v. 01 - ano 01
ENSAIOS | POESIA | ARTES VISUAIS | ENTREVISTAS
CAPA
O VÍRUS OLHA DENTRO DE NÓS O EXÍLIO DE NÓS MESMOS A ARTE NAS EPIDEMIAS ENTREVISTA COM MARCELO LABES MARCOS TEDESCHI MELANCOLIA EM LARS VON TRIER MATHEUS GUMÉNIN BARRETO NICK CAVE PROFETA E VIDENTE LOVECRAFT AFA VASQUEZ ENTREVISTA COM ALINE BEI ANÁLISE DA OBRA DE PIETER BRUEGEL
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Trecho da música “Brasileiro” de Objeto Amarelo
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Lucas Schlemper Editor
EXPEDIENTE Conselho Editorial: Lucas Schlemper / Mariana Roveda Diretor de Redação e Editor: Lucas Schlemper Diretora de Arte e Projeto Gráfico: Mariana Roveda Revisora: Lorena da Mata Revista CRUA / Capa: Marcos Tedeschi Periodicidade: 2 volumes anuais Volume: 01 / ano 01 - Outubro de 2020 contato.revistacrua@gmail.com Av. Diamante, 2080 - Bombinhas/SC
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P Õ
ES IC AÇ
Esta revista é dedicada a todos os descontentes, aos eternos insatisfeitos, aos sempre-em-movimento e a todos que diariamente desafiam as empáfias do senso comum - quer sejam soberanos ou escravos de suas próprias angústias. E também aos famintos e aos sedentos, aos rebeldes irremediáveis (com causas ou sem), aos inconsoláveis, aos provocadores, aos descontentes, aos párias sociais e as ovelhas negras.
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Crua como um renascer. E recompor-se por conta própria de uma queda brusca. Crua como as cascas das feridas. Como o cinza das cicatrizes. Como o ranger dos ossos. Como a dura consciência de uma fragilidade constitutiva. Como um deparar-se sem ensaio com a mais bruta realidade. A arguta constatação dos cativeiros. Crua como uma elucidativa e necessária desilusão. Comparar-se à melhor versão de si e já de antemão perder a disputa. Como o gosto de uma vingança tardia e friamente articulada. Como encontrar a melhor parte de si esquecida em um dos cantos. Crua como a crueldade inocente das crianças. A veemência de uma mãe-leoa que mata e morre por sua cria. O veredito final de um juízo cego sem possibilidade de qualquer recurso. Crua como uma nodosa raiz. O estampido súbito de uma semente outrora seca. O romper de um vácuo para a vida. Crua como passar a existir.
PUB
Crua como uma praga desconhecida. Como a impossibilidade de uma cura. Como ausência de fórmulas prontas. Crua como um despreparo. Um parto de risco. Uma cirurgia sem qualquer anestesia. Um baque seco na boca da alma. E um sacolejar de órgãos internos. Crua como um desejo desesperado. Um clamor surdo de piedade. Mãos que alçam o inalcançável. Como um último respaldo. Um precipitar-se à beira do abismo. Agarrar-se a um único fio de esperança.
NI S TO
A
como uma verdade nua. Como uma matéria-prima sem preparo prévio. Como barro virgem de qualquer toque humano. Como tinta primordial, como pedra bruta. Como uma página vazia. Crua como uma ferida aberta. Como um talho fundo em carne-viva. Como postas sangrentas no açougue. Como músculos e nervos à vista de todos. Crua como a ingratidão de um amigo íntimo. Como as promessas quebradas dos amantes. Como a aspereza viva de uma verdade sem disfarces. Como única certeza atroz entre todas as outras. Crua como um ato falho que derruba o discurso. Como uma linguagem violentada pelas circunstâncias. Uma ciranda de tolos. Uma cama de espadas. Crua como um álibi derrubado. Um ato doloso. Um criminoso reincidente. Um falso testemunho contradito.
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CRUA
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O VÍRUS OLHA DENTRO DE NÓS
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O EXÍLIO DE NÓS MESMOS
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Ensaio / Bernardo G.B Nogueira
Ensaio / Rômulo Moreira
A ARTE NAS EPIDEMIAS Ensaio / Marcio Markendorf e Renata de Felippe
MARCELO LABES
Entrevista com o escritor
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MARCOS TEDESCHI
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MELANCOLIA EM LARS VON TRIER
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MATHEUS GUMÉNIN BARRETO
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Obras do artista visual
Ensaio / Paulo Ferrazere Filho
Poemas
NICK CAVE PROFETA E VIDENTE
Ensaio / Yasmin Bidim
LOVECRAFT
Ensaio / Lúcio Reis Filho
94
Série Solidão Programada
108
Entrevista com a escritora
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Provérbios Neerlandeses de Pieter Bruegel
AFA VASQUEZ
ALINE BEI
ANÁLISE DA OBRA
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O VÍRUS OLHA DENTRO DE NÓS Por Bernardo G. B. Nogueira
Texto publicado originalmente no livro Pandemias e Pandemônios no Brasil Instituto Defesa da Classe Trabalhadora
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Ao contrário. Só há o tempo. Leve e pesado feito uma placa de metal invisível sob nossos ombros. Só resta o que vem. Na exata dimensão da alteridade. Isso que nos move e ao mesmo tempo escapa aos nossos ouvidos tão determinados a ouvir a razão. Não há nada que possamos fazer. Com nossas agendas, todas elas agora deslocadas. Nossa tão amorosa propriedade do outro. Nossa carência alimentada pelo consumo que nos deixa mais obesos e menos astrais. Nossa forma tão careta, tão covarde de dizer do amor como se isso fosse algo menos que jazz e tropicalismo. É o fim do binarismo moderno. Da era moderna que inventou fronteiras mil e se esqueceu que as cores quando tocam o céu derretem em faces inauditas. O vírus te olha por dentro, e não respeita divisas. Assola um terreno desconhecido porque esquecido. Se esgueira pelo inconsciente e traz o medo! Ele se mostra escondido no corpo. Violenta-o. E é necessário mais para ver que ele denuncia a própria violência muda, límpida, do soberano, que é besta, que precisa normalizar, que dita regras, que impede o gozo, que teme o gozo. Doentes, embotamos o gozo em palavras claras, regras de escrever, regras de viver, transitamos pelo outro com uma cartilha prescrita por uma fórmula científica. E é o phármakon, ciência por demais, mata, ciência de menos, resulta no mesmo fato. O vírus torna clara a violência objetiva, que permite a ordem, que atua como ordem; ela, como podemos ver já em [Bertolt] Brecht, mas mais claramente em [Slavoj] Žižek, nos mostra que
a manutenção da ordem é exatamente o ponto a ser revolvido. Não. The end. Não há saída nessa fórmula, o vírus agora inverteu a ordem teórica e a violência objetiva, essa força invisível que controla sem se mostrar, ela, agora, também está à vista. O vírus invisível é preciso mostrar as entranhas que invade, onde habita de maneira nada sorrateira; avisa, quase como Gitã de Raul Seixas, que ele é quem traz a face que talvez estivesse a querer se esconder ou, o que é mais comum, escamotear. Como num rap cantado por Renan Inquérito que ouvi em uma aula de Boaventura de Sousa Santos, os monstros que nos habitam precisam ser postos em perspectiva para que possamos vê-los vir:
Nós ‘tamo’ dentro dos monstros e eles, dentro da gente, somos problema e solução simultaneamente, o monstro parece grande, de perto é ainda maior, mas quando a gente se afasta, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, enorme […].
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O vírus é um vilão que captura a força ao mesmo tempo que põe abaixo a imaginação, a vida. A torrente que nos move é emperrada quando o vírus se impõe e como uma metáfora do momento presente, quedamos em face dele, vitimados, corremos para a salvação: deus, o capital, a cura, o phármakon que não vem. O vírus é a face do capitalismo que vive da doença criada, que serpenteia silencioso, e faz com que qualquer chance de alteridade seja computada como mais uma fórmula que logo será precificada e colocada na rede do consumo. E a rede, outra metáfora, nos entretece, pondo véus em nossa face humana: consumimos para nos salvar do vírus, que é, em seu outro lado, aquilo que nos faz consumir. Doentes, procuramos a cura! E ela custa caro, sobretudo, pois sabemos apenas pensar em sair dessa com a fórmula do fim da história. Qual democracia nos salvará? Senão, esse arremedo movido pelo próximo tratado de direito internacional, que vale tanto quanto oferecer banquete a quem já perdeu os sentidos pela dureza diária da existência. É o fim, baby! Nada de promessas anunciadas em declarações. O fim saboreia nossa ânsia. E nós, os modernos e sabedores, tão hierárquicos, tão digitais, modernos e medicados, saboreamos o ar do rumo perdido. Se achas que isso é uma elegia, enganas! Restam kantismos e contratualistas pelo caminho. Veja o pergaminho de [Jean-Jacques] Rousseau rasurado por [Giorgio] Agamben – não há contrato social, esse documento restou escrito em peles negras, corpos subjugados – pela nudez dos corpos, o vírus manifesta sua verdade que não tem nada de invisível. Cantam aos ventos os que anunciam uma ausência de distinção de classes por parte do vírus. Ora, ora, senhoras e senhores da sala de jantar, o anverso do vírus é a clareza com que ele evidencia as entranhas invisíveis da sociedade patriarcal, colonial e capitalista do Brasil.
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Haverá esperança, não para nós! N dernos, não nos salvaremos. Hey foi parar sua fantasia? A separaç ao saber, dita por Descartes, nã que nas migalhas, das migalhas, ços, nos restos, por vezes esqu vez haja a réstia de vida. Uma ser inventada, diria até, embria um poema, feito um ensaio, que só, ensinam que o conhecimento transformar e transportar e tran pois, aquilo que sabe, se sabe, suas mãos, o outro, esse que ago plicas ante a devastação. Há que limite da razão, ela é a própria lim
Nós, os moy you. Onde ção que visa ão percebe , nos pedauecidos, talque carece agada, feito e de um jato o nasce para nsconhecer, requer em ora lança sútranspor o mitação.
apenas o cego evidencia a nossa prisão. Estamos aprisionados na necessidade de ver tudo, claro, límpido, mas, de outro lado, lembra-nos o cego: o olho serve antes de tudo para chorar; a razão ensina a ver, dividir, hierarquizar. Acreditar em Sócrates nunca foi tão perigoso, pois, quando cegos, doentes, acometidos pelo vírus, tateamos em busca de luz, outra vez esquecemos os sentidos outros. Logo, não é mais possível, the end camarada, essa lanterna não mostra a trilha. Onde foi parar sua vontade de ir ao Nepal guiado pelo magic bus? Você que acerta tanto, que é moral e que até sabe do imperativo categórico: quanto de suas páginas, de nossas páginas criam vida? Mais um relatório preenchido e outra cegueira é legitimada. Não lidamos bem com nossos corpos, que enchemos de produtos fáceis só para não lidar com a explosão. Negamos o sol. Negligenciamos as estações. E a arquitetura da alma restou enclausurada em iluminismos tão claros quanto a cegueira de [José] Saramago. Nos armadilhamos de coisas para não olhar a liberdade de frente, e o que nos forma, se perde, o poema.
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Agora, hey you, ela bate à porta, sai correndo e te obriga a lidar: presos, nunca estivemos tão livres. Mas e agora? O agora é recheado de hipóteses, e como não cuidamos de nós, sentimos que a corrida chega ao fim e, evidente, não há recompensa, senão cansaço e uma gota de esperança, talvez. Não podemos mais estudar sem sentir. Não dá mais para alimentar plataformas e não saber o que fazer com o que produzimos. Não podemos mais não abraçar. Não conseguiremos sem nos socorrermos às UTI’s emocionais. Agora, temos remédios tão perigosos como salvadores – amargos, dizem que a cura vem. Só um espaço para a próxima dose. Mas não podemos sair para comprar. Aliás, comprar pra quê se não podemos mais exibir.
Exibir!�Exibir!� Esse�ato�que�revelou��a�duras� penas�como�estamos�sem�nada� a�dizer,�senão,�cifras�que�nos� distanciam,�que�servem�para� alimentar�uma�onda�sem�graça� que�é�a�não�divisão,�que�é�a�mãe� da�nossa�decadência,�nossa� indolente�forma��de�ver�o� rosto�do�outro. 14
É o fim. Nada de magic bus. Tudo está explicado. Tudo está catalogado. Dez formas disso, dez daquilo, e porque não seriam nove ou oito, ou coito. É o fim, essas fórmulas deram tão certo como sair às ruas hoje. A morte de um paradigma dói. Sobretudo para quem se serve dele para surfar na posição de hierarquia superior ante os demais. São poucos. Eles estão expostos agora. Tem que ser o fim, sob pena, de não vermos o invisível mais uma vez, ele está a avisar: o paradigma moderno acabou e ele deu errado, o capitalismo, o patriarcalismo, o machismo, o racismo, eles todos filhos do mesmo tom, devem deixar seus postos. Invisível, o vírus mostra: os animais não humanos não são afetados. Veja, isso não é possível não ser visto! Ou vemos agora, ou nos entregamos. Isso é tão apocalíptico quanto fugaz, nem é nada. É só o fim, saibamos vê-lo vir, ele não refugará.Talvez o vírus mostre as nossas entranhas. Talvez esse vírus, ao matar, mostre o monstro em nós, esse que calamos ao calar a poesia, que vem na face exposta, espoliada, esquecida, nua, medicada, normalizada do Outro. Talvez eu precisasse retomar um pouco duas questões. Duas que se misturam e formam esse mar. E a primeira questão é sobre poesia. Heidegger, em um texto no qual comentava um poema de [Friedrich] Hölderlin, lá pelas tantas traz o seguinte verso: poeticamente o homem habita.
parece que ante o tempo que vivemos, com o fim apocalítico de um mundo moderno, fundado em dimensões liberais e lastreado pelo capital, talvez pareça que nada de poético há. Porém, a leitura heideggeriana nos ensina o inverso disso. Ora, a chance de falarmos que não vivemos poeticamente é dada exatamente pelo fato de que antes, ou seja, naquilo que nos constitui, somos poesia. Acho isso bem interessante. Logo, vive-se sem poesia pela simples percepção de que nosso estado seria poético. Escute o Chico César te contar disso. Algo como dizer que vivemos sem amor ou amando de jeito errado, seria apenas a confirmação de que há amor. E essa percepção carreia também a ideia de que o estado de direito só existe para confirmar a exceção em que vivem muitos. Penso em [Walter] Benjamin e [Giorgio] Agamben agora.
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Por isso, quando queremos transpor as amarras modernas e conceituais, um pleonasmo, reconheço, estamos a afirmar que o que diz do humano é infinito e diversidade. A ideia de querer encerrar a existência em um modus binário nos mostra o seu inverso: somos diversos. Mas no poder, como já cantava o Belchior, reside a diminuição do amor. Talvez aí uma boa prosa. Então, esse seria o primeiro ponto: só somos maus ou bons amantes, ou sem amor, pois nossa constituição é amor. O segundo ponto, o do cego, mire: um acontecimento precisa revelar nossa cegueira, ou seja, se algo acontece como um evento, como um acontecimento que irrompe e desconstrói a previsão, isso precisamente necessita não possuir um horizonte de vinda, quer dizer, não podemos ver para que algo possa ocorrer – só o impossível acontece nessa medida. E esse impossível, como tudo que vem, o Outro, a ideia do comunismo, tudo isso que aguarda uma subjetividade para se inserir na história, isso requer um desconhecimento. Veja, estou a dizer, sem a arrogância socrática, é preciso não saber para saber. Isso indica uma hospitalidade, isso indica até uma certa maneira humilde de se portar; e a humildade, untada de poesia e diversidade, talvez nos liberte desse aprisionamento moderno e totalizante que tudo sabe e de tudo diz.
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Bernardo G. B. Nogueira é Doutor em Direito pela PUC/MG. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Milton Campos.
o cego, por certo, não possui a visão, que serve para medir, para calcular, para decidir, porém, o cego ainda chora. Assim, os olhos, vistos sob essa dimensão, indicam que aquilo que diz do humano não estaria encerrado em sua capacidade descrita por uma racionalidade inventada por uma Europa que se quer universal. A categoria da empatia vem do choro, pois, ali vemos rolar a lágrima sem chance de segurar a vinda do outro que traz amor, mas também e, por conseguinte, choro. O estrangeiro, o vírus, ao vir, abala nosso horizonte de apreensão. Não temos armas contra aquilo que não domamos. Daí que a ciência, a produção de saber, as relações humanas enfim, estejam todas elas, de ponta a ponta, permeadas pelo medo do Outro, daquilo que não podemos suportar e, portanto, matamos com nosso punhal conceitual. Não é assim que se declara amor eterno, querendo de uma só feita, aprisionar o Outro em nossa vã arrogância de querer saber do tempo? Dorian Gray que nos diga, além de mostrar como o medo da nossa falta, de nós mesmos, acaba por nos fazer ferir de morte aquela pessoa pela qual dizemos sentir amor – o medo, base do discurso racional, teme e lança para um abismo aquilo que ele não consegue capturar.
O pensamento moderno, não em vão, é um pensamento fundado em teses e antíteses, sempre o medo de perder o cedro, o trono, o timão, quer dizer, o poder como aquilo que mata para viver. Como amantes medrosos que dizem: amo mais que tudo, para que o Outro, agora emparedado por essa expressão, não se mova, e morra, vitimizado, por causa do amor. A medida da formação do estado nação, do direito, da propriedade, e, portanto, do patriarcado, dos machismos de toda ordem, vêm permeados de antemão pelo medo. Basta lembrarmos da muralha da China, monumento construído para frear mortes e, por causa desse medo, matam-se mais pessoas em sua construção do que se protegem vidas. Mia Couto nos diz que o medo é o mestre que mais o desensinou. Ele paralisa. A regra se funda no medo. Logo, dizer que há medida para o amor talvez seja um medo nosso de cada dia, ou de não sermos amados ou de amarmos de maneira errada. Esse paradigma deve ser afastado, não podemos mais nos guiarmos por algo assim; o evento, como disse, vem, ele assola nossas expectativas. Ele é assim porque é Outro. E se acaso quisermos dar conta disso, talvez quedemos mais tranquilos, com a agenda em dia. Mas, por certo, o abismo da previsão é tão inóspito que nos lança ao abismo da morte em vida. O gênero que diz do amor é só o gênero que vem, dada nossa condição infinita no finito, ou seja, se só o impossível acontece enquanto evento, o gênero que vem, o do amor, será obra do nosso próximo encontro. Não quero nem combinar para que ele ocorra. E talvez assim, pela invisibilidade do vírus, possamos nos guiar para adiante de nós, do eu cartesiano, do capitalismo individualista, da ordem econômica e fundada na morte (necrocapitalismo), para que a vida, após a morte, ainda seja possível; é preciso a morte, apenas porque da vida só nos resta inventar.
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Por Rômulo Moreira
Texto publicado originalmente no site cafefilosofico.com
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outono de 1987, o poeta e dissidente russo Joseph Brodsky, escreveu, em um espaço curtíssimo de tempo entre um e outro, dois discursos que foram reunidos em um pequeno livro, cujo título – “Sobre o Exílio” –, diz muito de nós mesmos, seja porque trata do exílio (especialmente a primeira conferência: “A condição chamada exílio”), seja porque foram escritos no exílio (ambos). O primeiro ensaio foi feito para ser lido numa palestra em Viena, na Fundação Wheatland, e o segundo foi o discurso que Brodsky pronunciou em Estocolmo, na Academia Sueca, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, naquele mesmo ano.
“A condição chamada exílio”, o primeiro texto do livro, é uma bela reflexão acerca da condição do escritor que se encontra longe de sua terra e, nada obstante se tratar de um texto aparentemente escrito desde aquele ponto de vista, é possível, no decorrer da leitura, vermo-nos ali sendo retratados, de uma maneira ou de outra, ainda que se trate de uma experiência muito pessoal pela qual passava o escritor. Na verdade, é preciso que se veja o “exílio” ali retratado como (também) uma categoria metafísica, conforme, aliás, consta da apresentação da obra. Brodsky, logo no início, observa que no século XX “o lugar-comum foi o desenraizamento e a inadequação”, comparando o escritor exilado com o refugiado político, ou mesmo com qualquer outro trabalhador migrante, identificando neles um traço comum: o fato de estarem sempre “fugindo do pior para o melhor, pois só é possível se exilar de uma tirania numa democracia.”
A atualidade desta afirmação vê-se com a tragédia que representa a crise de refugiados na Europa Ocidental, um drama humanitário vivido por centenas de milhares de seres humanos, oriundos principalmente da África e do Oriente Médio, que buscam desesperadamente (e muitos, em vão) chegar em um lugar seguro. Ora, diz ele, se por um lado isso é bom (sair de uma tirania para uma democracia, passando a gozar de uma relativa segurança física), por outro lado, e sob outro aspecto, este novo ambiente acaba por torná-lo “socialmente insignificante”, o que representa, no caso específico do escritor, um sofrimento absurdo, pois, como ele próprio admite (desde o seu lugar de fala), “a busca de significância, muitas vezes, constitui o resto da carreira de um escritor, exilado ou não, pois um escritor satisfeito com a insignificância, a indiferença e o anonimato é coisa tão rara de se ver quanto um papagaio no polo Norte.”
E, ao cabo, quem estaria mesmo satisfeito com a sua própria insignificância, a indiferença dos outros, ou mesmo o anonimato? Afinal, “é claro que um escritor sempre pensa em si em termos póstumos.” Por isso, em geral, a realidade do escritor exilado “consiste na luta e conspiração constante para recuperar sua significância, seu papel instigador, sua autoridade”, levando sempre em consideração, naturalmente, “o povo de sua terra de origem.” Brodsky, já àquela época, notava que havia “escritores demais por leitor, e que o público alinhava-se, estatisticamente, pela normalidade e pela mediocridade: hoje, alguém entra em uma livraria como em uma loja de discos, lotada de gravações de grupos e solistas que não daria para ouvir nem durante uma vida inteira.” Se esta observação era absolutamente pertinente já no final do século XX, hoje, passados vinte anos do século XXI, a realidade de outrora, bem constatada por Brodsky, ainda mais se tornou visível, e evidente está, certamente alimentada pela burrice e pela mediocridade que povoa o ambiente virtual e acadêmico. Brodsky também notou a extraordinária “capacidade da espécie humana de reverter e de retroceder, principalmente em sonhos e pensamentos – visto que neles geralmente estamos a salvo também –, qualquer que seja a realidade que estejamos enfrentando.” Afinal, o passado, “sendo agradável ou sombrio, sempre é um território seguro, quando menos porque já é conhecido.” E esta capacidade – que é só nossa – foi desenvolvida, menos para “acalentarmos ou recuperarmos o passado”, e mais “para adiarmos a chegada do presente”, ou seja, no fundo no fundo, o que queremos mesmo é “retardar a passagem do tempo”, como Fausto, de Goethe, que “se prende ao seu belo instante (ou não tão belo), não para o contemplar, mas para postergar o subsequente.” (Falando do tempo – e do passar do tempo… -, lembrei-me de Françoise que, ao responder à Srª. Octave, a tia de Marcel (o narrador), disse-lhe: “Meu tempo não é assim tão caro; quem fez o tempo não o vendeu para a gente.”). O escritor, exilado ou não, na verdade, “precisa contar ao seu leitor (que pensa conhecer tudo), algo que lhe seja qualitativamente novo sobre ele e sobre o mundo dele.”
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Brodsky considera que se havia “algo de bom no exílio era o fato de ensinar a humildade, lição suprema dessa virtude.” Em tempos de quarentena, de isolamento social e de lockdown, e considerando o exílio como uma categoria metafísica, eis uma lição para aprendermos. 20
Assim, “em certo sentido, todos nós trabalhamos para um dicionário, afinal a natureza é um dicionário, um compêndio de sentidos para este ou aquele homem, para esta ou aquela experiência.” E, na medida de suas possibilidades, “tendo oportunidade, temos que deixar de ser apenas os efeitos resultantes na grande cadeia causal das coisas e tentar agir nas causas”, sejamos ou não escritores, pois, “para cada um de nós se oferece uma única vida, e sabemos muito bem como isso tudo termina.” Em outras palavras: a contemporaneidade exige de todos (e de todas) uma atuação afirmativa no sentido de restabelecer a ordem das coisas, a democracia substancial, o vigor das liberdades públicas, a vergonha dos governantes, o respeito às pessoas, o bem- estar social e a dignidade da nação.
Lembremos, então, falando de contemporaneidade, da poesia de Osip Mandel’stam (“O século” ou “Época”), citada por Agambem: “Meu século, minha fera, quem poderá olhar-te dentro dos olhos, e soldar com o seu sangue as vértebras de dois séculos?” Disse Brodsky que “um homem libertado não é um homem livre, e a libertação é apenas o meio de alcançar a liberdade, mas não seu sinônimo.” Assim, “se quisermos desempenhar um papel maior, o papel de um homem livre, então deveríamos ser capazes de aceitar – ou pelo menos imitar – a maneira como um homem livre fracassa, e um homem livre, quando fracassa, não culpa ninguém.” Ao final deste primeiro discurso, Brodsky considera que se havia “algo de bom no exílio era o fato de ensinar a humildade, lição suprema dessa virtude.” Em tempos de quarentena, de isolamento social e de lockdown, e considerando o exílio como uma categoria metafísica (como referido acima), eis uma boa lição para aprendermos. No outro texto reunido, Brodsky, no início do seu pronunciamento na Academia Sueca, afirmou que “não é a conduta no pódio que dá a medida da nossa dignidade profissional.”
Eis um grande exemplo em tempos de vaidades imensas e de pavonadas ridículas! Aqui, ao receber o Prêmio Nobel, alertou para a importância da literatura em nossa vida, pois “um homem com bom gosto, especialmente literário, é menos suscetível aos encantos e amarras de qualquer versão da demagogia política.” Brodsky também teorizou acerca do sistema político – e o fez em várias outras vezes -, afirmando ser a “forma do passado que aspira a se impor sobre o presente (e, por vezes, sobre o futuro também); e o homem cuja profissão é a linguagem é o último que pode se dar ao luxo de se esquecer disso.” Ademais, “quanto mais substancial é a experiência estética de um indivíduo, mais sólido é seu gosto, mais afiado é seu foco moral, portanto, mais livre ele é, mesmo que não seja necessariamente mais feliz.” Sobre a função da leitura em geral, e do livro em especial, ele afirmou ter “a impressão de que um livro é mais confiável que um amigo ou um amante, pois um romance, ou um poema, não é um monólogo, é uma conversa deveras privada entre o escritor e o leitor, da qual se exclui todo o resto do mundo.” Eis porque “o romance ou o poema é o produto de uma solidão mútua – do autor ou do leitor, constituindo-se num meio de transporte pelo espaço da experiência, na velocidade do passar de uma página.” Sobre o poeta, e sobre o fazer um poema, disse ele “que escrever versos é um extraordinário acelerador da consciência, do pensamento, da compreensão do universo, e aquele que experimenta essa aceleração uma vez, não consegue mais abandonar a chance de repetir essa experiência, caindo numa dependência, como outros o fazem com drogas e álcool.” Para Brodsky “a pior da violações é a de não ler livros e por esse crime paga-se por toda a vida, e quando o violador é a nação, ela paga com sua história.” Rômulo Moreira é Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS.
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Texto* por Marcio Markendorf e Renata de Felippe Seleção de imagens por Mariana Roveda *Texto publicado originalmente com o título A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA DAS EPIDEMIAS
A ARTE NAS EPIDEMIAS “The water I taste is warm and salt, like the sea/ And comes from a country far away as health” Tulips, Sylvia Plath
King Plague II Anton Hansen
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Texto por Marcio Markendorf e Renata de Felippe *Texto originalmente publicado com o título “A imaginação literária das epidemias” Seleção de imagens por Mariana Roveda
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Afresco do século XIV inspirado nas histórias de São Nicolau de Tolentino retrata o cenário de quarentena e isolamento social durante um dos surtos da praga na Itália.
abitante de um país tão distante quanto a saúde – tal qual está expresso nos versos de Sylvia Plath – é a imagem que o doente tem de si mesmo, uma figura de separação e exílio produzida no pensamento por questões discursivas da cultura. A imaginação corrente em torno da doença faz a estrutura social disseminar, ao modo da replicação viral do contágio, sintomas de exclusão, preconceito e violência simbólica. A questão torna-se ainda mais emblemática quando as fronteiras biológicas dos indivíduos são violadas e o conjunto forma uma comunidade adoecida, a imagem da epidemia. Ao que parece, um cenário de enfermidade pode expressar a suspensão da moral e dos afetos, algo que prevê o instalar dos desafetos e o domínio do comportamento imoral/ amoral sobre o Outro. As epidemias, portanto, carregam consequências políticas e as metáforas epidêmicas que as circundam são estetizadas, fato que sugere a construção de uma poética epidêmica, ou ainda, de uma estética da catástrofe biológica. Como argumentaria a pensadora Susan Sontag em A imaginação da catástrofe, a origem e a popularidade dos relatos catastróficos repousariam tanto nos prazeres primitivos da humanidade, ao menos de sua porção ocidental, quanto nos espetáculos de destruição em massa. Os espectadores se satisfazem ao ver grandes centros urbanos serem engolidos por catástrofes naturais, eventos científicos ou tecnológicos – invasões alienígenas, acidentes nucleares, armas biológicas, convulsões da natureza. A ficção permite ao leitor/ espectador participar da fantasia de sobrevivência à própria morte, inclusive à aniquilação de cidades e à destruição da própria humanidade. É válido atribuir às narrativas a possibilidade de experiência vicária do desastre, sobretudo quando vivenciada em um ambiente controlado de ficção. Além disso, parece constituir um modo de o sujeito metropolitano libertar-se, ainda que pela experiência vicária, do funcionamento organizado da cidade grande e experimentar o caos. O paradoxo da catástrofe é, pois, bem evidente: o medo da ruptura sumária da ordem concorre com o desejo de desordem absoluta.
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No tocante à subjetividade, as alegorias apocalípticas implicadas em narrativas-catástrofe, gênero centrado no gozo estético da destruição, fazem parte da eterna ansiedade do ser humano em relação à morte e à finitude do corpo. Para alguns, em termos históricos, o trauma mundial sofrido com a aniquilação atômica de Hiroshima e Nagasaki intensificou imensamente semelhante mal estar psíquico, tornando-o quase insuportável, uma vez que cada sujeito não vive mais apenas sob a ameaça da morte individual, e sim com a possibilidade de uma extinção coletiva sem aviso prévio. Criando reverberações do sofrimento moral e da angústia concernente a eventos dessa dimensão, as narrativas da catástrofe priorizam eventos aleatórios e inesperados – de catástrofes naturais a epidemias. O ser humano sempre foi acometido por enfermidades, contudo, a vivência coletiva em agrupamentos nômades ou sedentários radicalizou os processos de transmissão. No clássico das ciências médicas Sobre os ares, as águas e os lugares, Hipócrates esboçava as primeiras distinções científicas – afastando-se das explicações mágicas – no que concerne à ocorrência de doenças, sua relação com o meio ambiente, o clima, a raça e o indivíduo. Às distinções iniciais de epidemia e endemia, foram acrescentadas, mais tarde, por outros estudiosos, as de surto e de pandemia. Essa e outras obras demonstram que a preocupação com a disseminação de doenças – e com significativos contingentes humanos sendo varridos do mapa por moléstias – não é uma fantasia contemporânea, mas traço recorrente na história das civilizações, atualizado constantemente no imaginário coletivo. Se a preocupação com doenças e a representação de epidemias na ficção não é uma novidade em si – uma vez que abundam relatos a esse respeito da Antiguidade Clássica aos nossos dias – é imperativo sublinhar que, nas últimas décadas, a expressão fatual e artística desses agentes foi radicalizada pelo uso das câmeras fotográficas e de vídeo, assim como pela superfície da internet e suas redes sociais.
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Nesta impressiona Influenciada pelos Pieter Bruegel ret e horror causadas esqueletos que in subjugar o mundo
The Triumph of Death with The Dance of Death Pieter Bruegel
ante pintura a óleo s surtos de Peste Negra, tratou cenas de destruição s por um enorme exército de nvestem sobre a Terra para o dos vivos.
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Falling Buffalos David Wojnarowicz
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Uma das obras mais conhecidas de David Wojnarowicz’s e talvez uma das mais impactantes respostas artísticas à AIDS nos anos 1980. Nesta foto-montagem vê-se um rebanho de búfalos despencando de um penhasco rumo à morte. A queda dos búfalos evoca sentimentos de maldição e desesperança, tornando a obra extremamente poderosa e provocativa. Realizada na ocasião em que o artista tomou ciência do diagnóstico positivo para AIDS, Wojnarowicz estabelece um paralelo entre a crise de AIDS e o abate em massa de búfalos no século 19 na América.
Em termos históricos, transmitir notícias de calamidades ocorridas em outros países, até mesmo em tempo real, é um fenômeno relativamente novo. Esta experiência do espectador moderno tornou-se possível graças ao surgimento dos jornalistas e ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Não significa que o sensacionalismo catastrófico frente às epidemias seja algo exclusivo do século XXI ou do anterior. É preciso notar que, em vista da rapidez na difusão de informação, da ampla cobertura das notcias e do alcance de público, os mass media são capazes de estimular a histeria coletiva frente a um quadro epidêmico, verídico ou fictício, sobretudo quando ganha impulso com impressionismos ou invencionices irresponsavelmente propagados. Não surpreende que, ainda hoje, para uma boa parcela da população, as epidemias sejam um vetor para ruptura do delicado equilíbrio social, entendimento assimilado ou mesmo potencializado por posições alarmistas dos meios de comunicação. Por outro lado, a própria Organização Mundial de Saúde reconhece que vírus, bactérias e parasitas, de longe, constituem a principal causa de mortalidade humana, sobretudo em países de baixa renda. Registradas há milênios, as maiores crises deflagradas sobre as quais temos notícias foram ocasionadas pelas pestes bubônicas e pneumônicas: a Peste de Atenas, a Peste de Siracusa, a Peste Antonina, a Peste do século III, a Peste Justiniana e a Peste Negra do século XIV. Não podem ficar de fora dessa listagem as epidemias que atingiram escala mundial, como as oito grandes pandemias de Cólera que assolaram o mundo entre os séculos XIX e XX, a grave Gripe Espanhola de 1918, a febre tifoide ou tifo cujas epidemias mortíferas iniciaram-se no século V a.C. e se estenderam até a Segunda Guerra Mundial, o terror sexual gerado pela AIDS nos anos 1980 e em vigor até hoje, as variedades da Influenza A – H5N1 (popularmente conhecida como gripe aviária) e H1N1 (reconhecida como gripe suína) na primeira década dos anos 2000 e, muito recentemente, o pânico gerado pelo quadro clínico do zika vírus ou mesmo pelo novo coronavírus, o Sars-CoV-2.
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Aguçando a imaginação de inúmeros pintores, sobretudo no período Renascentista, tragédias como as citadas originaram obras visuais que certamente auxiliaram na construção do imaginário da enfermidade destrutiva. A ampla iconografia alegórica da morte, agrupada em um gênero artístico próprio, Dança Macabra ou Triunfo da Morte, e produzida sob o impacto da peste durante a Idade Média, procurava demonstrar o caráter democrático da finitude humana. Dessa seara merecem destaque obras como o afresco O triunfo da morte (1355), de Buonamico Buffalmacco, e as telas O triunfo da morte (1562), de Pieter Bruegel, A peste em Ashdod (1630), de Nicolas Poussin, A peste em Atenas (1652-1654), do pintor Michael Sweerts, A peste em Nápoles (1656), de Domenico Gargiulo. De intenções de representação distintas, mas não se restringindo a esses exemplos, destacamos o espaço privado e familiar presente em Criança Enferma, tela composta em 1660 por Gabriel Mitsu; Difteria, obra de Francisco Goya, de 1812; Criança Convalescente, de Luigi Nono, trabalho datado de 1889; Ciência e Caridade e Mãe com Criança Enferma, obras de Pablo Picasso, respectivamente de 1897 e 1903.
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Em “A Praga”, o pintor simbolista Arnold Böcklin [1827 – 1901] representou a Morte montada sobre uma criatura alada que sobrevoa uma cidade medieval propagando o caos e o horror. Plague Arnold Böcklin
Em “A tentação de Santo Antônio” é possível ver os sintomas da praga no corpo do homem no canto inferior esquerdo da imagem.
The Temptation of Saint Anthony Mathias Grünewald
O interesse em retratar o corpo humano – e expor sua fragilidade – encontrou sua primeira vertente nessas obras visuais que rememoravam as grandes epidemias. Semelhante curiosidade permitiu a Rembrandt, em 1632, elaborar a célebre Lição de Anatomia do Dr. Nicolas Tulp, tela na qual se vê a imagem de um corpo sendo dissecado. A dessacralização do corpo pela ciência, aliás, em sua procura por separar matéria e espírito, quando não anular o segundo, adentra as artes visuais de modo definitivo. A partir daí torna-se recorrente retratar cirurgias e operações, seres mutilados e, não raro, ferramentas bizarras, a exemplo dos quadros: Lição de Anatomia do Dr. Willem van der Meer em Delf, de Pieter van Mierevelt, 1617; Lição de anatomia do Dr. Joan Deyman, de Rembrandt, 1656; Clínica Gross, Thomas Eakins, 1875; A Operação, de Henri Gervex, 1887; A clínica Agnew, Thomas Eakins, 1889; A operação de Theodor Billroth, Adelbert Seligmann, 1890; Primeira Operação com Anestesia pelo Éter, de Robert C. Hincley, 1893; Primeiro Transplante de Órgão Bem-sucedido, de Joel Babb, 1996.
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Passando das artes plásticas para a literatura, é possível perceber que as epidemias permanecem uma forma de terror tão poderosa quanto à ideia de embate bélico. Não é à toa que, destacado por Susan Sontag em AIDS e suas metáforas, a descrição de patologias e a referência ao tratamento de doenças utilize, muitas vezes, vocábulos ligados à terminologia militar: invasão, colonização, intervenção cirúrgica, rastreamento, combate, etc. Epopeias, relatos de viagem, tratados filosóficos, romances e inúmeras outras formas de escrita evidenciam a presença constante do inimigo da saúde sempre à espreita. Um primeiro exemplo é História da guerra do Peloponeso em que Tucídides, historiador e general grego, relata a maior guerra que teria ocorrido na época, embate travado entre atenienses e peloponésios. A grandeza do combate seria comprovada pelo número de envolvidos – homens, cidades e embarcações –, e pelo resultado devastador: a enorme quantidade de cidades tomadas ou despovoadas, além dos exílios e massacres que nunca haviam atingido proporções tais. Ao relatar mais especificamente a peste que dizimou Atenas em 428 a.C., Tucídides conta que a enfermidade provocou tal devastação e terror que nem os animais se aproximavam dos numerosos corpos insepultos. E quando o faziam, morriam logo depois. O historiador grego busca a imparcialidade em seu relato por meio da narração em terceira pessoa – forma usual em sua época –, propícia para recriar a cena em detalhes e capaz de gerar, a um só tempo, distanciamento da matéria narrada e maior comprometimento com o leitor. As cenas seguintes demonstram, ainda, a curiosidade científica e a tentativa de explicar o mundo de modo racional, evidenciando o ambiente histórico no qual o escritor estava inserido. Todavia não é apenas um discurso apolíneo e equilibrado que vigora na matéria narrada, uma vez que há o retrato do desespero dos sobreviventes, do horror dos doentes agonizantes e da morbidez de cidades inteiras povoadas por corpos em decomposição. Além disso, diante de tantos cadáveres anônimos, a narrativa sugere o temor da morte na vala comum ou, pior que isso, o do corpo insepulto.
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Ao longo de quase 300 anos, a praga se tornou uma parte comum da vida cotidiana na Europa. Surtos terríveis devastavam cidades periodicamente. Na gravura vemos a roupa utilizada pelos médicos medievais como medida protetiva contra a Peste, cuja mera visão causava terror às pessoas por representar um sinal de morte iminente.
Paulus Furst of Nuremberg
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O movimento Flagelantes consistiu em grupos de penitentes que viajavam de cidade em cidade praticando autoflagelação como forma de penitência para seus pecados durante os séculos XIII e XIV na Europa. O movimento se iniciou na Áustria e, mais tarde, se espalhou pela Alemanha e França. Esses grupos contribuíram para a disseminação da praga, além de causarem inúmeros prejuízos sociais por sua insistência em hostilizar grupos marginalizados (como os judeus).
The flagellants Pieter van Laer
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A temática epidêmica figura também na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, ao relatar, no século V a.C., a luta do epônimo monarca de Tebas frente a uma terrível praga que havia se lançado sobre a população da cidade-estado, conflito motivador da peça. Deve-se recordar que a adversidade coletiva tinha sua origem em uma falta privada, transgressão para a qual os deuses exigem reparação: vingar o assassinato do rei Laio. No caso desse mito encenado, eram o incesto e o parricídio os tabus que haviam sido violados e precisavam ser aplacados na fúria dirigida pelos deuses à cidade tebana. Ainda que sem saber, uma falta involuntária, Édipo havia matado o próprio pai e se casado com sua mãe. Vale lembrar que no Antigo Testamento há relatos de uma doença igualmente fatal. Presume-se que a Peste Bubônica responsável por vitimar filisteus seria, a exemplo do flagelo narrado em Édipo Rei, um castigo àqueles que descontentavam as forças divinas por oprimirem o povo crente na região de Canaã. Acrescente-se a esta as pragas que assolaram o Egito, enviadas por Deus para que o Faraó libertasse os hebreus, dentre as quais está a responsável por um surto de pústulas e chagas sobre a população do Nilo, conforme registrado no Êxodo. No âmbito do discurso religioso, tal qual se pode notar em outras catástrofes atribuídas à vontade do Criador (como o Dilúvio e a destruição de Sodoma e Gomorra), a doença pode ser encarada de modo metafórico como um contágio do pecado, ou seja, uma propagação de desobediência à vontade divina e às leis morais. Decorridos muitos séculos, as fantasias e as representações de epidemias parecem não ter recuado. Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, publicado em 1722, é outro exemplo significativo dessa prosa. Motivado a escrever sua obra em razão do apelo comercial do tema, algo despertado após o sensacionalismo jornalístico em torno de um surto de Peste Bubônica na cidade de Marselha, França, em 1720, o autor registrou, à semelhança de um romance-reportagem, como a doença teria assolado Londres no verão de 1665 e dizimado cerca de cem mil londrinos. Estudiosos da obra de Defoe especulam que o autor baseou-se em jornais da época para construir a trama, combinando as informações com técnicas narrativas que garantissem verossimilhança. O efeito de real teria sido conseguido pela união da dimensão literária à documental, razão pela qual a obra mantém-se uma espécie de clássico do jornalismo e da medicina epidemiológica.
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Vale destacar que o romance apresenta a imagem dissonante de uma epidemia: relatos de famílias inteiras adoecendo ou abandonando a cidade em desespero, casas saqueadas ou em chamas, famílias inteiras trancafiadas em suas próprias residências por ordem do Estado, corpos anônimos jogados em extensas valas comuns por coveiros bêbados e resignados. Em vista dos procedimentos empregados pelo escritor – efeito de ancoragem, retrato realista, exploração de personagens anônimas e preocupação informativa –, a ficção criada interessa não apenas ao leitor descompromissado. Serve, também, às ciências da saúde como estudo acerca da propagação de doenças em cenários urbanos, especialmente pelo recurso do narrador-testemunha.
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de um rosário e 1500-1525 a cabeça de m morto, cuja o rosto se á em decomTais imagens omo lembree a vida é a e que levar virtuosa na fé a chave para o.
A obra literária igualmente influenciaria escritores, sobre os quais trataremos mais adiante, dentre os quais Albert Camus, que rende tributos ao inglês pela obra que teria inspirado A peste, e Gabriel García Márquez, que só teria se dedicado ao jornalismo após a leitura de Diário do ano da peste. Lado a lado com Defoe estão os diários taquigrafados de Samuel Pepys, membro do Parlamento inglês, por trazerem uma particular combinação de registro íntimo e de testemunha ocular, composição rara na época em questão. Muito embora os diários compreendam os anos entre 1600 e 1669, só vieram a público em 1825, depois de descobertos e decodificados por estudiosos. Contrapondo o modelo da testemunha ficcional e de cunho histórico-realista, Edgar Allan Poe compôs alguns contos, como O rei peste (conto alegórico), de 1835, e A máscara da morte rubra, de 1842, nos quais a doença assume o papel de protagonista, chegando a ser personificada como a própria Morte. O primeiro é um relato situado no governo de Eduardo III da Inglaterra, reinado em vigor entre 1327 e 1377, e cujo foco são dois marinheiros meliantes que encontram um grupo de figuras grotescas na parte fechada da cidade de Londres, isolada por conta de uma epidemia. Os bairros vizinhos ao rio Tâmisa, tomados pela peste bubônica, haviam sido condenados e sua entrada expressamente proibida pelo rei, de modo que qualquer violação implicaria a pena de morte. No território interditado, conforme descreve o conto de Poe, “o Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço, e a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à vontade”. Em A máscara da morte rubra, contextualizado em um cenário igualmente medieval, o Príncipe Próspero e toda sua corte terminam mortos por conta do poder ilimitado de um potente flagelo, caracterizado por seu aspecto fatal, veloz e de sintomas atrozes (dores agudas, vertigens, hemorragias, decomposição). Ao final do conto, tal como nas alegorias artístico-literárias do medievo, a “dança macabra” ocorrida, ironicamente, em um baile de máscaras, prova que, a despeito de toda prosperidade simbolizada pelo poder político e econômico do príncipe, a morte pode provocar desgraça e ruína a todos. Especialmente quando se trata de um governo tirano, derrotado por uma afecção que ele próprio representa.
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Também inspirada pelos surtos de Peste Negra, “A queda dos condenados”, de Dirk Bouts, é uma pintura a óleo de 1470 que retrata a queda dos condenados no abismo.
No campo das metáforas político-estéticas também está Antonin Artaud. O dramaturgo francês se reporta à peste para exprimir sua concepção de teatro como revelação – uma manifestação da crueldade interior do indivíduo – no ensaio O teatro e a peste, datado de 1935. Para tanto, Artaud compara a revelação que se daria por meio do teatro à peste, considerando-a uma explosão em cena de forças profundas e ocultas que estão em potência no interior do ator. Em suas palavras: “Como a peste, o teatro é, portanto, uma formidável convocação de forças que conduz o espírito, pelo exemplo, à origem de seus conflitos.” Sem máscaras ou disfarces, o teatro e a peste levariam os seres humanos a verem-se exatamente como são, exteriorizando os mais variados sentimentos, sobretudo os piores. Enfatiza, nesse sentido, que a liberação das paixões acionaria possibilidades de violência e crueldade cênicas, resultado não oriundo da peste ou do teatro em si mesmos, mas da própria vida. Para chegar a tais conclusões, Artaud reporta-se aos efeitos da peste que devastou a Sardenha, em 1720, depois Beiruth e em seguida Marselha. A mesma doença que, de acordo com o autor, teria ainda atacado Florença, em 1347, e foi registrada no Decameron. O dramaturgo assinala no texto que houve peste no Egito e na cidade sagrada de Mekao no Japão, em 660 a.C., assim como na Provença, no ano de 1502. Tentando encontrar algum sentido para tais flagelos, Artaud considera a peste um instrumento direto da fatalidade. A doença atacaria os órgãos que dependem diretamente da consciência e da vontade, o cérebro e os pulmões, diminuindo a frequência respiratória e influindo no fluxo dos pensamentos. Desse modo, a peste, na filosofia teatral de Artaud, eclodiria naqueles lugares onde a vontade humana, a consciência e o pensamento estão a um passo de se manifestar. Uma vez estabelecida a praga, a cidade desmorona e as estruturas se revelam em sua maior intimidade. É em semelhante contexto que surgem as fogueiras para a queima dos mortos e os últimos sobreviventes se exasperam. O filho submisso e virtuoso mata o pai; o recatado sodomiza o próximo; o libertino torna-se puro; o avarento joga dinheiro pela janela; o guerreiro heroico incendeia a cidade que outrora salvou; o elegante se enfeita e vai passear no cemitério. Forças similares a estas derivadas da peste são requisitadas por Artaud como o projeto de um teatro, no qual o estado de desorganização física transforma-se em força espiritual, tal qual a que jorra dos pestilentos.
he Fall of the Damned irk Bouts
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A literatura do século XX não negaria o lado fantástico, simbólico ou metafórico da peste nas produções ficcionais do seu tempo, mas dentre as obras mais icônicas produzidas há preferência pela abordagem realista do quadro epidêmico. Ganha destaque, nesse sentido, A peste, de Albert Camus, publicado em 1947, inspirado em uma das últimas epidemias de Peste Bubônica ocorridas na Argélia, no ano de 1944. Camus prima em seu romance pela profundidade com que representa os conflitos humanos à medida que os infectados são colocados em quarentena, alocados em espaços com condições desumanas, e os serviços civis começam a falhar, razão pela qual sua obra é considerada uma poderosa metáfora dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Seu retrato vai além de uma Argel sitiada: coloca o leitor diante de uma cidade sob a égide de adversários tão fatais quanto invisíveis. Posteriormente, o romance O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, lançado em 1985, conferiu outro tom ao discurso epidemiológico, conferindo uma visão classista da sociedade. Diante da pandemia da doença do título, ocorrida entre 1961 e 1975, o autor fez uso do realismo para contar uma história de amor que se passa no século XIX, em meio a barreiras sanitárias. Ao longo do percurso narrativo é possível perceber uma correlação pejorativa entre morte/doença/pobreza e vida/saúde/riqueza, condição que é produto da ressonância dos costumes sociais da época, algo sintomaticamente materializado pela separação dos amantes: Fermina Daza, o objeto amoroso da trama, é levada por seu pai a se casar com o médico Juvenal Urbino, em vista do prestígio social do pretendente e da posição segura (de sua profissão) frente ao cenário de epidemia de cólera.
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Nesta pintura do francês Josse Lieferinxe do fim do século XV, São Sebastião, um dos santos aos quais se costumava rezar pedindo proteção contra a praga, se ajoelha diante de Deus pedindo pela cura enquanto, abaixo, um homem é contaminado pela praga ao enterrar o corpo de alguém que morreu da doença. É possível ver um caroço protuberante em seu pescoço, sinal iminente da contaminação.
Particular e um tanto insólito é Ensaio sobre a cegueira, de 1995, cujo narrador criado por José Saramago descreve uma inexplicável praga que se alastra lentamente. Trata-se de um mal oftalmológico desconhecido, responsável por colocar as personagens às cegas em uma sociedade que desmorona, escancarando a fragilidade do que após milênios a humanidade habituou-se a chamar de civilização. A adaptação cinematográfica do livro, Ensaio sobre a cegueira (Blindness, Fernando Meirelles, 2008), dialoga com Camus e Márquez ao expor quais são as faces da natureza humana que emergem quando as pessoas são obrigadas a viver confinadas, a depender e a confiar umas nas outras. Ainda que não sejam sempre os protagonistas, nos três romances supracitados há a figura do médico no centro da ação, diagnosticando e acompanhando a propagação da doença, com a função adicional de traçar panoramas críticos e científicos sobre a epidemia. Próxima do homem da medicina e dos muitos enfermos, a figura da esposa recebe alguma importância, ainda que como personagem-orelha: estando ela entre as únicas não afetadas pela doença é a pessoa com quem o médico pode compartilhar suas expectativas e tecer reflexões. O diferencial dos romances fica a cargo da profundidade das relações, lenta ou radicalmente modificadas em face da desordem e do medo. Fazendo referência ao ressurgimento de doenças antigas, como a medieval cólera ou a milenar peste – ou recriando novas, como a ficcional cegueira branca –, as obras descritas são indícios de como as reações dos seres humanos em meio às epidemias atiçam o interesse do público. Talvez porque a doença seja uma força hostil invisível, mas que produz muitos signos gráficos da visibilidade de sua atuação sobre o mundo (dos sintomas dos doentes aos cordões sanitários).
Saint Sebastian Interceding for the Plague Stricken Josse Lieferinxe
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Ainda que nos tempos modernos a paisagem da doença possa parecer menos catastrófica que tempos anteriores, a disseminação de enfermidades letais em tempos de globalização continua um risco imprevisível, posto o desenvolvimento das doenças e o grande deslocamento de pessoas ao redor do mundo em uma velocidade nunca antes pensada. É o que demonstra a atual pandemia de covid-19. Frente a isso, a sociedade é colocada, portanto, diante de desafios: tratar com medicamentos doenças que se tornam mais e mais resistentes e até imunes a eles, sem poder contar com barreiras sanitárias realmente eficazes em situação de epidemia. Assim, se desde Edward Jenner, considerado o criador da vacina em 1796, e Alexander Fleming, iniciador da era dos antibióticos com a descoberta da penicilina em 1928, a ciência ainda não conseguiu erradicar as doenças contagiosas, a ficção, por sua vez, percebe na impossibilidade de domesticação dos agentes patogênicos um manancial inesgotável. As ficções da peste são referências criativas e lucrativas, se considerarmos o elevado número de produções cinematográficas que exploram as epidemias. Ou, ainda, se evocarmos o universo dos games: um dos jogos mais famosos da década de 1990, Resident Evil, tornou-se paradigmático no gênero survival horror, centrando-se nas consequências da liberação de um terrível vírus; ou o premiado Plague Inc., classificado como jogo de estratégia genética, cujo objetivo do jogador é criar um agente patógeno que destrua a humanidade por completo. Narrativas – da literatura, dos games, do cinema – nas quais ficção e realidade se confundem – ou mesmo colaboraram para fundar fantasias – não são casos isolados. Nas últimas crises coletivas, a SARS, em 2003, a Gripe Aviária, em 2005 e 2006, a Gripe Suína, detectada no México desde meados de 2009, o surto Zika vírus em 2016 e, mais recentemente, a epidemia nigeriana da febre de Lassa no início de 2018, foram cobertas/alimentadas pelos meios de comunicação nas amplas reportagens sobre a proliferação – efetiva e imaginária – dessas doenças pela Ásia, Europa e Américas. Até novas tecnologias, como câmeras com sensor de temperatura para detectar possíveis enfermos que desembarcam com febre nos aeroportos, foram desenvolvidas. Assim, a histeria midiática gerada colaborou para que as fronteiras em todo o mundo passassem a exibir severos avisos sanitários, assim como convocou a mobilização dos órgãos de saúde para combater a proliferação da doença (algo que incluía o impedimento de livre circulação dos próprios enfermos). Tendo em vista a força do imaginário epidemiológico na ficção, tal disposição de pânico generalizado já pode ter plantado elementos seminais para uma nova leva de narrativas. Especialmente em vista da atual pandemia de covid-19.
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Em “A Família”, o pinto Egon Schiele retrata a própria família durante o surto da Gripe Espanhola. O próprio artista faleceu em decorrência da contaminação da doença. Em sua última carta, endereçada à mãe escreveu: “Estou me pre parando para o pior.” “A Família” foi uma de sua últimas obras.
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The Family Egon Schiele
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“Autorretrato após a Gripe Espanhola” O pintor Edvard Munch [1863-1944] retratou a si próprio no período após o surto de Gripe Espanhola. Com aparência frágil e contemplativa, este autorretrato é um emblema de resistência e de sobrevivência aos horrores da praga.
Self-Portrait with the Spanish Flu Edvard Munch
Diante de uma ameaça patogênica, a população pode até mesmo adotar novos hábitos, de forma temporária ou definitiva, mesmo que as novas atitudes sejam baseadas em suspeitas infundadas, difundidas por internautas anônimos. Há quem seja facilmente convencido, por exemplo, pelas mensagens mal elaboradas dos hoaxes e das fake news, histórias amplamente veiculadas no mundo virtual ao modo de pirâmides comunicativas. No Brasil tornou-se notório o hoax da suposta contaminação de latas de refrigerante por urina de rato, responsável pela alegada “morte de um consumidor por leptospirose”. Por conter elementos verossímeis, a mensagem hoax modificou o comportamento da população, de modo que hoje são poucos os sujeitos que se arriscam a ter contato direto com as latinhas antes de higienizá-las em água corrente, álcool ou, no mínimo, com um inócuo guardanapo de papel. A responsabilidade pelo pânico desnecessário, em todo caso, está em ambos os lados da moeda, no da mídia e no da população. Se os incidentes atômicos em Hiroshima e Nagasaki são o marco zero da preocupação mundial com a manipulação da ciência pelo ser humano, constituindo eventos capazes de gerar doenças desconhecidas, comida contaminada ou empregar energia atômica para fins armamentistas, os envelopes contaminados com Antraz que circularam nos EUA Pós-11 de Setembro desencadearam medo generalizado acerca de uma guerra biológica. Até mesmo no Brasil houve pânico depois que uma série de piadas de mau gosto, os “trotes de Antraz”, foi registrada ainda em 2001. Enviados dentro de envelopes pelos Correios, a pequena quantidade de pó branco – quase sempre raspas de giz –, apavorou muitos destinatários que se mantinham em sintonia com as notícias da televisão. No tocante à ação bélica bacteriológica seria possível considerar os “descobridores” europeus em circulação pelo Novo Mundo os primeiros terroristas biológicos. Ao desembarcarem aqui, os descobridores trouxeram doenças desconhecidas dos indígenas – dentre as quais estavam a gripe, a varíola, a malária e a tuberculose – que muito contribuíram para o genocídio nativo. No clássico da ficção científica Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, publicado pela primeira vez em 1897, a invasão alienígena é contida naturalmente, a despeito de toda tecnologia militar disponível. Tudo porque o sistema imunológico extraterrestre era vulnerável às bactérias terráqueas, algo que se configurou como um tipo de ataque biológico de ordem divina, deus ex machina.
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Last Judgement Fra Angelico
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maginação dos tores influenciada os horrores da praga contornos a figuras istras, como no detade “O Juízo Final” Fra Angelico (1395 455).
Os exemplos ficcionais e históricos citados anteriormente sugerem uma pergunta: o que se pode esperar dos seres humanos – e de sua organização social – quando a Natureza (supostamente) liberta energias destrutivas sobre a sociedade na forma de epidemias? De que modo o estudo das epidemias na ficção pode revelar questões de violência, preconceito, culpabilização de vítimas, segregação, estigmatização, controle social presentes no imaginário epidemiológico? Se eventos fatuais já sugerem situações cruéis de delimitação de culpados, como demonstra muitas matérias de jornais (atualmente a covid-19 é um problema provocado pelos chineses) – algo expresso majoritariamente pela via do preconceito nacionalista – o que esperar da ficção, campo no qual é possível acentuar componentes da realidade como estratégia de choque, denúncia, conscientização? O cenário social e ficcional em torno do imaginário epidemiológico, portanto, permite refletirmos sobre as metáforas, os preconceitos e as tecnologias biomédicas aplicadas em momentos de crise sanitária. Se as forças hostis e agressivas dos indivíduos, tal qual sugerem as teorias freudianas sobre o mal estar da civilização, estão reprimidas em benefício do social, pode-se supor que o jogo de relação do social é, em si, hipócrita. Ainda que não esteja expresso, por força das pressões oriundas de discursos reguladores e dispositivos legais, o preconceito não esvaneceu. Não é porque a escravidão e o darwinismo social foram banidos das práticas e dos discursos modernos que a nociva relação hierárquica com povos antes escravizados, hoje, deixou de existir. As instâncias pós-coloniais demonstram o inverso na dinâmica relacional entre colonizador eurocêntrico (sob o signo do superior) e o colonizado (representado como inferior). Temas políticos e ideologicamente repressivos são expressos nas ficções da peste – ao contrário de temas e teses progressistas – e afirmam aquilo que a cultura nega – o preconceito e a violência – o que torna tal seara ficcional merecedora de grande atenção teórica, uma vez que as epidemias afetam o imaginário e infectam o sistema simbólico com ideias contaminadas.
Marcio Markendorf é Doutor em Literatura, concentração em Teoria da Literatura, pela UFSC (2009). Atualmente é Professor Associado I do Departamento de Artes da UFSC e leciona no Curso de Bacharelado em Cinema e no Programa de Pós-graduação em Literatura. Renata De Felippe é Doutora em Teoria Literária (2009) e Mestre em Literatura Brasileira (2003) pela UFSC.
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Por Lucas Schlemper
O escritor catarinense fala do processo de escrita de Três porcos, romance auto-ficcional que revolve situações de abuso sexual infantil e desejos de vingança - finalizado e publicado durante o período de isolamento social.
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Arte Nestor Jr. @nestorjrarts
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Podemos esperar por outros livros de poesia ou já devemos ir nos acostumando com o Marcelo Labes romancista? Não vou repetir aqui que poesia não dá dinheiro, porque não se trata exatamente disso; nem sei direito do que se trata. Mas sinto que o romance, diferente da poesia, consegue ultrapassar alguns cercados a que nós, que escrevemos e lemos poesia, estamos tão acostumados. Quando digo cercados quero dizer “grupos de pessoas que leem e escrevem poesia”. Parece que os grupos de leitores de poesia têm um interesse óbvio por trás das leituras que fazem, que é o de serem lidos. Isso não é um problema à primeira vista, mas me parece que esse mecanismo da troca (ou: leio para ser lido) não traz em si muito de pesquisa ou de experimentação que, me parece, a poesia precisa ter. Também me parece que esse é um fenômeno surgido com a ampla divulgação de material de escrita em redes sociais. Dessa forma, quando poetas leem poetas que leem poetas… não se ultrapassa a barreira desses cercados, desses grupos fechados de leitores.
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Foto: Pancho
Marcelo, hoje é o primeiro dia do resto da sua vida. Como está se sentindo hoje? Péssimo dia pra responder a essa pergunta. Ou: ótimo dia pra responder, porque exatamente hoje eu me vi descrente no amor, indignado com as circunstâncias da vida, minha conta bancária está gritando por ajuda e faz um frio triste e imobilizante na Ilha de Santa Catarina. À parte isso, como diz Fernando [Pessoa], tenho em mim todos os sonhos do mundo, mais as ideias que estão todas confusas de um romance que quero começar a escrever. Em resumo: a vida não presta e a gente fica insistindo nisso de estar vivos, viver escrevendo e viver do que escreve.
MARCELO LABES: “Foi a escrita do livro que me ocupou, me salvou de alguma loucura que bateu à minha porta, mas me levou a outras loucuras, porque esse livro foi escrito com as tripas.”
Digo tudo isso para acrescentar que sou feliz enquanto poeta, com a divulgação de meus livros e com a publicação quase que diária de poemas em minhas redes sociais porque percebo o alcance que um poema pode ter, a forma como ele pode ser absorvido pelas pessoas; mas sou mais feliz enquanto prosador porque me parece que a experiência de leitura de um romance (que envolve o leitor num enredo, permite identificação com personagens etc.) é mais profunda e prolífica, pois o romance – ou a maioria deles, ou grande parte – não tem como primeiro impacto seu formato ou suas distinções estéticas. É como se o escritor dissesse: “Há aqui um livro com uma história”, enquanto o poeta precisa antes perguntar “Tu gostas de poesia? Tens o hábito de ler poesia? Sabes do que se trata a poesia? Pois então, tenho aqui um livro de poemas”. São formas de contato distintas, e se o que tenho buscado é comunicação – para além de ser reconhecido por essa ou aquela inovação estética –, tenho logrado maior êxito em me comunicar através de parágrafos.
Escrever se apresentou na sua vida como uma vocação ou como uma espécie de chamado? Consegue lembrar do primeiro texto que produziu? Sei lá como, ou por quê, queria ser artista, desde cedo. Como eu vinha de uma família humilde e sem aspirações artísticas ou grandes contatos com manifestações da arte, sempre me foi complicado querer fazer arte e não dispor dos meios para fazê-lo. Mas tive muita sorte em meus acidentes de percurso. O primeiro deles foi o contato com a música. Minha irmã tocava flauta – depois tocamos juntos, quando aprendi –, e tínhamos em casa LP’s de Mozart e Tchaikovsky ao lado de discos de Chitãozinho & Xororó e do Trio Parada Dura. Essa mistura talvez tenha me confundido mais do que ajudado a entender arte e literatura, mas dessa confusão resulta algum encantamento pelo que o cânone diz que é belo e uma aproximação muito bonita com a poesia simples do homem comum. Da flauta-doce, tive contato com o violão, com o rock, depois montei uma banda, a “Narciso aprende a nadar”, para a qual escrevia letras de música. Já aí escrevia poemas. Só o que consigo supor é que a poesia me chegou através da música popular. Eu também queria escrever minhas palavras e cantá-las. Como resultei incompetente para o rock, foquei nisso de dizer as minhas coisas às pessoas, e é daí que resultam os meus livros. No meio desse caminho com a música, houve outro acidente, e talvez o mais importante: fui estudar num internato luterano localizado no Rio Grande do Sul. Aquela escola dispunha de uma imensa biblioteca, e foi lá que tive meus primeiros contatos a sério com o que a gente chama de grande literatura: Camus, Sartre, García Márquez, Saramago, esses autores conheci através daquelas prateleiras. E Ana Paula, uma amiga querida, que foi quem primeiro me colocou um Kafka na mão e disse que eu poderia gostar daquele livro. Nunca mais me recuperei de A metamorfose, tampouco da escrita incisiva de Kafka. Sobre meu primeiro poema, ele tinha quatro estrofes, com versos de sete sílabas irregulares, e foi escrito na carteira duma quinta série do Conjunto Educacional Pedro II de Blumenau em algum momento de 1995. A professora de Língua Portuguesa se chamava Elizabeth, foi ela quem primeiro me chamou “poeta”. E sim, sei ele de cor.
Quais as diferenças seminais que você identifica entre escrever poesia e escrever romance? O poema é orgástico, a prosa é amorosa. Quero dizer: enquanto o poema resulta e é ele próprio síntese e tem em si o que é avassalador naquele momento em que é escrito, a prosa é projeto e meta. Há momentos orgásticos na prosa também, mas para alcançá-los há muita escrita protocolar pelo caminho. Então se o poema pode nascer pronto, como geralmente nasce, e apenas basta para finalizá-lo tornar aquela rede de imagens e afetos e dores em palavras, na prosa esse processo é mais longo, e as simulações feitas por quem escreve exigem tempo – porque o tempo do romance costuma ser longo – e o afeto pelo que se está escrevendo. O poema já é o afeto em si, enquanto a prosa precisa ser amada ao longo do tempo. O que, claro, como as relações entre as pessoas, pode não dar certo; antes de terminar Paraízo-Paraguay, já havia tentado escrever uns três romances antes, e deixei todos pela metade. Poemas, no entanto, mesmo que fiquem pela metade, conseguem se regenerar (como as planarias?) e se tornarem a partir daquela metade um poema inteiro; ou se tornarem outra coisa. Com o projeto da escrita de um romance é difícil isso acontecer, embora também seja possível. Três porcos, meu livro mais recente, se tornou independente de outro em que essa história aparecia para se tornar ele próprio um romance.
Três porcos é um romance e deve ser lido como tal. Se fosse pra me resolver, teria ido à terapia. Mas eu abandonei a terapia para poder escrever este livro, então…
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Você foi finalista do Prêmio Jabuti com seu livro de poemas Enclave e finalista do Prêmio Machado de Assis com seu romance anterior, Paraízo- Paraguay. Quão enriquecedoras foram essas experiências? Tomei dois sustos em duas semanas. Primeiro, com o anúncio do Jabuti. Depois, com o segundo lugar no Machado de Assis. O que houve foi: eu sou um escritor independente, habitante de um estado periférico, que chegou à final em dois dos prêmios mais importantes desse país. Se foi lindo? Claro. Se foi assustador? Óbvio! Teve matéria em jornal, teve entrevista pra rádio, teve resenhas novas dos livros, e, de repente, algumas pessoas começaram a prestar atenção ao que eu vinha produzindo. E tem outra questão, que é a pessoal: como parece que as pessoas estão prestando atenção ao que eu venho produzindo, não posso publicar qualquer besteira. E esse é o segundo pulo desse gato saltitante: eu comecei a me levar mais a sério depois dessas indicações aos prêmios. Eu vivo de escrever, não posso brincar com isso. Qual a sua visão em torno dos concursos literários em geral? Possibilitam outros frutos para além da autopromoção e do eventual abocanhar de promissoras quantias das premiações? Há algumas questões muito sérias em torno dos prêmios, pois apesar de injustos – por conta do lobby da indústria do livro, sobretudo, e por invisibilizar muitos em detrimento de poucos – eles permitem alguma visibilidade entre as pessoas que ainda não conhecem o trabalho do autor (e essa é sempre a maioria)
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Essa ausência de características, mas com uma presença reforçada, pode demonstrar o que resta dum fim de relacionamento: algumas imagens esparsas, alguma sensação incômoda do que poderia ter sido e que não foi, algum perfil da pessoa deixado pela luz acesa de uma vela ou de uma luminária.
e algum respeito entre colegas de profissão. Ao mesmo tempo, faz com que o próprio autor se questione e se angustie com os cami-nhos de sua própria escrita. Enclave, o livro de poemas que foi finalista do Jabuti, é um livro duro, pouco afetuoso, em que exercitei algo de poesia sociológica debatendo algumas questões de Blumenau, cidade onde nasci, e do sul do Brasil por consequência. Ele teve um trabalho editorial primoroso da [editora] Patuá e de sua equipe, e eu sou muito grato ao Eduardo Lacerda por ter acreditado no livro e ter me ajudado na divulgação dele. A surpresa foi mesmo o Paraízo-Paraguay quase ter levado o Prêmio Machado de Assis, porque ele foi a primeira publicação da minha editora, a Caiaponte, cujo editor não tem dinheiro nem pra pagar o aluguel, imagina se teria para alguma espécie de lobby. Nesse caso foi gratificante. Chorei por duas horas na sala aqui de casa. Não sei se por ter quase chegado lá, não sei se por não ter tido direito a acessar os trinta mil reais a que tem direito o primeiro lugar.
Consegue ler seus próprios livros depois de publicados? Há escritores que descrevem sentimentos de vergonha ou até mesmo raiva em relação aos seus trabalhos prévios. Meu primeiro livro é de 2008, um livro de poemas imaturos. Fiquei anos sem abrir o Falações e folhear suas páginas. No entanto, alguns poemas que estão nele nunca me saíram da cabeça, talvez por eu acreditar que sejam bons poemas. Ao reabri-lo, anos depois, foi que tive certeza de que meus temas são, afinal, os mesmos, e que procuro formas diferentes (e com alguma experiência e com maneiras novas de pesquisar esses mesmos temas) de abordá-los. Tenho um livrinho chamado O filho da empregada, que narra experiências minhas com minha mãe, que foi empregada doméstica até sua aposentadoria. Há tantas experiências doloridas lá dentro que não me dá prazer algum reler o livro. Parece uma forma segura de se livrar de algumas dores colocando-as dentro de livros. Há livros que dão algum prazer na releitura. Enclave e Trapaça têm isso para mim. É como se ao abrir os livros eu me deparasse com um Marcelo de anos atrás que tinha angústias outras, e outro modo de abordá-las em texto. Esse caminho – que o poeta percorre de livro a outro, de tema a outro, e as formas que se utiliza para fazê-lo – me ensinam muito sobre escrever. A respeito de seu último romance, Três Porcos, pode-se dizer que o leitor tem diante de si o trabalho mais pessoal de Marcelo Labes até o momento? Sim e não. Há um capítulo em Falações que se chama “Febres”, que é extremamente pessoal. Em Porque sim não é resposta eu lidei com a minha abstinência do álcool e da cocaína, além de relacionar tudo isso com o lugar de onde eu vinha e com um relacionamento amoroso que eu via começar. De O filho da empregada já falei, e é minha história e de minha mãe que vai ali. Trapaça foi publicado no ano em que descobrimos o câncer de meu pai, e o livro é dedicado a ele, como é também talvez a primeira vez que ele apareça em meus escritos como uma alegoria do ser homem. Paraízo-Paraguay, que é um romance de memória (pra não chamar de romance histórico) tem tanto de mim e da minha
família – como de tantas famílias de origem germânica, me dizem as pessoas que o leem – que é assustador me encontrar naquelas páginas. Três porcos é somente o mais abertamente pessoal, e embora eu tenha desistido de fazer terapia porque vi que estava resolvendo uma série de problemas graves que tenho ou tinha, e que se os resolvesse não conseguiria escrever o livro. Nesse caso, sim, é o mais pessoal porque sou eu que vou ali, abertamente. Parte de Três Porcos foi desenvolvida durante a experiência de isolamento social, e deve ser por isso que a narrativa passa a impressão de atmosfera claustrofóbica, de ausência de janelas visíveis. O quanto da experiência de isolamento se reflete no texto? O processo se deu de forma diferente de suas outras obras? O isolamento foi o que me fez concluir esse livro. Ele esteve parado por um bom tempo entre o final de 2019 e o início de 2020, houve algumas reviravoltas em minha vida, ainda tive algum trabalho enquanto editor organizando lançamentos de livros. Então quando tudo parou, senti que era hora de voltar a escrever. Na verdade, a estrutura do romance estava quase pronta, mas faltou energia. Então uma amiga que fiz à distância, exatamente por causa do isolamento – e pra quem eu falava, volta e meia, que estava escrevendo um livro – começou a não somente perguntar, como me dar prazos. Era uma brincadeira nossa, mas eu acabei o livro antes do prazo final, e antes de cada prazo de revisão, reescrita, nova revisão etc. eu aparecia com um novo capítulo, com a ausência de uma personagem. Foi a escrita do livro que me ocupou, me salvou de alguma loucura que bateu à minha porta, mas me levou a outras loucuras, porque esse livro foi escrito com as tripas, é bom que se diga, mas houve muito amor envolvido tanto no processo de resgate de memória e escrita, como no processo de finalização do texto. Devo a finalização deste livro a Daiane Oliveira, sem dúvida.
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Que tipo de comentários tem recebido acerca da obra? Os melhores. Algumas pessoas me falam do tanto de verdade que esse romance tem, como se tudo aquilo tivesse acontecido exatamente da maneira como os fatos são narrados. Outras me procuram em crise, tristes mesmo, aborrecidas, inconformadas, ou porque se identificam com o protagonista, ou porque o narrador as colocou em diálogo com outros demônios seus, que acabam conversando com os meus, ou com os do protagonista do livro. A crítica constrói? O que é mais difícil de engolir: o lenga-lenga elogioso de um bajulador ou a crítica ferrenha de um leitor exigente? Um autor sabe quando está sendo bajulado – ou deveria saber, ou deveria estar atento a isso – e tende a gostar. No entanto, é uma irresponsabilidade – poderia dizer também que é um ato masturbatório – somente dar atenção aos elogios e ignorar as críticas de leitores exigentes. São essas pessoas que trazem para a obra o que às vezes falta nela, seja verossimilhança, seja coerência, ou mesmo, por outro lado, experimentação. Depois das primeiras leituras de Três porcos, algumas pessoas me falaram que se sentiram incomodadas com uma personagem. Reli o livro, busquei a importância de Laís – uma estagiária em psicologia que servia para o protagonista falar livremente, como se a presença dela fosse o gatilho para as divagações de Rafael –, e tendo percebido que ela não era importante tratei de suprimir sua presença. Já não há Laís, e não há porque de haver concordado com amigas e amigos que leram o livro e me disseram que não havia nada nela que pudesse ser aproveitado. Da mesma forma, precisei dar jeito no fim de um personagem, e o fiz porque um de meus leitores é Caio Augusto Leite, escritor e meu amigo, pessoa que tem um profundo respeito pelas personagens que cria e que me exige atenção para não usar uma pessoa, mesmo que imaginária, em meu livro e descartá-la como se fosse nada ou ninguém. O que quero dizer é: não fossem meus amigos, que me leem a sério e criticam o que escrevo antes da publicação, meus livros seriam outros – e talvez ninguém gostasse do resultado.
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“Eu escrevo para me vingar”, lê-se em Três Porcos. Eventualmente me sinto dessa forma também, tanto que escrevi algo parecido. Há certo poema meu interminável cujos versos finais dizem algo a um leitor certamente já exausto como “Todo texto é vingança / ... / Este aqui é minha desforra.” E de fato o processo desse poema em especial me redimiu de alguma coisa que de algum modo poderia ter estado engasgada até então, saiu como um jorro e me fez sentir de alma lavada depois. Me senti verdadeiramente vingado. O seu romance Três Porcos foi um prato degustado frio? Que gosto teve? Pois bem: Três porcos é um romance de e sobre vingança. Escrever seu desfecho foi de um prazer quase doentio. Escrevi com raiva, com pressa, sem muito cuidado com repetições, porque era de ferir quem me feriu que se tratava. Era de vingança que se tratava. A vingança, vai dito em algum momento do livro, é mais verdadeira que a justiça. Escrevi com essa sede e o gosto, claro, foi terrível, mas delicioso. Em certo trecho metalinguístico do romance há a incidência do termo “autoficção”. A que ponto uma autoficção se distingue da ideia de um romance autobiográfico? Aqui pra mim, uma autoficção sempre tem em si elementos biográficos, pois o autor se mete a escrever sobre si mesmo, enquanto a autobiografia tenta reconstruir, a partir da memória da pessoa cuja história é contada, valendo-se mais ou menos da ficção para contar uma história. E essa foi uma preocupação durante o planejamento para a escrita do livro, pois eu não queria escrever uma autobiografia, mas queria ficcionalizar uma história biográfica. Eu queria fazer ficção a partir de fatos que ocorreram, mas sem tratar isso como minhas memórias. Há memória ali, claro, mas o que é memória e o que é invenção se fundem; da mesma forma, precisei me concentrar para contar alguns fatos que me ocorreram de maneira que quem lesse pudesse se colocar ali. Ou seja: não escrevi em meu diário, porque não tenho esse hábito, mas escrevi um romance a partir de coisas que me incomodaram muito, incomodam muito ainda, e que pensei que pudessem ocupar as páginas de um livro que
Tem gente que precisa entender que literatura deve tratar, como trata, muitas vezes, do mundo em que se vive, não somente do mundo em que se gostaria de viver.
tratasse sobre abuso sexual de meninos, a construção da sexualidade em meninos abusados e o desejo de vingança que, tenho certeza, atravessa a vida dessas crianças. Três porcos é um romance e deve ser lido como tal. Se fosse pra me resolver, teria ido à terapia. Mas eu abandonei a terapia para poder escrever este livro, então…
Uma de minhas passagens favoritas está mais ao final do romance, de quando o protagonista se confronta frente a frente com um de seus abusadores - ainda que em pensamento - e lhe revela o nome do romance que está desenvolvendo: “Três Porcos”. É, para mim, o ápice da trama. Essa passagem é poderosa porque parece ser o ponto exato de convergência entre ficcional e biográfico do qual a narrativa larga pistas desde o início. Em sequência: “Não se resolve nada escrevendo, não se arruma nada escrevendo, pelo contrário, isso aqui só serve é pra bagunçar ainda mais a coisa toda, a vida, a literatura, esse livro, e não perguntem mais se vivi algumas dessas coisas.” Um empecilho providencial nas linhas e entrelinhas de investigação dos eventuais leitores-detetives...? Não precisa responder, mas gostaria que você tecesse alguns comentários sobre os trechos em questão. O narrador de Três porcos está sempre em diálogo com alguém. Ora com quem lê o livro, ora com a figura ausente de sua ex-mulher (cuja importância está mesmo na ausência), ora consigo mesmo. Não há somente uma vingança ali, mas três: uma delas é a escrita do próprio livro, outra a que encerra a narrativa, outra ainda termos sobrevivido (porque não se trata de mim, somente) a tudo que nos aconteceu, a tanta culpa, a tanto remorso; sobreviver, me parece, é uma forma de vingança quando sabemos que muita gente abandona a vida antes da hora por não conseguir lidar com suas lembranças ou com o peso que elas acabam ganhando no decorrer do tempo.
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Quero falar agora da personagem sem nome, que aparece ou é mencionada em pelo menos sete capítulos sem que haja menção expressa ao seu nome ou a qualquer descrição física. Isso se dá de forma distinta com as demais personagens, já que tanto as figuras centrais (Bruno, Beto, Valter) quanto as secundárias (Felipe, Zezinho, Lindaura, Antônia, Letícia, Fernanda) são citadas expressamente e descritas por vezes com riqueza de detalhes. Sem forma definida, a personagem sem nome faz lembrar as translúcidas mulheres das fotografias de Francesca Woodman que se fundem ao cenário em volta. Ao leitor é dado conhece-la a partir de suas ações: quer seja encorajando o protagonista, criticando seu trabalho (“página a página, extraindo dali minhas fraquezas”) ou descendo as escadas com malas nas mãos. Você percebe que, embora menos aparente, ela se mostra para além das demais figuras? A ausência da mulher de Rafael é talvez o estopim da arquitetura da vingança. E, por ser ausente, talvez já tenha se tornado ideia no momento em que Rafael – e seu narrador – falam sobre ela. Talvez tenha deixado de ser ideia para ser fantasma. Essa ausência de características, mas com uma presença reforçada, pode demonstrar o que resta dum fim de relacionamento: algumas imagens esparsas, alguma sensação incômoda do que poderia ter sido e que não foi, algum perfil da pessoa deixado pela luz acesa de uma vela ou de uma luminária. Percebo que, enquanto figura ausente, está no cerne dessa narrativa. Marcelo, você é um provocador nato, isso fica evidenciado no capítulo 18 de Três Porcos. Não tem receio de ser detido ou multado pela Excelentíssima Patrulha da Moral e dos Bons Costumes que se faz tão ativa nos dias de hoje? [Diga que não. Precisamos de mais escritores malditos no front.] Ou foi essa justamente a sua intenção? Não quero brigar com ninguém, mas tem gente que precisa entender que literatura deve tratar, como trata, muitas vezes, do mundo em que se vive, não somente do mundo em que se gostaria de viver. Se alguém se ater a um momento como esse e ignorar todos os outros capítulos em que procuro dar profundidade a
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esse protagonista multifacetado, será – como quase sempre – desonestidade. O desonesto sou eu, que escrevo ficção.
O que se espera d um homem heterossex Que seja viril, que tenha renda, que seja inteligente, diplomado, que tenha uma esposa, que tenha filhos, que tenha casa própria, que tenha um carro, que tenha uma carreira, que se exercite, que tenha saúde, que tenha dentes brancos, que tenha pelos, que tenha cabelo em toda a extensão da cabeça, que isso e que aquilo. Eu não tenho nada disso, e tenho minhas próprias respostas para o porquê de não ter.
de m xual?
A respeito do personagem Bruno, “o filho do homem que me tirou o homem que eu poderia ter sido”, você o descortina como “um homem que não é e não poderá nunca ser”. Em outro trecho, lê-se: “corta o cabelo dele como homenzinho vem / não vai usar collant coisa nenhuma não vai fazer balé coisa nenhuma”, “vai calçar sapato de homenzinho vestir a camisa de homenzinho aperta o cinto de homenzinho fode as mulheres como homenzinho mas não é nem nunca será um homem apenas um homenzinho”. Esses trechos podem ser interpretados como denúncias do processo de construção forçada de uma identidade tipicamente masculina. Você, como homem, também se sentiu como que moldado à força ante uma submissão imposta pelo ranger de engrenagens do social? Três porcos é também um livro sobre homens. Eu sei que já há muitos livros escritos por e para homens, mas a questão aqui é um pouco outra, porque questiona algumas estruturas da sociedade heteronormativa em que vivemos. Então quando Rafael se refere a Bruno como “um homem que não é e não poderá nunca ser”, também está se descrevendo porque, veja, há um modelo de homem ideal que é perseguido doentiamente. Enquanto tipo ideal, esse homem é inatingível, embora tenhamos imagens de como ele se parece nas redes sociais. O que se espera de um homem heterossexual? Que seja viril, que tenha renda, que seja inteligente, diplomado, que tenha uma esposa, que tenha filhos, que tenha casa própria, que tenha um carro, que tenha uma carreira, que se exercite, que tenha saúde, que
tenha dentes brancos, que tenha pelos, que tenha cabelo em toda a extensão da cabeça, que isso e que aquilo. Eu não tenho nada disso, e tenho minhas próprias respostas para o porquê de não ter. Algumas delas estão em alguns acidentes de percurso que tive durante a vida, como Rafael teve, como Bruno também teve, então essas personagens estão requerendo para si um lugar que não lhes cabe, porque não têm nada ou têm muito pouco do que se espera de um homem em nossa sociedade. E isso, de certa forma, lhes foi tirado por circunstâncias avessas à sua vontade. O que é ruim, claro, porque não gostaria de carregar comigo nem metade da amargura que carrego, mas me é bom também porque tento – e às vezes consigo – transformar tudo isso em arte, ou quase. Eu quero falar da entrega do autor ao texto, do transe lúcido inerente ao processo de criação. Um outro trecho de Três Porcos me dá as informações de que precisava para chegar nesse assunto: “Nem tudo no texto é controlado. Nem tudo ali é pensado palmo a palmo. Tem coisas que só vão. Como tu na tua vida: só vai. Acho que sim. Sempre em frente, independente do caminho.” Como escritor, que porção de caos você abarca no processo de construção do texto? Diria que experimenta, como Rimbaud, um sentimento de entrega a um “longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos” ou há uma parte sua que luta contra isto? Há planejamento, há esquemas, há muito pensamento envolvido, mas nada é mais bonito do que quando a escrita se torna transe e as palavras vão se
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somando, se somando, e eu não tenho ideia do que estou fazendo, mas sei exatamente o que estou fazendo. É essa ambiguidade da criação o que me faz criar, parece; esse momento confuso em que a razão cede à emoção, mas não muito, ou não tanto, ou sim, muito mesmo, e o que vem é um jorro de palavras; depois, claro, na releitura, muito disso é aparado; nós são feitos e desfeitos no processo de edição, que se não é mais importante do que o processo de escrita, está quase ali na importância. Mas eu me entrego, sim. É disso que se trata a arte, para mim. Há uma cena do romance que se passa em um velório. Todo velório é mais ou menos parecido com outro, a diferença substancial consiste na circunstância que conduz o indivíduo até lá e a posição que ele ocupa no ambiente. Você não acha que, como certa vez escreveu Rachel de Queiroz, os ritos funerais tradicionais só fazem prolongar o sofrimento e reforçar uma impressão de trauma? Talvez, talvez. A primeira vez que pensei nisso foi lendo uma entrevista de Dado Villa-Lobos, a primeira concedida após a morte de Renato Russo, em que ele dizia que era estranho terem cremado o corpo de Renato sem velório porque existe a função social do velório e do enterro. Tudo bem, isso foi nos anos 90 e ainda não havia tantos crematórios como existem hoje. Eu acho horrível, realmente não gosto, me causa desconforto a presença do morto, mas penso, por outro lado, que é um momento de partilha da dor causada pela perda de uma pessoa querida entre gente que se quer bem. Do morto não adianta se despedir, pois está morto, mas há algo entre os vivos, quase uma celebração por não serem eles que vão ali dentro do caixão. Também é um momento de catarse, de pedir perdão e oxalá se sentir perdoado, de despedir-se, de encerrar uma trajetória que pode ter sido de muita alegria, de muito amor, mas de muita dor também, que a vida é resultado de tudo isso.
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Que escritores vivos ou mortos fazem você se sentir pequeno diante de? O problema de ter deixado de ser leitor para ter me tornado também escritor é o “eu teria feito isso de outra maneira”, “essa personagem teria dito outras palavras”, que é um processo de intenção de reescrita do livro alheio que resulta em repensar meus próprios procedimentos criativos: não posso, se não for convidado a fazê-lo, apontar para um autor o que eu acho que poderia ter sido diferente em sua escrita, mas posso apontar essas críticas para o que eu mesmo produzo. Isso exige paciência e cuidado, porque autocrítica pode ferir mais do que a crítica alheia, afinal. Eu sou leitor do cânone modernista, acho que Drummond e Bandeira estão acima da maioria dos poetas brasileiros; leio e admiro Cony, João Ubaldo, Jorge Amado; tenho tantos amigos poetas para citar, então não o farei, mas digo que tenho lido mais a poesia de mulheres que de homens, porque me parece que os homens temos formas muito semelhantes de dizer as mesmas coisas, enquanto as mulheres não somente escrevem a partir de seus mundos que nos são alheios – como o fazem com uma riqueza difícil de alcançar, de imitar, de contrapor. Amanda Vital, Mar Becker, Juliana Maffeis, Isabela Penov, Micheliny Verunshck, Maria Valeria Resende. O que você gostaria de ter escrito e ainda não escreveu? Tenho dois romances para escrever, logo começo um deles. Então à essa pergunta eu responderia: o que vai ter que esperar esse primeiro ficar pronto para então poder ser escrito. Mas tem uma segunda resposta também: o livro que eu gostaria de escrever, sei que nunca conseguirei deixar registrado. Porque é um livro impossível de ser escrito, de se trabalhar nele. Acho que tudo quanto escrevo, da poesia à prosa, é resultado do fracasso diante da escrita: o livro que quero escrever não poderá nunca ser escrito, mas eu insisto. Não será isso aquilo a que chamamos literatura? A aceitação dessa incapacidade? Tem me parecido que sim.
Se você fosse o entrevistador e eu fosse o entrevistado, que pergunta não deixaria de fazer? Por que viver? Por que amar? Por que não? [Respondo o mesmo para as três perguntas: porque não tenho escolha, Marcelo.] Para finalizar, o que gostaria de colocar como suas palavras finais? Faça um desabafo em alto e bom tom ou deixe um recado hermético para a posteridade. Diga aquilo que sempre quis dizer e que nunca te deixaram ou rabisque uns versos rápidos sobre ter concedido esta entrevista. Fica a seu critério. Vale ainda compartilhar com nossos leitores uma receita excelente de quindim para este período de quarentena. Eu poderia dizer apenas “Quando tudo isso passar...”, mas talvez nunca passe, talvez nada disso passe – isso: as mortes das populações vulneráveis, os feminicídios, os infanticídios, os abusos que não matam mas aleijam, os acidentes de trânsito, as quedas de andaimes, os traumas, as violências todas, esse vírus e todos os outros. Não vai passar, não nos enganemos. No entanto, quem quer falar de enganar-se? A arte e as armas estão aí para nos mostrar que deve haver saídas, que devemos criar essas saídas para o caos constante em que chafurdamos. Hoje, vivo só em um apartamento com duas gatas. Minha geladeira faz barulho à noite. Minha cama está quebrada em dois lugares. Sorte que há redes de proteção nas janelas, assim as gatas e eu temos mais tempo para ver esse mundo se acabar em nada. Tempo e sorte, porque não nos falta comida, porque temos energia elétrica, água quente. Essa noite fez 10 graus em Florianópolis, e a noite que agora se adianta parece que será mais fria. Nada disso vai passar, mas nós passaremos. Que façamos algo pelas pessoas enquanto estamos aqui. Enquanto ainda estamos aqui. Enquanto ainda ousamos estar.
Por que viver? Por que amar? Por que não?
Entrevista concedida em Julho de 2020.
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Marcos Tedeschi é um pintor e artista plástico de São Paulo. Iniciou seus trabalhos com pintura a óleo aos 18 anos de forma autodidata. Suas obras retratam o indivíduo humano solitário em sua própria existência, atormentado por monstros, aparições e fantasmas da Consciência e da Razão, envolto em tentativas agoniadas de – nas palavras do artista – “racionalizar a confusão e o erro”. Solidão, religião, sexualidade, bem como a dicotomia rejeição-aceitação são algumas das palavras-chave que constituem os principais temas de suas obras surreais. Minha, minha, minha! 2018
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Mapa do Sonho, 2015
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CENSU
Obra censurada pel
Brasil 2019, 2019
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URADO
la plataforma issuu.
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Obra censurada pela plataforma issuu.
Sem tĂtulo, 2019
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Obra censurada pela plataforma issuu.
Menina, 2017
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Obra censurada pela plataforma issuu.
Sobre u que tive 2014
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How do look? 2018
um sonho e,
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�RETRATOS� �DA�NOSSA� �MELANCOLIA� �EM� �LARS�VON� �TRIER� Por Paulo Ferrareze Filho Texto publicado originalmente no site cafefilosofico.com
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Melancolia, 1981 Paul Gauguin
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O coronavírus trouxe consigo ares de morte, de vazio, de nada, de fim-de-mundo. O filme Melancolia (2011), de Lars von Trier, prenuncia um cenário similar, tanto pela catástrofe anunciada quanto pela atmosfera pré-apocalíptica. Trier cria um enredo em que um planeta está prestes a chocar-se com a Terra para pôr termo à raça humana. Trata-se, portanto, de um retrato da melancolia que antecede a extinção da raça humana. Demonstra como nós, humanos, nos relacionamos com a morte a partir da angústia. Como somos frágeis diante de um término que não admite arrependimento posterior. Revela-se, enfim, o estado de tristeza profunda que circunda nossos processos de luto antecipado. Trier foi, junto com Thomas Vinterberg, um dos precursores do movimento de cineastas que ficou conhecido como Dogma 95. Esse movimento, criado em 1995, pretendia, a partir de dez princípios reitores, recuperar o realismo e o cinema de autor numa época em que a sétima arte atingia as massas – e lucrava muito com isso – valendo-se de efeitos especiais, exatamente como aconteceu em clássicos de bilheteria dos anos 1990 como Jurassic Park e Exterminador do futuro.
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Movimento de cinema surgido 1995 e idealizado pelos diretor dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg. Juntos esc veram o “Manifesto Dogma 95 e os “Juramentos da Castidade contendo orientações para a cr de filmes que se baseiam, acim tudo, nos valores de roteiro, atu ação e temática, excluindo o us de efeitos especiais elaborados qualquer recurso tecnológico. A sofia principal do movimento e de retomar o poder dos diretor cinema como artistas, em opos às práticas da indústria vigente tarde juntaram-se à eles os dire Kristian Levring e Søren Kraghbsen, formando o Coletivo Dog 95, ou “Dogme Brethren”. Ao t 35 filmes foram realizados dent orientações do Dogma 95, entr “Festa de Família” (Festen) e “ idiotas” (The idiots).
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Ofélia, 1851-1852 John Everett Millais
Alguns dos princípios do Dogma 95 são notáveis e estão presentes em Melancolia: (a) Uso da câmera na mão para fazer com que o realismo da instabilidade (subjetiva) cause incômodo no espectador. Essa perspectiva é uma das marcas de Trier, que mais de uma vez afirmou que se os filmes não causam incômodo não são realmente bons. (b) É vetada a realização de filmes que não retratem a época atual em que são filmados e produzidos. Daí porque, em tese, os filmes do movimento Dogma 95, exatamente como é o caso de Melancolia, são metáforas cruas do mundo contemporâneo. Assim é que podemos conjecturar que essa despersonalização pretendida pelo movimento faz dos filmes retratos-diagnósticos não só de dramas pessoais, mas também de dramas coletivos e sociais, ou seja, são filmes-metáforas do ar de nossos tempos. Para Lacan, as metáforas são as figuras de linguagem que, na clínica, anunciam sintomas. Com essa premissa, Melancolia funciona como o retrato-subjetivo do mundo contemporâneo: nossas relações, valores, referências, fraturas e prevalências são expostos na tela pelo gênio de Trier. Mas Melancolia não trata apenas do social.
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No filme Dançando no Escuro, de 2000, Trier já criticava o modo de constituição das relações de trabalho nos Estados Unidos no início do século XXI. Em Melancolia, o tema e a crítica retornam. No casamento de Justine, a cena dos votos aos noivos é representativa não só pela metáfora que faz dos discursos que circulam em nosso espaço público, mas também pelo fato de que é o chefe de Justine o primeiro a proferir o voto. Ele também é quem toma mais tempo na sequência em que ainda falam o pai, o marido e a mãe da noiva. Eis o modo sutil de Trier denunciar como as relações de trabalho preponderam sobre as demais dimensões da vida. Como imperativo categórico, as relações de trabalho e o eficientismo que o mercado requer estão incomodamente retratadas quando o chefe, além de enfatizar apenas qualidades profissionais de Justine, lhe oferece, em meio ao voto, uma promoção na empresa. Certo é que a possibilidade de ser promovido faz sempre par antitético com a ameaça de demissão. Ao mesmo tempo em que a eficiência pode conduzir à elevação salarial e hierárquica na empresa, a ineficiência pode significar descartabilidade. Não sem razão que a crítica de Trier se consuma quando Justine, já tomada pela depressão, pede demissão ao chefe em meio ao casamento de modo áspero dizendo: “– nada é demais para você Jack. Eu odeio tanto você e sua empresa que não poderia encontrar as palavras para descrever isso. Você é apenas um homem desprezível e sedento de poder…”. Trata também do psicossocial. Em super câmera-lenta e com a trilha pontiaguda de Wagner em Tristão e Isolda – estratagema já utilizado por Trier em Anticristo (2009) – o prelúdio do filme anuncia um caminho onírico e inconsciente. A composição das imagens e da música, uma vez embebidas em lentidão, sugerem que o filme fala a língua dos sonhos, a via régia para o inconsciente. A cena em que Justine caminha sofregamente com raízes que a impedem de avançar pode representar a “exclusão de formas optativas” que Freud qualificava como uma das características precípuas dos sonhos.
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Cenas do filme Dançando no Escuro
O quadro agonizante e disruptivo de Justine lembra os sintomas da Síndrome de Burnout, nome dado pela psiquiatria para quadros psíquicos e somáticos de adoecimento causados pelo esgotamento no trabalho. O mercado dita, por meio da necessidade de consumo, as ordens imperativas que legitimam a narrativa neoliberal da eficiência e do progresso. É justamente na contramão dessa narrativa que Justine caminha quando pede demissão e manda o chefe às favas. Nesse contexto, a concorrência voraz é anestesiada pelo discurso que nos instiga a ver as dificuldades como obstáculos que podem ser vencidos por alguém obstinado e empreendedor, como se fosse possível existir uma massa de Michael Jordans exitosos nesse cenário de concorrência cruel e desigual. Esse efeito ricochete exercido pelo imperativo da concorrência faz com que a liberdade individual acabe consumindo a si mesma. Eis o paradoxo do neoliberalismo: oferece liberdade, mas entrega sua própria restrição. Por isso, como anunciou Foucault no livro Nascimento da biopolítica, se no liberalismo clássico as leis existiam por causa do mercado, no neoliberalismo a lei existe para o mercado, a lei serve ao mercado. O mercado torna-se, pois, o destinatário das ações do Estado. Se no discurso manifesto aposta-se no Estado mínimo, no latente o Estado se torna máximo na medida em que garante a ferro e fogo a livre concorrência apenas entre meia dúzia de grandes tubarões. Não sem razão que no Brasil, até hoje, apenas cinco grandes bancos detém a maior fatia de clientes e concentram mais de 90% de toda a circulação de riquezas e ativos do país. Por outro lado, como o neoliberalismo joga com o desejo de pertencimento por meio do consumo, faz do próprio lugar de oprimido um lugar de desejo. O oprimido não quer apenas permanecer nessa condição, na medida em que, por ter assegurado emprego e renda mínimos, consome as migalhas do parque neoliberal, mas também porque ocupa o lugar que o excluído (o desempregado) não tem. Logo, mesmo que o trabalhador oprimido e ingênuo sonhe em se tornar o empregador-opressor, na realidade sabe que, na selva neoliberal, ao manter-se empregado já está literalmente “no lucro” (na realidade com muito pouco dele…).
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Aqui funciona bem a máxima de La Boétie de que a dominação é mais eficaz quando há voluntariedade por parte do dominado. Todo esse quadro está presente em Melancolia, seja na relação absurda que Justine tem com o chefe em sua festa de casamento, seja pelo fato de que a melancolia das personagens habita um palacete com um jardim imenso e belo, próprio de reis e de ricos. É o tamanho absurdo dessa fenda desmedida entre os extremos gerados pelo neoliberalismo que simbolizam o sintoma hemorrágico que assistimos nesse verdadeiro filme-diagnóstico de Trier que é, sem chance de dúvida, um gênio vivo de nosso tempo. É a animalidade humana que adoece na medida das overdoses produzidas pelo machismo patriarcal e cavalar, seja nas relações de trabalho, nas relações afetivas ou nas relações sociais. É por isso que Justine, chamada de “tia invencível” pelo sobrinho, é capaz de demonstrar verdade com um choro não permitido ao mundo macho. É também por isso que pode suplantar o medo do pequeno homem que habitava o sobrinho. De modo a mostrar que os projetos em torno da hombridade humana carecem de uma nova edição: agora baseada na sensibilidade, na escuta do outro, na alteridade e nas capacidades mágicas da empatia. Enquanto o marido de Claire dá ao filho a crua notícia de um fim que era insuperável, a “tia invencível” sugere com firmeza que uma “caverna mágica” poderia proteger-lhes do fim absoluto. É nessa caverna mágica, uterina e sensível que deve morrer o machismo.
Paulo Ferrareze Filho é Pós-doutorando em Psicologia Social (USP), Doutor em Filosofia do Direito (UFSC) e Mestre em Hermenêutica Jurídica (UNISINOS/RS). Também é curador do Caos Filosófico de Balneário Camboriú/SC e editor da Revista do Caos Filosófico.
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A�MELANCOLIA�DEVÉM�DA� NEGAÇÃO�DE�UM�DEVIR-MULHER Deleuze qualificou os devires como linhas de fuga. O que Trier faz é exatamente uma linha de fuga. Isso porque constata como o modelo contemporâneo de vida e de organização social é potencialmente melancólico na medida em que ainda resiste em calar a voz das mulheres não raro com violência contra os seus corpos e almas. Com olhos de homem, Trier quer ver a partir do olhar de uma mulher. Essa é uma recorrência da sua chamada trilogia da depressão, já que em todos os filmes é das mulheres que parte a enunciação. Quando Bolsonaro legitima a violência sexual contra mulheres em pleno Congresso, quando a Folha de S. Paulo noticia apenas a rotina de juristas homens na quarentena, quando constatamos que o parlamento brasileiro é composto por apenas 15% de mulheres ou quando percebemos que são as mulheres as que melhores resultados obtiveram no tratamento do coronavírus, percebemos como este é um tema central não só no filme de Trier quanto do nosso contexto psicossocial. Justine é uma Antígona renovada que transgride a lei dos estereótipos masculinos. Por isso rompe com o chefe ao pedir demissão, com o marido ao separar-se antes mesmo de consumar o casamento e com a figura paterna na medida em que assume, com a irmã, o papel não desempenhado pelo pai de seu sobrinho, que se suicida antes do fim do mundo.
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Poemas de MATH EUS GU M ÉN I N BARRETO do Livro “M ESMO QU E SEJA NOITE” (Editora Corsário-Satã, 2020)
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o amado que toca os pulsos mornos de seu amado e o braço e as mãos tremulargênteas e o rosto toca e o sexo quente e afiado o amado que toca os pulsos mornos de seu amado e sabe de repente o que é um ensolarado riso e a noite antiquíssima que o olha de volta
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a cegueira do homem que de seu corpo morno soletra o corpo morno d’outro homem os sinais as vírgulas discursa entre duas bocas e recita, extático e nu, a abrasada violenta poesia que o corpo maquina na carne
descobrir as palavras eu te amo pesar na mão cada uma, medir sua massa numa mão n’outra articular a língua os lábios dentes como pela primeira vez um homem o fez um homem o fez a outro homem testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala testar cada som e sombra que acaso fique nas arestas do a, do e descobrir as palavras eu te amo e a violência que é usá-las
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mãos que levantaram-se e caíram no fluir inadiável do tempo e dia por dia ano por ano escavaram o tempo até aqui chegarem a estas minhas mãos morenas sob este céu transparente sobre este teclado mãos que levantaram-se e caíram nos afazeres e no fazer do tempo que ele é por elas feito e elas por ele engolidas o trabalho comum que é o tempo esta conta de vidro mão por mão gesto por gesto feito e abandonado como as ondas consecutivas na praia como o fio que se tece só em parte tempo – minhas mãos aquelas também sob estas
pulsos frescos de amor alegres do arrear o amor e serem por ele arreados
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o mapa do corpo sob as mãos desenhando itinerários bruscos mornos contornando bocas que não existem, mas que existirão pés que não andaram, mas andarão sexos que não se apontaram mas que se apontam, agudos, sob o toque devagar como o encontro de um trópico último com um último meridiano os olhos nublados de algo que não se adivinha o homem tem o homem nas mãos e as mãos seguem seu cego itinerário provisório apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento – apagado como a praia e o vento que a inaugura
Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020). É um dos editores da revista Ruído Manifesto. Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Leipzig na área de Língua e Literatura Alemãs - subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg. Teve poemas seus traduzidos para o inglês, o espanhol e o catalão; publicados em revistas no Brasil, na Espanha e em Portugal; e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou em periódicos ou em livros traduções de Bertolt Brecht, Ingeborg Bachmann, Johannes Bobrowski, Nelly Sachs, Paul Celan, Peter Waterhouse, Rainer Maria Rilke e outros. Entre os cursos que ministra esporadicamente está o “Verso vivo: introdução ao verso livre e ao verso fixo de Shakespeare a Criolo”.
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God is in the house: Nick Cave profeta e vidente.
Por Yasmin Bidim Este ensaio inédito é uma reelaboração da resenha escrita na ocasião do show do Nick Cave no Brasil, em outubro de 2018, publicada originalmente no site Livre Opinião: Ideias em Debate: disponível em: https://livreopiniao.com/2018/10/23/godss-in-the-house-nick-cave-and-the-bad-seeds-em-sao-paulo-por-yasmin-bidim/. A mesma versão da resenha, com pequenas alterações foi publicada também em meu blog pessoal, A Terra é Plana. Disponível em: https://aterraeplena.blogspot.com/2020/04/god-is-in-house-nick-cave-and-bad-seeds.html.
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omingo, dia 14 de outubro de 2018, foi um dia especial na narrativa da minha mitologia pessoal. Nesta data assisti ao show do Nick Cave and the Bad Seeds. Eu que há um ano já estava mergulhada de cabeça na obra de Polly Jean Harvey e naquele momento começava a descobrir o cantor e poeta australiano. PJ Harvey e Nick Cave têm sido espécies de gurus artísticos pra mim. Ainda que não me considere uma pessoa mística, há algo neles que em mim ressoa de modo profundo. Há uma simbiose entre som e sentido em suas canções que exerce um poder de me arrancar do tempo e simultaneamente me fazer estar de modo absoluto no agora. Cada um desses artistas – que foram um casal nos anos 90 – é uma personagem em minha mitologia pessoal. Cada um merece ter sua história contada. Eu ainda não consigo falar da PJ. Talvez por ser irracional demais. Não encontro ainda as palavras. Mas consigo falar de Nick Cave, consigo contar sua história dentro da minha história. E foi assim, então, que naquele domingo de uns anos atrás eu fui ao show do Nick Cave em São Paulo, onde nos anos 90 o próprio Nick viveu por um tempo. Onde eu também, vejam só, morei por alguns anos na década de 90. Hoje vivo no interior. A west country girl, como minha mitologia pessoal assim me autoriza.
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Assim, o que me ocorre é que, muitas vezes, o que é visto como profecia nas artes, como um ato de previsão do futuro, talvez seja muito mais a manifestação dessa capacidade de ver de maneira muito crua o que já é. 86
E foi neste mesmo interior onde hoje eu vivo que, um dia, recebendo a visita de um amigo escritor, passamos muitas horas conversando sobre nossos projetos, nossas referências, nossa escrita. Era um dia de festival e estávamos num parque, num grande gramado em frente a um palco. Conversávamos entre os shows. Nomeávamos autores, poetas e cineastas. Falávamos sobre nossas percepções e nos excitávamos percebendo as conexões que haviam entre nossos imaginários, entre nossas visões de mundo. Num determinado momento da conversa, que neste ponto já estava sob efeito de algum psicotrópico, eu comecei a falar de um livro que havia lido recentemente e que havia impactado profundamente minha escrita poética. Comecei descrevendo o livro de maneira efusiva sem mencionar autor ou título, falei de como que, depois de ler um capítulo, eu sentia uma necessidade absurda de sentar e escrever um poema que desse vazão a tudo que o livro em mim despertava. De repente, num certo momento, meu amigo me interrompeu e perguntou “você está falando do Recusa do não-lugar, do Juliano Garcia Pessanha?”. Sim, eu estava. Nesse momento um portal pareceu se abrir. Percebemos que de algum modo havia uma comunhão entre nós que partia do reconhecimento de tudo aquilo que estava escrito naquele livro.
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Foi mais do que um simples reconhecimento de que nós dois gostávamos muito do livro. Havia um compartilhamento de imaginário, de ideias. E foi então que meu amigo disse algo que sempre ressoa em mim. Não me lembro as palavras exatas mas ele disse que acreditava haver algo como uma nuvem, uma rede de ideias que paira sobre nós. E vez ou outra alguém pesca uma ideia, alguém identifica algo que está lá. E muitas vezes mais de uma pessoa faz isso. Várias pessoas acessam determinadas ideias que estão lá, pairando num grande fluxo de pensamento. No nosso caso estávamos olhando para as mesmas ideias, estávamos compartilhando uma parcela desta subjetividade que não é interna a nenhum sujeito, mas é das coisas, está nas coisas no mundo. Sempre que leio a palavra imanência e meu cérebro tenta formular uma imagem que dê conta deste conceito é algo como a imagem da rede de ideias que meu amigo descreve que me surge. Mas este texto não é sobre o livro de Juliano Garcia Pessanha. Poderia ser, pois é um livro que me dá muito o que falar e sentir. Mas essa breve história pessoal apareceu aqui para que eu conseguisse ilustrar essa ideia de que, justamente as ideias, não são necessariamente dos indivíduos.
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Mas elas pairam, elas se renovam e se criam como parte deste conjunto de subjetividades e se elas podem se manifestar dentro de nós e podem ser expressas em obras e criações é porque primeiro houve uma sensibilidade em reconhecê-las, em vê-las ali onde elas originalmente estavam: nas coisas do mundo. Assim, o que me ocorre é que, muitas vezes, o que é visto como profecia nas artes, como um ato de previsão do futuro, talvez seja muito mais a manifestação dessa capacidade de ver de maneira muito crua o que já é. De olhar para a imensa subjetividade na qual nos inserimos não de modo a buscar nela alguma transcendência, mas justamente conseguir olhar para o que já está ali nas coisas do mundo. Desse modo, uma arte dita profética, uma arte que conseguiria olhar para o futuro e ver além de seu próprio tempo. Aqui destaco a importância da visão, do verbo ver. Ser contemporâneo é poder, de algum modo, ver o seu próprio tempo. E essa visão implica em tomar alguma distância. O contemporâneo, nesses termos, não é sinônimo de tempo presente, mas uma postura em relação ao próprio tempo presente. Nesse sentido é que podemos dizer que poetas e escritores que em suas obras parecem ter previsto o futuro na prática foram rigorosamente contemporâneos ao seu tempo e puderam vê-lo de forma crua e distanciada.
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DE$#&$H Assim, o que entendo que opera na arte é muito mais uma potência da vidência que da profecia. Ainda que possam ser aplicados como sinônimos, proponho aqui fazer uma diferenciação entre os dois termos. O profeta, na tradição da transcendência cristã, é aquele que recebe as revelações divinas. A profecia é a manifestação da voz e da visão de Deus. E, ainda que o profeta possa ter visões, elas são manifestações desta transcendência divina. A vidência, do modo como vejo, converge com essa ideia de poder ver aquilo que já está de alguma forma dado. A vidência é esse ato de acessar a rede da imanência. De, por meio do distanciamento, ser capaz de ver com clareza. “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. A vidência não é necessariamente, prever o futuro, mas ver no escuro do agora. Nos seus livros sobre Cinema, Deleuze introduz a figura da personagem-vidente no cinema que surge no pós-guerra e se desdobra nas vanguardas européias como o neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa. As personagens videntes são aquelas que, diante de uma situação de extrema beleza ou de extremo horror, não mais conseguem agir. Elas surgem quando o cinema rompe com a forma clássica hollywoodiana do cinema de ação e passa a produzir imagens que Deleuze identifica como imagens ótica e sonoras puras, imagens diretas do tempo. Imagens-tempo ao invés de imagens-movimento que antes dominavam o cinema.
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Na imagem-tempo não é o movimento (a ação) que dá uma ideia de síntese temporal. Mas antes o tempo em sua abstração e seu caráter absoluto que compreende o movimento. E esse movimento é caracterizado justamente pela vidência, pela incapacidade de agir no mundo, no próprio tempo cronológico, em detrimento de um impulso de ver, de observar como se estivesse fora do tempo. A vidência é esse olhar de fora que permite uma abstração do tempo, uma indiferenciação entre passado, presente e futuro. Deleuze aproxima o vidente do visionário, aquele que vê além de seu tempo, termo que, por sua vez, encontra eco na noção de contemporâneo de Agamben. Ser contemporâneo, então, considerando a perspectiva de Agamben, é situar-se de certo modo num tempo indeterminado do ponto de vista histórico, o que permite colocar em relação outros tempos, permite olhar para o passado como o presente que um dia ele foi. Um retorno “a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la”. Mas, ainda que não possa alcançar a origem, entendo que a arte pode sim encená-la, atualizá-la de alguma forma na criação e constituir um novo presente que mantém essa relação direta com o passado e com o mito e com o presente como devir histórico. E justamente por este posicionamento de estar dentro e fora, de abstração do tempo histórico, é que as encenações e atualizações que a arte faz do passado inserem-se no domínio de um tempo arquetípico, de um tempo que é todos os tempos. Então, se por um lado a ideia de uma arte profética parece apontar para obras que previram certos acontecimentos e realizações humanas, por outro me parece que essa potência é mais a capacidade de olhar para o escuro do presente à luz do passado. O contemporâneo como o “lugar de encontro entre os tempos e as gerações”
E como exemplo Agamben menciona o apóstolo Paulo, que fala no “tempo de agora”, num tempo indeterminado que é o tempo messiânico, que “tem a capacidade singular de colocar em relação consigo mesmo todo instante do passado, de fazer de todo momento ou episódio da história bíblica uma profecia ou prefiguração […] do presente”. A profecia se dá, então, no presente, que tornado como tempo original, tempo arquetípico, pode relacionar-se com o passado, pode encená-lo e apontá-lo como prefiguração. Entendo, então, que a ideia de profecia nas artes está muito mais ligada a uma relação íntima com o passado, com a origem e com os mitos fundadores da cultura do que com uma ideia de previsão do futuro. O que por vezes é tomado como previsão eu vejo como a visão contemporânea, nos termos de Agamben, como a vidência, a capacidade de ver o que já está ali de algum modo, mesmo que no escuro. A percepção de uma relação fundamental com os mitos da nossa cultura, com o passado como origem já me alcançara nos primeiros contatos que tive com a obra de Nick Cave e com suas manifestações como persona artística. A comparência insistente da figura de Deus e outros elementos da cultura cristã em suas canções já me soavam como algo mitológico, como a invocação de uma certa imagem messiânica. Essa percepção se confirmou e se ampliou quando finalmente o vi performando ao vivo naquele domingo em 2018.
No palco, um ritual de ocultismo, exibicionismo, explosão de violência. Fifteen feet of pure punk-rock, cristianismo e uma dose cavalar de energia masculina. Nick é o líder. Não de uma banda, mas de um bando. Um bando de homens que fazem isso há tanto tempo juntos que o palco é como um altar, onde celebram as mesmas ladainhas, os cânticos, profanos porém sacros, na presença de fãs em busca de alguma espiritualidade em tempos globalizados. E Nick Cave mobiliza, em sua música, muitos elementos do imaginário cristão. Ele já mencionou em entrevista que gosta de ler a Bíblia e tem especial apreço pelo Velho Testamento. E ele com frequência convoca diversos símbolos e narrativas deste imaginário como uma espécie de mitologia que ecoa nas histórias e nos personagens que cria em suas canções. Algumas músicas soam como orações, como é o caso de “Into my arms”, que começa com o verso “I don’t believe in an intervencionist God”, mas incorpora um refrão que é essencialmente uma prece. As músicas não se descolam de um expediente essencialmente poético. São híbridos de canções com poemas sendo declamados. Comunhão entre ritmo e sentido. Para Octavio Paz “a repetição rítmica é invocação e convocação do tempo original […] e recriação do tempo arquetípico. […] Como no mito, o tempo cotidiano sofre uma transmutação no poema: deixa de ser sucessão homogênea e vazia para se converter em ritmo”.
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NOSS É o caso, por exemplo, de “The Mercy Seat”, uma canção que tem basicamente duas estruturas de acordes que se repetem exaustivamente. Uma canção que basicamente repete o mesmo refrão com algumas variações mas que ainda assim narra uma história: um prisioneiro condenado à morte que está prestes a ir para a cadeira elétrica. Basicamente em estrutura de monólogo, ao mesmo tempo em que o prisioneiro fala de si, ele convoca elementos da mitologia cristã. Conta que ouviu falar da história de Cristo, que ele foi crucificado, que seu trono no paraíso é feito de ouro, que viu seu rosto na sopa. “God is never far away”, diz um dos versos. E os versos que se repetem à exaustão em todos os refrões fazendo referência direta a lei de talião: “an eye for an eye / and a tooth for a tooth” que às vezes variam para “a lie for a lie / and a truth for a truth”. Muitas canções do grupo seguem essa mesma forma. O efeito, para quem assiste ao show, é catártico. Nick é presença o tempo todo. Canções de mais de 20 anos soam potentes como jovens, mas também sólidas – alegorias do sofrimento – ancestrais e cheias de memória. Não só a memória do bando e a memória do próprio artista. Mas as memórias da Música, das canções. Das formas de sofrimento de seres atormentados, traduzidas em espetáculo, compartilhadas pela música e pela poesia. Participamos de um ritual em que os códigos da espiritualidade cristã são colocados em choque e confrontados com a materialidade. Nick se projeta sobre o público, toca e é tocado. Pede que sintamos as batidas do seu coração. É de carne e osso. Nos lembra que não há espírito sem corpo e propõe um pacto: nós teremos o máximo que ele puder nos dar durante o culto-rito- espetáculo, mas teremos que retribuir com nosso amor e devoção.
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Cada canção apresenta um novo tema, são como parábolas. O drama dos nossos conflitos e medos encenados com toda a violência que a música permite. Com ira, mas também com compaixão e entrega total. Nick performa, como num transe, o homem mítico. Não sabemos se é Nick que reivindica seu lugar de santidade ou se o público o escolheu para cristo. Não importa. He’s a god, he’s a man, he’s a ghost, he’s a guru. É uma troca, um pacto. Somos seu objeto de desejo e ele é o nosso. A mitologia cristã é o que elege para construir o arquétipo de si mesmo. Qual o arquétipo? Podem ser vários: o pregador, o homem santo, o pecador, o homem que vê a face da morte, o messias. Mais que a profecia, ele encena o profeta. Na ocasião deste show estávamos em outubro de 2018, às portas da fatídica eleição presidencial. Ondas de “ele não” vinham do público. Nick Cave, que é conhecido por ser um artista que pouco expressa suas opiniões políticas, parecia impassível. Mas num certo momento, quando ele andava numa plataforma em meio a centenas de pessoas com as mãos erguidas em sua direção, como em louvor, ele cede ao apelo mundano da macropolítica e sussurra um “ele não”, afinal são as preces de seus fiéis. Nós cedemos a idolatria. Entoamos os cânticos.
SOOBJETO A força do apelo que Nick Cave exerce em seu público não é alcançada somente pelos temas e pelo vigor musical de suas canções. Há toda uma construção de uma imagem de si mesmo, de uma mitologia pessoal. Essa mitologia funda-se numa relação com o cristianismo como origem. Na imagem arquetípica de Deus. Pouco importa se ele crê em Deus ou não. Ambas as narrativas podem ser verdade. Mas o que importa não é a verdade, é a força da história de si mesmo que ele conta. A crença está nas imagens de sua criação. “Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo”. Pela suas canções, pela sua poesia que evoca o cristianismo como mito ele constrói sua própria narrativa mítica contemporânea, que encenada no palco é atualização da origem e manifestação do tempo arquetípico, do “tempo de agora”, do devir histórico do homem. A mais recente performance de Nick Cave foi online durante o isolamento social. Ele se apresentou sozinho num palácio. Ele, o piano, um jogo de luzes e a câmera movendo-se ao seu redor. O nome do espetáculo foi “Idiot Prayer”, homônimo a uma de suas canções. Há algo de intempestivo nesta obsessão com a cultura cristã que Nick Cave traz em sua obra.
Parece anacrônico que ela esteja presente de forma tão intensa num mundo permeado pela técnica, pela imagem virtual. De algum modo ele faz as coisas convergirem, talvez justamente por criar esse tempo descolado do tempo. Ao encenar como arquétipos os símbolos da cultura cristã ele confere a ela o status de mitologia, de origem, de algo que é de uma outra ordem temporal. Quando penso em Nick Cave acredito que de certa forma ele conjugue tanto a figura do vidente como do profeta. Vidente porque vê, no contemporâneo e usando recursos do contemporâneo, uma possibilidade de encenar o passado, de relançar a origem e torná-la atual, através do tempo mítico da poesia. E profeta porque se apropria dos códigos da mitologia cristã e, ao fazer isso, ele não lança uma profecia, mas performa a própria imagem da profecia como conceito.
Yasmin Bidim é pesquisadora, poeta, artista multimídia e produtora cultural. Doutoranda em Estudos de Literatura pela UFSCar, pesquisa as relações entre poesia e imagem na contemporaneidade. Produz o canal Poesia em Obra no Youtube e o blog A Terra é Plena. Em 2020 lançou seu primeiro livro de poesia, o Livro dos Interiores (Penalux).
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Por Lúcio Reis Filho
Lovecraft:
profeta da era nuclear Pensar a escrita de horror fantástico de Howard Phillips Lovecraft como prognóstico de catástrofes vindouras.
O escritor estadunidense H. P. Lovecraft (1890-1937) ganhou notoriedade no campo da literatura fantástica com sua weird fiction, cuja marca é a união entre horror e ficção científica. “A Cor que Caiu do Espaço” (1927), de longe o seu trabalho favorito, foi o primeiro dos seus grandes contos a celebrar essa união. Um fascinante “estudo de atmosfera”, na definição do próprio escritor, suas páginas concebem uma paisagem tenebrosa no coração da Nova Inglaterra, região mais antiga dos Estados Unidos e locus horribilis de sua composição ficcional. A premissa: um meteoro cai nas terras de um fazendeiro, liberando uma substância desconhecida que envenena o solo, os animais e as pessoas que vivem no local. A praga se espalha rápida e impiedosamente. Desde o início dos anos 1960, tem-se observado a semelhança inquietante das imagens de terra arrasada e do “descampado maldito”, descritos no conto, com os efeitos da radioatividade no meio ambiente. Ora, tais efeitos não somente eram conhecidos, no contexto da Guerra Fria, como eram fonte de medo. Não por acaso, a “cor” é verde brilhante, como urânio enriquecido, em Morte para um Monstro (Die, Monster, Die!, 1965), primeira adaptação do conto para o cinema. No entanto, falecido em 1937, quase uma década antes do advento da Bomba e da destruição de Hiroshima e Nagasaki, Lovecraft não poderia ter impresso em sua obra o medo de um holocausto nuclear, medo este que marcaria o futuro próximo, durante a era atômica.
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O raciocínio parece correto, mas não devemos ignorar os temas correlatos, como o envenenamento do solo por substâncias estranhas, os quais poderiam, sim, tê-lo influenciado. Bem como o imaginário em torno da radioatividade, que aos poucos ia se formando. Sabemos que Lovecraft, um autodidata, era consumidor insaciável dos conhecimentos científicos de seu tempo. Em I am Providence: The life and times of H.P. Lovecraft (2013), o biógrafo S.T. Joshi apontou o grande interesse do escritor pelos mais diversos ramos da ciência — química, fisiologia, geografia geologia, astronomia, antropologia e psicologia, para nomear alguns. À astronomia, por exemplo, dedicou-se antes dela se transformar em astrofísica e adentrar no domínio da filosofia, o que ocorreria em 1905 com a Teoria da Relatividade de Albert Einstein (1879-1955). Das suas áreas de interesse, a química não apenas foi a mais proeminente, como foi, também, responsável pelo despertar do seu interesse científico. Lovecraft, que fazia experimentos desde bem novo, chegou a obter um instrumento para detectar radiação. Ele realmente andava em sintonia com a ciência de seu tempo, já que os efeitos da radioatividade começavam a ser divulgados na década de 1920, sobretudo nos anos 1930, período mais prolífico da sua carreira literária. Esse campo, no entanto, era desbravado desde o início do século XX pela cientista polonesa Marie Curie (1867-1934), pioneira nos estudos sobre a radioatividade e a primeira mulher a ganhar um Nobel.
Mas nem só de prodígios e portentos científicos era feita aquela época. Ela foi, também, um momento de grande charlatanismo, terreno fértil para o surgimento de curas milagrosas, panaceias e métodos terapêuticos de natureza duvidosa, dentre os quais muitos empregavam a radioatividade. Nos círculos médicos, procedimentos de alto risco estavam em voga, como os banhos de rádio (o elemento químico) e o uso indiscriminado dos raios X, tanto quanto as geringonças esquisitas e os produtos com ingredientes tóxicos. Ainda levaria tempo até ser comprovada a relação dessas inovações com a “doença da radiação”, mas suas causas, aos poucos, eram conhecidas. Os interesses científicos se manifestariam na composição ficcional de Lovecraft, que foi um orgulhoso entusiasta de Jules Verne (1828-1905), célebre escritor francês de reputada influência sobre muitos dos seus contos. As paisagens envenenadas de “A Cor que Caiu do Espaço”, por exemplo, nos levam a pensar na radioatividade e seus efeitos no ambiente. Talvez, naquele contexto, Lovecraft compartilhasse com intelectuais de seu tempo conhecimentos básicos sobre a doença da radiação. Não há informações sobre isso, mas algumas passagens do conto evocam, de fato, imagens pós-apocalípticas de um ambiente devastado, coberto de resíduos radioativos. Impressionante, aos olhos do narrador, é o “descampado maldito” nas profundezas de um vale. À primeira vista, parecia resultado de um incêndio, mas para o viajante era incompreensível o fato de nada mais brotar “naqueles cinco acres de desolação cinzenta que se estendiam sob o céu como uma grande mancha corroída por ácido”. De acordo com seu relato, “não havia vegetação de nenhum tipo em toda aquela extensão de terra — apenas um fino pó cinzento que nenhum vento parecia espalhar.
Lúcio Reis Filho é historiador, Doutor em Comunicação (Cinema e Audiovisual) e escritor.
As árvores próximas eram doentes e retorcidas, e muitos troncos mortos apodreciam ao redor”. Atingidas pelo “descampado maldito”, as terras da família Gardner parecem uma fazenda ucraniana depois do desastre nuclear de Chernobyl, ocorrido em 26 abril de 1986: As galinhas ficavam acinzentadas e logo morriam, revelando uma carne seca de odor nauseante quando eram cortadas. Os cordeiros engordavam muito além do normal e de repente começavam a sofrer transformações horrendas que ninguém conseguia explicar. A carne ficava imprestável (...). Os porcos ficavam com o corpo cinzento e quebradiço e começavam a se desmanchar antes de morrer, e os olhos e focinhos exibiam alterações bastantes singulares. A situação era inexplicável, pois esses animais nunca haviam comido a vegetação contaminada. Então algo atacou as vacas. Certas áreas do corpo dos animais se ressequiam ou encolhiam ao extremo, e colapsos e desintegrações atrozes tornaram-se comuns. Nos últimos estágios — pois o resultado era sempre a morte —, observava-se o mesmo aspecto cinzento e quebradiço que afetava os cordeiros. Sabemos que a escala e o poder dos desastres nucleares são praticamente inconcebíveis. Ainda que não existisse, na época de Lovecraft, uma ideia clara sobre a radioatividade e seus efeitos a ponto de influenciar “A Cor que Caiu do Espaço”, as similaridades entre e o envenenamento radioativo e o fenômeno descrito são inegáveis. Nesse sentido, consideramos o conto um prognóstico das catástrofes da era atômica e do imaginário da terra arrasada pela radiação. Também podemos relacioná-lo ao horror cósmico, pois somos incapazes de ver a radiação, tampouco percebemos seus efeitos até que seja tarde demais. Além disso, o conto revela a impotência e a insignificância do homem em sua tentativa de controlar uma fonte de energia devastadora, quase indomável.
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StĂŠfanie, 2016
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Solidão Programada As sete obras, pinturas a óleo, de Afa Vasquez, expõem um dos comportamentos humanos da contemporaneidade: a interação com os dispositivos tecnológicos e a luz que estes emitem em seus corpos. Uma delas, no entanto, opõe-se às demais - o homem que fita o expectador e que compreende a solitude como ato libertador.
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Carla, 2016
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Pedro, 2016
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Mariana, 2016
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Talles, 2016
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Riky, 2016
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Marlon, 2016
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Por Lorena da Mata
Entrevistamos Aline Bei, autora de “O peso do pássaro morto”, romance centrado nos processos de perda – e que lhe rendeu duas premiações importantes – para uma breve conversa acerca de seus processos de escrita.
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Aline, você afirma que o seu livro se trata de um “romance híbrido”. Em que momento um romance deixa de ser uniforme para se tornar híbrido? Meu primeiro texto já nasceu na fronteira dos gêneros, e o Pássaro que é uma investigação de mais fôlego do estilo surge anos depois.
O seu romance foi resultado de uma oficina de escrita. O que a oficina proporcionou de mais essencial à construção do romance? Fale um pouco sobre isso. Na verdade, o Pássaro nasceu um pouco antes. O que fez eu me inscrever foi justamente a oficina ser um concurso: li uma oportunidade de publicação do meu livro. Ir criando acompanhada por outros escritores foi muito potente. Por ter sido atriz, amo o trabalho coletivo.
Ao descrever O peso do pássaro morto, seus leitores compartilham impressões muito similares: doloroso e poético; comovente e esperançoso; difícil de ler e de deixar de lê-lo. Há uma carga emocional que se inscreve na narrativa e que é análoga às experiências humanas mais universais. Os traumas abordados são, entretanto, de certa forma contraditórios à proposta estética que suaviza e confere beleza à obra. Você acredita que a melancolia e a felicidade são sentimentos inerentes um ao outro? Sim, os sentimentos são águas de um mesmo rio. A fronteira não é clara, e o momento da transição se perde na fluidez das águas.
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Você ganhou dois prêmios com o seu livro de estreia, o Prêmio Toca em 2017 e o Prêmio São Paulo de Literatura em 2018. Isso fez com que você passasse a enxergar a sua obra com mais seriedade que antes? Não, eu sempre fui muito comprometida. O prêmio é um reconhecimento bem-vindo, mas é externo ao trabalho do escritor. Como está sendo o processo de gestação do seu segundo livro? Prazeroso, no momento. Encontrei o meu fio condutor.
Você menciona uma citação de João Azanello Carrascoza (“o presente é feito de todas as ausências”) e o poema “A arte de perder” de Elizabeth Bishop como algumas das inspirações para a escritura do seu romance. A cultura ocidental não está acostumada a lidar com o sentimento de perda. Você acredita que esse é um dos motivos de estarmos vivendo em uma sociedade de pessoas cada vez mais acometidas pelos males da alma? Temos dificuldade para lidar com o que dói, além de vivermos em um mundo que cultua a felicidade, mas ela só é um dos muitos sentimentos possíveis no tempo/espaço de um minuto.
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A perda é uma das questões centrais do seu livro. Vir ao mundo, por si só, já seria a gênese da perda? Viver e perder: irmãos verbais. E as mulheres, somos mais suscetíveis às perdas no modelo de sociedade em que vivemos? Sem dúvida. Por isso escolhi um corpo feminino para ocupar esse verbo. Aline, a humanidade tem dificuldade em lidar com o caos, que é um dos aspectos inerentes à experiência humana. Como você lida com o caos? Uma gangorra. Em alguns momentos me fortaleço, em outros sou de vidro. Você participou de um curta-metragem inspirado no livro “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar e, ao agradecer o convite, você disse que aquele teria sido “o jeito mais poético de dividir o [seu] Espanto”. A que Espanto você se referia naquela ocasião? O que tem lhe Espantado nos dias de hoje? Ao Espanto que sinto quando estou diante da palavra de Raduan, que tem o peso de uma árvore centenária, a raiz de uma árvore centenária e a leveza de um pássaro. A poesia de Juan Gelman, Ana Martins Marques, Lubi Prates.
Temos dificuldade para lidar com o que dói, além de vivermos em um mundo que cultua a felicidade, mas ela só é um dos muitos sentimentos posíveis no tempo/espaço de um minuto.
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Ao ser convidada recentemente a falar sobre o seu desejo para o futuro, você desenvolveu o texto intitulado “Utopia”, no qual há uma mensagem de teor esperançoso. Você continua acreditando que sairemos melhores dessa experiência de isolamento social? Acredita na capacidade de metamorfose do ser humano a partir da superação de momentos desafiadores como esse? Não sou boa em prever nenhum futuro, mas tenho os meus desejos de país. A educação, o amor, o respeito pelo outro/outra/outre e pela natureza estão no cerne da minha utopia. Há quem seja cético em relação a uma transformação positiva da sociedade após o período de pandemia, seguindo a ideia nada otimista de que a humanidade permanecerá a mesma, voltando às rotinas de consumo, de destruição do planeta, de insensibilidade e de falta de empatia com o outro. O que você falaria para essas pessoas? Leia Poesia.
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O artista tem um olhar muito mais sensível em relação ao que o cerca, olhar este que se mostra indispensável ao impulso criativo. Ele observa, sente o mundo e as relações de modo único. Como você tem observado e sentido esse período? O que mudou no seu processo criativo no período de isolamento? Tenho estado imersa no meu processo de escrita do segundo livro. Quando eu levantar definitivamente o meu rosto da folha poderei calcular melhor esses assombros. Você relata que fez um trabalho de “corpo a corpo” através das mídias sociais para, não apenas divulgar seu livro, mas também participar ativamente nas vendas. Isso a aproximou mais de seu leitores? Sem dúvida. Tem sido um trabalho árduo e lindo na mesma medida. Aline, na sua percepção, as mulheres encontram mais obstáculos ao tentar entrar no mercado editorial? Você já passou por alguma experiência que considera machista nesse meio? Sim, quando escuto comentários sobre o meu corpo para falar do meu Texto.
Seu nome tem aparecido frequentemente relacionado ao projeto Leia Mulheres. Você acredita que esse projeto pode promover uma verdadeira revolução na forma como tem sido vista a literatura produzida por mulheres no Brasil? A revolução já está acontecendo (o Leia Mulheres é a Asa). O que é o amor? “Para onde foram os amantes?” Quando o eu dá um passo (ainda que mínimo) para fora do próprio Eu. Gostaria de agradecer pela entrevista e falar da imensa importância do trabalho que você vem realizando. Esse é um momento seminal para o protagonismo feminino nas artes. A sua produção certamente inspira e continuará a inspirar gerações de mulheres que ambicionam escrever. Deixe uma mensagem para os leitores. Agradeço essa entrevista tão sensível e cuidadosa. Fecho com as palavras de Raduan Nassar em Lavoura Arcaica: “A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai em seus sermões, amor, trabalho, tempo.”
Quem são os autores e autoras do passado que a inspiram? E os contemporâneos? Clarice Lispector, Hilda Hilst, Fernando Pessoa. Ana Martins Marques, Raduan Nassar, Patti Smith. Rafael Cavalcanti, Stefanni Marion, Sofia Ferres, Daniel Lima, Lisley Nogueira, Letícia Bassit, Felipe Franco Munhoz.
Entrevista concedida em Julho de 2020.
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ProvĂŠrbios Neerlandeses de
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Estes são os provérbios identificados na obra por Rose-Marie e Rainer Hagen (Bruegel Sämtliche Gemälde, Köln: Taschen, 2004), sendo que algumas cenas podem ter múltiplas interpretações.
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A vassoura está do lado de fora (Os homens não estão em casa).
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O telhado está coberto por tortas (Reina a abundância; vive-se muito bem.)
2 Enxergar pelo meio dos dedos (Não observar direito).
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Diminui o milho, engorda o porco (O que para um é desvantagem, para outro é útil).
Casar debaixo da vassoura (Sem a bênção da igreja).
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Atirar uma flecha em perseguição a uma outra (Persistir).
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Os tolos tiram as melhores cartas (A ignorância por vezes é uma bênção).
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Há um buraco no teto (Há um defeito). Os dados foram lançados (Está decidido).
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Defecar para o mundo (Ser arrogante).
O mundo de ponta cabeça (O contrário do que deveria ser).
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Passar a tesoura pelo olho (Lucrar de maneira desonesta, ou ainda; olho por olho).
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Urinar contra a lua (Esforçar-se para atingir algo impossível).
Deixar um ovo no ninho (Manter algo de reserva, não gastar tudo).
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Falar por “duas bocas” (Linguarudo, desleal).
Que mal a fumaça pode fazer ao ferro? (É inútil lidar com o imutável).
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Trazer fogo numa mão, mas água na outra (Ter “duas línguas” e ser desleal).
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A porca abre a torneira (Mau negócio).
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O apalpador de galinhas (Preocupar-se antes do tempo).
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Armado até os dentes.
Colocar o guizo no gato (Assumir um desafio).
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Um enrola o que o outro fia (Conversa maldosa).
Bater com a cabeça no muro (Tentar o impossível).
Um tosquia a ovelha, o outro o porco (Um tem vantagem, o outro, prejuízo).
Amarrar até o diabo ao travesseiro (A teimosia vence até o diabo).
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Confe (Entre
Trazer a luz na cesta (Desperdiçar o tempo)
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Roer sempre o mesmo osso (Trabalho árduo e em vão).
O peixe não frita ali (Nem tudo ocorre como deveria).
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Dois bob de um ca
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As paredes têm ouvidos (Cuidado com o que se diz).
Depende das cartas que virão (O futuro está em aberto).
O peixe pendura-se pela própria guelra (Arcar com as conseqüências de nossos erros).
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Se alguém está no pelourinho, não de atrair a atenção so
Paciente como um carneiro.
Coloc no ma
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66 Pendurar seu casaco de acordo com o vento (Acomodar seu ponto de vista de acordo com as circunstâncias).
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Sacodir as penas no vento (Trabalhar sem planos).
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Pelas penas se reconhece o pássaro.
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Arrastar o tronco (Se esforçar por algo que não tem sentido).
Pegar duas moscas com um só golpe (Ambição demasiada).
o eve obre si.
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bos se grudam debaixo apuz (A estupidez ama companhia). Crescer para fora da cerca (Algo que não pode ser mantido em segredo).
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Um muro gigantesco torna-se logo uma ruína.
Jogar seu dinheiro na água (Gastar em demasia).
Defecar pelo mesmo buraco (Inseparáveis companheiros).
Os peixes grande devoram os pequenos.
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Estar pendurado entre o céu e a terra (Estar numa situação precária e não saber como se decidir).
A garça convida a raposa (Dois traidores estão sempre pensando em como levar vantagem).
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A jarra vai tanto à água, até que quebra (Tudo tem seus limites).
Nadar contra a corrente (Lutar contra as adversidades).
Pegar a enguia pelo rabo (Uma proeza difícil que certamente fracassará).
Assoprador de orelha (Fofoca).
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Pescar atrás da rede (Perder a oportunidade, agir inutilmente).
63 Com vento é bom velejar (Sob condições favoráveis é fácil ter sucesso).
Ficar a ver a cegonha (Desperdiçar o tempo).
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Se um cego conduz um outro, caem ambos no túmulo (Se alguém que não sabe conduz um outro, há um infortúnio).
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Sentar em brasas (Estar impaciente e angustiado).
essar-se com o diabo egar segredos ao inimigo).
).
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a
O porco foi esfaqueado na barriga (A coisa já está decidida desde o princípio).
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Atirar rosas aos porcos.
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Amarrar em Deus uma barba de palha (A mentira frequentemente ocorre sob a máscara da hipocrisia).
Puxar pelo mais longo (Cada qual esforça-se por sua vantagem; cabo-de-guerra).
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car o manto azul arido (Adultério).
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Fechar a fonte quando a vaca já se afogou (Só depois que a fatalidade ocorre é que se empreende algo).
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Ter o mundo dançando em seu polegar (Tudo dança de acordo com sua vontade).
Não conseguir ir de um pão ao outro (Dificuldade em administrar o dinheiro).
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Aquele que derruba seu mingau não pode recuperar tudo de novo (Danos não podem ser compensados). Quem quer ir pelo mundo deve rastejar (Quem quer tornar-se algo, deve ser esperto).
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52 Procurar a machadinha (Procurar uma desculpa, uma saída).
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ARTE COMO IMPACTO.