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Raphíssima ESCREVO PARA NÃO MORRER(MOS) T-e-x-t-o L-i-v-r-e
das pernas e os pelos arrepiados. a febre dos dias vigora o fungo dos pés, atravessados. quentura de dar quebranto quando os dedos tortos reforçam o som do estalo passo a passo. à espera, o tempo. o presente apegado à transição das superfícies, as falanges entremeiam-se no enlanguescer do contato, corrói em pira o dom astuto da espera, hesita a prosa, recebe a prece, emana o vapor sagrado da indigência e, descalço, acolhe o sopro roto da ventania. voz cotidiana, retina retida, rotina contida no incômodo sem ar. a cutícula é fina, e resiste à solidão. protege a pegada das pedras do meio e contenta-se a todo revés recaído sobre o amanhã.
enquanto escrevo, o mundo parou. e parte dele morreu. outra parte está doente, ou infectada por vírus ou por depressão ou por ansiedade ou porque não está indo às compras. eu escrevo, minhas doenças declaro ao papel.
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o título do poema é trovão. primeiro ouvi o estrondo do vírus lá pra baixo, quando chegou pela amazônia é que eu senti o raio me queimar o couro. no corpo, o medo. não de morrer, mas de não ter chance a vida. trovão é raio me queimando por dentro.
respeitem as nossas cosmologias. nós sentimos diferente. quem me deu a origem vem de longe, superando porões, recebendo caruanas. não há cura sem fricção com a vida. já quase sinto o roçar de mim com o tempo. de novo.
(micropoelítica de mim, 27/mar, pandemia, quarentena, inverno em belém, início de tudo).
(Raphaella Marques) é artista negra macumbeira, criadora de Afrografias Urbanas. Explora as possibilidades da palavra-imagem e suas superfícies. Como o papel, a pele do corpo e da cidade. Fazendo atos poéticos e interferências urbanas e insulares. É pesquisadora independente em Arte e Poéticas Ancestrais.
Sobre o trabalho
O projeto Noxaí documenta aspectos da vida de uma comunidade fictícia e desenvolveu-se a partir da criação de uma narrativa imaginada e encenada. Através de uma estética documental, o trabalho justapõe de forma complementar o real e o imaginário, explorando metaforicamente o tema da desigualdade de gênero. O espectador tem seu olhar deslocado, transforma-se num observador longínquo de uma realidade distante, mas que, na verdade, representa um aspecto social forte e existente dentro de sua própria experiência de vida.
O trabalho constituído por uma série de onze fotografias e um vídeo foi premiado no 24º Salão Anapolino de Artes (Anápolis/GO) e também exposto nas Mostras Coletivas Ato (Galeria Mascate, Porto Alegre/RS) e Registro N.3 (Casa Baka, Porto Alegre/RS). Noxaí 2018
Uma comunidade no interior do RS, onde um costume peculiar é passado de geração a gera ção: as mulheres aprendem, desde os primeiros anos de vida, a coletar algumas pedras em seus caminhos e guardá-las numa bolsa que será carregada sempre junto de si. Acredita-se que o ato de manter essas pedras consigo traz sorte e garante a passagem para o paraíso quando a vida na Terra acabar.
Sobre a artista
Estefânia Young é artista visual e fotógrafa independente. Em Porto Alegre, sua terra natal, formou-se em Fotogra fia pela Unisinos, e atualmente vive no Rio de Janeiro cursando mestrado em Estudos Contemporâneos da Arte na UFF. Seu trabalho, realizado a partir de fotografia e vídeo, explora o híbrido território entre documentário e fic ção como estratégia para refletir e aprofundar discussões sobre temas sociais, em especial sobre construção e per formatividade de gênero. Academicamente, a pesquisa da autora investiga esse hibridismo documental/fictício na arte contemporânea da América Latina, discutindo o fazer artístico como ferramenta de transformação social e política a partir de um posicionamento decolonial.
estefaniacyoung@gmail.com www.estefaniayoung.46graus.com instagram @estefaniayoung