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PICASSO
A OBRA DE PICASSO ENGLOBA 50 MIL PEÇAS QUE REFLETEM AS DRAMATICAS CONVULSÕES POLÍTICAS
DA ÉPOCA EM QUE VIVEU: ANOS TURBULENTOS DE GUERRA, PROIBIÇÃO DE EXIBIÇÃO DE SUAS OBRAS
POR OCUPANTES ALEMÃES E A GUERRA CIVIL
ESPANHOLA. ELE DEFENDEU A LIBERDADE COM SEU PINCEL E SEU FASCÍNIO PELAS TOURADAS, SUAS POLÊMICAS RELAÇÕES COM AS MULHERES, SEU ANSEIO PELOS PRAZERES BACANAIS E A PAIXÃO
PELO EROTISMO O CATIVARAM POR TODA A VIDA.
O ANO DE 2023 MARCA O 50º ANIVERSÁRIO DE SUA MORTE E PROMOVE 50 EXPOSIÇÕES PELO MUNDO
Por Nicholas Andueza
PABLO PICASSO HOJE: QUEBRANDO O AQUÁRIO, OU: POR QUE LEMBRAR FRANÇOISE GILOT?
O museu Albertina, sediado no palácio de Habsburgo, em Viena, apresenta a exposição , celebrando os 50 anos de morte do dito “artista do século”. O nome parece não precisar de introduções, tendo se popularizado como poucos ao longo dos anos. Mas, até por isso mesmo, este ano de 2023 não passará desapercebido; serão muitas mostras, em vários museus do mundo. A ocasião dos 50 anos da morte de Picasso nos dá a oportunidade de nos voltarmos mais uma vez a ele para ressignificá-lo.
Hoje, Pablo Picasso se tornou mais polêmico do que antes. Não simplesmente por obras desafiadoras, mas pela problematização de sua apropriação cultural da arte africana e, principalmente, de sua personalidade altamente misógina. Em 2021, por exemplo, alunas de uma escola de arte protestaram no museu Picasso, em Barcelona, com os dizeres “Picasso agressor”, “Picasso abusador de mulheres”. Tais temas devem ser enfrentados. Nesse sentido, um tratamento de Picasso, hoje, que venha a repetir uma descrição unidimensional e heroica do artista já não se sustenta mais – felizmente. Infelizmente, contudo, os textos de apresentação da mostra no Albertina, dos curadores Klaus Albrecht Schröder e Constanze Malissa, optam deliberadamente por não lidar com tais questões (nem as mencionam). Uma pena. Mas, mesmo assim, o coração da mostra, que está nas obras em si, no artista em si, tem material farto, suficiente para se fazer uma necessária contraleitura.
É o caso do tocante
(1902), por exemplo, exibido na primeira seção da exposição, sobre a fase azul de Picasso, seu momento pictórico inaugural. O período se caracteriza por cores frias, temas melancólicos e uma influência formal de Toulouse-Lautrec, devido ao uso dramático de linhas e contornos, os quais tendiam a sumir no impressionismo. O período azul de Picasso foi catalisado pelo suicídio do amigo Carles Casagema, em 1901: ele atirou em si mesmo logo após tentar, sem sucesso, assassinar em público a mulher que o recusara. Ou seja, sem prejuízo à densidade do tema do suicídio, é preciso notar que a história de Picasso nas artes começa com uma tentativa de feminicídio, um amor tóxico. Notá-lo, inclusive, contribui para complexificar a própria temática melancólica nos quadros azulados do artista.
Destes, talvez, a síntese maior seja o potente (1903), onde figuram o próprio Casagema e sua vítima, Germaine Pichot. Ali, a condição masculina aparece atrelada à relação com as mulheres: nas extremidades horizontais, a amante com seu homem, a mãe com seu filho – uma espécie de início e fim, alfa e ômega; na linha vertical, um homem acolhido pela mulher acima e outro abandonado abaixo – onde fica prenunciado o suicídio, o risco da inexistência. Dispostas simetricamente, as quatro situações relacionais formam como que uma rosa dos ventos da masculinidade em crise, indo muito além do incidente de Casagema, que tão sintomaticamente tocou Picasso. O sujeito abandonado nessa tela tem a mesma expressão cabisbaixa de , postura que se repete em diversos quadros do período. São figuras que estão no limiar, às margens. Um peso existencial que se estende até aos casais representados nesse período, como na gravura (1904), muito tocante e precisa, apesar de feita por um Picasso ainda pouco acostumado a gravar. Acrobatas, esses dois famintos (de comida e de sentido de ser) sinalizam a passagem da Fase Azul (1901-1905) para a breve Fase Rosa (1905), de temas circenses e tons róseos.
Sylvette, 1954. The ALBERTINA Museum, Vienna – The Batliner Collection. © Succession Picasso/ Bildrecht, Vienna 2023.
O momento seguinte da exposição do Albertina trata do Cubismo (1907-1914), o grande movimento que consagrou Picasso nas artes ocidentais. Para Ferreira Gullar, três aspectos principais viabilizaram o cubismo: 1) o contexto de crise do impressionismo; 2) a influência de Paul Cézanne sobre Georges Braque (“tratar a natureza através do cilindro, da esfera, do cone”, disse certa vez Cézanne); e 3) a influência de imagens tradicionais africanas sobre Picasso. E aqui vem o necessário debate da apropriação cultural, que propõe o reconhecimento da influência chave das Áfricas, desmontando o fictício monopólio de Picasso e da Europa sobre as invenções artísticas de vanguarda. É preciso reconhecer o brilhantismo de Picasso, mas sem mistificá-lo. O cubismo não é simplesmente filho de um grande “gênio”, de uma semidivindade artística, mas do encontro de duas tradições representacionais, uma europeia (Braque e as paisagens de Cézanne) e outra africana (Picasso e as máscaras e estátuas Igbo, Songye, Chokwe, Luba, Fang e outras – para citar possíveis influências). Um encontro realizado em meio a dinâmicas de colonização global e de exaustão de certo modelo representacional europeu. O talento artístico de Picasso foi articular de modo complexo e singular esse gigantesco encontro – algo elogiado inclusive por artistas como o britânico-nigeriano Yinka Shonibare.
Exemplo singelo e potente de tal articulação é (1907): cuja temática europeia da natureza morta se encontra com linhas vetoriais inspiradas no abstracionismo africano. As três cores primárias nessa tela deixam clara a metalinguagem, a afirmação de uma crise representacional. A obra se bidimensionaliza e se descola de seus objetos –que são as duas grandes contribuições do cubismo às artes ocidentais, desde a fase “analítica”, que dilacera as coisas, à fase “sintética”, mais planificada menos figurativa. Há ainda uma terceira contribuição de peso: a colagem de materiais diversos na tela ou em esculturas (jornais, tecidos, etc.) – um dos grandes dispositivos ainda hoje das artes modernas e contemporâneas. Se, como propõe Ferreira Gullar, o gesto cubista está no início da descoberta ocidental do abstracionismo moderno – futurismo, suprematismo, construtivismo, neoplasticismo, Bauhaus, concretismo, neoconcretismo –, então, é necessário reconhecer que cada um desses movimentos é também herdeiro cultural das Áfricas, mesmo se distante. A maternidade africana de certas invenções cubistas já havia sido observada por Carl Einstein, em 1915, no livro . Mas o senso comum tende a ocultar ou minimizar até hoje esse parentesco negro. Nesse sentido, a preocupação com a apropriação cultural não está nas simples trocas culturais, comuns entre populações próximas, mas no caráter desigual e unilateral do enriquecimento artístico às custas da colonização, que produz um vampirismo e um apagamento das culturas exploradas. Aqui, a noção fetichista de gênio é dispositivo central, porque tende a mistificar um indivíduo superpoderoso e a isolá-lo do mundo em uma espécie de aquário. Esse aquário concentra no indivíduo toda a potência criativa e invisibiliza processos históricos – por isso a noção de “gênio” é retrabalhada por autores como Larry Shiner, em (2003). Em outras palavras: é preciso quebrar o aquário.
(1907) marca efetivamente o início do cubismo picassiano. A tela retrata prostitutas de um cabaré em uma rua de Barcelona, Avignon. Em traços simples, mas decididos, os corpos nus, de braços erguidos, oferecidos ao olhar (masculino), contrastam com suas expressões faciais frias e incisivas – que devolvem o olhar. Da esquerda para a direita, seus rostos parecem ficar progressivamente mais parecidos com máscaras africanas. O quadro foi um choque para uma Europa que, muito autocentrada, nunca tinha parado para considerar seriamente, para além do infame “exotismo”, as formas expressivas daqueles que dominava. Mas, como fez Manet mais de quarenta anos antes com aquela ama negra de (1863), Picasso continua associando feminilidade e africanidade para representar uma potência irracional e sexual ameaçadora. Isto é, pinta do mesmo lugar (branco e masculino) que marcou a história das artes europeias. Assim, as não são uma invenção total, mas, certamente,umagigantescainvençãoformal para aquele contexto. É por esse invencionismo que não desloca papéis representacionais que, em seu canônico tratado feminista de 1973, Carol Duncan incluiu esta e outra tela de Picasso, (1913-14), no panteão de obras modernistas que atacam a humanidade das mulheres em prol da criação formal. Não mistificar o artista é também não mistificar suas obras, é apreendê-las em suas contradições.
Tal elemento de uma potência irracional e sexual também aparece em Picasso de outra forma, anos mais tarde, com as pinturas das touradas – que são o tema da parte seguinte da exposição do Albertina. Mas ali o assunto é menos a alteridade (feminina ou negra) e mais a identificação do próprio artista com o signo de força, impulsividade e virilidade. Aqui vale lembrar a belíssima série de litografias (1945), em que a figura do touro vai ficando cada vez mais abstrata. Na última imagem, já não vemos mais o touro, mas a própria assinatura de Pablo Picasso. Essa cristalina reflexão sobre o processo de sintetização gráfica, do realismo ao sintético, do figurativo ao abstrato, mas também da imagem à palavra, confunde-se com uma autoafirmação do artista, cujo nome se torna o ideograma de touro. Precipitando-se em sua própria obra, o autor se impõe também à análise. Por isso é sempre importante lembrar as relações, na maioria tóxicas, que o touro-Picasso manteve com as mais de 11 mulheres com quem se relacionou ao longo da vida; trocava-as na medida em que o apetite mudava – quando deixavam de ser “musas” (pintava-as com frequência) para se tornarem “capachos”, segundo termos do próprio artista para se referir às mulheres de sua vida. Uma dessas trocas de mulheres é particularmente memorável: ele estava em um café com Dora Maar, importante fotógrafa surrealista, quando viu Françoise Gilot, pintora. Simplesmente se levantou e foi até Gilot se apresentar. Em breve, ele deixaria Maar. Mas o que é mais marcante não são a displicência e a toxicidade do gesto de Picasso, então com 61 anos. O mais marcante é tanto a qualidade artística desses dois nomes (já viram as fotos de Maar? As telas de Gilot?) quanto a especificidade de Françoise Gilot, que seria, futuramente, a única mulher a deixar Picasso – fato que ele nunca perdoou, tentando sabotá-la no mundo das artes. Em outras palavras, Gilot “quebrou o aquário”.
A exposição do Albertina segue ainda por mais três partes: uma sobre o tema das bacanais, das festas ao deus Baco, de referência greco-romana; outra sobre as linogravuras, quando Picasso descobriu o linóleo como um meio prático e preciso para gravar; e a última sobre as cerâmicas que o artista fez em Vallauris, no sul da França, momento em que misturava elementos greco-romanos e africanos, conectando-se de algum modo ao próprio início da arte ocidental. Só neste último período ele fez mais de quatro mil obras em cerâmica. No total de sua carreira, e considerando todos os suportes, chegamos a contar 50 mil obras. Mas o que espanta em Picasso, muito mais do que a quantidade, é a qualidade de obras-chave, que influenciaram para sempre o imaginário ocidental. Contudo, mistificar o talento de Picasso como genialidade inquestionável seria perder as próprias obras de vista, reduzi-las à biografia de uma única pessoa, quando, na verdade, elas vão muito além do artista – assim se medem, aliás, as obras-primas. Olhar para Picasso hoje é abraçar suas complexidades, integrá-las na análise em vez de separá-las. É entender que um dos homens mais tirânicos na vida privada com suas amantes (duas delas se suicidaram após a morte dele) é o mesmo que fez a mais importante pintura antiguerra do século 20, (1937). Precisamos, enfim, de uma iconoclastia construtiva: para comemorar os 50 anos da morte de Picasso, é preciso matar Picasso. Matá-lo simbolicamente. “Quebrar o aquário” em que ele foi posto. Olhar para as obras e para a biografia em vez de nos cegar com uma mitologia construída ao longo de mais de cem anos desses aplausos que dizem mais sobre o mundo da arte do que sobre o próprio Picasso. É preciso, enfim, seguir o exemplo de Françoise Gilot.
Nicholas Andueza é pesquisador colaborador da Cinemateca do MAM-Rio, editor assistente da revista Eco-Pós, pesquisador em cinema, montador audiovisual e câmera. Doutor em Comunicação pela UFRJ e Doutor em História pela Paris 1 - Panthéon Sorbonne.