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DORIS salcedo
EM SEUS OBJETOS, ESCULTURAS E INTERVENÇÕES SITESPECIFIC EM LARGA ESCALA, A ARTISTA COLOMBIANA DORIS SALCEDO ABORDA AS EXPERIÊNCIAS E REPERCUSSÕES DE VIOLENTOS CONFLITOS
EM SEUS OBJETOS, ESCULTURAS E INTERVENÇÕES SITESPECIFIC EM LARGA ESCALA, A ARTISTA COLOMBIANA
DORIS SALCEDO ABORDA AS EXPERIÊNCIAS E REPERCUSSÕES DE VIOLENTOS CONFLITOS
A rica diversidade da prática de Doris Salcedo se manifesta em sua ampla gama de materiais: de pedra e concreto a objetos do cotidiano, como móveis de madeira, roupas e agulhas, além de materiais transitórios, como grama, água, pétalas de flores e cabelo humano. Por meio de associações inusitadas de objetos e combinações de materiais aparentemente contraditórios meticulosamente trabalhados à mão, Salcedo consegue retratar a violência e o sofrimento sem mostrá-los explicitamente. Os títulos evocativos de suas obras, muitas vezes referentes à poesia, conferem-lhes um plano de sentido adicional, verbal. Embora seus trabalhos muitas vezes tomem eventos específicos como ponto de partida, seu alcance é universal: sua prática artística se centra em emoções e sensações transculturais, como compaixão, luto ou alienação, além de como lidamos com o ciclo sempre repetitivo de esquecimento e lembrança.
Doris Salcedo nasceu em 1958, em Bogotá, Colômbia, onde vive e trabalha até hoje. Ela estudou pintura e história da arte na Universidade de Bogotá, depois escultura na Universidade de Nova York. Em 1985, ela retornou à Colômbia, realizando inúmeras viagens de trabalho de campo em todo o país para encontrar sobreviventes e parentes de vítimas de brutalidade e violência. Sua consciência resultante e sensibilização para os temas de guerra, alienação, deslocamento e desorientação deram teor ao seu trabalho desde então.
Untitled, 1989–2014.
© Doris Salcedo.
Foto: Oscar Monsalve Pino.
Repetidas vezes, as obras de Salcedo têm atraído atenção generalizada. Em na Tate Modern Londres, em 2007, uma rachadura profunda no chão percorria toda a extensão do grande Turbine Hall, permitindo que a segregação social e a exclusão fossem experimentadas em dimensões espaciais. Na 8ª Bienal Internacional de Istambul, em 2003, Salcedo apresentou , empilhando cerca de 1.500 cadeiras de madeira para preencher um espaço vago entre dois prédios da cidade para lembrar a expulsão de famílias armênias e judias. Seu trabalho mais recente, (2020-2022), que aborda as mudanças climáticas e seus fluxos migratórios, recebeu recentemente o prêmio da 15ª Bienal de Sharjah.
(1989-2014)
Fileiras de camas de metal e pilhas de camisas brancas dobradas criam uma atmosfera evocativa de um hospício ou hospital. Os estrados das camas são envoltos em pele de animal como se fossem curativos, alguns com camisas bem enroladas enfaixadas. As camisas empilhadas são endurecidas com gesso e perfuradas na altura do peito por longas hastes de metal – um gesto simbólico de violência exercida contra os corpos humanos ausentes. O ponto de partida para o impressionante conjunto escultórico de Doris Salcedo foi sua pesquisa sobre um massacre de trabalhadores de plantações na Colômbia. Normalmente, as peças de roupa e os vestígios que eles trazem constituem provas importantes na investigação de crimes. Aqui, porém, eles são despojados de sua individualidade, uniformizados, anônimos e intercambiáveis. Lidas como tal, as pilhas alinhadas de alturas variadas lembram o registro oficial impassível de uma contagem de mortes.
Tate Modern Londres, 2007.
Pétalas sobre pétalas se espalham em ondas suaves pelo chão. Minuciosamente costuradas à mão com fio cirúrgico e preservadas quimicamente, as pétalas de milhares de rosas parecem pairar em um estado entre a vida e a morte. São tão frágeis que correm o risco de rasgar ao menor toque – uma imagem da fragilidade da existência humana. O título da obra remonta a uma expressão espanhola usada para descrever a reação a uma situação emocionalmente avassaladora, que, em português, se traduziria aproximadamente como “no limite”, “cru”. Formalmente e cromaticamente, o trabalho traz à mente associações de pele humana ou mesmo carne. O ato de costura incorporado na peça, um gesto ao mesmo tempo carinhoso e doloroso, desencadeia sentimentos ambivalentes. Este trabalho foi concebido no contexto da pesquisa de Doris Salcedo sobre a vida de uma enfermeira colombiana sequestrada e torturada até a morte. também evoca o sudário e os ritos fúnebres de pessoas desaparecidas.
(2008-2010) está enraizada no envolvimento de Doris Salcedo com o destino de jovens vítimas de violência mortal, no contexto tanto do crime de gangues em Los Angeles quanto de uma série de assassinatos perpetrados pelo exército colombiano contra supostos guerrilheiros. A obra não menciona nomes,ecoandoassustadoramenteoanonimatodas valas comuns; ainda assim, o verde vibrante da grama funciona como um lembrete esperançoso de que uma nova vida pode surgir mesmo nos lugares mais horríveis.
A instalação preenche o ambiente e eleva o solo para o nosso campo de visão – a grama brota das camadas de terra espalhadas entre os pares de mesas empilhadas inversamente. As medidas dos móveis simples e feitos à mão ecoam as de um corpo humano. O material das mesas e sua uniformidade lembram caixões, alinhados como em um cemitério.
Atrabiliarios, 1992–2004. © Doris Salcedo.
Foto: Ben Blackwell.
(1992-2004)
Caixas vazias, feitas de material translúcido, estão empilhadas no chão da galeria. Uma série de nichos foram embutidos nas paredes, suas aberturas cobertas com pele de animal esticada desfocam seu conteúdo: sapatos, apresentados individualmente ou em pares. O sapato representa o corpo humano, operando como um traço da pessoa cujo pé o moldou. Como item isolado, simboliza a perda –própria ou de seu dono. O título da série, , deriva do latim “ ”, usado para descrever a melancolia associada ao luto. Ao longo de vários anos, Doris Salcedo recolheu sapatos de pessoas desaparecidas. Mesmo que suas histórias pessoais permaneçam não reveladas, a exibição semelhante a um relicário enfatiza o significado especial do indivíduo. A membrana protetora costurada à parede com fio cirúrgico suscita associações contraditórias: o ato de cuidar de uma ferida equivale também a uma agressão violenta da pele, a proteção do objeto se duplica em sua ocultação.
(1989-2016)
Uma reunião de móveis desconstrói estranhamente ambientes familiares. Guarda-roupas e camas, mesas e cadeiras são arrancados de suas constelações habituaiselançadosemnovascombinações que os tornam impossíveis de usar. Empurrados parcialmente um para o outro, suas cavidades preenchidas com concreto, alguns deles contêm peças de roupa usadas e mantidas lá, mas agora para sempre paradas e petrificadas. Eles oferecem apenas vagas lembranças dos indivíduos que nunca mais se sentarão nessas cadeiras e dormirão nessas camas, e cuja ausência o trabalho torna tangível. O efeito inquietante da instalação é potencializado pelo fato de que os objetos não estão mais em relação às dimensões de seu antigo ambiente doméstico: na vasta extensão da galeria, eles aparecem isolados e expostos. Os vestígios de desgaste nas superfícies de madeira evocam rugas e cicatrizes. Eles lembram o estado ferido de famílias desfeitas, como aquelas que Doris Salcedo conheceu ao longo de sua pesquisa sobre violência política.
Disremembered X, 2020/2021. Glenstone Museum, Potomac, Maryland. © Doris Salcedo. Foto: Ron Armstutz
(2020-2021)
Quatro blusas quase transparentes de tecido de fios de seda estão frouxamente penduradas nas paredes. Dependendo do ponto de vista do observador e do ângulo de incidência da luz, o delicado material ganha ou perde visibilidade. Um exame mais detalhado revela milhares de agulhas trabalhadas no tecido. A impressão de leveza quase imaterial se funde assim com uma intuição de dor angustiante e implacável. Esse grupo de obras expressa o envolvimento de Doris Salcedo com a dor e a angústia de mães em Chicago, que perderam seus filhos pela violência armada local. Lembradas diariamente de sua perda agonizante, elas frequentemente experimentam incompreensão e impaciência de uma sociedade que anseia por prazer e esquecimento.
Beyeler, Riehen/Basel, 2022.
O vazio domina a maior sala da exposição. Atravessando a soleira, nosso olhar cai no chão, que é coberto por grandes lajes retangulares de pedra. Os nomes estão escritos nas lajes na areia escura. Sobrepondo-se a eles, a água brota em gotas para formar letras que se combinam em outros nomes antes de se esvair novamente. Embora escritos em alfabeto latino, os nomes atestam um enraizamento em línguas vindas de fora da Europa. O título da obra se refere à prática de escrever, apagar e sobrescrever texto em pele de animal antes da invenção do papel. Nesse contexto, a escrita é um esforço transitório e limitado pelo tempo, mas as sombras das palavras anteriores sempre permanecem visíveis. é dedicado àqueles que perderam a vida fugindo pelo mar. A instalação permite uma comemoração e lembrança que de outra forma seriam negadas porque suas vidas não contam na Europa e seus nomes não são registrados em lugar algum. A artista passou vários anos pesquisando meticulosamente esses nomes e os está trazendo à nossa consciência com esta imagem de uma “terra que chora”.