Solidariedade Texto: celso arnaldo fotos: divulgação
E
A estrela guia
la perdeu a visão aos quatro anos de idade. Aos sete, ouviu falar que existiam cães-guia e, desde então, quis ter um. O sonho realizou-se apenas em 2000, quando, aos 27 anos, ganhou Boris – um labrador nascido e treinado nos Estados Unidos para ser cão-guia, a luz maior de um deficiente visual. A vida da advogada Thays Martinez se divide em antes e depois de Boris. E a dos deficientes visuais no Brasil também, pois Boris foi o primeiro cão autorizado pela Justiça paulista a entrar no Metrô em São Paulo – e isso acabaria se estendendo a nível federal. Aos oito anos, como recomendam os especialistas, ele se “aposentou”, mas continuou vivendo com Thays, que ganhou um novo cão-guia, Diesel. Um ano depois, a luz de Boris de apagou. Numa homenagem a seu grande amigo-guia, ela lançou o livro Minha vida com Boris – onde descreve o comovente trabalho dessas criaturas maravilhosas que dão senso e direção à vida dos deficientes visuais
Já imaginou atravessar uma rua de olhos fechados? Essa é a situação vivida pelos cerca de 2 milhões de deficientes visuais no Brasil. Uma das formas de contornar as limitações é o uso de um cão-guia, cachorro treinado especialmente para conduzir o deficiente visual em suas atividades diárias. Esse animal fica 24 horas ao lado do dono em qualquer lugar: loja, supermercado, cinema, teatro, Metrô, ônibus, café, restaurante, etc. Mas, infelizmente, ainda há poucos cães-guias no Brasil – talvez menos de 100. A fila de espera é imensa. Só no Instituto Iris (Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social, dirigido por Thays), há três mil pessoas esperando pela chance de ter um cão-guia – e o Iris só consegue formar 10 cães por ano. Uma pena que esse benefício não possa ser estendido a todos: ao lado de um cão-guia – e a Dra. Thays sabe isso melhor do que ninguém – a vida de um deficiente visual ganha literalmente novo rumo, nova perspectiva. No Metrô, por exemplo, ele conduz a pessoa até o corrimão da escada que leva à plataforma para que ela possa descer em segurança. E a acompanha até o vagão. O cão-guia, ao permitir que o dono possa trabalhar e se locomover sem depender de outras pessoas, é um instrumento fantástico de inclusão social. Além de protegê-lo das dificuldades, o tira do isolamento, já que o animal acaba atraindo a atenção e a solidariedade das pessoas. Hoje, a luz da vida de Thays se chama Diesel, um labrador de quatro anos, também treinado nos Estados Undos. Mas Boris é inesquecível: 34 | Revista ABCFARMA | NOVEMBRO / 2011
“O Boris ficou
quase 10 anos. Recebi-o no ano 2000 e ele se foi no final de 2009. Ela já estava aposentado e morando comigo e com o Diesel há um ano. Foi difícil para nós três.
” Thays com Boris e Diesel, seu novo cão-guia. Os três conviveram juntos por quase dois anos
Como você compara Boris a Diesel, como cão-guia? São diferentes, mas apaixonantes, cada um à sua maneira. O Diesel está comigo há dois anos e meio. O Boris ficou quase 10 anos. Recebi-o no ano 2000 e ele se foi no final de 2009, quando ele já estava aposentado há um ano e morando comigo e com o Diesel. Foi uma fase difícil para nós três. No início, eu pegava o equipamento de guia para colocar no Diesel e o Boris vinha vestir primeiro. Mas aos poucos ele começou a curtir a aposentadoria.
vida?
Como o cão-guia entrou na sua
Perdi a visão com quatro anos de idade. E aos sete anos, quando uma professora falou em cão-guia, nasceu o sonho de ter um. Sempre fui apaixonada por cães e essa ideia parecia maravilhosa. Comecei a procurar um, ao chegar à adolescência, quando a gente começa a sentir falta de autonomia. Eu não queria andar pendurada na saia da mãe. Mas não existiam escolas de cães-guias no Brasil e eu tive de esperar muitos anos para realizar esse sonho.
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E como ele se realizou? Eu já estava na faculdade e trabalhando, quando soube de um projeto da PM com cães-guia. Cheguei a pegar um labrador, mas não deu certo. Havia a boa intenção, mas não existiam no Brasil profissionais especializados no treinamento de guias. Amigas começaram a me ajudar a procurar na internet escolas de treinamento em outros países. Encontramos uma escola americana, A Leaders Dog for the blind. Entrei na fila seletiva e acabei preenchendo os requisitos. Mas tive de esperar um cão compatível. Um cão-guia não é cedido para o próximo da fila, mas para a pessoa certa. Há um cão certo para cada deficiente visual, em termos de características físicas, como velocidade para caminhar, e tipos de rotina – certos cães, para se sentirem à vontade, precisam de uma rotina fixa. Não era meu caso, porque, no meu trabalho de advogada, eu rodo bastante. Enfim, precisa haver uma compatibilidade. Os instrutores brincam que é um casamento arranjado entre um homem e um cão,
mas, na prática, é uma relação mais estreita que um casamento, porque se convive com o cão 24 horas por dia. Outra coisa: se a pessoa gosta de contato com pessoas, não pode ter um cão refratário a isso. Quando apareceu um cão compatível comigo, fui aos Estados Unidos conhecer e buscar o Boris.
Como é a cabeça de um cão-guia?
Eles são atentos 24 horas por dia. Têm plena consciência da missão. A qualquer movimento do usuário, levantam e estão sempre prontos para trabalhar. Por isso o treinamento é tão complexo – até dois anos.
Como é o treinamento?
São duas fases. A primeira é a de socialização, quando o cão tem dois a três meses, feita por uma família de voluntários, que ensinam ao filhote as chamadas boas maneiras caninas: não subir no sofá ou na cama, não comer alimentos humanos, fazer necessidades em lugar apropriado. A família voluntária o leva para todo tipo de ambiente para que ele se acostume às pessoas,
E as pessoas aceitam bem isso?
a andar de carro, a pé, de ônibus, etc, para que nenhum ambiente gere ansiedade. Quando o cão amadurece, começa o treinamento propriamente dito, de três a cinco meses. É quando eles aprendem a guiar o deficiente visual em linha reta, a menos que recebam um comando para mudar de direção ou detectem um obstáculo. Aprendem também a desviar de obstáculos aéreos, como orelhões e árvores, o que é fundamental para quem tem deficiência visual e usa bengala – porque você só tem contato com o solo. O cão é treinado para fazer o cálculo de altura em relação à pessoa, não a ele. Vai aprender o que é obstáculo, degrau, a encontrar pontos de referência. Se eu vou a um local desconhecido, peço ao Diesel para achar uma escada ou uma porta. Isso facilita muito a minha vida.
Há raros problemas. Em São Paulo, quase nunca. Eu costumo dizer que, às vezes, para a gente tomar um sorvete, tem de dar uma aula de direitos humanos. Quando o Boris chegou, em 2000, havia 10 cães-guia no Brasil inteiro. Hoje, as pessoas sabem que é um cão-guia. Ficaram para trás situações como a que relato no livro. Fui fazer compras num shopping com o Boris e, em dado momento, entrei num restaurante. O garçom nos barrou: “O cachorro não pode entrar”. Ponderei que era um cão-guia. E o rapaz: “Não pode raça nenhuma...”. O Diesel é de uma geração que não enfrenta problemas.
Por que há tão poucos cães-guias no Brasil?
O cão-guia erra? Boris ou Diesel já a colocaram em perigo?
Pode acontecer, sim. Mas é raro. É importante lembrar que já passei por pequenos acidentes mais com pessoas do que com cães... O índice de acerto dos cães é impressionante. Quando “erram”, pode ser até proposital. Há uma história no livro. Saí para uma caminhada com o Boris, tinha chovido muito e, logo que pisamos na calçada, o Boris desviou para o meio da rua e voltou. Fiquei curiosa e fui checar a calçada. Tinha uma árvore caída. Fiz aquela festa para ele e lhe dei os biscoitos que amava. Mais uns metros, e ele fez a mesma coisa. Atravessou a rua e voltou para a calçada. Fiz mais festa, dei mais biscrocs. Na quarta vez, fiquei intrigada. Tinha um casal no portão de uma casa, conversando. Perguntei: tem muita árvore na rua? E eles: “Só tem uma, lá atrás”. O Boris desviou das outras “árvores” para comer biscrocs...
As pessoas devem mexer com o Diesel quando ele está com você?
Quando o cão estiver trabalhando, não, porque qualquer carinho o distrai. É como estar guiando um carro e alguém chamar sua atenção. Tanto o Boris como o Diesel desenvolveram a tática de ignorar um pouco. Há usuá-
A advogada Thays Martinez com Diesel, num dos vagões do Metrô de São Paulo. Ela foi a primeira pessoa a obter na Justiça o direito de entrar com seu cão-guia em todos os lugares públicos da cidade – e essa legislação estendeu-se aos deficientes físicos de todo o país
rios que não gostam que mexam com o cão em nenhum momento, mesmo que estejam sentados, descansando. Eu não me importo. Gosto que as pessoas se aproximem, perguntando. Isso propicia a aproximação das pessoas e um melhor entendimento sobre inclusão social.
O cão-guia já é plenamente aceito no Brasil?
Sim, e por lei federal, baseada na lei estadual de São Paulo, que foi inspirada no Boris. Algumas pessoas devem se lembrar que tive um problema sério com o Boris em relação ao Metrô, resolvido por ação judicial que durou seis anos. Em 2005, uma lei federal garantiu a entrada de cão-guia em qualquer lugar do Brasil.
É uma triste realidade, porque eu sei da qualidade de vida que esses cães trazem para a gente. Eles mudaram a minha vida e eu queria muito que as pessoas tivessem a mesma oportunidade. Já temos ótimos profissionais de treinamento, há alguns centros especializados no país, mas faltam recursos. Já buscamos apoio junto ao governo, sem resposta. O cão-guia tem um custo elevado, que não pode ser repassado para o usuário – o cão é doado para o deficiente visual. A gente trabalha com patrocínio de empresas e doação de pessoas físicas.
Depois de oito anos com o Boris, você se adaptou bem ao Diesel? Confesso que, no começo, cheguei a pensar em devolver o Diesel, mas era por razões emocionais. Por causa de meu vínculo forte com o Boris, eu ficava pondo defeito no Diesel. Mas foi um aprendizado importante: não se pode comparar pessoas e cães. O Boris era da família, meu grande amigo e parceiro, era parte de mim. Foram quase 10 anos, 24 horas por dia. Eu acordava, ele estava do meu lado. Eu estava triste, ele vinha me alegrar. Foi difícil. Sinto muitas saudades do Bóris, mas consegui ver o Diesel como um outro cão e eu o adoro. A gente tem de aprender a respeitar e se adaptar às diferenças. n
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