Darcy Nº 14

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revisTa de JorNaLisMo Ci eNTí FiCo e CuLTuraL da uN iversi dade de brasí Lia

Nº 14 · SETEMBRO E OUTUBRO DE 2013

ISSN 2176-638X



CarTa dos ediTores Ivan Sasha

uM Passo À FreNTe, Por Favor Uma revista é feita de sonhos, anseios, desejos e trabalho árduo. DARCY — criada para refletir a respeito dessas convulsões provocadas por ideias e polêmicas que formam o campo complexo dos saberes de uma universidade — tem dias de soluços. A última edição, nomeada OSCAR em homenagem a Niemeyer, saiu com data de janeiro e fevereiro deste ano. A número 14 chega agora, muitos meses depois. Não é a primeira vez que um lapso desses ocorre. Vamos fazer o possível para que seja o último. DARCY tem passado por mudanças importantes. Por exemplo, foi criada a disciplina Revista Científica para que alunos de jornalismo possam apurar as reportagens que se encontram nas páginas seguintes. É o embrião à prática responsável de jornalismo científico, pois procurou-se traduzir os termos técnicos do meio acadêmico em linguagem acessível para todos. Outro ponto a ser notado é a identidade gráfica da revista. Em busca de leitura mais agradável, DARCY passará por reformas visuais. Algumas, inclusive, já poderão ser notadas neste número. No futuro, queremos criar edição virtual da revista que possa ser carregada em aparatos eletrônicos e lida por meio de aplicativo próprio. Com isso, economizar papel e fazer nossa parte como revista sustentável e preocupada com o meio ambiente, sem perder qualidade de informação. Pelo contrário, se possível agregando os benefícios das novas plataformas para ajudar nossos leitores a se informarem a respeito de ciência e cultura. Diante de tantas novidades, modificações e desafios, o tema do dossiê desta edição não poderia ser mais apropriado: reciclagem. O processo iniciou-se antes mesmo de os textos ficarem prontos, quando escolhemos fazer DARCY em papel Reciclato, que contribui com a diminuição dos resíduos urbanos e com a preservação dos recursos naturais. No miolo, pesquisadores contam aos nossos repórteres maneiras de como tornar o planeta mais agradável a partir de práticas sustentáveis. Os exemplos vêm do Brasil e do estrangeiro — como no caso do depósito de lixo a céu aberto, em Morro de Morávia, na Colômbia, que pode servir de orientação aos aterros brasileiros. Sem per-

der do horizonte que a DARCY deve falar especialmente de pesquisadores vinculados à UnB. É nosso compromisso trazer a público o que se desenvolve na universidade, seja em pesquisa pura, seja na aplicada. Por exemplo, um aluno de ciência da computação, Fernando Campos Schelb, está desenvolvendo um aplicativo para celular que pode ajudar diabéticos do tipo um a fazerem cálculos mais rápidos das quantidades de insulina que precisam aplicar. Isso deve ser muito útil a uma grande quantidade de pessoas no futuro. A posteridade, inclusive, é tema recorrente neste número 14. Uma luva que funciona como órtese para pessoas com paralisia nas mãos devido a lesões no plexo braquial pode se transformar em um importante equipamento na recuperação motora de pacientes com esses sintomas. O professor emérito da UnB Isaac Roitman discute em Diálogos os rumos que devem ser seguidos pelo sistema educacional nos próximos anos, além de abrir debate a respeito de novas concepções pedagógicas que apontam para um cenário que estimule a criatividade e a crítica. DARCY, no entanto, não se esqueceu do passado. Em Arqueologia de uma ideia, pode-se conhecer melhor a história dos óculos e como boa parte da humanidade acostumou-se a enxergar o mundo com o auxílio de lentes. As mesmas lentes que às vezes se voltam para fora do planeta, em telescópios curiosos, como a nova coluna Fronteiras da Astronomia explica. Mas também temos um olhar lançado para os próprios habitantes da Terra, que formam um todo, como esclarece Luiz Gonzaga Motta na conhecida coluna Fronteiras do Pensamento. É através desse passeio desde o pretérito até o futuro que DARCY volta a ser impressa. Sim, ainda com o objetivo de divulgar projetos científicos já desenvolvidos por pesquisadores da UnB, mas sem esquecer dos inúmeros desafios que a revista terá pela frente. Para obter êxito nessa empreitada, contamos também com a colaboração dos nossos leitores. Portanto, mande-nos críticas, dúvidas, sugestões. Ajude-nos a reciclar DARCY, sempre. Paulo Paniago e Paulo renato souza Cunha

Comentários para os editores: paulopaniago@gmail.com; paulorenato.cb@gmail.com

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darCY

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CarTa dos ediTores

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Luvas FuNCioNais

universidade de brasília

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diÁLoGos

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o MuNdo No TeMPo de

Cara darCY

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arqueoLoGia de uMa ideia

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REVISTA DE JORNALISMO CI ENTÍ FICO E CULTURAL DA UN IVERSI DADE DE BRASÍ LIA

reitor Ivan Camargo vice-reitor Sônia Báo

Conselho editorial Presidente do Conselho editorial isaac roitman Professor do Departamento de Biologia Celular Ex-Decano de Pesquisa e Pós-graduação Coordenador do Conselho editorial Luiz Gonzaga Motta Professor da Faculdade de Comunicação

antônio Teixeira Professor da Faculdade de Medicina david renault Diretor da Faculdade de Comunicação denise bomtempo birche de Carvalho Decana de Pesquisa e Pós-graduação elimar Pinheiro do Nascimento Professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável estevão C. de rezende Martins Professor do Instituto de Ciências Humanas Jaime Martins de santana Decano de Pesquisa e Pós-graduação Luís afonso bermúdez Decano de Administração Marco a. amato Professor do Instituto de Física Noraí romeu rocco Professor do Departamento de Matemática

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Tem equipe nova no pedaço. As novidades da DARCY

Isaac Roitman e o reitor Ivan Carvalho debatem o futuro da universidade

A revista segue conquistando novos leitores pelo Brasil

Óculos: a invenção que faz o homem ver o mundo melhor

Pesquisadora desenvolve projeto para possibilitar movimento em acidentados

O legado de Assis Chateaubriand para o Brasil

Por TrÁs das Grades

No Brasil, 85% das penas para mulheres se relaciona ao tráfico

o que eu Criei

Tecnologia a serviço dos diábeticos. Insulina na quantidade correta

eXPedieNTe

diretor de redação Paulo Paniago Professor da Faculdade de Comunicação

editores Paulo Paniago e Paulo Renato Souza Cunha secretária de redação Nathalia Zôrzo secretária de redes Rafaela Lima

secretária de parcerias Letícia Carvalho

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repórteres Alessandra Azevedo, Ana Teresa Malta, Caroline Bchara, Douglas Lemos, Eduardo Barretto, Emily Almeida, Gabriel Luiz, Ingrid Borges, Ingridy Peixoto, Isabella Calzolari, Jhésycka Vasconcelos, Lara Silvério, Letícia Carvalho, Nadjara Martins, Nathalia Zôrzo, Nívea Ribeiro e Rafaela Lima

eNsaio

Avaliação das obras de um artista discreto, Milton Ribeiro, feita pela jornalista e historiadora da arte Graça Ramos

editora de arte Juliana Reis

diagramadores Ivan Sasha e Juliana Reis

ilustradores Lucas Pacífico e Túlio César Mendes

Fotógrafos Isabelle Araújo, Johnatan Reis e Tainá Seixas Colaboradores Graça Ramos e Milton Guran

Revista DARCY Telefone: (61) 3107-0214 E-mail: revistadarcy@unb.br Campus Universitário Darcy Ribeiro Instituto Central de Ciências (ICC) Ala Sul, subsolo, módulo 8 70910-900 Brasília – DF Brasil Impressão: Gráfica Coronário Tiragem: 12.500 exemplares

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62

eu Me LeMbro

A visita histórica de Nelson Mandela à Universidade de Brasília pelos olhos do ex-reitor Antônio Ibañez


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didÁTiCa da aGressÃo

44

FroNTeiras da asTroNoMia

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Será a violência um tipo de problema de saúde?

Nova coluna demonstra a pequenês do homem no universo

arquiTeTura da vioLÊNCia O que faz do Paranoá uma das regiões mais violentas do DF

FroNTeiras do PeNsaMeNTo Luiz Gonzaga Motta reflete sobre a relação do homem e outros animais

DOSSIÊ 30

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reCiCLar

Dinheiro desgastado vira matéria-prima para peças artísticas residuoLoGia

Qualquer lixão se presta a ser campo de análise

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MedeLLíN

Recuperação de aterro colombiano serve de exemplo para o Brasil

resíduos sÓLidos

Qualidade dos espaços destinados à reciclagem ainda é precária

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CaTadores

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LiXÃo esTruTuraL

Cooperativismo como alternativa econômica e ambiental

Condição de trabalho de catadores é investigada por estudo na UnB

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diÁLoGos

P

eNTre o soNho e o PossíveL Texto ivan Camargo Ilustração Lucas Pacífico

ensar o futuro da universidade não é fazer exercício de adivinhação. Antes de mais nada, é necessário tomar como referência os aprendizados do passado, planejar com cuidado os passos a serem dados e projetar sonhos e possibilidades, mas sempre na medida da concretude, para que o não cumprimento de alguma meta não se desdobre em frustração. Quando Darcy Ribeiro lançou as bases para se fazer um projeto diferente de universidade no planalto central, conseguiu o equilíbrio necessário entre o sonho e o que era possível realizar. O projeto foi atropelado pelas circunstâncias da história. Darcy tinha a pressa dos que têm certeza: mesmo que lhe fosse reservado todo o tempo do mundo, não seria suficiente para fazer tudo o que sua imaginação lhe sugeria. A nossa universidade tem recebido demandas sociais importantes que não podem ser ignoradas. Um número crescente de estudantes frequenta os vários campi, em uma grande quantidade de cursos. Isso significa mais professores, mais salas de aulas, equipamentos, segurança, e outras tantas medidas que precisam ser implementadas enquanto tudo caminha. Encontrar um denominador comum para demandas tanto de professores quanto de alunos e funcionários e ao mesmo tempo que se escuta a voz do passado compreender como se estrutura o futuro é crucial para que a receita não desande e a universidade possa consolidar de vez a verdadeira vocação de formadora não de quadros simplesmente, mas de pessoas, cidadãos responsáveis, éticos, engajados nas soluções dos problemas que a sociedade brasileira impõe. Para Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira a transversalidade do conhecimento era um imperativo. Não é possível manter barreiras e obstáculos para o avanço da ciência, enquanto novas linhas pedagógicas se estruturam e apontam para

um caminho que, ao mesmo tempo que pode parecer temerário, deve ser traçado com o toque de ousadia necessário. Assim, é possível vislumbrar um futuro da transmissão do conhecimento que não seja apenas presencial, com professores em diálogo com alunos por meio de aparatos tecnológicos. As fronteiras dos campi podem, com isso, deixar de ser físicas, com articulação de rede de pesquisadores espalhados não apenas pelo país, mas pela superfície do planeta. Ao mesmo tempo, a universidade tem o compromisso de não se esquecer das soluções a serem apresentadas aos problemas aparentemente triviais, mas que até hoje não encontraram alternativa, como acesso universal ao conhecimento e democracia de verdade no que diz respeito ao alcance nos níveis básicos de educação. Criar a comissão UnB Futuro na esteira da comissão UnB 50 anos foi dar esse importante passo em direção aos desafios que nos aguardam. Ela tem feito uma série de conferências com importantes pensadores contemporâneos, como o médico e ex-ministro Adib Jatene, e Paulo Speller, secretário de Educação Superior do Ministério da Educação, para citar dois exemplos. A equação que precisa encontrar saída deve apresentar resultados em duas frentes: a pertinência científica e a relevância social. Como se sabe, hoje a maioria dos alunos (75 a 80%) estuda em faculdades particulares, mas boa parte da ciência brasileira continua a ser feita nas escolas e universidades públicas. Um dos grandes problemas para produzir ciência está em superar os entraves burocráticos sem perder a necessária transparência no uso racional dos recursos. Os desafios são imensos e a tarefa da universidade é encontrar as melhores soluções. É essa vocação que não pode deixar de ser cumprida, para honrar nosso passado e deixar um legado aos que virão.

ivan Camargo é doutor em Engenharia Elétrica e reitor da Universidade de Brasília

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E

CaMiNhos Para o FuTuro da eduCaÇÃo Texto isaac roitman

m agosto deste ano, o professor Adib Jatene, referência nacional na medicina brasileira, proferiu uma conferência na UnB cujo tema foi A universidade e o futuro da medicina. Nessa oportunidade expressou o seguinte pensamento: “O futuro não é uma abstração. O futuro é o resultado do que se fez no passado e as decisões que se tomam no presente. Dessa forma, se quisermos delinear um futuro virtuoso, precisamos conhecer o passado e tomar decisões corretas no presente”. No âmbito da educação, constatamos algumas conquistas importantes no caso brasileiro, como a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Apesar disso, o Brasil ainda está longe de oferecer ensino de qualidade. A superação do desafio de conquistarmos uma educação formal adequada passa por redefinir a formação inicial e continuada de professores. Cabe à universidade essa tarefa. Esse novo professor deverá ser um facilitador da liberdade da aprendizagem para preparar jovens para uma vida construtiva em comunidades responsáveis, convivendo e compreendendo a diversidade cultural de uma sociedade que se transforma rapidamente. Deverá ser valorizado através de uma remuneração digna e vislumbrar horizontes dentro de um plano de carreira atraente. Uma nova concepção pedagógica deve apontar para um conhecimento integrador dentro de um cenário que estimule a criatividade e a crítica e sobretudo a construção de valores da cidadania. As atividades culturais, artísticas e esportivas deverão ser incentivadas, respeitando-se as tendências e as sensações individuais dos estudantes. Os conteúdos em todos os níveis de educação devem ser permanentemente revisados. As tecnologias contemporâneas de informação e comunicação devem ser usadas na pleni-

tude. Infraestrutura adequada e uma arquitetura escolar apropriada são elementos importantes para proporcionar um ambiente atrativo para a aprendizagem. A revisão dos marcos regulatórios é ação prioritária para permitir uma gestão escolar eficiente. A integração da escola com a sociedade, sobretudo com a família do estudante, também é fundamental. O ensino de qualidade, especialmente no nível básico, que é o nível que mais afeta a cidadania, deve ser visto como um compromisso de toda sociedade, pressupondo oferecimento de oportunidades iguais para todos, cláusula pétrea de uma verdadeira democracia. Elevar nossa educação a patamares aceitáveis de qualidade não é só requisito para a modernização do país e a melhoria das condições de vida das pessoas. É um requisito também para a inclusão, é responsabilidade social, é uma demanda de reparação social em uma sociedade cheia de desníveis. Esses desafios deverão estar na pauta de nossos políticos nas próximas décadas e encarados como política de Estado. Ensino de qualidade é investimento caro. Para aqueles governantes que usam esse argumento para fazer pouco pela educação, seria pertinente lembrar o pensamento de Derek Curtis Bok, ex-presidente da Universidade de Harvard: “Se você acha que a educação é cara, tenha a coragem de experimentar a ignorância”. Qual o país que legaremos aos nossos descendentes? Se nada fizermos, continuaremos a ser uma sociedade com graves injustiças sociais, com índices assustadores de violência, com total desrespeito ao próximo e outras mazelas amplificadas que temos no presente. Certamente seremos um país colonizado e explorado. O futuro da educação está em nossas mãos. Cabe a todos nós decidir para onde vamos.

isaac roitman é professor Emérito da UnB e presidente do Conselho Editorial da DARCY

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Cara darCY

Reprodução

Prezado(a) leitor(a),

Na última edição, DARCY se mostrou inovadora. O nome da publicação saiu diferente, com uma homenagem merecida a Oscar Niemeyer. Nesta edição, a revista volta com o nome de batismo, sem perder a ousadia. DARCY inaugura nova fase, comandada por uma equipe diferente. O objetivo, porém, continua o mesmo: fazer de você, leitor, parte da nossa universidade. Voltaremos também com a nossa página no Facebook. O endereço é www.facebook.com/ revistadarcy. Acesse e aproveite para curtir a DARCY. Lá, você encontra novidades sobre as últimas edições. Já pensou em nos escrever? Sua opinião conta muito. Como incentivo, os leitores que tiverem suas cartas publicadas recebem a assinatura da DARCY.

visuaL

Adoro a DARCY e sou leitora fiel desde que ingressei na UnB, no 1º semestre de 2011. A equipe merece ser parabenizada pelo excelente material que é produzido. A revista tem um visual fantástico, atrativo e atual. As matérias são muito bem escritas, abordam temas relevantes e, principalmente, divulgam o que a UnB produz. É surpreendente ver o que nossa Universidade tem criado e proporcionado à sociedade. Parabenizo o dossiê da edição nº 13, que aborda um tema delicado, mas com respeito e humanidade. Parabenizo também a homenagem a Oscar Niemeyer e a José Varella. Foram utilizadas fotos belíssimas, que expressam um pouco da vida desses dois grandes profissionais. No meu primeiro semestre de UnB fui aluna do filho de Varella, o sociólogo e professor voluntário Santiago Varella. Talita Almeida

PriMeira iMPressÃo

Sou professora da rede pública e particular de ensino em Goiás. Ganhei da minha filha a última edição da DARCY

Fale conosco Telefone: 61 3107-0214 E-mail: revistadarcy@unb.br Facebook: www.facebook.com/revistadarcy

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e estou gostando bastante. É bom perceber que um texto informativo também pode ser cativante, ainda mais se tratando de uma revista científica. Quanto ao conteúdo, ótima escolha do dossiê. Em “O que eu criei”, no entanto, um aplicativo para consultas médicas à distância? Não gostei muito da ideia. Entendi que o objetivo é levar auxílio às comunidades onde ele nem sempre chega, mas tenho medo que essas novas tecnologias diminuam ainda mais o contato médico/paciente que, na minha opinião, já é precário. Espero continuar acompanhando a revista. Ótimo trabalho.

Vera Lúcia dos Reis

LeiTores

Gostei muito dessa edição da DARCY, que está repleta de histórias curiosas da capital. A que mais me chamou atenção foi a Homens que amam os livros. É muito bom saber que o país tem, sim, leitores e verdadeiros bibliófilos. Inclusive, me considero um deles e me sinto bem por saber que não estou sozinho. Paulo Lanne

Campus Universitário Darcy Ribeiro Instituto Central de Ciências (ICC) Ala Sul, subsolo, módulo 8 70910-900 Brasília – DF Brasil


reCeiTa

O bolo de jenipapo, da edição nº 9, é realmente maravilhoso. Desde que li a reportagem este bolo não sai do meu café da manhã. Já provei a semente, amarga até o fim e é tudo de bom para o estômago. Adoro o sabor amargo. Espero que as pesquisas na utilização dos frutos do cerrado continuem e que este fruto tão precioso possa ser encontrado com mais facilidade, pois é uma luta conservá-lo depois da coleta. Consegui algumas unidades maduras e verdes, para obter uma cor e sabor, uso uma pequena porção de cada. É uma pena que elas estão acabando e deixarei de usar como alimento saudável. Edjane Gomes

osCar

Não sou o leitor mais assíduo da revista, assumo. Mas quando vi a ultima edição, demorei para reconhecer a DARCY. OSCAR? Não seI ainda se gostei da troca. Em relação ao dossiê, o tema foi pesado, mas muito bem escrito. Parabéns. Welington Borges

A OSCAR foi a primeira edição da DARCY que eu li. Isso faz algum sentido? Achei ousada a troca do nome. Justa e merecida. Quero continuar lendo a revista. Estão todos de parabéns! Fernando Dias

PaTroNo

Karine Gomes Abraçado

resposta: Karine, nós da redação da revista DARCY agradecemos a você pelo contato e pelo interesse. Enviaremos sim, os exemplares que ainda temos disponíveis por aqui. Esperamos que a revista possa ser útil nos trabalhos da escola. O nosso objetivo é mesmo o de colaborar com a difusão do conhecimento científico e nos parece que a iniciativa de vocês está em sintonia com nossos sonhos por aqui. As revistas serão enviadas gratuitamente.

assiNaTura

Estou cursando o último ano do ensino médio e estou maravilhada em saber que a UnB possui este trabalho criativo e informativo que é a DARCY. É uma pena estar desfrutando tal projeto agora no 3º ano por falta de divulgação. Aproveitando a circunstância, gostaria de alertar que a revista bem como os projetos da UnB não estão sendo divulgados. Especialmente a DARCY que é entregue nas escolas públicas, mas que não cumpre seu objetivo: o de chegar as mãos dos alunos. No mais, todos estão de parabéns! Gostaria de receber atualizações ou até mesmo assinar a revista. Como faço? Egla Scowssen

resposta: Egla, nosso objetivo é que a revista chegue aos professores para que estes transmitam o conteúdo aos alunos. Vamos verificar possíveis problemas na entrega das edições anteriores. A DARCY é distribuída gratuitamente nos quatro campi da UnB, também enviamos revistas para os professores das escolas públicas e particulares de ensino médio do DF. E quem, como você, têm a carta publicada nesta sessão, entra para o mailing DARCY e passa a recebê-la em casa. Então, aguarde que a próxima vai chegar aí.

Tainá Seixas

Sou professora do Complexo Educacional e Esportivo de Excelência e Qualidade de Ensino Professor Darcy Ribeiro, situado na cidade de Araruama, na região dos lagos, no estado do Rio de Janeiro, e faço esse contato porque este ano a escola faz 10 anos de fundação e nós estamos organizando uma comemoração que falará de nosso patrono, o professor Darcy Ribeiro. Queremos montar um memorial em sua homenagem, com fotos, revistas, livros, filmes e vídeos sobre sua vida e seu trabalho. Por isso, estou fazendo este contato, para saber

como é possível recebermos os exemplares desta revista, inclusive os anteriores, para termos a coleção completa! Gostaria de saber se receberíamos gratuitamente, já que a escola é municipal.

eu CoNheÇo darCY Zaira Dirani é professora de literatura em um colégio de Brasília e participa das bancas examinadoras de provas do Cespe. Conheceu a DARCY em 2011, quando participou de uma reunião na UnB sobre os processos de avaliação do Programa de Avaliação Seriada (PAS). Desde então Zaira teve a oportunidade de contribuir com alguns artigos para a publicação, como um especial sobre o bicentenário de Charles Darwin, em 2012. Com frequência Zaira usa a DARCY em sala de aula como forma para estimular os alunos a conhecer um tipo diferente de texto, que foge do didatismo recorrente e trata de temas atuais.

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500 a.C.

arqueoLoGia de uMa ideia

a evolução

No oriente, a primeira referência histórica sobre a existência dos óculos está registrada nos textos do filósofo chinês Confúcio, datada de 500 a.C. Já no século 1 da era cristã, o filósofo e dramaturgo romano Sêneca usava uma esfera de vidro cheia de água sobre o próprio material de leitura a fim de aumentar as letras. Esse método ainda seria utilizado pelos monges com hipermetropia mil anos mais tarde.

DAS

FERRAMENTAS

ÓTiCa DE

correção

Reportagem Letícia Carvalho Ilustração Túlio César Mendes

’’

11 Par de LeNTes às vezes basta para curar

UMA PESSOA apaixonada Friedrich Nietzsche | Filósofo

saiba Mais

1001 invenções que mudaram o mundo, de Jack Challoner, Sextante, 2010.

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Salvino d’Armate (1258-1312), de Pisa, e o frei Alessandro da Spina (morto em 1313), de Florença, costumam receber o crédito pela invenção dos óculos em 1284. No entanto, em 1270, Marco Polo viu chineses idosos usando óculos e, ao serem questionados, eles creditaram a invenção aos árabes do século 11. Na época, os chineses também usavam quartzo enegrecido como óculos de sol rudimentares.

século 15

Os primeiros óculos eram pesados e desconfortáveis. No século 15, os modelos pince-nez e lornhons viraram moda. Eles se ajustavam na ponta do nariz, sem haste. O segundo possuía uma haste lateral para ser segurada sobre os olhos. Dois séculos depois, foram criados os modelos com hastes fixas sobre as orelhas.

século 20

No anseio de enxergar melhor o mundo, crianças, adolescentes, homens e mulheres, ao longo da história, adaptaram-se a viver com o auxílio de um par de lentes. Indispensáveis para muitos, os óculos passaram por transformações desde a invenção. Hoje são até considerados artigos de moda. Mas no passado foram motivos de discriminação social.

século 11

Apesar do sucesso, esses tipos de armações não abalaram a fama do pince-nez e do lornhon, que foram usados por homens e mulheres até a década de 1920, quando foram substituídos pelo estilo Numont, com aros superiores ou inferiores — finos e leves —, cujas versões modernas são vendidas até hoje.

Na década de 1940, tornou-se tendência o uso de óculos com aros redondos de plástico. Nos anos 1960, o estilo “gatinho” comandou as vendas. Em 1970, os grandes óculos de plástico coloridos, que encobriam metade dos rostos, ficaram populares.

Atualmente, os modelos mais vendidos são os com armações pequenas, com lentes de acrílico ou policarbonato, que tornam os óculos mais leves.

óculos


lentes

As lentes, inicialmente, eram produzidas a partir de cristais rochosos ou pedras semipreciosas, como quartzo e berílio, em peças circulares. Essas eram cortadas e polidas a fim de ampliar a imagem do objeto visto por meio deles.

No século 12, começaram a ser usadas lentes convexas em óculos para corrigir a hipermetropia.

A lente convexa moderna foi desenvolvida a partir da ideia do espelho ardente da Grécia antiga, que empregava um vaso esférico com água para concentrar os raios de sol em uma área pequena e aquecida. Era usada para iniciar fogo em templos e para cauterizar ferimentos.

1880

somente no início do século 15, as lentes côncavas, que dispersam a luz em vez de concentrá-la, começaram a ser usadas para corrigir a miopia.

No final da década, dois oftalmologistas e um estudante de medicina inventaram, independentemente, as lentes de contato

>>

o matemático e engenheiro óptico iraquiano ibn sahl (c. 9001000) escreveu o tratado Sobre espelhos e lentes candentes (984), em que explica o modo como espelhos e lentes curvos distorcem e concentram a luz, e usa o que hoje se conhece como lei de snell para calcular o formato das lentes

Adolf E. Fick e Eugène Kalt disponibilizaram-se a ajudar os pacientes

Enquanto o estudante August Müller queria corrigir a própria miopia

As primeiras lentes de contato eram de vidro e ficavam em contato direto com o olho. Para o conforto e saúde, só se podia usá-las por breves períodos, já que as lentes causavam dor, inchaço e podiam levar a um edema na córnea devido à falta de oxigenação, conhecido como hipóxia corneana.

200 mil em 1949

10 mil entre 1935 e 1939

usuÁrios de LeNTes

em 2013

+ 100 milhões

Graças ao PMMa, sigla em inglês para polimetilmetacrilato, e à invenção das lentes de contato plásticas por Kevin Tuohy, em 1948. o PMMa ainda causava hipóxia corneana e foi substituído, na década de 1950, pelo hidroxietilmetacrilato (heMa, em inglês). No entanto, lentes com esse material precisavam de polimento

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TeCNoLoGia

Na PaLMa da

N

aquela noite de sexta-feira, 5 de julho de 2013, Fabio Oliver combinou de encontrar alguns amigos em um bar no Novo Gama (GO). Com a moto que pilotava há mais de um ano, seguiu de Valparaíso (GO), onde mora, até o município, que fica a 40 quilômetros do centro de Brasília. Na volta para casa, ao tentar desviar de um objeto na pista, Fabio perdeu o controle da moto. “Parecia uma roda, mas não tenho certeza do que era”, conta o estudante de 26 anos. O acidente ocorreu na DF-290, perto de Santa Maria (DF), por volta das 23h. Fabio não sabe quem chamou o socorro, mas o Corpo de Bombeiros de Goiás chegou para resgatá-lo pouco tempo depois. Levado ao Hospital Regional de Santa Maria (DF), foi primeiramente constatada uma neuropraxia (lesão dos nervos) normal no braço direito. Os médicos não descartaram a possibilidade de um problema mais sério. Em cerca de um mês, o resultado dos exames confirmou o diagnóstico: tratava-se de uma lesão no plexo braquial — conjunto de nervos localizado entre o ombro e as pontas dos dedos, responsável pelo movimento dos membros superiores. Desde 22 de agosto, Fabio faz tratamento na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, em Brasília. “Não me sinto seguro para fazer a cirurgia, porque ela envolve a retirada de um nervo do pulmão e não tem garantia de sucesso”, afirma. Casos parecidos acontecem com frequência. De acordo com estudo realizado em 2003 pela Universidade de Washington, nos Estados Unidos, 84% dos casos de lesão do plexo braquial envolvem acidentes automobilísticos ou com motos — e cerca de 90% acontecem com homens.

FuNCioNaLidades

Após concluir a graduação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Kátia Meneses trabalhou como terapeuta ocupacional em clínica por oito anos, na cidade de Belo Horizonte (MG). Lá presenciou muito casos de pessoas com paralisia nas mãos, devido a lesões no plexo braquial. “Eram pacientes jovens com problemas irreversíveis”, explica a pesquisadora. “A gente fazia adaptações e treinos

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MÃo

para que eles conseguissem realizar atividades com uma das mãos. Mas isso não bastava.” Comovida com a situação dos pacientes e frustrada com a falta de métodos para recuperar os movimentos perdidos por eles, Kátia pensou em desenvolver uma luva que tornasse a mão, apesar de paralisada, apta a funcionar. Na busca por ferramentas que não estavam disponíveis na terapia ocupacional, procurou o Laboratório de Bioengenharia da UFMG (Labbio) e deu início, em 2003, ao mestrado na área, com orientação do professor Marcos Pinotti. “O Labbio já havia feito um projeto de músculo artificial pneumático (sistema que trabalha com ar comprimido) para membro inferior. Mas como era grande e barulhento, Kátia preferiu desenvolver o projeto da luva funcional no modelo eletromecânico”, explica o orientador. A luva funcional seria uma espécie de órtese — que não substitui uma parte do corpo, mas ajuda na realização das atividades prejudicadas e é, por isso, diferente da prótese. Deveria ser mais prática e discreta que as existentes no mercado. “As opções eram feias e grandes. Além de pesadas, causavam certo constrangimento”, afirma Kátia. Ela conta que o processo não foi fácil: por não estarem acostumados a trabalhar com ciências humanas, os engenheiros não entendiam a necessidade de fazer algo simples, que as pessoas pudessem carregar. O primeiro modelo era feito de tecido — portanto, leve e facilmente adaptável sobre a mão do paciente. Com antiderrapantes colocados nos dedos para facilitar o manuseio dos objetos, tinha também um motor feito para comandar o mecanismo, além de tendões artificiais que, fixados a uma mola, eram responsáveis pela extensão e flexão dos dedos da órtese. A luva era controlada por um circuito com sensores que detectavam os movimentos do ombro: para frente, abria a mão; para trás, fechava. Depois de testes de força e preensão de objetos com formas, pesos e tamanhos diferentes, realizados em mão sintética, a luva funcional mostrou-se eficaz e segura. Para melhorar a aparência, o conforto e o desempenho do equipamento, algumas mudanças foram feitas. O segundo modelo, antialérgico e em lycra, também foi moldado a partir da mão artificial. Possui duas camadas: a


Reportagem

alessandra azevedo Caroline bchara Ilustração

interna fica em contato com a pele e serve para protegê-la; a outra, externa, cobre o sistema e melhora a estética da luva. Entre elas, foi colocada uma tala que ajuda a posicionar o punho de maneira correta. Além disso, para facilitar a limpeza do sistema, a parte de tecido da segunda luva pode ser separada da mecânica. No período do mestrado, Kátia não testou a luva em pacientes. Foi apenas em 2005, como doutoranda, que realizou os experimentos, aperfeiçoou o protótipo e refinou os sensores. Durante três anos, testes foram realizados em quatro pessoas: três sofreram acidentes de moto e uma, de bicicleta. “Era importante que eles aprendessem a regular a força para evitar acidentes”, alertou Kátia. Foi feita uma órtese para cada acidentado, de acordo com as características individuais. Nos treinamentos, luzes de cores distintas estavam associadas aos comandos de fechar e abrir a mão — vermelha e verde, respectivamente. Quando os dois sensores eram ativados ao mesmo tempo, ambas ligavam. “Assim, eles aprendiam a contrair um músculo de cada vez e a controlar a órtese”, explica a pesquisadora. A regulagem foi feita de forma que, estabelecido um limite para que não se machucassem, os pacientes não podiam fechar a mão por completo. Como consequência, não conseguiram realizar um dos testes propostos: apertar o tubo de pasta de dente e colocar o conteúdo na escova. Foi o único que não deu certo. Nos outros, os pacientes não tiveram grandes dificuldades. Eles deveriam, entre outros movimentos, pegar objetos, colocá-los em caixas, segurar copos e enchê-los de água.

aLÉM das Luvas

Os quatro participantes, ao fim da pesquisa, responderam questionários de satisfação, relacionados ao peso, à eficácia e à praticidade do mecanismo. Apenas um item, de doze, teve resposta negativa: os voluntários não acreditam que a colocação da órtese foi realizada com facilidade. Após o fim do doutorado, em 2008, Kátia não deu continuidade aos estudos relacionados à luva, apesar de considerar que algumas mudanças ainda deveriam ser feitas para adequar o produto ao mercado. Entre elas, sugere uso

Túlio César Mendes

eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Kátia Vanessa Pinto de Meneses se formou em Terapia Ocupacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1997, com especialização em reabilitação do membro superior pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (1999). Concluiu mestrado (2005) e doutorado (2008) em Engenharia Mecânica, área de concentração em Bioengenharia, na UFMG. Desde 2010, Katia é professora adjunta do curso de Terapia Ocupacional da Universidade de Brasília (UnB). Título da tese: Aplicação da luva funcional em um indivíduo com paralisia de mão e punho: um estudo piloto onde foi defendida: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

quem orientou: Marcos Pinotti Barbosa

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Em cada dedo da luva, são instaladas

texturas antiderrapantes

2

para facilitar a preensão dos objetos

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tendões

O mecanismo é composto por uma luva de tecido, um motor, um circuito de controle e eletrodos de superfície

lesão no plexo braquial

conjunto de nervos localizado entre o ombro e as pontas dos dedos, responsável pelo movimento dos membros superiores

tala para posicionamento da articulação do punho

velcro sistema de conexão

entre a luva e a parte mecânica da órtese

Quando o indivíduo contrai a

musculatura

selecionada, o músculo artificial opera em uma velocidade constante enquanto houver contração muscular do paciente

6

FECHAR

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2

Durante os testes, é utilizada uma tipoia para posicionar o membro superior do paciente em aproximadamente 90 graus de flexão de cotovelo

3 4

A luva é controlada por um circuito com sensores que detectam os

movimentos do ombro: para frente, abre a mão; para trás, fecha

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O acionamento é realizado por meio de sinais mioelétricos de músculos previamente selecionados, captados por eletrodos fixados na pele sobre um ponto motor

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Nos treinamentos, luzes de cores distintas estão associadas aos comandos de fechar e abrir a mão — vermelha e verde, respectivamente. Quando os dois sensores são ativados ao mesmo tempo, ambas ligam

de sistema sem fio, redução do volume do circuito e melhora no controle de força. “Seria interessante, também, formar um grupo para testar a luva em pacientes com outros tipos de problemas que levam à paralisia, como derrames, por exemplo”, comenta Kátia, que, desde 2010, é professora do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade de Brasília (UnB).

LeGado

Com a transferência de Kátia, o professor Marcos Pinotti seguiu com o projeto da luva funcional. Até o ano de 2011, orientou outras três teses de doutorado envolvendo o protótipo, agora adaptado para a reabilitação de pessoas que sofreram derrame. O problema é classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos maiores índices de incapacidades funcionais em adultos e, de acordo com o banco de dados do Sistema Único de Saúde (DataSUS), levou a cerca de 170 mil internações por ano, entre 2005 e 2009. A alta incidência do problema somada aos baixos índices de sucesso na recuperação das funções motoras do membro superior desses pacientes motivou um dos estudos orientados por Pinotti: em 2011, Rodrigo Cappato defendeu a tese Desenvolvimento e avaliação de sistema de auxílio à reabilitação motora do membro superior após acidente vascular encefálico. “Resolvemos desenvolver um dispositivo que utilizasse os mesmos conceitos (do protótipo elaborado por Kátia), mas que não demandasse uso permanente”, afirma Cappato. O novo modelo, testado clinicamente em dez pessoas, atua sobre uma parte maior do braço: vai até o cotovelo e é flexível. Além disso, trabalha com um sistema de reprogramação neuronal, técnica que ativa áreas do cérebro para que ele reaprenda funções perdidas por traumas e derrames. “No caso da nossa pesquisa, se houver indicação para melhoras do paciente, a técnica faz com que ele recupere os movimentos do braço”, afirma Pinotti. “Assim, depois de aproximadamente três meses, a pessoa não precisa mais usar a órtese.” Cappato observou, entretanto, que o mecanismo só foi efetivo nos casos de perda leve ou moderada da função motora do membro superior. “Pacientes com comprometimentos mais graves não conseguiram controlar o sistema, e o dispositivo não foi capaz de atuar com perfeição.”, explica o pesquisador. Em 2011, adaptações do protótipo renderam dois troféus do Prêmio Brasil de Engenharia a outro estudo orientado por Pinotti. O projeto Desenvolvimento de uma plataforma de reabilitação para membro superior aplicada a pacientes pós-acidente vascular encefálico, de Fábio Lúcio Corrêa Júnior, venceu as categorias Grande Prêmio Inovação e Engenharia Cidadã. Com o aperfeiçoamento do modelo, a luva se encaixou nos padrões do mercado e despertou interesse de uma empresa especializada. “Já estamos com o contrato de licenciamento da patente assinado”, conta o diretor da firma, Paulo Vlady Mendes. Segundo ele, está em andamento um plano de trabalho para a comercialização do produto, que deverá ser vendido a partir de 2014.

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Chatô O homem que conquistou o Brasil

O

Reportagem Nathalia Zôrzo Ilustração Lucas Pacífico

Brasil deve muito a Assis Chateaubriand. Unificou um complexo sistema de comunicação em todo território brasileiro, construiu memoriais de arte por todo o país, influenciou importantes momentos políticos nacionais, ajudou a construir movimentos literários e levou consigo uma lista de seguidores cativados pelo dom de persuadir e negociar. Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, ou simplesmente Chatô, viveu em uma época na qual a moda na imprensa brasileira não era notícia, mas polêmica. Nas palavras do biógrafo Fernando Morais, “jornalista que decidisse fazer carreira como grande editor ou como repórter de talento estava condenado a desaparecer sob a poeira da obscuridade”. Portanto, quem almejasse ter prestígio na mídia, que preparasse a pena e arranjasse alguém com quem duelar nas páginas do jornal. Foi valendo-se desse pressuposto que o Rei do Brasil — como ficou popularizado por Morais — tentou impulsionar a carreira e tornar-se conhecido país afora. Em 1910, quando trabalhava para o Jornal do Recife, Chateaubriand, com apenas 18 anos, tratou de meter-se voluntariamente em uma típica polêmica federal da época, que implicaria o resultado da eleição presidencial que se aproximava. A intromissão de Chatô na disputa eleitoral rendeu-lhe oportunidade de emprego como redator no renomado Diário de Pernambuco e outra como articulista no Jornal Pequeno.

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Daí para o jornalista conquistar um império de seguidores foi só questão de tempo. Assis Chateaubriand graduou-se em direito, conquistou uma cadeira como professor da Universidade Federal de Pernambuco, escreveu um livro sobre as experiências como repórter correspondente na Alemanha para o Correio da Manhã e passou por diversos jornais até decidir fixar morada no Rio de Janeiro, onde sedimentou o objetivo de vida: comprar um jornal e, a partir dele, criar uma rede nacional de informação. Em 1929, Chateaubriand comprou O Jornal, embrião de uma enorme rede de telecomunicações. O que se seguiu foram anos de trabalho e cultivo de amizades influentes que permitiriam ao Rei do Brasil criar um complexo de comunicação composto por mais de cem veículos, entre jornais, estações de rádio, emissoras de TV, revistas, além de uma editora e uma agência de notícias. No ano anterior, ele tinha lançado a primeira revista semanal ilustrada de circulação nacional, o Cruzeiro. A publicação era um fenômeno de tiragem: na década de 1950 chegou a vender mais de 700 mil exemplares, quando trouxe a cobertura do suicídio de Getúlio Vargas. Trazia como peculiaridade em quase todas as edições a imagem de uma mulher na capa e popularizou-se por mostrar inovações gráficas à imprensa brasileira e a publicação de grandes reportagens com destaque para o fotojornalismo. Em 1950, responsabilizou-se ainda por trazer ao país a TV Tupi, primeira televisão brasileira. Assim, na década de 60 o Brasil já estava integrado pelas comunicações de norte a sul, de leste a oeste: eram os Diários e Emissoras Associados. Na década de 1960, já com o império comunicacional bem estruturado, uma parceria entre Chateaubriand e o então presidente Juscelino Kubitschek rendeu ao Brasil o legado de um dos principais veículos impressos do país — até os dias de hoje. Desafiado a inaugurar em Brasília mais um jornal para se juntar aos Diários Associados, Chatô fez nascer na nova capital o Correio Braziliense. Assim, foi no planalto central que ambos conseguiram concretizar mais um dos sonhos ousados: em 21 de abril de 1960 nascia Brasília para JK e o Correio para Chatô. Mas não foi apenas no jornalismo que Assis Chateaubriand deixou contribuição. O poderoso jornalista, acadêmico, empresário e político foi também pioneiro no incentivo às artes plásticas. Quem presenciasse a reação recusa de Chatô em 1922 diante do convite de Graça Aranha, Alcântara Machado e tantos outros intelectuais para que se juntasse na organização da Semana de Arte Moderna, poderia arriscar-se a dizer que, no que concerne a arte, ele não iria fazer qualquer esforço. Qual não foi a surpresa de muitos, entretanto, quando viram nascer em São Paulo, anos mais tarde, em 1947, uma das mais importantes instituições culturais da história brasileira, o Museu de Arte de São Paulo (MASP). Em sua paixão contagiante pela arte, conseguiu atrair em torno de si toda sorte de artistas e intelectuais e, assim, acabou por criar vários outros museus regionais, como o Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em Olinda, ou o Museu Pedro Américo, em Campina Grande. A influência do Rei no mercado literário e cultural brasileiro rendeu-lhe ainda uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1954.

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dossiÊ

DE LIXÃO A CENTRO

CULTURAL Após 20 anos como depósito de resíduos a céu aberto, Morro de Morávia, na Colômbia, inicia processo de recuperação. Para pesquisadora da UnB, experiência serve de orientação para fechamento dos lixões brasileiros

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Reportagem Nadjara Martins

Ilustração Túlio César Mendes

menos de um ano para o fim do prazo de fechamento dos lixões no Brasil, limite estabelecido pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) em 2010, ainda existem 2.906 municípios brasileiros que destinam lixo para depósitos a céu aberto. A estimativa é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo levantamento realizado em 2012. De acordo com o estudo, o prazo estabelecido pela PNRS é curto para as adequações que a lei determina. O fechamento dos lixões exigirá uma série de medidas que incentivem a recuperação social e ambiental das regiões, como diminuição da quantidade de resíduos gerados, instituição da coleta seletiva com inclusão social de catadores e reabilitação das zonas afetadas. Para a pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Luciana Rodrigues Fernandes, tão importante quanto extinguir as atividades dos lixões é dar uma nova finalidade a essas áreas. De acordo com a especialista, os espaços não serão mais habitáveis, mas podem ter a vegetação recuperada e ser convertidos em espaços de utilidade pública. Aos 28 anos, a pesquisadora defendeu uma dissertação de mestrado sobre a recuperação do Morro de Morávia, lixão a céu aberto da cidade de Medellín, na Colômbia. Depósito de dejetos durante mais de 20 anos, Morávia abriga, hoje, um Centro de Desarrollo Cultural, espaço de educação e cultura para a população carente. Formada em engenharia civil, Luciana se especializou em geotecnia — área que estuda as dinâmicas do solo e da crosta terrestre. Em 2011, a pesquisadora morou durante três meses na segunda maior cidade colombiana e acompanhou o processo, iniciado em 2005, de realocação dos moradores do Morro de Morávia, área que funcionava como local irregular de dejetos desde 1972. Com área de 420 mil m2, o morro foi utilizado até 1984 como depósito de resíduos a céu aberto. O lixão surgiu às margens do Valle de Aburrá, após o fim das atividades de mineração no rio Medellín. Os primeiros assentamentos irregulares e eram formados por moradores de baixa renda que sobreviviam da coleta de lixo. Sobre o morro, passaram a ser depositados todos os tipos de resíduos — de lixo químico até dejetos hospitalares e escombros de construção. Naquele ano, o lixão, que antes se acumulava a mais de 50 m de altura, foi transformado em aterro controlado. A mudança aconteceu a fim de minimizar a proliferação de doenças e o impacto visual que um depósito a céu aberto provoca. No entanto, a população continuou a morar na região, sobrevivendo da coleta e reciclagem informal dentro do aterro.

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Lixão: área de descarte de lixo a céu aberto. Neste local, não há sistema de reciclagem do material orgânico ou tratamento de efluentes químicos que resultam da decomposição do lixo. Em consequência disso, o líquido penetra pela terra, com substâncias contaminantes para o solo e para o lençol freático.

EROSÃO desgaste do solo e das rochas e seu transporte, em geral feito pela água da chuva e pelo vento.

GEOCÉLULA produto com estrutura

tridimensional (formato colmeia) aberta constituída de células interligadas, que confinam os materiais nelas inseridos, com função predominante de reforço e controle de erosão.

GEOMEMBRANA um dos tipos mais comuns de geossintéticos. Consiste em manta de liga plástica, elástica e flexível utilizada para impermeabilizar o solo.

GEOSSINTÉTICOS família

de produtos sintéticos utilizado para resolver problemas em geotecnia. São produtos com alta durabilidade, bastante utilizados em obras de terra.

GEOTECNIA área que estuda as

dinâmicas do solo e da crosta terrestre. É a ciência aplicada de prever o comportamento da Terra e seus diversos materiais.

LIXIVIAÇÃO processo de extração ou solubilização seletiva dos elementos químicos de uma rocha, mineral, depósito sedimentar, solo etc. pela ação de um líquido ou fluido. PERCOLADO Líquido resultante

infiltração da água das chuvas na matéria orgânica decomposta. Também conhecido como chorume.

TALUDE plano inclinado que limita

um aterro, tem como função garantir a estabilidade do local.

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Dez anos depois, o morro já abrigava mais de sete mil habitações, e foi reconhecido como Barrio de Morávia. As famílias, compostas por até cinco membros, sobreviviam com renda mensal de um salário mínimo. Estudos realizados no período mostravam que o morro apresentava riscos de deslizamento e contaminação química, o que tornava o local impróprio para moradia. Em 2006, a prefeitura da cidade declarou o vazadouro como calamidade pública. Só então surgiram os primeiros projetos para recuperar a região, como a retirada dos assentamentos e a adoção de medidas para evitar desmoronamentos. O Plano Parcial de Melhoramento Integral do Bairro Morávia (2005-2011) realocou cerca de 90% da população que morava no morro, e passou a implantar medidas de descontaminação do solo. Além disso, o plano também prevê, para os próximos anos, a criação de um ecomuseu dedicado à sustentabilidade.

reCuPeraÇÃo

No entanto, não pense que recuperar um lixão é um processo rápido e barato. Teoricamente, a recuperação envolveria apenas a retirada dos resíduos depositados — transportando-os para um aterro sanitário —, e o preenchimento do espaço com areia. A pesquisadora Luciana Fernandes alerta: “É muito caro e difícil retirar todo o lixo que está no depósito. O lixo é muito diferente do solo em si, porque ele se decompõe e está o tempo todo se deformando. Tirar esse material expõe as pessoas a substâncias químicas e mexe com a estabilidade do morro. Hoje, a solução mais viável ainda é encerrar as atividades do local e cobrir o lixão com geossintéticos.” Geossintéticos são materiais utilizados em obras de contato com o solo para proteção ou reforço de estruturas. No morro de Morávia, foram feitos experimentos com geomembrana e geocélula. A primeira, em formato de manta, reveste todo o solo, evitando a liberação de gases resultantes da decomposição do lixo e a formação dos lixiviados — compostos químicos liberados quando os resíduos entram em contato com a água. Já as geocélulas são pequenos bolsões em formato de colmeias, preenchidas com solo e colocadas em cima da geomembrana. Além de protegerem o tecido da exposição solar, a geocélula melhora o aspecto visual do terreno. “No caso de Morávia, foram utilizadas geocélulas para evitar que o solo escorregasse sobre a manta devido à alta inclinação”, afirma Luciana. Entretanto, a pesquisadora ressalta que o processo também é caro. “Era preciso cobrir todo o morro, mas isso não foi feito por ser um processo ainda muito caro. A prefeitura de Medellín preferiu retomar o uso da argila compactada e utilizar a geomembrana em áreas menores”, diz. Além disso, segundo ensaios feitos durante a pesquisa, Luciana constatou que, mesmo com a presença da geomembrana, o risco de deslizamento ainda era alto, sendo a melhor opção retirar os moradores da encosta. Para a especialista, a geomembrana é mais econômica quando avaliada por seus efeitos a longo prazo. O tecido dura até 50 anos, dependendo das condições


aterro controlado: são lixões que foram “remediados”, ou seja, receberam cobertura de grama, argila ou geossintéticos. Há uma contenção do lixo que, depois de lançado no depósito, é coberto por uma camada de terra, o que minimiza o mau cheiro e o impacto visual. No entanto, não há impermeabilização do solo, nem tratamento do chorume ou do biogás.

de temperatura e clima da região. “No futuro, vai ficar mais caro retirar o solo de um local e levar para o aterro, como é feito atualmente com a argila compactada. Essa tecnologia causa danos ambientais e não é totalmente segura. A argila pode trincar com o tempo, e a contaminação do solo acontecerá do mesmo jeito”, explica.

evoLuÇÃo

nação muito altos devido ao longo período de exposição ao chorume. Atualmente, pesquisadores da UnB e da Universidad Nacional de Colombia têm realizado estudos sobre novas tecnologias que possam ajudar a recuperar o morro — um exemplo são as as pesquisas com micro-organismos capazes de “eliminar” os resíduos sólidos. Para Luciana Rodrigues, o processo de recuperação ambiental e social de Morávia — que ainda não terminou —, pode ser seguido pelo Brasil nos próximos anos. “Medellín é um aprendizado do que terá que ser revisto nos modelos de recuperação dos lixões brasileiros. Temos bons exemplos, como Belo Horizonte, mas temos a vergonha de ter a capital federal com um dos piores tratamentos de resíduos sólidos. A consciência de reabilitar um lixão ainda é rara no Brasil, talvez pelo tamanho do país, com tantos aterros e tanta população”, avalia a pesquisadora. Em 2012, o Distrito Federal apareceu em último lugar entre as 17 cidades avaliadas no Índice de Cidades Verdes da América Latina. Desenvolvido pela organização Economist Intelligence Unit (EIU). O índice apontou o Lixão da Estrutural como um dos piores da América Latina. De acordo com o professor Gregório Araújo, orientador da pesquisa, o Brasil já está avançando quanto à legislação no tratamento de resíduos sólidos, mas ainda há muito a ser melhorado. “Do ponto de vista da legislação, o Brasil está um pouco melhor quando comparado à Colômbia, onde o plano de resíduos sólidos ainda está em discussão. Mas, em relação a países desenvolvidos, como Estados Unidos e vários países da Europa, ainda estamos em fase inicial. Temos muito a melhorar. O PNRS ainda tem muita coisa a ser especificada. Espero conseguirmos até a data final, pois ela está chegando.”

Johnatan Reis

No processo de recuperação de Morávia, a cidade de Medellín também passou por um processo de reeducação ambiental. De acordo com o professor Hernán Carvajal, co-orientador da pesquisa, a cidade adotou um tratamento moderno do lixo. Coleta seletiva é hoje uma atividade rotineira, e a disposição dos resíduos é realizada em aterros sanitários. “As técnicas de disposição utilizadas estão, hoje, entre as mais modernas existentes, com um gerenciamento de chorume e lixiviados que é considerado exemplar na América Latina”, comenta Carvajal. A presença de um lixão a céu aberto também provoca impactos sociais. A cidade de Medellín ficou conhecida, entre as décadas de 1980 e 1990, pelos altos índices de violência causada pelas “máfias” de catadores de lixo. O índice de homicídios por grupo de cem mil habitantes chegou a bater os 300. “Os chefes das máfias recrutavam camponeses que chegam na cidade com a promessa de uma moradia no Morro e proteção para suas famílias. A violência cresceu em ritmo alarmante, fazendo do bairro de Morávia um lugar proibido”, relata Carvajal, que vivia em Medellín na época. Hoje os índices ainda são altos, mas Morávia se tornou exemplo para a atenção que os grandes centros urbanos devem dispensar ao tratamento dos resíduos sólidos. Por ter sido abandonado durante quase 20 anos, o morro apresenta níveis de contami-

aterro sanitário: é a disposição adequada dos resíduos sólidos urbanos. Antes de iniciar a disposição do lixo, o terreno é preparado com a impermeabilização do solo para que o lençol freático e o solo não são contaminados pelo chorume. Os lixiviados e gases produzidos durante a decomposição são encaminhados para uma estação de tratamento. Nesse sistema, também não há atividade de catadores. Ao final da vida útil do aterro sanitário, a empresa que o opera é responsável por efetuar um plano de recuperação do terreno.

eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Graduada em engenharia civil e ambiental pela Universidade de Brasília (2010), Luciana Rodrigues Fernandes, 28 anos, possui mestrado em Geotecnia. Estagiou na área de projeto de barragens, com elaboração de desenhos e análises de projetos. Participou de experiências internacionais na área, com estudo nos Estados Unidos e República Tcheca. A última pesquisa foi realizada na cidade de Medellín, na Colômbia, em 2012, por indicação do professor Hernán Carvajal. “Ele já conhecia a realidade da região e sabia que havia muita coisa para ser estudada”, comenta. Após a experiência do mestrado, Luciana pretende trabalhar durante algum tempo e adquirir estabilidade antes de voltar à academia para o doutorado.

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dossiÊ

CAMINHO DO LIXO Programas de reciclagem deficitários e pouca capacidade de planejamento tornam metas de coleta seletiva e erradicação de lixões muito difíceis de serem cumpridas

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Reportagem Ingrid Borges | Nívea Ribeiro Ilustração Lucas Pacífico

pós estudar 12 Instalações de Recuperação de Resíduos (IRR), localizadas em Guarulhos, Rio de Janeiro e Distrito Federal, a pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Heliana Kátia Tavares Campos concluiu que a situação das IRR implantadas é decadente. Segundo a pesquisadora, as IRR são inadequadas do ponto de vista arquitetônico e não possuem planejamento. “Até conseguimos implantar as instalações, mas na hora de operar a gente é muito ruim, então dá mau cheiro, baratas, falta profissionalismo”, analisa. Essa situação de precariedade das instalações, de ausência de manutenção e baixa produtividade são os principais fatores responsáveis pelo fato de que apenas 4% das 15.097 toneladas recicladas serem originadas nos programas formais de coleta seletiva. Os resíduos destinados ao processamento nas IRR são heterogêneos, vão desde alimentos a substâncias tóxicas. Na reciclagem, uma parcela dos dejetos pode ser usada como combustível ou ser depositada em aterros sanitários. De acordo com a capacidade das IRR instaladas atualmente, o Brasil está longe do atendimento às metas previstas no Plano Nacional de Resíduos Sólidos. A última IRR de grande porte foi implantada há 20 anos no Rio de Janeiro, a maior do país. Desde então, apenas foram instaladas unidades pequenas com baixo processo de produção. “Nenhuma dessas instalações recebem o que deveriam receber, ou recebe muito ou recebe menos, não há dedicação”, afirma Heliana.

Locais inadequados

As IRR enfrentam um impasse no que diz respeito ao local a serem implantadas. O preconceito ainda é muito grande, as pessoas não querem estar próximas. “É um impasse, não podemos condenar a população por não querer. Quem garante que o aterro vai funcionar devidamente?”, questiona Heliana. Mau cheiro, riscos à saúde e desvalorização de terrenos são as principais causas dessa rejeição. Um caso semelhante no Distrito Federal é o aterro sanitário de Samambaia. O lixão da Estrutural deverá ser fechado até o final deste ano e todo o lixo será transferido para o novo aterro. Os moradores da região se declararam

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contra a obra e defendem que cada cidade-satélite tenha um aterro. Abaixo-assinado e audiências públicas já foram realizadas, a maior preocupação é o impacto ambiental que será causado. Para a pesquisadora, o ideal seria investir em compensações ambientais, ou seja, benefícios, como por exemplo parques, novas construções, enfim, melhorias no local.

Política de resíduos

O Brasil produz diariamente aproximadamente 240 mil toneladas de lixo, a maior parte depositada de forma inadequada em lixões. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ainda existem 2.906 lixões no Brasil, distribuídos em 2.810 municípios, dos quais apenas 18% possuem programas oficiais de coleta seletiva. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída em 2010, tem o intuito de prevenir e reduzir a geração de detritos, tendo como proposta a prática de hábitos de consumo sustentável e um conjunto de ferramentas para propiciar o aumento da reciclagem e da reutilização dos resíduos. Uma das medidas é fazer com que seja adotada a coleta dando prioridade à participação dos catadores de materiais recicláveis e às ações de educação ambiental. Assim, é possível aumentar o índice de reciclagem e reduzir a quantidade de resíduos despejados nos aterros sanitários. A lei também ajudará o Brasil a atingir uma das metas do Plano Nacional sobre Mudança do Clima, que é de alcançar o índice de reciclagem de resíduos de 20% em 2015. O prazo para implantação da PNRS termina ano que vem. Apesar dos avanços, muitas das diretrizes inovadoras não saíram do papel. Entre elas estão os planos nacional, estaduais e municipais com o planejamento de longo prazo para cada unidade da Federação. Até o momento, nenhum estado entregou ao ministério o planejamento para a implementação de políticas de resíduos sólidos.

Trabalhadores invisíveis

“A exploração e a ilegalidade dos catadores é comparável ao trabalho escravo”, afirmou Heliana Campos em entrevista à DARCY. A autora defende que a situação dos trabalhadores da coleta seletiva no Brasil é ignora-


Nívea Ribeiro

da pela sociedade, pelas autoridades e até pela própria classe, composta por entre 400 e 600 mil catadores, de acordo com números de pesquisa feita pelo Ministério do Meio Ambiente, divulgada no Plano Nacional de Resíduos Sólidos em 2012. Apesar de terem liderança unida e mobilizada desde 2001, por meio do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), os catadores continuam a trabalhar em condições insalubres e ainda não possuem outros direitos trabalhistas triviais, como salário mínimo, aposentadoria, licença médica e 13º salário, além da falta de instrução. Acrescida do preconceito e da exclusão social, a invisibilidade desses trabalhadores é reafirmada pela negligência de ambas as partes que deveriam lhes remunerar pelos serviços prestados: o Estado e o setor industrial. A produção de lixo, seja por grandes empresas ou pela população, é, em geral, desligada de responsabilidade, vista como um favor feito aos catadores, que, de acordo com essa mentalidade, não teriam nenhum sustento sem os resíduos que recolhem. “Todo mundo faz vista grossa para o catador. A conclusão a que cheguei é que ele é tratado, na sociedade brasileira, como uma categoria à parte, sem direitos”, diz a pesquisadora.

aLTerNaTivas

Das cooperativas analisadas na dissertação, a Socitex, no centro da cidade do Rio de Janeiro, é a que consegue maior remuneração pela tonelada de lixo. Em parceria com o Instituto Doe Seu Lixo, a Socitex não trabalha com resíduos catados em ruas ou lixões: são feitos contratos com empresas, como mercados, bancos e hotéis, que pagam para ter o lixo triado pela cooperativa. Devido às instruções dadas pelo instituto às empresas, os resíduos já chegam corretamente separados e limpos, prontos para a triagem, sem materiais que possam dificultar a seleção ou arriscar

IRR Sigla para Instalações de

Recuperação de Resíduos, ambientes industriais que recebem e processam resíduos sólidos urbanos domiciliares mistos provenientes da coleta convencional ou previamente separados oriundos da coleta seletiva, para triagem, prensagem, enfardamento, e comercialização dos resíduos secos e apresentação dos rejeitos para a coleta e disposição final em aterros sanitários.

PLANO NACIONAL SOBRE MUDANÇAS DO CLIMA Aprovada

em dezembro de 2009 a lei tem como principais objetivos:1) reduzir as emissões antrópicas, que são emissões produzidas como resultado da ação humana, por fontes e fortalecer a remoção delas por sumidouros de gases de efeito estufa no território nacional; 2) definir e implementar medidas para promover a adaptação à mudança do clima das comunidades locais, dos municípios, estados, regiões e de setores econômicos e sociais, em particular aqueles especialmente vulneráveis aos efeitos adversos.

RESÍDUOS SÓLIDOS Aquilo que tem valor econômico e pode ser reciclado ou reaproveitado. 23


Processo de seleção em usina modelo lixo é coletado em pontos 1 Odeterminados e nas empresas contratantes. Mas não são quaisquer resíduos, já que a usina não deve trabalhar com materiais que ponham em risco a saúde dos trabalhadores. Os trabalhadores usam uniformes, luvas e há equipamentos de segurança individuais e coletivos

Chegando nos galpões da cooperativa, o lixo é transportado e colocado em cestos de fácil transporte, para que não haja acúmulo ou mistura dos materiais, deixando o ambiente mais organizado

lixo vai para uma 2 Oespécie de vala, no início da esteira, que tem “divisórias” que espaçam o lixo e fazem uma seleção prévia. Então cai em outra esteira, em que os trabalhadores selecionam os resíduos por tipo e colocam em outros cestos. Por haver essa queda entre as esteiras, vidro não passa por esse sistema

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Os resíduos não são apenas separados pelo tipo do material (papel, plástico, metal, vidro), mas também pela composição química. Embalagens de alimentos em cartolina (estilo Tetrapak) não ficam juntas de papel normal; garrafas de plástico verde não ficam juntas das de plástico incolor, por exemplo

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Depois da seleção, o lixo é prensado e são feitos fardos, pesados em uma grande balança e embalados. Ficam estocados em local adequado até a venda para atravessadores, que revendem os fardos para empresas de reciclagem e reaproveitamento


No galpão, há chuveiros, espaço separado para alimentação dos trabalhadores e toda a estrutura que a Vigilância Sanitária exige para os ambientes de trabalho no país

dos resíduos triados assegura a fidelização das empresas contratantes. Desde 2003, o instituto já firmou parceria com aproximadamente 80 empresas.

Johnatan Reis

a integridade física dos trabalhadores da usina. Após os processos de separação e prensa, a cooperativa vende os fardos para empresas atravessadoras, que então os repassa para companhias de reciclagem. A cooperativa é formada por cerca de 50 pessoas, e a usina tem capacidade máxima de lidar com 200 toneladas de lixo por dia. O pagamento dos trabalhadores é proporcional à produção e há uma lista de presença que garante a divisão justa dos ganhos. O material mais recebido na usina é o papel, em especial vindo de cartórios e órgãos com grandes arquivos. Para que não haja vazamento de informações sigilosas, os papéis são enviados em carros com rastreamento e picotados antes da reciclagem. Além do procedimento comercial diferenciado, os membros da cooperativa têm acesso a equipamentos de segurança, ambiente de trabalho higiênico e direitos, como o INSS, que já deveriam ser oferecidos a todos os trabalhadores da coleta seletiva, mas ainda são considerados vantagens. De acordo com Patrícia Fernandes, gerente de treinamento e novos negócios do Instituto Doe Seu Lixo, muitos dos membros da cooperativa, antes catadores, oferecem resistência a algumas medidas de segurança implementadas na usina, como o uso de luvas e uniformes, e a se dedicar exclusivamente ao trabalho na usina de triagem, já que catar em lixões e nas ruas pode ser mais lucrativo, por não impor limite de horas trabalhadas. Apesar disso, a venda por meio de parcerias é mais vantajosa a longo prazo, porque a garantia de frequência e qualidade

resPoNsabiLidade

O Distrito Federal possui o maior índice de geração per capita de resíduos sólidos do Brasil: por dia, cada habitante produz em média 2,4 quilos de lixo, segundo o “Diagnóstico do manejo dos resíduos sólidos urbanos”, elaborado pelo Ministério das Cidades em 2009. Mas, comparado a outros estados, o DF não possui políticas de manejo de lixo mais avançadas ou os projetos de conscientização mais radicais. De acordo com Heliana Campos, falta interesse dos órgãos públicos e também maior vigor na conscientização, inclusive na universidade. “Ter um lugar adequado para colocar o lixo, como as lixeiras específicas, é muito importante, mas o crucial é o comportamento dos alunos. Mais do que a infraestrutura, é o conceito de responsabilidade que deve estar na cabeça das pessoas.” Ainda no âmbito acadêmico, ela aponta falta de questionamento dos pesquisadores quanto à informalidade dos catadores, apesar de que muitas teses e projetos trabalhem diretamente com a melhoria das condições de vida deles. “Vários estudos já foram feitos sobre o manejo de resíduos sólidos, mas não percebi nenhum que tivesse essa visão crítica da incompatibilidade dos serviços prestados por cooperativas de coleta seletiva com o ordenamento jurídico do país”, conclui.

eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Heliana Katia Tavares é formada em engenharia Engenheira Civil (1981) com especialização em saneamento básico (1982) pela UFMG e mestrado em Desenvolvimento Sustentável (2013) pela UnB. Foi pesquisadora da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais e diretora da Ambiental Engenharia e Consultoria. É membro do Conselho Diretor e coordenadora nacional do Comitê Permanente de Resíduos Sólidos da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária Ambiental (Abes). Atualmente é Consultora do Ministério do Meio Ambiente e da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), assessorando e capacitando vários municípios brasileiros na área de gestão de resíduos sólidos.

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dossiÊ

EMANCIPAÇÃO DOS

CATADORES

Renda e condição de trabalho das pessoas que lidam com resíduos sólidos melhoram nas cooperativas. Mas é necessário investimento público para atrair os autônomos

Reportagem Emily Almeida

Sempre observava o trabalho dos catadores. É um pessoal que faz um papel fantástico para a sociedade, mas são subvalorizados.” Com essa preocupação, Itair Pereira da Silva analisou a produção de renda dos catadores de Goiânia (GO) em pesquisa que resultou em mestrado em Gestão Econômica do Meio Ambiente pela Universidade de Brasília. Para os catadores de resíduos sólidos — termo que o autor faz questão de diferenciar de lixo, já que ainda tem utilidade —, a reciclagem é assunto que lhes garante a renda do mês. “Para a gente significa muito. Daqui é que tiramos o sustento da família”, afirma Viviana Rodrigues de Souza, catadora há sete meses em Goiânia. Eles são um dos personagens responsáveis por manter os resíduos na cadeia produtiva, evitando a exploração de novos recursos naturais e promovendo energia, renda e eficiência econômica. O ofício de catador conquistou espaço em âmbito público em 2010, com a sanção da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Após 20 anos a tramitar, a nova lei regula a destinação dos produtos com ciclo de vida durável, integrando o poder público, as empresas e a população na gestão dos resíduos. Os estados e municípios devem se adequar aos novos parâmetros até 2 de agosto de 2014. Caso contrário, não recebem recursos da União. Nesse contexto, a lei propõe incentivos do município para organização desses trabalhadores em cooperativas, em detrimento ao trabalho autônomo dos catadores de rua. As cooperativas recebem materiais recicláveis recolhidos pela prefeitura, separam por tipo

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e cor e prensam para a venda para as firmas que os transformam em novo produto. “É uma briga constante manter esse material com a prefeitura. Há alguns meses, passamos uma crise muito grande, sem receber material. A gente teve que fazer manifesto na Comurg (empresa que faz a coleta em Goiânia)”, conta Maria de Lurdes Soares, presidente da cooperativa Cooper-Mas. “Na rua, ganha-se mais. Porém aqui trabalhamos em grupo. É mais seguro e confortável”, conta a catadora cooperada Nilma Ribeiro Alves, no ramo há dois anos. “É tudo melhor organizado, o salário, os horários”, completa. A renda mensal dos catadores não é fixa. Eles dividem por semana o lucro da venda do material, proporcionalmente à produtividade de cada um. Hoje, há 15 cooperativas em Goiânia. Dessas, 12 recebem subsídios do município. Os incentivos aos catadores só são fornecidos por meio das cooperativas. Dulce Helena do Vale, presidente da Cooper-Ama e representante do Movimento Nacional dos Catadores Recicláveis em Goiás, acredita que deve haver pressão às prefeituras por meio de estudos econômicos para tornar o trabalho mais produtivo. Recursos para prensas, esteiras mecânicas, equipamentos, estrutura física e melhores condições de trabalho. “Incentivos possibilitam que as próprias cooperativas cheguem ao produto final, agregando valor ao material. Vamos supor uma garrafinha. Hoje, ela sai a 30 centavos. Triturada sai a R$5,80 o quilo”, explica. Lamentando-se sobre a falta de conhecimento da população sobre o destino dos resíduos e a coleta seletiva, Dulce Helena conta


o iNForMaL aiNda resisTe

Principais concorrentes dessas organizações, pequenas empresas de reciclagem chamadas de “sucateiros” recebem materiais separados de catadores autônomos. Estes são normalmente moradores de rua ou desempregados, que arrastam a carroça de lixo pela cidade. Eles vendem para os “atravessadores” que, ao fim, podem ganhar até quatro vezes mais pelo produto comprado do carroceiro. Mesmo com os incentivos determinados pela lei, apenas 10% dos catadores de resíduos recicláveis estão em cooperativas (dados do Cempre, sigla para Compromisso Empresarial para a Reciclagem, de 2011). A maioria dos catadores autônomos é moradora de rua ou desempregada, sem acesso ao mercado de trabalho formal. Em muitos casos, são dependentes químicos ou alcoólatras, e não têm horários estabelecidos para o trabalho. Entre as razões para preferir a informalidade, está a liberdade para estabelecer horários, a desconfiança da hierarquia das cooperativas, o pagamento semanal em vez de diário e a incompatibilidade com a forma de organização. Na produção da reportagem, a revista DARCY visitou três das quatro cooperativas analisadas na dissertação de Itair Pereira da Silva. Hoje, ele é professor de administração e servidor público em Goiânia. Entre as idas e vindas para escrever a dissertação, teve dois filhos. Ele conta que os dados organizados pela Incubadora Social, projeto da Universidade Federal de Goiás, foi fundamental para a pesquisa. Coordenado pelo professor Fernando Bartholo, o projeto atua na inclusão social com apoio a empreendimentos econômicos solidários. Além das quatro cooperativas estudadas, ele entrevistou 20 catadores autônomos de Goiânia em 2011. Nesse, o pesquisador comparou a viabilidade financeira das cooperativas diante de três níveis de investimento: baixo, médio e alto. Também analisou a renda dos catadores autônomos e dos catadores em cooperativas, com ou sem subsídios da prefeitura. Ele constata que a renda dos cooperados se sobressai à dos autônomos. Ainda assim, os catadores autônomos resistem às cooperativas. Silva aposta no aumento dos incentivos da prefeitura para alavancar significativamente a produtividade dos cooperados e fazer crescer a adesão de catadores nas organizações, além do apoio dos órgãos públicos para orientar e gerir os diferentes interesses. Ele espera o fim do prazo para adequação à lei para avaliá-la. Mas questiona a inclusão social dos catadores proposta, já que a renda média dos catadores cooperados analisada no período não chega ao salário mínimo.

Emily Almeida

Fotos: Emily Almeida

que, desde 2008, um projeto de lei que autoriza a doação de um terreno no bairro Orlando de Morais para galpão de triagem de materiais recicláveis está embargado na Câmara Legislativa de Goiânia. Temendo que se tratasse de lixão — o que é proibido na nova lei —, os moradores do bairro se manifestaram para impedir a construção. “As pessoas deveriam saber que o material coletado vai para cooperativas, dando oportunidade de inclusão social, emprego e renda”, diz. A falta de consciência dos consumidores, que pouco separam os resíduos, também afeta a produtividade do trabalho. “Enquanto você poderia estar separando material reciclável, você está tirando lixo”, conta Maria de Lurdes Soares.

eu FaÇo CiÊNCia

quem é o pesquisador: Itair Pereira da Silva se formou em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/ GO) em 1996 e se especializou em MBA em Gestão Empresarial na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Título da dissertação: Catadores de resíduos sólidos autônomos e cooperativados: Dimensões de ganhos potenciais de renda em Goiânia e consequências para a Política Nacional de Resíduo Sólido quem orientou: Denise Imbroisi

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dossiÊ

RESÍDUOS AMBIENTAIS Pesquisa investiga a situação de trabalho de catadores de lixo da Cidade Estrutural. Condições de higiene e mão-de-obra infantil foram avaliadas

U

Reportagem Gabriel Luiz

Ilustração Lucas Pacífico

m local a 15 km de distância do Congresso Nacional para onde o brasiliense destina 2,7 mil toneladas de lixo por dia. A Cidade Estrutural, com população estimada em cerca de 35 mil habitantes, é a segunda maior invasão do Distrito Federal e surgiu atrelada ao nascimento de Brasília — há mais de 50 anos. A cidade cresceu em volta do lixão, que recebe desde garrafas PET a produtos orgânicos de supermercados. O vazadouro, do tamanho de 160 campos de futebol, e as pessoas que trabalham no local são tema do grupo de pesquisa de Maria da Graça Hoefel e mais outros seis pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB). Os catadores da Estrutural representavam 15% da população local, de acordo com o último censo realizado pelo Governo do DF, em 2002. No entanto, de acordo com a associação comercial da Cidade Estrutural, o lixo movimenta 40% da economia, mais de R$ 2,5 milhões por mês. Na época do censo, os trabalhadores ganhavam em média R$ 50 por semana com a venda de materiais recicláveis, vendidos no próprio lixão. A união de profissio-

nais em associações e cooperativas contribuiu para maximizar os lucros. São mais de 2,5 mil catadores cadastrados em seis cooperativas. De acordo com o trabalho Das condições de vida, trabalho e saúde em famílias de catadores de lixo — desenvolvido pelo grupo de pesquisa do Projeto Estrutural — quando resíduos sólidos são dispostos a céu aberto, o espaço recebe o nome de lixão ou vazadouro (uma alusão ao lixo empilhado que transborda). A vida dos mais de 2,5 mil catadores, que dependem da coleta de materiais recicláveis no local, é o objeto de estudo dessa pesquisa realizada pelo grupo, que envolveu estudantes de graduação em Gestão em Saúde Coletiva, Nutrição, Farmácia, Veterinária e de pós-graduação em Ciências da Saúde.

a Pesquisa

Os sete pesquisadores realizaram um censo em 2011 com catadores de materiais recicláveis residentes em cinco quadras da região. Foram entrevistados 835 moradores, em 204 domicílios. O objetivo era investigar a situação do trabalho, a percepção do risco à saúde e a

segurança alimentar das famílias de catadores. Além das condições de higiene e sanitárias, também foi avaliada a ocorrência de trabalho infantil nas atividades do lixão. Dentre os resultados obtidos, o estudo aponta que 80% dos chefes de família vêm de outros estados e se estabeleceram no local há 13 anos. Bahia, Minas Gerais, Goiás e Maranhão contribuíram com parcela entre 15% e 18% dos migrantes. A região mais pobre do DF abriga 84% de moradores com renda per capta inferior a um salário mínimo — 18 vezes menor do que a de um morador do Lago Sul, bairro nobre de Brasília. A maioria, 41% deles, completou entre a 5a e a 8a série, e 39% nunca estudou ou completou até a 4a série. 65% das famílias vivem em condições precárias de saneamento básico, apesar de terem acesso à água encanada e à energia elétrica. A presença de ratos e baratas, animais característicos de regiões com lacunas sanitárias, é declarada em 90% dos domicílios entrevistados. Quanto às condições de trabalho, 95% dos catadores avaliaram o ambiente como perigoso ou muito perigoso. Por conviverem com

O estudo aponta que:

80%

dos chefes de família vêm de outros estados e se estabeleceram na Cidade Estrutural há 13 anos

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Contribuíram com uma parcela entre 15% e 18% dos migrantes:

Maranhão Goiás

Bahia Minas Gerais


FuTuro

O lixão da Estrutural tem previsão para ser fechado até final de 2013. Todo o lixo recolhido

no DF será direcionado para o Aterro Sanitário Oeste, em Samambaia. A empresa vencedora da licitação, constantemente adiada desde junho, irá administrar o local até 60 meses e deve receber cerca de R$ 30 milhões por ano do GDF. O lixo seco, previamente separado pela empresa, será destinado a galpões, onde será realizado o trabalho de catação. Essa é uma forma de destinar corretamente os mais de 880kg de lixo que o brasiliense produz por ano. Até o fechamento desta edição, o processo de escolha da nova empresa está suspenso pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal. A professora é favorável ao fechamento do lixão, pois, segundo ela, os catadores não deverão mais se submeter às degradantes condições de trabalho. “Trabalhar no lixão é completamente desumano. Eles (os catadores) não têm alimentação, não têm água, estão sujeitos a se acidentarem a qualquer momento, atropelados devido ao vai-e-vem dos caminhões.” O estudo do qual ela faz parte identificou ocorrência de acidentes de trabalho em 55% dos casos. “Se eles puderem não trabalhar no lixão e sim com materiais já com material reciclável em um galpão, será muito mais adequada a possibilidade de saúde e bem-estar aos trabalhadores”, acrescenta Hoefel.

Gabriel Luiz

substâncias tóxicas, como o chorume — líquido liberado pelo lixo em decomposição —, eles ficam expostos a doenças respiratórias e nervosas. O contato com resíduos inflamáveis, corrosivos, reativos, tóxicos e patogênicos é constante. Mais de 55% dos trabalhadores declararam ter sofrido algum acidente de trabalho, como perfuração ou atropelamento por parte das máquinas que circulam no lixão. Hoefel destaca um dado que considera impressionante: 70% dos trabalhadores se alimentam de restos alimentares encontrados no lixo. “Isso é uma segurança alimentar terrível. É um absurdo que as pessoas que trabalham na Estrutural não tenham dinheiro nem condições para se alimentar.” O número foi levado ao Ministério de Desenvolvimento Social para que os moradores tenham acesso ao programa federal Bolsa Família. Os resultados da pesquisa também foram encaminhados para a Secretaria de Saúde, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest) e Conselho Tutelar do Distrito Federal.

eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Maria da Graça Hoefel é graduada em medicina pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1983. Ela é especialista em Saúde Pública, Medicina do Trabalho, Políticas Públicas e Gestão Estratégica em Saúde. Após mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutorado pela Universidade Federal do Ceará, Hoefel se tornou professora do departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília. Com atenção voltada para a área de saúde, trabalho e cultura, coordena a implantação do Ambulatório de Saúde do Trabalhador e do Ambulatório de Saúde Indígena, ambos do HUB.

HOSPITAL UNIVERSITÁRIO Com o objetivo de levar saúde à população da Estrutural, a equipe de Maria da Graça Hoefel montou,

em junho de 2013, uma agenda especial de atendimento no Hospital Universitário de Brasília (HUB). A justificativa é que a maioria dos catadores não têm condições de ir a um posto de saúde, pois trabalham o dia todo, de segunda a sábado. Além das doenças decorrentes dos próprios componentes químicos do lixão, as atividades de catação levam a diversos problemas de coluna. O atendimento está disponível às sextas-feiras, no período da tarde. O atendimento especializado ainda precisa ser ajustado.

GRUPO DE PESQUISA DA ESTRUTURAL O Grupo de Trabalho (GT) foi formado por três professores do Departamento de

Saúde Coletiva da UnB em março de 2011. Também participam duas turmas das disciplinas de Fundamentos Biológicos e Metodologia de Pesquisa. O objetivo é analisar condições de vida e trabalho dos catadores e achar medidas para prevenir doenças e promover saúde na Cidade Estrutural, que para os especialistas é a população mais vulnerável do DF, devido à falta de políticas públicas voltadas à saúde.

41%

A região mais pobre do Distrito Federal abriga

completou entre a 5a e a 8a série

84%

de moradores com renda per inferior a um salário mínimo 18 vezes menor do que a renda de um morador do Lago Sul, bairro nobre de Brasília.

39%

nunca estudou ou completou até a 4a série

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dossiÊ

TUDO SE

TRANSFORMA

Mecanismos para reaproveitar materiais descartados e

Reportagem Jhésycka Vasconcelos

Ilustração Lucas Pacífico

Como fazer

Conforme destacado na tese, a produção de papel artesanal não exige conhecimentos aplicados. O processo de produção é semelhante, independentemente do resíduo escolhido para reciclagem. Confira o passo-apasso da execução.

Depois de cozida, a solução deve esfriar. Em seguida, coe a mistura. A fibra que restar deve ser lavada com água corrente e vinagre, responsável por neutralizar a mistura.

1

Resíduos agrícolas são colocados em panela de inox com água e soda cáustica, que auxilia na extração de celulose. A mistura cozinha por quatro horas e deve ser mexida com frequência.

2 3 A fibra deve ser refinada. Em geral, máquinas tipo holandesa são usadas, mas o serviço também pode ser feito manualmente. O refino dá maior resistência mecânica ao papel.


P

ara resíduos como bagaço de cana, folha de bananeira ou bituca de cigarro, em geral, imaginam-se destinos óbvios: produtores mais despreocupados mandam tudo para o lixo enquanto consciências ecológicas tentam transformar os restos em adubo. No entanto, na Universidade de Brasília, ao final do corredor da Oficina de Maquetes e Protótipos, a professora Thérèse Hofmann Gatti desenvolve para tais insumos fins mais criativos. Docente do Instituto de Artes da UnB e doutora em desenvolvimento sustentável, ela defende as proposições que levantou em 2008, na tese de doutorado, e que agregam maior valor para resíduos agrícolas. Com alunos matriculados na disciplina de materiais em artes, além de outros orientandos e parceiros, Thérèse produz papéis artesanais oriundos de todos os materiais citados acima. A ideia central da pesquisadora parte do pressuposto de que o ciclo de um produto não deve ser interrompido. “O que é resíduo em uma cadeia de produção é matéria-prima em outra. Por isso que o trabalho é ‘do berço ao berço’, e não do ‘berço ao túmulo’, que é a percepção herdada da Revolução Industrial”, afirma. Ao reavaliar o descarte dos resquícios de colheitas agrícolas, Thérèse notou que certos materiais têm potencial para a produção artesanal de papel, visto que a celulose — polissacarídeo presente na parede celular de todas as plantas e principal elemento constituinte do papel — também é encontrada na folha de bananeira, no bagaço de cana-de-açúcar e de outras plantas. No Laboratório Experimental de Materiais Expressivos, alunos aprendem a história, a técnica e o modo de preparo de diversos suportes e materiais artísticos. Além de papel, eles produzem guache, nanquim, giz de cera, óleo e outros elementos importantes na criação artesanal utilizando recursos rudimentares. “Todos pensam que material de arte é caro, mas não é. Você tem à disposição árvores, terra, babosa etc. É preciso conhecer a natureza por completo. Esquecemos que o homem sempre fez tudo antes da Revolução Industrial, que apenas acrescentou máquinas ao processo”, defende Thérèse.

A

em arte

A fibra é transferida para cubas e com auxílio de telas de madeira, são retiradas partes da massa que são transformadas em folhas. Após esperar a água escorrer, o molde é retirado e despejado em uma entretela.

4 A mistura é desagregada em liquidificador. Durante o processo, acrescenta-se à solução cola do tipo carboxi-metil-celulose (CMC), que garante mais força ao papel.

7

5

Quando totalmente seco, as folhas prontas podem ser utilizadas em diversas finalidades.

6

Depois de reunir várias entretelas com papéis em processo de secagem, uma pilha deve ser feita e prensada para retirar o excesso de água. Logo depois, o material deve secar naturalmente.

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Pâmella Otanásio, 24 anos, estuda artes plásticas e é uma das monitoras de materiais em artes, matéria ministrada por Thérèse. A estudante reconhece como funciona todo o processo de produção de papel artesanal descrito na pesquisa da professora (ver quadro nas págs. 30-1) e destaca a feitura com bitucas de cigarro. A sugestão veio de um aluno do curso de química e ainda é algo inédito no mundo. A patente foi registrada em 2003, mas a carta ainda não foi concedida. Todavia, os trabalhos continuam e são reconhecidos por grandes empresas de cigarro como Souza Cruz — que doa ao laboratório filtros da fábrica de Uberlândia — e Philip Morris. O tempo de produção calculado por Pâmella é de uma semana. “Do cozimento das bitucas, que leva seis horas, até a moldagem artística, demora muito. Etapas de secagem e branqueamento da polpa ocorrem de forma natural. Em escala industrial e com máquinas, certamente teríamos este tipo de papel em três dias ou menos.”

Conhecimento aplicado

A tese aponta que a utilização de resíduos agrícolas para adubo ou compostagem não despertou interesse econômico em grande parte dos agricultores, mas que a demanda de mão-de-obra pouco qualificada e uso de tecnologia simples são suficientes para convencer alguns deles a aderir ao processo de reciclagem. No Distrito Federal, Thérèse iniciou um trabalho de extensão junto com a pesquisa de doutorado em dois pólos rurais: Tabatinga e Brazlândia. O objetivo da instalação de peque-

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nos centros de reciclagem e produção de papel artesanal é, especialmente, integrar pessoas em situação de vulnerabilidade e evitar o êxodo rural de crianças e jovens. Porém, notou-se que tal exercício poderia também render um bom negócio. No núcleo rural de Tabatinga, a 60 km do Plano Piloto, 12 adolescentes ocupam um galpão em que produzem, de segunda a sexta, das 12h às 18h, papel artesanal e derivados. O grupo dispõe de maquinário necessário para produção, além do conhecimento repassado por Thérèse e voluntários. Com resíduos de bananeira, cana e ferramentas, produzem folhas simples, bloquinhos de anotações, convites e outros adereços. E os produtos movimentam dinheiro. A equipe recebe pequenas demandas e arrecada valores variados por mês. “Para uma encomenda de 100 folhas, cada uma pode custar até R$ 1. Tamanho A1 custa até R$ 2. Já a A4 custa R$ 1,50. Esse preço depende do resíduo utilizado. A bananeira dá mais trabalho para fazer e custa até R$ 2, enquanto a folha de bagaço de cana custa R$ 1”, contabiliza Maria Helenilda,18 anos, um dos membros mais antigos do projeto. Em geral, as encomendas são feitas para quem mora nas cercanias e o dinheiro arrecadado colabora no sustento do projeto. Enquanto isso, em Brazlândia, o Rancho Paraná conta com duas estagiárias que desenvolvem artisticamente os materiais reciclados. No local, a principal fonte de papel reciclado são os resíduos fibrosos de helicônias, plantas que podem atingir até três me-


Fotos: Johnatan Reis Johnatan Reis

tros e que são muito comuns em jardins ornamentais. Carolina Sousa,17 anos, e Aline dos Santos,16, não executaram todas as etapas de produção, mas as estagiárias preparam diversos objetos com papel artesanal já reservado. Envoltos com papéis de helicônia, materiais do cotidiano também são reaproveitados no rancho. Garrafas, chaveiros, marcadores de página, agendas e caixas decoradas compõem kits vendidos a preços módicos. Se para Arnaldo Antunes,“dinheiro não se leva para o céu”, para Thérèse, cédulas não se levam ao lixo, ainda que recortadas. Questionada pelo Banco Central sobre o que fazer com volumes de dinheiro picotado, que até 1986 eram incinerados no Rio de Janeiro e depois passaram a ser lançados no lixão da Cidade Estrutural, ela aceitou o desafio de tentar reciclar fardos de notas. Porém, para descobrir como molhar notas de Real (já que umedecer o papel é uma etapa fundamental no processo de reciclagem), a pesquisadora juntou-se a dois químicos do Senai e tentou diversas fórmulas. “Conseguimos identificar três produtos químicos que, misturados, poderiam tirar essa camada que impermeabiliza o dinheiro sem degradar a fibra.” Somente em 2008, após longos 12 anos, tal descoberta foi patenteada e a professora prosseguiu com a fabricação de papel artesanal de cédula. Do dinheiro, surgem bloquinhos, agendas, pastas e até cúpula de abajur. O aspecto da criação é bem parecido com qualquer folha comum, mas os pedaços visíveis das notas de R$ 10 a R$ 100 chamam bastante atenção. “Aliás, dinheiro picado não falta, mas gostaria de tê-lo inteiro para aumentar minhas instalações”, comenta Thérèse.

eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Thérèse Hofmann Gatti é graduada em artes pela Universidade de Brasília, onde aprendeu a fazer papel artesanal reciclado em 1986. É professora da Universidade desde 1991 e ministra a disciplina de materiais em artes, além de coordenar o Laboratório Experimental de Materiais Expressivos. Fez mestrado e doutorado na UnB e concluiu os estudos no Centro de Desenvolvimento Sustentável, em 2008, com o trabalho Do berço ao berço: agregação de valor e de desempenho socioambiental para a produção de papéis especiais com resíduos da agricultura.

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O LUXO DO

dossiÊ

T

O que você joga fora lhe define

Reportagem Eduardo Barretto

Ilustração Túlio César Mendes

ucson, estado do Arizona, sul dos Estados Unidos. O ano é 1973. O professor William Rathje — conhecido como Capitão Planeta — e os alunos de antropologia da Universidade do Arizona começam uma série de escavações arqueológicas sistemáticas, que abrangeriam 14 toneladas de material resgatado. Mas eles não procuravam por ossadas ou artefatos de outras eras. A busca era por entender a sociedade como estava e o material de estudo era o lixo. A troca de sítios arqueológicos por lixões permitiu várias análises sobre quem gerava esses resíduos. Essa é a intenção da “residuologia”, equivalente em português do termo oficial cunhado por Rathje: garbology. Tudo começou quando o professor percebeu, em escavações da cultura maia, que boa parte dos objetos descobertos haviam sido descartados pelos pré-colombianos. Quatro décadas antes, o jornal americano The Saturday Evening Post convenceu a Campbell, fabricante de sopas e ícone maior de Andy Warhol no pop art, de que o consumidor principal da empresa de enlatados era da classe média, e não da classe alta — mesmo público do jornal, portanto. O consenso veio após o Post coletar e analisar os resíduos de famílias dos dois estratos sociais e comprovar a tese, o que lhe rendeu anúncios cativos da Campbell. O lixo não mente. A trupe do Arizona desmascarou as estatísticas oficiais: os estadunidenses afirmavam em pesquisas ingerir menos comida de baixa qualidade e álcool do que realmente o faziam. Ao contrário, a dieta de frutas e vegetais era superestimada. O lixo não mente — e nem é exclusivo das últimas décadas. A revista norte-americana Life afirmou, em 1955, o então “advento da sociedade descartável”. Entretanto, vale notar que latas de alumínio, papelão e roupas prontas, por exemplo, são do século 19. O ser humano aprendeu a ser descartável há tempos. O lema do grupo de estudo do professor Rathje era que “o que as pessoas têm, e o que jogam fora, diz muito melhor sobre a vida que elas levam do que elas mesmas afirmam”.

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Em Lixo extraordinário, longa-metragem centrado na obra do artista plástico brasileiro Vik Muniz — que não utiliza tinta, mas açúcar, café, geleia, chocolate e até lixo —, a história se passa no aterro carioca Jardim Gramacho. O aterro era o maior da América Latina, até ser fechado no ano passado. A exemplo dos estudantes no Arizona há quarenta anos, os catadores de lixo do filme também faziam perfis de quem teria gerado aquele resíduo. Classe social, profissão, gostos, hábitos. Ainda que rejeitos, os resíduos sólidos são produtos sociais. Em Submundo, do celebrado romancista Don DeLillo, um dos personagens trabalha em um aterro sanitário. A angústia é conviver com montanhas de “coisas desejadas primeiro ardentemente e depois descartadas” e, no mercado, enxergar o lixo antes do alimento. Sentimentos semelhantes são expressos na poesia Fim de feira, de Carlos Drummond de Andrade (“No hipersupermercado aberto de detritos / ao barulhar dos caixotes em pressa de suor / mulheres magras e crianças rápidas catam a maior laranja podre / a mais bela batata refugada”), O bicho, de Manuel Bandeira (“Vi ontem um bicho catando comida entre os detritos [...] / O bicho, meu Deus, era um homem”) e no poema concreto Lixo/luxo, de Augusto de Campos, estampado no título desta matéria. O lixo é um submundo. Plutão, deus romano do inferno — e associado ao lixo —, raramente era encontrado em altares. Plutão causava nojo e era tão horrendo que teve que roubar uma esposa. Além disso, tinha um capacete de invisibilidade. Todos os dias, o destino do lixo é ignorado. Mas basta o inevitável confronto visual para a ojeriza apa-

recer. O planeta-anão homônimo do deus das profundezas, quando ainda era planeta, era o mais afastado do sol, no sistema solar. O revés na ignorância de resíduos é que eles já são um problema mundial. O maior depósito de lixo do mundo está boiando no oceano Pacífico Norte, a noroeste da Austrália, para onde convergem quatro grandes correntes oceânicas. Composto majoritariamente de plástico, o lixão marítimo tem área equivalente aos estados de Pará e Amapá juntos. O planeta produz 1,3 bilhão de toneladas de resíduos anualmente, cerca de 1,2 kg para cada habitante das cidades. Os dados são de um relatório deste ano do Banco Mundial. No Brasil, das 64 milhões de toneladas de resíduos gerados no ano passado, 24 milhões seguiram para destinos inadequados, segundo estudo da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Isso equivale a 168 estádios do Maracanã lotados de lixo, que não será tratado. De 2011 para 2012, o brasileiro aumentou o descarte de resíduos em 1,3%, taxa maior do que o crescimento da população, que foi de 0,9%. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros 2011, revela que 67,7% das cidades, ou 3.770 municípios, não fazem coleta seletiva. Isso impede a reciclagem ou a preocupação com o destino do lixo nessas localidades, que quase sempre é o lixão, local sem qualquer mecanismo para minimizar danos ambientais, como camadas impermeáveis ou dutos de gás. O número do IBGE é alarmante, já que o governo brasileiro, na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), implantada

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O planeta produz

Fonte: Banco Mundial

1,3 bilhão

saiba mais

Crédito de carbono

Em julho de 2001, o Protocolo de Kyoto foi referendado em Bonn, Alemanha. Nesse encontro, foi apresentada uma maneira menos drástica de se cumprir as metas definidas em Kyoto, quatro anos antes. Segundo essa proposta, seriam emitidos certificados para países que reduzissem emissão de gases de efeito estufa. Uma tonelada de dióxido de carbono corresponde a um crédito de carbono. Os outros gases são tabelados de acordo com a toxicidade. Os países que conseguem reduzir as emissões têm o direito de comercializar os créditos de carbono com os países desenvolvidos, nações que têm metas de Kyoto a cumprir.

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toneladas de resíduos anualmente

1,2 kg

por habitante das cidades

em 2010, prometeu erradicar os lixões até 2014 — ainda existem mais de dois mil na ativa. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em estudo, afirmou que o Estado não conseguirá bater a meta. O Atlas Brasileiro de Emissões de Gases Efeito Estufa e Potencial Energético na Destinação de Resíduos Sólidos, da Abrelpe, aponta que os aterros – que, diferentemente dos lixões, têm dutos para captar gases — do Brasil têm capacidade de gerar 280 megawatts de energia com os gases da decomposição do lixo. Isso daria para abastecer mais da metade da população do Distrito Federal (DF). O país perde R$ 8 bilhões por ano ao desperdiçar material reciclável. O valor compraria 400 mil carros populares. Chamado de mecanismo de desenvolvimento limpo, o mercado de crédito de carbono (veja Saiba mais) é alternativa ao desempenho medíocre do Brasil no quesito ambiental. Além disso, é uma tendência que vem ganhando força, principalmente em contexto de mudanças climáticas, onde esforços internacionais estão em ação, pelo menos no papel, para reduzir as emissões de poluentes e os impactos ao meio ambiente – entre eles, a gestão dos resíduos sólidos. A professora Sabina Cerruto, do departamento de engenharia florestal da Universidade de Brasília (UnB), declara: “O lixo também é um problema envolvido nas mudanças climáticas, pela emissão de gases”. O aterro Bandeirantes, em São Paulo (SP), que recebe metade de todo o lixo da maior cidade do país, é um exemplo de iniciativa do mecanismo. A professora afirma: “Temos certeza de que o lixo que está no aterro sanitário, no qual há um projeto para gerar crédito de carbono, não está emitindo gás metano. Na pior das hipóteses, o aterro vai emitir gás carbônico, que é vinte e cinco vezes menos poluente do que o metano”. A participação do Brasil no mercado de crédito de carbono ainda é tímida: o país tem 204 iniciativas, o que equivale a apenas 4,8% dos projetos do mundo. A China lidera, com expressivos 49%. “O que falta é vontade política. O que vai de fato estimular que os países busquem mais projetos de crédito de carbono é seus governos estimularem isso. Os governos, ao assumirem compromissos formais para reduzir emissões, podem incentivar as empresas com medidas domésticas para bater as metas”, explica a professora. Tais estímulos cobririam os custos que as empresas teriam em reduzir as emissões, por exemplo com troca de máquinas, combustíveis e procedimentos. Professora da UnB, Valéria Gentil-Nugent estuda o lixo há mais de dez anos e vê no crédito de carbono a maneira de auxiliar o catador de lixo: “Por meio do mecanismo de desenvolvimento limpo, do crédito de carbono, beneficiamos também o elo mais fraco da cadeia produtiva, que é o catador”, afirma. Se o governo não vem conseguindo subsidiar os catadores, as empresas têm oportunidade, com os projetos de crédito de carbono, já que a mão de obra passa a ser inevitável para a efetividade das iniciativas. A base da cadeia produtiva do lixo, no Brasil, é subestimada, segundo Gentil-Nugent. “A cadeia produtiva é capenga, porque despreza o


Fonte: Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe)

desCarTe de resíduos

No Brasil, das

Brasil, das 64Nomilhões de

64 milhões

2011

2012

toneladas de resíduos gerados

de toneladas de resíduos no anono passado, gerados ano passado,

24

milhões 24 milhões

+ 1,3%

seguiram para destinos inadequados, segundo seguiram para destinos estudo da Associação Brasileira inadequados. Isso equivale a de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais

168 estádios 168 estádios do Maracanã

CresCiMeNTo da PoPuLaÇÃo

do Maracanã lotados de lixo, (Abrelpe). Isso equivale a que não será tratado. lotados de lixo, que não será tratado.

2011 2012

+ 0,9% catador de lixo. O Brasil recicla 98% das latinhas de alumínio. Quem faz o trabalho braçal? Os catadores, com certeza”, defende a professora. Segundo a docente, eles não devem ser somente sustentados financeiramente, mas também capacitados, para operar máquinas de tecnologia verde. Valéria Gentil-Nugent propõe um “esverdeamento da economia”, atrelado à política e às leis, por meio de tributação. “Precisamos tributar com base no mercado, ou não vamos alcançar as metas com que o Brasil se comprometeu.” Entretanto, ela defende um corte nas cobranças em outras áreas. Por exemplo, os impostos para abrir uma empresa no Distrito Federal, que estão entre os maiores do país, impedem que grandes companhias de reaproveitamento de resíduos instalem-se por aqui. Não há reciclagem no DF: todo o lixo reciclável coletado é transportado para outros estados. Na Europa, são cobradas várias tarifas, como taxas de sistemas de depósito e taxa sobre utilização. Os cidadãos também são reembolsados, caso retornem embalagens. Alguns países, como a Alemanha, alcançam um percentual de reaproveitamento do lixo de 90%. O modelo europeu tem particularidades. A área dos países é consideravelmente menor do que a do Brasil e o poder aquisitivo é bem maior. A professora defende: “Temos que adequar o conceito de sustentabilidade à realidade bra-

sileira. Para quem não tem o que comer, como se preocupar em ter comportamento verde?”. “Não são tributos para punir”, argumenta a professora, e completa: “Precisamos sair urgentemente dessa letargia, que vai diminuindo nossa sensibilização com o meio ambiente”. A docente também ressalta a responsabilidade de governos e empresas: “A consciência da população não é o suficiente. Preferir o papel reciclado ao de celulose é difícil, quando o preço do reciclado é o dobro do valor do papel branco. Como se interessar por separar os resíduos, se o caminhão de lixo junta tudo?”, questiona a professora. A parceria público privada (PPP) do lixo, apresentada pelo governo do DF, pretende tirar o catador da rua, deixando-o responsável apenas pela separação do lixo, nas cooperativas. A proposta é uma “aberração”, segundo Valéria Gentil-Nugent. A empresa teria concessão por 35 anos, por um valor alarmante estimado em R$ 11,7 bilhões. A professora argumenta: “Tirar o catador da rua seria ótimo, mas somente se as cooperativas tivessem infraestrutura. E não têm, infelizmente. Não adianta ceder um galpão e abandonar aquelas pessoas”. Os catadores, em audiência pública da PPP em junho, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, manifestaram-se contra a parceria. A reprovação do projeto foi unânime e a pauta foi retirada.

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seGuraNÇa

o C i F Á r T o N s e

r e h L u M

Não é fácil deixar o tráfico. Quando você é mãe, não tem qualquer recurso e descobre como conseguir, o crime vira um vício”, confessa Luciene Batista, 43 anos, presa há dois anos e seis meses por tráfico de cocaína na Penitenciária Feminina do DF (PFDF), conhecida como Colmeia. Ela faz parte de uma estatística. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, revelam um crescimento de quase sete vezes na população carcerária feminina do Brasil em dez anos. Elas eram 5.601 em 2001 e passaram a ser 34.807 em 2011. Também chama atenção que 85% das mulheres encarceradas no país cumpram pena por crimes relacionados ao tráfico de drogas, enquanto esse é apenas o terceiro grupo de delitos que mais prende os homens. Mas o que leva tantas mulheres para o tráfico de drogas? É o que pretende responder a pesquisa de Luciana Ramos, intitulada Por amor ou pela dor? Um olhar feminista sobre o encarceramento de mulheres por tráfico de drogas, dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília ano passado. A área já era de interesse de Luciana, que hoje é professora universitária em Manaus, além de advogada de movimentos sociais. “Trabalhei com sistema carcerário desde a minha graduação”, afirma. Ela foi estagiária da Defensoria Pública na Bahia e quando veio para Brasília foi convidada por um amigo para trabalhar num Grupo de Trabalho Interministerial sobre encarceramento de mulheres, feito em 2008 após a repercussão do episódio em que uma moça dividia cela com homens numa delegacia no Pará. Luciana participou do estudo por meio do Grupo Candango de Criminologia, coordenado pela doutora Ela Wiecko Volkmer de Castilho, que a orientou na dissertação. Assim, descobriu que o Distrito Federal é a unidade fede-

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Num mercado de trabalho em que ganham menos que homens, elas veem no crime uma alternativa Reportagem ingridy Peixoto | isabella Calzolari

rativa onde mais se prende mulheres por tráfico de drogas no Brasil. Hoje, a PFDF tem 580 mulheres encarceradas, sendo 430 presas por tráfico, segundo o gerente de administração penitenciária, Juvenal Alves de Lima. Luciana então procurou saber como as detentas da Colmeia condenadas por esse crime foram parar lá. Seria “por amor ou pela dor?”. O nome do trabalho faz alusão a algo que incomodava a pesquisadora. “Quando eu falava que ia trabalhar com mulheres encarceradas, diziam ‘coitadas, levaram drogas para os maridos no presídio’”, conta. “Eu sou feminista e me perguntava ‘será que a mulher está sempre nesse lugar secundarizado? Ela nunca pode fazer as coisas por ela mesma?’”

eMPoderaMeNTo

Foram dois meses de visitas diárias à penitenciária, além da análise dos prontuários das detentas e finalmente ela tinha material para contestar essa ideia. Muitas detentas contaram que cometeram o crime por dinheiro. Elas relataram que nem conheciam o homem para quem levavam as drogas quando foram presas. “A entrada delas havia sido facilitada por uma intermediária que arrumava os papéis para que elas entrassem na lista das visitas íntimas”, explica a pesquisadora. Luciana observou que o tráfico empoderava essas mulheres de baixa renda, que podiam conciliar o crime com as tarefas domésticas. Para a orientadora Ela Wiecko Volkmer de Castilho, esse contato era fundamental. “Tradicionalmente no Direito a pesquisa é pesada, bibliográfica e teórica. Mas no grupo que lidero fazemos muita pesquisa empírica”, comenta Ela. “É preciso colocar a mão na massa, ver os prontuários e falar com as pessoas.” De acordo com a dissertação, o crescente envolvimento das mulheres com o tráfico pode ser explicado também


Foto: Johnatan Reis

disCriMiNaÇÃo

Com um olhar feminista, Luciana levanta diversos aspectos que se repetem nas histórias daquelas mulheres presas na Colmeia. Elas ganham menos no mercado de trabalho.

Então veem no tráfico uma possibilidade de aumentar a renda. Ao entrar para o crime, vão para posições mais vulneráveis à abordagem policial. Na maioria das vezes, fazem o transporte de drogas, seja para dentro do presídio ou para bocas, por exemplo. Assim, precisam entender pouco do esquema operacional do crime e, quando são presas, quase nada têm a delatar e não conseguem uma pena menor. “Elas estão servindo de boi de piranha para o tráfico”, explica a pesquisadora. Uma vez dentro do presídio, elas são castigadas mais de uma vez. “As formas de punição para a mulher que delinque não é só a pena. É a forma como são tratadas, a ausência de políticas, a visão da sociedade”, afirma Luciana. De acordo com as observações da pesquisadora, a Defensoria Pública dá prioridade aos homens, por serem mais numerosos. Elas não têm tantas oficinas profissionalizantes dentro do presídio quanto os homens, as detentas não podem prestar depoimentos por conferência e podem esperar meses por uma escolta para levá-las ao fórum, atrasando a execução penal. Apesar de não ter proposto políticas públicas para resolver as questões levantadas na pesquisa, Luciana vem apresentando as descobertas que fez em seminários, além de ter compartilhado a pesquisa com o Departamento Penitenciário Nacional. É mais uma tentativa de “deixar visível o que os muros da prisão tentam esconder”, desabafa a pesquisadora.

Johnatan Reis

pela oportunidade que o crime oferece a elas de ter uma renda maior em meio a um mercado de trabalho que desvaloriza mulheres, especialmente as que são pobres. “O crime se torna um caminho mais curto para manter a vida lá fora. O dinheiro é maior e mais rápido”, confirma Luciene Batista, mãe de seis filhos. Na Colmeia, Luciana também encontrou mulheres que foram presas ao tentar ajudar maridos ou familiares levando drogas para dentro da Papuda, o complexo presidiário masculino do DF. É o caso de Marta Regiane dos Santos, 37 anos, presa há um ano e três meses. Desempregada, ela cometeu crime por amor ao irmão. Ela receberia R$ 500, que seriam usados para ajudá-lo. Mãe de dois filhos e divorciada, Marta perdeu o emprego quando o então namorado a agrediu durante o expediente num mercado no Gama, onde era operadora de caixa. “Meu irmão estava preso e cheio de dívidas lá dentro”, afirma a detenta. “Conheci uma mulher durante a visita, que me incentivou a cometer o crime.” Ela diz nunca ter usado drogas. “Agi por impulso, por necessidade, nunca tinha feito isso na minha vida. Fui detida na primeira tentativa. Tremia muito na revista e a agente desconfiou.”

eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Luciana de Souza Ramos, 33 anos, concluiu em 2005 graduação em direito na Universidade Católica de Salvador. É pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia e tem mestrado no Programa de PósGraduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Título da tese: Por amor ou pela dor? Um olhar feminista sobre o encarceramento de mulheres por tráfico de drogas onde foi defendida: PósGraduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. quem orientou: Ela Wiecko Volkmer de Castilho

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o que eu Cri ei Para voCÊ

Na dose CerTa

Criado por aluno da UnB, dispositivo faz cálculo de quanta insulina diabético deve aplicar antes de refeição

A

Reportagem Lara silvério Ilustração Lucas Pacífico

eu FaÇo CiÊNCia

quem é o pesquisador: Fernando Campos Schelb. 26 anos. Graduou-se bacharel em ciência da computação no segundo semestre de 2012, pelo Departamento de Ciência da Computação. Título do projeto: DiaB - Aplicação para Auxilio no Tratamento da Diabetes Tipo 1

quem orientou: Maristela Terto de Holanda

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rotina de um diabético é complicada e necessita de tratamento especial para que a doença não traga prejuízos significativos para a saúde. Aplicação de insulina, dieta rígida, avaliações constantes de glicemia: viver com diabetes não é tarefa das mais fáceis. Pensando nisso, Fernando Schelb, desenvolveu um projeto de graduação, no Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB): um aplicativo de celular que auxilia no controle glicêmico a fim de facilitar a vida do portador de diabetes tipo um. O número de adultos com diabetes em todo o mundo mais que dobrou desde 1980, passando de 153 milhões, em 1980, para quase 350 milhões de pessoas, em 2008, de acordo com estudo divulgado na publicação científica Lancet. O levantamento foi feito a partir de dados de mais de 300 países. A doença causa no pâncreas insuficiência na produção de insulina, hormônio responsável pela redução da taxa de açúcar no sangue. Ela é como uma chave que abre as fechaduras das células do corpo para que a glicose entre e seja usada para gerar energia. Se a glicose não consegue entrar nas células, acumula-se na corrente sanguínea. Hiperglicemia causa complicações em longo prazo, como alterações irreversíveis nos nervos, propensão a problemas oculares, renais, pressão alta, ataques cardíacos e amputação de membros. A constante aplicação de insulina, nos momentos de jejum e antes de cada refeição, é necessária. Há risco de morte se as doses do hormônio não forem dadas corretamente. “O cálculo da quantidade de insulina é até fácil, você faz à caneta, no papel. O problema é fazer isso todo dia, toda hora. Chega um momento em que você se cansa”, conta Schelb. O DiaB é um aplicativo para dispositivos Android que calcula o número de unidades de insulina que o diabético deve tomar antes de cada refeição. “A ferramenta foi elaborada a partir de cálculos pré-existentes de controle glicêmico e dados anteriormente definidos e testados, mas ainda precisa de supervisão e aval de um médico endocrinologista”, explica o jovem. Dessa forma, doses corretas de insulina são injetadas e as taxas glicêmicas se mantêm regulares, auxiliando também o profissional de saúde responsável por acompanhar o paciente. O projeto é um protótipo, ou seja, ainda está sendo desenvolvido e testado. “O aplicativo está parado por enquanto, mas já pedi para minha orientadora, Maristela de Holanda, encontrar uma equipe na UnB para me ajudar a aprimorá-lo. Seriam necessários alunos de desenho industrial, para trabalhar no design do aplicativo, e de computação.” Algumas funcionalidades, como o banco de dados dos alimentos, precisam ser aprimoradas. A ferramenta é exclusiva para uso em plataforma móvel, como tablets e smartphones, e atualmente é compatível apenas com o Android. “Também é possível expandi-lo para outros sistemas operacionais”, completa Schelb. Aplicativos cujo objetivo é auxiliar no tratamento e na prevenção de doenças são chamadas de healthcare softwares, ou seja, programas de cuidados com a saúde. Esse tipo de aplicação encontra cada vez mais espaço no mercado. Há algumas ferramentas para Android que auxiliam o diabético. Porém, nenhuma faz cálculos de doses de insulina, nem une em um só sistema a maioria das necessidades do usuário, como a de fazer um diário do diabético, contendo relatório em que as taxas glicêmicas são organizadas de acordo com as refeições ao longo do dia, por exemplo. “Eu queria que o aplicativo fosse útil a quem precisasse. Não tenho interesse em vendê-lo, nem patenteá-lo. Posso até me arrepender disso no futuro”, brinca o jovem.


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eu FaÇo CiÊNCia

quem é a pesquisadora: Leides Barroso Azevedo Moura, Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília, é a professora regente da disciplina Violências e saúde, que é ofertada desde o segundo semestre de 2012 pelo Departamento de Enfermagem, da Faculdade de Ciências da Saúde (FS) da Universidade de Brasília. Está envolvida em projetos como o mapeamento da rede de proteção da criança, adolescente e jovens e também com populações indígenas e seu acesso ao ensino superior.

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TeMÁTiCa da vioLÊNCia É

aLvo de esTudo Disciplina da Faculdade de Saúde procura encontrar mecanismos preventivos para evitar diferentes de tipos de agressão

C

Reportagem douglas Lemos

Ilustração Túlio César Mendes

om o objetivo de desenvolver competências teóricas e políticas em relação à temática das violências e estabelecimento de relações entre violência, saúde e desenvolvimento, desde o segundo semestre do ano passado o Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), oferta a disciplina violências e saúde. A matéria busca identificar as implicações da violência como um problema de saúde numa perspectiva ecológica: pessoa, família, comunidade e sociedade, em interface com ambiente e território. A disciplina é a primeira ofertada na UnB, na modalidade optativa, que trata especificamente da problemática e da preparação dos profissionais do cuidado para o enfrentamento de violências de diversas naturezas e tipos. A matéria conceitua e delimita três conceitos importantes na contemporaneidade: desenvolvimento, discutido a partir de indicadores de qualidade de vida da população, exercício democrático da cidadania ativa e expansão das liberdades essenciais; saúde, como direito fundamental de proteção e garantia da vida digna e violências, caracterizada nas relações intersubjetivas e sociais como processos históricos marcados pela violação de direitos humanos, opressão, medo e terror. Quando questionada, Leides Barroso, professora do Departamento de Enfermagem da UnB que também é Doutora em Ciências da Saúde, explica que basta treinamento ou autoinstrução para ouvir, ver, ler e perceber as múltiplas dimensões das manifestações da violência no cotidiano. “Todos nós testemunhamos, praticamos ou somos vítimas de alguma violência em suas diversas naturezas: física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, institucional, assédios e tantas outras quanto formos nomeando com o avanço civilizatório e nossa expansão da capacidade de reconhecê-las”, explica. Com enfoque na aprendizagem por meio de observação dinâmica, processual e contínua, o estudo aborda a criminalidade, segurança, a exploração sexual e comercial de mulheres, crianças e adolescentes. As violências nos ciclos da vida (infância, adolescência, juventude, adulto e idoso) também são temas de discussão, bem como as repercussões das violências na saúde individual e comunitária. Além disso, procura-se sensibilizar os alunos para as polí-

ticas públicas de enfrentamento à violência, as condutas e responsabilidade dos profissionais de saúde para intervir em situações de violência, a importância da atuação em rede, a promoção e defesa dos Direitos Humanos, dentre outros assuntos pertinentes. Aos alunos da disciplina, a base do ensino quanto à violência foi obtida em livros recomendados para a matéria, vídeos, filmes e entrevistas com profissionais que atuam em centros de atendimento às pessoas vítimas de violência.

ParTe PrÁTiCa

A abordagem didático-pedagógica da disciplina utiliza uma metodologia que envolve dinâmicas com interação que permitem o compartilhamento de ideias e a busca ativa de informações baseadas em evidências. “São aulas dialogadas com atividades como estudos de caso, rodas de conversa do autocuidado apoiado, varal da violência e cineclubes. Ou seja: ferramentas pedagógicas que incluem exercícios baseados em situações”, explica. Há ainda uma mostra fotográfica produzida pelos alunos a partir de suas conclusões sobre a grandeza e intensidade das violências estudadas. A exposição foi destinada para o público do Paranoá e do Itapoã. “As imagens são poderosas ferramentas na construção teórica de novos olhares sobre as violências e suas múltiplas abordagens”, acrescenta Leides. A mostra foi apresentada em dois locais específicos: em uma escola do Itapoã, região da periferia, para pré-adolescentes e na inauguração de uma brinquedoteca do Hospital Regional do Paranoá para profissionais da rede de cuidado da localidade. Realizada para cerca de 600 alunos da rede pública, a mostra caracteriza-se pela oportunidade de aplicação dos conhecimentos adquiridos em uma comunidade marcada pela inserção em programas governamentais, que visam a promoção dos direitos humanos e prevenção de violências contra criança e adolescente. Leides acredita que a inserção da problemática na academia é importante para sensibilizar os alunos para as diversas modalidades de violência. “Os impactos gerados e a interseccionalidade dela com as desigualdades sociais e os territórios de vulnerabilidade socioambiental geram cenários que desafiam os novos gestores a monitorar e avaliar as políticas públicas destinadas ao enfrentamento de situações complexas que requerem cada vez mais profissionais capacitados nas dimensões interdisciplinares dos processos que ameaçam a matriz civilizatória e conspiram a favor da barbárie”, finaliza.

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FroNTeiras da asTroNoMia

MarGeNs do uNiverso

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Texto Paulo renato souza Cunha Ilustração Túlio César Mendes

astrofísico norte-americano Neil deGrasse Tyson, diretor do Planetário Hayden em Nova York, costuma dizer que poucos episódios na vida são mais emocionantes do que mirar o próprio telescópio para o céu e observar mundos longínquos pela primeira vez. Trata-se de uma tarefa engrandecedora, um momento de afirmação: lá está Vênus, muito parecido com a Terra, encoberto por mantas de nuvens alaranjadas; lá está a nossa Lua — musa de poetas como Coleridge, Lawrence e Shelley —, uma bola de rocha fria, cinzenta, sem vida, vazia; lá estão os anéis de Saturno, o olho tempestuoso de Júpiter, as estrelas, o infinito. Sabe-se que desde o início da civilização o ser humano procura entender a dinâmica dos movimentos celestiais — vale lembrar que a astronomia é considerada a mais antiga das ciências. Construídos por volta de 2 mil a.C., Stonehenge na Inglaterra e as pirâmides do Egito são exemplos de estruturas baseadas no conhecimento do céu. Todavia, foi somente na segunda metade do século 18 que a astrofísica pôde dar passos significativos rumo a uma jornada que nos apresentaria remotos rincões do universo. À medida que a ciência se desvencilhava das doutrinas religiosas e os avanços tecnológicos passaram a permitir que astrônomos realizassem medições com maior precisão, as propriedades detalhadas de outros astros além do nosso Sol puderam ser avaliadas. Tais progressos mostraram-se também de suma importância para instigar discussões a respeito de qual o verdadeiro papel dos terráqueos no cosmo. À primeira vista, a Terra parece ser um lugar bem grande — “o centro de tudo”, como já se acreditou. É o maior dos quatro planetas rochosos (seguida por Vênus, Marte e Mercúrio) com extensos oceanos e diâmetro de 12.756km. Agora, compare a rocha aquática com Júpiter, por exemplo. O gigante de gás, que possui massa 2,5 vezes maior do que todos (sim, todos) os outros planetas do nosso sistema combinados, orbita o Sol com imponentes 142.984km de diâmetro. Qualquer habitante terrestre poderia se sentir deveras inferiorizado perto dessas cifras. Entretanto, não se iluda, porque até o esplendor de Júpiter é apenas um, digamos, fio de cabelo diante do vasto universo. Cientistas gostam de brincar que o espaço não se chama espaço à toa. O cosmo é muito, mas muito grande mesmo. Há inúmeras galáxias, cada galáxia com bilhões de estrelas e cada estrela com incontáveis planetas. E as distâncias entre esses objetos são de fato... astronômicas. Mas volte para a nossa vizinhança. Todas as estrelas que você pode observar a olho nu são na verdade habitantes de uma única galáxia: a Via Láctea. Fica fácil entender os porquês de vários astrofísicos se questionarem a respeito de estarmos ou não sozinhos neste universo abissal. Para deixar tudo ainda mais interessante, esse mesmo universo — cheio de distâncias, possibilidades e espaços vazios — está em expansão. Aqueles que assistiram à série Cosmos e acompanharam o empenho acadêmico de Carl Sagan devem se lembrar da frase com a qual o ex-professor de astronomia e ciências espaciais da Cornell University descreveu a Terra: “Pálido ponto azul”. Muitos chegaram a acusá-lo de diminuir a importância da própria moradia. Porém, ao ler as dezenas de artigos e livros que Sagan publicou, percebe-se que ele queria apenas fazer com que a humanidade refletisse a respeito do quão pequenino é o nosso lar em um universo espantosamente enorme, que não passamos de habitantes temporários nesta esfera rochosa — o único mundo em que se sabe haver vida, mas que um dia também chegará ao fim.

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Arquitetura da

violência

A

vista é de tirar fôlego e a localização é privilegiada. A região fica bem acima do lago e está próxima aos bairros ricos do Distrito Federal. No entanto, diferentemente dos vizinhos Lago Sul e Lago Norte, o Paranoá não é lugar de mansões. O bairro surgiu do acampamento de operários que vieram construir a barragem do Lago Paranoá e se tornou uma das maiores invasões do DF. O assentamento surpreendeu pela capacidade de resistência às tentativas de remoção até ser regularizado, em 1989.

Reportagem Ana Teresa Malta

100ft

500m

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Fotos: Tainá Seixas

 Reguarização do bairro com consequências que afetaram a segurança

O cenário foi palco para o estudo Desenho urbano sob a ótica da segurança: o caso do Paranoá, dissertação de Flávio Rodrigues Ferraz. A análise busca identificar a relação entre organização urbana e a violência, além de propor soluções para o problema. A maneira como o bairro foi regularizado provocou, logo no início, consequências que afetariam a segurança. O assentamento precisou ser deslocado do lugar original por estar excessivamente próximo ao lago, o que para o poder público implicava tanto em problemas ambientais quanto estéticos. A presença de moradores de baixa renda e as residências precárias eram tidas como inadequadas ao importante cartão postal de Brasília. O deslocamento não considerou a disposição anterior das moradias. Os vizinhos foram dis-

tanciados, reduzindo o senso de comunidade. "Os governantes não respeitaram a vizinhança, não tiveram critério nenhum e quebraram laços afetivos da população. É o que podemos chamar de violência simbólica do Estado", explica Ferraz. O comerciante Edivaldo de Sousa chegou ao Paranoá ainda em 1984 e lembra que na época da invasão era mais seguro. “Tinha menos gente e todo mundo se conhecia." Sousa abriu um mercado na região e conta que, em um período de cerca de 20 anos, teve o estabelecimento assaltado mais de 50 vezes. Outro fator importante para perda na noção de comunidade foi a maneira de loteamento. O pesquisador avalia que os lotes tiveram tamanho reduzido para que fosse possível distribuir um número maior de terras, superior a

quantidade de habitantes. Tal fato culminou na vinda de pessoas que não participaram das lutas pela fixação do assentamento e sem conexão com a história local, mas que representavam novo contingente de eleitores para o governador da época, Joaquim Roriz. "De uma comunidade unida e organizada por fortes laços de amizade, companheirismo e solidariedade, o Paranoá passou a um dos bairros mais violentos do DF", pondera Ferraz, que pensou maneiras de aumentar a integração dos moradores. Uma delas é o alargamento das calçadas de modo a diminuir o tráfego de veículos no interior das quadras e dar prioridade aos pedestres. O pesquisador observou um grande número de pessoas que circulam pelas ruas, mas que não permanecem nelas. "O simples caminhar não ajuda na seguran-

ça. Se a pessoa está indo ao trabalho, não está preocupada com a localidade por onde passa. É preciso que as pessoas se apropriem e fiquem na rua", afirma. A revitalização e a criação de áreas de lazer é outro importante incentivo para que a população ocupe os espaços do bairro. Quadras poliesportivas e hortas comunitárias são alguns dos exemplos de recursos sugeridos para melhorar os ambientes, como o Parque Vivencial — reserva ambiental criada no espaço onde o assentamento era localizado originalmente. Dentre as áreas mais problemáticas e que precisam ter a utilidade modificada está a mata de pinheiros: localizada próxima ao Paranoá, ela representa uma das principais rotas de fuga para os criminosos. A população é tão importante quanto qualquer outro elemen-

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Área total: 853,30Km2, sendo 2,84Km2 de área urbana População: 63.000 habitantes Renda per capita: 1,2 salários mínimos IDH: 0,785 - 15o lugar no DF Faixa etária: 45,1% entre os 15 e 29 anos Razão Sexo: 88 homens para cada 100 mulheres

A ênfase no fornecimento de serviços públicos de qualidade, como escolas e transporte, são mecanismos que podem ser utilizados para melhorar a qualidade de vida da população e reduzir a violência. A cidade de Medellín foi visitada pelo pesquisador e é um dos exemplos de intervenções de caráter mais sociológico. A metrópole colombiana sofreu bastante com o tráfico de drogas, em especial na década de 80, e as alterações que empreendeu serviram de inspiração para os processos de pacificação das favelas no Rio de Janeiro. Enquanto Hartford focou em modificações no traçado urbano, Medellín buscou alterações de cunho mais social, com a instalação de serviços à população como energia, sistema de esgoto, postos policiais, uma grande biblioteca e um teleférico. A principal diferença entre as cidades

estrangeiras analisadas está no modo de entender a origem da criminalidade. Para a primeira, trata-se principalmente de uma escolha racional do criminoso, que analisa se as condições do ambiente são propícias e pondera as chances de sucesso na empreitada. Para a segunda, a criminalidade se acentua em lugares pobres e carentes de serviços básicos, situação que possibilita o crime organizado substituir o Estado. As medidas de ambas as cidades são vistas como complementares. O Paranoá necessita tanto de alterações sociais quanto urbanísticas, que incluem alargamento das vias para facilitar o deslocamento das forças policiais, fornecimento de iluminação e vegetação adequadas e a redução do uso de muros — em especial nas escolas.

Fonte: Codeplan

to de segurança e a tentativa de limitar a presença nos espaços públicos pode ser desastrosa. Ferraz viajou para Hartford, Connecticut, cidade dos Estados Unidos que passou por diversas alterações no traçado urbanístico, principalmente com o bloqueio de vias e passagens. O objetivo era diminuir a circulação de não moradores. O resultado, no entanto, foi uma redução de veículos e pedestres de modo geral. A criminalidade, após uma breve redução, voltou a aumentar e as ruas, "sem vida, sem movimento, criaram um campo fértil para a ação de meliantes", além de provocar a sensação de insegurança. A oferta de empregos é outro fator que contribui para o estabelecimento das pessoas. Heleno Soares mora no Paranoá, mas passa o dia e parte da noite na Asa Sul, onde trabalha como técnico odontológico. Conta que já tentou trabalhar na região, mas os salários são baixos. "Não dá para trabalhar aqui e conseguir pagar o aluguel. Eu precisei procurar emprego fora", conta. Para modificar a condição de dormitório, Ferraz vê a necessidade de criar zonas dedicadas à atividade empresarial, como um pólo de microempresas ou de comércio varejista, responsáveis por demandar mão-de-obra. Outras iniciativas complementares seriam a oferta de escolas profissionalizantes e a criação de cooperativas de empregos, por exemplo para trabalhadores de construção civil e faxineiras que atendem às áreas dos Lagos Norte e Sul. Uma das intenções é a de que os novos empregos gerem mais perspectivas aos jovens, muitos envolvidos com tráfico de drogas e conflitos de gangues juvenis. A situação faz com que as quadras com escolas estejam dentre as mais violentas, liderando ocorrência de homicídios e tentativas.

Os muros são atribuídos a uma falsa garantia de segurança. O fechamento total ao exterior permite proteger o criminoso uma vez que ele invade uma residência e impede a visualização de um pedido de socorro. A vigilância que a população e a polícia podem realizar num ambiente de transparência se mostra mais valiosa do que o isolamento dos muros. Ferraz considera a questão da visibilidade tão importante que propõe a realocação da delegacia do Paranoá, atualmente escondida por um terminal de ônibus. Apesar da proximidade do órgão de segurança, a quadra em frente ao terminal apresenta altos índices de furtos, que poderiam ser desencorajados com uma presença mais notável da Polícia Civil. O policial Paulo Henrique Merêncio trabalha há 15 anos no Paranoá. Ele acredita que a loca-


Arquivo pessoal

eu FaÇo CiÊNCia

 Competição por espaço: ruas foram construídas sem planejamento urbano

lização da delegacia não provoca grandes consequências e inclusive se trata de um lugar privilegiado, pois considera o terminal de ônibus um bom ponto de referência. Merêncio acredita que um dos principais problemas de segurança é que o efetivo de policiais não aumentou na mesma proporção que a população; por isso, nem sempre conseguem atender a todos os chamados dos habitantes. O aumento populacional como intensificador da violência também foi apontado pela moradora Anísia Pereira, que mora no Paranoá desde 1988. Ela relata que antes tinha menos violência, menos droga, e conseguia ser atendida mais rapidamente no hospital e matricular os filhos em escolas próximas a casa. “Agora, tem a demanda de outros lugares, principalmente do Itapoã. Lá sim é muito vio-

lento, tem até um lugar chamado Rua da Morte", aponta. A Rua da Morte é para onde Luciene Nunes caminha todos os dias. No entanto ela tem mais medo do trajeto que faz para chegar lá do que da rua onde mora, que ganhou fama pela quantidade de homicídios que os moradores contam ter ocorrido no local. Luciene sai todas as noites, cerca de 22h30, da aula da 8ª série da Educação de Jovens e Adultos e faz um trajeto de 25 minutos na volta para casa, entre ruas mal iluminadas e calçadas precárias. Nesse período, não há ônibus para os alunos. Entre os moradores do Paranoá com quem a DARCY conversou, muitos atribuíram a culpa da violência à proximidade com o Itapoã. O bairro mais novo, regularizado em 2005, conta com problemas mais graves de infraestrutura. Carros, pedestres e ciclistas

competem por espaço em ruas estreitas que dão acesso a casas construídas espontaneamente, sem planejamento urbano. As expansões não param de aumentar. À medida que invasões se regularizam e as condições sociais e urbanísticas melhoram, a população mais pobre, ao invés de se beneficiar, não consegue se manter no local com o aumento dos níveis sociais — e, consequentemente, dos preços. Esse processo é conhecido por gentrificação e acontece com frequência em reformas urbanas, como as ocorridas no século 19 em Paris e no Rio de Janeiro. Essas intervenções ampliaram as vias, ao mesmo tempo que deslocaram camadas populares para áreas periféricas. No Rio de Janeiro, a destruição de cortiços durante a reforma foi responsável por estimular a formação das favelas. Ferraz expli-

quem é o pesquisador: Flávio Ferraz atuou como detetive na Polícia Civil de Minas Gerais em 1993 até assumir o cargo de agente de Polícia Federal em 1997. Ele se formou, em 1989, em Técnica em Edificações pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais e em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília em 2008. Desde a elaboração do trabalho final da graduação, optou pela temática do desenho urbano e violência, especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, trabalha na Divisão de Engenharia e Arquitetura da PF em Brasília.

ca que a terra segue o mercado. “A especulação imobiliária estimula a ilegalidade e, quando a área consegue ser legalizada, provoca a expulsão das camadas mais carentes. Para aqueles com menos recursos econômicos é cada vez pior, o transporte fica mais caro pois o emprego continua no Plano Piloto." Para impedir esse processo é necessário dar espaço para que a população participe das discussões de planejamento urbano e, assim, seja integrante das melhorias ao invés de excluída por elas. Uma única área do conhecimento é incapaz de dar conta da complexidade da violência urbana, por isso o estudo traz soluções interdisciplinares. Independentemente da área, sabe-se que não são muros nem armas os principais mecanismos de segurança, e sim o desenvolvimento da própria população.

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F RO N T EIRAS DO P E N SA M E N T O

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o Povo do

PLaNeTa Terra

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Texto Luiz Gonzaga Motta Ilustração Lucas Pacífico

á 50 anos o homem lançou-se no espaço sideral. As primeiras naves aeroespaciais circularam em volta da Terra na década de 60 e pousaram na Lua em 1969. Além de uma grande vitória do progresso tecnológico e da repercussão científica que a exploração espacial obteve posteriormente, há um aspecto subjetivo de relevância para toda a humanidade que é preciso relembrar: pela primeira vez o homem pôde observar a terra desde o espaço. O episódio possibilitou ao homem vislumbrar o todo, o planeta na sua integralidade. A deslumbrante foto do planeta azul foi publicada em jornais e revistas de todo o mundo. Virou pôster, e hoje está dependurada em lares e escritórios por toda parte. A visão integral do planeta modificou a escala de nossa percepção do tempo e espaço. Representa uma incrível conquista para o olhar da humanidade: pela primeira vez, ela pode contemplar, desde fora, a sua própria casa. O sentido espiritual dessa visão vai, portanto, muito além de sua repercussão científica. Isso precisa ser sempre recordado. Acima de qualquer religião ou crença, a foto integral da Terra provocou uma profunda mudança em nossa percepção do planeta porque pudemos vislumbrar o nosso próprio lar. A visão integral da Terra nos fez perceber com clareza que este planeta é, de fato, o lugar que todos habitamos indiferente de cor, raça, classe, crenças. Muito além dos movi-

mentos ambientalistas locais ou mesmo nacionais, a visão total do planeta estimulou um pensamento universalista: somos todos parte de um sistema único. Se essa magnífica e frágil esfera azul é o nosso lar, precisamos cuidar dela com muito carinho. Esse cuidado começa com a consciência de que somos apenas uma pequena parte da vida que aqui pulsa. Somos uma espécie única. Estimulou também a humildade perceber que somos apenas uma entre as tantas espécies que habitam o planeta. Entretanto, uma espécie que pensa e age, e cuja ação terá sobre a frágil terra uma consequência infinitamente maior que as ações de todas as outras espécies reunidas. O que a fascinante foto da esfera azul enfim proporcionou? A oportunidade de compreender que o planeta é só um, único, integral. A partir dessa visão integradora, as fronteiras nacionais perdem o sentido. As disputas políticas tornam-se ainda mais tolas. Elas são artificiais, criações políticas da humanidade, resultado de lutas e disputas inventadas. Não há nacionalidades representadas na foto, não há etnias, não há classes sociais, não há separações na grande esfera solta no espaço: integramos todos o mesmo planeta, somos um só povo a habitá-lo. A visão integral da esfera possibilitou-nos, acima de tudo, adquirir a consciência de que não somos cidadãos de nacionalidades distintas, somos o povo da Terra.

Pesquisador do CNPq, professor titular da Universidade de Brasília (UnB) e professor visitante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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eNsaio

Milton Ribeiro

desLoCaMeNTos Na Cor

C

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Texto Graça ramos Ilustração Túlio César Mendes

onstante e pendular movimento caracteriza a trajetória de Milton Ribeiro (Rio de Janeiro, 1922). Sua arte, que percorreu diferentes expressões artísticas no transcurso do século 20, se mostra dividida entre duas forças quase antagônicas: a representação de caráter expressionista, fortemente emocional e dramática, e a ênfase sobre a forma plástica e sua autonomia, com uma geometria carregada de lirismo. O deslocamento que fez entre linguagens e também a sua passagem pelos tempos o desobrigaram de se vincular formalmente a um movimento ou a modo único de se expressar. Tendo participado ativamente da geração que, na década de 1940, questionou, no Rio de Janeiro, caminhos que tomava a arte de então, ele chegou à contemporaneidade realizando telas res, feitas entre 2008 e 2011. Ribeiro, que começou a produzir no final da década de 1930, construiu uma das mais longevas — e também pouco conhecidas — trajetórias da arte brasileira, transitando entre a pintura, o desenho, a escultura e a gravura, mas se dedicando prioritariamente à primeira. Muitas de suas primeiras pinturas apontam para um diálogo com Cândido Portinari (1903-1962), o mais reconhecido pintor brasileiro daquele período. Reflexo de uma época em que a arte brasileira estava muito vinculada ao social, em inúmeras telas, como Meninas esmolando e Carregando água (ambas de 1944), se torna flagrante a preocupação em retratar perfis humanos do país, expondo também a atração pelo viés expressionista. Ex-aluno de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) no ateliê coletivo apelidado A nova flor do abacate2, Ribeiro ganhou seu primeiro prêmio, no Salão de Arte Moderna de 1943, com o retrato da avó negra. Nesse mesmo ano, a questão da negritude voltaria a dominar seus pincéis com o lírico Retrato da Teresa. Em ambos, a veia expressiva atém-se ao natural, é nos detalhes (a gola levantada da roupa da ancestral, a so-

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brancelha armada da garota) que o artista dota as personagens com a aura da altivez. O aprendizado com Guignard reforçou caminho que já se esboçava e se tornou importante em seu percurso: o de pintor de paisagem. A partir daí, se verifica também um reforço na preocupação com o uso da cor e com o desenho, algo muito trabalhado nas aulas. Da elaboração de retratos à paisagem, das naturezas mortas aos exercícios com modelo vivo, comparecem aspectos que marcarão sua trajetória. Entre eles: o imenso apego às imagens do entorno que o envolve, a pincelada cada vez mais densa e o desmembrar de tonalidades com pequenos toques de matiz diverso do dominante, o que cria um campo de vibração para a cor. Após observar grande parte da produção de Milton Ribeiro3, atrevo-me a dizer que o apego a questões inerentes à história da pintura do Renascimento até o Modernismo assume protagonismo em sua trajetória3. Refiro-me tanto a problemas formais, como também a sua posição no circuito das artes. No que é inerente à pintura, parte expressiva de suas telas procura impor o sentido do virtuoso, a belle facture. Mesmo quando recorre aos exageros característicos da técnica expressionista e se deixa guiar por certa espontaneidade, sua arte tende a se preocupar com preceitos clássicos. Essa gramática da manufatura se acentua nos inúmeros autorretratos que fará ao longo de sua carreira. E talvez tenha sido a reverência à tradição o inibidor do fortalecimento do abstracionismo lírico em sua trajetória.4

Este texto é um extrato de artigo com o mesmo título, a ser publicado em livro sobre o artista.

2 Fizeram parte do ateliê os artistas Iberê Camargo, Geza Heller, Elisa Byington, Alcides da Rocha Miranda, Maria Campello, Verner Archer e Vera Mindlin.

3 Baseio-me em visitas ao ateliê do artista, que guarda grande número de obras, e também no estudo do primeiro esboço para um futuro catalogue raisoné organizado pela família. 4 Agradeço ao pintor e professor do Departamento de Artes Visuais da UnB, Elder Rocha Filho, a conversa sobre o tema do pertencimento de Ribeiro à tradição da pintura.

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periência coletiva, no ateliê de André Lothe (1885-1962), na Paris dos anos 1950, enquanto se especializava em artes gráficas. As duas técnicas refletiram-se em seu trabalho, pois se impregnou da linguagem cubista e, ao se tornar conhecedor do universo editorial5, a ideia da composição por blocos influenciará muito sua produção posterior. O repertório da linguagem cubista, que no início do século 20 desconstruiu a ideia da arte como imitação da natureza, conquistará Ribeiro aos poucos e, convém lembrar, tardiamente, porém de maneira intensa. Assim revelam as naturezas mortas feitas ainda no ateliê parisiense. Mas, em

especial, destaco aquela titulada Natureza morta – camélias, realizada mais tarde, em 1954, toda em preto e branco6. Se o vaso de flores permanece fiel à figura, apenas cortado por linhas, é no tratamento dado ao fundo da pintura que se revela a estratégia dos planos geométricos que podem ser recompostos de acordo com diferentes e simultâneos pontos de vista. Quando Ribeiro regressa ao Brasil, sua pintura ainda está muito apegada aos conceitos cubistas, embora aqui e ali produza quadros com técnica expressionista, origem então tímida de seu movimento pendular. Seu retorno se dá em época especialmente

 Milton e Guignard: os anos de aprendizado para o trabalho coletivo

 Camélias: múltiplos planos formados a partir de uma tela em preto e branco

5 Fui aluna de Ribeiro, na disciplina Técnicas de Editoração, na UnB, nos anos 1980, devendo a ele muito do conhecimento sobre edição.

6 A tela foi pintada durante protesto dos artistas, liderado pelo pintor Iberê Camargo, em face das dificuldades de se importar tinta, devido ao preço dos impostos, durante o governo de Getúlio Vargas

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Milton Ribeiro

Quanto ao relacionamento com o circuito artístico, tudo leva a crer que Ribeiro, a exemplo de muitos no passado, evitou a ideia de estimular um nicho para a sua produção. A partir da mudança definitiva para Brasília, ele realizou raras exposições, não estreitou vínculos com marchantes, curadores e críticos. Parece que lhe bastava produzir em seu ateliê, em diálogo com a sua mulher, também pintora e aquarelista, Beatriz Ribeiro (Rio de Janeiro — 1919), que tinha o direito de escolher um quadro de cada série que pintava, formando coleção de 250 obras, doadas em 2012 à UnB. Antes desse recolhimento, contudo, ele vivenciou outra ex-


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Milton Ribeiro

atesta a série de telas tituladas Hermetismo, seguidas de respectiva numeração. Elas foram realizadas em 1959, ano da eclosão do Manifesto Neoconcreto, que sistematizou um rol de críticas à arte ancorada no geometrismo puro e preconizou a recuperação da dimensão subjetiva no fazer artístico, impactando a produção artística do país nos anos futuros. As

pinturas que realizou nessa fase se voltam para a autonomia da forma, sendo que naquelas em que a paleta de cores cresce há imenso apelo ao sensível proporcionado pelos contrastes entre as cores e a superposição de círculos, quadrados e retângulos. Após as experiências ancoradas na geometria, o pintor volta-se para a abstração lírica, no pe-

 Favelas: O padrão geométrico, marca das telas da série que dialoga com o concretismo

Construção: lirismo como contraponto para o excesso de rigor

Milton Ribeiro

significante para a arte brasileira. Quando se iniciam os embates artísticos que desembocaram no Concretismo, momento em que parte da produção nacional se orienta para linguagem referenciada no uso das formas geométricas, baseando-se nos elementos essenciais da pintura — a cor e a forma da superfície. Quatro quadros de nome Favela, datados de 1955, demonstram o quanto se deixou contaminar por essa linguagem. Neles, o amontoado organizado de casas segue o padrão geométrico, com a tela ocupada por quadrados e triângulos em forma de habitações populares. A inclusão de um trajeto sinuoso dividindo a tela, como se um rio passasse por entre as casas, indica que buscava encontrar modo de se expressar sem o excessivo rigor formal exigido pela arte concreta. Ao insistir nesse percurso, elaborou, em 1956, duas telas, uma denominada Construção e, a outra, O pequeno arquiteto —, que deram início à experiência mais radical e talvez a que mais tenha ficado identificada ao artista. Dois anos depois, apresentou ao público os primeiros quadros de O pequeno arquiteto. Com essa série, Ribeiro começou a resolver o conflito entre expressão/construção em uma mesma tela. Se em todas as pinturas que levam esse título, o ânimo construtivo, volto a insistir, influenciado pela sua expertise em tipografia define o modo de compor, a expressão ganha em lirismo, adquirindo características lúdicas, crescendo em implicações sentimentais. No período, ele experimentou com afinco se dedicar à expressão puramente geométrica, como

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Beatriz Ribeiro

Milton por Beatriz: retratado pela companheira de toda a vida

ríodo compreendido entre 1960/1962, quando cria telas como Onda (1960) e Azebre (1962). Sugestivamente, nomeará algumas dessas obras apenas com o nome Pintura, como se necessitasse do léxico para legitimar esse tipo de pintura como arte. Depois, as telas com a linguagem que valoriza o uso intuitivo da cor se tornaram mais raras. Como no pintor o movimento pendular é força que o orienta, após se dedicar com intensidade aos jogos de O pequeno arquiteto, depois de 1962, sua arte retorna aos domínios da representação e aos gêneros tradicionais da pintura, com ênfase para a paisagem e retratos de caráter expressionista, vinculados ao tema da miséria (Miseráveis retirantes, s/d) e da prostituição (Olhando e Mulher da vida, ambas de 1966). A vinda, em meados dos 1960, de Ribeiro para Brasília, a cidade instalada no Planalto de cores intensas, impactará sua produção de duas maneiras. Ambas relacionadas à construção de paisagens, esse gênero que teima em desadesafiar artistas. No primeiro caso, vendo a cidade em construção, ele decide retratar tanto o monumental como o que mais tarde seria descartado. São inúmeras as telas em que Brasília é o foco. Grande parte dessas pinturas pode ser olhada como registro, quase imediato, de um instante. O documental ganha em potência, como se observa em Parada de ônibus, W3 Norte (1967) e Hotel Londres — Marcenaria Rabelo (1969), formando importante coleção para estudos sobre as paisagens inaugurais da cidade, segundo Moreira Alves7. Em outras telas, o artista, como um fotógrafo a captar com rapidez cena alterada pela passagem do tempo, chega a pintar inúmeras vezes o mesmo cenário. São muitas as séries em que isso pode ser observado, caso das inúmeras vistas, algumas panorâmicas, do Plano Piloto, como a concluída no início da década de 1980, composta de 15 imagens. A mais dramática é aquela realizada entre 1976 e 1977, em que retrata o cerrado consumido em fogo, denominada Península Norte (1977), exposta no 11º Festival Internacional da Pintura, realizado na França em 1979. Ribeiro valeu-se da saturação cromática de vermelhos, laranjas, amarelos para criar uma atmosfera de planos

horizontais, que subvertem a lógica vertical das labaredas. O outro efeito da paisagem do cerrado é mais sutil. Na época, morando em apartamento de pequenas dimensões na Asa Norte, tinha pouco espaço para instalar o arsenal de pintura. Criava em cima de prancheta e, com o uso de réguas, retornou ao Pequeno arquiteto. Aos poucos, o fundo das telas foi ganhando colorações diferenciadas, intensas, como só os céus de Brasília sabem ser. E, aos blocos que formavam os primeiros quadros baseados no jogo infantil, começaram a ser agregadas formas verticais, quase cilíndricas, com uma pintura reticulada — hoje feita rapidamente em computadores, mas de elaborada construção para um pintor, resultando em cenários de forte poder evocativo. Exemplo são os óleos O pequeno arquiteto número 05 (1969), exibida ao público durante o 19º Salão Nacional de Arte Moderna, em 1980, O pequeno arquiteto número 07 (1969) e O pequeno arquiteto número 08 (1969). Essas pinturas demonstram que, à sua maneira, Ribeiro continuava a lidar com os impasses de seu movimento pendular, mas convergindo com mais intensidade em uma mesma tela a radicalidade da forma e a força telúrica da expressão. Talvez seja o óleo O pequeno arquiteto número 03 (1970) que resuma toda essa configuração e se torne metáfora para designar os efeitos provocados no artista pelo meio ambiente brasiliense, que expõe mil tons de azuis e variadas graduações para os vermelhos sanguíneos, associado à arquitetura de “cubos modulados de montar cidades”8 disposta em amplos e vazios espaços. A tela tem o fundo em tons de azul e formas mais cilíndricas, quase fálicas, em laranja e amarelo, que flutuam em blocos pelo espaço. A disposição espacial em contraste com os tons do fundo cria atmosfera de sonho em paisagem imaginária. Lembrança remota da cidade modular plantada em meio ao nada. Ribeiro, no entan-

to, retornou ao jogo do pequeno arquiteto em suas formas tradicionais, aqui e ali incluindo árvores do cerrado, balões, circos, relógios, as iniciais de seu nome e de Beatriz, regressando à linguagem mais representacional. Até que, no começo dos anos 1990, período que coinci-

7 ALVES, Lara Moreira. “A construção de Brasília: uma contradição entre utopia e realidade”. In: Revista de História da Arte e Arquitetura. Campinas: Programa de Pós-Graduação do Departamento de História, 2005, pp.123-132. 8 MADEIRA, Angélica. “A itinerância dos artistas – a construção do campo das artes visuais em Brasília (1958-1967)” in Tempo Social – Revista de Sociologia. São Paulo: USP, outubro de 2002, p. 189.

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Milton Ribeiro

Com a explosão violenta de cores e formas, parecia ter se despedido do jogo tão vital à sua arte. Um ano depois, no entanto, mais calmos, estruturados sobre fundo geometricamente desenhado, os blocos voltaram. Alguns dispostos quase como caligramas, outros lembrando ramalhetes (O pequeno arquiteto, do número 05 ao 18, 1992). E o jogo finalmente se encerrou.

A década, no entanto, se encerraria com novidades quanto ao tema da religiosidade, antes muito vinculada a temas cristãos: ele se dedicou a criar série de imagens referenciadas nos cultos afros, como Yemanjá (1996), Candomblé (1998), Xangô (1996), Omulu (1999), Sem título (Yansã, 1997), assim como cenas de rituais de macumba (Homenagem à mãe Madalena, 1997). Retorno simbólico ao universo originário materno, descendente de moçambicana escravizada no Brasil. Podemos observar ainda que quase toda produção após 2008, intitulada Interação, caracterizada pelo desenho rápido e simplificado das faces dos seres representados, se torna facilmente vinculada ao manejo das técnicas

cubistas aprendidas com Lothe, devido ao modo de repartição do fundo da pintura. E a última série, dedicada ao tema da cegueira (Cego tocando clarinete, 2010), nos faz pensar à maneira dos versos de Baudelaire (“que buscam estes cegos ver no Céu?”), que o desenho, mesmo quando representativo, é feito de memória. Equilibrando-se entre contrastes, entre tempos, entre memórias, Milton Ribeiro, que, vale relembrar, nasceu no mesmo ano da semana de arte que se tornou ícone da modernidade brasileira, vem traçando seu percurso de maneira obstinada. O resultado é um projeto artístico que chegou à segunda década do século 21 dominado pela permanência da paixão pelo ofício de pintar.

Pequeno arquiteto: universo das brincadeiras infantis transferido para as telas

9 Ele já havia esparramado os blocos com esse efeito, mas sem dar o título-sentido de implosão (O pequeno arquiteto espalhado, 1962)

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Beatriz e Milton: harmonia na vida e na arte, registrada pelo filho Milton Guran

Milton Guran

de com o luto pela morte do filho Cláudio, operou grande desconstrução. Produziu, em dimensões variadas, três óleos denominados O pequeno arquiteto – implosão (números 1, 2, 3, 1991), em que blocos se embaralham, dominam em aparente desordem todo o espaço da tela, onde não se pode distinguir o fundo das figuras9.


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eu Me LeMbro ...

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eceber pessoas importantes na reitoria da universidade nunca foi incomum. Em algum momento, você até se acostuma a isso. Contudo, é possível estar preparado para receber Nelson Mandela? Na tarde do dia 5 de agosto de 1991, pouco se importava qual resposta esta pergunta teria. Eu, como reitor da Universidade de Brasília, tinha um compromisso: outorgar à Mandela o título de Doutor Honoris Causa. A indicação do líder ao prêmio partiu da professora Adalgisa do Rosário, do Departamento de História e aprovada pelo Conselho Universitário. Aproveitando a oportunidade em que Nelson Mandela viria ao Brasil, acertamos que ele viria a Brasília para receber o prêmio. Quando recebemos sim, quase um susto. Um ano e meio após deixar a prisão, onde ficou por quase 27 anos enclausurado, Mandela estaria aqui, na nossa universidade! A cerimônia de entrega do título foi preparada com cuidado e muito receio pela equipe, coordenada pelo professor Coutinho, na época, chefe de gabinete do Reitor. Não sabíamos quantas pessoas estariam presentes, já que a UnB estava em greve havia mais de um mês. Na dúvida, marcamos no auditório da Reitoria, que imaginávamos suficiente. No entanto, na hora da cerimônia, uma surpresa: o campus estava tomado por mais de mil pessoas que queriam ver de perto Madiba, o apelido carinhoso pelo qual ele é tratado. Poderíamos fazer a cerimônia em outro lugar que não na universidade, mas a meu entender, a UnB tinha que recebê-lo. Em outro ambiente seria tudo diferente. Decidimos pelo auditório da Faculdade da Saúde, pouco maior. Mas o público não parava de aumentar. Eram representantes dos movimentos organizados de todas as cidades e do entorno, autoridades e estudantes, em um clima efervescente. Sem muita opção, achamos uma sombra e, ao ar livre, entre os blocos da Faculdade de Medicina, a cerimônia aconteceu. Não poderia ter sido melhor. Sem grandes excitações e muito tranquilo, Mandela se entregou à multidão, em contato com o povo, do jeito que gosta. Naquela época, Mandela ainda não tinha assumido a presidência. Sem saber que em três anos isso mudaria, já pressagiava que o líder seria muito importante para o mundo, como de fato foi. Humilde, e com convicções extremamente fortes. Impossível não se sentir pequeno diante dele, figura humana muito linda. Daquele dia, eu sempre me lembro...

antônio ibañez ruiz, ex- reitor da UnB e atual Conselheiro Nacional de Educação

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O dia em que Nelson Mandela visitou a UnB



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