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Prefácio
O trabalho de Mercedes Baptista marca uma guinada na dança afro-brasileira ao imprimir-lhe uma nova consciência de suas origens, uma linha de pesquisa e uma dimensão criativa própria. Assim possibilitou-lhe sair dos moldes da simples reprodução e repetição do folclore. A vida e a postura profissional dessa coreógrafa pioneira ajudaram a constituir essa nova postura na dança afro-brasileira. A trajetória pessoal de Mercedes é inseparável de sua atuação como bailarina e coreógrafa.
A pesquisa de Paulo Melgaço nos traz, com cuidadosa sensibilidade, uma narrativa sobre a construção da identidade negra na dança brasileira a partir da vida e obra de Mercedes. Para nós é uma honra participar da merecida homenagem a Mercedes que é a publicação desse trabalho. Amigo e companheiro desde as primeiras fases de sua carreira, Abdias Nascimento testemunhou como ninguém a dignidade pessoal de Mercedes e o conteúdo performático de sua produção. A escritora e pesquisadora Elisa Larkin Nascimento tornou-se admiradora de Mercedes a partir de 1978, quando chegou com Abdias ao Rio de Janeiro e assistiu nas ruas de Copacabana um ensaio aberto inesquecível. Assim, este prefácio traz a saudação carinhosa de duas pessoas que, além de apreciar e respeitar sua obra, conhecem a fundo essa personalidade que hoje é um patrimônio da cultura brasileira.
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Como todos os fenômenos da cultura negra - aliás, como toda a produção artística humana - a nova dança afro-brasileira se desenvolveu no âmbito da vida social de sua coletividade. Para Mercedes Baptista, uma mulher negra que ousou almejar e galgar espaços novos numa sociedade discriminatória, esse fato significou a necessidade constante de superar obstáculos. Mas além de ousada, Mercedes se revelou corajosa. Enfrentava tais obstáculos, os superava e ia muito além: diferente de algumas artistas negras da época, ela nunca negou a existência dessas barreiras na tentativa de legitimar-se junto à elite, ganhando sua aceitação e seu louvor. A trajetória de Mercedes se confunde com a luta dos negros brasileiros contra a discriminação.
Talvez a melhor expressão desse fato esteja na sua colaboração com a coreógrafa Katherine Dunham. Além de realizar trabalho artístico e cultural importante no Brasil, a coreógrafa afro norte americana
foi alvo de um incidente de discriminação cuja repercussão ajudou a ampliar a denúncia do racismo brasileiro.
Quando o Brasil escrevia sua nova Carta Magna em 1946, o Teatro Experimental do Negro - TEN - organizou a Convenção Nacional do Negro Brasileiro, que reuniu no Rio de Janeiro e São Paulo centenas de militantes provindos de vários estados. A Convenção encaminhou à Assembléia Constituinte um projeto de inclusão na nova Constituição de medidas e dispositivos anti-discriminatórios.
Para justificar sua recusa da proposta, os parlamentares alegaram uma suposta falta de “casos concretos”, como se a discriminação racial não existisse no Brasil. O TEN se dedicou, então, à missão de tornar visível essa prática. No ano seguinte, quando a antropóloga negra Irene Diggs foi barrada no Hotel Serrador do Rio de Janeiro, o TEN mobilizou a imprensa denunciando o incidente. Pouco tempo depois, o Hotel Esplanada de São Paulo recusou lugar a Katherine Dunham, e novamente o TEN agitou a imprensa. Diante desses fatos, alguns parlamentares ocuparam a tribuna com discursos anti-racistas, e um pouco mais tarde o deputado Afonso Arinos apresentou seu projeto de lei que definia como contravenção penal algumas formas de discriminação racial. Na apresentação do projeto de lei, ele citava o caso Dunham como um dos fatores que o motivou a fazer a proposta. Mas os políticos que tanto protestaram contra os “casos concretos” de racismo não tardaram em denunciar o perigo apresentado pela existência das entidades negras que os trouxeram a público (leia-se o TEN). O então deputado Gilberto Freyre declarou que estariam sendo criados “dois racismos no Brasil”.
Mercedes Baptista era então uma jovem bailarina, primeira mulher negra a passar no exigente concurso e fazer parte do corpo de baile do Theatro Municipal. Sentia na pele a discriminação que a afastava dos palcos. Não perdeu a oportunidade de se solidarizar com o TEN, primeiro grupo teatral negro a pisar nos palcos do Theatro Municipal, e nesse contexto conheceu aquela que seria sua mestra. A companhia e escola de dança Katherine Dunham desenvolviam uma abordagem antropológica com o objetivo de aprofundar o conhecimento das matrizes culturais não ocidentais com o objetivo de aperfeiçoar o conteúdo de uma dança contemporânea criativa informada por essas matrizes. Em particular, Dunham realçava a cultura religiosa de origem africana, especialmente o voudou do Haiti. A formação de Mercedes Baptista nessa escola certamente definiu os
rumos do trabalho que desenvolveria no Brasil, onde destacaria a matriz cultural das religiões afro-brasileiras. Assim, o legado das duas coreógrafas tem o sentido e o saldo positivo de valorizar a cultura de matriz africana nas Américas.
Essa abordagem de Katherine Dunham coincidia em cheio com a proposta e o propósito do Teatro Experimental do Negro. No TEN, Mercedes Baptista participou dos ensaios da peça Os Negros, de Lima Barreto. Destacou-se ainda na dança e na coreografia de dois espetáculos: a peça Aruanda, de Joaquim Ribeiro, e a Rapsódia Negra de Abdias Nascimento. Este último foi uma espécie de tablóide de quadros e cenas da cultura negra nas Américas, num estilo próximo do teatro de revista, preservando-se a alta qualidade artística de cada um dos números. O TEN tinha aversão à exploração de temáticas eróticas de baixo nível, a chanchada, que diminuía o valor artístico dos espetáculos e desrespeitava o valor humano das artistas, especialmente as negras. Mercedes Baptista seguiria firme nessa direção, sempre atenta para a dignidade humana de seus artistas e de suas artistas. Manteve uma postura de respeito e valorização da mulher negra desde os tempos em que, bem jovem, foi coroada Rainha das Mulatas em um dos concursos do TEN destinados a exaltar a beldade e as qualidades das afro-brasileiras. Mas, assim como os concursos do TEN, Mercedes não conseguia escapar das atitudes que prevaleciam numa sociedade preconceituosa, de acordo com as quais a mulher negra artista seria sempre sujeita às suposições e pré-julgamentos negativos sobre o seu caráter moral. Vale destacar como uma de suas melhores qualidades a firmeza e a integridade com que Mercedes Baptista construía, na sua atuação como artista e líder de sua classe, um exemplo digno e capaz de desmentir e combater tais preconceitos.
Rio de Janeiro, julho de 2007 Elisa Larkin Nascimento Abdias Nascimento