A todos os que colaboraram, de uma forma ou outra, para este livro. Aos grupos Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e todos que fizeram a cena musical pernambucana dos anos 1990. Especialmente a Marcelo Pereira, do Jornal do Commercio, que acompanhou a história do manguebeat desde o início, a Paulo André, pelos detalhes sobre o disco, a Liminha, pela entrevista no estúdio Nas Nuvens, a Gorete França (irmã de Chico Science), a Thammy Dantas, a maior fã que conheço de Chico Science e da Nação Zumbi, e a Rafaella Sabino, que organizou e digitalizou meus arquivos implacáveis (implacavelmente desorganizados). A Lauro Lisboa Garcia pelo convite e ao Sesc São Paulo pelo que tem feito pela cultura brasileira.
Em 2004, a prefeitura do Recife decretou que aquele seria o “ano letivo Chico Science”. Fui convidado para escrever uma biografia, que se chamou O malungo Chico. Foram distribuídos cerca de 35 mil livros pela rede escolar municipal da capital pernambucana. O livro ajudou a sedimentar a presença de Chico Science entre os adolescentes da periferia da cidade. Conheci várias pessoas que o leram e se tornaram fãs de Science. Espero que este livro sobre Da lama ao caos cumpra papel semelhante. Chico Science vive!
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO Danilo Santos de Miranda PREFÁCIO Lauro Lisboa Garcia
_1 QUE SOM É ESSE QUE VEM DO RECIFE? _2 LOUSTAL, LAMENTO NEGRO & O MANGUE _3 O PAÍS DO MANGUEBEAT _4 A CIDADE, A PRAIEIRA, MANGUETOWN, RISOFLORA… _5 FROM MUD TO CHAOS FICHA TÉCNICA DO DISCO SOBRE O AUTOR
Como expressão artística e forma de conhecimento, a música oferece campo fecundo à observação do homem, seu tempo e imaginário. Vasto território de experiências, que vão dos cantos dos povos nativos às composições sacras e de concerto, à modinha, ao lundu, ao maxixe e ao choro, passando pelo samba, a bossa nova, o baião e o xote até o pop, o rock e a eletrônica, a criação musical se mostra como manifestação cultural das mais férteis, presentes e marcantes da vida no Brasil. Amparado em histórias, heranças e universos simbólicos de diferentes povos que aqui se encontraram, o gosto pela música se refletiu no interesse com que a vida moderna e urbana do país recebeu invenções como o disco e o rádio. Era a época em que cantores, cantoras e instrumentistas de todos os estilos passavam ao posto de ídolos populares e jovens compositores criavam canções e marchinhas que atravessariam os tempos. Esse curso da criação musical é o que orienta a presente coleção Discos da Música Brasileira. A série, organizada pelo jornalista e crítico Lauro Lisboa Garcia, apresenta em cada volume a história de um álbum que marcou a produção nacional, seja pela estética, por questões sociais e políticas, pela influência sobre o comportamento do público, seja como representante de novidades no cenário artístico e em seu alcance comercial. Neste volume, que abre a coleção, o álbum visitado é Da lama ao caos, que apresentou o grupo Chico Science & Nação Zumbi ao público. No livro, José Teles, jornalista paraibano que vive no Recife desde os anos 1960, entrevista músicos, produtores, diretores de gravadora, designers, fotógrafos e jornalistas para recontar a história e os bastidores do disco e do, então nascente, manguebeat, movimento conduzido pelo grupo de Chico Science e que colocou a cidade do Recife no centro da cena cultural dos anos de 1990.
Pautando-se por uma linguagem clara e direta, a coleção Discos da Música Brasileira se desenvolve a partir de uma perspectiva que contempla a valorização da memória musical na mesma medida em que observa os ecos e as reverberações daquelas criações na produção atual. Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
Quanto tempo é preciso para uma obra artística ser considerada clássica? Os valores mudam sob a ação das inovações tecnológicas e interesses de mercado, com a evolução da espécie e contemporâneas visões de mundo. “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem”, disse o poeta Fernando Pessoa. “O que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo”, escreveu o compositor Belchior. O que era natural e corriqueiro ganha aura de “vintage”. Peças antes feitas de metal para durar mais de uma vida hoje são descartáveis, fabricadas com resíduos industriais. Discos de vinil e CDs foram substituídos por arquivos virtuais em MP3, pen drives e nuvens. A canção viaja nesse tempo. Álbuns conceituais ainda são realizados, mas a velocidade do consumo de música hoje fez com que se voltasse ao modelo dos discos de 78 RPM, em que só cabiam singles, gravações avulsas. O fetiche pelo objeto ressuscitou os LPs e a fita cassete. O telefone celular hoje faz também o papel do velho radinho de pilha. A desorientação diante do excesso de informação às vezes nos leva ao conforto do que está cristalizado. E é aí que, pelo voo de muitas folhas do calendário, se pode confrontar os poetas e constatar que o que é antigo pode permanecer jovem e a intensidade pode acompanhar a durabilidade das coisas, já que o tempo é a chave mestra. Aqui temos um clássico moderno que não perdeu o viço da juventude: o álbum Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi, estrela guia do manguebeat. Pelo contexto histórico, pelo tempo de maturação, pela gama de influências sonoras e pela consequente revitalização de toda a cultura pernambucana em diversos aspectos, pode-se dizer que o manguebeat foi o último grande movimento da música brasileira popular de alcance nacional e internacional.
A bossa nova e a tropicália ainda se situam como os pilares estéticos mais evidentes da linha evolutiva da moderna música brasileira. Outras cenas importantes e transformadoras, como a jovem guarda, o clube da esquina, a vanguarda paulista, o rock dos anos 1980, a cena que ficou conhecida como axé music (esta sem se configurar como movimento), o hip hop, o funk carioca e, mais recentemente, o som do Pará, fizeram ou seguem fazendo história, mas o manguebeat foi, de fato, o último sinal de inovação em forma de manifesto. Ao retomar a valorização de ritmos locais numa visão universal, misturados com rock e eletrônica, os mangueboys liderados por Chico Science e Fred Zero Quatro (do Mundo Livre S/A) colocaram Pernambuco de volta no topo dos interesses do público e da mídia, abrindo portas para outras bandas e artistas locais, muitos dos quais sem relação com sua estética ou que resolveram surfar na mesma onda, ainda que caindo da prancha. O legado do manguebeat reverbera até hoje, e Da lama ao caos, produzido por Liminha (ex-Mutantes) e lançado em 1994, é fundamental por isso. Esse foi o título escolhido para abrir a coleção Discos da Música Brasileira (História e Bastidores de Álbuns Antológicos), publicada pelas Edições Sesc. Trata-se de uma série de reportagens em forma de livro sobre álbuns que tiveram grande impacto estético, no mercado fonográfico e no cenário de shows quando foram lançados, romperam fronteiras, abriram caminho para o surgimento de outras experiências e artistas contemporâneos, e resistem ao tempo. Histórias sobre as canções, curiosidades das gravações, entrevistas com os profissionais envolvidos, detalhes inéditos sobre o ambiente no estúdio e diversos elementos que resultaram no conceito de cada álbum serão detalhados nesses livros. As narrativas em forma de documentário jornalístico conectam passado, presente e futuro, ligando importantes influências para refletir sobre a música brasileira atual e o papel desses álbuns nesse abrangente cenário. José Teles, paraibano radicado no Recife, que assina este volume, é um dos mais conceituados jornalistas de música do Brasil, com atuação em publicações como Correio de Pernambuco, Jornal do Commercio e O Pasquim. É autor de livros sobre o Quinteto Violado, Manezinho Araújo e Chico Science, além do antológico Do frevo ao manguebeat, em que traça
um importante painel histórico da música popular pernambucana, desde Capiba, Luiz Gonzaga e Alceu Valença, que deságuam no manifesto de Science. É o repórter inserido com mais intensidade na história do movimento desde os primórdios e conta detalhes impressionantes em torno da criação desse álbum pioneiro. Lauro Lisboa Garcia
QUE SOM É ESSE QUE VEM DO RECIFE?
“Tem um rapaz aqui querendo divulgar uma festa que vai acontecer em Olinda”, avisou a recepcionista para quem atendeu o telefone do caderno de cultura do Jornal do Commercio, do Recife. Uma rotina nos jornais são produtores a fim de descolar um espaço para divulgar algum evento. O repórter pediu que o rapaz subisse e anotou os detalhes de uma festa intitulada Black Planet, que aconteceria em 1º de junho de 1991 no Espaço Oásis, em Casa Caiada, bairro olindense. Animariam a festa dois DJs, uma banda e um grupo de percussionistas do bairro de Peixinhos. Os DJs eram Mabuse e Renato L, a banda chamavase Loustal e o grupo tinha o nome de Lamento Negro. De todos, apenas o último era relativamente conhecido, do carnaval de Olinda, onde animava a folia tocando reggae, ou samba-reggae. O rapaz, moreno claro, franzino, vestia uma camisa estampada, falava meio empostado, procurava ganhar o jornalista com simpatia, mas passou uma sensação de arrogância e pretensão ao enfatizar que ele e sua turma “lucubravam” novas sonoridades. Não era apenas para divulgar a festa que ele tinha ido à redação do velho JC, que funcionava numa sólida edificação art déco, cinza, na rua do Imperador, no Centro do Recife. O que queria na verdade era usar o jornal para propagar a música que ele e os companheiros tinham criado: O ritmo chama-se mangue. É uma mistura de samba-reggae, rap, raggamuffin e embolada. O nome é dado em homenagem ao Daruê Malungo, um núcleo de apoio à criança e à comunidade carente de
Chão de Estrelas1. É nossa responsabilidade resgatar os ritmos da região e incrementá-los junto com a visão mundial que se tem… Eu fui além.
O repórter não tinha a menor ideia de como seria a música a que se referia o rapaz, pretensioso. Pediu que fossem tiradas fotos do músico e voltou à redação para escrever uma pequena matéria, quase uma nota, sobre a festa Black Planet2 e sobre o tal ritmo mangue, seja lá o que fosse aquilo. O nome do rapaz era Francisco de Assis França, que já fora conhecido pelos amigos como Chico Vulgo e começava a ser chamado de Chico Science. Pela primeira vez ele teve sua foto estampada na página de um jornal da grande imprensa da capital pernambucana. Quando conseguiu emplacar a matéria no JC, Science já havia composto parte das canções que formariam o repertório do seminal Da lama ao caos, álbum de estreia do grupo Chico Science & Nação Zumbi, lançado pelo selo Chaos, da Sony Music, em 15 de abril de 1994, com um show no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Produzido por Liminha, o álbum é, reconhecidamente, um dos mais importantes da história da música popular brasileira, estopim para a reviravolta da MPB no limiar do segundo milênio. O manguebeat (ou manguebit) eclodiu quando se acreditava que o tropicalismo passaria à história como derradeiro movimento relevante da cultura brasileira do século XX (alguns especialistas acrescentariam a vanguarda paulista, do final dos anos 1970). Se o manguebeat tivesse surgido na segunda metade da década de 1990, provavelmente não teria passado dos limites das cidades vizinhas Recife e Olinda. As gravadoras não investiriam numa música que trafegava na contramão das facilidades comerciais da axé music, do pagode ou do sertanejo, que dominavam o mercado. Sem esquecer que a pirataria por essa época começava a roer as estruturas das multinacionais. CSNZ surgiu com um timing perfeito, exatamente quando se batiam todos os recordes de vendas de discos no país, graças à estabilidade econômica sedimentada pelo Plano Real, implantado no governo do então presidente Itamar Franco. Chico Science & Nação Zumbi foi a banda certa num momento propício. O rock nacional, que depois de dez anos de sucesso dava sinais
de exaustão, passara a dividir o mercado com a axé music e o sertanejo pop. Os grandes mercados do disco, EUA, Europa, Japão, abriam-se cada vez mais para a música periférica, abrigada na expressão world music. Alguns grupos, a exemplo dos Paralamas do Sucesso, já experimentavam com música africana, caribenha… Mas, no geral, o BRock (o rock nacional dos anos 1980), como grande parte da MPB, girava em torno de si mesmo, com laivos esparsos de criatividade (o que lembrava o cenário musical do país em 1966, coincidentemente o ano de nascimento de Chico Science). Naquele ano de 1966, haviam começado os debates sobre o beco sem saída em que a música popular brasileira se metera, se deveria tocar em frente o legado da bossa nova, se deveria tornar-se portadora de mensagens políticas. Discussões que levariam um grupo liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil a romper com parâmetros estabelecidos, insurreição que desaguaria no tropicalismo. Autores e intérpretes da MPB passaram a discutir uma maneira de levar adiante a revolução deflagrada por João Gilberto e a bossa nova no final dos anos 1950. A música popular brasileira involuía, abandonando os acordes dissonantes, as harmonias complexas, os temas leves e ensolarados. Tornara-se quase monotemática, trincheira de resistência à ditadura militar que se apossara do poder em 1964. As letras das canções, geralmente montadas sobre toadas e baiões, pregavam um porvir em que, para todos, equanimemente, haveria terra, trabalho, pão e, obviamente, liberdade. Parte dos que faziam MPB considerava estar no caminho certo, que deveria continuar usando a música como agente modificador, já que a censura federal ainda era relativamente amena. O inimigo não era apenas o regime, mas a invasão dos ritmos alienígenas, o rock norte-americano, sobretudo, e o iê-iê-iê, o agente alienador infiltrado no país. Categorizavam de inocentemente útil a juventude que não atentava estar sendo usada pelo imperialismo, enquanto cantava e dançava (nas festinhas de garagem) aquela canção do Roberto. Durante esse impasse, Gilberto Gil fez uma temporada no Teatro Popular do Nordeste (TPN), no Recife, e descobriu o estopim da bomba, ou melhor, a luz no fim do túnel para o cul-de-sac em que se metera nossa música popular. Gil estava lançando seu primeiro LP, Louvação, pela Philips, tinha composições tocadas no rádio, na voz de Elis Regina,
apresentava-se em programas de TV de São Paulo, mas estava longe de ser uma estrela da MPB. Nas três semanas passadas no Recife, circulou bastante, acompanhado do produtor Roberto Santana e do empresário Guilherme Araújo. O prolixo e comunicativo baiano fez muitas amizades. Os novos amigos levaram-no para conhecer a fértil cultura musical do povo pernambucano. Em Carpina, na Zona da Mata Sul, apresentaram-no ao maracatu rural e seus vistosos caboclos de lança, que Chico Science, trinta anos mais tarde, difundiria mundo afora. Em Caruaru, emocionouse com a Banda de Pífanos dos irmãos Biano. Na ilha de Itamaracá, encantouse com a ciranda de Lia, que também trinta anos depois seria uma das musas do manguebeat. Aquela riqueza rítmica, ainda basicamente restrita a Pernambuco, foi a peça que faltava para completar o quebra- cabeça de ideias que ele desejava pôr em prática. Em entrevista à repórter Penha Maria, publicada no Jornal do Commercio, em 10 de maio de 1967, Gilberto Gil praticamente antecipou o que levaria para o próximo Festival da MPB da TV Record, quando foram plantadas as raízes do tropicalismo: Não esqueçamos que o som das guitarras está pelas ruas, os cabeludos histéricos andam pelas ruas e o condicionamento, seja psicológico, seja social, é uma expectativa nova que coloca os autores num impasse. Diante desse condicionamento social do público, os autores serão obrigados, forçosamente, pela expectativa, a orientarem sua atividade artística levando em conta o significado do iê-iê-iê. Tendo que deixar de lado a bandeira da purificação, porque a boa influência, ela é válida. Daí já orientar-me dentro dessa nova linha, sem colocar de lado as raízes fundamentais da nossa cultura, mas considerando o fator iê-iê-iê.
Ele colocaria a teoria na prática, poucos meses mais tarde, no palco do Teatro Paramount, defendendo um baião, “Domingo no Parque”, com um conjunto de rock, Os Mutantes. O resto é história bem conhecida.
ESTAGNAÇÃO
Chico Science e seus amigos malungos não estavam preocupados com o mormaço reinante na MPB ou no BRock. Procuravam uma saída para a falta de perspectiva de quem se atrevesse a viver de arte no Recife. De uma forma ou de outra, os futuros mangueboys já faziam música desde meados dos anos 1980, patinando no underground, antenando-se para o que acontecia fora do país pelas publicações especializadas vendidas em algumas poucas bancas de revistas e na Livro 7, na rua Sete de Setembro, no centro da cidade, então tida como a maior livraria brasileira, ao menos em tamanho. A duras penas, conseguiam discos de rap, funk, rock e música eletrônica e livros importados. A maioria daquele grupo era formada por jovens que nasceram e cresceram durante o cerceio à informação sob a ditadura militar. Tinham, pois, fome de conhecimento. O mundo desenvolvia novas ferramentas, a grande rede mundial de computadores espalhava-se a passos largos pelos continentes, aproximava as pessoas e as culturas, contribuía para incrementar o intercâmbio cultural. Aqueles garotos e garotas se propunham a mudar o clima do depauperado Recife, cujo apogeu como terceira capital do país acontecera em meados dos anos 1960, e que um órgão das Nações Unidas, em estudo de 1991, classificara como a quarta pior cidade do mundo em qualidade de vida. Sua outrora vigorosa indústria cultural, de rádio e TV, perdera a força nos primeiros anos da década de 1970, dominada pelas redes nacionais das emissoras do Sudeste. Os artistas emigravam. Os espaços tornavam-se cada vez mais reduzidos. Os futuros mangueboys e manguegirls compartilhavam com sua geração a inquietude natural a todo período de transição. Na música, o punk rock empregou uma espécie de estética da fome, parafraseando o cineasta Glauber Rocha, de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Com o punk, era uma guitarra na mão e mil ideias na cabeça. Veio então o pós-punk, e o rock trincou e quebrou em mil estilhaços, permitindo o surgimento de estilos como o grunge de Seattle, no final da década de 1980, e bandas como o Nirvana, que uniu zoeira sonora com sensibilidade pop, fazendo amigos e influenciando pessoas. No Brasil, o BRock dava sinais claros de exaustão. Surgiam, aqui e acolá, oásis de novidades, como o selo Tinitus, do produtor Pena Schmidt, com uma música nova, atualizada com o que se fazia lá fora, de grupos
feito Yo-Ho-Delic e Virna Lisi. Livros e discos de editoras e gravadoras indies gringas tornavam-se mais acessíveis. No início da década de 1990, um grupo de jovens, saídos de estratos sociais diferentes, reuniu-se para tomar uma providência, a fim de aplicar um cateterismo nas artérias entupidas do Recife, que os punks e headbangers locais chamavam de “Recifezes”, ou o “Esgoto”, como a capital pernambucana era tratada na cena punk/metal, de onde saiu o primeiro alerta para o infarto iminente. Vários músicos que integrariam as hostes do manguebeat começaram na metalaria pesada, a exemplo de Eder “O” Rocha, do Mestre Ambrósio, que tocara no Arame Farpado, grupo de thrash metal. O objetivo era retomar não a linha evolutiva da música pernambucana ou brasileira (citando a célebre expressão usada por Caetano Veloso num artigo para a Revista Civilização Brasileira, em 1965). Pretendiam fazer do Recife uma cidade culturalmente efervescente, como tinha sido nos anos 1960, com uma forte cena de bossa nova e depois MPB até 1967 e, a partir de 1968, um conturbado tropicalismo local, enfrentando as forças conservadoras, com o teatrólogo Ariano Suassuna à frente. Em seguida aos tropicalistas, surgiu na cidade uma rica cena udigrúdi, que será abordada adiante e só seria revelada ao restante do país no meu livro Do frevo ao manguebeat, publicado pela Editora 34 em 2000 como parte de uma série de obras sobre música brasileira coordenada pelo jornalista Tárik de Souza. Os movimentos culturais recifenses comungavam de uma característica: não tinham ligação direta com os precedentes, foram ilhas culturais isoladas, que não se interligavam nem se influenciavam pelos espasmos de criatividade anteriores. Não se imaginava que aquela turma, que se autodenominava “caranguejos com cérebro”, que se apresentava para plateias reduzidas e trocava ideias em barzinhos descolados, fosse extrapolar limites, divisas, fronteiras, que revigorasse a cultura pernambucana, influenciasse a música brasileira e tivesse repercussão internacional. Em 1992, quando os mangueboys já estavam bem encaminhados em seu objetivo, ou seja, cuidar do Recife antes que ocorresse o infarto, Alceu Valença, único artista de MPB nacionalmente popular saído do estado em muitos anos, também alertava para a estagnação cultural que o manguebeat combatia:
Pernambuco está velho e eu sou louco para que apareça o novo, mas não está aparecendo. O que acontece em Pernambuco é que nós somos extremamente conservadores. A gente quer o forró, mas quer que o forró seja exatamente do mesmo jeito. Nós amamos Luiz Gonzaga e nós não temos uma noção de que Luiz Gonzaga morreu. O problema é que Pernambuco não quer a nova ordem e está morrendo de mofo. Pernambuco é o estado careta que não quer ser contemporâneo. (Entrevista ao suplemento cultural do Diário Oficial em março de 1992)
A contemporaneidade começava a botar as patolas de fora, surgida de onde menos se esperava. Até então, os movimentos musicais no Recife saíam da classe média ou das elites da cidade. Da periferia, a exceção, que não chegou a ser movimento, foi o frevo, surgido do “poviléu” (como se dizia no início do século XX), mas que nos anos 1960 já estava aburguesado. O movimento que surgiu para “contemporaneizar” a música pernambucana veio metaforizado de mangue, os homens-caranguejos, que juntaram o arsenal de ideias na rua da Aurora, no centro da capital pernambucana, em edifícios localizados num trecho que pode ser visto como um emblema da estagnação da cidade. Ali, nos anos 1970, estabeleceu-se parte da elite recifense, supondo que aqueles prédios modernos atrairiam imobiliárias que construiriam mais edificações nas proximidades daquela rua, e seriam o início de uma Manhattan nordestina. Rua cantada por Alceu Valença, em “Pelas ruas que andei” (1982): “Na Madalena revi teu nome / Na Boa Vista quis te encontrar / Rua do Sol, da Boa Hora / Rua da Aurora, vou caminhar”. E eles se encontraram na Aurora: Éramos um grupo de amigos, jornalistas, músicos, designers que se reunia no Cantinho das Graças. Nem era movimento, mas uma cooperativa informal, na noite em que Chico começou a falar de Josué de Castro, que nenhum de nós havia lido ainda. Tinha também o homem-gabiru, que naquele tempo era um negócio muito comentado [refere-se a um projeto, na época muito badalado, da jornalista Tarciana Portella e do fotógrafo Daniel Aamot], e ele então começou a falar no homem-caranguejo, e daí acrescentei, com cérebro. Na coletânea que a gente fez para o disco que não chegou a sair, eu gravei a música “Caranguejo com cérebro”.
Quem está relembrando acima os primórdios do manguebeat é Vinícius Enter, “o quinto beatle”, o “Pete Best” do mangue, que dividiu apartamento com Chico Science na rua da Aurora, onde morou (e ainda mora) muita cabeça pensante da capital pernambucana. Vinícius Enter (o “enter” da tecla do computador) afastou-se dos mangueboys em 1993, mas, garante, muitas de suas ideias ficaram com eles. Confesso que eu não o conhecia até que ele surgiu, de repente, para divulgar um disco que estava lançando, um elo perdido do manguebeat (bit). O álbum intitula-se Dedo indicador, foi lançado apenas virtualmente e entre suas faixas está a citada “Caranguejo com cérebro” (o disco completo está disponível no Soundcloud: <https://soundcloud.com/viniciusenter>). O testemunho de Vinícius leva a uma aproximação do manguebeat com a bossa nova. Ambos são basicamente músicas de apartamento. Das noitadas de muito papo, birita, fumaça e música nos apartamentos da rua da Aurora. Hélder Aragão, o DJ Dolores, dizia-se a Nara Leão do mangue, porque boa parte dessas noitadas aconteceu no seu apartamento na Aurora3.
LAMA A região metropolitana do Recife foi construída em cima de mangues. A cidade é cortada por rios, dos quais os principais são o Capibaribe e o Beberibe (além do Tijipió, Pina, Jiquiá e Jordão). O mangue faz parte da paisagem, crustáceos fornecem a proteína principal do cardápio dos habitantes das regiões ribeirinhas, que moram nos mocambos montados sobre palafitas. Tantos mocambos que, no final dos anos 1930, o interventor estadual criou a Liga Social contra o Mocambo (depois Serviço Social contra o Mocambo). Os alagados do Recife, em sua maioria, são habitados por famílias de nível social e econômico bastante precário. As razões disso devem ser procuradas na formação geográfica e fisiográfica da planície recifense e na história sociocultural do proletariado que aí se criou… A alimentação, se bem que deficiente, é obtida no próprio mangue pela pesca do crustáceo e pequenos pescados nos braços de marés e rios4.
Os mocambos, casas de madeira ou de pau a pique, geralmente palafitas, proliferavam pela periferia da capital pernambucana. De Mocambo foi batizado o principal selo da gravadora Rozenblit, a mais importante empresa discográfica fora do eixo Rio-São Paulo, criada em 1954 e fechada trinta anos mais tarde. Caranguejos e siris, portanto, fazem parte do cotidiano dos recifenses. Estão em nomes de blocos e troças carnavalescas, na música e em expressões populares, feito “ô maré” (com significado de “que coisa boa”), empregadas nos anos 1960. Siri na Lata foi um dos mais famosos blocos carnavalescos, criado em 1976 em resistência ao regime militar, que queria as agremiações carnavalescas domadas por passarelas e desfiles organizados (integrantes do Siri na Lata formaram o bloco O Pacotão de Brasília). De um racha no Siri na Lata surgiria o Caranguejo no Caçuá, outro bloco, e Guaiamum Treloso virou festival de rock indie. Vendedores de caranguejos, com cordas de gordos guaiamuns dependuradas numa vara, sustentada por ombros e braços calejados, eram vistos pelas ruas do Recife e cidades limítrofes (o Grande Recife é uma conurbação que reúne 15 municípios). O aterramento de boa parte dos manguezais, em áreas valorizadas, para construção de edifícios habitacionais e comerciais (um dos maiores shopping centers do Recife foi construído em área de mangue), e a consequente redução da fauna obviamente diminuíram esse tipo de comércio ambulante. Até 1966, ano em que Francisco de Assis França nasceu, o que seria o bairro de Rio Doce, o mais populoso de Olinda, ainda era um sítio chamado Melões de Baixo, pertencente ao político e empresário Edgar Lins Carvalho. Em 1967 ele vendeu a propriedade para a Companhia de Habitação Popular do Estado de Pernambuco (Cohab-PE), que ali construiu conjuntos habitacionais, cinco etapas deles. Prédios de arquitetura padronizada, tipo caixão, de três andares, sem elevador. Para erguer boa parte deles, foi preciso avançar sobre o mangue que faz limite com o bairro. Aliás, a Região Metropolitana do Recife foi erguida quase toda sobre manguezais aterrados. Uma antiga moradora do bairro, dona Marlene Santos, 68 anos, em matéria publicada pelo Diário de Pernambuco, conta de um Rio Doce farto em caranguejos:
Eles andavam pela frente das casas. Meu marido pegava muito, e a gente sempre comia com pirão. Uns dez anos depois aterraram tudo e o manguezal morreu. Na época em que vim morar aqui, 1968, um pequeno rio passava pelo local e acabou dando nome ao bairro.
Francisco de Assis França, que anos mais tarde seria conhecido como Chico Science, nasceu em Santo Amaro, um ano antes de ser iniciada a construção do primeiro conjunto habitacional em Rio Doce. Sua família moraria na quinta etapa do conjunto, numa rua que terminava num manguezal. Portanto, não foi por acaso que, quando decidiu batizar a música que estava formatando, Chico buscou um símbolo com que se identificasse, e o qual se identificasse com a cidade (entenda-se a área metropolitana da capital pernambucana), e deu-lhe o nome de mangue. Chico Science, inclusive, pretendia gravar, ou incluir no repertório do grupo, a clássica e emblemática “Vendedor de caranguejo”, de Gordurinha, lançada pelo grupo vocal Os Cancioneiros em 1957, sucesso nacional com Ary Lobo em 1958. Num dos seus cadernos ele escreveu a letra da música: “Caranguejo uçá / olha o gordo guaiamum / quem quiser comprar, eu vendo / cada corda com dez, eu dou mais um”. A música foi cantada no show do Central Park, em 1995. Enquanto Gilberto Gil precisou vir a Pernambuco para conhecer cavalo-marinho, maracatu, banda de pífanos, Chico Science convivia com brincantes da cultura popular desde criança, porque a família sempre morou em bairros da periferia, onde essas manifestações eram, e ainda são, comuns, a maioria delas restrita aos subúrbios. É o que acontece, por exemplo, com o Acorda Povo, espécie de arrastão junino que sai pelas ruas na madrugada, ou o Pastoril Profano, comandado pelo “véio” e suas pastoras, vocalistas e dançarinas, não raro prostitutas, muitas vezes menores de idade. A influência dos “véios” (ou bedegueba) do pastoril é subestimada, mas bastante forte na cultura pernambucana. Chacrinha, personagem do pernambucano Abelardo Barbosa (de Surubim, no agreste do estado), era claramente inspirado no “véio”, Alceu Valença incorpora um “véio” em seus shows, e Chico Science atualizou a figura do “véio”, com traços de outras brincadeiras populares. Os tênis baratos, comprados em camelô, que Chico usava no início do manguebeat são iguais aos usados pelos lanceiros do maracatu rural. O
gestual tinha muito a ver com o pastoril. A abertura de “A cidade”, a música de trabalho do disco Da lama ao caos, foi pinçada de um álbum do Pastoril do Velho Faceta, que gravou uma trinca de LPs pela Clark/Bandeirantes Discos de 1978 a 1980, foi relativamente bem-sucedido no Sudeste e em outras regiões do país, e era muito popular em Pernambuco. Chico Science conhecia esse e outros pastoris profanos, manifestações hoje praticamente extintas, inviáveis em tempos do politicamente correto, que já não permite a malícia, os trocadilhos e o duplo sentido, na maioria das vezes bem explícito, do espetáculo. Ressalte-se que há dois tipos de pastoril: o já citado profano e o pastoril natalino, formado por crianças e adolescentes, que se dividem entre o cordão azul e o encarnado, com pastoras, mestra, contramestra e a Diana, mediadora que não integra nenhum dos cordões. Um espetáculo inocente e gracioso. Muito antes de pensar sua música a partir dos manguezais, Chico Science flertou com o pop. Participou de uma banda espelhada nos grupos do BRock, Paralamas, Barão Vermelho e Ira!, principalmente este último. Ele até escreveu uma carta para Nasi. O vocalista do Ira! escreveu de volta ao fã. Entusiasmado, Chico viajou nas férias para São Paulo, a fim de conhecer pessoalmente os ídolos. Algum tempo depois o Ira! veio tocar no Recife, e Chico foi até o camarim da banda insistir para que o grupo fosse ver o show do Orla Orbe, no Espaço Oásis, em Olinda. Chico foi a esse show, creio que foi no Centro de Convenções, e nós, do Orla, ficamos num bar chamado Oásis, tocando, fazendo hora até ele chegar. Não botamos fé que o Ira! viesse a um show de um grupo desconhecido, num barzinho pouco badalado. Mas vieram. Chegaram em dois carros, Scandurra com umas meninas, Nasi e André, o batera. Enfim, Scandurra pegou minha guitarra, tocou “Feliz aniversário” [i.e. “Envelheço na cidade”]. A propósito, era meu aniversário. Fiquei supercontente pela honra. Lembro que ele empunhou a guitarra e disse “poxa, bonita e bem cuidada”, colocou ao contrário, já que é canhoto, e mandou brasa. Nasi ficou comigo, Lúcio Maia e Vinícius numa roda de conversa informal. Lembro que falava de Lênin, do socialismo, da ex-URSS, muito louco. Nós, abasbacados, não sabíamos se conversávamos ou se idolatrávamos os caras, já que nós éramos cinco garotos, numa época em que se tinha a maior dificuldade até pra comprar vinil desses caras, e imagine
ali ao vivo e mais ainda num evento num barzinho, sem divulgação. Foi Chico quem articulou tudo. Fizemos fotos, na época não havia celular, nem redes sociais, o registro ficou com Lúcio, deve estar no arquivo pessoal dele.
Quem conta da noite com o Ira! é Fernando Augusto (ou Fernando Augustus, como adotou), guitarrista do Orla Orbe. Pela época em que ocorreu esse encontro, quando acontecia o fim do bloco soviético, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, dá para entender o motivo da conversa ter girado em torno de socialismo, União Soviética e Lênin. Os integrantes do grupo se conheceram no Colégio Bairro Novo, escola pública olindense. Todos moravam em Olinda, a maioria no Rio Doce, um bairro mais povão (o guitarrista Lúcio Maia era de Casa Caiada, também em Olinda, porém basicamente classe média). Chico Science começou a compor nessa época com Fernando Augustus, com quem criou o Orla Orbe. Uma de suas primeiras composições, até hoje inédita, intitulase “Continuação”, música de Fernando, letra de Science, dedicada a Ana Brandão, ou Aninha, colega de escola e namorada, que seria mãe de Louise Taynã, ou Lula, filha única de Chiquinho, como ele era tratado em casa. Fernando Augustus, que acalenta o desejo de gravar um disco com essas canções, complementa: A gente gravou meia dúzia de músicas nossas num estúdio. Tenho até hoje em cassete. Nunca passei para CD, tudo continua inédito. Chico não cantou nenhuma com a Nação Zumbi, a não ser “A cidade”, que ainda era só um comecinho.
Ao mesmo tempo que tocava pop, Chico Science começava a experimentar com o hip hop e funk dos anos 1970, a dar escapadelas para bailes com trilha de black music que aconteciam pela periferia, além de participar, com a Legião Hip Hop, de disputas de break dance, muitas delas no parque 13 de Maio, região central do Recife. Parte do repertório do que seria Da lama ao caos começou a ser construída muito antes de o manguebeat ser deflagrado. A torrente de informações que chegava a Chico Science e aos músicos de sua geração no Recife era caudalosa, avidamente consumida, digerida, e reprocessada, sem que tivessem lido o “Manifesto antropofágico” de
Oswald de Andrade. Assim como agiam conscientemente os tropicalistas duas décadas antes, os mangueboys queriam estar pari passu com o que se fazia lá fora, num momento em que a música pop sofria mudanças profundas, com as recentes possibilidades de estúdio, dos samples, da integração com os computadores, do crossover de gêneros, ritmos, idiomas. Seria o fim das certezas, do “pão, pão, queijo, queijo”. Tutti frutti na vera, todas as frutas mesmo, qualquer som valia a pena. Naquele fim de década, o mundo não estava ainda tão conectado pela internet, mas as novidades não demoravam tanto para chegar ao Brasil, sobretudo porque houve uma nova abertura dos portos com a volta da democracia ao país. Até um pouco antes, desde o fim da censura em 1979, as mudanças procediam a passos largos. Os computadores domésticos começavam a se tornar acessíveis. Quem tinha grana comprava um 286, de memória lerda, e quantidade limitadíssima de armazenamento no HD. Um PC com HD de 80 MB era o padrão em 1988, quando Chico Science integrava o Orla Orbe. Já não se chamava mais computador de cérebro eletrônico, as facilidades e possibilidades oferecidas pelos computadores fascinavam os jovens. Os que arquitetavam o manguebeat imergiram nessa nova cultura cibernética, feito o que aconteceu com Herr Doktor Mabuse, ou somente H.D. Mabuse, pseudônimo adotado por José Carlos Arcoverde quando começou a escrever, ainda adolescente, para jornais alternativos do Recife. O nome veio do filme Dr. Mabuse, do alemão Fritz Lang. Mabuse, que se interessou cedo pelos computadores, hoje é um dos nomes de destaque no design, trabalha no Cesar (Centro de Estudos de Sistemas Avançados do Recife), e seria peça-chave no manguebeat. O jornalista e escritor Paulo Santos (autor do premiado romance A noiva da revolução, sobre a insurreição republicana pernambucana de 1817), ex-cunhado de Mabuse, sugeriu um nome para o manguebeat, Afrociberdelia, título do segundo álbum de CSNZ. Chico Science primeiro tomou conhecimento dos futuros mangueboys escutando a Rádio Universitária AM (vinculada à UFPE), onde Mabuse participava do programa Décadas (de “Decades”, do Joy Division), de que também fazia parte Fred Montenegro, depois Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A, mais duas colegas da UFPE, Luciana Araújo e Anelene. Por sinal, eles conseguiram o espaço na emissora por serem quase todos
alunos do curso de jornalismo da universidade. Ressalte-se que a Rádio Universitária AM recebia pouca atenção da universidade a que estava ligada, que priorizava a mais rentável Rádio Universitária FM. Mas em 1985, quando o programa foi ao ar, trazia uma programação que atraiu muita gente que não tinha onde escutar The Smiths, The Cure ou David Bowie nas rádios do Recife. Chico era ouvinte de Décadas, mas conheceu a turma que fazia o programa quando eles descolaram um espaço na Transamérica FM, o New Rock. Ele foi ao estúdio da emissora com discos de funk, Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash e afins. Logo se tornaram amigos, e a turma aumentava a cada dia. Dela já fazia parte o hoje jornalista e escritor Xico Sá, também estudante da UFPE, que trabalhava na citada Livro 7. Chico Science, que não tinha condições de comprar um computador, conseguiu um emprego na companhia de informática da prefeitura do Recife, a Emprel, graças aos conhecimentos do pai, seu Francisco, que além de vereador em Olinda era também líder comunitário. Chico foi trabalhar no almoxarifado da Emprel e lá conheceu um cara que foi fundamental na história do manguebeat, Gilmar “Bola Oito” Correia. Sem ele, Chico Science certamente daria, de alguma maneira, vazão à sua verve musical. Porém dificilmente com a Nação Zumbi, pelo menos como a conhecemos. Bola Oito, também chamado de Chibata no seu bairro, estava tocando no Lamento Negro, formado em Peixinhos, na periferia de Olinda, por jovens fissurados nos grupos afro da Bahia, naquela época a novidade da música brasileira, que criava uma música com raízes nas matrizes africanas, e não nos ritmos pop comerciais da black music norteamericana, feito o movimento Black Rio, nos anos 1970. Cultuavam sobretudo o Olodum, que se tornara a sensação da música brasileira e ganhara notoriedade no exterior com a abertura proporcionada pela world music, que o levou a ser convidado por Paul Simon para participar do álbum The Rhythm of the Saints (1990). Os componentes do Lamento Negro vinham de famílias pobres, com dificuldades até para comprar as alfaias, e não dispunham nem de lugar para ensaiar. Então lhes foi oferecido o salão da ONG Daruê Malungo (“companheiro de luta” em iorubá), situada na comunidade de Chão de Estrelas, no Recife, mas pela confusa topografia da capital pernambucana
quase em Olinda, emendada com Peixinhos. A oferta veio de Gilson “Chau” Santana, o mestre Meia-Noite, capoeirista, dançarino do Balé Popular do Recife, uma das vertentes do Movimento Armorial, idealizado pelo escritor Ariano Suassuna no final dos anos 1960. Por essa época, Chico Science tinha deixado o Orla Orbe e formado, com o guitarrista Lúcio Maia e o baixista Alexandre Dengue, o Loustal (do nome do desenhista francês Jacques de Loustal, curtido por ele). Curiosamente, Gilmar Correia se parece com um dos personagens de Loustal, Kid Congo. Logo rolou também um projeto paralelo, o Bom Tom Radio, com Jorge du Peixe e H.D. Mabuse, e às vezes Vinícius Enter. O Bom Tom Radio era menos rock and roll e mais eletrônico, hip hop, funk, uma poção que estava sendo fermentada sem que eles soubessem no que daria. Chico e Gilmar estreitaram laços de amizade pela afinidade com a música. Chico crescera com a cultura popular da periferia da região metropolitana do Recife, via manifestações como o citado Acorda Povo, maracatus rurais, cavalo-marinho, roda de coco, porém não participava de nenhuma dessas brincadeiras. Ressalte-se que, nos anos 1980, a cultura popular em Pernambuco restringia-se às comunidades onde tinha suas sedes, e estava em baixa desde o golpe militar. Maracatus de baque solto (o rural) e de baque virado existiam ainda pela persistência dos brincantes, mas temia-se por sua extinção.
CULTURA POPULAR A cultura popular, até 1964, sempre teve participação ativa nas festividades do estado, sobretudo no Grande Recife, desde o início do século XX. Maracatu de baque virado e caboclinho formavam com o frevo o tripé rítmico básico do carnaval pernambucano. A participação de maracatu, caboclinho, coco, cavalo-marinho, repentistas intensificou-se quando foi criado o Movimento de Cultura Popular (MCP), na gestão do prefeito Miguel Arraes de Alencar, no início da década de 1960. Embora seja pouco citado nos livros de história da cultura brasileira, o revolucionário MCP deu origem aos Centros Populares de Cultura (CPC), dos quais o mais conhecido foi o da UNE (União Nacional dos
Estudantes), no Rio. Os brincantes participavam não apenas de festividades, mas também de eventos ligados à prefeitura, às ações educativas do MCP, que seguiam a didática do professor Paulo Freire, que propõe não somente ensinar a ler, mas conscientizar os alunos. Quando as forças armadas, com apoio de políticos que faziam oposição ao governo de João Goulart, se insurgiram, no Recife os primeiros alvos dos tanques do IV Exército visaram dois pontos considerados centros da subversão pernambucana: o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual, e o MCP, no Sítio da Trindade, em Casa Amarela, local que no século XVII abrigou uma das trincheiras dos brasileiros e portugueses para combater o invasor holandês. O MCP foi extinto, seus dirigentes (boa parte ligada à esquerda católica) foram presos e a cultura popular foi mandada de volta à periferia. Só era impossível conter o frevo. O ritmo forte do carnaval, pouco disseminado pelo país, mas combustível sonoro para a folia pernambucana, concorria pau a pau com as marchinhas cariocas e o samba, no rádio e nas lojas de discos. Já as agremiações carnavalescas, algumas fundadas no final do século XIX, como Vassourinhas e Pás de Carvão, foram obrigadas a seguir as regras implantadas pelos organizadores do carnaval, que instituíram passarelas para os préstitos carnavalescos. As agremiações passaram a desfilar em locais e horários definidos. A cultura popular tornou-se mais objeto de estudo de sociólogos e antropólogos, ou fonte de pesquisa de músicos da classe média, do que participante nas festividades da oficialidade, que preferia chamá-la de folk lore, ou folclore. O Movimento de Cultura Popular, acusado de ser antro de subversão, de malversação de dinheiro público, teve o nome modificado. Inicialmente seria Fundação John Kennedy, depois se optou por nomenclatura mais pernambucana, Fundação Guararapes. Os contemporâneos de Chico Science que não moravam no subúrbio, em alguns morros ou na Zona da Mata, região rica em maracatus rurais, cavalo-marinho e ciranda, pouco sabiam dessas manifestações, ou ignoravam totalmente sua existência. As mais “palatáveis” passaram a fazer parte de um pacote dos órgãos oficiais de turismo, que incentivaram, por exemplo, a ciranda, que se tornou a dança da moda no início dos anos 1970.
Os centenários maracatus de baque virado só voltaram a receber atenção quando surgiu o Maracatu Nação Pernambuco, no início dos anos 1990, e passou a fazer festas aos domingos no mercado Eufrásio Barbosa, em Olinda. Embora não sendo um maracatu de baque virado autêntico, o Nação Pernambuco tornou-se fundamental para que os maracatus voltassem à tona. Chico Science teria o mesmo papel em relação ao maracatu de baque solto, o rural (também chamado maracatu de orquestra). Durante muitos anos, questionou-se onde se enquadrava esse estilo de maracatu, que para muitos nem deveria ser classificado como tal. Em 1976, os grupos de maracatu rural chegaram a ser proibidos na passarela oficial do carnaval do Recife, na avenida Dantas Barreto, área central da cidade. Curiosamente, não se atentava para a beleza plástica e carismática dos caboclos de lança. Até que Chico Science vestiu-se como um deles no SummerStage, no Central Park, em Nova York, na estreia de CSNZ no exterior. Trajes emprestados pelo mestre Salustiano da Rabeca, do maracatu Piaba Dourada. Chico passou a vestir-se de caboclo de lança em seus shows, visitava o mestre Salustiano em sua casa em Cidade Tabajara, Olinda, e, com essas ações, contribuiu para popularizar o maracatu rural, até então praticamente ignorado pela maioria dos pernambucanos. Não demorou a surgirem grafites pelas paredes da cidade retratando os lanceiros, até que eles foram oficializados como o grande ícone da cultura do estado, um dos seus principais símbolos.
SEMELHANÇAS A revalorização das manifestações da cultura popular em Pernambuco desencadeou fenômenos semelhantes pelo Brasil, onde jovens se aproximaram de sua música regional, do carimbó, no Norte, ao boi de mamão, no Sul. Três décadas antes aconteceu episódio semelhante quando o Quinteto Violado fez sucesso nacional com o disco de estreia, em que cantavam cirandas e cavalos-marinhos. O QV levou muita gente a trocar a guitarra pela viola, flauta e outros instrumentos acústicos. No Recife surgiram vários grupos seguindo o modelo, dos quais o mais bem-sucedido
foi a Banda de Pau e Corda. Em Aracaju (SE) o Bolo de Feira dizia-se abertamente influenciado pelo quinteto. Pelo Norte e pelo Sul, passou-se a valorizar as manifestações culturais locais e a se tocar desplugado. Chico Science chegou a participar de um show do Quinteto Violado na Concha Acústica da UFPE, em outubro de 1996. Embora aparentem ser totalmente díspares, divididos não apenas por três décadas, mas por visões estéticas opostas, o quinteto empregou o jazz como filtro para tocar músicas pinçadas das manifestações populares, o que levou Gilberto Gil a referir-se ao grupo como o “free nordestino”. Chico Science e o QV caminharam por caminhos assemelhados. O Quinteto Violado, por sinal, foi um dos primeiros nomes da MPB a chegar ao exterior a partir do primeiro disco, assim como aconteceu com CSNZ. Ambos fizeram a música que o crítico francês Jacques Denis (Vibrations), em conversa com o autor deste livro, definiu como “glocal”, música global e local ao mesmo tempo, valendo-se de novos instrumentos para criar folk music. Até onde eu saiba, centenas de pessoas que teceram considerações sobre a música de Chico Science & Nação Zumbi, em livros, dissertações, teses de doutorado ou monografias de conclusão de terceiro grau, nunca contrapuseram esses dois trabalhos primordiais para a divulgação pelo Brasil da música regional pernambucana. Separados por 22 anos, os álbuns Quinteto violado (Philips, 1972) e Da lama ao caos (Sony Music, 1994) comungam de muitas semelhanças. O QV apreendeu a cultura popular tanto pelo que os integrantes originais viveram (todos nascidos nos anos 1940, com exceção do flautista Sando, com 13 anos em 1972), quanto pelas pesquisas empreendidas sob encomenda para a gravadora Marcus Pereira, que resultaram no seminal álbum Música Popular do Nordeste (1973). Assim como aconteceu com Da lama ao caos, o álbum de estreia do Quinteto Violado despertou o interesse pelas bandas de pífanos, aboios, baiões, cirandas. Coincidentemente, o QV surgiu quando o projeto armorial estava sendo arquitetado pelo escritor Ariano Suassuna, porém, embora se valessem da mesma matéria-prima, o QV e os armoriais não se cruzaram nem se aproximaram, embora tenha havido acenos por parte de Suassuna. Com o manguebeat o Quinteto Violado teria mais afinidades. Gravou “Macô” e “Coco dub” no álbum não por acaso intitulado Farinha do mesmo saco (1999), em que incluiriam também “Ligação direta” (Fred
Zero Quatro, Bactéria, Goró, Xef Tony) e ainda “Pra ficar chique” (Ortinho, Hélio Loyo), da Querosene Jacaré, banda da segunda leva de mangueboys.
1 Comunidade recifense, na Campina do Barreto, que se confunde com Peixinhos, na periferia de Olinda, bairro referência para o movimento mangue. 2 A página na internet da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe) reúne alguns materiais da história do manguebeat, entre os quais o flyer da festa Black Planet: <http://bit.ly/dalamaaocaos-flyer>. Acesso em: 12 mar. 2019. [N.E.] 3 Entrevista para o trabalho acadêmico transformado no livro Música e simbolização: manguebeat: contracultura em versão cabocla, de Rejane Sá Markman, Annablume, São Paulo, 2007. 4 Do livro Alagados, mocambos e mocambeiros, de Daniel Uchoa Cavalcanti Bezerra, Imprensa Universitária/Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Recife, 1965.