INSURREIÇÕES ESTÉTICAS
A PARTIR DAS MARGENS
Uma verdadeira revolução está em curso nas artes brasileiras. Trata-se da virada decolonial, fenômeno marcado pelo crescimento exponencial de poéticas que expressam questões como raça, etnia, classe, gênero e geopolítica articuladas de forma interseccional. Apesar de haver ainda exígua representatividade de pessoas pobres, negras, indígenas, asiáticas, periféricas, não binárias, entre outras, nos lugares centrais que regem o sistema da arte, principalmente em seus espaços de poder e decisão, inúmeros/as artistas e pesquisadores/as vêm produzindo signi cativa massa poética e teórica, revelando a urgente necessidade de reparação histórica diante do sistemático apagamento das experiências e memórias de grupos sociais minorizados.
Este livro representa meu mergulho no campo da decolonialidade e sua relação com as artes visuais no Brasil. Por que, nos dias de hoje, falamos tanto em decolonialismo?
Por que usamos o verbo decolonizar e não descolonizar?
Por que esse assunto se tornou tão urgente no campo das artes? O que é lugar de fala? Como defender um lugar de fala nas artes, sendo que a imaginação, muitas vezes, depende da capacidade do artista de se colocar no lugar do outro?
Pode um crítico de arte não indígena analisar uma obra indígena? Pode um crítico de arte indígena analisar a obra de um
artista branco? Quais são os limites entre representatividade e cooptação política no campo das artes? Quais os riscos da musealização do debate decolonial?
São perguntas como essas que pretendo responder neste livro, porém sem esgotá-las, já que sou testemunha contemporânea de um fenômeno que ocorre no movediço momento presente. Há muito ainda a ser pesquisado nesse campo. Os textos apresentados aqui são resultado de dois projetos de pesquisa de minha autoria registrados na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPPG) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), intitulados “Artes indígena e contemporânea: redes e partilhas”2 e “Revolução a partir das margens: a virada decolonial no mundo da arte contemporânea brasileira”3 . São artigos e resenhas publicados nos últimos três anos em revistas acadêmicas e na imprensa que tratam de vários temas em torno da decolonialidade nas artes visuais. Há ainda um relato de experiência sobre uma visita que z com meus alunos ao incrível e desconhecido África-Brasil Museu Intercontinental, em São Mateus, no Espírito Santo, divisa com a Bahia.
Depois de quase três décadas dedicadas à crítica de arte, acredito estar vivenciando um dos períodos mais ricos na área cultural. No nal dos anos 1990, quando comecei a comentar na imprensa as artes visuais, o Brasil vivia um momento econômico favorável para grandes exposições internacionais. O país abriu as portas para Picasso, Dalí, Rodin e outros tantos.
Isso me colocou em contato direto com o modernismo e as leituras formalistas, mas o panorama mundial era de questionamento sobre o destino da arte: para onde vai, se tudo já foi feito? Qual é o poder de transformação social da arte? Tal projeto foi dado por falido no século 20, mas nunca deixou de ser preocupação das práticas contemporâneas, especialmente da arte urbana, periférica e dos coletivos artísticos, que passei a pesquisar no início dos anos 2000. Agora, a virada decolonial aponta para um novo paradigma nas artes: um modelo de resistência política, de entrincheiramento contra as ondas conservadoras. Se os modos de operação da arte contemporânea já vinham lidando, nas décadas anteriores, com questões mais ligadas à ordem da linguagem e de seu papel social transformativo – as manifestações periféricas, a arte urbana, as novas tecnologias, os coletivos, o artivismo, as disputas geopolíticas etc. –, atualmente atravessam a arte os debates sobre raça, etnia e gênero.
Essas mudanças tornaram-se mais evidentes nos últimos anos, coincidindo com minha entrada na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em 2015, onde atuo como docente em cursos de graduação e pós-graduação com currículos predominantemente decoloniais e como extensionista em projetos realizados em territórios fortemente marcados pela presença cultural indígena e afrodiaspórica.
Aqui, tenho a sensação de estar realmente onde a revolução acontece: nas retomadas indígenas Pataxó e Tupinambá; na presença da cultura Pataxó Hã-Hã-Hãe; nas experiências coletivas agroecológicas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e outras organizações pela luta da terra; nos movimentos artísticos afrodiaspóricos das periferias rurais e urbanas; nas riquíssimas manifestações culturais
de um dos primeiros quilombos urbanos do país, o Porto de Trás, em Itacaré, arena do tradicional festival de dança organizado por Verusya Correia, que une dançarinos negros e pescadores coreografando entre o mangue, o mar e o rio; no brechtiano Teatro Popular de Ilhéus; na música negra de diversas divas cantoras com suas vozes empoderadas; na sonoridade única da nova escola do hip-hop da banda OQuadro. En m, são inúmeras as riquezas sociais, simbólicas, artísticas e culturais do sul da Bahia. Viver aqui e continuar dialogando com os eixos metropolitanos das artes, por meio de colaborações na imprensa e de minha atuação na Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e na Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), tem sido uma experiência engrandecedora.
Um dos marcos para o novo direcionamento em minhas pesquisas foi a organização, em 2020, da jornada anual da ABCA, que reuniu importantes nomes, entre eles representantes das artes negra, indígena e LGBTQIA+, para debater temas sobre arte contemporânea e direitos humanos, resultando no e-book Resistências poéticas: arte, crítica e direitos humanos. Após o evento, percebi que mudanças realmente efetivas deveriam ser feitas também na prática e então organizei, dentro da ABCA, a comissão da Pluralidade Crítica, contando com o apoio de vários colegas, inclusive da única mulher negra presente na instituição naquele momento, a crítica Alecsandra Matias. Convidamos novos/as integrantes para a entidade, e hoje esse grupo conta com diversos/ as pesquisadores/as negros/as, além de críticos/as que estão em outros “lugares de fala”, isto é, pessoas brancas, mas que também têm uma forte atuação decolonial. Periodicamente nos reunimos para pensar ações transformadoras em torno
da pluralidade na crítica da arte. Eu conto essa história detalhadamente no último texto deste livro, intitulado “Por que pluralidade crítica?”, publicado originalmente no jornal da ABCA. Nele, narro um pouco da minha história pessoal e trago as razões subjetivas e epistemológicas que me levaram, a partir de meu lugar de fala como mulher branca, a pesquisar a decolonialidade nas artes visuais. Mostro que, ao reconhecer meu local de privilégio na estrutura social brasileira e, consequentemente, nos espaços que legitimam a arte, devo de alguma forma contribuir para a luta contracolonial com os instrumentos que me foram concedidos ao longo de minha carreira, como a escrita na imprensa, os estudos acadêmicos, o exercício da docência etc. Essas são minhas armas. Tenho consciência de que nunca poderei acessar realmente o lugar daqueles que mais sofrem com as consequências das mazelas colonialistas, especialmente as perversões cotidianas advindas do racismo estrutural que penetra todos os recônditos de nossa sociedade. Porém me sinto na obrigação de empunhar minhas armas e me juntar a essa luta, mesmo sabendo que também corro o risco de sofrer críticas. As pessoas que tenho encontrado ao longo do caminho me dão segurança nesse sentido. É por isso que agradeço especialmente às mulheres que me apoiaram generosamente nesses últimos tempos: minhas colegas Alecsandra Matias e Leila Kiyomura, que abraçaram fortemente comigo as mudanças na ABCA; Yakuy Tupinambá, mestra dos saberes 4 que me mostrou que a generosidade
4. O conceito de mestre dos saberes vem sendo utilizado a partir de um movimento em prol da titulação acadêmica e regulamentação pro ssional de especialistas em práticas e saberes tradicionais brasileiros, especialmente pessoas oriundas de comunidades
feminina é o caminho mais verdadeiro para a mudança; e Pietra Dolamita (Kowawa Kapukaja Apurinã), que com sua força e beleza me enche de alegria. Agradeço especialmente ao crítico, curador e cientista social Alexandre Araujo Bispo, com quem tenho aprendido a exercitar a descon ança como uma atitude epistemológica.
Há muito ainda a se fazer e pensar sobre estes novos tempos. Minha pretensão é continuar mergulhando cada vez mais fundo nos diversos aspectos relacionados à virada decolonial nas artes brasileiras para conseguir responder ainda a outras perguntas: como tornar visíveis as práticas artísticas de resistência silenciadas ao longo da história?
Como mudar as con gurações geopolíticas do sensível e das estéticas secularmente dominados pela visão de matriz eurocêntrica? Como os modos de produção e circulação da arte podem se tornar realmente democráticos e inclusivos? O assunto envolve questões complexas e requer uma abordagem teórica aprofundada, que dê conta de abarcar a dimensão dos impactos desse cenário em termos epistemológicos e sociais. Sobretudo, é preciso destacar que está em um curso uma verdadeira revolução no campo da arte contemporânea, que pode ser atestada pela articulação transcultural e global de sistemas artísticos estruturados em redes. São identidades poéticas ligadas de forma inédita por uma complexa articulação de sistemas simbólicos como religião, territorialidade, raça, classe, etnia, gênero, nacionalidade, direitos humanos,
indígenas, quilombolas, entre tantas outras, que cultivam as tradições afro-brasileiras e originárias, o artesanato, as culturas populares, as tradições de cura etc. Um dos pioneiros desse movimento é o professor José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB).
ecologia, feminismo, direitos culturais, entre outros. Espero poder contribuir com essa discussão a partir de minhas primeiras investigações, agora reunidas neste livro.
A VIRADA DECOLONIAL NA ARTE BRASILEIRA
PANORAMA GERAL
Nos últimos anos, diversos acontecimentos têm con rmado o fenômeno da virada decolonial na arte brasileira: exposições com curadores indígenas, como a Véxoa: nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (2020), e a Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea , no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2021); o Pipa, principal prêmio da arte contemporânea, que vem contemplando majoritariamente artistas decoloniais; grandes projetos de intervenção urbana, como Vozes Contra o Racismo, em São Paulo em 2020, e Cura, em Belo Horizonte, com edições sequenciais contando com grande presença de artistas negros/as e indígenas; representação de artistas decoloniais por parte de importantes galerias; inúmeras publicações na imprensa especializada e livros; eventos em instituições de arte diversas, como museus e bienais. Em 2022, a Bienal de São Paulo também apresentou time curatorial de ponta no quesito decolonial: Grada Kilomba, Manuel Borja-Villel, Diane Lima e Hélio Menezes. Como argumenta o pesquisador Pedro Pablo Gómez (2015), essas ações abrem espaços para a arte feita nas “margens”, por artistas historicamente excluídos dos lugares culturais
hegemônicos. Na vanguarda desse movimento estão artistas como: a) os indígenas Denilson Baniwa, Jaider Esbell, Kássia Borges e Daiara Tukano, cujas poéticas unem cosmopercepções indígenas a estratégias artísticas contemporâneas; b) afrodescendentes, como Renata Felinto, Aline Motta e Paulo Nazareth, cujos trabalhos expressam as temáticas afrodiaspóricas e denunciam o racismo estrutural; c) e transgêneros, como Ventura Profana, Jota Mombaça e Castiel Vitorino, que trabalham na intersecção entre raça, classe e gênero. Esse fenômeno é recente no Brasil, onde o número de pessoas afrodescendentes e indígenas em cargos de curadoria sempre foi ín mo em relação ao número de homens brancos, como apontou Luciara Ribeiro (2020), exempli cando que o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), fundado em 1947, contratou suas primeiras curadoras negras, Horrana de Kássia e Amanda Carneiro, apenas em 2018; e a primeira curadora indígena, Sandra Benites, somente em 2019. Entretanto, em maio de 2022, Sandra e Clarissa Diniz (curadora contratada temporariamente) publicaram uma carta na revista Select 5 comunicando seu desligamento do projeto Histórias Brasileiras, no Masp. Na carta, repudiaram a violência institucional do museu, que se recusou a incluir na mostra Retomadas (com a justi cativa de problemas técnicos) as seguintes obras propostas por elas: o conjunto de cartazes/documentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e fotogra as de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ com imagens do MST. As curadoras explicaram ainda que trabalharam durante meses na instituição,
atuando de forma proativa e dedicada, atendendo todas as demandas que lhes foram informadas, a despeito da inexistência de um cronograma indicado para guiar suas atividades. Apesar do cuidadoso trabalho realizado, para a surpresa das curadoras, o Masp não concordou com a integral inclusão das obras selecionadas, justi cando sua decisão a partir de um suposto descumprimento de prazo (que não lhes havia sido informado anteriormente). Saliento que a justi cativa técnica e burocrática tem sido uma estratégia bastante comum das instituições para não levarem a cabo ações efetivamente decoloniais. O Masp se manifestou publicamente depois, rmando um acordo com as curadoras a partir do qual diversas ações de retratação foram implementadas.
Se, especialmente no recente período de pandemia de covid-19, essas estruturas começaram a mudar com mais intensidade no Brasil, com a participação ativa de pessoas afro-brasileiras, indígenas e LGBTQIA+ nas artes, inclusive em cargos decisórios, o caso do Masp mostra que há ainda muito o que fazer para a decolonização das instituições. O fenômeno da virada decolonial é uma realidade no Brasil, mas ainda imperam nas instituições culturais os re exos históricos da desigualdade e segregação social e racial no país. Levantamento realizado por Alan Ariê (2020) mostrou que, dos mais de seiscentos artistas representados por galerias em São Paulo, só 5% eram pretos ou pardos. A Pinacoteca de São Paulo incorporou a seu acervo obras de arte produzidas por indígenas apenas em 2019, segundo Igor Simões (2019).
O problema esquadrinhado aqui remete a esta dupla face da virada decolonial na arte brasileira: de um lado, há uma comprovada insurgência de artistas e teóricos/as explicitamente envolvidos/as com estéticas e temáticas relacionadas
prioritariamente a questões decoloniais na arte e na sociedade; de outro, ainda assistimos a um lento processo de decolonização das instituições, nas quais permanecem modos de operação segregadores e racistas que se explicitam de diversas maneiras, especialmente na reserva de cargos decisórios a pessoas majoritariamente do sexo masculino, de cor branca e pertencentes a classes sociais abastadas. A relação entre o decolonialismo e as artes é bastante complexa. Uma base teórica multidisciplinar é fundamental para que se possa gerar conhecimento sistemático sobre esse tema, de modo a contribuir para o campo das artes, tendo como m pragmático o combate às desigualdades e o fortalecimento da governabilidade democrática no campo da cultura. A hipótese que pretendo aventar é: até que ponto o aumento expressivo de artistas e pesquisadores/as comprometidos/as com as práticas e saberes decoloniais pode realmente exercer pressão de efeitos práticos sobre o sistema artístico, transformando as bases históricas de suas estruturas? Aqui, procuro transitar entre possíveis respostas, levando em consideração o fato de que o fenômeno investigado ocorre no presente, estado momentâneo que não nos permite chegar ao esgotamento do problema. Entretanto, tento compor um panorama de re exões articuladas entre si que possam indicar algumas possibilidades plausíveis.
POR QUE USAR O TERMO DECOLONIAL?
A primeira pergunta a se fazer é: de onde vem o termo decolonial? E por que utilizamos decolonizar e não descolonizar? A nomenclatura foi criada pelo grupo de pesquisa
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD), fundado no nal dos anos 1990. Inicialmente chamado de Projeto Modernidade/Colonialidade, o grupo reúne diversos pesquisadores/as, em sua grande maioria oriundos de universidades de países da América do Sul de língua espanhola (parte está vinculada a universidades de países do norte global). Segundo o MCD, a colonialidade é um sistema que sobreviveu ao colonialismo histórico, mantendo-se ainda na contemporaneidade como matriz das relações assimétricas de poder perpetuadas nos últimos séculos. Catherine Walsh (2009), pesquisadora vinculada ao MCD, explica que a supressão do “s” da palavra descolonialismo não signi ca a adoção de um anglicismo, mas a introdução de uma diferença ao “des” castelhano. Assim, a terminologia estaria mais adequada às diretrizes do grupo, que tem como proposta não apenas desarmar ou desfazer o colonial, mas compreendê-lo e combatê-lo como um fenômeno ainda atual. A autora explica que os termos pós-colonial e descolonial também denunciam as assimetrias de poder resultantes do projeto de domínio e opressão colonialista, porém essas nomenclaturas estão mais ligadas às matrizes teóricas surgidas no contexto da luta pela descolonização no período pós-Guerra Fria e relacionadas aos estudos asiáticos e africanos (de autores como Frantz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall e Ranajit Guha).
É importante diferenciar aqui os pensamentos “pós-colonial” e “decolonial”, sendo que ambos se constituem como possibilidades teóricas construídas à medida que as relações sócio-históricas acontecem na modernidade (ROSEVICS, p. 191, 2017). En m, o grupo MCD de niu o termo decolonial como o mais pertinente para se analisar a colonização como
um evento permanente, mesmo que com determinadas rupturas. Trata-se de uma estrutura que produz um padrão mundial de dominação social, política, cultural, econômica, simbólica e epistêmica, que parte da Europa para o resto do mundo, fundada durante o advento da colonização, alicerçada sobretudo na instauração arti cial das categorias de raça e gênero e na divisão e exploração do trabalho que alimentam o sistema capitalista moderno. Essa dominação foi estabelecida por meio da colonização das Américas, logo expandida para diversos outros territórios em todo o mundo, como Ásia e África. As nuances desse fenômeno vêm sendo sistematicamente analisadas pelo MCD, ao longo dos últimos anos, a partir de diferentes perspectivas e campos dos saberes, por nomes emblemáticos como Aníbal Quijano, Zulma Palermo, Catherine Walsh, Edgardo Lander, Enrique Dussel, Nelson Maldonado-Torres e Walter Mignolo. Mesmo sem pesquisadores/as do Brasil vinculados/as ao grupo MCD, o verbo decolonizar se tornou corriqueiro por aqui, e não apenas no meio acadêmico, mas nas redes sociais, na mídia em geral, nos catálogos de exposições, nas conversas do dia a dia no meio cultural. Não sabemos exatamente como a onda decolonial se alastrou no país, porém é bastante visível a difusão da exclamação “decolonize já!”, especialmente a partir da pandemia, período em que a articulação dos movimentos ativistas nas redes sociais foi bastante fortalecida. Uma das autoras que mais têm explorado e esclarecido esse tema no país, a partir da ótica da ciência social, é Luciana Ballestrin, professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Em um de seus artigos, ela aponta como é signi cativo o fato de não haver nenhum pesquisador brasileiro associado ao MCD, grupo que naturalmente
privilegiou a análise da América hispânica em detrimento da portuguesa. Segundo Ballestrin, “o Brasil aparece quase como uma realidade apartada da realidade latino-americana” (2013, p. 111). Portanto, pode-se dizer que a decolonialidade no Brasil ainda é ponto problemático, já que a colonização portuguesa trouxe especi cidades que diferenciam o caso brasileiro do resto da América Latina. Estudos comparativos teriam signi cativa contribuição nesse cenário. Quanto às diferenças relacionadas às questões de etnia e raça nas artes brasileiras, por exemplo, há peculiaridades historiográ cas e territoriais importantíssimas a serem comparadas entre regiões. Nesse sentido, podemos contar com a contribuição de nomes brasileiros como Paulo Freire, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, entre tantos outros, que vêm sendo resgatados para somar forças epistemológicas na construção dos estudos decoloniais brasileiros.
Apesar da publicação de inúmeros textos sobre o decolonialismo em diversas áreas no Brasil, há ainda signi cativa carência de abordagens que articulem, de forma profunda, essa ótica com o campo das artes. Isso pode ser explicado pelo fato de o próprio MCD não ter produzido, em seus primórdios, escritos ligados diretamente a esse campo. É por essa razão que apresento, neste livro, um texto intitulado “A visão decolonial nas artes a partir de dois artigos antológicos de Walter Mignolo”. Esses dois artigos a que me re ro, indisponíveis em português, são imprescindíveis para quem pretende entender o decolonialismo nas artes latino-americanas. Publicados com um intervalo de quase dez anos, eles se articulam entre si para tecer importantes considerações sobre as artes visuais e sua relação com o pensamento decolonialista, seja a partir da análise das obras de alguns
artistas, seja apoiado na re exão sobre as possibilidades de uma crítica de arte decolonial. O semiólogo argentino Walter Mignolo é uma das maiores estrelas do MCD, porém nunca havia escrito sobre artes, já que essa não é sua especialidade. Apesar disso, seus dois artigos fornecem a maior contribuição cientí ca para uma possível teoria decolonial nas artes. Em entrevista ao site brasileiro C& América Latina, em 2008, ele explica que o conceito de “estética decolonial” surgiu em meio às discussões do MCD. Foi introduzido por Adolfo Alban Achinte (artista e ativista do Pací co colombiano), no início dos anos 2000, quando o MCD ainda não contava com nenhum artista ou crítico de arte. Mignolo decidiu escrever sobre o tema ao ser convidado pelo editor Pedro Pablo Gómez para contribuir com a revista Calle 14: Revista de Investigacion en el Campo del Arte , na qual foi publicado o primeiro artigo, em 2010. Achinte e Gómez têm sido guras referenciais no campo das artes decoloniais. Gómez tem concedido entrevistas a periódicos brasileiros nas quais explica a relação entre a decolonialidade e a historiogra a da arte (ver, nas referências nais deste texto, sua entrevista à revista Vazantes, em 2017). A propósito, algumas revistas acadêmicas têm produzido material consistente sobre o tema, como Epistemologias do Sul 6, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), e Percursos 7, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Portanto, o espaço de tempo que separa as mais de duas décadas da fundação do grupo MCD e as recentes publicações
6. revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/index
7. www.revistas.udesc.br/index.php/percursos/index
de seus/suas autores/as no Brasil reverberam de forma ainda mais pungente nas re exões sobre a arte brasileira. Pode-se notar atualmente a circulação de textos esparsos, porém faz-se urgente uma força-tarefa no sentido de se articular, de forma mais coesa, as expressivas contribuições do pensamento decolonial (especialmente os produzidos por esses intelectuais de países de dominação hispânica) para se pensar o decolonialismo artístico brasileiro a partir da soma epistemológica entre várias disciplinas e o decolonialismo. Proponho, a partir desse panorama, um diálogo entre as teorias da arte e a visão decolonialista, enfatizando também a continuidade dos fundamentos metodológicos provenientes do campo dos estudos culturais, que buscam compreender em que medida a arte é capaz de criar e instituir valores sociais. É importante enfatizar também o quanto a sociologia da arte pode contribuir para esse debate. Antônio da Silva (2019) mostra que os anos 2000 apontam para a crescente presença do debate decolonial na sociologia da arte. Segundo ele, a maioria dos 84 grupos de sociologia da arte cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes realiza pesquisas que integram áreas como gênero, educação, juventude, questões raciais e violência.
APAGAR O PASSADO?
As discussões polarizadas em torno das temáticas decoloniais revelam, muitas vezes, uma visão super cial sobre o assunto. De um lado, há quem diga que os decolonialistas querem acabar com a história da arte ocidental para escrever uma nova narrativa, com foco no discurso dos oprimidos e
silenciados pela historiogra a eurocêntrica. Mas, sem que se acesse toda a complexidade epistemológica que envolve o debate, essa interpretação acaba se desdobrando em discussões pessoalistas e super ciais, que podem gerar confusão e desentendimento em conversas informais ou nas redes sociais. Por exemplo, durante um trabalho de ação a rmativa que organizei em uma determinada instituição, cheguei a ouvir de um homem branco, bastante resistente à minha proposta, que ele não era racista, pois tinha muitos amigos negros. O caso mostra que há professores que, a partir de suas próprias razões psíquicas e emocionais, acabam se apropriando do debate a partir de um ponto de vista extremamente pessoal e emotivo, sendo que devemos entender o problema de uma perspectiva social e estrutural. Esse tema é abordado no Pequeno manual antirracista, da intelectual negra Djamila Ribeiro. Ela diz: “a maioria das pessoas admite haver racismo no Brasil, mas quase ninguém se assume como racista. Pelo contrário, o primeiro impulso de muita gente é recusar enfaticamente a hipótese de ter um comportamento racista: ‘Claro que não, a nal tenho amigos negros’” (2019, p. 37). Portanto, Djamila enfatiza que o que está em questão não é um posicionamento de ordem moral ou individual, mas estrutural. Sendo estrutural, essa discussão tem um desenlace também vinculado à história da arte ocidental e sua relação com a terminologia “universal”, a nal o título História da arte universal já estampou inúmeros livros sobre arte. Mas como podemos dizer que a história da arte é universal se ela foi criada na Europa e relatou majoritariamente as criações artísticas produzidas naquele continente? Se pesquisarmos a palavra nos dicionários, vamos encontrar sinônimos como
absoluto, ecumênico, geral, global, ilimitado. Essa história seria mesmo ilimitada, uma vez que foi escrita apenas por homens brancos? Ela abrande globalmente todas as expressões artísticas? Por que, por exemplo, nessa narrativa dita ecumênica não estariam as expressões dos povos originários, asiáticos e africanos? Por que há tão poucas mulheres nos momentos mais importantes dessa história? Visando abarcar maior pluralidade para as narrativas históricas em torno das artes, há um processo teórico em curso ao longo do século 20 que visa à desconstrução da terminologia “universal” na história da arte (e, consequentemente, seus re exos na crítica e na teoria da arte) como campo de conhecimento que secularmente atribuiu valor e legitimidade à obra de arte a partir de uma visão eurocêntrica, que acabou por produzir a subalternização das produções africanas, americanas, asiáticas e oceânicas, por meio de diferenças conceituais (por exemplo, entre arte e artesanato), geopolíticas (por exemplo, entre o norte e o sul globais) ou raciais (in uenciadas pelas teorias do racismo cientí co). A história da arte surge na Europa como área autônoma, a partir do Iluminismo, com autores como Johann Winckelmann (1717-1768). Considerado o pai da história da arte, Winckelmann resgata as tradições discursivas renascentistas de autores como Giorgio Vasari (1511-1574), para teorizar a arte ocidental como uma linguagem autônoma, com seu próprio processo histórico, passível de ser analisado racionalmente, como outras atividades da ciência, da loso a, da moral. Nesse contexto, surge também a losoa da arte, fortemente marcada por obras como a Crítica da faculdade do juízo (1790) e Cursos de estética (1820), respectivamente elaboradas por Immanuel Kant (1724-1804) e
Friedrich Hegel (1770-1831), nas quais são delineados conceitos basilares, como a noção de beleza (Kant) e o clássico e romântico (Hegel).
Uma das tarefas mais de nidoras para a criação de um sistema voltado para a produção de conhecimento sobre a arte ocidental cou a cargo do alemão Alexander Baumgarten (1714-1762), que de niu o termo estética como disciplina dentro da loso a. Grande parte do conhecimento gerado por esses pensadores europeus sobre as artes tem uma matriz comum, a antiguidade clássica, envolvendo conceitos como os de mimese e catarse (Aristóteles) e o belo idealizado (Platão). Se podemos localizar no Renascimento o momento primeiro do surgimento de uma arte autônoma (pois, até então, a produção de bens visuais estava atrelada a elementos externos, como a igreja, o estado e a arquitetura), é a partir do século 18 que a Europa organiza as ciências que pensam a arte, isto é, a história e a loso a da arte. Estas, no século seguinte, irão in uenciar novas teorias e a crítica da arte, campo que surge para acompanhar as mudanças burguesas que afetam a circulação e a legitimação das artes, como o advento dos salões, a gura do marchand e um novo mercado consumidor. A categoria “universal” atrelou-se a esses campos de conhecimento, correspondendo não a algo realmente universalizante, e sim ao particular, ou seja, à Europa como modelo de um Ocidente que assume a função de cultura padrão, com características essenciais que a diferenciam de outras sociedades. A naturalização de um universal supostamente neutro marca grande parte dos paradigmas sociológicos da modernidade que vão in uenciar na construção de uma “história da arte universal”, em suma uma história europeia que não abrange as dinâmicas de outros contextos.
É preciso lembrar ainda que, mesmo antes do movimento decolonial, muitos autores passaram a contestar a visão de tempo como um todo progressivo e ordenado que marca os métodos historiográ cos vinculados ao iluminismo e sua concepção de desenvolvimento linear e constante da humanidade. Essa crítica já vinha sendo feita por historiadores europeus no século 19, que produziram uma história de cunho social e cultural, como fez Jacob Burckhardt (1818-1897), com pesquisas fundamentais sobre o Renascimento europeu. Porém essas pesquisas ainda se balizavam pela categoria universal – em sua clássica aula Re exões sobre a História Universal, Burckhardt vai marcar outros historiadores da arte referenciais, como o suíço Heirich Wöl in (1864-1945). Há muitos vieses nessa discussão, que é extremamente complexa, a nal a história é uma construção cultural e política permeada por muitas negociações simbólicas. Por exemplo, há ainda muito a se discutir sobre o impacto de nomes do início do século 20 que são bastante desconhecidos, como o do escritor, crítico e poeta ativista Carl Eistein (aliás, aluno de Wöl in), pioneiro nos estudos sobre arte africana, que falava em uma “contra-história da arte”. Eistein aparece no panorama de uma verdadeira guinada política na estética, no contexto traumático da Primeira e Segunda Guerra, quando surgem nomes como Georg Lukács, Walter Benjamin, Herbert Marcuse e eodor Adorno; “todos afetados pelos temas do declínio, da decadência, das crises que concernem tanto às ciências, ao conhecimento, aos valores tradicionais e às antigas certezas, quanto às artes e à cultura”, a rma o autor Marc Jimenez no livro O que é estética? (p. 306). Nas últimas décadas, proliferaram ainda, nas ciências sociais e nas humanidades, diversos estudos que produziram críticas às matrizes do pensamento eurocêntrico, como a própria antropologia da
arte, que mostra como o belo e o feio são categorias relativas e mutantes, que se moldam a cada contexto e tempo histórico. En m, além das teorias, a própria prática artística fornece as chaves para sua compreensão. A nal, uma das grandes tarefas dos artistas, principalmente a partir das vanguardas históricas, é o questionamento da própria linguagem artística. O cânone da beleza, por exemplo, foi por água abaixo, especialmente a partir das produções conceitualistas que ganharam força nos anos 1960, que permeiam até hoje o estatuto da arte contemporânea, mais focada no processo do que no resultado, na ideia do que na plasticidade, em criações coletivas e não apenas naquelas que enaltecem a autoria individual, que requer a participação ativa do fruidor, que promove o encontro entre culturas diversas, entre o urbano e a natureza, entre a arte e a comunicação. Extrapolando as desconstruções relativas à própria linguagem artística e as discussões dos estudos culturais sobre as relações entre cultura e arte, surgiram autores que trouxeram os primeiros delineamentos para a questão decolonial. Entre eles está Edward Said, cujo livro lançado no nal dos anos 1970, Orientalismo, se tornou a pedra angular da crítica à colonialidade, isto é, o recorte étnico-racial e de gênero; Muniz Sodré e Frantz Fanon, que questionaram as visões de Kant e Hegel; e ainda importantes nomes dos estudos pós-coloniais, como Homi Bhabha, que também problematizou o instável campo das identidades e sua relação com a cultura. É a partir do quesito racial e em sua articulação interseccional com outras questões, tais como gênero e etnia, que o pensamento decolonial passou a questionar mais diretamente os cânones da historiogra a artística eurocêntrica, re etidos também na historiogra a brasileira – a nal ela também vem sendo reinvestigada, como no caso dos discursos produzidos
pelo médico eugenista Nina Rodrigues (1862-1906), autor de “As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil: a esculptura”, texto publicado na revista Kosmos em 1904. Entretanto, é importante enfatizar que a corrente decolonialista não propõe, nas artes, a simples destruição do passado, mas o reconhecimento da heterogeneidade cultural e da pluralidade das formas de expressão artísticas de origem não eurocêntrica. Esse, sim, um caminho rumo a uma noção mais consensual a respeito do que seria um universalismo real, nos moldes do que Frantz Fanon (1925-1961), autor negro que in uenciou diversos continentes e gerações com seu livro Pele negra, máscaras brancas, propôs a respeito do reconhecimento da cultura negra, não a partir de um marcador étnico, mas em condição de igualdade com a cultura branca, para a superação do falacioso universalismo eurocêntrico. A visão de Fanon é universalista e humanista, porque tem como base o pressuposto de que devemos todos (independentemente de nossas origens) combater qualquer forma de opressão e lutar pela transformação das condições materiais de existência onde as relações de poder assimétricas se reproduzem. A história da arte pode contribuir para essa transformação, uma vez que seu regime narrativo vem sendo reconstruído decolonialmente, como mais uma peça no tabuleiro dos fatores psicológicos, contextuais, históricos, políticos, econômicos e culturais que reforçam as injustiças sociais.
ARTE: SISTEMA DE PODER E HÁBITO SOCIAL
Além de lidar com os mesmos processos de desmantelamento dos cânones estéticos ocidentais pela arte contemporânea
– que chacoalhou noções clássicas, como a de autoria e de autenticidade –, o movimento decolonial denuncia que as relações de opressão que se expressam violentamente através de noções de classe, gênero, raça e geopolítica também se re etem nas práticas artísticas. Essas poéticas insurgem-se contra o colonialismo na vida, por meio de suas temáticas, e acabam assim questionando a incidência do colonialismo na própria arte e no meio cultural. Interpelam, por exemplo, as razões pelas quais as mulheres artistas estiveram fora dos compêndios historiográ cos; explicitam o quanto o racismo estrutural se re ete nas instituições culturais, que por muito tempo vêm sendo dirigidas majoritariamente por pessoas brancas; desconstroem as imagens estigmatizadas a respeito de grupos minorizados, como o exotismo vinculado aos povos indígenas e a erotização das pessoas negras; abalam os regimes valorativos que desprezaram artefatos (“artesanatos”) em suas potencialidades estéticas.
As perguntas em torno do quão impactante é a incidência desse fenômeno sobre o sistema da arte devem ser permanentemente reformuladas para que o grande esforço contracolonial, termo utilizado, por exemplo, pelo mestre dos saberes Nêgo Bispo (2015), continue gerando frutos para um mundo mais justo, que reconheça as diferenças silenciadas pelos poderes hegemônicos. Em vez de lançar mão prioritariamente da análise formal, uma das principais ferramentas metodológicas para a re exão sobre os fenômenos da estética, sugiro a utilização de contraepistemologias que possam contribuir signi cativamente para um novo modo de operar e pensar o sistema da arte e para a superação do culturalismo exacerbado e relativista do chamado “multiculturalismo comercial”, incapaz de problematizar o sistema material e econômico do
capitalismo e seu re exo no campo cultural, como alertou o sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall (2013, p. 58).
Não se trata de esgotar o tema aqui, e sim apontar possíveis caminhos para futuras proposições mais aprofundadas. Quero mostrar que, ultrapassando os limites dos debates formalistas sobre a arte, se faz imperativo pensar sociologicamente as relações de produção, circulação e recepção das artes que no mundo ocidental, como a rmou a estudiosa Janet Wol (1993), ainda se regulam pelos grandes interesses nanceiros, pelas formas de opressão do norte para o sul global e pela reprodução de desigualdades raciais, de classe e de gênero. A nal, a arte é um sistema de signi cações que se mostra essencialmente envolvido “em todas as formas de atividade social”, como a rmou Raymond Williams (1992, p. 12), um dos fundadores dos estudos culturais. O autor ainda aponta para a necessidade de se incorporar ao debate sociológico da arte questões diversas, como ideologia, instituições e linguagens estéticas. Também há apoio teórico para essas re exões no pensamento de Vera Zolberg (2006), que propõe uma articulação entre as abordagens internalista (aquela feita por críticos e historiadores da arte) e externalista (com enfoque sociológico).
Mas quais seriam os passos para a construção de uma possível nova sociologia da arte de cunho decolonialista, que leve em consideração as questões de raça, etnia, gênero e classe, muitas vezes de forma interseccional? Essa pergunta é basilar para que possamos compreender a virada decolonial na arte brasileira a partir da apreensão das formas de operação desse sistema, envolvendo museus, espaços de exposições, mercado da arte globalizado, público, formação e trajetória de artistas; problemas que para a sociologia da arte podem ser investigados pelas lentes da decolonialidade.
Lembremos que os campos da sociologia da arte e dos estudos culturais podem potencializar a ideia de que a arte desempenha papel fundamental nas negociações simbólicas e na manutenção dos regimes discursivos hegemônicos, em sintonia com o conceito de “colonialidade do poder”, de Aníbal Quijano (1992), um dos principais teóricos do MCD. Segundo o autor, a engrenagem colonialista-capitalista se mantém azeitada pelas estratégias de controle da economia, da natureza, do gênero, da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento. Assim, arte e estética devem ser entendidas como partes constitutivas de uma das hierarquias da modernidade que – em correlação com outras hierarquias, como a divisão internacional do trabalho, as questões de classe, a ordem epistêmica global – opera mediante regimes discursivos que classi cam não apenas a arte europeia como superior a outras formas de arte, mas todo o imaginário ocidental-eurocêntrico como o mais elevado em relação a outras sociedades. O decolonialismo tem aberto caminhos para o entendimento dos impactos do colonialismo nos âmbitos político, cultural e intelectual. O sistema da arte, como parte do âmbito cultural, necessita ser analisado a partir da ótica decolonial, que bem aponta as tensões geradas entre poder, subjetividade, identidade, representação e conhecimento. Compreender o sistema da arte e seus modos de operação é fundamental para o entendimento do exercício do poder colonial e imperial, que reproduz e reforça as desigualdades sociais. Isso pode ser atestado na formação de um sistema artístico com forte vínculo com o mercado nanceiro da arte em nível global, re etindo, portanto, a associação estrutural entre modernidade e capitalismo. A nal, arte é um ativo perfeito para os excedentes nanceiros que migram
globalmente a procura de maiores rendimentos, por meio de escusos acordos e recibos que selam as negociações milionárias. Não é à toa que o fenômeno da NFT (non-fungible token) pegou para valer no mercado da arte. Apesar da motivação econômica primeira por trás do colonialismo/imperialismo, esses são processos que invadem “diferentes aspectos da vida pessoal e coletiva nos âmbitos internos – em termos subjetivos, intelectuais, epistemológicos, culturais e políticos”, como alerta a pesquisadora Luciana Ballestrin (2017, p. 515). Precisamos lembrar que a arte não é neutra e tem trajetória social. Assim, o sistema da arte contribui para esse mecanismo em várias frentes: pela educação (por meio das históricas academias de belas-artes e em muitas universidades atuais), pelos espaços de circulação, comercialização, legitimação e formação de público (em salões, premiações, bienais, feiras, museus, galerias) e pelo próprio estatuto ontológico da chamada “arte universal” (crítica, teoria e historiogra a).
É possível detectar, ao longo da historiogra a artística nas Américas, a ênfase em uma estrutura de poder análoga às dinâmicas colonialistas em outros diversos campos da vida humana. No sistema da arte mundial, reproduzem-se as mesmas relações assimétricas de poder apontadas pelos autores decoloniais, seja do ponto de vista geopolítico (a hegemonia da Europa e dos Estados Unidos sobre a América Latina; e no Brasil, do Sudeste sobre o Nordeste, por exemplo), seja internamente em cada contexto (gerenciamento de instituições por pessoas brancas). A isso se soma a subalternização das práticas e subjetividades dos povos dominados e a mais importante de todas as bases asseguradoras da obscuridade da modernidade: a estrati cação social por meio
do constructo arti cial da noção de raça e o consequente forjamento da superioridade das pessoas brancas sobre as pessoas negras e indígenas. Sim, basta ir a uma vernissagem em um museu ou galeria para perceber a presença majoritária de pessoas brancas; são lugares onde ocorrem “rituais e práticas de ação ou o comportamento social, nos quais as ideologias se imprimem ou se inscrevem” (HALL, 2013, p. 191).
Podemos olhar o sistema das artes por meio da chave teórica do habitus que, segundo a obra clássica A economia das trocas simbólicas, do sociólogo francês Pierre Bourdieu, pode ser entendido como um sistema de percepções, práticas, juízos e gostos automatizados nos indivíduos através de estruturas sociais e institucionais. O habitus é adquirido mediante a interação social e, ao mesmo tempo, é classi cador e organizador dessa interação, condicionante e condicionador das ações sociais. Há um habitus presente nas ações e nas re exões automatizadas pelos agentes no sistema das artes. Dentro de uma aparente liberdade conferida pelas regras dominantes desse sistema, a arte brasileira rege-se por um habitus de ordem colonialista, a partir de ações que reproduzem preferências, classi cações e percepções historicamente condicionadas pela matriz artística eurocêntrica, formando-se uma grande ilusão coletiva que naturaliza as injustiças. Como se sentir confortável em um restaurante em que os clientes são todos brancos e os garçons são negros? A mesma pergunta se estende para o ambiente das artes: como se sentir confortável em um seminário sobre arte onde só estão presentes debatedores brancos? É interessante notar a semelhança entre a ideia de ilusão provocada pelo habitus bourdieusiano e a ideia de ilusão recorrente no trabalho da artista negra Grada Kilomba, como ela mostra na
performance While I walk (Bienal de São Paulo, 2016): “Eu penso que isto é uma ilusão. Uma tragédia colonial, que quer fazer-me acreditar que eu sou discriminada porque sou diferente. Bom, deixem-me dizer que eu não sou discriminada porque sou diferente. Eu torno-me diferente através da discriminação” (KILOMBA, 2017-2018, p. 71). Na performance Narciso e Eco (da série Ilusões), Grada trabalha também a ideia da ilusão colonialista: a miragem no espelho de Narciso e a repetição das palavras de Eco são metáforas de uma sociedade branca e patriarcal, centrada em si mesma.
ESPOLIAÇÕES HISTÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS
Um dos princípios historiográ cos problematizados pela corrente decolonialista está relacionado ao marco de agrador da modernidade, cuja origem estaria localizada na conquista da América e no controle do Atlântico pela Europa, entre o nal do século 15 e o início do 16, e não no Iluminismo ou na Revolução Industrial, “como é comumente aceito” (ELIZALDE; FIGUEIRA; QUINTERO, 2019, p. 5). Como a rma Aníbal Quijano (2005, p. 117), a América se constitui “como a primeira identidade da modernidade”. O termo modernidade, que nas artes delimita a produção da virada do século 19 para o 20, não deveria, de certa forma, acompanhar essa perspectiva cronológica, especialmente em uma re exão sobre a história da arte latino-americana? Poderíamos pensar no barroco, por exemplo, como categoria moderna para a arte colonial latino-americana? De acordo com Irlemar Chiampi (1998), o debate sobre a modernidade na América Latina seria falho sem a inclusão dessa corrente estética,
a nal seria esse o momento inaugurador de uma estética nacional, com expressivos vínculos identitários a partir de autorias afrodescendentes e indígenas. Muitos pesquisadores brasileiros têm apontado para uma ampla revisão historiográca do período colonial, com a rede nição das periodizações e das categorias estilísticas tradicionais para a arte colonial da América portuguesa, levando-se em conta uma história social da arte, e não uma ótica meramente formalista. Longe de ser apenas um re exo desbotado de eventos ocorridos nos centros dominantes, a estética barroca latino-americana “se desenvolve por rupturas dramáticas, acompanhando e reagindo de forma autônoma às transformações históricas e às contradições da cultura e da sociedade na Europa, e particularmente nos países ibéricos”, a rmam Martins e Migliaccio (2020, p. 10-11).
Assim, também pergunto: a estética barroca latino-americana não seria a de agradora de um movimento de resistência contracolonial nas artes? Mesmo tendo acesso mínimo aos meios de produção no período colonial, como os folhetins com imagens sacras da Europa, os artistas nas colônias latino-americanas tinham que seguir as regras e padrões eurocêntricos. Porém, em um amálgama inédito entre talento e identidade cultural eminentes, esses artistas produziram obras únicas, con rmando que a revisão historiográ ca deve levar em conta a discussão sobre os fenômenos e os processos de transculturação e de recepção ocorridos na cultura artística colonial latino-americana, numa ótica global e local simultaneamente. Seriam esses artistas “contracolonizadores”? Enfatizo aqui novamente a pertinência do termo contracolonial, do mestre dos saberes Nêgo Bispo, que a rma que devemos compreender por contracolonização todos os
processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contracolonizadores, a partir de diversas formas de resistência e de auto-organização comunitária que rearmam os símbolos, as signi cações e os modos de vida praticados nesses territórios: “Assim sendo, vamos tratar os povos que vieram da África e os povos originários das Américas nas mesmas condições, isto é, independentemente das suas especi cidades e particularidades no processo de escravização, os chamaremos de contra colonizadores” (BISPO, 2015, p. 48).
Não se trata, nesse caso, de propor a revisão ontológica do estatuto da arte ocidental sob esses termos, mas de problematizar o desenvolvimento artístico nas Américas e sua relação com os países colonizadores, como mostram muitos especialistas ao repensarem as condições para o reconhecimento de uma estética própria no barroco latino-americano, por exemplo. A nal, “a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento”, de ne Aníbal Quijano (2005, p. 121). O autor explica que, no novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre a Europa e as demais regiões e suas novas identidades geoculturais, serviram de base a expropriação e a repressão das “formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade” (2005, p. 121). Ainda segundo Quijano, transformaram indígenas em uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança intelectual, amenizando a repressão na Ásia, onde parte relevante da história e da herança intelectual, escrita,
pôde ser preservada (tudo isso rea rmado pela criação da categoria “Oriente”). Também foi uma estratégia declarada forçar os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, seja da subjetiva, especialmente religiosa, con gurando o que Quijano (2005, p. 121) chamou de “colonização das perspectivas cognitivas”.
Na perspectiva etnocêntrica colonial, o barroco latino-americano seria um barroco europeu tosco; arte feita por pessoas supostamente inferiores, como eram considerados os povos afrodiaspóricos e as comunidades originárias das Américas com base em uma falaciosa classi cação racial, arti cialmente construída por cientistas higienistas. Também seria um estilo atrasado, pois esses povos estariam em estágio de desenvolvimento anterior ao do europeu, constatação reforçada pelas experiências eugenistas que, entre os séculos 19 e 20, criaram o racismo cientí co (no Brasil, entre os melhores estudos nessa área estão os livros Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo e Negros no estúdio do fotógrafo, de Sandra So a Machado Koutsoukos, publicados em 2020 e 2010 respectivamente. Esse paradigma desdobra-se no delineamento da própria história da arte dita “universal” (universal, porém europeia) e “superior” a outras experiências estéticas. E, por m, em uma linguagem tecnicamente falha para analisar a cultura, presa a um sistema de pensamento que separa o mundo em binarismos como “Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-cientí co, irracional-racional, tradicional-moderno” (QUIJANO, 2005, p. 122). Como parte do processo de implantação do sistema-mundo colonial, foi promovida a homogeneização de
culturas diversas. Quijano (2005) a rma que astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas etc. se tornaram índios; enquanto achantes, iorubás, zulus, congos, bacongos etc. se tornaram negros. “E então, eu pergunto: que outra coisa fez a Europa burguesa? Minou civilizações, destruiu párias, arruinou nacionalidades, erradicou ‘a raiz da diversidade’” (Quijano, 2005, p. 75). A decolonialidade estética seria, assim, uma resposta a esse apagamento sistemático que, “em sua tarefa analítica, ocupa-se de entender como a estética opera como um poderoso regime que, na distinção entre arte e não arte, esconde a classi cação ontológica e a desumanização de outros seres humanos” (GÓMEZ, 2017, p. 46).
O poeta surrealista martinicano, líder político e criador do termo negritude Aimé Césaire (1913-2008), no antológico ensaio-manifesto Discurso sobre o colonialismo, publicado em 2020, mostra como a cienti cação arti cial da categoria raça corroborou com todo esse sistema. Ele lembra que o lósofo e diplomata francês Arthur de Gobineau (1816-1882), pioneiro do racismo cientí co, costumava dizer que “Só existe história branca”. Assim, o poeta, cujo nome estampa ruas, praças, escolas, aeroportos e museus na Martinica e na França, conclui que os povos escravizados nas colônias foram despojados de suas potencialidades culturais produtivas, considerados inferiores e atrasados. É nesse ensaio que aparece a célebre frase de Césaire: “A Europa é indefensável” (p. 9). O prolífero artista Abdias Nascimento (1914-2011), uma das maiores lideranças políticas negras no Brasil, a rma que a Europa destruiu as potencialidades criativas artísticas dos países colonizados, rotulando-as em museus etnográ cos e folclóricos, como foi feito com os belos bronzes de Benin e as esculturas de madeira da Costa do Mar m, considerados
objetos destituídos de valor estético. “Mais frequentemente, os críticos classi cam a nós e às nossas criações como primitivos, e não concedem à arte africana nem mesmo aquela função hipoteticamente religiosa”, diz Nascimento (2022, p. 287) no excelente catálogo que acompanhou sua mostra individual no Masp, em 2022, intitulada Abdias Nascimento: um artista panamefricano. O lançamento do livro de Césaire (uma edição ricamente ilustrada por Marcelo D’Salete, quadrinista e ilustrador negro, e com uma cronologia detalhada feita pelo escritor Rogério de Campos) foi mais uma novidade no meio do oceano de lançamentos editoriais que cobrem os mais variados autores negros, indígenas e LGBTQIA+ nos recentes anos no Brasil, sejam eles nomes clássicos e consagrados, sejam jovens pensadores e artistas (muitos até então inéditos em português).
Trata-se de uma massa bastante signi cativa de produção intelectual que não está ligada diretamente ao grupo MCD, mas que também entende a estruturação do poder global atual por meio do advento do colonialismo e das dinâmicas constitutivas de um sistema mundo moderno/capitalista, em suas formas especí cas de acumulação e de exploração em escala global. A sensação é de que essa legião de conceitos decolonialistas desdobra-se como um novo capítulo dos estudos culturais (assim como vinham fazendo os autores pós-colonialistas), que ganha contornos muito nítidos para o campo das artes latino-americanas. Para o MCD, por exemplo, a descolonização da América Latina, no início do século 19, foi parcial, e na contemporaneidade os principais efeitos da colonização continuam a ordenar os países da região. Essa linha de pensamento vai ao encontro de autores das mais variadas estirpes, especialmente aqueles que
formataram o estudos culturais latino-americanos, como o mexicano Néstor Garcia Canclini, cujo clássico livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade tem como espinha dorsal a ideia de que a modernidade ainda não terminou de chegar por aqui.
VIRANDO O JOGO NA ARTE BRASILEIRA
Proponho um esforço para que alguns postulados do decolonialismo sejam conduzidos ao campo das artes e, assim, se proclame a ideia de uma virada decolonial na arte brasileira, uma vez que mudanças extremamente signi cativas nas formas de operar de diversas instituições dedicadas às artes visuais no Brasil já podem ser detectadas. Transportado para o campo do estético, o decolonial reforça a ideia de que as artes fazem parte de uma mudança estrutural; são ferramentas imprescindíveis contra a opressão social promovida pelo paradigma capitalista, como observa Zulma Palermo (2009), pesquisadora vinculada ao MCD. Como a rma seu colega de pesquisa, Aldofo Albán Achinte (2017), as artes também são práticas de resistência e re-existência. Portanto, a chave epistemológica do decolonialismo contribui com a ideia (também debatida pela sociologia e pela loso a) de que as artes se situam em um contexto de lutas por transformação social, podendo contrapor-se ao ideário neoliberal vigente, e lança luz sobre possibilidades outras que já vêm ocorrendo em tempos muito recentes, como a ocupação, por pessoas negras e indígenas, de espaços de decisão (curadorias, por exemplo) e espaços legitimadores (prêmios, galerias, editais, entre outros), que vêm reconhecendo as
poéticas decoloniais. Segundo Abdias Nascimento (2022, p. 291), a arte negra “preenche uma necessidade de total relevância: a de criticamente historicizar as estruturas de dominação, violência e opressão, características da civilização ocidental-capitalista”.
A virada decolonial pode ser atestada através de dois fatores bastante explícitos e inter-relacionados no sistema da arte brasileira contemporânea: 1) o surgimento expressivo de artistas afrodescendentes, indígenas e LGBTQIA+ que explicitam em suas poéticas as temáticas decoloniais; 2) o aumento signi cativo de ações com uma conduta decolonial em espaços de representatividade, como curadorias lideradas por pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+. A observação dos dados por meio do que chamamos aqui de espaços de representatividade – principalmente exposições, premiações, debates, livros, residências artísticas – corrobora para um avanço bastante signi cativo da presença decolonial nas artes. Não se trata de um fenômeno isolado do contexto brasileiro, e sim de uma mudança estrutural e global, que aponta para o avanço do decolonialismo em escala paradigmática, em nível social, político e epistêmico em diversos campos do conhecimento. Também é importante destacar o fortalecimento desse movimento a partir do advento da pandemia de covid-19; tendo sido a articulação entre as pessoas via internet um importante ponto de aglutinação e catalisação para o encontro (mesmo que virtual) entre os agentes do sistema artístico interessados nas questões decoloniais.
O ano de 2022 foi especialmente importante para a virada decolonial devido às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, que reforçaram as mudanças pelas quais o sistema da arte no Brasil vem atravessando.