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Voz feminina Pulsante

ACLAMADA COMO A REVELAÇÃO musical de 2007 pela crítica, Ana Cañas segue cantando e encantando. É uma mistura de emoções e estilos, passeando pelo rock, pop e MPB. Ao longo dos mais de 15 anos de carreira, fez parcerias com diversos músicos - Pra Você Guardei o Amor, dueto feito com Nando Reis, por exemplo, se tornou um grande sucesso nacional - e o disco Todxs, lançado em 2018, foi indicado ao Grammy Latino como Melhor Álbum de Pop Contemporâneo. Sua estreia no Rock in Rio foi estrondosa e ela continua fazendo história no cenário musical. A cantora e compositora paulistana está, atualmente, em turnê com Ana Cañas Canta Belchior. Canções marcantes do músico cearense ganharam releituras recheadas de emoção e visceralidade em sua voz. Além de clássicos como Sujeito de Sorte, Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais, o repertório ainda traz uma canção inédita, Um Rolê No Céu, que foi dada de presente a Ana Cañas pelos filhos do compositor. O espetáculo - que nasceu, despretensiosamente, em uma live durante a pandemia - recebeu, em 2022, o prêmio Show do Ano pela Associação Paulista dos Críticos de Arte e já percorreu mais de 100 palcos pelo Brasil. No final deste mês, será a nossa vez: a cantora vai se apresentar no Festival de Inverno do Open Mall The Square. Mas não é a primeira vez que ela pisa por aqui. Em 2017, participou do Sarau Poesia na Garagem, um projeto cultural que acontecia na garagem de uma casa na região central de Cotia. É frequentadora assídua do Templo Zu Lai e diz que adora a energia das pessoas daqui. Além de cantora, comanda o programa Sobrepostas, exibido pelo Canal Brasil, em que recebe mulheres cis e trans para conversas sobre temas relacionados a desejo, prazer e compreensão do corpo feminino. Em meio à sua agenda atribulada, atendeu nossa equipe e abriu seu baú de memórias. Descreve a música e a arte como poderosos instrumentos para conscientizar e salvar vidas, traça planos para o futuro e revela com quem gostar de dividir o microfone. Com vocês, Ana Cañas, essa pulsante voz feminina.

Ana Cañas canta Belchior. Como surgiu o projeto?

Nasceu de uma live feita na pandemia, em um momento super difícil para nós, sem poder tocar e fazer show. A ideia inicial era ajudar os amigos músicos que estavam passando por necessidades, em um momento de muita vulnerabilidade emocional e financeira. Por sorte, eu escolhi esse compositor maravilhoso. Eu já vinha cantando Alucinação nos meus shows e resolvi fazer uma homenagem a ele com outras músicas. Foi a melhor decisão que tomei, porque foi um grande presente. O que se seguiu a isso foi um movimento muito lindo, tanto dos fãs do Belchior (cantor e compositor, falecido em 2017) quanto das pessoas que gostam do meu trabalho, apoiando com financiamento coletivo. Com isso, conseguimos gravar o disco. (para e pensa) E já se vão três anos e eu posso dizer que estou vivendo o momento mais bonito da minha vida e carreira. Quando fiz a live, nem imaginava que fosse virar uma turnê e nem que eu iria gravá-lo. Foi uma corrente muito amorosa, afetiva e verdadeira. Tudo que o Belchior deixou é relacionado à verdade, à poesia e ao atravessamento do coração com as ideias que ele trouxe nas canções que escreveu.

Foi isso que a conectou com Belchior?

Ele entrou na minha vida, quando eu ainda era adolescente, na voz da Elis com os clássicos Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida. Mas a conexão com ele mesmo, com o ser humano Antônio Carlos Belchior, foi depois da Live. Quando eu mergulhei nesse oceano, passei a ouvir toda discografia, ler biografias e assistir centenas de entrevistas no YouTube. Aproximei dos filhos e, então, a conexão com o Belchior ficou muito mais forte. Eu sempre fui muito fã dele, mas até então não tinha o devido aprofundamento na sua obra.

O álbum e DVD ao vivo do projeto foram lançados em 2023, contando com participações de Ney Matogrosso e Rael, além de uma canção inédita de Belchior. Como foi a sensação de cantar esse repertório e receber o prêmio de Show do Ano de 2022 pela APCA?

Ah, foi muito incrível. Tínhamos acabado de estrear o show com a banda e decidimos fazer o DVD. Para que as pessoas pudessem conhecer o trabalho, disponibilizamos tudo gratuitamente no YouTube como forma de dar uma devolutiva do carinho e do afeto que eu recebo dos fãs na estrada. Ter o Ney e o Rael cantando comigo... (suspira) O Ney sempre foi, para mim, uma referência como artista e ser humano. Ele tem uma importância enorme na minha vida com conselhos e direcionamentos pessoais e emocionais, também, para além do artístico. O Rael é um brotherzaço de rolê, talentosíssimo, querido, uma pessoa muito astral solar. Então, foi uma sensação de muita felicidade e orgulho estar dividindo o palco com essas duas pessoas, que também se conectam com Belchior de alguma forma. Diz a lenda que ele escreveu uma frase em Alucinação para o Ney: ‘um rapaz delicado e alegre, que canta e requebra demais’. E ter recebido um prêmio tão prestigiado como o da APCA foi lindo e eu dediquei ao Belchior, porque acho que é ele que merece esse prêmio. Quando se fala do panteão da música brasileira, ouvimos vários nomes maravilhosos, mas nunca o dele. Então, esse laureamento ajuda a colocá-lo neste lugar ao qual ele sempre pertenceu. O verdadeiro prêmio é o coração do povo. Como Belchior mesmo dizia, ‘não quero a fama, quero a glória’. Ele conseguiu.

(GRANJA

VIANA) É UM LUGAR,

PARA MIM, MUITO POSITIVO E QUE ME FAZ MUITO BEM. ADORO IR AO ZU LAI PASSAR O DIA E SENTIR A ENERGIA DAS PESSOAS

É este show que será apresentado por aqui, certo?

Sim, é o mesmo que está percorrendo o Brasil. São mais de 120 apresentações pelo país e continua essa corrente de emoção. Estamos com uma expectativa muito massa, pois nunca conseguimos chegar em Cotia com esse projeto. Sou frequentadora do templo budista Zu Lai e conheço um pouco dessa área. Estou muito feliz de levar poesia dele para a galera que mora aí.

Ah, então você já conhecia a Granja Viana?

Claro! É um lugar, para mim, muito positivo e que me faz muito bem. Adoro ir ao Zu Lai passar o dia e sentir a energia das pessoas, dos vendedores que estão na área, nos restaurantes, nas lojinhas. Estou muito, muito feliz de levar esse show para esse lugar.

Você disse, em entrevista, que subir ao palco e cantar correspondem a apenas 5%. E os outros 95%?

Estar em cima do palco é o momento sempre aguardado, por causa da troca afetiva com as pessoas. A música tem uma parada muito especial e única, uma capacidade de comunhão, de transcendência e do coletivo. São esses 5% que fazem tudo valer a pena. Os outros 95% estão no trabalho diário, que é conversar com jornalistas como nessa nossa troca, produção de show, de conteúdo e todo o processo do Business (negócio, em português). Às vezes, trabalhamos 15 horas por dia, sem parar, atendendo as demandas. Nestes 95%, também, estão incluídos o tempo de estrada.

Sobra tempo para cuidar de você no meio de uma agenda tão atribulada?

Ah, não tá sobrando muito tempo, não. (risos) Estou num pique bem louco. Tenho cinco gatos e o tempo livre é para ficar com eles. Amo meus bichinhos e minha casa. Eventualmente, vejo algum filme ou série. Adoro ir ao cinema, mas não estou conseguindo. Faço um pouquinho de academia, porque fazer exercício também é bom. Basicamente o tempo que sobra dá para fazer só isso. Namorar mesmo não consigo há meses. (risos)

Como descobriu a música?

A música entrou na minha vida de forma super inusitada. Saí de casa cedo com 17 anos e fui morar com a minha avó, ao lado da favelinha na cidade Dutra, na quebrada mesmo. Ela não podia me sustentar. O apartamento era muito pequenininho e o meu pai morava junto. Ele era dependente alcoólico e cuidávamos dele. Mas não tinha como ficar ali e fui viver em um pensionato. Para sobreviver, distribuía panfleto em farol e vendia coxinha e café, até que um amigo sabendo da minha situação perguntou se eu cantava. Não sabia, mas pensei que, se eu aprendesse, poderia comer, porque tinha dia que eu comia duas batatas apenas. Então, eu peguei o CD que ele me deixou e decorei as músicas da Billie Holiday (cantora e compositora norte-americana). Para quem não sabia cantar, foi um grande desafio. Fui fazer o teste no bar, passei e comecei a cantar profissionalmente. Assim, a música entrou na minha vida, por sobrevivência mesmo e, inclusive, eu conto essa história no show e as pessoas se emocionam. (para e pensa) Percebo que todo mundo, seja de qualquer classe social, raça ou gênero, já passou por alguma dificuldade e tem ou teve questões para superar e desenvolver. Foi o que aconteceu com a minha vida quando a música entrou e me salvou literalmente. Às vezes, perdemos a fé nas coisas, mas somos surpreendidos pelo universo.

Com quem mais gostaria de dividir o microfone e o palco?

Ah, com várias pessoas. Marisa Monte, Rita Lee que se foi infelizmente e tem os gringos também. Piro no Ed Sheeran (cantor e compositor britânico). Vou sonhando e quem sabe um dia, né? Mas eu já cantei com vários ídolos, como Ney (Matogrosso), Nando Reis, Lenine, Marina Lima, Arnaldo Antunes. É muito louco cantar com um artista que cresceu admirando. (sorri) Tem um cara que não é do meu rolê, mas acho demais e queria gravar com ele: o Zeca Pagodinho. Isso seria muito massa.

Você já revelou ter sido assediada sexualmente e sofrido bullying na adolescência, além de ter desenvolvido bulimia e problemas com alcoolismo. Como essas vivências influenciaram sua perspectiva sobre vida e arte?

Que conselhos daria para jovens músicos que também sonham em seguir uma carreira artística? Quais são as lições que você aprendeu ao longo do caminho e que poderiam ser úteis para eles?

Eu aprendi que temos que fazer as coisas com o coração. Nada que não tem verdade vigora, as pessoas sentem e ainda mais quando falamos em arte. Então, o conselho que eu daria é para não perder a fé, seguir seu caminho sempre com o coração e que o motivo das suas decisões seja sempre o amor e não outras coisas, como o dinheiro ou fama. Para poder sustentar isso depois ao longo da sua vida e ser uma pessoa feliz e realizada, tem que ser uma parada verdadeira. Esse é o conselho: fazer o que você ama, seja lá o que e do que jeito que for, mas com a sua verdade.

A vida traz desafios e dores, mas também alegrias. Uma amiga minha sempre fala que, por causa dessas experiências, eu aprendi a cantar do jeito que canto e, por isso, posso pretender emocionar alguém. Quem conhece a dor consegue acessar o coração das pessoas de forma mais verdadeira, porque sabe do que está falando, já que viveu aquilo. O ponto de conexão é sempre a verdade. É tipo um eco, o bumerangue que vai e volta. O que não destrói, fortalece. Também não se pode perder a fé nas pessoas. Eu acredito que todo espírito tem uma bondade, uns estão colocando mais em prática e outros mais focados em coisas negativas. Mas é como Gilberto Gil canta, devemos olhar pela lente do amor. Assim, dá para viver melhor e ser capaz de perdoar. Esta é a grande questão da vida. Perdoar não é fácil, mas quando se consegue, faz um bem enorme e liberta. O grande segredo está na empatia também.

Você é super engajada. Em 2017, lançou “Respeita” que aborda diretamente a violência de gênero e o assédio e contou com a participação de quase 90 mulheres, incluindo figuras icônicas como Elza Soares e Maria da Penha. Agora, está apresentando o “Sobrepostas”, programa em que encontra mulheres cis e trans para conversas sobre sexualidade feminina. Como essa experiência tem impactado sua visão?

Do alto dos meus 42 anos, como mulher, um gênero que sofre pressão e cerceamento por um machismo estrutural ainda muito forte, embora estejamos caminhando nas ideias, filosofias e práticas, acho que devemos ficar mais em paz e nos aceitar também. A sociedade impõe modelos e padrões, mas quando se adquire maturidade e sabedoria, não se importa com o que os outros vão pensar ou não.

Se somos 8 bilhões de pessoas na terra e ninguém é igual a ninguém, devemos aceitar como somos. Cada um pode brilhar a sua luz e todo mundo ficar bem com isso. Penso que, quando nos incomodamos muito com o outro é porque não estamos bem. A psicanálise explica isso: a forma como vemos o outro é, na verdade, a forma com o qual nos julgamos. Por isso, quando estamos em paz conosco mesmo, ficamos mais tranquilo com relação a tudo. Eu, por exemplo, tenho mais amigos hoje e estou bem mais feliz também.

Quais são seus planos e ambições futuras?

Muita gente me pergunta para onde vou depois do Belchior. (para e pensa) No ano que vem, vou lançar um novo disco. A vida tem que seguir e outros ciclos, fases e desafios, chegar. Estou preparando já esse disco e não posso adiantar nada, mas estou com produtor e empresário escolhidos, vários feat (participação ou parceria) legais com artistas que amo trabalhar e admiro. Muitas canções que estarão nesse disco vão contar histórias muito verdadeiras sobre a minha vida. Em álbuns anteriores, eu não tinha maturidade para falar sobre algumas dores, amores vividos e não vividos, perdas e belezas, questões existenciais. Vai ser um disco solar com algumas baladas. Estou bastante animada e espero que o público que acompanhou o Belchior e gostou desse projeto, venha seguir essa minha nova fase.

Por fim, você saberia definir a Ana Cañas?

11. Ana e Chico Buarque

12. Com o falecido pai, com quem aprendeu através do amor e também da dor

O que você espera alcançar ao compartilhar sua música com o mundo?

O afeto das pessoas. A música tem a capacidade de tocar a alma e o coração e isso é muito real! Belchior me ensinou sobre isso, porque a poesia dele é profunda e toca mesmo. Esse repertório me deu a oportunidade de concretizar, com muita solidez, esse desejo de deixar uma coisa boa dentro das pessoas. Quando subo palco e canto, fico realizada. Volto feliz para casa, com a sensação de dever cumprido, de ter feito as pessoas mais felizes naquele momento. A música é muito mágica em relação a isso.

Acho super difícil definir qualquer coisa. Somos uma parada agora e amanhã é outra, tipo o rio que está sempre em movimento na correnteza. Eu acho que, na essência, se eu fosse me definir, poderia usar uma frase do Belchior mesmo: ‘amar e mudar as coisas me interessam mais’. Tento sempre colocar isso em prática. Quando acontece algo ruim, penso positivo e jogo no amor. Tem dado certo. Mudar as coisas que não nos deixam felizes, principalmente em nós mesmos, é um grande desafio. Meu querido amigo Sérgio Vaz, poeta, sempre fala essa frase maravilhosa: seja a mudança que você quer ver no mundo. Poderia me definir como uma pessoa que tenta praticar isso.

13. Outubro de 2017, apresentação no “Sarau na Garagem”, movimento cultural que começou em 2015 e foi até 2019 em Cotia. “O dia em que a Ana veio em nosso sarau, foi mágico! Minha ficha só caiu quando eu a vi descendo do Uber junto com seu parceiro de trabalho. Essa sensação foi indescritível, porque um mês antes ela cantava no Rock In Rio e agora ela estava ali, na garagem da casa da minha mãe. É uma artista ímpar que tem um olhar com carinho para causas sociais”, descreve o organizador do movimento Neto Rossi.

14. Ana e Belchior

15. Dona Adela, a vó

16. Entregando cestas básicas na comunidade Portelinha, na zona sul de São Paulo, durante a pandemia

17. Nadja Kouchi, a mãe

18. Ana e seus gatos. “Muita gente me pergunta ‘mas ana, como é ter 7 gatos?’ e eu me pergunto como as pessoas conseguem viver sem bicho em volta”, diz.

Gente Nossa

Cotidiano

MARCOS SÁ é consultor de mídia impressa, com especialização em jornais, na Universidade de Stanford, na Califórnia, EUA. Atualmente, é diretor de Novos Negócios do grupo RAC de Campinas.

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