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LYNETTE YIADOMBOAKYE

LYNETTE yiadom-boakye ,

AS FIGURAS NAS PINTURAS DE LYNETTE YIADOMBOAKYE NÃO SÃO PESSOAS REAIS - ELA AS CRIA A PARTIR DE IMAGENS ENCONTRADAS E DE SUA PRÓPRIA IMAGINAÇÃO. FAMILIARES E MISTERIOSAS, ELAS CONVIDAM OS ESPECTADORES A PROJETAR SUAS PRÓPRIAS INTERPRETAÇÕES E LEVANTAR QUESTÕES IMPORTANTES DE IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO. LYNETTE É UMA PINTORA E ESCRITORA BRITÂNICA ACLAMADA POR SEUS RETRATOS ENIGMÁTICOS DE PESSOAS FICTÍCIAS E QUE MUITAS VEZES SÃO PINTADOS DE FORMA ESPONTÂNEA E INSTINTIVA QUE PARECEM EXISTIR FORA DE UM TEMPO OU LOCAL ESPECÍFICO

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA

.” (William Shakespeare)

De origem ganesa, Lynette Yiadom-Boakye (Londres, 1977) tem recebido bastante atenção de críticos e especialistas no cenário internacional. Ganhadora do Prêmio Geração Futura, da Fundação Pinchuk (2012), selecionada para o Prêmio Turner (2013), agraciada com o Prêmio Carnegie (2018), e destaque do Pavilhão de Gana, na 58ª Bienal de Veneza (2019), a moça não para por aí: além de artista, é também escritora. Procurados por colecionadores, seus trabalhos estão em diversas galerias e museus, tais como a Tate, a V&A e a Serpentine. E, agora, ela prepara sua megaexposição , na Tate Britain. Essa mostra reunirá cerca de 80 pinturas e trabalhos em papel, de 2003 até os dias atuais, na mais extensa pesquisa da artista até hoje – promessa dos curadores da Tate. Com essa trajetória brilhante, a “pergunta de um milhão de libras esterlinas” é: o que há de inovador na produção de Yiadom-Brokye? A resposta pode não ser tão linear e exige a análise de diversas camadas do seu discurso estético. Quem aceitar este desafio, deve vir "trabalhado na observação" e buscar comigo por referências, especialmente em suas pinturas.

Citrine by the Ounce, 2014 © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

Complication, 2013. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

À primeira vista d’olhos, a artista apresenta figuras ficcionais e atemporais com um elenco predominantemente negro. Em entrevistas, a pintora se refere aos personagens dela como “sugestões de pessoas”. Eles não existem. Estão em outro lugar. Não têm marcas históricas. Eximem-se de narrativas. Os personagens de (2013), por exemplo, são criados pela imaginação da artista. Nas pinturas, Yiadom-Brokye se apropria de um dos gêneros mais célebres da arte: o retrato (do italiano ). Na história da arte, o retrato é a representação da imagem de uma pessoa. Traduz de modo penetrante o mundo que se oculta atrás de cada rosto, o seu mistério, por vezes, a sua angústia e os traços de sua existência – seria o “espelho da alma”. Nesse sentido, seus retratos estão sob a égide dessa normatização da arte ocidental. A escolha dela pelo figurativo acentua a descrição da forma humana, dos elementos da natureza e os objetos criados pelo homem. E, alinhado aos costumes do fazer artístico, o emprego da tinta óleo – a técnica mais tradicional nas artes visuais, disseminada no século 15, por meio dos trabalhos dos irmãos Van Eyck –, é

A Passion Like No Other 2012. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

completamente dominado pela artista britânica. A paleta escura e os fundos soturnos característicos de seus trabalhos contribuem para a natureza atemporal dos seus retratos, transmitindo a sensação de quietude e melancolia. Outra convergência entre o repertório de Yiadom-Brokye e a tradição da arte ocidental é a melancolia. Os chamados “herdeiros de saturno” (Dürer, Cervantes, Shakespeare, Wateau, entre outros) transformam o humor e o mal-estar em alegoria e metáfora. Esses artistas confirmam uma “estética da melancolia”, que passa pelo ideário medieval (como um pecado capital), adentra o Renascimento (às vezes como doença; outras vezes como traço de genialidade – retomando as ideias aristotélicas), ressurge no Barroco (como o medo inexorável frente à morte), no rococó (transforma-se na “doce melancolia”) e, finalmente, torna-se a base primordial do Romantismo. A referência à “estética da melancolia” surge em trabalhos, tais como, r (2012) e (2014), que trazem de volta à arte contemporânea essa metáfora cara à tradição ocidental.

Yiadom-Brokye não renega sua formação artística: frequentou a Faculdade de Arte e Design Central Saint Martins, a Faculdade de Artes Talmouth e a Escola da Academia Real. Ela admite as influências de Édouard Manet, Diego Velásquez e Edgard Degas em seu “fazer artístico”. Destaque-se Degas e Manet no desejo de retenção da luz e do movimento através das pinceladas soltas e rápidas. A aproximação está também na postura dos indivíduos criados por Yiadom-Brokye.

O personagem de (2018) nos encara com o olhar direto e inquisidor – o mesmo que encontramos em (1863), de Manet. Diferentemente dos seus amigos impressionistas Monet, Renoir e Pisarro, Degas não saía pelos campos com cavaletes e lonas em armação portátil. Ele trabalhava com o desenho de memória, retratando figuras e animais, especialmente o corpo humano de uma forma ousada e libertadora. Nossa artista não usa modelos, seus personagens fictícios estão em sua imaginação. Como não ver as reminiscências das “bailarinas de Degas” em (2011)?

Tie the Temptress to the Trojan 2018. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.

Ever The Women Watchful, 2017.© Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

A photo guide to Rankyo 1927–35.

Popular music scores 1928-32 Repose III, 2017.© Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

Kobayakawa Kiyoshi, Rouge, no: 6 1936.

No Need of Speech 2018 Foto: Bryan Conley À esquerda: To Improvise a Mountain, 2018. Foto: Marcus Leith © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye

Até aqui fincamos alicerces nas fontes e nas referências de Yiadom-Brokye e se percebe sua adequação à tradição da arte ocidental (confesso, foi uma pequena maldade minha). Agora, apresento-lhes a desconfiança quanto a uma possível traição: os títulos enigmáticos das pinturas. Sempre reticente, a artista não explica totalmente os nomes dados às obras. Os títulos dessas pinturas não as identificam; eles são paralelos às imagens e, assim como as figuras retratadas escolheram não descrever ou explicar. Observe o título (2018) e (2018) – irradiam contenção e serenidade, mas não descrevem a cena que temos diante dos olhos. Eles são como índice de uma coleção de contos modernos. Não esqueça que nossa artista também é escritora. Seus contos e poemas, geralmente, estão em seus catálogos. Porém, chama a atenção o subtítulo de sua retrospectiva, – algo como “voar em aliança com a noite”, uma aliança no sentido de “conspiração com a noite” – vista como a metáfora para os mistérios, o desconhecido, as coisas obscuras; que não são claras e evidentes. Porém, a reviravolta na pintura de Yiadom-Brokye está no registro dos rostos das mulheres e homens negros. Em termos gerais, a tradição europeia sempre forneceu à pele branca o papel de protagonista. Nossa artista trai essa tradição, quando seus retratos trazem personagens negros sem exotismo, servilismo ou coisificados. Eles são tipos humanos plenos de dignidade; centrais na pintura, eles têm alma (atributo visto como imanente à vida, ao pensamento, ao afeto e à sensibilidade). Notem que todo o repertório da história da arte ocidental é reexaminado por essa postura da artista. Ela subverte por dentro! Traz o novo, usando as tradicionais

regras da arte. Toda a continuidade reforça o contemporâneo. Nesse ponto, caberia a questão: ela usa inversamente as mesmas armas de Picasso, Matisse e Braque, quando “descobriram” a expressividade, a clareza estrutural e simplicidade técnica da arte africana? Em outras palavras, ela legitima sua pintura por meio da tradição ocidental para romper e ressurgir com o “novo”? Nos diversos depoimentos concedidos pela artista, ela não coloca a questão da representação do negro como um ato político. Em particular, na entrevista para Ulrich Obrist, no la nos diz: “as pessoas são tentadas a politizar o fato de eu pintar figuras negras, e a complexidade disso é uma parte essencial do trabalho. Mas meu ponto de partida é sempre a linguagem da pintura em si e como isso se relaciona com o assunto”. Em outra entrevista, ela insiste: “uma cor, uma composição, um gesto, uma direção específica da luz. Meus pontos de partida são geralmente formais”. Intrigam as respostas de Yiadom-Boakye? Talvez, mas pensemos: se a artista está explorando o território da individualidade negra ter como “bandeira política” a centralidade do negro na arte ocidental, tão somente reproduziria o cânone branco – isso banalizaria sua pintura. Para os negros, a individualidade negra sempre existiu. Para os brancos, isso é uma questão (não para os negros!). Para a artista, seus personagens fictícios são negros porque representam seu universo – eles também podem ser vistos como personagens literários. São estudos de caráter de pessoas que não existem. A tela se converte em texto; a figura, o protagonista.

À direita: In Lieu Of Keen Virtue (2017). Abaixo: Cream Taste, 2013. © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

Giant, 2016. Pirelli Hangar Biccoca, Milão, Itália. Foto: Sha Ribeiro.

Mercy Over Matter, 2017.© Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

Of All The Seasons, 2017.© Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye and Jack Shainman Gallery, New York.

Nessa prática romancista, a artista deixa espaço à interpretação do público. Ela admite que esteja preocupada mais com a pintura e menos com o assunto. Surge, assim, o conhecido e falso embate existente entre artista e público, ou, ainda, o desequilíbrio entre forma e conteúdo. Insistir no domínio de um ou outro é ação que regressa de tempos em tempos e, de modo geral, tem o efeito colateral de revitalizar a prática artística da época, reprimindo o que se torna familiar demais ou defendendo o novo ou o anteriormente ignorado. Depois disso tudo, o que lhe parece? À primeira vista, a leitura das pinturas de Lynette Yiadom-Boakye parece tranquila, mas as camadas de interpretações, os índices e as referências trazem a intensidade do contemporâneo – um tempo que não rompe com tradições, mas as subvertem; que se preocupa com a forma, mas é sempre perseguido pelo conteúdo; que nega (ou coloca) o político em segundo plano, mas que não pode descartá-lo. Assim, segue o “espelho da alma” do artista mostrando os dilemas e as contradições do nosso tempo.

Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais (ECA USP), membro da Associação Brasileira de Crítica de Arte (ABCA).

LYNETTE YIADOM-BOAKYE • FLY IN LEAGUE WITH THE NIGHT •

TATE BRITAIN • REINO UNIDO • 20/5 A 31/8/2020 61

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