HUDSON MELO (PI) @udzmelo udzmello@gmail.com
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arte É acrobata . nº 5 . periodicidade semestral
EDITORES
CONCEPÇÃO PROJETO GRÁFICO / LAYOUTMAN DESENHOS/PINTURAS DESTA EDIÇÃO CONSELHO EDITORIAL
TIRAGEM
DISTRIBUIÇÃO / CIRCULAÇÃO
ISSN
abril 2016 .
aristides oliveira demetrios galvão thiago e
teresina / PI
editores acrobatas thiago e
hudson melo
aristides oliveira demetrios galvão thiago e 500 exemplares impresso e digital (issuu.com/revistaacrobata) 2318-3500
CONTATOS
aristideset@hotmail.com demetrios.galvao@yahoo.com.br thiago1403@hotmail.com
Vivemos um momento político muito tenso. Pairam no ar excessos de certezas, julgamentos apressados e uma violência engatilhada. A revista Acrobata levanta as bandeiras da conversa, do afeto, da reflexão e segue adiante. A arte pode ser um bom antídoto para a intolerância e os discursos de ódio que, atualmente, viraram praga, tal qual o Aedes aegypti. Aqui é grande a variação de poetas compondo nosso cenário sempre plural: Laís Romero, Daniel Scandurra, André Vallias, André Monteiro, Joãozinho Gomes, Rosa Laura, André Ricardo Aguiar, Tarso de Melo, Lia Testa, além do português Luís Filipe Marinheiro e do argentino Fernando Noy, traduzido por Wanderson Lima. Temos ainda o conto do Sydnei Rocha. Nossa entrevistada é a atriz e produtora Helena Ignez, uma das figuras centrais do Cinema Novo, contando toda sua trajetória. A discussão literária se encarna na poesia xamânica de Roberto Piva, no artigo escrito pelo pernambucano José Juva. Seguindo com o paraibano Paulo Vasconcelos, que discorre sobre alguma literatura feita atualmente. O Projeto Código Revista, de São Paulo, fala da digitalização e disponibilização dessa revista histórica, editada entre 1974 e 1990. Por fim, a pesquisadora piauiense Maria do Socorro apresenta um perfil biográfico da poeta portuguesa Violante do Céu, que viveu no século XVII. Vamos transitar do sertão à França nas páginas de cinema, com análises fílmicas escritas por José Luís e Natasha Karenina, mergulhando nas obras de Douglas Machado e François Truffaut. A compositora norte-americana Monique Ortiz, artista valiosa do ghotic blues and post-punk, apresenta sua viagem no universo musical. E o produtor Eduardo Crispim traz a série de vídeos S3TART (6 episódios) em que ele acompanha artistas plásticos que espalham sua arte pelas ruas de cidades do nordeste. Toda a revista traz imagens do artista visual Hudson Melo para potencializar nossa viagem intersemiótica. Boas acrobacias!
antídoto
tenho uma pérola de espinhos a circular ligeiramente desmaiada dentro do sangue e todo geométrico sangue sai pelas guelras fora gesticulando na profundidade etérea da minha garganta contra a radiação solar e nas poças transparentes do pulmão um fumo astronómico a inclinar o outro pulmão que baila peito acima e abaixo numa fúria em forma de trovoada as genialidades que mais amo estão viradas para o avesso e essa pérola de espinhos chora dulcíssima com todo o seu génio sobre choques térmicos deste frágil som eléctrico e um trémulo bolor solta-se como repuxos abruptos depois subo tantos degraus quantos tombo enrolado numa treva em delírio adentro no incêndio deste crime roubo o futuro da luz e das cidades sem qualquer desvastação ou beleza que magneticamente racha o ilusório nocturno lugar como a pancada desse sangue brutal compõe esses espinhos formidáveis até colocar as pérolas em cima da boca sedutora e doce e a garganta em chaga aniquila todos os espinhos e pérolas desaparecendo-os um por um destes movimentos muito quentes estrangulando-se sem memória nem coração
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FILIPE MARINHEIRO (PORTUGAL)
Nasceu em 1982. No liceu, seguiu o agrupamento de humanidades, licenciando-se em Gestão de Marketing pelo Ipam Aveiro entre 2001-2006, antes do processo de bolonha. Publicou os livros Um Cândido Dilúvio - Acto I e Sombras em Derivas - Acto II (2013) Silêncios (2013) e Noutros Rostos (2014). _____________________________________________________
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fecho os olhos abro-me nos teus como uma balada impune no seu sangue oscilante entretido percorro-te, estremeço-me nas veias singulares depois com a ponta da língua afável caligrafia reponho as cordas giratórias e andas no meu imenso chão um chão embalado p’los nossos sorrisos de cetim só teu, só meu a transformar-se
porém nunca a concluir ou terminar salvo esse romance nada súbito a apertarem violetas durante jactos perfumados decerto uma bondade eterna eis donde chegam os meus afectos
e nas artérias de seda cristal crias novas meigas cores novos ligeiros ares novos amantes tons novos endurecidos ruídos novo auroreal amor para eu continuar a ver a ver-te debruçada sobre mar transparente com veludo de orvalho entre os poros a ver-nos encalhados continuando a moldar brancos banhos
como numa nossa gargalhada a dormir no cume de videntes astros adentro só dessa maneira estaremos destinados a tais grandes coisas
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CORPO E NARRATIVA: JOSÉ LUIS SILVA (PI) Doutor em História. É professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – IFPI. Desenvolve pesquisas que envolvem História e Linguagens, em especial a cinematográfica. E-mail: jlclio@yahoo.com.br _______________________________________
Cipriano (BRA, 2001), o filme objeto dessa escrita, foi dirigido pelo cineasta Douglas Machado e contou com uma equipe de atores e patrocinadores, em sua maioria, piauienses. Cipriano, ambientado no sertão do Piauí, gira em torno do que se imagina ser uma imagem possível da família sertaneja: Cipriano, vaqueiro e patriarca viúvo, e seus filhos Abigail e Vicente. Além desse núcleo central, existe ainda rezadeiras e, materializados em corpos humanos, os Demônios e a Morte. As referências à experiência temporal no filme, em nenhum momento são enunciadas em termos cronológicos, sinalizando que o tempo a estruturar a narrativa se apresenta na forma de tempo vivido, internalizado no próprio corpo, não necessitando ser organizado em uma sequência com marcações histórico-lineares precisas. Em estreita coerência com a proposta de filmar uma temática que se pretende universal e onírica, os realizadores de Cipriano optaram por uma marcação temporal baseada na (des)estrutura dos estados mentais de uma personagem esquizofrênica, Vicente, que se divide entre o convívio com os vivos e suas memórias de Santos e mortos. Com esse artifício, Cipriano impõe as marcas e estruturas de um tempo vago e fluido sobre possíveis fatos datáveis.
É possível afirmar que são as referências espaciais, mais do que as temporais, que estruturam e dão vida à narrativa do filme. Em Cipriano, há uma estreita relação entre o desenvolvimento da narrativa, os laços afetivos estabelecidos com os espaços e os jogos de memória efetivados por suas personagens. Nessa relação, o espaço não pode ser pensado apenas em termos de um território definido por suas características físicas mensuráveis, mas, sobretudo, no sentido de um espaço significado, carregado de afetos. Da mesma forma, a noção de espaço em Cipriano também não está limitada a uma espacialidade geográfica, pois há de se levar em consideração o próprio corpo como lugar primeiro de habitação e significação espacial dos indivíduos. Embora, a princípio, o filme busque referenciar o sertão como espaço mensurável, não se pode desconsiderar que na cultura brasileira se atribuem valores a este espaço que extrapolam as suas delimitações geográficas, revestindo-o com as cores do imaginário. Desse modo, não me parece inapropriado afirmar que se criou na cultura nacional uma verdadeira “poética do espaço” sertanejo, responsável por construir estereotipias que policiam as imagens e agenciam significados para esse lugar na cultura brasileira. O que particularmente interessa nessa discussão é pensar os porquês do sertão ser buscado como palco por meio do qual o filme pode problematizar a memória, as questões identitárias e a construção do sujeito em sua relação com a tradição. Curiosamente, o filme não pontuará qualquer temática relacionada a problemas ligados aos meios de sobrevivência das suas personagens, pois o sertão que se busca é, propositalmente, a-histórico e universal e, como tal, dispensaria uma análise socioeconômica. Uma leitura transversal desse aspecto revela como, mesmo tentando fugir da obrigatoriedade de usar o sertão como artifício metafórico para a denúncia social, o filme não consegue se livrar da estereotipia negativizadora usada para personalizar esse espaço. Essa estereotipia é retomada no sentimento de que a seca, por ser algo intrínseco e natural àquele universo, dispensaria sobrecarga retórica ou, em outras palavras, estaria tão presente, atuante e impregnada na vida daqueles que habitam a região, que uma análise de suas consequências seria desnecessária e redundante. 10
Se Cipriano não explicita uma relação direta entre as ações, os sentimentos e os desejos das suas personagens e as adversidades naturais e sociais do ambiente em que vivem, por outro lado, refinancia a aproximação entre a densidade existencial delas e o ambiente natural em que vivem as suas experiências. Na visão de um dos seus produtores, são personagens “orgânicos”, “universais”, que escapam do “subjetivismo” e do “sentimentalismo”, de onde se subentende que, mesmo não sendo vítimas do meio, mantêm com este uma relação visceral. Duas personagens do filme carregam características físicas singulares e sugestivas para uma reflexão sobre a experiência do corpo como lugar vivido e sua relação com a construção de uma imagem negativizadora para o sertão, são elas: a ausência de fala do patriarca e o estado de desorientação físico-mental de Vicente. Dadas as temáticas envolvidas no filme, considero que esses aspectos incomuns que marcam as duas personagens não são fruto de coincidências e, por isso, podem jogar luz sobre as tensões que envolvem as (re)apropriações das narrativas fundadoras do que comumente se vendo como sendo o sentimento de piauiensidade. Cipriano, em seu mutismo, é apresentado como um ser impotente e preso a um passado que seu filho recusa veementemente. Em sua primeira aparição, a estruturação da imagem do pai em contraste com a do filho é emblemática: um parece ao mesmo tempo completar e se opor ao outro. Vicente é amorfo como a água, é fluxo de pensamento que se liberta com a fala; Cipriano é mudo, seco e áspero como o chão da caatinga sobre o qual aparece deitado. Enquanto a câmera passeia sobre o corpo imóvel do patriarca, o narrador o apresenta:
Cipriano! De velho já não se contam os anos. É muito velho [...] parece que bastou na idade. Minha irmã Abigail diz que ele passou a vida inteira atormentado por sonhos [...] que ele falava de santos que cuspiam fogo, de ondas enormes, maiores que uma igreja, de um cemitério perdido, onde ele devia ser enterrado. Não me lembro o tempo, mas um dia ele acordou com medo [...] e calou-se, não falou mais. Tampouco isso importa. Ele não fala. Não fecha os olhos. Nunca vou saber. Não queria ser seu filho e, por não querer, não sou. Ele sonha, eu vivo.
Essas palavras, de forma sutil, delimitam a temática e a estrutura narrativa do filme: posicionado no presente, o narrador se sente seguro para referenciar um passado que, mesmo negado, ainda marca suas memórias e as carrega de ressentimentos. Como observou Walter Benjamin, em seu texto sobre a experiência de narrar, a perda da possibilidade de intercambiar experiências, leva, inevitavelmente, à dificuldade posta ao indivíduo de se reconhecer em uma memória que se acredita comum; neste caso, materializada na figura do patriarca, que não pode mais cumprir sua função de depositário de uma experiência útil às novas gerações. Benjamin, ao falar da perda da capacidade de relatar experiências sob o contexto pessimista e melancólico pós-Primeira Guerra Mundial, não está se referindo à perda material da fala enquanto capacidade de emitir sons, mas do não reconhecimento de sentido entre o narrador e seu interlocutor. Ora, essa perda da capacidade narrativa – que em Cipriano ganha materialidade em seu mutismo – é a exteriorização da sua impotência e decrepitude, pois, sem a linguagem, aquele indivíduo perde a faculdade responsável por “situar o homem em suas relações com o outro”. Cipriano é transformado em alegoria para pensar a relação conflituosa que se estabelece com o passado, com o qual, embora pareça fundador, não se tem identificação e que por isso é recusado. Resta pensar o estado de descontrole físico-mental de Vicente. Para esse propósito, ele necessita ser ouvido em suas falas no início e no fim no filme:
[...] quando eu nasci, a calmaria do meu pensamento virou tempestade em meu corpo; minha voz saía estranha, meus olhos enxergavam estranho, meu corpo era dono de si em seus movimentos. [...] Minha voz é a voz que se entende, meu corpo já se controla... meu riso não é mais de louco. Desde aquele dia [da morte e enterro do pai] já sentia minhas calmarias.
Não obstante as limitações físicas e mentais de um corpo que abriga uma convulsão de sentimentos em seu interior, Vicente parece manter uma acuidade temporal que é vivida e organizada através dos fatos que lhe são mais significativos: as mortes da mãe e do pai. A construção da metáfora do pai em oposição ao filho para dela compor uma imagem relativa ao sertão acontece de forma intencional, pois Douglas Machado ancora o seu filme nesse antagonismo arquetípico. Embora Vicente pareça viver isolado em seu mundo, por não se comunicar numa voz que se reconheça, a personagem não tem o seu mundo interno totalmente dissociado do externo, podendo, inclusive, transitar entre um e outro. Nesse sentido, remeto-me à Pankow pois, segundo a autora, para que um corpo encontre um lugar reconhecido, ele deve ser suturado, pela linguagem, em suas relações com o outro, exatamente uma das questões problemáticas entre as personagens do filme. Ainda reportando à Pankow, o corpo humano pode encontrar uma ordem que leva à sua estabilidade de duas maneiras: “com referência às relações interhumanas” e “com referência à ordem espacial do próprio corpo”. Segue-se, então, a dúvida: para que um corpo encontre uma ordem estável, é necessário que ele esteja, ao mesmo tempo, reconhecido em uma memória significadora e entrelaçado a uma espacialidade? No caso de uma resposta positiva, entender-se-iam os conflitos que atormentam Vicente, já que ele não se encontra reconhecido nem nas relações inter-humanas – devido aos sérios problemas no interior da família – nem com a ordem espacial do seu próprio corpo – já que se trata de um corpo patológico que aparentemente não pode ser controlado pelo seu dono. 13
ROSA LAURA (SP) Nestas pรกginas, adesivo sobre vidro, ccsp. behance.net/rosalaura fotos lima rina _________________________________________________
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JOSÉ JUVA (PE)
Mamífero, poeta, ensaísta. Jornalista, mestre e doutorando em teoria da literatura. Publicou os livros: Deixe a visão chegar: a poética xamânica de roberto piva (2012), Vupa (2013) e Breve breu – escritos sobre literatura & cinema (2014). _________________________________________________
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FOTO | OS DENTES DA MEMÓRIA - AZOUGUE
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- A primeira publicação importante dos poemas de Roberto Piva foi na Antologia dos Novíssimos, em
-1961, num projeto do Massao Ohno, importante editor independente brasileiro. Agora, pouco mais de -
cinqüenta anos nos separam deste instante inicial. Roberto Piva nasceu em São Paulo, em 1937, e morreu em 2010. Formou-se em sociologia, deu aulas no ginasial e foi também produtor de shows de rock. Agora, seu percurso poético pode ser apreciado em sua quase plenitude - existe um volume de poemas inéditos, intitulado Corações de Hot-Dog, no prelo. Podemos compreender as principais tendências e práticas poética de Roberto Piva, com o seguinte desenho: num primeiro momento, construído no delírio de versos longos, num diálogo fecundo com a beat generation, como em seu livro de estreia, Paranoia, de 1963; em seguida, realizado nos cruzamentos experimentais e psicodélicos entre poesia e prosa, como em Abra os olhos e diga ah!, de 1976; por fim, calcado no êxtase de um erotismo sagrado, visionário, místico, como em Ciclones, de 1997. Estas divisões servem para nos situar, mas não devem nos obscurecer as continuidades, misturas e aspectos que se espalham por toda a obra. Em sua poética podemos captar tanto registros iconoclastas e selvagens quanto passagens sublimes e serenas, de versos como “o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela”, ou poemas, feito o delicado: o arco-íris é o colar do feiticeiro que apaga o dia com a mão direita & inaugura a noite com a mão esquerda.
Na poética de Roberto Piva, saberes ancestrais, míticos e místicos, se irmanam num diálogo com as contribuições de um modernismo brasileiro (com forte presença das figuras de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Jorge de Lima e Murilo Mendes), e com o surrealismo e a poesia beat – inclusive na perseguição de um estado de coisas em que a literatura e a vida estejam reunidas, imbricadas num mesmo gesto, movimento. A poética de Roberto Piva desencadeia forças e energias de transgressão, uma escritura atravessada pelo devaneio e pela intuição alucinada. Movendo-se no magma da contracultura da década de 60, o poeta partilhou interesses com poetas companheiros de geração pela busca de caminhos criativos e críticos (religiões do êxtase, como o dionisismo, busca de estados alterados de consciência, erotismo embebido no desregramento dos sentidos, etc.) que fornecessem substrato para a superação dos limites e interditos colocados pela infiltração cotidiana dos valores tecnocráticos. O animismo e a possessão, por exemplo, no poema Incorporando o jaguar: 17
na escada do vento o sonho folha que cura pequeno exu que dança extático.
Tal poética, como num percurso iniciático, envolve os exercícios delirantes e nonsense que situam Paranoia (1963) e Piazzas (1964) e replicam as necessidades de despojamento dos sentidos habituais, embotados, para a elaboração e emergência de novos significados e valores. Em seguida, com as mobilizações alucinatórias e o acento psicodélico de obras como Abra os olhos e diga ah! (1975), Coxas (1979), 20 poemas com brócoli (1981) e Quizumba (1983), o poeta indica os mergulhos em estados alterados de consciência, vetores para a construção de novos sentidos, movimentação por paragens não-localizáveis pela inspeção racional – como na viagem por mundos subterrâneos e celestes efetuada pelo xamã. E, por fim, ao termo do percurso iniciático/poético, as intuições visionárias, extáticas e iluminadas gestadas em Ciclones (1997) e Estranhos Sinais de Saturno (2008). Escrever sobre Roberto Piva nos coloca algumas questões a respeito das visões do autor (implicadas nas declarações a seguir) sobre as relações entre o poeta e a poesia, literatura (e as artes, de maneira geral) e vida, linguagem e cosmos, sagrado e profano, existência e êxtase, revolta e capitalismo, mundo natural e cidade – para nos determos em algumas indicações de trilhas possíveis para uma investigação. Roberto Piva é um poeta que disse/registrou: “não acredito em poeta experimental sem vida experimental”, “a palavra registrada em livro é mera extensão (sublimada) do que sobrou da orgia”, “o poeta precisa se colocar no coração anárquico da vida”, “o coito anal derruba o capital”, “eu faço minha oração para o arco-íris”, “o caminho do poeta/xamã é o caminho do coração”, “poesia é iniciação (...) os primeiros poetas eram xamãs e curandeiros”, “os poetas brasileiros têm que deixar de serem broxas pra serem bruxos”, “eu quero a onça-pintada na Avenida São João”, “o estado mantém as pessoas ocupadas o tempo integral para que elas não pensem eroticamente, poeticamente, libertariamente”, “o delírio foi afastado da teoria do conhecimento”, “O Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia, o resto é literatura”.
O mito não é estranho na composição de espaço e tempo conflagrada pela poética visionária de Roberto Piva. No corpo dos poemas, a aparição de personagens tais como Dioniso, Shiva, Exu, Xangô, Eros, Satã, Amon Ra, Buda é freqüente – tais figuras e outras se embaralham num painel construído ainda com referências diversas colhidas na plataforma mítica xamânica, por exemplo, em algumas figuras de ascensão (pássaros, plantas, astros) e também alusões às presenças de outras ordens diversas (artistas, místicos, ovnis, etc.). A compreensão da possibilidade do mito (sua plataforma, sentido, forma de proceder) no seio do industrialismo e da racionalidade nos auxilia, nos habitua ao conjunto de visões que dialogam com as criações poéticas de Roberto Piva e seus desdobramentos e idéias implicadas. Poderíamos dizer que o mito não tem um tempo. Antes, é a manifestação atemporal na carne do instante: aparece no passado, no presente e no futuro e transporta os indivíduos para jornadas interiores e relações dialógicas com a multidão de corpos da vida (animais, plantas, astros, etc.). E o poema é uma aparição inscrita na história, mas que não cessa de dizer suas ultrapassagens, como indica Piva num poema curtíssimo e intenso: esqueleto da lua o tempo tambor tão frágil vomitando a noite.
Situando a origem da poesia na prática xamânica, Piva indica camadas de significados a serem escavados numa leitura de seus poemas como visões do inconsciente numa perambulação por siderações cósmicas e míticas. Dito de outro modo, a atenção crítica sobre os poemas de Roberto Piva amplia seu espectro de atuação ao considerar os elementos xamânicos implicados na escritura e materializados na composição, nos arranjos das visões. A busca, a jornada de Roberto Piva foi a de um poeta que percebe as afinidades entre a prática poética e as práticas rituais e mágicas. Assim, uma leitura xamânica da figura do poeta, desprendida da obra de Piva, nos indica que o poeta é um sujeito que vive, viaja e vê as possibilidades de cruzamentos e articulações entre as visões interiores e o mundo da vida; um sujeito que se aventura para embaralhar, escavar, fundir, burlar os limites entre linguagem e vida; um sujeito que dilui as fronteiras entre a vigília e o sonho; um sujeito que embarca numa jornada de ascensão celeste e descenso infernal para ampliar as possibilidades de libertação da alma humana das opressões existenciais; um sujeito que se lança no contato com as forças da psique e a linguagem do cosmos para o aumento no conhecimento da morte. 19
FOTO | OS DENTES DA MEMÓRIA - AZOUGUE
Em Ciclones e Estranhos Sinais de Saturno, as “paranoias” de Roberto Piva o conduziram poeticamente para longe dos cenários desequilibrados, caóticos e perversos da cidade de São Paulo. Parece-nos que o poeta encontrou, na construção da cena xamânica, o asilo, o refúgio distante da “cidade de lábios tristes e trêmulos” (verso de Visão 1961, poema presente em Paranoia). Em lugar da presença constante de “praças”, “ruas”, “esquinas”, “avenidas”, multidões agoniadas e do verso longo dionisíaco e ditirâmbico presente na produção inicial do poeta (como em Paranóia), os versos curtos, “fotográficos”, próximos da concisão do haicai, de imagens condensadas do espaço aberto e de horizonte infinito das materializações do mundo natural (mares, desertos, planícies, céu, constelações, montanhas, etc.). Eis um poema exemplar destas configurações:
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Eu caminho seguindo o sol sonhando saídas definitivas da cidade-sucata isto é possível num dia de visceral beleza quando o vento feiticeiro tocar o navio pirata da alma a quilômetros de alegria.
Para o poeta, as ruas da cidade não são espaços de regeneração, de contato com as potências de um devir cósmico. Até mesmo o vento, presente em múltiplas ocasiões, distribuído entre correntes que perambulam por todas as direções do planeta, força em movimento que relembra a idéia de mente e alma para as percepções baseadas nas correspondências entre os elementos do mundo natural e o homem, não consegue transpor a clausura, a “permanente falha mecânica” da mentalidade de uma época encarcerada numa visão de mundo embotada e fraturada onde não se materializa “O Maravilhoso”.
Roberto Piva registra poeticamente a aproximação intuitiva do mundo natural e instaura uma relação dialógica, não-mecanizada com a natureza. Assim, o poeta se move dentro das esferas de um mundo natural prenhe de significados cósmicos. O sol, o céu, o deserto, o vento, o verão, o dia, a floresta, tudo conduz à apreciação das presenças cósmicas, que transcendem a condição humana ao mesmo tempo em que se inscrevem no cotidiano vivencial dos humanos. O poema se transforma num espaço para o encontro vertiginoso entre o poeta e os conteúdos simbólicos e míticos inscritos no mundo natural de maneira cifrada. A poética visionária de Piva busca, então, realizar, materializar uma leitura orgânica da realidade. A poesia opera uma escritura capaz de colocar em movimento os mananciais simbólicos dos lugares de poder da existência. O poeta sugere deslocamentos vivenciais, de busca de hierofanias, errâncias: frio nas fronteiras do topázio abandonei-me ao mês do Deus do Vento floresce no meu corpo um ponto secreto entre os cometas vivos do êxtase.
A construção poética de Roberto Piva, calcada na visão xamânica de uma paisagem suspensa num tempo mágico, explora os vínculos íntimos entre o regime noturno e o regime diurno da vida terrestre, entre as aparições do sol e da lua, do dia e das estrelas e nos levam para uma dimensão onde a “Poesia é desatino / Abrindo a Noite / No excesso do Dia”. A poética xamânica de Roberto Piva estimula apreensões e en-tendimentos sobre a necessidade da reinvenção dos hábitos estabelecidos dos sujeitos mergulhados numa sociedade de consumo, que mecaniza as relações entre os humanos e entre estes e as forças espirituais do mundo natural. Esta poética destaca a importância das iniciações míticas permitidas pela aproximação e contato fecundo com elementos do cenário cósmico. Ao gestar uma sensibilidade xamânica para a composição de um erotismo sagrado, Roberto Piva põe em jogo, desencadeia o exercício de confrontos entre as visões míticas propiciadas pelas vivências das forças cósmicas e do mundo natural (deglutidos por uma sensibilidade subversiva) e as normas e limites impostos pela ordem social planetária vigente e a hegemonia da lógica de trabalho e consumo – incluindo, ainda, um confronto com as religiosidades que se firmam na negação do corpo e do erotismo e no estabelecimento de uma autoridade divina única e incontestável, institucionalizada.
Piva, como um xamã furioso e visionário, forjou poemas que situam uma perambulação por regiões infernais e paragens celestes para escapar ao cerco das domesticações dos instintos libertários e sensuais – clausura que informa e opera as engrenagens do cotidiano e suas mordaças contra o tesão, o ócio e a contemplação em nome da produção, da circulação de bens e do consumo. A poética xamânica de Roberto Piva incita a um transbordamento de sensações e pulsões eróticas, indicando arrebatamentos íntimos e transcendentes que extrapolem as amarras da produtividade. O lugar xamânico erigido por suas construções poéticas torna possível recolher estilhaços de imagens que nos conduzem para a emergência de valores que confrontam as forças hegemônicas da ideologia dominante no capitalismo tardio e nas religiões monoteístas. Ao recombinar magicamente mitos e experiências biográficas numa escritura delirante, o poeta/xamã nos permite encontrar os vetores para a idéia e prática da poesia como possibilidade de reencantamento do mundo e potência curativa para as desordens psicossociais que acometem os sujeitos de nossos dias. A poesia, assim como as narrativas performáticas do xamã, transborda novas sensibilidades, possibilita transportes para regiões desconhecidas pela inspeção racional e pode reverberar como potência curativa, inclusive no excesso:
A leitura deste universo criativo nos educa para a possibilidade do exercício de uma micropolítica, de uma sabotagem contra os valores hegemônicos que norteiam e que informam a contemporaneidade, criando uma atmosfera de sensibilidades subversivas, uma associação de vontades libertárias – as visões poéticas desdobradas na escritura xamânica investem num exercício de afetos livres, numa ambiência cósmica, numa apreensão ao mesmo tempo mítica e crítica da realidade social, de diálogos e experiências desviantes da lógica do trabalho, do útil, do produtivo.
FOTO | OS DENTES DA MEMÓRIA - AZOUGUE
seja devasso seja vulcão seja andrógino cavalo de Dionysos no diamante mais precioso.
Roberto Piva estimula e põe em movimento em sua escritura xamânica energias que combatem as cadeias do “penico estreito da Lógica” e o mundo asséptico das racionalizações castradoras operadas pelos agentes cartesianos e as repressões sobre as práticas sexuais. Como registra no manifesto bules, bílis e bolas: “A vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência”. Assim como o xamã é alguém que ficou doente e, depois do contato com poderes espirituais, cósmicos e forças da natureza, conseguiu curar a si mesmo, podendo depois curar os outros sujeitos, Roberto Piva é um poeta que diluiu os limites entre linguagem e vida (e libera neste trânsito energias curativas), experimentando delícias míticas e sexuais trazidas para a expressão poética e reelaborando forças poéticas no torvelinho do mundo da vida – e atingido, deste modo, a plenitude das visões e consagração xamânica. Roberto Piva dissolve as tensões e frustrações que envolvem os sujeitos da espécie, indicando caminhos insuspeitados, mapas desenhados na atividade onírica e curativa da poesia visionária. Poderíamos escrever sobre a poética xamânica de Roberto Piva tudo de outra maneira, mas para isso é preciso deixar a visão chegar. Outra vez. E mastigar um cogumelo: come o teu cogumelo no coração do sagrado fazendo sinais arcaicos procura entre praias, montanhas & mangues a mutação das formas sonha o mundo num só tempo o cogumelo mostrara o caminho só o predestinado fala a lua lilás do cogumelo levará ao rio das imagens Sombras dançam neste Incêndio.
Quando era infância tive o meu caderno de chuvas: algumas rasuradas, outras fiéis cópias dos deveres do céu.
A idade das chuvas
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Quando era infância, minhas chuvas eram as águas do que poderiam ter sido: fruto de rios bem cursados. Mas herdei a chuva ancestral que põe umidade na alma e passa o ano a acarinhar a palidez das poças de lama.
E é a mesma água que ainda sonha os grandes oceanos.
Construção da chuva
Não me desfiz nem dos pergaminhos nem dos fantasmas.
ANDRÉ RICARDO (PB) Nasceu em Itabaiana, Paraíba, em 1969. Publicou, entre outros, os livros de poemas A Flor em Construção (Ed. Ideia, 1992) Alvenaria (Ed. Universitária/UFPB, 1997) e A Idade das Chuvas (Ed. Patuá, 2012). É membro-fundador do Clube do Conto da Paraíba e coordenador de projetos de incentivo à leitura. ________________________________________
A assombrada leveza dos morcegos e a noite roendo minhas insônias,
os parágrafos noturnos da chuva a escrever o telhado (finíssimo casulo), enquanto o mundo lá fora sempre às vésperas de ser novamente lido era a cópia eterna dos dias já findos.
PISTAS CINEMATOGRÁFICAS E PEDAGÓGICAS DE
“OS INCOMPREENDIDOS” Batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio. Noel Rosa
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NATASHA KARENINA (PI) Mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC. Bacharel em Direito pela UFPI. Professora. Bonita e bem relacionada. ____________________________________________________
O jovem francês François Truffaut tinha apenas 27 anos quando foi agraciado no Festival de Cannes de 1959 com o prêmio de melhor diretor em virtude de sua primeira incursão cinematográfica Os incompreendidos (Les quatre cents coups, 1959). Nada mal para ele que, posteriormente, seria consagrado como um dos diretores seminais do movimento Nouvelle Vague e dos mais aclamados cineastas do século XX. A película retrata as desventuras de Antoine Doinel, garoto de aproximadamente 13 anos, interpretado por Jean-Pierre Léaud. Protegido pela brilhante atuação de Jean-Pierre e por suas próprias lentes, o diretor volta seu olhar crítico às duas instituições educacionais básicas: a família e a escola. O protagonista é o alter ego de Truffaut, que utiliza-se de ferramentas cinematográficas para contar de forma quase autobiográfica suas vivências e expressar medos, frustrações, sonhos e expectativas. A escolha do ator mirim foi criteriosa e vigorosa. Apesar do grande número de candidatos, Jean-Pierre, contudo, obteve maior destaque nos testes em virtude de seu talento. Muitos atores preteridos puderam integrar o elenco e participar das cenas de sala de aula. As similitudes e discrepâncias entre personagem e intérprete foram ponderadas pelo próprio diretor ao relatar que, apesar do entusiasmo, brio e revolta de ambos, Doinel era mais soturno e culto e Léaud mais saudável e desafiador.
A experiência de trabalhar com Jean-Pierre extrapolou o próprio filme Os Incompreendidos. Ator e diretor concordaram continuar a saga de Antoine Doinel juntos. O amadurecimento de Antoine, Jean-Pierre e Truffaut foi imbrincado e televisionado. O público pode acompanhar cada fase da vida de cada um dos três individualmente e da trindade materializada pelas lentes do cinema, o que propiciou um maior sentimento de empatia, identificação e reconhecimento. Da infância ao divórcio, dos amores e fugas, tudo emergia das lentes e se multifacetava por meio da figura de cada um destes homens. A peculiaridade de Os Incompreendidos reside no próprio trabalho desenvolvido de forma tenra e despretensiosa com crianças. Talvez este não seja o termo mais preciso, tendo em vista os jovens atores se encontrarem não propriamente na infância e sim no adolescer. Esta saída do útero social, representado pelo peso da família e do sistema escolar falido, para uma vida mais ousada e autônoma pode ser vista, inclusive, como uma ruptura do ambiente privado para o público, e da educação formal para a informal. A dificuldade de se trabalhar com crianças dialoga umbilicalmente com a beleza que esta atividade enseja. Energia, espontaneidade, vigor, entusiasmo e curiosidade são elementos de difícil controle e de enorme potencial cinematográfico. Se para Alfred Hitchcock, os atores e atrizes deveriam ser tratados como gado e o verdadeiro ar criativo e poético adviria do diretor, para Truffaut não haveria necessidade de conduzir as crianças para ações voltadas à beleza, poesia e sensibilidade. A construção do roteiro partiu dele e de Marcel Moussy, e o filme pode ser verdadeiramente visto como um ensaio riquíssimo sobre a transição infância/adolescência.
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A dita “originalidade juvenil” já havia sido temática motivadora de outros clássicos. O também francês Jean Vigo, em um de seus últimos filmes, Zero de Conduta (Zéro de Conduite, 1933), retrata um grupo de crianças, que ao voltarem de férias para o internato, se mobilizam contra a violência com a qual eram tratados pelos professores. Já o mexicano Luís Bunũel, em seu Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950) retrata a vida de jovens tidos como delinquentes que cometem pequenos furtos nos subúrbios da Cidade do México. A partir de cada um destes recortes se pode enxergar a beleza, a doçura e poesia da “incompreensão” consubstanciada nos atos de desobediência. O interregno temporal é justamente esta idade perigosa de transição, o meio, o despertar, o rito de passagem da infância à adolescência permeado por elucubrações, erupções, dores, transformações e rupturas. Sob o olhar deste ser limítrofe, podemos ver o que fomos adestrados a esquecer. Enervante, charmoso e em apuros, Antoine, nosso anti-herói, nos abrilhanta com suas brincadeiras e trapaças. O nome original do filme Les 400 Coups remete à expressão idiomática francesa faire les 400 coups, que pode ser traduzida para o português como “pintar o sete”, o que representa o ar lúdico, ousado, rebelde e destemido do personagem. Quatro são os principais cenários onde o personagem experiencia a vida: escola, família, rua e reformatório. Disciplina, controle, violência, punição, educação e desobediência são marcos importantes a não se perder de vista.
No começo do vídeo, a vida de Antoine se passa nos primeiros três âmbitos. Infere-se do filme que a vida econômica familiar é modesta: todas as atividades domésticas – ascender o fogo, arrumar a mesa, levar o lixo para fora – são realizadas por Antoine e cenário e figurino denotam condições econômicas precárias. A mãe ausente se mostra rabugenta e mal humorada. O pai é um gozador e verbaliza discursos de perseverança e ascensão social pelo trabalho. As brigas são constantes assim como o abandono afetivo. Ambos cumprem também um papel moralizador que pode ser percebido no tratar deles com o tema gravidez. Ao contrário do cotidiano familiar, marcado pela ausência, o escolar é sufocante, seja pelo cenário apinhado de objetos, seja pela presença severa e autoritária do professor. A metodologia escolar se constrói a partir de controle e punição. Enfileirados, os alunos devem manter silêncio e foco aos dizeres do professor. Qualquer barulho, brincadeira ou tentativa de incomodar a boa disposição da aula é intolerada e punida com xingamentos, ameaças, castigos – prostração no canto da sala, perda do recreio, limpeza da sala – e violência física e moral. A ordem e a disciplina são mantidas com a imposição rígida de um código de conduta. Pode-se perceber, inclusive, a tradicionalidade da transmissão do conteúdo pela ida forçada ao quadro-negro e pelo ensino da gramática e da literatura feito de forma hermética, sem qualquer espaço para o florescimento da criatividade e a construção das subjetividades. A poesia, costumeira manifestação das emoções, é tratada de forma fria sem qualquer percepção e utilização de seu lirismo intrínseco. A rebeldia típica deste momento etário se expressa na insolência das brincadeiras feitas às costas do professor e na desobediência das regras na ausência do olhar do adulto. Seguindo o brocado “Toda ausência é atrevida”, os alunos aproveitam qualquer desatenção mínima do professor para desobedecer. A ambiguidade é percebida na motivação do caráter destes atos: a consciência do desobedecer se mistura ao desinteresse e despretensão próprios das brincadeiras desta idade. Ingenuidade e malícia se abraçam. A busca de atenção e redenção pertence ao mesmo ato.
É possível perceber a inadequação da “originalidade juvenil” à abordagem de ensino tradicional e ao modo dogmático como as verdades são colocadas. É portanto na rua, que aquela categoria ganha espaço para se desenvolver e fica ainda mais notável. A vida na rua é aparentemente livre e sem amarras do formalismo, e evidencia a suposta falta de normas e de controle. Longe da mãe relapsa, do pai adotivo e do professor cruel, Antoine desperta para si e para o outro e se descobre enquanto ser. Os atos de rebeldia próprios deste período de transição são retratados no “matar aula” para brincar com os amigos, ou ir ao cinema, na falsificação de assinatura dos pais, no mentir, no uso de cigarro, no cometimento de pequenos furtos, na ida à delegacia e ao reformatório. A motivação brota da necessidade de adaptação e “tentar se virar” frente às adversidades, o que se aproxima do jeitinho brasileiro ou, em francês, code b. Em decorrência de um dos ingênuos golpes de Antoine – roubo desastrado de uma máquina de escrever – ele é levado à delegacia: aparato punitivo estatal (polícia) e marginalizados (ladrões e prostitutas) coabitam o pequeno espaço cru, cruel e real. Da delegacia, é levado a um centro para delinquentes juvenis. A educação militar, que havia sido ventilada pela mãe em uma briga, parece a última tentativa de adequação social do jovem. Além da privação da liberdade, seus direitos à expressão e à rebeldia são tolhidos. Uma das mais belas cenas do filme se passa inclusive neste ambiente. Antoine é inquirido por psicóloga sobre suas motivações e em vez da câmera focar ambos e o cenário, foca diretamente o rosto de Doinel. O desabafo, o desespero e a confusão ingênua são propaladas diretamente ao público e percebidas pelo olhar perdido, respostas confusas e inquietude dos gestos. Não há de fato uma relação horizontal, um diálogo entre ambos, mas sim um interrogatório. A expiação, se houver, não é feita à psicóloga, que aqui representa o próprio Estado, e sim a quem se dispor a ouvir. Novamente inadaptado, Antoine foge, agora a pé para a praia. A cena final – livremente apropriada inclusive por Glauber Rocha – encerra a solidão e a melancolia que perpassam toda a película. É considerada um importante referencial cinematográfico da Nouvelle Vague pela forma inovadora como a câmera se movimenta. Tomado pela imensidão do mar e, provavelmente, pelo sentimento de pequenez frente ao infinito, o rapaz molha os pés no mar, olha para a câmera e o filme se encerra sem ter fim.
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As referências à educação formal e à informal podem ser percebidas por meio do modo como o personagem ocupa os espaços e cenários e interage com os demais sujeitos. À época, a abordagem única era a tradicional que se mostrava extremamente opressora, uniformizante e castradora das subjetividades. A pureza das concepções e práticas educacionais é rara: corpo escolar tem escolhido uma abordagem como principal e se assessorado das demais para permitir uma oxigenação do método e atender às demandas contemporâneas, que exigem um ganho maior de técnicas e habilidades. O filme demonstra a nítida inadequação de Antoine – e mesmo de seus colegas menos afoitos - à abordagem de ensino tradicional. Além da repaginação do método a ser feita pela escola, é necessário procurar uma abordagem adequada a cada criança. A inadequação, quem sabe, não esteja no educando, mas sim no próprio modo de educar. Quem sabe, por exemplo, o humanismo – retratado no filme Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poet Society, 1989) – fosse mais adequado para atender às demandas criativas e impulsivas de Doinel. Em vez de ser um antissocial, um delinquente, um rejeitado, ele pudesse desenvolver sua criatividade a partir da autodescoberta e autodeterminação próprias deste processo. Com imensa ternura, Truffaut nos convida para caminhar consigo, ao lado de Léaud e Doinel, sob o olhar cinematográfico das suas vidas nos demais filmes autobiográficos da filmografia. Ao nos darmos conta de suas experiências, frustrações e limites, somos colocados diante de nós mesmos: a incompreensão não reside em tomar conhecimento da história narrada, mas sim em sermos forçados a nos debruçar sobre nossas próprias casmurrices.
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Reflexões da Flecha O longe é um lugar que não existe! Atravessei-o ontem, e a minha ponta é a de um seio, e a minha ponte é o infinito. Atravessei-o ontem, in verso ao teu receio, (e não ouvi sequer um grito) e hoje irei atravessá-lo aflito feito os olhos do arqueiro e, os passos do proscrito. Naquele dia a minha ponta era um diamante; e aquele dia o meu final previsto. Maldito! Mal sabia que o longe é o infinito por onde estou passando, e que eu – infinitamente – não existo. 34
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À Pureza do Aço À solidão dos exércitos mortos, (agudíssimos são os teus zunidos! Seios de virgem tebana à sombra dos cactáceos floridos) apenas um guerreiro espera o aço! É de nervo e osso o alvo! Ali se alojará essa metáfora fundida,
JOÃOZINHO GOMES (PA/AP) Poeta e compositor. Nasceu em 1957. Em 2009, em parceria com o cantor-compositor Enrico Di Miceli, gravou o cd Amazônica Elegância. Além do cd Tambores do meio do Mundo, este gravado com o Grupo Senzalas. É autor do livro A Flecha Passa e Poemas Diversos (Selo Ildefonso Guimarães de Literatura, 2013) __________________________________________________________________
furando-me o peito
essa pena metálica que sobrescreve no espaço; – a ode da carne rompida à pureza do aço.
Sobre a arte de falir
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SIDNEY ROCHA (CE)
É escritor e editor. Publicou pela Editora Iluminuras os livros de contos Matriuska (2009) e O destino das metáforas (2011), que venceu o Prêmio Jabuti de Literatura, e o romance Claro-escuro (2015), parte da trilogia Geronimo. Tem trabalhos traduzidos para o inglês, espanhol e alemão. Seu romance Sofia venceu o Osman Lins de Literatura. Ainda neste ano, a publica Guerra de ninguém, de contos. Vive no Recife. _________________________________________________
Não posso dizer que não ocorreria comigo, poderia, sim, visto que conheço Margarida e a vejo todos os dias descer por ali, na rua de baixo, para ganhar a vida contra o sol das cinco da tarde. Também conheço Haroldo, ele é homem com estabelecimento e tudo, e tem o cheiro das folhas de fumo desde o tempo que o tempo é tempo e que o fumo é folha. Também sei, por ouvir dizer, de dona Clara, mas esta nunca vi. Não que seja dada a invisibilismos, não tolero mistérios por nada, mas é que fecho as minhas portas antes de a igreja abrir as dela, e daí dona Clara já passou. Haroldo conheço mais, dos três, e o mais que conheço mesmo assim é pouco, porém hoje em dia o pouco que se conhece de alguém pode-se considerar já muito, visto essas coisas que chamam privacidade. Mas sei do possível de alguém se apaixonar, e que há modelos, ah, de amor sem fim de paixão, amor tem moldes para todo ateu ou cristão, o amor não prega raça nem cor, talvez alguma distinção faça no destino financeiro da pessoa, nisso creio. Mas o muito ou pouco que o conheço é de sermos comerciantes, ele e seu fumo, lá, eu e no meu canto, aqui, e ao nosso conhecimento um do outro não se pode dar a garantia de amigo de tantas datas, porém não faz vergonha a muitos que por aí se dizem amigos, e não são. Amigos mesmo não existem mais, mas, vá lá, também que ninguém se ofenda com isso, basta quem tem preservar e, quem não tem, procurar, mas isso é uma verdade. Por isso eu digo: o que fez Antonio, que era tido unha e carne com Haroldo, estava certo fazer, não recrimino amigo, esse Antonio eu não conheci, mas lhe contando assim o que ele fez, termino por conhecê-lo um pouco. A gente não pode esquecer que as coisas são as coisas, mas quando se temperam as coisas com o amor, o amor cheio de paixão mesmo, paixão sem aquela poesia toda, fogo que arde é se vendo com os olhos, aí se considerem as coisas outríssimas coisas, porque ali estamos pisando nos terrenos do vento.
“Você vai desgraçar o seu casamento por causa dessa, Haroldo?”. Cansou de dizer Antonio. “Olha lá que você se estrambelha todo, meu amigo”. Mas tem duas coisas para as quais homem perde o senso da profundidade e do ridículo: as ondas do mar e as ondas do amor. Não sei o que tem macho pra se achar nadador nesses abismos. Nenhum é. Amor é fundura e correnteza. No caso de Haroldo do Fumo a situação era mais e tanta que no decorrer de seis meses quem aparentava cinquenta tratou de arrumar todo artifício para aparentar uns trinta e, mudando a folha do tempo, também mudou o cheiro, que a pele se desgraça com aqueles perfumes das revistinhas e, desse jeito, cheirando-se outro todos os dias, noutro Haroldo Haroldo se tornou. Não se ambientava mais no armazém. O fumo reclamava nele o seu cheiro de tantos anos, pois o comércio de um homem é o homem por extensão e cheiro também, e ele não se suportava mais em rescendência de folhas, porque Margarida-isso, Margarida-aquilo, Margarida-aquilo-outro e vida de Haroldo começou a ofender o passado e o futuro. Nisso tudo, dona Clara não passava recibo: de casa pra igreja, da igreja pra casa, e o sofrimento do homem se resumia em fragrâncias e arrodeios, já que Margarida jamais lhe dera cabimento, diga-se, coisa cuja profissão a ensinou desde cedo: afastar-se de homem que se perfuma: homem que se perfuma fácil-fácil se desmantela de amor. Margarida não sonhava riquezas e muitos conheceu que lhe ofereceram tudo, mas não importava tanto o ouro, Margarida tinha a honestidade do sol que bate sempre o mesmo nas cinco da tarde da rua de baixo. Haroldo conheceria a escuridão. É preciso apetite para os negócios, e Haroldo já não tinha a fibra que o fumo lhe emprestara, e os clientes foram rareando que cliente gosta é de negociante que prospera. Olhe: pode, às vezes, nada ter, mas uma prateleira sortida e os empregados todos com fome, mas sorrindo, todo cliente admira, por isso esses americanos vão bem no varejo.
Pois você creia, aí mora a amizade, no fundo do poço é que mora. O que fez Antonio só amigo de verdade faria, e nisso poderia ser comigo, tomadas algumas reticências. Procurou Margarida. Que jamais sonhasse esse pesadelo dona Gracinha, a companheira, mas pela razão seria até fácil ela mesma entender: condescender, como se diz. Entre um campari e outro lhe disse do carinho pelo amigo, que o deixasse em paz, que o homem vai indo de mal a pior, que vai falir e não tem banco no mundo que queira uma promissória sua, que quanto é mesmo que tu queres pra fazer praça noutra praça. Certo é que não tinha tanto dinheiro assim, o Antonio, mas o próprio Haroldo, sem o saber, emprestaria da raspa do tacho e a perder de vista qualquer soma pequena que ele juntaria com algum sacrifício do seu próprio bolso, mas Margarida recebeu a oferta como uma pedrada e ficou como morta na cama, ali, por um tempo. Depois, o sangue voltou à correnteza das veias, e voltou o feltro das carnes, o ouro da pele, os biquinhos rosa dos seios ainda em saliva, e ela foi à janela ver o sol cair em pétalas sobre a cidade. “Isso não posso fazer, assim, de desaparecer. Para isso é preciso saber dos outros, todo mundo tem alguém perto do coração, o senhor não acha?”, teria dito e perguntado a flor, não sem pender outras pétalas um pouco. O homem assentiu, muito embora jamais tivesse negociado com estas coisas. Não via como o pretexto podia afetar a mercadoria no curto prazo. Outras vezes, o amor e a amizade estiveram juntos, o mesmo assunto, vamos que vamos resolver, temos trem todos os dias, um campari, outro, Antonio bebe uísque e falou muito de si daquela vez, Margarida era boa e boa ouvinte também, o sol nasce para todos, Margarida/as margaridas são flores que se cheiram, sim, Antonio,/mas não são para todos,/não,/veja bem, o homem está prestes a perder os olhos da cara, Margarida,/é meu amigo, meu amigo,/meu amigo, pense um pouco em você, Antonio, é/problema dele, viva a sua vida, Antonio,/talvez você tenha razão, Margarida,/é a vida dele, vida mesmo/só se tem uma, você/tem toda/razão, e Margarida-isso, Margarida-aquilo... Foi quando Antonio começou e se perfumar. 39
eu canto a eletricidade do corpo W. Whitman
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concerto para flauta vértebra e corpo violão ato do tocar na pele da pele inventivos ícones festivos gestos de um violão movente roça os ritmos tão bons dos membros batuca nas curvas do buraco-coração música em banquete para carne o balanço compõe barcos agitados a memória corporal não cala fala canta o corpo inquieto elétrico corpo a corpo o desejo convertido em línguas verte festas e vozes tons timbres tambores registros ruídos silêncios palavras vivas o gozo o dito o cantado na boca vasos comunicantes articulações de blues and loves partituras de ah! oh! hum... aissss esculturas sonoras vocalises eróticos o dedo que anda pela pele lê o compasso da nudez braile no tecido intraduzível sem ponto final sem porto no peito segue le chant d’ amour a ladainha em transa
maya
LIA TESTA (PR) Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC SP), é professora de Literatura Portuguesa, Brasileira e História da Arte, na Universidade Federal do Tocantins (UFT). É autora do livro de poemas Guizos da carne: pelos decibéis do corpo (Publicações Iara, 2014). __________________________________________________________
é bicho e gente na sua dança batuqueira bandalheira roda gira move é gente e bicho na sua dança tem cheiro de salmoura é gente gente na sua vadiagem mata come cava colhe miríades de beleza maquiada é bicho que come bicho tamborilando no couro na carne encarnada bate bate bota fora a fala de ba.lan.gan.dãs fitas folhas figas uma flor lilás na cabeça santos nas pulseiras a tilintar berenguendéns berenguendéns berenguendéns para olhos negros e negros de cor para bardos lascivos ver balançar corpo que rodopia para e rodopia com véus porque é gente e bicho e dança
ENCONTRANDO
Helena Ignez 8
FOTO | MEIRE FERNANDES
Helena Ignez é uma atriz cuja potência criativa nos surpreende no cinema e no teatro. Sua história é marcada pelo trânsito nos mais importantes movimentos cinematográficos brasileiros dos anos 60 e 70. Foi no Cinema Novo que conheceu e trabalhou com Glauber Rocha (com quem foi casada e tiveram uma filha: Paloma Rocha) em O Pátio (1959), entre outras obras fundamentais como Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias, e O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade. Podemos dizer que sua aproximação com o diretor Rogério Sganzerla (casamento que trouxe ao mundo Djin Sganzerla e Sinai Sganzerla) gerou seus filmes mais intensos, política e esteticamente, seja em O Bandido da Luz Vermelha (1968), A Mulher de Todos (1969), Copacabana Mon Amour (1970), Sem Essa Aranha (1970), entre outras parcerias de forte impacto para o cinema nacional. Anárquica, iconoclasta de formação, Helena é uma referência no que se trata de experimentalismo e invenção no cinema autoral brasileiro. Uma artista que não se rende ao simplismo ou fórmulas para fazer filmes caça-níquel, mas uma atriz-diretora apaixonada pelos riscos e rabiscos da poesia visual em processo permanente. Em 2010, deu continuidade à obra de Sganzerla com Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha, e produzindo vários outros filmes, como Canção de Baal (2008), Poder dos Afetos (2013), Feio Eu? (2013). Atualmente, mantém a Mercúrio Produções e está lançando pelo Brasil seu filme, Ralé. No meio da sua rotina corrida em São Paulo, conseguimos marcar um encontro na produtora que gerencia. Batemos um papo sobre sua trajetória e como vê o cinema nos dias de hoje. Confere aí!
ENTREVISTA REALIZADA POR
Aristides Oliveira | Jaislan Monteiro | Rafael Spaca
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Helena, fala um pouco do teu percurso artístico, teus processos em andamento. São 55 anos e eu nem sei por onde começar... No princípio, no fim, hoje, ontem. Tá difícil, né? É cheia também de histórias. Sei lá como é essa carreira. É pontuada de filmes incríveis, realmente incríveis. Filmes que iluminam no cinema brasileiro, e também de peças de teatro magníficas até hoje, como agora a que eu participei no Festival Internacional de Teatro – Cena Brasil Internacional (RJ) com os melhores espetáculos do mundo, e eu estava com o livro “Da Grande Desordem e da Infinita Coerência”, dirigido por André Guerreiro Lopes, com Djin Sganzerla, Eduardo Mossi e comigo. Então, é manter hoje - de uma certa forma - sobre esse aspecto da qualidade, do que a gente pode chamar de carreira que é bastante notável. A qualidade dos espetáculos e filmes que participei, principalmente com Rogério Sganzerla e com grandes outros cineastas. Desde o começo da minha carreira, eu fiz O Pátio (1958) com Glauber Rocha, então realmente eu acredito que é uma carreira notável com o cinema. Isso me agrada porque vai além de mim. Isso já pertence ao meu eu, ao meu ego, mas é maior do que isso, pois já se expande. É um trabalho que fica na memória dos que conhecem a memória do país e fora dele. É uma questão de tempo que essa obra se expanda. Eu não tive a oportunidade de cair em armadilhas. Estava inserida num contexto muito bom de cinema e teatro. Era o contexto que eu pertencia, que me apoiava a fazer isso e eu gostava dele. Eu não cheguei a ter armadilhas, nada que me interessasse tanto que valesse a pena eu deixar esses trabalhos, que eu preferisse outra coisa menos honrosa, ou digna, ou não, aí eu não sei. Nem tive vontade. Eu acho que tem a coisa da juventude, como Nietzsche, Rimbaud, e Rogério Sganzerla fala da juventude, e eu sou uma das porta-vozes, talvez o mais importante do trabalho dele, além dele próprio, que é a própria obra. Mas, como contribuição, eu acredito que a minha seja muito importante dentro do trabalho dele como atriz. Eu estou inserida nesse trabalho que é eternamente jovem, inquieto e falará sempre aos jovens, gerações após gerações, como está acontecendo. Cada vez mais. E eu diria aos “jovens de todas as idades”, como esta expressão de Rogério. Eu acho que existem jovens de todas as idades, e também tem esses velhos que amam Rogério. Eu mesma serei lembrada como uma atriz inquieta, que está sempre procurando alguma coisa a mais do que já foi feito. E, como artista, eu sou assim também, como expressão. Acho que é por aí que eu serei lembrada, e principalmente pelos que não são totalmente inseridos socialmente, como as minorias, que já são grandes maiorias, mas são minorias na verdade: os gays, travestis, as feministas. Isso faz parte de uma queda especial para curtir esses filmes que mexem tanto com o establishment, riem tanto do status quo, da respeitabilidade.
O cinema nacional vai entrar cada vez mais dentro da mediocridade internacional do cinema como arte. Ao mesmo tempo, tem sempre figuras interessantes que se expressam muito bem, tanto no Brasil quanto fora, mas o cinema é uma arte do século XX. Ela já deu no que tinha que dar. Existe uma tentativa enorme de se manter o cinema como era, basta pensar no Festival de Cannes, com aquela história toda do salto alto, do tapete vermelho, tenta-se de qualquer jeito manter essa importância do cinema. Ridículo, completamente ridículo. Uma indústria. E não são mais os franceses que mandam. Então tudo ali é ridículo. Você é uma artista bastante ativa no cinema brasileiro, seja como atriz, produtora, ou diretora. Fala um pouco do seu aprendizado com o cinema.
O aprendizado vem de antes ainda, veio d’O Pátio. Acho que ali mesmo que foi desvendado para mim o que é o cinema. Ali também com O Pátio nasceu o Cinema Novo. Essa é minha trajetória anterior à Belair*. Com os diretores que eu trabalhei nesse período, tive quase que uma parceria, porque eu vinha de uma escola – a escola de dança – e ali é um filme bastante coreográfico. O Pátio me remete um pouco aos filmes de 1920, um pouco ao surrealismo francês e também ali era uma formação de uma companheira que era eu mesma e aquele diretor, que é Glauber. Foi por aí. Com cada diretor que trabalhei eu também aprendi. Desde menina, eu escrevia, desde muito cedo, gostava de escrever roteiros, mas pensava também no teatro. Então aprendi o cinema de outra maneira. Essa experiência da Belair pra mim já foi uma atividade de um aprendizado que eu já tinha e tava desenvolvendo com aquele cinema de Júlio [Bressane] e de Rogério, que também era anterior à Belair. Meu contato foi com O Bandido da Luz Vermelha (1968), esse sim é um momento totalmente transformador, muito significante para todo o cinema, também como a Belair foi. Esse aprendizado vem vindo de todas as maneiras e chegou até hoje. A gente é sempre discípula. No meu caso, me digo que sou discípula do mistério. Sou discípula muitas vezes. * BELAIR: produtora de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, de 1970. Nesse ano, os dois realizaram seis filmes em quatro meses, e por causa deles tiveram que se ausentar do Brasil temporariamente devido à repressão da Ditadura Militar. Bressane e Saganzerla, autores de O Anjo Nasceu e O Bandido da Luz Vermelha, respectivamente, foram as principais figuras do Cinema Experimental no Brasil. Os filmes da Belair apresentam a liberdade e a anarquia em seu ápice, caracteristicas desse cinema naquela época. Os filmes circularam pouco no Brasil, e um deles acabou se perdendo, Carnaval na Lama, de Sganzerla, que também realizou Copacabana Mon Amour e Sem Essa, Aranha. Bressane, por sua vez, dirigiu A Familia do Barulho, Cuidado Madame e Barão Olavo, O Horrível. Helena Ignez foi atriz em todos os filmes, e em 2005 lançou o curta-metragem A Miss e o Dinossauro, que mostra os bastidores dessa experiência. Em 1975, Júlio Bressane fez A Viola Chinesa, chamado de o último filme da Belair. (Acesso: http://revistausina.com/2014/10/09/belair-sganzerla-bressane-e-helena-ignez/)
O que aconteceu com a Betty Bomba, personagem do filme desaparecido, Carnaval na Lama (1970), de Sganzerla? Ela realmente explodiu! (risos) Meus personagens são kamikazes, todos eles. Anarquistas ferozes. Personagens fortíssimos, estranhos, porque eles todos têm eixo nessa loucura, e que curti muito fazer. É como se fosse fazer mesmo o personagem. E isso vai até hoje. O último trabalho que eu fiz como atriz foi um curta Gramatyka, de Paloma Rocha, minha filha. Extremamente bem produzido, fotografia maravilhosa, que eu acabo de fazer tem umas três semanas no Rio de Janeiro e que eu faço um personagem de duplo sexo. Ele tá quase como semi-nu, com uma capa comprida, aquele sexo. Se vê pintado de branco e vermelho e é também um personagem escandaloso. Extremamente escandaloso. Engraçado que eu vi fazendo esse personagem, que o Joel Pizzini fez uma reflexão engraçada sobre ele: “Você fez uma performance zen”. Não acho tão zen, acho mais chinesa do que zen, mais para o lado do tao, do tai chi, que eu me dedico a vida inteira, praticamente. Mas é também um personagem anárquico e, quando ele pintar na tela, acho que vai ser um personagem que vai ficar dentro do cinema. Rogério Sganzerla afirmou que o nosso cinema está fadado a ser criativo e, talvez por isso, ele seja constantemente podado, sabotado, estrangulado. Você se sente com mais liberdade criativa para fazer seus trabalhos audiovisuais hoje ou nos anos de chumbo?
Essa liberdade interior existe em qualquer situação. Rogério é quem mais prova isso. Ele atravessou toda ditadura com filmes criativos. Isso é interior, tá entendendo? A dificuldade – isso que ele fala – e a impossibilidade é a mesma. Eu acho também, citando o Júlio [Bressane], uma coisa bem interessante: “A posição do artista é ser contra sua época”, que é a época que é contra o artista. A minha posição é que é sempre difícil criar livremente. A ditadura foi a pior das épocas. Terrível. O pensamento, o intelecto é o alvo “deles”. Então você era obrigada a se rebelar contra. Eu acho que também a arte ganha com isso, uma indignação, uma rebeldia necessária. Hoje a coisa está mais “morna”. Não é mais esse momento de ter rebeldia, mas ela tem que existir, senão as coisas não andam. O artista tem que ser um iconoclasta? Sempre! 46
HELENA IGNEZ NA REVISTA “FATOS E FOTOS” - 1963
Que mudanças seu corpo vivenciou, enquanto criação performática, na transição entre a Mariana, de O Padre e a Moça (1965) e Ângela Carne e Osso, em A Mulher de Todos (1969). Houve vários tipos de rupturas naquele momento e elas são flagrantes nos filmes, mas o pensamento sobre como criar a personagem é o mesmo, vem de algo bem anterior. Apesar de também ser um pensamento móvel, como tudo, e fragmentado, tinha essa força de conduzir dois tipos bem diversos, e em momentos diferentes da minha vida, que foi O Padre e a Moça e A Mulher de Todos. Politicamente diferentes, porque 63 e 64, quando foi feito O Padre e a Moça, ainda era “light”, a ditadura. Em A Mulher de Todos, estávamos vivendo o terror... O cinema também mudou com isso, fez surgir um filme como A Mulher de Todos.
Rogério Sganzerla, em entrevista concedida ao Pasquim em fevereiro de 1970, afirmou que sua interpretação no filme A Mulher de Todos “revela, sem dúvida nenhuma e sem falsa modéstia, o maior trabalho de atriz do cinema brasileiro”. Do seu ponto de vista, quais elementos inovadores você teria empregado nesse trabalho para ter sido alçada à condição de uma atriz singular?
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Esse ano, em Locarno, eu ouvi duas vezes, uma de um brasileiro e outra de um crítico italiano, que convidou o filme para o festival e também O Poder dos Afetos, que eu dirijo, que eu era uma das melhores atrizes do mundo, uma das mais importantes. Bem, isso só aconteceu porque estava dentro de um filme, e dentro de um cinema que permitiu surgir esse trabalho. Em primeiro lugar, também tenho que ser crítica e saber que, se eu recebi uma homenagem em 2006 num festival suíço, extremamente capitalista, e que pega uma atriz brasileira e homenageia com 32 filmes – porque eram meus filmes, e os relacionados ao meu trabalho, como o Joel Pizzini, que tinha feito o Helena Zero – uma homenagem escandalosa que não tem outra atriz no Brasil que tenha recebido no cinema isso. Uma homenagem valiosa, não posso me queixar. De tapete vermelho, tipo cinema da minha adolescência, cinema com todo aquele glamour e dinheiro, na Suiça. Bem, acho que o Rogério [Sganzerla] foi mais uma vez inovador em dizer isso do meu trabalho. Foi o primeiro, talvez, a dizer isso publicamente. Durante esses anos todos, eu tenho, principalmente agora, no final, vivido constantemente, que é um trabalho extraordinário, que eu sou uma atriz realmente das melhores do mundo. Eu acredito, porque A Mulher de Todos é um dos melhores filmes do mundo!
HELENA IGNEZ E PAULO VILAÇA EM “O BANDIDO DA LUZ VERMELHA” (1968)
Você informou ao Pasquim que, antes de sua atuação em A Mulher de Todos “estava praticamente intoxicada de cinema novo”, o que a impedia de fazer uma crítica mais incisiva ao movimento. O “incômodo” com o Cinema Novo manifestado nessa entrevista estaria ligado mais diretamente a quais aspectos? 70 estava ficando com um ar pesado dentro do Cinema Novo. Pouca criatividade, aburguesamento. Um movimento que era de esquerda, inquietante, de uma certa forma eram cabeças jovens pensando, tinha envelhecido com uma certa rapidez. Já tinha 12 anos de Cinema Novo, a coisa já tava decaindo. E também tinha sofrido um tipo de preconceito bem machista. Era um machismo forte. A mulher era tratada como objeto. Em geral, só as mulheres dos diretores filmavam. Estava uma coisa meio “pequena” o Cinema Novo, que começou de uma forma tão inacreditável. Estava virando o poder. O que você tem a dizer sobre o conceito “Cinema Marginal”?
Eu realmente não entendo e peço perdão, mas eu não sou atriz do Cinema Marginal. Os meus filmes com Rogério Sganzerla não podem ser chamados de “marginais”. Eu trabalhei em Nem Tudo é Verdade (1986). O que aquele filme tem de marginal? Eu não sou do Cinema Marginal, lastimavelmente! E essa categorização?
Essa categoria não é a minha. Eu não gosto do Cinema Marginal. Isso eu falei para o [Marcelo] Ikeda. Não me situaria jamais no Cinema Marginal. Eu não fiz, os filmes do Rogério não são “marginal”. Isso é um engano absurdo. É pasteurizar essa personalidade cinematográfica. Não é marginal, isso é artístico! Sei lá que diabo de nome seja! Marginal pra mim é outra coisa. É quando esgarçou essa inteligência dos primeiros filmes. Claro que, dentro disso, aí podem sair filmes interessantes, sei lá. Como o do Trevisan. Mas eu acho que foi isso: esgarçou, a coisa enlouqueceu e drogou também, e sujou um pouco também. Essa cocainada não foi legal. E foi exatamente que eu saí. Então eu acho uma ironia dizer que eu sou do Cinema Marginal.
u “Eu não posso dizer que sou uma atriz do Cinema Marginal. Apesar de ser baiana, o que eu fiz foi outra coisa”
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Coloca-se o Cinema Marginal como uma totalização... Um absurdo! Talvez eu seja uma das raras pessoas vivas ainda. Então eu não vou deixar passar. É um engano muito grande. O que você achou que levou a se criar esse engano?
A totalização da mídia, uma falta de estudo detalhado. Júlio é “Cinema Marginal”? Eu já até nome de filme do Júlio pertencendo ao cinema da Boca, uma loucura! Nem teve contato com São Paulo. Uma coisa que virou tudo. Não tenho nada contra, amo as pessoas, mas não é! Eu não posso dizer que sou uma atriz do Cinema Marginal. Quando eu falo “Cinema Novo”, eu falo especificamente daquele pensamento no cinema também. Apesar de ser baiana, o que eu fiz foi outra coisa. E era atriz, e só atriz é uma coisa muito dependente, principalmente nesse período do Cinema Novo, as atrizes eram dependentes, não eram soltas. O que abriu esse trabalho foram esses filmes: O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos. Daí, das muitas imitações... eu não gosto tanto das imitações. O próprio Cinema Novo é extensão para o Cinema Marginal, que não foi muito carioca. O Cinema Marginal foi mais paulista. Eu acho furada, muito furada. O que você poderia nos dizer, a partir de sua experiência enquanto atriz, sobre a interação entre técnica e criatividade no âmbito do cinema e do teatro?
Corre na internet um artigo que escrevi – acho que foi para o “Cinema Marginal”, do [Eugênio] Puppo, “Uma atriz errante” – em que eu falo que é preciso esquecer toda a técnica, jogar fora e viver o set. O cinema é o set. Mas a técnica, para chegar lá, ela te limita se você não tem. É preciso ter todas as técnicas. Eu também acho bom, lindo, adoro, umas das melhores coisas que Júlio [Bressane] tem sobre meu trabalho: falou que eu sou uma atriz de todas as técnicas, uma CDF. Tudo que eu faço é extremamente trabalhado, na respiração, na criação do personagem, para na hora h jogar fora e viver aquilo. Essa mesma intensidade que eu tive no trabalho de Rogério [Sganzerla] eu tive n’O Padre e a Moça, mas de uma outra maneira, que me permitiu ter um personagem importante. Joaquim [Pedro de Andrade] pediu para “me anular”, o oposto do que eu trabalhei. Era abandonar os braços, não sorrir. Num trabalho intenso, batalhado. Porque eu era o contrário, mas também sou o contrário d’A Mulher de Todos. Essa alegria eu tive na criação desses personagens.
Como era a relação de Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla na criação dos seus personagens? Glauber foi o primeiro e a gente criou junto o personagem (O Pátio). Ele talvez me visse rolando nas minhas aulas, ele era muito participante dos meus movimentos, me pedia para fazer deitada. Era uma coisa junta. Com Júlio, fiz o primeiro filme dele (Cara a Cara - 1967) e fiz os filmes da Belair. Sabia precisamente o que ele queria. Pedia o que ele queria e deixava a gente criar além disso. Ótimo. Com Rogério, meus personagem ainda cresceram. No Bandido, já tinha um toque diferente de olhar a câmera, de enfrentar o personagem, de enfrentar o próprio cinema, tinha auto-referências que ficaram muito claras na Mulher de Todos. Em Copacabana Mon Amour (1970), que talvez eu acredite que seja o trabalho em que eu fique mais surpresa de como foi feito.
Fala um pouco da sua relação com Sem Essa Aranha (1970). A única coisa que eu posso falar experiencialmente é que, com o Sem Essa Aranha, eu estava saindo, não aguentava mais. Estava dando um “bye, bye” aos meus personagens. Para mim, já tinha chegado ao auge, ali mesmo. Fazer esses filmes tinha um preço. O que estava planejando pós-Sem Essa Aranha?
Mistério. Entrar em outras técnicas, conhecer outras formas de pensar. Transformação da minha vida e a atriz estava lá, mas em repouso, para ativar outros ares.
Certa vez, você afirmou para Antônio Abujamra ser uma mulher “orgiástica”. Fale mais sobre como essa potencialização é refletida no cinema, teatro e na vida. Só ele ia acertar tanto, falando de outra pessoa que ele conhece, da maneira que ele conheceu essa palavra. Eu acho que é exatamente isso que define essa história toda da vida, dessa palavra dionisíaca: orgiástica, que é como entendo arte.
Como era sua visão, como artista, da produção cinematográfica da Boca do Lixo?
FOTO | MEIRE FERNANDES
Eu não tinha ligação com a Boca. Quando eu vim fazer O Bandido da Luz Vermelha (1968) foi possivelmente a primeira vez que ouvi falar da Boca. Cada um fazia sua coisa, sua vida. Ela estava existindo ao mesmo tempo em que estava existindo muitas outras coisas. Não era um motivo de preocupação pra mim. Só existia a Boca naquele período aqui em São Paulo. Eu acho que a base. Porque a produção, inclusive, desenvolvia-se numa das salas da Boca onde foi filmado o Paulo Vilaça na varanda, olhando a Janete Jane. Ali tinha a produção do Deca, que era uma pessoa encantadora. Nunca tive esse tipo de mentalidade fechada não, de jeito nenhum. Cada uma na sua. Na minha geração não. E nem acredito que Odete Lara, que veio antes de mim, tivesse esse tipo de problema. Hoje parece que possa ter, porque a religiosidade e o moralismo ficou muito mais forte. Isso é decepcionante porque eu não vi esses filmes. Eu estava completamente em outra nesse período. Nunca fui apegada a uma coisa só, grudada no cinema. Nem vi os filmes, não posso falar nem mau, nem bem.
Como você compreende a atual produção do cinema brasileiro? Que cineastas e filmes contemporâneos você considera fundamentais no circuito audiovisual. Educação Sentimental (2013) é um desses filmes, do Júlio Bressane. Talvez o mais necessário, junto a Serras da Desordem (2006), do [Andrea] Tonacci, são os mais importantes. O último filme que eu vi do Tonacci, no Festival Fronteiras, num filme inédito sobre os “Araras”. Eu acho a coisa mais incrível. Aí eu não posso citar mais nada. Dos vivos, não. Como você enxerga essa fase de resgate da memória do cinema brasileiro?
Com o maior carinho. Eu acho que é uma das poucas coisas inteligentes num país em que não foi a educação o principal objetivo. Esse interesse é maravilhoso e é uma novidade porque a quantidade de pessoas interessadas, que sempre houve... E os próprios artistas, os que eu convivi. O Glauber estava sempre voltado ao passado, e Rogério também. Só que agora ampliou, democratizou, são várias áreas de comunicação interessadas. É um trabalho que, oficialmente, o Ministério não faz questão de salvaguardar a memória. Em que você está trabalhando, projetando?
Vai ter uma estreia na telona, em Portugal, de Ossos [dirigido por Helena], Santa Maria da Feira, numa sessão chamada “Transversalidades”, junto aos filmes de André Guerreiro Lopes, que também é meu genro e é meu diretor preferido de teatro, com quem eu fiz uma última peça magnífica, no nível das grandes peças que eu fiz na minha vida, O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, do August Strindberg. Esse é o meu último trabalho, além de eu estar preparando uma produção para janeiro de 2015, Ralé. Um longametragem do Poder dos Afetos, esse filme é um média. Com ele eu tive a felicidade enorme de passar em Locarno esse ano, junto a Godard na mesma sessão, junto a Copacabana Mon Amour, com críticas maravilhosas. 54
COPACABANA MON AMOUR 1970
Os filmes de Sganzerla estão sendo restaurados? Sim. Copacabana Mon Amour foi restaurado esse ano, com lançamento no exterior, que foi muito bom. A tentativa agora é o Aranha, mas agora não tem Petrobrás. A gente ganhou “Petrobrás” com Copacabana Mon Amour, foi a maior sorte. O último ano, inclusive, e só tinha para um filme no Brasil, restaurado, e ganhamos. Então, não dá. É difícil, mas anda. Quando se pergunta se nós vivemos de cinema, é disso que a gente vive: o trabalho da gente a vida inteira.
u “São pouquíssimos os que ganham dinheiro só com o cinema. Fazem publicidade e fazem um cinema ruim, um cinema substituível, que você pode ver em outros lugares”
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E a circulação dos filmes?
FOTO MEIRE FERNANDES
São vendidos para a televisão, sempre mantidos e revendidos. Tem a “Canal Brasil”, agora o “Arte 1”, “Cultura”. Não há porque se queixar. Poderia estar muito pior. Agora quero vender para o SESC, mas ainda não está muito resolvido.
Porque o cinema brasileiro é tão pouco conhecido, visto e com artistas pouco reconhecidos pelo público? O cinema ficou uma coisa de elite, cara. É um momento dificílimo para o cinema. Eu não sei como esse cinema vai continuar, esse cinema de shopping, esse cinemão. Como vai ser... Dizem que não dá dinheiro a ninguém. Tá ruim pra todo lado. São pouquíssimos os que ganham dinheiro só com o cinema: fazem publicidade e fazem um cinema ruim, um cinema substituível, que você pode vê em outros lugares. Não é mais uma diversão. Não cumprem um outro lugar, não sei qual é o futuro. Que mentira você gostaria que fosse verdade?
Que louco! Eu pensei mentiras que eu nem tenho coragem de falar, logo em primeiro lugar. Que mentira... Que mentira, que mentira... Acho que, como tudo é sonho, não há mentiras.
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ANDRÉ VALLIAS (RJ) (1963) é poeta, designer gráfico e produtor de mídia interativa. Foi curador de diversas exposições de poesia visual e digital, entre as quais: p0es1e – digitale dichtkunst (Annaberg-Buchholz, 1992) e POIESIS <poema> entre pixel e programa</> (Rio de Janeiro, 2007). Publicou Heine, hein? – poeta dos contrários (Perspectiva, 2011), o livro-álbum Totem (Cultura e Barbárie, 2014) e ORATORIO – Encantação pelo Rio (Azougue / Cultura e Barbárie, 2015). É editor da revista online Errática: www.erratica.com.br ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
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E EMOÇÕES:
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CORDAS
_ FOTO DAVID BRENDAN HALL
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MONIQUE ORTIZ (ESTADOS UNIDOS) Vocalista, baixista e compositora da banda Alien Knife Fight, também trabalhou no projeto sonoro A.K.A.C.O.D, em colaboração com o saxofonista Dana Colley (Morphine) e com o baterista Larry Dersch. Atualmente, ela é uma referência no Gothic Blues e Post-Punk contemporâneo.
Saiba mais: https://www.reverbnation.com/moniqueortiz ____________________________________________________ tradução do texto: LANDERSON RODRIGUES
“Cuidado com o que deseja”, ou talvez deveria ser algo como “cuidado com o que os outros PENSAM que você está desejando”. Minha afiliação com a banda Morphine tem sido tanto uma maldição como uma bênção, de tal modo que eu tenho aprendido bastante a partir de minhas colaborações com os membros da banda, mas não tenho tido êxito em sair completamente da sombra de Mark Sandman. Se eu puder oferecer a você qualquer insight sobre o meu processo de criação, eu devo primeiro esclarecer algumas coisas. Eu nunca conheci Mark Sandman, a não ser como fã, à qual foram concedidos alguns minutos após um show, uma vez ou outra. Meus trabalhos com os membros do Morphine não começaram muito depois da morte de Mark. Até hoje eu não tenho ideia de que cordas ele usava em sua técnica de slide bass, ou que tipo de afinações ele usava (os fãs me perguntavam isso frequentemente). Eu nunca liguei porque nunca foi meu objetivo tocar o slide bass como ele, ou fazer o que ele fazia. Eu apenas fui inspirada por sua singularidade feroz e instrumentação incomum. Eu sou, em minha essência, uma baixista fretless, e estava muito interessada em explorar o que eu podia fazer com isso. A primeira apresentação do Morphine que assisti foi em Trocadero, na Filadélfia, em maio de 1996. Na época, a banda de pós-punk em que eu estava tocando por uns anos tinha acabado. Nós estávamos tocando na mesma linha de bandas como Joy Division, Echo & The Bunnymen e Josef K, e tínhamos sucumbido devido a diferenças criativas. Nessa altura, eu estava obcecada por David Sylvian, King Crimson, Wire, e Nick Cave. Por coincidência, eu tinha escutado a música do Morphine uns meses antes na trilha sonora para o filme Spanking the monkey.
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losão poético-sonora
Estava encantada pelo grooves contagiosos e pela sensualidade sombria do som. Mas o que eu achei mais interessante era que, necessariamente, era rock, mas não era centrado nas guitarras. Se você ouvir atentamente, há guitarras por toda a música do Morphine. No entanto, está mais para uma cor sutil do que uma força condutora. Tudo isso veio em uma hora em que eu estava profundamente frustrada com o grupo de guitarristas com quem estava trabalhando, e eu queria seguir adiante sem eles. Sabia que deveria existir uma maneira de criar um poderoso som impulsionado pelo baixo em mundo dominado por guitarras, e o Morphine estava fazendo isso. Quando criança, minha apresentação formal à música deu-se através das palhetas. Comecei com o clarinete e mudei para o baixo quando tinha 12 anos de idade. Sempre amei as palhetas tanto quanto o baixo, razão pela qual Mick Karn (baixista e saxofonista do Japan) continua a ser minha única grande influência. Comecei a escrever letras no começo da minha adolescência. Eu ainda as tenho. Nos últimos 30 anos, sempre carrego meu caderno de letras para que eu possa escrever qualquer ideia que venha a mim. Não uso computadores, tablets, ou qualquer coisa eletrônica. Tem de ser orgânico, tangível, e de acesso não tão fácil para os outros. Tenho milhares de páginas de letras e centenas de horas de gravações que talvez nunca venham a ser lançadas. Aquele show do Morphine, em 1996, foi um ponto decisivo para mim. Percebi que eu tinha acumulado todo esse material e não tinha meios para reproduzi-lo. Nunca me vi como líder de banda ou vocalista. Tinha acabado de me formar na escola de arte e estava dividida entre seguir a música ou continuar como pintora. Eu nem mesmo era capaz de cantar e tocar um baixo ao mesmo tempo. Era uma forte vocalista e uma baixista decente, mas não conseguia unir as duas coisas. Ver o Morphine me inspirou a ter mais esforço e assumir o centro do palco. A maior conversa que tive com Mark Sandman foi a primeira, quando corri aos bastidores e me apresentei a ele. Nós conversamos brevemente e ele me incentivou a ir a Boston quando eles iriam tocar na World’s Fair Of Central Square. Comprei uma passagem de trem e, quando cheguei lá, ele me disse para eu me apresentar para os donos do restaurante Middle East, para eles me darem um emprego. Eu me mudei para Cambridge, Massachusetts, mais tarde, naquele mesmo ano, e fiz como tinham me dito. Aquela foi a dimensão de minhas interações com Mark Sandman. 62
FOTO DAVID BRENDAN HALL
Em 1997, formei o Bourbon Princess com o baterista Dave Millar. Nós estávamos tão sedentos para tocar que não nos preocupamos muito em achar outro instrumentista, e nos dávamos bem apenas como uma dupla de bateria e baixo fretless. Tocando em festas, galerias de arte e outros lugares menores. Nosso material abrangia desde o “spoken word” até Iggy Pop. Finalmente, incluímos o violoncelista Jonah Sacks no line-up e gravamos “Stopline”(minha primeira sessão usando Pro Tools). Bourbon Princess foi minha crise de identidade, ou, para colocar de forma mais bondosa, meu ritual de passagem. Eu estava tão ansiosa para mostrar ao mundo o que eu era capaz de fazer que não consegui, realmente, chegar a um som coerente. Algumas canções estavam mais próximas de parecer com Roxy Music, enquanto outras estavam, como alguns descrevem, mais parecidas com Concrete Blonde. Por volta da mesma época, eu estava tocando o meu P-Bass com o guitarrista e vocalista da Treat Her Right, David Champagne, em uma banda de curta duração chamada Lucky Bastard. Nós tocamos muitas canções da Treat Her Right com algumas poucas misturas. David me apresentou formalmente a Jerome Deupree e Dana Colley, que também foi responsável por chamar Jerome para tocar bateria na Bourbon Princess, enquanto Dana produzia e tocava em algumas faixas. O Saxofonista, e também líder da banda Either/Orchestra, Russ Gershon, juntou-se a nós no line-up, e forneceu a distribuição das músicas “Black Feather Wings” e “Dark Of Days” do Bourbon Princess em sua gravadora chamada Accurate Records. Por volta dessa época, eu também criei um vínculo muito proximo com o guitarrista e pianista Jim Moran, que se juntou ao Line-up, e também é o melhor guitarrista com quem já tive o prazer de trabalhar. Até então, eu era acostumada a escrever minhas canções numa Korg D8. Tem sido meu método favorito de composição. Tenho algumas dessas máquinas, já que elas são obsoletas e podem quebrar uma vez ou outra. Até eu conhecer meu noivo, Michael, eu não conseguia escrever na presença de outras pessoas. Componho a maioria de minhas canções no fretless, criando demos que consistem geralmente de 02 pistas de áudio de baixo, e 02 ou 03 de vocais. Eu poderia ver então minhas letras mais recentes e encontrar algo que se adequasse à música que apenas gravei. Às vezes posso ter sorte, e a música e as palavras vêm em uma enxurrada, tudo de uma vez. É sempre mais agradável apenas se deixar levar pelo fluxo de consciência e deixar a canção se escrever por si própria. 63
Grande parte de minha música é colorida por minha longa vida de luta contra a depressão e a repentina perda do meu irmão quando eu era adolescente. Eu tento não deixar me definir por minhas experiências ruins, mas também acho que é perfeitamente natural usar um tipo de arte para se mover através da escuridão, e atingir a luz. Quando o produtor executivo, David Brilliant, propôs que Dana Colley e eu trabalhássemos juntos, não fazia ideia do tamanho do desafio que seria para a escritora que eu era na época. A.K.A.C.O.D. foi um dos projetos mais desafiadores em que eu já estive envolvida. Foi extremamente intimidador para mim poder trabalhar com um de meus heróis, Dana Colley, no estudo caseiro de outro herói, Mark Sandman, na Hi- N- Dry. Como Matt Johnson uma vez disse: “Eu estava tentando ser Eu mesmo, mas acabei sendo uma outra pessoa.” Pode ter sido coisa da minha cabeça, mas a intensa energia criativa do lugar era palpável. Por vezes eu senti como se Mark estivesse presente. Eu estava honrada e empolgada por estar lá e, ao mesmo tempo, completamente assustada. Quando as pessoas falavam a respeito do Morphine, elas geralmente focavam em Mark Sandman, mas tinham mais a dizer sobre a soma das partes. Muitas vezes penso em Dana Colley como o John Paul Jones do Morphine. Ele é um incrível produtor, multiinstrumentista, e um persistente desconstrutivista. Além de todos no círculo do Morphine, devo mais crédito ao Dana por ter me moldado como uma escritora e cantora. Eu sempre fui uma pessoa muito teimosa e insegura, e foi a perseverança e paciência da parte de Dana que me fez desapegar desses velhos hábitos e tentar novas abordagens quando estiver escrevendo música e moldando o som. O Morphine me ensinou bastante sobre o poder da improvisação, e a importância de gravar tudo. Dana me ajudou a superar minhas fraquezas, enquanto encontrava minha própria voz. Nós estávamos escrevendo canções como podíamos a partir do zero. Eu chegava ao estúdio com as letras e Dana me ajudaria a revisar. Assim que nós convocamos o baterista Larry Dersch, começamos a fazer apresentações ao vivo. Foi então que percebi o quanto a experiência de tocar ao vivo era crucial para moldar o som. Nós pegávamos qualquer apresentação que pudéssemos, por menor que fosse, e, por várias vezes, acabávamos improvisando parte dela. Novas canções se revelariam nesses shows. Larry tinha um gravador de minidisco e catalogava cada apresentação, nos fornecendo os CDs para ouvirmos e aprendermos no dia seguinte. 64
FOTO DAVID BRENDAN HALL
Após vários meses trabalhando na gravação e tocando extensivamente por toda Boston, nós lançamos “Happiness”. O momento não podia ter sido pior. Foi por volta de 2007, 2008 e a Indústria fonográfica estava entrando em colapso devido à internet. As gravadoras estavam falindo. Gerentes e a A&R não estavam procurando bandas para fazerem contratos, eles estavam procurando emprego. Ninguém realmente sabia como proceder diante disso. Foi bem antes que mídias sociais e o crowdsourcing fossem realidade. Milhares de dólares foram gastos na divulgação da gravação, apenas para serem praticamente ignorados por todos. Nós embarcamos numa van, com 10 a 12 viagens, apenas para tocar para várias salas vazias, em lugares pouco conhecidos. Isso foi desanimador, e também outros aspectos de minha vida pareciam estar desmoronando todos ao mesmo tempo, então decidimos tomar caminhos distintos. Eu precisava de uma mudança de ares. Em 2013, eu me reuni com Dana e Larry para tocarmos no Pohoda Festival, na Eslováquia, e no EXIT Festival, na Sérvia, assim como em alguns shows menores. Em 2010, eu me mudei pra Austin, Texas, nem tanto pela sua cena musical, mas porque eu já conheço pessoas lá e poderia arrumar facilmente um emprego e um lugar pra viver. Foi em Austin que conheci Michael Howard, meu noivo e parceiro no meu atual projeto, Alien Knife Fight. Mike é baixista e baterista, então nos demos muito bem um com o outro facilmente. Ele vem de uma bagagem mais ligada ao Metal e ao Rock, o que foi bem agradável. Estando tão inserida no ciclo do Morphine, eu comecei a me sentir muito presa em um som com tendências mais próximas ao Jazz e o Blues. Anos atrás, quando construí meu primeiro baixo slide de 2 cordas, eu era relutante em tocar ao vivo com ele porque sabia que as pessoas iriam me comparar ao Morphine imediatamente, e me pediriam para tocar músicas deles. Conscientemente, eu o mantive guardado por muitos anos, enquanto desenvolvia um estilo diferente de tocá-lo. Assim que eu iniciei meu trabalho com Mike, comecei a encontrar um som próprio no baixo slide. Ao invés de tocá-lo no estilo provocante do Morphine, eu toquei de uma maneira em que alguém como Josh Homme (Queens Of The Stone Age), ou Ian MacKaye (Fugazi) possam tocar. Um mundo completamente novo de som se abriu para mim.
“Eu sabia que deveria existir uma maneira de criar um poderoso som impulsionado pelo baixo em um mundo dominado por guitarras”
FOTO DAVID BRENDAN HALL
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Hoje, depois de muitos anos após a morte de Mark Sandman (1999), há um público completamente novo que nunca ouviu falar de Morphine ou de um baixo slide de 02 cordas. Estas pessoas estão começando a descobrir a música do Alien Knife Fight, que algumas pessoas estão descrevendo para mim “Slide Punk”. Eu me sinto muito como um peixe fora d’água em Austin. Tenho estado aqui por quase 05 anos, e além do fato de tocar com frequência pela cidade, eu não tenho muita presença na cena musical daqui. Prefiro colocar minhas energias nas gravações e nas turnês. Geralmente digo às pessoas que sou uma musicista de Boston em um hiato indefinido em Austin. Tudo na verdade é um “perde e ganha”. Mike e eu estamos necessariamente vivendo o sonho. Nós gravamos tudo o que fazemos, em uma casa grande e velha, cheia de guitarras, baixos, amplificadores, baterias, um piano, e um órgão. Não há mobília. Não há lugar para se sentar, a não ser a mesa da cozinha ou a cadeira de balanço da varanda lá fora. Às vezes, acordamos no meio da noite com ideia para uma música (que foi o caso de “Keep talking”) e nós ligamos tudo e gravamos de pijamas. Já que é quase impossível ganhar a vida fazendo música, nós nos sustentamos como sopradores de vidro e artistas visuais. Nós chamamos carinhosamente nossa casa de Big Bottom Farm (quem não ama uma referência ao Spinal Tap?). Antes, quando Dana, Larry e eu estávamos gravando “Happiness”, eu olhava ao redor e via os vários instrumentos de corda do Mark, e pensava sozinha: “Eu vou viver em um lugar como este algum dia.” E agora eu vivo. Atualmente, Mike e eu estamos gravando uma versão de uma música do Mikel Rouse, “The Receiver”, sob a direção do produtor executivo Robert Martinengo. Assim que isso estiver terminado, nós iremos voltar a trabalhar na nova gravação do Alien Knife Fight. Na medida em que a turnê vá seguindo, estaremos tentando chegar até Boston e voltar, tocando em cidades pelo caminho, mas nesse momento nós não temos o suporte necessário para embarcar numa extensa turnê nacional e internacional. Nós estamos levando em conta o crowdsourcing, contato que possamos criar uma base significativa de fãs.
DANIEL SCANDURRA (SP) Músico, designer. Viveu a Zona Autônoma Parque Augusta no verão de 2015 (foto). + Links e trabalhos em: internet.hotglue.me/
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5POEMAS FERNANDO NOY (ARGENTINA) Poeta argentino, é autor de vários livros de poemas. Incursionou pela ficção e o teatro como autor e intérprete de intervenções não convencionais. Também escreveu “cuentos quemados por el portero” e “historias del under” – uma reunião antológica de treze capítulos sobre a efervescência cultural dos anos 80-90 com o advento da democracia depois do terrível processo militar em seu país. ________________________________________________
WANDERSON LIMA (PI) É poeta, ensaísta e coeditor da revista eletrônica dEsEnrEdoS. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Professor do Mestrado Acadêmico em Letras da UESPI. E-mail: wandersontorres@hotmail.com
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DE fernando noy oigo al viento perdido en el tiempo adonde ira con su prisa, muy lejos si pudiera trasnmutarme en aire y seguirlo en sus pulcros cortejos veo al viento, el, que a toda hora con antiguo gemido se acerca a la noche cuando ya el cansancio roba perlas que caen de mi frente ah esas joyas de sudor ardiente que arrebata con fresco egoismo veo al viento esconderlas en cofres y arrojarlas por tu piel de abismo
eu ouço o vento perdido no tempo aonde irá com sua pressa, bem longe se eu pudesse converte-me em ar e segui-lo em seus pulcros cortejos eu vejo o vento, ele, que a todo instante com um gemido antigo se aproxima à noite quando já o cansaço rouba pérolas que caem da fronte ah essas joias de suor ardente que arrebata com tenro egoísmo eu vejo o vento escondê-las em cofres e atirá-las sobre tua pele de abismo
mi madre, la lluvia, ha muerto o deberia decir , simplemente, que ceso de llover mi padre, el bosque, agoniza o mejor escribir que ha llegado otro otoño mi amor en la niebla se viste de oro y llama o es preferible callar que ha llegado la luz la luz siempre desnuda en lo que engarza
minha mãe, a chuva, morreu ou deveria dizer, simplesmente, que parou de chover meu pai, o bosque, agoniza ou seria melhor escrever que chegou outro outono meu amor na névoa se veste de ouro e chama ou é preferível calar que a luz chegou a luz sempre nua no que enreda
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todo lo que te sobra es mio tu cuerpo por ejemplo desdesperada la mariposa ya no busca mas nada ni siquiera tu rosa
tudo o que te resta é meu teu corpo por exemplo desesperada a borboleta não busca nada mais nem sequer tua rosa
no. no es un mendigo del cielo, es el poeta y come, su mendrugo de hostia profanada ningun lazo no une, tan solo la intemperie lo tragara el color, por habr sido su sombra
não. não é um mendigo do céu, é o poeta e come seu rebotalho de hóstia profanada laço algum une, tão só a intempérie o engolira a cor, por ter sido sua sombra
jamas las hojas de otoño ensucian el camino al contrario, lo enjoyan, ya embriagado de barro todo estara muerto al fin alguna vez menos esta imagen que te toca
jamais as folhas de outono sujam o caminho pelo contrario, o adornam, já embriagados de barro tudo enfim estará morto um dia menos esta imagem que te toca
Durante uma década trabalhando com a Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo (1980 a 1990), não havia acesso, nem nas bibliotecas, às obras de nossos autores. Fora do eixo Rio-São Paulo, as obras desses autores praticamente inexistiam, salvo raríssimas exceções. Foi a partir daí que tive uma noção mais alargada deste paredão que nos separa, e foi através do Centro Cultural São Paulo que busquei empreender ações de aproximações, pequenas, mas que estavam presentes, com sugestões de compras para as bibliotecas, ao mesmo tempo promovendo encontros com autores do nordeste, inclusive uma leitura de poetas do nordeste, cujo título ficou “Nordeste Mar e Faca” (1989).
Palavras dos
PAULO VASCONCELOS (PB) Professor Doutor pela ECA – USP. Contista e poeta com alguns livros publicados. ________________________________________________________________________
Todavia, nos anos de 2010, através da Revista Brasileiros, pude falar mais diretamente a um público da área literária, e, em acordo com a referida revista e sua coordenação editorial, pude, de início, estrear a coluna “Palavras de Brasileiros”. Depois, entrevistei autores desconhecidos ou não explorados pela mídia impressa. A Revista Brasileiros é um empreendimento da Brasileiros Editora Ltda. (2007), uma revista mensal de reportagens sobre política, cultura e artes. Com uma circulação de cerca de trinta mil exemplares por edição, a revista enfoca aspectos da cultura do Brasil e da vida dos brasileiros. Assim, a revista nasceu das ações dos seus sócios-fundadores: Patrícia Rousseaux e Hélio Campos Mello. Os dois, com fortes experiências anteriores neste meio editorial, inovaram abrindo espaço à literatura. A revista mensal busca atender uma demanda então pouco explorada no meio editorial: o Brasil, suas diferenças e seus personagens, buscando maior profundidade para assuntos, ou focos, na política, na economia e nas artes muitas vezes abordadas de modo frágil.
s Brasileiros
UM NOVO APALAVRAMENTO Pensando nesta falta de visibilidade, comparti, via revista, pela coluna “Palavras de Brasileiros”. Deste modo, havia o desejo de criar mais uma brecha em que fossem mostrados, mesmo numa coluna ou em entrevistas, os autores nacionais, espalhados especialmente pelo norte, nordeste, centro- oeste e também no sudeste do país. Dou atenção muito especial à poesia, e neste campo temos muitos poetas com premiações locais e nacionais que quase sempre não ganham a devida visibilidade na mídia impressa, televisiva e radiofônica. Casos são muitos, mas vejamos alguns: Samarone Lima, para citar um que, por coincidência, após publicação da Revista Brasileiros, em entrevista (maio/2014), recebeu o prêmio junto à Biblioteca Nacional (aquário desenterrado). Do mesmo modo, o paraibano Sérgio Castro Pinto, autor reconhecido no nordeste – premiado e indicado como leitura em planos de divulgação da literatura paraibana – não ganha espaço nas revistas – ele teve seu depoimento flagrado por nós em extensa entrevista (Revista Brasileiros, maio/2014). Além destes, Orley Mesquita de RecifePE (Revista Brasileiros, novembro/2014), já falecido; Daniel dos Santos Lima (Revista Brasileiros jul/2012) – também falecido, tendo estado, em nossa pauta, agraciado com o Prêmio Alphonsus de Guimarães. Roçam em nosso olhar novos poetas com a pele firme da palavra, cujos versos não se fixam apenas no regionalismo, mas numa lírica madura, extrovertendo a potência maior das palavras e suas ilações semânticas.
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[...] O menino dança,/Ensaia verso que vê/reverso. Desliza verbos me pede um trago: torpor/Do próprio veneno [...] (A. Coutinho, 2011)
Caso acima do poeta morto baiano Alexandre Coutinho no seu único livro deixado. O poeta desliza sobre uma fábula que o prende (o verso e o menino) e desliza febrilmente como um dissecador apaixonado pelo verso livre. Seu livro Estudos do Corpo (2012, Editora 7Letras) traz dourações de apalavramento, da loucura, do lúcido de si – desse si com a vida (Revista Brasileiros, jul 2013). O Piauí nos manda destreza de verso em novos poetas, como é o caso de Demetrios Galvão – ele é um desses raros brasileiros que perseguem do verso ao vento e aos amigos, numa febre sã de compreensão e pausa (Revista Brasileiros, mai 2015).
Lê-lo é abstrair o tempo, é deslocar-se em fascínios das rapsódias das palavras a dizer imagens. Senão, tomem este gole:
“o silêncio do sono é o trabalho de imagens profundas o barulho das ruas são palavras praticando o alfabeto (…) o silêncio do escuro é um segredo em absoluto o barulho do alfaiate roupa nova no armário.”
E,
“(…) bifurcar-se é quando um filho inventa um pai (…)” (Bifurcações, 2014)
De igual modo, temos versos impetuosos, fincados no simples e terno, via um carioca capixaba, Cae Guimarães e Vitória Lima, da Paraíba.
[...] Andei como andam os suicidas. Com uma bala bem rente ao coração, e uma saudade espremida, exaltada e apertada entre os dentes. Saí, como se todas as portas fossem dispostas na diagonal.[...] Cae Guimaraes (Vitória-ES)
Ou
[...] selvagens, insanas, /as éguas da noite galopam à solta,/dispersam o sono com o estampido dos cascos/tonitruantes.[...] Vitória Lima (Campina Grande-PB)
(Ambos estiveram nas páginas da Revista, nas edições de março e junho de 2014).
São muitos os autores que fabulam este Brasil e tentam contar nossa história, e somos poucos leitores e temos pouco espaço para mostrá-los. Há um quantum de prosadores e poetas de excelência, podendo não agradar a linhas editoriais sedentas por nichos mercadológicos e políticos. Todavia, é grande o número de escritores maduros e de novas abordagens na forma e no conteúdo – e até novas vanguardas aparecem na prosa e na poesia. Aparecem no âmbito da poesia: pequenos, curtos poemas; longos e longos poemas. Há ainda haicais, sonetos, quadras, com linguagem figurativa e/ou metafórica. Na prosa, há textos memorialísticos, ou uma prosa poética desmensurada. Não é Paula Fabrio (SP)! Outros se remetem à linguagem dos HQ’s, hein, Bruno Azevedo (MA)! Ou, numa mancomunação entre as linguagens midiáticas, ou do universo da música numa hibridização e tanto, o caso do Thiago E (PI). Os sujeitos que perfilam a nova criação literária que passaram por nossas entrevistas, em quatro anos de nossa participação, somam mais de cento e dez autores, entre prosa e verso; apresentam uma discursividade textual que não blinda o sujeito contemporâneo, mas mostra sua fuselagem híbrida, do sujeito globalizado, matizado por instâncias várias de linguagens, desde uma construção/desconstrução textual, em suas tipologias enunciativas, na sua composição narrativa, figurativa e metapoética e, indo além, apresentam uma subjetividade enunciativa, com um crivo existencial numa lírica que esboça expandir o eu-poético.
O que me chama atenção é a qualidade textual de muitos desses séquitos de novos autores. Que além de contar suas aldeias, e retirar seu sumo e sua história, trazem suas líricas com qualidade extremada. Detalhe, eles experimentam. Buscam o experimentalismo em blogs e redes, fanzines, e falam e contam pelo prazer de fazê-lo. Há exceções de imaturos, claro, como em qualquer parte, mas aqueles dos bons poemas dizem com o sabor da vida sequestrada em palavras, via sua memória afetiva – o que ajuda a cumpliciar a palavra, ou nas suas acrobacias; as cores são fortes, seus cheiros têm balbucios. Novos temas se apresentam, como o pop, em que deve ser incluída a sociedade de consumo, a desmesura do futebol, a tragédia urbana, a existência no devir, o rural e o urbano, as assimetrias e dissimetrias dos poetas clássicos, a discussão da linguagem e suas novas sintaxes e semânticas. Percebo a retomada de ensaios filosóficos, nas entrelinhas da prosa: a questão negra, a violência, o gaúcho e as conjunções latinas/ argentinas, o futuro e o nebuloso. Precisamos mostrar nossa face e dizer o Brasil, qual seu bico e língua em apalavramento. Há espaço para tudo, não podemos nos fronteirizar radicalmente, mas, ao menos, entender nossas fronteiras e dizê-las com o gosto da nossa literatura.
fúria
chega um dia em que o concreto cansa, o aço depõe suas armas, dissipa os vidros, desatam-se os nós impotentes da madeira, cordas, cabos, correntes desistem da tarefa, o plástico não se lembra de suas obrigações, o mármore dobra sob nossos pés e levamos a ponte pouco a pouco em nossos pulmões. um dia, é a cidade inteira que se aconchega, maligna, no vão livre de suas costelas
TARSO DE MELO (SP) É poeta, advogado, professor, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela USP. Entre vários livros lançados, sua poesia está reunida no livro POEMAS: 1999 – 2014 (Dobra, 2014). Mantém o blog Contra Tanto Silêncio: tarsodemelo.wordpress.com _________________________________________________
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natural O jogo está perdido, Doni, e não me venha dizer que a morte é natural. Natural como a morte do cão sob as ranhuras de um pirelli, natural como o corpo que não levanta quando tudo na cidade grita, natural como o corpo que não acorda mais e não permite dormir, natural como a carne aderindo invisível dia após dia às solas multicoloridas que pulverizam o estrago que, insistentes, fazemos uns dos outros, uns aos outros. Não há mais jogo, cara, não há mais partida. Voam sobre nosso espanto o resto de uma conversa que ninguém mais vai interromper e o vulto inquieto de tudo o que não dissemos sob tudo que foi dito. Sem asas, os pássaros sobreviventes vão andar entre seus versos sem saber se já não é deles a pasta, a graxa, a prancha em que tanto voo se transformou. Deixe assim. Uma palavra a mais não dirá nada.
capa e contra-capa da revista Código 1
CÓDIGO : REVISTA : código : internet PESQUISA : ARIANE STOLFI . BRUNO SCHIAVO . DANIEL SCANDURRA . GABRIEL KERHART . JOÃO REYNALDO
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Este artigo é uma primeira introdução ao projeto CÓDIGO REVISTA: digitalização e publicação online dos facsímiles de todos os 12 números da REVISTA CÓDIGO, que foram preparadas e lançadas originalmente entre os anos de 1974 e 1990. O website será oficialmente divulgado a partir do início de 2016, entretanto, já está no ar em período de testes e de incrementação hipertextual. Acesse: www.codigorevista.org/.
“Código [em teoria da informação] pode ser definido como um esquema de divisão da energia que pode ser veiculada ao longo de um canal. É um sistema de símbolos que, por convenção preestabelecida, se destina a representar e transmitir uma mensagem entre a fonte e o ponto de destino. Não apenas os códigos propriamente ditos (Morse, Braille, de trânsito), mas também as línguas podem ser consideradas “códigos”, embora Colin Cherry prefira distinguir entre as línguas, que se caracterizam por um longo desenvolvimento orgânico e os códigos, que são tecnicamente elaborados para certos fins específicos.” DÉCIO PIGNATARI EM “INFORMAÇÃO. LINGUAGEM. COMUNICAÇÃO”, 1968.
SOBRE ERTHOS ALBINO DE SOUZA
Erthos Albino de Souza (1932-2000), poeta dos primórdios da história da poesia computacional no mundo, foi o principal editor e único financiador dos 12 números da revista Código. Mineiro de Ubá, radicou-se no início dos anos 60 em Salvador-BA para trabalhar como engenheiro da Petrobrás, onde começou a mexer com computadores à época, gigantescas máquinas. Diz Erthos, em entrevista para Carlos Ávila, em 1983: “[o poeta] Pedro Xisto [1901-1987], quando esteve no Canadá [meados dos anos 60], conheceu um professor que realizou um poema dele em computador, chamado “Babel”. Ele me mostrou aquilo e comecei a me interessar. Como eu estava trabalhando com computador, comecei a fazer minhas pesquisas [1968].” Como “pesquisas”, Erthos se refere a experiências poéticas com procedimentos complexos (ligadas à matemática, à codificação e à alta tecnologia) porém, com resultados simples (com resultados metalinguísticos que ajudaram a introduzir as inovações poéticas advindas com o computador a um público-campo não estritamente científico). Para exemplificar, podemos dizer que Erthos, já nos anos 70, ora preparava cartões furados para impressão de poemas (linguagem dos primórdios do computador), ora se valia dos próprios cartões como poemas-objeto.
Hoje, em tempos de difusão do uso do printscreen (que muito facilita a possibilidade da percepção/ apreensão do fenômeno da metalinguagem em nosso cotidiano), consideramos imprescindível o conhecimento da obra de Erthos Albino de Souza, pré-screen. Antonio Risério, cocriador de alguns números de Código, incluindo o primeiro (1974) e o segundo (1975), dedica a Erthos um trecho de seu livro “Ensaio sobre o texto poético em contexto digital”, de 1998:
“A poesia computadorizada começa, no Brasil, com Erthos Albino de Souza, um dos pioneiros interna-
cionais do uso poético do computador. Conheci o seu trabalho em 1973, mas sei que seus experimentos vinham de antes. Engenheiro da Petrobrás, Erthos iniciou suas pesquisas e seus ensaios nos computadores da empresa. Ele é pré-micro, portanto, poeta do tempo do computadorzão, com cartão perfurado e válvulas enormes. Em 74, publicou na revista Código [número 1], que editávamos na Bahia, o Soneto Alfanumérico, jogando com letras e dígitos (este é o sentido do alphanumeric, no vocabulário informático), em base permutatória, no interior da antiga forma literária (...)”
Erthos, além dos 12 números de Código, financiou e editou muitos trabalhos de poesia e metalinguagem por todo o Brasil. Nos textos que existem sobre Erthos, é comum encontrarmos a ideia de que ele se preocupou mais com financiar a obra de amigos/parceiros do que a sua própria, porém, se incluirmos a revista Código como uma obra de sua autoria, dado o caráter guerrilheiro inerente à proeza dessas editorações (autônomas e autofinanciadas), podemos relativizar essa afirmação. Erthos pode não ter coligido em grandes tiragens seus próprios poemas, mas sua prática poética envolveu a criação de espécies de zonas autônomas impressas nas quais seus poemas, junto dos de dezenas de nomes importantes para a história da poesia brasileira, invariavelmente encontraram guarida. Graças aos meios digitais e à internet, o universo hipertextual ligado a Erthos (incluindo aqui o de programação poética, ou de programador-artista) está acessível a quem se interessar. Pode ser mesmo que seus poemas estavam, desde 1968, esperando a popularização dos computadores para serem organizados e publicizados. No Wikipedia, o verbete “Erthos Albino de Souza” começou a ser criado em novembro de 2015, veja lá bibliografia sobre Erthos e links online relacionados: https://pt.wikipedia.org/wiki/Erthos_Albino_de_Souza SOBRE A REVISTA CÓDIGO:
“Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas dos anos 1970 não são gente. São revistas.(...) Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido sobre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos. Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso, ampliar o repertório geral do o que dizer. (...) As revistas são a obra-prima da poesia brasileira nesta década que acabou de passar”. 84
(PAULO LEMINSKI EM “O VENENO DAS REVISTAS DE INVENÇÃO” ARTIGO PUBLICADO NA FOLHA DE SP EM 16/05/1982.)
A revista Código tem como precursoras diretas as duas revistas da primeira geração da poesia concreta: Noigandres (1952-1962), e Invenção (1962-1967) – essa em especial, pois foi através do contato com a revista Invenção 1 que Erthos, interessado por Sousândrade, iniciou intensa correspondência com Haroldo de Campos, (que o introduziu a) Pedro Xisto, Augusto de Campos, Décio Pignatari e, a partir disso, muitos outros futuros colaboradores e colaboradoras. Em Invenção 5, já há a participação de Erthos como cofinanciador. Código é contemporânea de uma geração de revistas-ignições que surgiram quase juntas, só entre 1974 e 1975 nasceram: Código, Navilouca, Pólem, Bahia Invenção, Artéria e Poesia em Greve – publicações independentes, as primeiras revistas de poesia impressas em offset (o último número da Revista Invenção ainda era impresso em tipografia). Essas revistas, e Código em destaque, ajudaram a dar fôlego e plataforma ao desenvolvimento de práticas intersemióticas da primeira e segunda geração (esta que ainda despontava junto das novas revistas) de poetas ligados à assimilação da poesia concreta, ampliando os campos para a pesquisa em metalinguagem desta estirpe (Regina Silveira, Julio Plaza, Lenora de Barros, Alice Ruiz, entre outras e outros). Por email, Augusto de Campos, em 2013, nos sintetizou assim o papel da revista Código:
“Durante cerca de quinze anos, de 1974 a 1990, a revista C ódigo, editada e impressas na Bahia
por Erthos Albino de Souza e vez ou outra também por Antonio Risério -, foi a portavoz das poéticas experi-
mentais brasileiras mais avançadas. Publicação alternativa, financiada pelo primeiro, acolheu materias de vanguarda que não encontrariam guarida nas publicações convencionais, com originalidade e versatilidade gráficas incomuns. Foi importantíssima não só para a evolução da poesia concreta e visual, como para o despontar de várias novas gerações de poetas, artistas e músicos interessados na produção de novas linguagens. E incentivou, com o seu exemplo, o aparecimento de várias outras publicações que tiveram presença significativa no desenvolvimento da literatura de invenção no Brasil.”
Omar Khouri, poeta e um dos editores da Artéria ( Código incentivou bastante o nº1 de Artéria), tem alguns importantes escritos sobre Código como esses trechos do livro “Revistas na era do pós-verso: Revistas experimentais e edições autônomas de poemas no Brasil dos anos 70 aos 90 ” de 2003: “Código, revista editada na Bahia, pode ser considerada, das que surgiram nos anos 70 com o propósi-
to de veicular principalmente poesia e uma poesia mais empenhada com a experientação, o maior prodígio,
pois, estendendose de 1974, ano em que saiu o seu 1º, até 1989-1990, conseguiu, a intervalos não regulares [12 números em 16 anos], chegar ao nº12. (...) O número 1, de formato pequeno, traz na capa e quarta capa o poema “Código”, de Augusto de Campos, que depois se tornou como que uma logomarca da revista e das edições “Código”. C ódigo, a partir do segundo número, modificou o formato que quase sempre se manteve o mesmo (exceção feita ao álbum de Décio Pignatari – Oswald Psicografado por Signatari) até o número doze. (...) Código teve números especiais, como o que comemorou os cinquenta anos do poeta Augusto de Campos, o que veiculou o trabalho já citado de D. Pignatari, o das traduções de José Lino Grünewald, o de homenagem a André Luyz Sã-tos, o dos trinta anos da Poesia Concreta e a de nº12: Arteciência. (...) Para aqueles que se interessam por poesia e experimentação, CÓDIGO entra como um documento de grande importância, não apenas em termos de Brasil, mas do que era produzido no Planeta, nos anos 70 e 80 do século passado.”
o
A única entrevista que Erthos concedeu foi em 1983 (ano do lançamento de Código 8) para Carlos Ávila (já citada aqui), poeta e jornalista de Belo Horizonte que participou de 3 edições de Código publicada junto ao estudo “O engenheiro da poesia” no livro POESIA PENSADA (2004). Carlos gentilmente ofereceu para a nossa pesquisa cópias de 17 cartas que recebeu de Erthos e o inédito áudio da entrevista que conservava em fita cassete, material que estará online no site codigorevista.org/. Aqui trecho da entrevista sobre a revista Código: “Os dois primeiros números de Código foram editados com o Risério ele é que selecionava
o material, grande parte ele mesmo recebia. Quando ele se mudou para São Paulo, o terceiro e o quarto números eu fiz sozinho. Já o quinto, dedicado a Augusto de Campos, ele já estava novamente na Bahia, colaborou e ficou com a responsabilidade do material. O número com trabalhos do Décio (“Oswald Psicografado por Signatari”, Código 6) foi quase improvisado aliás, foi o ano em que saíram dois números da revista. O Décio foi à Bahia e disse que tinha feito aqueles trabalhos, aí eu me entusiasmei. E ele, para ajudar, mandou os fotolitos prontos. Então foi uma beleza: não tinha nada de composição, os fotolitos prontos… O número de José Lino Grünewald (Código 7) foi o seguinte: quando Augusto esteve na Bahia, eu falei com ele que gostaria muito de reunir aquele material do Zé lino publicado nos jornais, no Jornal do Brasil, A tribuna, Correio da Manhã… Eu tinha alguma coisa, mas não tinha tudo. Eu falei com ele e ele deu força, dizendo que o Zé Lino estava muito afastado, nunca mais tinha publicado nada. Então eu escrevi para ele e recebi uns xerox. Mandei datilografar tudo, atualizar a ortografia e devolvi a ele, que fez algumas correções, mudou a disposição e aí a gente fez aquele número.”
SOBRE CODIGOREVISTA.ORG/
Em meados de 2013 o poeta Augusto de Campos presenteou-nos com exemplares originais da revista Código, as quais guardava com muito cuidado. A partir da reunião dessa coleção e do desejo de tornar as revistas acessíveis via internet a quem pudesse se interessar, surge o projeto CÓDIGO REVISTA. Augusto concordou com a ideia de redigir um projeto de digitalização e divulgação online da coleção completa. Adquirimos os numeros que faltavam, contando com acasos milagrosos online, (como a aquisição da pequena e rara “Make up”, publicação anexa à Código 9) e logo em seguida fomos contemplados com o edital Rumos do Itaú Cultural, podendo iniciar os trabalhos a partir do final de 2014.
Desde então, a equipe se ocupou em realizar algumas tarefas, das quais destacam-se: contato e obtenção da licença autoral junto aos principais participantes; entrevistas; digitalização; tratamento e processo OCR (identificador de caracteres em imagens) de todas das páginas das revistas e preparação da interface do website interligada com um banco de dados próprio. BANCO DE DADOS E INTERFACE INTERCÓDIGOS
CAPA E CONTRA-CAPA DA REVISTA CÓDIGO 10
Para chegar ao resultado da interface, tivemos alguns princípios e desafios previstos, por exemplo: – Ter um design de navegação paratático (que permita a re-montagem/re-arranjo das revistas de acordo com o interesse do pesquisador/leitor), programado a partir de códigos gerados pela estrutura (necessariamente hipotática) de um banco de dados. – Apresentar boa fruição tanto para manuseio/pesquisa de arquivo, como para manuseio criativo/propositivo. – Ter uma lógica taxonômica e folksonômica de indexação dos metadados aos arquivos de modo a permitir o intercâmbio entre níveis diversos de informação hipertextual. Não descartamos a possibilidade de criar mais de um tipo de interface a partir dos códigos gerados pelo banco de dados, porém, nessa etapa inicial da pesquisa, focamos no desenvolvimento de uma única interface com o url: codigorevista.org/nave/. Nesta programação optamos por manter, num pensamento intersemiótico, uma das principais características tradicionais que definem o objeto “revista”, se trata do fato de serem encadernadas de forma a permitir um manuseio/folheio de duplas em duplas de páginas (fato que também é característica tradicional do formato “livro”). É esse o tipo de encadernação de 11 das 12 revistas Código (apenas a revista número 6 é diferente pois tem as folhas soltas). Assim, a interface oferece a visualização de duplas de páginas, permitindo tanto a fruição através da ordenação original de páginas das revistas (como se estivessem físicamente encadernadas), como também, e isso é ganho inerente ao meio digital/hipertextual, a de todas as combinações possíveis de duplas entre todas as páginas de todas as revistas catalogadas. Essa possibilidade, somada a disponibilidade de recursos como o do zoom e o de rotação das imagens (cada página com edição independente), permite o rearranjo criativo de infinitas combinações/transcriações. As montagens podem ser capturadas/congeladas, por exemplo, através do emprego do “printscreen”, que gera uma imagem da tela tal como foi preparada, essas imagens também poderão ser catalogados no banco de dados e figurar no site.
De onde vêm os leões Um leão silente, ignorante de si apresenta-se ao sol, sem sabê-lo sol Seu pelo amaciado, sem nomear texturas seu olhar imponente, força de desconhecer, atravessa uma retina a minha E na presente hora, instante consumido me leva ao desejo de perecer
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A dança das sombras
LAÍS ROMERO (PI)
(Teresina, outubro de 1986) é mãe do Luís, professora de letras e escreve. Participou do coletivo de poetas Academia Onírica. Aguarda a impressão do seu primeiro livro, intitulado Temporário. Cultiva a melancolia, lê e cuida de três gatos. Atualmente está trabalhando no seu segundo livro de poesias e tentando não ser romancista. ______________________________________________________
Retorno à superfície atravessando o concreto frio de mãos dadas com a deusa da chuva regresso meus frutos serão sempre os mais amargos dos meus olhos brotam oito espinhos me desfaço em pensamentos e fumaça um mergulho no escuro do caminho
S3TART
[ PROCESSO DE CRIAÇÃO ]
DOMMER - STILL cena do artista no processo em Teresina
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Das ideias que você quer compartilhar para poder ver refletindo a alegria de um trabalho justo, verdadeiro e fiel: esse é o S3TART [Sthreetart] escrito assim como se escreve nas ruas. A proposta do projeto era mostrar artistas, inicialmente, do nordeste, que produzem artes de rua, como grafite, lambe-lambe, stecil e sticker contando sua história. A ideia vagava na minha cabeça desde 2010 com um título bem parecido, mas fazia referência apenas a Teresina, e como essa cidade parece um livro de auto-ajuda escrito por um suicida, ficou como um muro branco até setembro de 2014, quando, atentado do juízo – como se fala aqui no Piauí – por conta do calor do período eleitoral e dos meses que terminam com “B-R-O”, escutei o batido da bola de gude no fundo da lata (quem já pegou em uma lata de spray sabe do que estou falando). O programa piloto da série-documental S3TART foi com o artista de Teresina-PI, Arthur Doomer, que topou acordar bem cedo e encarar o sol do meio dia gravando. Doomer é uma pessoa tranquila e calma, mas essa leveza durante as conversas me levaram a conhecer sua carga explosiva de artista inquieto e instigante. Sua arte me mostrou o quanto efêmero é pintar um muro ou um grande painel. Para Doomer, o pensamento dele interfere na cidade, assim como sua arte e a cidade interferem no trabalho que se vandaliza artisticamente, seja pintando sobre cartazes ou casas demolidas.
EDUARDO CRISPIM (PI) Nascido e mal criado em Teresina. Montador de filmes e Marketeiro [termo tosco] de formação. Começou seu trabalho no audiovisual na produção de desenhos animados no final da década de 1990. Kafkaneando a vida e o trabalho, migrou pra direção de filmes publicitários e documentários. Hoje molda o tempo desde 2010 em estado avançado de pupa com a Madre Filmes. _____________________________________________________
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A opção por não colocar um interlocutor foi para que o artista pudesse, realmente, falar o que quisesse e, mesmo com a edição, não pudéssemos descaracterizá-lo. O formato ficou: depoimento e trilha em um episódio de 15 minutos. A trilha, herança, de uma falecida e grande banda de Teresina, o Skate-Aranha, suja os ouvidos de quem assiste ao episódio. Usando duas câmeras e com a parceria da produtora Suzana Muller, que mora em Recife, e estava em Teresina, nasceu o piloto do S3TART. Com a cobrança, logo de cara, para executar outros episódios, o pensamento voltou-se para outras capitais do Nordeste. Doomer apontou o Galo de Souza, de Pernambuco, que já tinha passado por Teresina e conhecia muita gente da cidade, o que facilitou o contato. O próximo passou foi viajar para Pernambuco, mas antes de gravar com Galo, conseguimos gravar com a Crew do Projeto Palaffiti. Nas portas da Comunidade do Bode (bairro de palafitas do Recife), fomos recebidos por Shelder e Stilo. Entrar em um lugar e ver que tudo de ruim corre pra lá é duro. Dói. Sente-se o amargo na boca. Mas, conversar com jovens que fizeram da arte, que aprenderam na rua, objeto transformador da vida de outras pessoas, foi o doce que me nos levou até a pequena palafita para a conversa com Shelder, Menor e Stilo. Só depois conhecemos Aliado, outro membro da Crew. O processo de executar um documentário com essa abordagem é como colocar o pé na lama, revirar as vísceras e provar da verdade dos personagens e não de uma verdade universal. Conquistar a confiança é passível de nascimento ou de luto, de entrega ou repulsa. Nas conversas, perguntas diretas e respostas sem interrupção. O Palaffiti trabalha no bairro do Pina, na comunidade do Bode, com o grafite nas palafitas e promove ações culturais e sociais no local onde a cidade apenas sangra. De Recife para João Pessoa na Paraíba, onde gravamos com Priscila Witch, indicação do pessoal do Palafitti. Priscila é uma mulher no meio das latas de spray, cheia de personalidade e com voz de menina, uma das grandes artistas do grafite no Brasil com uma arte que jateia entre a fofura e a sensualidade, apesar de não ter deixado de correr nas ruas fazendo seus bombs semanais. Também em João Pessoa gravamos com Cassiocobara, percussionista e artista de sticker e lambe-lambe. Seu depoimento foi gravado em uma fundação que trata crianças e jovens com transtornos mentais, ou ex-usuários de drogas, local onde ele realiza um trabalho com artes plásticas e música. Os dois artistas, tanto a Priscila quanto o Cassiocobara, nos impressionaram pela calma e força. Ao olharmos para eles, vemos que essa tinta não vai acabar.
HUDSON MELO grafitando em Teresina
De volta a Pernambuco, gravamos com Galo de Souza, que nos recebeu em seu apartamento, em Olinda. Galo é dessas pessoas que modificam tudo o que está ao seu redor. Quando trocou a pixação pelo grafite, formou um coletivo e o grupo de HIP-HOP, Êxito de Rua. Com pouco tempo, espalhava sua arte saída da periferia de Olinda e Recife para a Europa. Galo é uma das maiores referências da arte de rua no país. Sem pressa e sem pausa, em Teresina, gravamos com Hudson Melo, artista que transita entre a arte de rua e as artes plásticas. Hudson tem uma dinâmica bem intimista no seu traço, ponto positivo para o menino que saiu do bairro Mocambinho, na periferia de Teresina, e hoje toma as galerias mundo afora. Seis episódios rodados e montados em três meses, realizados de forma independente “realmente independente” e na guerrilha, pela Madre Filmes. Cada conversa, cada saída pra ver um muro, ou tapume, recebendo essa arte foi uma aula. Aprendemos que tudo pode ser modificado. Somos muito gratos a cada pessoa que participou entregando o que tem de maior e mais generoso pra ofertar. Seu tempo, sua arte e suas histórias. Muitos ainda irão conversar com o S3TART, sabemos bem que muitos desses artistas estão trabalhando pra mudar sua comunidade, bairro, cidade, e isso se multiplica, termina sendo uma conversa de quem luta todo dia pra deixar estampado um futuro menos cinza. Cada artista somou com o S3TART e tudo ganhou mais cores e traços. O trabalho está no meio porque o fim não vai existir.
O VÉU DAS PALAVRAS DE
violante do céu
Representação pictórica da hierarquia conventual típica do século XVII.
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MARIA DO SOCORRO FERNANDES DE CARVALHO (PI) É professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas. É autora do livro Poesia de Agudeza em Portugal (2007). _________________________________________________
Hoje, mesmo uma fantasia sem qualquer juízo, sofreria com cortinas de fumaça para imaginar uma mulher nascida, aliás, bem-nascida, na aristocracia cortês do longuínquo século XVII europeu, fazendo versos ao divino, que todos criam, e ao humano, versos sobre o ser humano, de quem todos desconfiam. Falamos de Violante do Céu, uma poeta portuguesa nascida em 1607, que viveu longa vida, cercada de signos e dogmas. Freira, porteira, abadessa, valida da rainha, musa, foi professora da ordem das dominicanas no Convento de Nossa Senhora da Rosa de Lisboa. Muitos signos. Ter acesso às letras cultas, há quatrocentos anos, mesmo para damas de corte, era raro. Não pelo caminho da escola formal, mas, certamente, por via de alguma instituição, formou-se um grupo de mulheres com preciosas prendas no trato com a linguagem. Não raro as bibliotecas dos conventos formavam essas mulheres que, dedicadas à espiritualidade por devoção ou mando, faziam poesia de assuntos sacros (poesia ao divino) ou de matéria humana, demasiado humana, e por demais matéria. Após professar votos de dedicação à vida “piedosa” ou religiosa, Violante ascendeu na hierarquia conventual até ser porteira, que é quem determina as entradas e saídas das pessoas todas de um convento; depois virou abadessa, uma espécie de diretora; mantinha contatos estreitos com a família real, sobretudo com as principais mulheres da coroa. Com um nome que nele traz viola, e lembra cantante, mas também violência ou violada, Violante alcançou inviolável prestígio na cena letrada lisboeta do Seiscentos: foi musa. Nossa senhora das rosas poéticas. Faleceu em 1693: como seu contemporâneo padre Antonio Vieira, viveu longevamente todo o esquisito século XVII. Obras principais: Rimas Várias (1646) e Parnaso lusitano de divinos e humanos versos (1733).
Há notícias que ela também escreveu outras obras, inclusive comédias, contudo o livro no qual assentou a mão na linguagem da poesia foi Rimas Várias – obra que reúne vários gêneros poéticos num só: composto por 26 sonetos, 12 canções e 2 silvas, 6 madrigais, 1 proposta, 1 capítulo, 1 epístola, 14 décimas, 5 glosas, 1 volta, 1 redondilha e 27 romances. Disse Thiago E: “Nos versos dos seus sonetos, salta aos olhos e ouvidos a presença quase exclusiva do hendecassílabo heroico e do rigor à obediência aos preceitos retóricos no que concerne à importância da última sílaba fraca no verso grave. Outra característica relevante dos hendecassílabos de Violante do Céu é a alternância binária que consiste em construir o verso com sílabas fracas sucedendo sílabas fortes ou vice versa: um movimento ondulatório convencional que caracteriza singularmente o andamento sonoro de seu hendecassílabo. Há a presença quase exclusiva do hendecassílabo heroico. Somente em raríssimos momentos é visto algum verso sáfico – de 364 hendecassílabos, 11 são sáficos – o que revela a preocupação da portuguesa em elevar sua lírica com o verso imitado das epopeias, sobretudo d’Os Lusíadas de Camões. Todos os hendecassílabos abaixo obedecem a um esquema rítmico porque o foco da regra é a acentuação das 6ª e 10ª sílabas – as outras sílabas configuram, assim, espaços para alguma liberdade na variação sonora da poesia. Acompanhemos os poemas ‘Soneto em diálogo a el Rei D. João IV de Portugal’, ‘A uma suspeita’ e ‘Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura que fala a outra dama que presumida entrou em uma igreja com os cuidados de ser vista e louvada de todos; e se assentou junto a um túmulo que tinha este epitáfio que leu curiosamente’ a seguir, como exemplos de recorrências poéticas comuns ao céu de Violante:
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Detalhe da tela Natureza Morta Vanitas, pintada por Pieter Claesz, séc. XVII _________________________________
soneto em diálogo a el Rei D. João IV de Portugal Que logras Portugal? um Rei perfeito, quem o constituiu? sacra piedade, que alcançaste com ele? a liberdade, que liberdade tens? ser-lhe sujeito.
Que tens na sujeição? honra, e proveito, que é novo Rei? quasi Deidade, que ostenta nas acções? felicidade, e que tem de feliz? ser por Deus feito,
Que eras antes dele? um laberinto, que te julgas agora? um firmamento, temes alguém? não temo a mesma Parca.
Sentes alguma pena? ua só sinto, qual é? Não ser um mundo, ou não ser cento, para ser mais capaz de tal Monarca.
A uma suspeita Amor, se uma mudança imaginada É com tanto rigor minha homicida, Que fará, se passar de ser temida, A ser, como temida, averiguada? Se só por ser de mim tão receada, Com dura execução me tira a vida, Que fará, se chegar a ser sabida? Que fará, se passar de suspeitada?
Porém, já que me mata, sendo incerta, Somente o imaginá-la e presumi-la, Claro está, pois da vida o fio corta. Que me fará depois, quando for certa, Ou tornar a viver para senti-la, Ou senti-la também depois de morta.
Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura que fala a outra dama que presumida entrou em uma igreja com os cuidados de ser vista e louvada de todos; e se assentou junto a um túmulo que tinha este epitáfio que leu curiosamente Ó tu, que com enganos divertida Vives do que hás-de ser tão descuidada, Aprende aqui lições de escarmentada, Ostentarás acções de prevenida. Considera que em terra convertida Jaz aqui a beleza mais louvada, E que tudo o da vida é pó, é nada, E que menos que nada a tua vida.
A Vanitas era tema recorrente na poesia de Violante do Céu. Detalhe da tela In ictu oculi, de Valdés Leal, séc. XVII. ______________________________
Considera que a morte rigorosa Não respeita beleza nem juízo E que, sendo tão certa, é duvidosa.
Admite deste túmulo o aviso E vive do teu fim mais cuidadosa, Pois sabes que o teu fim é tão preciso. 97
ACROBACIAS INDICADAS
VANESSA ALVES: COLETÂNEA DE IMAGENS E PALAVRAS Organizada pelo radialista Rafael Spaca, esta foto-biografia narra a história de Vanessa Alves, a atriz-cúmplice do mítico cineasta Carlos Reichenbach, e musa do cinema erótico brasileiro. O livro conta com fotos e documentos raros do acervo da própria atriz e traz um time de peso que analisa seu trabalho e seus filmes: Alessandro Gamo; Andrea Ormond; Antonio Leão; Aristides Oliveira; Christian Petermann; Daniel Camargo, David Cardoso; Diniz Gonçalves Júnior;Dimas Tadeu Schitini, entre outros. Onde comprar? http://editoralacos.com.br/
RALÉ
ESPANTO, de PEDRO SPIGOLON Várias vozes poéticas compõem a polifonia da coleção Galo Branco: Pedro Spigolon, Sarah Valle, Augusto Meneghin, Ana Júlia Carvalheiro, Jefferson Dias, Anderson Kaltner, Danilo Carandina. A editora Medita lança 7 novas dicções da poesia por meio de publicações contempladas com o Programa De Ação Cultural “Concurso De Apoio A Projetos De Publicação De Livros – Coleção De Obras Inéditas – No Estado De São Paulo. Nesse projeto foram impressos 10.500 livros. Todos os livros foram publicados aos longo de 2015, e o primeiro lançado foi “Espanto”, de Pedro Spigolon. 98
https://colecaogalobranco.wordpress.com/livros/
Com sua liberdade de encanação e sua estrutura dramática fragmentada na montagem de cenas independentes (mas que dialogam constantemente entre si), mantém-se sempre no campo do simbólico, nas forças significantes de suas cenas, seus tipos e na frontalidade transparente das imagens. Um filme leve, despojado em sua complexidade e que busca sempre “descolonizar o pensamento”, como é dito pela própria personagem de Helena numa das cenas fundamentais do longa. (Fernando Oriente)
GUS MORAIS Nasceu em 1983 e reside, atualmente, em São Paulo. Graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade de São Paulo, atua desde 2007 como ilustrador de revistas e livros para diversas editoras. Ilustra as tiras da seção “Bytes de Memória” publicada no caderno TEC da Folha de São Paulo. Trabalha com Quadrinhos e possui um traço versátil, que vai do POP ao intimismo mais obscuro. Um nome interessante da nova geração das Hqs nacionais que merece ser apreciado com atenção. Curte aí a página dele: http://www.gusmorais.com/
COLEÇÃO LEVE UM LIVRO
RÁDIO YANDÊ A Rádio Yandê, sediada no Rio de janeiro, difunde a cultura indígena através da ótica tradicional, mas agregando a velocidade e o alcance da tecnologia e da internet. A grade de programação possui programas informativos e educativos que levam para o público um pouco da realidade indígena do Brasil, desfazendo antigos estereótipos e preconceitos ocasionados pela falta de informação especializada nos veículos de comunicação. http://radioyande.com/
Poesia circulando nas ruas. Essa foi a ideia que motivou a criar a coleção Leve um Livro. A coleção é composta por microantologias de 24 poetas de diversas partes do Brasil. Os livros são feitos especialmente para a coleção, com projeto gráfico exclusivo, e são distribuídos gratuitamente, em 20 pontos de Belo Horizonte, distribuídos gratuitamente em displays afixados em centros culturais, cinemas, cafés, bares, livrarias, sebos, teatros e bibliotecas. Os livrinhos também são disponibilizados para download gratuito na página: http://leveumlivro.com.br/
sim, não se deve subestimar as infinitas possibilidades do medo é necessário criar e atacar com ele como ratos acuados atacam seus algozes humanos como velhos e valentes leões sem dentes não desistem de suas garras e reinos de guerra como crianças criam asas para os abismos
aqui tudo sou eu tudo é você legião de deuses e demônios aos cuidados da palavra
ANDRÉ MONTEIRO (MG) É doutor em literatura pela PUC-Rio, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista de produtividade do CNPq, escritor e compositor em horas raras. Publicou os livros A ruptura do escorpião – Torquato Neto e o mito de marginalidade (1999), Ossos do ócio (2000) e Cheguei atrasado no campeonato de suicídio (2014). 100
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