Revista CRUA

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Edição ZERO

AVESSO DO ESPELHO

NÃO ALIMENTE OS ARTISTAS

DENNIS RADÜNZ VERSUS RICARDO WESCHENFELDER

CRÍTICA LITERÁRIA

CULTURA E SOCIEDADE

AS ANTI-HEROÍNAS DE RACHEL DE QUEIROZ

ENTREVISTA

RITA MARTINS, A ESCRITORA FANTASMA

O LADO GROTESCO DO ENTRETENIMENTO

CARNÍVORAS

A ESCRITA ANTROPOFÁGICA DE ISADORA KRIEGER

COMO PODE A ARTE PROFANAR O COTIDIANO? L I T ECRUA R A T| 1U R A REVISTA

. PO E S IA . C I N E MA . PE R FO R MAN C E . FI LO S O FIA . E NTR EVI STAS . E N SAI O S


CR UA ou

MANIFESTO INDIGESTO ou

NA BOCA DO ESTÔMAGO ou SÓ A ANTROPOFAGIA ou

EM CARNE VIVA ou PARA O BANQUETE REVISTA CRUA | 2


EXPEDIENTE

EDITORIAL 2017,

2017 _ Edição ZERO Editor | Rafael Zen Assistente Editorial | Guilherme Müller Revisor | Lucas Schlemper Designer Gráfico | Mariana Roveda Capa | Daniela Laveso Contracapa | Álvaro de Azevedo Diaz Ilustrações | Daniela Laveso Colaboradores desta Edição Dennis Radünz | Isadora Krieger Felipe Leal | Josie Mendes | Ricardo Weschenfelder Rita Martins | Ruan Rosa Vanessa Neuber | Osmar Domingos Impressão | Tipotil - SC Tiragem | 400 exemplares Conselho Editorial Rafael Zen | Lucas Schlemper Mariana Roveda | Guilherme Müller

Anúncios e licenciamento de conteúdo | Atendimento (47) 99240 4318 naoalimenteosartistas@gmail.com

o ano em que perdemos o juízo. O Estado e o mercado fazem agora papel de famílias. Vocês, que nunca lerão essa revista, estarão fazendo o certo. Essa revista é uma banana ao mundo editorial. Como compreender o pensamento através do ócio? Viagens lisérgicas: vá para a página 44. Aves enjauladas a chocarem-se de encontro às grades: página 71. Vocês, que não perdem nada, estão perdendo tudo. Há um certo constrangimento no ar. Afinal, com que cara se encara os outros depois da orgia? Não alimentem os artistas, eles já ganham editais. Já essa revista não tem legenda nem em inglês. A morte é opcional, diz Harari, em entrevista exclusiva. Como manter um perpétuo elogio à profanação? A mulher medieval faz parte de um estratagema político? Eis aqui os mais belos e horrendos minutos da história do cinema. Uma flor que fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Morreu o autor - que importa quem fala agora? Da linguagem materializam-se ideias e intenções. Não existem conceitos sem palavras. É da linguagem, portanto, que se formam nossas relações e é através de nossos códigos em comum que surge um espaço temporário - sendo nós, os autônomos, os que validam esse espaço. Um batalhão de autônomos, uma comunidade para além de fronteiras ou abismos geográficos. Um campo adiante para trocas e confrontos, que é página, papel kraft, seda. Eis uma corrente de possíveis encontros. Eis um espaço independente de contradiscursos, contrafluxos e contradições. Eis uma nova publicação que é provocativa porque pretende atiçar a ação. Eis um banquete de discursos, a ser deglutido com calma - sorvido, tragado, ingurgitado - devorado pouco a pouco, sílaba a sílaba, traço a traço. Eis a palavra-carne, a palavra-crua, a palavra-profana, que é alimento, mas que entala na garganta e pode fazer engasgar. Eis um prato feito. Não alimentem os artistas, por favor. Eles se alimentam sozinhos.

Online facebook/revistacrua Os textos assinados são de responsabilidade dos autores.

Apoio: RAFAEL ZEN Editor

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Foto: CRUA | 4 REVISTA

Ă lvaro de Azevedo Diaz


SUMÁRIO

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CULTURA E SOCIEDADE Império do Grotesco por Rafael Zen

20

CARNÍVORAS Isadora Krieger

09

MINI-ENTREVISTA Tea for two com Osmar Domingos

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CINEMA Tela Líquida Marguerite Duras por Felipe Leal

24 28

10 12

CONVERSA Avesso do Espelho Dennis Radünz versus Ricardo Weschenfelder

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CRÍTICA LITERÁRIA Verbal Volúpia as anti-heroínas de Rachel de Queiroz por Lucas Schlemper

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OPINIÃO Como pode a arte profanar o cotidiano?

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POESIA Ruan Rosa

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LISTAS 5 Artistas Performáticos

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TRADUÇÃO Amador X Profissional aritgo de Maya Deren

ENTREVISTA Com a escritora Rita Martins

O SURTO Feira de Ideias impressas


SOCIEDADE

Império do

Grotesco por Rafael Zen

Desatar os nós de teias e telas

C

ostuma-se dizer que as relações de poder se estabelecem a partir da falta de uma oposição que não aceite o domínio como um fenômeno legítimo. Se essa afirmação for verdadeira, também pode-se afirmar que o poder é uma constante na linha temporal que descreve nosso mundo: sempre existiu e sempre foi mutável porque tomou diferentes formas ao longo da escrita da História. Eis o problema que enfrentamos hoje, no presente dos gadgets: nos ensinaram a compreender o poder de forma ingênua e – para falar a verdade – errada. Não nos ensinam, porém, sobre dominações culturais e o poder de fato que a cultura como construção de discursos detém. Apenas recentemente tomei conhecimento dos estudos de Muniz Sodré, particularmente seu Império do Grotesco, livro de 2002 junto com Raquel Paiva. Ele, jornalista e sociólogo brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro na Escola de Comunicação, pesquisou efetivamente, no Brasil e na América Latina, o campo da comunicação e seus efeitos sociais. Pensemos então no poder totalitário que as mídias de massa exercem sobre o indivíduo comum -

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esse que foi mal escolarizado, mal informado e induzido a olhar com fascínio para as luzes do que compra o capital. Que poder ele detém, sentado em frente a tantas telas, senão reproduzir o que lhe ensinam diariamente no que comumente chamamos de “opções de lazer”? Não nos enganemos: esse indivíduo somos nós.

QUE PODER DETÉM ELE, SENTADO EM FRENTE A TANTAS TELAS, SENÃO O DE REPRODUZIR O QUE LHE ENSINAM DIARIAMENTE. NÃO NOS ENGANEMOS: ESSES INDIVÍDUOS SOMOS NÓS.

Eis que o autor discursa sobre três linhas de força que atuariam sobre esse centro social da vida do homem-comum / cidadão-exemplar: a subjetividade (tudo que ele é) versus a identidade (tudo com o qual ele se identifica) versus o exercício do poder (tudo aquilo que ele acredita ser exemplo, ser legado, ser moeda de troca).

Assistindo a inúmeros modelos duvidosos de conduta - o comercial, a novela, o programa policial, a intimidade dilacerada em talk shows, a compreensão injusta da fama como exercício de sucesso - dia após dia. Seja na literatura de massa, no cinema de massa, na música de massa: assistimos passivos o grotesco sendo utilizado como fermento para um cotidiano de repetições. Vivemos a era da indústria da informação e cultura, e como nos enganamos por estarmos hipoteticamente bem informados sobre tudo. Um alerta: se esses instrumentos culturais de controle produzem narrativas e discursos no cerne social, então eles falam e instigam a própria linguagem da ideologia vigente. O grotesco se apresenta, então, como a liberdade desenfreada das imagens, dos cultos, dos modelos. Enquanto olhamos extasiados para tantas telas, absorvendo reality shows e documentários, atravessamos os limites entre público e privado com nossas intimidades expostas, nem divisamos mais o que é ficção do que resta do real. Não seria esse o palco perfeito para a confusão máxima dos sentidos?


SOCIEDADE

Sodré ainda nos diz: não chamemos os meios por seus nomes fictícios. Paremos com a insistência de denominá-los televisores, telas, notebooks, plasmas, leds. Se retirarmos o véu que os cobre, então chamaremos todo esse aparato de controle do que realmente são: aparelhos ideológicos da manutenção do status. Espectadores, abram vossos olhos, o que esses inúmeros aparatos conteudistas vendem além de produtos e códigos de conduta? Sob as telas, vemos um monólogo controlável que modifica a representação do real com seus ângulos, suas trilhas, seus recortes, sua seleção de imagens – essa imageria imposta e deglutida como se estivéssemos nos empapuçando de fast food midiático. Nossos veículos impõem uma maneira especialíssima de ver o mundo: maior, cheio de simbologias inventadas como a do glamour, da fama, do status quo. Vivemos a era do consumo dominado e, pior que isso, do consumo assimilado como conduta de vida. Ou você é in, ou você é out.

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Duas batalhas de conhecimentos: os tecnológicos e as últimas gerações analógicas vivenciando o mesmo abismo, incapacitados de transpor esse vazio que também é vácuo O que Sodré propõe é a tradução do controle remoto: ao ligarmos a televisão, o rádio, o computador e a rede, já estaríamos fazendo parte de uma teleorganização cuja ideologia compete apenas ao produtor dessas mensagens que, nunca foi o espectador. Vivemos no mundo em que a ala conservadora não admite o beijo gay, mas cresceu com close ups na bunda de chacretes, paquitas e panicats – esse copia-e-cola das gerações que insistiram na passividade como modo operante. Teoria discutida desde 1940, a instrumentalização da cultura pelas mídias também é abordada pelo autor pelo seu poder homogeneizador porque a tela é um novo tipo de espaço público pautado na espetacularização da vida como produto a ser moldado e adquirido. Nesse espaço que não criamos, mas que foi criado e induzido, a cultura seria uma mera evasão, um novo modelo mais atraente de amnésia coletiva.

Seduzidos pela avalanche de informação que nos ataca diariamente, estamos mais inteligentes e bem informados ou emudecidos por não sabermos o que fazer diante do assombro? O autor talvez explique porque estamos lutando contra esse eterno ócio que também é vício, essa paralisação que encara encantada as ruínas dos velhos hábitos. Se compreendermos o conceito central da cultura como o movimento bilateral de relacionamento do homem com seu ambiente real, compreenderemos que para que haja cultura é necessário que se haja diálogo. Porém, para que se haja diálogo, é necessário que não se imponha a alienação do ouvinte. O que fazem essas telas? Mascaram a alienação do diálogo, algo que Baudrillard entenderia como o terrorismo do código: a farsa da reciprocidade entre máquina e homem, a evaporação total de diálogos construtivos, a imersão da experiência no campo da ilusão.

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SOCIEDADE

Sendo nós a engrenagem do sistema, a ração da distribuição do poder – olhos atentos a essas megamáquinas – estamos todos no centro de uma relação voyeurística com o outro: esse corpo além do nosso que nos fi sga em uma série de atuações de ordem econômica, sexual, política e linguística. De Tieta a Sense8, de youtubers à partida de futebol de domingo, de canais abertos a pagos – sempre que for necessário público, a tela apelará ao grotesco no sentido da manipulação da informação para a manutenção do espetáculo. Por quê? Porque o grotesco é essa hibridização de diferentes universos culturais que colidem na era pós-globalizada. Distrai e faz com que sejamos nutridos de divertimento, luzes luminosas, alimento virtual, pão, feed. A tela é a nova praça, a nova feira, o novo circo. Nessa arena pública, que dilui os conceitos de intimidade e espetáculo, o espaço discursivo torna-se um borrão de cultos ao nada, um imenso palco onde o raso, o riso e o líquido tornam-se a estética vigente e dominante. Perpassam as conversas de bar, os memes, as musas, a massa.

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Não nos enganemos: enquanto cultuamos o aniversário da socialite, o bumbum da miss, a briga do grande irmão, a mansão do novo rico – o fazemos como a comprovação de um novo sistema de inclusão que é, ao mesmo tempo, o mais alienador e excludente de todos. Esses conteúdos para múltiplas telas sufocam qualquer manifestação cultural legítima porque se apropriam de signos próprios dessas manifestações – recortam, copiam, colam – para a difusão do jogo de posses. Se conhecemos e compartilhamos, possuímos. Se discursamos com eloquência mínima, adentramos o jogo e passamos a pertencer a ele. Sigamos então nesse país imaginário que incita cada indivíduo a compor seu próprio paraíso particular. Por isso a violência do grotesco, por seu papel excludente: monopolizados pela latência da individualidade, perdemos a voz coletiva por um Estado que nos promete defesas, mas que as retira pela manutenção de seus (podres) poderes. Que tenhamos melhor sorte na próxima troca de canal.


MINI-ENTREVISTA

tea for two

com Osmar Domingos

Um chá para dois com o ator e diretor catarinense Osmar Domingos. Na contramão das montagens clássicas, ele propõe uma ruptura dos limites de interação entre público e obra, através de peças sem atores e outras experimentações.

Sente-se conosco. CRUA Quais são os seus projetos agora, Osmar? Você está preparando alguma performance ou peça de teatro? No momento termino o roteiro

pra uma peça de teatro que chamo “Sobre jardinagem”, peça sem elenco, só com um diretor que não é visto, mas que orienta o público por microfone a realizar as cenas. Desenvolvo o projeto “Anti-tese”, onde refaço meus trabalhos em vídeo para então os reapresentar em uma exposição virtual. Elaboro também a performance “Ato público”, inspirada em Paraíso Perdido de John Milton.

CRUA Você ganhou um prêmio no ano passado. No que consistiu? Em outubro de 2016 ganhei o

CRUA Qual de suas obras é a mais especial para você e por que?

“Ex-Hamlet”, uma instalação de 2016, o primeiro trabalho no qual experimentei montar uma peça sem atores, e que ao invés de impor a narrativa do herói, Hamlet, mostra restos de uma narrativa onde os personagens se rebelaram contra a tradição da tragédia. No começo desse ano, durante residência artística na França, esse trabalho se reverberou em outro, “Pós-Hamlet”, instalação formada por mensagens em espelhos onde personagens periféricas, Ofélia, Gertrudes e Cláudio, se despedem de Hamlet e assumem protagonismo na narrativa.

CRUA A crítica constrói?

Quando a crítica é um diálogo que acompanha o processo criativo ela pode construir até carreiras, porque expande o campo de alcance da obra e do artista. Agora, se ela tem ares de manual de instrução de como o artista deveria ter trabalhado, e atravessada de muita teoria que sequer condiz com as referências do artista, é puro exibicionismo intelectual. Sobre a crítica mais comum, essa do “você não fez o que eu queria ter visto”, preferiria que não.

CRUA Quais artistas mais lhe inspiram no momento?

Em artes visuais, Amalia Ulman, que realizou uma performance no Instagram revelando a facilidade com que compramos a construção virtual que o outro nos apresenta; Laure Prouvost, pelos vídeos que são estruturados como colagens de imagens estáticas, gestos, sons, narrativas; A dupla Eva e Franco Mattes pelo uso crítico da internet nos trabalhos. Em cinema, Michael Haneke e sua abordagem crua da violência.

prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea e com ele uma residência de um mês na Cité Internationale des Arts na França, que realizei, junto de uma mostra dos trabalhos, entre janeiro e fevereiro desse ano.

Veja + em: cargocollective.com/osmardomingos REVISTA CRUA | 9

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CONVERSA

O AVESSO DO ESPELHO Entrevistador e entrevistado se confundem num jogo de personas: quem é quem, qual é qual - não importa. Importa mesmo é o circo armado, a lúdica bandalheira. Dois convidados colocados frente a frente para que um investigue o avesso de seu próprio espelho, através de perguntas formuladas por eles próprios. O que resulta é palavra, imagem, desvio e dissenso. Aqui, misturam-se palco, tinta, sílaba, foco e desfoque.

Dennis Radünz (poeta) VERSUS Ricardo Weschenfelder (cineasta) RW: Dennis, o procedimento de montagem no cinema, desde o roteiro até a edição do filme, consiste de passagens, imagens, sons e cortes. Como tu percebes o processo de montagem de teus poemas? DR: Os próprios títulos dos meus livros são conceitos – Exeus, Livro de Mercúrio, Extraviário ou Ossama – que definem o campo e dão enquadramento para cada texto, enquanto a “cena” de cada verso se vale de cortes repentinos e cada poema, no filme maior do livro, é um plano sequência. A música, o cinema e a poesia são os campos em que me imagino não um poeta, mas um montador de signos verbi-voco-visuais.

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RW: Quando a imagem falha, quando as máquinas de futuro falham, o que sobra? A poesia? A poesia seria uma segunda imagem? DR: O título de meu último livro, Ossama, é o substantivo do português brasileiro que significa “monte de ossos” e, embora evoque a ossaria e os cemitérios, tem, para mim, a acepção maior de serem eles, os ossos, o que nos sustenta. São como a poesia, são como as artes. A segunda imagem é aquilo que, pela poesia, pode ser descoberto por debaixo da aparência e da superfície da autoimagem – a segunda imagem são os ossos, a nossa ossama.


CONVERSA

RW: Percebo uma ligação nos teus livros com a arte visual, em parcerias com Aline Dias e Julia Amaral. Tu produzes poemas visuais, também, que lidam com a montagem no espaço e com a duração do tempo, algo mais próximo da linguagem do cinema. Inclusive o poema visual “Exumação”, retorna em forma de readymade no último livro, “Ossama”. Fale mais sobre a construção desses poemas visuais. DR: A obra “Libélula e ossinhos”, de Julia Amaral, potencializa o“Ossama”; Aline Dias e sua série “Homem de açúcar” dão ironia à minha coletânea de crônicas doces, “Cidades marinhas”; enquanto um desenho de Marcel Duchamp é a capa da segunda edição de “Exeus” (1998). Meus poemas têm profunda relação com a música experimental ou erudita – vários foram gravados – e com artes visuais. No caso de “Exumação”, compus em uma máquina de escrever Olivetti Lettera 45, esse poema que é, de certa forma, cinético, porque as letras da palavra corpo, em vermelho, se movem entre a palavra terra, como sangue, para baixo, até a palavra humo, e revolvem ao alto, para a cruz composta pela palavra corpo.

Fragmento dos livros “Ossama” (2016) e “Exumação” (1991) de Dennis Radünz

Cena do curtametragem “Dicionário” (2009), dirigido por Ricardo Weschenfelder

DR: Quero conhecer um pouco o princípio ativo das tuas procuras. Partes de um argumento? De uma imagem lida num conto? De uma vontade de tocar no plano concreto da imagem um conceito abstrato? De necessidade comercial? Ou de uma vontade intransitiva de fazer cinema? RW: Cada filme é um filme. Tem uma história de criação, de visões, de envolvimento, de necessidade específicas. Como tenho uma produção vagarosa e nada comercial, vou criando o mundo dos filmes aos poucos. Tenho um processo mais visual, onde, primeiro, vou construindo as imagens. O “Se eu Morresse Amanhã” (2009) é um caso à parte. O filme surgiu todo, em forma e argumento. No mundo em que tudo vira conceito, produto e experiência midiatizada, acho que a arte deve e precisa ser mais aprofundada. Para mim, o conceito do filme é um dispositivo que ativa a linguagem e que tem ligação profunda com o tema do filme. O “Dicionário” (2012) surgiu a partir das imagens de Lindolf Bell. É um texto muito visual, atmosférico. O meu desafio foi transformar, mudar de lugar e montar as cenas sugeridas pelo Bell. Quase um processo dadaísta.

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DR: Costumo pensar seus filmes como espécie de “procura da poesia”, não apenas pelo fato de partirem do texto literário, mas pelo significado que se alcança fora da narrativa. Em tua poética visual e nos estudos sobre o extracampo, procuras a imagem além do que é visível? RW: Os filmes e a minha pesquisa acadêmica estão muito misturados, sim. Os filmes me ajudam a pensar e criar conceitos, e a teoria reforça os filmes, dá mais profundidade a eles. O cinema mais poético, que é o cinema que acredito e que tenho tentado desenvolver, com acertos e erros, deve lidar com a metáfora, com a sugestão, e deixar o espectador completar o sentido para além do que é visto. Interessante essa ideia da procura pela poesia. A neve no mar, os insetos na biblioteca e a morte como encenação acho que são forma de alucinação da realidade. Não sou um cineasta do real, pé no chão, mas sim da narrativa mais fantasiosa.


TRADUÇÃO

AMADOR

versus

PROFISSIONAL *Artigo de opinião publicado na revista americana Film Culture, nº 39, em 1965.

Por Maya Deren

O

maior obstáculo para cineastas amadores é seu próprio senso de inferioridade em face de produções mais profissionais. A própria classificação do termo “amador” possui um arco apologético. Mas essa mesma palavra - do latino “amador” “amante”, significa alguém que faz algo pelo amor da coisa e não por razões econômicas ou por necessidade. E é neste significado que o cineasta amador deve ir procurar suas pistas. Em vez de invejar os roteiristas e os escritores de diálogo, os atores treinados, as equipes, os enormes orçamentos de produção do cinema profissional, o amador deve desfrutar da única grande vantagem a qual faz com que todos os outros profissionais o invejem, a saber, a liberdade - tanto artística quanto física. Possuir liberdade artística significa que o cineasta amador nunca é forçado a sacrificar o drama e a beleza visual em prol de um fluxo de palavras, palavras, palavras, palavras, a atividade incessante e as explicações de uma trama, ou à exibição de uma estrela ou de produto dos patrocinadores; nem é esperado que produções independentes gerem lucros em enormes investimentos e manREVISTA CRUA | 12

tenham a atenção de uma audiência maciça e heterogênea ao longo de 90 minutos. Como o fotógrafo amador, o cineasta amador pode dedicar-se a capturar a poesia e a beleza de lugares e eventos e, como ele usa uma câmera de cinema, pode explorar livremente o vasto mundo da beleza do movimento. (Um dos filmes que ganhou Menção Honrosa nos 1958 Creative Film Awards era “Round and Square”, um tratamento poético e rítmico das luzes dançantes dos carros, enquanto seguiam rotas, sob pontes, etc). Em vez de tentar inventar uma trama que se move, use o movimento ou vento, ou água, crianças, pessoas, elevadores, bolas, etc., como um poema o faria. E valha-se da sua liberdade para experimentar ideias visuais; seus erros não acarretarão em sua demissão. A liberdade física inclui a liberdade do tempo - liberdade total de prazos impostos pelo orçamento. Mas acima de tudo, o cineasta amador, com seu pequeno e leve equipamento, tem uma discrepância e uma mobilidade física que é bem a inveja da maioria dos profissionais, sobrecarregados como são por seus monstros de muitas toneladas, cabos e parceiros de trabalho.

Não se esqueça de que nenhum tripé ainda foi construído, e que tudo se torna milagrosamente versátil quando está em movimento, como o complexo sistema de suportes, articulações, músculos e nervos que é o corpo humano, o que, com um pouco de prática, possibilita a enorme variedade de ângulos de câmera e, consequentemente, ação visual. Você tem tudo isso, e um cérebro também, em um pacote simples, compacto e móvel. As câmeras não fazem filmes. Os cineastas fazem filmes. Melhore seus filmes, não adicionando mais equipamentos e pessoal, mas usando o que você tem na sua capacidade máxima. A parte mais importante do seu equipamento é você mesmo: seu corpo móvel, sua mente imaginativa e sua liberdade de usar os dois. Certifique-se de usá-los.

Tradução por Lucas Schlemper À direita colagem de Vanessa Neuber


TRADUÇÃO

Uma das mais importantes cineastas experimentais dos Estados Unidos, Maya Deren foi considerada como precursora do Surrealismo no cinema e responsável direta pela populariazação do movimento Avant-Garde nos anos 40 e 50. Além de diretora era também atriz, coreógrafa, dançarina, escritora e fotógrafa. REVISTA CRUA | 13


CRÍTICA LITERÁRIA

VERBAL volúpia Por Lucas Schlemper

Papel de Luxo (E O LEITOR MAL-ACOSTUMADO)

E

stou escrevendo a propósito de dois livros de uma autora famosa, mas pou

quíssimo lida: “Memorial de Maria Moura” e “Três Irmãs”, ambos de Rachel de Queiroz, primeira mulher a integrar o seleto rol de imortais da Academia Brasileira de Letras, em 1977. Semiesquecida nas prateleiras e cada vez mais distante dos leitores jovens, a literatura de Rachel (que não se transpôs para adentro dos meandros da Internet) encontra pelo caminho algum desafio de comunicação: estará o público de hoje apto a compreender e a discutir a voz da autora?

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É preciso investigar o motivo de ela não ser sequer conhecida num tempo em que sua voz se faz mais necessária que nunca. Consideremos o perfil do leitor desta década. Subjugado pelos limites de caracteres, acabou por tomar gosto por textos cada vez mais curtos. Se debruça sobre o fugaz de mensagens diretíssimas e pontuais. Sua comunicação, portanto, acaba por se restringir a ligeiras frases de efeito. Trata-se da era dos bordões pré-fabricados, dos cabeçalhos de fotografias e dos compartilhamentos instantâneos de opinião.

Cultiva a sensação de que muito lê, uma vez que passa os dias a entreter-se com leituras rápidas, embora seu raso senso crítico não lhe permita afirmar com certeza se se trata de literatura ou de outra coisa qualquer. Talvez isso explique por que de Rachel não ser lembrada. Que lástima. Mas não estou cá para sugerir que o leitor de outrora era superior em intelecto e que de lá para cá veio emburrecendo - longe de mim o assumir dessa bronca.


CRÍTICA LITERÁRIA

A SENHORA DO NÃO-ME-DEIXES Hábil em conduzir grandes sagas de forma sólida e estruturada, Rachel cultivava especial apreço por personagens de mulheres fortes e independentes, com evidente natureza de desregramento social traduzido em forma de livre pensamento e um notório poder de ação. A não-continuidade familiar, o sentimento de inconformismo que conduz à uma vida errante e o caráter de desobediência às normas pré-estabelecidas se apresentam como características inerentes à caracterização psicológica de suas protagonistas. Uma romancista de invejável talento - qualquer afirmação em contrário poria em risco a reputação de quem a critica. É raro o escritor que seja capaz de dominar os três elementos principais da ficção de longo curso: a composição dos personagens, o desenvolvimento da narrativa e o trabalho com o tempo. Rachel o fez com maestria. Sua obra como um todo não só oferece uma espantosa grandeza técnica, mas também se posiciona ideologicamente como uma literatura corajosa, muito à frente do tempo em que foi produzida. É de vital relevância revisitá-la no intuito de compreender o processo histórico da construção das questões de gênero no Brasil através da Literatura Nacional.

“SÓ O MEDO E O HORROR É QUE SÃO JUSTOS” Analisemos “Três Marias”. Romance de contornos autobiográficos, em que a ação se dá em volta de três personagens, Guta, Glória e Maria José, desde os tempos da mocidade, quando colegas num internato REVISTA CRUA | 15

para moças, até os primeiros passos rumo à vida adulta. Glória, mais afeita aos padrões sociais da época, acaba por casar-se e dedica sua vida à servilidade para com o esposo e os filhos.

Maria José, cuja vocação religiosa a impediu de vivenciar as paixões românticas durante a mocidade, acaba por direcionar-se à fé cristã e posicionar-se como uma mulher regrada e moralista. Enquanto isso, Guta, a grande protagonista, que nada aspira senão a própria liberdade, busca meios para si mesma

de viver à parte do que para as outras é imprescindível: o casamento e a religião. A trama de “Três Marias” evoca a reflexão: como é que pessoas criadas de maneiras tão semelhantes, numa mesma época, sob os desígnios dos mesmos preceitos morais, acabam por seguir caminhos tão distintos entre si? Guta, em relação a Glória e Maria subversiva, transformadora, avessa à rigidez dos ritos, e, consequentemente, desenha para si um destino muito mais interessante que os das demais. Rachel de Queiroz nos oferece um verdadeiro trabalho de dissecação literária de sua personagem através de detalhados monólogos confessionais, de forte carga psicológica, como fica evidenciado neste trecho de suas impressões acerca do ritual de velório dos mortos: “Que palavras poderão exprimir a impressão de comunicação impossível, implacavelmente destruída, de inutilidade absoluta de qualquer esforço, de distância, de ruptura, de quebra de todos os laços, que nos dá a presença de um morto? Para que se faz um gesto ainda, para que se beija a sua testa gelada, para que as flores, por que se fica ali em redor, naquela espantosa vigília, espreitando a decomposição, assistindo o afastamento piorar, vendo aquele que nos foi tudo - amor, filho, pai, mãe, irmão ir-se tornando a cada instante mais indiferente e longínquo, mais desconhecido, mais intruso e terrível? Para que vencer o medo, o horror instintivo? Só o medo e o horror é que são justos.” Não era aceito que as mulheres se posicionassem desta forma. Guta, portanto, pagou seu preço: era malvista e malfalada.

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CRÍTICA LITERÁRIA

Em outro trecho, ainda mais dramático, em que Guta descobre que o provável motivo do suicídio de Aluísio, um amigo próximo, seria um amor platônico que este vinha nutrindo por ela há anos sem que ela sequer imaginasse, se posiciona: “No entanto, todos estranhavam eu não me haver coberto de luto, como uma viúva.” E continua: “Esperavam talvez que eu caísse de joelhos e pedisse perdão? Eu não cuidava nisso. Não me sentia culpada e por que me sentiria? Ele é que me fazia mal, me arrastava na sua queda, abismo abaixo. Em nome de que direito se introduzira assim na minha tranquilidade, por que arrastara consigo a sua alcova dramática, a parentela acabrunhada, e viera morrer dentro da minha vida? Até então era quase um estranho, um camarada apenas. De repente se apossara da mim, me punha nua e atada à sua cabeceira de defunto, à mercê da crueldade de todos, como num pelourinho.”

O MONSTRO DA DESOBEDIÊNCIA

No caso de Maria Moura, protagonista absoluta de “Memorial de Maria Moura”, é através do incesto, logo na abertura do romance, que se opera o rompimento com os valores e regras de uma sociedade, deixando de ser objeto de troca e libertando-se, tornando-se indivíduo. Após o falecimento da mãe, Guta, ainda adolescente, levada por ingenuidade e sentimento de solidão, acaba por se envolver com o próprio padrasto e com ele vivencia o despertar sexual.

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A TRAMA DE “TRÊS MARIAS” EVOCA A REFLEXÃO: COMO É QUE PESSOAS CRIADAS DE MANEIRAS TÃO SEMELHANTES, NUMA MESMA ÉPOCA, SOB OS DESÍGNIOS DOS MESMOS PRECEITOS MORAIS, ACABAM POR SEGUIR CAMINHOS TÃO DISTINTOS ENTRE SI?

Com o tempo, conforme se operam boatos nas vilas próximas, Moura passa a suspeitar que o padrasto seria responsável direto pela morte de sua mãe, e que sua própria vida estaria em risco. Confirmadas as suspeitas, opera-se então uma transformação psicológica na personagem: passa a nutrir um ódio frio e a arquitetar planos de vingança - o que, por fim, acaba por levar a cabo, tramando e acobertando o assassinato do padrasto. Quando primos distantes ameaçam de invadir e tomar sua propriedade, ela decide atear fogo em tudo e fugir para longe. Se lança à vida errante, por vezes criminosa, sem rumo e sem destino certo, com seu bando de asseclas - os quais chama “cabras”. Esta ruptura definitiva com os laços familiares se apresenta como elemento essencial para caracterização individual da personagem, e a autora, é certo, calculou isso. Contrária à imagem da dama recatada, Moura passa a vestir-se como homem, usa os cabelos curtos, peleia, comanda as tropas, planeja fugas e investidas. É temida e respeitada por seus comparsas e adversários.

Lança-se em uma saga de conquistas e conquista tudo. Mas, mesmo com tantas vitórias, sente-se solitária. Em contraponto ao processo de endurecer-se, necessário para a vida clandestina que leva, acaba por entrar em conflito com sua necessidade de envolvimento afetivo: teme que, caso deixe transparecer sua emotividade, acabe por parecer fraca diante dos olhos de suas tropas. Só o leitor tem acesso às emoções de Maria Moura enquanto as personagens da trama percebem-na de maneira superficial. O leitor compreende, logo cedo, a tensão interna que a traduz, em toda sua dureza e fragilidade. Como cada capítulo do livro oferece um enfoque distinto, o leitor não fica sempre à mesma distância da matéria narrada: o enfoque muda como pode mudar a posição da câmera num filme. Podemos assim observar Maria Moura de ângulos distintos, quer seja na visão dela própria (nos capítulos que levam seu nome), ou na das personagens em seu redor, Marialva, Irineu, o Beato Romano.


CRÍTICA LITERÁRIA

Às personagens da trama, Maria Moura faz questão de preservar a fama de impetuosa, agressiva e imponente. A verdade é que ninguém lhe conhece bem. “Acho que não nasci para essa vida que arrumei para mim. Sozinha, sem um homem, sim, falando franco, sem um homem. Então venho pensando nessa vida que escolhi - não pode ser como eu queria antes. Não sou cabra macho para viver no meio dos homens e não sentir nada. E eu gosto de ser a senhora deles.” “Eu gosto de comandar: onde eu estou, quero o primeiro lugar. Me sinto bem, montada na minha sela, do alto do meu cavalo, rodeada dos meus cabras; meu coração parece que cresce dentro do meu peito. Mas, por outro lado, também queria ter um homem me exigindo, me seguindo com um olho cobiçoso, com ciúme de mim, como se eu fosse coisa dele.” Lembro agora do que disse Norma Telles, em seu História das Mulheres no Brasil, que para tornar-se criadora e não criatura, a mulher teria que matar o “anjo do lar” para “enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia e da desobediência”.

HEROÍNAS OU O QUÊ?

Os amantes figuram nos romances como possuidores de uma força incrível, inspiradora, capaz de restituir o caráter moral perdido e alçá-los à um idealizado estado de pureza. Vide o caso de Seixas no romance “Senhora”, de José de Alencar. Lá o amor é sempre vitorioso: Aurélia, em “Senhora”, vence porque tinha um bom motivo: o amor. O amor nos romances vence. No mundo da ficção, os heróis sempre amam. Mas a essa altura do campeonato já é possível de se afirmar que as mulheres idealizadas por Rachel de Queiroz apresentam-se muito mais como anti-heroínas - e leia-se aqui anti-heroína como a mulher dona-de-si, mais cerebral que emotiva, à frente do seu tempo, distante de tudo o que poderia remeter a singeleza - e menos, muito menos, como a figura clássica da mocinha etérea e servil, pouco ativa, retratada e romantizada em demasia nas Artes e na História. Verdade seja dita: as mulheres de Rachel, mesmo que por vezes egoístas, caóticas, violentas, de gênio forte e de atitudes controversas, são muito mais reais e humanas que as arquetípicas donzelas do gosto popular.

SÓ O LEITOR TEM ACESSO ÀS EMOÇÕES DE MARIA MOURA ENQUANTO AS PERSONAGENS DA TRAMA A PERCEBEM DE MANEIRA SUPERFICIAL.

Lucas Schlemper é escritor e acredita que poesia sai mais barato que terapia.

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POESIA

POESIA RUAN ROSA Há cordas e arames na mochila Uma costura Cinza e áspera raspa a mão. Melodias e trabalhos inteligentes e melodias: cargas cotidianas. Sabe, É como tem sido, Difícil e emaranhado O prolongar das horas nas minhas costas. As eras da sabedoria em árvores rosas. E mangueiras. Das paineiras, flores aveludadas e o tronco espinhento protegem minha casa. Naturais fibras amareladas circundam o morro todo. O terreno aspira ao sagrado, maturando a base de rezas. E chibatadas. A transcendência como um fardo Necessário às passadas De um cavalo Do deslumbramento. Associações circunstanciais Voam como borboletas: Não tem peso algum o pensamento.

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Era uma visão mitológica Subiu aos céus e está sentado à direita de deus. Brilha com as estrelas - guardemos a urna do pó do cosmo. Fogueira à beira do Ganges descansa em paz. Tudo se transforma e me lavarei nas águas de teus restos. A carne em larvas e coroas de flores em teu buraco. A pele em podre e eu te como: necrófilo: tua força em meu estômago. Deitado na terra virás árvore. Teu destino é seres outros animais - estar sempre presente. Inesgotável, não padeces e jamais somes - tudo se transforma. Hades recepciona defuntos no leito d’águas negras. O espírito vagueia manifesto ao redor das casas. A vida anuncia-se queixosa: os deuses (imortais) voltarão.

Ruan Rosa é poeta, autor do livro Laudas (2015). Reside na cidade de Blumenau - SC.


POESIA

I. Zoroastro. II. Zodíacos cotidianos. III. Xingu. IV. Utopias. V. Uma torre de porcelana. VI. Um monge queimando. VII. Um fato memorável. VIII. Um busto de Luiz Gonzaga. IX. Um brilho etéreo. X. Titanic. XI. Timbuktu, a “Cidade do 333 Santos”, no Mali. XII. Teu corpo. XIII. Templos do Nepal. XIV. Tecelagem. Teares. XV. Swayambhunath, o templo do macaco e os olhos do Buda. XVI. Sequoias. XVII. Ruínas e devastação. XVIII. Prainha. XIX. Paris is burning. XX. Palmira explodida. XXI. Pai. XXII. Os velhos. XXIII. Os sambaquis do Equinócio. XXIV. Os ritos. XXV. Os pássaros. Os parques. Os morros. Os mitos. XXVI. Os jazigos. XXVII. Os índios do Brasil XXVIII. Os deuses. Os corpos. Os cantos. XXIX. Os Budas na rocha de Bamiyan. XXX. Os artigos. XXXI. Obras de arte. XXXII. O sexo. O saci. O ópio. XXXIII. O oceano imenso.

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XXXIV. O mercado público. XXXV. O antigo Beirut. XXXVI. Meu corpo. XXXVII. Mesquita de Amarra. XXVIII. Masculino. Feminino. XXXIX. Majestosas tumbas. XL. Mãe. XLI. Jardim - quem tem tempo pra ele? XLII. Iraque. XLIII. Igrejas góticas. Igrejas de Cristo. Hospitais psiquiátricos. XLIV. Frohsinn em chamas. XLV. Flora. Filhos. Fauna. Fábricas. XLVI. Esta recordação. XLVII. Esta obra. XLVIII. Esta lembrança. XLIX. Escolas sitiadas. L. Cavernas de ossos. LI. Bugreiros e suas orelhas Xoclengue. LII. Bibliotecas. LIII. Belo Monte. LIV. Ave Maria. LV. Auschwitz. LVI. As pedras em Donna Emma. LVII. As línguas originais. LVIII. As fábulas. LIX. As casas dos reis. LX. Araucárias. LXI. Afogamento Guarani-Kaiowá. LXII. A vida eterna. LXIII. A Serra da Capivara. LXIV. A sabedoria. LXV. A ressurreição da carne. LXVI. A Iara. LXVII. A garrafa de leite no portão pela manhã. LXVIII. A comunhão dos Santos. LXIX. A cidade, às vezes.

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ELAS ESCREVEM

CARNÍV Autora: Isadora Krieger

FRAGMENTO INÉDITO DA PEÇA “AMADELEITE”

Piu pipipiu piu pipipiu. Piu pipipiu piu pipipiu. Godiiiinhoooooo! Cheguei! Godinho? Cadê o Godinho? Papaiiiii. A gaiola tá vazia! Cadê o meu Godinho? Quem tirou o Godinho daqui? A tua mãe tá te chamando lá na cozinha. Mandou você largar a mochila da escola, lavar as mãos e ir comer. Mas o Godinho... Ela disse já, filho. Mamãe, você viu o Godinho? Lavou bem essas mãos Leandro? Hoje nós temos um prato especial no almoço. Mamãe, eu preciso achar o Godinho, perguntar na vizinhança. Senta aí que eu vou trazer, ainda preciso preparar. Papai, explica pra mamãe que eu preciso procurar o Godinho, que quanto mais tempo demorar pior. Filho, faz o que a tua mãe tá mandando, não discute não. Mas papai, eu não vou conseguir viver sem o Godinho. Filho, viver a gente nunca consegue, no máximo suporta. Vai Leandro, senta logo, eu tenho uma surpresa pra você. Surpresa? Você achou o Godinho mamãe? Papai, onde a mamãe foi? Não sei, filho. Vai se servindo de salada enquanto a mamãe não volta. Mas eu não tô com fome, papai. Preciso achar o Godinho. Filho, melhor você comer, engole o alface e o tomate com o suco. Você sabe como ela fica brava quando você não come. Sei, sei sim, papai. Olha, ela tá voltando, engole logo tudo. Papai! A mamãe tá voltando com o Godinho! A mamãe achou o Godinho! Ah! Eu amo tanto o Godinho. Agradece a sua mãe, filho. Brigado, mamãe, muito, muito, muito obrigado! Mamãe? O que você tá fazendo? Por que você tá brava? Por que você tá segurando essa tesoura mamãe? O que você vai... Não mãe! Nãããoooooooo! Papai! Ela tá cortando as asas do Godinho, ela tá cortando as asas do Godinho, a mamãe tá cortando as asas do Godinho! Eu vi, Leandro, eu vi você usando os meus pratos de porcelana pra comer alpiste com esse passarinho imundo. Você sabe quanto eu paguei por esses pratos? Eu não paguei nada. Sabe por que Leandro? Porque eles não têm preço, esses pratos eu herdei da minha bisavó. Esses pratos têm mais de cem anos. Porcelana legítima. Ficou mudo agora, né? Sabe que fez coisa errada. Olha o que eu faço com esse passarinho imundo. Ele nunca mais vai encostar nos meus pratos de porcelana. Mas não adianta só cortar as asas, né? Vou deixar você decidir, Leandro. Você prefere comer o Godinho vivo ou morto? Porque você vai comê-lo, ah se vai! Anda, Leandro, desembucha. Não, não chega perto de mim. Se você der mais um passo enfio a tesoura no coraçãozinho desse passarinho imundo. Leandro, eu tô avisando. Depois não vai dizer que a culpa foi minha. Para de chorar Leandro. Para. Para já com esse berreiro Leandro! Sei. Tá doendo. Eu te chutei com força. Você bateu a cabeça. Tá sangrando. Você não pensou nisso na hora de usar os meus pratos de porcelana pra comer alpiste com esse passarinho imundo, né? Pois bem, se foi homem pra me afrontar também vai ser pra comer o Godinho. E não vai deixar nada no prato, nadinha. Tira o suco da mesa, seu inútil. Não tá vendo que ele não consegue se levantar? Faz alguma coisa que preste pelo teu filho. Ele vai comer esse passarinho a seco. O que você falou? Eu passei dos limites? Ah, claro, muito fácil ficar só com a parte boa, né? Me fazer passar por ruim. Se eu não educo esse menino ele vira um covarde feito você. Ah bom. Isso. Agora vai ali e pega aquela frigideira e coloca no fogão enquanto tempero o passarinho com sal grosso. Bem passado ou ao ponto Leandro? Iii, o gato comeu a língua dele.

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ELAS ESCREVEM

VORAS Pois bem, então eu escolho, mal passado, sangrando. Que cheiro esquisito, né? Esse monte de penas imundas só podia feder na hora de fritar. Iiii, será que o Godinho tá cantando ou chorando? O que você acha Leandro? Você que o conhece tão bem. Eu não consigo distinguir. Pra mim parece tudo a mesma merda. Ufa. Parou. Até que enfim! Paz para os nossos ouvidos. Iiii, isso quer dizer que o Godinho já era. Móórreu. Poxa, que rápido. Bichinho pequeno é muito frágil, né? Bom, a gente vai tudo morrer mesmo. Melhor morrer por uma boa causa. Vem cá, seu inútil! Me ajuda aqui. Pega um garfo e uma faca. Ele vai comer na frigideira mesmo. Isso. Agora segura bem a cabeça dele pra trás. Ah, para de frescura, nem tem tanto sangue assim. Deve ser um cortezinho de nada. O Leandro sempre foi meio bunda mole. Abre a boca Leandro. Abre essa boca Leandro! Isso. Agora mastiga. Mastiga direitinho. O que foi seu inútil? O que você tá resmungando aí? E daí que ele tá meio desacordado? Melhor. Só assim pro Leandro me obedecer. Você mima muito esse menino. Vamos Leandro. Engole. Ah, isso. A mamãe tá até orgulhosa de você. Agora vem a parte que você mais gosta. O peitinho. O peitinho amarelo. Não é assim que você fala?Pois então, tem carne nesse peitinho amarelo. Quem diria que um dia serviria pra alguma coisa. Isso. Mastiga. Assim. Assim mesmo. Agora engole. Olha só, que menino educadinho. Iiiiii, o educadinho desmaiou. Ah, e agora? Vou ter que comer o resto. Huuuum. Até que ficou gostoso. Quer um pedaço seu inútil? Vai. Experimenta. O que foi que você disse? Até parece, né? Você sempre odiou esse passarinho. Sempre reclamava: passarinho insuportável, passarinho insuportável. Vivia reclamando que ele não parava de cantar e que você detesta música. Ah tá. Agora eu que sou exagerada. Não precisava chegar a esse extremo. Era só dar ele pra alguém. E quem ia querer um passarinho imundo e barulhento, hein? Você acha mesmo que gente gosta disso? Você sabe muito bem que não. Que os vizinhos até fizeram uma reunião de condomínio pra nos expulsar do prédio. Motivo: desestabilização da ordem do concreto. Ah tá. Podíamos ter soltado ele. Afinal o céu enorme. Por pouco tempo, né? E depois tem outra coisa, do jeito que esse passarinho gostava do Leandro com certeza ele voltaria pra casa. Lá vem você falar de separação de novo. Tá tá tá. Pega a tua trouxa e se manda. Aqueles lixos que você desenha também. Mas dessa vez não vem implorar pra voltar. E nem adianta virar mendigo de novo. Você tem mais é que morar debaixo da ponte mesmo. Quem sabe assim aprende a dar valor pro trabalho. Tá achando que é fácil? Pagar esse monte de contas enquanto você brinca de ser artista? Nem talento você tem, seu inútil. Vai vai. Some da minha frente. Ah, e fecha a porta devagar. Senão vai estragar a pintura nova. Paguei os olhos da cara na reforma desse apartamento. Que foi? Por que você tá me olhando assim? Tá tá tá. Fala logo. Eu ainda tenho que limpar a sujeirada que esse passarinho fez. Aliás, é a tua cara, né? Ir embora bem na hora da faxina. Desembucha seu inútil. Mais alto. Eu não tô escutando. Ai meu saco. Péra, vou desligar o aspirador. Adeus, Alma, fala pro Leandro que deixei um beijo pra ele.

EI, VOCÊ, AUTORA, ESCRITORA, POETISA, CONTISTA, DRAMATURGA, AMADORA OU NÃO, PUBLIQUE NESSA SEÇÃO! MANDE SEU MATERIAL PARA: NAOALIMENTEOSARTISTAS@GMAIL.COM

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CINEMA

Tela Liquida

Marguerite Duras:

palavra infinita, imagem no tempo.

Por Felipe Leal

Exploramos o universo imagético da diretora francesa, cuja obra refletia sobre o invisível e o fugidio nas relações humanas.

U

ma assertiva: muito já Percebe-se que apreender enigmáticas do cinema: a textura foi dito sobre Margue- o instante é como uma criança que das superfícies é perceptível por rite Duras. É possível nos chega com a certeza de que vai baixo da música, alguns sons nos negá-lo? É certo que nos presentear com o vento ape- parecem corporais, orgânicos, innas segurando-o entre as mãos, só voluntários, de volúpia; as formas não. E ainda assim, sobre essa “lipara abri-las e ver que ele já se foi. se misturam diante dessa matéria teratura” extensa, da verticalidade O ar é bem como que só podemos afi rmar com cerdo profundo à horizontalidade da o presente, está lá, está aqui, está teza que é um entrelaçamento. abrangência, esqueceu-se, ao mePara Duras, a palavra é acipassando em todos os lugares mas nos quase sempre, que é possível não há como alcançá-lo. Eis a maté- ma de tudo o veículo de um semconjugá-la em uma só produção-número de sentidos, assim como ria-prima da autora: o fugidio. -autor: escritora, roteirista, cineas Poderia ser coincidência, ela mesma a teorizou: “As palavras ta. não estivesse essa questão já ins- têm um poder de proliferação infi Como abandonar a narratitalada desde aquela primeira cé- nito (...), a imagem está ali, ela tem va como espaço do “contar histólebre participação no cinema, ao uma forma, a palavra não tem. A rias” e instaurar-se no escorrimento lado de Alain Resnais. O roteiro de imagem não pode ser dita, descrimesmo do tempo, este puro, suas Duras para Hiroshima Mon Amour ta, ela só está onde está”. arestas limpas e abertas para os Concernente à produção (1959) inicia-se sobre o signo de lençóis da passagem? Principio, uma proliferação de sentidos que cinematográfi ca da autora, ainda então, com uma história fi ctícia: se marca o que chamarei, e já chama- que a teoria do cinema atribua-lhe se pedisse a alguém para viver no ram exaustivamente, de imagem- fases, momentos, pontos de ruppresente, como comumente nos é tura, aperfeiçoamentos, caminhos, -textual. aconselhado, como fazê-lo senão Ora, contrariando qualquer há entretanto uma única preocuprimeiramente através da palavra? estigma cristalizado para a roteiri- pação: retirar do cinema a primaDirão: “agora”, “presente”, “já”, zação, em que a preferência é pela zia da imagem, amputá-lo de sua qualquer signifi cação a princípio clareza, pelo texto fechado, pelas opressão do referente, afastar-se válida para capturar esse momento ações secas, pela descrição mais do entendimento, da teleologia, que é único. Mas logo se apresenobjetiva possível, como desviar os para impor um estilo já presente ta uma impossibilidade: quando se olhos e sentidos da pluralidade de na sua produção literária e que diz “já”, ele já passou, escorreu, maneiras com que se pode mate- a aproximou daquilo que se não é mais “já”. Qualquer tentativa rializar esta cena? convencionou chamar Nouveau de capturar o presente mais límpi E, de fato, a própria cena Roman: escrever e fi lmar o fl uxo, do torna-se frustrante: de nós, ele se preserva como uma das abertuestá sempre a escapar. ras mais À esquerda: Cena do filme Hiroshima Mon Amour, 1959. À direita: Cena do Filme Nathalie Granger, 1972. Marguerite Duras em 1955.

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CINEMA

a continuação do pensamento, fazer do texto mais uma caminhada sem destino do que uma sequencialidade causal, lógica; mas também fazer da imagem do cinema algo legível, estratifi cado. Já em Nathalie Granger (1972), na cena em que um vendedor de máquinas de lavar a domicílio tenta fazer sua venda a duas mulheres que o assistem de maneira impassível, Duras fi lma quase tudo voltada para o homem, só mostrando as mulheres para fazer com que digam “não”, com uma gestualidade quase inexistente. Negam tantas vezes qualquer coisa que o homem diga, que já não se sabe se estão negando suas frases, a conversa inteira ou sua presença, ainda que ele não pareça as incomodar. Há a instauração de uma morosidade, um arrastamento, um não-diálogo, como se ela quisesse não apenas dizer que tal inanição só pode se dar no tempo, mas que ela é também fabricação conjunta da palavra com aquelas imagens: enquanto a palavra encarna a negatividade, a imagem dessa ausência se constrói.

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Em O Homem Atlântico (1981), mas já praticadas em profusão em India Song (1975) ou No Caminhão (1977), ainda outras modulações do par texto-imagem: uma tela escura em que se percebe certo movimento, motricidade também por conta daquilo que é dito, frases que se dispersam, não se conectam com o que as imagens mostram em seguida, ou, se o fazem, já foram ditas tempos antes, e ainda não se tem certeza sobre a conexão. Mas, de súbito, vê-se ali que o liame não importa: o que a palavra diz (e o tempo do que é dito), as hesitações, reiterações, alterações mesmas daquilo que é dito, o que a câmera mostra, a ação perpetrada pelos atores – as camadas vão se cobrindo umas às outras, embaralhando os tempos e os sentimentos. A sensação de que há algo maior atravessando todo o extrato é indizível: “onde está o fi lme?” torna-se: ainda é possível falar de fi lme, de cinema? Isto se dá só porque, à sua maneira mais que particular, a autora havia participado da promoção de uma quebra quase total de uma tabula de leis através de uma ruptura com os moldes clássicos, com a narrativa tradicional, com o uso funcional da trilha, atores e espaços, com a ideia mesma de que ao cinema era necessário um sistema que se baseasse na

ação, na motricidade, na decupagem das partes que se conectavam umas com as outras através do eco: o que se faz aqui precisa dar sentido ao que se fará logo em seguida. “Vozes videntes”, “cine-escrita”, “câmera-caneta”, “escritura imagética”: o grosso da terminologia utilizada para apelidar o cinema de Duras, seja ela advinda da academia, da crítica especialista ou da opinião deselitizada, sempre convergirá para um duplo não necessariamente indiscernível nem exatamente dúplice em si, tampouco situado dentro ou fora. Há antes uma dobra, uma refratação perpétua, um labirinto em-vias-de-se-fazer, que pode fechar uma saída que já era, em si, aparente. Se a miséria, a dor, o mal, a impossibilidade e a violência são temas caros à Duras, é porque silenciar-se diante do horror que o pós-guerra tinha nos acometido ainda era possível, e real - a nós, que o vimos enquanto homens, e ao cinema, quando decide se calar para que a técnica possa traduzir esse horror. Onde preferirem encaixá-lo, o cinema de Duras será ainda, e acima de tudo, puro artifício.

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ENTREVISTA

CRUA ENTREVISTA: Por Lucas Schlemper

A ESCRITORA FANTASMA Rita de Cassia Martins era, até pouco tempo atrás, o que se pode considerar como a típica “poeta de gaveta”, expressão utilizada para se referir a autores que, por motivos de timi dez, retraimento ou falta de espaço para a exposição de seus originais, ou, ainda, certa aversão ao ato de publicar - como era o caso da poetisa Emily Dickinson, que considerava toda publicação um ato de “leilão da alma humana” - optam por não expor suas obras para além dos círculos íntimos nem frequentar circuitos literários. A produção autoral de Rita adquiriu novos contornos quando ela se arriscou a participar do I Concurso Novas Vozes da Poesia, de Santa Catarina, onde se sagrou vencedora por unanimidade entre a banca avaliadora. Seu poema, “Aração”, obteve pontuação máxima nos quesitos originalidade, capacidade de transcendência poética e domínio das técnicas literárias. Na ocasião, ao resenhar “Aração” para meu site pessoal, como forma de provocar Rita evoquei alguns questionamentos: quem é essa mulher, de onde veio, para onde vai? E qual não foi a surpresa quando recebi o convite da autora para que viesse até a sua residência e esclarecêssemos essas (e outras tantas) dúvidas. O que vejo é uma mulher na faixa dos cinquenta anos, de fala moderna, mansa mas rápida nos gestos e nas observações que faz. Ela me conta, dentre outras coisas, sobre sua experiência profissional como ghost-writer, sua relação íntima para com a música e a escrita, bem como suas maiores influências na hora de criar. REVISTA CRUA | 24

RITA MARTINS

“Se eu estiver mexendo demais as mãos vocês me digam. É que sou negra e italiana”, avisa. CRUA: Quando foi que você começou a se interessar por literatura? E quando foi que começou a produzir? Olha, assim, ganhei meu primeiro livro de uma irmã, quando tinha oito anos. Comecei a escrever naturalmente, espontaneamente, muito cedo. Era uma criança muito solitária. Como caçula cuja diferença de idade para o irmão mais novo era de sete anos, acabei por passar muito tempo comigo mesma. E comecei muito cedo a me expressar, a princípio de modo simples. Em termos de literatura, comecei a ler autores consistentes só depois dos dezesseis anos. Lembro que o primeiro autor que me encantou foi o alemão Herman Hesse, li toda a obra dele. Meu favorito é O Lobo da Estepe. Naquele tempo o acesso à literatura era um tanto elitista, pois custava caro este acesso. Então nós tínhamos um grupo de pessoas que trocavam livros entre si, intercambiávamos uns com os outros, e também discutíamos muito sobre literatura, analisávamos, criticávamos, recitávamos poemas. Então foi a partir desse momento que comecei a me interessar e a produzir literatura também. CRUA: Você citou Herman Hesse como influência. Quais outros autores e obras marcaram você? Naquele tempo eu também lia muita coisa voltada para a política, dentre outras coisas. Eu li Mao Tse Tung, O Capital, Elogio à Loucura, muitos livros de filosofia, tudo nesse período. O maior escritor brasileiro de todos os tempos, para mim, é Machado de Assis.


ENTREVISTA

Acho que eu seria muito amiga da Cora Coralina se a encontrasse. E da Adélia Prado. Penso parecido com elas. Coisas do chão, da terra, do profano, da oração e do pecado que nada tem a ver com templos ou hierarquias. Falamos dos pecados de não conseguir ser manso e bom e nobre e gentil o tempo inteiro. Gosto da poesia pela poesia. CRUA: Que características é preciso se ter para que alguém dê seus primeiros passos no campo da criação literária? Penso que todas as práticas de expressão, de pensamento, de expressão artística principalmente, exigem três elementos basicamente, que seriam: primeiro, coragem, isto é, se soltar, ter a coragem de pegar a caneta e de fato escrever, ao invés de só ficar com ideias lindas na cabeça. É preciso começar. Depois, a assiduidade. Porque quanto mais se faz, mesmo que nada fique lindo a princípio, mesmo que botemos defeitos, ao fazer várias vezes nós passamos a ter um certo parâmetro. E o terceiro elemento é a autocrítica, que possibilita sofisticar o pensamento, no sentido de refinar mesmo, e descobrir que tipo de palavra eu gosto, que tipo de palavra eu falo, que dimensão eu quero dar para essa palavra, onde é que eu quero chegar. CRUA: Há algo de feminino nos poemas que você cria. Você acha que existe alguma diferença entre a literatura feita por homens e a literatura feita por mulheres? Comente. Admiro escritores de ambos os sexos, sem preferência por um ou por outro gênero. Acho que existiram escritores, como o Ferreira Gullar, que, por mais que tivesse algo de viril na personalidade dele, em alguns momentos se revelava portador de uma delicadeza quase feminina. E uma Clarice Lispector, que trazia em sua escrita uma espécie de masculinidade. Falando de mim, eu acho que escrevo com androginia, porque às vezes escrevo coisas que considero muito masculinas e às vezes outras que considero muito femininas. Então eu acho que a expressão do pensamento do escritor independe do gênero, mas sim do momento em que ele se encontra ao escrever. Lembro sempre de uma frase do (Gilberto) Gil que diz: “um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria”. O que é ser homem nesta hora? À mim, definitivamente, o sexo do autor não tem a menor importância.

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“ÀS VEZES A PESSOA TEM UM MONTE DE COISAS BONITAS DENTRO DELA, MAS NÃO TEM CORAGEM DE SOLTAR. QUE PECADO. A PESSOA FICA ALI EMBUTIDA, OU MELHOR, FICA TUDO EMBUTIDO DENTRO DELA.” CRUA: A respeito dos editais de incentivo à cultura, você acredita que são suficientes para fomentar e manter acesa a chama da produção literária no Brasil? Sempre entendi a Lei Rouanet, por exemplo, como um grande e maravilhoso nicho de incentivo aos criadores. E de repente a Lei Rouanet virou uma coisa muito vendida. Peguei o exemplo dessa lei para falar de outras coisas: penso que não, não são suficientes, mas por outro lado tem uma coisa com a qual não concordo. Há uma determinada estirpe de artistas, pseudo-artistas, que se não há envolvimento público acabam não criando nada. Eu, particularmente, sinto que as propostas de contrapartida desses projetos são desenvolvidas sem inspiração, como se fossem meras prestações de contas, quando na verdade deveriam injetar no artista um entusiasmo em colaborar com a sociedade. O que parece é que o Brasil não preza de verdade pela cultura, no sentido mais refinado da cultura. Estamos anos-luz atrás. Espero poder ver daqui alguns anos a coisa toda a andar um pouquinho mais rápido. CRUA: Ao produzir poesia, você pensa nos seus leitores ou é um processo puramente individual? Não penso em nada, simplesmente escrevo. Quando você escreveu aquela resenha sobre o meu poema, que de certa forma foi um tapa na minha cara, onde você disse sobre a necessidade de haver um tripé, autor/obra/público, acho é exatamente isso. Mas eu não pensava nisso antes. CRUA: Rita, o que é a inspiração? É um sentimento, ou é uma iluminação, um estado de graça...? É um estalo. Para mim, é um estalo. Ontem mesmo estava limpando minha casa, fazendo várias coisas, e lembrei do programa que havia assistido no Arte 1 sobre o Leonard Buernstein (maestro, compositor e pianista americano) enquanto ele fazia o West Side Story, o making of do musical, e aquilo tudo ficou em mim, aquele homem ficou em mim.

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ENTREVISTA

Aquele homem tem uma agonia...então vi aquilo tudo e pensei, “Pronto, estou apaixonada por ele!“. O som do nome dele ficou dentro de mim. West Side Story é uma masterpiece. E aquele homem fazendo tudo sozinho... E foi então que saiu um poema na minha cabeça, tinha um trecho que dizia: “Mas o que é que tem/Que me apaixonei por Leonard Bernstein?”. Mas não escrevi. Fico agora na esperança de que algo assim aconteça novamente. Eu tenho muitos insights na fase letárgica, logo antes de dormir, que não é novidade nenhuma que é um dos momentos mais propícios à criatividade. Respondendo: eu não sei o que é a inspiração. Acho que é um estalo mesmo. CRUA: O que é que você perguntaria a alguém, se pudesse? Eu perguntaria a Caetano Veloso sobre como é que ele escreveu Língua.

Declama:

“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões Gosto de ser e de estar E quero me dedicar a criar confusões de prosódias E uma profusão de paródias Que encurtem dores E furtem cores como camaleões Gosto do Pessoa na pessoa Da rosa no Rosa E sei que a poesia está para a prosa Assim como o amor está para a amizade E quem há de negar que esta lhe é superior? E deixe os Portugais morrerem à míngua Minha pátria é minha língua Fala Mangueira! Fala! O que quer O que pode esta língua?”

CRUA: Você tem uma relação muito forte com a música. Fale um pouco mais sobre isso. Aos 16 anos compusemos, meu irmão e eu, algumas poucas canções; com uma delas – Maria Bethania – vencemos três festivais de música. Foi interessante, pois a partir dali recebi o convite para ser vocalista na banda The Silver Stones, onde cantei profissionalmente por dois anos. Participei então na construção das letras em inglês do álbum My World, do (compositor/cantor/multi-instrumentista) Jacques Finster. Ele me trouxe as melodias prontas com suas métricas e eu construí as letras em inglês nas métricas para serem executadas. O resultado final ficou bom.

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CRUA: Fale um pouco sobre a sua experiência como ghost-writer. Como apareceu esta oportunidade em sua vida? Isto durou seis anos, mais precisamente de 1993 a 1998, era uma tira semanal para o Jornal da Tarde (SP) sobre tópicos interessantes da interação cultural BrasilSP/Nova York, numa gama bastante ampla de assuntos, variando desde in e outs de moda, gírias, linguagem, mídia em geral, políticas, de tiradas meramente bem humoradas e divertidas a paródias e cositas do gênero. Permaneci durante seis anos e, para isso, eu lia de tudo um pouco, do underground às caipirices de uma insider urbana. Durante um período que não lembro bem, tipo dois anos, fiz também ainda lá em NY, ainda como ghost-writer, página dupla de variedades para a Revista VIP aqui do Brasil. O resultado era muito positivo, não só pela gratificação editorial mas porque nessa época ganhei amigos muito queridos. O tempo depois me deu em amizade mais do que qualquer gorjetinha significaria... CRUA: O quanto isso influenciou no seu modo de escrever? Não tenho dúvida de que essa experiência me levou a dois lados antagônicos: se por um lado eu desenvolvi um senso bem eclético e amoral (nem um pouco eletivo ou elitista) dos assuntos sobre os quais desenvolveria em minha produção semanal, por outro lado devo dizer que andei meio de ego quebrado nessa época. Afinal, não é a coisa mais glamorosa ou gratificante ouvir todos os elogios e tributos a outrem... e manter o bico calado. Com o passar do tempo isso gera um pouco de alguma crise de identidade, sim. Mas enfim, negociado é negociado e eu ganhava legal pra fazer isso. Através desse trabalho, me veio um convite para fazer umas páginas na Revista The Jornal, que era produzida pelo criador da Interview, uma revista bem reconhecida aqui no país no início dos anos 80. Eu adorava esse trabalho porque era muito livre e eu podia exercer um pouco do meu lado mais rebelde de escrever. A coluna se chamava In Between the Lines. O ponto foi que, aos poucos, na medida em que me deram uma fresta de luz pra espiar, entrei com vontade e fiz umas coisas bacanas por um tempo bom, tipo 5 a 6 anos na Vogue Decoração. Fiz matérias que, francamente, ficaram bem escritas.


ENTREVISTA

Digo isso sem modéstia e explico. É que eu não fazia uma matéria técnica, saca? Eu personificava um contexto meio crônica sobre aqueles ambientes. Botava emoção, temperatura, tesão, ternura entre seus habitantes e, claro, mesclava os aspectos estéticos do mobiliário. Mas não gostava de escrever tecnicamente, isso a Architectural Digest já fazia com mestria e era a bíblia da arquitetura e decoração no Western World. Então o que eu fazia era mostrar uma coisa mais temperada mesmo, e acabava por dar certo. Foi um tempo muito lindo esse do qual tenho lembranças muito queridas. CRUA: Obrigado pela entrevista, Rita. Deixe um recado para os leitores. Eu que agradeço a oportunidade. Quero dizer que, às vezes, a pessoa tem um monte de coisas bonitas dentro dela mas não tem coragem de soltar. Que pecado. A pessoa fica ali embutida, ou melhor, fica tudo embutido dentro dela.

ARAÇÃO

Poema vencedor do I Concurso Novas Vozes da Poesia, de Santa Catarina.

Às seis da tarde credos em cruzes Acotoveladas de si bemóis violas curvas Turvos olhares pandeiros frouxos - couro da pele Anjos da Ave voam das granjas, dão canja à janta Marias baking, meninas faking, falsetto sacro Milho do pago pagão dourado tempero forte. Da flor do sal brotam cheirosas frangas sem penas Umbrais de fêmeas, sem mais soleiras, eiras febris. Assim, meu anjo clarinho rosa se esgueira à porta Torta se mostra sem rumo ou vela, de harpa zarpa Afina a corda, pega na corda, acorda cordão. Vem sem pecado, benta receita a gente aceita Voa, revoa em benzer a proa até à popa, muda de vento Poema invento, Gregoriano o canto o manto o mato o santo Da mata a seiva seita a saliva a vida avulta avulsa afoita moita Carne moída de surra e sina, carne dorida, Carne pra fome, carne da vida.

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Print matters. Print (still) matters. Essa pequena

frase é o slogan de uma corrente contracultural que inicia nos anos 1960 e desde então conquista mais adeptos às criações táteis que o papel comporta. Você já deve ter ouvido nomes como Maurizio Nannucci, Paolo Masi, Jospeh Kosuth, Hugo Gernsback, General Idea, Pati Hill, Edson Rontani. Caso nunca tenha sequer esbarrado por algum desses ícones da arte impressa, anote-os. Foram eles, e tantos outros, em publicações e eventos como o Amazing Stories, Schema Gallery, Zona Archives, Art Tapes 22, Per Conoscenza, Piracicaba, Feira Tijuana, Feira Plana e tantas outras que instigaram e fizeram história associando movimentos da cultura popular, da cultura de massa, das vanguardas artísticas e da contracultura, permanecendo até os dias de hoje como grandes recursos de liberdade de expressão. Distantes das grandes editoras e do sistema editorial que já se mostra tão excludente quanto elitizado, os movimentos e coletivos artísticos que insistem nas pequenas tiragens provam-se como os detentores da experimentação gráfica, encarando a publicação como uma zona autônoma para a livre expressão da literatura, design e artes visuais. Fanzines, semiprozines, copy art, livros de artista, xerox art, artes gráficas – são vários os termos, conceitos e plataformas experimentais para os impressos do século XXI.

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A mídia impressa não está em crise. Nunca esteve. Talvez possamos concordar que a informação está em crise, porque vem aos montes, aos milhares de bytes por segundo. A informação tradicional - e não a arte - passa por um momento crítico de revalidação como sistema de trocas. Investir na construção de um sistema editorial anárquico e mais fluido é garantir ao artista do bairro, da cidade e do estado um espaço democrático do fazer artístico e intelectual. Pensando nessa necessidade, a da existência de espaços de criação e discussão do mercado impresso, que entrevistamos a Surto, feira de artes impressas estabelecida em Balneário Camboriú (SC) que, além de acrescentar ao calendário local um movimento de trocas, prova que as iniciativas independentes podem ganhar força e público. Em poucas palavras, a Surto é uma feira de artes impressas criada para abrir portas aos artistas que querem levar ao público suas criações, sem censura, sem curadoria e sem frescura. A primeira edição aconteceu em agosto de 2015 e, desde então, vem se consolidando na cena cultural da região catarinense, incentivando a produção, o comércio e a troca de artes impressas.

Em dois anos, realizou oito edições da feira e um festival comemorativo, com o lançamento do seu primeiro anuário (que você ganhou de presente ao adquirir essa edição da CRUA). Ali estão publicadas as obras de artistas que participaram das Surtos entre 2015 e 2016. Não se trata somente de um catálogo de seus primeiros anos, mas de um grande registro da cena pulsante e crescente que se desenrola ao sul do país. Inspirados pela ideia de somar forças e promover o cenário artístico independente da região, criaram o Primeiro Relativamente Grande Leilão de Artes da Surto, com a intenção de levantar verba para criar um fundo de investimento para projetos artísticos independentes. O Leilão reuniu em duas edições a venda de 21 lotes de produtos, cujas as obras à venda foram cedidas por expositores da feira e artistas apoiadores. Essa iniciativa se apresenta como um meio alternativo de angariar fundos para a cultura. Esse novo grupo de produtores culturais prova que, mais que nunca, não podemos mais nos contentar com pouco. Precisamos de mais gritos que demonstrem o potencial do pequeno artista, do produtor caseiro, do pequeno editor. O que nosso cenário brasileiro necessita é de mais surtos.

ADQUIRA JÁ o anuário da Surto e outros produtos na MPBC Store: @feirasurto | @MPBCStore @feirasurto

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OPINIÃO

verborrágicas A

mudança constitui uma quebra na forma como compreendemos o mundo em rede, das trocas políticas e sociais às relações tecnológicas. Ao perceber esse exercício como algo dinâmico e em movimento, Foucalt insere todo ser social (eu, você, todos) em uma prática constante que se ramifica em diversos nós e que se sobrepõem em maior ou menor potência ao estabelecer exercícios dinâmicos e em constante mutação. Ao invés de um só poder, diferentes poderes, diferentes forças agindo ao mesmo tempo sobre nossa atuação como indivíduos. Encarando essa potencialidade como algo inerente à cultura contemporânea, Foucault afirma que não há ninguém excluído dessas relações e nem alguém que exerça poderes totais e contínuos, fazendo com que a análise do status de dominação exija recortes temporais e geográficos: quem domina, quando o faz, onde pode fazê-lo e por quais motivos.

Não é uma questão sobre quem manda e quem obedece, mas sobre a construção de espaços temporários de dominação. A partir disso, tendemos a problematizar as relações sociais, amorosas, midiáticas, políticas, entre tantas outras que nos dizem respeito e atingem. Outro pensador - Giorgio Agamben - traz à tona dois conceitos antagônicos pertinentes à discussão: o dispositivo e a profanação. Tendo no dispositivo um conjunto de discursos, instituições, estruturas, leis, além de proposições morais e filosóficas, ele afirma: há na contemporaneidade elementos estratégicos que resultam do cruzamento entre as relações de poder e saber. É sobre esse conjunto de ações e discursos que se deve debruçar o pensamento do contra-ataque, o que chamamos de profanação. Profanar seria, então, a prática de trazer à discussão social o que os dispositivos tentam roubar do indivíduo: sua autonomia de escolha, sentimento, gosto e pensamento.

COMO PODE A ARTE PROFANAR O COTIDIANO? REVISTA CRUA | 30


OPINIÃO

Raquel Stolf

Célia Antonacci Ramos Doutora em Artes Visuais; Escritora e Pesquisadora

Mestre em Processos Artísticos; Videomaker e Pesquisador

1. Aqui-agora: o plano de partida pode ser um processo contínuo de infiltração nas camadas/ações/ situações que constituem o cotidiano; 2. Instando: estremecendo suas camadas a partir de práticas reflexivas-flexivas e infraordinárias; 3. Fisgando: manobrando (acidentes discursivos em plena luz do dia/noite), em táticas de mão-vão-dupla e atravessando-o, em que desfazer a palavra (de ordem, a palavra como via) implica a interseção entre algo-arte/algoalgo/algo-vida; 4. Perfurando: tentando escutar o que não se diz/ vê sem o que se vê/diz, modulando a escuta como algo que inscreve (corte/ buraco) e que ressoa crua numa palavra-desvio ou no silêncio do pensamento como um “optar pelo vácuo ao ar livre”.

Na fronteira do presente, vozes polissêmicas confrontam a modernidade e anunciam na nação moderna a chegada de homens, mulheres e crianças apartados de suas línguas, culturas e modos de vida. Os grandes deslocamentos intencionais ou tensionais pela crise financeira questionam os paradoxos da História Oficial narrada em línguas europeias e seus elementos de narrativas de poder – monumentos, templos, escolas –, e a arte preservada nos museus. Esse pedagógico logo é questionado pelas performances cotidianas daqueles que, despossuídos de sua cidadania, fazem do corpo sua casa e da língua sua nação. Na contemporaneidade somos todos estranhos estrangeiros dentro e fora de nossa nação, de nosso corpo. O poder é exercido pelo estrangeirismo dos deslocados e nosso cotidiano é profanado dentro e fora das muralhas da arte.

Acionando o processo descolonial de religar o homem com sua natureza. Tentemos um procedimento híbrido: afastar-se do ego e de seus avatares sociais. Ao encontrar as pontas dessa rede em trama, reencontrar-se no espaço-tempo histórico. Trazer à tona e revelar o mórbido constructo simbólico e cotidiano contemporâneo que torna o homem afastado de sua natureza. Enquanto esquecida a arte-vida, não se pode esperar que a arte Fordista, industrializada e elitista profane o cotidiano, já que a cifra profanou a arte em desengano, destarte, disparate em desuso em viés comercial de consumo. Imersos na noção do mundo digital repartido em telas, já nos encontramos profundos no fundo de um processo onde o profano foi posto em plano de fundo da cena industrial artística. Só o contra-ataque da descolonialização do saber fará reverter as relações de poder e vice-versa.

Doutora em Artes Visuais; Artista Visual

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Gustavo Presta


LISTAS

5 ARTISTAS DA PERFORMANCE PARA VOCÊ NÃO ESQUECER

1

BERNA REALE (brasil) Reflexões sobre a violência

Realizadora de instalações e performances, além de atuar como perita criminal. Estudou arte na Universidade Federal do Pará (Belém, PA) e participou de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e na Europa. Recebeu o grande prêmio do Salão Arte Pará, em Belém (PA, 2009), e foi selecionada para o “Rumos Visuais – Itaú Cultural” (2012-2013). A violência tem sido, nos últimos anos, o grande foco de suas atenções artísticas. Suas performances são pensadas com o objetivo de criar um ruído provocador de reflexão, e expressam temas como a fragilidade do corpo, a vulnerabilidade e a perda do valor à vida humana. Na polêmica “Quando Todos Calam”, de 2009, deitada em uma mesa de madeira, coloca vísceras sobre o seu corpo, ficando exposta aos urubus que se aproximam do corpo da artista, provocando no espectador a vivência da experiência de que os urubus vão atacá-la. Em “Limite Zero”, de 2012, Reale é carregada pelas ruas de uma grande cidade por indivíduos que se assemelham a enfermeiros ou açougueiros, nua e dependurada num bastão de metal. O público pára para observar a sua passagem, mas suas reações são passivas; indiferentes.

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BERNA REALE, Ordinário (2013) © Registro Fotográfico: Janduari Simões


2

LAURIE ANDERSON (EUA) A mulher à frente do seu tempo

3

LISTAS

Milica Tomic (sérvia) MEMÓRIA DO TRAUMA

Milica Tomic trabalha como artista independente em Belgrado, explorando as inter-relações entre arte, sociedade e espaço público, pesquisando e explorando questões de debate relacionadas à memória, trauma e amnésia social. Seus projetos exploram uma multiplicidade de maneiras pouco convencionais nas quais a arte pode ser criada, executada, transformada e ponderada. Tomic é fundadora do grupo de arte e teoria artística da Nova Iugoslávia, o “Grupa Spomenik” [Monument Group, 2002]; Participou de exposições internacionais como a 24ª Bienal de São Paulo [1998], 50ª Bienal de Veneza [2003]; 15ª Bienal de Sydney [2006]; e Bienal de Odessa [2013]. Performance de 1983, no dominion Theatre. Fonte: Brian Rasic - Getty Images

Artista experimental norte-americana, compositora, musicista e diretora de cinema, conhecida principalmente por suas performances multimídia e por seus numerosos álbuns musicais. Seus temas prediletos dizem respeito à tecnologia e seus efeitos sobre as relações humanas. No Brasil, colaborou com a revista de arte contemporânea Confraria do Vento, editada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Anderson inventou uma série de instrumentos musicais, os quais utilizou com frequência em seus álbuns e performances, dentre eles: o violino arco-de-fita, o bastão falante e os filtros de voz.

No vídeo-instalação intitulado “Eu sou Milica Tomic” (I am Milica Tomic, 2010), explora a ligação entre identidade individual e coletiva: girando em cima de um pedestal, a artista fala seu próprio nome em 64 idiomas diferentes, de modo a afirmar que pertence a diferentes grupos étnicos. Seu rosto permanece impassível enquanto ela é atacada por cortes e arranhões que passam a cobrir seu corpo com feridas e marcas de sangue.

O VIOLINO ARCO-DE-FITA: instrumento criado em 1977. Laurie usou uma fita magnética no lugar da tradicional crina de cavalo, no arco, e uma outra fita magnética acoplada ao cavalete do violino. Ela pode ser vista usando uma versão posterior desse dispositivo em seu filme “Lar dos Bravos”, no qual manipula uma frase gravada pelo escritor beatnik William Burroughs. O BASTÃO FALANTE: é um controlador MIDI em formato de bastão, sem fio, que pode acessar e replicar qualquer som. Funciona com base no princípio da síntese granular, isto é, uma técnica que permite quebrar o som em pequenos segmentos, chamados grãos, e depois reproduzi-los de maneiras diferentes. O computador reorganiza os fragmentos de som em cordas contínuas ou aleatórias que são reproduzidas em sequências sobrepostas para criar novas texturas sonoras. FILTROS DE VOZ: Algo recorrente no trabalho de Anderson é o uso de um filtro que aprofunda sua voz em timbres masculinos e etéreos, uma técnica que Anderson chamou de “arrasto de áudio”. Durante grande parte da carreira de Anderson, o personagem era chamado por ela de “Voz da Autoridade”, embora, mais recentemente, tenha ganho o apelido de Fenway Bergamot por sugestão de seu marido, o cantor Lou Reed. REVISTA CRUA | 33

Fragmento do vídeo-instalação (I am Milica Tomic, 2010) Fonte: XYCrime (youtube)


LISTAS

4

JOSEPH BEUYS (ALEMANHA) O escultor social

5

SHIRIN NESHAT(IRÃ) Do martírio ao exílio

Artista de performance, instalação, escultor, teorista de arte e pedagogo, nascido na cidade de Krefeld. Seu vasto trabalho é baseado em conceitos de humanismo, filosofia social e antroposofia, onde se dedicou a perseguir a ideia de “escultura social” - teoria artística elaborada nos anos 60 por Beuys que busca recriar as estruturas sociais através da linguagem, de pensamentos, ações e objetos. Ele acreditava que a humanidade, com sua propensão à racionalidade, rumava para o que ele se referia como “tentativa de eliminar as emoções” e, por consequência, “suprimir a principal fonte de energia e criatividade em cada indivíduo”. A primeira exposição individual de Beuys em uma galeria privada se deu em 1965 com uma das performances mais famosas e atraentes do artista: Como Explicar as Fotos para uma Lebre Morta (How to Explain Pictures to a Dead Hare). O artista podia ser visto através do vidro da janela de uma galeria: seu rosto estava coberto de mel e uma máscara de ouro, tendo uma laje de ferro presa às suas botas. Em seus braços ele embalava uma lebre morta, em cuja orelha ele murmurava ruídos baixos, bem como explicações dos desenhos que alinhavam as paredes. Tais materiais e ações tinham um valor simbólico específico para Beuys. Por exemplo, o mel é o produto das abelhas, e para Beuys (seguindo Rudolf Steiner), as abelhas representavam uma sociedade ideal de calor e fraternidade. O ouro tinha sua importância dentro da indagação alquímica, e o ferro, o metal de Marte, representava um princípio masculino de força e de conexão à terra. Uma fotografia da apresentação, em que Beuys está sentado com a lebre, foi descrita por alguns críticos como “uma nova Mona Lisa do século 20”, embora Beuys não concordasse com a descrição.

Artista visual avant-garde conhecida por seu trabalho com vídeo, cinema e fotografia. Sua obra se propõe à investigação de contrastes entre masculino e feminino, vida pública e vida privada, antiguidade e modernidade, cultura ocidental e oriental. Foi premiada diversas vezes por seus trabalhos e recebeu prêmios importantes como o XLVIII Prêmio Internacional da Bienal de Veneza [1999] e o Leão de Prata de Melhor Diretor no 66º Festival de Cinema de Veneza [2009], além de ter sido eleita Artista da Década pelo crítico G. Roger Denson, da revista HuffPost. Neshat imerge nas dimensões sociais, políticas e psicológicas da experiência das mulheres na atual sociedade islâmica, questionando os moldes intelectuais e religiosos impostos às mulheres muçulmanas ao redor do mundo. Valendo-se da poesia persa e de experimentos com caligrafia, ela examina conceitos como o ato de martírio, o exílio, e problemas de identidade. Seus primeiros trabalhos consistiam em séries de fotografias, como “Revelação” (Unveiling) de 1993, e “Mulheres de Alá” (Women of Allah) de 1997, nas quais discute e explora conceitos de feminilidade em relação ao fundamentalismo islâmico e a militância em seu país natal.

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Fernanda Magalhães durante uma de suas oficinas em Florianópolis, fotografada por Álvaro deCRUA Azevedo REVISTA | 36Diaz (imagem cedida pelo autor).


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