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from Coletivos juvenis na universidade e práticas formativas – Política, educação, cultura e religião
Em maio de 2019, enquanto preparávamos este livro e escrevíamos alguns trechos movidos por certo pessimismo, vimos o micro-espaço público estudantil reacender com manifestações contra contingenciamentos e cortes no orçamento federal para a educação. Estudantes, docentes e corpo técnico da universidade pesquisada organizaram uma bela exposição sobre ações de ensino, pesquisa e extensão da universidade na praça central da cidade, depois saíram em passeata pelas ruas, apesar da chuva torrencial. Dias depois, outra passeata percorreu o centro da cidade.
Era um alento, uma esperança e, ao mesmo tempo, um sinal de que este livro não deve se apresentar como um prognóstico. Assumimos as nossas limitações e a deste livro, que, se traz uma interpretação sobre processos políticos e formativos em nível micro e macro, o faz a partir de dados pontos de vista e registros coletados em um certo período de tempo, com alguns sujeitos e grupos dentro de uma realidade que é múltipla e dinâmica.
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Durante os anos de 2016 e 2018, coletamos dados, realizamos observações e fizemos entrevistas com membros de seis coletivos juvenis. Tão dinâmica é a realidade, que três deles deixaram de funcionar nesta universidade ainda durante nossa pesquisa –Levante, Juntos! e Emancipa -, ainda que o Juntos! tenha se recriado e vencido as eleições para o DCE em 2019. Nos anos recentes, em que observamos enormes instabilidades nos campos da política institucional e dos movimentos sociais em nosso país, os coletivos mais associados à política e ao “movimento estudantil” foram, primeiro, os mais ativos e, segundo, os que mais sentiram o retrocesso da democracia representativa e dos direitos sociais. O coletivo associado à cultura popular, o Maracatu, assim como aquele relacionado à religião evangélica, a ABU, tiveram mais estabilidade durante o período, ainda que tenham sido, de diferentes modos, afetados pela intensa dinâmica política.
Entretanto, consideramos que foram alcançados interessantes resultados diante dos objetivos principais da pesquisa “A dimensão educativa das organizações juvenis”. Primeiro, a respeito das práticas formativas destes coletivos. Segundo, sobre a importância destas práticas na formação social e política das pessoas que integravam estes coletivos, assim como em suas trajetórias. Outros objetivos foram se construindo ao longo da pesquisa, em resposta às especificidades de cada coletivo e à própria dinâmica política, destacando-se a compreensão da vida política estudantil, para o qual a própria noção de micro-espaço público foi criada.
Sobre as práticas formativas, ao conceber esta pesquisa, foi proposto o uso dos termos educação informal e não-formal. Eles tinham o objetivo de clarificar a visão sobre práticas formativas distintas das relações acadêmicas típicas da universidade, mais do que funcionar como categorias classificatórias e estanques. Com elas, ao lado da própria noção de práticas formativas, esboçamos um repertório de ações educacionais fomentadas pelos coletivos juvenis na universidade.
Neste repertório, algumas práticas se aproximavam do que concebemos como “não-formal”, ou seja, práticas planejadas, mas sem a formalidade do ensino ou educação formal, como: encontros de formação, eventos de extensão, atividades de estudo nas reuniões, oficinas de formação, estudos bíblicos etc. Outras práticas se aproximam do que concebemos como “informal”, ou seja, práticas que não foram planejadas para serem formativas, ou que tinham caráter educacional incidental durante outras práticas sociais, como atividades de planejamento, assembleias, debates durante as reuniões, manifestações, lutas, rolês, apresentações culturais etc.
Não se tratavam de práticas formativas isoladas da educação formal ministrada por docentes da universidade. Também, não são práticas que necessariamente se contrapõem à vida acadêmica. Sim, há vários registros sobre o quanto a militância nos coletivos políticos ou o mergulho no universo do Maracatu demandou tempo de jovens, tempo que foi subtraído do que precisaria ser dedicado às
atividades acadêmicas. Mas também há inúmeros registros da contribuição da formação ensejada pelos coletivos para a própria inserção na vida acadêmica, o que, aliás, é um dos principais objetivos da ABU, e, em vários casos, registros da própria ressignificação do sentido da formação acadêmica graças à influência dos coletivos – formação que passa a ter maior significado político, nos casos dos coletivos políticos, ou que passa a ser direcionada para a docência, no caso do cursinho popular, ou ainda, que faz dialogar ciência e cultura popular, no caso do Maracatu.
A relação tensa e contraditória entre a dedicação ao coletivo e a vida acadêmica marca mais a experiência de militantes dos coletivos políticos – ex-Quilombo, Levante e Juntos! Também, com um pouco menos de intensidade, o Maracatu. Quanto maior a imersão na militância, maior é a dificuldade na vida acadêmica, e o tempo da graduação vai sendo alongado. Mas é justo nos casos destes coletivos que se destacam também os registros sobre a melhoria da escrita e da capacidade de falar em público, de organizar o tempo, de fazer reflexões e formulações.
Os coletivos políticos foram os que mais promoveram o que podemos chamar de formação política “explícita”, como estudos de material enviado pelo coletivo, estudos em reuniões, formações com lideranças regionais e estaduais e encontros nacionais. De modo semelhante, também o Emancipa, que tinha relações estreitas com o Juntos!. Sobre esta formação e os temas relativos a ela, como democracia, desigualdade social, movimento estudantil e outros, os relatos revelam o aprendizado, principalmente, da política dita institucional ou formal. Em consonância, depreendeu-se uma concepção mais propedêutica e preparatória do movimento estudantil, como se a vida nestes coletivos fosse um “treinamento” ou ensaio para a ação política mais consequente em partidos, sindicatos e movimentos sociais na idade adulta.
A formação política relacionada ao que Jacques Rancière considera como a “política” propriamente dita, portanto, dissensual e criadora de sujeitos políticos, se deu por meio de outras pautas e práticas. Trataram-se das pautas ditas
“identitárias”, em especial os temas do feminismo e o combate ao machismo. A pesquisa documental também revelou a importância das pautas étnico-racial e LGBTT, mas, nas observações e entrevistas se destacaram muito mais as pautas relativas ao feminismo e relações de gênero. Entre as práticas mais fortes, destacou-se, primeiro, o auto-aprendizado coletivo de mulheres em reuniões auto-organizadas, que levou ao reconhecimento das opressões (em especial, de gênero) e seu combate, via o compartilhamento de experiências pessoais (a “sensorialidade”). Segundo, práticas de combate ao machismo interno, em especial por meio de conversas, orientações e intervenções, evitando a expulsão ou escracho público, tentando assim reeducar o machista. Tratam-se de pautas e práticas muito importantes, a considerar a origem social e econômica da maioria das militantes destes coletivos: o combate ao machismo e o aprendizado da valorização de si como mulher são importantes recursos na luta pela permanência na universidade.
Neste rol, deve se incluir a importante formação política incidental propiciada pela participação em ações coletivas, em especial durante a ocupação da universidade no segundo semestre de 2016. As pautas identitárias e a imersão na ação coletiva foram os elementos que mais inspiraram militantes e ativistas, em suas entrevistas, a relatarem sobre a re-construção de suas “identidades” e a transformação de si, em especial no campo da orientação sexual, mas também na identidade étnico-racial e, enfim, na expressão de si como “militante” ou como alguém que, em qualquer espaço de atuação, deseja se engajar na organização da luta coletiva.
Os demais coletivos, Emancipa, Maracatu e ABU, também registraram importantes práticas formativas e impactos nas trajetórias dos sujeitos. Em todos eles, o coletivo foi considerado como muito importante para atribuir sentidos novos e positivos à vida acadêmica e, principalmente no Maracatu e ABU, para a permanência na universidade. No cursinho popular do Emancipa, também se destacou a formação de docentes. No Maracatu, a reconstrução da
identidade cultural. Na ABU, a manutenção de uma identidade religiosa evangélica e sua conciliação com a cultura acadêmica.
Outros elementos organizacionais e formativos também se destacaram em todos os coletivos pesquisados. Primeiro, foi fundamental a atuação das mulheres estudantes: elas eram cerca de metade dos membros da ABU e a maioria nos demais coletivos. Segundo, a valorização da participação de todos os sujeitos, bem como tendências à horizontalidade e à autonomia do coletivo. Terceiro, a penetração de pautas identitárias, em especial daquelas ligadas a gênero, mas também à raça e orientação sexual, inclusive na ABU. Esses três elementos foram os que geraram os principais pontos de tensão e conflito entre os núcleos locais e as redes nacionais das quais faziam parte, ou, no caso do Maracatu, entre o núcleo e as tradições da cultura popular, ou ainda, no caso do Emancipa, entre a coordenação e parte do corpo discente e uma voluntária do cursinho.
Para compreender o impacto destas práticas educativas na formação dos sujeitos e em suas trajetórias, a noção de subjetivação política proposta por Rancière teve importante função heurística. Aprendemos que, para Rancière, subjetivação política se trata de um conceito filosófico, não de um conceito operacional para pesquisas sociológicas.1 Ou seja, a noção de subjetivação política, ao ser cotejada com dados empíricos que falam da formação política nos coletivos juvenis, deve servir como provocação, inspiração e criação, não como categoria sociológica a encaixar dados e fatos. Algo semelhante ao que já fizemos com as noções de educação não-formal e informal.
Por sua vez, os temas da socialização e socialização política já são bastante consolidados no campo da sociologia da educação. Lúcia Rabello de Castro (2009) nos trouxe uma importante
1 Agradecemos a Paulo Fernandes Silveira, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e especialista em Rancière, por nos fazer este alerta. Também à Marília Spósito, professora da mesma Faculdade, que orientou a proceder com cuidado no deslocamento de conceitos filosóficos para a pesquisa sociológica da educação.
provocação que, se nos levou ao encontro de Rancière, também nos serviu para fazer interrogações radicais sobre como pensávamos se dar os processos de formação política. Castro (2009) nos levou a desconfiar da ênfase que a noção de socialização política dá à formação pregressa e “inconsciente”, abrindo espaço para considerar melhor a importância da auto-formação política no presente e consciente.
A proposição de Castro fez muito sentido, principalmente, para analisar o auge do ciclo de protestos juvenis, em especial durante o movimento das ocupações estudantis, que atingiu a universidade investigada em outubro de 2016. A ocupação, graças principalmente à atuação destacada de estudantes independentes, mostrou o quanto era arrazoado valorizar a auto-formação política durante o próprio processo de ação coletiva.
Contudo, o momento do esvaziamento do micro-espaço público ajudou a relativizar esta leitura, mostrando que o processo de socialização política influía na maneira como estudantes continuavam ou não a atuar politicamente, assim como nas suas relações com os coletivos. Essa constatação serviu para buscarmos um entendimento mais plural sobre a relação entre a subjetivação política e a socialização política, entre o que parece ser um momento imprevisto na trajetória dos sujeitos ou uma experiência contingente (a subjetivação política) e o que parece ser um processo mais longo, acumulativo e previsível (a socialização política). Esta abertura permitiu certa compreensão do que, passado o momento do dissenso, é feito com aquela experiência ímpar, com a subjetivação política.
Na verdade, outros conceitos mais próximos do campo da socialização e da socialização política se mostraram úteis para compreender o processo no contexto “pós-política”, para entender o que pessoas e organizações fizeram com a experiência contingente vivida por seus sujeitos, bem como essa experiência afetou as trajetórias de vida. Tratam-se de conceitos como capital cultural, capital militante e trajetórias militantes, afora uma noção mais plural de socialização. Esses conceitos foram aplicados para
tentar compreender como a ausência de organizações ou a fraqueza delas dificultou o acolhimento da experiência ímpar, da vivência da subjetivação política (assim como das dores e angústias) da ação coletiva. Vimos como as organizações privilegiaram ou, dadas as suas próprias limitações, só conseguiram acolher militantes com maior envolvimento e papéis de liderança ou, seja, com mais capitais (militante, cultural e mesmo econômico). Deste modo, flagramos como a dinâmica política revelou a limitação daqueles coletivos juvenis que foram estimulados por suas redes e organizações, justamente, para fazer o “movimento estudantil” representar mais e melhor os novos contingentes de estudantes, compostos cada vez mais por mulheres e que chegaram às instituições superiores públicas via cotas.
Apesar disso, entretanto, os dados e os relatos demonstram a importância da experiência em si mesma da militância e do ativismo. Vários relatos falam da transformação de si pela participação no coletivo, como a maioria das entrevistadas dos coletivos políticos, além de Daiane no Emancipa e Israel no Maracatu. Ao longo de 2019, enquanto escrevíamos este livro, aqueles sujeitos políticos que se formaram pelos coletivos e ações políticas foram fonte para as mobilizações em maio de 2019. Sustentaram, ainda, a animação em junho por eleições ao CONUNE e ao DCE.
Vimos as mulheres, principais sujeitos políticos deste ciclo, atuando novamente e ressignificando suas experiências pregressas. Em maio, Irma subiu no palanque e fez mais um dos seus marcantes discursos. Ao seu lado, Luana. Elas, que se afastaram da militância ou desejavam se afastar, ainda assim, voltaram a atuar politicamente. Redesenhou-se o micro-espaço público, sempre precário e instável. Mas sempre possível, desde que os sujeitos políticos estejam lá, ou se construam.
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