Devires - Dossiê Cinema e Escritas de si

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devires, belo horizonte, v. periodicidade semestral

14, n. 2, p. 01-307, jul/dez 2017 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)



ร memรณria de Henrique Codato, que deixa aqui uma parte de si.


ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ CINEMA E ESCRITAS DE SI Roberta Veiga Carla Italiano Ilana Feldman EDITORES Anna Karina Bartolomeu André Brasil Clarisse Alvarenga Cláudia Mesquita César Guimarães Eduardo de Jesus Mateus Araújo Roberta Veiga Ruben Caixeta de Queiroz DIAGRAMAÇÃO Leonardo Câmara PRODUÇÃO EDITORIAL Carla Italiano Hannah Serrat Letícia Marotta Luís Felipe Duarte Flores Thiago Rodrigues Lima REVISÃO GRÁFICA Gustavo Jardim Leandro Lopes Leonardo Amaral Pedro Rena Tomyo Costa Ito CONSELHO EDITORIAL Alessandra Brandão​(UNISUL)​ Amaranta César​(UFRB)​ Ana Luíza Carvalho (UFRGS) Andréa França​(PUC-Rio)​ ​Ângela Prysthon​ (UFPE)​ Anita Leandro​(UFRJ) Beatriz Furtado​(UFC)​ Cezar Migliorin​(UFF)​ Consuelo Lins (UFRJ) Cornélia Eckert (UFRGS)

Cristina Melo Teixeira (UFPE) Denilson Lopes (UFRJ) Eduardo de Jesus (​PUC-MG​)​ Eduardo Morettin ​(​USP​) Eduardo Vargas (UFMG) Erick Felinto (​UERJ​)​ Erly Vieira Júnior (​UFES​) Fernando Resende​(UFF)​ Henri Gervaiseau​(USP)​ Ismail Xavier (USP) Jair Tadeu da Fonseca (UFSC) Jean-Louis Comolli (Paris VIII) João Luiz Vieira (UFF) José Benjamin Picado (UFBA) Leandro Saraiva (UFSCAR) Márcio Serelle (PUC/MG) Marcius Freire (Unicamp) Mariana Balta​r (UFF) Maurício Lissovsky (UFRJ) Maurício Vasconcelos (USP) Osmar Gonçalves​ (​​UFC)​ Patrícia Franca (UFMG) Paulo Maia (​UFMG) Phillippe Dubois (Paris III) Phillipe Lourdou (Paris X) Ramayana Lira​(UNISUL)​ Réda Bensmaïa (Brown University) Regina Helena da Silva (UFMG) Renato Athias (UFPE) Ronaldo Noronha (UFMG) Sabrina Sedlmayer (UFMG) Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa) Stella Senra Susana Dobal (UnB) Suzana Reck Miranda (UFSCar) Sylvia Novaes (USP) CAPA E PROJETO GRÁFICO Bruno Martins Carlos M. Camargos Mendonça APOIO Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência Grupo de Pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas FAFICH – UFMG

Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Programa de Pós-Graduação em Comunicação / Programa de Pós-Graduação em Antropologia Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3409-5050 Lançamento: novembro de 2020. D 495

DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.14 n.2 (2017) – Semestral ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica) 1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5. Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.


Sumário

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Apresentação Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman CINEMA E ESCRITAS DE SI

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Identidade em deslize: o registro autrobiográfico na obra de Chantal Akerman Alisa Lebow

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Autobiografia, exílio e alteridade: o cinema de David Perlov, Avi Mograb e Elia Suleiman Ilana Feldman

58

Perdido entre lampejos de beleza: paisagem, território e política em Lost Lost Lost (1976) e As I was moving ahead I saw brief glimpses of beauty (2000) Laís Ferreira Oliveira

82

A invenção de uma tradição: autobiografia no cinema experimental norte-americano Patrícia Mourão de Andrade

104

Filmo, logo vivo _ modulações do filme-diário em Jonas Mekas e David Perlov Carla Italiano

124

O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti Gabriela Kvacek Betella

146

A escrita de si nas praias de Agnès Varda Lúcia Castello Branco e Maria Fernanda Machado

162

Sentir a imagem: performatividade e mise-en-scène no cinema de Naomi Kawase Henrique Codato e Eduardo dos Santos

184

Helena Solberg: entre o pessoal e o político Karla Holanda


204

Já visto jamais visto: devir memória ou a potência histórica na escrita de si Roberta Veiga

226

Documental y Experiencia Introspectiva: relaciones, correspondencias y tensiones para explorar el espacio de las prácticas cinematográficas autorrepresentacionales Paola Lagos Labbé FOTOGRAMA COMENTADO

252

Catar imagem se limita com escrever (seus grãos mais vivos, à moda de João Cabral) Carlos Adriano FORA DE CAMPO

264

Memórias de uma catástrofe em andamento: testemunhos em vídeo de violência policial na periferia Felipe Polydoro

284

A vida-lazer como vontade de futuro Vinicios Kabral Ribeiro






Apresentação Como o cinema pode ser autobiográfico se a exterioridade e a alteridade lhe são imprescindíveis? Se a câmera precisa capturar algo fora do sujeito, uma imagem do mundo, para que haja filme? A literatura há muito já instituiu, e desconstruiu, o que seria o topos do gênero com o “pacto autobiográfico” formulado por Philippe Lejeune, que se concretizaria na coincidência entre autor, narrador e personagem. Como tal coincidência é inatingível – uma vez que o personagem será sempre uma versão ficcional, textual e parcial, forjado por marcas e traços, portanto, um outro do autor que por sua vez não existiria enquanto um “em si” passível de ser decalcado no discurso –, tal topos da autobiografia literária aponta para um horizonte de expectativas do gênero, nos permitindo transportar essa formulação ideal ao universo cinematográfico, de modo a pensarmos e problematizarmos como ela se manifesta. No cinema, o autor, cineasta que escreve com as imagens, seria também o narrador de sua própria história, bem como o personagem filmado: quem filma e sobre quem se filma. Para isso, o gesto autobiográfico, confessional por princípio, exigiria, no limite, que o diretor virasse a câmera para si e produzisse algo como uma espécie de monólogo interior. Aparentemente, tal feito traria a concretização daquilo que na literatura o leitor sempre pode crer, mas nunca comprovar: a homonímia autor, narrador e personagem, graças ao registro cinematográfico que geraria a ilusão indicial de atingir o ideal do pacto, em que aquele que filma, narra e é filmado seria um só. Grande potência e, ao mesmo tempo, grande engodo do cinema, cuja ilusão de “realismo”, ao ser revelada, revelaria também a impossibilidade autobiográfica nos termos de Lejeune. Se, para a literatura, o espaço entre a crença e a dúvida do leitor na atestação do eu se expande na ficção que o texto sempre será, no cinema documentário, a autobiografia, essa inscrição do autorcineasta na imagem – apesar da indicialidade fotográfica tão aclamada por André Bazin – também só pode se dar como recriação, uma vez que a imagem do eu é sempre artifício, construção na linguagem e por meio da linguagem, que de um si só poderia reter o traço. Ainda assim, o documentário dito subjetivo, narrado na primeira pessoa, em sua força de testemunho, por mais variadas e multiformes que sejam as estratégias de inscrição imagética de si próprio, de sua vida e suas memórias, dos seus ou de si mesmo entre os seus, levaria ainda mais longe a crença na, e o desejo pela, verdade íntima do outro.

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É dessa força do testemunho de si que surge certo temor de que o cinema autobiográfico possa vir a estimular um lugar narcísico, de autoexposição, por parte de quem filma, e um desejo voyeur pela intimidade alheia, por mundos privados, por parte de quem vê. Por isso, caberia perguntar: uma vez visivelmente concretizado o pacto do gênero confessional, o cinema se manteria cinema quando aquele que deveria abrir a câmera para o mundo a retorna para si mesmo, num gesto autorreferente? Perderia ele a sua potência, tornando-se uma narrativa de imagens narcísicas e atos solipsistas? Malograria seu lastro com mundo, dimensão que lhe é constituinte, como nos alertou Deleuze sobre o cinema moderno desenvolvido no pós-guerra? Esvaziaria sua dimensão coletiva, seu vínculo com a consciência de classe, como acalentou Benjamin? Estaria fadado a não mais alcançar a alteridade da “inscrição verdadeira”, como acreditou Jean-Louis Comolli, em sua aposta no documentário? A questão que motiva a produção deste dossiê, Cinema e escritas de si, reside exatamente aí: como o cinema autobiográfico, inscrito no regime documental e entendido em seus diversos dispositivos de elaboração e encenação do eu, resiste enquanto experiência de partilha, em sua relação com a alteridade, em sua vocação política? Desde a idealização do dossiê, nos mobilizava a certeza de que é justamente em suas variadas estratégias de autoinscrição e performance de si que o cinema não só extrapola o gesto de virar a câmera para aquele que filma (procedimento, aliás, supercodificado em lives e selfies que abundam em redes sociais), como tensiona e ressignifica esses gestos hoje automáticos e viralmente disseminados, os quais, na conjuntura digital, tendem a celebrar a vida pessoal de forma a privatizar as imagens e espetacularizar o eu. Assim, o cinema autobiográfico poderia, no avesso da evasão da privacidade, da hipertrofia da intimidade e da atrofia do político, vir a problematizar e fazer pensar em que medida o pessoal é político, a experiência de si coletiva, a inscrição do eu histórica. Como tem nos ensinado a linguística, a psicanálise e as filosofias do sujeito, não há sujeito senão já aí no mundo, assim como não há um eu fora de uma relação com um outro, já que todo relato de si constrói-se na e pela linguagem. É precisamente nessa busca por um eu, que nunca se concretiza ou se estabiliza imageticamente, que o sujeito pode vir a

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Apresentação / Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman


se elaborar, uma vez que colocar-se em obra é um processo sem fim construído na relação com os dispositivos e com a linguagem do cinema _ constituintes da subjetividade por uma relação de exterioridade e alteridade. Visando compreender como, no âmbito do cinema, a experiência de si jamais prescindirá do aparato e da matéria do mundo, que, juntos, congregam a imagem e suas relações, apostamos que o eu cinematográfico será de saída um eu partilhado, dividido, parcial, posto em cena de forma perspectivada e relacional. Diante disso, gostaríamos de tratar neste dossiê de uma amplitude de modos de engajamento dos e das cineastas: dos mais diretamente “confessionais”, com seus filmes caseiros, domésticos e seus diários filmados, aos mais indiretamente autobiográficos, com suas memórias de tempos históricos, reflexões metodológicas e inquietações políticas. Porém, na impossibilidade de abarcar todos os gestos e autorias, contemplamos uma modesta amostra dos procedimentos e das formas de autoinscrição no cinema, com suas estratégias de abordagem e variações estilísticas permeadas por contextos socioculturais específicos, os quais instituem os diferentes dispositivos de escritas de si. Dos diaristas do cinema, o dossiê traz dois nomes fundadores: o lituano Jonas Mekas e o brasileiro radicado em Israel David Perlov. Além da obra Diário 1973-1983, de Perlov, Ilana Feldman abre o gesto de escrita de si aos filmes Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos, do israelense Avi Mograbi, e O que resta do tempo, do palestino Elia Suleiman, nos convidando a perceber as diferentes figuras que os cineastas mobilizam a partir da experiência do exílio. Também tendo o exílio como tropos comum, Carla Italiano, em seu artigo, investiga as modulações de sujeito no filme-diário a partir da relação entre as obras de Perlov e Mekas, enquanto Laís Ferreira Oliveira foca no trabalho do lituano, de modo a destacar a dimensão criativa da paisagem e do território em Lost Lost Lost e As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty. Passando por Mekas, porém abarcando outros notórios cineastas independentes dos Estados Unidos, como Stan Brakhage, Hollis Frampton e Ed Pincus, Patrícia Mourão de Andrade propõe uma abordagem histórica para pensar como as questões próprias da autobiografia reconfiguraram o cinema experimental norte-americano a partir dos anos 1960. A noção de cinema diário, assim como de autoficção, são igualmente

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tensionadas por Gabriela Kvacek Betella, que aborda a filmografia do italiano Nanni Moretti, principalmente através de seu clássico Caro diario, por meio do humor, do atravessamento ficcional e da contestação do cinema italiano por dentro. A escrita feminina de si figura neste dossiê nas obras de Agnès Varda, Chantal Akerman, Naomi Kawase e Helena Solberg, com artigos dedicados exclusivamente a cada uma delas. Os gestos e performances de Varda, cineasta precursora do filme-ensaio no feminino, aparecem, pela chave da psicanálise, no artigo de Lucia Castello Branco e Maria Fernanda Machado, e, em sua dimensão plástica, no belo fotograma-comentado de Carlos Adriano. As práticas performativas da japonesa Kawase são acompanhadas pelo saudoso Henrique Codato, junto a Eduardo dos Santos Oliveira, com o propósito de ressaltar o modo como a cineasta inscreve seu próprio corpo na materialidade de seus filmes Em Seus Braços e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra. E tal qual um ato de profissão de fé no cinema autobiográfico, apresentamos o artigo de Alisa Lebow – originalmente publicado na edição da Camera Obscura em homenagem póstuma à Chantal Akerman e traduzido especialmente para este número –, no qual fica evidente a constante dobra entre viver e filmar que sustenta a obra da cineasta belga. Desenhando por meio de seu último filme, No home movie, um percurso pelo que há de mais confessional na trajetória de Akerman, em um movimento metarreflexivo, Lebow confidencia o “deslize” de seu gesto que, ao adentrar a obra, não irá somente convocar a vida, mas “psicanalisar” a cineasta. Contudo, ao elaborar essa confissão, a autora reconhece se tratar de um efeito da filmografia de Akerman – o chamado para a intimidade – que reforça, sobre uma teoria do cinema de escrita de si, a relação inextricável entre vida e obra. Apesar de um notável crescimento no Brasil, a partir dos anos 2000, de realizadoras dedicadas às escritas de si, ainda que de forma indireta, ou seja, dizendo de si ao dizer de um outro (ente próximo ou acontecimento histórico), como Flávia Castro, Maria Clara Escobar, Petra Costa, Letícia Simões, Safira Moreira, Dandara de Morais, entre várias outras, Karla Holanda identifica traços autobiográficos na pioneira do cinema feminista nacional, Helena Solberg, não só em sua obra de 1994, Carmen Miranda: bananas is my business, mas também no seu curta-metragem que inaugura o cinema moderno de autoria feminina no país, A Entrevista, de 1966.

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Apresentação / Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman


A dimensão mais fortemente memorialística do gesto autobiográfico ou, mais precisamente, o devir memória do cinema, como sugere o artigo de Roberta Veiga, está presente em Já visto jamais visto, de Andrea Tonacci, em que não apenas recolhe e monta sua própria obra como reelabora certa história do cinema brasileiro, grande parte dela construída de forma engajada e atuante pelo cineasta. Já o único artigo que não se atém a cineastas específicos vinculados às escritas de si, o de Paola Lagos Labbé, publicado aqui em sua língua original, busca percorrer os eixos conceituais centrais acerca das formas autobiográficas e autorrepresentacionais do documentário, bem como as disputas que as convocam em um contexto dominado por plataformas digitais. Por fim, na seção intitulada Fora de campo, Vinicios Kabral Ribeiro investiga a ideia de “vida-lazer” em filmes brasileiros contemporâneos, em especial O céu de Suely (2006), Praia do Futuro (2014) e Tatuagem (2013), de modo a pensar as possibilidades de pertencimento, felicidade e futuro em vidas marcadas pela precariedade e por sexualidades fora da norma heterossexual. Nesta mesma seção, Felipe Polydoro trata dos testemunhos em vídeo, difundidos nas redes, da violência policial nas periferias brasileiras. Apesar de, evidentemente, não estarmos aqui diante de uma “escrita de si” propriamente dita, esses relatos, muitas vezes produzidos pelas próprias vítimas da violência de Estado, dão testemunho de vidas a um só tempo marcadas pela experiência traumática e mediadas pela imagem.

Roberta Veiga, Carla Italiano, Ilana Feldman

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CINEMA E ESC


CRITAS DE SI



Identidade em deslize: o registro autobiográfico na obra de Chantal Akerman* Alisa Lebow É documentarista, pesquisadora e escritora. Doutora em Estudos de Cinema pela New York University, atualmente é professora em Estudos de Cinema na University of Sussex, Reino Unido.

Traduzido por Roberta Veiga e Carla Italiano.

DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 18-29, JUL/DEZ 2017


* Publicado originalmente em: LEBOW, Alisa. “Identity Slips: The Autobiographical Register in the Work of Chantal Akerman”, Film Quarterly, v. 70, n. 1, 2016, p. 54-60. Agradecemos à autora e à Film Quarterly por autorizarem esta publicação. 1. Orner foi uma amiga próxima da família Akerman. OMER, Esther. “A Last Conversation with Chantal Akerman”, Senses of Cinema, Dezembro de 2015. Disponível em: http:// sensesofcinema.com/2015/ chantal-akerman/a-lastconversation-with-chantalakerman/.

2. [N.T.] No original, trata-se

da expressão psicanalítica “the state of afterwardness”, derivada da tradução corrente de “Nachträglich”, nas formas de adjetivo ou advérbio, como “a posteriori”, “só depois” (mais usado na França), ou ainda “retrospectivamente”. Na forma substantivo, “Nachträglichkeit” se refere ao “tempo do a posteriori”. Portanto optamos pelo substantivo “a posteriori” como tradução para afterwardness que, na obra de Sigmund Freud, designa conceitualmente como as primeiras experiências de excitação corporal não são assimiladas em todos seus sentidos no momento em que são vivenciadas, daí o sentido da compreensão retrospectiva, posterior.

Sua mãe era o fio tênue que a mantinha em equilíbrio. Esther Orner1

A perda de Chantal Akerman, em outubro de 2015, foi um choque. Não era segredo que ela lutava contra uma doença mental, em particular, um distúrbio bipolar, diante da qual cada superação diária representava uma vitória. No entanto, a visão, a vitalidade, e o volume de sua obra faziam crer que ela tinha muito mais dias de vida. A julgar apenas pela obstinação de suas imagens e determinação de seu estilo, ela era uma potência. Mas determinação e obstinação são, por si mesmas, indicadores indeterminados. E o que o seu último filme, No Home Movie (2015), revelou – já aludido em Là-bas (2006) e outros – foi que a brilhante cineasta se agarrava a um fio tênue, e extremamente frágil, de vida. Assistir No Home Movie após a morte de Akerman é um exercício que se dá num estado a posteriori2 – tradução estranha do que Freud chamou de Nachträglichkeit (ou après coup em francês) – com todas suas temporalidades anacrônicas em jogo. O trauma da sua morte é sobreposto à experiência do ver, e o próprio filme, apesar de finalizado meses antes de sua morte, só pode ser visto agora através do véu de seu suicídio, como um adeus consciente ou não. Não há mais como assistir a essa obra numa sequência antes e depois, um momento em um contínuo temporal que terá seus antecedentes e seus decorrentes. O filme surge como uma sentinela no portão de passagem da cineasta, sem nada além de um passado através do qual olhá-lo, e sem o consolo de que seu discurso perturbado e perturbador possa, algum dia, ser reparado por um outro mais estável. No Home Movie deixa a impressão que essa cineasta, desde sempre minimalista, reduziu seu conjunto de instrumentos ao mínimo do básico: não há mais necessidade de artifícios ou substitutos, de sets ou atores, de múltiplas telas, ou até mesmo de um roteiro. O filme aparece enganosamente como uma nota de rodapé na carreira de uma autora bem mais ambiciosa e complexa, ainda que não possa ser descartado tão facilmente. Que seja um filme sobre a morte da mãe é óbvio. Que seja autobiográfico, em um sentido expandido, também é evidente.

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Identidade em deslize / Alisa Lebow


Contudo, No Home Movie finalmente revela em si mesmo todo o esforço pregresso da cineasta de reenquadrar a mãe3 [a outra] como autorretratos de um estranho-familiar4 (interpretação para o “no home” do título) e de uma metempsicose devastadora – aspecto que vale a pena investigar mais a fundo. No Home Movie começa com uma cena de quatro minutos de uma delicada copa de árvore sendo ferozmente golpeada por um insistente vento desértico. O vento forte a golpear as folhas frágeis que se agarravam desesperadamente àquela precária árvore só pode agora ser entendido como uma dupla metáfora palimpséstica, representando, ao mesmo tempo e de um mesmo modo, a mãe – que primeiro agarra-se à sua força vital e depois a deixa escapar – e, igualmente, a cineasta que, mal se segurando, assiste impotente à mãe se entregar para, então, menos de um ano depois, entregar-se ela mesma. Com seus galhos fracos, impiedosamente agitados pelo vendaval que persiste, a árvore não tem chance diante de uma força contrária tão decisiva. Por fim, ela também deve ceder à pressão que a empurra rápida e furiosamente contra sua corajosa, porém, já derrotada, vontade. Mãe e filha sucumbem à intrusão de uma morte tão certa quanto inegociável: a primeira pelas vicissitudes da idade e da doença, a segunda pela força de uma perda intratável. Esse colapso duplo e definitivo da metáfora efetivamente torna ambas as mortes inevitáveis, a perda esmagadora da filha como a de um “eu” analiticamente irmanado ao ponto de uma completa identificação com a mãe. No Home Movie é claramente bem mais que uma homenagem à mãe à beira da morte, e também mais que um canto do cisne. Ele pode ser visto, em parte, como a destilação de uma obra inteira, honesta e verdadeiramente reduzida à sua forma mais elementar, contendo quase todos os tropos de quatro décadas de carreira – fronteiras, exílio, duração, espera, transitoriedade, judaísmo, casa – e nenhum acima do tropo da mãe. Como Akerman mesma reconhece no documentário de Marianne Lambert, I don’t belong anywhere: the cinema of Chantal Akerman (2015), realizado no ano de sua morte, e um ano após a de sua mãe: “Eu compreendi que no fundo minha mãe era o coração do meu trabalho”. E acrescenta friamente, “É por isso que estou com medo. Acho que agora que minha mãe não está mais aqui, nada sobrou”.

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3. [N.T.] Em inglês: (m)other,

para se referir tanto a palavra mãe, como a outra, em uma mesma conjugação, e remeter à noção da mãe, ela mesma, como outra. 4. [N.T.] Un-heimlich –

conceito freudiano que designa a estranheza do que é familiar, ou seja, o que é inquietante, ou o inquietante da estranheza.


Então quando a cineasta, famosa por não amarrar os sapatos, amarra seus sapatos ao final de No Home Movie, a cena resolve falsamente aquilo que nunca seria resolvido, ou quem sabe resolve bem demais. Com a morte da mãe e musa de Chantal Akerman, veio o fim do cinema e da vida da filha. E ainda que seja verdade que a obra de Akerman foi, desde o começo e o tempo todo, motivada e obcecada pela figura da mãe, estando ela presente ou não, até esse último filme, o espectador quase nunca foi devidamente admitido nessa dinâmica tensa e impossível, apenas em seus substitutos e em seus efeitos. No Home Movie oferece uma relação de doçura e afeição, extremamente exagerada, entre duas partes relativamente inaptas para tal. Akerman, que poderia ser bastante irascível, inconstante e, no mínimo, impaciente, adota inconscientemente em relação à mãe a persona de uma filha/mãe paciente e atenciosa. Sua mãe, Nelly (Natalia Akerman), retribui com uma afeição perplexa porém fluida, através de distâncias que, apesar do uso dos meios tecnológicos, nunca foram totalmente superadas. Chantal filma as sessões de Skype e, quando a mãe a questiona duas vezes sobre o porquê de sempre filmar a conversa entre elas, Chantal dá duas respostas: a primeira, “porque eu quero mostrar que não há distância no mundo”, e a segunda, “eu filmo todo mundo”, mas, “é claro que você especialmente, mais que outras”. A mediação dupla (o Skype e a filmagem dele) na verdade não atenua a distância, ao contrário, a amplia, contudo a segunda resposta, “é claro que você mais que outras”, soa bem mais verdadeira. Na realidade, a distância que Akerman diz querer apagar permanece ali teimosamente. É a distância que de fato parece permitir uma intimidade efusiva entre elas. O modo como as duas mulheres se relacionam por meio dos canais de fibra ótica é bem diferente de quando estão no mesmo espaço físico. O fluxo da afeição entusiasmada, os apelidos e o tom indulgente ocorrem principalmente nos períodos de distância física e de dupla mediação: Chantal repetidamente chama sua mãe de “Mamiko”, e fala com uma voz docemente carregada, como se falasse para uma criança amada, e quando a filha sorri de um certo modo, a mãe diz: “eu quero apertar você em meus braços”. Essa enxurrada de afetos evapora numa gota quando elas estão próximas.

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Identidade em deslize / Alisa Lebow


Face a face elas tendem a ser mais reservadas, tomando a medida da outra e mantendo uma distância física e emocional. Pode-se deduzir que se trata precisamente da mesma distância (nem tão perto, nem tão longe) que vai caracterizar o estilo autoral de Akerman.5 Janet Bergstrom reconheceu desde cedo, em um dos melhores ensaios sobre a obra de Akerman, que esse celebrado “manter a distância” é muito mais que um simples elemento formal.6 Ela o viu, com toda razão, como um sinal do processo de “rompimento”, insistindo que havia um motivo inconsciente e não apenas estritamente estético. Para explicar a distância sintomaticamente, Bergstrom evoca a teoria da “mãe morta”, do psicanalista André Green, que se refere à mãe que não está morta de fato, mas que é tão emocionalmente debilitada e sem afeto que a criança a vivencia fisicamente como se estivesse. Bergstrom faz uma longa citação de Green:

Depois de ter vivenciado a perda do amor da mãe e a ameaça da perda da mãe ela mesma, e depois de ter lutado contra a ansiedade por meio de vários métodos ativos, entre os quais são indícios a agitação, a insônia e os terrores noturnos, o ego irá mobilizar uma série de defesas de outro tipo... A primeira e a mais importante consiste em um movimento único de dois aspectos: a decatexia do objeto maternal e a identificação inconsciente com a mãe morta.7

5. Estou intencionalmente parafraseando a citação célebre de uma antiga entrevista, na qual Akerman descreve seu modo de enquadrar Jeanne Dielman como mantendo uma distância respeitosa, o que permitiu à personagem “viver no centro do quadro. Eu não me aproximava demais, mas não estava muito longe. Eu a deixava em seu espaço”. In: “Chantal Akerman on Jeanne Dielman: Excerpts from an interview with Camera Obscura, Nov. 1976”, Camera Obscura 2, Outono de 1977, p. 119. 6. BERGSTROM, Janet.

“Invented Memories”, Identity and Memory: The Films of Chantal Akerman, Gwendolyn Audrey Foster (org.). Trowbridge: Flicks Books, 1999, p. 99. 7. Idem, p. 105 (itálicos no

original).

Como se para reiterar de que modo a teoria pode ser adequadamente aplicada a Akerman, Green ainda explica, em entrevista, que a maioria de seus pacientes que sofrem da síndrome da mãe morta tem dificuldade de se relacionar com outros, mesmo que geralmente sejam muito criativos. Ele diz:

Esses sujeitos escolheram a criatividade no lugar da relação amorosa, talvez para se tornarem independentes do objeto; o objeto, afinal, pode parar de lhe amar; num momento, o objeto está lá, no outro, já se foi. Há um contentamento na criatividade, mas penso que há essa ameaça de não ser capaz de ir além.8

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8. “The Greening of Psychoanalysis: André Green in Dialogues with Gregorio Kohon”. In: KOHON, Gregorio (org.). The Dead Mother: The Work of André Green. Londres: Routledge, 1999, p. 57.


9. “No Idolatry and Losing

Everything that Made You a Slave”, entrevista com Chantal Akerman por Elisabeth Lebovici, Mousse Magazine, n. 31, Novembro, 2011. Disponível em: http:// moussemagazine.it/articolo. mm?id=7.

10. Embora claramente toda a sua obra possa, de alguma forma, ser interpretada como autobiográfica, a própria Akerman assume tal leitura em uma entrevista em vídeo para Terrie Suleman na abertura de “Moving in Space and Time”, uma retrospectiva dos trabalhos de Akerman organizada no List Visual Art Center, MIT, Cambridge, MA, em 1 de Maio de 2008. Ela sugere que até mesmo seu ritmo deve ser tomado como autobiográfico, no sentido de que deriva de seu modo de ver e estar no mundo. Disponível em: http://video. mit.edu/watch/chantalakerman-moving-throughtime-and-space-9370/.

Akerman, ela mesma, não desconhecia a aplicabilidade dessa teoria em seu próprio caso. Em 2011, em entrevista para Elisabeth Lebovici, filha do famoso psicanalista Serge Lebovici (colega de Green), ela menciona que considera a teoria da “mãe morta” de Green perfeitamente pertinente aos seus traumas psicológicos.9 O que a teoria de Green não é capaz de explicar é o impacto da verdadeira morte da mãe para aqueles que sofrem dessa síndrome. E embora, de fato, haja diferentes respostas, todas variando em grau ou intensidade, parece que o fardo da morte dupla (imaginária e real) pode ser, para alguns, num sentido bem verdadeiro, simplesmente demais para suportar. O que fica claro quando olhamos de perto a obra de Akerman, especialmente os projetos mais explicitamente autobiográficos, tanto os documentários quanto as instalações, e até mesmos suas entrevistas, é que ela fornece todas as ferramentas necessárias para o espectador se engajar em seu estado emocional e psíquico, instigando-o objetivamente a fazê-lo.10 Estou consciente de ter me juntando aqui à fila dos teóricos do cinema que cruzaram a linha para psicanalisar a cineasta através de seus filmes. Ainda que me encontre em companhia de muitos estimados comentadores do trabalho de Akerman, gostaria de fazer uma consideração sobre meu próprio deslize. Se estou escorregando entre esses registros, talvez muito pessoalmente lendo este último filme como um presente, eu vejo isso na verdade como um efeito da obra dela (e não somente desse filme) tanto quanto um excesso de minha parte. Pois o cinema de Akerman convoca um tipo peculiar de intimidade, conduzindo tanto espectadores quanto críticos a uma relação que não apenas é sentida como um-paraum, como se fôssemos diretamente endereçados, mas também nos incita a querer abraçar e conter suas vulnerabilidades. Enquanto o teórico do cinema é treinado para ler e interpretar o filme e não o cineasta, acredito que mesmo o mais preparado e contido pensador pode, apesar das restrições disciplinares contrárias, ser perdoado por detectar intencionalidade autoral e mesmo estados psíquicos no trabalho de Akerman. A visão de Akerman é particular e particularmente pessoal. Ela é uma cineasta sem disfarces, que opera como que por instinto mais do que de forma planejada, nunca trabalhada ou estudada, apesar da grande habilidade. Seu cinema fala ao espectador, ao

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menos àqueles pacientes o bastante para ouvi-lo, como uma conversa íntima e profunda com um velho e querido amigo. É uma das razões dela ser tão amada, e claramente o porquê daqueles que amavam seu trabalho estarem tão sentidos com a sua morte. É como se um confidente, um interlocutor, uma alma gêmea, se perdesse. Porque é a sua própria alma que ela revela em seus filmes de ficção e, ainda mais, em seus documentários e instalações, e, com o tempo, isso ocorre com frequência e pungência crescentes. As imagens de Akerman sempre registram uma visão única enquanto seu texto, usualmente encenado em sua voz arranhada, exprime aspectos de sua vida íntima quase como se ela estivesse se confidenciando ao analista. Ela comunica algo desses pensamentos recônditos, quando diz francamente em Là-bas:

Eu não me sinto pertencer. E isso é sem dor real, e sem orgulho. Não, eu apenas sou desconectada. De praticamente tudo. Tenho algumas âncoras. E às vezes as deixo ir ou elas me deixam ir e eu derivo. É assim na maior parte do tempo. Às vezes, eu aguento. Por poucos dias, minutos, segundos. Então, deixo-me ir novamente.

Na instalação que inaugura sua entrada à galeria de arte, Bordering on Fiction: D’Est (1995), Akerman elegante e convincentemente desconstrói seu documentário D’Est em 24 monitores de tevê. Contudo, é o último monitor (a tela 25), localizado na câmara interna da instalação, que inicia o encontro com algo mais próximo do Real do que jamais antes visto na imagem em movimento.11 Sobre as imagens abstratas de luzes e ruas – exteriores indistintos – ela fala da cena primeva, aquela que retorna em todos os seus filmes sem seu conhecimento: a cena da evacuação, de pessoas à beira da extinção, arrastadas pela força da história a não estar mais em casa em nenhum lugar, a estar na eminência do desastre. “Não há nada o que fazer”, ela diz, “é obsessivo e eu estou obcecada”. Ela diz que, até que se tenha terminado, não se percebe que no fundo se faz sempre o mesmo filme, revisitando os mesmos temas de novo e de novo. Os temas e tropos recorrentes têm o efeito de um retorno contínuo, e nenhum tanto quanto o da mãe. Enquanto Akerman reivindica que a cena primeva do exílio está “bem atrás ou sempre à frente” de qualquer imagem que ela traga, o exílio

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11. O título Bordering on Fiction: D’Est se refere à instalação de três câmaras, com curadoria de Kathy Halbreich, apresentada pela primeira vez no Walker Art Center em Minneapolis, em 1995, enquanto o título D’Est faz referência ao filme original, lançado em 1993, no qual a instalação foi baseada e que também foi incluído na sua primeira câmara.


12. [N.T.] Em inglês: m/other

(cf. nota 4).

13. Notas do programa criado pelo coletivo A Nos Amours para a exibição de News from Home no ICA, em Londres, em 23 de Janeiro de 2016. Disponível em: www. ica.org.uk/whats-on/nosamours-chantal-akerman-4news-home.

é, factualmente, o da sua mãe sobrevivente do Holocausto, o mesmo que a cineasta parece vivenciar e representar como se fosse dela própria. Essa apropriação de uma memória que não é dela pode ser vista como uma instância de “pós-memória” ou – para ir mais longe, tomando livremente de empréstimo de alguns comentaristas ciosos do trabalho inconsciente de Akerman (em particular Bergstron, Longfellow e Mamula) – como um deslizamento completo e radical das relações entre sujeito-objeto, onde não pode haver sujeito, nem um “eu” articulado por si só, nem limite entre o “eu” e o outro/mãe.12 Na obra de Akerman, há cenas chave nas quais esse deslizamento pode ser lido de modo bem evidente. Os primeiros sinais aparecem em News From Home (1976), no qual a filha lê em voz alta as cartas escritas para ela, pela mãe. Ela se dirige a si mesma como “minha filha querida”, ventrilocando as palavras da mãe, ainda que a banda imagética garanta uma distância irônica do que está sendo dito, e denote um ponto de vista distinto. Não obstante, tem se observado que suas identidades “se juntam”, como destacado em uma recente nota de programação para o filme: “quem se dirige a quem não é uma questão simples”.13 No entanto, é no trabalho de Akerman dos anos de 1990 que essa fusão, ou incorporação, se torna ainda mais intratável. As alusões ao exílio de seus pais em D’Est (na versão cinematográfica) são evidentes logo abaixo da superfície, ao retraçarem em reverso a marcha dos exilados numa forma ensaio corporificada que permite à cineasta fazer dela o seu próprio exílio. Em duas obras explicitamente autobiográficas – Chantal Akerman par Chantal Akerman (1996), feito para a tevê francesa, e na pouco vista e raramente discutida instalação Selfportrait/Autobiography: a work in progress (1998), exibida inicialmente em Nova York na galeria Sean Kelly, os deslizamentos de identidade simplesmente não podem ser ignorados. Chantal Akerman par Chantal Akerman é um esforço de, na autobiografia, substituir a obra pela vida, ou melhor, de permitir que o trabalho cinematográfico fale da vida de seu criador mais eficientemente e efetivamente do que se poderia conseguir com palavras. Antes de começar a seção com sua obra remontada, intitulada “autorretratos”, Akerman fala longamente para a câmera. Ela apresenta a ideia de sua avó como artista, uma pintora proto-feminista rebelde que fazia

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enormes retratos de mulheres, que foi morta em Auschwitz, e de quem Akerman sugere ter herdado a alma. A ausência de delimitações identitárias remonta não apenas uma, mas duas gerações, como se, através de seus próprios retratos fílmicos, em larga escala, de personagens femininos, ela fosse a atualização de sonhos ancestrais adiados. Depois de quinze minutos dessa sabatina inicial, que é mais uma forma de chegar à autobiografia do que ser autobiográfico per se, Akerman passa a expressar sua autobiografia como uma mistura de cenas de seus próprios filmes. Na metade do filme, há uma longa cena de Portrait d’une jeune fille de la fin des années à Bruxelles (1993) no qual a jovem do título (Circé Letham), matando aula, forja vários bilhetes de autorização que começam sempre com: “Por favor perdoem minha filha Michelle (um homônimo óbvio de Chantal), ela não pode ir à escola...” e que terminam, cada um, com uma desculpa diferente. No primeiro, ela diz que está resfriada. No segundo, sua tia morreu. No terceiro, ela mata seu tio, então seu pai, e no último que, operando por eliminação, provavelmente implicaria a morte de sua mãe, ela mata a si mesma: “elle est mort” (“ela está morta”). Logo depois, ela corta para uma cena de Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) no qual uma mãe ficcional, Jeanne Dielman (Delphine Seyrig), entra na cozinha e se prepara para lustrar os sapatos do filho. A mãe vive para servir o menino, mesmo que apenas pela força do hábito e da repetição. O filho, na cena subsequente, é Akerman com 18 anos, atuando em seu primeiro filme Saute ma ville (1968), imitando exageradamente os gestos da mãe. Colocada nessa ordem, imediatamente após Jeanne Dielman, a cena funciona mais como uma extensão da ação levada à sua conclusão lógica, ou ilógica. A filha está canalizando os gestos da mãe e fazendo destes os seus, externalizando com suas ações a histeria absoluta mascarada pelos gestos extremamente controlados da mãe. O autorretrato se move para uma breve cena de Toute une nuit (1982) onde uma mulher – interpretada pela mãe de fato de Chantal, Nelly Akerman – fuma um cigarro do lado de fora da casa. Akerman, como muitos sabem, foi até o fim uma fumante excepcional e engajada, celebrando o ato no centro de sua instalação Femme d’Anvers en Novembre (2007), ato esse

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destacado na maioria de seus filmes. Enquanto Nelly aproveita seu momento solitário, sua filha (literalmente, uma vez que se trata da voz de Chantal Akerman) tenta chamá-la do seu esquecimento privado com um insistente “mãaee... Mamãaae” vindo do fora de campo. Colocado no centro dessa obra, o chamado opera com um punctum nesse autorretrato: uma momentânea exibição da dinâmica em jogo no cenário da “mãe morta”. Cenas tiradas desses diversos filmes, justapostas desse modo, alteram a sintaxe de sua obra, reescrevendo-a num esforço de expressar não só os temas silenciosos desenvolvidos em (então) trinta anos de prolífica produção cinematográfica, mas para expressar algo profundo das identificações e preocupações de Akerman que começam e terminam com a mãe.

14. AKERMAN, Chantal. A Family in Brussels, Nova York: Dia Art Foundation, 2003. Originalmente publicado em francês como Une famille à Bruxelles, editora L’Arche, 1998.

A instalação de seis monitores, baseada em quatro filmes da Akerman (D’Est, Jeanne Dielman, Toute une nuit e Hotel Monterey (1972)) novamente num tipo de mistura, revisita cenas que buscam sugerir um registro autobiográfico, no qual o trabalho do sujeito se coloca metonimicamente no lugar de si próprio. No entanto, desta vez, ao invés de um longo preâmbulo que recusa precisamente o que promete (i.e. uma narrativa autobiográfica), há uma faixa de áudio simultânea na qual Akerman lê trechos de seu primeiro livro autobiográfico, A Family in Brussels.14 A instalação cria um tipo de perseguição de gato e rato entre os registros em áudio e os visuais. Quando sentado, o espectador pode ouvir o áudio sem propriamente ver as imagens, pois os monitores estão em cima de blocos. Assim, há uma tensão entre o que é dito e o que pode ser visto, forçando o visitante a escolher, a qualquer momento, um ou outro. Para os que são familiarizados com os trechos dos filmes apresentados, o que os compele é a novidade do registro em áudio. A narração em primeira pessoa de Akerman conduz o visitante a presumir que ela está dizendo seus próprios pensamentos. Ainda que sem anunciar um deslocamento, ela discretamente desliza para a perspectiva de sua mãe. O deslizamento vai e volta, sem que o ouvinte tenha certeza de quais pensamentos estão sendo vocalizados em cada momento. A narração que começa com o “eu” da filha, dissolve-se imperceptivelmente no “eu” da mãe, voltando de vez em quando para a primeira. Que Akerman tenha escrito uma autobiografia em grande parte na voz da mãe, assumindo os pensamentos dela como seus próprios, é intrigante

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o suficiente. Encená-la acrescenta outra camada de identificação íntima, com a voz reconhecível da cineasta falando de uma só vez como ela mesma e como uma outra. E chamar esse gesto de autobiografia ou de autorretrato sugere um deslimite que o deslizamento vocalizado acentua.15 Esse deslizamento, de fato, dá um passo além do mero ventriloquismo das palavras da mãe, como nas cartas de News from Home, em direção a uma migração total da alma. Esse movimento é levado a cabo, vertiginosamente, pela voz, uma estranha projeção do “eu” que é, de uma só vez, intrinsicamente associada à uma fonte, emitida por um corpo determinado e, no entanto, desprovida de existência material própria: flutuando no ar, como se em busca de um lar. Não resta dúvida alguma de que a figura materna é aquela que se repete ao longo da obra de Akerman. Brenda Longfellow proclamou, já em 1989, que “se existe um núcleo fantasmagórico no trabalho de Chantal Akerman, ele reside no desejo de reconstituir a imagem da mãe, a voz da mãe”.16 Se, como escreve Tijana Mamula, Akerman, em “praticamente todo seu trabalho, mantém sua mãe muito viva”, então, No Home Movie aparece como uma tentativa de reconciliar-se com o fato de que sua obra não poderia mais fazer isso.17 Vazia e inerte, a última tomada do apartamento da mãe enquadra para fora da tela, ameaçadoramente, como um memento mori, a combinação ornamental das urnas a assumir a aparência de dois ossuários. Ela sugere em silêncio o que ninguém havia considerado, o que ninguém ousaria contemplar: o que aconteceria quando ela não pudesse mais manter sua mãe viva com seus filmes? Com Akerman, supostamente, não há cinema sem a mãe, e isso é irrefutável, como o final lamentavelmente irreversível evidenciou, que não haveria mais filmes sem ela. A questão de quem estava mantendo quem viva com esses filmes parece mais, em seus efeitos, uma reviravolta no emaranhado de identidades deslizantes que percorrem do início ao fim a obra de Akerman.

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15. Lembremos, por exemplo,

de A Autobiografia de Alice B. Toklas (1993) de Gertrude Stein, mas enquanto esse título pretendia chamar atenção para o paradoxo, os deslizamentos de Akerman permanecem não sinalizados e, portanto, consideravelmente mais perturbadores. Eu havia escrito mais sobre este deslizamento: Alisa Lebow, “Memory Once Removed”, p. 47. Amy Taubin, uma crítica usualmente precisa e cuidadosa, lembrou erroneamente desse aspecto em sua crítica original da instalação para o Village Voice. Ela escreveu que “o texto seria puramente autobiográfico com a exceção do narrador em primeira pessoa, que não é Akerman e sim sua mãe”. Amy Taubin, Village Voice, 12 de Maio de 1998. 16. Brenda Longfellow, “Love

Letters to the Mother”, Canadian Journal of Political and Social Theory 13, n. 1-2, 1989, p. 73. 17. MAMULA, Tijana.

“Matricide, Indexicality and Abstraction”, Studies in French Cinema 8, n. 3, 2008, p. 273.



Autobiografia, exílio e alteridade: o cinema de David Perlov, Avi Mograbi e Elia Suleiman Ilana Feldman Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da USP. É pós-doutora em Teoria Literária pela UNICAMP e doutora em Cinema pela ECA-USP, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris 8.

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Resumo: As escritas de si no cinema, seja ele em primeira pessoa, autobiográfico e/ou autoficcional, têm problematizado de forma cada vez mais instigante o modo pelo qual a subjetividade, constituindo-se por meio da linguagem e da imagem, pode tornar-se condição para a relação com a alteridade. Nesse panorama, as obras autobiográficas e autoficcionais do cineasta brasileiro, radicado em Israel, David Perlov (Diário 1973-1983, 1985), do israelense Avi Mograbi (Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos, 2005) e do palestino Elia Suleiman (O que resta do tempo, 2009) interrogam as interseções entre as esferas pública e privada, a história coletiva e a memória pessoal, a familiaridade e a estrangeiridade, fazendo da escrita de si uma das mais potentes formas de escrita do outro. Como discutiremos a partir de três sequências privilegiadas para análise, se Perlov encarna a figura da angústia e do mal-estar, Mograbi a figura do confronto e Suleiman a figura da perplexidade, a identidade de cada um dos realizadores vai se confundir com a alteridade de seus próprios personagens: todos eles de alguma forma exilados em meio a um contexto político explosivo e fraturado. Palavras-chave: autobiografia; alteridade; exílio; David Perlov; Avi Mograbi; Elia Suleiman Abstract: Self-writing in the cinema, whether first person, autobiographical and/ or autofictional, has increasingly problematized the way in which subjectivity, constituting itself through language and image, can become a condition for the relationship with alterity. In this panorama, the autobiographical and self-fictional works of the Brazilian filmmaker, living in Israel, David Perlov (Diary 1973-1983, 1985), the Israeli Avi Mograbi (Avenge But One of My Two Eyes, 2005), and the Palestinian Elia Suleiman (The time that remains, 2009) question the intersections between public and private sphere, collective history and personal memory, familiarity and foreignity, making self-writing itself one of the most powerful form of writing of the other. As we will discuss through the analysis of three selected sequences, if Perlov embodies the figure of anguish and uneasiness, Mograbi the figure of confrontation, and Suleiman the figure of perplexity, the identity of each of the directors will be merged with the otherness of their own characters: in the midst of the same explosive and fractured political context, all of them are, somehow, exiled. Keywords: autobiography; alterity/otherness; exile; David Perlov; Avi Mograbi; Elia Suleiman

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A emoção não diz “eu”. (...) Se está fora de si. Gilles Deleuze O exílio é a vida levada fora da ordem habitual. É nômade, descentrada, contrapontística, mas, assim que nos acostumamos a ela, sua força desestabilizadora entra em erupção novamente. Edward Said

As narrativas performativas no âmbito do cinema, seja ele autobiográfico ou autoficcional,1 em geral narrado na primeira pessoa, têm problematizado de forma cada vez mais instigante o modo pelo qual a subjetividade, constituindo-se por meio da linguagem e da imagem, pode tornar-se condição para a relação com a alteridade. Afinal, como vêm postulando a linguística e as filosofias do sujeito e da enunciação que lhe são tributárias, essa primeira pessoa que parece encerrada em sua particularidade só adquire seu verdadeiro sentido quando consegue tocar e elaborar a experiência coletiva, quando consegue, por meio de operações narrativas de desvio, montagem e mise en scène, fazer reverberar sobre o eu o tu, sobre o familiar o estrangeiro, sobre o íntimo o êxtimo2 – âmbito que, segundo a psicanálise, sendo tão próprio ao sujeito, só poderia apresentar-se fora dele, na relação com o outro, na exterioridade da linguagem. “O ‘eu’ que escreve sua história não escreve somente sobre si mesmo, porque não há nada de menos substancial que esse próprio si”, formula Jeanne Marie Gagnebin no ensaio “Entre moi et moi-même (Entre eu e eu-mesmo)” (2005, p.138), sobre as contribuições do filósofo francês Paul Ricoeur a propósito do conceito de “identidade narrativa”. Pensando a identidade como “ipseidade” (ipséité) em oposição à “mesmidade” (mêmeté), isto é, como uma identidade subjetiva não essencializada, não substancialista, mas descontínua e fragmentada no decorrer de sua duração temporal, Ricoeur, na esteira da linguística de Benveniste, defende um conceito de sujeito simultaneamente dessubstancializado e radicalmente responsável: é sujeito aquele que se diz e se constrói a si mesmo pela elaboração de sua própria história, pela ação de tomar a palavra e dizer “eu”, pois é na linguagem e pela linguagem que um sujeito se constitui (Benveniste, 1988, p.286). Porém, esse “eu” sempre se define em

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* O presente artigo retoma e desenvolve as comunicações apresentadas no âmbito do IV Colóquio “Cinema, estética e política”, organizado pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da UFMG e realizado em Belo Horizonte, de 24 a 26 de junho de 2015, bem como no Colóquio Internacional “Chamar as chamas: imagens, gestos, levantes”, promovido pelo MAR – Museu de Arte do Rio e UFRJ, de 23 a 26 de novembro de 2015. 1. Cunhado por Serge Doubrovsky na década de 1970 em relação à literatura, o termo “autoficção” compreende a subjetividade como produção e se inscreve no coração de um paradoxo: o desejo de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma verdade. Neste artigo, procuramos pensar a autoficção no cinema como intensificação, ou explicitação, da dimensão ficcional que a própria escrita autobiográfica já comporta em si mesma, seja por meio de diversas formas de mise en scène e encenação do eu, seja por meio do humor, da paródia de gêneros narrativos e da capacidade de autoderrisão do cineasta. 2. De acordo com Miriam

Debieux e Tiago Sanches Nogueira, foi em seu seminário intitulado “A ética da Psicanálise” que Jacques Lacan usou o termo “extimidade” pela primeira vez, ao discorrer sobre a Coisa freudiana (das Ding). “Desse modo, o centro do homem, o mais íntimo de si mesmo, estaria fora dele e sua busca estaria voltada


para o reencontro desse das Ding, desse ‘Outro absoluto do sujeito’” (2017, p.192, grifo nosso), cf. bibliografia.

relação a um “tu”, já que as instâncias de enunciação e destinação de um discurso são inseparáveis, assim como são entrelaçadas e complementares, como numa fita de Moebius, a identidade e a alteridade, o dentro e o fora, o próprio e o alheio. Assim, seguindo as reflexões de Gagnebin e de seus antecessores, como Benveniste, Ricoeur e Jean Starobinski, uma autobiografia somente se realiza quando rompe com o enquadramento privado e individual que parecia constituí-la enquanto gênero específico. Afinal, no âmbito das escritas de si, um escritor ou cineasta, cuja escritura aparentemente versa sobre si mesmo, escreveria mais a respeito das transformações pelas quais passou, ou está passando, do que sobre esse “si mesmo” supostamente estável e permanente. Mais ainda: “é porque ele passou por essa transformação que sente a possibilidade, muitas vezes a exigência, de contar, é porque ele se tornou outro que toma a palavra” (Gagnebin, 2005, p.138, grifo nosso). Como bem sabe a experiência psicanalítica, distante do outro que se era, um sujeito se torna “ele mesmo” no ato de narrar. Tomando então distância das ilusões de permanência substancial da identidade pessoal, da redução do coletivo ao primado do indivíduo e da “hipertrofia do eu” que marca grande parte das narrativas midiáticas e expressões artísticas contemporâneas, as obras autobiográficas e autoficcionais do cineasta brasileiro radicado em Israel, David Perlov; do israelense de origem síria Avi Mograbi; e do palestino residente na França Elia Suleiman – todos os três de alguma forma exilados em meio a um contexto político explosivo e fraturado –, interrogam as interseções entre as esferas pública e privada, a história coletiva e a memória pessoal, a familiaridade e a estrangeiridade, fazendo da escrita de si uma das mais potentes formas de escrita do outro. Afim de dar a ver como tal dinâmica se expressa de forma singular em cada gramática cinematográfica, analisaremos sequências de Diário 1973-1983 (Perlov, 1985), Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos (Mograbi, 2005) e O que resta do tempo: crônica de um presente ausente (Suleiman, 2009), tendo sido as três obras realizadas em Israel e Cisjordânia, região marcada por dissensos políticos e conflitos milenares – e que vem fomentando uma das mais expressivas e combativas produções cinematográficas da atualidade. Como discutiremos por meio dessas de três distintas formas de exílio, de três distintos modos de

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enunciação e subjetivação,3 se Perlov encarna a figura da angústia e do mal-estar, Mograbi a figura do confronto e Suleiman a figura da perplexidade, a identidade de cada um dos realizadores vai se confundir com a alteridade de seus próprios personagens: pois é apenas a partir desse lugar que o radicalmente outro pode ser evocado, ouvido, entrevisto ou figurado, mesmo quando o mundo parece estar prestes a se convulsionar.

David Perlov e a figura do mal-estar Considerado o precursor do cinema moderno israelense, o brasileiro David Perlov construiu uma filmografia singular, caracterizada pela tensão entre o público e o privado, o cotidiano e o sagrado, o poético e o político, a história coletiva de uma geração e sua fascinante jornada pessoal, marcada, no pleno sentido de uma cicatriz, por uma série de deslocamentos geográficos e por uma forte sensação de não pertencimento. “Estranho aqui, estranho lá, estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um estranho lá”, afirma Perlov citando uma canção de Odetta Holmes, enquanto observa, através da janela de um carro e depois de 20 anos de ausência do Brasil, passantes em uma rua quieta de São Paulo. Judeu laico, filho de um mágico itinerante original da então Palestina e de uma mãe iletrada, imigrante da Bessarábia, Perlov nasce no Rio de Janeiro em 1930, mas passa sua primeira década de vida em Belo Horizonte, onde é criado pela negra Dona Guiomar, neta de escravos e fervorosamente protestante. Aos 10 anos muda-se com o irmão para o bairro da Vila Mariana, em São Paulo, abandonando uma infância sofrida, extremamente pobre e nada protegida. Entre os estudos em um colégio estadual e as viagens de bonde, Perlov dedica-se ao desenho e ao movimento juvenil socialista-sionista Dror, onde conhece Mira, judia polonesa sobrevivente da Shoah,4 que será produtora de Diário 1973-1983 (1985) e sua companheira por toda a vida. Antes, porém, de fixar-se em Israel no final dos anos 1950, como muitos jovens judeus de sua geração mobilizados pelo trauma da Segunda Guerra, é a estada de seis anos em Paris, entre 1952 e 1956, que leva Perlov a abandonar a aspiração às artes visuais. O cinema se apresenta então como uma nova

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3. Lembremos que a

subjetivação, o tornar-se sujeito, implica sempre um processo de desidentificação, um descolamento de uma identidade supostamente fixa e essencializada. De acordo com Jacques Rancière, em O desentendimento, essa “desidentificação” (1995, p.47) se relaciona à emergência de uma cena política, desfazendo e recompondo as relações entre os modos do fazer, do ser e do dizer que definem a organização sensível da comunidade (1995, p.51), cf. bibliografia.

4. Empregamos a palavra

hebraica “Shoah”, que significa desastre e destruição, em lugar do usual “Holocausto”, termo problemático devido a sua conotação religiosa e sacrificial. “Shoah” nomeia assim a aniquilação em massa dos judeus, sobretudo europeus, no decorrer da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, sobremaneira, a partir da Solução Final (1941).


5. Perlov parece colocar

em prática o postulado desenvolvido por Walter Benjamin em seu projeto das Passagens, segundo o qual, “escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia”. (2006, p. 518), cf. bibliografia.

paixão, pelas possibilidades estéticas, humanas e críticas que esse meio lhe oferece. Pelas possibilidades, por meio da montagem de fragmentos filmados, de recompor a história, dando à cronologia das datas uma fisionomia.5 Em 1958, deixando para trás a vida de assistente de Joris Ivens e Henri Langlois, o jovem cineasta muda-se definitivamente para Israel, indo ao encontro de Mira e refazendo o caminho de sua diáspora originária. No kibutz Bror Hayil, comunidade agrícola baseada no trabalho coletivo, nascem em 1959 suas filhas, as gêmeas Yael e Naomi, presenças fundamentais em sua obra autobiográfica, a qual vai se estender até início dos anos 2000. Em 1961, a família transfere-se para a urbana e cosmopolita Tel Aviv, onde Perlov, anos mais tarde, desenvolve um aguçado senso de observação e precisão formal por meio das janelas de seu apartamento. A partir da realização de seu média-metragem Em Jerusalém (1963), obra influenciada pela Nouvelle Vague francesa e considerada a pioneira do cinema moderno israelense, mas muito pouco apreciada pelo status quo israelense, Perlov se vê isolado pelas autoridades políticas e sistemas de financiamento locais. Nesse contexto, não consegue realizar seus projetos de documentário e passa a viver uma espécie de exílio forçado em seu próprio apartamento. Como se percebe em Diário 19731983, Perlov busca liberdade estética e política em um momento histórico em que o cinema é visto pelo Estado como instrumento de propaganda ideológica, sendo valorizados e financiados apenas os filmes edificantes, solenes e comemorativos – e não as experiências formais empenhadas em dar espaço ao humano. Ele quer fazer filmes sobre pessoas, sobre as vidas dos imigrantes que constroem o país, enquanto eles, as autoridades estatais da época, querem filmes sobre ideias. Para sair de um estado depressivo e colocar o olhar em movimento, Perlov dá início, a partir de 1973, a um diário cinematográfico. Em plena eclosão da Guerra de Yom Kippur, o cineasta reivindica a liberdade de um escritor e a precisão de um atirador para filmar e mirar a realidade do mundo exterior através dos enquadramentos de suas janelas, janelas do apartamento, janelas da televisão. “Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu começo a filmar para mim mesmo e

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por mim mesmo. O cinema profissional não me interessa mais”, diz ele no primeiro capítulo de seu diário, recusando a partir de então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de ilusões, trapaças e mistificações – embora mais adiante admita que, em diversos momentos, recaia nos dramas que a própria realidade lhe oferece. Filmado, escrito e montado durante mais de 10 anos e divido em seis capítulos (cuja narrativa desloca-se entre Tel Aviv, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Lisboa), o Diário 1973-1983 de Perlov, dentre os diversos filmes por ele realizados, constitui sua obra mais importante e vigorosa, acrescida dos também autobiográficos Diários revisitados 1990-1999 (2001) e do ensaio fílmico Minhas imagens 19522002 (My Stills, 2003), seu filme-testamento. Intercalando com extrema precisão e força poética os eventos do cotidiano familiar, os traumas vividos no passado brasileiro e os dramáticos acontecimentos políticos de Israel, Perlov relaciona a escritura de seu diário fílmico a um ato de guerra, assim como de desespero, conferindo ao gênero uma radicalidade que não existia no cinema israelense de então. Em Diário 1973-1983 é a primeira vez, nessa cinematografia, que a investigação sobre si e sobre o olhar político daquele que filma se torna uma questão cinematográfica. É a primeira vez que a enunciação em primeira pessoa toma forma, situada na voz corporificada e ritmada do próprio cineasta. Entretanto, esses anos da vida de Perlov não nos são apresentados a partir de um prisma estritamente confessional. De modo contrário, sua trajetória biográfica nos é revelada aos fragmentos, ainda que organizados cronologicamente, e sua subjetividade emerge não de uma interioridade essencializada, mas da observação da exterioridade do mundo e da interrogação das imagens que capta, cujos sentidos são construídos por meio de um potente trabalho de narração, reflexão metodológica e montagem. Assim, a imbricação entre história, política e experiência subjetiva faz de seus diários um caderno de notas audiovisuais, atravessados e perfurados pela presença do outro, pelo mundo, por uma experiência de radical extimidade. Como perguntava-se Pascal alguns séculos antes: “O que é o eu?”, para ele mesmo responder: “Um homem que se põe à janela para ver os passantes”.6

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6. “Qu’est-ce que le moi?

Un homme qui se met à la fenêtre pour voir les passant”, citado por Gérard Wajcman em Fenêtre. Chroniques du regard et de l’intime (2004), cf. bibliografia.


Batucada Ao longo do Diário, não são poucas as vezes em que o olhar de Perlov migra da observação sobre a família e o cotidiano, do comentário político e social e do cultivo de um estado de espírito, muitas vezes marcado pelo mal-estar, para uma radicalização formal, em que a linguagem, por meio da montagem, é estremecida e convulsionada. O momento mais intenso acontece no terceiro capítulo, quando a montagem intercala uma harmoniosa dança entre amigos na sala de estar do cineasta com a paisagem da cidade em “convulsão”, filmada através da janela por uma câmera na mão agitada e frenética. Durante a dança, com amigos recémchegados do Brasil, ao som de uma música brasileira, Perlov se recorda dos momentos de penúria em sua infância:

Essa dança em casa é muito repentina. Quantos momentos do passado ela revela? Quantos carnavais perdidos? Eu pressinto o início de uma longa jornada a caminho de casa. Minha casa, a casa e o quintal em Belo Horizonte. Feijão sem arroz. Uma ou duas bananas por semana. Nada mais.

A partir desse comentário, a montagem corta da situação da dança (desfrutada por Mira e pelo casal Julio e Fela) para a paisagem da cidade ao som de um batuque de carnaval, o qual continua sobre a imagem da sala de estar agora vazia. O batuque cede progressivamente ao silêncio, quando é tomado por um agudo som de apito, seguido pela gravidade de tambores abafados, como um anúncio ou presságio do que está por vir. Em seguida, estamos já dentro de um quarto (supomos que de Perlov) submersos em uma intensa batucada que ritma demoradamente o estremecimento de fotografias, postais, pinturas e recortes de jornal afixados sobre uma parede. Alguns minutos depois, ao som de apitos, cuícas e tambores, a câmera na mão, ainda agitada e tremulante, deixa o quarto para ir ao encontro da paisagem da cidade em convulsão, vista através da janela – como quem vive e testemunha um estremecimento a um só tempo interior e exterior. A sequência se encaminha para o fim e estamos de volta à sala de estar onde antes dançavam alegremente os amigos, que agora encenam uma longa, e por vezes cômica, despedida.

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Como vemos nessa sequência a que chamamos de “Batucada”, tal entreato caótico que vem interromper a dança, com a duração de quase dez minutos, insere outras temporalidades no interior de uma suposta unidade espaço-temporal e opera no Diário como uma vertiginosa paisagem interior de Perlov: espécie de fluxo de consciência, porém com palavras estancadas, carregado de agitação, inquietude e angústia. Dessa forma, a narração inicial de Perlov não apenas relaciona o presente da filmagem à sua penosa e pobre infância vivida em Belo Horizonte, ao longo de muitos carnavais, como vê nesses momentos passados pontes com sentimentos, sensações e presságios que habitam seu presente. Como se, como queria Benjamin (2006, p. 503) em seu método desenvolvido nas Passagens, na análise do pequeno momento individual – a dança com os amigos –, Perlov encontrasse uma angústia subterrânea, o traço de uma tragédia iminente, “o cristal do acontecimento total”. Assim, a imagem atuaria nessa sequência como o espaço e o tempo em que o ocorrido (o passado da filmagem) encontraria o agora (o presente da narração e da montagem, realizadas alguns anos depois da captura das imagens) como num lampejo, estremecimento ou convulsão. Entre o plano da imagem e o plano da narração, entre sua traumática experiência pessoal no passado e seus sentimentos negativos pelo futuro próximo de Israel, existiria uma espécie de tumulto existencial, de tremor, de terremoto – situação subjetiva expressa pelo modo como Perlov filma, com uma câmera convulsa, a paisagem da cidade através da janela. Aqui, não podemos esquecer que estamos em 1981, a menos de um ano da Guerra do Líbano e de todo o sofrimento que ela provocará, guerra que será então tematizada no capítulo seguinte. Como se vê, em Perlov o trauma – da penúria, da loucura – é parte de um evento pessoal e fundador, mas sua dor faz perpetuamente a passagem à dimensão coletiva de uma história que só pode ser entrevista, à maneira benjaminiana, como fragmento, presságios e catástrofe. Logo, se na Tel Aviv de Perlov o traumático passado pessoal do cineasta se liga ao dramático futuro coletivo de Israel, é porque existe um potente trabalho de montagem que, a todo o tempo, abre o espaço doméstico da família a um fora – o “fora” das janelas do apartamento, o “fora” de suas referências artísticas e afetivas. Fazendo um uso singular de seus arquivos pessoais (composto por

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7. Referência ao “Atlas

Mnemosyne” de Aby Warburg. Ver a contribuição de Georges Didi-Huberman em “ATLAS ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?”, 2011, p.2-3, cf. bibliografia.

8. Para maior aprofundamento da análise, ver nossa publicação anterior “As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política” (Feldman, 2017), cf. bibliografia.

9. Para autores como Blanchot, Derrida e Levinas, o judaísmo só existe como um dos nomes do não idêntico, condição que não se define por nenhuma propriedade intrínseca, exceto aquela que se dá no devir, sempre errante e estrangeiro. A esse respeito, ver as importantes contribuições de Betty Fuks (2000, p. 73-76), cf. bibliografia.

fotografias, pinturas, postais e desenhos), Perlov filma seu “mural warburguiano” de maneira convulsiva e tremulante, fundindo referências da história da arte, do cinema e de sua própria família e trajetória biográfica, em uma espécie muito particular de “Atlas Mnemosyne”7 para uso diário. Entre recortes de jornal com imagens do pai prestigiador, encenando seus números de mágica, vê-se nesse mural uma recorrente imagem de A paixão de Joana D’arc, de Carl Dreyer (1928), com ênfase no rosto em primeiro plano da personagem em súplica; uma reprodução da litografia Sorrow, de Van Gohg (1882); uma polaroide caseira de um corpo de mulher nu e destituído de cabeça (provavelmente Mira); e manchetes de periódicos com o apelo “Meu filho, meu filho!”, como quem grita de pavor diante da partida de um filho para guerra. Ao longo de seus diários, David Perlov não cessou de abrir janelas, de filmar através delas, de fechá-las, de tornar a abri-las, dando forma à matéria informe de si e do mundo, pois as janelas constituem a mediação concreta e a figuração simbólica por meio das quais o âmbito pessoal e autobiográfico é atravessado pelo público e pelo político.8 Assim, aproximando-se do que lhe é estranho e distanciando-se do que lhe é extremamente próximo, Perlov desenvolve em Diário 1973-1983 uma espécie de política das imagens e alça suas imagens pessoais à condição de operadores da política, na medida em que, através das janelas, a alteridade do mundo vem rebater sobre o eu, expondo-o ao que o ultrapassa. Em lugar de uma narcísica e tão banalizada hipertrofia do “eu”, em que se confunde e superpõe o sujeito do discurso com o indivíduo que fala, estamos diante aqui de uma experiência marcada pelo exílio subjetivo e pela não-identidade.9 Em um país que escolheu como lar, escolha carregada de sonhos, mas também de frustração e ativo inconformismo, Perlov, poderíamos dizer, nunca se sentiu em casa na própria casa.

Avi Mograbi e a figura do confronto Avi Mograbi é o cineasta que hoje melhor incorpora, já que ele mesmo se faz corpo em sua obra, a contundência do documentário israelense. Ousado e inventivo, Mograbi tem construído uma obra contundente do ponto de vista estético e político, interrogando os fundamentos da sociedade israelense

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e questionando radicalmente os códigos da prática documental tradicional. Nesse movimento, o documentarista Mograbi, alçado a personagem de seus próprios filmes, coloca-se a si mesmo em questão, de maneira explicitamente autoficcional e autoirônica, quando não cáustica e mordaz. Assim tem sido, com importantes variações de tom e de estratégia, desde Como eu aprendi a superar meu medo e amar Ariel Sharon (“Comment j’ai appris à surmonter ma peur et à aimer Ariel Sharon”, 1996), Feliz aniversário, Sr. Mograbi (“Joyeux anniversaire, Monsieur Mograbi”, 1998), Agosto, antes da explosão (“Août, avant l’explosion”, 2001), Vingue tudo, mas deixe um de meus olhos (“Pour un seul de mes deux yeux”, 2005), Z32 (“Z32”, 2008), Em um jardim eu entrei (“Dans un jardin je suis entré”, 2012) e Entre cercas (“Entre les frontières”, 2016). Nascido em 1956 em Tel Aviv, no seio de uma família judia original de Damasco, na Síria, radicada na Palestina em uma época ainda pré-nacional, isto é, antes da criação do Estado de Israel e da eclosão dos nacionalismos árabes, Mograbi tornouse um crítico contumaz dos fundamentalismos nacionais. Posicionando-se criticamente às correntes hegemônicas do sionismo10 desde os tempos de estudante e defensor de um Estado de Israel laico, binacional e inclusivo, o engajamento estético e político de Mograbi deveu-se, segundo o crítico Ariel Schweitzer (2014, p.134), a dois encontros. O primeiro se deu com o cinema: seu avô Ibrahim fora proprietário de uma das salas de cinema mais antigas de Tel Aviv, inaugurada em 1930, a qual portava seu nome: “Cinema Mograbi”. É lá que, em criança, ele é iniciado às imagens em movimento e descobre a força do cinema de gênero. O segundo com a política: em 1983, em plena Guerra do Líbano eclodida no ano anterior, Mograbi, então estudante de filosofia e artes plásticas, é convocado para realizar seu serviço de reserva no Exército. Fortemente contrário à guerra, ele se recusa a servir no Líbano, transformando-se em porta-voz de um grupo de jovens, como ele, resistentes ao serviço militar. Mograbi é então condenado a trinta e cinco dias de prisão. A partir desse evento biográfico marcante, Mograbi torna-se membro de diversos grupos militantes contra a ocupação e pela defesa dos direitos dos palestinos, não podendo mais dissociar sua obra como cineasta do ativismo e inconformismo político. À sua radicalidade política, soma-se o trabalho de interrogação

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10. É preciso lembrar que

o sionismo contempla um amplo espectro de correntes ideológicas, inclusive divergentes. A corrente sionista que pavimentou a formação do Estado de Israel foi, do final do século XIX a meados da década de 1970, alinhada à ideologia socialista e a diversas frentes no campo da esquerda. A partir dos anos 1970, com o término da Guerra dos Seis Dias (1967), a subida da direita ao poder (1977) e a implementação de políticas de anexação e ocupação militar dos territórios palestinos, o termo sionismo vai se irmanando ao caráter nacionalista e colonialista do Estado israelense, desde 2009 sob liderança do ultraconservador premiê Benjamin Netanyahu.


e desconstrução de uma suposta neutralidade ou autenticidade do dispositivo documental, atravessando as fronteiras do gênero, tensionando seus limites e lançando mão de variadas estratégias ficcionais. Ao se valer da arma corrosiva do humor (em alguns momentos até do cinismo), Mograbi tem realizado filmes ancorados na encenação do “eu”, no jogo com os códigos da autobiografia e no embaralhamento entre documentário e ficção, nos quais sua própria figura de documentarista engajado e militante de esquerda é radicalmente ironizada – como acontece de maneira explicita em Como aprendi a superar meu medo e amar Ariel Sharon (1997), Feliz aniversário, Sr. Mograbi (1999), Agosto, antes da explosão (2001) e Z32 (2008). Mograbi então realiza, de diferentes maneiras, uma espécie de genealogia da violência e dos traumatismos que conformam a vida dos israelenses e dos palestinos sob a ocupação, filmando inimigos (como Ariel Sharon), amigos (como seu professor de árabe Ali Al-Azhari ou a voz de seu amigo palestino confinado em Ramallah), soldados atônitos (em checkpoints entre Israel e a Cisjordânia), imigrantes africanos (encenando suas histórias em um campo de refugiados), concidadãos à beira de um ataque de nervos e a si próprio desempenhando o papel de documentarista, de produtor e de sua própria esposa em vias de separação. Como afirma Schweitzer (2014, p.135): “A subversão dos procedimentos cinematográficos caminha assim, lado a lado, com um trabalho de problematização e desconstrução dos mitos fundadores da sociedade israelense”. Mas é em Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos (2005), séria cartografia da cultura da violência no Oriente Médio, dos mitos bíblicos aos homens-bomba, passando, claro, pela ocupação militar israelense impingida aos territórios palestinos, que Mograbi investiga a fundo as históricas e míticas matrizes fundadoras de seu país, assumindo o lugar do confronto. Por meio da observação de duas situações cotidianas, uma visita de jovens norte-americanos à fortaleza de Massada e uma aula para crianças da escola primária, Mograbi flagra e interroga a transmissão de dois mitos fundadores judaicos: o suicídio coletivo dos 960 judeus zelotas abrigados na fortaleza de Massada, que, cercados por dez mil soldados romanos, recusaram-se a se render no ano de 73, e o suicídio vingativo do herói bíblico Sansão, que teve seus dois olhos

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arrancados pelos filisteus e se vingou destruindo as colunas do templo onde estava, matando a si mesmo e a todos os inimigos. Relacionando essa violência mítica à realidade israelo-palestina no momento da Segunda Intifada11 – o título do filme, inclusive, faz referência à oração que Sansão dirige a Deus antes de recuperar suas forças e realizar seu “ataque suicida” –, Mograbi capta uma série de “rituais de violência”, descreve uma sociedade sob tensão, à beira da autodestruição, e personaliza seu tema respondendo à agressão militar com sua própria agressividade e disposição ao confronto.

Do outro lado da linha telefônica Diferentemente de seus filmes anteriores, em Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos o documentarista assume outro tom: no lugar de seu humor cáustico, da encenação paródica de si mesmo e da construção de dispositivos ficcionais, Mograbi opta pela discrição, por uma observação mais distanciada, mas sem deixar de abrir mão de sua presença, ainda que pontual. Aqui, o fio condutor da narrativa, aquilo que une a diversidade das situações filmadas, mesmo que de forma discreta, são as conversas telefônicas que o cineasta estabelece com um amigo palestino, confinado em Ramallah, na Cisjordânia, território ocupado por Israel. Nessa situação, o cineasta coloca-se diante de sua câmera, no exíguo espaço de um quarto, em realidade uma ilha de edição caseira, como quem precisa deixar claro que a política e o cinema se fazem em todos os lugares, inclusive no espaço privado da casa. Injetando seu corpo e sua voz na matéria fílmica, Mograbi não chega a falar em primeira pessoa, não chega a dizer “eu”, mas inventa uma subjetividade estilhaçada, que vai progressivamente impregnando os pedaços da realidade que captura e produz – até chegar o momento em que, perdendo o controle sobre sua própria fúria, faz o filme sair de si. “Acredite em mim, não me importo se eu morrer. Meu problema é como viver”, diz a voz do amigo palestino, por telefone, a Mograbi. “Bom, eu não quero morrer”, responde Mograbi em primeiro plano diante de sua câmera fixa, enquanto ao fundo e sob a penumbra vemos uma figura feminina, supomos que sua esposa, passar, arrumar alguns livros e se instalar diante

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11. A Segunda Intifada nomeia uma série de eventos que deram corpo à revolta da população civil palestina contra a política de administração e ocupação israelense, no contexto do fracasso dos acordos de Camp David, do recrudescimento de ataques terroristas e de sucessivos confrontos entre o exército israelense e os palestinos. O conflito durou de setembro de 2000 até o início de 2005, deixando milhares de mortos.


de seu computador, na normalidade da vida cotidiana. “Na realidade eu quero viver, mas a linha entre viver ou morrer não é tão complicada para mim, não é um grande problema”, continua o amigo palestino, em um diálogo que dá início à penúltima sequência do filme, dividida em duas partes. Não desprovida daquele humor corrosivo bastante judaico, a conversa continua sobre vida e morte, céu e inferno, a existência palestina sob ocupação, a falta de vontade de viver, Deus, vinhos franceses e garotas holandesas. E então o amigo palestino desabafa: “Estou dormindo até às 11h da manhã todos os dias. Eu não sei como vou retornar para uma vida normal”. Corta. Mograbi coloca-se agora diante de uma fronteira militar que divide Israel dos territórios ocupados. Sua câmera está na mão, instável, e flagra crianças palestinas do outro lado de uma cerca viajada. Diante de si, um jipe militar e alguns jovens soldados israelenses. A equipe que está a seu lado (não os vemos, mas ouvimos uma voz de mulher) pergunta a que horas o portão será aberto para que as crianças passem. “Devemos responder a você? Fale com meus superiores”, eles dizem. Mograbi se aproxima. Eles pedem para o documentarista se afastar. Um dos soldados, filmado agora em plano muito próximo, pede novamente para que Mograbi se afaste e pare de filmar, mas o realizador insiste. O grau de tensão da conversa vai progressivamente aumentando. Empunhando sua câmera na posição de arma, Mograbi interpela o soldado de maneira nervosa, pede para ver onde está a ordem superior que impede as crianças palestinas de voltarem para casa depois da escola, chama o soldado de teimoso, manda-o crescer e, num tom de voz cada vez mais agressivo, diz para o grupo de jovens militares que eles são um bando de inúteis, que suas ordens são ilegais, até que grita, com o dedo em riste, exigindo que abram o portão. Então um dos soldados pontifica discretamente: “Ele está tentando conseguir material para uma história”. E Mograbi lhes pergunta, aos berros: “De onde vocês vêm? De que buraco vocês saíram? De que lixeira vocês foram transportados?”. Os soldados não reagem. As crianças continuam aguardando e assistem de longe a cena. Até que um dos jovens militares diz: “Eu espero que você tenha um filho que um dia ouça o que você está dizendo agora”. Mas Mograbi não desiste nem arrefece seu tom de voz, continuando em fúria: “De onde o seu povo vem?”. “Nós viemos de seu país”, um deles lhe responde fechando a porta do jipe. 44

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Com duração de quase 10 minutos, é terrível toda a sequência assim instalada. A violência, por todos os lados, é presente e iminente. O amigo palestino está do outro lado da linha telefônica e sua ausência física impõe uma presença ao modo do fantasma. Já as crianças palestinas estão do outro lado da cerca viajada e suas presenças parecem invisíveis, como se não existissem. A linha telefônica e a cerca são os limites que relacionam os dois mundos e radicalmente os separam. As experiências subjetivas dos israelenses e palestinos não se tocam, ou se tocam unicamente através da montagem, como se não compartilhassem nada além de um território em litígio e de um filme que as abriga. A sensação de aporia, imobilidade e exílio é total. Diante disso, o que pode o cineasta? Humilhar jovens soldados, representantes do Estado, no exercício de ordens tão perversas quanto arbitrárias? Reproduzir o circuito de violência que ele próprio denuncia ao longo de todo o filme, expondo-se e colocando-se em posição de confronto? Afinal, por que encerrar dessa maneira uma obra dedicada a fazer uma espécie de genealogia da violência, cuja estratégia documental era até então tão sóbria? Como comenta o crítico Cyril Neyrat (2014, p.142), em um texto sobre o desvio do cinema direto operado por Mograbi em seu trabalho, o efeito de “válvula de escape” da cena com os soldados funcionaria em dois níveis: de um lado, a frontalidade do confronto liberaria a tensão acumulada até então; de outro, ela faria o filme derrapar, perder-se de si mesmo, preservando-o do risco da “boa consciência objetiva” e assimilando o corpo do realizador ao corpo social doente do qual é parte integrante. Como vemos ao longo de seu percurso, Mograbi sempre se implicou e se engajou naquilo mesmo que filma, mas afastando-se da figura do cineasta como “sujeito suposto saber”, isto é, como aquele que tudo sabe em sua superioridade moral, autorizada pela boa consciência do “documentarista engajado”. Recusando certa posição estável e superior daquele tipo de documentário movido pelo gosto e pelo gesto da denúncia, tão habitual no contexto do conflito israelo-palestino, o realizador reprova veementemente a ideologia sionista vigente na mesma medida em que critica certo cinema dito de esquerda, colocando-se a si mesmo como uma figura deslocada e em certa medida exilada, ainda que seja parte do problema. Nós viemos do mesmo país que você, da mesma violência originária e cotidiana, parecem dizer em coro, ao final do filme, os soldados.

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Quando Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos termina, a tela escurece e uma cartela informa que o filho de Mograbi, como o pai décadas antes, se recusou a servir na guerra, se recusou a “aprender a matar”. A resposta do realizador ao conflito parece estar dada – e advém tanto do cinema dissensual que pratica quanto do âmbito privado, do pequeno levante singular, da ínfima insubordinação pessoal, mas que deslocam com força toda a realidade.

Elia Suleiman e a figura da perplexidade

12. A Guerra de Independência de Israel em 1948-1949, considerada a primeira guerra árabeisraelense, foi declarada pelos estados árabes que rejeitaram o Plano da ONU para a partilha da Palestina de 1947, segundo o qual a Palestina, ainda sob mandato britânico, seria dividida em um Estado árabe e um Estado judeu. A guerra foi vivida pelos palestinos como uma catástrofe (“Nakba”, em árabe), resultando na expulsão direta ou indireta de aproximadamente 800 mil palestinos, que deixaram as áreas incorporadas pelo recém-criado Estado de Israel e se dispersaram por campos de refugiados no Líbano, Síria, Jordânia, Cisjordânia e Faixa de Gaza.

Se David Perlov encarna a figura da angústia e do mal-estar e Avi Mograbi a figura do confronto, o cineasta palestino Elia Suleiman, um dos realizadores mais originais e talentosos da atualidade, é pura perplexidade. Em sua “trilogia do desaparecimento”, composta pelos filmes Crônica de um desaparecimento (“Chronicle of a Disappearance”, 1996) Intervenção divina (2002) e O que resta do tempo: crônica de um presente ausente (2009), Suleiman cria para si um personagem que porta seu nome próprio e carrega sua experiência biográfica, marcada pelo autoexílio no exterior e pela tentativa de retorno à terra de origem, sempre uma terra estrangeira. Vivendo essa espécie de absurdo que consiste “em voltar sempre sem nunca ter partido”, para usarmos uma formulação de Maurice Blanchot (2005, p. 137), em seu penúltimo filme, O que resta do tempo, Suleiman, após duas décadas vividas nos Estados Unidos e na França, retorna à Palestina de seu avô, de seu pai e de sua infância, em uma espécie de epopeia autobiográfica e autoficcional, fazendo da história de uma vida uma burlesca ficção histórica. Palestino cristão nascido em 1960 e original de Nazaré, onde seu avô fora prefeito até a Guerra de Independência12 de Israel em 1948 e seu pai membro da resistência palestina, Suleiman encarna uma figura duplamente minoritária, sendo cristão na Palestina e cidadão árabe-israelense em Israel. Mas, no lugar de uma representação estanque do conflito israelo-palestino, Suleiman propõe uma figuração performativa de si próprio e do outro, através de parábolas e alegorias. Rompendo com as compreensões binárias, com o naturalismo supostamente documental e com as imagens que costumam associar o corpo palestino a uma ruína,

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o cineasta desmancha o clichê midiático da vítima sofredora, humilhada, em fuga, conferindo dignidade e ternura, capacidade de resistência e resiliência, a seus diversos personagens, mesmo quando agressivos ou autodestrutivos – como o vizinho bêbado de pijama que ameaça diversas vezes colocar fogo no próprio corpo, apenas para ser dissuadido por um gesto amigo; como os personagens que, na última cena do filme, transitam pela entrada do hospital onde está internada a mãe do diretor, com suas histórias absurdas de violência incontida e agressões gratuitas. Aos olhos perplexos de Suleiman, essas emoções desmesuradas, à flor da pele e longe de toda racionalidade, dão testemunho de uma situação insustentável, de uma sociedade à beira da implosão. Em toda sua obra, incluindo seu último filme, O paraíso deve ser aqui (2019), em que o cineasta parece estar à procura de um novo lar antes de se dar conta que seu país lhe segue como uma sombra, pois a Palestina está em todo lugar,13 Suleiman faz coincidir poesia, humor burlesco e política. Por meio de estruturas narrativas episódicas, de enquadramentos sempre fixos, frequentemente frontais, e de uma encenação que desnaturaliza cada gesto, o diretor explicita tanto a mediação cinematográfica como a distância que o separa do universo filmado. “Estrangeiro num mundo que parece já não ter lugar para ele”, “estrangeiro numa terra que teria sido sua”, como comenta Peter Pál Pelbart (2014) a respeito de O que resta do tempo, Suleiman é um exilado sem nostalgia ou melancolia, ainda que perplexo e abismado, como se tal posição lhe fornecesse uma liberdade de perspectiva, uma espécie de exterioridade, de desapego à essencialista – e não raro fanática – lógica da identidade. Na condição de autor, narrador e personagem de si mesmo, em um “pacto autobiográfico” (Lejeune, 2014) que orienta toda a sua obra, o cineasta deixa claro que o que é visto por nós é mediado por seu olhar frontal, perplexo, abismado, provido daquela apatia cômica e terna com a qual olha demoradamente seu pai a dormir no banco do carona do carro, após ter saído do hospital, e, décadas depois, ereto e imóvel, contempla sua mãe já idosa sentada na varanda do apartamento, tomando um chá em uma noite de Réveillon, mas indiferente aos fogos de artifício que estouram em sua janela, como quem dá de ombros à passagem do tempo. Em Suleiman, a experiência do exílio não está assim fora de sua Palestina natal, mas habita seu próprio olhar, como

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13. Em entrevista ao veículo France 24 English, em 03 de dezembro de 2019, por ocasião da estreia mundial de O paraíso deve ser aqui, Suleiman vaticina: “The world today has become a global Palestine”. (“O mundo hoje se tornou uma Palestina global”.)


aquele que em lugar de se apegar a uma posição melancólica, que tudo quer reter e fixar, consegue estabelecer uma distância, se separar, fazer o luto do tempo perdido e lançar seu olhar ao que dele ainda resta. Seu filme fala assim do passado e do presente, mas seu título, “o que resta do tempo”, olha para o futuro, para o devir-Palestina do mundo. Separado de suas origens como o intelectual palestino Edward Said, para quem, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003), o exílio foi justamente o que alimentou o sentimento de identidade nacional dos palestinos, Suleiman não é um daqueles exilados tomados pelo ressentimento que, à margem, afaga uma ferida, mas aquele que, mesmo quando retorna, ao se sentir um estrangeiro em seu próprio lar, faz da condição do exílio um lugar ético e político. Segundo Said, ao darmos como certas a pátria e a língua, como se fossem a nossa “natureza”, com frequência retrocedemos para o dogma e a ortodoxia, enquanto o exilado, ocupando uma posição alternativa e dotado de perspectiva crítica, sabe que “num mundo secular e contingente, as pátrias são sempre provisórias” (2003, p.57). Em um dos momentos mais tocantes de seu ensaio, Said menciona uma reflexão de Theodor Adorno em Minima Moralia, sua autobiografia escrita no exílio imposto pela ascensão do nazifascismo. Para o filósofo judeu alemão, o único lar realmente disponível agora, embora frágil e vulnerável, estaria na escrita, pois “a casa é passado” e “elas agora servem apenas para serem jogadas fora, como latas velhas” (apud Said, 2003, p.57). Se o exílio se apresenta então como uma força desestabilizadora, como um lugar ético e político, é porque, de acordo com Adorno (ibid), “faz parte da moralidade não se sentir em casa na própria casa”.

14. Em entrevista publicada

no jornal O Estado de S. Paulo, por ocasião do lançamento de O paraíso deve ser aqui no Brasil, em 20 de dezembro de 2019. Disponível em: https:// www.terra.com.br/diversao/ cinema/elia-suleiman-falasobre-seu-novo-filme-oparaiso-deve-ser-aqui,1d12ab 600f418e7b8b96e55a559301 65zlbjfnng.html

Fazendo de sua terra de origem uma terra estrangeira e de sua escrita fílmica uma espécie de lar, o cinema de Elia Suleiman não corresponde, portanto, às imagens violentas dos noticiários, aos encadeamentos didáticos de documentários convencionais, aos esforços autoritários de reeducação e denúncia pela imagem. “Faço filmes para compartilhar o prazer pelas imagens, não em prol da educação política. Sempre acreditei que o diretor que se coloca na posição de quem vai ensinar está destinado ao fracasso”, explicita o cineasta.14 Baseado em um relato em forma de diário, que, a pedido de Suleiman, seu pai fez enquanto lutava contra um câncer, bem como nas cartas de sua mãe enviadas no período, O que resta do tempo nos mostra paisagens luminosas, casas límpidas

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com janelas amplas, a família terna, a graça, o charme, o silêncio e o humor, sem com isso mascarar, apaziguar ou despolitizar a violência e a arbitrariedade da ocupação israelense. Seja em Nazaré (cidade árabe-israelense onde vive a família de Suleiman) ou Ramallah (na Cisjordânia, território ocupado, que Suleiman vai visitar), estamos diante de uma paisagem que também é íntima, memorialística, evocada com ternura e com aquele humor silencioso, ora grave, ora burlesco, já característico do personagem que o cineasta faz de si mesmo e que desloca de forma tão desconcertante quanto radical a realidade de um conflito que tem constituído o próprio “ser palestino”. Mas quem são os palestinos? O que é um povo?, parece perguntar-se Suleiman, a um só tempo cidadão deslocado e cineasta dissidente: “Os árabes jamais apoiaram realmente os palestinos, com exceção de Nasser, e sou com frequência atacado por esse tipo de reflexão”, declara o cineasta. “Mas a ‘causa palestina’ serviu, sobretudo, aos interesses daqueles que dela se apossaram. O problema é saber quem são os palestinos. Fizeram deles um povo de marionetes, caricato, ideológico”.15 Tomando então distância de toda ortodoxia ideológica, fixação identitária e do risco do ressentimento, esse afeto reativo e negativo de que padece o homem carregado de memórias, como não cansou de alertar Nietzsche, a memória em Suleiman não deve ser vista como estritamente psicológica, como a faculdade de evocar lembranças; nem mesmo como exclusivamente coletiva, como a faculdade de evocar um povo existente. A memória, como já postulava Gilles Deleuze (2005) a respeito do cinema moderno, é a estranha faculdade que põe em contato o dentro e o fora, o eu e o outro, a experiência histórica e a narração que é possível fazer dela, inventando inclusive um povo: contido na figura solitária, muda e perplexa de Suleiman; contido naquela afetividade bruta de seus amigos; contido nas reações destemperadas, ora passivas ora agressivas, de seus vizinhos. Assim, é ali mesmo, na singularidade de uma fabulação na qual o pessoal e o coletivo se reenviam constantemente, que o personagem de Suleiman e seu filme jamais dissociam o assunto privado do poético, o poético do político, pois, nem mito impessoal, nem ficção pessoal, “a fabulação é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual o personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ele próprio, enunciados coletivos” (Deleuze, 2005, p.264).

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15. Declarações de Elia Suleiman citadas por Peter Pál Pelbart em intervenção realizada na Casa Povo, São Paulo, em 26 de julho de 2014, a propósito da exibição pública de O que resta do tempo em evento por nós organizado.


“Onde estou? Onde estou?”

16. Para um aprofundamento

dessas duas modalidades testemunhais, testis e superstes, assim como definidas por Émile Benveniste, ver o artigo de Márcio Seligmann-Silva, “O testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes” (2005), cf. bibliografia.

Testemunha ocular da história de sua família e do destino de seus conterrâneos, isto é, “o terceiro em uma cena de litígio” (testis), Elia Suleiman é também aquele que testemunha a partir de sua própria experiência biográfica, a partir dos fragmentos de uma vida, em alguma medida, mutilada (superstes).16 Por meio de um ponto de vista excêntrico, ainda que familiar, ele está, por assim dizer, dentro e fora, incluído e excluído da cena, em um jogo de olhares, decupagem frontal, quebra da continuidade, mise en scène e montagem que alterna entre o que vê e como é visto. Ser testemunha das mitologias nacionalistas israelense e palestina, da ocupação e opressão exercida pelo aparato militar de Israel, das relações e reações de violência e destempero em sua própria comunidade, enfim, ser testemunha de toda sorte de absurdo e arbitrariedade, mas também de resistência e resiliência, faz de seu testemunho cinematográfico uma tarefa das mais necessárias, ainda que possa parecer de difícil realização. É então por meio do humor como recurso poderoso – desnaturalizando as situações cotidianas, deslocando-as de sua compreensão habitual e desmanchando clichês já tão enraizados – que Suleiman constrói essa possibilidade. Como uma espécie de Buster Keaton ou Jacques Tati, Suleiman incorpora um personagem burlesco, cuja perplexidade de sua figura muda, com seu olhar fixo e seu corpo inerte, diz respeito a uma condição coletiva, à posição daquele que, diante de uma realidade absurda, não realista ou surrealista, não consegue enunciar ou nomear. Em uma das sequências mais ousadas do filme, já em seu terço final, Suleiman observa por trás de um muro um jovem da classe média alta de Ramallah que sai de casa para jogar fora o lixo enquanto conversa pelo celular, ao mesmo tempo em que um tanque israelense o acompanha com seu canhão, seguindo horizontalmente o movimento de ir e vir do rapaz. Mas o rapaz ignora a mira apontada sobre sua cabeça, em uma indiferença de efeito cômico, e combina com seu interlocutor telefônico de ir dançar mais tarde nos “Stones”. Ao final da sequência, é Suleiman e a própria câmera, isto é, nós espectadores, que estamos no mesmo sentido da caçamba de lixo, a qual será

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explodida pelo tanque de guerra, sabemos pelo som de rajadas, no fora de campo da cena. Observadores privilegiados, nem o personagem de Suleiman nem nós espectadores estamos imunes a nos tornar o próximo alvo. O barulho de rajadas no final da cena anterior faz a passagem para a música eletrônica ouvida na boate “Stones”, onde jovens palestinos dançam através de um vidro visto por nós frontalmente. Um jipe do exército israelense chega e anuncia aos moradores de Ramallah o toque de recolher obrigatório. Mas os jovens dançam compenetradamente e alheios a tudo, coletivamente indiferentes. O igualmente jovem soldado insiste com seu megafone inaudível, mas nada acontece. Até que, num contraplano, vemos através da janela gradeada do jipe que seu próprio corpo passa a ser mobilizado e afetado pelas batidas ritmadas da música. Sem perceber, o soldado “dança”. O que Suleiman quer aqui nos dizer? Estaríamos diante do devir-palestino do soldado israelense? Seriam todos, israelenses e palestinos, partes de um mesmo corpo social, de uma mesma forma de afetar e ser afetado, de uma mesma emoção? “A emoção não diz ‘eu’”,17 diria Deleuze, pois não é algo que se possua como uma propriedade privada e individual. A emoção é da ordem do acontecimento, de um movimento para “fora de si” que nos ultrapassa e que, no filme, parece constituir o verdadeiro vínculo social a ligar, ainda que de maneira rarefeita, as sociedades palestina e israelense. Como está claro no encadeamento dessas duas sequências, em Suleiman o corpo burlesco, seja o seu próprio, seja o corpo coletivo, desafia toda ordem consensual por meio de uma comicidade que faz colidir o caráter maleável da vida com os automatismos sociais, os afetos indomesticáveis com as repetições maquínicas, a indiferença estratégica dos oprimidos com a indiferença mecânica dos opressores. Os soldados israelenses aparecem aqui diminuídos em seu poder, personagens que, como escreve Maria Inês Dieuzeide, “não são muito mais do que corpos que fazem funcionar a máquina da ocupação, inconscientes de seus gestos” (2015, p.216). Em O que resta do tempo, o caráter episódico da narrativa acompanha assim o “estado de ser descontínuo” próprio ao exilado (Said, 2003, p.49), curtocircuitando poderes estabelecidos e desnaturalizando situações cotidianas então normalizadas, sempre através de coreografias e alegorias visuais. Suleiman confere desse modo uma visibilidade

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17. Em entrevista concedida

a Hervé Guilbert para o jornal Le Monde, a propósito da publicação de seu livro Francis Bacon - Logique de la sensation (1981), Deleuze diz: “A emoção não diz ‘eu’. (...) Se está fora de si. A emoção não é da ordem do eu, mas do acontecimento”. A íntegra da entrevista encontra-se no volume Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-1995), p.189-194, cf. bibliografia.


para a situação palestina que desafia não apenas a lógica da ocupação, mas também a lógica das representações habituais, inventando uma forma cinematográfica emancipada tanto da tutela de um cinema militante como do jugo histórico de que ele próprio é alvo. Observador atento e perspicaz desde menino, a despeito de sua timidez e discrição, como nos mostra O que resta do tempo, Suleiman não emite um único vocábulo ao longo de todo o filme, mas nem por isso seria uma figura “impotente” ou um personagem “melancólico”, como algumas leituras apontam. De modo contrário, Suleiman olha com o próprio corpo, enxerga, se exprime sem palavras, como quem não acredita naquilo que vê, como quem suspeita do que vê, mas também como quem lembra, sonha, imagina, transformando a desaparecimento em reaparição poética, transformando o inimaginável em imaginação política. Na penúltima sequência do filme, imediatamente após a cena da dança nos “Stones”, é o corpo de Suleiman que está imóvel, inerte, diante do monumental muro de concreto que separa Israel dos territórios ocupados. Em um contraplano frontal, ele surge agora com uma vara em mão, daquelas para salto em altura. Suleiman então corre – é a primeira vez no filme em que seu corpo aparece em movimento – e consegue, com o apoio da vara, saltar o muro da segregação. “Onde estou? Onde estou?”, poderia perguntar-se Suleiman após pular o muro, assim como o faz o motorista de taxi israelense na alegórica sequência de abertura do filme. Perdido e atônito em meio a uma tempestade noturna que desaba sobre o carro onde ele e Suleiman se encontram, o taxista não consegue achar a estrada que, desde o aeroporto, levaria Suleiman de volta à Nazaré, de volta à casa. Parados na pista deserta debaixo de um dilúvio bíblico, o caminho de retorno à origem, de reencontro com uma identidade idealizada e perdida, parece desde o início impedido, bloqueado.

Fora de si, fora de casa Sabemos que uma vida jamais explica uma obra e as análises que buscam exclusivamente coerência biográfica e autoral tendem a ser empobrecidas e reducionistas. Como

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defende Michel Foucault em “O que é um autor?” (2003, p. 36), na impossibilidade de uma origem essencializada, estável e fixa, a autoria não é mais do que a singularidade de uma ausência: gesto que deixa como traço atrás de si uma lacuna constitutiva. Como vimos até aqui em distintas escrituras autobiográficas e autoficcionais, estamos diante de múltiplas origens e ausências figuradas nas obras de David Perlov (imigrante judeu brasileiro em Israel), Avi Mograbi (judeu oriental, israelense de origem síria) e Elia Suleiman (palestino cristão, cidadão árabe israelense): cineastas minoritários, exilados de diversos modos e isolados em seus meios, alheios a uma efetiva interlocução com seus pares ou alijados do debate político e social mais amplo no qual deveriam estar inseridos. Nas três obras analisadas, acompanhamos três cineastas que se incluem naquilo mesmo que filmam por meio do olhar, da voz e do próprio corpo, três formas de regime performativo,18 três modos de inscrição testemunhal e três possibilidades de passagem da autobiografia à alteridade: gesto político que nasce do ínfimo, do pequeno, do menor, face à grande política, mas que, de distintas formas, desloca e faz estremecer o status quo das repartições, representações e segregações habituais. Após o gesto-limítrofe maravilhosamente cristalizado por Suleiman, cuja imaginação o leva a saltar o muro da segregação, a realidade tem sua ordenação perturbada e as habituais divisões entre vida e obra, pessoal e coletivo, privado e político são ultrapassadas face à criação, pelo cinema, de uma vida em comum, de uma vida em comunidade. Porém, entendamos bem: essa comunidade não pressupõe unidade, substância, território ou a prisão da identidade, mas um espaço comum – entre o eu e o outro, o nós e o eles – em que as distâncias e diferenças não são suprimidas, sendo constitutivas. Essa, aliás, seria a própria definição de política e de arte para um autor como Jacques Rancière (1996; 2010), segundo o qual a política, longe do consenso, se constrói sobre um hiato entre mundos, como dissenso e desentendimento. Do mesmo modo, a arte não produziria conteúdos, mensagens ou representações para a política, mas reconfiguraria a experiência comum, estabelecendo novas formas de visibilidade, novos modos de subjetivação e novas maneiras de reunião e de solidão (idem, 2010, p.46).

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18. Grande parte do cinema

autobiográfico e dos documentários subjetivos contemporâneos, narrados na primeira pessoa, filiam-se a um regime performativo da imagem, pautado pela instabilidade de pontos de vista, pela permanente inclusão daquele que filma e pela coincidência entre o sujeito e o objeto do olhar. A esse respeito, ver nossa tese de doutorado, Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Feldman, 2012, p.110-115), cf. bibliografia.


Assim, face a uma conjuntura histórica e política marcada pela fratura e iminente convulsão social, as distintas formas de autobiografia e exílio que caracterizam as obras de Perlov, Mograbi e Suleiman tornam-se figuras de uma enunciação subjetiva e de uma narrativa em trânsito constante, para as quais o deslocamento e a errância, não sendo apenas geográficos, percorrem o caminho, como numa rua de mão dupla, da identidade à alteridade, do próprio ao alheio, do familiar ao estrangeiro. Reconfigurando a experiência coletiva, os três cineastas alçam assim as escritas de si a um espaço comum em que o âmbito supostamente privado e pessoal é atravessado pelo público e pelo político, pela história e pela memória, fazendo surgir, por meio da linguagem e da imagem, uma expressão radicalmente singular.

19. Ao perguntar-se o que, de uma experiência vivida, se faz experiência de escrita, Roland Barthes defende em A preparação do romance, vol. I, que, para que algo se escreva, é preciso um “ativo da dor”, “aquele momento em que se descobre a morte como real” (2005, p.7-8), cf. bibliografia.

Se, de acordo com Benveniste (1988, p.286), o fundamento mesmo da subjetividade está no exercício e na apropriação que cada um faz da língua, sempre coletiva, o singular, no âmbito da autobiografia, não deve ser pensado como o primado do indivíduo, mas como efeito da marca que cada sujeito – com seu “ativo da dor”,19 com seu estilo – inscreve no coletivo. Nesse sentido, as escritas autobiográficas podem tornar-se também formas privilegiadas de “escritas do luto”, pois a experiência da dor e da separação, vivida por cada um como intransferível e irreparável, é a condição mesma para o estabelecimento de toda relação. Como tem afirmado a psicanálise (Freud, 2011), o trabalho do luto não implica o esvaziamento de si presente na melancolia, caracterizada pela sensação de ausência de lugar social e subjetivo e pela dificuldade de abandono e desligamento de um objeto perdido, o que faria do melancólico um ser queixoso e autopunitivo. Antes, o trabalho do luto apresenta-se como um trabalho de elaboração e narração cujo fim último é a afirmação da própria vida e de sua capacidade imaginativa. Lembremos de Blanchot (1987, p.16), para quem escrever é romper com o laço que une a palavra a si mesmo, isto é, como no processo do luto, deixar ir, consentir com a perda, separar-se do objeto perdido e de si. Lembremos de Deleuze, segundo o qual escrever é tornar-se outra coisa, exilar-se, estar fora de si, já que o desafio de uma escritura é o de levar a vida a “a uma potência não pessoal” (1998, p.63), promovendo um encontro com a alteridade. Nessa perspectiva, sendo toda obra uma escritura inacabada, ela está sempre em vias de se fazer e extravasa qualquer matéria vivível ou vivida, qualquer matéria chamada de “autobiográfica”. 54

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Por isso, para aqueles que tomam a palavra e a câmera porque – mesmo falando em nome próprio – tornaram-se outros, como David Perlov, Avi Mograbi e Elia Suleiman, o exílio geográfico ou subjetivo, mais do que um destino, constitui-se como um princípio ético e formal, uma vez que, relembrando Adorno, faz parte da moralidade não se sentir em casa na própria casa.

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Perdido entre lampejos de beleza: paisagem, território e política em Lost Lost Lost (1976) e As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (2000) Laís Ferreira Oliveira Graduanda em medicina na Unesp. Mestra em Comunicação, com ênfase em Estudos do Cinema e do Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (2018). Bacharela em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, pela UFMG (2016).

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Resumo: Este artigo discute a paisagem, o território e as formas políticas em Lost Lost Lost (1976) e As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (2000), de Jonas Mekas. Pensamos como narrativa e paisagem se relacionam, considerando o pensamento de Aumont (2006), Lefebvre (2006) e Gunning (2006). Analisamos o discurso de Mekas sobre si, a partir de Bachelard (1993) e Corrigan (2015). Retomamos Deleuze e Guattari (2004) e Rancière (2005), em uma análise política. Nosso trabalho é pensar como a relação com a paisagem e com o território reverberam em um gesto criador. Palavras-chave: Paisagem; Território; Política; Cinema experimental; Filme-diário. Abstract: This article discusses landscape, territory and political forms in Lost Lost Lost (1976) and As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (2000), by Jonas Mekas. We think how narrative and landscape are related, considering the theories by Aumont (2006), Lefebvre (2006) and Gunning (2006). We analyze Mekas’ discourse about himself, recurring to Bachelard (1993) and Corrigan (2005). We return to Deleuze and Guattari (2004) and Rancière (2005) from a political perspective. Our effort is to think how the relationship between landscape and territory reverberate in a creative gesture. Keywords: Landscape; Territory; Politics; Experimental cinema; Film diary.

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Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


Introdução

Na abertura de As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (2000), a narração de Jonas Mekas afirma:

Eu nunca fui capaz de determinar onde a minha vida começa e onde termina. Nunca fui capaz de entendê-la, o que é, o que significa. Então, quando comecei agora a juntar esses rolos de filmes, a uni-los, a ideia inicial era mantê-los em ordem cronológica. Mas então eu desisti e comecei a juntálos ao acaso, da maneira que os encontrei na prateleira. Porque eu realmente não sei onde cada pedaço da minha vida pertence.1

Enquanto isso, há uma sequência de planos fugidios, breves lampejos, em que vemos cenas de acesso à paisagem urbana e fragmentos de interiores de casas. Sem a pretensão de organizar os acontecimentos da vida por ordem cronológica, o cineasta realiza uma obra em que há experimentalismo na montagem, na tomada dos planos e na narrativa que se desenvolve.

Fig. 1-2: As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty

Algo semelhante acontece em Lost Lost Lost (1976), obra dividida em seis partes constitutivas de diários que o diretor filmou entre 1949 a 1963. Esse é um filme em que o acaso, a força das circunstâncias sobre aquilo que é registrado, é principiado pela condição do exílio. Em 1949, Jonas Mekas e seu irmão Adolfas chegam aos Estados Unidos exilados da Lituânia, após terem passado por diversos campos de prisioneiros e, após libertos, não poderiam retornar ao país de origem com o fim da Segunda Guerra Mundial. Quando chegam ao país, os irmãos Mekas adquirem uma câmera 16mm

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1. “I have never been able to figure out where my life begins and where it ends. I have never, never been able to figure it all out. What it’s all about, what it all means. So, when I began now to put all these rolls of film together, to string them together, the first idea was to keep them chronological. But then I gave up and I just began splicing them together by chance, the way I found them on the shelf. Because I really don’t know where any piece of my life really belongs” (tradução nossa).


e passam a fazer registros a partir daí. Esse gesto é rememorado em uma das cartelas iniciais de Lost Lost Lost: “uma semana após pousarmos na América (Brooklyn), pegamos dinheiro emprestado e compramos nossa primeira Bolex”.

Fig. 3: Lost Lost Lost

Esse interesse imediato dos irmãos pelo cinema não se resumiu apenas ao procedimento de tomada da imagem. Associado ao período underground do cinema norte-americano, Jonas Mekas teve ações importantes no pensamento crítico e reflexivo sobre o cinema. Destacamos, por exemplo, o trabalho com a revista Film Culture, fundada em 1955, e a coluna do Movie Journal, veiculada em um jornal nova-iorquino independente, criada por iniciativa de Jonas. O uso da câmera Bolex possibilitou ao cineasta lituano uma portabilidade favorável ao registro de acontecimentos cotidianos e o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica com algumas recorrências. Segundo Mourão,

ele explora variações na velocidade, foco, mudanças de luz, superposições, zoom e câmera na mão como formas de resposta imediata aos estímulos do mundo, mantendo na edição tudo tal qual filmado (…). Mekas produz imagens que operam por saltos, intermitências, vazios. São imagens em staccato, nas quais se vê, um a um, cada fotograma passando e então desaparecendo (2013, p. 16).

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Perdido entre lampejos de beleza / Laís Ferreira Oliveira


Esse registro rotineiro e habitual do vivido contribuiu para que não somente Mekas se tornasse dono de um grande arquivo de imagens, como, também, que a vida do cineasta se misturasse – e fosse retida em algum grau – por seus filmes. Essa organização tem a estrutura de um filme-diário. David E. James discute a necessidade da tipologia do filme-diário para analisar os procedimentos fílmicos existentes em Walden, de Mekas. O autor coloca, sobre a trajetória do cineasta:

[ela] culminou numa série de ‘filmes-diário’, cujo imenso significado teórico estamos apenas começando a enxergar por trás da ambição obstinada que os motiva. Levando-se em consideração a complexidade dos temas compactados nesta obra, nenhum vocabulário específico pode ser suficiente para descrevê-la (JAMES, 2013, p. 167).

James analisa, ao longo da carreira do cineasta, uma mudança na produção de diários em filme para filmes-diários. Em um diário feito em filme, teria mais importância o lugar do autor, em detrimento de um pensamento estético de montagem das partes que o compõe. O diário em filme colocaria uma prática da vida privada em contato com o mundo, ao passo que “o filme-diário devolveu tal prática privada a um contexto público e à produção de um produto, uma obra de arte esteticamente autônoma” (JAMES, 2013, p. 167). O filme-diário teria uma preocupação maior com a montagem, em que o desejo de mostrar o cotidiano só poderia estar associado à uma fruição estética das imagens, não mais possíveis de serem pensadas de forma isolada como aconteceria no diário em filme. James sintetiza: “no diário escrito, os acontecimentos e seu registro costumam ser separados, mas, no filme, eles coincidem” (2013, p. 175). Em Walden, fica evidente a necessidade do desenvolvimento de uma forma fílmica em que coincida o gesto de filmar a vida enquanto ela acontece, ao mesmo tempo em que a escolha estética dos planos aponta para uma montagem posterior. James argumenta:

Na produção de Walden e dos filmes-diário subsequentes, todos os componentes da prática do diário em filme foram transformados: a montagem substituiu a filmagem como o momento crucial da percepção; fragmentos de filme substituíram a textura visual da vida cotidiana como objeto privilegiado do olhar; a inscrição

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da subjetividade assumiu a forma, não do quadro individual somaticamente ajustado e da manipulação da íris na visualização pela câmera, e sim nos cortes e no acréscimo de intertítulos e trilhas sonoras na sala de montagem. Juntas, estas mudanças voltaram à prática no sentido da projeção, que antes mal tinha sido vislumbrada (2013, p. 185).

Ao discorrer sobre a estética do filme-diário, Mekas aponta a fugacidade do tempo na tomada da imagem:

[...] ao manter um caderno de notas com a câmera, o maior desafio consiste em como reagir com a câmera no instante, durante o acontecimento; como reagir de modo que a filmagem reflita o que senti naquele exato momento. Se escolho filmar certo detalhe no decorrer da minha vida, deve haver boas razões pelas quais separei esse detalhe específico de milhares de outros. Seja no parque, na rua ou numa reunião de amigos – há razões pelas quais escolho filmar certo detalhe (MEKAS, 2013, p. 132).

Essa observação do que acontece se relaciona a uma observação da paisagem e à construção de sentidos a partir do espaço. O cineasta prossegue:

A rua está lá. A neve está caindo. Não sei como, mas está lá. Ela leva sua própria vida, é claro. O mesmo com a Lituânia. Então, agora, entro na imagem. E com a câmera. Quando caminho com a minha câmera, algo cai em meus olhos. Quando caminho pela cidade, não conduzo meus olhos conscientemente disso para aquilo e para aquilo. Ao contrário, caminho e meus olhos são como janelas abertas, e vejo coisas, as coisas caem lá dentro. Se ouço um som, claro, olho para a direção do som. O ouvido se torna ativo, e direciona o olho; o olho está buscando aquilo que fez o barulho (MEKAS, 2013, p. 134).

Ao analisarmos Lost Lost Lost e As I was moving ahead, notamos que há pouca distinção de sentido entre o espaço interior das casas e aquilo que acontece nas ruas. O espaço, o mundo e os outros passam a ser partes constitutivas de uma resposta que não é dada antes da experiência, antes da partilha do cotidiano. Se não há pretensão de começo, fim ou progressão, a vida passa a ser construída não por fragmentos – a visão de dentro, a visão de fora –, mas pelos

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acontecimentos em um determinado espaço. Considerando esses elementos, propomos, com este artigo, pensar as noções de paisagem, território, espaço e política. Nossa proposta é entender como a relação com o mundo e com essas imagens dizem de um discurso de Mekas sobre si e sobre os outros.

Espaço, paisagem e passeio Em Landscape and film, organizado por Martin Lefebvre, Jacques Aumont afirma:

Quando começamos a estudar a representação do espaço, é porque buscamos encontrar alguns princípios que respondam pelas relações entre os homens e as coisas ao seu redor. Quando tentamos definir, por um período específico, o que é a noção do espaço, tentamos determinar a regra convencional pela qual um determinado entendimento do espaço se materializa em um sistema de pensamento e representação (AUMONT, 2006, p. 8).2

Ao pensarmos as noções de representação, é possível compreendê-las em relação aos modos narrativos, ao experimentalismo da imagem e ao uso de cartelas no filme. Esses elementos são importantes para que compreendamos como a paisagem se relaciona a um desenvolvimento narrativo e a um lugar atracional. Nesse sentido, Lefebvre recorda o pensamento de André Gaudreault e Tom Gunning e convoca o estabelecimento de outra análise:

Gunning e Gaudreault chamaram o ‘sistema do cinema narrativo, entre os modos de espectatorialidade ‘narrativo’ e ‘espetacular’. Então eu tento mostrar como a paisagem se relaciona com o segundo desses modos e como depende de um certo tipo de olhar cujas primeiras manifestações parecem datar da Renascença (LEFEBVRE, 2006, p. XIX).3

Em conjunto com François Jost, Gaudreault escreveu A narrativa cinematográfica (2009) no qual os autores estabelecem que a análise da narrativa e da enunciação deve estar relacionada

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2. “When we set out to study

the representation of space, it is because we wish to find some principles that account for the relations between man and his surroundings. When we try to define, for a given era, the notion of what a place is, we try to determine the conventional rule by which a certain understanding of space embodies itself in a system of thought and of representation” (trad. nossa).

3. “Gunning and Gaudreault

have called the ‘system of narrative cinema’, between ‘narrative’ and ‘spectacular’ modes of spectatorship. I then try to show how landscape relates to the second of these modes and how it relies on a certain type of gaze whose earliest manifestations seem to be traceable to the Renaissance” (trad. nossa).


4. “directly solicits spectator

attention, inciting visual curiosity, and supplying pleasure through an exciting spectacle” (trad. nossa).

5. “spends little energy creating characters with psychological motivations or individual personality. Making use of both fictional and non-fictional attractions, its energy moves outward an acknowledged spectator rather than inward towards the character-based situations essential to classical narrative” (trad. nossa).

6. “typically, from the perspective of a film’s narrative or event-based economy – in other words, from the narratological point of view – exterior space frames the action and is subordinate to it. Should we therefore conclude that narrative cinema is incompatible with the idea of landscape?” (trad. nossa).

às seguintes categorias: tempo, narração, ponto de vista; o desenvolvimento da “mostração” no filme; a forma da enunciação; as relações entre narrativa e realidade; o que é mostrado em quadro. Reconhecido pelas teses em torno do primeiro cinema, Gunning afirma que o cinema de atrações “solicita diretamente a atenção do espectador, incitando curiosidade visual e fornecendo prazer através de um espetáculo excitante” (2006, p. 285).4 Em detrimento a uma orientação narrativa, o cinema de atrações convocaria uma afetação sensível do espectador e um desejo tátil de interagir com aquilo que é visto. Essas características influenciaram a forma como se apresentam os agentes no filme, uma vez que, como aponta Gunning, um cinema com caráter atracional:

[...] gasta pouca energia, criando personagens com motivações psicológicas ou personalidade individual. Utilizando atrações ficcionais e não ficcionais, a sua energia se movimenta em direção a um espectador específico, ao invés de se adentrar em situações baseadas em personagens essenciais para a narrativa clássica (GUNNING, 2006, p. 385).5

Na história das teorias do cinema, as linhas de pensamento das atrações e do cinema narrativo se estabeleceram de modos não antitéticos. Nesse sentido, o estudo da paisagem é uma das maneiras de se compreender elementos atracionais integrados ao desenvolvimento narrativo. Lefebvre questiona:

[...] tipicamente, de uma perspectiva da narrativa fílmica ou de uma economia baseada em eventos – em outras palavras, do ponto de vista narratológico – o espaço exterior enquadra a ação e é subordinado a ela. Então devemos concluir que o cinema narrativo é incompatível como uma ideia de paisagem? (2006, p. 24).6

Ao pensarmos Lost Lost Lost e As I was moving ahead, as relações entre paisagem e narrativa parecem ser estabelecidas por meio de uma memória que se ensaia. Diante das imagens cotidianas, corriqueiras, passageiras, em que as ações não são condicionadas ao enquadramento, mas estimulam o ato de tomada, não é constituída uma narrativa fixa ou encerrada,

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e a maior parte dos acontecimentos é revelada sem que haja conexões claramente estabelecidas entre eles. Esses breves lampejos de beleza estabelecem uma dimensão atracional com o espectador: os movimentos rápidos de um bebê, de um gato, a luz que cintila em um parque. Nessas cenas, paisagem e ações não se desassociam: há algo que se vê, que não se explica e que atrai por essa fugacidade, não coordenado pela narrativa.

Fig. 4-5: As I was moving ahead

Ao rememorar o passado, Jonas Mekas ensaia uma memória incompleta. A narração em voice over e o uso de cartelas parece organizar a experiência daqueles acontecimentos. O distanciamento temporal entre o ato de tomada e a montagem favorece o olhar de revisão e reflexivo acerca do vivido e da própria subjetividade. Para entendermos essa relação entre a tomada de uma imagem e seu emprego reflexivo, podemos retomar o conceito de filme-ensaio, cuja forma propicia a uma colocação subjetiva e reflexiva por parte do cineasta. Timothy Corrigan observa que, no caso do filme-ensaio, a presença da subjetividade tornaria mais complexa a relação com o real. Segundo o autor, a forma como as percepções dos sujeitos se encontram com a realidade “parecem se diferenciar significativamente no ensaístico, como um tipo de fragmentação que perturba de forma dramática a subjetividade e a representação” (CORRIGAN, 2015, p. 23). O filme-ensaio seria responsável por tensionar os mecanismos de expressividade e a experiência do sujeito por meio de formas específicas de montagem, que reordenariam a vivência pública e o discurso de si. Ao olharmos para os objetos deste artigo, podemos pensar que o gesto ensaístico presente nos mecanismos da montagem e no emprego da narração por Mekas torna mais complexa a relação afetiva do cineasta com os espaços em que transita e com suas recordações.

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Quando pensamos em Lost Lost Lost e As I was moving ahead, há questionamentos da representação do tempo, dos lugares e das paisagens significadas. Há algo que escapa à identificação por cartelas ou dos nomes desses lugares. Em Lost Lost Lost, por exemplo, há uma determinada sequência em que Mekas reflete sobre a vontade de produzir imagens de uma mulher que caminha na chuva. Não há a identificação do seu nome, sua história ou o motivo pelo qual ela percorre aquele espaço. Apenas vemos partes do seu corpo, os fragmentos da paisagem de um parque, as gotas que caem no chão. E, ao comentar aquelas imagens, Mekas nos diz que a mulher caminha, sente-se bem e que não há nada além disso. Essa observação do mundo se orienta, assim, em contiguidade com uma percepção da própria história do cineasta: em situação de exílio, é possível caminhar pela rua, tomar chuvas, fazer imagens e sentir-se melhor, mas pouco se explica ou ultrapassa a dimensão frugal do tempo.

Fig. 6-8: Lost Lost Lost

Essas paisagens e ações que se apresentam de maneira incompleta constituem uma narrativa que se estrutura de maneira lacunar. O prazer de ver as pequenas belezas nos reflexos de uma poça d’água, na luz que atravessa os galhos de uma árvore ou dos pés anônimos entre folhagens estabelece outras maneiras de se conceber as relações entre paisagem e narrativa. Para Martin Lefebvre:

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[...] espectadores assistem ao filme em alguns momentos no modo narrativo e em outros no modo espetacular, permitindo-os seguir a história e, quando necessário, contemplar o espetáculo fílmico (…). É necessário, porém, enfatizar que alguém não pode, ao mesmo tempo, contemplar a paisagem fílmica através dos mesmos modos, ao mesmo tempo (…). Isso porque podemos dizer que o espetáculo impede a progressão da narrativa para o espectador (…). Enquanto eu contemplo um pedaço de filme, paro de acompanhar a história por um momento (2006, p. 29).7

É curioso, porém, como não parece sequer ser o interesse de Mekas desenvolver progressões narrativas nos filmes. Em As I was moving ahead, por exemplo, repetições de cartelas como “Nothing happens in this film”, em diferentes trechos da obra, parecem não só alterar o ritmo de progressão narrativa do longa-metragem, mas, sobretudo, explicitar que não há qualquer grande pretensão com aquelas imagens.

Fig. 9: As I was moving ahead

Há, nessas obras, uma certa crença na potencialidade daquilo que pode ser visto enquanto se está em trânsito, a passeio, caminhando. Para estudarmos o trabalho de Mekas, podemos voltar ao que diz Adam Sitney em Visionary film:

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7. “spectators watch the

film at some points in the narrative mode and at others in the spectacular mode, allowing them both to follow the story and, whenever necessary, to contemplate the filmic spectacle (...). It is necessary, however, to emphasize that one cannot watch the same filmic passage through both modes at the exact same time (…). This is why it can be said that the spectacle halts the progression of narrative for the spectator (…). When I contemplate a piece of film, I stop following the story for a moment” (trad. nossa).


O filme lírico postula o realizador atrás da câmera como o protagonista em primeira pessoa do filme. As imagens do filme são o que ele vê, tomadas de forma que nós nunca esquecemos a sua presença e sempre sabemos que ele está reagindo à sua visão. No filme lírico, não há mais herói; ao invés disso, a tela é preenchida com o movimento, e esse movimento da câmera e da edição reverbera a ideia de uma pessoa que observa (2002, p. 160).8

8. “the lyrical film postulates

the film-maker behind the camera as the first-person protagonist of the film. The images of the film are what he sees, filmed in such a way that we never forget his presence and we know how he is reacting to his vision. In the lyrical form there is no longer a hero; instead, the screen is filled with movement, and that movement, both of the camera and editing, reverberates with the idea of a person looking” (trad. nossa).

O pensamento de Sitney acerca do cinema lírico é associado especialmente ao trabalho de Stan Brakhage, que dirigiu centenas de filmes e é um dos diretores mais importantes para o cinema de vanguarda norte-americano. Autor do ensaio Metáforas da visão, o cineasta propõe outras formas de ver e ter atenção:

Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, um olho livre dos preconceitos da lógica da composição, um olho que não responde aos nomes que a tudo se dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura de percepção. Quantas cores há num gramado para o bebê que engatinha, ainda não consciente do “verde”? Quantos arco-íris pode a luz criar para um olho desprovido de tutela? Que consciência das variações no espectro de ondas pode ter tal olho? Imagine um mundo animado por objetos incompreensíveis e brilhando com uma variedade infinita de movimentos e gradações de cor. Imagine um mundo antes de “no princípio era o verbo” (BRAKHAGE, 1983, p. 341).

O pensamento de Brakhage sobre o cinema, de forma próxima ao que aponta Sitney sobre o filme-lírico, sublinha a importância do olhar para esses filmes. Há uma aposta numa dimensão sensível do mundo, no que pode ser apreendido não por uma palavra ou ação facilmente compreendida, mas por aquilo que estimula a percepção sensorial. As ideias de Sitney nos ajudam a compreender o cinema de Jonas Mekas, quando pensamos em suas variações formais e na maneira pela qual engaja os sentidos de um observador sem uma construção narrativa encerrada. O conceito de lampejo de beleza, que nomeia um dos filmes de Mekas, aproxima-se da estética do flicker, em uma imagem piscante. O flicker é uma estética da fotografia que convoca uma experiência sensorial dos elementos filmados. É uma forma muito comum nos filmes de Mekas, marcados por abrir e fechar a lente da câmera com velocidade, produzindo espécies de “piscadas” no 70

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filme. Estilística recorrente no cinema estrutural e no experimental, a técnica flicker tensiona a ilusão de movimento do cinema. Segundo Michaud, a potência desse recurso reside “agindo num outro nível do dispositivo que ele subverte as convenções ilusionistas do espetáculo cinematográfico, a saber, dissociando velocidade da gravação da velocidade de projeção” (MICHAUD, 2014, p. 139). Colocando um tempo de transição maior na passagem de uma imagem para outra que o modelo de 24 frames por segundo estabelece, o flicker torna desiguais os tempos entre a exibição e projeção. Retomando Michaud, é possível dizer que o emprego do flicker:

produz efeitos sensoriais imediatos, que já não passam pela invenção de uma espacialidade fictícia: a tela não mais é aquilo através do que se vê, mas aquilo no qual se vê; não funciona mais como uma janela, porém como um esconderijo, e o mundo secreto que se situa além da projeção, e que a projeção revela deve ser ignorado em prol da consideração da própria superfície (MICHAUD, 2004, p. 140).

Essa forma de olhar parece ser aquela possível ao devaneio, àquele que caminha sem grandes destinos. Dessa maneira, é construída uma relação com o espaço não delimitada por fronteiras e limites geográficos. Em A poética do espaço, Gaston Bachelard afirma: “desde que se ama uma imagem, ela não pode mais ser a reprodução de um fato” (1993, p. 263). Em ambos os filmes que analisamos, é estabelecida uma relação com a imagem que não objetiva apenas mapear ou representar os espaços, mas concebê-los a partir de suas experiências afetivas. Na sequência de abertura de Lost Lost Lost, a narração em off caracteriza o filme como a história de um homem que nunca quis deixar a sua casa e de homens que moram em um lugar onde não dominam a língua local. Perdidos, os irmãos Mekas parecem não somente reter imagens da vida comum – os jantares de anônimos no interior das casas, as imagens de piqueniques desconhecidos nos parques –, mas performar, a si e a própria vida, a partir da presença da câmera. Bachelard afirma que “o poeta, pela multiplicidade de imagens, nos torna sensíveis aos poderes dos diversos refúgios” (1993, p. 256). Em situação de exílio, os irmãos Mekas se refugiam na invenção da própria imagem, na observação da vida dos outros, construindo afetos comuns à condição de apátridas. Os lampejos de beleza também são imagens cujas formas não se definem, mas estabelecem outras maneiras de observar o cotidiano.

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Fig. 10-13: As I was moving ahead

O passeio, a travessia de Mekas pelas ruas estabelecem movimentos em que há algo sempre a ser descoberto na vida cotidiana. Para David E. James:

A obra de toda uma vida de Jonas Mekas, expulso da Lituânia rural pela II Guerra Mundial e vivendo desde então como imigrante em Nova York, propõe um cinema utópico deste tipo. Suas negociações com o cinema foram determinadas por vários esquemas sobrepostos que se influenciaram mutuamente: sua maneira de ver a narrativa suprema do modernismo, a história da expulsão do orgânico e do rural pelo industrial e o urbano; sua tentativa de resgatar uma identidade perdida do confronto entre os imperialismos americano e soviético; a contínua circulação entre escrita e filme em sua obra, com os recursos de um suporte sendo regularmente trazidos para o outro; e seu compromisso com um cinema verdadeiramente populista (2013, p. 167).

Esse cinema utópico é construído por um cineasta que se aproxima de um flâneur. Nesse caso, podemos pensar como vagar pelas ruas e pelas paisagens com um câmera pode ser uma ação produtora de significados. Dimitris Eleftheriotis pontua sobre esse modo de circulação pela cidade: “dotado de excepcional

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habilidade para capturar o eterno no efêmero, a mobilidade do flâneur se torna uma ajuda crucial para a sua sensibilidade superior” (2010, p. 33).9 Essa mobilidade parece ser o que permite a Mekas registrar anos de sua vida em diários, consciente que, mesmo nos gestos mais cotidianos, há alguma novidade, uma pequena beleza fortuita ainda não vista. A apreensão do mundo se faz antes pela experiência que por um desejo de cinema prévio ao ato de tomada. Esse movimento não trata, porém, de um isolamento dos outros. Nesse sentido, podemos retornar ao que discorre Charles Baudelaire a respeito do flâneur:

9. “Endowed with the exceptional ability to capture the eternal in the ephemeral, the flâneur’s mobility becomes a crucial aid to his superior sensitivity” (trad. nossa).

Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia (2001, p. 21).

Como pontua Walter Benjamin, o flâneur atua entre os homens “como se fosse uma personalidade” (1991, p. 81). No caso de Mekas, não há a construção de uma celebridade, mas a possibilidade de circular pela multidão como aquele que segura a câmera e, em meio à vida comum, a transforma em registro, imagem audiovisual. Em meio à multidão, Mekas reorganiza a experiência da vida urbana – dos lampejos de beleza ao registro, da errância do exílio à memória. Dessa maneira, passam a existir outras formas de se conceber os sentidos de território, política e comunidade.

Território, paisagem e política

A forma como Mekas transita pela cidade determina maneiras de se conceber e se relacionar, politicamente, com um determinado território. Segundo Lefebvre, “paisagem, como vimos, é a representação do espaço. É uma forma de predicado espacial. Outra forma de dizê-lo é que a paisagem é uma forma de ser do espaço externo de nossas mentes” (2006, p. 51).10 Ao analisarmos Lost Lost Lost e As I was moving ahead, percebemos

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10. “Landscape, we have

seen, is a representation of space. It is a form of spatial predicate. Another way of saying it would be to say that landscape is a form of being of external space in our minds” (trad. nossa).


que aquilo que desperta a atenção de Mekas na paisagem são justamente quaisquer elementos que respondam a algum estado afetivo interno, seja pelo visionamento da beleza, seja pela constatação da impossibilidade do lugar que se encontrar constituir a Lituânia. Em As I was moving ahead, há uma sequência em que Mekas se desloca de uma situação caseira para imagens do centro da cidade. Não há, a princípio, concatenamento narrativo ou ligação entre o realizador e aquelas pessoas, apenas a observação do ambiente e dos corpos que ali ocupam.

Fig. 14-16: As I was moving ahead

Há poucas informações sobre aquele espaço e aquelas pessoas. O pouco que sabemos é de que se trata do centro da cidade, em que transitam desconhecidos e crianças observam o próprio reflexo em um chafariz. Se a paisagem, como abordamos a partir de Lefebvre, pode ser compreendida como algo que tensiona o lugar da narrativa no cinema, ela também estabelece com o território uma relação não definida. Essa paisagem que parece estar sempre em descoberta, sempre encontrada pela beleza e em que acontecimentos efêmeros parecem reinventar o mais corriqueiro – a praça do centro, os parques onde se encontram outros exilados lituanos –, favorece a contínuos processos de territorialização. É necessário que entendamos esses processos inseridos nas relações do cineasta com outras pessoas e implicados na produção e criação de imagens. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari afirmam: 74

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[...] jamais nos desterriorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto paisagem. E cada um dos termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve confundir a reterritorialização com um retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 40).

Ao caminhar ou estar perdido, Mekas não tem pertencimento ou objetivo maior que circular pelas ruas e pelas casas. O cineasta estabelece relações não territorializadas com os lugares e sujeitos. E isso se torna uma invenção de outras formas de partilha sensíveis do cotidiano. Sobre esse processo, podemos retomar o trabalho dos geógrafos Rogério Haesbaert e Glauco Bruce:

Pensar é desterritorializar. Isto quer dizer que o pensamento só é possível na criação e para se criar algo novo, é necessário romper com o território existente, criando outro. Dessa forma, da mesma maneira que os agenciamentos funcionavam como elementos constitutivos do território, eles também vão operar uma desterritorialização. Novos agenciamentos são necessários. Novos encontros, novas funções, novos arranjos (BRUCE; HAESBAERT, 2012, p. 9).

Por meio desses autores, podemos tentar entender que é somente pelos processos de desterritorialização que Mekas consegue dizer e filmar um espaço diferente daquele que nasceu e ver o que há de diferente nos lugares que habita cotidianamente. Quando o cineasta chega a Nova Iorque e não se reconhece naquela cidade, ou se atém à brevidade da beleza enquanto vive, agencia novas relações com aqueles espaços, produzindo imagens que não são de alguém que ali pertence, mas que está, a todo momento, criando formas de viver e entender aquele espaço. Em situação de exílio, os irmãos Mekas em Lost Lost Lost parecem estabelecer não somente um nova concepção acerca do espaço estadunidense que passam a ocupar, mas questionar – e pensar de outras formas – os eventos políticos em curso. A narração de Jonas reafirma a solidão e o deslocamento provocado

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11. “This is only temporary”

(trad. nossa). 12. “Meanwhile, our life in

Brooklyn went on” (trad. nossa). 13. “was there a war?” (trad.

nossa).

14. Em texto sobre a obra e vida do diretor lituano, o curador e crítico Aaron Cutler menciona a separação do casal após duas décadas: https://www.villagevoice. com/2013/04/24/ jonas-mekas-out-takesfrom-the-life-of-a-happyman-features-previouslyprivate-glimpses-of-a-life/. Acesso em 01/08/2020.

pelo exílio, ao mesmo tempo em que reflete sobre o cotidiano no Brooklyn. A observação de casas que lembram a atmosfera de Lituânia é acompanhada pelo comentário “isso é apenas temporário”,11 contrastando com a narração que diz “enquanto isso, nossa vida no Brooklyn prosseguia”,12 sustentada pelo trabalho em qualquer função. Essa vida de pequenos deslocamentos, dúvidas e medos pessoais parece se tornar mais urgente e reconhecível que a guerra. Um letreiro se insere e duvida: “houve uma guerra?”.13 Em seguida, a narração comenta que tudo é normal, a família janta, o pai trabalha. Em processo de desterritorialização, Mekas comunga com aqueles que, embora não estejam em situação de exílio, vivem distanciados dos grandes conflitos políticos. Os eventos bélicos parecem não ter a mesma força nas mesas de jantar, já que tudo segue como antes, todos comem no mesmo lugar e desempenham a mesma função em suas famílias. Essa forma de partilhar algo comum com cidadãos quaisquer pode ser compreendida como um gesto político e uma configuração da vida sensível. Em As I was moving ahead, há uma constante inserção da cartela “This is a political film”. Em uma determinada sequência, essa cartela é seguida de um plano em que Hollis Melton, com quem o cineasta se casou em 1974 e manteve um relacionamento por vinte anos,14 segura Oona Mekas, filha do casal, ainda bebê. Se, em um contexto global, estaríamos vivendo as consequências da Guerra do Vietnã, a dinâmica armamentista e a Guerra Fria, Mekas persiste na produção de imagens da própria família, consciente de que uma possível resistência tangia manterse no mundo, relacionando-se de forma afetiva e dando atenção ao crescimento e ao cotidiano de sua família. Nesse gesto, ao mesmo tempo em que o diretor se atém ao registro e à recordação da sua vida privada, coexiste uma intenção de partilha no mundo público, em que uma memória pessoal pode ser atualizada em contato com um possível espectador. Em Políticas da escrita, Jacques Rancière elucida:

[...] pelo termo de constituição estética, deve-se entender aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto e, inversamente, a separação e distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas (1995, p. 7).

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Nesse caso, a possibilidade de dividir a memória com o desconhecido – um futuro espectador, o outro tempo da exibição, o espaço do esquecimento – possibilita o surgimento de relações comuns. De repente, o que seria da lembrança de um sujeito-cineasta ao recordar anos de gravações, filmes feitos no passado e fragmentos filmados sem propósito inicial passa a ter sentido ao ser colocado em circulação comum. Quando vemos os amigos e parentes de Mekas, não conseguimos ter, com aquelas imagens e lembranças, as mesmas relações vividas no momento de tomada. Não nos é possível apreender os pequenos momentos de beleza na mesma dimensão e mesmo sentimento vividos pelo cineasta lituano. Podemos conhecer aqueles parques, ver como aquelas pessoas dividem o cotidiano, admirar a forma como se movimentam, as pétalas das flores escolhidas. No entanto, nossa percepção daquelas histórias nunca será a mesma notada pelo cineasta: diferenças temporais, culturais e de contextos nos separam. Ainda assim, algo é partilhado: em outras vidas, também se convive com um bebê que aprende a andar, com um parceiro afetivo, ou se senta em outros gramados para saborear alimentos. Dessa forma, é possível aos espectadores dividir algo de uma memória que se apresenta lacunar e fluída no filme; há, no entanto, algo dos dias vividos que escapa à visão externa. O sentido político é construído a partir do momento em que se convoca, em um filme endereçado ao outro, a reconfiguração do que é privado, do que é partilhado e do que é particular no cotidiano. Os lampejos de beleza parecem existir – e iluminar – não apenas a vida de um só, mas a vida de cada um ao refletir e olhar para o próprio cotidiano.

Fig. 17-18: As I was moving ahead

De forma semelhante, Mekas apresenta em Lost Lost Lost imagens de um encontro de lituanos exilados e de um time de futebol de jogadores conterrâneos. No filme, há a oferta de outros sentidos de agrupamento e de formas políticas. Temos contato e DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 58-81, JUL/DEZ 2017

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somos convidados a prestar atenção não mais na figura de alguém isolado em decorrência da guerra, mas a ver como essas pessoas reconfiguram, no cotidiano, relações de grupo e de convivência. Distanciado da Lituânia, um time de futebol possibilita que, em uma breve irrupção, aquelas pessoas estejam outra vez próximas de seus conterrâneos, o que seria possível em sua terra natal.

Fig. 19-20: Lost Lost Lost

Em A partilha do sensível, Rancière denomina o sistema que intitula a obra como aquele “que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum partilhado e partes exclusivas” (2000, p. 12). Isso se torna importante na medida em que, se a obra de Mekas parte de um registro memorial cotidiano e privado, também pode-se encontrar correspondências com a vida de outras pessoas. Há, em As I was moving ahead, a divisão das alegrias efêmeras: o bebê que aprende a andar, os amigos que se reúnem para beber e celebrar, a visão da mulher que fotografa, a paisagem das folhas caídas no outono e da neve acumulada onde crianças brincam. Nenhum desses elementos, porém, parece corresponder a um início, explicação ou justificativa para a vida de Mekas. Algo permanece distante e inexplicado. Há ocorrências semelhantes em Lost Lost Lost. Exilado, Mekas se detém na observação da vida daqueles sem grandes participações políticas no lugar em que se encontram; eles, porém, não produzem imagens ou atravessam aqueles espaços pelos motivos que ele e seu irmão. O discurso de Mekas sobre si, sobre os trajetos de errância, as anotações da paisagem, só é estabelecido, assim, a partir do contato – e da existência – de um outro. A partir do trabalho de Rancière, Ângela Marques afirma que “a comunidade de partilha envolve a produção de um público que é diferente daquele que é visto, comentado e considerado pelo Estado. Um público definido pela manifestação de um

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‘dano’ causado no momento da constituição de um ‘comum’” (MARQUES, 2011, p. 147). Em Lost Lost Lost, a vida de Mekas não interessa ao Estado lituano, que o exila. Tampouco é da ordem da preocupação das autoridades a vida de outros membros da comunidade lituana no Brooklyn ou no que pode acontecer em uma festa de aniversário, ou no instante em que um gato sobe numa mesa em As I was moving ahead. Ambos os filmes são políticos, na medida que propõem uma reconfiguração do tempo e do espaço. Como pontua Rancière,

A arte não é política em primeiro lugar pelas mensagens e pelos sentimentos que transmite sobre a ordem do mundo. Ela também não é política pelo seu modo de representar as estruturas da sociedade, os conflitos ou as identidades dos grupos sociais. Ela é política pela distância que toma em relação a essas funções, pelo tipo de tempo e de espaço que institui, pelo modo como recorta esse tempo e povoa esse espaço (2010, p. 20).

Se, como aponta o filósofo, a política é “a configuração de um espaço específico, a partilha de uma esfera particular de experiência” (RANCIÈRE, 2010, p. 20), Mekas estabelece parte de um território indefinido, de paisagens fugazes, para reconfigurá-las a partir de gestos e afetos partilhados. Perdido ou encantado pela beleza, o realizador consegue estabelecer algo de comum entre eles e os outros. Essa é, para aquele que caminha, uma grande potência política.

Conclusão

Ao longo deste artigo, analisamos as formas como o estudo da paisagem em As I was moving ahead when occasionally I saw brief glimpses of beauty e Lost Lost Lost é uma ferramenta de compreensão dos elementos narrativos do filme, bem como tais elementos se relacionam com o espaço. A análise da paisagem favorece à uma compreensão dos elementos atracionais presentes nos filmes – o uso dos planos rápidos, o emprego do flicker, dentre outros aspectos – associados à uma integração narrativa. Essa relação entre paisagem e narrativa aporta para

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a compreensão das escolhas subjetivas de Mekas ao abordar pequenos acontecimentos fugazes em seu cotidiano, que se organizam de forma lacunar e ensaística. Nesse pensamento, podemos compreender as dinâmicas de desterritorialização nesses filmes, as quais são necessárias ao processo de criação do cineasta. Compreendida como gesto político, essa estética estabelece formas de partilha comum entre o cineasta e a vida dos anônimos – reunidos pela beleza, pelo distanciamento do Estado ou pelo afeto.

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FILMES As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. Dir.: Jonas Mekas. EUA, 1970-99/2000, 16 mm, cor, 288 min. Lost Lost Lost. Dir.: Jonas Mekas, 1976, 16mm, cor, 180 min.

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A invenção de uma tradição: autobiografia no cinema experimental norte-americano Patrícia Mourão de Andrade Pós-doutoranda no Departamento de Artes Visuais da ECA-USP; Doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela mesma universidade.

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Resumo: Partindo da constatação de que a autobiografia transforma-se em um campo de interesses para o cinema independente norte-americano a partir do final dos anos 1960, pretende-se abordar o papel do gênero na transformação de um panorama artístico e criativo. Focado principalmente na relação entre autobiografia e historicização do cinema experimental, o artigo propõe ainda algumas pontos de diferenciação entre as emergentes tendências do documentário pessoal e das autobiografias experimentais a partir das relações que essas novas formas estabelecem com o cinema verdade e o cinema lírico e pessoal. Palavras-chave: história do cinema experimental; autobiografia; cinema lírico. Abstract: On the threshold of the seventies, the autobiographical genre emerged as one of the main tendencies of the north-american avant-garde film. Understanding that it becomes a field of interest for filmmakers, critics and public alike only at this moment in time, we intend to broach how autobiography is fashioned by filmmakers into a form viable for cinema. Relying on a vast documentation we will demonstrate the role played by the genre in the transformation of a creative and artistic environment. Keywords: experimental film; autobiography, history of experimental film.

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Em março de 1973, cineastas, escritores e pesquisadores reuniram-se na State University of New York, na cidade de Buffalo, para um seminário de quatro dias sobre autobiografia no cinema independente americano, o “Buffalo Conference on Autobiography in the Independent American Cinema”. Entre os cineastas presentes estavam Jonas Mekas, Stan Brakhage, Hollis Frampton, Andrew Noren, Ed Emshwiller, Bruce Baillie, Scott Bartlett, Michael Stewart, Will Hindle, Ed Pincus e Robert Frank. No cartaz da conferência – um dos poucos documentos que restaram de sua realização – informa-se que o objetivo do evento era investigar “a tradição emergente da autobiografia no cinema independente contemporâneo”. O recuo histórico de quase quatro décadas dificulta uma delimitação precisa do que se entenderia por emergente: trinta anos?, cinco anos? A dúvida é pertinente: embora estivessem exibindo obras recentes ou em processo, havia homenagens a cineastas já falecidos com a exibição de filmes realizados vinte anos antes (Beat, de Christopher Maclaine). Além disso, a inflexão autobiográfica é um dos aspectos mais evidentes do cinema independente, ou ao menos de seu ramo experimental, desde Maya Deren, cujo filme Meshes of the Afternoon, de 1943, é tido, com razão, como o marco inaugural dessa tradição no pós-guerra. Mas até então falava-se em psicodrama, cinema pessoal e lírico; e embora cineastas como Stan Brakhage já viessem documentando sua vida familiar desde 1959, a ideia de autobiografia como um gênero, uma prática ou uma forma não entrara no léxico da crítica nem dos cineastas até os anos 1970. No seminário, entretanto, não só se falava em “autobiografia”, como havia um esforço notável para pensá-la como uma tradição e em relação ao gênero literário. Esse esforço ecoou entre os presentes e, nos meses seguintes, Jonas Mekas dedicou algumas de suas colunas quinzenais no jornal independente nova-iorquino Village Voice a um balanço do evento:

Com metade da comunidade do cinema experimental presente, o tema da autobiografia no cinema estava por todos os lados. Enquanto antes dos anos 1960 os aspectos diarísticos e autobiográficos entravam no cinema apenas indiretamente (Lumière, Vertov, Chaplin), nos anos 1960 começa uma expansão radical no uso da autobiografia. (…) Encontramos aqui as formas da autobiografia filmada; autobiografia

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confessional; o diário e o caderno de notas; e formas mais complexas de autobiografia. (...) Nos próximos anos cada uma dessas direções vai crescer e se expandir. A maior diferença no uso da autobiografia antes dos anos 1960 e depois é que agora nós temos consciência da autobiografia como uma forma de cinema em todas as suas variedades; antes, essa consciência não existia (MEKAS, 1973, p. 73).

Permito-me citar uma longa passagem, porque ela reúne pelo menos três aspectos que nos são interessantes neste momento. Primeiro, o esforço demonstrado para se pensar e propor uma história para a autobiografia no cinema (Lumière, Chaplin e Vertov como pontos de ancoragem). Segundo, um empenho ainda maior para compreender o fenômeno a partir das convenções de um gênero (a tentativa de classificar a produção entre vários subgêneros). E, terceiro, condensando todas as outras, a ideia de que a novidade do fenômeno está na sua consciência como forma, mais do que na prática propriamente dita. Ou seja: a prática ou a forma da autobiografia não seria em si uma novidade, mas a consciência e o debate sobre ela sim. 1.1 O despertar do gênero Antes da conferência, o debate sobre a autobiografia já se fazia subterraneamente em correspondências entre os cineastas. Brakhage, por exemplo, um missivista obsessivo, abordará o assunto em diversas cartas escritas a amigos no início dos anos 1970. Um filme autobiográfico de Jerome Hill, Film Portrait (1972), será muito importante para ele. No filme, Hill usa uma variedade grande de materiais que inclui fotografias, filmes de família, trechos de filmes, animação e algumas encenações para narrar sua vida de seu nascimento até sua morte imaginada. A reflexão de Brakhage sobre a autobiografia no cinema será largamente estimulada pelo encontro com o processo do filme de Hill, ao qual acompanhou de perto em inúmeros cortes. Em uma carta ao amigo, ele escreve: “É a primeira autobiografia consciente – a primeira ARTE enquanto tal (…) Você acabou de completar uma obra de arte e inventou (do início) uma grande forma para o cinema” (BRAKHAGE, 1972, p. 2). Durante os anos 1970, o cineasta voltará ao assunto em várias de suas correspondências, sem nunca conseguir de fato definir aquilo

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que entende por autobiografia, mas sua insistência demonstra que ela se torna um problema central para ele. Na verdade, ele é explícito sobre isso em uma carta a Jerome Hill: “Tenho a sensação que os cineastas estão se movendo em direção à autobiografia – biografia também. (…) O que parece AGORA mais necessário é a Biografia e a Auto-biografia e ALGUM sentido de processo criativo humano e psicológico” (BRAKHAGE, 1970, p. 1). Nos meses e anos seguintes ao seminário, uma série de programações em Nova York chamam a atenção para a nova tendência, referendando em seus títulos tradições literárias ou pictóricas de autorrepresentação e escrita de vida.1 Paralelamente, P. Adams Sitney, o crítico mais importante do cinema de vanguarda e autor de um livro seminal sobre a produção, Visionary Film, ainda hoje a principal referência sobre o tema, publica, na Millennium Film Journal, o texto “Autobiography in Avant Garde Film”. Sitney começa o artigo reconhecendo a singularidade e a concretude do fenômeno no panorama do cinema de vanguarda:

Por vinte anos o termo “pessoal” foi atribuído à grande maioria dos filmes experimentais. Pode-se presumir que algum sentido dentro de uma variedade que inclui tanto o hermético quanto o espontaneamente íntimo sustente essa longevidade. No entanto, mais uma vez uma coincidência de padrões estruturais nos filmes de vários grandes artistas nos últimos dez anos exige uma nova análise histórica. Desta vez, eu sigo mais confortavelmente as declarações de vários cineastas e críticos, e uma conferência na Universidade Estadual de Nova York em Buffalo: o nascimento da autobiografia em filme é o meu assunto (SITNEY, 1977-78, p. 66).

1. “Portraits”, no Whitney

Museum, em 1974; “Autobiographical/Diary Films”, no Film Forum, em 1975; “Autobiographical/ Diaristic Experience in Cinema”, em 1979 no Anthology Film Archives, com curadoria de Jonas Mekas. Houve ainda uma grande retrospectiva no Canadá,“Autobiography: film, video, photography”, em 1978, resultado de um curso que o curador, John Katz, deu na New York University (NYU).

Para Sitney, as autobiografias apontavam para um novo momento do cinema de vanguarda, distinto do que se convencionou chamar de “pessoal”. A singularidade da autobiografia e o que a diferenciaria da produção anterior estaria, para ele, na sua capacidade autorreflexiva, especialmente no que concerne à relação com a linguagem e à inscrição do tempo:

O ponto mais importante, que faz com que a autobiografia seja um dos desenvolvimentos mais vitais do cinema experimental no final dos anos 1960 é que o simples ato de fazer uma autobiografia constitui uma reflexão sobre a natureza do cinema, e frequentemente, sobre sua ambígua relação com a linguagem.2

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2. Ibidem, p. 70.


Há, como se pode notar, um consenso entre os diferentes agentes do cinema independente sobre a novidade do fenômeno da autobiografia que vem associado a um esforço de pensá-lo criticamente e historicamente em relação ao cinema pessoal que o precedera. Como já sugerido anteriormente, a inflexão autobiográfica existira no ramo experimental desde Maya Deren, sem que o termo autobiográfico fosse antes usado. O que há de novo, portanto, para que os filmes passem a ser vistos como autobiografias ou para que a autobiografia como conceito se torne operante para críticos e cineastas? Partindo dessa questão e da constatação de que há um consenso sobre a emergência de um novo fenômeno, pretendo aqui investigar como a autobiografia surge como uma forma possível para o cinema de vanguarda. Antes de prosseguir, talvez seja o caso de deixar claro que não se trata aqui de definir um gênero, com suas subdivisões (diário, confissão, memorial), temas eleitos ou estilos de abordagem, mas de pensar, junto com os cineastas, como a autobiografia surge como um campo de interesse e um conceito operante para suas práticas. Meu percurso passará, assim, pela distinção entre práticas e tendências pregressas ao interesse pela autobiografia e as novas questões que começam a ocupar cineastas no final dos anos 1960. Mapeio, nesse sentido, um processo de mudança que se reporta a um campo específico e que no seu caráter nascente não tem ambições de definir balizas conceituais a serem expandidas para outros cinemas. É certo que o cinema de Brakhage e Mekas é hoje incontornável em qualquer abordagem da autobiografia no cinema. Em outros momentos trabalhei com seus filmes tentando retirar, a partir de análises imanentes, características temporais, temáticas e estilísticas da autobiografia, aqui, no entanto, interessa-me, uma abordagem histórica da emergência do interesse pelo tema. 1.2 O psicodrama e o cinema lírico O cinema de vanguarda norte-americano sempre alimentou-se das vidas de seus autores e buscou formas para expressá-las, primeiro, com o psicodrama ou o filme de transe, no qual o cineasta dramatizava suas perturbações interiores

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e, depois, com o cinema lírico, no qual registrava sua vida cotidiana, mas abrindo mão do drama, da narrativa e, mesmo, da representação de seu próprio corpo. Inaugurado por Meshes of The Afternoon, de Maya Deren e Alexander Hammid, e perseguido por cineastas como Stan Brakhage, Kenneth Anger e Curtis Harrington, o filme de transe, ou psicodrama, dramatiza a busca pela realização erótica e o processo de autodescobrimento identitário de um(a) protagonista invariavelmente interpretado(a) pelo(a) diretor(a). Nesses filmes, a(o) protagonista era sempre uma mediação fílmica entre o espectador e a visão a qual tínhamos acesso, de forma que o estado de sonho no qual entrávamos era atribuível a um(a) personagem identificável. O grande salto para o filme lírico acontece quando Stan Brakhage, depois de um conjunto de filmes de transe ao longo dos anos 1950, abre mão do corpo do protagonista como mediador para fazer do filme uma apresentação da sua visão subjetiva. Nesse processo, abandona-se também todo o drama ou a narrativa que estruturavam os primeiros filmes da vanguarda. O filme que marca mais evidentemente esta passagem é Anticipation of the night, de 1958. Lá ainda há um protagonista, mas dele vemos apenas traços metonímicos, como a sombra ou partes de seu corpo – e essas imagens identificam-no ao cineasta por contiguidade e indicialidade, não por similaridade. A busca não é mais pela autonomia do ego, ou pela resolução de dramas internos do protagonista-cineasta como era no psicodrama, mas, como propõe Sitney, por uma “visão absolutamente autêntica, renovada, e não educada [untutored]” (SITNEY, 2000, p. 60). Nos filmes posteriores de Brakhage, não haverá mais protagonista central nem drama, apenas o cineasta, cuja presença se faz sentir pelo movimento da câmera e da edição. Sitney chamará esse cinema de lírico:

“O filme lírico postula o cineasta atrás da câmera como o protagonista em primeira pessoa do filme. As imagens são aquelas que ele vê, registradas de uma tal maneira que nunca nos esquecemos de sua presença e sabemos como ele está reagindo a sua visão”.3

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3. Ibidem.


A observação dos eventos íntimos e privados transforma-se em uma fonte inesgotável para Brakhage. Pela primeira vez na história, inaugurando a forma do “filme de parto” [birth film], em Window Water Baby Moving (1959), um artista documenta a gravidez de sua mulher e o parto da primeira filha – nos anos seguintes, ele ainda iria registrar o nascimento de todos os outros quatro rebentos do casal. Relações sexuais ou brigas conjugais também seriam registradas (Cat’s Cradle, 1959, Wedlock House, 1959, Dog Star Man, 1961-64).

1.3 O filme de família

4. Cf. BRAKHAGE, Stan. “In

Defense of the Amateur”. In: MCPHERSON, Bruce. Essential Brakhage. Nova York: McPherson & Company, 2001; DEREN, Maya. “Amateur versus Professional”. In: MCPHERSON, Bruce. Essential Brakhage. Nova York: McPherson & Company, 2001. MEKAS, Jonas. “Movie Journal”, Village Voice, Nova York, 11 mai 1960, 4 out 1962, 25 out 1962, 18 abr 1963, 9 abr 1964, 23 abr 1964, 14 mai 1964, 17 dez 1964, 24 jun 1965, 22 jul 1965, 7 dez1967 e 17 jul 1969.

Apesar do conteúdo abertamente autobiográfico de quase todos esses filmes, nenhum deles era, até o final dos anos 1960, considerado por seus autores ou pela crítica como uma autobiografia. Se a crítica falava em cinema lírico e pessoal, para os realizadores, as comparações mais frequentes eram, na verdade, com o filme de família ou o cinema amador. Alguns cineastas assim nomearam seus filmes – Taylor Mead (My Home Movies, 1964) e Brakhage (Stan Brakhage: An Avant-Garde Home Movie, 1962). Maya Deren, Brakhage, Mekas, três cineastas cuja produção crítica ou teórica tinha (e tem) tanto fôlego quanto sua produção fílmica, produziram textos em defesa da potência estética do cinema amador e de família.4 Brakhage e Mekas, por exemplo, chegaram a declarar que tomaram o cinema amador ou o filme de família como modelo para filmes. Em uma apresentação de 23rd Psalm Branch (1967), Brakhage afirmou: “Venho trabalhando em uma série de filmes em 8mm chamada Songs retirando inspiração, tanto quanto possível, no amador” (BRAKHAGE, 1982, p. 110); e Mekas, no primeiro rolo de Walden (1969), reafirmou sua filiação ao filme de família, quando, apropriando-se da máxima cartesiana, cantou “faço filmes de família, portanto vivo”. Para esses cineastas, no horizonte da apropriação de uma poética familiar ou amadora está o cinema comercial, industrial e artificioso, em oposição ao qual o cinema independente americano gostaria de se colocar em seu primeiro momento. “Não queremos mais filmes falsos, polidos, lisos – os preferimos ásperos, mal-acabados, mas vivos; não queremos filmes cor-derosa –; os queremos cor de sangue” (MEKAS et al: 2013, p. 55), lê-se na “Declaração do Novo Cinema Americano”, de 1963, da qual Mekas era um dos redatores e signatários. O contingente de

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“vida” viria, eles apostavam, de uma forma nova, indistinta da vida e da experiência cotidiana dos cineastas. Uma forma que se inventa in acto:

Um amador é aquele que realmente vive sua vida – e não simplesmente “executa” uma tarefa –, de modo que ele vivencia seu trabalho enquanto trabalha (...). Ao invés de ir para a escola, aprender o seu trabalho para que possa passar o resto da vida fazendo-o obedientemente, o amador está, portanto, eternamente aprendendo e crescendo através do seu trabalho (BRAKHAGE, 2004, p. 145).

No elogio do amador preza-se também a liberdade de experimentação – “use sua liberdade para experimentar: seus erros não causarão sua demissão” (DEREN, 2004, p. 17), escreve Maya Deren – e a ausência de regras ou critérios preestabelecidos distinguindo o bom do ruim, o permitido do não permitido. Há, portanto, uma questão estética e outra ética na tomada do filme de família ou amador5 como modelo. Do ponto de vista estético, ele é uma forma possível na medida em que não é uma forma dada, estagnada, aprendida. Do ponto de vista ético, ele vira um modelo porque permite um contingente de verdade inexistente no cinema comercial, industrial e artificioso.6 Essa verdade, claro, não deve ser confundida com o caráter documental dos filmes caseiros, mas com o afeto que os engendra. No filme de família, quem filma, filma a quem ama e porque ama. Enquanto o cinema comercial e industrial vigora como modelo negativo de comparação, o caráter autobiográfico latente no conteúdo dos filmes terá pouca relevância. A atenção estará em outros aspectos, tais como a ausência de narrativa, a dimensão poética, a energia plástica e visionária, a aparência inacabada e imperfeita (segundo os códigos do cinema comercial) e a reflexividade na relação com a materialidade da película. A inscrição da subjetividade e a evidenciação da primeira pessoa eram, claro, notadas. Mas neste primeiro momento sua importância residia no fato de que elas traziam a verdade do homem, permitindo, portanto, demarcar sua distância do caráter falso, mecânico do cinema comercial e da sociedade industrial e capitalista como um todo.

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5. O cinema amador e o filme de família não são equivalentes e uma distinção entre as motivações e ambições do cineasta bem como entre temas e imagens pode ser feita. Roger Odin, por exemplo, propõe em Le film de famille: usage privé, usage public que para o cineasta amador está em jogo fazer um cinema de qualidade, e o cineasta pode, por exemplo, se inspirar e se reportar a gêneros estabelecidos bem como a tendências do cinema comercial. O cineasta familiar, por outro lado, não ambiciona nem mesmo fazer um filme, para ele importa principalmente registrar, para uso privado e futuro, eventos familiares. Apesar da escolha terminológica pelo “cinema amador” não acredito, no entanto, que as diferenças entre a figura do amador e do cineasta de família sejam operacionais nos textos de Brakhage, Deren e Mekas. Ao contrário, para esses cineastas parece haver uma equivalência e confluência entre a figura do amador e do cineasta familiar: ambos significam um campo possível de liberdade e experimentação, descolonizado dos preceitos do cinema comercial. É importante lembrar aqui que estou trabalhando com textos de artistas, sem ambição de validade universal.

6. Há claro, um paradoxo

inicial no fato de que tanto o cinema caseiro quanto o amador são invenções da indústria, produtos de sua necessidade de expandir mercados consumidores com o lançamento de câmeras para uso doméstico e com anúncios que inseriam a prática cinematográfica dentro de um contexto


familiar e não profissional. Este paradoxo não é considerado por nenhum dos cineastas defensores do cinema amador, que o viam sempre como uma alternativa à indústria. Cf. ARTHUR, Paul. Routines of emancipation. JAMES, David E. (org). Free the Cinema: Jonas Mekas and the New York Underground. Princeton University Press, 1992, p. 17-49.

1.4 Do filme de família à autobiografia No final dos anos 1960, o filme de família ou amador não era mais um modelo de inspiração útil no confronto com o cinema comercial. Isso se dá por dois motivos: primeiro porque, posto em prática pelos artistas, ele é alterado, transmutado e converte-se em uma poética; segundo porque o próprio cinema comercial deixa de ser uma referência ou um alvo. Compreende-se com naturalidade que ainda hoje o público desavisado possa associar o cinema de Brakhage, Mekas ou Carolee Schneemann a filmes de família, mas um olhar um pouco mais atento também encontrará nesses cineastas um apuro formal e um estilo pessoal oriundos da depuração, via exercício insistente e dedicado, das “não-técnicas” associadas ao modo. O filme de família tal como praticado por esses artistas não é o simples produto do acaso, resultado do erro e da ignorância, ao contrário, ele é a elaboração estética de um modelo por meio do exercício, como seria, por exemplo, a pintura naïf para Miró, ou o desenho infantil para Picasso ou Klee. Ora, a transformação do modelo em uma poética permite a história; história inventada pelas obras, escrita nos deslizamentos e transmutações de motivos, gestos ou proposições formais entre um filme e outro, um artista e outro. Depois de Brakhage ou Ken Jacobs, os cineastas da vanguarda não fazem filme de família tendo em mente as imagens fora de foco mostradas pelo tio no último Natal, ou o pôr do sol filmado por uma dona de casa. Doravante, a referência é concreta e está nos filmes da vanguarda. A esta altura, o cinema de vanguarda já tem suas obras “clássicas” e elas constituem a história em relação ou oposição à qual a nova produção pode, a partir de então, se colocar. Entre 1943 e 1967 o cinema experimental tornara-se uma realidade histórica concreta: o número de cineastas e de filmes produzidos anualmente aumentava, sua circulação não era mais restrita a um pequeno circuito e expandia-se para universidades em todo o país, festivais internacionais, museus e cinematecas. Tudo isso contribui para gerar e alimentar um circuito autônomo no qual cineastas dialogam entre si, respondendo e opondo-se aos filmes e propostas uns dos outros e não mais a um cinema distante, realizado em outro contexto e com outros propósitos, como seria o caso do cinema comercial e industrial. 92

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De fato, no final da década de 1960, havia já uma nova geração fazendo filmes tendo como referência o próprio cinema experimental e não o comercial. Neste contexto, delineiam-se duas reações à produção anterior. A primeira, de ruptura, negará a dimensão processual, a inscrição da subjetividade e a afirmação da primeira pessoa do cinema lírico em detrimento de uma forma simples, minimalista, resultante da execução estrita de um projeto inicial. A segunda reação, de continuidade, irá dialogar com o cinema lírico; a subjetividade do autor continuará importante, mas nos novos filmes há uma abertura maior ao mundo, ao real e à história, sobretudo a dos seus autores. É daí que, acredito, surge a autobiografia e parte do que permite este movimento é a transformação do filme de família em documento. Nesse momento, os filmes de família não são mais um modelo ou uma prática desejada, eles contêm uma memória, são o arquivo mnemônico dos que passaram a vida a filmar. Para que exista autobiografia é necessário que exista história; o filme de família, primeiro como modelo, depois como poética, gera os documentos necessários a essa história. Em outras palavras, a desoperacionalização da equação filme de família versus cinema comercial e o conseguinte estabelecimento de uma relação endógena, modernista, do experimental com a própria história, permitem, acredito, o surgimento da autobiografia. 1.5 Os filmes Mas é claro que, para que a autobiografia de fato vire uma tendência e uma questão a ser debatida em cartas, conferências e programações, são necessárias obras, e na década de 1970 uma leva de novos filmes irá fomentar a intuição de um cinema autobiográfico. Uma breve lista: em 1971, Film Portrait, de Jerome Hill, é finalmente exibido e Robert Frank lança About me: a musical; Hollis Frampton, (nostalgia), Stanton Kaye, Brandy in the Wilderness; e Ed Pincus dá início ao seu projeto Diaries, que só seria finalizado dez anos mais tarde, já que cinco anos seriam dedicados ao registro, e a montagem seria feita apenas cinco anos depois de finalizada aquela etapa. Em 1972, temos Reminiscences of a Journey to Lithuania, de Mekas; Serving Time, de John Voorhees; (1970), de Scott Bartlett, e Miriam Weinstein começa sua trilogia, que incluiria: My Father, the Doctor (1972);

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Living with Peter (1973); We Get Married Twice (1973). Em 1973, Brakhage exibe os primeiros capítulos de Sincerity, parte de seu longo projeto autobiográfico chamado The Book of Film, um ciclo que compreenderia um total de oito filmes; Freude Bartlett, My Life in Art; Richard P. Rogers, Elephant. Em 1974, James Broughton lança Testament; e Amalie Rothschild, Nana, Mom and Me. Em 1975, temos Lost Lost Lost, de Mekas, mais capítulos de Sincerity; Family Focus, de Ed Emshiller, Kitch’s Last Meal, de Carolee Schneemann; Family Portrait Sittings, de Alfred Guzzetti; e Not a Pretty Picture, de Martha Coolidge. Bastante distintos entre si, esses filmes são devedores de dois ramos separados do cinema independente americano: o cinema lírico da vanguarda experimental, da costa Leste ou Oeste, e o documentário observacional, particularmente a vertente americana do cinema direto. É evidente que apenas o recuo histórico de quase quarenta anos permite-me tratar o cinema direto ou documental e o de vanguarda como dois ramos inteiramente separados do cinema independente. Entretanto, por mais artificial que possa parecer, e tomadas as devidas precauções para que não se faça da generalização uma regra, algumas distinções podem ser inferidas do conjunto de filmes. A primeira delas diz respeito à idade dos cineastas e, consequentemente, a seu percurso artístico. A maioria dos cineastas da vertente experimental a fazer autobiografias tinha em média uma década de produção atrás de si, de modo que a prática da autobiografia vinha em um momento já mais amadurecido de suas carreiras. No outro grupo, estavam cineastas que debutavam na realização com filmes autobiográficos, entre eles: Miriam Weinstein, Amalie R. Rothschild, Stanton Kaye, Martha Coolidge, Richard P. Rogers, Alfred Guzzetti. Do ponto de vista formal, o primeiro grupo privilegiava a imagem; o som, quando presente – alguns eram silenciosos –, era acrescentado depois, em geral em voz over. No segundo grupo, invariavelmente recorria-se ao som direto, ainda que a voz over também pudesse ser utilizada. Tematicamente, há também algumas linhas mestras. Com frequência, embora não necessariamente, no grupo dos cineastas veteranos, a investigação autobiográfica passava pela história pessoal dos realizadores enquanto cineastas e abordava seu amadurecimento artístico; ao passo que, no segundo, as investigações direcionavam-se para histórias e relações familiares, em geral em momentos de crise que revelavam conflitos geracionais, ligados aos debates de gênero e feministas. 94

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Frequentemente chamados de “documentários pessoais”, os filmes do segundo grupo reagiam aos princípios de imparcialidade e não intervenção particularmente fortes na vertente americana do cinema direto. Muitos dos cineastas eram egressos de faculdades de cinema ou viviam em cidades como Nova York, Boston e Cambridge, onde filmes experimentais e documentários observacionais eram exibidos com frequência. Assim, a familiaridade e proximidade com a produção da década anterior permitia-lhes questionar o projeto do direto a partir da presença da subjetividade no cinema lírico e pessoal. No plano social, a ideia comum ao debate feminista de que o pessoal é político manifesta-se fortemente nesses filmes. As primeiras autobiografias do cinema experimental passam ao largo dos debates feministas ou dos direitos civis. Artistas como Jonas Mekas, Stan Brakhage e Jerome Hill, cujos projetos autobiográficos marcam o início dessa tendência, estavam atraídos, naquele momento, por suas histórias pessoais como artistas, a evolução de suas sensibilidades e seu lugar na história da arte que haviam escolhido: o cinema experimental, de vanguarda. Nos três projetos iniciais dessa tendência, Diaries, Notes and Sketches; The Book of Film e Film Portrait, vê-se uma ambição maior no que diz respeito ao arco temporal com que os cineastas lidam no filme. Enquanto o cinema lírico ou o home movie privilegiava “momentos”, retirando de situações pontuais suas potências plásticas e poéticas, agora havia um movimento no sentido de incluir a passagem do tempo, ou de representar períodos maiores de tempo na vida do cineasta. Os filmes abrem-se, desse modo, ao domínio da história: história de seus realizadores, história de seu processo, e, mais importante, história de uma forma artística. Esta abertura à história é evidenciada em três operações. Primeiro, com a inclusão de materiais heterogêneos: fotografias, home movies, trechos ou descartes de outros filmes já finalizados. Depois pelo uso do som (exceção para Brakhage), e mais especificamente a narração em voz over. Agora comenta-se a imagem, aponta-se para ela. No cinema lírico e nos home movies praticamente não havia narração e isso, entre outros fatores, contribuía para uma sensação de eterno presente evocada. Mas agora a voz surge como um ponto de contato e separação entre o dentro da imagem e seu fora, o presente (da narração) e o passado (contido na imagem), aquele que narra e o que é narrado.

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A última forma de inclusão da história se dá pelo modo com que o cineasta se representa nas autobiografias; nestas ele deixa de ser apenas o corpo cuja presença se podia sentir pelo movimento da câmera ou da montagem para apresentar-se como um cineastamontador. A imagem do corpo do cineasta, claro, não estava ausente no cinema lírico – Brakhage, por exemplo, aparece em alguns filmes; a diferença é que agora ele surge como imagem e intelecção, como energia e trabalho. Quero dizer, pela primeira vez, vê-se ou comentase sobre o trabalho da montagem – Brakhage e Hill, por exemplo, aparecem em sua mesa de montagem e os comentários de Mekas frequentemente aludem à distância temporal entre a narração/ montagem e o registro. Isso institui uma outra relação com o tempo e com a imagem, uma divisão: o cineasta está dentro e fora da imagem, no passado e no presente, ele é visto ao mesmo tempo que é o vidente vendo-se e, sobretudo, organizando uma cronologia dentro da qual deve ser visto. Antes, ele era o visionário partilhando com o espectador sua visão, agora ele é ao mesmo tempo aquele que é visto, o objeto de uma especulação e o ordenador dessa especulação. Não por acaso, os três filmes trazem, em seu início, planos especulares, de olhares devolvidos à câmera. Film Portrait começa com Jerome Hill barbeando-se, olhando para a câmera como se ela fosse um espelho. Sobre essas imagens, na banda sonora, o cineasta diz: “Este é o mim que foi” (This is the me that was), uma sentença que, em sua variação temporal provocada pela divisão pronominal, explicita a decalagem irreparável entre aquele que vê e aquele que é visto. Se Hill começa seu filme já introduzindo o problema central da autobiografia em cinema – a divisão entre o eu da enunciação e o do enunciado – Mekas e Brakhage começam referendando a imagem icônica do cinema lírico visionário: os olhos do cineasta. As três primeiras páginas de Metaphors on Vision, o livro onde Brakhage postula seu novo sentido da visão e que viria a se transformar no texto mais importante e incontornável para o cinema experimental norte-americano nos anos 1960, trazem três fotos iguais de seu rosto, cada uma ocupando uma página inteira e sem margem. Ao escolherem começar suas autobiografias com um comentário direto ao cinema visionário de cuja história são protagonistas – Brakhage, postulando-o e praticando-o, Mekas, promovendo-o entusiasticamente e sentindo-se influenciado por ele –, ambos colocam-se em posição de comentar não apenas suas próprias histórias, mas também a história de um movimento.

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Metaphors on Vision, Stan Brakhage (1963).

Walden (aka Diaries Notes and Sketches), Jonas Mekas (1969).

Film Portrait, Jerome Hill (1971).

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De fato, para além de inventarem modos para abordar a história de seus realizadores, esses filmes afirmam-se como tentativas pessoais de elaborar a história do experimental a partir de um ponto de vista pessoal. Por razões distintas, os três cineastas a quem atribuo o início da autobiografia no cinema experimental são figuras essenciais para essa história até aquele momento: Brakhage é o cineasta modelo, de certo modo o pai de quem os filhos precisam se libertar; Mekas é o agitador, o aglutinador do movimento; e Jerome Hill é, além de um artista trabalhando desde os anos 1930, o mecenas que acudiu instituições e artistas nos momentos em que problemas de ordem financeira ameaçavam a paralisação ou desarticulação do movimento. Temos, portanto, três cineastas maduros, cujas trajetórias pessoais são indissociáveis da história do experimental. 1.6 Autobiografia e história da vanguarda É curioso que até o momento não se tenha chamado a atenção para a relação entre as primeiras autobiografias e diários e o processo de historicização da vanguarda que começava a se delinear naquele momento. A partir de 1967 começam a ser publicados os primeiros livros de história do cinema experimental. No final da década também multiplica-se o número de universidades abrindo cursos de cinema – o que abre um novo campo de trabalho para os cineastas e colocalhes os desafio de pensar em termos históricos e sistemáticos. Paralelamente, começam os preparativos para a abertura do Anthology Film Archives. Idealizado por Mekas, e financiado por Jerome Hill, ele pretendia ser um arquivo voltado inteiramente para a preservação e difusão do cinema de vanguarda. Entre seus projetos mais ambiciosos estava a criação do “Essential Cinema”, uma coleção que pretendia reunir as obras mais importantes para uma “história do cinema como arte”, selecionadas por um comitê composto por cineastas e críticos dentre os quais encontrava-se Brakhage. Não terei tempo de me alongar nesse ponto, especialmente sobre o “Essential Cinema”, mas gostaria de chamar a atenção para o fato de que todos esses três processos implicam diretamente Mekas e Brakhage, que se viram obrigados a rever e repensar uma história que não só os incluía, mas da qual eles foram agentes

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principais. Em 1971, Mekas lança uma compilação dos textos que

escreveu para a Movie Journal e vê P. Adams Sitney reunir em uma publicação textos que saíram na Film Culture, a revista que ele fundara em 1955 e da qual ainda era o editor. Brakhage, por sua vez, começa a lecionar no Institute of Arts of Chicago, onde escolhe nada menos que o formato das biografias de cineastas como método para suas aulas. No período de dois anos, ele redigirá biografias de cineastas do cânone como Eisenstein, Dreyer, Méliès, Griffith, Murnau, Vigo, e experimentais, tais como Jerome Hill, James Broughton, Marie Menken, Kenneth Anger, entre outros. Essas biografias seriam posteriormente publicadas em Film at Wit’s End (dedicado aos cineastas experimentais) e The Brakhage Lectures (reunindo biografias dos cineastas canônicos), os dois livros de maior fôlego teórico de Brakhage desde Metaphors on Vision, seu livro que, lançado como um número especial da Film Culture em 1963, havia fornecido a imagem modelar e emblemática do cineasta lírico que enquadraria toda a recepção do cinema experimental ao longo daquela década. É absolutamente revelador que Brakhage tenha escolhido o formato das biografias para a transmissão da história do cinema. Em uma carta a Jay Leyda, a quem enviara o exemplar de The Brakhage Lectures, o autor escreveu: “Eu sei que depois das conferências meus alunos em Chicago conseguiram uma aproximação maior com figuras imponentes como, por exemplo, Sergei Eisenstein, vendo seus filmes como feitos por uma pessoa. Em suma, as conferências ajudaram a criar uma relação mais humana com os filmes” (BRAKHAGE, sem data).7 Para Brakhage, a defesa de uma forma nova de narração da história, mais individualizada, pessoal ou subjetiva sustentase sobre um desconforto com a academia e a história oficial. Em uma entrevista concedida a Mekas em 1973, publicada ao longo de um mês na Movie Journal, Brakhage discutiu o problema da academicização:

Escolas estão começando a ensinar o cinema como uma arte. Então, agora, o cinema herda todos os problemas das outras artes, e em primeiro lugar, tal como vejo, está o fato que a palavra Arte que, como você sabe, tentei defender todos esses anos, vem sendo usada por acadêmicos como se ela representasse uma presunção de visão. Acho que eles pressupõem a palavra com A maiúsculo, como se agora devessemos assumir que

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7. BRAKHAGE, Stan. Carta

a Jay Leyda, sem data. JSB Collection.


alguns filmes são uma herança cultural. O que quer dizer que todo mundo deve ver mais ou menos como aqueles filmes. E, no lugar de se deixar inspirar pelo fato de que uma pessoa pôde ver individualmente – com todas as particularidades de sua visão individual, e então formalizar aquele modo de ver relacionado à toda a história dos modos de ver –, eles estão apenas amontoando qualquer novo modo de ver sobre essa história como um modo que todo mundo deveria ver. E claro que isso só transforma a arte em um tipo de gracejo fascista (BRAKHAGE, 1973, p. 77). [grifos meus]

Vê-se que para Brakhage era importante defender a arte como visão pessoal, individual e não como um sistema cujas formas evoluem e transformam-se autonomamente, como se tendências, estilos ou movimentos fossem em si forças criativas. Na verdade, desde muito cedo o depoimento pessoal dos cineastas teve um papel importante para a imagem que o cinema experimental construiu de si próprio. Os primeiros autores a fornecerem um repertório crítico para o cinema experimental foram cineastas: Maya Deren, Stan Brakhage nos anos 1950 e 60. Posteriormente, no final da década de 1960 e nos anos 1970, Hollis Frampton e Paul Sharits juntaram-se aos outros. O fenômeno não é de se espantar: os termos do debate crítico hegemônico parecia-lhes insuficientes para dar conta dos novos trabalhos, de modo que coube aos artistas inventarem novos termos e instituírem um novo campo. Para esses cineastas, tratava-se de inventar do zero um lugar de existência e um novo repertório crítico – “O cinema, como a América, ainda não foi descoberto”, dizia Brakhage em Metaphors on Vision. Mekas, por sua vez, tinha como política editorial privilegiar a palavra dos cineastas em detrimento de sua voz crítica. Assim, a Film Culture, além das críticas e resenhas tradicionais, publicava declarações, correspondências, manifestos, projetos em andamento, notas de trabalho de artistas, etc. E seus textos, tanto na Movie Journal quanto na Film Culture, frequentemente eram elaborados como uma colagem de citações de cineastas. Essa política teve por efeito a constituição de uma relação extremamente personalista e heroicizante com as obras e os cineastas; fazendo com que a biografia e a personalidade dos artistas desempenhasse um importante papel na sua recepção. Ora, em um meio como o do experimental, no qual a biografia pessoal do artista desempenhou um papel tão importante para

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a imagem que o movimento fazia de si próprio, não é de se espantar que um processo de historicização também assumiria a forma da narrativa de vida. Quero dizer, seria possível pensar a autobiografia como uma das formas naturais da elaboração e reelaboração da história do meio no momento em que essa questão se torna central para ele.

** Para terminar, gostaria de trazer um trecho do obituário escrito por Jonas Mekas para seu amigo Jerome Hill:

Jerome Hill se foi, seu corpo. O cinema experimental é um capítulo na história do cinema. (...) É possível que estejamos no fim de um grande período de criatividade no cinema Americano; é possível que a morte de Jerome Hill marque o começo de uma nova era: a de preservar para a posteridade tudo o que foi criado (MEKAS, 1972, p. 75).

É muito provável que as palavras de Mekas aí tenham sido motivadas pela lembrança de Hill como um mecenas e seu papel para o Anthology, informações que ele já havia dado no texto. Mas o obituário também começa com um longo elogio a Film Portrait, de modo que a sugestão de que a vanguarda entra em uma nova fase de preservação para a posteridade pode ser interpretada também como uma referência à autobiografia. Se aceitamos essa ambiguidade, entendemos que os gestos de preservar e narrar autobiograficamente seriam marcos temporais apontando para duas direções: para o futuro, na medida em que inauguram uma nova fase da produção e de suas instituições, e para o passado, posto que essa fase é pontuada pela lembrança constante do seu próprio passado.

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REFERÊNCIAS BRAKHAGE, Stan. Carta a Jerome Hill, final de janeiro 1970. James Stanley Brakhage Collection; Universidade do Colorado, Boulder. [JSB Collection] ____________. Carta a Jay Leyda, sem data. [JSB Collection] ____________. Carta a Jonas Mekas, 9 abr 1972. [JSB Collection] ____________. Entrevista concedida a Jonas Mekas. MEKAS, Jonas. “Movie Journal” [continuação da Brakhage interview]. Village Voice, 3 jul de 1973. p 77. ____________. “In defense of the amateur”. In: McPHERSON, Bruce (org). Essential Brakhage. Nova York: McPherson & Company, 2004. p. 145. ____________. Metáforas da Visão. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 2008. p. 344. ____________. On 23rd Psalm Branch. In: HALLER, Robert (Org). Brakhage Scrapbook, 1982, p. 110. DEREN, Maya. “Amateur versus Professional”. In: McPHERSON, Bruce (org). Essential Deren. Nova York: McPherson & Company, 2004. p. 17. ODIN, Roger. (Ed.). Le film de famille: usage privé, usage public. Paris: Méridiens Klincksieck, 1995 MEKAS, Jonas. Movie Journal. Village Voice, Nova York, 5 abr. 1973, p. 73. _____________. “Movie Journal”, Village Voice, Nova York, 7 dez 1972, p.75 MEKAS, Jonas et al. “Declaração do Novo Cinema Americano”. In: MOURÃO, Patrícia (org). Jonas Mekas. São Paulo, 2013, p. 55. SHARITS, Paul. “Postscript as Preface”. Film Culture, n. 65-66, Winter, 1978. p. 2-3. SITNEY, P. Adams. Autobiography in Avant-Garde Cinema. Millennium Film Journal, Nova York, v. 1, n. 1, 1977-1978, p. 66. __________.Visionary Film: The American avant-garde, 1943-2000. Oxford University Press, 2000. ZIMMERMANN, Patricia. Mining the home movie: excavations in histories and memories. Berkeley: University of California, 2008. ______________. Reel families: a social history of amateur film. Bloomington: Indiana University, 1995.

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Filmo, logo vivo – modulações do filme-diário em Jonas Mekas e David Perlov Carla Italiano Doutoranda em Comunicação Social pelo PPGCOM da Universidade Federal de Minas Gerais, com mestrado pela mesma instituição. Curadora de mostras e festivais, integrante da associação Filmes de Quintal.

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Resumo: Este artigo propõe um diálogo entre os filmes Diário 1973–1983 (1983), de David Perlov, e Walden – Diários, notas e esboços (1969), de Jonas Mekas, tomando como ponto de partida o singular imbricamento entre viver e filmar que conforma as propostas. Investigamos como esses filmes, em suas modulações do filme-diário, nos permitem ver as imagens como formas produtoras de sujeitos distintos, que elaboram e desfiguram facetas do eu a partir de estilísticas particulares. A análise aponta ainda como um pathos próprio ao exílio, ligado à trajetória de deslocamento desses realizadores, atravessa esteticamente a criação diarística resultando em diferentes modos de engajamento político. Palavras-chave: filme-diário; exílio; David Perlov; Jonas Mekas Abstract: The present article proposes a dialogue between the films Diary 1973–1983 (1983), by David Perlov, and Walden – Diaries, notes and sketches (1969), by Jonas Mekas, using as a starting point the singular overlap between life and film that drives both proposals. We investigate how these films, in their modulations of the diary film, allow us to see images as forms that produce distinct subjects, which elaborate and disfigure aspects of the self on their particular stylistics. The analysis also indicates how a pathos proper to exile, linked to the filmmakers’ displacement trajectory, crosses the diary creation aesthetically, resulting in different modes of political engagement. Keywords: diary film; exile; David Perlov; Jonas Mekas

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Ver todo o Mundo num grão e um céu em ramo que enflora É ter o infinito na palma da mão E a eternidade numa hora. William Blake, Auguries of innocence

“Vivo, logo faço filmes. Faço filmes, logo vivo”,1 anuncia a célebre declaração de Jonas Mekas no primeiro rolo de Walden (Diários, notas e esboços) (1969). Quando o “penso” da máxima cartesiana se torna “fazer filmes no longa-metragem do realizador lituano, o que se explicita é o caráter reversível entre existir e filmar, sua mútua constituição. O que tampouco significa que as instâncias se tornaram equivalentes. Longe de um ideal de cinema que almeja apreender uma realidade a ele externa, os filmes que caminham em conjunto ao desenrolar de uma vida assumem, antes de tudo, um caráter processual de experiência estética expandida por regimes de enunciação – autobiográfico, documental, performático –, apresentando-se como tateantes, lacunares, poéticos. Uma inquietação elementar, mas de difícil resposta, move o presente artigo: quando a “frágil fronteira entre a vida e a arte”2 se torna quase indissociável, qual cinema daí resulta? Quais mecanismos e formas o configuram? Quais efeitos ele têm na vida dos que estão atrás e à frente da câmera? Quais relações se estabelecem entre o universo visto em tela (privado? íntimo?) e o mundo que o filme – a um só tempo, prática e produto – constitui e é por ele constituído? Partindo dessas indagações, propomos uma aproximação entre dois notórios cineastas-diaristas: David Perlov, e as seis partes de seu Diário 1973-1983 (1983); e Jonas Mekas, com seu longa-metragem de estreia Walden (Diários, notas e esboços) (1969).3 A intenção é investigar como essas obras, em suas modulações do diário no cinema e com suas estilísticas particulares, nos permitem ver as imagens como formas produtoras de sujeitos distintos, elaborando e desfigurando facetas do eu. Frente ao desafio de abordar tais cineastas em conjunto, é importante destacar como suas trajetórias (fílmicas, biográficas) são opostas. Da ascensão do nazismo à queda do World Trade

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* Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado “Senti que me partia em mil pedaços: aproximações entre as escrituras fílmicas de David Perlov e Jonas Mekas”, desenvolvida sob orientação do Prof. Dr. André Brasil e defendida junto ao PPGCOMUFMG em junho de 2015.

1. “I live, therefore I make films. I make films, therefore I live” (trad. nossa).

2. PERLOV, 2011, p. 199.

3. Do original: Diaries, Notes

and Sketches (also known as Walden). A expressão “diários, notas e esboços”, originalmente concebida para designar toda a sua obra após Walden, retornaria em filmes seguintes: Lost Lost Lost (1976) e In Between (1978).


Center, da Lituânia de origem a Nova York que transformou em lar, a história pessoal de Jonas Mekas (1922-1919), registrada em película, é indissociável do conturbado século XX. Para o cineasta, cada filme abria um novo capítulo em sua obra serial, arquitetada em quase sessenta anos no meio cinematográfico, entre as esferas da crítica, preservação e difusão. Captado entre 1964 e 1968 e montado em 1968/1969, Walden (Diários, notas e esboços) é um marco de fundação para o cinema diário do realizador. Seu estilo particular, marcado por fluxos de imagens e sons e pela influência de tradições visionárias do cinema independente, registra a passagem de uma vida através de gestos rotineiros, momentos fugidios, fragmentos de beleza que demonstram como o extraordinário integra o cotidiano em suas miudezas – algo que seus filmes vêm afirmando há décadas.

4. O diretor afirma ter iniciado Diário 1973-1983 “a partir dos sentimentos confusos e melancólicos que acompanham uma guerra” (PERLOV, 2011, p. 186), sendo o conflito em questão a Guerra do Yom Kippur (1973). O investimento diarístico de Perlov se desdobraria em outros dois longasmetragens: Diário revisitado 1990–1999 (2001) e Minhas imagens 1952–2002 (2003), seu último filme.

Já a filmografia de David Perlov (1930-2003) apresenta uma gravidade crítica engajada nos eventos do cotidiano, seu e de seu país (ou, dos países que toma como seus), que o compele ao ato de filmar. Nascido no Rio de Janeiro e falecido em Tel Aviv, residente em Paris e São Paulo na juventude, e em Belo Horizonte na infância, ele foi um dos pioneiros dos cinemas moderno e documental em Israel, ainda que suas obras seguissem na contramão do cinema financiado à época. Sob um “estado de busca permanente” (GUTIÉRREZ, 2011, p. 105), seu apurado rigor formal, de notável influência moderna, revela uma sensibilidade poética imiscuída a um evidente posicionamento político. Lançado em 1983, o monumental Diário 1973-1983, dividido em seis capítulos autônomos, ainda que interligados, abrange dez anos de trajetória pessoal e comunitária. Nele, eventos próprios ao âmbito privado, como cenas no apartamento da família (com sua esposa, Mira, e as filhas gêmeas do casal), reencontros com amigos e viagens que reinventam as cidades de outrora se aliam ao desejo de documentar os ambivalentes signos de guerra que cruzam o seu caminho, de agir no seu tempo histórico e fazê-lo por meio das imagens.4 Como os títulos dos filmes indicam, ambos mobilizam o termo diário enquanto uma escolha discursiva carregada de pressupostos. Desprovido de modelo ou temática prévia, o diário escrito pode abarcar de sonhos a lembranças longínquas, desejos recônditos, crônicas de um dia comum; a datação, cronologia e serialização da escrita são suas características fundantes.

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“Escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns”, lembra-nos Blanchot (2005, p. 270). Enquanto hábito, ele permite examinar as mudanças no que se observa e no próprio modo de olhar, no eu que escreve a obra e que nela se inscreve, em uma extensão de tempo que capta certo contorno da vida. Na passagem para o cinema esses pressupostos se complexificam. Nesse sentido, a categoria diary film (filmediário), como pensada por David E. James a partir de Walden, é fundamental. No filme-diário, a prática da notação filmada dá lugar a uma práxis, a um complexo método de criação no qual a montagem assume o lugar da tomada como momento crucial de conformação, criando um produto artístico autônomo no qual “fragmentos de filme substituem a textura visual da vida cotidiana como objeto privilegiado do olhar” (JAMES, 2013, p. 185). Como escreve Kafka sobre as vantagens de se manter um diário, é nele que o diarista encontrar provas de ter vivido (1988, p. 98). O mesmo parece acontecer com Jonas Mekas e David Perlov. Contemporâneos, embora não tenham se conhecido,5 eles compartilharam o uso da bitola 16mm, além de uma condição central a permear suas trajetórias: a estrangeiridade. Para o poeta lituano, ser estrangeiro se vincula à mudança para os Estados Unidos ao final dos anos 1940 e à impossibilidade de retorno não só ao vilarejo de origem, Semeniskiai, mas a todo um estado de mundo anterior à devastação da Segunda Guerra. Essa ideia de origem, de pertencimento, será buscada e reconstruída de diversas maneiras ao longo da sua filmografia. Já para o documentarista judeu nascido no Brasil, ser estrangeiro se refere a seu histórico pessoal de deslocamentos (mesmo no país natal), e à decisão reafirmada de transformar Israel em seu lar e no de sua família. Mais do que um dado extra-fílmico, tais condições transbordam para o campo filmado, tornando-se força motriz à criação e parte constitutiva de suas obras. Guardadas as (fundamentais) diferenças, os dois cineastas carregam um pathos próprio ao exílio que permeia as escritas fílmicas, possibilitando compreender cada trajetória pessoal como indissociável das mudanças sócio-históricas. Conforme se altera o motivo do deslocamento, seja forçado (no caso de Mekas) ou voluntário (para Perlov), mudam suas consequências e a possibilidade de enraizamento no novo país. A condição de exilado pode ser entendida sob uma perspectiva dupla; por

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5. Em entrevista à Jeu de Paume, em 2011, Yael Perlov, ao ser indagada sobre a possível influência de Mekas sobre os diários de seu pai, aponta que ele não conhecia os filmes do realizador lituano, embora tenha lido seus escritos sobre cinema. Disponível em http:// lemagazine.jeudepaume:org /2011/12/%C2%AB%C2%A0am-i-making-a-home-movie%C2%A0%C2%BB/. Acesso em 01/07/2020.


6. SAID, 2015, p. 46.

7. Optamos pelo termo

“filmador” de modo a sublinhar o peso da mediação do aparato, além de remeter ao longa-metragem de Alain Cavalier, Le Filmeur (2005), outro notório realizador das escritas de si contemporâneas.

um lado, o exílio como uma fratura intransponível “entre o eu e seu verdadeiro lar”,6 desse modo, evocando “o perigoso território do não pertencer” (SAID, 2003, p. 49). Não pertencer a uma sociedade é não se encaixar, viver à margem dos que compartilham certo status quo, com seus modos aceitáveis de pensar e proceder. Por outro, a experiência pode fazer emergir certa resistência no olhar; a capacidade de não ver a realidade como estática, evocando formas de ser e agir vivenciadas em outros contextos. Nessa perspectiva distanciada, o lar estaria não somente no lugar de origem, mas também naquele que se escolheu viver, em uma permanente duplicidade. Nas obras aqui analisadas, o pathos do exílio se vincula à escrita diarística a fim de conferir sentido à experiência vivida. “Cada dia anotado é um dia preservado”, nos diz Blanchot, sendo essa “uma dupla e vantajosa operação. Assim, vivemos duas vezes. Assim, protegemo-nos do esquecimento e do desespero de não ter nada a dizer” (2005, p. 273). Em seus filmes-diários, tanto Mekas quanto Perlov questionam a pretensa unidade do eu autobiográfico, seu poder sobre os relatos e as experiências. Aos moldes de um dispositivo, suas obras mobilizam “um método de controle protocolar que o cineasta domina e segue à risca, e ao mesmo tempo pode instituir um eu que escapa ao controle: singular, indeterminado e aberto à alteridade” (VEIGA; ITALIANO, 2015, p. 710). Os realizadores respondem ao presente vivido a partir do aparelho cinematográfico, empregando-o não só como modo de documentar situações, mas de processá-las, ao filmar. Nesses casos, aquele que registra torna-se o “filmador”7 em vida, tendo que arcar com o peso – familiar, social – de assumir tal papel. Dentre as escritas de si cinematográficas, o particular dessas obras reside na capacidade de serem também produtoras do cotidiano, o que demanda um processo de feitura de anos para que a dimensão, e a forma, de cada filme seja realmente vislumbrada. Em nossa lida com as obras, propomos analisar três instâncias de construção do eu: a posta em cena dos corpos dos realizadores através de autorretratos; a presença de uma voz over em primeira pessoa; e a inscrição de um ponto de vista pela composição de enquadramentos que conformam os filmes, conferindo-lhes ritmo, estrutura, vida.

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Fig. 1: Diário 1973-1983

Um jogo de sorte É com a proposta de se aproximar do dia a dia que Perlov inicia Diário 1973-1983. “Sem histórias inventadas, sem enredos. Nada artificial, nem mesmo aos truques profissionais que tanto me agradavam”, enuncia.8 Ecos de seu longa-metragem fantástico,9 das mágicas de seu pai, da ilusão de ótica que acompanha a arte cinematográfica. O plano que começa Diário 1 mostra um quadrado luminoso – a janela de um apartamento – recortado em uma sala escura, tal qual o espaço privilegiado de fruição fílmica. Mas essa tela específica não exibirá os feitos grandiosos do cinema hegemônico, e sim aquilo que lhe é mais próximo: uma parcela da cidade onde se habita (uma criança no portão, a sinagoga à direita, os trabalhadores na calçada); e o espaço de uma casa partilhado em seus pormenores. No filme de Perlov, tanto o ambiente urbano quanto o doméstico são segmentados em “sobrequadros”,10 vistos através das molduras existentes no mundo; “filmo os ângulos vivos de minha casa”, anuncia no primeiro capítulo. Diário 1973-1983 corresponde a certo ideal de sinceridade esperado do diário escrito; “Meu Diário é minha carteira de identidade”, declara o realizador (PERLOV, 2011, p. 199). Isso é reforçado pela assinatura de Perlov a abrir cada um dos

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8. “No more stories, no more arguments. Nothing artificial. None of the professional tricks that pleased me so much either” (trad. nossa). 9. The Pill (1967).

10. AUMONT, Jacques (et al.).

O olho interminável – Cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 127


capítulos, ecoando a homonímia (autor-narrador-personagem) que sustenta o “pacto autobiográfico” (LEJEUNE, 2008), ou pelas cartelas com marcações de lugares, nomes e datas que evocam o calendário em sua dupla função, de protetor e vigilante (BLANCHOT, 2008). Certo didatismo de Perlov na narração do início, a reverberar a faceta de professor que conheceremos no decorrer do filme, aos poucos se transforma em onisciência narrativa: sua voz dita a ordem das imagens, perscruta seus detalhes, indaga os sentimentos detrás de cada plano. Ancorada no presente, mas oscilando entre temporalidades, permite-se convocar pedaços de histórias e biografias que só ele conhece, assumindo, com isso, uma dimensão premonitória. 11. Uma das diferenças entre

o “filme de família” e o diário em filme remete às suas lógicas comunicacionais distintas. Embora ambos se dediquem ao universo doméstico, como aponta Roger Odin, não é com a mesma ideia de privado que trabalham: no filme de família, o privado é mais institucionalizado, sob um olhar que se pretende neutro – registram-se os eventos importantes para toda a família, como festas, nascimentos e viagens, em que a tônica não é poder filmar, mas, antes, dever (1995, p. 1949). Já o diário em filme não escapa à expressão do sujeito que o escreve; entramos em sua intimidade, seu desejo está latente em todas as imagens, que também se abrem para momentos não celebratórios, de melancolia, depressão, tédio. In: ODIN, Roger. Du filme de famille au journal filmé. Le je filmé. Paris: Editions du Centre Pompidou, 1995. 12. “The warm soup is tempting, but I know that I must choose from now on, to eat the soup or to film the soup” (trad. nossa).

Nas seis partes de Diário 1973-1983, é frequentemente pela interação com suas filhas, Yael e Naomi, que o diretor revela a construção de uma subjetividade fílmica que o demarca e, em certa medida, o ultrapassa. Em determinado momento, surpreso com o amadurecimento delas, ele chega a afirmar que elas estariam dominando o diário que tentava compor; talvez seja o sintoma da abertura que lhes foi concedida e que transforma o filme em andamento numa empreitada familiar: Mira assina a produção, Yael se tornaria uma das montadoras. Mas não se trata propriamente da categoria “filme de família”11 uma vez que a instância enunciativa permanece atrelada à figura do diretor. Antes de ser opção cinematográfica, imbricar a própria vida ao filme é, para Perlov, uma escolha ética tomada conscientemente. O impasse entre viver e filmar, elementar aos cineastas do eu, é explicitado pelo realizador frente à mesa do jantar, ao declarar que “a sopa é tentadora, mas sei que agora devo escolher entre tomar a sopa e filmá-la”.12 Desse modo, em dez anos de filme, sua câmera vai se tornando mais um dentre os objetos da casa, uma nova integrante do convívio familiar. A relativa indiferença com que suas filhas passam a reagir ao seu chamado detrás do aparelho revela o quanto o registro filmado se tornou parte do cotidiano, assim como o cineasta se transformara no “pai com a câmera” – ou o marido, o professor, o amigo... A indispensabilidade de empunhá-la culmina no peso dessa mediação, que pode tanto viabilizar uma observação mais detida da realidade (passível de se operar com zoom, congelar, reenquadrar), quanto distanciar quem se deseja mais próximo – como no reencontro com Fawzi, seu primeiro amigo

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de infância em São Paulo, em Diário 6, no qual o realizador permanece todo o tempo atrás do aparelho. Ou na cena em que Naomi retorna a Tel Aviv pela primeira vez após mudarse para Paris; ela entra pela porta e explora as mudanças na casa que lhe é tão familiar, enquanto Perlov a filma do outro lado da sala. Ela fala em francês, sem a exaltação que lhe é característica: “Ça va, papa?”. Ele segue filmando. Só depois ele se aproxima, sendo finalmente recebido por um abraço por detrás da câmera. Para Perlov, o imperativo de registrar os eventos de sua vida o obriga a seguir filmando mesmo nos momentos de debilidade, quando o único peso que consegue carregar é o da câmera. Isso ocorre, por exemplo, nos episódios de depressão registrados em Diário 4, nos quais o seu estado de espírito toma a forma de imagens tremidas, borradas, e posteriormente interpeladas pela voz over no processo de montagem. O compromisso de filmar pode ser custoso, mas não implica, necessariamente, uma maior transparência – algo que retoma o pensamento de Paul De Man em Autobiografia como des-figuração (2012). A respeito da autobiografia na literatura, o escritor defende que o tropo que melhor caracteriza o “momento autobiográfico” seria o da prosopopéia, entendido como a personificação de um ser ausente (morto, não-humano), e o ato de atribuir-lhe voz, sentimentos. Na sua etimologia, prosopon seria, a um só tempo, “o rosto e a máscara, o homem e a personagem, uma superfície e o que esta esconde”.13 Na esteira de DeMan, Nora Catelli (2007) sublinha a presença de dois sujeitos coexistentes à narrativa autobiográfica, em que “um ocupa o lugar do relato, o outro, o lugar da máscara que desfigura”.14 Assim, a escrita de si se construiria no intervalo entre o sujeito que escreve e a máscara que o deforma ao mesmo tempo em que comprova a sua existência. O eu que se formula não seria, então, um ponto de partida, mas o resultado das linhas de força que atuam no relato da própria vida. Em seu filme-diário, Perlov evidencia esse caráter de desfiguração, e de máscara, atrelado à escrita de si sobretudo em seus autorretratos. Em momentos pontuais da obra, ele registra a si próprio em planos breves nos quais seu rosto nunca é totalmente visível, utilizando espelhos ou outras superfícies refletoras. O gesto de se filmar é atravessado pelas mudanças

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13. CATELLI, 2007, p. 224.

14. Idem, p. 232.


15. “The image resists visual

analysis; as he moves to paint the hand, the hand must also move” (trad. nossa). HOWARTH, William L. Some principles of Autobiography. In: OLNEY, J. (org.). Autobiography: Essays theoretical and critical. Princeton University Press, 1980.

16. “My little neighbor, rehearsing for motherhood, knows very well when I’m watching” (trad. nossa).

em si e no entorno, semelhante ao processo do autorretrato na pintura, no qual “ao pintar uma mão, esta também deve se movimentar”.15 Em Diário 1973-1983, tais autorretratos que pouco, ou nada, revelam do corpo do realizador frustram uma expectativa de apreensão da sua presença “real”. Além de acessarmos apenas recortes do seu corpo, as únicas imagens que correspondem ao sujeito que escreve a obra pertencem ao seu reflexo, fragmento, virtualidade. O compromisso em empunhar o aparelho pode, contudo, acarretar maior liberdade. É o caso de uma longa passagem em Diário 5; no último ano registrado em filme, Perlov sofre um acidente em Londres e é hospitalizado às pressas. Após a cirurgia, hospeda-se com Yael, em Paris, por um longo período de convalescência. Sua debilidade impõe reclusão à estadia, restringindo o seu campo de visão ao que consegue ver da janela do apartamento. A partir dessa restrição, a voz over nos propõe um jogo ditado pelo acaso. Enquadrando a parte superior da área interna do edifício, ele nos indaga se conseguirá capturar algo em seu pequeno quadro; enquanto isso, no pátio do edifício, a filha do concierge português brinca de boneca, à direita do plano. “Minha pequena vizinha, ensaiando para a maternidade, sabe perfeitamente quando a estou observando”,16 enuncia. O aparelho de filmar o permitiu se aproximar dessa comunidade diversa (turca, africana, grega, caribenha), e a resposta veio por meio de sorrisos tímidos, interações não-verbais sustentadas pela câmera. No filme, esse tipo de abertura vem sempre atrelada a certo distanciamento, buscando respeitar esses sujeitos em suas intimidades, agora publicamente invadidas. Assim, nas seis partes da obra, a escrita de si é inseparável do encontro com esses ilustres desconhecidos, sejam figuras públicas – como governantes, documentados através do aparelho televisor –, ou anônimas, nos rostos que povoam as cidades. Dessa maneira, como aponta Ilana Feldman sobre o cinema de Perlov, sua “autobiografia se torna biografia do outro, biografia de todos nós” (2011, p. 33). De janela de Yael, em Paris, o realizador experimenta enquadramentos; usa como moldura o cruzamento entre o parapeito e a janela, a quina da parede com a lateral do portão. E quando esses quadros logram capturar os pés de um passante, são considerados bem sucedidos. Sua voz declara o

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mote do jogo, que é também o de seu cinema emaranhado na vida: “observar se tornou a essência de meu ser. Não busco um enredo, uma história. É a imagem de um homem correndo que me fascina, não porque ele corre, ou para onde”.17 Retomando a declaração contrária ao artifício do início do filme (mesmo reconhecendo, ao longo da obra, que o drama parece emanar da própria vida), a atenção é para a imagem ela mesma – algo que está no cerne de toda a sua empreitada cinematográfica. Assim, o filme se permite abrir-se para o imponderável, para a sorte e o azar de seu jogo de quadros. As diversas restrições que afligem sua trajetória – culturais, profissionais – são transformadas em opção estética, acompanhando o rigor formal de sua estilística. Investindo pacientemente em um mesmo ponto de vista, os movimentos do mundo cruzarão seu “pequeno quadro”; e somente o olhar de um estrangeiro em todo lugar parece se dedicar com tanta sensibilidade a essas sutis alterações.

17. “Watching has often

become the essence of my being. Not in search of a plot, a story. It is the image of a man running that fascinates me, not why he runs or where to” (trad. nossa).

Em cada passo do caminho Foi com o lançamento de Walden (Diários, notas e esboços), em 1969, que Jonas Mekas consolidou seu investimento no cinema diário. Em sua heterogeneidade, o longa abarca desde excertos de curtas-metragens anteriores18 ao registro de eventos do cotidiano: encontros com amigos (muitos também cineastas e críticos, fazendo do filme um raro documento da cena artística da época), passando por celebrações e rituais em comunidade – casamentos, jantares, reuniões da Film Makers Cooperative –, filmagens de livros e trechos de cartas, além de passagens encenadas especificamente para o filme. E tão importante quanto o registro de amigos e conhecidos é a presença em imagem de Nova York ao final dos anos 1960, com suas ruas, seus habitantes, as marcas das estações na cidade que se transformava, gradualmente, em lar. Sua banda sonora é preenchida por sons de materialidades diversas, como barulhos do metrô ou canções de épocas distantes, tal qual retalhos de momentos guardados pela memória. A voz over de Mekas é econômica; sem buscar se sobrepor às imagens ou explicar seus contextos, ela anuncia seu mote celebratório de cinema emaranhado em vida.

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18. Como Report from

Millbrook (1965/1966), Hare Krishna (1966), Notes On The Circus (1966) e Cassis (1966).


Fig.2-4: Walden (Diários, notas e esboços)

O caráter heterogêneo do material diz respeito ao método sui generis desenvolvido pelo cineasta, articulando a necessidade de responder ao imediatismo da vida com uma filmagem subjetiva. Com o passar dos anos, Mekas percebeu que o que conferia sentido às suas imagens era a impressão do seu olhar; “eu destaquei aquele detalhe com todo o meu ser, com o meu passado total” (MEKAS, 2013a, p. 68). Ele também justifica seu método, de uma forma um tanto irônica, como decorrente da sua pouca disponibilidade, entre compromissos profissionais:

tive apenas pedaços de tempo que me permitiram filmar apenas pedaços de película. Todo o meu trabalho pessoal tomou a forma de notas (...). Eu estava me preparando, ou tentando manter o contato com a minha câmera, de modo que, quando chegasse o dia (...) faria então um filme “de verdade” (MEKAS, 2013a, p. 131).

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Essa prática gerou uma grande quantidade de fragmentos originalmente reservados ao âmbito privado, em que importava mais a escritura em si do que a busca por um “todo” uníssono, aos moldes de um diário escrito. Mas, diferente de seus filmes posteriores, em Walden não há uma menção direta aos primeiros anos de exílio nos Estados Unidos. Esse aspecto é apenas insinuado em letreiros como “Laukas, um campo, tão vasto quanto a infância”, sendo Laukas o termo lituano para campo, ou na cartela “Na fazenda Tabor, lituanos dançam até o amanhecer”.19 Está presente em passagens da voz over, ao indagar a si (e a nós): “Estou mesmo perdendo lentamente tudo que trouxe comigo de fora?”.20 Da mesma maneira que a referência ao país natal é enviesada, certa condição melancólica surge em breves indicações; na cartela “Dias mórbidos de NY e melancolia”,21 em determinadas escolhas musicais, no teor soturno do terço final. Afirma o diretor:

19. “Laukas, a field, so vast”;

e “At Tabor farm, lithuanians danced till sunrise” (trad. nossa). 20. “Am I really losing

everything I brought with me from the outside?” (trad. nossa). 21. “Morbid days of NY and gloom” (trad. nossa).

(...) Quando você é arrancado dessa maneira, sempre quer voltar para casa, o sentimento fica, nunca desaparece. Você pensa na sua antiga casa, a romantiza, isso cresce e cresce. (...) Você tem de deixar a sua casa pela segunda vez. Então o sentimento começa a mudar. Por isso em Walden eu filmava Nova York, mas era sempre como se filmasse minha antiga casa (MEKAS, 2013a, p. 140).

Em Mekas, a melancolia constitui o “outro lado da moeda” da felicidade, e o filme possui um passado distante nunca esquecido, retomado nas mudanças de tom articuladas pela montagem. E é principalmente por se construir subterraneamente que o eu ligado ao exílio é de grande importância para a formulação da subjetividade engendrada em filme. No cinema do lituano, a perspectiva em primeira pessoa se revela sobretudo na sua dança com a câmera, em uma postura que posiciona o aparelho mais perto do coração do que da cabeça. Foi o que P. Adams Sitney denominou câmera “somática”, originalmente para se referir à estilística da realizadora Marie Menken (SITNEY, 2008, p. 23). É um método que radicaliza o uso da câmera na mão, de modo a identificar os movimentos vistos em imagem com os corporais de quem filma, uma contribuição abraçada por muitos dos cineastas experimentais que a sucederam. Em diferentes

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graus, todos os filmes-diário de Mekas colocam em operação esse modo de se relacionar com o aparelho. Isso está presente na correspondência de cada passo, cada respiração, com os movimentos do quadro, numa câmera que se torna uma ampliação do corpo do cineasta situado na experiência, no imbricamento entre viver e filmar. Outra dimensão fundamental a seu método é o emprego de procedimentos anti-naturalistas no momento da filmagem. Intervenções como a captura de fotogramas únicos, velocidade acelerada de quadros ou superexposição da película, recorrentes ao cinema underground da época, questionam o caráter indicial das imagens, de certo modo conectando-as. Isso é latente no filme, com suas imagens breves como um clarão; está nos pedaços de flores, calçadas e páginas de livros que permeiam a obra, ou nos fragmentos de corpos e situações que se organizam em fluxos. Assim, a composição de um “ponto de vista” emerge mais das correntes de sons e imagens do que exatamente de planos isolados, em uma aposta no glimpse (ou lampejo) como uma espécie de unidade a nível formal.

22. In: The complete works

of Montaigne (1948) apud RENOV, 1992, p. 217. Assim como o diário, a modalidade ensaística é dotada de um caráter indeterminado que a permite ponderar sobre sua própria forma e sobre o sujeito que nela se inscreve; como afirma Jean Starobinski: “para satisfazer plenamente à lei do ensaio é preciso que o ‘ensaiador’ ensaie a si mesmo” (STAROBINSKI, 2011, p. 19). Mas uma dimensão que distancia o diário do ensaio é o vínculo do primeiro com o dia a dia, seu compromisso com o calendário – algo que pode ser subvertido, mas deve residir, em alguma dimensão, na gênese do projeto.

Derivado dessas escolhas, em Walden, o que se apreende do instante filmado é o seu movimento, sua transformação. O que lembra a concepção de Michel de Montaigne a respeito da modalidade do ensaio: “o mundo não passa de um movimento perene. Todas as coisas estão em constante movimento... Não posso manter meu assunto imóvel... Eu não retrato o ser, retrato a passagem” (MONTAIGNE apud RENOV, 1992, 2017).22 Acompanhando o fluxo rítmico do corpo, os enquadramento do cineasta parecem retomar a homenagem feita aos irmãos Lumière nas cartelas iniciais de Walden – ao fato de que, nos primeiros cinematógrafos, ainda não havia uma forma de “ver” o plano no momento da tomada; o quadro era planejado por instinto, feeling, e, com isso, deixava a imagem transbordar. Assim, Mekas nos apresenta um eu fragmentado, em constante transformação. Desde o primeiro rolo do filme, fica claro que o recurso elegido para se remeter ao sujeito que assina” a obra não é uma cartela com o seu nome, e sim a presença do seu corpo em cena. Isso é notável nos vários retratos (e autorretratos) do cineasta no longa, a evocar diferentes construções de si. A primeira imagem do filme, inserida após as cartelas iniciais, mostra os olhos de Mekas a mirar levemente para cima, para além do quadro, incorporando a figura do autor

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que contempla o filme porvir. Outra imagem recorrente mostra o realizador tocando acordeom, um dos símbolos pessoais da Lituânia, a evocar um eu ligado ao exílio. Ou, ainda, o plano que o mostra incapaz de dormir, sozinho em seu pequeno quarto no Chelsea Hotel – como um diarista a refletir sobre os eventos de seu dia. Mas, aqui, ao invés de uma caneta, ele opera a sua bolex. Esses autorretratos reaparecem no filme intercalados a imagens de diferentes contextos e formatos, sugerindo outras associações entre tempos e espaços. E assim como o seu rosto, outras partes de seu corpo são enquadradas: as mãos a pegar uma flor, os pés a caminhar; pedaços de si no lugar de um todo cuja completude é justamente o alvo de questionamento. Subjaz essas escolhas de filmagem uma concepção filosófica, eminentemente sensorial, de relação com o mundo. Ela remete à influência dos escritores Ralph W. Emerson e Henry D. Thoreau, autor de Walden; or life in the woods (1854) no cinema experimental estadunidense do pós-guerra, marcando a poética de Mekas.23 Em sua jornada de pouco mais de dois anos à beira do lago Walden, Thoreau defende uma vida resiliente em que cada ato de criação deve sublinhar as marcas de quem o inscreveu, na busca por uma experiência estética atravessada pelos signos da natureza (entendendo-a em um sentido amplo). Para Emerson, “ambas a natureza e a arte, todos os outros homens e o meu próprio corpo devem ser categorizados sob esse nome, Natureza” (EMERSON, 1982, p. 36). Para os escritores, a existência de cada indivíduo seria indissociável dessa ideia de natureza, de um “universal” que o constitui ao mesmo tempo que o ultrapassa. Essa ideia de comunhão com a natureza é uma das principais forças moduladoras de Walden. Está presente na sua atenção a jardins, matas e estações do ano, como na sequência de quase dezoito minutos, no quarto rolo de filme, de visita à casa da família Brakhage no campo, no auge do inverno. A chegada de Mekas é apresentada com a cartela “Um dia como outro qualquer”,24 embora esta seja uma visita importante; a seu mentor e amigo, Stan Brakhage, em um espaço campestre que parece materializar o imaginário do Walden, de Thoreau. A casa está isolada no meio da floresta, como a cabana do protagonista do livro, e o branco e a vastidão da neve a desloca ainda mais de seu contexto histórico.

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23. P. Adams Sitney (2008)

aponta a influência de Emerson no cinema experimental norteamericano da época a partir de três eixos centrais: a “primazia do visível” refletida na importância do olho e da percepção visual da realidade; a relação do artista com aquilo que o rodeia no momento da criação; e o potencial transformador do movimento veicular (SITNEY, 2008, p. 5). In: Eyes upside down – Visionary filmmakers and the heritage of Emerson. Oxford University Press, 2008.

24. “One day like any other”

(trad. nossa).


Em determinado momento, Mekas (possivelmente filmado por Jane Wodening, companheira de Brakhage), dá saltos na neve em sinal de comemoração. Em seguida, Jane é filmada em uma postura cômica, tirando água de um poço com seu pesado casaco de cor clara. Na banda sonora, a música clássica se torna mais intensa, enquanto planos abertos se intercalam a imagens de detalhes de árvores, galhos, pés, neve, céu e cachorro, entre zooms e fotogramas únicos. Tais fluxos de imagens conectadas sublinham uma inscrição em primeira pessoa; são, como sugere Thoreau, esculpidas “no sopro de sua vida” (2010, p. 44). Essa passagem sinaliza um ápice celebratório no bosque, com a afirmação do eu fílmico composto tanto pelos corpos em cena quanto pelas formas de expressão atrás da câmera. O minimalismo da paisagem atemporal, resumida ao branco da neve e ao cinza das árvores, acompanhada da filmagem de uma experiência em família, afastada da convivência urbana, parece sublinhar a peculiar relação com a natureza que permeia o longa de Mekas, além da invenção de um espaço mítico que se tornaria Walden. No filme, a construção de uma subjetividade multifacetada, permeada pelos seres (humanos e não-humanos) que rodeiam o sujeito, revela também a abertura da experiência vivida, e do seu registro filmado, a seus pares – companheiros de cinema underground, demais exilados lituanos, a natureza que o cerca e constitui. Assim, no cinema de Mekas, identificar o universal no particular é como ver “o mundo num grão”; em um ou entre dois fotogramas.

Medidas e desmedidas do eu Os filmes-diários pioneiros de Jonas Mekas e David Perlov revelam a existência de duas linhas de força associadas ao pathos do exílio. De um lado, forças que buscam cercear os sujeitos, destituí-los de território, origem, poder de fabulação. Na obra de Mekas, isso é latente desde o deslocamento que deu início à sua Odisseia particular, com a saída forçada do vilarejo natal, Semeniskiai, e que também se faz presente no novo país com os seu cinema hegemônico de moldes industriais a determinar os padrões a serem seguidos. Tais aspectos são retrabalhados em sua filmografia de modo a se tornarem vigorosas frentes criativas. Seu deslocamento forçado impulsiona um “sentir-se em casa

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em qualquer lugar” que possibilita uma subjetividade fílmica multifacetada, porosa, a partilhar aspectos de sua construção com as pessoas e as paisagens filmadas; é o caso de Walden. Já na filmografia de Perlov, as forças coercitivas se vinculam ao estado de tensão que permeia a sociedade onde vive, amplificada pelo desenraizamento daqueles que são strangers – estranhos e estrangeiros – em todo lugar; judeu no Brasil e brasileiro em Israel, ele foi igualmente apresentado ao antissemitismo europeu.25 Se, para Mekas, o pathos do exilado o faz remeter à Lituânia, inicialmente, sob a tônica da perda, no cinema de Perlov a experiência parece influenciar o “devir de um ‘puro’ ponto de vista” (BLUHER, 2011, p. 97). Os deslocamentos de sua trajetória o possibilitam conferir o estatuto de lar a diversos momentos e lugares: a dormir mais e melhor quando está no Brasil; ao ensino de cinema na universidade, seu “abrigo seguro”; à cambiante luz paulistana e à áspera luminosidade de Tel Aviv. Sentir-se em casa é também encontrar amigos, recentes e de longa data, muitos dos quais também estrangeiros. Incluí-los em seu filme-diário é uma maneira de reconstituir laços, sustentar filmicamente lembranças que se encaminhavam para o esquecimento. Por fim, as duas obras sinalizam diferentes engajamentos de viés político em suas maneiras de estar no mundo filmicamente. Em Diário 1973-1983, Perlov transforma o “contraponto” em modo de intervenção na realidade, utilizando aquilo que está ao seu alcance: sua câmera 16mm, sua família, suas memórias. Essa postura de “vigília” (GUTIERREZ, 2011) posiciona Perlov no polo oposto de Mekas e o lema proferido pelo lituano, em Walden: “dizem que eu deveria sempre estar buscando, mas estou apenas celebrando o que vejo. Eu não busco nada, sou feliz”.26 Essa declaração reverbera uma das passagens mais conhecidas dos escritos de Emerson (1892), aproximando-o do cinema do lituano: “terminar o momento, encontrar o final da jornada em cada passo do caminho, viver o maior número de boas horas, é sabedoria”.27 Já para Perlov, o caminho não é exatamente o da celebração da situação vivida e filmada, como sugere a fala de Mekas, mas a interpelação das imagens do mundo, preservando-as em suas multiplicidades. Ambos os filmes tensionam o cinema diário a partir de caminhos ímpares, às voltas com aquilo que é mais habitual: os gestos, sentimentos e lugares que constituem o passar dos dias, semelhantes e sempre renovados. Para Mekas, a postura de

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25. Como na canção de

Odetta retomada por Perlov no primeiro episódio de Diário, enquanto revê as ruas de São Paulo através da janela de um carro: “Stranger here, stranger there, stranger everywhere. I could go home, honey, but I’m a stranger also there”.

26. “They tell me I should be always searching. But I’m only celebrating what I see. I am searching for nothing. I am happy” (trad. nossa). 27. “To finish the moment, to find the journey’s end in every step of the road, to live the greatest number of good hours, is wisdom” (trad. nossa).


“lírico do cotidiano” (SITNEY, 2002, p. 160) matiza o universo filmado a partir de seu olhar, em uma “utópica revolução das sensibilidades” (MOURÃO, 2013, p. 22). Já, no filme de Perlov, são as “epifanias do cotidiano” (FELDMAN, 2011) que se revelam na investigação de cada imagem particular; e é na refinada urdidura entre registro documental, voz e memória que o diálogo entre esferas doméstica e pública se manifesta. Os dois apostam na brevidade desses momentos de caráter revelatório, destacados no fluxo de tempos e materiais articulados pela montagem. Eles seguem na construção de um lar – urbano, familiar, fílmico –, em obras artesanais que olham para si sem esquecer dos outros, às voltas com diferentes ideias de exílio, partilha e comunidade.

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Filmo, logo vivo / Carla Italiano


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O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti Gabriela Kvacek Betella Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Professora Assistente (RDIDP) no Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Assis.

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Resumo: Os limites da autobiografia e da autoficção são fecundos para a representação literária e audiovisual contemporânea. Os filmes de Nanni Moretti produzidos até 1993 rompem a objetividade e ao mesmo tempo conservam um ponto de vista narcísico, com significativo enfrentamento do real, utilizando a primeira pessoa para confrontar o estado do cinema italiano, as questões cívicas e a vida privada. A instabilidade dos gêneros é afirmada por meio de uma autoexposição como mecanismo estético, ético, crítico e autocrítico. Palavras-chave: Autobiografia; Autoficção; Primeira pessoa; Literatura e cinema; Nanni Moretti. Abstract: The limits of autobiography and autofiction are fecund for the contemporary literary and audiovisual representation. Nanni Moretti’s films produced until 1993 break with the objectivity and at the same time keep a narcissistic point of view, with a substantial confrontation with the real, using the first person to face the state of the Italian cinema, the civic questions and the private life. The instability of the genres is asserted by means of self-exposition as an esthetical, ethical, critical and autocritical mechanism. Keywords: Autobiography; Autofiction; First person; Literature and cinema; Nanni Moretti.

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1. Ficção e confissão: primeira pessoa e autobiografia

Se a literatura e o audiovisual podem compartilhar um eixo comum definido pela narrativa, as categorias literárias normalmente são utilizadas para descrever e analisar elementos da obra cinematográfica, guardando-se as particularidades da forma de discurso e da linguagem. Em estudos comparados, sobretudo, a narrativa fílmica pode ser encarada por meio do ponto de vista que descreve as personagens em suas ações num determinado espaço e tempo. Portanto, e sem pretender reduzir as questões que envolvem a base linguístico-literária, é possível encarar a filmografia do cineasta italiano Nanni Moretti como herdeira de um cinema moderno que valoriza a marca autoral com vocação para um discurso em primeira pessoa. Dessa forma, podemos tratar o ponto de vista no cinema de Moretti como um percurso que vai da desconstrução do sujeito para a exposição de sua fragilidade, até o fortalecimento do ponto de vista pela assimilação da primeira pessoa e do discurso indireto livre, com valorização dissimulada da subjetividade da autoria. Nosso objetivo aqui é analisar determinadas etapas da trajetória de uma postura contestatória e, ao mesmo tempo, integrativa. Para Jean Gili (2001, p. 49), Moretti utilizou o cinema para entender, testemunhar, reagir e se posicionar diante de uma crise dos sentimentos e das ideologias num país à deriva. O início e boa parte dessa trajetória trazem uma questão fundamental no ponto de vista dos filmes: além de escrever e dirigir, Moretti atua como personagens, sujeitos que se interrogam e a cada filme parecem começar do zero para confrontar a inépcia com uma vontade de senso crítico, conflito transferido para o espectador. Afirmando-se como autor e emprestando sua imagem aos seus protagonistas, Moretti reforça a perspectiva determinante que deseja oferecer à sua obra, e passa a ocupar um lugar no cinema italiano, que se reforça a partir de 1986, com a fundação de sua produtora, com as atividades de distribuição, promoção de mostras, organização de premiações e debates. Moretti parece ter sempre desejado uma posição incômoda, seja na autoria, na direção ou na interpretação dos personagens recobertos por seu alter ego ou não. Contudo, o que nos interessa aqui são os momentos dos filmes que constroem essa perspectiva, unificados por uma proposta pessoal ou autobiográfica de exposição das obsessões do diretor por meio da autoironia.

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O início da carreira de Moretti coincide com um período que antecede uma crise econômica e artística do cinema na península, nos anos de 1980. Se o país viveu um período de poucas inovações e um esquecimento do cinema por parte da política, de acordo com Peter Bondanella (2001, p. 240), a tradição de grandes diretores, atores e filmes italianos sempre foi reconhecida internacionalmente e, nos anos de 1980 e 1990, uma nova geração de realizadores ganhou proeminência, com alguns expoentes que puderam ser vistos como representantes de uma terceira renascença do cinema italiano, seguindo os passos do Neorrealismo e da geração de Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini – são nomes, além de Nanni Moretti, como Maurizio Nichetti, Gabriele Salvatores, Giuseppe Tornatore, Gianni Amelio, Roberto Benigni, Francesca Archibugi, Carlo Carlei. Com Caro diario (1993) o diretor que sempre atuou e escreveu seus filmes tornou-se ícone dos italianos seus contemporâneos, e também passou a ser considerado a partir de uma poética. O filme venceu o prêmio de direção em Cannes com o retrato autobiográfico que levou alguns críticos a rotular Moretti como “o Woody Allen italiano”, por sua marca cerebral de comédia (BONDANELLA, 2001, p. 241). As análises do filme de 1993 nos levam a pensar, desde a época do lançamento, numa forma original de autobiografia de um personagem quixotesco ou moldado no Príncipe Míchkin dostoievskiano. Entretanto, o que se pode inferir imediatamente é que esse personagem condutor de Caro diario é dotado de uma curiosidade ingênua, porém aguda, e um espírito crítico tolerante, embora cáustico em determinados momentos. A poética que passou a definir os filmes de Nanni Moretti normalmente é vista como uma “visão do mundo e do cinema”. Contudo, as interpretações que incluem a pesada nota pessoal são frequentes no meio crítico. É comum falar de diário pessoal, memória ou autobiografia como classificação da obra do diretor como um único filme, ou seja, um longo diário de memórias, intervenções oníricas, avanços e recuos no tempo, confissões de paixões e ódios, perfis de personagens que atravessam a vida. Moretti já declarou algumas vezes suas intenções autobiográficas nos filmes, reforçando os comentários que frequentemente classificam sua obra a partir desse teor. Assim, Michele Apicella (cujo sobrenome é o da mãe do cineasta) é protagonista de quase

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todos os primeiros longas1 e, sempre interpretado por Moretti, ganha o status de alter ego do diretor e apresenta algumas atuações extravagantes, especialmente as influenciadas por teorias psicanalíticas. No entanto, considerar a construção da sua filmografia como um longo diário de quatro décadas parece às vezes condicionar a obra à ideia de que os filmes podem reconstituir a história escondida pelos fatos de uma vida e, com isso, abre-se a possibilidade de uma interpretação que inclui uma “autobiografia da ficção” morettiana, além de um conjunto específico de símbolos caracterizadores da obra do cineasta2 contribuir para um mosaico pouco produtivo. Perde-se ou desconsidera-se boa parte do valor político-social que uma análise de cada filme individual pode trazer, investigando as nuances para além da postura crítica autorreferente. Acreditamos na discussão do caráter autobiográfico no cinema de Moretti no intuito de estudar as medidas de incorporação do discurso de si para uma reflexão sobre o sujeito e também sobre o cinema. A partir da unidade de alguns dos primeiros longas, graças à criação de um personagem com o mesmo nome, assumindo diversos perfis, ampliamos o foco de análise, verificamos que os resultados transcendem o “filme de si” e atingem efeitos habilidosos na exposição de uma aguda crítica sociopolítica por meio de uma estética profundamente conduzida pela ironia, em que a arte cinematográfica também é objeto de procedimentos que vão da celebração ao pastiche. Seguindo essa orientação, o diretor parece estabelecer uma coerência em sua obra, pois a condução dos enredos incide sobre a reavaliação dos princípios individuais e coletivos, de um grupo ou da sociedade. Em razão da própria condução da pesquisa, tratamos de alguns conceitos elucidativos a respeito dos discursos de aspecto autobiográfico e da amplitude assumida em formas e conteúdos. Tendo em mente a mistura entre ficção e autobiografia como uma das características marcantes da prosa contemporânea, constatamos a sua valorização e a incorporação pela linguagem cinematográfica em trabalhos competentes, por isso seguimos estimulados pelas relações possíveis entre a crítica do audiovisual e a crítica literária. Beatriz Sarlo (2005), por exemplo, chamou de “guinada subjetiva” o fenômeno marcante das manifestações que reforçam a referência individual na literatura contemporânea. Para a autora, bastante voltada para a análise do testemunho,

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1. O protagonista, em

princípio apenas Michele, recebe o sobrenome e o mantém em quatro dos cinco longas que seguem Lo sono un autarchico (1976). Em Caro diario (1993) e Aprile (1998), Nanni Moretti passa a ser o nome do personagem central. Giovanni (primeiro nome de Moretti) é o protagonista em La stanza del figlio (2001), também interpretado pelo diretor. Em Il caimano (2006), o diretor se distancia de elos identitários e interpreta Silvio Berlusconi. Em Habemus papam (2011), seu personagem é o psicanalista Prof. Brezzi. Giovanni retorna como nome do protagonista interpretado por Moretti em Mia madre (2015). 2. Algumas marcas dos

protagonistas dos filmes tornaram-se elementos recorrentes para a crítica: a intransigência moral e intelectual, a intolerância com modismos, o individualismo, a recusa de fazer parte de uma geração, o narcisismo, o apelo quase infantil à família. Algumas manias e gostos também entraram para o recorte que comumente cruza os dados de criador e criatura, como os doces (o creme de avelã e a torta austríaca de chocolate), os sapatos, a dança, bem como se juntam ao perfil do qual o próprio Michele Apicella parece querer se livrar, ou ao menos superar.


autobiografias e ficções em primeira pessoa possuem a força do pacto referencial ilusório, ou seja, tanto em um quanto em outro caso nada pode garantir “uma relação verificável entre um eu textual e um eu da experiência vivida” (SARLO, 2005, p. 31). Por outro lado, autores como Gérard Genette (1991) e Philippe Lejeune (2008) tentaram sistematizar uma profusão de textos, porém não deram conta de uma dimensão importante de uma ficção considerada autobiográfica: a ambiguidade que resulta da negação do pacto referencial pelo autor, mesmo este expondo impudentemente fatos biográficos.

3. O termo autoficção foi criado pelo escritor francês Serge Doubrovsky em 1977, numa espécie de resposta a Philippe Lejeune, cujas reflexões deixavam duas questões em aberto no que diz respeito ao pacto ficcional com coincidência de autor e narrador-personagem, e no tocante ao pacto autobiográfico com autor e narrador de nomes diferentes. Doubrovsky percebe a necessidade de escrever uma obra de ficção com um narrador identificado ao autor, e considera a autoficção como recriação de experiências individuais do autor, uma estratégia que assume o fato de que o texto recria uma realidade autobiográfica, mediada pela subjetividade.

De outro ângulo, Bakhtin (2003) poderia ser considerado, já nos anos de 1920, um dos primeiros a instigar o debate quando nos lembramos de que é dele a ideia de que nunca há coincidência total entre autor e personagem, nem mesmo na autobiografia. Justamente esse ponto é retomado por Leonor Arfuch (2010) para discutir o caráter fragmentário e caótico da identidade. Assim, o “espaço autobiográfico” passa a receber atenção, no sentido de constituir uma instância capaz de integrar o registro referencial e ficcional, na qual o leitor ou espectador vivencia não somente os pactos biográficos, mas também as inquietações da identidade, com a possibilidade de leitura mais abrangente, disposta a perceber ressignificações do sujeito em processos de subjetivação plurais e dinâmicos, inclusive no diálogo com a experiência do outro e no autorreconhecimento. Em meio à crítica extensa e preocupada com as relações entre subjetividade e representação, hoje uma confluência de estudos colabora para desvendar a “busca de um meio-termo entre desconstrução e hipóstase do sujeito” (KLINGER, 2012, p. 31). Sendo assim, esse estado de coisas pode levar a considerar a autoficção3 como uma possibilidade para as definições contemporâneas de formas de discurso biográfico, na literatura e no audiovisual. No caso dos filmes de Nanni Moretti, podemos mencionar autoficção como contribuição para uma certa mitologia que compõe uma figura de protagonismo que confessa e recria, numa atitude autoral voltada para discussões maiores que a própria vida. Contudo, sabemos que é insuficiente falar de autoficção como estratégia predominante da primeira pessoa de Moretti em seus filmes. E isso se deve, sobretudo, não somente aos limites da teoria da literatura, mas ao alcance das análises sobre a enunciação cinematográfica, que toma proporções diversas das análises literárias.

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Tomando como exemplo uma das cenas de Nanni Moretti, no início de Aprile, ouvimos a voz over do protagonista explicando que naquele momento, um ano e meio depois das eleições de 1994 e da queda do governo de direita, ele está preparando um filme. A câmera mostra apenas fotos de atores dispostas uma a uma sobre a mesa. O protagonista descreve o filme ambientado nos anos 1950, e nessa altura já reconhecemos a voz de Nanni Moretti, enquanto o plano cresce. Percebemos inúmeras fotos dispostas em pilhas sobre a mesa e o protagonista, em camisa xadrez, aparece ao lado esquerdo da tela, graças a um discreto movimento da câmera, que se desvia em plano médio até revelar o rosto do personagem Nanni. Há uma aparente contradição instaurada por essas duas instâncias, a voz (que não é absoluta no comando do ponto de vista) e a câmera (que revela o “narrador narrado” e também se coloca como sujeito da enunciação), numa situação que torna difícil aceitar a figura de um narrador à maneira convencional da literatura. Em Caro diario e Aprile, Moretti compõe narrativas imagéticas explorando o risco de tratar o discurso com alguns parâmetros literários, especialmente o que diz respeito ao sujeito que narra nem sempre corresponder ao sujeito narrado e, portanto, o resultado é uma narrativa com vários sujeitos. Como no exemplo acima, em várias cenas dos dois filmes a enunciação cinematográfica desterritorializa o espectador ao revelar uma visão da câmera que coincide com a visão do personagem em cena, num primeiro momento, mas que passa a se identificar com a do próprio espectador. A variação de ângulo que segue e a voz que narra estabelecem uma mudança súbita, porém muito integrada do ponto de vista, cujo comando de uma primeira pessoa permanece. Contudo, é possível adotar uma estratégia de aproximação às considerações básicas dispostas a compartilhar noções literárias de modo eficaz para os filmes realizados a partir dos anos de 1960. Pier Paolo Pasolini estabeleceu uma leitura original para o cinema moderno, graças a formulações sobre as diferenças sentidas pelo espectador e sobre as marcas autorais no cinema.4 Assim como na poesia e na prosa, cujas nuances do uso da língua são claras para o leitor, o espectador pode notar aspectos formais determinantes para um cinema de poesia ou de prosa, assim como pode visualizar a utilização de um estilo de filmar com a presença de um discurso indireto livre, na medida em que este é possível no cinema, melhor nomeado por subjetiva indireta livre, na prática, uma combinação

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4. Em 1965, Pasolini

apresentou pela primeira vez as ideias do ensaio Cinema di poesia, na Mostra Internazionale del Nuovo Cinema di Pesaro. No mesmo ano, quando Marco Bellocchio estreia na direção com o filme I pugni in tasca, Pasolini escreve ao diretor e retoma algumas considerações que havia elaborado no famoso texto que seria publicado em Empirismo eretico, em 1972.


de movimentos de câmera e enquadramentos. Se o protagonista do filme é o estilo (PASOLINI, 2010, p. 178), marcado pelo uso da câmera subjetiva indireta livre, capaz de superar tanto o caráter objetivo quanto o subjetivo, vemos cinema de poesia e, quando uma história começa a se contar pelo seu conteúdo, predomina no filme a condição de cinema de prosa. A câmera subjetiva indireta livre é marca autoral no cinema. Pasolini considerava a imersão do autor no personagem e na adoção da psicologia e da língua deste no discurso (PASOLINI, 2010, p. 179). Portanto, o cinema de poesia é adequado para mostrar situações mais perturbadoras, isto é, o cineasta pode mostrar explorar o estilo servindo-se de um ponto de vista. Essa utilização propicia uma sutileza no discurso, que pode ser tomado quase inteiramente pela perspectiva do personagem, graças à subjetiva indireta livre, mas está submetido ao comando do diretor. Uma análise preliminar nos leva a considerar os protagonistas de Moretti como variações da subjetiva indireta livre, e a câmera nos permitiria visualizar, de modo geral, o personagem em situação, “narrado” e utilizando-se da palavra. Nesse sentido, em parâmetros literários correspondentes, teríamos um discurso em terceira pessoa, com sábia utilização do discurso indireto livre pelo narrador onisciente intruso. No modo pasoliniano, a câmera subjetiva indireta livre nos fala indiretamente por meio de um álibi narrativo em primeira pessoa, portanto, a linguagem adaptada para um monólogo interior é a linguagem em “primeira pessoa” que vê o mundo segundo uma inspiração irracionalista (PASOLINI, 2010, p. 187). 5. É preciso dizer que o texto também é recolhido no volume Empirismo eretico, de 1972, embora tenha sido composto anos antes.

Osservazioni sul piano sequenza5 é homenageado na última cena da primeira parte de Caro diario. No pequeno ensaio, de grande repercussão, Pasolini trata de elementos determinantes na linguagem cinematográfica para as categorias de tempo, duração, espaço. Pasolini considera o plano-sequência uma forma de subjetiva indireta livre que, por sua vez, é o limite realista máximo, pois a realidade é vista a partir de um só ângulo visual, ou seja, do ângulo de um sujeito (PASOLINI, 2010, p. 240). Seria possível dizer que o plano-sequência chega a reproduzir uma visão mais subjetiva que a câmera subjetiva indireta livre, assim como podemos considerar que ambos os recursos da linguagem audiovisual chegam muito perto de uma “escrita de

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si”, na primeira ou terceira pessoa. A montagem, que diferencia o olhar do cineasta, corta e reorganiza, oferecendo novo sentido à narrativa. Na sequência de Caro diario, o protagonista visita o local do assassinato de Pier Paolo Pasolini, e o percurso até o ponto exato de Ostia tem apenas uma fala, quando a voz do protagonista exprime: “Não sei porque nunca estive no local onde Pasolini foi assassinado”.6 O percurso, ao qual voltaremos adiante, atesta a manifestação da subjetividade numa distensão de perspectiva acompanhada pelo espectador, que pode ser levado a algumas reflexões sobre o estado do cinema e sobre o efeito autobiográfico que deixa em segundo plano a questão da autenticidade do ponto de vista, da veracidade dos elementos autobiográficos. O espectador tem a impressão de assistir à vida do autor do filme (MAZIERSKA e RASCAROLI, 2006, p. 25), e está acompanhando episódios de uma exposição de identidade particular enquanto pode ter a oportunidade de interrogar-se a respeito das suas convicções. Utilizar-se de um alter ego é determinante para o primeiro cinema de Nanni Moretti, para que o diretor pudesse assinalar sua posição além do cinema moderno, noutras palavras, para superar as lições de subjetividade. Pasolini pensou numa subjetividade estilística, enquanto Moretti se expõe, confrontando-se com o espectador em seus primeiros filmes. Ao longo de sua filmografia o discurso parece se expandir, escapando do risco de se fechar no autorreferencial. A subjetiva indireta livre de Moretti vai se afirmando a partir de Caro diario.

2. Pobres garotos...

Interessam-nos algumas considerações oportunas para as definições de sujeito no discurso fílmico de Nanni Moretti, pelo menos em seus dois primeiros longas – Io sono un autarchico (1976) e Ecce bombo (1978) – com marcas de assimilação da figura do sujeito apenas como um efeito da linguagem, ou seja, se depois de Nietzsche não é mais possível acreditar no sujeito cartesiano e muito menos no sujeito como atuante, como ser por trás do fazer, o agente é uma ficção. Para Nietzsche, “‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – e a ação é tudo” (apud KLINGER, 2012, p. 27). Sendo assim, torna-se mais compreensível a instância do

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6. “Non so perché, ma non

ero mai stato nel posto dove è stato ammazzato Pasolini” (tradução nossa).


sujeito criada pelos dois longas, e a crítica mais profunda quando se adota o ponto de vista da ação. Caso o sujeito fosse considerado o ser atuante, o ponto de vista do discurso fílmico, teríamos uma boa justificativa para interpretar suas ações fracas e inconclusivas como liberdade. Contudo, muito provavelmente não é esta a direção que Moretti deseja oferecer ao espectador, para confortálo com a noção de uma espécie de dádiva da existência e do ser, resumida na liberdade do autoengano. Moretti parece assimilar muito bem o sujeito desconstruído que se refaz ao longo de um percurso em direção ao contemporâneo, em certa sintonia com a investigação filosófica que procura um meio-termo entre desaparição e ressurgimento do sujeito. Com isso, talvez ele tenha pretendido afirmar, desde os seus primeiros filmes, uma ética para os princípios estéticos, sobretudo para a enunciação, ainda que sua obra reflita novos experimentos com o ponto de vista e com a sua participação como personagem. Uma das ideias que podemos utilizar é a de que:

O sujeito – assim como o autor, como a vida dos homens infames – não é algo que possa ser alcançado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar; pelo contrário, ele é o que resulta do encontro e do corpoa-corpo com os dispositivos em que foi posto — se pôs — em jogo. Isso porque também a escritura — toda escritura, e não só a dos chanceleres do arquivo da infâmia — é um dispositivo, e a história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram — antes de qualquer outro, a linguagem. E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e, no entanto, precisamente desse modo testemunha a própria presença irredutível, também a subjetividade se mostra e resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a capturam e põem em jogo. Uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a ela. Todo o resto é psicologia e em nenhum lugar na psicologia encontramos algo parecido com um sujeito ético, com uma forma de vida (AGAMBEN, 2007, p. 56-57).

É no mínimo sintomática desse quadro a escolha de uma canção para abrir e encerrar o filme de estreia de Nanni Moretti. Poor boy, composta por Roger Hodgson e Rick Davies, vem de um álbum controverso da banda britânica Supertramp, Crisis?

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What Crisis?, de 1975. Poor boy é uma canção aparentemente singela de autocomiseração que tenta fazer prevalecer a pureza de sentimentos, a lealdade e o valor da sensação de liberdade e da vida simples, bem como parece abominar a valorização material, a negatividade, o descontentamento. Poderíamos concordar com uma visão otimista ou mesmo dizer, como os ingleses, que o poor boy pode ser um holy fool, contudo pensamos na hipótese de uma leitura voltada para o autoengano, mantendo o eu lírico da canção em acordo com o protagonista de Io sono un autarchico. Dois fragmentos podem ser destacados no texto da canção: um refrão que pode representar a resposta do interlocutor ou da sociedade, ao entoar “Pobre garoto, se é desse modo que vai ser / Pobre garoto, é você por você e eu por mim / Pobre garoto”7 e o verso “Eu nunca vou mudar meu ponto de vista”,8 como um diálogo em que temos a opinião disposta a encobrir, por meio da acusação irônica de fragilidade mantida no adjetivo “pobre”, a crueldade das diferenças de caráter, além de assumir falsamente a condescendência. Por outro lado, o verso isolado, índice de teimosia do sujeito, disfarça a fraqueza do eu lírico com o efeito de uma frase disposta a revelar uma atitude firme, incorruptível – típica do sujeito que se apoia no caráter inflexível para não revelar a incapacidade de diálogo, entendimento e aceitação de ideias diferentes. Seria ousado dizer algo como Pasolini, quando, ao condenar os jovens de 1968, descrevia a aparência contestatória como “máscaras de uma integração subserviente e inconsciente que não provoca piedade” (PASOLINI, 2009, p. 20). De certo modo, o filme desenvolve as nuances de perspectivas da canção que se inicia com a voz de Roger Hodgson imitando um aerofone, corneta ou trompete. Em sua primeira aparição na obra de Moretti, Michele é um jovem desempregado, membro de uma companhia de teatro experimental, dependente financeiramente do pai, abandonado pela mulher, com a qual trava diálogos desesperados ao telefone, sem qualquer maturidade para cuidar do filho Andrea. Io sono un autarchico se inicia e termina com uma aparente atitude desafiadora, que se revela inconclusa: Michele não se reconciliará com Silvia, que irá embora definitivamente com o filho; a companhia teatral estreia a peça, que terá público a cada dia mais escasso, e o diretor ficará sozinho ao propor um debate com a plateia, empreitada não menos frustrante do que havia sido o exercício

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7. “Poor Boy, if that’s the way

it’s gotta be / Poor Boy, it’s you for you and me for me / Poor Boy”. 8. “I’m never gonna change

my point of view”.


com a trupe (um training ao ar livre, numa espécie de trilha, na qual alguns membros são eliminados) e a caçada a um crítico disposto a assistir à estreia e que discorrerá sobre vários temas, menos o enredo da peça. O filme inicia e termina ao som da canção do Supertramp, não por acaso, reafirmando o desdém pela realidade e ressaltando certas preferências adaptativas que minimizam os efeitos do que a psicologia denomina dissonância cognitiva, que acontece no impacto da realidade. Assim, os personagens ostentam uma postura autossuficiente, muito embora só consigam fechar-se em supervalorizações disfarçadas de simplicidade. Não seria exagero dizer que poderiam assoviar Poor boy como uma espécie de hino de geração.

9. A aparição do homem que apregoa “Ecce bombo” no filme não é casual. Ele representa a origem do título e faz referência à antiga figura do trapeiro, imortalizado pelo poema de Baudelaire (Le vin des chiffonniers, analisado primorosamente por Walter Benjamin), e aos vendedores de material usado de todo tipo, parte da paisagem urbana em muitas cidades.

Ecce bombo, realizado em seguida, traz a continuidade e o aprofundamento dos temas, incluindo a ironia sobre as posições dos personagens, a partir do título, cuja inspiração teria sido o bordão de um catador de material reciclado, representado no filme.9 Ao lado dessa referência latente da expressão, vinda do cotidiano, também se mantém o ar de superioridade quando a associamos ao título do livro de Nietzsche (Ecce homo, de 1908), por sua vez escrito com o objetivo de o autor ser lembrado com “mais gosto em ser tomado como sátiro do que santo”. Pode-se inferir que há uma reinvenção da sátira de Nietzsche com a troca do segundo termo. Assim, homo (homem) torna-se bombo, que pode se referir a um inseto (um tipo de abelha, a mamangava) e ser traduzido do italiano como som intenso, grave, tenebroso, mas o verbo bombare (io bombo, na primeira pessoa do presente) significa contornar com curva, encurvar, ou ainda bloquear drasticamente algum processo funcional do computador (algo como “eu entravo”). Portanto, desde o título e seguindo a trama, forma-se um contraste entre alto e baixo, como se o filme tornasse cada vez mais expostas a fragilidade e a aparência de certezas, com certa comicidade: os personagens não compartilham atitudes produtivas em relação à alienação exaltada pelos jovens, a não ser sua redundância. A cultura popular representada pela música, pelas imagens cotidianas, pelas idiossincrasias, reorienta o ponto de vista para distanciá-lo de uma perspectiva de cinema de autor no sentido estrito. A frase-chave de Ecce bombo sintetiza a alienação dos jovens aparentemente empenhados e parece girar em falso, improdutiva: “Passeio,

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vejo gente, me movimento, conheço, faço umas coisas”.10 A imprecisão característica de uma geração que não tem perspectivas é a tônica dos que não têm lado, opinião, em suma, são levados. O empenho não passa de um vazio intelectual, enquanto o ponto de vista parece ironizar essa postura. Se Pasolini acusava os jovens no início dos anos de 1970 por serem mais cooptados pelo sistema capitalista do que imaginavam, ele enxergou, até certo momento, pelo menos uma hipótese de redenção – os jovens poderiam ter se desviado desse novo fascismo, se fossem apresentados à cultura, às artes. Nanni Moretti preferiu fechar as possibilidades de saída para os jovens daquele final de anos de 1970. Um movimento semelhante é realizado na década seguinte pelo cineasta, ao focalizar a esquerda italiana por meio de um dirigente do Partido Comunista Italiano às voltas com a sua perda de memória, com o campeonato de polo aquático do qual participa e com um mundo que literalmente está prestes a desabar – Palombella rossa (1989) estreia meses antes da queda do muro de Berlim e do PCI, com Nanni Moretti recuperando seus tempos de atleta na interpretação de um jogador. Se preferimos não apostar na premonição, podemos nos deter sobre o declínio da linguagem que contribui efetivamente para a sensação de limite de possibilidades. Não por acaso, é o último filme com Michele Apicella como protagonista. No plano dos conteúdos, em Ecce bombo a supervalorização dos sentimentos-chave dos personagens nos leva a concluir que o mecanismo é proposital e arma-se contra si mesmo. Dizendo de outro modo, a exacerbação dos “defeitos sociais” chama a atenção para as mazelas reais e, especialmente, para a dificuldade de superação das dificuldades individuais. Nem mesmo a simples consciência das mesmas é possível, nem será partida para um processo de mudança, tamanho é o grau de obscuridade, esta que a poética morettiana ironiza e quer revelar, provocando o espectador com a sua identificação com um falso estado de liberdade. Conforme se percebe, antes de manipular o ponto de vista na enunciação cinematográfica com os artifícios da primeira pessoa por meio da voz, mantendo os movimentos de câmera dispostos a retomar a subjetiva indireta livre (recursos profícuos a partir de

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10. “Giro, vedo gente, mi

muovo,conosco, faccio delle cose” (trad. nossa).


Caro diario), Moretti incorpora marcas da contemporaneidade em seu cinema e exerce uma crítica sobre elas. Parece cumprir as exigências de novos movimentos e linguagens para consolidar uma leitura mais adequada ao tempo. Ao mostrar uma geração em processo de abandono e ao refletir sobre ela, repensando também os modos de filmar, o seu cinema, o cinema italiano, o diretor exerce uma prática renovada disposta a repensar a teoria, ou seja, ainda que não seja totalmente inovador, o procedimento ajusta ética e estética. Portanto, podemos dizer que a arte de Nanni Moretti é essencialmente política, se lembramos da argumentação de Giorgio Agamben: “A arte é em si própria constitutivamente política, por ser uma operação que torna inoperativo e que contempla os sentidos e os gestos habituais dos homens e que, desta forma, os abre a um novo possível uso” (AGAMBEN, 2008, p. 34). Se existe algo que percorre a obra de Nanni Moretti, de Io sono un autarchico (1976) a Mia Madre (2015), é uma instância moral disposta à obstinação, se necessário. Em todos os filmes, o ponto de vista fundamental é indignado e incrédulo. O sentimento de inadequação é uma constante, por vezes dilacerado pela aflição, pela irritação e pelo egocentrismo, porém é dessa forma que se mantém ainda mais provocativo, na tentativa de colocar em discussão um sofrimento comum, uma aflição compartilhada, mesmo que a exposição dos defeitos seja a forma de discussão dos efeitos do presente. O que importa reter é a impossibilidade de considerar em separado o poder estético de dizer e o poder político de agir em nossos tempos.

3. Pelo menos três pontos de vista

O cinema de Nanni Moretti contribui para o aspecto mais proveitoso das discussões acerca das hibridizações de gêneros, discursos e linguagens. A despeito da metaficção que se apresenta quase sempre elevada a uma crítica do estado de coisas na Itália e no cinema italiano, o fato autobiográfico em si tem considerado a distância adequada entre autor/ator e personagem, pontuada pela ironia e autocrítica, observada na intransigência moral e intelectual que enfrenta uma recusa de pertencimento à sua geração, no narcisismo, na relação quase infantil com a família.

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A manifestação do personagem “em primeira pessoa” em Caro diario pode representar o rompimento dos laços com os constrangimentos de seu tempo e uma nova guinada crítica, que terá continuidade em Aprile. Além disso, o estilo da montagem muda sensivelmente, de uma justaposição de cenas sem ligação causal ou temporal precisa, com a inserção de recordações destacadas pelo caráter anticonvencional, para uma montagem mais próxima da linearidade. A escrita do diário organiza o sétimo longa de Moretti, dividido em três capítulos ou episódios relativamente autônomos: In Vespa, Isole e Medici são “narrados” por um diarista que utiliza a voz para percorrer o texto que escreve em seu diário, ou o que supostamente está formulando. A escrita costura e uniformiza, o protagonista escreve nas três situações – sentado no café ao revisar a crítica que elogiava o filme americano de gosto discutível, viajando pelas ilhas e na rotisseria em que nos conta sua saga com médicos. Além disso, o empenho nas anotações e a divisão dos capítulos, em tinta vermelha, escrita à mão, ocupando toda a tela em cada intervalo pressupõem mais que uma organização de diarista. Como um diário não é organizado em capítulos, somos levados a pensar que há um desejo de unidade entre os episódios, concisão mais próxima do romance do que do diário. Evidentemente, é possível considerar a escrita do protagonista como um romance em forma de diário, entremeado por narrativa de viagem. A organização configura um exemplo válido de gênero híbrido. Na mise-en-scène, o filme estabelece relações com gêneros contemporâneos impregnados de realidade ou simuladores desta. As definições de vida ficcionalizada, documentário estendido pela imaginação ou registro do miúdo poético cabem, sem dúvida, para o filme, porém seu discurso assimila o paradoxo da forma que o diretor passa a utilizar com método rigoroso: a aparente espontaneidade encobre uma estrutura calculada, com objetos de crítica que incluem a desilusão da geração pós68 até a especulação imobiliária e descaracterização da cidade, passando ao confronto com o papel do crítico cinematográfico e, finalmente, ao réquiem utilizado para questionar o próprio ponto de vista. Todos esses movimentos estão no primeiro episódio do filme. Voltaremos a ele.

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O segundo episódio (Isole) traz algumas referências e implicações críticas sobre as mesmas. O protagonista segue para a ilha de Lipari (onde irá questionar seus métodos de composição criativa) para encontrar um amigo, estudioso de James Joyce, que não vê televisão há 30 anos. Em seguida, a viagem segue para Salina, a ilha dos filhos únicos, proporcionando uma excelente crítica às famílias contemporâneas, depois para Stromboli, onde se constata a falência de um idealismo, para Panarea, que assiste à recusa da alienação e, finalmente, para Alicudi, com a crítica funda e cômica ao intelectual que tenta sem sucesso se afastar da cultura popular e de massa. Em cada ilha, portanto, o filme revela índices de degradação material e moral: o espaço antes retratado por Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni é destituído ao turismo de massa (FABRIS, 2008), com algumas idiossincrasias morettianas elevadas a superação. O terceiro capítulo retrata um episódio autobiográfico autêntico, a experiência dos sintomas, do complicado diagnóstico e da cura de um linfoma de Hodgkin. A estrutura faz uso do flashback, a partir do protagonista escrevendo em seu diário, cercado de receitas médicas e medicamentos. No corte, a cena seguinte é uma tomada de 16mm da última sessão de quimioterapia. O episódio prossegue, sempre em retrospectiva, com a encenação do longo percurso de especialistas até o diagnóstico definitivo. A montagem evidencia a aparente segurança dos médicos e a ineficácia de cada tratamento, com o sintoma principal (uma coceira intensa) piorando, em efeito cômico, reforçado pela filmagem limpa, essencialmente com enquadramentos fixos. De volta ao cenário inicial (uma cafeteria), o protagonista pede o café da manhã e um copo de água. Há efeitos de estranhamento oportunos em Caro diario. O diretor optou por manter uma descontinuidade entre sua pessoa como personagem e como narrador, ou seja, as instâncias se confundem ao longo do filme, como se desejasse explorar a subjetiva indireta livre em novas capacidades de distensão e de encolhimento. A voz narrativa que por sua vez não se fixa em nenhum personagem contribui ainda mais para um distanciamento emotivo, ao mesmo tempo em que impede um realismo autobiográfico que se esperaria graças aos pactos com o espectador. O olhar do protagonista direto para a câmera na última cena, em que ele toma o copo de água, determina uma

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retomada da situação de quase absurdo do episódio e do filme como um todo. O autor é protagonista de seu diário, porém está exposto e observado e, não obstante fazer parte de um gênero que evoluiu nesse sentido, torna-se observador nesse final aberto, incrédulo e convicto, que o filme nos deixa. Caro diario se abre com a caligrafia miúda do “diarista”, que escreve no alto da página-tela: “Caro diário, há uma coisa que gosto de fazer mais que tudo”.11 Moretti assume uma definição pasoliniana segundo a qual a realidade pertence à dimensão oral (viva, extemporânea, mutável), enquanto o cinema é dimensão escrita (mumificada, programada, fixa), ou seja, o cinema para Moretti também é a “língua escrita da realidade” (PASOLINI, 2010). A cena é cortada e a Vespa percorre incansavelmente as ruas de bairros de Roma, sem o apelo aos clichês dos monumentos tão marcados em outros filmes como Roman Holiday (A princesa e o plebeu, William Wyler, 1953). A voz do protagonista é ouvida com as declarações que parecem não dar conta das imagens, que por sua vez precisam da língua oral, da “narrativa” para complementá-las. Moretti aproveita algumas convenções (como o tratamento familiar que os diaristas utilizam para tratar o “caro” confidente personalizado), reinventa o diário e a narrativa dos filmes de memória, ou autobiográficos, com a adoção de um “diário fílmico” para equilibrar as tensões. O protagonista percorre bairros muito populares, com alguma nostalgia e “tomando posse” de sua cidade, reconquista o espaço atual. A cidade está vazia, provavelmente porque é verão. No interior do episódio, vários assuntos aparecem: a beleza paisagística e arquitetônica, as modificações e a decadência de alguns bairros, o cinema hollywoodiano, a crítica cinematográfica. De Garbatella a Ostia, o percurso recebe as confissões do protagonista, como o desejo de aprender a dançar, à guisa de diário sem data e com peso de reflexão sobre as próprias fraquezas. Caro diario traz golpes certeiros, como o discurso sobre as maiorias e minorias em duas cenas: na primeira, a resposta a um filme que o protagonista assiste, no cinema vazio de Roma, com a cena de um grupo de pessoas concluindo que o tempo passou e ninguém melhorou, todos são cúmplices. O protagonista interrompe várias vezes a cena para exprimir sua indignação contra a fixação pelo “todos”, e sua resposta aparece na narrativa elaborada no silêncio e na solidão do passeio na Vespa – se um dos personagens

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11. “Caro diario, c’è una cosa che mi piace fare più di tante!” (trad. nossa).


12. “(...) Io gridavo cose

giuste e ora sono uno splendido quarantenne” (trad. nossa).

13. “Sai cosa stavo pensando?

(...) Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone. Mi sà che mi troverò sempre a mio agio e d’accordo con una minoranza” (trad. nossa).

da cena diz que em seu passado todos gritavam coisas violentas, horrorosas, e ainda se enfearam, o protagonista repete a conclusão amarga e acrescenta: “(...) eu gritava coisas justas e agora sou um esplêndido quarentão”,12 para que o espectador, imediatamente em seguida, se divirta com o efeito de I’m your man, de Leonard Cohen, e com a flagrante autoestima elevada do protagonista-diarista, matizada pela ironia provocada pela inserção da canção. Outro par de frases exemplar como subjetivação aparece na abordagem de um homem em seu conversível, poderoso símbolo de status, e o protagonista se dirige ao desconhecido: “Sabe o que eu estava pensando? (...) Eu acredito nas pessoas, porém não acredito na maioria das pessoas. Penso que ficarei sempre à vontade e de acordo com uma minoria”.13 De todas as confissões para o diário, talvez as mais contundentes estejam voltadas para o papel do crítico de cinema e para a memória (ou falta dela). O protagonista lê para um crítico o texto que parece preencher o espaço impresso com considerações calculadamente elaboradas sobre Henry, pioggia di sangue (Henry, portrait of a serial killer, John McNaughton, 1986). Como um fragmento de imaginação inserido em meio às reflexões do diarista que resolve transcrever em seu diário a crítica recém lida acerca de Henry, o protagonista se vê ao lado do crítico de cinema, no quarto, ao pé da cama, lendo o que parecem ser fragmentos de seus textos carregados de citações. O protagonista dispara as expressões cortantes, cuja força de sentido passa do efeito cômico à amarga constatação da superficialidade, do desserviço e do transtorno vindos da crítica nesse momento. Se o efeito vinha sendo preparado desde as cenas exibidas de Henry, cuja violência não tem o conteúdo que o texto da resenha quer lhe atribuir, o crítico desesperado, vítima de suas próprias frases, é o retrato da moderna rede que envolve as produções sem qualquer profundidade poética, representativa, reflexiva. No que diz respeito à memória coletiva, o plano-sequência filmado em Ostia fecha o primeiro episódio e nos oferece as dimensões possíveis num único plano. The Köln Concert de Keith Jarrett começa a ser ouvida ao mesmo tempo em que vemos jornais folheados e uma coleção de recortes trazendo como assunto a morte de Pasolini, em novembro de 1975. A música começa exatamente no plano que corta a sequência anterior, do implacável diarista a fuzilar o crítico de cinema com suas próprias frases sem sentido.

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O silencioso percurso, ao som exclusivo da música de Jarrett, segue a via dell’Idroscalo nos dois sentidos, até concluir-se em frente ao monumento degradado, em terreno abandonado. A cena traz uma direta referência ao cineasta bolonhês, é uma homenagem, conforme a crítica constata, porém, segundo Mariarosaria Fabris, “(...) Moretti demonstrava ter compreendido o ensaio ‘Cinema de poesia’, de 1965, em que Pasolini afirma que a vida se reproduz no plano-sequência, cujo significado é dado pelo corte que interrompe o fluxo contínuo de imagens, assim como a morte dá um sentido à trajetória humana” (FABRIS, 2008, p. 98-99). O plano que antecede a silenciosa decepção com a memória de Pasolini intensifica a ação sem palavras que atira para o espectador uma espécie de alegoria do contemporâneo com a delícia e a desgraça da relação com o passado. Contudo, Gian Piero Brunetta (2004) afirmou que as deambulações do personagem levam-no a uma nova percepção do eu, a uma diferente capacidade de medir o mundo e de medir-se em relação ao mundo. Entendemos que Moretti desenvolve uma percepção de seu tempo e espaço sem sentimentalismos, criando uma medida de atualidade, que se afirma com as relações estabelecidas no seu próprio processo criativo, filme a filme. Assim, se distinguimos um parentesco temático e formal entre Io sono un autarchico e Ecce bombo, entre Aprile e Il caimano, entre La stanza del figlio e Mia madre, existem conexões mais estimulantes para além de setores da obra do diretor. O acerto de escolher categorias contemporâneas, como os impasses da juventude no enfrentamento dos problemas de geração, o empenho político e as questões que envolvem as esquerdas se junta à busca pela instância narrativa ideal para cada conflito, para cada situação desarmônica, para a inadequação. Nesse sentido, conforme nossa exposição tentou demonstrar, o sujeito da enunciação nos filmes de Nanni Moretti tende a ser sempre ético.

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FILMES APRILE. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni Moretti; Silvio Orlando; Silvia Nono. Itália, DVD, color., legendado, 78 min., 2008.

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CARO DIARIO. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni Moretti; Renato Carpentieri; Antonio Neiwiller, Jennifer Beals. Itália, DVD, color., legendado, 96 min., 2008. ECCE BOMBO. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Itália, DVD, color., legendado, 103 min., 2008. IO SONO UN AUTARCHICO. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni Moretti; Luciano Agati; Simona Frosi; Fabio Traversa. Itália, DVD, color., legendado, 95 min., 2008. PALOMBELLA ROSSA. Direção/Roteiro: Nanni Moretti. Intérpretes: Nanni Moretti; Asia Argento; Silvio Orlando; Fabio Traversa. Itália, DVD, 89 min., color., legendado, 2008.

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A escrita de si nas praias de Agnès Varda Lucia Castello Branco Psicanalista e professora permanente da POSLIT - FALE e do PPLitCult - UFBA.

Maria Fernanda M achado Psicanalista e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UFMG.

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Resumo: Da morte do autor a seu terno retorno na forma de biografema (que faz da bio – vida –, grafia – letra) proposta por Barthes, passando por Wenders e a noção da câmera como abrigo das sombras, e por Comolli, a se ocupar do resíduo do real, infere-se que do sujeito na tela resta a mancha. Assim como na psicanálise, o que se transmite no cinema não será uma representação da realidade perceptível no espectro sensível, mas o que se apresenta alhures. Procura-se então aí, nesse “fora do espectro” – que resiste na fissura da filmagem – a possibilidade de pensar a singularidade da abordagem biografemática do cinema documentário. Para tal conceituação, toma-se, como uma espécie de referencial cinematográfico, a abertura do belíssimo filme As praias de Agnès (2008), de Agnès Varda. Palavras-chave: Cinema-biografema; Psicanálise; Agnès Varda.

Abstract: From the author’s death to his tender return in the form of biographème (which makes bio - life -, spelling - letter) proposed by Barthes, passing by Wenders and the notion of the camera as a shelter from the shadows, and by Comolli, dealing with residue of the real, it is inferred that from the subject on the canvas the stain remains. As in psychoanalysis, what is transmitted in the cinema will not be a representation of perceived reality in the sensitive spectrum, but what is presented elsewhere. Then, it is sought in this “out of the spectrum” - which resists the fissure of filming - the possibility of thinking about the singularity of the biographical approach of documentary cinema. For this concept, the opening of the beautiful film The beaches of Agnès (2008), by Agnès Varda, is taken as a kind of cinematographic reference. Keywords: Cinema-biographème; Psychoanalysis; Agnès Varda.

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Moi, si on m’ouvre, on trouvera des plages. Agnès Varda Talvez tenha sido necessária a morte do autor, preconizada por Roland Barthes, em seu memorável “A morte do autor”, e mais tarde problematizada por Foucault, na conferência “O que é um autor?”, para que pudéssemos, alguns anos depois, realizar um certo retorno ao autor, um retorno com ternura, como quer o próprio Barthes, através de sua noção de biografema. Já em “A morte do autor”, é nítida a proposta de Barthes de que a figura do autor deveria ser substituída por uma outra, a do leitor: “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” (BARTHES, 1988, p. 70),1 ele escreve, ao fim do texto. Mas é Foucault, um ano depois, quem problematiza a questão, trazendo para a discussão a noção de discurso, tributária da psicanálise, ao pensar o autor como uma função, como um “fundador de discursividade”. Por isso, já de início Foucault assinala que “não basta, evidentemente, repetir como afirmação vazia que o autor desapareceu”. O que Foucault propõe é, antes, que se localize “o espaço assim deixado vago pela desaparição do autor”, para então “espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer” (FOUCAULT, 2011, p. 91).2 Trata-se, portanto, de funções, locais, lugares discursivos, noções com que a psicanálise vem lidando, desde Freud, e acentuadamente no “retorno a Freud”, realizado por Lacan, com ajuda da linguística, da literatura, da antropologia e sobretudo da topologia. E talvez seja mesmo a noção de sujeito, trazida pela psicanálise, o que tenha amparado Foucault em seu pensamento, quando ele afirma: “Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictício; a função autor é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa distância” (FOUCAULT, 2001, p. 98). Podemos inferir, então, que talvez tenha sido não só a psicanálise, mas a própria formulação de Foucault o que tenha possibilitado a Barthes o seu retorno com ternura à noção de autor, através do biografema:

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1. Original de 1968.

2. Original de 1969.


Pois se, pelo artifício de uma dialética, é necessário que haja no Texto, destrutor de qualquer sujeito, um sujeito que se deva amar, esse sujeito está disperso, um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte (...). Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão! (BARTHES, 1979, p. 14).3

3. Original de 1971.

Aqui, novamente, temos a figura do leitor, desta vez não em lugar do autor, mas ao lado do escritor, como “corpo futuro” daquele outro corpo que já foi transformado em cinzas pelo trabalho de um outro leitor, o “amigável e desenvolto biógrafo” que foi capaz de transformar a vida – a bio – em letra – em grafema –, esvaziando-a de todo o conteúdo romanesco e, talvez, reduzindo-a ao mínimo de um corpo – as cinzas –, o mais impessoal e, ainda assim, o mais singular (já que as cinzas de um corpo jamais poderão ser trocadas pelas cinzas de outro corpo). Ou seja: se aquele corpo já não pode ser mais reconhecido como uma pessoa em sua pessoalidade, ainda assim é da singularidade absoluta de um sujeito que se trata. Eis que nos acercamos, enfim, da noção de sujeito, tão cara à psicanálise. Noção que já não se confunde com a de autor, tampouco com a de leitor, mas que não dispensa o corpo, como é nítido na formulação de Barthes. E talvez seja esta noção que nos auxilie aqui para pensarmos em uma proposta do que chamaremos, numa referência direta a Roland Barthes, mas tributária de Freud e Lacan, de cinema-biografema. O sujeito que se apresenta entre o autor e o leitor seria o que contagia? Seria esse o sujeito, então, que é transmitido na porosidade de uma tela de cinema? Justamente nos tropeços do dito que o fazem dizer, na ausência de um espectador definido, do Outro que dá forma à mancha do olhar, o sujeito talvez possa ser melhor capturado. O olhar, que não distingue a escrita do Outro, tenta alcançar um grunhido que soa e ressoa borrado. No olhar, como objeto escópico, Lacan localiza um objeto opaco que resta do rasgo da linguagem sobre um corpo.

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O olhar, como resto incorporado do Outro, ganha lugar de objeto a. O objeto a é compreendido aqui como uma “certa função de resto, que sustenta e move o desejo” (LACAN, 2005, p. 253).4 Desejo este marcado pela falta, pois só se é olhado a partir de uma perspectiva que faz mancha: o Outro me olha de onde eu não me vejo. “A função da mancha e do olhar é o que (...) comanda o sujeito mais secretamente e o que escapa sempre à apreensão da visão” (LACAN, 1998, p. 75).5

4. Original de 1963.

5. Original de 1964.

Na falta da representação da imagem que o outro vê quando me olha, me situo a partir de um ponto que invento sobre a visão daquele que me tenta a ver. E é nessa invenção que o sujeito se apresenta, mas não encontra uma representação que lhe dê consistência. O olhar abriga o sujeito em sua mancha, em seu intervalo. Com o intuito de promover uma aproximação desta construção lacaniana para a produção cinematográfica, podemos utilizar uma elaboração de Wim Wenders (2013), quando o cineasta ressalta que “a câmera, portanto, é um olho capaz de olhar para frente e para trás ao mesmo tempo. Para a frente, ela de fato ‘tira uma foto, para trás, registra uma vaga sombra’” (WENDERS, 2013, p. 64). Neste caso, poderíamos inferir que, no cinema, a câmera abrigaria o sujeito em sua sombra. Também na mancha e na sombra, o cineasta Jean-Louis Comolli (2008) esclarece que, “longe da ficção totalizante do todo”, o cinema documentário só pode se construir a partir de sua fricção com o mundo e, dessa forma, cede espaço ao real que o provoca e o habita. Diferentemente do controle que marca os roteiros do cinema de ficção, o filme documentário não pode acontecer sem suas fraquezas, tropeçando em várias realidades que não quer negligenciar e sobre as quais não pretende ter um domínio, pois o documentário “tem a chance de se ocupar apenas das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído, a parte maldita” (COMOLLI, 2008, p. 172-173). Com Lacan, temos que é no equívoco que toca o real que a psicanálise opera e, para isso ocorrer, é “preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” (2007, p. 18).6 A transmissão em psicanálise – e também no cinema como sugere Walter Benjamin (1993)7 – pode ser nada mais “do que o curto-circuito passando pelo sentido” (LACAN, 2007, p. 118). Há, assim, uma orientação que não é o sentido, mas sim sua quebra produzida pelo real, que

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6. Original de 1975.

7. Original de 1940.


pode ser aludida, aqui, pelo neologismo do poeta Francis Ponge, citado por Lacan (2011, p. 85): “r.é.s.o.n”, uma outra “razão”, que evoca outro tipo de pensamento, aquele que “ressoa”. No pensamento que ressoa, pode-se dizer que “a copulação do simbólico e do imaginário” é o que faz consistir um sentido, sendo que a “orientação do real (...) foraclui o sentido” e promove a transmissão de um certo saber que ecoa (LACAN, 2007, p. 117). Em outras palavras, esta outra razão ressoa quando algo do real promove uma quebra do registro. Registro este já dado por uma representação resultante do encontro entre o simbólico e o imaginário. Esta concepção de algo que se produz fora do registro e tem efeito de transmissão parece se aproximar do que propõe Walter Benjamin. Ao pensar em uma tentativa de representação do homem pela câmera, Benjamin sugere que a câmera no cinema, com seus inúmeros recursos de imersões e emersões:

[...] nos abre, pela primeira vez, a experiência de um inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional. De resto, existem entre os dois inconscientes as relações mais estreitas. Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção sensível normal (BENJAMIN, 1993, p. 189-190).

Haveria, nesta proposição de Benjamin, um inconsciente ótico composto por espectros que o olho humano normalmente não seria capaz de captar, mas que ainda assim promoveria um certo registro da realidade. Desta forma, torna-se possível deduzir que, tal como na psicanálise, o que se transmite no cinema não seria uma representação da realidade perceptível no espectro sensível, mas algo que se apresenta alhures

.

Nesta inversão de perspectiva, que focaliza o que se apresenta “fora do ––espectro” e resiste na própria fissura da filmagem, buscaremos pensar na singularidade da abordagem biografemática do que aqui chamamos de cinema documentário. Tomaremos, como uma espécie de referencial cinematográfico do que pretendemos conceituar, a abertura do belíssimo filme As praias de Agnès (2008), de Agnès Varda.

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A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado


Fig. 1: As praias de Agnès (frame).

O sujeito espraiado Suponham que todos os homens tenham desaparecido da terra. Digo os homens, devido ao valor elevado que vocês conferem à consciência. Já basta para perguntar – o que será que sobra no espelho? Mas suponhamos até que todos os seres vivos tenham desaparecido. Sobram então apenas fontes e cachoeiras – e também raios e trovões. A imagem no espelho, a imagem no lago, será que elas ainda existem? É óbvio que ainda existem. E isto por uma razão ainda muito simples – no alto grau da civilização ao qual chegamos, que ultrapassa de muito nossas ilusões sobre a consciência, fabricamos aparelhos que podemos, sem audácia alguma, imaginar suficientemente complicados para que eles mesmos revelem os filmes, os guardem em caixinhas e os depositem na geladeira. Tendo desaparecido todo ser vivo, a câmera pode ainda assim registrar a imagem da montanha no lago, ou até a do Café de Flore, esfarelando-se na solidão total. Com certeza os filósofos terão todo gênero de objeções astuciosas a me fazer. Rogo-lhes, no entanto, que continuem a prestar atenção ao meu apólogo. Eis que os homens voltam. É um ato arbitrário de Deus de Malebranche – já que é ele que, a todo instante, nos sustenta em nossa existência, ele bem que pôde suprimir e nos repor em circulação alguns séculos mais tarde.Os homens terão que reaprender tudo

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e, em particular, a ler uma imagem. Pouco importa. O que é certo é o seguinte – logo que virem no filme a imagem da montanha, verão também seu reflexo no lago. Verão também os movimentos que ocorreram na montanha e os da imagem. Podemos levar as coisas mais longe. Sendo a máquina mais complicada uma célula fotoelétrica apontada para a imagem no lago, pôde determinar uma explosão – é sempre preciso, para que algo pareça eficaz, que se desencadeie em algum canto uma explosão – e uma outra máquina pôde registrar o eco ou recolher a energia dessa explosão. Pois bem! Eis aí, portanto, o que lhes proponho considerar como essencialmente um fenômeno de consciência, que não terá sido percebido por mim algum, que não terá sido refletido por nenhuma experiência êuica – estando ausente nessa época toda e qualquer espécie de mim e de consciência do eu” (LACAN, 1987, p. 65).8

8. Original de 1954-1955.

O filme se inicia com o barulho das ondas, antes mesmo que a figura inconfundível de Agnès Varda apareça na tela, à beira do mar, a caminhar para trás e a dizer: “Faço aqui o papel de uma velhinha gorducha e faladeira que vai contando sua vida”. Ela continua: “E, no entanto, são os outros que me interessam e que quero filmar. Os outros, que me intrigam, me estimulam, me interpelam, me desconcertam, me apaixonam. Agora, para falar de mim, pensei: Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. E, se me abrissem, encontrariam praias”.

9. Original de 1871.

Já nessa primeira cena, coloca-se a questão do eu e do outro. “Eu é um outro” – podemos, então, pensar, evocando a célebre frase de Rimbaud (2009).9 E a questão do sujeito cindido, tal como a psicanálise o postula, já está colocada aí. Mas Agnès avança um pouco nessa questão. Pois é ela mesma quem está em cena, a recontar sua vida. Ela anda para trás – o retorno com ternura? –, para contar sua história. Mas afirma que está representando, fazendo o papel de uma velhinha. Enquanto ela anda para trás, as ondas avançam. E, pronunciadas estas palavras iniciais, o plano se abre, lá estão seus técnicos a armar um cenário composto de espelhos antigos que não refletirão um rosto, mas tão somente o mar. “Eis aí, portanto, o que lhes proponho considerar como essencialmente um fenômeno de consciência que não terá sido percebido por mim algum, que não terá sido refletido por nenhuma experiência êuica”, diremos, repetindo Lacan.

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O que a imagem de um espelho que não reflete o rosto de quem narra, mas apenas uma paisagem, pode nos indicar, sobre a questão do sujeito? Que o “eu” não é o sujeito, é a primeira óbvia dedução. Mas também que um corpo pode ser construído tão somente a partir da voz e do olhar. A voz cai disso que se diz. Lacan questiona: “O que há cuja voz é assumida pelo sujeito a cada vez que fala?” (2005, p. 71).10 A voz apresenta semântica de objeto a, quando “o Outro é o lugar onde isso fala”. O objeto a não seria um objeto qualquer, mas qualquer um que se configure invocante de um sujeito pela alteridade que o marca. Quando algo de um outro apresenta-se não representável, faz-se um ruído. Nesse intervalo, sobra um resto sem significação. A voz como som não é assimilada, mas incorporada em sua pausa, inaugurando um corpo com a marca dessa escansão.

10. Original de 1963.

A escansão da voz se associa ao recorte do Outro pelo olhar. O olho é um órgão duplo que, ao tentar construir um foco único sobre o mundo, acaba por deixar vestígios excluídos de sua função. E, mais uma vez, só se é olhado a partir de uma perspectiva que faz mancha: o Outro olha de onde o sujeito não vê. Lacan dirá que a função desses vestígios excluídos comanda o olhar e o distingue da visão:

Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da visão e ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se transmite de piso para piso, para ser sempre nisso em certo grau elidido – é isso que se chama olhar (LACAN, 1998, p. 74).11

A visão é distinta da função do olhar, sendo essa última função isolada como “digamos o termo, da mancha”.12 A mancha do olhar seria também um traço de pura autonomia, que é transmitido “de piso para piso”, um fio que sempre escapa à visão da consciência e delineia um sujeito futuro. No olhar e na voz, localizam-se restos dos rastros da linguagem sobre um corpo. E sabemos que, para a psicanálise, um corpo, un corps, encore (para evocar Lacan, em seu seminário Encore) é, mais que tudo, um corpo pulsional. Aí, um sujeito se transmite “de piso para piso”, de espelho para espelho.

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11. Original de 1964.

12. Idem, p. 75.


Quando priorizamos o olhar e a voz como lugar de transmissão do saber de cada um, apostamos que aí, nesses dois objetos, há algo que os desloca de uma organicidade. Não foi sem causa que Lacan os acrescentou à série de objetos parciais freudianos. Assim como Freud atribuiu ao seio, às fezes e ao falo um lugar que não só toca, mas ultrapassa a função orgânica, alcançando uma dimensão pulsional, Lacan atribui aos dois um estatuto que está além de uma função biológica. Propõe-se uma disjunção entre o som e a voz e entre a visão e o olhar. Esses objetos acrescidos de um a dariam lugar à mancha ou à pausa do Outro, que não pode ser vista ou falada. E talvez seja por essa brecha que a transmissão se dê, refletindo no espelho uma mancha do litoral de Agnès, que pode – com sua singularidade – tocar o piso daquele que se divide ao tentar ver. Nessa configuração de cena, Agnès Varda oferece o testemunho de sua vida em uma sequência de espelhos, e no mar repetido, nunca o mesmo, se inscreve o grafema que constitui o seu corpo pulsional. Seria um curto e longo circuito que deflagraria o impossível em sua transmissão, sem que seja ecoando sentido, mas sim “ressoando sentido”, escrevendo dentro/fora das molduras antigas seu torno de onda pulsante? Agnès deixa estar fora do espectro, dentro do espelho, ao espectador. Mas, do autor ao leitor, a letra se transmite?

13. Original de 1956.

Eduardo Vidal (2017), ao comentar a frase que se encontra em “O seminário sobre ‘A carta roubada’” – “uma carta sempre chega a seu destino” (LACAN, 1998, p. 45)13 –, desenvolve uma noção que pode nos auxiliar nesta reflexão. De início, Vidal retoma a ideia de que à palavra carta, em francês, lettre, também cabe a tradução “letra”. A carta, no conto, asseguraria um ponto de resistência do texto entre o discurso analítico e o discurso literário, que confrontaria o leitor com sua falta mais radical: “a carta é o que se subtrai ao poder do discurso do mestre” (VIDAL, 2017, s.p.), pois a mesma, no conto, se perde e caminha de mão em mão, sem que ninguém consiga de fato dela se apoderar. Trata-se de um discurso que comportaria uma letra em sofrimento, uma letra sem tradução que, não sendo aberta, nada se sabe sobre o seu conteúdo. Somente uma carta que não chega ao seu destinatário, que não teria um endereçamento certo, chegaria ao que Vidal nos convida a entender como uma

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“destinação”. Dessa forma, alcança um sujeito em sua divisão, “um sujeito que se deixa, de alguma maneira, ler pela letra” (VIDAL, 2017, s.p.). O conto de Poe e a carta desse conto chegam “ao leitor, mas ao leitor, como Lacan deixa claro no início dos Escritos, que não é aquele dos endereços aos quais uma carta se remete, mas ao leitor que se deixa dividir pelo gozo que a letra porta” (VIDAL, 2017, s.p.). Um escrito, uma palavra, uma letra sem destinatário, sem um endereçamento a um ideal, seriam portadores de uma “destinação” capaz de promover o efeito de divisão em seus leitores/auditores. Como a carta/letra que marca a falta no conto de Poe, a fala, que deixa escapar um dizer, cumpriria a função de um objeto perdido que faria advir o sujeito do inconsciente. Talvez seja nesse encontro entre o dito e o dizer, apresentado na letra/grafema de uma vida, que em um cinema documentário possa se dar à transmissão. Curioso notar que a execução do documentário em si, nas palavras de Comolli, assim como a carta de Poe, promoveria um “distúrbio do direcionamento que repercute do narrador na escuta do espectador” (COMOLLI, 2008, p. 88). Quando fala, em uma filmagem, o narrador endereça sua fala a um destinatário colocado fora de campo, mas não fora de cena, promovendo um papel estruturante na filmagem do percurso e da destinação da narrativa. O espectador, sempre ausente, acaba se desdobrando na figura do entrevistador, do diretor de cena, da câmera e, claro, de espectadores imaginários. Sem um ouvinte fixo, sem o olhar daquele que o localiza,

[...] o sujeito da palavra filmada vê-se na obrigação de inventar em campo o dispositivo de escuta que permitirá sua palavra. É assim que se forma, entre outras situações de crise, a necessidade de uma auto-mise-en-scène do personagem (COMOLLI, 2008, p. 88).

Como sugere Vidal sobre o efeito da carta no conto de Poe, um testemunho dado frente às câmeras talvez venha a ter o mesmo efeito de uma letra roubada: um efeito de destinação, sendo os espectadores, não-todos, atravessados pelo irrepresentável real que uma filmagem apresenta.

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É a partir daí que podemos já ir ao encontro da noção barthesiana de biografema. Pois uma vida, para ser reduzida a uma letra, a algumas letras, só poderá fazê-lo a partir de uma certa escrita, de uma certa “pulsão da escrita”, como a nomeou Maria Gabriela Llansol (2003, p. 31-32). E, ao evocarmos o universo de Llansol, aproximamo-nos vertiginosamente do que propõe Agnès Varda: “Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens”. A essa proposição, Llansol poderia acrescentar: “A paisagem é o terceiro sexo” (2000, p. 11). Estamos no campo do sujeito, que não se confunde com o eu, mas que não dispensa o corpo, mesmo que o corpo pulsional venha a se reduzir à voz, ao olhar, às fezes, ao seio. Em Agnès Varda, esse corpo se espraia: está na beira do mar, nas ondas, no litoral, no horizonte longínquo, sempre mais além. C’est la mer allée avec le soleil, diria Bataille, evocando os versos de Rimbaud (BATAILLE, 1957, p. 32). “É o mar que se espraia com o sol”, diremos, em licença poética. O que um corpo espraiado pode nos dizer sobre o sujeito? E mais: o que um corpo espraiado conserva da letra de uma vida, da vida escrita por biografemas? Pensemos na letra como uma espécie de mônada, atômica, singular, mas, ao mesmo tempo, com uma abertura suficiente para que ela se abra a outras letras para fazer escrita. A letra, como uma ostra, se abre em seu movimento mínimo de molusco, não para exibir a pérola que ela secreta, mas justamente em razão de seu processo mesmo de secretar. Ali, em seu movimento de abertura, a letra é bio – germe, vida que pulsa em direção à morte – e também suporte de uma escrita. Escrever, sob a exigência da letra, talvez signifique então escrever de si no outro, tendo como outro tudo que não é da experiência êuica: o sol, a areia, o mar, os corpos dos amantes, os espelhos antigos, o barulho do armário dos pais, quando ele se abria, na infância, o toca-discos à manivela, a melodia de Tino Rossi, a Sinfonia Inacabada de Schubert. Biografemas, letras de uma vida. Assim se abre o filme, antes mesmo que o título se escreva sobre a superfície de um espelho que mostra tão somente o mar. O que virá depois não fugirá, em momento algum, à exigência da letra: breves momentos a pontuar o efêmero. Agnès, a velhinha gorducha e faladeira, prossegue, passando pela história de seu cinema, que é também a de sua vida, até a festa de seus oitenta anos, motivo aparente de sua retrospectiva biografemática.

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E as praias? O que fazem elas, nesse filme que parece insistir em nos dizer, a cada corte, a cada tomada, a cada movimento de câmera, que o sujeito está sempre “aquém do eu, além do outro”?14 As praias continuam lá, para além, com o movimento e o barulho das ondas, numa espécie de eternidade improvável. Um dia elas também desaparecerão? Não, enquanto houver uma letra que se abra, em secreção de ostra, e escreva, sobre a areia, um traço. Mesmo que o mar o apague, se houver alguém que o leia – ainda que esse alguém seja um pássaro ou a célula fotoelétrica do apólogo lacaniano –, um dia, quem sabe, o corpo anônimo do escritor terá tocado, como cinzas lançadas ao vento, o corpo anônimo do leitor, ou do ouvinte, ou do espectador. E então poderemos dizer, com Lacan:

É do encalço deste para-além, que não é nada, que ele [o sujeito] volta ao sentimento de um ser consciente de si, que é apenas seu próprio reflexo no mundo das coisas. Pois ele é o companheiro dos seres que estão aí diante dele, e que, com efeito, não sabem que são (LACAN, 1987, p. 281).15

REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa: Edições 70, 1979. BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 65-70. BATAILLE, Georges. L’Érotisme. Paris: Les Éditions de Minuit, 1957. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder - A inocência perdida: cinema, televisão, ficção e documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. FOUCAULT, Michel. O que é um autor. In: QUEIROZ, Sônia (org.). O que é um autor?, de Michel Foucault: duas traduções para o português. Cadernos Viva Voz, Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2011. LACAN, Jacques. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011. _______. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. _______. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. _______. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

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14. Fazemos referência aqui

ao belo título do livro de Leyla Perrone-Moisés sobre o sujeito em Fernando Pessoa.

15. Original de 1954-1955.


_______. O seminário, livro 2: O eu na técnica de Freud e na teoria da psicanálise. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985a. _______. O seminário, livro 20: Mais, ainda. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985b. LLANSOL, Maria Gabriela. Na casa de julho e agosto. 2 ed. Lisboa: Relógio D’Água, 2003. _________. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2001. RIMBAUD, Arthur. Carta de Rimbaud a Paul Démeny, datada de 15 de maio de 1871. In: BARROSO, Ivo (org.). Arthur Rimbaud: Correspondência. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 2009. VIDAL, Eduardo. Letra. In: VIDAL, Eduardo. Efêmero. BH: Cas’a’escrever Edições, 2017. (no prelo) WENDERS, Wim. Uma vez. In: Zum Revista de Fotografia. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 4, abr. 2013.

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Sentir a imagem: performatividade e mise-en-scène no cinema de Naomi Kawase Henrique C odato Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, pósgraduado em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC). Docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Eduardo dos Santos O liveira Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

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Resumo: A partir de um diálogo entre algumas teorias dos campos do cinema e da performance, buscamos visitar dois documentários da realizadora japonesa Naomi Kawase – Em Seus Braços (Ni Tsutsumarete, 1992) e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra (Kya ka ra ba a, 2001) – a fim de investigar as práticas performativas que a diretora utiliza na e com a imagem e como ela inscreve seu próprio corpo na materialidade do filme, constituindo, desse modo, um cinema repleto de imprecisões, ausências e desaparecimentos. Palavras-chave: Cinema; Performance; Performatividade; Mise-en-scène; Naomi Kawase.

Abstract: Based on a dialogue between theories from the field of cinema and performance studies, the present work aims to visit two documentaries from Japanese director Naomi Kawase – Embracing (Ni Tsutsumarete, 1992) and Sky, Wind, Fire, Water, Earth (Kya ka ra ba a, 2001) – in order to investigate the performative practices that the director uses in and with the image and how she inscribes her own body in the materiality of the film, presenting a cinema full of inaccuracies, absences and disappearances. Keywords: Cinema; Performance; Performativity; Mise-en-scène; Naomi Kawase.

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Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


Introdução

Por que as árvores balançam com o vento? Para poderem se tocar. Se eu fosse mais natureza, eu me sentiria muito melhor. Nesse lugar, meu pai deve ter sentido a mesma coisa, eu acho. Naomi Kawase, Em seus braços

Estamos aproximadamente na metade do filme Céu, Vento, Fogo, Água, Terra (Kya ka ra ba a, 2001), da realizadora japonesa Naomi Kawase. O canto inferior direito do quadro revela-nos o perfil da diretora, filmada em primeiro plano, no momento de seu despertar. Ignorando a câmera, Kawase olha fixamente através de uma grande janela que ocupa a outra metade do quadro. Seu olhar perdido, ainda um tanto sonolento, se dirige insistentemente para fora do quarto – e, por conseguinte, para fora do campo filmado – como se buscasse, com isso, ver um objeto que se distancia; apanhar com os olhos algo que parece querer escapar. A luz do sol se espalha pelo cômodo, iluminando o rosto da moça e fazendo-o ganhar certo destaque em meio à semipenumbra que encobre o fundo do plano. Nos planos seguintes, à medida que ouvimos Kawase fabular em voz over: “O que é real? Onde está o verdadeiro eu? Você prometeu que ia me salvar”, acompanhamos, por meio de um impreciso travelling, um grupo de pessoas conversando numa espécie de restaurante à beira do mar. “Ninguém pode me salvar. Eu tenho que fazer isso sozinha”, conclui a realizadora na sequência seguinte, que mostra, depois de um corte brusco, o vaivém da água captada desde o interior de um recipiente plástico – uma garrafa cortada ao meio, transformada em copo – como se estivéssemos, diretora e espectador, a beber o líquido. Em seguida, ao abandonar o interior do copo, a câmera perde seu foco, enquanto se desloca, passeando pelo que parece ser a superfície lisa de uma mesa, na qual repousam – como veremos com o reganhar da nitidez da imagem – algumas cartelas de medicamentos. A máquina filmadora se demora sobre os comprimidos, filmando-os com atenção por alguns segundos. Chove lá fora e a voz do radiojornalista anuncia que fará frio em Tóquio.

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No lugar do excesso de drama, a diluição das ações e o descentramento da própria figura. Por meio de jogos de enquadramento, de luz e sombra, de fragmentações e reflexos, a diretora implica o próprio corpo na filmagem tentando investigar marcas e estratégias estéticas que permitam construir outro tipo de mise-en-scène, impulsionada por práticas performativas e muito mais preocupada com a fabricação de atmosferas sensoriais do que com encadeamentos narrativos. É como se, por meio de seus filmes, obras sempre tão íntimas e pessoais, pudéssemos ver os rastros de uma presença quase fantasmagórica que, desesperadamente, tenta atestar a própria existência e a existência do mundo pelo gesto poético de filmar. De fato, seu cinema se situa no ponto de confluência entre arte e vida: marcada por dramas familiares, a história pessoal de Kawase parece guardar uma potência narrativa que a realizadora explora desde seus primeiros trabalhos, e que se torna algo absolutamente notável em seus documentários autobiográficos, como Nascimento e Maternidade (Tarachime, 2006) e Vestígio (Chiri, 2012), em que filma a relação visceral com Uno Kawase, sua tia-avó e mãe adotiva; e Em Seus Braços (Ni Tsutsumarete, 1992) e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, obras que têm como motor a ausência do pai biológico e que escolhemos como objeto de análise para este ensaio. Ao articularmos certas noções oriundas dos estudos do cinema e da imagem e dos estudos da performance, propomos desenvolver algumas reflexões acerca do cinema de Naomi Kawase, mais especificamente de seus documentários, pensandoos a partir da força performativa do corpo da realizadora e de sua inscrição no espaço do filme. Para além de tentar representar sua história pessoal ou a de sua família, defendemos que o gesto cinematográfico de Kawase pretende, de fato, colocar memórias em movimento, dar a ver lembranças fragmentadas, revisitar arquivos pessoais, atualizar repertórios, reimaginar e reinventar o passado com a (e a partir da) imagem. Nosso principal objetivo torna-se, portanto, o de perceber como as ações performativas e as estratégias de encenação de Kawase se materializam na tessitura desses dois filmes autobiográficos sobre a ausência do pai. Certo, seu cinema é feito de ausências: algo parece sempre escapar, fugir do campo filmado, sublinhando, nesse jogo “dentro-fora”, a articulação entre o

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Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


campo e o extracampo, o visível e o invisível. Em seus filmes, a diretora investe o olhar à procura de brechas, de fissuras no cotidiano, na localização de veleidades temporais, construindo, a partir da inscrição de seu corpo na imagem, uma experiência sensível com o mundo que a rodeia. Devemos notar, nesse sentido, que não só as particularidades formais de suas obras problematizam aquilo que é dado como real, mas também suscitam questões políticas, éticas e estéticas que atravessam a relação que a realizadora estabelece com aquilo que ela filma. A dimensão processual dessas obras nos interessa aqui na medida em que, combinada à estrutura fílmica, não nos fornece pistas sobre o que é exatamente verdadeiro ou falso, mas nos coloca em um lugar incerto, uma espécie de “entre lugar”, em que os sentidos parecem, de fato, deslizar. Gestos filmados, repetições encenadas, fabulações gravadas, situações forjadas a partir de (e com) imagens: é justamente nesse agenciamento entre filmagem, investigação e montagem que propomos localizar o trabalho da performance e a força performativa de Naomi Kawase. Acionando conceitos: performance e mise-en-scène

Como sugere Tânia Rivera, na performance, o artista, simultaneamente, “empresta seu corpo à obra; dá à obra um corpo e faz do corpo uma obra” (RIVERA, 2013, p. 20). Ora, é justamente esse imbricamento entre filme e corpo que nos interessa aqui, de maneira precisa. Se a noção de performance parece apropriada para nos aproximarmos dos filmes que nos convocam, é porque, em seu sentido ontológico, ela cria o real: “enquanto a representação é mimética, a performance é criativa e ontogenética.1 Na representação, a repetição dá à luz o mesmo; na performance, cada repetição encena seu próprio e único evento” (DEL RIO, 2008, p. 4). Assim, é possível dizer que o que nos interpela nesses filmes é que não há, neles, uma apreensão direta do real, mas, sim, sua (re)invenção a partir da ação performativa dos corpos filmados, sobretudo do corpo da própria realizadora. É importante elucidar a persistência de uma estreita relação entre os termos “performance”, “performativo” e “performatividade”. Apesar de focalizarem propriedades distintas, esses conceitos não

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1. A ontogenética é a ciência que estuda a vida de um organismo desde sua fase embrionária, até atingir sua forma plena.


são excludentes ou opostos, mas interagem entre si e operam de modo imbricado, fazendo com que a explicação de um acabe por abarcar a compreensão de outro e vice-versa. Ademais, devido ao caráter fluido e escorregadio dessas acepções, este texto tenta apontar alguns caminhos para a compreensão dos termos a fim de construir um espaço em que essas formulações possam transitar e ser realçadas, evitando definições que cristalizem suas particularidades e impeçam seus transbordamentos. 2. Do original: “I propose

to call it ‘performative sentence’ or a performative utterance, or, for short, ‘a performative’”. O autor faz uso do termo performative com base no verbo da língua inglesa to perform, frequentemente utilizado para designar ação – e que origina também a palavra performance. 3. No original, Austin utiliza

o termo constative, para denominar o primeiro grupo de proferimentos. Embora em determinada parte dos trabalhos acadêmicos produzidos no Brasil acerca da teoria dos atos de fala apareça o termo “constativo” para mencionar as expressões presentes na obra referida, optamos por utilizar o vocábulo “constatativo” em diálogo com a tradução realizada pelo professor Danilo Marcondes de Souza Filho, publicada em 1990 pela editora Artes Médicas Sul. 4. Apesar de tomar a performatividade em sua capacidade de desmanchar oposições binárias, o autor, à época, defendia que os atos performativos da fala poderiam, ou não, ter êxito – ser “felizes” ou “infelizes”, em termos austinianos – a depender das circunstâncias sociais e institucionais envolvidas no contexto da ação.

Foi o filósofo e linguista John L. Austin quem cunhou o termo “performativo”. A noção foi introduzida no campo da filosofia analítica no ano de 1955 numa série de conferências ministradas na Universidade de Harvard, as quais foram publicadas em forma de livro anos mais tarde. Em How to do things with words (1962), Austin desenvolve a teoria dos atos de fala a partir de uma elaboração teórica que mudaria os rumos dos estudos da linguagem: enunciados linguísticos não apenas descrevem coisas ou “servem” para fazer declarações, mas, em alguma medida, efetivamente produzem estados, executam ações e geram condutas, como no âmbito dos testemunhos, casamentos, batizados ou acordos, nos quais são empregadas frases como “eu prometo”, “eu aposto”, “eu sou”, entre outras. Fundamentando uma série de classificações, o autor nomeia esse segundo tipo de sentenças de enunciados performativos, ou, de modo abreviado, performativos (AUSTIN, 1962, p. 6),2 em contraste ao primeiro grupo referido, composto por proferimentos constatativos.3 Em suma, os performativos agiriam sobre o mundo, criando novas realidades e apontando para estados originais. Assim, seria impossível classificá-los em verdadeiros ou falsos, uma vez que carregam uma força de invenção constitutiva.4 Na condição de entusiasta da obra austiniana, o autor francês Jacques Derrida (1991) compõe algumas críticas de cunho complementar às ideias do filósofo inglês. Derrida argumenta que as análises de Austin requerem exaustivamente um valor de contexto, e até de um contexto teleologicamente determinável, “buscando, em vão, fixar a pertinência, a pureza e o rigor” de categorias que o performativo embaralharia em sua realização per se, devolvendo a comunicação performativa ao lugar de comunicação estritamente intencional (DERRIDA, 1991, p. 27-28). Com o intuito de escapar da tentativa de totalização empreendida nas classificações de Austin e, ao mesmo tempo,

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sobrelevar a originalidade anti-logicista do pensamento do autor inglês, Derrida, por conseguinte, sugere os conceitos de iterabilidade e citacionalidade. Relacionando a repetição à alteridade, o autor explica que o primeiro termo deriva de itara, palavra em sânscrito utilizada para denominar “outro”, evidenciando a particularidade de um signo ser sempre outro em sua própria constituição e funcionamento ao comportar a mudança e a possibilidade de alterar-se a cada repetição.5 A citacionalidade, por sua vez, indicaria a propriedade de um signo que o permite deslocar-se da conjuntura de enunciação, “romper com todo o contexto dado” e “engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não-saturável” (Ibid., p. 25). Desse modo, Derrida argumenta que tais características são os componentes a partir dos quais os performativos da fala produzem múltiplos efeitos e rupturas. É nesses dois conceitos que Judith Butler (2003) encontra suporte para desenvolver a concepção de performatividade de gênero. Abandonando a ideia de performatividade exclusivamente ligada a um compromisso firmado entre falantes por meio da linguagem verbal, a autora está mais interessada em discutir uma teoria da ação cuja radicalidade se sustenta na perspectiva linguística que considera o sujeito objeto de seu próprio fazer. A autora, desse modo, compreende o gênero de modo não estritamente correlacionado à biologia, ao “sexo”, ou a uma estrutura ontológica, mas como uma “identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos” (BUTLER, 2003, p. 200). Nesse sentido, o gênero (tal como outras formas identitárias) é um ato, cuja ação requer performances, ou práticas corporais, repetidas e ensaiadas na esfera pública.6 A ideia de performatividade no que concerne ao gênero, assim, relaciona-se às propostas de Derrida na medida em que o gênero, para Butler, deve ser tomado como prática iterativa e citacional, demarcando atos corporais que engendram identidades em sua operação mesma, materializando formas não pré-existentes a cada repetição. Ter conhecimento do panorama articulado acima nos auxilia com a argumentação deste artigo visto que possibilita que compreendamos a concretização de um novo estado, seja atrelado ao caráter performativo7 de atos de fala ou do

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5. Segundo o autor, “toda escrita, deve, pois, para ser o que ela é, poder funcionar na ausência radical de todo destinatário empiricamente determinado em geral” (Ibid., p. 19). Ele busca, a partir de suas formulações, relacionar a escrita e os atos de fala mais a um sentido de diferença do que de representação.

6. Butler destaca as

paródias realizadas pelas drag queens: “Ao imitar o gênero, o [fazer] drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência” (Ibid., p. 196). 7. Se anteriormente o

vocábulo “performativo” aparecia neste capítulo apenas como forma abreviada de aludir ao conjunto de operações constitutivas investigadas inicialmente por Austin, próximo da classe dos substantivos, aqui, por outro lado, seu uso circunscreve a qualidade criativa de tais operações. Assim, esse termo será utilizado numa variedade de formas e construções cognatas, como no texto da autora estadunidense.


cerne criativo de práticas corporais, por meio da ação da performance. Ainda que na obra da autora estadunidense a performatividade esteja relacionada à dimensão do gênero e da sexualidade na esfera social, existem linhas de diálogo com o que o que este texto propõe refletir, uma vez que buscamos levantar indagações acerca da fabricação de uma nova realidade a partir das autoinscrições de Naomi Kawase em suas obras autorreferentes, cujas imagens admitem a noção de performatividade como núcleo de seu funcionamento. Gostaríamos, pois, de deslocar a noção para além dessa relação, uma vez que os agenciamentos que Kawase constrói em seus filmes extrapolam ações geradas a partir da linguagem verbal, constituindo uma série de mecanismos, estratégias e eventos que envolvem a implicação do corpo da realizadora na filmagem. Ao contrário: parece mesmo haver, nos filmes da diretora, uma tentativa de deter a linguagem (verbal) em nome de uma dimensão muito mais sensível, háptica, tátil (como no início de Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, em que Kawase se filma ao “tocar” o corpo de sua tia-avó através do vidro de uma janela para, logo em seguida, sair da casa e ir tocá-lo “de verdade”, passando a ponta dos dedos no rosto da velha senhora enquanto filma). Assim, em seu cinema autobiográfico, a representação se vê substituída pela presença, o que reabilita a mise-en-scène do filme e reconfigura as dimensões espaciais e corporais de nossa experiência. Outro conceito importante que acionamos para essa discussão – e que já apareceu outras vezes ao longo do ensaio, mas que, agora, exige de nossa parte uma aproximação mais atenta – é o de mise-en-scène. Antes de tudo, lembra-nos Jean-Louis Comolli (2008), a mise-en-scène documentária é uma atualização da experiência que decorre da potência performativa do corpo em relação à câmera no espaço do filme. Deste encontro/embate, desdobra-se uma espécie de jogo entre visível e invisível que funda aquilo que Comolli chama de mise-en-scène. Ela é, então, produto da relação entre corpos e gestos filmados e os planos de um filme, que inaugura um vasto universo feito de formas, de composições visuais (e sonoras) elaboradas a partir do material plásticofigurativo das imagens capturadas. Se colocar em cena significa dar a ver, fazer figurar a partir de determinadas escolhas

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políticas, éticas e estéticas, estas escolhas, dadas de modo consciente ou não, também produzem extracampo, na medida em que deixam necessariamente algo de fora (do quadro/da cena). Ainda segundo Comolli, o cinema esconde mais do que evidencia, conservando o que ele chama de parte da sombra. A ontologia da sétima arte, assinala o autor, “está relacionada à noite e ao escuro de que toda imagem tem necessidade para se constituir” (COMOLLI, 2008, p. 214). Isso dito, a maneira de elaborar ausências, de dar a ver desaparecimentos, de formular imprecisões por meio de imagens e sons são iniciativas que nos interessarão sobremaneira ao visitarmos cada uma das obras. No caso do cinema autorreferente de Kawase, talvez devêssemos ainda falar de uma auto-mise-en-scène. Tal como definida por Comolli (COMOLLI; SORELL, 2015, p. 65), tratase de um conjunto de operações nem sempre conscientes, que servem para testemunhar – muito mais do que para atestar – uma relação direta entre corpos, olhares e máquina. Filmar o próprio corpo, entretanto, implica em desarticular o poder calculado da máquina sobre ele – uma vez que se torna, simultaneamente, sujeito (aquele que dirige a câmera, que faz o filme, que produz a imagem) e objeto (corpo filmado, observado, produto da imagem) – o que vem provocar, por conseguinte, também uma desarticulação do olhar: “O dispositivo que o corpo lança sobre si, ainda que planejado por ele mesmo, possui brechas; e é por tais lacunas que a experiência ocorre, arrebatando o que se poderia prever” (REIS, 2016, p. 45). Por último, é preciso ainda considerar que se os modos de figurar partem de escolhas da realizadora, as dimensões processuais das duas obras, portanto, também nos interessam, na medida em que, combinadas à estrutura fílmica, não nos dão pistas entre o que é exatamente verdadeiro ou falso, real ou fictício, vida ou arte; mas se organizam em torno de um sujeito cindido, repleto de lacunas, de uma Naomi Kawase que, ao reimaginar a relação com sua família, reorganiza igualmente o estatuto da mise-en-scène. Nossa hipótese é de que a realizadora cria não somente filmes autobiográficos, mas documentos de afetação;8 formas de sentir e de expressar-se;9 outros mundos dentro do mundo, constituídos de contingências, acasos e performances.

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8. Para Comolli, o corpo

oferecido ao quadro não pode escapar de ser afetado pela experiência de filmagem, produzindo um filme como documento dessa afetação (COMOLLI, 2008, p. 285).

9. A realizadora contou em uma entrevista a José Manuel López que só consegue expressar-se através do cinema. “Minha relação com a arte cinematográfica é também minha forma de me relacionar com a vida, o reconhecimento mesmo do ato de viver” (LÓPEZ, 2008, p. 136).


Em Seus Braços: filmar (com) a ausência

10. Além de Nascimento e Maternidade e Vestígio, três outros títulos destacam-se na filmografia de Naomi tendo como tema a convivência da diretora com Uno Kawase. São eles: Caracol (Katatsumori, 1994), Viu o Céu? (Ten, Mitake, 1995) e Sol Poente (Hi wa katabuki, 1996).

Como já foi dito, o filme Em Seus Braços tem como tema a situação familiar de Naomi Kawase. O pai a abandona antes de seu nascimento, e ela é entregue pela mãe aos cuidados dos tiosavós. Kaneichi Kawase, o tio-avô, morre quando Naomi contava 14 anos de idade. A família da garota, então, passa a ser uma única pessoa: Uno Kawase, mãe adotiva, tia-avó biológica, a quem Naomi chama resumidamente de oba-san – “avó” em japonês. Se a convivência com Uno serve de mote para outros projetos autobiográficos da diretora,10 nesse caso, o princípio de ativação do filme é o abandono afetivo do pai. Em Seus Braços surge, portanto, do desejo de Naomi de encontrar seu pai biológico. No decorrer deste média-metragem de aproximadamente 40 minutos, a diretora filma sua certidão de nascimento e a lê em voz alta, registra gestos banais de sua tiaavó, apanha o próprio corpo implicado em jogos com a imagem, compõe sobreposições com fotografias e imagens de vídeo antigas, além de inserir gravações telefônicas e diálogos com pessoas sobre sua vida. Sem dúvidas, trata-se de um exercício de (auto) descoberta com aqueles e daqueles que a rodeiam. Ao decidir partir em busca de seu pai – e também de sua própria identidade – a diretora o faz apenas com uma máquina filmadora analógica de mão, uma câmera fotográfica e um gravador. O trabalho de montagem do filme nos apresenta imagens vacilantes e imprecisas, algumas quase estouradas, com excesso de luz, tendendo ao branco. Os sons quase nunca coincidem com o que há na tela, gerando, assim, deslizamentos e contrastes na experiência do espectador. A cineasta, no entanto, orquestra as ambiências do filme a partir da materialidade das imagens, dessas assincronias e antinomias na composição dos planos fílmicos: dentro e fora de campo, visível e invisível. Como num confuso processo de investigação que se constrói junto com a fabricação das imagens. Fragmentação e embaralhamento. Nos poucos momentos de Em seus braços em que vemos a diretora inscrever o corpo de modo visível no campo filmado, há sempre algo que escapa dali, que desfigura ou desenforma seu rosto, que desfoca sua imagem ou

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impede que a vejamos por completo, como se, com isso, Kawase propusesse a desconstrução da própria identidade. Em certo momento, por exemplo, ela filma sua imagem sendo transmitida por um aparelho de televisão, superfície pela qual também podemos ver seu reflexo, além de uma terceira reprodução de seu rosto, sobreposta na montagem (figura 1). Ela acaricia a face e passeia a mão pelos cabelos. “Vou ligar para ele. Deveria chamá-lo de papai? O que devo fazer? Eu quero vê-lo. Eu realmente quero isso?”, é o que ouvimos sua voz over dizer, enquanto seu corpo performa junto com aquelas imagens.11

Figura 1: Naomi Kawase filma-se em frente a um aparelho de televisão e performa com as imagens em Em Seus Braços. Por meio do jogo de encenação, e através da montagem, a diretora fabrica um corpo que não preexistia à filmagem.

A dinâmica da cena torna evidente que a realizadora não está interessada em nos oferecer respostas, mas em nos convidar a habitar o lugar das imprecisões, das dúvidas, dos riscos e dos imprevistos junto a ela. O efeito flicker,12 produzido a partir da filmagem do aparelho da televisão, combina-se à paleta de tons azuis e aos ruídos da tela do televisor desarranjando sua efígie, desfazendo a impressão ilusionista de que estaríamos assistindo a um movimento contínuo e desordenando as noções convencionais de figuração do corpo, comumente relacionadas à representação.13 De estatutos completamente distintos – uma imagem televisiva; outra cinematográfica; uma terceira, um reflexo, puro efeito da montagem –, essas imagens entrelaçam-se e justapõem-se, fazendo com que algo novo surja no espaço da tela. Trata-se da irrupção de uma espécie de imagem performativa, produzida por meio da autoinscrição da realizadora no espaço da cena, na

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11. Os efeitos gerados por essa sobreposição – que, poderíamos defender, reflete esteticamente a dúvida vivida pela diretora em relação ao encontro com o pai – aproximam o trabalho de Kawase à videoarte, remetendo-nos a alguns trabalhos do grupo Fluxus, por exemplo, pelo viés performático e pela experimentação autoral e corporal, características que acabam por influenciar, aliás, grande parte dos trabalhos (áudio)visuais contemporâneos. 12. O flickering, ou efeito flicker (palavra em inglês que pode ser traduzida por oscilação ou tremulação), tecnicamente, decorre em função do baixo frame rate de reordenamento (refresh) entre os ciclos de exibição em vídeo, especialmente nos intervalos de atualização no tubo de raio catódico, como acontece neste caso. 13. Como um corpo fechado em si mesmo, inteiro, alicerçado na tríade unidade/ singularidade/identidade. No regime da mimese, da arte representacional, ao contrário do que acontece no filme de Naomi Kawase, o sujeito é tomado enquanto instância, como arranjo definitivo, imutável e finalizado.


relação imbricada entre corpo e câmera, mas que também se desdobra em direção ao espectador, agindo no espaço entre ela mesma e quem se põe diante do filme. Uma imagem cuja intenção não é a de descrever um acontecimento, gerar afirmações sobre um fato ou a de contar uma história, mas a de (re)constituir e (re) elaborar realidades, de fabricar para o filme uma nova forma de mise-en-scène e nela inscrever um novo corpo. Ao longo de Em Seus Braços, a diretora constrói não só um inventário íntimo de si e do que a rodeia, mas dispara acontecimentos e acasos. Certidão de nascimento, fotografias do passado, memórias de infância. Feridas na pele. Em outro momento da projeção, ao revisitar o arquivo de sua família, Kawase obtém o registro civil do pai. A partir deste documento, que contém todos os dez endereços em que ele morou nos últimos 20 anos, ela cria um itinerário e decide percorrê-lo. Nessas rotas espalhadas pelas províncias de Osaka e Hyôgo, a diretora empreende, então, diversos jogos com aqueles espaços: filma-se em meio a uma plantação, brinca num parquinho, exibe fotografias de sua infância naqueles territórios. Repetidas vezes. São mecanismos inventados, práticas performativas de atualização, de arquivos que mobilizam uma série de eventos, interações, afetos e inscrições corporais. De uma documentação performativa, em que há a materialização ou concretização de desejos que antes se colocavam como virtualidades. Ora, a realizadora não encontraria seu pai em nenhum ponto de seu périplo. Suas intenções eram outras, como revelou posteriormente numa master class proferida no Festival de Cine 4+1:

Depois de se separar de mim, meu pai se mudou para dez lugares diferentes. Durante 20 anos, viveu em várias casas. Eu fui a cada uma delas. Evidentemente, meu pai já não estava lá. O que eu buscava eram apenas suas memórias e o rastro de que ele havia estado ali. Tratava de sentir o que ele havia vivido. Eu ia de cidade em cidade. E filmava o pôr do sol, uma árvore balançando ao vento, escutava as crianças brincando. Filmar esse tipo de cenas era o importante para mim. Provavelmente as memórias de meu pai e de minha mãe sejam iguais ao que eu gravei. Fui recriando-as. Como dizia inicialmente, eu havia experimentado a beleza de gravar o tempo com a câmera 8mm. Portanto, não é que meus pais tenham me dito pessoalmente, eu simplesmente fui a esses lugares e tratei de recuperar e regenerar esse

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tempo perdido que eles viveram. Para mim, esse tempo nunca existiu. Não pude conviver com eles, portanto eu mesma regenerei esse tempo (2011).

Se, inicialmente, Em Seus Braços aparentava ser um filme cuja intenção era a de relatar um reencontro entre pai e filha, ou de simplesmente reatar um vínculo perdido entre os dois, agora se revela como uma forma de pôr essas memórias em movimento, (re)visitá-las e (re)imaginá-las, (re)constituí-las de outras maneiras no tempo presente. Desse modo, ao percorrer, acompanhada de uma câmera, as casas que outrora foram habitadas pelo pai, Kawase pretende mais experimentar passados incertos, falar de lembranças fragmentadas e do sentimento de ausência, do que descrever propriamente ou representar a história pessoal de seu pai. Do desejo de atravessar uma geografia que não é formada apenas pelas casas, pela natureza, pela topografia dos espaços filmados, mas que é também subjetiva e afetiva, na qual a própria realizadora se evidencia como a questão colocada no filme (figuras 2, 3 e 4).

Figuras 2, 3 e 4: Naomi Kawase busca seus rastros em sombras e reflexos em Em Seus Braços.

(Re)visitar arquivos torna-se, assim, (re)atualizar repertórios. “De que adianta aventurar-se no desconhecido?”, pergunta uma amiga próxima da família de Kawase. Podemos observar esse filme como produto dos sucessivos agenciamentos entre arquivos do passado da diretora e de sua família, bem como de imagens de seu repertório corporal. O ato de buscar documentos que atestam sua existência, folhear um álbum com fotografias antigas e revisitar

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aqueles cenários, ou, simplesmente, pedir à tia-avó que sorria enquanto a enquadra; cada gesto filmado por Kawase faz germinar novas situações, forja novos acontecimentos, (re)cria realidades, mantém viva e ativa a memória de sua família ao deslocá-la no tempo. Ao fim do processo, outro arquivo, então, se constrói: o próprio filme, que, por sua vez, vem reconfigurar o repertório de quem se põe diante dele e oferece seu desejo em troca de viver o desejo do outro. Em seus braços constitui-se, assim, de um imbricamento de arquivos e repertórios, de imagens e sons que se encontram atravessados pela potência performativa do corpo da realizadora em cena.

Céu, Vento, Fogo, Água, Terra: ausência marcada na pele

14. Ver MAIA e MOURÃO,

2011, p. 62.

15. O haicai é uma forma poética nascida no Japão cuja característica principal é a concisão. Trata-se de um curto poema escrito em japonês, de três versos, dividido em 17 sílabas: 5 delas no primeiro e no terceiro versos e 7 no verso do meio. Geralmente, o haicai fala de um acontecimento preciso, que acontece no presente e apresenta alguma referência à natureza.

Kya Ka Ra Ba A é uma expressão budista derivada do sânscrito. Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, em tradução para o português. Tal expressão resume tudo o que existe no mundo,14 uma vez que traz, juntos, os elementos dos quais o mundo é feito. Mas é também um trava línguas, frase que Uno Kawase tenta pronunciar corretamente, repetindo-a como um mantra durante a visita que as duas mulheres fazem ao cemitério. Nove anos depois de Em Seus Braços, Kawase retorna com o mote da ausência do pai biológico. Nesse caso, tal como Em Seus Braços, a diretora revira seu arquivo pessoal; sugere brincadeiras e performances com Uno; insere gravações de telefonemas e dispara acasos que se concretizariam de outra forma, caso não estivesse acompanhada de uma câmera. Ao passear lentamente com a filmadora pelo que a rodeia, Kawase vai transformando o mundo em outro mundo: “Desde Caracol [Katatsumori, 1994] tive a convicção de que o resultado era um mundo que eu mesma havia criado”, explica a diretora, em entrevista ao pesquisador Aaron Gerow (2008, p. 115). Esse outro mundo criado pela diretora é feito de vestígios, fragmentos, deslocamentos e reminiscências que, juntos, performam um tipo de estrutura poética que poderíamos aproximar daquela do haicai,15 tal como a entende Barthes:

[...] uma arte contradescritiva, na medida em que todo estado da coisa é imediatamente, obstinadamente, vitoriosamente convertido numa essência frágil de aparição: momento

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literalmente “insustentável”, em que a coisa, embora já sendo apenas linguagem, vai se tornar fala, vai passar de uma linguagem a outra e constitui-se como a lembrança desse futuro, por isso mesmo anterior (BARTHES, 2007, p. 102).

“O haicai nos lembra aquilo que nunca nos aconteceu”, conclui Barthes (2007, p. 102). Passado e presente, memória e presença: o cinema de Kawase, como um haicai, germina tempos e mundos. Ao transformar suas lembranças em imagens e sons, Kawase as (re)elabora e as coloca em cena a partir da força performativa do corpo filmado. Portanto, aqui, tomamos as imagens produzidas por Kawase mais como um processo e menos como objetos isolados, pois, como assinala a filósofa Marie-José Mondzain “a imagem faz devir o sujeito mesmo que a produz; é, simultaneamente, operadora de uma relação e objeto produzido por essa relação” (MONDZAIN, 2015, p. 39). Nessa perspectiva, as imagens fabricadas por Kawase são signos que se colocam no lugar de seus desejos de modo não compensatório, fundando mais espaços de diferenciação – nos quais a realizadora se reinventa ao ser por elas diretamente afetada – do que caminhos dos quais sairá ilesa. Tais veredas conduzem a diretora ao encontro do próprio pai, um pouco como se as imagens ali constituídas fossem a ele destinadas. Mas, “o tema sou eu”, avisa a realizadora (GEROW, p. 115, 2008). “Alô, quem fala é Naomi Kawase? Sou eu, Yamashiro. Seu pai faleceu no dia 5 de setembro. Desculpe informá-la com atraso. Ligue-me quando tiver tempo”. Eis a mensagem vocal deixada na caixa de recados da diretora que ouvimos repetidas vezes durante o filme. Após um breve prólogo com imagens de Em Seus Braços, do momento em que ouvimos a gravação que registra o primeiro diálogo entre pai e filha, é a partir do áudio do telefonema transcrito acima que somos introduzidos a Céu, Vento, Fogo, Água, Terra. As escolhas formais da primeira metade desse filme de 50 minutos são similares às da primeira obra: há o corpo de Kawase inscrito de modo fugidio nos planos de filmagem; há gravações de entrevistas sobrepostas a imagens do que a rodeia; há a natureza, árvores, folhas e chuva; há o vento, o céu e também o fogo. Tudo está lá. Menos o pai, que, de fato, nunca esteve. As conversas com pessoas próximas revelam o persistente sentimento de abandono sentido por Kawase. Durante uma conversa entre a diretora e sua mãe biológica, que nunca aparece

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16. Para a mãe de Naomi Kawase, surgir nas imagens de seus filmes poderia romper a harmonia de sua nova família. Ela, então, pediu a Naomi que não incluísse a sua figura em nenhuma obra (LÓPEZ, 2008, p. 137).

nas filmagens,16 a mulher confessa que o pai de Kawase pedira que abortasse quando descobriram a gravidez. Enquanto as ouvimos discutir, passeamos pelos jardins de uma casa, examinamos os galhos de uma trepadeira, vemos a luz do sol atravessar as copas das árvores, acompanhamos uma folha rodopiar com a força do vento, nos deixamos capturar pelas chamas de uma fogueira acesa durante um ritual religioso. O diálogo entre mãe e filha acaba num corte brusco, dando início a uma nova sequência do filme, que se abre com o primeiro plano da tia-avó Uno. As imagens da natureza e aquelas de Uno surgem, pois, sempre como um contraponto à solidão vivenciada por Naomi. Frente à errância da própria identidade, ao descentramento do próprio sujeito, é a presença da velha senhora que se manifesta como presença evidente, concreta. A maneira como Naomi Kawase articula imagens de folhas, troncos de árvores, correntes de ar, labaredas, tempestades e outros elementos naturais em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, e também no filme Em Seus Braços, provoca rupturas na noção de cultura apartada da natureza. A aliança indissolúvel dessas duas esferas geralmente dicotomizadas é uma das noções primordiais do entendimento do corpo no Japão, como explica Christine Greiner (2015). Outra concepção que norteia a compreensão japonesa de corpo, e que notadamente se manifesta na plasticidade dos filmes que nos trazem até aqui, é a impermanência: Naomi reiteradamente filma e dá a ver sua interação com o ambiente em que está inserida, como se nos alertasse que seu corpo está intimamente relacionado à natureza e ao cosmos, culturalmente híbrido e sempre em fluxo (figura 5).

Figura 5: Em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, Naomi Kawase filma sua sombra projetada no tronco de uma árvore, confundindo-se com o ambiente e borrando as fronteiras entre dentro e fora do corpo.

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O filme, no entanto, se bifurca. Na segunda metade de Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, a dinâmica da obra passa a problematizar de modo mais enfático as dimensões de realidade e ficção no cinema quando consideradas como dualidades opostas ou excludentes. Ao decidir fazer uma tatuagem em recordação a seu pai falecido, Kawase visita um estúdio e trava um intenso e filosófico diálogo com o tatuador acerca do amor, da arte e do que pode exprimir o gesto de gravar no próprio corpo, na própria pele, inscrever no corpo, na carne, uma memória. Somos conduzidos por essas cenas por intermédio de uma equipe de filmagem que constantemente aparece em cena, exibindo o dispositivo de filmagem, o microfone de captação sonora, a claquete, todo o aparato técnico que permanece fora do campo em narrativas associadas ao cinema clássico.17 No decorrer do diálogo, a câmera se mantém bastante próxima dos dois, mas visa sempre enquadrar o rosto da diretora: mais precisamente, seus olhos, sempre muito atentos àquilo que diz o tatuador. Após ser sabatinada pelo homem, Kawase deixa o estúdio pensativa, mas, logo, decide voltar e fazer a mesma tatuagem que seu pai carregava no corpo. O tatuador realiza um rápido teste em seu braço. Em seguida, observamos em close o rosto da realizadora que se contorce de dor enquanto ouvimos o constante perfurar da haste em sua pele. Existe, contudo, uma elipse na montagem, um salto temporal que não nos permite ver Naomi Kawase tendo seu corpo marcado com o grandioso desenho que observamos ao fim da projeção, quando a diretora corre nua por entre um amplo descampado, em direção a uma alameda. O operador da câmera corre na tentativa de acompanhá-la, fazendo com que a última imagem de Kawase em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra seja formulada a partir de um intenso chacoalhar, tremular, que sempre deixa seu corpo escapar do enquadramento (figuras 6 e 7). Junto a ela, a foto do pai ausente, com os braços tatuados à mostra.

Figuras 6 e 7: Uma fotografia do pai de Naomi à esquerda e a realizadora à direita, carregando uma enorme tatuagem nas costas.

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17. Devemos ainda notar o barulho insistente da câmera filmadora de 8mm de Kawase que, em momento algum dos filmes, a diretora tenta apagar ou dissimular.


“O mais profundo é a pele”, já disse o poeta Paul Valéry. Das fronteiras entre o interior e o exterior, o dentro e o fora, a ausência e o absoluto, o eu e o outro, o passado e o presente, a arte e a vida (e a morte): o cinema de Kawase se localiza mesmo no limiar das coisas; entre a superfície (da tela) e a profundidade (da imagem), entre o corpo e o espírito. Quando questionada em uma entrevista sobre a necessidade de olhar para trás, como se a morte de seu pai tivesse encerrado uma etapa na vida da realizadora, Kawase explica:

Quando estava filmando Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, que é a continuação de Em Seus Braços, ao enfrentar a realidade da morte de meu pai, a película se transformou em um filme cujo “objeto” havia desaparecido. Então entrevistei as pessoas mais próximas de meu pai, mas algo não se encaixava: qual era a sua verdadeira forma de ser? No que ele havia se equivocado? O que o diferenciava das outras pessoas? Ao fim, decidi concentrarme na imagem de meu pai que habitava em mim mesma; quer dizer, dirigir a câmera para o meu interior. Esse ato significou revisar meu passado e, ao mesmo tempo, foi uma maneira de me despedir dele (apud LÓPEZ, 2008, p. 136).

Assim, não é a tatuagem per se que importa, mas o gesto e o desejo de fazê-la, o intenso processo de sua feitura. Esta parece ser a mensagem que nos deixa Kawase partir da elipse que esconde propositalmente a realizadora tendo suas costas marcadas ao fim do filme. Interessa o que foi mobilizado a partir e junto daquelas imagens imprecisas, daquelas gravações afetivas, daquele passado reinventado. Daquele modo de se despedir.

Notas finais

Esperamos ter mostrado ao nosso leitor que a partir do gesto de filmar o que a rodeia, de implicar-se corporalmente nas filmagens e de atualizar suas memórias, a realizadora japonesa Naomi Kawase levanta diversos questionamentos sobre as fronteiras que se interpõem entre sujeito que filma e objeto filmado, entre natureza e cultura, entre real e fictício, entre vida e arte. Nesse espaço limítrofe, o seu corpo filmado, inscrito na

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imagem, para nela (e com ela) performar. A mise-en-scène dos dois filmes que visitamos é feita, por assim dizer, de fragmentos capturados do tempo que se convertem em poesia a partir das lembranças da diretora e daquilo que ela faz delas. O percurso que aqui trilhamos e o diálogo que tentamos estabelecer entre os campos do cinema – principalmente apoiados no pensamento de Comolli –, da imagem – convocando autores como Barthes e Mondzain – e da performance – com as contribuições de Austin, Auslander e Del Rio – nos parece uma iniciativa frutífera para pensarmos um tipo de arte tão singular quanto a de Kawase e, em igual medida, possibilitarmos a interação entre dois domínios de investigação que se utilizam do corpo como referência, mas desprezam a ideia de representação como norte. Tanto Em Seus Braços quanto Céu, Vento, Fogo, Água, Terra são diários pessoais, são álbuns de família. São formas de sentir a imagem. De provocar uma experiência fílmica a partir da autoinscrição: na película, na pele e na carne.

REFERÊNCIAS ALVIM, Luiza; CRUZ, Nina Velasco. Ritmos e correspondências: a representação visual da música nos filmes de Rose Lowder. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017. AUSLANDER, Philip. A performatividade da documentação de performance. In: Performatus. Ano 2, Nº 7, 2013. Disponível em: http://performatus.net/ traducoes/perf-doc-perf/. Acesso em 10/02/2017. AUSTIN, J. L. How to do things with words. Londres: Oxford University Press, 1962. BARTHES, Roland. O Império dos Signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Trad.: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder - A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. _________; SORREL, Vincent. Cine, modo de empleo. Trad.: Margarita Martínez. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Manantial, 2015. DEL RÍO, Elena. Deleuze and the cinemas of performance: Powers of affection. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2008. DERRIDA, Jacques. Acontecimento, assinatura, contexto. In: Limited inc. Campinas, SP: Papirus, 1991

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FESTIVAL DE CINE 4+1. Master Class: Naomi Kawase (Festival de Cine 4+1, 29/10/2011). Vídeo (127min14s). Disponível em: <https://youtu.be/ sQm2a6WsjdU>. Acesso em 10 jun. 2020. FISCHER-LICHTE, Erika. The transformative power of the performance: A new aesthetics. Trad: Saskya Iris Jain. Londres: Routledge, 2008. GEROW, Aaron. El tema soy yo: Entrevista con Naomi Kawase (1988-2000). In: LÓPEZ, José Manuel (Org.). El cine en el umbral. Madri: T&B Editores, 2008. GREINER, Christine. Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. São Paulo: n-1 edições, 2015. LOPEZ, José Manuel. Sólo consigo expressarme a través del cine: Entrevista com Naomi Kawase (2001-2008). In: LÓPEZ, José Manuel (Org.). El cine en el umbral. Madri: T&B Editores, 2008. MAIA, Carla; MOURÃO, Patrícia (org.). O cinema de Naomi Kawase. Rio de Janeiro: CCBB RJ, 2011. MONDZAIN, Marie-José. A Imagem: entre proveniência e destinação. In: ALLOA, Emmanuel (org). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. REIS, Breno. Dos documentos pessoais: confissão e fabulação em Arirang, de Kim Ki-Duk. 2016. 83 p. Trabalho de conclusão de Curso. Departamento de Jornalismo, Instituto de Cultura e Arte, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016. PINTO, Joana Plaza. O percurso do performativo. Revista Cult, São Paulo, p. 3536, novembro de 2013. RIVERA, Tânia. O avesso do imaginário – arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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Sentir a imagem / Henrique Codato, Eduardo dos Santos Oliveira


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Helena Solberg: entre o pessoal e o político* Karla Holanda Professora do curso de Cinema e Audiovisual e do PPGCine - Programa de Pósgraduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense.

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Resumo: O primeiro filme de Helena Solberg é A Entrevista (1966), curta que discute o papel da mulher na sociedade. Com considerável parte de sua produção realizada nos Estados Unidos, a cineasta realiza, em 1994, Carmen Miranda: Bananas is My Business, longa-metragem sobre a vida da cantora-mito. Em seus filmes, o que se vê é um interesse pelo pessoal sem perder de vista aspectos políticos. Os dois documentários destacados são emblemáticos em sua trajetória e permitem discutir motivações de sua subjetividade. Palavras-chave: Documentário; Helena Solberg; Autoria feminina; Subjetividade. Abstract: In 1966 Helena Solberg directed her first documentary, A Entrevista, a short film that discusses women’s role in society. In 1994 she directed Carmen Miranda: Bananas is My Business, a feature film about the life of the singer-myth. The two highlighted documentaries are emblematic in her career and allow us to observe self-referential and self-expression aspects. Although the intensity of the subjective dimension varies, the personal and the political always seem to be present in her films. Keywords: Documentary; Helena Solberg; Female authorship; Subjectivity.

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Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Mesmo que no Brasil a subjetividade em documentários seja mais presente a partir dos anos 2000, é possível perceber vestígios anteriores. Este artigo pretende identificar tais traços, sejam traduzidos em autorreferencialidade ou no uso da primeira pessoa, em momentos distintos do documentário brasileiro, sobretudo, a partir de dois filmes de Helena Solberg. O primeiro é A Entrevista (1966), curta-metragem montado com o áudio de entrevistas de mulheres de classe média alta, abordando o papel da mulher na sociedade. Estreia de Solberg na direção, o filme foi muito pouco visto e discutido no Brasil, mesmo que traga elementos extremamente originais para aquele período. O segundo filme que trataremos em destaque é Carmen Miranda: Bananas is My Business (1994), longametragem que começa a trazer a diretora de volta ao país depois de larga temporada morando no exterior e que aborda a vida da cantora-mito, provavelmente o mais conhecido de toda sua obra. Entre um filme e outro, Solberg realiza uma série de documentários marcadamente políticos que a faz diminuir a intensidade da dimensão subjetiva, mas sem perder o interesse pelo pessoal. Após A Entrevista, Helena fez ainda no Brasil, Meio-dia (1970), curta de ficção. Em 1971, a diretora vai morar nos Estados Unidos, onde permanece por três décadas e realiza uma dezena de documentários, sendo os três primeiros marcados por forte teor feminista, assim como A Entrevista. São eles: The Emerging Woman (A Nova Mulher, 1974), The Double Day (A Dupla Jornada, 1975) e Simplesmente Jenny (1977). Em seguida, realiza seis outros documentários enfaticamente políticos – From the Ashes... Nicaragua Today (Nicarágua Hoje, 1982), Chile: by Reason or by Force (Chile: pela Razão ou pela Força, 1982), The Brazilian Connection, a struggle for democracy (Conexão Brasileira, a luta pela democracia, 1982/1983), Portrait of a Terrorist (Retrato de um Terrorista, 1985), Home of the Brave (Terra dos Bravos, 1986) e The Forbidden Land (A Terra Proibida, 1990), sempre explorando questões políticas de países da América Latina, incluindo o Brasil, em suas relações com os Estados Unidos, com a igreja católica, com os movimentos civis.1 Por essa expressiva filmografia na região, Solberg recebeu no exterior a alcunha, desde The Emerging Woman, de “cineasta da América Latina” (VEIGA, 2013, p. 305).

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* Este texto é resultado da pesquisa do projeto “Documentário de autoria feminina no Brasil”, apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

1. Solberg ainda fez Brasil em cores vivas (1997), sobre “Raça”, a primeira revista brasileira negra, produzido para o Channel 4 inglês.


Carmen Miranda: Bananas is My Business é o filme que lhe reaproxima com maior intensidade do país natal. A partir de 2003, Solberg volta a residir definitivamente no Brasil e realiza Vida de menina (2004), sua segunda e última ficção, e os documentários Palavra (En)cantada (2009), A Alma da Gente (2013) e Meu Corpo, Minha Vida (2017). O recorte deste artigo recai sobre o primeiro filme da diretora e o último que realiza residindo fora do Brasil. Em ambos documentários, é notória a vontade de compreender e discutir a sociedade brasileira, ao mesmo tempo que parecem ser os que mais trazem aspectos autorreferenciais. Como diz Solberg, fazer documentário para ela:

É estar antenada, ligada no mundo em volta de mim. (...) Muitas vezes comecei um filme com uma ideia na cabeça e, à medida que o filme foi avançando e eu fui examinando aquilo, eu fui mudando, eu fui entendendo outras coisas. Eu acho que a realidade tem um efeito muito forte sobre você, um impacto, e você, de repente, tem revelações (SOLBERG, 2015).

A Entrevista

2. Não cabe neste artigo

aprofundar o contexto histórico dos documentários produzidos nos anos 1960 que constituem o cânone do documentário moderno brasileiro. No entanto, parece importante realçar que apesar de A Opinião Pública (Arnaldo Jabor, 1967) também tratar da classe média carioca, o que chamamos atenção é para a maneira em que a voz off é utilizada por Solberg, sem intenção de ser explicativa. Ao contrário, seu curta explora justamente a multiplicidade de vozes que, muitas vezes, formam um discurso impreciso e ambíguo.

Em A Entrevista, encontram-se fortemente explícitas preocupações que marcariam a segunda onda do movimento feminista, que apenas começava a aflorar no Brasil, com temáticas ligadas ao interesse das mulheres, como trabalho, filhos, sexo, casamento, inserção na política, construção de papeis sociais, etc (CAVALCANTE; HOLANDA, 2013). O material sonoro, captado à parte com a própria diretora operando um gravador Nagra, é explorado de maneira inédita no documentário brasileiro até então – diversas vozes anônimas constituem um discurso plural e contraditório dos dilemas enfrentados pelas mulheres na sociedade, afirmando a diversidade de pensamento e de opiniões dentro de um mesmo grupo social, a classe média alta carioca, da qual Helena fazia parte, o que era raro ver naquele momento em que prevaleciam duras temáticas sociais, um povo miseravelmente sofrido e uma voz over a guiar o espectador.2

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Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Os depoimentos daquelas mulheres são titubeantes, hesitantes, como não podiam ser de outro jeito3: além do peso dos assuntos tratados pelo filme, não era habitual personagens mulheres ocuparem espaço relevante nos documentários de então. As situações trazidas pelo curta lhes corroíam, lhes chegavam como naturalmente femininas e, estranhamente, elas não estavam lá tão certas disso. O feminismo que recrudescera nos Estados Unidos e na Europa nos 1960 fomentava “elementos para se desmitificar o amor materno e desnaturalizar a maternidade”, assim como denunciava todo modelo de dominação patriarcal (CAVALCANTE; HOLANDA, 2013, p. 137). As falas das mulheres reunidas por Solberg parecem antecipar preocupações que se tornariam mais correntes no Brasil a partir da década seguinte. Os depoimentos, em off, são ouvidos enquanto se vê uma moça (Glória Solberg, cunhada da diretora) desenvolvendo uma série de atividades – em seu quarto, arruma-se com trajes de banho para sair; anda pela calçada do bairro; entra numa loja; deita-se na areia da praia; passa bronzeador no corpo; prepara-se para o próprio casamento: maquia-se, veste-se como noiva, vai à cerimônia, parte o bolo. Após o “casamento”, Glória desfaz-se do figurino de noiva e, sentada ao lado da diretora, dá o único depoimento direto do filme – nenhuma outra mulher que fala no curta aceitou ter sua imagem revelada. Vale destacar alguns depoimentos das variadas mulheres, como sobre o limite de recentes conquistas femininas:

Eu acho que a mulher deve saber línguas, deve ser socialmente perfeita (...) [a mulher deve] estar sempre em dia com o que acontece no mundo; ela precisa ler muito, ter uma cultura muito grande. Mas ela não precisa se dedicar a uma coisa; ela pode encher a vida dela com aulas, com conferências, uma série de coisas, mas não se dedicar a um trabalho (Trecho de A Entrevista).

Sobre sexo:

Eu acho que o sexo é muito puro, é muito bonito para estar sendo levado como está sendo levado (...). O pessoal considera o sexo, sei lá, como uma coisa normal, comum, como beber

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3. Nos últimos dois minutos de A Entrevista, que tem 19 minutos de duração, o filme traz uma inesperada voz over, masculina, assertiva, que faz uma associação direta da responsabilidade das mulheres na condução ao golpe militar; é o único momento em que há uma tentativa de fazer uma interpretação da situação pela diretora e seu montador, Rogério Sganzerla. Discuto mais essa relação em HOLANDA, 2015.


um copo d’água. É normal como beber um copo d’água, mas você não vai beber um copo d’água sem ter sede, né? (...) Pra mim, eu preferiria casar virgem, ter relação sexual já casada. (...) Em muitas horas eu acho que pecar contra a castidade é uma obrigação (Trecho de A Entrevista).

Sobre emancipação:

Eu gosto muito de liberdade, liberdade que acho que não teria no casamento (...), tenho horror de ser dominada por um homem. (...) Eu acho que a independência exagerada da mulher, da maneira que a mulher está querendo tomar, não dá certo porque, inclusive, têm mulheres que se destacam de tal forma que não deixam o homem numa situação muito confortável. (...) Se eu não tivesse casado, acho que estaria eternamente infeliz, não satisfeita comigo mesma (Trecho de A Entrevista).

Um melancólico depoimento:

Eu gostaria de ser uma pessoa ativa, de fazer coisas, mas é inteiramente contra a minha natureza. Talvez se um dia eu encontrar uma coisa que realmente me entusiasme, eu faço. Mas no momento não encontrei uma coisa que eu sinto que eu me entregaria, que aquilo me tome por inteira, mas não vejo bem um caminho, talvez uma confusão de ideias... Me sinto feliz, mas não tenho aquele entusiasmo pela vida (Trecho de A Entrevista).

No único depoimento sincrônico, Glória Solberg fala direto para a câmera:

Evidentemente que eu sinto uma série de incoerências em minha vida, eu resolvi quase que aceitar minha ambiguidade e minha incoerência em determinadas coisas porque muitas vezes eu reconheço que não consigo agir exatamente do jeito que devo. Tenho impressão de que nesse ponto há um mínimo de lucidez em relação à própria incoerência e à própria ambiguidade (Trecho de A Entrevista).

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Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Solberg explorava um dilema original no cinema com aqueles fortes depoimentos de mulheres que tentavam se equilibrar no impasse entre certa insatisfação pessoal e o papel ao qual a sociedade insistia em que deveriam se realizar: o de mãe e de esposa. As gravações do áudio das entrevistas para o curta foram feitas em 1964, quando Helena, na casa dos 20 anos, já havia cursado Línguas Neolatinas, na PUC-RJ; já havia se casado, tido a primeira filha e morado dois anos nos Estados Unidos, acompanhando o recém marido (TAVARES, 2014, p. 203-204). Não se pretende aqui investigar dados biográficos da diretora para demonstrar a autorreferencialidade direta das problemáticas dos depoimentos trazidas por A Entrevista e sua vida pessoal. Entretanto, é relevante ter claro que Solberg, pertencente à classe alta, recebeu boa educação, era poliglota, lia muito e tinha aguçada curiosidade por seu entorno. Não é acaso que, para seu primeiro filme, tenha eleito mulheres de sua mesma condição social e faixa etária para falar de situações que eram, provavelmente, semelhantes às que ela mesma atravessava, como uma conversa entre amigas, sem pretensão de afirmações definitivas. Na época de seu lançamento, A Entrevista mereceu algumas matérias em jornais que reconheciam o pioneirismo da diretora. Na Folha de São Paulo, de 10 de julho de 1967, lê-se: “Após o advento do Cinema Novo (...) não se têm notícias de mulheres cineastas. Portanto, Helena Solberg (...) é a nossa primeira mulher no cinema renovado” (apud VEIGA, 2013, p. 301). Nessa mesma matéria, a cineasta afirma sua consciência sobre a urgência da mulher se expressar no cinema, cujo ponto de vista costuma ser masculino:

Se procurei começar um trabalho no cinema, é porque vi nele um meio influente de comunicação e expressão. As mulheres devem usá-lo para expressar suas ideias a respeito da vida, do mundo, de tudo. Enriquecer sua visão sobre as coisas, uma visão que até hoje concebemos através do homem (SOLBERG apud VEIGA, 2013, p. 301).

No Brasil, a partir da década de 1970, surgem muitos filmes que abordam e discutem a situação da mulher, explorando (ou não) a proposta feminista de um “contracinema”,4 como se vê

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4. Desde o inaugural artigo Women’s cinema as countercinema (1973), de Claire Johnston, teóricas feministas (Anneke Smelik, Bérénice Reynaud, Laura Mulvey, Mary Ann Doane) propõem que as mulheres rompam com o efeito de realidade em seus filmes, explicitando os modos de produção, aproximando-se da estética das vanguardas ou de marcas do cinema moderno, como forma de se opor à prática cinematográfica hegemônica, tradicionalmente regida pelo modelo patriarcal (VEIGA, 2013, p. 133-139).


em Ana Carolina, Vera de Figueiredo, Tereza Trautman, Ana Maria Magalhães, Eliane Bandeira, Eunice Gutman, Sandra Werneck, Rita Moreira, dentre outras. Ainda cedo, Solberg teve interesse por leituras precursoras do feminismo que se mostraria em pleno vigor na década de 1970. O Segundo Sexo (1949), de Simone de Beauvoir, e A Mística Feminina (1963), de Betty Friedan, já lhes eram conhecidos quando fez seu primeiro filme. Quando Beauvoir esteve no Rio de Janeiro no início dos 1960, foi entrevistada para o jornal estudantil O Metropolitano por Solberg, que admitiu à escritora que havia lido seu livro, mas o tinha achado “difícil demais”; e Friedan parece ter lhe influenciado na estrutura de A Entrevista, armado sob entrevista de dezenas de mulheres, assim como o livro da estadunidense. A diretora admite que filmar “é uma busca sempre, de uma explicação, para entender o mundo, para entender você mesma, para entender as coisas. Acho que a gente está sempre procurando um pouco isso” (SOLBERG, 2015). E, de fato, o que Solberg parece fazer em A Entrevista é transpor sua própria subjetividade para as anônimas vozes de suas iguais de classe. Os dilemas que os depoimentos revelam também são seus. As respostas que o filme desperta – mas não apresenta – advém de sua vontade de compreender o mundo e a si mesma, como ela mesma admite em seu depoimento. A abertura de A Entrevista se dá após os primeiros depoimentos. A entrada do título e dos créditos, sob sons seguidos de choro de uma criança, uma reza em latim, vozes de mulheres e crianças cantando “Parabéns a você” e, por fim, uma tenebrosa voz de bruxa, como a assustar as crianças das várias fotos e as diferentes bonecas ao longo da cena. Em seguida, vemos fotos da fachada de um colégio tradicional, de colegas de aula, de freiras em seus hábitos, de crianças na 1a comunhão. Ao longo da sequência, as fotos revelam crianças cada vez maiores. Das fotos das crianças, volta-se à figura fictícia de Glória Solberg andando pelas ruas do bairro, sob cujas imagens voltaremos a ouvir os depoimentos em off. As imagens utilizadas na abertura são do acervo pessoal da diretora e das participantes do filme, assim como as bonecas, que veremos muitas vezes em Carmen Miranda. A referência

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crítica ao universo católico voltará a se repetir nesse filme, assim como a crítica à sua própria classe social. Reservaremos comentários a respeito no tópico sobre esse segundo filme, logo mais. Ao final de A Entrevista, a “noiva” retira o véu: agora é Glória Solberg que dá seu depoimento diretamente para Helena, ambas sentadas num sofá (figura 1).

Figura 1: A Entrevista.

A autoinscrição direta será uma constante nos filmes de Solberg. Traço de um “contracinema” mesmo antes da proposta de Claire Johnston em Women’s cinema as counter-cinema (1973), a presença da diretora em cena lhe situa no set de filmagem, demonstrando seu total envolvimento com o mundo que a cerca. Somando-se aos aspectos destacados inicialmente – os dilemas das mulheres entrevistadas que também podiam ser seus, a utilização de acervo pessoal e referências ao próprio universo –, a autoinscrição é mais um elemento que destaca o impulso à subjetividade que se vê na obra de Solberg. Em pelo menos nos três primeiros filmes de sua fase nos Estados Unidos (The Emerging Woman, The Double day e Simplesmente Jenny), os que são fortemente feministas, também vemos a diretora se autoinscrever em cena, assim como outras integrantes da equipe. Em Carmen Miranda igualmente, como veremos.

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Carmen Miranda: Bananas is My Business

Carmen Miranda: Bananas is My Business narra a trajetória de vida e morte da cantora brasileira ocasionalmente nascida em Portugal. Com utilização de enorme material de arquivo – imagens do enterro da artista no Rio de Janeiro, filmes da família de Solberg, shows de Carmen no Brasil e nos Estados Unidos, entrevistas anteriores, inúmeras fotos, etc. –, o filme ainda dramatiza algumas cenas com atores, faz novas entrevistas e, acima de tudo, é todo pontuado pela voz off da diretora, que traz enfáticos enxertos de elementos autobiográficos. Em uma cena que inicia com imagens em movimento de pessoas ricas e bem vestidas, ouvimos a voz off de Solberg: “Encontrei esse filme feito por um tio meu, feito nos anos 20: uma tarde no Jóquei Clube”. Em seguida, uma foto de Carmen Miranda, sucedida pelas imagens em movimento, sob a voz off da diretora:

Carmen era uma menina crescendo no Rio nessa época. A família dos Miranda e esses frequentadores do Jóquei conviviam na mesma época, mas eram de mundos que raramente se encontravam. Essa é uma classe que tem os olhos voltados para a Europa, onde compram suas roupas e de onde vem também a maior parte de suas opiniões (Trecho de Carmen Miranda).

Depois vemos fotos de uma rua na cidade com um morro povoado acima, populares e Carmen Miranda ao lado de sua irmã, sob a voz da diretora: “Mas os tempos estavam mudando: o samba descia o morro e invadia as ruas da cidade. Carmen estava crescendo com ele”. Em seguida, uma foto de Solberg séria, aos sete ou oito anos de idade, e imagens de freiras, algumas já presentes no filme de 1966: Aqui estou eu com cara de preocupada e não muito feliz. Talvez porque estivesse cercada por freiras demais e samba de menos, com certeza. Elas estavam tentando fazer de nós moças bem comportadas. (Trecho de Carmen Miranda).

Helena, em entrevista, diz que aos cinco anos foi aluna de um colégio de freiras, onde era mascote: “a minha explicação do mundo foi religiosa”. Na adolescência, ela diz que houve uma revolta contra 194

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a religião: “não satisfazia mais, não dava mais uma explicação”. Foi quando ela se aproximou de ex-dominicanos que faziam trabalhos sociais numa favela e passou a ter necessidade de uma explicação “mais política” do mundo:

Aos poucos, essa questão começou a se tornar uma experiência de uma explicação mais política, entendeu? Eu começo então a deixar para trás esse ranço da religião. Se bem que até hoje eu adoro a liturgia, eu gosto do ritual, eu acho bonito, eu acho que tem uma coisa cultural que, mal ou bem, a gente fica marcada por ela, né? Mas que não tem mais nada a ver comigo (SOLBERG, 2015).

No início de Carmen Miranda, manchetes de jornais dos Estados Unidos noticiam a morte da cantora, seguem imagens em movimento do cortejo de seu enterro no Brasil, acompanhado por uma multidão a perder de vista. Ouvimos a voz de Solberg:

Quando a Carmen morreu, eu era uma adolescente, mas eu me lembro da multidão e da confusão nas ruas do Rio de Janeiro quando seu corpo chegou. Meus pais não me deixaram ir vêla. Pessoas como meus pais sempre acham que quando o povo sai às ruas, seja qual for o motivo, é melhor ficar em casa. Foi assim que eu perdi minha única chance de ver a Carmen (Trecho de Carmen Miranda).

Helena Solberg faz um mea culpa de sua classe ao reconhecer o preconceito e autoritarismo que a elite brasileira tem sobre a população pobre. Quando diz dos seus antepassados: “é uma classe que tem os olhos voltados para a Europa, onde compram suas roupas e de onde vem também a maior parte de suas opiniões” ou: “pessoas como meus pais sempre acham que quando o povo sai às ruas, é melhor ficar em casa”, a cineasta revela em 1994 uma contundente crítica à sua origem burguesa, assim como João Moreira Salles faria em 2007 em Santiago, e Consuelo Lins, em 2010, com Babás. Mesmo quando se refere às freiras que “tentavam fazer de nós moças bem comportadas”, o que implicaria não se misturar com o povo nem se aproximar do samba, a crítica também recai sobre sua classe que sabia ter a parte mais conservadora da igreja como aliada em sua ideologia segregacionista.

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Eram restrições impostas por sua condição de mulher pertencente à elite econômica do país. Após fotos de Carmen Miranda cantando, sorridente e alegre ao lado de músicos, ainda no início de carreira, a voz off de Solberg lamenta sua distância desse universo:

Eu me sentia curiosa a respeito desse mundo de jovens músicos, cantores e compositores tentando sobreviver. Era um mundo de homens no qual Carmen aprendeu a se virar muito bem. Esse mundo me fascinava (Trecho de Carmen Miranda).

5. À exceção de Meio dia, curta de ficção com pegada experimental que realiza em 1970.

É claro o interesse de Solberg pelo “outro”, mesmo quando fala de si. Os filmes que realiza nos Estados Unidos entre A Entrevista e Carmen Miranda5 refletem a dura condição econômica, social e política de seu país e da América Latina. Esse peso histórico acumulado ao longo dos tempos, expresso numa diferença abissal entre pobres e ricos, pode dar certo tom ressentido em sua autocrítica. Ao final do filme, entretanto, a diretora parece buscar apaziguar as queixas à sua condição burguesa, com as quais sofrera limitações. Antes dos créditos finais, sob sua voz off, uma foto sorridente de sua mãe ao lado de uma imagem de Carmen Miranda (Figura 2), põe panos quentes: “Para terminar, eu queria dizer que a minha mãe, que uma vez não me deixou ir ao enterro de Carmen, reconciliou-se com ela e agora está tudo bem em casa”. Com esse final, Helena busca diluir a carga de ressentimento, como se ouvisse Virginia Woolf dizer que para se alcançar o sublime em uma obra, é preciso conter a raiva (WOOLF, 2005).

Figura 2: Carmen Miranda: Bananas is My Business.

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Helena Solberg: Entre o pessoal e o político / Karla Holanda


Entre subjetividades

Ao olharmos o conjunto da obra de Helena Solberg, não podemos dizer que se trata de uma diretora que persegue um estilo ou que tenha uma marca definida. Ela parece se deixar conduzir pela necessidade apresentada por cada filme. E, dessa forma, tem sido precursora em alguns aspectos do fazer documentário que só posteriormente se repetiriam em outros diretores – aspectos como a autorreferencialidade, o uso da primeira pessoa, a autocrítica à sua própria classe social e a exploração de temáticas feministas. Michael Renov observa que entre os anos 1970 e 1990 há uma efusão de subjetividade nos documentários e acredita que isso se deve ao clima cultural do período, caracterizado pelo deslocamento das políticas dos movimentos sociais pelas políticas de identidade. E o que contribuiu “para essa mudança radical foi o movimento feminista, cuja reavaliação das estruturas políticas alternativas anteriores sugeriram que as desigualdades sociais persistiam” – as mulheres e as questões que lhes importavam receberam pouca atenção. Com isso, os movimentos ajudaram a fundar uma era em que questões pessoais tornaram-se conscientemente politizadas (RENOV, 1999, p. 89). Embora o autor acredite que esse clima cultural se refletisse no ocidente, não dá para concordar que sua observação se aplique aos países ocidentais indistintamente. Acreditamos que os contextos históricos próprios de cada local podem determinar suas culturas. No Brasil, por exemplo, só a partir dos anos 2000 se observa certa expansão da subjetividade através da primeira pessoa nos documentários e não entre os 1970 e os 1990, como fora nos Estados Unidos. O próprio Renov parece fazer uma revisão do que diz em seu livro publicado cinco anos depois, The Subject of Documentary (2004). Nele, sugere que “a tendência autobiográfica seja uma manifestação norteamericana”, embora não exclusiva (RENOV, 2005, p. 239; 241). Apoiado pela socióloga Arlie Russel Hochschild, defende que os “grandes eventos” [históricos] são resultado de um viés masculino e que “a política agora envolvia a maneira como os indivíduos, mais que os Estados-nação, se conduziam no mundo” (RENOV, 2005, p. 240).

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Pablo Piedras reconhece a recorrência da primeira pessoa nos documentários argentinos recentes e observa que boa parte deles foi realizada por cineastas que moram no exterior e/ou que foram formados fora de seu país, e acredita poder transferir essa observação a outros países da América Latina. Os documentários chilenos em primeira pessoa nos anos 1990 eram de diretores exilados na França (Patricio Guzmán, Carmen Castillo e Guy Girard). No México, a diretora Lourdes Portillo se identifica como chicana e sua obra é estadunidense. Piedras ainda sugere relação desse tipo de documentário na Argentina com o retorno da democracia em seu país, em 1983, “pela urgência de abordar o passado recente e as problemáticas sócio-políticas vigentes” (PIEDRAS, 2014, p. 46). Essa tendência não se manifesta com força no Brasil antes dos anos 2000, quando surgem documentários autobiográficos, na maioria dirigidos por mulheres. Neles, é igualmente cabível perceber certa condição estrangeira entre algumas das diretoras. Nesse sentido, podemos citar os longa-metragens Um Passaporte Húngaro (Sandra Kogut, 2004), 33 (Kiko Goifman, 2004), Diário de uma Busca (Flávia Castro, 2010), Marighella (Isa Grinspum Ferraz, 2012), Uma Longa Viagem (Lúcia Murat, 2013), Elena (Petra Costa, 2013), Os Dias com Ele (Maria Clara Escobar, 2013). Mas já faz algumas décadas que historiadores e cientistas sociais, diz Beatriz Sarlo, têm se interessado pelo excepcional, aquilo que foge à norma (bruxaria, loucura, literatura popular) e pelas subjetividades que se destacam por alguma anomalia (o louco, o criminoso, a iludida, a bruxa). Mas também têm se interessado pelos sujeitos “normais”, como se verifica desde o texto pioneiro de Michel de Certeau, A invenção do cotidiano (1980). Assim, ainda segundo a autora, o passado volta valorizado em seus detalhes, suas originalidades e curiosidades que já não se encontram no presente. E os sujeitos marginais, como as mulheres, que teriam sido ignorados em outros modos de narração do passado, “demandam novas exigências de método e tendem à escuta sistemática dos discursos de memória: diários, cartas, conselhos, orações (SARLO, 2005, p. 17). Parece ser justamente isso que faz Solberg ao dialogar com os temas e objetos de seus filmes, como se lesse notas de um caderno com pequenas lembranças, estabelecendo associações com sua história pessoal.

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Helena Solberg é uma exceção em 1966, ao explorar sua subjetividade a partir de vozes de outras mulheres em A Entrevista e ao acentuar visivelmente essa característica 28 anos depois, com Carmen Miranda. É evidente, em muitas passagens desse filme, o desejo da cineasta em refletir o próprio trajeto que traçara para sua vida e se colocar no lugar da cantora que, assim como ela, morou um longo período nos Estados Unidos. Por outro lado, isso não significa que Solberg tenha se fixado ao pessoal ou às subjetividades autorreferenciais em toda sua obra. Seus filmes realizados nos Estados Unidos, em geral feitos para a televisão, têm caráter de engajamento político e certo compromisso em revelar formas de vida e dramas sócio-políticos em países da América Latina. Embora também se encontrem neles elementos que cultivam a subjetividade, não se pode dizer que predominam, não são tão livremente explorados. Importante lembrar que, convencionalmente, a televisão costuma ter expectativas de modelos tradicionais em relação ao documentário independente. Mesmo assim, Solberg ainda consegue manter significativa carga criativa e quase sempre, mesmo abordando questões amplas, destaca indivíduos ou pequenos grupos, valorizando suas experiências singulares e, assim, evitando o autoritarismo do discurso que apresenta a realidade como unívoca, objetiva. Depois de The Emerging Woman (1974), ampla investigação da história do feminismo realizada com fotos e textos, seus filmes seguintes reforçam um gradual envolvimento com o ambiente e os participantes do filme, que passam a ser mais individualizados. Vale exemplificar com personagens de dois filmes que ela própria nos contou terem lhe marcado de maneira especial. A primeira é uma adolescente de 13 ou 14 anos com histórico de estupro e que naquela ocasião já era prostituta. A garota, que conheceu na Bolívia ao fazer The Double Day (A Dupla Jornada, 1975) e que se tornaria protagonista de Simplesmente Jenny (1977), vivia num imaginário fantasioso totalmente distante de seu cotidiano “brutal”:

Ao mesmo tempo que a realidade dela era uma coisa brutal, ela usava linguagem de fotonovela (...). Era uma confusão mental... No final, eu disse: “Vem cá, Jenny, me diga uma coisa, o que realmente você queria ser?”. Aí ela virou para mim e disse “Simplesmente Jenny”. Achei aquilo tão sensacional, tão bonito, que ficou o nome de um filme. Têm esses momentos que são preciosos (SOLBERG, 2015).

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Ou seja, a diretora demonstrava interesse por aspectos “menores”, que distinguem o indivíduo de alguma categoria abrangente. Em outro momento em que esteve próxima de um ambiente e situação violentos foi em The Forbidden Land (A Terra Proibida, 1990), filme que fala da Teologia da Libertação e da reforma agrária. Solberg foi a São Luís entrevistar um suspeito da morte do Padre Josimo, que estava num presídio “absolutamente horrível” e aconteceu o inesperado:

Ele confessou o crime em frente à câmera! Ele não tinha confessado ainda... e nós registrando. E eu disse para ele: “como você fez isso...?”. Eu fiquei completamente perplexa e ele disse: “o mandante veio, pagou, disse que o cara era um padre, [disse] para eu ir lá olhar ele. Eu fui olhar de longe, vi aquele homem barbudo, com sandália de dedo e eu, que fui coroinha, [achava que] padre para mim tinha que usar batina. Aí não deu outra, eu mandei bala”. Eu: “Nooossa! E você matou?”. “Matei”. Depois, isso foi usado no julgamento dele e ele foi condenado (SOLBERG, 2015).

No entanto, para uma brasileira vivendo nos Estados Unidos durante a guerra fria, o contexto político-social da América Latina, assolada por ditaduras militares, parecia muito urgente. Aqui cabe trazer Joris Ivens. Após o experimentalismo de seus primeiros filmes, A ponte (1928) e Chuva (1929), o cineasta holandês deliberadamente suspendeu, a partir da década seguinte, os “prazeres pessoais” daquela pesquisa estética, ao assumir compromisso social explícito diante dos trágicos dramas trazidos pela Depressão e pelo prenúncio da Segunda Guerra. Em relação a Misère au Borinage (Joris Ivens e Henry Storck, 1934), filme sobre a luta de mineiros e autoridades durante uma greve na Bélgica, Ivens diz que seu objetivo era “impedir que efeitos fotográficos agradáveis distraíssem a audiência das verdades desagradáveis que estávamos mostrando” (IVENS apud RENOV, 2005, p. 249). De forma análoga fez Solberg, ao optar por enfatizar realidades difíceis, abrindo mão de explorar mais enfaticamente suas preocupações interiores. É possível discordar do efeito dessa opção, mas o que nos interessa é perceber motivações quanto a determinadas práticas do documentário de Helena Solberg.

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Investigando histórias em países da América Latina cujas populações, de maneira geral, viviam sérios problemas causados pelo atraso político, social, econômico e cultural, acentuados pelo retrocesso das ditaduras e, por outro lado, tendo que conviver com o senso comum distorcido das interpretações da mídia e do governo dos Estados Unidos sobre essas realidades, a urgência de Solberg não era agora por imperativos de ordem pessoal. O interesse por subjetividades pessoais cediam algum espaço a modelos claramente politizados, a abordagens históricas largas. Solberg demonstra ter plena noção da especificidade de ser cineasta de um país subdesenvolvido: as diferenças dos problemas em relação aos países desenvolvidos, onde a classe média é predominante, é determinante. Segundo Veiga (2013, p. 306), em uma entrevista que deu à Folha de São Paulo em 1967, Helena diz que conhecia os filmes de Agnés Varda mas que, pelo fato de viver num país subdesenvolvido, estava distante anos da diretora francesa, que nessa época já havia realizado mais de uma dezena de filmes, entre curtas e longas. O caráter ensaístico e auto reflexivo, marca que muito caracteriza os filmes de Varda, de fato, não seria tão acentuadamente utilizado por Solberg, que sempre daria prioridade aos contextos histórico-culturais, mesmo que os buscasse a partir de sua própria história pessoal. E, mesmo quando mais disposta a determinâncias históricas, sobretudo nesses filmes das décadas de 1970 e 1980, impulsionada pelas urgências sociais e políticas, Solberg também utiliza escalas reduzidas em suas abordagens, destacando a individualidade de personagens, como vimos acima, escapando de verdades prontas, acabadas. É a um anseio pessoal, mais que a uma história políticosocial ampla, que Solberg parece saciar quando realiza A Entrevista, tornando-se, provavelmente, a primeira cineasta a questionar o papel da mulher na sociedade sob os lemas da segunda onda do feminismo, ainda em 1966. Nesse momento, a maioria dos filmes realizados no Brasil não compactuava com esse aparente “individualismo” do curta de Helena. As questões feministas não eram prioridade diante dos graves problemas sociais e políticos, ou seja, diante dos “grandes eventos”. Na verdade, o que Solberg fez foi praticar o slogan “o pessoal é político”, antes mesmo de Carol Hanisch lançá-lo em 1969.

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A Entrevista e Carmen Miranda: Bananas is My Business são como duas extremidades de uma imaginária ponte, alicerçada pelo desejo de compreensão do mundo. Por sobre a ponte, onde prevalecem os filmes feitos para a TV nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980, está o mundo externo embalado por acontecimentos amplos. Nas extremidades, a subjetividade interior, sem receio de embaralhar as esferas públicas e privadas, o pessoal e o político. Se em A Entrevista, o impulso da subjetividade já se insinua, em Carmen Miranda: Bananas is My Business ele se revela cristalino e acompanhado de riscos compensadores.

REFERÊNCIAS CAVALCANTE, Alcilene; HOLANDA, Karla. Feminino Plural: história, gênero e cinema no Brasil dos anos 1970. In: BRAGANÇA, Maurício de; TEDESCO, Marina (orgs). Corpos em projeção: gênero e sexualidade no cinema latinoamericano. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2013. pp. 134-152. HOLANDA, Karla. Documentaristas brasileiras e as vozes feminina e masculina. Significação – Revista de Cultura Audiovisual. São Paulo, v. 42, n. 44. dez. 2015. pp. 339-358. PIEDRAS, Pablo. El cine documental en primera persona. Buenos Aires: Paidós, 2014. RENOV, Michael. Investigando o sujeito: uma introdução. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (orgs). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp. 234-257. RENOV, Michael. New subjectivities: Documentary and Self-Representation in the Post-Verité Age. In: WALDMAN, Diane; WALKER, Janet (editors). Feminism and documentary. Minneapolis: University of Minnesota, 1999. pp. 84-94. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. SOLBERG, Helena. Helena Solberg: depoimento [10 de agosto, 2015]. Entrevistadora: Karla Holanda. Rio de Janeiro, 2015. Entrevista concedida ao Projeto Documentaristas Brasileiras. TAVARES, Mariana. Helena Solberg: do cinema novo contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2014.

ao

documentário

VEIGA, Ana Maria. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades. Tese de doutorado em História Cultural. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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FILMES A Alma da Gente. Direção: Helena Solberg. Brasil, 83’, 2013. A Entrevista. Direção: Helena Solberg. Brasil, 20’ , 1966. A Ponte (De Brug). Direção: Joris Ivens. França, 11’, 1928. Babás. Direção: Consuelo Lins. Brasil, 21’, 2010. Brasil em Cores Vivas. Direção: Helena Solberg. Brasil, 30’, 1997. Carmen Miranda: Bananas is My Business. Direção: Helena Solberg. Brasil, 92’, 1994. Chile: by Reason or by Force. Direção: Helena Solberg. EUA/Chile, 60’, 1982. Chuva (Regen). Direção: Joris Ivens. Holanda, 12’, 1929. Diário de uma Busca. Direção: Flávia Castro. Brasil, 105’, 2010. From The Ashes... Nicaragua Today. Direção: Helena Solberg. Nicarágua, 60’, 1982. Home of the Brave. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil/Suíça, 58’, 1986. Marighella. Direção: Isa Grinspum Ferraz, 100’, 2011. Meio-dia. Direção: Helena Solberg. Brasil, 11’, 1970. Misère au Borinage. Direção: Joris Ivens, Henry Storck. Bélgica, 28’, 1934. Os Dias com Ele. Direção: Maria Clara Escobar, Brasil, 107’, 2013. Palavra (En)Cantada. Direção: Helena Solberg. Brasil, 84’, 2009. Portrait of a Terrorist. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil, 28’, 1985. Santiago. Direção: João Moreira Salles. Brasil, 80’, 2007. Simplesmente Jenny. Direção: Helena Solberg. Bolívia, 32’, 1977. The Brazilian Connection, a struggle for democracy. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil, 58’, 1982/1983. The Double Day. Direção: Helena Solberg. Arg./México/Bolívia/Venezuela, 54’, 1975. The Emerging Woman. Direção: Helena Solberg. EUA, 40’, 1974. The Forbidden Land. Direção: Helena Solberg. EUA/Brasil, 58’, 1990. Uma Longa Viagem. Direção: Lúcia Murat. Brasil, 95’, 2011. Vida de Menina. Direção: Helena Solberg. Brasil, 101’, 2004.

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Já visto jamais visto: devir memória ou a potência histórica na escrita de si* Roberta V eiga Professora adjunta do Departamento de Comunicação e do Programa de PósGraduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Resumo: No rastro do processo de escrita de si do cineasta Andrea Tonacci, em seu filme Já visto jamais visto (2013), busca-se o modo como a relação frágil e lacunar entre passado e presente apanha o duo, história e memória, em sua potência imaginária. Trata-se de, ao perscrutar os diversos encadeamentos realizados entre sons e imagens heterogêneas, levar o filme a uma forma de análise que ressalte como e porque o cinema autobiográfico pode desviar-se de uma concepção linear e racionalista da história, vinculado a um dever memória, para abrir-se ao devir memória. Acontecimento próprio ao processo de montagem que esse cinema de arquivos pessoais desencadeia, tal devir coloca o sujeito do filme (escavador, cineasta e personagem), e, com ele, o espectador, frente ao passado não como um construto mnemônico a se preservar, mas como lampejos do que se foi e do vir a ser: imagens prestes a se tornarem outras. Palavras-chave: Escrita de si; História; Devir memória Abstract: On the trail of the filmmaker Andrea Tonacci’s self-writing process, in his film Seen, ever seen (2013), we seek the way in which the fragile and gaping relationship between past and present captures the duo, history and memory, in its imaginary potency. By looking at the various chains made between heterogeneous sounds and images, it is intended to take the film into a form of analysis that highlights how and why autobiographical cinema can deviate from a linear and rationalist conception of history, linked to a duty of memory, to open up to become memory. Because it is an event proper to the montage process of personal archives’ cinema, the becoming puts the subject of the film (excavator, filmmaker and character) and the viewer in the face of the past, not as a mnemonic construct to be preserved, but as flashes of what has been and can be: images about to turn others. Keywords: Self-writing; History; Become memory

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Para o historiador Pierre Nora, a memória foi arrancada da história justamente porque não a vivemos mais como experiência própria ao nosso cotidiano em sua forma espontânea, viva, plural, em sua oscilação produtiva entre esquecimento e lembrança. Quando o passado não é mais constituinte do presente, a irrigá-lo com seu imaginário, a atravessá-lo nos hábitos, gestos, objetos e saberes, o esquecimento se torna um fardo pesado que empurra a memória para fora da história. A história, por sua vez interpelada por uma vocação cientificista, preocupada em resgatar a continuidade do tempo, busca conservar o passado em lugares apartados de memória, lugares de preservação de uma herança consolidada em seus mais evidentes símbolos, que se prestam apenas à certeza de que não é preciso se preocupar com o que se foi. Para Nora, esses lugares vivem do sentimento que não há memória espontânea daí “que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações... operações que não são mais naturais” (1993, p. 13). Enquanto um evento atual, um elo vivido no eterno presente, a memória é subtraída pela história em seu afã de reconstrução do passado. Sua dimensão afetiva e mágica é domesticada por uma função intelectual. Nesse contexto, como diria Hartog (2013, p. 14-15), a memória se impõe como um dever, que responde ao presentismo, à sua relação fraturada com o passado, com a tradição, com ancestralidade, com a velhice, transformando tudo em arquivo. Nesse contexto, Nora chama atenção para os sujeitos comuns que se tornam “historiadores de si mesmo” (1993, p. 17), produzindo e arquivando imagens, transformando suas próprias vidas em videobiografias individuais. Na contramão desse desejo de preservação de si de tais videobiografias, o filme Já visto jamais visto (2013), de Andrea Tonacci, ao instituir-se por meio de uma tecitura memorialista e autobiográfica, encarna imageticamente, através da experiência subjetiva e do trabalho do tempo, um gesto histórico em tudo oposto ao historicismo (esse de matriz racionalista). A história deixa de ser entendida como um resgate do passado numa cronologia de fatos evidentes e é experimentada como um sentimento vivido na experiência e no presente do filme: processo e espectatorialidade. Ao contrário de condenar o cinema a um desses lugares repositórios de memória, Já visto funciona como um complexo operador de temporalidade, no

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qual a memória enquanto desejo pela presença de uma ausência se faz devir. Ao se voltar para mais de 40 anos de trabalho, arquivos de imagens em vários formatos, o cineasta encontra a memória como esquecimento, visto que ela não está lá depositada nos rolos de filme, mas só existe, como diria Walter Benjamin, no “tecido da rememoração” (1994, p. 37) a ser urdido no ato de revisitar as imagens e montá-las cinematograficamente.

**** Se o projeto de Olho por Olho (1965), filme de estreia de Tonacci, nasce das conspirações juvenis e Blablablá (1968), da ânsia contida nos primeiros passos políticos de um jovem, Já visto jamais visto (2013) parece ter origem na angústia de um homem vivido frente a experiência da memória. “O tecido do tempo é fundamentalmente lacunar e a continuidade temporal não deve ser entendida como um dado, mas como uma construção do sujeito, diante sobretudo da angústia que significa para ele, o ato de reviver o desaparecido (e, por tanto, o descontínuo), de enfrentar a morte”, afirma Lucia Castello Branco (1990, p. 41), na esteira de Gaston Bachelard. Para Bachelard, o tempo não é uma dimensão exterior ao sujeito, mas o resultado da maneira como ele aí se inscreve. Ao se voltar para o passado, o continuum é um desejo do sujeito de organizar “a desordem e o caos que a vida o submete” (BRANCO, 1990, p. 42). Tonacci parte desse desejo que é também um desejo de cinema: o caos está lá nos filmes, nos pedaços de histórias e ficções, nas fotografias e arquivos de família, que mesmo catalogados, dispõem o tempo nessa dimensão descontínua, onde qualquer tentativa de linearidade enfrenta saltos e buracos, e se dispersa tal qual a memória.

1. Conferir MOURÃO, Patrícia.

Do arquivo ao filme: sobre Já visto jamais visto. In: Devires, v. 9, n. 2, 2012, pp. 92-105

O cineasta afirmava que durante a elaboração do projeto do filme, era difícil para ele casar suas lembranças (afetos e sensações) com as imagens que teria feito ao longo de sua vida.1 Dupla angústia, aquela própria à escrita de si que ao debruçar-se sobre o passado encontra o esquecimento e a do cineasta cujo esquecimento não pode ser sanado pela imagem

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preservada do passado. Dupla impossibilidade do gênero autobiográfico, e sua lógica ilusória: a primeira, a pretensão dos textos confessionais de uma permanência narrativa daquilo que já não é; e a segunda, própria ao cinema do eu, depositar no registro, no arquivo-imagem, a possibilidade de preservação da memória em sua continuidade. Mas é justamente nessa impossibilidade da memória que reside a grande potência das formas de escritas de si. É no caminho de busca pelo o que já foi que se edifica o que ainda não é, ou seja, ao voltar-se para o passado e encontrar lacunas e vazios, é só mesmo no presente que o sujeito pode construir um vir a ser, alguma coisa que se coloca entre o passado como existente e o esquecimento dele, entre o passado como fato de vida e sua insustentabilidade no tempo: a obra, ela mesma, como memória. Eis o trabalho do filme de Tonacci, transitar por entre reminiscências, que ao contrário de um dever biográfico e histórico cuja pretensão seria reescrever o passado cronologicamente, se funda na memória enquanto obra, processo, construção, atravessada que é pelo esquecimento, portanto um tecido poroso e esgarçado, que através da montagem aberta ganha materialidade expressiva. O eu autobiográfico tem aqui a espessura deformante do qual nos fala Paul De Man (2012): não é o sujeito fora do texto, ou cineasta que segura a câmera e a vira para si, e nem tampouco uma identidade fixa no construto, mas um traço de si, um fragmento, que nunca se dá por inteiro.

Inscrito nesse absurdo projeto de captura/invenção do vivido, o sujeito inventará a si próprio como sujeito de linguagem, como sujeito de memória. Também ele se reduzirá a um traço, a um signo virtual (ou um significante vazio, na acepção lacaniana), a ser apenas precária e momentaneamente preenchido na instância discursiva (BRANCO, 1990, p. 75).

Por não tentar preencher o passado de uma vida pessoal ou do cinema brasileiro, mas por acontecer nessa impossibilidade de volta no tempo que lhe é constituinte, Já visto jamais visto se distancia do dever de memória, e se lança a um devir memória, ou seja, a um tornar-se memória. Devir memória esse no qual o passado só é no presente como aquilo que, sempre prestes a desvanecer, acontece como lampejos – a reminiscência ela mesma

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2. “Sem dúvida, para que haja

um sentimento de passado, é necessário que ocorra uma brecha entre o presente e o passado, que apareça um “antes” e um “depois”. Mas trata-se menos de uma separação vivida no campo da diferença radical do que um intervalo vivido no modo de filiação restabelecida” (NORA, 1984, p. 19). Nessa perspectiva, caberia ao cinema essa operação de, ao montar, colocar em relação passado e presente. 3. O dever de memória nesse contexto de obsessão pelo arquivo, para Nora, pode ser definido nesta asserção: “O sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se à preocupação com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorável” (1984, p. 14). 4. “Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história. Cada gesto, até o mais cotidiano, seria vivido como uma repetição religiosa daquilo que sempre se fez, numa identificação carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro da verdadeira memória, mas dentro da história. (...) A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado” (NORA, 1984, p. 19).

– num entre lembranças e imaginação, fatos e sonhos, figuras e sombras, construções próprias ao imaginário. Em detrimento de uma aposta na volta ao passado, seja através de (re)encenações de acontecimentos, (re)visitações a lugares do passado, ou do uso excessivo de arquivos domésticos, como é comum em obras autobiográficas – que traçam uma continuidade temporal ao narrativizar um roteiro, enredo, familiar – Já visto jamais visto sugere uma relação com o passado marcada pela distância em relação às imagens, pela natureza ficcional de qualquer pertencimento, na indiscernibilidade entre o eu, o cineasta, o personagem e o cinema. Ao internalizar a descontinuidade entre passado e presente em sua forma, numa montagem que justapõe materiais, texturas e ambiências heterogêneas, esse cinema expõe a própria história, como parece desejar Nora (1984, p. 19),2 colada a uma operação de pôr em relação. É justamente porque a memória se constitui no processo de feitura do filme, e não como algo fora que precisa se resgatar ou se conservar como um patrimônio subjetivo, que ela não se coloca como um dever, mas como um desejo, o desejo da presença de uma ausência, cujo o conteúdo é um devir, o devir cinema. Ao contrário do que diria Nora (1984, p. 14), sobre um certo uso abusivo do arquivo-documento que obedece ao dever de memória,3 o cinema aqui recorre ao arquivo menos como um suporte material, lugar de fixação do passado, do que uma zona fronteiriça onde à história só resta sobreviver ruidosa, rugosa, porosa, uma vez que o próprio ato cinematográfico, a montagem principalmente, é que vai habitar a memória4 confundindo e embolando presente e passado. Aqui habitar o lugar da memória é habitar o lugar do cinema que se sabe incompleto, e, por aí, num só ato, transformar e ser transformado por esse espaço (no qual se habita). Pois, como sabemos, em partilha com Gilles Deleuze (1977), no devir, aquilo que alguém se torna muda tanto quanto ele próprio. É como se Tonacci, ao se colocar em obra, no gesto que funda uma escrita de si, estivesse sempre a um passo de se tornar um traço da memória para se tornar cinema ou vice-versa. Já visto... então só poderá ser um filme feito de filmes, pedaços de filmes feitos e outros por fazer, ficcionais, documentais e caseiros, que por manter mesmo como obra acabada sua dimensão inacabada e aberta, fará suspeitar do estatuto referencial da imagem, de ser

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imagens de pessoas ou coisas, e se configurará como aparições prontas a desaparecerem no próprio lampejar e apagar das imagens-memórias. No registro de um cinema devir memória, as imagens operam entre sujeitos e produzem sentido entre elas mesmas, como queria Jean Luc Godard (DELEUZE, 1996, p. 5758). Por mais que vejamos esse filme, jamais o veremos inteiro, há sempre algo que falta e algo que vem, e ele será ao mesmo tempo já visto e jamais visto, de forma que o tornar-se outro nunca se esgote. Daí a espera de um terceiro, o espectador que ainda virá, como constituinte do filme nessa dialética insolúvel. “O terceiro não ocupa o lugar do todo porque a imagem é um regime de deslocação, no sentido próprio da palavra. A imagem não tem lugar. Utopia e distopia, ela instaura a temporalidade histórica de uma circulação de lugares” (MONDZAIN, 2011, p. 109). O terceiro é outro que constitui o si da escrita, o si do sujeito. Difusos e sobrepostos, propomos adentrar a obra por três tomos: o filho, o cineasta, e o pai. O primeiro tomo O filho, tem como base o filme inacabado, Paixões, de 1994, que apesar de se apresentar como o dispositivo disparador da obra não é, como o cineasta mesmo admite, um epicentro. Análogo a uma teia mnemônica, Já visto jamais visto não tem núcleo, mas passagens, deslocamento, e essas partes deslizam e se ramificam umas sobre as outras.

O filho Na casa de campo de Tonacci, em Extrema (entre Minas e SP), entre serras e sons de sapos, um filme está sendo feito. Após a claquete, o menino, o filho, se prepara para dormir. O palhaço da velha caixinha de música dança desengonçado, e então somos lançados ao que parece ser o sonho do menino. Escondido no meio do mato, o menino vê um objeto rolar junto com a terra que o trator arrasta. Ao pegá-lo, ele foge como quem achou algo precioso, talvez um tesouro, desses que os meninos das histórias de aventuras, exploradores e piratas desejam encontrar: uma botija, que pode conter moedas, pedras preciosas, ou coisas mágicas. Mas um homem com uma lupa está em seu encalço. Pela lupa, ele vê o menino que

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anda pelo mato carregando o valioso objeto até encontrar sua casa no alto de uma árvore. Com destreza ele tira tudo que há dentro da botija, e se depara com uma enorme chave sorrindo como se reconhecesse o objeto esperado.

Uma chave pesada de ferro, que parece ter vindo de um outro tempo, de um passado remoto, e tudo que ela pode abrir no universo infantil: armários ou baús velhos, a porta de um casarão, ou até mesmo, de castelos, tesouros, de outros mundos da literatura infanto-juvenil. Refugiado em sua cabana o menino esconde a chave num baú de madeira. O homem se aproxima, olha pra cima e lá está o menino a lhe encarar com um rifle na mão. Os olhares se encontram – um corte, o som de um trovão e não saberemos mais nada desse encontro, inacabado ele jamais será visto. A próxima imagem surge do escuro, um homem de cabelos longos que parece vindo do passado ou de um filme de mistério olha pela janela. Uma cobra num vidro, formigas sobem numa folha verde, um inseto passeia num fino véu branco, tudo parece maior, parece visto pela lupa e tudo se confunde em sobreimpressões (que repetidas em vários momentos, como estratégia de montagem

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recorrente, aproximam ainda a mais o mecanismo do filme àquele da memória e dos sonhos (do imaginário)). Tudo se passa como se o cinema fosse capaz de performar a própria memória. O som de trovão, do inseto, do sino da casa que toca várias vezes, e da chuva que cai com força se tensionam criando uma ambiência de suspense, um misto de passado e natureza, elementos incontroláveis e misteriosos. O som que se segue como o rufo de um gongo, instrumento chinês do século XVI, e as pinturas que cobrem também parecem vir de um passado distante e impõem uma tensão. Estamos dentro da casa, quando a sombra intrigante de um homem de gorro e uniforme militar surge em quadro.

O homem, Tonacci, é na verdade o pai que vem velar o sono do menino explorador, seu filho, Daniel. A câmera fecha no rosto da criança, e é dali que sai mais uma vez como se o universo que estamos prestes a adentrar novamente emanasse do sono do menino, como uma imagem onírica. Através da janela, ela agora nos levará não mais para as serras que circundam aquela casa de campo onde a aventura do pequeno explorador tem lugar, mas a um portal escuro que se abre para um pátio iluminado cercado por enormes construções antigas, de janelas e portas arredondadas. É Mantova, uma comuna italiana fundada em 2000 AC.

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O mesmo caçador de objetos perdidos, vai então explorar o mundo antigo. Ele perambula entre pedras, lagos e pontes, gigantes etruscos, torres e escadarias, até chegar à imensa porta de uma igreja, um plano de detalhe mostra uma fechadura gigantesca, o menino coloca o dedo, como se lembrasse da chave que guardara em sua casa da árvore. A fechadura parece exata pra ela, mas como acontece no sonho, na memória, e na imagem, o objeto preciso já não está mais ali, é uma ausência, ou já se transformou pelo mecanismo de deslocamento próprio do sonho e análogo à operação transformadora da memória. Como diria Benjamin sobre Marcel Proust, “a semelhança entre dois seres, a que estamos habituados no estado da vigília é apenas um reflexo impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos não são nunca idênticos, mas impenetravelmente semelhantes entre si” (BENJAMIN, 1994, p. 39).

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Do vidro de uma cabine telefônica, vemos a cidade. Enquanto o menino folheia uma revista o pai diz, em italiano, “meu nome é Andrea Tonacci”. O nome próprio, essa presentificação de uma ausência, a nomeação do sujeito que falta, vem anunciar uma mudança no estatuto da imagem. Aquelas que se assemelhavam ora ao sonho de menino, ora a uma lembrança de infância – do pequeno infante para quem todo o mundo é grande –, ora a um filme de ficção, protagonizado pelo menino caçador de relíquias, filho do militar, dão lugar a um filme de família, um diário da viagem que Tonacci fez com Daniel ao seu país natal. Mas o filme de família nessa vizinhança, criada na montagem, desterritorializa o gênero – esse no qual arquivos de momentos em família se acumulam – e remete à singularidade de uma vida, sua ancoragem num lugar e situação, onde o texto da memória marca sua existência, como diria Jacques Derrida (1973), na borda de toda ficção. Já nesse primeiro tomo, no encontro entre um filme inacabado, Paixões, e um arquivo de família, Tonacci em seu devir memória assinala a correspondência entre o cinema, o sonho de uma criança, e todo um passado, pois deles só temos vestígios. Ele parece nos mostrar que na matéria que constitui esses territórios imaginários, entre as imagens como registros de um momento vivido, se instalam outras imagens, traços que funcionam como rastros de um passado perdido, que as relíquias (mágicas e misteriosas, reais e fragmentadas, vividas e fantasiosas) tornam parcialmente manifesto. O traço é então aquilo que aponta para a coisa, significa-a, sem fazê-la aparecer. Que será entendido por ele como um signo peculiar, “um efeito-signo, que funcionará como vestígio, como marca de uma passagem, de um transporte no tempo, de um entre-lugar” (BRANCO, 1990, p. 74). No filme de Tonacci, o menino pode estar na Itália e ao mesmo tempo sobrevoando Nova York, pode andar nas pedras ou nas nuvens, pode estar no presente da viagem com o pai e no passado remoto de uma civilização etrusca. Pouco depois que a criança acorda, assistimos a uma filmagem de bastidores de Paixões, feita durante um almoço na casa de campo em que Tonacci, o pai, se revela o diretor do filme e conversa com o homem da lupa, o ator Joel, enquanto o filho brinca por perto. Nesse momento, vão aparecer os objetos que compõem ou comporiam a história ficcional do filme inacabado, a cobra no pote de vidro, a chave, a botija, uma bíblia de 1884, e uma pequena escultura de

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Jesus crucificado, tudo que Tonacci exibe com admiração, como relíquias verdadeiras de uma ficção, ele também um caçador delas, ele que costumava examinar as pinturas, as fotos, as imagens com uma lupa.

O cineasta Enquanto diz “é esse o Cristo”, Tonacci sustenta a imagem no ar, que se dissolve na primeira das várias cenas de seus outros filmes, já vistas e jamais vistas, que agora estão como ele mesmo diz, “de volta ao mundo” (TONACCI, 2012, p. 140). É o cinema brasileiro que vai surgir na tela, porém, longe de qualquer história que o catalogue, de qualquer cronologia, de um dever de memória que busque preserválo como patrimônio, mas num regime de historicidade próprio à vertigem do processo de feitura do filme, do gesto de montagem e das escolhas de Tonacci aberto ao passado como afeto. Achadas numa arqueologia similar à do escavador de memórias, cada cena ali é também uma relíquia tal qual os objetos que o diretor exibe como elos fundamentais que constituirão sua ficção, peças cheias de mistério, mas também precisas ao designarem por si mesmas um emaranhado de fios históricos, dentro da história do filme. Assim são as cenas dos filmes, elas apontam para elas mesmas como um conjunto de elementos formais e diegéticos que compõe uma imagem e uma narrativa tanto histórica quanto fictícia, mas apontam também para fora delas, um fora-de-campo, uma constelação de outras cenas e filmes que compõe ou poderia compor o cinema de Tonacci, a história do cinema imiscuída à história do Brasil.

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Se antes – na casa de campo, refúgio de Tonacci contra a cidade, sono e sonho de infância, mistério e aconchego do campo – parecíamos estar no devir cinema da memória, aqui parece que nos instalamos no devir memória do cinema. O gesto autobiográfico de Tonacci, seu arquivo pessoal, se mistura com o próprio cinema brasileiro. As escavações não são mais das relíquias de um passado remoto, a chave para a infância na Itália de onde Tonacci saiu aos 11 anos, mas de um passado bem mais próximo, quando no final dos anos 1960, já no Brasil, a rua era o lugar de encontro do jovem cineasta e seus amigos, onde ao lado de Rogério Sganzerla, ele conspirava em forma de filmes, e realizavam Olho por Olho (1965). E será mesmo na rua que reconheceremos a maioria das cenas que se sucedem, de outros filmes dos anos 1970, quando um cinema marginal, porque feito sem recursos financeiros, porque feito em dissonância com uma série de padrões cinematográficos vigentes, era o cinema da invenção. Blablablá (1968) e a denúncia da ditadura, Bang Bang (1970) e a expressão da revolta, o exorcismo pela desordem, que só pode se dar na tensão entre a implosão dramática e o rigor formal. Filmes já vistos, que agora se tocam num jorro de escritura próprio à busca impossível pelo passado, portanto, também, jamais vistos. Na primeira sequência, vemos do alto uma fumaça densa que sobe do centro de uma cidade, da implosão de um velho edifício, ambulâncias e caminhões de bombeiros, o movimento acelerado e o barulho da sirene se estende para as outras imagens de texturas e tempos muito diferentes. Na relação com a trilha sonora de marchas, tiros e balbúrdias, elas evocam uma tensão constante, um sentimento de conflagração (conflito, revolta, guerra, morte) não só pela violência das cenas de alguns filmes, como Olho por Olho, Bang Bang e Blablablá, mas também pelos fragmentos de jornais e revistas, pelas imagens do exército armado, da aglomeração de pessoas. Conflagração essa sempre associada a uma coletividade, um país, uma guerra, uma ditadura, tempos difíceis. Lemos na manchete de um jornal “O país chora a morte de JK”, e ouvimos num off abafado pelo som da parada militar que “não há mais condições de manter a ordem nesse país”: é Blablablá que atravessa o tempo e nos reencontra re-significado na memória de um cineasta que se autorretrata pelo outro, pela imagem já descolada de si, essa que virou

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5. Refiro-me ao conceito de “différance” de Derrida, que nada mais é que o rastro puro, produtor de diferenças, obliterador de origem, efeito sem causa, não-origem por excelência: “O rastro não é somente a desaparição de origem, ele quer dizer aqui – no discurso que proferimos e segundo o percurso que seguimos – que a origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi reconstituída a não ser por uma não-origem, o rastro, que se torna, assim, a origem da origem. Desde então, para arrancar o conceito de rastro do esquema clássico que o faria derivar de um não-rastro originário e que dele faria uma marca empírica, é mais do que necessário falar de rastro originário ou de aquirastro. E, no entanto, sabemos que este conceito destrói seu nome e que, se tudo começa pelo rastro acima de tudo não há rastro originário” (DERRIDA, 1973, p. 75).

lembrança, que virou sentimento, que virou esquecimento e que volta sempre como outra. Ali onde a memória do vivido e do filmado se encontraram, a imagem-lembrança em seu devir cinema, já é exterioridade, já o olhará como outro. Por isso, quanto Tonacci surge com a câmera no reflexo do vidro, não é um eu cineasta originário, nem um personagem ficcional que se afigura, é mais uma imagem que se presentifica entre outras, um retrato entre outros, que ainda assim desponta como diferença, porque traço, vestígio.5 Como afirma Jean Luc Nancy “o sujeito do retrato é o sujeito que o retrato mesmo é”, pois ele só existe tendo a superfície da tela como interface de um ser aí (NANCY, 2006, p. 31). O retrato, como imagem, é ele mesmo sujeito que nos olha.

Numa cadência de ritmos, que vai do grave ao melódico, outras imagens vêm arrefecer essa espreita por uma morte sempre coletiva. São agora filmes caseiros, intimistas, onde Tonacci se expõe, se filma filmando, mas sem nunca assumir sua presença em demasia, ele passa, parece prestes a desvanecer – como na cena em que o vemos pelo reflexo do vidro sobreposto ao rapaz (talvez seu irmão) que toca um samba no cavaquinho.

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Aqui o arrefecer da guerra está na volta ao refúgio não mais da natureza e da família, como na casa de campo, mas de outra casa, um apartamento talvez, com namorada e amigos, que também faziam cinema e tocavam samba.

O samba se contrapõe à marcha, aos tambores, aos tiros, às vozes desesperadas, às convulsões, e também à melancolia do jazz que acompanha os percursos de carro nas cenas noturnas, ele traz uma alegria, uma brasilidade esperançosa, frente à ditadura e à violência, uma liberdade frente à prisão. No filme, a trilha sonora conduz a montagem como um escalonamento de afetos que chama uma história do fora-de-campo para o campo: da infância – no ragtime de 1902, The Entertainer (de Scott Joplin), vinda da caixinha de música – aos mistérios da natureza – sapos, chuva, trovões; das tensões na cidade, da guerra, ao Brasil do chorinho; do Brasil à casa, o samba, e daí à comunidade do cinema.

O pai No terceiro tomo, que intitulamos de O pai, novamente o tom grave – sons que se assemelham a tiros de metralhadora, e helicópteros – evocam uma outra guerra. A lupa aparece agora deslizando numa foto amarelada antiga como que procurando alguém entre um grupo de soldados combatentes. Em outra foto, um homem sorrindo usa um uniforme semelhante ao pai militar do menino explorador de Paixões.

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Esguio e alto, ele se assemelha a Andrea Tonacci, a foto se funde com a de uma mulher sorrindo cujos traços também lembram os do cineasta, após uma sucessão de retratos de um e de outro ao som da serenata italiana Io non posso cantare alla luna, de 1943, a foto de casamento. Não há dúvida de que são os pais de Tonacci, que de fato se casaram em 1943, em Roma, durante a Segunda Grande Guerra. É o filho que olha novamente pela lupa, a escavar a imagem, como que para encontrar seus sulcos, detalhes e vestígios: o homem, o pai, um recém repatriado fugido de um trem de prisioneiros italianos da Albânia, “ela escaladora de montanhas e enfermeira voluntária nos hospitais romanos, o regime fascista em seus estertores” (TONACCI, 2012, p. 112). Ali, como ele mesmo recorda, Tonacci ainda é uma “total ausência” (2012, p. 112), só aparecerá depois, um menino loiro junto ao pai.

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Entre essa sequência de fotos do arquivo de família surge um filme caseiro muito antigo, uma menina sorri e entra num carro que sai, da janela ela acena para aquele que fica com a câmera (talvez Tonacci). Lembramos imediatamente das várias sequências de carros, como um traço inconteste dos filmes do cineasta – principalmente desse movimento do carro que se vai com a câmera e abandona um corpo que se torna pequenino ao fundo do quadro. Nesse filme, é o carro que se vai, se afasta até sumir, e a câmera é que fica para trás. Não importa se ali estava o desejo do cineasta em seguir com o carro, ou se ali está a origem de um cinema por vir, mas a evocação de uma presença ausente, não só aquela própria da imagem, mas outra que se dobra sobre si mesma: a presença de todos os filmes já vistos de Tonacci que ao mesmo tempo em que estão ali, encapsulados nessa imagem-memória, dela se ausentam. Se uma ausência reside na impossibilidade do filme conter todos os filmes, ao modo de um Aleph borgiano cinematográfico, a presença resiste na possibilidade do cinema de juntar temporalidades, de plissar o tempo. O velho filme de família faz entrever o passado na materialidade da película, nos movimentos que se processam no presente da assistência ao filme, porém, novamente, ao produzir esse presente, ele não cessa de evocar um ausente, não só passado que se foi, mas o gesto futuro de um cinema que ainda viria a acontecer, que por isso resta ali em potência.

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Enquanto ainda vemos a lupa aumentar uma foto bem antiga da mãe no sofá com o cineasta menino, ouvimos a voz de Tonacci, algumas sobreimpressões e o vemos novamente trajando o mesmo uniforme do pai, junto ao filho que lê uma história: “precisamos ver se há mesmo uma causa para o medo”. Em seguida, pergunta a Joel, se para interpretar o personagem do pai militar, ele ficaria melhor com ou sem o gorro. Até que pede ao filho, Daniel, que conte uma história para a câmera, e, então, vemos a bela imagem do menino caçador de tesouros de costas no alto de uma montanha de braços erguidos para o pôr do sol.

É Tonacci quem nos dirá que essa tomada se deu movida pelo afetuoso desejo paterno em relação à vida do filho, por isso ela traz um gesto de vitória por um dia bem vivido. O cineasta conta que aquela tomada se confunde com uma reminiscência de infância, uma imagem-lembrança dele mesmo se sentindo vitorioso no alto da montanha e, diz ainda, que nas escavações dos arquivos para o filme encontrou a foto em preto e branco, em que, como Dan, ele ergue os braços para os céus, porém de frente para câmera e de costas para os altos contrafortes dos montes Dolomiti: “uma sintonia imaginável, um encontro de memórias na imagem presente, imagens dando realidade aos sentimentos e intuições de filmar” (TONACCI, 2012, p. 113). Eis o sinal de que o gesto do devir memória está sempre num entre: ali, na passagem do filho ao pai, do ator ao personagem, da lembrança à foto, da foto ao filme, da aparição à desaparição do sujeito.

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No cinema do devir memória, as imagens sobrevivem sem se estagnarem numa mediação simbólica pré-definida, mas como lampejos de um tempo prestes a desaparecer novamente. Se nesse cinema de arranjo poroso e onírico, espaço, tempo, personagens se intercambiam, se fundem (filho, pai e filho; cineasta-criança e soldado-personagem), não há lugares fixos de memória, é porque, impermanente como a vida, o passado se desloca, se transforma em objetos, imagens, sensações e sobrevive no traço. Operando sempre nessas passagens, Já visto jamais visto figura a cada cena, a cada retomada, a diferença no entre passado e presente, entre o que se foi e o que se é, entre a lembrança e sua atualização, entre natureza e civilização. Esse último estado fronteiriço está também presente num gesto de outro filme de Tonacci, Serras da Desordem (2006), por exemplo, na sequência em que a locomotiva de ferro, remetendo ao progresso, vem anunciar a ruptura com o mundo indígena. Progresso esse em prol do futuro contínuo e desenvolvimentista, da seta evolutiva da história que deve mover-se sempre na mesma direção, avante, que solapa tudo o que pode ser o povo da floresta, com seus saberes, sua ancestralidade, suas raízes, sua magia, enfim seu passado e sua memória, que só poderá sobreviver, para retomar Nora citado no início desse texto, como museu, e não mais encarnado às crenças e habitus do cotidiano. À guisa de conclusão, como diz Benjamin, “o importante para o autor que rememora não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” (1994, p. 37). É nesse trabalho de Penélope jamais acabado que o gesto do cineasta, historiador, recria o passado de uma vida não como ela foi, mas como será no filme, para e pelo filme, e para aquele que virá, o terceiro, o espectador, um povo por vir. Esse cineasta é Tonacci, o explorador de relíquias; o arqueólogo do cinema; o escavador de imagens com sua lupa. Eis que o inventor de Bang Bang volta a inventar no ato de escavar, e compor uma tecitura onde, como diria Benjamin, a recordação é a trama, mas o esquecimento é a urdidura. Mais que isso, o acontecimento vivido é finito, ao passo que o lembrado é sem limites. Como em Proust, trata-se da potência de lembrar uma experiência nunca vivida, o inteiramente novo. Já visto é o passado que, no trabalho de memória pelo cinema, se descobre jamais visto.

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REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: Walter Benjamin – obras escolhidas: magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BRANCO, Lucia Castello. A traição de Penélope: uma leitura da escrita feminina na memória. Tese de doutorado. UFMG-FALE, maio de 1990. DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figuração. Sopro. Florianópolis, n. 71, mai. 2012. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1996. __________.; GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. DERRIDA, Jacques. Linguística e Gramatologia. In: Gramatologia. Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 75. HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1981. MONDZAIN, Marie José. Nada Tudo Qualquer coisa. Ou a arte das imagens como poder de transformação. In: SILVA, Rodrigo; NAZARÉ, Leonor (org.). A república por vir. Arte, Política e Pensamento para o século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. MOURÃO, Patrícia. Do arquivo ao filme: sobre Já visto jamais visto. Dossiê Tonacci. Revista Devires: Cinema e Humanidades, FAFICH-UFMG, v.9, n.2, jul/dez 2012, pp. 92-105. TONACCI, Andrea. Fotogramas comentados. Dossiê Tonacci. Revista Devires: Cinema e Humanidades, FAFICH-UFMG, v.9, n.2, jul/dez 2012, pp. 106-113. __________. Entrevista. In: BRASIL, A; GUIMARÃES, C.; MESQUITA C. DevirTonacci. Dossiê Tonacci. Revista Devires: Cinema e Humanidades, FAFICHUFMG, v.9, n.2, jul/dez 2012, p. 114-142.

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Documental y Experiencia Introspectiva: relaciones, correspondencias y tensiones para explorar el espacio de las prácticas cinematográficas autorrepresentacionales* Paola Lagos Labbé Máster en Documental Creativo y Doctora en Comunicación Audiovisual (Universitat Autónoma de Barcelona). Realizadora y académica del Instituto de la Comunicación e Imagen de la Universidad de Chile, desarrolla investigación y docencia vinculada al cine y al documental contemporáneo.

RODAPÉ: DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 226-251, JUL/DEZ 2017


Resumen: El artículo plantea las principales discusiones conceptuales alrededor de las prácticas documentales autobiográficas y autorrepresentacionales, así como sus potenciales desafíos en un contexto contemporáneo atravesado por las vertiginosas transformaciones tecnológicas asociadas a las plataformas digitales. El texto ofrece un panorama de las formas subjetivas más recurrentes, tales como el cine doméstico y amateur, el ensayo cinematográfico, el diario de vida, el diario de viaje y el autorretrato. Explorando en sus propuestas narrativas, formales y estéticas, el artículo transita por los principales hitos y exponentes que han cultivado estas prácticas cinematográficas experienciales e introspectivas, que se enmarcan en el espacio de lo privado, lo íntimo, lo afectivo, lo emocional e incluso lo confesional. Palabras Clave: Cine Documental; Autobiografía; Subjetividad; Diarios Filmados. Abstract: The article reviews the main conceptual discussions on autobiographical and self-representational documentary practices, as well as their potential challenges in a contemporary context marked by the vertiginous technological transformations associated with digital platforms. The text offers a panorama of the most recurrent subjective forms, such as domestic and amateur cinema, the film-essay, personal diary, travel diary and self-portrait. Exploring narrative, formal and aesthetic aspects, the article goes through the main milestones and exponents that these experiential and introspective film practices have cultivated, framed in the space of the private, the intimate, the affective, the emotional and even the confessional. Keywords: Documentary Cinema; Autobiography; Subjectivity; Film Diaries.

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Documental y Experiencia Introspectiva / Paola Lagos Labbé


I. Autobiografías, Autorretratos, Autobiografilmes: hitos y exponentes

El vuelco hacia una subjetivación de la mirada mediante géneros autorreferenciales testimoniales posee larga data dentro de las manifestaciones literarias que, ya desde el siglo XVI, han puesto de relieve las potencialidades de la escritura para explorar en las esferas privadas de sus autores. La teoría coincide en señalar que – tras la excepcionalmente temprana Confesiones, obra capital de San Agustín (400 D.C) – son los Ensayos de Michel de Montaigne (1580-1595) los primeros escritos autobiográficos modernos publicados en Occidente. Siguiendo el precepto de la Grecia Antigua adoptado por Sócrates, “conócete a ti mismo”, la autobiografía se fue consolidando hacia los siglos XVII y XVIII con ejemplos tan emblemáticos como las Memorias de François de La Rochefoucauld (1662); las Confesiones de Jean-Jacques Rousseau (1782), donde el autor arroja una verdadera declaración de principios para el género: “Quiero mostrar a mis semejantes un hombre en toda la verdad de la naturaleza; y ese hombre seré yo. Sólo yo”. Ya en el siglo XIX, destacan las publicaciones póstumas de las correspondencias, diarios íntimos y pensamientos de Joseph Joubert (1838), J. W. Goethe (Poesía y verdad, 1811-1833) y la autobiografía de François-René de Chateaubriand, Memorias de ultratumba (1848). Durante el siglo XX, en tanto, el arte cinematográfico que aquí nos conmina, ha perpetuado y complejizado la vocación introspectiva iniciada por la literatura de narrar la realidad más privada y cercana.1 El gesto de volcar la cámara “hacia dentro”, hacia lo más próximo y personal e incluso hacia el propio “yo”, parece ser una operación connatural al propio medio desde su nacimiento. Recordemos una de las primeras filmaciones de los hermanos Lumière en los inicios del cine: La comida del bebé (Louis y Auguste Lumière, 1895), primera home movie de la historia, registra una sencilla toma en plano secuencia de encuadre fijo, donde vemos al propio Auguste Lumiere y a su mujer, dando de comer a su pequeña hija, marcando el preludio de la larga historia que entrecruzará los caminos del cine autobiográfico con el cine doméstico familiar y el modo amateur. Estos eventos en apariencia intrascendentes, son en realidad sumamente significativos porque están cargados de

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* Este texto es una versión revisada y ampliada de un artículo publicado originalmente bajo el título: “Ecografías del Yo: Documental Autobiográfico y Estrategias de (Auto) Representación de la Subjetividad”, en el Monográfico dedicado a Estudios de Cine, para la Revista Comunicación y Medios Nº24 (2011), pp. 60-80. Instituto de la Comunicación y Imagen, Universidad de Chile. ISSN: 0719-1529.

1. El cine continúa la vasta

tradición del autorretrato en las artes visuales, tanto como manifestación escultórica (desde Busto del autor, Peter Parler, 1380), como pictórica (desde Retrato de un Hombre, Jan Van Eyck, 1433) y fotográfica (con pioneros como el norteamericano Robert Cornelius, a quien se le atribuye el primer autorretrato fotográfico en 1839, o el francés Hypolithe Bayard, con El ahogado, 1840, puesta en escena en la que el autor ficcionaliza su propia muerte).


valor emocional y de la espontaneidad de la vida cotidiana. Las home movies constituyen un gozne que permite múltiples vaivenes intersticiales entre los diversos registros del documental del “yo”, además de conformar un “huellas” en tanto dominios en los que el tiempo histórico es evocado como experiencia y como inscripción del pasado en el presente.

2. Si bien Ray nació en los Estados Unidos, desarrolló la mayor parte de su obra en Francia, llegando a ser uno de los principales exponentes del avant garde.

3. En el espacio de este artículo sólo abordaremos las discusiones alrededor de las diversas posibilidades de representación del “yo” en el documental, dejando de lado el vasto campo de la autobiografía en el escenario del cine de ficción (concebida como la expresión directa o indirecta de la identidad y personalidad del autor a condición de que éste haya tenido la intención – implícita o explícita – de narrar su vida, pensamientos o sentimientos), e incluso las denominadas “autoficciones”, películas genéricamente muy híbridas como Caro Diario (1993) o Aprile, (1998) de Nanni Moretti, en las que el director se interpreta a sí mismo en un contexto de fantasía inspirado en la realidad; o los álbumes, autorretratos y documentales epistolares de Boris Lehman, en cuyos créditos el autor se autodefine como realizador y personaje.

Un segundo hito histórico para la experimentación de la subjetividad cinematográfica lo constituyen las vanguardias europeas de las primeras décadas del siglo XX, terreno extremadamente fértil que arrojó clásicos tales como la película manifiesto del Cine Ojo, El hombre y la cámara de Dziga Vertov (1929); o los autorretratos filmados de Man Ray,2 Autoportrait (1930), Courses landaises (1935) y La Garoupe (1937). En esos mismos años, el teórico húngaro Bela Balasz (1931) ya había predicho el potencial de “un género que los cineastas amateur deberían crear, y que podría presentar una importancia documental tan grande como los diarios íntimos y las autobiografías escritas” (cfr. BERGALA, 1998), anticipándose a lo que décadas más tarde sería el apogeo de las “autocinemabiografías” o “autobiografilmes”.3 En sus diversas prácticas, el documental autobiográfico ha privilegiado el uso de dispositivos domésticos y amateur tales como el Super 8 y el 16 mm. (en celuloide) y luego el vídeo electromagnético y digital. Para ratificarlo, basta revisar la filmografía de los principales exponentes de las expresiones del cine del “yo”, muchos de quienes surgieron en el contexto de las vanguardias cinematográficas norteamericanas de mitad del siglo XX (con el New American Cinema o el Underground), o perpetuaron su legado. A modo de reconocimiento, creemos oportuno nombrarlos en este mapeo inicial, aún a riesgo de caer en un listado arbitrario e incompleto:

Margaret Tait (Escocia. A Portrait of Ga, 1955; Happy Bees, 1955); Stan Brakhage (EE.UU. Wedlock House: an Intercourse, 1959; Window Water Baby Moving, 1959; Thigh Line Lyre Triangular, 1961; Songs, 19641969; Scenes from Under Childhood, 1967-1969, The Weir-Falcon Saga, 1970; The Machine of Eden, 1970; The Animals of Eden and After, 1970; Sincerity/Duplicity, 1973–1980; Tortured Dust, 1984); Marie Menken (EE.UU. Bagatelle for Willard Mass, 1961; The Gravediggers of Guadix,

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1961); Jim McBride (EE.UU. David Holzman’s Diary, 1967); Carolee Schneemann (EE.UU. Fuses, 1967; Interior Scroll, 1975; Kitch’s Last Meal, 1973-1976); Jonas Mekas (Lituania-EE.UU. Walden. Diaries, Notes and Sketches, 1969; Reminiscences of a Journey to Lithuania, 1971-1972; Lost, Lost, Lost, 1976; Paradise Not Yet Lost, 1979; He Stands in a Desert Counting the Seconds of His Life, 1969-1985; This Side of Paradise, 1999; As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, 2001; 365 Day Project, 2007; Out-Takes From The Life of a Happy Man, 2012); Ed Pincus (EE.UU. Diaries, 1971-1976); Jerome Hill (EE.UU. Family Portrait, 1972); Jan Oxenberg (EE.UU. Home Movie, 1972; Comedy in Six Unnatural Acts, 1975; Thank You and Good Night, 1991); Johan Van der Keuken (Holanda. Diary, 1972; Filmmaker Vacation, 1974); David Perlov (Brasil-Israel. Diary, 1973-1983, Updated Diary, 1990-1999; My Stills, 1952-2002); Chantal Akerman (Bélgica. News From Home, 1977; D’Est, 1993; Portrait d’une Jeune Fille de la Fin des Années 60 à Bruxelles, 1994; Chantal Akerman par Chantal Akerman, 1996; Sur, 1999; Del Otro Lado, 2002; Allá, 2006; No Home Movie, 2015); Anne Rees-Mogg (Inglaterra. Sentimental Journey, 1977; Grandfather’s Footsteps, 1983);

4. Una proximate collaborative

autobiography, como Paul John Eakin (1999) define aquellas obras que – tratándose sobre alguien íntimo, por lo general algún familiar cercano – se construyen en un coro de dos primeras personas, toda vez que, para indagar en su propia identidad, el cineasta se sirve de la vida de un “otro”.

Michelle Citron (EE.UU. Daughter Rite, 1978; Mother Rite, 1983); Rick Hancox (Canadá. Home for Christmas, 1978); Sue Friedrich (EE.UU. The Ties That Bind, 1984; Sink or Swim, 1990; The Odds of Recovery, 2002; Gut Renovation, 2012); Ross McElwee (EE.UU. Backyard, 1984; Sherman’s March, 1986; Time Indefinite, 1993; Six O’clock News, 1996; Bright Leaves, 2003; In Paraguay, 2008; Photographic Memory, 2011); Sadie Benning (EE.UU. If Every Girl Had a Diary, 1990; It Wasn’t Love, 1992; Girl Power, 1992); Alan Berliner (EE.UU. Intimate Stranger, 1991; Nobody’s Business,4 1996; The Sweetest Sound, 2001; Wide Awake, 2006; First Cousin Once Removed, 2013); Naomi Kawase (Japón. Ni tsutsumarete, 1992; Katatsumori, 1994; Mangekyo, 1999; Tsuioku no dansu, 2002; Tarachime, 2006); Barbara Hammer (EE.UU. Tender Fictions, 1996); Ute Aurand (Alemania. At Home, 1998; To Be Here, 2013); Agnès Varda (Francia. Los espigadores y la espigadora, 2000; Les plages d’Agnès, 2008).

Experimentando con las formas y a menudo situándose desde veredas marginales respecto al mainstream de las industrias cinematográficas más robustas, estos cineastas pavimentaron la irrupción sostenida y sistemática de un “cine en primera persona”,5 como tendencia que se consolidó en el mundo entero sobre todo desde finales de la década de los 90.6

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5. Expresión que ya en 1947 empleó Jean Pierre Chartier, en un artículo fundacional para el cine autobiográfico: Les Films à la première personne et l’illusion de réalité au cinéma, publicado en La revue du cinéma I, n. 4 (enero de 1947). 6. La emergencia de este

verdadero boom de filmes autobiográficos, trajo aparejadas las primeras preocupaciones teóricas y críticas que se cristalizaron en los encuentros “Cine y Autobiografía” de Valence (Francia, 1984) y Bruselas (Bélgica, 1986). En 1985, en tanto, la Revista Revue Belga du cinema lanzó el número “Un cine de la autobiografía”. En la década siguiente (1999), la propia Asociación para la Autobiografía (APA) dedicó sus jornadas anuales al cine, y consagró el número 22 de su revista La faute à Rousseau (octubre de 1999) al dossier “Autobiografía y Cine”.


7. Los encuentros de Valence

de 1984 identificaron – sin aspiraciones rígidas o definitivas e incluso admitiendo mestizajes de tonos – cuatro registros de enunciación para las filmaciones íntimas: melancolía, tristeza, nostalgia; el deseo del otro; el pasado, la regresión; la soledad. (cfr. LEJEUNE, 2008).

8. “El imperativo de contar

y de ser escuchado puede transformarse en una tarea que consume la vida entera. Sin embargo, parece que no importa cuánto se narre, nunca se logra acallar esta compulsión interna. Nunca hay suficientes palabras, ni las palabras correctas, nunca hay suficiente tiempo ni existe el momento correcto, y nunca hay suficientes oídos ni los oídos correctos para articular la historia, la que no puede ser capturada plenamente en el pensamiento ni la memoria ni el discurso” (LAUB, 1992, p. 78).

Esta eclosión germinó precisamente en el escenario de una postmodernidad que evidenció la crisis de los grandes relatos del proyecto moderno y que – desde las ciencias sociales, las humanidades y las artes – promovió expresiones subjetivas de reivindicación de memorias alternativas. Michel Fischer (1986) describe la autobiografía contemporánea como una exploración de las identidades fragmentadas y dispersas de la sociedad pluralista de fines del siglo XX. Por lo mismo, los registros de enunciación clásicos de la mayoría de las filmaciones íntimas, acuden a tonos solemnes y hasta “terapéuticos” cuando se ha de explorar en memorias personales y familiares signadas por eventos traumáticos, desintegraciones familiares, memorias trizadas, exilios y desarraigos, de cara a cumplir con la que según Lejeune es la “función reparadora” de toda empresa autobiográfica.7 En este sentido, un hito paradigmático lo constituye el auge de los documentales autobiográficos de las postdictaduras latinoamericanas y sus estrategias para la evocación de memorias e identidades fracturadas, que indagan en experiencias a menudo traumáticas o no resueltas. Así, el retorno a la democracia en países del Cono Sur tales como Brasil, Argentina y Chile, sumado a la posterior llegada del nuevo mileno, marcaron un punto de inflexión en el tránsito desde una “cámara-puño” a un “sujeto-cámara” que, como característica general, arrojó – y continúa arrojando – obras en primera persona a través de las cuales hemos sido testigos del pasado reciente desde una mirada subjetiva y autorrepresentacional. Si bien estas creaciones abordan temáticas políticas e históricas, lo hacen desde un posicionamiento que subraya que no son necesariamente las condicionantes estructurales las que explican al individuo, sino las particularidades de esos sujetos las que explican las estructuras. Proyectos cinematográficos emblemáticos como los del cineasta chileno Patricio Guzmán (Primer Año, 1971; La Batalla de Chile, 1973-1977; En nombre de Dios, 1987; La Cruz del Sur, 1992; La memoria obstinada, 1997; El Caso Pinochet, 2001; Salvador Allende, 2004; Nostalgia de la luz, 2010; El botón de Nácar, 2015), poseen tal compromiso con la recuperación de la memoria, que los transforma en lo que Laub (1992) denomina “testigo documental”, al relevar – desde la relación personal de los realizadores con los hechos que les afectaron directamente – testimonios que para ellos es un imperativo ético y político narrar, aún cuando ello les suponga una labor de por vida.8

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Siguiendo con Chile – para ilustrar la relación que, en general, el documental latinoamericano ha desarrollado de la mano de la subjetividad durante las últimas décadas – un paso más allá en el camino de la introspección autorrepresentacional se encuentran aquellos documentales realizados por una generación de directores que hoy fluctúan entre los 35 y los 45 años, hijos de padres que militaron en la izquierda durante la Unidad Popular y que, como consecuencia de ello, sufrieron la fractura vital y familiar que supuso para muchos de ellos el Golpe de Estado y la dictadura, encarnada en la desaparición, tortura o muerte de alguno(s) de sus componentes, en la diáspora del exilio, o el desarraigo experimentado en el retorno al país (cfr. BELLO, 2011). Esta recapitulación de la historia se enuncia desde la “postmemoria” (HIRSCH, 2008) y supone una distancia reflexiva, una mirada crítica que interpela y cuestiona el rol de la cohorte de los padres en el devenir de los acontecimientos políticos, aportando una gran gama de matices a discursos – hasta entonces – bastante hagiográficos. Así, este “cine de hijos”,9 conlleva una crisis y un desplazamiento formal y narrativo con respecto a las retóricas clásicas del documental autobiográfico. Hoy en día, en tanto, con cada vez mayor frecuencia comienzan a verse documentales autobiográficos centrados en problemáticas aún más íntimas pero no por ello menos políticas, obras que ya no se encuentran necesariamente determinadas por la historia nacional, sino que centradas en memorias familiares signadas por secretos, ausencias, vergüenzas, mentiras y confesiones.10 La función política de estas obras pasa por visibilizar experiencias vitales comúnmente ocultas o negadas dentro de la privacidad familiar (tales como el embarazo no deseado, la adopción, la crianza monoparental, las identidades LGBT, la depresión, el suicidio, entre otras), y por desencadenar procesos de proyección, identificación y empatía que contribuyan a la aceptación y normalización de estos eventos tabúes. Estos documentales conviven actualmente con aquellos que – también desde estrategias autorreflexivas – despliegan poéticas experimentales y estéticas intersticiales para articular los vértices entre las múltiples capas de la experiencia personal, el sentido de pertenencia colectiva, las relaciones entre pasado/presente, el propio acto de filmar y sus vínculos con lo real. En este tipo de poéticas autorrepresentacionales, el acento recae sobre las relaciones y operaciones del lenguaje cinematográfico, el cuestionamiento de sus códigos y las inflexiones tanto de sus contenidos como de su praxis.11

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9. Entre otros, documentales

como La Hija de O’Higgins (2001, Pamela Pequeño); Volver a vernos (2002, Paula Rodríguez); En algún lugar del cielo (2003, Alejandra Carmona); Reinalda del Carmen, mi mamá y yo (2006, Lorena Giaccino); Héroes Frágiles (2006, Emilio Pacull); La promesa de mi madre (2007, Marianne Hougen); Mi vida con Carlos (2008, Germán Berger); La Quemadura (2009, René Ballesteros); El edificio de los chilenos (2010, Macarena Aguiló); El eco de las canciones (2010, Antonia Rossi), Sibila (2012, Teresa Arredondo); Allende, mi abuelo Allende (2015, Marcia Tambutti); Venían a buscarme (Álvaro de La Barra, 2016). 10. Ejemplos de documentales

autobiográficos de esta naturaleza en Chile son, entre otros, Hija (2011, María Paz González); El Huaso (2012, Carlo Proto); Genoveva (2014, Paola Castillo); El Soltero de la familia (2015, Daniel Osorio). 11. En este aspecto, destaca la

filmografía del cineasta chileno Ignacio Agüero (No Olvidar, 1982; Como me da la Gana, 1985; Cien Niños Esperando un Tren, 1988; Sueños de Hielo, 1993; Aquí se Construye, 2000; La Mamá de mi Abuela le Contó a mi Abuela, 2007; El Otro Día, 2012; Como me da la Gana 2, 2016), la mayoría de cuyos documentales imprimen la mirada subjetiva y autorreflexiva del autor alrededor de diversas materias. Sin embargo, particular interés en torno al péndulo entre el mundo interior y el mundo exterior del cineasta para reflexionar sobre el tiempo, la memoria y el propio cine, reviste su obra El Otro Día, 2012.


El giro decididamente subjetivo que se afianzó en este período, continúa siendo uno de los rasgos preeminentes del documental en la actualidad. Es precisamente mediante las estrategias autorreflexivas e híbridas que tensionan y trastocan las divisiones binarias entre ficción y no-ficción, lo público y lo privado, la historia y la memoria, que el documental autobiográfico contemporáneo logra desplazarse respecto de los paradigmas hegemónicos y contribuye a desdibujar los bordes del género, desestabilizando las definiciones estancas y expandiendo gradualmente las relaciones que el cine de no ficción autorrepresentacional performa con la realidad.

II. Apuntes para trazar el espacio del documental autobiográfico

En cuanto a su adscripción genérica, sus estrategias narrativas, sus recursos estilísticos y sus registros de enunciación narrativos y poéticos, estos documentales de búsqueda identitaria en los que el “yo” se construye como huella de la experiencia y de la subjetividad de sus autores, son de compleja categorización, transitando por territorios de tan difusas fronteras como fértiles confluencias. Muchas de estas filmaciones íntimas son mestizajes que bordean los intersticios de diversos modelos de inscripción autobiográficas tales como el diario de vida filmado, el diario de viaje, los documentales epistolares (las “cartas filmadas”), el autorretrato, el cine familiar y amateur, entre otras expresiones, algunas de las cuales desarrollaremos a lo largo de las próximas páginas. La fertilidad de los diálogos entre estas diversas formas de autorrepresentación, siempre ha tenido cabida en los extramuros de los sistemas de producción industriales, acuñándose en espacios cinematográficos independientes y marginales, como las vanguardias, el cine experimental, o el cine ensayo. El cine contemporáneo de no ficción ha demostrado claramente su radical divorcio de la pretendida objetividad antaño atribuida casi por defecto al documental (diríamos que al menos hasta sus manifestaciones clásicas e incluso modernas, tales como el Direct Cinema y el Cinema Verité) y se ha decantado decididamente hacia la vocación subjetiva e introspectiva de las formas narrativas autobiográficas, hasta el punto en que hoy estas producciones de naturaleza “yoica” incluso predominan

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cuantitativamente en espacios de exhibición y distribución de cine documental, tales como festivales internacionales especializados en el género, donde logran a menudo repletar las funciones y cosechar premios, además de una inaudita atención teórica y crítica. Lo mismo puede constatarse en la academia; son cada día más las escuelas de cine y comunicación audiovisual que asisten a una expansión exponencial de proyectos cinematográficos autorrepresentacionales por parte de estudiantes que -con mucha mayor frecuencia que hace quince años – se decantan hacia los caminos de la exploración de la intimidad. Para Renov (2004),12 la subjetividad ha sido la tendencia determinante del cine de no ficción contemporáneo. El documental, tradicionalmente exigido de dar cuenta de la alteridad, en la actualidad es conminado a dar cuenta de sí mismo (del sí mismo autor y del sí mismo cine). Este giro subjetivo – espacio privilegiado de experimentación visual y narrativa para la expresión de la intimidad – evidencia la puesta en escena de un “autos” (prefijo de origen griego que significa “uno mismo”: autobiografía; autorretrato) que construye una narración alrededor de sí. De tal modo que la autobiografía – la representación o escritura (“grafos”) de la vida (“bio”) de uno mismo (“auto”) – es, al decir de Jerome Bruner (1993), “la construcción de la vida a través de la construcción de un ‘texto’”. Como podemos apreciar, es en el carácter de escritura – diríamos “grafológico”, por no decir incluso “caligráfico” en tanto gesto identitario inherentemente personal) donde está puesto el acento de la mayor parte del trabajo analítico producido alrededor de las prácticas autobiográficas literarias y cinematográficas. Para el teórico de referencia obligada en los estudios autobiográficos, Philippe Lejeune, este tipo de narración debe ser un relato retrospectivo – en prosa, en el caso de la literatura – que una persona real hace de su propia existencia. Ello nos lleva a pensar la autobiografía como un género narrativo referencial (anclado en la historia) determinado por principios de continuidad y de identidad, focalizado en la experiencia temporal de un individuo (preferentemente su infancia y juventud; el pasado recobrado a través de la memoria). Así pues, el documental autobiográfico delimitaría un espacio, un tiempo y una voz, que confluyen para evocar un “yo” forjado en la observación de la propia historia de vida. “Es el cine autobiográfico per se el que enfrenta plenamente la ruptura entre el tiempo del cine y el tiempo de la experiencia, e inventa formas para contener lo que encuentra allí” (SITNEY, 1978, p. 246).

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12. Renov rebate lo señalado por el Nichols de La Representación de la Realidad (1991). Es justo precisar que, tres años más tarde, el investigador actualiza el debate en su libro Blurred Boundaries (1994) acerca de que “la subjetividad y la identificación son por lejos menos frecuentemente explorados en el documental que en la ficción. Los asuntos de la objetividad, ética y la ideología han llegado a ser el sello del debate documental, tal como los asuntos de la subjetividad, la identificación y el género lo han sido de la narrativa de ficción” (NICHOLS, 1991, p. 156).


En el cine de no ficción, la narración retrospectiva autobiográfica adoptaría la forma de una puesta en escena de la propia trayectoria vital o de fragmentos de ésta, en la que el sujeto narrador en principio coincide con el sujeto narrado (autor, narrador y protagonista son una misma persona), así como el “yo” constituye tanto el enunciador como el enunciado. La historia que se conforma, estaría atravesada necesariamente por un valor de verdad, lo que Lejeune denomina el “pacto autobiográfico”, que – más allá de intentar encorsetar el relato en categorías a estas alturas bastante obsoletas tales como el carácter “verídico” u “objetivo” de unos hechos determinados – más bien releva gran importancia a la relación entre el autor y su receptor (lector o espectador). Las principales preocupaciones de Lejeune al hablar de cine autobiográfico dicen relación con las dificultades que supone desplazar así, sin más, el vocabulario genérico de una expresión a otra (medio de comunicación o arte; la literatura, el cine), sin considerar las especificidades particulares que distinguen a cada manifestación.

Si se entiende como “autobiografía” un texto regido por un compromiso de veracidad, éste puede tener funciones (ligadas a la situación de la escritura y al destino) y formas muy diferentes. Íntimo por su contenido, pero público por su destino es el caso del relato autobiográfico (…) o del autorretrato. Íntimo por su contenido y por su destino: el diario íntimo (que refleja paulatinamente el presente). Por supuesto, estas situaciones básicas pueden ser desviadas (la “carta abierta”, en la cual se toma al público como testigo de una misiva que dice ser privada; el “diario íntimo” que el mismo autor publica…) o combinadas (…). ¿En el cine, el reparto entre íntimo, privado y público funcionará de la misma manera (¿se puede hacer una película con la idea de no enseñársela a nadie?, ¿o, lo que viene a ser lo mismo, saltándose las reacciones del público?) ? (…) Heme aquí ante la segunda causa de confusión, el traslado de un término genérico de un medio de comunicación a otro. Dos posiciones se enfrentan en este punto. La primera, pesimista, severa y aparentemente rigurosa, se debe a la poetisa americana Elizabeth W. Bruss en su ensayo “La autobiografía en el cine”. La segunda, optimista, fluida e imprecisa, se debe a los cinéfilos que actualmente tratan de promover este nuevo género y a los cineastas que demuestran el movimiento al andar: ¡el cine autobiográfico tal vez no sea posible en teoría, pero en la práctica existe! Incluso si es rara vez y confidencialmente. Incluso si es de otro modo. (LEJEUNE, 2008, p. 16-17).

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Algunas de las aseveraciones de Bruss (1980) señalan, en efecto, que no puede haber autobiografía en el cine o, cuanto menos, que ésta no sería comparativamente equivalente a la autobiografía literaria y que, de existir, el cine autobiográfico parecería estar condenado a la ficción. Lejeune refrenda esta percepción, señalando que:

No puedo pedirle al cine que muestre lo que ha sido mi pasado, mi infancia, mi juventud, solo puedo evocarlo o reconstituirlo. La escritura no presenta este problema, porque el significante (el lenguaje) no tiene ninguna relación con el referente. El recuerdo infantil escrito es tanto una ficción como el recuerdo infantil reconstituido en el cine, pero la diferencia es que puedo creerlo y hacerlo creer verdadero cuando lo escribo, porque el lenguaje no toma nada prestado a la realidad. En el cine, en cambio, la falta de autenticidad del artefacto se vuelve perceptible porque, en última instancia, una cámara también hubiera podido registrar, en otro tiempo, la realidad de lo que aquí es representado por un simulacro. La «superioridad» del lenguaje se debe, pues, a su capacidad de hacer olvidar su parte de ficción, más que a una aptitud especial para decir la verdad. El cine presenta la desventaja de poder ser documental, la imagen, de estar siempre ligada a una realidad. (…) El cine es, antes que nada, el lugar de la ficción. Nadie se acuerda de haber ido al cine para ver una autobiografía, stricto sensu. Tanto más, cuanto la imagen referencial, verídica, más bien sería para nosotros la imagen-televisión. Entre los géneros referenciales, el cine se presta mejor a la biografía que a la autobiografía”. (LEJEUNE, 2008, p. 19-21).

Pensar y validar el cine desde su vertiente hegemónica, la ficción, es desatender las lógicas y los códigos propios del documental y sus especificidades expresivas, representacionales y enunciativas, en su larga búsqueda por definir una voz propia que module un “yo”. Estas afirmaciones olvidan, en efecto, uno de los recursos narrativos por excelencia del que se sirven las autobiografías filmadas para dar forma a la construcción de su subjetividad: la voice over o comentario retrospectivo, estrategia que suele dotar de un sentido estructural al filme por medio de la voz en primera persona del cineasta, que vierte en ella los pensamientos que le surgen a la luz de la revisión del material registrado en un pasado temporal. Esta narración enmienda la relativa dificultad que se le atribuye al cine para la autorrepresentación, toda vez

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que – efectivamente – a menudo se ve imposibilitado de indicar a ese “sí mismo” en una imagen en la pantalla. No se puede ignorar el hecho que, desde que el lenguaje cinematográfico pasó a ser un lenguaje audiovisual con la llegada del sonoro, la oralidad de la palabra en todas sus formas es un elemento constitutivo del séptimo arte, tan importante como lo es la imagen. Así, con toda propiedad, la narración en off puede reivindicarse como un elemento propiamente cinematográfico; incluso cuando la voz del autor no se encuentra en off, sino que su intervención es parte de la diégesis y/o constituye un sonido on, como puede verse – aunque excepcionalmente – en algunos documentales como Irène (2009) de Alain Cavalier. En dicho filme, el cineasta no aparece en cámara y si bien su voz se encuentra en off, sus comentarios son registrados sincrónicamente con la imagen, no elaborados fruto de revisiones posteriores e incorporados en el proceso de montaje, como ocurre con la mayoría de las autobiografías filmadas. Así, Cavalier reivindica la sincronía entre la inmediatez de lo vivido y el presente filmado, y delata una valoración tanto acerca del acto de capturar el aquí y el ahora, como de la capacidad in situ de la cámara para develar los sentidos subyacentes a los sujetos y hechos pasados a los que interpela. Una de las principales paradojas de los registros íntimos de filmación es el hecho de que los esfuerzos del realizador por capturar la propia vida con la cámara, en general lo relegan a transformarse en un mero espectador de la misma. Al no poder situarse simultáneamente en ambos lados del aparato, el cineasta en general estará condenado a optar entre el acto de ver y el inscribir la presencia del propio cuerpo en la imagen. “La imagen de alguien detrás de la cámara comprende su propia imposibilidad como representación, incapaz de acceder a su origen, de invertir su propio proceso” (cfr. MARCHESSAULT, 1986). Pero aún este relativo impedimento se ha soslayado mediante la recurrente imagen empleada por muchos documentales autobiográficos en los que figura el cineasta registrándose a sí mismo frente al espejo, entre otros variados recursos para la representación del “yo” y para la evocación del pasado, sin necesidad de recurrir a la reconstrucción ó a otros artificios tradicionalmente asociados al cine de ficción. Por lo demás, a la hora de recoger las huellas indiciales para restituir la relación con el propio pasado, muchos documentales autobiográficos se construyen a partir de fotografías o películas domésticas de la infancia de los autores, que han sido registradas por

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sus padres en el pasado y resignificadas en la actualidad a través del montaje. Nuevamente en este punto fructifican los cruces entre el cine del “yo” y los registros domésticos y amateur. Evidentemente el aligeramiento y abaratamiento de los soportes de registro (desde el Super 8mm al video digital) ha facilitado inmensamente el desarrollo del documental autobiográfico y las posibilidades del creador para construir por sí solo una imagen de sí mismo, mediante un cine a menudo autofinanciado, autofilmado, autorevelado, automontado; distribuido y exhibido autónomamente, prescindiendo de la profesionalización y especificidad de roles técnicos involucrados en la producción industrial de un filme. Habiéndonos aproximado a algunas de las principales discusiones teóricas alrededor de la autobiografía en el cine de no ficción, a continuación intentaremos dar cuenta de ciertas formas de representación recurrentes en las que se manifiesta el “yo” en el documental autobiográfico contemporáneo. Sin pretensiones taxonómicas, nos aproximaremos a las estrategias autorreferenciales medulares empleadas por los cineastas en la formulación de su subjetividad y sus experiencias de vida, a través del documental.

III. Las Formas del “Yo” Filmado: ensayos, diarios, autorretratos y otros registros del cine de la experiencia

Como hemos visto a lo largo de estas páginas, el documental autobiográfico se caracteriza por una naturaleza de difícil clasificación y unos límites borrosos, que lo hacen lindar con expresiones diversas dentro de la vasta gama de los géneros testimoniales y autorreferenciales presentes en el cine.13 Desprovista de una forma fija, el cine de la experiencia suele circular por constantes transformaciones, por lo que cualquier intento de categorización no sólo no puede ser taxativo y excluyente, sino resulta tan difuso como las expresiones discursivas que lo conminan. A continuación, se caracterizarán tres de las formas más recurrentes para la puesta en escena fílmica de la subjetividad: el Documental de Ensayo; el Diario de Vida; el Diario de Viaje; y el Autorretrato, y se explorarán algunos usos narrativos y estéticos transversales dentro de dichas manifestaciones.

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13. “Los encuentros de Valence, en 1984, intentaron abalizar ampliamente el terreno, al distinguir ocho géneros de ‘filmación íntima’ (viaje / reportaje / teórica / banco de prueba / autoanalítica / confesión amorosa / autobiográfica / correspondencia) (…) Este desenredo no aspira al rigor: ‘Reiteramos nuestra preocupación de no proponer esta clase de inventario como una tipología rigurosa o definitiva’. (…) Para la semana ‘Cine y Autobiografía’ de Bruselas, Adolphe Nysenholc ha propuesto una clasificación más coherente, al distinguir autorretratos, retratos de amigos, retratos de familia / cartas, diario de viaje, noticiario privado / diario íntimo / confesiones (más o menos noveladas) / recuerdos de infancia / cuadernos de cineasta (génesis del filme)” (LEJEUNE, 2008, p. 22).


A. El documental de ensayo Los filmes ensayo se encuentran necesariamente vinculados a la comprensión del arte cinematográfico como una forma de pensamiento, por lo que a menudo ofrecen una interpretación profundamente política del mundo a partir de la interrogación sobre las propias imágenes y su capacidad para representar la complejidad de la realidad. El ensayo – por definición – más que aportarnos respuestas, nos formula preguntas; nos interpela como espectadores convocándonos a someter al mundo a la prueba de la duda, a tomar distancia y a adoptar un punto de vista en la formulación de las ideas. En general, estas cavilaciones se canalizan mediante la voice over, aquella voz en off que matiza, cuestiona, da cuenta de los estados de ánimo del autor y sus disquisiciones vitales, que no posee certezas y que, por lo tanto, difiere consustancialmente del comentario ilustrado, omnisciente, anónimo, de las autoritarias voces en off del documental expositivo que pretenden certificar y autentificar verdades universales y conocimientos absolutos. Dentro de sus principales cultores, destacan figuras emblemáticas como los franceses Chris Marker, a lo largo de prácticamente la totalidad de su legado, desde el inaugural Lettre de Sibérie (1957), hasta su célebre Sans Soleil (1983), pasando por Le Fond de l’air est rouge (1977), Le Tombeau d’Alexandre (1992), Level 5 (1996), Une journée d’Andrei Arsenevitch (1999), Le souvenir d’un avenir (2001), Chats perchés (2004), Second Life (2008), entre otros; y Jean Luc Godard, con obras tales como Lettre à Freddy Buache (1981), JLG / JLG: Autoportrait de décembre (1995), su monumental Histoire(s) du cinéma (1988-1998), Éloge de l’amour (2001), Film socialisme (2010), Adieu au langage (2014), por mencionar sólo algunos filmes de su prolífica creación. Otra figura destacada de la forma ensayo fue el alemán Harun Farocki, con filmes tales como Entre dos guerras (1978), Ante tus ojos, Vietnam, (1981), Como ves (1986), Imágenes del mundo y epitafios de guerra (1988), Cómo vivir en la RFA (1990), ¿Qué sucede? (1991), Videogramas de una revolución (1992), Trabajadores saliendo de la fábrica (1995), El gesto de las manos (1997), Imágenes de prisión (2000) y Eye Machine, 1 y 2 (2001, 2002), entre otros. Las subjetividades representadas en los documentales autobiográficos difícilmente se presentan como identidades fijas, cerradas, completas. Muy por el contrario, en general se trata de subjetividades en tránsito, que dibujan trayectorias a modo de

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bocetos, de work in progress de la experiencia vital, articulando su enunciación mediante la duda, la pregunta, el escrúpulo o la indecisión. Es así como muchas veces estas creaciones dan cuenta explícitamente de sus experiencias de ensayo/error, recurso que – como veremos – es muy propio de los diarios cinematográficos y de su construcción paulatina mientras se “toma nota” con la cámara. En efecto, gran parte de las estrategias de autorrepresentación de la subjetividad en el cine de no ficción, así como sus expresiones más recurrentes, se inscriben en las formas del ensayo cinematográfico.14 Como su símil escrito, el ensayo conlleva siempre la posibilidad de la duda y de la reflexión como recursos modeladores de las interrogantes existenciales del autor, en tanto determinan su visión sobre la propia vida, sobre los acontecimientos exteriores y también sobre la práctica autobiográfica en sí misma y sus potencialidades de representación a través del lenguaje cinematográfico.

B. El diario de vida cinematográfico Cuando hablamos de “diarios de vida filmados”, nos referimos a (dia)crónicas personales por lo general registradas a lo largo de períodos prolongados en la vida de un cineasta (varios años o décadas) que – sin un orden establecido y tal como lo hace el diario de vida escrito en el que se inspiran y con el que dialogan – recogen y plasman sus vivencias cotidianas, sus relaciones afectivas y familiares. Podemos encontrar múltiples semejanzas entre el diario filmado y su símil escrito, pero existen también entre ellos notables diferencias. La más evidente es que el diario de vida escrito es claramente un texto íntimo, no destinado a la publicación y que, por lo tanto, no está concebido para ser recepcionado por un público general. En cambio, por mucho que un cineasta se proponga que sus diarios filmados se entiendan como un cine íntimo, “de cámara”, no pensado para las salas comerciales y sus audiencias, los procesos asociados a su producción y a la naturaleza de las imágenes conllevan el hecho de la proyección; la necesidad de ser vistas por unos otros, por pequeños en número que éstos sean y por alternativos que sean los circuitos de distribución. Durante el registro, la exploración del sí mismo, del cotidiano, del mundo histórico y del propio acto de filmar, obedecen a una subjetividad fílmica que se proyecta a la cámara como extensión y prótesis de sus realizadores. A la evidente incapacidad de cualquier

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14. Desde T.W. Adorno,

en su texto “El ensayo como forma” (En Notas sobre la literatura, Taurus, Barcelona, 1962), este registro ha sido ampliamente observado por la teoría y, en materia cinematográfica, investigadores como Alexandre Astruc, Hans Richter, Alain Bergala, Antonio Weinrichter, Angel Quintana, Josep María Catalá, David Oubiña, Philip Lopate, Ursula Biemann, Christa Blümlinger, Karl Sierek, Laura Rascaroli, entre otros, le han destinado amplio análisis.


relato (ya sea cinematográfico o literario, etc.) para dar cuenta de la totalidad de una trayectoria vital, se agrega la dificultad de definir qué significa una vida y cuáles de sus eventos, momentos, memorias o personas son significativos y, en consecuencia, dignos de ser seleccionados como experiencias representativas. Sin embargo, no puede olvidarse que un diario no se trata simplemente de una acumulación de hechos o anécdotas; como dispositivo de la autobiografía, el diario de vida surge de la necesidad dar sentido a la experiencia, pues – tal como señala el filósofo Wilhelm Dilthey – la autobiografía es una comprensión de sí mismo. Uno de los rasgos recurrentes del diario filmado, es su estructura fragmentaria. Si bien el diario es cronología, ésta no impone linealidad, sino que avanza en el curso de la experiencia cotidiana y su desorden existencial, respondiendo prioritariamente al devenir pulsional de los estados anímicos del autor o a la dispersión atomizada inherente al flujo de los pensamientos. Así como Jim Lane (2002) en su libro The autobiographical documentary in America se refiere a ciertos documentales autobiográficos realizados con un “enfoque diarístico” (journal entry approach), David E. James (1992), distingue dos momentos claves en la realización de estos filmes:

En una primera fase tendríamos los ‘film diaries’, las entradas diarias que el cineasta va grabando sin un plan previo, y que se asimilan en cierto modo al diario escrito, en cuanto que no cuentan con más estructura que su propia secuencialidad cronológica. Se distinguen, sin embargo, del formato escrito, por su dimensión puramente visual (aunque luego el video también incluirá como opción la expresión verbal simultánea); y sobre todo por su anclaje en el presente inmediato del acontecimiento, sin la distancia retrospectiva del diario, que aunque sea mínima, ya aporta una reflexión y reconstrucción narrativa sobre lo acontecido. Más tarde esos ‘film diaries’ se convertirán en ‘diary films’, en películas con una duración determinada, preparadas para ser exhibidas públicamente. En esta segunda fase, el cineasta tiene que elegir un período temporal y realizar un montaje del material rodado (…). Y lo que es más importante: en esta fase también se incorporan nuevas capas expresivas, como intertítulos, músicas, y en especial el comentario del autor-narrador, que aportan a las imágenes una reflexión más propiamente autobiográfica, de carácter retrospectivo, hasta configurar una obra de carácter híbrido, específicamente audiovisual, a medio camino entre el diario escrito y la autobiografía estándar. Así, el pasado

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resuena en el presente con modulaciones propias, como afirma Maureen Turim, pues los momentos en presente de la grabación inicial devienen en memorias cuando son reorganizados en el montaje, con esa voz del autor que sitúa las emociones en el tiempo, una voz que ‘aporta el peso del pasado’, que ‘convierte una fenomenología de la experiencia en otra del recuerdo’ (apud CUEVAS, 2008, p. 107).

Cuando llevamos un diario de vida escrito, generalmente existe un desfase entre el momento en que ocurren los acontecimientos cotidianos y el momento en que los reconstruimos y narramos, a menudo desde la tranquilidad de la noche, cuando recapitulamos lo experimentado volcándolo al papel. Tal como sería extraño imaginarse a un diarista que días después reelaborase lo escrito, no es más fácil pensar en un cineasta autobiográfico que se mantuviese exclusivamente en el plano temporal de la inmediatez del presente filmado (fruto de la sincronía ontológica que en el cine supone la vivencia y su registro). Salvo excepciones como la mencionada Irène de Cavalier, en la mayoría de los diarios documentales el registro del presente es retomado más tarde – y a menudo, mucho más tarde; meses o años después – en el proceso de montaje donde, generalmente a través de la voice over, se ordena el carácter desestructurado y discontinuo de la narrativa del film diary. Así, se le aporta aquello que Lejeune entiende como una “perspectiva retrospectiva”; una reconstrucción del pasado desde un presente en donde el cineasta reevalúa y aporta sentido y coherencia al relato de su existencia, al “relato de vida”, recogido y estructurado ahora en su diary film. Además de los múltiples ejemplos de diarios de vida cinematográficos que – junto a sus principales exponentes – figuran como hitos en el primer punto de este artículo (Mekas, Perlov, Van der Keuken, etc.), mencionaremos – para finalizar – dos interesantísimas y hasta hace poco bastante desconocidas15 propuestas de diarios de vida documentales realizados por mujeres, durante el exilio chileno. Se trata de Diario Inconcluso (Marilú Mallet, 1982. Canadá) y de Fragmentos de un Diario Inacabado (Angelina Vásquez, 1983. Finlandia). Ambas obras representaron subjetivamente temáticas como el desarraigo y el extrañamiento que atravesó la experiencia personal de las mujeres exiliadas, y fueron ejemplos pioneros del giro autorreflexivo que más tarde caracterizaría al documental chileno hasta la actualidad.

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15. Un texto precursor sobre las realizadoras chilenas en el exilio es el libro Nomadías. El Cine de Marilú Mallet, Valeria Sarmiento y Angelina Vázquez, editado por Elizabeth Ramírez y Catalina Donoso (Santiago de Chile: Metales Pesados, 2016).


C. El diario de viaje filmado Estas suertes de road movies documentales también dan cuenta de la intimidad de una vida cotidiana en tránsito, por lo que evidentemente sus cruces con el diario de vida fílmico son múltiples, pero se diferencian de estos últimos pues la íntima búsqueda identitaria y genealógica en la que a menudo se embarcan sus autores – comúnmente personas desplazadas, desterradas o desarraigadas – se traduce narrativamente en que éstos, en algún punto de sus vidas, emprenden viajes de retorno a la Arcadia perdida, a la historia pasada, al país de la infancia y adolescencia que han abandonado, al hogar y los ritos de su cotidiano, sea éste un lugar físico concreto, o un espacio imaginado y recordado que sólo es asequible por la vía de la memoria. Es por ello, que el desplazamiento físico – generalmente desde la urbe en la que se han asentado (lo global), hacia el pueblo del que se han marchado (lo local, lo propio, el territorio que conserva ciertas tradiciones vinculadas a la experiencia y al ethos personal) – pasa a ser metáfora de un movimiento interior, de un viaje hacia el autoconocimiento. En estos desplazamientos cartográficos o espirituales, efectivos o afectivos, los cineastas errantes avanzan animados por reencontrar las propias huellas del pasado, y fruto de dicho movimiento interior y exterior, (re)construir un nuevo yo que, sólo a veces, al final del camino, termina encontrándose a sí mismo. Las estrategias de evocación poética de estos filmes, en general, dan forma a una estética del desarraigo o del desamparo que transita entre la filiación y la orfandad, en este constante ir y venir entre el alejamiento y el acercamiento desde/hacia los orígenes. La memoria contenida en estos diarios de viaje suele encontrarse atravesada por el concepto y el conflicto del desarraigo; toda vez que los cineastas se preguntan dónde está realmente el hogar para un forastero; dónde las raíces, el sentido de pertenencia. Y es que para quienes han debido tomar la decisión forzosa o voluntaria de abandonar el país de origen por razones de desplazamiento, exilio o migración, la construcción de la figura del hogar constituye un dilema existencial de por vida, incluso a pesar de tener la posibilidad de un fugaz retorno. Estos cineastas buscan explorar en la identidad del “yo” y sus fisuras, interrogar las grietas de la memoria, recomponer la identidad escindida

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y corporeizar los espectros del pasado en personas concretas, lugares palpables, objetos y formas que se fijan y se prolongan ya no sólo en la fragilidad de la memoria, sino en la materialidad del celuloide, en un tiempo y un espacio fílmicos. Como asegura Waldman (2009), la pertenencia no reside necesariamente en un “hogar” y el “hogar” no significa necesariamente pertenencia. Waldman cita a Adorno para enfatizar que “quien ya no tiene ninguna patria, halla en el escribir [en este caso, el filmar] su lugar de residencia” (WALDMAN, 2009, p. 43). Destacados ejemplos de estos viajes cinematográficos en primera persona se encuentran en las obras del francés Chris Marker, quien al inicio de Lettre de Sibérie (1957) señala “Os escribo desde un país lejano”, a modo de guiño intertextual a la obra del escritor y pintor Henri Michaux titulada con el oxímoron Lejano Interior; en los diarios del lituano de origen judío radicado en Estados Unidos, Jonas Mekas y su Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972); en el brasileño de origen judío, radicado en Israel, David Perlov y sus viajes de retorno a su Sudamérica natal tanto en Diary (1973-1983), como en Updated Diary (1990-1999); en el norteamericano Ross McElwee y su trayecto al sur de EEUU en Sherman’s March (1986); en el canadiense de origen armenio, nacido en Egipto, Atom Egoyan y el viaje al país euroasiático de sus ancestros que inspira Calendar (1993); en el francés Raymond Depardon y sus obras Afriques, Comment ça va avec la douleur? (1996), Journal de France, (2012) y Les habitants (2016); en el cineasta portugués Manoel de Oliveira que, en Porto da Minha Infância (2001), retorna a su Porto natal. Al principio de dicho filme, señala Oliveira: “Recordar momentos de un pasado lejano es viajar fuera del tiempo. Sólo la memoria de cada uno lo puede hacer, es lo que voy a intentar”.

D. El autorretrato videográfico Una de las más recientes exploraciones dentro de las vastas formas de autorrepresentación del sujeto a través del audiovisual, lo constituyen los autorretratos. Fórmula – como sus antecesoras – eminentemente híbrida, configura una bisagra entre el cine de no ficción, el videoarte y la performance. En las artes visuales, el autorretrato ha transitado históricamente desde del campo de la pintura a la fotografía, luego al del cine y más tarde al vídeo,

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fraguándose éste último como la plataforma privilegiada para su evolución. El propio Philippe Lejeune se refiere al autorretrato reconociendo que como técnica designa realidades muy distintas para las diversas artes que la acuñan, ejemplificando en que mientras el autorretrato escrito “tiende a exponer a los otros aquello que por definición se les escapa de mí; el autorretrato pintado tiende a hacerme dueño de aquello que soy el único que no puedo aprehender directamente, mi rostro, que todo el mundo conoce mejor que yo” (LEJEUNE, 2008, p. 16). El autorretrato pone en tensión el concepto mimético de representación, entre otras cosas porque constituye tal vez el único tipo de imagen en que el artista está impedido de plasmar aquello que contempla directamente; ha de mediar un espejo en el que ver reflejada la propia imagen espectral para, a continuación, representar la “imagen de esa imagen”, forzosamente oblicua. Raymond Bellour (1990), uno de los principales investigadores del autorretrato filmado, emplea el concepto “entre-imágenes” para referirse al “espacio físico y mental” que habita en cada zona de tránsito entre los diversos dispositivos multimediáticos que caracterizan el escenario actual de la cultura visual: los vasos comunicantes entre lo analógico y lo digital; lo fílmico y lo televisivo, además de las propiedades inmanentes de cada expresión y las potenciales fusiones entre los lenguajes; desde el cine y su autorreflexividad a la pintura, o al vídeo, la fotografía y la literatura. Creo que podríamos aclarar un poco las cosas comenzando por oponer dos grandes modos de tratamiento, a menudo muy difíciles de distinguir, de la experiencia subjetiva. Por un lado está la autobiografía: si queremos conservar un mínimo de su sustancia a su definición tradicional, estamos obligados a constatar que en el cine se vuelve fragmentaria, limitada, disociada, incierta – obsesionada con esa forma superior de disociación que nace de los disfraces de la ficción. Por el otro, cuando su definición se torna realmente dudosa, es porque a menudo abarca una experiencia que, por ser de naturaleza autobiográfica, es también su contrario: el autorretrato (…). Podemos, sobre todo, evaluar entonces precisamente las transformaciones que el video introduce en el espacio que desde ahora comparte más o menos con el cine, acercándose más directamente que él a una cierta tradición de la experiencia literaria (BELLOUR, 2009, p. 293)

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El video ha sido, pues, el dispositivo por antonomasia para el desarrollo de esta forma de autorepresentación, que se caracteriza por abordar cuestiones relacionadas con la experimentación formal del propio medio tecnológico a través del cual se enuncia un “yo” corporeizado y tensionado entre el espacio mental (la percepción subjetiva) y el espacio material en el que se circunscribe y emplaza un cuerpo, por lo general, fragmentado. Así, el video surge como instrumento de una política del cuerpo en el autorretrato, en el que el autor se expone como una unidad de cuerpo, experiencia y memoria, ante un aparato – la cámara videográfica – con el que performa una relación tanto estética como técnica.

Hemos visto lo que la mutación y la multiplicación de las técnicas precipitan, a través del video y todo lo que este implica: la imposible autobiografía se transforma allí explícitamente en autorretratos de un nuevo género, que se despliegan con una consistencia, una continuidad y una lógica de las que el cine no ofrece en verdad equivalente (BELLOUR, 2009, p. 337).

Respecto a las estrategias performativas sobre el cuerpo en las que indaga el autorretrato videográfico, Bellour explica que una de las diferencias entre esta práctica y otras que se inscriben en la autobiografía fílmica, es que al sujeto del autorretrato no le interesa narrarnos la cronología de sucesos de la trayectoria vital, sino mostrarnos quién es ese “yo”, en un “sentido agudo de la vida cotidiana, los gestos, las posturas; una oscilación pendular entre presente y pasado, imaginación y realidad, materia y memoria” (BELLOUR, 2009, p. 249). Utilizo el verbo “mostrar”, pues la inscripción del cuerpo del autor en la pantalla parece definir al autorretrato, tanto como a su símil pictórico. La experiencia del videoartista se materializa a través de la presencia de su cuerpo y la relación que se establece entre éste y la representación tecnológica. Mientras la concepción clásica de la autobiografía describe la coherencia de un relato lineal, cronológico y continuo que se refiere al pasado, el autorretrato presenta al sujeto de enunciación incrustado en una narrativa ya no sólo fragmentada y discontinua, sino muchas veces abiertamente incoherente en una estructura con (des)órdenes que apelan más bien al tiempo presente; al tiempo del rodaje. El autorretrato explora recursos poéticos y

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elípticos de naturaleza metafórica y abstracta, empleando formas que apelan a la circularidad, la repetición, la intermitencia y la superposición. En cuanto al sonido como estrategia de enunciación del “yo”, a diferencia de la autobiografía y su recurso clásico de la narración en off, el autorretrato ofrece a menudo palabras fragmentadas, gritos, susurros y onomatopeyas (por ejemplo, The space between the teeth, de Bill Viola, 1976), o respiraciones y sonidos corporales, como podemos apreciar en obras tales como las de la artista libanesa de origen palestino, Mona Hatoum. Hatoum lleva al extremo la divagación y distorsión propias de las estructuras del autorretrato, en una poética del exceso en torno a la exploración del “yo” y del cuerpo humano: en su video instalación Cuerpo extraño (1994), la artista despliega una performance mediante imágenes endoscópicas del interior de su propio cuerpo, acompañadas del sonido de su corazón registrado desde las diversas cavidades que recorre la cámara, y de la respiración de Hatoum cuando ésta abandona su cuerpo. Así, la endoscopía funciona como alegoría del ejercicio de exploración visual interior, inherente a cualquier autobiografía o autorretrato. Para finalizar este artículo, quisiera plantear algunas inquietudes en torno a los que suponen – a mi juicio – los principales desafíos para la autorrepresentación documental en un contexto contemporáneo determinado, entre otras cosas, por las trepidantes transformaciones tecnológicas asociadas al vídeo digital y las plataformas virtuales. Como se ha visto, los autores que actualmente cimientan su obra desde una puesta en escena de la subjetividad, lo hacen por lo general tanto desde la experimentación formal, estética y narrativa, como desde las prácticas deconstructivas y autorreflexivas alrededor de la consciencia del propio dispositivo cinematográfico y sus posibilidades creativas y autorreferenciales. De lo anterior, se desprende la comprensión crítica por parte de los creadores en torno a las propias herramientas, soportes y formatos audiovisuales que modelan las narrativas del “yo”. Las concepciones y los modelos que se erigen en torno a la intimidad, la subjetividad y la autorrepresentación, no surgen deslindados de los medios con que se construyen tales discursos sino, muy por el contrario, son en gran medida consecuencia de la relación entre los ámbitos representacionales y los ámbitos tecnológicos. Las nuevas tecnologías interconectadas a través de Internet y la world wide web, han permitido el surgimiento de plataformas hipertextuales

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(Facebook, Youtube, blogs, webs personales, etc.) que abren formidables posibilidades e inusitados retos para las nuevas formas de inscripción alrededor de las prácticas “autocinemabiográficas” del siglo XXI. Autobiografías digitales, videos confesionales, ensayos electrónicos, sitios web autobiográficos, entre otras manifestaciones del fenómeno que Paula Sibilia (2008) define como “extimidad”, son sólo algunas de las expresiones emergentes que desestabilizan las nociones clásicas de la autobiografía. Si hasta hace poco los relatos privados alrededor de la intimidad conservaban un rasgo introspectivo para la narración de la experiencia personal, hoy la producción de sentidos en torno al ethos subjetivo se encuentra atravesada por el fenómeno de la exhibición, facilitada por la democratización de estos nuevos dispositivos y la posibilidad virtual de alcanzar audiencias universales cada vez más asequibles. En un contexto mediático contemporáneo en permanente mutación, que ofrece múltiples posibilidades para las prácticas autobiográficas y su construcción textual, la elección de un soporte audiovisual (cine, vídeo, Internet) para los efectos de enunciar el “yo”, reviste unas implicancias mediáticas y políticas radicales. Y es que en esta era de producción, circulación y recepción de imágenes sin aparente frontera, la autobiografía audiovisual asume un rol cada vez más decidido como ejercicio de resistencia y disidencia frente a las tendencias estandarizantes de la cultura global, consolidándose como espacio predilecto para artistas que reivindican políticas de la diversidad, asumen identidades marginales, o pertenecen a minorías étnicas, sexuales o de género.

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FOTOGRAMA COMENTADO

Catar imagem se limita com escrever (seus grãos mais vivos, à moda de João Cabral) Carlos Adriano Doutor em Estudo dos Meios e da Produção Mediática pela USP, Pós-Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e em Meios e Processos Audiovisuais pela USP. Cineasta e realizador de filmes-poemas de reapropriação de arquivo (found footage).

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“Meu projeto é filmar com uma mão a outra mão”, diz Agnès Varda, com voz off, no filme Os catadores e eu (Les glaneurs et la glaneuse, 2000). É esta imagem, reiterada em outros momentos ao longo do filme, que se comenta neste texto. No campo da visão, a imagem no quadro da tela de cinema está diante do espectador, que pode assim atestar a presença (da cineasta, da mão, de seu projeto) pelo testemunho da evidência da comprovação visual: o espectador vê a imagem da mão. O espectador ouve a voz da cineasta; mas esta imagem sonora comprova alguma presença? O código da linguagem cinematográfica ensinou que esta voz ausente do quadro (do campo visual) chama-se justamente de off, por estar fora do campo visual. Mas estaria mesmo “fora”? Pela nomenclatura da gramática fílmica, seria off porque sua fonte emissora (a imagem da boca, por exemplo) não está visível na tela. Mas em vez de “fora”, não poderia ser esta, talvez, mais apropriadamente, uma voz interior? Poderia se supor que esta voz não foi gravada no mesmo momento da filmagem da mão. E que foi registrada posteriormente e sincronizada no momento da montagem/ edição. Mas o som da voz também poderia ter sido gravado enquanto a câmera gravava a imagem da mão. Pois a câmera de vídeo, ao contrário da câmera de cinema, grava imagem e som ao mesmo tempo no mesmo suporte (o vídeo grava imagem e som simultaneamente no mesmo tempo e no mesmo espaço físico). Entre as várias e possíveis comparações entre as dicotomias do cinema e do vídeo, a cisão, a sutura, instalada no registro da imagem e do som seria uma das questões mais interessantes para se pensar. Qual o lugar do som, quando apartado da imagem? Qual o estatuto da voz que comenta a imagem da mão em termos de sua posição de enunciação? Distanciado da imagem, o som guarda sua economia de autonomia, a economia de sua autonomia. A mão demarca o perímetro de sua pele. Por que somos levados a pensar que aquela voz não foi registrada no momento mesmo da filmagem da mão e sim adicionada posteriormente na montagem/edição? Por que a enunciação do projeto parece ser uma reflexão posterior, própria do caráter ensaístico dessa espécie de argumentação? O aspecto

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de “balanço” se efetua após o momento do registro e durante a montagem/edição? Haveria um delay entre o instante da mão filmada e o momento da mão que edita a imagem da mão? Sob a orientação do mote “o olhar faz o autor” (ADRIANO, 1996, p.12), podemos pensar nas formas como Agnès Varda elabora sua imaginação com observações e histórias do real, projetando “variações imaginárias” numa base documentária. Assim como articula em sua obra as diferenças complementares entre fotografia (imóvel e muda) e cinema (móvel e falante), opera uma dialética sutil entre subjetividade e objetividade, discurso direto livre e discurso indireto afeito à narração ensaística. Os catadores e eu parece dissolver-se na imagem da miragem de um tempo espiral, conjugado segundo os tempos da digressão (mais do que da impressão) digital, no regime de uma historicidade turva. Tal tempo, (re)torcido, faz acenos aos jardins borgeanos dos caminhos que se bifurcam, em direções e reflexos. Pois “o recurso recorrente à narração em off da primeira pessoa é uma instância temporal que coloca o sujeito no fluxo histórico dos acontecimentos” (ADRIANO, 2006, p.31). Aquele fotograma da mão, mote deste comentário, ocorre no fluxo pessoal dos acontecimentos vividos pela cineasta em sua experiência da realidade. A mão é colocada em movimento: o plano da mão é filmado no interior do carro, que transporta Agnès por suas praias e estradas. Da câmera à direção do veículo, a mão desliza pelas esferas da figura circular, passa de um giro a outro, rodando o sentidos das reflexões e percepções. Noutra ocasião, assim tentei resumir um aspecto do filme:

Os catadores e eu é um ensaio de mediação temporal. Deslocando-se no tempo, Agnès parte de pinturas do século 19 que mostram o gesto ancestral de catar, coletar e recolher alimentos, para chegar ao ato contemporâneo de coligir imagens e sons com uma câmera de vídeo digital. Em off, ela diz que tal gesto “é definido figurativamente como uma atividade mental”. Seu filme é o diário de um processo de recolha, de restos, de fixar o tempo em matéria de refugo. Se a prática antiga refere-se ao catar sobras da colheita e a moderna de catar restos do lixo, a pósmoderna seria a coleta de grãos da informação eletrônica. O desperdício das batatas lançadas em aterro corresponde ao desperdício de imagens e sons lançados pelo excesso midiático. (ADRIANO, 2006, p.32-33).

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1. “Godard, Truffaut, Resnais, Rohmer, Chabrol: a Nouvelle Vague, capítulo básico da história do cinema, parecia ser mesmo um clube do bolinha. A única voz feminina, integrante do coro disparatado que desafinou a ‘qualidade’ do filme francês anos 50, era Agnès Varda. [...] Varda encontrou pela primeira vez alguns membros dos Cahiers du Cinéma em 1954-55, quando Chabrol, Truffaut, Rohmer, Brialy, Doniol-Valcroze e Godard reuniram-se na casa de Resnais. Ela relembra: ‘Eu seguia mal a conversa. Eles citavam mil filmes [...], tagarelando animadamente. Eu estava ali como por anomalia, sentindo-me pequena, ignorante, e a única garota entre os rapazes’ (ADRIANO, 1996, p.12).

Se a mão identifica diretamente (quase que como um decalque) o aspecto bricoleur, é à qualidade poética do fazer que ela se refere. Companheiro de Varda na Nouvelle Vague,1 Godard disse certa vez, em seu costumeiro tom de blague irônica, que até suportaria ficar cego mas não sem as mãos. Há categorias de artistas visuais que poderiam endossar esse oxímoro, pois pensam com as mãos: um escultor ou um montador/editor de imagens em movimento (cinema, vídeo, digital). Pensar com as mãos. Eis uma formulação que daria pano para as mangas da digressão neste artigo. E o que se tenta traçar como esboço. Mas voltemos à imagem do fotograma comentado. O tempo escorre entre os dedos e as rugas da mão. O clichê da expressão adquire uma densidade própria neste fotograma de Os catadores e eu que ora se comenta. É curioso, e intrigante até, notar como esta imagem da mão de Agnès parece insistir em sua ligação com o tempo: a marca do tempo impressa na textura da pele, o motor do tempo que impele a ação. Doutra feita, assim tentei esquadrinhar uma abordagem do tempo no trabalho da cineasta, numa figura instável e cambiante:

(...) a temporalidade nos filmes de Agnès Varda parece modular-se em três linhas: os filmes de imanência ao tempo (“reportagens de atualidades”), os filmes de intermediação (entre a experiência e a memória do tempo) e os filmes de transcendência do tempo (os ensaios reflexivos). Esta imponderável “classificação” não obedece à cronologia de produção nem restringe os filmes a compartimentos estanques, e só poderia ser lida sob os préstimos da diacronia (ADRIANO, 2006, p.31).

A mão de Agnès testemunha, na própria pele, o tempo – ou, dito de outro modo, a passagem do tempo. Os veios de suas veias, os ossos que afloram, as rugas do esgar. Da pele à película – eis um adágio inspirador, se ela tivesse filmado os Catadores em celulóide (16mm ou 35mm). Mas “filmado” em digital, a analogia (apesar do digital ser antagônico ao analógico) se processa de outra ordem: os dígitos dos dedos, os dedos cor de horas da aurora – para transplantar o famoso verso de Homero.

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Oposta à imagem-cinema, que traz um rastro (de resíduo) da realidade e um lastro de índice semiótico, a imagem-vídeo é pura especulação virtual. Cálculo de algoritmos, o digital tem algo de ritmo sutil: a imagem configura-se em pulso de “zero” e “um”, intervalo improvável onde a imagem surge no istmo do abismo, sutura no intervalo da suspensão, lapso entre a possibilidade de ser imagem e sua impossibilidade. Brechtiana afetuosa, a abordagem de Agnès eterniza e humaniza os objetos imaginários (que se retroativam dos objetos concretos da realidade), deixando-os “eventualmente viverem suas vidas e guardarem seu mistério”, imprevistos e livres (ADRIANO, 1996, p.12). Colher no ar uma tradição viva, preconizava Pound. Catar no ar uma imagem fugidia, parece propor Agnès. Senão da mão. Ela propõe ver o próprio filme no ecrã da vida. Acredita no elã que vem de uma vivência imediata. É o que chamou de “documentário subjetivo”, a partir de L’opéra Mouffe (1958), o primeiro filme em que sentiu fazer “o belo ofício de cineasta”. Nesse diário de impressões, a diretora grávida também gestava uma dialética com tomadas “improvisadas” e “ensaiadas” tornadas indiscerníveis (“uma forma de cinema, entre a verdade de um Cartier-Bresson e os devaneios de um cinema underground”) – “poderia se dizer que o real faz seu cinema” (ADRIANO, 1996, p.12). A pele enrugada da mão de Agnès remete à pele de Jacques Demy, em tributo de memória e amor graças ao cinema.2 No filme, seus cabelos remetem aos cabelos ao vento da curadora de um museu que trouxe para Agnès, sob o céu que ameaçava chuva, um quadro de glaneuses sob a tempestade. Agnès frisa que o achado casual deste quadro não foi truque de cinema. O tempo cinematográfico opera milagres inacreditáveis, como quase todos bons milagres: crer para ver. Os catadores e eu impregna-se de tempo como substância manifesta na corrosão da matéria descartável. Percebemos manchas e marcas do tempo ao longo do filme: no vazamento e no mofo no teto da casa de Agnès formando “pinturas abstratas”; no gesto dos pintores que reciclam objetos do lixo em suas obras; na figura do ativista que come do lixo por princípio ético; na efígie do homem com título de mestre que vende folhetos na estação de trem, come restos da feira e alfabetiza imigrantes.

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2. Foi na mesa de um café, durante o Festival de Tours (1958), que Varda conheceu o também diretor Jacques Demy, com quem se casou e viveu até a morte dele. Por essa época, via Demy, Varda conheceu Jean-Luc Godard. “Ele tinha dois prenomes de apóstolos e um nome incluindo Deus e Arte (Ard com um d para que se pudesse dizer árduo)”. Os casais Jean-Luc & Anna (Karina) e Agnès & Jacques costumavam passar as tardes de domingo jogando cartas (ADRIANO, 1996, p.12).


Agnès demonstra gosto e apuro ao filmar detritos. Ao achar na rua um relógio sem ponteiros, encontra um signo perfeito de tempo e resíduo. Outro signo perfeito é o que se converteu em símbolo do filme e guarda morfologia com a mão (também por sua conversão em ruga, “última e sublime”): a batata-coração. Catadores de detritos são mediadores e recicladores de tempos mortos, assim como o são pintores e cineastas com os refugos da imagem da realidade. Um uso justo de uma imagem desprezada? Um alimento dispensado e um livro descartado são objetos que a sociedade de consumo despreza segundo lógicas de eficiência e competência (a comida estragada deveria se jogada fora, mas um personagem de Agnès prova que não é bem assim): “É como se algum drop frame, aquele fotograma de compensação de sincronismo (na técnica do vídeo) fosse um elo perdido nos lapsos do tempo, um resto para driblar a duração da passagem e das duas faces da temporalidade” (ADRIANO, 2006, p.33). A proposição de Agnès para suas mãos, sobre a qual se debruça este artigo, existe apenas com a relação entre suas duas mãos: com uma filmar a outra. Este aspecto de interdependência sugere o tom para uma característica comum a tantos gestos e eventos do mundo dos humanos: o sentido do par, do diálogo, do compartilhamento, do pertencimento. Seria mesmo impossível viver sozinho ou não estaríamos condenados a viver juntos? O limite da fragilidade é o da dependência? Pareceu-me inevitável, no contexto deste artigo sobre o fotograma, não fugir de dois dados testemunhais que ligam o autor do comentário ao filme. Em 2000 meu curta-metragem A voz e o vazio: a vez de Vassourinha ganhou o prêmio de melhor documentário no 36o Festival Internacional de Cinema de Chicago; no mesmo ano Os Catadores e eu ganhou o mesmo prêmio na categoria de longa-metragem. Entre coincidências e serendipidades, os sentidos se oferecem ao escrutínio curioso. 3. Sobre este filme, ver o livro

de Barros (2014).

Ensaio poético de found footage, Vassourinha3 desacata o olvido e cata restos e fiapos de informação sobre o sambista paulista (19231942) – seus seis discos 78rpm, fotografias, partituras, notícias de jornal, programas de show e de rádio, documentos trabalhistas e de óbito – para compor uma constelação benjaminiana sobre a enigmática e evasiva figura, desconhecida na história da música popular brasileira. O verso “ninguém sabe”, do sucesso Emília, é loop-leitmotiv do filme. 258

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Não se pode fazer qualquer ilação sobre um deliberado juízo dos jurados que concederam os dois prêmios de melhor documentário (para longa e para curta), no sentido de uma manifestação proposta e propositada, ao escolherem dois filmes específicos que permitiriam articular um par, sobre a reciclagem e a permanência da imagem no mundo contemporâneo, mediado pelas indústrias da música e do vídeo. Mas não deixa de ser tentador apontar tal injunção. Catadores, eus, vozes, vazios. Também não posso deixar de fazer outro comentário pessoal. Em 2009, Adhemar Oliveira, Patricia Durães e eu organizamos o Seminário de Cinefilia em tributo a Bernardo Vorobow (19462009).4 Na programação de filmes, inspirados pelo homenageado, exibimos Os catadores e eu, pela beleza de cinema e o engajamento social, uma vez que Agnès expande de um “em si” para um libelo social de implicações humanitárias e planetárias. Dos veios de sua mão, ela abraça o mundo. Na palma da mão, a alma dos poros. O respiro à flor da pele, por um triz. A mão que cata é aquela que afaga; a mão que (re)colhe é aquela que escolhe. Agnès parece enunciar seu projeto de filmar a mão como quem interroga uma chance que se oferece ao alcance da mão, mesmo que seja oportunidade inapropriada ou fugidia. Na mão, ela encontra o eco da concha, o espelho côncavo que pode devolver, se não a imagem, ao menos o enigma dessa imagem. A ambigüidade é sinal de sentidos plurais e complexos, e não de signos confusos. As fronteiras entre avesso e “direito” (ou fundo e figura) mostram-se fluidas e cambiantes, jogos anti-ilusórios. Por que o contrário do avesso atende por um nome que traz uma qualidade do que é “certo”, “correto”? O avesso indica um risco, um perigo? O negativo. A imagem, em sua interface com o real ou o imaginado, tem esse dado do avesso. Qual o avesso da mão? O seu interior, como o da voz interior (ou off)? O filme de Agnès evoca várias pinturas, figurativas. Mas a partir da efígie da mão, a figura borra-se (como a figura da batata-coração transformase em potência de metáforas e alusões) e transborda. Transbordamento ou desregramento dos sentidos? Anamorfoses entre fundo e figura, avesso e direito, informes e conformes. A mão apalpa e procura. A mão aponta. A maçã do achado cai na mão pronta para acolhê-lo? A mão que recolhe está

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4. Em 45 anos, Bernardo Vorobow (a.k.a. “o poeta da programação” e “o sr. Cinemateca”, Carlos Reichenbach dixit) foi diretor e programador da SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca, quando esta funcionou no subsolo do Belas Artes, em sua época mais heróica, 1970-1975); coordenador de cinema do MAC-USP (1972-1976); criador, diretor e programador do departamento de cinema do MIS-SP (1975-1985). Criador e diretor do departamento de difusão da Cinemateca Brasileira (1982-1999), e ali programador até 2009. Formou diversas gerações de cineastas e cinéfilos. Apresentou ao público brasileiro autores e filmografias, dos clássicos aos desconhecidos. Devotava um amor imenso ao cinema. Como programador, era imensa e intensa sua generosidade em compartilhar. Consultar o Dossiê Bernardo Vorobow, editado por Alcino Leite Neto na revista Trópico, com textos de Carlos Reichenbach, Walter Salles e Carlos Adriano.


predisposta à recolha? Borrões de fronteiras, como as linhas da mão. Nelas adivinha-se um trajeto, um destino. A pele enruga para des(a)fiar a distensão no tempo. As ambiguidades da imagem. Como numa pintura de Magritte. Um espelho cego.

5. Aludo ao dispositivo Yerushalmi, comentado em Derrida (2016, p. 60).

A mão como objeto do filme e a mão como instrumento mediador. A mão que opera a câmera e a ilha de edição. A volta: por que se convencionou chamar esta voz de “voz off”? Uma voz que vem de fora do quadro, certamente; mas também não poderia ser uma voz que vem de dentro, do interior do corpo (da mente) da cineasta? Seria um “monólogo” (interior) que se trava “com”5 o espectador? E este comentário mesmo, acerca de tal imagem, não seria também um “monólogo com” o leitor do fotograma? Um fotograma é congelado de maneira a poder ser comentado: nesse processo de decupagem analítica, o fotograma vira fotografia – o que é uma volta ao princípio de que o cinema se constitui de uma série de fotografias fixas que, quando acionadas por um mecanismo apropriado (um projetor de filmes, por exemplo), geram a ilusão de movimento. Para ser capturado pelo comentário, é como se o fotograma devesse ser imobilizado. Ou que devesse voltar ao seu estatuto originário de fotografia, pré-filme.

6. Agnès Varda nasceu na Bélgica (1928), de origem grega e francesa. Formou-se fotógrafa. Fez fama com instantâneos de anônimos, de famosos (Ionesco, Fidel, Aragon), de lugares (China, Ouro Preto, San Francisco). Foi aluna de Bachelard (Sorbonne, 1946-47), cujos livros carrega sempre consigo “para protegê-la da imbecilidade” (ADRIANO, 1996, p.12).

O que não deixa de escoar – ou responder em eco críticocriativo – a fidelidade da cineasta à sua formação na fotografia6 (que até pode ser definida como instância de mediação entre o cinema e o tempo): Agnès denominou de “cinevardafoto” aquelas suas obras em que “as fotografias põem em movimento os filmes” (ADRIANO, 1996, p.12). Neste artigo, é um fotograma que põe em movimento o pensamento sobre o filme. Os sentidos sedimentamse no fotograma (ex-fotografia): o mistério intacto. Uma escritura cinematográfica curiosa, de inflexão existencialista e imanente, poderia ser a chave de uma predisposição generosa e magnética às coisas do mundo, eivada de urgências e insurgências iminentes. A diretora do filme afigura-se como demiurga provisória, aberta e predisposta aos caprichos e graças do acaso e do humor. Sua ética é sua profissão de fé: “Eu me vejo como uma autora sem certezas” (ADRIANO, 1996, p. 12). A fragilidade de um gesto derrotado da mão denuncia o fracasso da vida. A mão, junto com o pé, é talvez o único órgão humano que se oferece naturalmente à contemplação (no sentido de não ser preciso fazer malabarismos de postura nem torcer a vértebra

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para consumar o exercício da observação). A mão parece estar ao alcance da mão para os olhos, a pupila na ponta dos dedos, à própria visão de si mesmo, sem a necessidade de um instrumento (externo) mediador. Para olhar o próprio olhar (os olhos, o rosto), o ser humano precisa de um espelho. Quando Agnès observa sua mão, é como se esta fosse um espelho indicial e indexador de sua passagem pela vida. Um espelho da alma na palma da pele, no cerne da carne. No filme, diz a autora: “e as minhas mãos me dizem que estou perto do fim”. Dizem-no pela perda dos movimentos antes plenos, o dizem pela textura da pele puída. Mãos que testemunham uma contestação de vida. Ou resignação; consignação. As mãos são o elemento por essência da bricolagem, do fazer – portanto da poesia, poiesis. Que seja possível extrair quase todo um mundo (e quase todo um abismo e quase toda uma falésia) de pensamentos a partir deste fotograma da mão em Os catadores e eu é a demonstração da força desta imagem da mão gravada por Agnès, grávida de sentidos, de projeções, de metáforas, de alusões. Mesmo que não se possa extrair, ou ca(n)tar, tudo de todo. Ou quase. Impressão digital de enigmas.

REFERÊNCIAS ADRIANO, Carlos. O mistério de Varda. Folha de S. Paulo, Mais!, 22 set. 1996, p. 12. _______________. A catadora de temporalidades. In BORGES, Cristian et al (orgs.). Retrospectiva Agnès Varda: o movimento perpétuo do olhar. São Paulo: CCBB, 2006. BARROS, Rubem Rabello Maciel de. Poéticas de fragmentos: história, música popular e cinema de arquivo. São Paulo: Alameda, 2014. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. ESTÈVE, Michel. Agnès Varda. Paris: Lettres modernes Minard, 1991. FIANT, Antony; HAMERY, Roxane; THOUVENEL, Eric. Agnès Varda: le cinéma et au-delà. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 1995. LEITE NETO, Alcino (org.). Dossiê Bernardo Vorobow. Trópico, São Paulo, 9 set. 2009. VARDA, Agnès. Varda par Agnès. Paris: Cahiers du Cinéma, 1994.

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FORA DE


E CAMPO



Memórias de uma catástrofe em andamento: testemunhos em vídeo de violência policial na periferia Felipe Polydoro Professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB)

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Resumo: Multiplicam-se, nas redes, vídeos de violência policial nas periferias brasileiras captados pelos moradores. Tais testemunhos audiovisuais tomados em situações extremas, às vezes pelas próprias vítimas, evidenciam abusos outrora relegados à invisibilidade. Analisamos algumas dessas imagens a partir de duas perspectivas: 1) como evidência de fatos que se impõem à pauta midiática e produzem consequências jurídicas; 2) como memória traumática de condutas autoritárias e ilegais dos aparelhos repressivos. Além do conceito de trauma, valemo-nos, entre outros fundamentos teóricos, da divisão entre dois tipos de testemunho, descritos pelas noções de testis e supertestes. Demonstramos que a persistência histórica da violência encontra-se inscrita não apenas nos instantes de choque, mas também nas reações contidas dos sujeitos envolvidos. Palavras-chave: Política das imagens; Imagens amadoras; Testemunho; Representação da periferia. Abstract: There is a growing number of moving images capturing police violence perpetrated in the outskirts of Brazilian cities. These images taken in extreme situations, sometimes by the victims themselves, denunciate a set of abuses that were once condemned to invisibility. We intend to examine some of these images from two different perspectives: 1) as evidence of events that somehow invade dominant media producing legal consequences; 2) as traumatic memories of authoritative and illegal conducts of law enforcement officials. In addition to the concept of trauma, we use, among other theoretical bases, the division between two types of testimony, described by the notions of testis and supertestes. We demonstrate that the persistence of this kind of violence can be identified not only in the violence itself, but also in the subtle reactions of the different subjects involved. Keywords: Politics of the images; Amateur footage; Testimony; Representation.

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Na noite de 20 de fevereiro de 2015, um grupo de policiais militares do Rio de Janeiro, em uma operação na Favela da Palmeirinha, baleou e matou o adolescente Alan de Souza Lima, de 15 anos. Chauan Jambre Cezário, então com 19 anos, também foi baleado, mas sobreviveu. Lima, que no instante dos disparos filmava uma conversa descontraída entre amigos, documentou a própria morte. Após a irrupção abrupta dos tiros e a agonia do rapaz situado fora de campo, a câmera mantém-se ligada por mais sete minutos e meio, com um enquadramento fixo, gravando apenas os dados sonoros. O vídeo1 circulou massivamente nos espaços digitais, foi apropriado em reportagens jornalísticas e serviu para evidenciar a inocência dos rapazes, acusados de portarem armas. Neste artigo, discutiremos, nesta e em outras imagens amadoras de violência policial, tanto a propriedade de evidência documental a produzir efeitos nas mídias e no plano jurídico quanto o caráter de memória traumática sobre a violência reiterada contra populações periféricas brasileiras. Isto é: as práticas históricas de controle social por meio de violência ilegal praticada pelas autoridades públicas (PINHEIRO, 1991), uma repetição de ordem estrutural geralmente ocultada nas coberturas midiáticas. São testemunhos visuais que carregam duas propriedades: o valor de prova, associada à verdade factual, mas também a experiência subjetiva, traumática, dos sujeitos que vivenciam o horror dessa violência. Portanto, aludem a dois modelos diferentes de testemunho, descritos pelas noções latinas de testis e supertestes (SELIGMANN-SILVA, 2003), conforme veremos adiante. Essas imagens traumáticas, fortalecidas pelo valor de prova e pelo realismo da retórica amadora, possuem potencial de perturbar discursos e justificativas históricas para a violência policial – embora sejam incapazes, por si só, de provocarem transformações efetivas na cultura policial e reverter o apoio de parcela significativa da sociedade ao modelo linha dura de segurança pública. Ainda assim, produzem, ainda que momentaneamente, abalos nos discursos dominantes, efeito de imagem-dilaceramento (DIDI-HUBERMAN, 2012) que também servirá como um dos vetores das análises aqui realizadas. No já mencionado vídeo da Favela de Palmeirinha, as particularidades formais, ora a remeterem a uma violência insuportável, ora marcadas pelo ocultamento das ocorrências no plano visível, tornam o registro especialmente incômodo. Comecemos com uma análise mais detida dessa imagem.

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1. A versão do vídeo analisada neste trabalho está disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=Mm5E0zuZemE, acesso em 05/10/2020. Importante destacar que a legenda sobreposta à imagem, remetendo à página do Facebook do canal que divulgou o vídeo, encontra-se na versão original disponível no Youtube.


Embora fruto de uma única tomada, este longo plano possui três momentos distintos separados por modificações substanciais na imagem, o que gera um efeito de montagem interna. Na primeira parte, com duração pouco superior a um minuto, é quando efetivamente vemos os corpos e objetos presentes na cena. Aqui os quatro rapazes brincam em posições fixas. O cinegrafista aproxima a câmera de um, de outro, quase encosta a lente num garoto que conta uma piada, toca seu pescoço com a mão. Um minuto e quatorze segundos depois do início, a câmera se desloca para o lado direito e abandona a curta amplitude compreendida até ali. O comportamento da câmera e o barulho do vento no microfone indicam que o operador se move com rapidez. O enquadramento chacoalha, uma instabilidade de orientação vertical. O plano se torna abstrato: distinguem-se raios de luzes a cortar o fundo escuro. É em meio a esse caos visual que irrompem os tiros. Desde o primeiro disparo – são nove no total – notam-se clarões invadindo a imagem a partir do lado esquerdo. Dentro de uma lógica interna da imagem, a intervenção dos tiros é inesperada e gratuita. Não há uma causa a demandá-los como consequência; não há nexo causal com algum outro fato anterior. Dá-se logo após uma conversa descontraída e amistosa, sem qualquer anúncio ou preparo. A corrida parecia parte da brincadeira. Não vemos uma arma, não avistamos policiais ao longe. O operador simplesmente corre, movimento a princípio sem sentido. Os tiros irrompem em um instante de caos visual, no qual a imagem informa muito pouco e o som, fonte informativa mais confiável neste contexto, fornece dados inexatos de ocorrências situadas fora de campo. Irrompem primeiro e sobretudo como som: estampidos altos e secos, facilmente reconhecíveis, uma vez que familiares ao espectador contemporâneo. Os estampidos estão acompanhados, visualmente, de clarões. Primeiro um ponto brilhante e claríssimo no canto esquerdo; depois o plano inteiro tomado por uma coloração quase branca. Quando a imagem estabiliza-se, alguns segundos depois, vemos o plano muito aproximado de uma bicicleta caída no chão, provavelmente do cinegrafista. Sabemos que está caída porque, há alguns instantes, vimos a roda chocando-se contra uma superfície sólida e, ato contínuo, um punhado de areia voar contra a tela. Este primeiríssimo plano da bicicleta estatelada persistirá até o final do vídeo. O quadro exibe, na parte superior esquerda, um pedaço

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da roda e, em toda a metade inferior, um fragmento do aro. Isto é: de 1min30seg a 9min30seg, acompanhamos as ocorrências por meio de dados sonoros. Ouvimos nesses sete minutos – e apenas ouvimos: a agonia final do cinegrafista; as orações e lamentos do outro rapaz ferido; alguns diálogos entre os policiais, os rapazes e moradores; a remoção dos corpos.

Fig. 1: Na primeira parte do vídeo, a câmera media a conversa dos meninos

Dois aspectos sobressaem quando da emergência desse vídeo como um acontecimento midiático da atualidade, com repercussão nos espaços digitais e nos veículos de comunicação, seja na circulação da sua versão mais longa (sobretudo através de compartilhamento pelas redes sociais), seja na incorporação de alguns de seus fragmentos em matérias jornalísticas. A qualidade de evidência documental: a imagem que dá a ver a brutalidade protagonizada pelas forças do Estado e que também serve de prova da inocência dos rapazes alvejados pela polícia. E a singularidade subjacente à proeza trágica do rapaz que filmou a própria morte. A abordagem concentrada na natureza documental remete ao fato pró-fílmico, o assassinato no mundo histórico de um civil. Já o enfoque de ordem performática ressalta os detalhes envolvendo o processo de produção da imagem. A apropriação dos veículos jornalísticos realça, desta forma, a ambiguidade incontornável deste acontecimento: o relevo encontrado nos espaços midiáticos deve-se tanto ao interesse pelo fato em si (homicídio de um jovem inocente pela polícia)

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2. Notícia disponível em: http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2015/03/ pms-envolvidos-em-mortede-jovem-que-filmou-comcelular-sao-ouvidos.html. Acesso em 01/07/2020.

3. No original: “Narrative of its own making” (tradução nossa).

quanto pelo inusitado da construção da imagem. Neste segundo aspecto, inevitavelmente resvala-se para o sensacionalismo. Vide esta manchete do portal de notícias G1: “PMs envolvidos em morte de jovem que filmou com celular são ouvidos”.2 Aqui, Alan de Souza Lima é nomeado como aquele que “filmou com celular” a própria morte. Ou o título de uma das versões do vídeo armazenada no Youtube, aquela com mais visualizações e que será analisada mais detalhadamente aqui: “Jovem que foi morto no Palmeirinha pela polícia gravou a própria morte”. Portanto, há destaque maior à gravação da morte do que ao homicídio em si. Os exemplos em que o fato do assassinato e o fato da gravação do assassinato encontram-se amalgamados nos enunciados aludem, ainda, a uma particularidade formal das captações amadoras: a presença de uma câmera diegética e a inclusão do cinegrafista como personagem da cena. Mesmo quando os corpos, objetos e ações registradas situam-se à distância, as marcas da estética amadora – instabilidade, imagem granulada, enquadramento precário, luz insuficiente – repisam constantemente a existência da câmera e de um operador; frequentemente, este fala ou produz outros ruídos, por exemplo. As filmagens factuais amadoras constituem-se, assim, de duas narrativas: aquela do fato narrado e outra, a “narrativa de sua própria feitura” (WEST, 2005, p. 87).3 Neste caso, no qual o desenlace violento vitima o próprio operador durante o processo de filmagem, as duas narrativas estão particularmente intrincadas.

Fig. 2: No momento dos tiros, vê-se apenas a luminosidade do flash do celular

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Transparência e opacidade Uma perspectiva documental positivista, interessada em conhecer os pormenores tal como se deram no mundo histórico – uma perspectiva que constrói o fato – encontrará, neste vídeo violento tomado na Favela da Palmeirinha, poucas provas transparecidas na dimensão do visível. Embora tratado pela imprensa como uma evidência, este registro, dentro de um viés «ocularcêntrico», caracteriza-se pela opacidade na restituição do ocorrido. As informações visuais são pouco elucidativas quanto aos detalhes envolvendo as ocorrências na duração da filmagem. Os fatos mais relevantes situam-se fora de campo: a chegada dos policiais, a corrida do cinegrafista, os disparos, a queda dos corpos alvejados, os corpos feridos caídos no chão, o corpo morto. Na contramão de um regime do visível dominado pela evidenciação pornográfica da violência, este documento visual tomado no olho do fato mantém as ocorrências ocultas. Não há, no campo de visão, cenas grotescas, violência explícita, corpo ferido ou cadáver. É uma imagem que apela a outras sensibilidades que não a visão. A partir de certo momento, convoca a uma espécie de mergulho na cena, tendo em vista o predomínio do sonoro, caracterizado pela ausência de limites físicos – ao contrário do visual, limitado pelo quadro. Neste caso, mais do que em outros vídeos amadores, a ênfase recai sobre o ponto de escuta, o equivalente em termos auditivos ao ponto de vista.

Fig. 3: O vídeo permanece nesta posição por mais de sete minutos: apenas ouvimos o que acontece

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4. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=fg3GrfR2wiQ. Acesso em 01/07/2020. 5. A interpretação deste vídeo como portador de uma verdade do fato e, portanto, agente de justiça e correção está expressa no título deste texto do jornal francês Le Monde traduzido e publicado pelo portal Uol: “Policial branco assassina negro nos EUA. E se não houvesse vídeo?”. Link para o texto: http://noticias. uol.com.br/internacional/ ultimas-noticias/ le-monde/2015/04/09/ policial-branco-assassinanegro-nos-eua-e-se-naohouvesse-video.htm. Acesso em 01/07/2020. 6. Alguns comentários na página do vídeo no Youtube afirmam que algum deles portava um rádio, equipamento usado na comunicação entre traficantes. No entanto, outros comentários desmentem a informação, sustentam que era um guidão de bicicleta. Interessante como esses espaços de comentários viram uma espécie de análise coletiva e conflituosa dos vídeos, numa mistura caótica de opinião com leitura de evidências, onde há por vezes uma perícia coletiva do vídeo. 7. Outra consequência da

divulgação do vídeo foi a exoneração do comandante do 9o Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, tenente-coronel Luiz Garcia Batista (COELHO, 2015).

Para efeito de comparação, vejamos o vídeo amador que capta o disparo fatal do policial norte-americano Michael Slager contra Walter Scott,4 fato de grande repercussão nos Estados Unidos. Um policial mata, pelas costas, um suspeito negro desarmado. O enquadramento aprofunda o campo e organiza o espaço de maneira a incluir no mesmo quadro os dois personagens, o policial e o suspeito, nos instantes-chave da cena, os momentos do disparo. É essa presença contígua a garantia maior da veracidade do registro: não resta dúvida de que o policial Slager alvejou um Scott que corria na outra direção, pois está tudo enquadrado no mesmo plano, um típico plano-sequência. Trata-se de uma imagem em que “o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de um ou mais fatores da ação” (BAZIN, 2014, p. 92) – e cuja montagem ficaria proibida, conforme a famosa lei baziniana. O “essencial do acontecimento”, neste caso, diz respeito à evidência empírica a comprovar uma verdade factual. O operador está a uma certa distância, o que lhe permite filmar sem ser visto. No momento dos disparos, no centro do enquadramento, entre o policial que atira e o suspeito alvejado, há um enorme tronco. A filmagem dá-se, literalmente, de trás da árvore. É uma tomada de câmera escondida, posicionada ao longe, sobre a qual os agentes filmados não têm consciência. Este desconhecimento evidenciado na imagem é central na produção de sentido: ao mesmo tempo em que mostra a ação em si – injusta, desproporcional na agressividade – sublinha o caráter revelador dessa imagem técnica e o feito do operador, o herói da cena.5 No vídeo brasileiro, ainda que opaco, as evidências permitem responder a algumas questões específicas impostas à imagem, produzindo efeitos relevantes na vida civil. Os meninos foram acusados de trocarem tiros com os policiais, que invocaram legítima defesa. A delegada do caso viu nas imagens a prova de que os rapazes não portavam armas ou estavam vinculados a traficantes6 (COELHO, 2015). Isto é, pragmaticamente falando, a imagem provoca uma inversão no processo judicial: os rapazes agora são as vítimas e os réus, os policiais.7 Neste sentido, é um registro tratado como portador de uma verdade de ordem factual, que corrige e revela a farsa dos policiais envolvidos, verdade sustentada e entendida como oposição a uma mentira. Um instrumento de revelação e de justiça; de correção. Uma noção de verdade de fundamento relacional, capaz de responder a questões específicas:

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os meninos estavam ou não armados, ameaçavam ou não os policiais. Conforme Xavier (2003, p. 33), quando se questiona a evidência empírica de uma imagem, não estamos “discutindo sua verdade em sentido absoluto, incondicionado”, mas em busca de soluções condicionadas pela imagem e pelo espectador. No julgamento dos policiais estadunidenses acusados de agredir o taxista negro Rodney King, em 1991 em Los Angeles, a estratégia dos advogados de defesa foi exatamente o de promover uma batalha ao nível da significação do vídeo que flagrou a violência, um acontecimento clássico de filmagem factual amadora.8 Dotado de uma câmera VHS, um cinegrafista não-profissional chamado George Holliday captou, da sacada de seu apartamento, King caído e rodeado de policiais, golpeado dezenas de vezes com bastões de ferro. Ele havia sido parado por excesso de velocidade e reagira com alguma agressividade. Em vez de rejeitar o vídeo, a defesa dos policiais tomou-o igualmente como prova e formulou outra narrativa a partir desses mesmos dados brutos. Nessa versão alternativa fabricada pela defesa, um Rodney King enfurecido tentava agredir policiais tecnicamente bem preparados, que manejavam seus bastões de modo a mantê-lo deitado. Ao controlá-lo dessa maneira, à distância, os guardas teriam evitado o uso de armas fatais. Isto é: nesta versão, os golpes de bastão salvaram a vida de King. Formado predominantemente por brancos e sem nenhum negro entre seus membros, o júri absolveu os quatro policiais, desencadeando uma onda de protestos violentos nos quais, segundo o jornal Los Angeles Times, morreram 63 pessoas (MOORE, 2012).

Fig. 4: No vídeo estadunidense, o plano enquadra tanto o policial que atira quanto o suspeito que corre

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8. Há uma versão do

vídeo neste link: https:// www.youtube.com/ watch?v=sb1WywIpUtY. Acesso em: 01/07/2020.


9. No original: “Symptom

in need of diagnosis” (tradução nossa).

Para Nichols (1994), o equívoco dos promotores de acusação residiu na crença de que o vídeo consistia numa evidência crua que falava por si mesma, uma prova da culpa policial sem possibilidade de refutação, quando o recomendável seria considerar a fita “um sintoma que necessita de um diagnóstico” (p. 22).9 Por mais evidente que a agressão parecesse ao observador, a conclusão sobre o excesso resulta, sobretudo, de um quadro interpretativo que se impõe de fora da imagem, ainda que as ações inscritas no vídeo possam servir de resistência a certas narrativas. Na verdade, o enfoque da análise de Nichols (1994) encontra-se menos em provar a agressão a King e mais na imagem como sintoma de uma condição social de exclusão e humilhação mais ampla, que exigiria uma resposta profunda no nível estrutural muito além da penalização dos policiais. Para além de um caso específico de abuso do poder repressivo, o vídeo também consistia em um “testemunho visível, repetível e absolutamente incontrolável” de um tipo de brutalidade comum que, adquirindo visibilidade, toca “um nervo exposto” (THOMPSON, 2011, p. 311). Foi este excesso ligado à experiência coletiva que fez explodir as revoltas uma vez divulgada a decisão do júri.

Imagem e testemunho Inseridos em plena batalha discursiva sobre seu significado atual e histórico, tratados topicamente pelo jornalismo praticado pelas grandes empresas de comunicação (que hesita em associá-los seja num plano sincrônico, seja diacrônico) os flagrantes brasileiros de violência na periferia carregam o mesmo tipo de excesso. São registros potentes em duas temporalidades e duas acepções de verdade: aquela relativa à elucidação dos detalhes sobre cada um desses fatos trágicos e outra noção, aqui chamada de traumática, referente à repetição do horror dessa violência. Uma divisão conceitual comum nos estudos sobre o testemunho pode ajudar na compreensão do valor e dos efeitos de cada uma dessas acepções. Conforme Seligmann-Silva (2003), há duas palavras em latim para o termo testemunho, cada qual com um significado próprio. Testis designa um modelo de testemunho direcionado à verificação da veracidade dos fatos, ao esclarecimento exato dos detalhes por

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meio de evidências e provas, cujo propósito declarado de busca da verdade é indissociável de uma retórica do convencimento. Trata-se da noção de testemunho tipicamente jurídica, interessada em separar o verdadeiro do falso em nome da justiça, em um contexto em que elementos ficcionais são sinônimo de mentira. Valoriza-se aqui acima de tudo o depoimento de terceiros, das testemunhas oculares. Não à toa, a visão é especialmente relevante. “Etimologicamente, testis é aquele que assiste como um ‘terceiro’ (terstis) a um caso em que dois personagens estão envolvidos” (BENVENISTE apud SELIGMANNSILVA, 2005, p. 80). O termo supertestes, por sua vez, define o testemunho daquele que vivenciou uma experiência limite envolvendo o risco contra sua vida, uma catástrofe ou provação (ou proximidade da morte). É o sobrevivente que relata o próprio sofrimento, uma descrição temporalmente posterior ao evento, muitas vezes voltada a articular esta experiência extrema em alguma forma de linguagem, geralmente oral. Benveniste observa que “supertestes descreve a ‘testemunha’ seja como aquele ‘que subsiste além de’, testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como ‘aquele que se mantém no fato’, que está aí presente” (apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81). Segundo Seligmann-Silva, “o ‘manter-se no fato’ do superstes remete à situação singular do sobrevivente como alguém que habita na clausura de um acontecimento extremo que o aproximou da morte” (2005, p. 81). Portanto, diferentemente da testemunha como testis, que ocupa a posição distanciada de um terceiro, o sobrevivente agrega o episódio violento como componente indistinguível de sua subjetividade. Nesta concepção, a memória catastrófica acompanha permanentemente o sujeito, encontra-se sempre presente, por vezes em estado latente, jamais manifesta integralmente no discurso.

O modelo do testemunho como testis é visual e corresponde ao modelo do saber representacionista do positivismo, com sua concepção instrumental da linguagem e que crê na possibilidade de se transitar entre o tempo da cena histórica (ou a “cena do crime”) e o tempo em que se escreve a história (ou se desenrola o tribunal). (...) Ao nos voltarmos para o paradigma do supertestes, os valores são outros. Aqui pressupõe-se uma incomensurabilidade entre as palavras e essa experiência da morte. (...) Nessa cena do testemunho como supertestes, o presente do ato testemunhal ganha a precedência (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 81).

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10. Embora as punições

aos policiais ainda se restrinjam a penas de ordem administrativas e, muitas vezes, os processos criminais não resultem em condenação. 11. Há uma versão deste vídeo neste link: https:// www.youtube.com/ watch?v=uT8RZU9WcfQ. Acesso em 01/03/2019.

Os flagrantes de violência policial na forma de vídeo digital que testemunham os fatos na sua própria duração da perspectiva de um cinegrafista e, desta forma, restituem as ocorrências neste plano visual, remetem aos dois sentidos do testemunho. Em primeiro lugar, ao paradigma visual do testis: como evidência factual, a maior parte das vezes com consequências efetivas no plano jurídico e repercussão midiática,10 sobretudo quando o cinegrafista não se encontra envolvido diretamente nos abusos retratados. É o caso de um vídeo captado por uma cinegrafista anônima no Morro da Providência, também no Rio de Janeiro.11 A operadora situa-se numa posição alta, a uma certa distância do ponto onde três policiais rodeiam o corpo recém baleado do jovem Eduardo Felipe dos Santos Victor. A filmagem registra o momento em que os policiais, ao disparar repetidamente uma arma acomodada na mão do corpo inerte, tentam forjar uma troca de tiros com o rapaz alvejado. Nota-se, pela conversa da cinegrafista com outra mulher, que elas não conhecem o menino. Portanto, é um registro de uma terceira que documenta um fato, evidência que acaba por cumprir uma função jurídica. Mas a experiência como um todo remete ainda ao testemunho como supertestes. Moradora da mesma favela, potencial alvo de violência semelhante e tendo passado pela experiência deste testemunho em que sua própria vida esteve em risco, a cinegrafista também passa a ter o estatuto de sobrevivente colado a sua subjetividade. Ela diz ao fundo jamais ter presenciado um assassinato. Em seguida, insiste que continuará filmando – ainda que o trabalho exija esforço físico – porque o rapaz poderia ser um filho seu. A imagem é registro audiovisual a presentificar o instante mesmo de horror e, ao mesmo tempo, memória, resíduo que sobrevive e descreve visualmente o ocorrido.

Fig. 5: Cinegrafista amadora flagra policiais a forjar tiroteio em favela do Rio de Janeiro

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Nos estudos sobre o testemunho comumente privilegia-se a linguagem verbal, seja a palavra da testemunha ocular que presenciou o acontecimento (testis), seja, no supertestes, a do sobrevivente que relata, em primeira pessoa, seu próprio encontro violento (o depoimento oral tem a primazia sobre o escrito). Há uma desconfiança em relação à imagem e ao visual, dado que “reduzir o testemunho ao paradigma visual, falocêntrico e violento” poderia estar associado a uma “espetacularização da dor”.12 SeligmannSilva, porém, argumenta favoravelmente à complementariedade entre testis e supertestes:

Minha proposta é entender o testemunho na sua complexidade enquanto um misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar: um elemento complementa o outro, mas eles se relacionam também de modo conflitivo (2005, p. 82).

No caso de Alan de Souza Lima, tendo em vista a sobrevivência do registro imagético, o menino acaba autor do testemunho do próprio assassinato. Ele não pode dizer sobre o que vivenciou, mas legou uma imagem tomada de seu ponto de vista, da perspectiva menos do olhar do que do corpo, sobre o horror experienciado – dada a regularidade deste tipo de violência, o legado é também documento da catástrofe até aqui insolúvel dos excessos do poder repressivo. Uma vez que o vídeo foi incorporado em reportagens jornalísticas, disponibilizado no Youtube e compartilhado em perfis de redes sociais, Alan, depois de assassinado, tornou-se também um sujeito nos espaços midiáticos – o elemento performático do registro da própria morte influenciando a repercussão sensacionalista do acontecimento. O efeito de real produzido pela filmagem amadora e as marcações a apontar para o estive lá potencializam o estatuto de testemunho, enquanto a câmera subjetiva estimula a identificação por parte de um espectador cujo olhar é cooptado pela imagem. Somos nós que olhamos e nós os atingidos; porém, uma vez a câmera caída, estática, o cinegrafista já atingido, ouvimos todas as decorrências ao fundo. Uma vez que as ocorrências dão-se todas fora de campo, não há, como em outras imagens chocantes, o efeito traumático provocado pela visão direta da violência que “interrompe a linguagem e bloqueia a significação” (BARTHES, 1990). Quase

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12. Seligmann-Silva, 2005, p. 82.


insuportável, aqui, é o som gutural da agonia do adolescente, que contrasta com a fala articulada do outro rapaz alvejado (o som surge logo depois dos disparos e da estabilização da imagem e desaparece em seguida). 13. Conforme Chion (2008),

o termo acusmático, de origem grega, designa uma circunstância em que ouvimos o som sem ver sua causa originária.

14. O Sonderkommando (literalmente, “comando especial”) era um grupo constituído predominantemente por prisioneiros judeus que tinha por função executar trabalhos envolvendo o extermínio em massa nos campos de concentração nazistas. Respondia por tarefas tais como: carregar os corpos das câmaras de gás até os locais de cremação, operar os fornos, limpar as câmeras, entre outros (DIDIHUBERMAN, 2012).

Chama a atenção no longo trecho acusmático13 que se segue à queda da câmera e dos corpos a contenção nas falas dos moradores no trato com os policiais. O resguardo aparece inclusive no tom ponderado das vozes e nos lamentos ditos de modo lateral sobre os rapazes, qualificados de “trabalhadores” – tal prudência é furada em apenas um instante, quando uma mulher, voz distante, direciona xingamentos aos PMs. Já as vozes dos policiais são firmes e autoritárias, sempre a emitir frases no imperativo. O horror está evidenciado não apenas nos momentos de choque, de violência intensificada – a intrusão súbita dos tiros, a agonia dos rapazes – mas também nas reações cautelosas dos moradores da Favela da Palmeirinha, a revelar o medo já incorporado pela regularidade dos abusos. As falas dos policiais revelam a preocupação imediata de justificar os tiros, mostrando um reflexo condicionado de construção da legítima defesa. Este registro visual inscreve a relação entre a periferia e as forças policiais, desde a invasão dos campos visuais e sonoros pelos tiros (que, ao contrário do que parece, não é acidente ou acaso) até as falas controladas, sem intensidade. Bem observado, informa, no que há de automatizado nas reações, o temor e a opressão presentes nas relações entre os aparelhos repressivos do estado e os moradores dessa região de periferia. Convivem na mesma imagem o excesso da brutalidade comum (que aparecia no caso Rodney King e se repete em centenas de outros exemplos) e o resguardo excessivo decorrente do risco físico real e do abismo de poder entre os agentes envolvidos – a contenção geral também é testemunho da ausência de solução institucional para esse tipo de conduta autoritária.

Imagens que perturbam consensos No seu estudo sobre quatro fotografias do campo de extermínio de Birkenau tomadas secretamente por um membro do Sonderkommando,14 do interior de uma câmara de gás, Didi-Huberman tem o cuidado de afirmar o estatuto lacunar,

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fragmentário, inexato da verdade dessas imagens, “fragmentos arrancados [do real], pedaços peliculares” (2012). A noção de verdade aqui em jogo transcende a dimensão temporal e espacial do fato, da correspondência fiel entre um enunciado e um estado de coisas do mundo. Não se trata apenas de afirmar a incapacidade das descrições factuais em geral (visuais, verbais) de fornecer uma visão integral do ocorrido, em virtude de sua inescapável subjetividade. Qualquer enunciado sobre um acontecimento limite – mesmo registros visuais que flagram um instante do horror na sua própria duração – oferecerá no máximo um vislumbre do que foi a experiência de vivenciá-lo. Uma verdade parcial em comparação a uma verdade impossível de ser representada ou dita. É o caso de Auschwitz, horror inominável, irrepresentável. Na reflexão sobre essas imagens, Didi-Huberman separa a imagem-véu fetichista da imagem-dilaceramento, “que deixa entrever um fragmento do real”. Ou seja, fiando-se na teoria de Lacan, propõe a aptidão de certas imagens tocarem no real e, dessa forma, desafiarem consensos, “perturbarem fronteiras” (2012, p. 108).

Ao olhar para as quatro fotografias de Birkenau como imagens-dilaceramento e não como imagens-véu, como a exceção e não como a regra, podemos ver nelas um horror nu, um horror que nos deixa tanto mais inconsolados quanto não exibem as marcas hiperbólicas do “inimaginável”, do sublime ou do inumano, mas as da humana banalidade a serviço do mal mais radical (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 109).

As imagens-véu operam no nível do lugar-comum, das ideias já prontas, da atratividade fácil e superficial, dos consensos, dos clichês, das mercadorias. Porque domesticadas, conformadas, entregues a uma lógica consumista, são desprovidas de verdade – ao contrário das imagens que dilaceram, incomodam, abalam os consensos, desafiam as normas e os poderes. O lugar privilegiado dessas “imagens que velam” é a comunicação de massa: “Da cobertura jornalística ao culto mediático, da constituição legítima de uma iconografia à produção abusiva dos ícones sociais, frequentemente não vai um passo” (DIDIHUBERMAN, 2012, p. 95).

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A cobertura jornalística do assassinato de Alan aproxima-se mais do véu do que do dilaceramento. Ao realçar a coincidência trágica do adolescente que filmou a própria morte e ao atribuir a este aspecto contingencial o traço verdadeiramente singular do fato, trata-o como fait divers – caracterizado, conforme Barthes, por uma estrutura imanente, “que não remete formalmente a nada além de si próprio” (1999, p. 59). A concentração excessiva nos apelos performáticos, na peripécia trágica e mórbida, contribui para uma apreciação espetacular e sensacionalista do ocorrido. Já o vídeo completo que circulou nas redes sociais e encontrase armazenado no Youtube possui a capacidade de abalar a ordem instituída que Didi-Huberman (2012) atribui às imagensdilaceramento. A recusa de dar a ver que perpassa esse registro visual vira também uma espécie de alegoria do estatuto dessa violência policial na periferia, cujos detalhes e motivações jamais são integralmente expostos aos holofotes e debatidos frontalmente nos espaços políticos e na mídia tradicional, apesar dos esforços de muitos agentes políticos – e da proliferação de testemunhos e de evidências documentais como os vídeos analisados neste artigo. No vídeo de Palmeirinha, temos a presença das duas acepções de trauma: o choque violento contra o corpo e a inscrição em imagem de uma entre tantas violências, presentes e passadas, contra a população pobre e negra no Brasil. Típico exemplo de memória traumática: “que permanece não disponível para a consciência, mas intromete-se sempre na visão” (CARUTH, 2000, p. 111). O realismo carregado destes registros eficazes na presentificação das experiências captadas adequa-se à descrição do modo de representação do trauma na psicanálise freudiana. Não há deslocamento figurativo ou simbolização dos fatos vivenciados, mas reprodução literal: revê-se e revive-se a experiência tal qual se deu no vivido, mesmo quando a imagem invade os sonhos. É a mesma imagem a insistir. Ao mesmo tempo, por persistência de posturas autoritárias e falta de vontade política de se enfrentar os mecanismos de manutenção de privilégios (PINHEIRO, 1991), não há articulação e compreensão dessas experiências nos espaços institucionais. Não se trata apenas da possibilidade de um vídeo específico, como este de Palmeirinha, ser visto, revisto e compartilhado nos espaços digitais. Mas, principalmente, da repetição de diferentes registros visuais, que captam novos acontecimentos envolvendo homicídios e torturas de populações periféricas – sobretudo de

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corpos negros e pardos – por parte da polícia, sem, no entanto, produzir consequências efetivas nos planos institucionais e políticos que transformem essa conduta autoritária. Se por um lado não avançam as transformações na lógica das políticas de segurança pública que poderiam interromper a violência ilegal do estado, de outro temos esses registros visuais a vazar repetidamente no espaço público, frequentemente nas redes sociais. Este vazamento anônimo das mídias digitais que por vezes parece obra de um autômato, sem autor, sem sujeito, uma imagem que simplesmente aparece, uma operação que parece obra não de um eu mas de um isso. Em suma: enquanto não se trata amplamente o problema à luz do dia, as evidências do horror seguem aparecendo, insistindo em vazar.

Considerações finais Os vídeos aqui analisados ocupam ao mesmo tempo o papel de memória e registro da atualidade, dado tratarem-se de uma catástrofe em andamento. Inserem-se em uma batalha de discursos vigente hoje que engloba inclusive o ato de nomear o acontecimento, no sentido amplo e forte, ao qual estes fatos se vinculam. Grupos ativistas de direitos humanos e combate ao racismo nomeiam de genocídio contra a população negra, tal a amplitude da violência contra negros que moram na periferia (SILVA; DARA, 2015). Neste prisma, o vídeo que captura a execução de Alan é uma verdade lacunar, aguda e reveladora sobre o horror desse genocídio de jovens negros. Testemunho visual sobre o que é viver sob o jugo de um poder violento que invade subitamente o cotidiano e interrompe vidas. O Holocausto, evento que baliza tantas discussões sobre os limites da representação, é um fato histórico cujo discurso encontra-se estabilizado. Aconteceu e foi uma política de Estado. Negar sua ocorrência inclusive é crime em alguns países. É ético ser espectador das imagens de evidência dessa experiência cujo cerne de sofrimento e horror é irrepresentável? Imagens violentas como os registros da morte de Alan de Souza Lima e tantos outros colocam questão parecida. Convivem na internet com inúmeras outros vídeos realistas violentos cujo interesse despertado parece residir numa curiosidade discutível por parte dos espectadores.

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Todavia, uma vez que esses flagrantes são reflexo de políticas de segurança cuja narrativa é fruto de disputas discursivas calcadas na distribuição entre visível e invisível, a relevância das imagens ainda ocupa uma posição anterior: a de simplesmente provar a existência do acontecimento. Conforme Pinheiro (1991), os procedimentos ilegais e os excessos de violência contra as classes populares brasileiras compõem um poder cuja lógica está calcada na dissimulação. O controle social funciona porque jamais os motivos reais – isto é, o caráter de mecanismo de controle – vêm efetivamente à tona. Os agentes repressivos se valem normalmente das justificativas da legítima defesa e da resistência seguida de morte. Como esses episódios dificilmente são investigados, pois submetidos à Justiça Militar, os perpetradores de práticas como tortura e homicídio de suspeitos não só ficam impunes, como sentem-se autorizados a essas práticas. Como vimos, a impunidade pode ser revertida em situações em que alguma câmera flagra condutas ilegais. Em vídeos como o da tragédia de Alan de Souza Lima, a eficácia política reside, em primeiro lugar, nessa dimensão de prova, por sua vez relacionada à tão questionada objetividade do registro visual e ao testemunho como testis (testemunha ocular). Há outra dimensão nessas imagens, esta subjetiva, ligada à experiência de quem convive com essa violência cotidianamente: o testemunho como supertestes. A escrita de si que emerge desses vídeos crus de flagrante, à parte a força de prova, é de pouca autonomia, uma opção meramente reativa que os novos dispositivos tecnológicos oferecem a populações que pouco conseguem fazer para defender-se desses abusos pelos meios institucionais e jurídicos convencionais. No caso do vídeo de “autoria” de Alan, o horror está potencializado pela morte ao vivo do próprio cinegrafista, numa câmera subjetiva. Imagem que, se prova sua condição de vítima, também mostra a dificuldade de um jovem negro de periferia em escrever sua própria história fora desse círculo de violência.

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A vida-lazer como vontade de futuro Vinicios Kabral R ibeiro Professor adjunto e atualmente chefe do Departamento de História e Teoria da Arte (BAH/EBA) da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, Mestre em Cultura Visual e graduado em Comunicação Social, ambos pela Universidade Federal de Goiás.

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Resumo: Vida-Lazer é um termo êmico que surge em Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) e reaparece na parceria de Aïnouz com o cineasta Marcelo Gomes, em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009). Em diálogo com O céu de Suely, Praia do Futuro (Ainouz, 2006 e 2014) e Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) pretendemos, assim, contribuir com o debate sobre as questões que mobilizam o cinema e o mundo contemporâneo, tais como as relações entre arte e vida, as novas formas de pertencimento e vinculação, os projetos de vida e a felicidade. O que é um personagem vida-lazer? Como esta noção e a fala de personagens se articulam com a ideia de futuro e com os projetos de vida no mundo contemporâneo? Palavras-chave: Vida-lazer; cinema brasileiro; gênero; sexualidade. Abstract: Leisure-Life is an emic term that first appears in the movie Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002), and, later, reappears in the partnership between Aïnouz and the filmmaker Marcelo Gomes in the movie I Travel Because I Have to, I Come Back Because I Love You (2009). We will also construct a dialogue between those two movies and others, such as Love for Sale and Futuro Beach (both Karim Aïnouz, 2006 and 2014) and Tattoo (Hilton Lacerda, 2013). The objective of this research is to take part on the debate of subjects that are importat to the critical thought of cinema and the contemporary world, such as the relationships between art and life, the new ways of belonging and association, and the ideas of life projects and happiness. What is a leisure-life character? How does this idea and the speech of a character are connected to happinnes future and life projects in the contemporary world? Keywords: Leisure-life. brazilian cinema. Gender; sexuality.

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Uma das minhas maiores perturbações, enquanto criança marcada pela certeira homossexualidade futura, era a impossibilidade de ter um relacionamento, ficar sozinho, morrer e ir para o inferno. Mesmo que aos nove anos de idade eu não entendesse uma coisa ou outra, eram esses os cruzamentos ditos possíveis para uma vida gay. Essas certezas se acentuavam com a ausência de imagens e de pluralidades de formas de vidas, bem como com a hostilidade do ambiente familiar, escolar e social, que me distanciavam de uma vida-lazer.1 Filadélfia (Jonatham Demme, 1993), na infância, e Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), na adolescência, corroboravam com essa sensação de morte e solidão. Existiam outras produções com representações mais positivas da homossexualidade, com abordagens diferentes, mas não circulavam com facilidade. A cidade em que cresci, Caldas Novas, ao sul de Goiás, contava com poucas locadoras de VHS e DVD. Os acervos eram restritos a filmes comerciais e, eventualmente, era possível encontrar algo como Ken Park (Larry Clark, 2002) ou E Sua Mãe Também (Alfonso Cuarón, 2001). Lembro-me de uma tarde do primeiro semestre de 2014, quando um amigo e eu fomos assistir Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014). Senti saudades e nostalgia. Acabava de ver um filme que, se existisse há dez anos, teria evitado muitas feridas e frustrações. Não que o cinema fosse capaz de erradicar a homofobia ou mediar meus conflitos domésticos, mas por acreditar que alguns filmes poderiam ofertar novas formas de entender e ver o mundo que me cercava. Como criança afeminada, monstruosa e violentada, demorei muito tempo a entender e a reelaborar certas narrativas que foram contadas e impostas. Eu sentia vergonha da minha voz, do meu corpo, dos meus questionamentos e dos meus desejos. Quando nos mudamos de Mutunópolis, norte de Goiás, para Caldas Novas, senti um grande alívio. Ficavam para trás os abusos sexuais e as humilhações. Era o que eu imaginava. Contudo, uma reconciliação plena com minha existência só se daria mais tarde, durante a graduação, no ambiente universitário. Eve Sedgwick (1991), em um artigo em que discute os pânicos morais em torno da criança afeminada, chama atenção para a vigilância de gênero e sexualidade que se instauram no

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1. A expressão vida-lazer

surge em Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) e reaparece na parceria de Aïnouz com o cineasta Marcelo Gomes em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009). Tabu, cronologicamente pelo lançamento do filme, é a personagem que fabula inicialmente a expressão que dá título à pesquisa. Seu sonho é “comprar uma máquina Singer, de pedal, pra costurar as fardas do meu anjo de bondade, meu marido. E viver uma vida-lazer”. Já Patty, em Viajo Porque Preciso (2009), deseja uma casa para ela e sua filha, um companheiro que a tire da prostituição, e assim viver sua vida-lazer. Neste artigo busco dialogar com outros filmes onde a expressão vida-lazer não aparece, mas seus sentidos podem ser percebidos: o sonho, a busca pela felicidade e as vidas marcadas pela precariedade e sexualidades fora da norma heterossexual. O presente artigo é fruto da tese Vidalazer: respostas sensíveis do cinema brasileiro ao espírito do tempo, defendida em 2016, no PPGCOM da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.pos.eco. ufrj.br/site/download. php?arquivo=upload/ tese_vribeiro_2016.pdf. Acesso: 19 nov 2020. Como forma de debater a noção “vontade de futuro”, analiso excertos dos filmes O Céu de Suely e Praia do Futuro(Karim Aïnouz, 2006 e 2014) e Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013). Menciono também o longa Pelo Malo (Mariana Rondón, 2014) e o curta Amanda e Monick (André da Costa Pinto, 2008).


2. Sobre a questão da infância, em uma perspectiva de pessoas LGBTQIA+, Adriana Azevedo, Diego Paleólogo e eu organizamos recentemente o dossiê Tornar-nos crianças: auto/ etnografias, cuidados e reparações, com discussões urgentes na construção e reelaboração das nossas imagens, de nossas memórias, vivências escolares, familiares e espectorialidades. Disponível em: https:// periodicoscientificos.ufmt.br/ ojs/index.php/rebeh/article/ view/11028. Acesso: 19 nov 2020.

3. “There is a danger, however, that that advance may leave the effeminate boy once more in the position of the haunting abject--this time the haunting abject of gay thought itself. [...] In this case the eclipse of the effeminate boy from adult gay discourse would represent more than a damaging theoretical gap; it would represent a node of annihilating homophobic, gynephobic, and pedophobic hatred internalized and made central to gay-affirmative analysis. The effeminate boy would come to function as the open secret of many politicized adult gay men” (tradução nossa).

corpo infantil. Essa vigília tem como objetivo coibir qualquer manifestação de desvio da norma sexual e preparar o terreno para a heterossexualidade compulsória. Um dos grandes efeitos desse processo de monitoramento corporal da performance de gênero é o auto-ódio e a invisibilidade da criança afeminada2 nos debates e pautas políticas dos movimentos de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, queer, intersexuais, assexuais LGBTQIA+. Sedgwick reforça que, ao mesmo tempo que temos conquistado espaços significativos nas pautas de gênero e sexualidades:

Existe o perigo, porém, que este avanço possa deixar o menino afeminado uma vez mais na posição de abjeto assombroso – desta vez o abjeto assombroso do próprio pensamento gay. [...] Neste caso, o eclipse da criança afeminada do discurso gay adulto representaria mais do que uma lacuna teórica prejudicial; representaria um nó de aniquilação homofóbica, ginecofóbica e pedofóbica do ódio internalizado, tornado central para análise gay afirmativa. O menino afeminado viria a funcionar como o segredo aberto de muitos gays adultos politizados (SEDGWICK, 1991, pp. 20-21).3

O filme venezuelano Pelo Malo (Mariana Rondón, 2013) aborda de forma muito precisa a questão do menino afeminado. Com nove anos, Junior já percebe a repulsa que sua mãe nutre por ele. Em princípio, a criança imagina que a razão venha do seu cabelo crespo, que ele tenta compulsivamente alisar. Contudo, ao longo do drama confirmamos que é a possibilidade do filho se tornar gay o motivo da angústia materna. Ela proíbe que ele cante, alise o cabelo, visite a avó paterna que incentiva seus “trejeitos” e impõe que ele se afaste do jovem Mario, pelo qual Junior aparentemente se sente atraído. Pelo Malo nos conduz com maestria ao universo de angústia e sofrimento que são imputados ao corpo infantil afeminado. Em uma das passagens da tese de doutorado, Vida-lazer, mencionei o curta de Aïnouz, Seams (1993), cujo o diretor ressalta que a palavra “veado” é muito temida, o maior xingamento que pode ser direcionado a um homem e já nos localiza inexoravelmente em um presente cruel e nos destina às margens da futuridade. E no corpo de Junior, sua experiência traumática é amplificada pelas intersecções e seus marcadores sociais da diferença: uma

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criança negra, afeminada, pobre e habitante da periferia de Caracas. Ao mesmo tempo são características positivas vistas por sua avó paterna, cujo filho foi assassinado por se envolver com o tráfico de drogas. Criar o neto gay era uma forma de garantir companhia e cuidados em seu envelhecimento; além disso, sua possível homossexualidade o afastaria do universo de violência e crimes da favela caraquenha. No desfecho do filme de Mariana Rondón, temos um indicativo de que o futuro de Junior se desenrolará longe de sua mãe e até mesmo de sua avó. Após preparar a refeição do filho, a mãe começa a arrumar as malas de Junior. Ela diz que o menino passará a viver com sua avó. A criança se nega a ir e promete cortar os cabelos. Ela lhe entrega uma máquina aparadora e o rapazinho se põe a raspar a cabeça. Antes, contudo, ele afirma para a mãe: “não te amo” e ela retruca: “eu, tampouco”. O plano seguinte não revela o destino de Junior e, do alto, observamos a escola onde estuda. Em seguida, podemos visualizar as crianças em fila, cantando o hino nacional venezuelano “Gloria al Bravo Pueblo”. O menino, com os cabelos raspados, não canta. É como se ali houvesse uma recusa em aderir ao Estado, ao sistema educacional, à norma heterossexual e aos frágeis laços familiares. Um desejo de não assimilação. Vontade de futuro é um sentimento que encontra sua tradução estética nos filmes que investiguei4 na tese de doutoramento, em que proposta de vida-lazer é anunciado como um projeto de vida. É a resposta sensível que encontrei para um conjunto de filmes, majoritariamente contemporâneos e brasileiros, que não se conectam entre si por inteiro, mas em momentos singulares e atos de pensamento que constituem instantes fortes desses mesmos filmes. Aqui, o agente da vontade de futuro é a figura vida-lazer, a personagem vida-lazer: a travesti, a prostituta, a criança afeminada, o moribundo, o abandonado. Discuti, na tese, futuro e utopia a partir das reflexões de temporalidades e sexualidades, especialmente com Muñoz (2009) e Edelman (2014).5 Futuridade, quando vinculada a temporalidades de corpos e sexualidades fora dos marcos da heterossexualidade e da modernidade heterocapitalista, nos fala do caminho a ser tomado. Refutar a possibilidade de assimilação, higienização e normalidade? Apostar na pulsão de morte ou buscar uma pequena utopia no horizonte e no tempo? Questões que se tornam cada vez mais urgentes e presentes na vida e nos debates teóricos.

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4. Na tese trabalhei com

a seguinte constelação de longas-metragens: Madame Satã; O céu de Suely; Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2002, 2006 e 2014); Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013); O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2010); Cinemas Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, 2005). 5. A futuridade de pessoas não heterossexuais são alvos de debates estéticos, políticos e socioeconômicos. Nos Estados Unidos, os trabalhos de José Muñoz (2009) e Lee Edelman (2014) instauram uma tensão no campo discursivo do futuro de pessoas queers. O primeiro autor refuta o argumento de abandonar a ideia de futuro, desenvolvida por Edelman. Essa crítica se dá, sobretudo, por Muñoz perceber essa ideia de “não futuro” como endereçada aos desejos segregacionistas da classe média branca estadunidense. Para Muñoz (2009) há uma gama de corpos não hegemônicos que persiste, existe e resiste. Desse modo, a utopia se abre como um devir do corpo transviado, marginalizado.


Gabriel Giorgi (2004), ao analisar a homossexualidade e sua representação na literatura argentina, agudiza essa interdição ao corpo homossexual e seu destino paradoxal: é possível aceitar os discursos sobre as práticas homossexuais, desde que os sujeitos que as vivenciam sejam apagados ou eliminados. Giorgi entende como “sonhos de extermínio” o desejo social de aniquilar os corpos lidos como abjetos, fora da norma heterossexual e que escapam ao controle higienista do Estado e de suas instituições, como o exército e a escola, bem como a religião, a família e o patriarcado. Ao mesmo tempo, os corpos trans, lésbicos, bissexuais e gays são os resíduos do tecido social, grãos incômodos que sobrevivem e se colocam na errância e à deriva do mundo. É nesse ponto que os filmes brasileiros, que abordei na tese, são colocados como respostas sensíveis a um desejo social de aniquilação de subjetividades não normativas. A vida-lazer como algo ambivalente, conflituoso, mas que leva em comum a aspiração de uma vida melhor, aprazível e feliz. Como observado anteriormente na tese, as figuras fílmicas tratadas fabulam sonhos e desejos de futuridade mesmo em contextos hostis, violentos e desiguais. A vontade de futuro é justamente esse gesto capaz de nos impulsionar à vida, de nos reinventar e nos colocar à deriva.

Tia Maria

6. Messeder (2012) inicia

o seu texto afirmando a escolha da categoria lésbica masculinizada como algo que pode gerar incômodo e dissenso, especialmente por eleger e se aproximar de suas interlocutoras a partir do que percebe como masculinizada. Ao mesmo tempo, ela sustenta que as entrevistadas estavam cientes dessa percepção, inclusive assinaram os termos de livre consentimento e esclarecimento para a pesquisa.

Em O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), Hermila e sua tia Maria vão ao mercadinho da cidade comprar algumas coisas. Eis que a tia comenta com sua sobrinha o desejo de ir à praia com Georgina Jéssica: “Comprei um biquíni pra dar de presente pra Georgina. Vou chamar ela pra ir pra praia comigo, lá em Fortaleza. Será que ela vai? Tô doida pra ver ela de biquíni, se queimando no sol”. Tia Maria é lida socialmente como uma mulher lésbica masculinizada.6 Sua indumentária se constitui principalmente de shorts de cotton, ora justos, ora largos e camisetas estilo “machão”. Usa costumeiramente os cabelos presos e é mototaxista (Figura 1) em Iguatu – Ceará. Suely Messeder (2012), ao pesquisar sobre as vivências de mulheres lésbicas com performances de gênero

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masculinizadas em Alagoinhas, Camaçari e Salvador, na Bahia, sustenta que algumas questões são similares nas experiências de vida dessas mulheres, especialmente na infância, no período escolar, na família e no mercado de trabalho. Se, na escola, a criança performa um papel social entendido como masculino, preferindo brincadeiras corporais, como o futebol e corridas, assim como outros jogos que demandam habilidades espaciais e táticas, incluindo o xadrez e a bola de gude, logo se inicia um processo de suspeição sobre o corpo e o gênero da infanta. Tais preocupações se multiplicam quando acompanhadas por ausência de interesses em práticas consideradas comuns para meninas, como bonecas, brinquedos cor-de-rosa e maquiagem. É o que Guacira Louro (1999) compreende como um processo pedagógico do gênero e da sexualidade, em que há a educação dos corpos para a produção de sexualidades consideradas normais.

Figura 1 - Tia Maria vai à rodovia buscar Hermila e Mateus Junior.

O mercado de trabalho é outro momento em que os marcadores sociais da diferença são acionados e investem no corpo lésbico suas restrições ou destino. Suely Messeder (2012) pontua que categorias raciais, de classe e de sexualidade se articulam para determinar e estabelecer determinadas práticas profissionais. Uma das entrevistadas afirma que, pelo fato de performar signos de masculinidade e por ser designada socialmente como mulher e negra, ela é sempre indicada a exercer papéis que demandam ou pressupõem força física, como os de vigia ou de segurança. Quando voltamos para Tia Maria, é possível supor que a história de vida da personagem tenha sido entrecruzada por muitas dessas

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questões. Contudo, são indagações implícitas e o que vemos é o cotidiano no trabalho, na casa, os momentos de lazer e as vontades de futuro: ir à praia com Georgina. Tia Maria, em muitos momentos, encarna uma figura vida-lazer. Sua encenação, seu corpo no espaço fílmico e sua construção gestual corroboram para uma atmosfera de leveza e de cotidiano. Ela é o porto seguro da sobrinha Hermila/Suely e de sua mãe Zezita. Suas falas são permeadas de carinho, firmeza e determinação. Assim como todos nós, ela é contraditória e se espanta quando Hermila revela que irá vender rifas cujo prêmio é uma “noite no paraíso”. Ela diz: “que ideia de puta é essa? ”. Ao mesmo tempo, ela é apaixonada por Jéssica, a puta amiga de sua sobrinha. Durante essa cena há uma fala muito potente de Suely: “puta nada, puta trepa com todo mundo, só vou trepar com um cara, não quero ser puta não, não quero ser porra nenhuma”. Além de percebermos o desejo de se diferenciar da atividade de prostituição e do rótulo de prostituta, fica explícita a desilusão, a apatia diante do futuro ou mesmo a percepção de que o espaço geográfico e social que ela ocupa inviabiliza qualquer possibilidade de sonho e futuridade. Como pontuado por Alessandra Brandão (2008):

O Céu de Suely acompanha a travessia de Hermila entre a desilusão amorosa e o investimento no sonho em São Paulo, e a consciência do valor do próprio corpo como horizonte de transformações. E é através da fronteira também do corpo feminino, entre a maternidade precoce e inepta, e a sexualidade latejante de seu corpo jovem, que o movimento itinerante de Hermila se sustenta na biopotência. Para Hermila, o corpo serve de instrumento para impulsionar sua viagem, agenciando a passagem por outra fronteira, que concede ao corpo mais que ganha pão, a esfera de autovalorização, a política de um sentido próprio que se configura na estratégia da comercialização de si mesma (BRANDÃO, 2008, p.96).

A leitura de Brandão é muito instigante pois localiza uma marca de vida-lazer na personagem de Suely: o movimento. E essa biopotência, que opera dentro das redes capitalistas, se instaura na crença de que mesmo diante da precariedade,

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da tristeza e da desilusão, não se pode abandonar o sonho e o delírio, mesmo que signifiquem um mergulho na incerteza. Como este artigo busca apontar, a vida-lazer é uma forma de responder aos questionamentos e angústias do presente: quando ela se expressa na arte cinematográfica, se metamorfoseando em discursos de figuras fílmicas, quando ela é encenada e performada; ela nos fala de afetos e sonhos, da vontade de impermanência, do desejo pela errância e na busca pela felicidade. E partir é deixar para trás o que fomos, sem saber com quem nos encontraremos e em que conversações nos colocaremos. Regressar pode ser impossível e até mesmo não desejável. Quando vamos, levamos conosco o medo do futuro e as lembranças que confortam ou doem. Acreditamos na potência da vida, do corpo e do desejo. Nos alimentamos da utopia. A vida-lazer é utopia? Não sei.7 Mas essa deriva e errância nos lembra a resposta de Fernando Birri, rememorada por Eduardo Galeano e dada a um estudante durante um seminário em Cartagena de Índias, Colômbia - “para que serve a utopia?”:

A utopia está no horizonte. Eu sei que nunca a alcançarei. Se eu avançar dez passos, ela se distanciará dez passos. Quanto mais eu a buscar, menos a encontrarei: ela se distancia à medida que eu me aproximo. E, ora, para que serve a utopia? A utopia serve para isso, para caminhar.8

E para que serve a vida-lazer? Para cativar nossas paixões, para nos fazer acreditar no mundo, tomar posse dele, da nossa imaginação. No cinema: para construir uma quimera, uma constelação de desejos e paixões. Personagens que nos convidam para o sonho, para o novo e para a escuta. A esperança de que se nos movermos, se nos enfrentarmos, se formos além, haverá de ter outro dia, com mais vida, com mais lazer. Para nos fazer aprender com tia Maria e Hermila/Suely que a vidalazer está ali, no banho de mar com sua paixão platônica, ou na passagem de ônibus para o lugar mais longe, mais distante. Ou quando Suely viaja e ao sair dos limites da cidade podemos ler no pórtico “aqui começa a saudade de Iguatu”.

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7. Em conversa por

mensagens com Anita Leandro, co-orientadora da tese, em março de 2020, ela estimulou que eu retornasse a ideia de vidalazer, com a sugestão de um título: vida-lazer, imagem sobrevivente e promessa de futuro. Tal diálogo advém do momento pandêmico em que atravessamos e, consequentemente, quais possibilidades de existência emergem após uma experiência coletiva traumática. Estou muito mobilizado pelo pensamento de Denise Ferreira da Silva (2019), sobretudo a ideia de uma dívida impagável e o porquê de não se instaurar uma crise ética diante do extermínio da população negra. Vida-lazer, num contexto de violência e de colonialidade, pode soar uma utopia ou algo irrelevante em momentos de tantas urgências e lutas. Mas as imagens fílmicas e as nossas espectorialidades podem nos convidar a reimaginar a vida, construir redes, mesmo que em alianças pontuais e precárias, sonhando um outro mundo. Enquanto o mundo da violência e opressão não acaba, podemos viver diferentemente neste mundo, na busca de cura e cuidado, como pontuou Denise Ferreira da Silva, em uma conferência virtual, em julho de 2020, na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=FJ7wf4Gc_ y4&t=12s&ab_channel=Com unicaEscoladeArteDram%C3 %A1ticaEADECAUSP. Acesso: 19 nov de 2020. 8. Disponível em: https:// youtu.be/9iqi1oaKvzs. Acesso em: 19 nov 2020.


Tatuagem e a criança de Mutunópolis É muito curioso que um filme como Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), retratando o fim dos anos de 1970, seja evocado para falar de respostas ao presente e vontades de futuro. Em verdade, não é tão estranho, ainda mais se olharmos ao redor e vermos reacender debates conservadores, sectários e os microfascismos. Para isso, vou trazer três cenas, duas retiradas do cotidiano social e a outra da ficção audiovisual.

Primeira cena: No dia 11 de setembro de 2012, Edmeire Celestino Silva, à época com 29 anos, tentou adentrar o Palácio do Planalto para declarar seu amor à presidenta Dilma Rousseff. Ao ser impedida pelos guardas presidenciais, ela afirmou: “Sou marido da Dilma Vana Rousseff. Sou esposo dela”, disse. “Você quer casar comigo, meu amor?”. “Eu queria sequestrar ela, ela é meu coração” (Fig. 2).

9. Disponível em: https://

img.jornalcruzeiro.com. br/img/2013/07/12/ media/103282_EDMEIRE.jpg. Acesso: 19 nov 2020.

Fig. 2 - Edmeire Celestino Silva.9

Segunda cena: Em 28 de setembro de 2014, durante o debate eleitoral, o presidenciável Levy Fidelix é questionado pela candidata Luciana Genro: “Por que que as pessoas que defendem tanto a família, se recusam a reconhecer como família um casal do mesmo sexo? ”. No que ele responde: “aparelho excretor não reproduz” (Figura 3).

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Figura 3. Charge de Laerte a partir da fala de Fidelix.10

10. Disponível em: http://

Terceira Cena: Amanda e Monick (André da Costa Pinto, 2008) é um documentário paraibano que aborda o inusitado cotidiano da professora da rede municipal Amanda e de sua aluna Monick. Ambas são travestis. A primeira, respeitada e admirada pela comunidade escolar, e acolhida por seu pai. A segunda, mantém um relacionamento com Nilda, uma mulher lésbica que está grávida de Monick. Ao narrar o início de sua relação com Monick e os questionamentos advindos da gestação, Nilda relembra os muitos questionamentos suscitados: “As pessoas chegam perto de mim e perguntam: Nilda (Figura 4), você não tem vergonha de ser mãe e o pai ser uma bicha? - Não. Normal. E uma sapatão e um veado? Isso é normal, não tem nada a ver não”.

Fig. 4 - Nilda exibe sua gravidez em Amanda e Monick.

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www.revistaforum.com. br/2014/09/29/revolucaoaparelho-excretor/. Acesso 21 ago 2016.


Chamo atenção para essas três cenas por elas nos aproximarem de um ponto comum que abordarei em Tatuagem: o conceito de família. Não por acaso, a vida-lazer enunciada por Patty (Viajo porque preciso, volto porque te amo) e Tabu (Madame Satã) se referem a ideias de amor romântico, monogamia e constituição do lar. Logo, tanto no discurso quanto na expressão estética da vida-lazer, é importante destacar o que está em jogo quando evocamos a instituição familiar, seus usos e sentidos. Especialmente quando ela é desejada por indivíduos que são repelidos pela própria entidade familiar. Como mostrou Michel Foucault, a família, tal como a conhecemos no Ocidente, começa a ter essa configuração a partir do século XVIII, na qual: As velhas formas do amor ocidental são substituídas por uma nova sensibilidade: a que nasce da família e na família; ela exclui, como pertencendo à ordem do desatino, tudo aquilo que não é conforme à sua ordem ou ao seu interesse. [...]. Este poder de repressão, que não pertence inteiramente ao domínio da justiça nem exatamente ao da religião, este poder arrancado diretamente à autoridade real não representa, no fundo, a arbitrariedade do despotismo, mas sim o caráter doravante rigoroso das exigências familiares

11. Vanessa, minha amiga

de infância, foi assassinada no dia 12 de julho de 2015, aos 27 anos, confirmando a assombrosa expectativa de vida de pessoas trans em nosso país. Disponível em: http://www.mpgo.mp.br/ portal/noticia/tribunal-dojuri-acolhe-acusacao-do-mpe-condena-acusados-porassassinato-de-travesti#. X7bR8Wj0nIU. Acesso: 19 nov 2020. Em 02 de Junho de 2019, Antônio Sergio da Silva, 40 anos, primeiro gay declaradamente assumido em Mutunópolis, foi assassinado. Depois de anos sem contato, Tonha e eu retomamos a amizade, tínhamos sonhos comuns e projetos, como ele terminar o ensino médio e entrar na faculdade. Estimulei sua imaginação e o incentivei a viajar, ver o mundo. Sua vida foi interrompida na cruel letalidade da homofobia. Disponível em: https:// www.policiacivil.go.gov. br/delegacias/regionais/ menor-e-apreendidosuspeito-de-ato-infracionalde-homicidio-vitima-tinhasido-dada-por-desaparecida. html. Acesso: 19 nov 2020.

(FOUCAULT, 2008, p. 91).

O desatino é ser sapatão, bicha, travesti, mãe solteira, prostituta. E são essas as figuras fílmicas que dão forma estética à vida-lazer aqui abordada. Elas transbordam das telas e procuram ressonância em outros corpos. É por isso que o presidenciável Levy Fidelix, acima citado, quando questionado sobre o seu combate às uniões homossexuais, nos encarcera em um destino biológico: não somos capazes de reproduzir, logo não podemos amar. É uma falácia construída a partir de um jogo muito bem estruturado de manutenção dos privilégios do cis-heterocapitalismo ocidental, branco e violento. Uma estrutura de sequestro do sonho, da imaginação e da pluralidade. Não é possível existir vida-lazer se não podemos gozar livremente de amor e alegria. Estamos falando de afetos, de amor e solidariedade. De corpos cinematográficos, mas também de corpos reais, vivos. Estou falando de Tabu, e também de minha amiga Vanessa, travesti assassinada, apedrejada, exterminada,11 do Antônio Sérgio, a Tonha. Falo da

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violência que atinge meu corpo, o corpo dos meus amigos, dos vizinhos e de qualquer um que seja ferido por habitar as bases da pirâmide sexual (RUBIN, 1989). Levanto-me a todo momento enquanto escrevo, estou embriagado de café. Ouço Diana, Bárbara Eugênia, Aviões do Forró, Cartola e Bethânia. Revejo as cenas de filmes. Hoje o dia está tão difícil. Começo a chorar e sorrir. Estou há tanto tempo atravessado por essas imagens, por esses medos e por esses discursos que não consigo organizar as ideias. Será que as entrego assim, seminuas, fragmentadas e delirantes? Estou olhando para a criança que fui, no que me tornei. Eu queria protegê-la. Ir em Mutunópolis, pegá-la pela mão. Desenhar em suas bochechas pequenos corações com um batom vermelho. Abrir um armário com vestidos e sapatos, pentear seus cabelos e elogiar sua voz. Pedir para que ela dançasse a música que mais gostasse, que colocasse as mãos na cintura para ser fotografada. Ensiná-la a se proteger como Madame Satã e a gritar para todo mundo: “eu sou bicha porque eu quero”. Depois, a gente falaria de futuro, do que ela se tornaria. E eu explicaria que:

A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia do gênero vigia o berço dos seres vivos que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais. A norma faz sua ronda em torno dos corpos frágeis. Se você não for heterossexual, a morte o espera. A polícia do gênero exige qualidades diferentes do garotinho e da garotinha. Ela molda os corpos a fim de desenhar órgãos sexuais complementares. Ela prepara a reprodução, da escola até o Parlamento, industrializa-a (PRECIADO, 2016, p. 6).

Somos esses corpos frágeis que desafiam a polícia de gênero. E essa vigia normalizadora vai além dos auspícios da sexualidade: almeja sobretudo assaltar o desejo pela vida, a esperança em um outro mundo mais aprazível. São os corpos das crianças transviadas, como dito por Edelman (2014), que atormentam o futuro político, estético e econômico de uma sociedade baseada na morte. Vamos ofertar nossa carne para o banquete insaciável desse “moinho de gastar gente” (RIBEIRO, 1995)? Pedir para adentrar ao círculo da respeitabilidade através da monogamia e das práticas sexuais vistas como sadias, como denunciado por Rubin (1989)? Ou vamos recusar este mundo?

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Chegamos na pertinência de Tatuagem para o agora. O longa retrata o dia e a noite da trupe Chão de Estrelas, capitaneada por Clécio. Se cria e se impulsiona na margem. São experimentos afetivos distantes dos laços consanguíneos. Uma família que encontra na amizade uma forma de vida (FOUCAULT, 1981) vinculante ao mundo.

12. Conto de Caio Fernando

Abreu que narra o desejo entre o Sargento Garcia e Hermes, um jovem prévestibulando de Filosofia.

A cena com a canção de Caetano Veloso, Esse cara, é um momento de suspensão do filme; Clécio, que costumeiramente se apresenta na casa ocupada pelo Chão de Estrelas, encarna uma Maria Bethânia lânguida e transviada. Desliza pelo palco, explode em intensidades e fita fixamente o belo rapaz sentado na plateia. É Arlindo, cunhado de Paulete. É uma cena que remete ao escritor Caio Fernando Abreu, com seu “Sargento Garcia”.12 Após a performance de Clécio, os dois são apresentados por Paulete e ela já adverte o amigo para que não tente enredá-lo em sua trama de sedução. Os dois conversam, riem, brincam. Arlindo estranha a extravagância do lugar, a desadequação total de um espaço como aquele na cidade do Recife, sob as armas da ditadura militar. Na cena seguinte, Clécio constrói uma ambiência erótica e sinestésica. A penumbra, o quarto milimetricamente decorado, Dolores Duran e “A noite do meu bem” dão o tom para a dança de Clécio e Arlindo. Aliás, Clécio e Fininha. A essa altura, o jovem militar já havia confessado que assim era a forma como era conhecido, talvez por suas feições delicadas e sua voz macia. E então, Bethânia come o milico. Fininha parece ter familiaridade com práticas sexuais com outros homens. Ela mesma afirma para Clécio não se tratar de sua primeira vez como receptor. No dia seguinte é beijo na boca, abraço apertado e banho de mar. As mãos de Fininha alisam a penugem no rosto de Clécio. Logo, o cotidiano de ambos se entrelaça na casa da trupe e uma relação se inicia. Clécio tem um discurso libertário, de não propriedade dos corpos e desejos. Contudo, tal perspectiva, quando transposta para a prática, se mostra um tanto falha. Durante uma festa em casa, Fininha dança e beija outro homem. Clécio se contorce de ciúmes, os olhos ficam marejados e cobra uma explicação de seu amante. E ouve: “tu mesmo que disse que a gente não tem contrato com nada. Tu não falas que a gente não pertence a ninguém?”.

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Tatuagem alterna entre os espaços de intimidade da casa, dos corpos e da trupe Chão de Estrelas. Remete a um momento histórico transgressor, mas que ao mesmo tempo nos fala do hoje. São respostas sensíveis formuladas a partir de uma ambientação pretérita que diz muito sobre o contemporâneo. Se a História fosse linear, era de se esperar que em nossa década muitas das questões suscitadas no filme já estivessem respondidas, ou que não despertassem tanto interesse por terem sido incorporadas pelo tecido social. Mas elas persistem e se agudizam. Quanto mais as identidades sexuais políticas se afinam, mais o campo de resistência à diversidade sexual e de conservadorismo se alastra. É aonde gostaria de chegar quando retomei a infeliz fala do excandidato a presidente Fidelix. Clécio é pai de Tuca, com sua amiga Deusa. A mãe quer conversar com o pai sobre problemas enfrentados na escola. Querem expulsar Tuquinha por ele ter arrumado confusão na escola. Na verdade, o motivo da contenda escolar foi a defesa que o adolescente fez de seus pais: uma mãe solteira e um veado, nas palavras de um coleguinha. Disseram ao garoto que deus fez o homem para a mulher, no que ele retruca que deus não existe, e sim deuses. O discurso reproduzido pelos colegas de escola de Tuca não ficou esquecido nas décadas passadas. Ele persiste e nos ameaça. A partir dos debates na França sobre casamentos civis de pessoas do mesmo sexo e direitos à parentalidade, Judith Butler (2003) formula a questão: “o parentesco é sempre tido como heterossexual? ”. Ao longo de sua argumentação, ela considera que:

Os poderes de normalização do Estado se tornam, porém, especialmente claros, quando se considera o quanto a contínua perplexidade sobre o parentesco condiciona e limita os debates sobre casamento. Em alguns contextos, a alocação simbólica do casamento, ou arranjos similares, é preferível à alteração dos requisitos para que o parentesco proteja direitos individuais ou plurais de se ter ou de adotar crianças ou de assumir uma co-parentalidade legal. Variações no parentesco que se afastem de formas diádicas de família heterossexual garantidas pelo juramento do casamento, além de serem consideradas perigosas para as crianças, colocam em risco as leis consideradas naturais e culturais que supostamente amparam a inteligibilidade humana (BUTLER, 2003, p. 224)

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13. O corpo de Dilma foi atacado incessantemente, desde seu primeiro governo. O golpe contra a presidenta é uma afirmação da branquitude, do machismo, colonialismo e a mesquinhez das elites brasileiras. Uma tentativa de sequestrar o futuro. Mesmo tendo rifado direitos indígenas, secundarizado políticas de igualdade racial, LGBT e do povo do campo, foram estes segmentos da sociedade civil organizada que saiu em defesa de Dilma, não por concordarem com suas políticas de governo, mas por lutarem pela democracia.

14. Disponível em: https://

www.youtube.com/ watch?v=n8xcN5cLQeM. Acesso: 03/11/2020.

15. É pertinente ressaltar que à época da tese, 2016, o debate sobre ideologia de gênero, movido por instituições religiosas e conservadoras, intensificou sua sistematização, ao ponto de ser um tema central nas eleições presidenciais brasileiras de 2018. Sobre a “invenção da ideologia de gênero”, ver Junqueira (2018). Disponível em: http://pepsic.bvsalud. org/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1519549X2018000300004. Acesso: 19 nov 2020. E, também, Santos e Irineu (2018).

16. Sobre a Casa Nem, espaço de acolhimento transvestigênere, idealizado por Indianare, ver o filme Indianara, de Marcelo Barbosa, Aude ChevalierBeaumel, 2019.

Quando evoquei anteriormente a paixão de Edmeire pela presidenta Dilma Rousseff,13 o fiz por observar como a indagação de Butler é pertinente. Na campanha presidencial de 2010, em entrevista na capital do Piauí, Rousseff respondia a questões relativas aos compromissos com entidades religiosas em não propor ao legislativo alterações de leis que favorecessem ao aborto e o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Um jornalista questiona se a candidata era homossexual, como se especulava na internet. Dilma se altera com a pergunta e diz que não irá responder. Entretanto, ela responde: «eu tenho uma filha e sou avó, pelo amor de deus».14 Não é necessário reforçar que uma visão biologizante sobre o parentesco e as relações afetivas obedecem a interesses escusos. Novamente, a centralidade do debate está no “futuro da criança”, mesmo que ela nem tenha nascido, e nas falácias de proteção, pureza e ordenamento simbólico que ancoram nos infantes os papéis de gênero socialmente inteligíveis para homens e mulheres. A transgeneridade e a homossexualidade não ameaçam a reprodução social, tampouco se organizam de maneira a impor uma propalada anedota batizada como ideologia de gênero.15 Ao contrário, é a figura da humanidade encarnada na mentalidade branca, heterossexual, patriarcal e ocidental que ameaça a continuidade da vida. A quem interessa uma narrativa de futuridade que unicamente nos conduz à morte? Quais são as fontes do terror anal (HOCQUENGHEM, 2009) que assolam políticos, religiosos e outros moralistas de ocasião? Eles insistem na falácia, porque sabem que os corpos despossuídos e marginalizados se colocam na frente da batalha. O corpo está em jogo, teme a ameaça de violência física, política, legal e jurídica, mas não recua. Podemos nos reproduzir, como fizeram Nilda e Monick, doar secreções, óvulos e sêmen para as tecnologias in vitro. O corpo coletivo sapatão, trans, bicha, veada, não-binário, negro, indígena, cigano e quilombola pode andar em manada e se proteger. A casa Chão de estrelas, no Recife, e a casa Nem16 no Rio de Janeiro apontam que o futuro é estético e político. Que a vida-lazer pode ser o corpo coletivo em festa, a partilha do amor, a experimentação afetivo-sexual. Ou se preparar para o exame de admissão de uma universidade, costurar laços de afetividade, acreditar no cuidado e proteção. Reivindicar a rua como um espaço de direito, o corpo como suporte de um porvir.

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O veado egoísta que foi dar o cu no Polo Norte Luzindo na madruga, os corpos suados de Donato e Konrad se encontram e fazem sexo dentro do carro. O salva-vidas cearense, de Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014), se coloca de costas para o mecânico de motos alemão. A câmera se demora na respiração, na textura da pele, nas tatuagens do estrangeiro e nas estocadas. No plano seguinte, Donato conduz uma pequena lanterna pelas tatuagens de Konrad. E pergunta: “pra que tanta tatuagem? Fez alguma pro seu amigo?”. O alemão, que acaba de sair do hospital após sobreviver a um afogamento, comenta sobre Heiko, seu amigo desaparecido. Eles sairiam de Fortaleza até o Sul do Brasil, depois seguiriam para a Patagônia. E, então, ele voltaria para Berlin, para reencontrar a esposa, seu filho e ter outro filho. Praia do Futuro é uma espécie de resposta a uma pergunta sobre a vida-lazer: ela é sempre feminina? O questionamento surge por eu ter apresentado personagens circunscritas no campo das feminilidades, como Tabu, Patty e Everlyn. Ao entender a vida-lazer como um fragmento, um detalhe e um rompante narrativo, ela seria sim, feminina. Contudo, ao mirarmos o conjunto da obra de Karim Aïnouz e seu baú de afetos, essa vida-lazer extravasa e se capilariza nos corpos para além dos marcadores de gênero e sexualidade. Um incômodo inicial com o filme estava relacionado à sua excessiva performance de masculinidade hegemônica. O primeiro plano me alertou quanto a isso: Konrad e Heiko andando de moto pelas dunas do Ceará; o sexo duro e penetrador do alemão e o brasileiro Donato; os embates corporais e brigas que se sucedem ao longo da trama. Como é possível abrir uma fenda de vida-lazer diante desses dois corpos brancos, jovens masculinos e viris? E assim se instaura uma impostura ou algo parecido com aquele patriarcado sem machos, de Seams. A masculinidade de Donato é movediça como as dunas do Ceará. É ele que, inicialmente, dá o cu para Konrad. Permitir que um falo adentre esse órgão tão caluniado, espúrio e vilipendiado, significa uma grave penalidade dentro das estruturas do patriarcado. Quando Ayrton, o irmão pequeno de Donato, cresce e vai à sua procura na Alemanha é assim que ele justifica para si a partida do irmão: “tu é um veado egoísta, que gosta de dá o cu escondido, na porra desse polo norte”.

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Essa percepção de Ayrton pode ser uma das muitas razões que levaram Donato a deixar o emprego de bombeiro no estado do Ceará, sua mãe, irmãs e seu irmão menor, que o via como um super-herói. Mas existem outras redes que conduzem o fortalezense ao cotidiano de Konrad, em Berlim. O desejo de movimento, invisibilidade e de abertura ao desconhecido. De encontrar a praia sem água (Figura 5), tão sonhada por Ayrton.

Fig 5. Ayrton, Donato e Konrad numa praia “sem água” na Alemanha. Praia do Futuro.

A mágoa de Ayrton com Donato se concentra no abandono familiar. Não foi apenas um distanciamento geográfico, mas um corte radical dos laços de convivência. Quando decidiu permanecer em Berlim, ao lado de Konrad, o cearense se manteve distante de qualquer contato com a família em sua cidade de origem. E o irmão caçula enfatiza a continuidade da vida, apesar de Donato lhes ter virado as costas. E quando o salva-vidas pergunta sobre a mãe, ele contabiliza: «morreu tem um ano, cinco meses e três dias». De uma maneira recorrente, a sociedade heterocentrada entende o desvio da norma heterossexual ou dos marcos de uma sexualidade considerada saudável como um rompimento nos projetos de futuro. É o caso de Patty (Viajo Porque Preciso), por exercer a prostituição. E de Donato, por partir sem o desejo de voltar. É nesse sentido que a vida-lazer engendra a discussão de futuridade e temporalidade: ela rompe com a teleologia heteronormativa (HENNING, 2016). A personagem de Donato flutua entre uma negação dos laços familiares como uma possibilidade de futuro (passando um longo tempo sem manter

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qualquer contato com a família no Brasil) e uma crença na utopia (ao final, quando escreve uma carta ao passado, para tentar curar feridas e abre uma possibilidade de futuro ao lado do irmão). O argumento de Edelman (2014), sobre uma ética dissidente de sujeitos queer que recusam o futuro reprodutivo, pode ser interpretado como uma oposição, nos filmes aqui discutidos, à vida-lazer de Heiko e Patty: o casamento monogâmico e a reprodução. É nesse campo de intensidades que Donato se insere, inicialmente. Além de cortar os laços consanguíneos, ele também rompe o relacionamento com Konrad. Não sabemos como se deu o término entre os dois, mas o fim da aliança acontece após uma vida cotidiana aparentemente cúmplice. Quando Donato acompanha Konrad e a esposa de Heiko num jogo de basquete na escola, o cearense parece estar sufocado. Enquanto a plateia vibra na quadra de esporte, Donato se retira do jogo e parece não se sentir integrado. Ao mesmo tempo, ele parece gostar das atividades domésticas corriqueiras, de ir ao mercadinho comprar mantimentos, cigarros e cerveja, do trabalho como mergulhador em um aquário. Há um sentimento de leve pertencimento durante as deambulações pela capital alemã. Contudo, ele está partido ao meio. Donato tem um devir-Suely. Ele vai sem olhar para trás. E quando se vê dividido entre reencontrar o Donato que deixou ou se metamorfosear em outro, segue viagem. Não significa falta de amor para com seus familiares. Mas é essa bússola insistente, dentro dele, que o leva para longe, para o futuro incerto, sem medo do desconhecido. É um gesto similar ao de Suely, quando ela se aproxima do guichê da rodoviária e procura se informar sobre os preços das passagens das cidades mais distantes de Iguatu. Donato, ao contrário de Suely, não planeja a partida, ela se dá ao acaso. É Konrad o mediador desse salto para o futuro. Contudo, poderia ser outro estrangeiro, poderia ser outra cidade ou país. Quando Roland Barthes, em Como viver juntos (2003), evoca os sentidos da palavra grega acédia, ele o faz vinculando-os ao luto, à tristeza e ao torpor. Viver com alguém, em comunidade, exige mais que habilidades emocionais e respeito à diferença. É preciso conviver com múltiplas temporalidades, com rupturas, diferentes desejos, impasses e descontinuidades. Abandonar ou ser abandonado é doloroso, pois “sou objeto e sujeito do abandono: daí a sensação de bloqueio, de armadilha, de impasse” (BARTHES, 2003, p. 41). DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 284-307, JUL/DEZ 2017

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Mas a resposta sensível do cinema e das personagens aqui tratadas a esse bloqueio é, justamente, o campo de forças da vidalazer: resistência no presente e a vontade de futuro, despontando de onde parece não haver essa esperança imediata. Reabrindo as questões de Muñoz (2009) e Edelman (2014): apostar nas pequenas utopias e nas potências do encontro do primeiro, ou na negatividade e pulsão de morte do segundo. A utopia no cinema brasileiro seria vazia (NAGIB, 2006)? No cinema de Karim, não, pois a vida-lazer se abre não apenas como uma pequena utopia, mas como uma aposta de vida.

Fig. 6. Clavadistas -Saltadores mexicanos no mar de Acapulco. Viajo Porque Preciso.

Quando ouço José Renato desejando voltar a viver, eu desejo o mesmo que ele. No abandono, na ausência e no impasse, surge uma vida-lazer. Ayrton, Donato e Konrad aceleram suas motos rumo ao desconhecido, rumo ao futuro, impulsionado por uma praia sem água, cinza e insinuante. Madame Satã hoje está pintada em azulejos da Lapa, na Rua Moraes e Vale, na cidade do Rio de Janeiro. E Patrícia Simone da Silva, a Patty de Viajo Porque Preciso e enunciadora da vida-lazer, habita o azul acrílico de um sertão-imagem. A vida-lazer, como ato, é similar ao salto dos mergulhadores mexicanos dos penhascos de Acapulco (Figura 6), no plano final de Viajo Porque Preciso. Um pinote rumo à vida, ao desconhecido, ao medo e à destrutibilidade da carne. Se é pulsão de morte, ou uma pequena utopia, só as lentes que observam e os filtros subjetivos são capazes de apontar.

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Insiro a vida-lazer, traduzida esteticamente, como parte do projeto de possíveis e de criação. Aumont (2007), ao pensar uma segunda modernidade no cinema, com outras interpretações, busca um caminho para além do binarismo clássico versus moderno. E na vida-lazer, busco algo além da dualidade utopia versus conformação, outras direções. Perceber que a singularidade do cinema não está presa ao passado, nem a um futuro longínquo irrealizável. Ela é uma resposta sensível ao espírito do tempo. Esteticamente, ela aspira ao inimaginável: conexões de momentos e atos de pensamento: ação.

O tempo histórico é a criação do novo. Dito isso, é preciso questionar mais. Será que nossa consciência de tempo, notadamente do futuro, repousa sobre a capacidade humana de criar algo novo, ou será, ao contrário, a possibilidade de criar algo novo que depende do fato de termos consciência do futuro? (AUMONT, 2007, p. 96).

A vida-lazer no cinema é um pequeno lampejo nos fluxos de imagens que habitam o mundo. Não é possível, nem desejável, apreender essas imagens em sua totalidade. Mas elas persistem, duram, vivem, instauram temporalidades e pensamentos. Vidalazer é olhar ao redor e ver que não estamos sós. Vida-lazer é uma trama de afetos tecida por linhas plurais. Vida-lazer sobre a qual Patty e Tabu filosofaram. Vida-lazer para não sermos circunscritos nos mundos precários e subalternos. Vida-lazer como uma sensibilidade do presente e uma vontade de futuro. E o futuro está aqui, presente.

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