; encontra corpos reais e marcas autorais que não se deixam seduzir pelos padrões e vai em busca do luxo artesanal, visto e realizado sob a ótica das artesãs e de designers que valorizam a cultura local. A revista, para ser de moda, não pode se furtar de falar de tendências e do consumo, mas aqui eles são conscientes. Também tivemos o cuidado de escolher personagens diferentes, ou melhor, personas do mundo real. A negra, a trans, a gorda, a magra demais, a jovem, a velha. Diferentes tipos sociais expostos sem eufemismos, pois nosso ideal de beleza não é industrial. E, por isso, respeitosamente, convidamos, você, leitor, a acompanhar o trabalho honesto de jovens estudantes que aceitaram o desafio de repensar o jornalismo de moda. Portanto, dispa-se dos “pré conceitos” e boa leitura! Naiana Rodrigues Professora e orientadora do projeto Lume
◄ Ianca Agostinho, estudante de Geografia da UFC, que passeia entre signos “masculinos” e “femininos”. (Foto: Nah Jereissati)
Orientação
Naiana Rodrigues Reportagem
Aline Gomes Beatriz Carvalho Beatriz Nunes Bianca Amarante Brenda Vinne Celina Carvalho Cláudio Lucas Abreu Cristal Pires Danilo Oliveira David Marques Dilli Dias Faruk Cardoso Gabriela Custódio Gêrda Lívia Isaac de Oliveira Isabela Santana Iury Figueiredo Jess Alves Joeliadnny Lima João Gabriel Tréz Karoline Gomes Larissa Wenya Lucas D’paula Lérida Freire Mariah Costa Marília Torres Maryana Lopes Matheus Facundo Miguel Cela Nah Jereissati Raiane Ribeiro Sabrina Teixeira Sâmia Martins Victoria Pontes Wladiane Costa Yasmin Araújo
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NOSSO sumário
Quando a personalidade conta mais que a forma
ENTREVISTA COM ela
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Resistência ao cis-tema 10
Empoderamento no subúrbio 18
“É para menino ou para menina?” 23
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NOSSO sumário
Bilros como tradição, renda como inovação 32
Silvelena Gomes 38 Rosiane Melo 39 OPINIÃO delas
Marianna Calixto 40 Nerice Carioca 41
ENSAIO COM elas
Do que a moda não diz 46
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QUANDO A PERSONALIDADE CONTA MAIS QUE A FORMA Com uma ideia de produção diferenciada, as marcas autorais vêm com a proposta de fugir dos padrões vigentes no mercado tradicional texto e fotos por Marília Torres, Matheus Facundo e Miguel Cela
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(foto: Ana Lua)
REPORTAGEM COM elas
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utenticidade e singularidade são palavras-chave quando se fala em moda autoral. Com o objetivo de esquivar-se da padronização da moda presente nas grandes indústrias tradicionais, cresce cada vez mais o número de marcas que visam uma produção independente e diferenciada. Esse crescimento se dá por uma ânsia do público em não consumir apenas aquilo que é ditado pelas passarelas das semanas de moda, mas de incluir no guarda-roupa peças que expressem suas personalidades. Num contexto em que os discursos de empoderamento avançam cada vez mais, os consumidores buscam por um consumo consciente e que proporcione algum tipo de significado identitário, fugindo da massificação das fast fashions. Daí, surgem marcas, muitas vezes oriundas de pequenos empreendimentos, que tentam fugir desses padrões e levar moda àqueles indivíduos pouco representados no mercado tradicional, como pessoas gordas que possuem uma demanda de consumo que abraça tamanhos maiores do que o 46. Estariam essas marcas conseguindo quebrar esses padrões e atingir as demandas desse público? É difícill nadar contra a corrente da moda que estamos inseridos. Com a latente veia comercial da moda, chegar à superfície pode ser um pouco mais difícil.
◄ Brenda Nickele (lado) e Paula Alencar (acima) consomem moda plus size e reconhecem que o mercado autoral não consegue satisfazer todos os corpos de mulheres de manequim maior que 54.
Quem consome
“É um pouco difícil consumir (as marcas autorais) porque a maioria não é plus size e as que são, são um pouco mais caras, então eu acabo consumindo mais fast fashion”, conta Paula Alencar, 21 anos, estudante universitária. A cearense veste tamanho 48 e afirma conhecer mais do que consumir as marcas de moda autoral. Paula é mais uma entre diversas mulheres que se deparam com os obstáculos de buscar peças que caibam em seu corpo – problema que se estende além das fast fashions, atingindo também as produções autorais. Dentre estes obstáculos, a gaúcha Brenda Nickele, de 19 anos, lamenta a falta de opções no mercado para mulheres que vistam além do ditado plus size. Para ela, que veste manequim entre 48 e 50, as marcas autorais atendem a este público somente até certo ponto, uma vez que mulheres que vestem tamanhos maiores do que o 54, por exemplo, não conseguem consumir peças classificadas como plus size. “Se eu já encontro dificuldades, imagina essas pessoas?”, argumenta. Outro problema encontrado pelas consumidoras está na falta de ousadia das marcas em procurar produzir peças mais criativas e autênticas para numerações maiores. “É bem difícil encontrar coisas estilosas, porque quando a gente acha são sempre roupas sem graça, que dão uma aparência
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REPORTAGEM COM elas
▲ As sócias da marca Vovó Quem Fez, Amanda Chrisóstomo, Isadora Frutuoso e Karol Alves.
▲ Fomos recebidos no ateliê da marca Vovó Quem Fez, onde pudemos ver como funciona a produção e a criação das peças da marca.
envelhecida”, conta Brenda. Já para Paula, isso se dá por um preconceito que está imposto mesmo na cabeça dos próprios consumidores: “É muito difundido que gorda não pode usar isso, que gorda não pode usar aquilo… Então as marcas vão aos poucos nesse avanço de oferecer algo que o mercado maior não tem, que é realmente mais restrito. Há o medo de oferecer e não ter quem compre”. Apesar das inúmeras dificuldades, as meninas se mantêm positivas e confiantes. Seja em qualquer uma das pontas do país, no Ceará ou no Rio Grande do Sul, há marcas que aos poucos começam a ofertar peças que sirvam a essa público de manequim maior ˗ ainda que não sejam consideradas ideais por quem consome. Para elas, o modelo ideal de marca plus size seria aquele que mostrasse uma representatividade maior dos diversos tipos de corpos gordos que possam existir, não somente mulheres cheias de curvas que caibam num manequim 46. O ideal seria representar todos os números, tamanhos e formatos. “Somos pessoas que querem se vestir assim, como todo mundo”, conclui Brenda. Parafraseando o modelo plus size Zach Miko, “haverá um dia em que a personalidade contará mais que a forma”. Quem faz
Em um pequeno e simples ateliê, aqueles de casa de vó mesmo, surgiam questionamentos ao padrão da moda: “porque eu tenho que me encaixar em um tamanho ideal só para me sentir bem?”. Assim começou a marca autoral Vovó Quem Fez. Amanda é formada em Design de Moda pela Universidade Federal do Ceará e desde o começo da graduação ansiava em ter o próprio negócio. Isso se concretizou quando ela se uniu à sua “vovó”, Mirtes Malveira, para produzir peças ín-
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► (Na outra página) O espaço da marca Love My Size, onde Luana Rocha recebe suas clientes e expõe as peças.
timas de tamanhos que se encaixavam em todos os tipos de corpo. Da mulher magra à mulher gorda, da que possui seios pequenos à que possui seios grandes. Com o crescimento da marca vieram as parcerias. Amanda se juntou às colegas de Universidade, Karol Alves e Isadora Frutuoso, que já eram proprietárias de uma marca de acessórios. Os primeiros voos alçados foram significativos para as meninas e, em 2014, a Vovó Quem Fez participou do seu primeiro evento de grande porte: o Babado Coletivo, uma feira colaborativa que acontece em Fortaleza e reúne produções autorais de artistas, designers e estilistas. A participação das sócias em eventos como esse lhes deu visibilidade no mercado. Mas conquistar clientes que fugissem dos padrões ainda era uma dificuldade. As sócias contam que é realizador receber o feedback de suas consumidoras. Amanda lembra de algumas que falavam sempre olhar peças, mas nunca ter experimentado por medo de não servir. A partir disso, veio a ideia de uma campanha realizada com clientes. Gordas, com seios grandes e que saiam até mesmo dos padrões das fotos tiradas por elas. “A gente quis mostrar que dá certo”, conta Isadora e Amanda completa: “quando a gente mostrou as fotos das pessoas de fato usando, as clientes falaram ‘eu posso comprar’”. Karol é a que mais se aproxima dessas clientes que têm receio de provar os tops que elas produzem, já que leva consigo o discurso não só de sócia da marca, mas a subjetividade de consumidora e de mulher que não encontra facilmente roupas que lhe caibam. Para Karol, “as mulheres plus size querem se sentir normais. Meu corpo é tão lindo quanto o dela (aponta para Isadora). Eu penso a moda plus size não como lojas especializadas nisso, mas sim lojas convencionais que incluam esse tamanho”, e continua falando que o efeito não seria o mesmo se elas tivessem optado por atender apenas esse mercado.
REPORTAGEM COM elas
Ame seu tamanho
Luana Rocha já possuía contato com a moda plus size antes mesmo de criar a marca própria, a Love My Size. Ela trabalha desde 2010 como modelo, e teve sua primeira passarela no 1º Plus Size Fashion de Fortaleza. “Antes não tinham esses eventos aqui, o mercado era muito fraco, o que tinha era chamado de ‘jovens senhoras’ ou ‘tamanhos especiais’, só hoje que o plus size vem se difundindo”, relata. A ideia da Love My Size surgiu por meio de uma tia de Luana, que já possuía uma marca e convidou a sobrinha para confeccionar camisetas que atendessem a um público de tamanhos maiores. O nome inicial da marca foi Love Shirts. “No começo eu fiz umas 30 camisetas, que logo esgotaram”, conta. Com o tempo, a marca foi crescendo. Além de participar de feiras coletivas na cidade, também estava em lojas colaborativas de moda autoral cearense. Consequentemente, veio também a necessidade de expandir o negócio. “Quando eu ia tirar as fotos, sentia a necessidade de compor os looks com alguma saia, algum short, aí eu comecei a fabricar e começaram a pedir. Teve uma aceitação muito boa. Hoje em dia, o que eu menos faço é t-shirt”, relata. Foi assim que a marca passou de Love Shirts para Love My Size. Segundo Luana, a intenção ao crescer é buscar atender um público de tamanhos ainda maiores. Atualmente, são confeccionadas peças até o 52, mas existem perspectivas de até o final do ano produzir peças que cheguem ao tamanho 56. “Eu fico arrasada quando alguma cliente vem aqui e não encontra algo do seu tamanho”, lamenta a dona da marca. Para Luana, o fato de ser gorda e consumidora de marcas plus size foi algo que influenciou no processo de criação. “Eu comecei com uma visão de ‘eu vou fazer o que eu gosto’. Então eu quem compro o tecido, eu quem provo as roupas. Sempre procuro ver também o que fica bom em mim e depois passo para o público, e acho que isso ajuda na aceitação da marca”, conclui. Ela relata ainda que criar o empreendimento a ajudou em um processo de aceitação pessoal; a fez sentir-se mais à vontade usando roupas que mostrem mais o corpo. “Antes eu não mostrava os braços, tinha sempre que colocar algum casaco. Hoje em dia não quero nem ver casacos, porque já encontro peças que me valorizam”, confessa.
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RESISTÊNCIA AO CIS-TEMA por David Marques e Lérida Freire fotos Nah Jereissati
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ENTREVISTA COM ela
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ugindo dos padrões de cor e medida impostos aos corpos da modernidade e sendo transsexual, Patricia Dawson encontrou no teatro o verdadeiro dom e o abrigo que por vezes faltou nos amigos e familiares. Em entrevista à revista Lume, a atriz conta as dificuldades que vivenciou desde a adolescência, o encontro com o teatro e a relação com o próprio corpo e a moda. A escola é uma das instituições mais importantes na formação do indivíduo e da identidade, e também é um espaço onde as opressões são fortes e muito presentes. Como foi sua vivência durante esse momento inicial de inserção em sociedade? PATRICIA Sempre vi a escola como o lugar onde a gente aprenderia a ser mais amigo um do outro, mais acolhedor, mas eu sempre vivi uma questão meio complicada, meio clichê – acho que todas passam por isso. Na minha fase de escola primária eu ainda não era transexual, era aquele garotinho gayzinho, mas eu já conseguia identificar que o preconceito era muito grande. Sem contar que, no Ensino Médio, isso fica muito evidente. Você acaba sendo muito excluída porque os grupos são muito bem formados, as tribos são muito bem definidas: LUME
as meninas são com as meninas, os meninos são com os meninos, os forrozeiros são com os forrozeiros, e acaba que as bichas são uma minoria. Na minha sala de Ensino Médio, por exemplo, só tinha uma bicha, e eu praticamente só tinha amizade com ela. Mas eu sempre procurei ser uma figura muito presente na escola, sempre fui presidente de grêmio, sempre organizava as questões culturais da escola, eu sempre queria estar inserida, nunca quis deixar que aquele preconceito me deixasse à margem, me sentir a sofridinha, a coitadinha. Eu conseguia ter o respeito de alguns professores, de alguns coleguinhas, por conta da seriedade com que eu fazia as coisas. Quando você fala em preconceito nessa época, eram brincadeiras, chacotas? PATRICIA É, sempre era brincadeira, na questão do bullying. Expor ao ridículo, sabe? Eu me lembro muito bem de algumas coisas: ‘esse viado preto’, ‘esse viado gordo’, entendeu? Então por mais que isso ofenda, que isso deixe muito mal, eu pensava: “não, eu não vou me fazer de sofrida, eu não vou me fazer de coitadinha, vou continuar fazendo o que eu gosto dentro da escola”. Por mais que existisse a revolta, eu sempre fui muito LUME
◄ Patrícia Dawson, mulher trans, integrante do coletivo artístico As Travestidas.
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ENTREVISTA COM ela
tranquila, sempre procurei resolver as coisas da melhor forma possível, encontrando um caminho de paz e serenidade. LUME Esse tempo na escola gerou algum trauma?
(pausa) O trauma que me gerou foi, de certa forma, não confiar muito nas pessoas, entendeu? Eu sempre acreditava desacreditando, eu sempre achava que a qualquer momento eu iria ser pega de surpresa. Na minha época de adolescente, eu me lembro que era muito comum ter festinhas na escola, na igreja, no bairro, e sempre que eu era convidada, eu ficava com um pé atrás, porque nessas festinhas eu nunca poderia ser o que eu era realmente, então eu tinha que ficar de lado. Nessas festas as meninas pegavam todos os meninos, os meninos pegavam todas as meninas, e eu não pegava ninguém, né? Eu era a estranha na historinha toda. Foi isso que me gerou essa questão da desconfiança, tanto que quando eu confio em alguém, confio com um pé atrás. Mas (sobre) essa questão de traumas de momentos de chacota, não, eu sou bem tranquila porque sempre encarei muito de frente, sempre fui fundo nas coisas, procurando fazer disso a pedrinha para construir meu castelo. PATRICIA
LUME E os laços de amizade desse período?
Eu só tenho uma amiga do tempo de colégio, por incrível que pareça. Ela foi a minha única e verdadeira amiga. Me lembro bem que ela frequentava a minha casa e meu pai PATRICIA
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sempre acreditava que ela era a minha namorada, inclusive apresentava aos amigos dele como a minha namorada, e ela ria muito. Ela era minha confidente – até hoje continua, são mais de 20 anos de amizade. Ela foi a única amiga que me restou, e depois que esse boom aconteceu na minha vida, que eu me tornei Patricia, percebi que muitos amigos da escola se achegavam, mas não por querer ser amigo, mas pela curiosidade de saber como isso aconteceu, porque que eu sou dessa forma. E aí, quando eu volto atrás daquela questão de confiar ou desconfiar das pessoas, eu simplesmente ignorei isso. “Não, se vocês não foram presentes na minha vida enquanto Edson, não há a necessidade de vocês serem presentes na vida da Patricia”. Essa amiga foi uma forma de porto seguro, de apoio, nos momentos de preconceito? PATRICIA Ela foi. Eu me lembro muito bem que os meninos me chamavam de alguns apelidos – ‘bolo fofo’, ‘bolo queimado’ – e ela sempre me protegia. Ai, gente, se tiver algum momento que eu me emocione, não liguem! Eu nunca neguei a história do Edson, mas tem coisas que quando voltam à tona, elas com certeza me emocionam... Ela era muito protetora, sempre se encorajava e dizia pros meninos assim: ‘Olha, não fale isso com ele, o nome dele é Edson, o nome dele não é bolo fofo, e vocês não têm que chamar ele dessa forma’. Então ela era sim a minha força, o meu porto seguro, e era uma troca. No Ensino Médio foi que a gente se afastou, pois ela engravidou, LUME
ENTREVISTA COM ela
se casou, e não concluiu a escola, mas a gente sempre tava se falando, eu sempre ia para a casa dela. E quanto aos laços criados, ou não, com as pessoas, crianças da sua rua, do seu bairro? PATRICIA Eu costumo dizer que tive uma infância muito boa, muito bonitinha. Na rua eu brincava com meninos, com meninas, mas depois de um tempo eu me afastei das crianças da rua pra brincar com as crianças de um prédio em frente à minha casa. Cresci e me tornei adolescente junto com essas crianças do prédio. Eu me lembro de uma menina do quarto andar que tinha dois irmãos. Tinha um corredorzinho que ligava os apartamentos uns aos outros e ela botava as bonecas pra brincar e sempre quando eu ia brincar, eu começava sendo o Ken e terminava sendo a Barbie. Eu dizia: “Não, agora eu quero ser a Barbie”, daí o irmão dela também brincava de ser o Ken, ser a Barbie, e o outro irmão dela ficava na janelinha dizendo: ‘Tá brincando de boneca, tô vendo, viu!’. Na hora que ele dizia eu largava a boneca, mas depois continuava a brincar. Tive uma infância muito boa, e se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria pra minha infância. Por mais que eu tivesse a ausência de pai, a presença da minha mãe era muito forte, muito protetora. Teve essa coisa do meu pai, mas chegou uma fase que por ele se tornar tão distante, acabou de fato ficando distante pra mim.
mais forte. Pra que eu talvez sirva de exemplo para alguém, quando eu ver alguma bichinha nova que está triste, deprimida, eu poder dizer: “Bicha, passa. Tenha certeza que passa.”
LUME
LUME Como você acha que esse tempo de infância e escola te in-
fluenciou? Os traumas te fizeram empoderada, forte, ou acuada? PATRICIA Foi um misto. Me fez ser forte, mas também me fez fraca, me fez desacreditar de muita coisa, me fez perceber que as pessoas se afastavam. Eu tentava ser forte por acreditar que o sofrimento não seria pra sempre. Até hoje eu tenho essa ideia. Essas coisas que aconteceram na minha infância e juventude serviram sinceramente pra que eu me tornasse
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momentos do passado te ajudaram a ter uma posição mais empoderada do seu corpo? De não se encaixar em um padrão e não ter medo de se mostrar. PATRICIA Eu nunca fui padrão, nunca. Sempre fui a criança gordinha e negrinha. Mas eu aproveitava a questão da minha diferença. “Eu sou a diferente”. Eram tudo crianças brancas e eu a única preta, a única gordinha. É engraçado falar isso, mas sempre tinha um ou outro que dizia: ‘Ah, como é fofinho, como é bonitinho, engraçadinho, como o rostinho dele é lindo’. Essas coisas me faziam sentir como diferente, mas nunca como a horrorosa. Em alguns momentos existia isso de eu ser discriminada, de passarem na minha cara que eu não estava no padrão, que nunca estaria, só que nunca dei muita importância, tanto é que hoje eu continuo gorda e assumindo a minha cor, que nunca neguei. LUME Dentro da Igreja, você se questionava muito quanto a si
mesma, se você estava certa ou errada? PATRICIA Eu já era vista como a gayzinha. Minha irmã foi quem me levou para a igreja, ela era extremamente católica. Tem um amigo da minha irmã que hoje é muito meu amigo, e ele me disse assim: ‘A gente sempre soube que em algum momento o Edson seria A fulana’, porque ele dizia que eu era uma criança bem afetadinha. Na realidade muita criança gay na Igreja não é vista como gay, mas como sensível, uma criança carinhosa. Na fase dos 10 até os 14 anos, mais ou menos, que eu era do grupo de coroinhas da Igreja, não tinha essa discriminação, até porque, por mais que eu fosse muito gayzinha, as pessoas interpretavam como uma delicadeza, eu sempre me lembro de escutar essa palavra. Mas quando você
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entra na adolescência as coisas mudam. Fui para um grupo de jovens franciscanos, e comecei a me sentir uma carta fora do baralho. Por mais que tivesse um ou outro mais descolado, mais bacana, tinha um povo mais antigo, que te condena. Rapidamente tirei o meu da reta e fui procurar outras coisas. Hoje em dia, quando vou à missa, eu me sinto desconfortável, porque percebo olhares, comentários do tipo: ‘agora ela é mulher’. Teve até um episódio em que um cara veio me chamar pelo meu nome masculino, aí eu disse: “Você está vendo ele aqui? Está me vendo vestida como homem?”, daí ele: ‘Não, mas é porque eu não sei seu nome de mulher’. Eu disse: “Você não precisava me chamar de homem, poderia ter dito ‘moça’, existem várias formas”. Fui perdendo o interesse pela Igreja. Como se deu esse processo de reconhecimento como mulher trans? PATRICIA Na infância talvez seja tudo muito involuntário, você faz as coisas e não sabe nem o por quê. Eu era levada por certas coisas, talvez por instinto, mas é tudo muito confuso na cabeça de uma criança. Você vai crescendo com aquilo, criando trejeitos – e eu acho que a infância é o ponta pé inicial pra LUME
“Eu passei por tudo isso: por uma infância maravilhosa, na adolescência houve essa transição de ‘quem sou eu?’, ‘onde estou?’, e aí já da adolescência pra fase adulta foi onde eu (pensei): ‘tô nos meus’.” isso –, e quando você chega na fase da pré-adolescência para a adolescência chega o conflito do “por que você é assim?”, “por que é diferente?”. Por mais que eu fosse afeminada, eu não tinha alguém pra conversar, pra debater, pra dizer como eu me sentia na realidade, então você se sente meio presa por não ter com quem falar, o medo de contar e alguém fofocar. Você não pode jamais falar pra sua família, já se sente estranho. Chega um momento que é um incômodo até vestir cueca. É realmente como uma borboleta saindo do casulo, é outra vida. Eu precisei realmente conhecer outras pessoas, dialogar com outras pessoas, para que aquilo me encorajasse de fato a assumir o que eu era. Porque há muito medo da família. Eu tinha medo de ser expulsa, de o meu pai me matar, passava tanta coisa na minha cabeça, até eu realmente me apropriar e decidir que não, que eu me sinto dessa forma então eu tenho que encarar isso. Mas até eu chegar nesse patamar foram muitas dúvidas, muitos questionamentos. LUME Na sua família, como foi esse momento de transição do
Edson para Patricia? PATRICIA As pessoas nunca conseguiram me identificar realmente como menino, talvez. Lembro que tinha um tio que, quando eu ia visitar, sempre pensava que eu era uma menina.
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Sempre começa com a questão da arte, a arte era a desculpa, eu me vestia de mulher em nome da arte, só que na realidade era questão de sacação minha. Eu já me sentia assim, mas precisava de alguma coisa que me levasse a me encorajar e assumir de fato. Eu tenho um pai extremamente machista, homofóbico. Quando aconteceu, foi tudo meio que uma mentirinha. Comecei a tomar hormônio e quando minha mãe via, perguntava pra quê era o remédio e eu mentia, dizia que o remédio era pra outra coisa. As mudanças do corpo começaram: o peito ficando maior, a auréola do peito, entre outras mudanças como a textura da pele, o pelo. Meu pai sempre fica muito atento a essas coisas no meu corpo, e começou a perceber que eu tava tomando alguma coisa. Aí eu disse: “Quer saber a verdade, eu tô tomando hormônio feminino”. Comecei a assumir, troquei as cuecas por calcinhas, e minha mãe, por mais que tivesse preconceito, foi entendendo a minha identidade. Hoje ela lava minhas calcinhas, já comprou sutiãs pra mim, me vê me maquiando. Mas teve uma fase que eu saía montada, mas chegava na porta de casa e tinha que tirar e entrar em casa como Edson. Aquilo pra mim era... “Até quando eu vou viver isso? Por que eu tenho tanto medo? Por que eu não encaro o que eu sou de fato?”. Até que eu disse: “Não, não vou mais viver essa situação. Ou eles vão aprender a conviver com isso, ou vai chegar um ponto que eu vou procurar meu rumo”. Eu nunca percebi isso como algo agressivo, como uma mudança drástica, não foi de uma hora pra outra. Hoje eu convivo muito bem com a minha mãe, é prazeroso estar com ela, existe muito amor. (Com) o meu pai eu sinto que também existe, mas ele é muito carrancudo. No final das contas o que a gente quer é que a família seja a base de tudo. Se a gente não tem o apoio da família, é o que acontece: a gente vai pra rua, sai de casa, encontra a primeira cafetina, vai se prostituir e não sai mais, ali estanca. Por isso que eu digo pra eles que é fundamental a presença deles na minha vida, por mais que eu já esteja com minha opinião formada, por mais que eu não seja mais adolescente, é fundamental que a família esteja perto, presente. LUME Qual momento da vida que você começou a fazer parte
do coletivo artístico As Travestidas? PATRICIA Na realidade, quando eu entrei no coletivo, entrei meio como fã, porque eu havia conhecido duas integrantes, que eram a Alicia Pietá (membro do coletivo) e o Jomar, que é a Verónica (Valenttino, vocalista da banda Verónica Decide Morrer), e a gente se conheceu num momento em que eu já trabalhava no teatro e sempre as via e as endeusava, porque eram figuras públicas super faladas e super aclamadas, então eu sentia a necessidade de ser daquele grupo, de ser amiga delas. Por coincidência do destino a gente viajou pra mesma praia na Semana Santa e nos esbarramos. Começou ali uma amizade, me falavam do Cabaré da Dama (espetáculo do grupo), me convidavam pra assistir. Começou meu contato com elas, com o Silvero (Pereira, membro-fundador do coletivo).
ENTREVISTA COM ela
Eu comecei como camareira dele, e uma vez ele me chamou pra fazer parte do elenco do Cabaré. Eu tinha aquele preconceito de me vestir de mulher, não queria fazer, achando que todo mundo ia saber, que minha vizinha ia ver, morria de medo da minha família ficar sabendo. Fomos para o Festival de Teatro em Guaramiranga, em 2009, e foi quando a Patricia surgiu, de forma bem tímida. Foi aí onde começou a grande sacação, “eu orno mais como mulher do que como gay”. Surgiu essa vaidade de me vestir de mulher, ter roupa de mulher, comprar perucas novas, a preocupação de sempre andar com a unha pintada, todo brinco que eu via eu comprava. A vaidade foi crescendo e eu percebi que eu era isso, mas precisava da vivência pra poder assumir. Fui assumindo aos poucos. Quando comecei a ver o preconceito que vinha dos próprios gays com a gente, depois que vários amigos se afastaram de mim por isso, eu decidi lutar cada vez mais, me apropriei realmente disso quando eu comecei a sentir na pele tudo o que nós sofremos, quando assisti BR (BR Trans, espetáculo do coletivo), via um depoimento do Silvero, ouvia uma música – lembro que quando escutava Três Travestis (música de Caetano Veloso, utilizada no espetáculo) eu chorava pencas. Por que que a sociedade tem que ser assim? Por que os homens que um dia se deitam com a gente, no outro dia nos renegam? Foi quando eu botei na cabeça que eu tenho que lutar por isso, pra acabar com isso, mostrar pras pessoas que não é dessa forma. LUME Como você percebe o alcance que você tem diante das pessoas que são
iguais a você? Como você enxerga o alcance da sua arte? PATRICIA Na realidade, eu me sinto muito musa inspiradora para várias coisas. Eu me vejo uma inspiração para aquelas que assim como eu se sentem minoria, menosprezadas. Por mais que eu tenha os meus maus-humores – tem horas que eu sou chata –, as pessoas dizem que sempre me veem de bem com a vida. Quando eu falo da arte, o que eu fico mais feliz é que as pessoas geralmente estão acostumadas a me ver como a figura frágil – eu sou a chorona do grupo, uma palavra que define a Patricia no coletivo é “chorona” – mas eu fico superfeliz, supercontente, quando alguém que assistiu à peça diz assim: “Patricia, é tão bonito ver sua força em cena. É tão bonito te ver com aquela coragem. É tão bonito quando você diz aquela frase: ‘a minha força está na solidão, eu não tenho medo das chuvas tempestivas, nem das ventanias soltas, porque eu sou o escuro da noite’”. Eu percebo que estou no caminho certo e por mais que tenha essa coisa do sofrimento, que todas têm, no palco eu tô ali pra representar a fraqueza, mas principalmente a força da mulher trans. De lutar, de ir atrás, de conquistar as coisas. Então fico muito feliz. Essa sua relação afetiva, positiva, com seu corpo te fortalece na sua identidade? PATRÍCIA Me fortalece. Sempre coloco na minha cabeça que eu tenho minha sensualidade, eu tenho meus balangandãs que me fortalecem. Mas ultimamente eu tenho percebido que – não é que eu tenha que deixar de ser gordinha – mas eu preciso me cuidar mais, porque eu estou muito sedentária e eu percebo que isso está acarretando coisas prejudiciais a minha saúde. Por exemplo, eu já percebo que estou começando a ter dor nas pernas. Deixar de ser gordinha eu não quero nunca, é a minha marca, é o que eu sou, eu não consigo ver e acho que ninguém mais consegue, na face dessa terra, ver a Patricia magrinha, uma modelo de passarela. Eu tenho um grande proveito LUME
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do meu corpo, porque eu consegui conquistar muitas coisas, mesmo na questão de paquera, que eu percebo que um e outro se interessam pelo meu biótipo. ‘Olha, a gordinha é gostosa, viu!’. E na cama, quantas vezes eu já ouvi isso? (risos) Como você consome essa moda, que é mais produzida para um corpo eurocêntrico, magro, branco? PATRÍCIA Eu não sigo moda. Eu nunca segui na verdade. Coisas de plus size eu não vejo. Eu procuro me imaginar dentro de uma roupa. É tanto que muitas peças minhas são feitas, eu geralmente não compro em loja. Se eu vejo um tecido que me agrada, eu já imagino como poderia ficar um modelo de vestido que ficaria bonito em mim. Desenho, vou à costureira. Nunca fui de me prender a ‘nessa loja não tem nada pra mim’. Não tenho esse sofrimento. Tem muito o estado de espírito também. Eu que crio a minha moda. Geralmente, eu até encontro coisas pra gordinha, mas nem sempre me agradam 100%. Porque sempre vou querer um decote que nunca vai ter. Eu gosto de andar com roupa apertada, curta. Não gosto de esconder minha gordura em metros e metros de pano. Eu abomino isso. LUME
LUME Você percebe algum movimento de aceitação do corpo
fora do padrão e produção de uma moda mais libertária que não recrimine tanto as diferenças? PATRÍCIA Eu não estou muito no mundo da moda, não acompanho, mas tenho algumas amigas que são modelos plus size. Eu acredito que aqui no Ceará tem crescido muito esse uni-
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verso. Está em ascensão, mas ainda percebo que as pessoas meio que não aceitam ou não dão a devida importância. Mas eu acho lindo. Quando vi umas fotos de umas amigas, falei: ‘Vocês têm que ter uma modelo trans plus size’. E elas: ‘É uma boa ideia’. Mas essa boa ideia nunca passou de uma boa ideia, porque elas nunca me chamaram. (risos) LUME E quanto à moda autoral, você consome?
Não, eu tenho ódio dos estilistas. Já desfilei para alguns, mas nunca peças deles, eles não fazem. É tanto que é sempre as (modelos) magrinhas. Já conversei com vários e digo que eles precisam fazer peças para as gordinhas também, porque vai vender. Tem sempre uma gordinha descolada que gosta. Dizem: ‘Patrícia, a gente vai fazer’. Já conheço essa frase, nunca vão fazer. É disso que eu sinto falta. Quando entrei na passarela do Dragão Fashion, eu fui ovacionada. As pessoas gostam do diferencial. Entre com uma peruca black, bem bonita. Sempre pensam como a ridícula, mas eu não penso assim, penso como a nova Giselle Bündchen. PATRÍCIA
LUME Você já pensou em modelar?
PATRÍCIA Qual bicha não tem o sonho de desfilar? Eu brincava
com o lençol. Mas eu tinha que treinar muito, assistir muito America’s Next Top Model. (risos) Mas eu tenho vontade sim de modelar, é algo que eu acho que gosto muito, além de atuar. Porque também é uma forma de atuação. Eu me vejo modelando. É fantasioso e é incrível.
ENTREVISTA COM ela
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EMPODERAMENTO NO SUBÚRBIO A moda como elo de identificação de mulheres na periferia de Fortaleza por Raiane Ribeiro, Victória Pontes e Danilo Oliveira fotografia Iury Figueiredo
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▲ O orgulho da própria criação: Rosana mostra as peças que desenha e costura.
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ulher e moda. Esses conceitos sempre estiveram ligados, mesmo que de forma inconsciente. A moda feminina é parte de uma problemática que, por vezes, objetifica corpos e exclui aquelas que se posicionam à margem das tendências e padronizações, que não se contentam apenas com a estética ou com o produto, mas de onde vem. A zona periférica, por exemplo, é esquecida no que concerne à produção de moda como elemento que a compõe. Entretanto, o reconhecimento de quem luta para ser notado nesse universo que engloba moda e periferia é cada vez maior, seja por quem consome ou produz. Um exemplo desse quadro é Rosana Maria Gonzaga, 55, confeccionista, designer de moda, empresária, mãe e esposa. Moradora do bairro Conjunto Ceará. E tantos outros adjetivos que traduzem-se no seu substantivo comum: mulher. As revistas de moda a inspiram em seus desenhos e na escolha das cores das peças, mas quem a encantou inicialmente com os tecidos e agulhas foi a própria mãe, Dona Nilda. “Eu herdei esse dom dela, da criatividade, de gostar de costurar. Eu a admirava muito, fazia tudo perfeito. A mamãe não queria que eu seguisse nisso, queria que eu estudasse. Quando ela dormia, eu aproveitava a máquina para costurar escondida”, relembra com um sorriso de quem revive o passado. Rosana trabalha profissionalmente com moda feminina infantil há 30 anos, mas desde pequena gostava de costurar. “Comecei muito nova, fazendo calcinhas para crianças. Fazia muito sucesso em vários lugares, até em outros estados. Como era muito jovem, tinha medo de aumentar a produção.
“Tinha muita demanda, mas não tinha visão para aumentar o negócio. Depois amadureci e vi que queria realmente trabalhar com aquilo”, relata. Enquanto dava a entrevista, Rosana pedia licença vez ou outra para atender a todos que chamavam por seu nome. O marido Gerson, que também é sócio, a olhava de longe enquanto ajudava as costureiras auxiliares no acabamento das últimas peças que seriam enviadas para clientes naquela mesma sexta-feira. Como microempresária, Rosana opina sobre o mercado de moda cearense. “O Ceará é um polo forte de confecção. Há muita criatividade e concorrência, maioria de moda feminina. Eu mantenho a qualidade e o preço bom, então sempre tenho demanda”. Quando questionada sobre as estratégias de comércio, a resposta é bem-humorada, e se escuta ao fundo as risadas das costureiras que a ouvem. “Entrego para pontos no centro da cidade e também no interior. Sempre tenho demanda, principalmente em datas comemorativas. Se não se preparar, no final do ano, as costureiras fogem e não tem mercadoria para vender, aí não dá certo”, brinca. Em meio às perguntas relacionadas ao trabalho, surge a questão sobre o que é ser mulher. Rosana respira fundo, como quem busca de dentro a palavra que sempre usou para pensar em si como ser feminino. “Heroína”, dispara. Parece bastar, depois de toda a entrevista. Porém, ela ainda reitera “Tem que dar conta de casa, dos filhos, do marido, do meu trabalho, que apesar dos empecilhos, eu amo. Temos que lutar sempre e acreditar que vai melhorar em todos os sentidos.
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▲ Quem é o que faz: os detalhes da produção.
Quem luta tem sua vitória”, finaliza de forma emocionada. O otimismo parece ser compartilhado nesse meio. A debutante no ramo de comércio de moda feminina, Cláudia Matos, 38, considera que moda e autoestima estão entrelaçadas. “Sempre gostei de moda”, anuncia com um sorriso no rosto e enormes brincos dourados nas orelhas. Criada no interior, relata que tinha sua liberdade de vestir cerceada. Ao sair da casa dos pais, ela abraçou a oportunidade de investir em seu vestuário e equilibrar seu exterior com sua característica marcante: a vaidade. “Consegui meu primeiro emprego em uma fábrica de sapatos, e pude pagar roupas melhores. Já não me sentia inferior ao sair com amigos”, declara. Durante o período em que teve que deixar seu emprego para cuidar da saúde de sua única filha, os cuidados consigo foram deixados de lado. Foi preciso esforço para recuperar sua autoestima, e a moda teve papel fundamental nisso. “A aparência conta muito. Eu sei, eu percebo no modo que as pessoas me olhavam quando eu estava descuidada e como elas me olham agora”. O amor pela moda se traduziu no seu meio de sustento. As lingeries tomam grande parte da loja. “Como mulher, eu quis botar o que me atrai”. Os preços variam entre
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R$10 e R$30. “Para quem aceita gastar mais por peças melhores”, conta Cláudia. A parte externa, no entanto, exibe manequins com roupas de academia. A localização do estabelecimento é essencial para decidir como encantar o cliente, afirma a comerciante. Uma academia a poucos quarteirões de distância garantem que as peças sejam bastante procuradas. Sua paixão, no entanto, é outra. Cláudia especializou-se em bijuteria, por meio de um curso do Pronatec, mas prefere comercializar suas peças somente no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, uma vez por semana. Já a estudante de enfermagem Jennyffer Moraes, 20, encara a moda como “um conjunto de opiniões, gostos e formas de viver. É uma forma de se expressar”. A inspiração vem de todas as partes: televisão, internet, amigas, mas principalmente de intuição. Na hora de renovar seu guarda-roupa, preza pelo conforto e não se prende a padrões. “Compro o que eu vejo em vitrines e acho que combina comigo”. Além disso, tem deixado de lado lojas populares para realizar suas compras em “boutiques de amigas”, relata. Jennyffer define seu estilo como “casual e romântica”. No seu dia a dia, shorts e saias jeans com barra desfia-
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da são indispensáveis para compor o visual, aliados aos mais diversos top croppeds. Os vestidos também marcam presença, e a futura enfermeira aposta em modelos longos. Sem medo de ousar nas cores e estampas, confidencia que seu estilo é bem recebido. “Muitas pessoas dizem que eu ‘ando na moda’. Sempre me pedem opinião de looks”, assegura. Se moda, que vem do francês mode, significa costume, hábito, maneiras e uso, os grupos periféricos imprimem seu estilo de vida no próprio modo de se vestir. Suas vozes fazem-se ouvir por meio dos modelos únicos que almejam diferenciar-se da moda imposta pelos grandes centros urbanos.
▲ Detalhes dos elementos que compõem o produto final.
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Jornalismo ĂŠ feito de pessoas. Ontem, hoje e sempre. Curso de Jornalismo da UFC. HĂĄ 50 anos formando gente que gosta de gente.
“É PARA MENINO OU P A R A M E N I N A ?” por Faruk Cardoso, Jess Alves, João Gabriel fotos Nah Jereissati
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▲ Os estudantes de Design de Moda da UFC Cibelly Chavez, Félix Felzke, Jess Alves e Saymon Livas, que se declaram entusiastas e consumidores de moda agênero.
O desvio
“É
menino ou menina?” É comum vermos em nossa sociedade modelos de comportamento historicamente atribuídos a mulheres e homens, que devem aceitá-los – “cada um o seu!” – e então desempenhá-los no meio social. O processo de introjeção desse pensamento ocorre antes mesmo do nascimento, pela naturalização de certos discursos: dependendo da resposta à pergunta que abre a matéria, surge um leque de “regras”. Se menino, “o quarto é azul, né?”. “Vai ter tanta namoradinha!”. Se menina, “a decoração é toda rosa!”. “Só vai namorar quando eu deixar”. Esses “papeis” masculino e feminino têm, cada um, tramas próprias, e tais tramas pedem, então, um figurino próprio. Vindo do binarismo homem/mulher, surgem outros que, durante séculos, ditaram a vestimenta e os adereços de cada um desses atores sociais: calça, terno, gravata e bermuda para ele; vestido, saia, salto e batom para ela. Há, no entanto, o desvio.
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Por mais hegemônico que seja esse discurso que divide comportamentos, roupas e possibilidades entre “para homens” e “para mulheres”, há um espaço pequeno – repleto de tensões. mas especialmente de luta e resistência contra-hegemônica – para o que desvia da regra. É onde existem (e resistem) as minorias, conceito que pode ser entendido para além do significado presente no dicionário. Segundo o professor Muniz Sodré, jornalista e sociólogo, em breve artigo intitulado “Por um conceito de minoria”, o termo tem a ver com a voz que tem ou não um grupo social; caso este não seja ouvido, cabe a ideia de minoria. Nisso tudo, onde entra a moda como indústria capitalista? Ela segue a ordem vigente, porém aberta a certas rupturas, num processo que lembra os conceitos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização apresentados por Deleuze e Guattari. Segundo os filósofos, há um território hegemônico, com regras próprias, que passa pela desterritorialização em forma de rupturas - que vão contra às tais regras - para, depois, serem “naturalizadas” e incorporadas novamente ao território, às regras. Um exemplo prático desse processo é o da cultura hippie, símbolo contracultural em essência que rompeu com regras da época mas foi “abocanhado” pelo capital e passou a ser visto como tendência e estilo – como no caso do hippie chic e afins.
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Moda e gênero
Discussões que ligam moda e gênero dentro de movimentos minoritários lidam com uma série de questões densas, que vão do vestuário às identidades. Ao longo da história são muitos os exemplos que questionaram e questionam os padrões vigentes - desde drag queens até as primeiras coleções de moda que ousaram destinar ternos e calças ao guarda-roupa feminino. Iniciativas assim foram/são alvo de reações contrárias, dependendo do contexto e da época, e as repercussões acabam sendo reduzidas aos grupos das quais partiram. A discussão sobre a chamada moda agênero - termo usado para se referir à utilização de peças de roupa sem restrições em relação ao gênero -, no entanto, começou a ganhar corpo recentemente no Brasil. Antes de tudo, é importante explicar alguns conceitos que permeiam a questão do gênero, sobre a qual há ainda muita desinformação. Em termos básicos e didáticos, identidade de gênero diz respeito sobre como a pessoa considera o gênero dentro de sua cabeça – se ela se identifica como homem, como mulher, ambos ou até mesmo como nenhum deles. A partir dessa identificação e de que maneira ela demonstra seu gênero, surge a expressão de gênero, podendo ser masculina, feminina, ou a interseção entre esses dois. Apesar da comum crença de que é o sexo biológico que define todas essas questões de gênero, diversos estudos refutam essa ideia e afirmam que, na verdade, ele é construído pelas normas da sociedade. Algumas pessoas classificam a moda agênero como uma tendência onde as peças possuem cortes retos, cores neutras, e modelagens que podem ser chamadas de democráticas. Já outras defendem que a partir do momento em que alguém entra em uma seção de roupas, masculina ou feminina, e usa alguma peça apenas por se sentir bem com ela, a tendência já está sendo praticada. Não há, então, uma definição correta e universal para o que de fato é moda agênero, se é apenas uma tendência, ou de fato um grande movimento com práticas definidas.
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▲ Nilo Lima Barreto e Yágda Hissa, criadores da marca de moda agênero Pangea.
Quem faz e quem compra
Fortaleza é uma cidade cujo mercado de moda é intenso. É pouco comum, porém, vermos iniciativas de moda agênero em âmbito local. Uma das poucas é a Pangea. Criada pelo casal Yádga Hissa, 24, e Nilo Lima Barreto, 25, ambos formados em Design de Moda pela Universidade Federal do Ceará, a ideia da marca surgiu oficialmente no começo de 2015, quando a dupla foi aprovada no edital do projeto Incubadora de Economia Criativa, da prefeitutra de Fortaleza, no qual tiveram aulas de capacitação em empreendedorismo. Esse aparato, no entanto, de nada valeria caso não houvesse olhar e atenção especial voltados à questão. Os estilistas já vinham atentos às discussões de gênero, roupa e identidade dentro dos espaços que frequentavam. “Temos contato com uma diversidade de pessoas, e muitos amigos e amigas comentavam que não se sentiam representados por essa segmentação binária – masculino e feminino. Queríamos criar um ambiente livre de expressão, experimentação, e que trouxesse esse conforto para o consumidor, de experimentar sem ser julgado, sem constrangimentos”, relembra Yágda. Mesmo sem loja física, o lançamento da Pangea já con-
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firma que a intenção de criar esse ambiente livre deu certo, mesmo que de modo simbólico: os clientes encontraram na marca espaço de expressão de si mesmos, ainda que em meio a uma realidade preconceituosa como a do Brasil. Apesar desse êxito, foi esse lado preconceituoso que fez a dupla enfrentar reações negativas. “As pessoas acabam achando que alguém usar tal peça vai mexer com a masculinidade, não sei. A gente já escutou muitas coisas que fizeram a gente pensar sobre isso, porque a imagem que as pessoas têm de agênero é ‘menino usando roupa de menina’ e vice-versa”, desabafa Yágda. Didáticos, os criadores da Pangea procuram que a marca não funcione apenas como “abrigo” desse público que clama pela não-segmentação e pelo não-binarismo, mas também como fonte de informação sobre temáticas relacionadas e sobre o conceito que defendem. “Essas pessoas não vislumbram que a roupa agênero é uma roupa adaptada, parte do ponto que é uma peça que não traz signos de gênero, nada. É uma peça que você olha e não vê isso, que tem uma modelagem adaptada. Não é pegar do ‘guarda-roupa feminino’ e jogar no corpo masculino”, explica Yágda. Nilo complementa: “É um novo modelo de
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negócio, então não é simplesmente adaptações de guarda-roupa. A gente trata da comunicação da marca com o cliente, tenta informar sobre identidade de gênero, orientação sexual, sobre nosso processo de criação, desfazer esses estereótipos, trabalhar na modelagem”. É uma tarefa que necessita de esforço, ousadia e paciência, mas que parece estar aos poucos abrindo algumas mentes e chamando a atenção localmente. Ainda que alcançando certo público-alvo, uma iniciativa de moda agênero como a Pangea não necessariamente conseguirá abarcar, de fato, toda a gama de pessoas que brincam com questões de gênero na vestimenta. Félix Felzke, estudante de Design de Moda de 24 anos, é um exemplo: ele costuma usar roupas comumente destinadas ao gênero feminino no cotidiano, mas questiona o próprio termo. “Moda é uma coisa frívola, vem e vai. Você não pode dizer que é uma ‘moda agênero’, porque significa que logo vai acabar. Eu acredito que é o contrário, que tem de aumentar bastante. As pessoas vão deixar de padronizar, colocar rótulos, se desprender disso”, reflete. O estudante ainda afirma que a principal fonte para seu guarda-roupa - “você vai encontra blazer, calça, saia, ves-
tido, paetê, linho, colete, macacão, jeans. Tem de tudo, não me atenho ao básico não, tá? Tô ficando linda, tamo aí!” - não são as marcas de nicho, mas os bazares. “Encontrei um bazar de uma igreja perto da minha casa, fiquei amicíssimo das irmãzinhas, tal hora elas já estavam me indicando uns vestidos, e eu pagando baratíssimo por tudo!”, relembra, bem-humorado. Marketing de oportunidade
Mesmo depois de entender um pouco a proposta da moda agênero, ainda é difícil definir: uma peça é considerada agênera apenas se pensada desde o início do seu processo de criação como tal, ou as roupas podem se tornar agêneras a partir do momento em que o indivíduo se veste com uma peça classificada como pertencente ao gênero oposto ao seu? Ou ainda: as duas opções se encaixam no conceito? Há pouco tempo, a loja de departamentos C&A lançou uma propaganda para a coleção de Dia dos Namorados, intitulada “Dia dos Misturados”. No vídeo, diversos casais têm suas roupas trocadas, para passar a ideia de que podem usar roupas destinadas para o gênero oposto. É uma forma tímida
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▲ Deyvson Freitas, estudante de Design de Moda na UFC.
de se entregar a proposta agênera - tímida pois, em suas lojas físicas, as roupas ainda estão divididas em seções diferentes. Há também um exemplo a nível local de marca que tenta incluir o conceito agênero em suas peças. No final de maio, a Handara, conhecida pelas calças jeans, publicou em sua conta do Instagram a foto de uma calça, definindo-a como peça agênero. Com um público-alvo específico e já consolidada no mercado, a ação pareceu um passo pouco usual. Mateus Marinho, 25, estilista da empresa, revela que a situação, na verdade, ocorreu quase sem querer. “Nós fizemos uma calça masculina, mas quem estava comprando essa calça eram mulheres. Surgiu então a iniciativa de se fazer esse marketing, (com) essa tendência da moda agênera”. Nível de “ageneridade”
É possível afirmar que a moda criada pela Pangea é “mais” agênero do que a calça que acidentalmente ganhou essa alcunha? O fato da Pangea ter uma preocupação, em essência, com as discussões de gênero, a coloca de fato “na frente” da Handara nesse quesito? Não podemos, no entanto, julgar uma mais dentro da proposta agênero que a outra por terem, elas mesmas, propostas diferentes. Os discursos em relação à falta de cuidado das grandes marcas, como a já citada C&A e a Zara, no entanto, apontam para uma mesma direção.
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“São apropriações de um discurso que eles não fazem questão de defender, debater ou de realmente ficarem engajados na causa, mas para seguir a tendência. ‘A gente tá por dentro, a gente aceita’. Não é assim, eu não vejo moda agênero nisso”, critica Yágda. A segmentação nas lojas e a falta de preparo dos profissionais para lidar com clientes que queiram consumir peças do gênero oposto são citados como falhas. Mateus concorda, apesar de deixar claro que a posição é pessoal, e não da marca Handara. “Talvez algumas marcas até estejam fazendo isso errado. Moda sem gênero não é fazer uma roupa frouxa, como algumas marcas fizeram, que vai dar em todo mundo, que não tem cor e que não tem nada. Acho que a maneira correta de pensar isso é: ‘fiz uma roupa que quem quiser pode usar’. A roupa não tem gênero, então você fica livre pra usar”, finaliza. Mesmo com todos os entraves sociais, de mercado e pessoais, a quebra de gêneros na vestimenta não será tão facilmente superada e esquecida, como qualquer tendência. A partir do momento em que criou-se um debate sobre a questão, é de se esperar que o assunto seja cada vez mais visto e conversado - tanto em conversas de boteco quanto academicamente. Ao final, a utopia possível desejada por estes consumidores e estilistas é responder à pergunta “é para menino ou menina?” com um sonoro “é para quem quiser usar”.
BILROS COMO TRADIÇÃO, RENDA COMO INOVAÇÃO por Cristal Pires, Gêrda Lívia, Iury Figueiredo, Joelliadny Lima e Larissa Wenya fotos Cristal Pires, Gêrda Lívia e Iury Figueiredo
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omeça com a escolha do desenho a utilizar. “Pica” o papelão e depois fixa-o na almofada cilíndrica, de chita ou sacaria, acolchoada com folhas de bananeira – na maioria das vezes fabricadas por quem aprende o ofício. Em cada ponto traçado, um par de bilros ou dois, se necessário, para desenvolver uma trama aberta ou fechada. Tradição local, a renda é uma marca do artesanato cearense, reconhecida em outros estados e no exterior. Das mãos de rendeiras espalhadas por todo o litoral nordestino, surgem diversos tipos de renda, porém, a de bilros é típica da terra alencariana. O trabalho dessas rendeiras resulta em peças que são tradição em feiras de artesanato. Os produtos feitos por rendeiras de várias partes do Ceará são comercializados em feiras locais ou vão para a capital, onde estão ao alcance de turistas. Essa comercialização do produto artesanal traz visibilidade para a renda, que está proporcionando uma nova aplicação, em outro mercado. Assim como o bordado e a estamparia, a inserção da renda não é nenhuma novidade. Entretanto, uma tendência de mercado em buscar um estilo de vida mais sustentável, em um movimento slow, acabou resgatando o trabalho manual e dando
um novo olhar para a renda. “A pessoa que valoriza o artesanato agora está interessada em todo o processo, na história por trás da peça. Você não compra apenas o produto, você compra todo o processo”, analisa Ivanildo Nunes, estilista cearense. A adoção das técnicas artesanais por estilistas locais levaram a renda para a moda de luxo. Elas conseguem configurar-se como alta-costura por causa do tempo de produção que elas têm. Pelo aspecto de feitura limitada, poucas peças em um grande intervalo de tempo, “conquista status e valor simbólico que necessita na alta-costura para justificar o trabalho da rendeira”, como explica Bianca Matsusaki, mestre em Ciências, pelo programa de Pós-Graduação em Têxtil e Moda da Universidade de São Paulo (USP), e autora da dissertação “Trajetória de uma tradição: renda de bilros e seus enredos”. Almerinda Maria, reconhecida estilista cearense, acaba refletindo o movimento de valorização do artesanato em sua história profissional no cenário da moda. “Essa valorização da renda (produzida pela marca) teve início no Sul e Sudeste, todas se encantaram pelas tramas feitas à mão e, com isso, a renda saiu da decoração e passou a ser transformada em alta-costura”. A estilista começou a trabalhar com mix de
▼ Da esquerda pra direita: As cearenses Olenir Vieira, Maria Lucimar Gabriel e Maria Alves têm em comum o ofício da renda, repassado pelas gerações maternas.
“Eu faço renda pra vender e faço renda com prazer.”
D. Olenir
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▲ A renda já foi sustento para algumas famílias. Mas o baixo retorno financeiro tem afastado novas gerações de rendeiras
rendas no começo dos anos 2000. Hoje, ela garante que utilizar numa única peça, por exemplo, renda renascença, renda de bilro, renda de labirinto, renda francesa, guipir e richelieu, tem sido o seu maior diferencial. “Acredito que levar um trabalho tão pouco valorizado no Nordeste é o que me motiva, transformar o feito à mão em artigo de luxo”, declara. Ivanildo Nunes, assim como Almerinda, utiliza das rendas locais em suas peças. Ambos fazem aplicação de variadas técnicas. Esse patchwork de rendas acaba transformando o produto final em algo distante do fazer comum, um artesanato diferente do tradicional. “Tem que atrelar inovação, tradição, design, artesanato e arte. pra que esse novo conceito de luxo atrelado ao lifestyle seja absorvido pela própria renda”, defende o estilista. As mãos que tecem
As mãos habilidosas de Francisca Olenir da Silva Vieira já passaram por diversos ofícios durante seus 64 anos de vida, mas nunca largaram a renda. Aos sete anos de idade seus dedinhos iam dos livros da escola às linhas que usava para fazer suas primeiras peças ao lado da mãe. “Ela trabalhando e eu do
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lado brincando e imitando a mãe”. Pouco depois faria suas primeiras vendas no mesmo local em que hoje, mais de 50 anos depois, ainda vende seu trabalho: a Prainha, em Aquiraz-CE. Dona Olenir não foge do perfil mais comum das mulheres que trabalham com renda. É filha de um pescador com uma rendeira. Ela conta que não é a única, boa parte das suas companheiras de trabalho também são filhas de pescadores. Mas quando fala da nova geração mostra-se desapontada com o desinteresse pela renda. Olenir chegou a ensinar para as duas filhas a arte do rendar, mas nenhuma quis seguir com o trabalho da mãe. “Eu digo a ela: vamos montar uma oficina pra gente fazer dinheiro, ganhar dinheiro com costura. Ela não quer. Ela faz a roupa dela”. Ainda assim, a rendeira mostra clareza ao analisar as dificuldades de sua profissão e procurar soluções: “Elas acham que não têm nenhum retorno. Eu digo: ‘gente, mas vocês tem que ser empresária da renda. Fazer renda com o intuito de ganhar dinheiro’”. Além da desvalorização, outro problema que esse mercado enfrenta é a concorrência com a produção industrial e seu baixo custo. “Há cinco anos, o artesanato vem caindo por conta dos produtos industriais”, aponta Maria Alves, rendeira
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na avenida Beira Mar, de Fortaleza, há 30 anos. “A renda manual tem menos procura pois a renda industrial acabou com a nossa renda”, acrescenta a rendeira Maria Lucimar Gabriel, que compartilha do mesmo endereço de trabalho. Mas a renda teve seus tempos de grande movimento para Maria Lucimar. “Quando era menina, pequena, que meu pai trabalhava vendendo renda. Eu me lembro que era bom, ele vendia muito. Nesse tempo, a gente trabalhava com ela de metro, a gente cortava de três metros, de dois metros, porque tinha muita saída”, rememora. Atualmente, trabalha apenas rendando com bilros. No entanto, o fraco fluxo de vendas desse produto tem feito com que Lucimar pense em outras possibilidades, para não ficar dependente do produto que fabrica. “Eu e mais outra colega estamos pensando em trabalhar também com bolsa (artesanal). A gente compra o material e a gente mesmo faz”. Foi a visão ampliada do mercado e a mente sempre muito ativa que levou Olenir à Associação das Rendeiras da Prainha. A luta por melhorias faz parte da história da rendeira, citando a mais atual, a luta pelo novo espaço das rendeiras da Prainha. Um lugar completamente novo que está na responsabilidade do Governo do Estado do Ceará e que até a data desta entrevista ainda não tinha nenhuma obra iniciada. As rendeiras tiveram que se encaminhar para um local alternativo, que Olenir agradece, mas que sente saudade do ambiente confortável onde trabalhava anteriormente. O carinho pelo lugar fica evidente: “É tudo pra nós, aquilo ali”. Mas isso não desanima Olenir em sua profissão. A mulher mostra a força da rendeira cearense que enfrenta as mais diversas dificuldades e que está sempre disposta a aprender um pouquinho mais para fazer crescer a sua arte. E com o sorriso no rosto de quem se realiza todos os dias com o que faz, ela diz: “Esse é o meu xodó. Fazer renda. Eu adoro fazer renda. Tem outras profissões que já exerci, outras funções. Mas fazer renda é prazeroso”. Design e artesanato: solução para resistir?
Maria Alves, 63 anos, cria os desenhos para rendar “de cabeça”. “Eu risco no papel, passo o molde para o papelão”. Com contorno de cachos de flores e modelos variados, começou a dar os primeiros traçados aos dez anos de idade. Desde então segue com o desenho livre, com o que tem vontade de fazer, com o que está na memória. Mas nem todas rendeiras criam. A cópia também é uma realidade nesse mercado. Quanto a isso, estudiosos citam a comodidade, de apenas imitar, do que criar - isso tornaria o processo de construção da renda ainda mais longo. Porém, essa imitação vai contra a corrente da diferenciação e de exclusividade que o cliente contemporâneo exige. As parcerias entre designers e rendeiras acontecem através de contato direto ou não. Alguns estilistas vão até as
comunidades de rendeiras e, junto com elas, desenvolvem um trabalho que reinventa o tradicional, enquanto outros adquirem o trabalho pronto através de cooperativas que comercializam o produto. A importância do contato direto do designer com a comunidade é fundamental para que este veja em que condições estas peças estão sendo produzidas, e que deste contato não resulte somente uma transação comercial. Emanuelle Kelly, professora de Design de Moda da UFC e estudiosa do artesanato cearense, acredita que esse contato com os designers, muitas vezes, pode acabar gerando uma dependência nas artesãs. Pois algumas querem que um estilista crie uma coleção, para que elas apenas confeccionem as peças, não havendo nenhuma iniciativa criativa por parte das artesãs. Isso por acreditarem que o trabalho do estilista é mais reconhecido. Ivanildo Nunes compreende a participação do designer como uma chance de alavancar o trabalho destas rendeiras. “É tradição fazer a mesma renda, e o produto acaba desvalorizado por esse algo comum. É preciso essa interferência do designer para valorizar o produto, dar uma repaginada, mas é difícil mudar o costume”, comenta. Em contraposição, a professora Emanuelle Kelly afirma que as rendeiras também “estão dispostas a aprender, querem ser capacitadas, mas elas ficam chateadas quando não vêem retorno. Quando não tem continuidade, cria uma má vontade. Elas entram com tudo nos programas e gostam, se sentem valorizadas, veem que seu trabalho é bom”. Olenir reconhece que, na maioria das vezes, as parcerias com estilistas não acompanham o reconhecimento das produtoras artesanais. Transformam o trabalho em “vestidos caríssimos” e nem sempre a retribuição financeira compensa. Apesar disso, ela enxerga tal modelo como “a maneira da renda ser difundida”. “Por trás do designer, há porcentagem da produção na mão de assistentes, na pesquisa, no trabalho de modelistas, que o público não sabe quem são. Existem rendeiras maravilhosas cujos nomes não são conhecidos. O público não tem acesso a essas informações”, reflete Bianca Matsusaki sobre um dos problemas que as rendeiras enfrentam na produção artesanal para o mercado de moda. A utilização da renda na alta-costura valoriza o artesanato e dá visibilidade para o produto local. Ivanildo afirma que em seu trabalho busca trazer essa valorização à renda de bilro, assim como já ocorre com a renascença. Levar essa percepção para as comunidades, que a renda pode deixar de ser um hobby e se tornar um produto de moda, com valor de luxo. Esse reconhecimento do artesanato local, por parte dos estilistas, refletiu nas vendas da última década. Segundo depoimento das rendeiras da comunidade da Prainha, houve um crescimento nos últimos dez anos, mas que hoje, por conta da crise econômica que atinge o Brasil, caiu junto com as vendas.
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ECONOMIA CRIATIVA:
A RENDA COMO RENDA NO BRASIL
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Revista Lume conversou com a economista e professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará, Cláudia Leitão. A especialista defende políticas públicas que resgatem a autoestima do profissional do artesanato, desgastada pela falta de reconhecimento pelo trabalho produzido. Como a artesania, no contexto brasileiro, se insere no modo de produção da economia criativa? CLÁUDIA LEITÃO O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) fez uma primeira grande pesquisa de cultura entre 2004 e 2006, chamada Munic, pesquisa municipal de cultura. O interessante dessa pesquisa foi que no final das contas descobriu-se que a atividade cultural mais importante do Brasil é o bordado. Ora, se o Brasil borda, deveria haver uma política pública que estimulasse a atividade do bordado, imaginando que há um tradicional talento nessa atividade artesanal. São várias as questões que a gente pode analisar pra tentar avançar na discussão de porque o Brasil, que é um país que tem tanta riqueza artesanal, não consegue transformar isso numa economia importante. Por que ela é tão precária? Tem toda uma narrativa, que é justa, de pessoas que trabalham nesse setor e que estão cansadas porque nunca tiveram apoio. Se nós pensarmos o artesanato hoje como atividade econômica, o artesanato padece de uma dificuldade institucional muito grande junto ao governo federal. No Trairi, a presença de bilro é muito grande. Todas as mulheres em suas casas fazem essa atividade, não pensando na questão lucrativa, porque não conseguem escoar essa mercadoria. Um dos problemas, além da dificuldade com a qualidade da matéria-prima, do insumo, a qualidade da linha, porque é preciso pra você produzir renda de bilro com qualidade que você tenha qualidade da linha, e essa linha ela não chega na mão da mulher. Era preciso pensar em toda a infraestrutura, do insumo até a logística. LUME
Então como a senhora pensa em um modo de organização dessa produção de renda de bilro sob a perspectiva da economia criativa? CLÁUDIA LEITÃO Quando a gente fala em economia, nós teLUME
mos que cuidar, tarefa do Estado, em criar as condições para a criação, a produção. Aquela ideia que eu tenho na cabeça tem que virar um produto concreto. Eu tenho de ter a qualidade da linha, depois eu tenho que pensar na comercialização, conseguir distribuir aquilo que eu produzi. De todas as dinâmicas dos setores culturais é o gap de circulação, distribuição e comercialização. Eu produzo, mas eu não tenho pra quem vender porque eu não tenho acesso a feiras, a postos de vendas que o Estado me permita. O que eu consigo vender, eu vendo, em geral, através da mão de atravessador. E os atravessadores, em princípio, são aqueles que acabam ganhando alguma coisa. Quem ganha é aquele que distribui, que comercializa. Um produto sai de um preço da mão da mulher que fez a renda e vai chegar caríssimo na mão do turista de Fortaleza porque o atravessador foi quem ganhou no meio do caminho, porque não tem política pra comercialização nem pra distribuição. Uma das formas de organização é a formação de associações de mulheres rendeiras. A senhora acha que essa é a melhor maneira para fortalecer a renda no Estado? CLÁUDIA LEITÃO É uma das maneiras. Cooperativas podem ser muito interessantes se elas se tornam realmente instrumento de participação, de autogestão, de compartilhamento de lucros. A prática cooperativa por si só não é ruim. Eu acho até que no Brasil ela às vezes avança, depois retrocede, nós não temos uma possibilidade de manter uma prática de cooperação contínua. LUME
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Ilustração por Silvelena Gomes Estudante de publicidade, negra, feminista, ilustradora e com um coração imenso.
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Leia mulheres: cinco obras feministas para ter na estante por Rosiane Melo Estudante de jornalismo, feminista, leitora compulsiva e adepta das boas conversas sem compromisso no fim de tarde.
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m 2014, a escritora Joanna Walsh criou a hashtag #readwomen2014. O objetivo era simples: incentivar as pessoas a lerem mais escritoras. Desde então, o projeto ganhou o mundo e, no Brasil, ficou conhecido como Leia Mulheres. Hoje em dia, a iniciativa alimenta clubes de leitura nas principais capitais do País. Recentemente, li uma reportagem dizendo que apenas 14 mulheres receberam o Nobel de Literatura, em 115 anos de existência da premiação. Apenas uma delas – Toni Morrison, premiada com “Amada” (1987), romance que narra a história de uma ex-escrava que foge com os filhos após a abolição da escravatura nos Estados Unidos – é negra. Há algum tempo li um artigo que me fez uma perceber uma coisa: não adianta você ler mulheres se as histórias que elas contam apenas objetificam o corpo feminino, enaltecem o machismo ou pregam um falso feminismo do tipo “você é linda, poderosa e independente, mas precisa de um homem”. O que essa literatura traz de bom para nós, mulheres, além do fato de nos deixar inseguras, frustradas e com expectativas irreais? Acredite ou não, esse tipo de romance de banca de jornal ainda vende muito. Durante a adolescência, a maioria das mulheres que li escreviam sobre isso. Não me orgulho do meu passado. Nada contra livros de sacanagem, contanto que eles respeitem as mulheres – o que, cá entre nós, é bem difícil. Por essas e outras, como feminista, hoje defendo: precisamos ler mulheres sim, mas mulheres que nos contem histórias inteligentes, com personagens realistas e interessantes, diversidade e o poder de nos transformar positivamente. Mulheres que nos tirem da zona de conforto, que nos apresentem realidades diversas, que nos façam questionar o que nos é imposto como “certo” e “errado” em uma sociedade tão violenta e machista. Dito isso, quero indicar cinco obras lindas que, acredito, vão fazer um bem danado a vocês como fizeram a mim. “Para educar crianças feministas”
Em 96 páginas, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie questiona vários tabus relacionados à maternidade e
à educação infantil e mostra que caminhos alternativos não só são possíveis, como necessários. A obra foi escrita no formato de uma carta para uma amiga da autora, que pediu conselhos a Chimamanda sobre como educar a filha como feminista. Foi um daqueles livros que devorei em uma sentada e me apresentou uma nova perspectiva sobre a maternidade. Obras também da autora, “Sejamos todos feministas” e “Americanah”. “Lugar de mulher é onde ela quiser”
Nesta obra, três brasileiras se reúnem para falar sobre a vivência delas em relação a variados assuntos, como feminismo, política, cultura pop, sexo, gordofobia, autoestima, etc. Elas são Ana Paula Barbi, Clara Averbuck e Mari Messias, idealizadoras do site Lugar de Mulher (http://lugardemulher. com.br). A gente se identifica um bocado com as histórias das meninas e é também aquele livrinho para ler em uma sentada. “Magra de ruim”
Autobiográfica e independente, a obra reúne uma série de desenhos e pequenas histórias da quadrinista cearense Sirlanney Nogueira. Em seus traços, ela aborda temas como empoderamento feminino, sexualidade, inquietações artísticas e desilusões amorosas. “Magra de ruim” é também o nome da fanpage da autora onde podemos acompanhar semanalmente os seus últimos trabalhos. “E se eu fosse puta”
Amara Moira é travesti, prostituta e doutoranda em crítica literária pela Unicamp. Lançando uma discussão sobre o que é ser mulher e desconstruindo estereótipos e preconceitos, a autora narra nesta obra autobiográfica desde as aventuras e desafios de sua profissão noturna, a convivência diária com o medo e a militância LGBT. “A cor púrpura”
A história que rendeu a Alice Walker o Pulitzer de Melhor Ficção se inicia em 1909, nos Estados Unidos. Com apenas 14 anos, a adolescente negra Celie é violentada pelo pai e dá a luz a duas crianças. Separada dos filhos, ela é entregue pelo pai a Sinhô, que a trata mais como uma escrava que como esposa. Invisível perante uma sociedade racista, Celie consegue aos poucos se impor e conquista liberdade.
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Cada corpo, uma história por Marianna Calixto Designer de moda, feminista em (des)construção e eterna menina inquieta tentando abarcar o mundo com as pernas e conhecer mais de tudo.
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rescer “fora do padrão” não é nem um pouco fácil. É muito curioso como o fato de ser uma pessoa gorda sempre aparece como um problema: ou dizem que a causa é algum distúrbio alimentar ou é a preguiça, ou que somos frustradas e não nos amamos o suficiente pra se cuidar, logo somos gordas (sim, já me disseram isso). Lembro bem de uma festinha de Dias das Mães no colégio que eu não queria dançar no palco de short e top curtinho porque me achava gorda. Eu tinha seis anos. Vamos parar para pensar o quão cruel isso é? Esse comportamento de julgar o próprio corpo aparece tão cedo na nossa vida que eu nem mesmo lembro como começou comigo. Era tanta coisa para apontar em mim e dizer que não era bom o suficiente: o cabelo que era cacheado, os braços que sempre foram roliços, a barriga que nunca foi retinha. Em meio a isso, ficava até difícil achar que existia alguma coisa boa nesse corpo que eu habito. É bem triste pensar que esse tipo de influência que recebemos a vida toda nos faz repetir o mesmo tipo de ação contra outras pessoas, muitas vezes, sem ter noção do quanto um comentário pode fragilizar o outro. Por isso, fica a dica do exercício da empatia: pensar se o que vai ser dito é útil e não vai machucar ninguém e tentar ver os outros com olhares mais gentis. Agradeço aos céus o dia que eu me vi cercada de mulheres gordas maravilhosas e comecei a enxergar muita beleza no empoderamento alheio, pois me fez ver que não faz sentido algum admirar alguém enquanto você se menospreza. Gordofobia seletiva contra si mesma ainda é gordofobia. Acho que eu só fui perceber a responsabilidade que cada um de nós temos quando minhas amigas vieram me dizer que eu as ajudava nesse processo de empoderamento. Logo eu, a menina que tem muitos dias de autoestima baixa e que nem sempre se amou, servindo de inspiração pra alguém. Cerque-se de
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gente que apoia o seu empoderamento e seja essa pessoa para aqueles que te cercam. Olhar os outros com mais empatia é uma corrente tão maravilhosa e eu sou muito grata às pessoas que me ajudaram nessa caminhada. Em uma das primeiras vezes que eu usei um top cropped, e fui ao shopping, foram incontáveis os olhares. Até hoje eu me pergunto do quê vinham carregados esses olhares, mas ouso chutar que eram de reprovação. Porque é feio uma menina gorda ficar mostrando umas bainhas; não é algo pra ser mostrado assim aos quatro ventos. Que hajam gorduras, celulites ou estrias, pequenas e grandes, mas que não tenham medo de ser e aparecer! Porque ninguém merece ficar se escondendo com medo de reprovação. Não vou dizer que essa jornada do amor próprio é fácil; todo dia eu considero que é uma batalha a ser vencida. Depois de aprender a me amar na marra, posso finalmente dizer que na maioria dos dias, é ótimo estar nesse corpo que já passou por tanta coisa. Mesmo assim, não podemos baixar a guarda, porque situações para botar a gente pra baixo não faltam. É a família te dizendo com olhares tortos que você engordou, um amigo soltando um comentário ácido “sem perceber” e até desconhecidos achando que tem o poder de dizer que você não é saudável só de olhar. Esse processo de aceitação de si mesmo e do próximo caminha a passos bem lentos, mas espero que chegue logo o dia em que todos vão entender que ser gordo não é algo feio, assim como a palavra “gordo” também não é. Ouso dizer que é uma obrigação sua não se esconder, não se render a nada que queira te parar; se achar linda, sexy e aprender a amar cada pedacinho desse corpo que carrega tanta história. Hoje eu só te peço uma coisa: pare de odiar o seu corpo! E saiba que você não está sozinha.
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Mulheres negras e o exercício da empatia e da sororidade por Nerice Carioca Estudante de jornalismo, mulher negra, feminista, e anticapitalista movida pelo desejo de revolução.
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into-me muito fortalecida ao saber que posso conversar com uma mulher negra sobre minhas dores, pois ela vai entender, mas me preocupa na mesma medida saber que ela me entende porque passa pelos mesmos processos que eu. A maioria das mulheres tem problemas com a auto-estima. O patriarcado nos ensinou a ser inseguras e a nos sentir inferiores, porque assim ficamos mais frágeis e mais suscetíveis a nos calarmos diante da violência que sofremos. É muito mais fácil estabelecer uma relação de poder com uma pessoa que está emocionalmente abalada. Como eu disse, interessa ao patriarcado que todas as mulheres estejam frágeis, mas no caso das mulheres negras, esse processo se dá de forma diferente. Além do machismo, temos que enfrentar o racismo, e essa combinação faz com que os nossos corpos sejam extremamente sexualizados. Mas essa sexualização é diferente, somos vistas não só como um pedaço de carne, mas como um pedaço de carne descartável, que só serve para fornecer prazer. E o que diferencia a forma como nós negras somos tratadas para a forma que as mulheres brancas são tratadas? Os homens constroem relacionamentos com as brancas; as pretas são só pra ter prazer sexual. E quando constroem, esperam que sejamos fogosas e dispostas para o sexo, como boas pretas, e esperam também que sejamos fortes, e aguentemos quaisquer violências, pois somos da raça que aguenta tudo. Trago verdades: nós não temos uma capacidade maior
de aguentar as pancadas da vida e das pessoas, somos seres humanos também, com sentimentos. Também ficamos tristes, choramos. Temos limites, como qualquer outra pessoa. As opressões são internalizadas inclusive pelos sujeitos oprimidos, como essa ideia de “povo preto forte”. Reconhecer que não estamos bem é tido pelas pessoas negras, por vezes, como um sinal de fraqueza, mas dizer que não está bem é muito mais um ato de coragem - não falo aqui da cultura do “ser trouxa” -, de aceitar que estar mal não é um problema, o problema é o que nos deixa mal. Ter que conviver e enfrentar, muitas vezes sozinhas, as dores trazidas pela insegurança, pela baixa auto-estima, pela ansiedade e pela solidão das mulheres negras, é duro, é muito duro. Nos tornamos pessoas pesadas, instáveis, e que demandam muita atenção. Nem todos os homens, na verdade uma pequeníssima parcela, “consegue” (leia-se “está disposto”) segurar a barra junto das companheiras, a maioria acaba pulando para dentro do barco e nos deixando sozinhas em nossos oceanos de incertezas. Mas uma coisa nos fortalece: nos reconhecer nas outras mulheres negras, poder compartilhar nossas histórias e saber que estamos juntas para empoderar e fortalecer uma a outra. Deixo aqui o meu OBRIGADA às minhas pretas! PS: Só falo aqui em relação à relacionamentos heterossexuais, de acordo com a minha vivência.
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DO QUE A MODA NĂƒO DIZ texto e fotos por Nah Jereissati
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través dos séculos a moda tornou-se parte íntima e indissociável da existência humana. Como aprendemos com Miranda Priestly em “O Diabo veste Prada”, até mesmo a peça de roupa que julgamos mais desapegada e desprovida de influências da alta costura tem seu berço em algum ponto da trajetória da moda e de seus grandes nomes. Pelas normas da sociedade que construímos, o ser humano precisa vestir-se sempre. Se formos mais longe: o ser humano precisa vestir-se sempre e sempre dentro do que, no momento, é tendência. O que os grandes outdoors da moda não nos dizem é que essa tendência nem sempre - para usar de eufemismo - coloca toda a pluralidade humana em suas linhas, tecidos e rostos. O conceito indissociável tem suas nuances de exclusão e opressão. Mulheres gordas, negras e de idade madura dificilmente encontram aconchego no hype do momento: muito além do tamanho das roupas, a representatividade é praticamente inexistente. Com 54 anos, Kátia Patrocínio não faz nenhuma questão de colorir os fios brancos ˗ apesar de sempre questionada de o porquê de permanecer com os fios “envelhecidos”. Camila Soares, 23, passou anos sem conseguir vestir roupas mais abertas e curtas por ouvir que tem o corpo muito fino e os ossos salientes. Gabi Barbosa, 20, teve diversos problemas de saúde e psicológicos por se forçar a emagrecer para ser aceita e considerada bonita. É aqui que o empoderamento pessoal e a importância da representatividade entram. Hoje, as três vêm nos trazer uma lição do que a moda não nos diz: que podemos ser e usar o que somos, do jeito que somos - e sermos felizes.
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KÁTIA PATROCÍNIO
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“Minha mãe era costureira. A história da minha relação com a moda começa daí. E ela não tinha muito tempo de costurar roupas para a gente. Então eu cresci sem ligar muito para isso. Se der para vestir uma roupa nova, legal. Se não der, legal também.”
Kátia Patrocínio
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GABI BARBOSA
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“Com a questão do empoderamento feminista, eu percebi que isso não fazia sentido e eu ia vestir o que eu tinha vontade de vestir, independente do que as pessoas pensam de mim. E hoje eu visto o que eu quero. Eu visto tudo.”
Gabi Barbosa
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CAMILA SOARES
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“Durante uma época eu só saía de casa de calça. Hoje em dia eu me sinto mais livre para usar o que eu quiser, ir de vestidão para o trabalho. A vida é muito curta para não vestir as roupas que eu quero.”
Camila Soares
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