V . 12 N .1
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devires, belo horizonte, v. periodicidade semestral
12, n. 1, p. 01-230, jan/jun 2015 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ DOCUMENTÁRIO E CINEMA DE ARQUIVO Anita Leandro César Guimarães Julia Fagioli CONSELHO EDITORIAL Alessandra Brandão(UNISUL) Amaranta César(UFRB) Ana Luíza Carvalho (UFRGS) Andréa França(PUC-Rio) Ângela Prysthon (UFPE) Anita Leandro(UFRJ) Beatriz Furtado(UFC) Cezar Migliorin(UFF) Consuelo Lins (UFRJ) Cornélia Eckert (UFRGS) Cristina Melo Teixeira (UFPE) Denilson Lopes (UFRJ) Eduardo de Jesus (PUC-MG) Eduardo Morettin (USP) Eduardo Vargas (UFMG) Erick Felinto (UERJ) Erly Vieira Júnior (UFES) Fernando Resende(UFF) Henri Gervaiseau(USP) Ismail Xavier (USP) Jair Tadeu da Fonseca (UFSC) Jean-Louis Comolli (Paris VIII) João Luiz Vieira (UFF) José Benjamin Picado (UFBA) Leandro Saraiva (UFSCAR) Márcio Serelle (PUC/MG) Marcius Freire (Unicamp) Mariana Baltar (UFF) Maurício Lissovsky (UFRJ) Maurício Vasconcelos (USP) Osmar Gonçalves (UFC) Patrícia Franca (UFMG) Paulo Maia (UFMG) Phillipe Dubois (Paris III)
Phillipe Lourdou (Paris X) Ramayana Lira(UNISUL) Réda Bensmaïa (Brown University) Regina Helena da Silva (UFMG) Renato Athias (UFPE) Ronaldo Noronha (UFMG) Sabrina Sedlmayer (UFMG) Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa) Stella Senra Susana Dobal (UnB) Suzana Reck Miranda (UFSCar) Sylvia Novaes (USP) EDITORES Anna Karina Bartolomeu André Brasil Cláudia Mesquita César Guimarães Carlos M. Camargos Mendonça Mateus Araújo Roberta Veiga Ruben Caixeta de Queiroz CAPA E PROJETO GRÁFICO Bruno Martins Carlos M. Camargos Mendonça EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Thiago Rodrigues Lima COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Glaura Cardoso Vale Julia Fagioli Luís Felipe Flores Maria Ines Dieuzeide Thiago Rodrigues Lima APOIO Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência FAFICH – UFMG
Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Programa de Pós-Graduação em Comunicação / Programa de Pós-Graduação em Antropologia Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3409-5050 D 495
DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.12 n.1 (2015) – Semestral ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica) 1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5. Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Sumário
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Apresentação Anita Leandro, César Guimarães e Julia Fagioli Documentário e cinema de arquivo: escritas da história no cinema
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O destino singular das imagens de arquivo: contribuição para um debate, se necessário, uma “querela” Sylvie Lindeperg
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O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada em O fundo do ar é vermelho Julia Fagioli
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Kluge e os arquivos: uma contraescrita da História Leonardo Amaral
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Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos: acerca de Noite e neblina Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
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Como representar o “irrepresentável”? – uma análise sobre a abordagem do Holocausto no cinema documentário Rafael Valles
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Fragmentos de guerra: estética e política em El Perro Negro, de Péter Forgács Jamer Guterres de Melo
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O atrativo dos planos encontrados Christa Blumlinger Farocki e os arquivos
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Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki Amélie Bussy
188
“A máquina sempre quer algo de você”. Entrevista com Harun Farocki Ednei de Genaro e Hermano Callou Fora-de-campo
204
O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman Maria Ines Dieuzeide
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Normas de publicação
Apresentação O cinema documentário aparece cada vez mais no cenário contemporâneo como um lugar de memória, no sentido que os historiadores deram a esse termo, com Frances Yates ou Pierre Nora. Arte da fala, o documentário é um espaço privilegiado para o registro do testemunho, na medida em que, além de uma narrativa histórica, ele também traz à tona os silêncios e lacunas que habitam as lembranças do passado. Mas, sobretudo, o documentário se apresenta no panorama atual como uma encruzilhada do fluxo contínuo das fontes documentais, orais e visuais existentes – textos, fotografias, registros radiofônicos, imagens fílmicas e materiais audiovisuais de diferentes suportes, reunidos na mesa de montagem para se escrever a história. Para enfrentar a complexidade e o volume da produção visual do século XX, século das imagens e da valorização dos arquivos, o documentário aperfeiçoou a maior invenção do cinema, a montagem. À experiência poética, ele aliou investigação histórica, colocando-se ao lado dos historiadores em seu esforço de entendimento do passado. Com esse primeiro volume do dossiê “Documentário e imagens de arquivo”, a revista Devires traz uma série de artigos que retomam o debate sobre o alcance historiográfico do cinema. Numa abordagem estética de filmes escolhidos, os textos aqui reunidos mostram, nas entrelinhas, que a montagem é um modo de escrita da história em adequação com uma hermenêutica do documento. O cruzamento de fontes documentais, procedimento habitual de pesquisa histórica, ao ser feito na montagem, dá acesso à uma compreensão diferenciada dos acontecimentos. Maio de 68, a guerra da Espanha, o genocídio dos judeus, todos esses grandes dramas históricos, sobre os quais os historiadores já escreveram tanto, passam a ser vistos sob um novo ângulo quando os documentos de arquivos a eles relacionados são retomados pelo documentário. É o que acontece nos filmes evocados nesse dossiê. Uma micro-história aparece no plano de detalhe do documento trabalhado na montagem ou no cruzamento da imagem de arquivo com fontes orais, clareando pontos obscuros da macro história. Essa potência historiográfica da montagem explica, em parte, a “atração dos arquivos”, fenômeno atual, analisado por Christa Blumlinger num artigo desse volume, e denominado, por
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outros autores, em textos anteriores, de “impulso arquivístico” (Hal Foster, 2004) ou “furor de arquivo” (Suely Rolsnik, 2009). Exploradas ao extremo pela indústria cultural, as imagens existentes necessitam do contraponto de um cinema rigoroso no tratamento das fontes visuais, de maneira a afirmar seu “estatuto científico”, como propõe Sylvie Lindeperg na abertura desse dossiê. De Alexander Kluge a Chris Marker, de Alain Resnais a Peter Forgács, de Godard a Farocki, esse último, entrevistado nesse número, todos os cineastas cujo gesto de retomada é analisado nos artigos que se seguem, compartilham uma responsabilidade política em relação às imagens do passado. Com esse primeiro volume do dossiê, a Devires procura colocar-se à altura do debate sobre os arquivos que suas obras suscitam.
Anita Leandro, César Guimarães e Julia Fagioli
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APRESENTAÇÃO / ANITA LEANDRO, CÉSAR GUIMARÃES e JULIA FAGIOLI
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DOCUMEN IMAGENS D
NTÁRIO E DE ARQUIVO ESCRITAS DA HISTÓRIA NO CINEMA
O destino singular das imagens de arquivo: contribuição para um debate, se necessário, uma “querela” Sylvie Lindeperg Historiadora, professora na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne
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O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg
“Eu acho um pouco excessiva a aversão do público atual contra tudo o que é taxado de polêmico ou que aparenta sê-lo. Parece se esquecer de quantas questões importantes só puderam ser esclarecidas graças aos contraditores, e que os homens não entrariam em acordo sobre o quer que seja se não fossem alvos de querelas sobre nada. ‘Querela’ é, com efeito, o termo do qual se serve a conveniência para estigmatizar toda discussão. E provocar querelas se tornou tão inconveniente que temos menos vergonha de maldizer ou de odiar do que de dar prosseguimento a uma querela”, Lessing, 1769. 1
Se os arquivos audiovisuais são, cada vez mais, objeto de um entusiasmo generalizado, coloca-se a questão das tensões e contradições engendradas pelos usos diversificados. Estas imagens, de fato, entraram pouco a pouco no campo dos historiadores, sem ter, contudo, o estatuto dos arquivos escritos. Além disso, uma das tendências dominantes da produção documentária mainstream se baseia, há anos, na disjunção operada entre, de um lado, a história dos acontecimentos, deixada aos profissionais da história, e, de outro lado, a história das imagens, considerada como um domínio reservado ao diretor. Nessa perspectiva, em geral, a única tarefa dos historiadores é validar “a exatidão histórica”. No entanto, aos maus usos de antes, as tecnologias digitais acrescentam uma nova dimensão, facilitando manipulações como a colorização ou a sonorização dos planos. Sylvie Lindeperg descreve certas práticas dominantes do documentário histórico que relega a imagem de arquivo à função de mercadoria e oferece algumas pistas em prol de um “estatuto científico” dos arquivos audiovisuais. Desde o final do século passado, e de maneira acelerada nos últimos anos, as imagens de arquivo são objeto de todas as atenções. Seu atrativo se manifesta nos domínios da pesquisa, do ensino, da criação. Elas também são exploradas pelas indústrias culturais, que as levam ao conhecimento de um grande público, com um novo look, proporcionado pelos efeitos . Se podemos nos alegrar com esse entusiasmo generalizado, convém tomar consciência das tensões e contradições engendradas por essas múltiplas utilizações. Fontes incontornáveis para a História do amanhã, as imagens filmadas não gozam de um estatuto equivalente ao dos arquivos escritos. Se elas entram, pouco a pouco, no laboratório
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1. Gotthold Ephraim Lessing,
Laocoon ou des frontières de la peinture et de la poésie, préface d’Hubert Damish, Paris, Éditions Hermann, 1990, réédition 2002, p. 201.
dos historiadores, seu lugar ali dentro permanece marginal. A invenção tardia do cinema e do audiovisual, as especificidades técnicas do seu arquivamento, seu valor mercadológico e as questões jurídicas que suas imagens levantam, as colocam à margem das regras em vigor para a conservação e a comunicação dos arquivos. Sua integridade se encontra, por vezes, ameaçada, o acesso a elas permanece desigual. Suas utilizações onerosas, frequentemente proibitivas, freiam igualmente a experimentação de formas inovadoras de escritura da história, no âmbito dos dispositivos pedagógicos e científicos.
2. É todo o sentido do
seminário “A quem pertencem as imagens?” e do programa de pesquisa sobre os fundos de arquivos audiovisuais que eu implementei (mis en oeuvre) na Universidade Paris 1, com Agnès Devictor e Ania Szczepanska, no quadro no LabEx Création, Arts, Patrimoines.
Por serem entrelaçadas e interdependentes, essas questões necessitam de uma reflexão de fundo associando historiadores, cineastas, pedagogos, produtores, juristas, arquivistas, conservacionistas…2 Eu me contentaria em indicar, aqui, algumas pistas sobre o “estatuto científico” dos arquivos audiovisuais e sobre algumas práticas dominantes do documentário histórico, me apoiando em exemplos emblemáticos.
A imagem como vestígio/rastro: confrontar o inteligível à perda Negligenciadas pelos historiadores por muito tempo, as imagens filmadas começam, aos poucos, a serem reconhecidas como fontes preciosas. Elas clareiam os acontecimentos de maneira sensível, renovam os pontos de vista sobre eles, reabrem suas perspectivas; elas guardam os rostos e gestos de mulheres e homens do passado, dão corpo aos ausentes da história, trazem à luz fatos e temas esquecidos. As imagens de arquivo são também os sintomas das mentalidades de uma época, de suas maneiras de ver e de pensar, de formar a opinião, de construir as memórias e fixar os imaginários. Elas testemunham, ainda, sobre o papel de agentes da história e vetores da memória exercido pelo cinema e pelo audiovisual. É que as câmeras fizeram mais do que registrar o mundo. Filmando-o, elas contribuíram para modificá-lo profundamente, fazendo surgir novas formas de historicidade e de eclosão de acontecimentos. Nesse sentido, levar em conta os arquivos audiovisuais excede, em grande medida, o domínio da história cultural; eles constituem um material precioso para uma história social, política, mental, simbólica dos mundos contemporâneos.
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O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg
Se essa constatação traça o seu caminho na “comunidade científica”, os contemporaneístas franceses ainda são, no entanto, muito reticentes em reconhecer a importância das imagens na escrita da história, em integrá-las em suas pesquisas e atividades de ensino. Os especialistas em imagens filmadas são mantidos na periferia dos departamentos de história. E se seus trabalhos são ignorados por seus pares de maneira menos sistemática, eles exercem seus magistérios fora da disciplina. Essa tomada de consciência, tardia e lenta demais, freia o indispensável desenvolvimento de um ensino teórico e metodológico sobre essas fontes arquivísticas de um gênero particular, uma vez que a interpretação dos arquivos filmados deve ser submetida a regras rigorosas, dado o seu manuseio delicado. Por sua capacidade de tornar visível um passado que não existe mais, os arquivos audiovisuais estão na origem de numerosas imposturas. Em L’absent de l’histoire, Michel de Certeau compara a posição do historiador com a de Robinson Crusoé na costa de sua ilha, descobrindo “o vestígio de um pé descalço impresso na areia”: “O historiador percorre as bordas de seu presente; ele visita essas praias nas quais o outro aparece apenas como rastro do que passou. Ali, ele instala sua indústria. A partir de pegadas definitivamente mudas (o que passou não retornará mais e a voz está perdida para sempre), […] constrói-se uma mise-en-scène da operação que confronta o inteligível a essa perda”.3 A imagem filmada tem um quociente de realidade maior do que o documento escrito; ela parece, assim, limitar a perda existente no âmago do trabalho histórico. A captação da máquina cinematográfica, por parecer conservar ao mesmo tempo a pegada e o pé, oferece um excedente de real que está na origem de numerosas ilusões. A voz registrada não é mais exatamente a mesma, mas ela já não está mais totalmente perdida. Esse efeito de presença dá a sensação de que algo do que passou retorna; ele pode ser, nesse sentido, uma armadilha que atrapalha o trabalho necessário de interpretação. O aparelho de gravação suprime, ao mesmo tempo, a distância estrutural entre o advento de um fato e sua inscrição, modificando profundamente as condições de escrita e de produção da história. No final do século XIX, Charles Seignobos e CharlesVictor Langlois, ao mesmo tempo em que estabeleciam as bases do método histórico e fixavam as regras de expertise dos
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3. Michel de Certeau,
L’absent de l’histoire, Paris, Maison Mame, 1973, p. 8-9 [tradução nossa]
4. Le Petit Moniteur, 9 de junho de 1898; Le Journal des débats, 11 de maio de 1898 (textos reunidos em Boleslas Matuszewski, Écrits cinématographiques. Une nouvelle source de l’histoire e La Photographie animée, Edição organizada por Magdalena Mazaraki, Paris, AFRHC/La, Cinématheque française, 2006).
5. Segundo os termos de Boleslas Matuszewski, ibid.
documentos de arquivos, advertiam seus contemporâneos de que a História não poderia jamais almejar o estatuto de ciência, por não provir, de maneira alguma, da observação. Na mesma época, a invenção dos irmãos Lumière suscitava o entusiasmo de alguns contemporâneos; ela acenava com o amanhecer de uma nova era, na qual, graças às câmeras, o conhecimento do passado se tornaria uma “ciência exata”. O crítico do Journal des débats profetizava que as cátedras de história seriam, em breve, “todas elas ocupadas por simples apresentadores de lanterna mágica”, acrescentando que, assim, muitos erros seriam poupados às futuras gerações. Ainda em 1898, o jornalista do Petit Moniteur comparava essas imagens a “fatias de passado engarrafadas”, que bastaria deixar envelhecer, “como os grandes vinhos, antes de serem liberadas para o consumo”, a fim de fazer “reviver” os séculos transcorridos.4 As imagens não seriam vestígios por interpretar, mas fatos enlatados; sua conservação permitiria às gerações futuras observá-los. A História e o real seriam restituídos em sua plenitude; a câmera seria uma “testemunha ocular verídica e infalível”; a evanescência do testemunho e as falhas da memória humana seriam combatidas pela exatidão da reprodução analógica. A ideia segundo a qual os arquivos filmados gozam de um estatuto de “prova absoluta”,5 oferecendo uma verdade blindada, incontestável e intangível, nunca perdeu sua atualidade. Ao longo de todo o século XX, essa crença conviveu, não sem paradoxo, com formas cada vez mais sofisticadas de manipulação das imagens, amplificadas pelos desenvolvimentos da montagem e pelo advento do cinema sonoro. Assim, cada época projetou sobre as imagens do passado sua psiquê, seus sonhos e seus fantasmas, mobilizou-as a serviço da propaganda, forçou o seu sentido, solicitou-as, violentou-as sem limites. Os arquivos filmados encontram-se, assim, presos entre dois perigos opostos: o curto-circuito da interpretação frente à ilusão de um passado que retorna; e o comentário sem controle que abusa das imagens, transformando-as em superfícies de projeção que refletem as questões e os olhares do tempo presente. Frente a essa constatação, os historiadores precisam lembrar que seu ofício é o de estabelecer as fontes e interpretar os documentos – sejam eles escritos, filmados ou fotografados – a fim de progredir no conhecimento dos fatos e na inteligência
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O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg
do passado. Cabe a eles também redobrar o rigor para pensar, sob um novo ângulo, a partilha entre visibilidade e legibilidade, em jogo na imagem em movimento. Essa atenção exige uma cultura do cinema e do audiovisual, um conhecimento das técnicas e maneiras de filmar, uma reflexão sobre o contexto das tomadas e suas relações com o extracampo. A imagem filmada, não custa repetir, oferece apenas uma porção do real, transformada e enquadrada; ela é a expressão de um ponto de vista e, ao mesmo tempo, um documento sobre as maneiras de filmar, de apreender o mundo, de lançar um olhar sobre seus contemporâneos. Enquanto o reconhecimento dos arquivos audiovisuais nos lugares de pesquisa e formação tarda a se impor, aumenta, cada vez mais, o número de historiadores que coloca o seu saber a serviço do cinema e da televisão. Há uma grande variedade dessas colaborações, às vezes muito frutíferas: elas ocupam todo o espectro que vai dos documentários de grande público às obras mais experimentais do cinema de criação. Se não cabe aqui estudar suas modalidades, certas práticas merecem ser examinadas com atenção, na medida em que elas engajam a responsabilidade dos historiadores.
Imagens violadas Há muitos anos, uma das tendências dominantes da produção documentária mainstream se baseia na disjunção operada entre a história dos acontecimentos e a história das imagens. A primeira justificaria o apelo aos profissionais da História, a segunda seria domínio reservado do cineasta. Nessa perspectiva, a única tarefa dos historiadores é validar os desdobramentos da narrativa e a “exatidão histórica” dos comentários, sem se preocupar com a maneira como as imagens de arquivo são organizadas, trabalhadas, interpretadas ou com a forma como sua historicidade, natureza e estatuto são levados em conta ou não. Essa disjunção coloca um problema: podese, seriamente, respeitar a “verdade histórica”, se a história das imagens é totalmente falseada, seu sentido violado, suas determinações técnicas e ideológicas ignoradas, negadas? A divisão do trabalho em vigor nessas produções audiovisuais lhes permite se beneficiarem do rótulo histórico; nesse sentido,
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esse selo científico legitima práticas a-históricas que o saber sobre as imagens, em constante progressão, torna cada vez mais discutíveis.
6. Sobre esse tema, ver Sylvie
Lindeperg, Nuit et brouillard. Un film dans l’histoire, Paris, Odile Jacob, 2007.
7. Acrescenta-se a isso, há
muito tempo, a mudança do formato de 4/3 ao 16/9 que mutila as imagens de arquivo.
Vários filmes sobre os acontecimentos do século XX conheceram uma era da inocência em que a leitura equivocada das imagens precedeu o tempo da História. Os primeiros documentários sobre os campos nazistas foram tributários de um saber balbuciante e de um conhecimento bastante lacunar sobre as fotografias e planos de arquivo. Eles foram realizados em uma época em que as demandas sociais, simbólicas e políticas dirigidas às imagens eram outras.6 Hoje, o horizonte de leitura desses arquivos fotográficos e fílmicos é bem diferente. Utilizar um plano de ficção para mostrar a chegada de um comboio de deportados judeus nos trilhos de Birkenau, ou ilustrar sua espera diante da câmara de gás com fotografias de execuções à bala, tiradas em 1941 nos territórios da antiga União Soviética, trai, com conhecimento de causa, o sentido das imagens, e falseia a compreensão do acontecimento. O saber histórico estabelecido ao longo dos anos permitiu esclarecer as etapas sucessivas do extermínio dos judeus e distinguir os campos de concentração dos campos de extermínio, inclusive em termos de imagens. A vontade de destruir os vestígios e de tornar o judeicídio invisível foi objeto de inúmeras reflexões e o problema esteve na origem da obra matricial de Claude Lanzmann, Shoah (1985). Aquilo que os cineastas dos anos 1940 e 1950 não podiam saber nem compreender chegou, assim, ao conhecimento de seus sucessores. O fato de alguns deles retomarem essas práticas deve-se, doravante, a um engano deliberado ou a uma ignorância imperdoável. Essa desenvoltura é particularmente preocupante quando esses mesmos cineastas pretendem transmitir a história e empunham as imagens como provas. Ora, as tecnologias digitais acrescentam uma nova dimensão a esses antigos abusos, facilitando a colorização e a sonorização dos planos.7 Esse design new look dos arquivos, que os submete às maneiras de ver do presente, coloca, portanto, um problema particular, quando quem se serve deles o faz em nome da verdade histórica. É o caso de Isabelle Clarke e Daniel Costelle na série Apocalypse, sobre a qual convém retornar, em razão de seus efeitos e de sua midiatização, tão extrema quanto unívoca.
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O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg
8. Apocalypse La Première
Todo e seu contrário A campanha de marketing em torno do último opus sobre a Grande Guerra8 impôs, de fato, a ideia de que os debates sobre a colorização haviam terminado. Ela opôs, de forma caricatural, os “antigos” – guardiões ortodoxos do preto e branco – aos “modernos”, adeptos do progresso, convencidos das virtudes da colorização. Ela conseguiu transformar a colorização num falso problema, mascarando questões cruciais vinculadas a essa prática. Torna-se ainda mais importante lembrar tudo isso, na medida em que este frenesi midiático sem matizes9 e seu cortejo de superlativos tornaram inaudíveis as vozes dos que contestam esses argumentos e apontam suas contradições.10 Os realizadores e os produtores de Apocalypse apresentam a “colorização” como a “única solução” que permite “tocar” e “sensibilizar” um vasto público e, particularmente os jovens espectadores, quanto à História. Ela seria, neste sentido, um mal necessário, uma concessão feita a seus hábitos de consumo. Essa justificativa, ainda que peremptória e condescendente no que diz respeito aos adolescentes, mereceria, sem dúvida, ser debatida seriamente pelos pedagogos.11 Porém, o argumento do “mal menor” é imediatamente contradito por uma segunda afirmação: a colorização seria um “must” tecnológico colocado a serviço da verdade. Já que os cinegrafistas viam a guerra em cores, explicam os cineastas, o digital viria “consertar os defeitos” das imagens em preto e branco, corrigir suas deficiências técnicas, torná-las “mais verdadeiras”.12 Em nome de um discurso tecnicista, a ausência é transformada em “mutilação” e o real confundido com seu registro. Embora os cinegrafistas envolvidos nesse conflito vissem o mundo em cores, eles estavam perfeitamente conscientes de fotografá-lo em preto e branco. Por outro lado, quando utilizavam – muito raramente – uma película em cores, eles assumiam sua escolha e respondiam por suas imagens diante dos espectadores. Foi o caso de John Ford, quando filmou a batalha de Midway (1942), servindo-se das cores para construir um hino à nação americana. Em uma perfeita continuidade cromática, o cineasta brinca com o brilho do pôr do sol para clarear os marines em repouso, antes do combate decisivo; em seguida, ele os mostra içando a bandeira estrelada, com o vermelho que se ilumina e, por fim, conclui seu filme com um V de vitória, traçado em letra de sangue. Quando
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Guerre mondiale, série em cinco episódios, escrita e realizada por Isabelle Clarke e Daniel Costelle, produzida por CC&C Louis Vaudeville e Ideacom Internacional (Canada), com a participaçao da France Télévisions e TV% Quebec, Canada, 2014. 9. Que os produtores da série
se lancem numa estratégia de marketing agressiva, isso se explica, amplamente, pela necessidade de amortizar as somas consideráveis que investiram. Que mídias parceiras, como France Info ou Le Nouvel Observateur, os imitem, é lamentável, porém esperado. Que uma maioria esmagadora da imprensa retome, sem discernimento, os “elementos de linguagem” comunicados pela produção, é mais preocupante. Daniel Psenny, no Le Monde (13 de março de 2014), afirma que o debate sobre a colorização terminou; ele acredita convencer seus leitores das virtudes da colorização, ao evocar Les Femmes et la Grande Guerre, documentário feito “à base em arquivos totalmente colorizados”, projetado em 8 de março de 2014 no Élysée, por iniciativa de Najat Vallaud-Belkacem. Além do argumento da unção do Élysée e do patrocínio da ministra dos direitos das mulheres não terem peso, eu me permito assinalar que essa projeção, à qual assisti com uma dezena de historiadores, foi feita em preto e branco. Quem muito quer… 10. Entre os recalcitrantes,
citemos de mémória: Georges Didi-Huberman, “En mettre plein les yeux et rendre Apocalypse irregardable”, Libération, 21 septembre 2009; André Gunthert em seu blog,
«L’Atelier des icônes» (e, em particular, o post de 7 novembre 2011 “Apocalypse ou la trouille de l’histoire”); Sylvie Lindeperg (La Voie des images. Quatre histoires de tournages au printemps-été 1944, Lagrasse, Verdier, 2013, capítulo 1 e diálogo com JeanLouis Comolli); Laurent Veray, Les Images d’archives face à l’histoire. De la conservation à la création, Poitiers, Scérén-Cndp-Crdp, 2011 e, mais recentemente, no site de Télérama (“Apocalypse, une modernisation de l’histoire qui tourne à la manipulation”, texto publicado em 25 de março de 2014). 11. Ver a argumentação de André Gunthert, artigo citado, blog “L’Atelier des icônes”. 12. Ver, especialmente, suas
palavras no bonus da caixa de DVD de Apocalypse. La Seconde Guerre mondiale, France 2 Editions, 2009. Os dois realizadores são reincidentes, à propósito das imagens da Grande Guerra, quando dizem que “o preto e branco é um tipo de amputação, uma vez que a cor é a realidade”, palavras citadas por Daniel Psenny.
a equipe de Apocalypse. La seconde guerre mondiale coloriza arbitrariamente os planos de O triunfo da vontade, ela contribui, por sua vez, com a produção de uma imagem falsa. Tendo colocado em cena o congresso do partido nazista de 1934, em busca do melhor registro possível, que oferecesse ao público a plena amplitude do evento, Leni Riefenstahl teria preparado e escolhido efeitos específicos se seu filme tivesse sido filmado em Agfacolor. A colorização sistemática impede, portanto, de pensar as diferenças entre a maioria dos filmes e tomadas do conflito registrados em preto e branco e os planos, infinitamente menos numerosos, filmados em cores. Ela tampouco permite distinguir as imagens filmadas por profissionais daquelas filmadas por amadores – alemães e americanos – que podiam, então, dispor de película em cores para suas pequenas câmeras. Em Apocalypse Hitler (2011) a homogeneização da imagem pela cor elimina, artificialmente, a distância existente entre esses filmes amadores e os arquivos “oficiais”, e camufla seus estatutos e usos distintos. Da mesma forma que os filmes de Leni Riefenstahl, os cinejornais do regime nazista foram rodados em preto e branco e projetados em sala de cinema; eles contribuíram para forjar um imaginário contemporâneo sobre os acontecimentos; eles agiram no presente da história. Pois se o mundo da Segunda Guerra Mundial era colorido antes de sua “captação”, o universo mental, as representações do conflito, o imaginário coletivo de grandes nações beligerantes foram transmitidos em preto e branco. Durante o mesmo período, as imagens amadoras permaneceram restritas aos círculos familiares; elas não foram vistas pelos espectadores. Dentre essas sequências, é preciso ainda distinguir as visões do mundo da guerra filmadas por profissionais dos “filmes de família”. Os realizadores de Apocalypse Hitler misturaram indistintamente às visões oficiais do regime nazista, imagens de pessoas próximas do Fuhrer; eles semearam a confusão entre as esferas públicas e privadas, correndo o risco de alimentar o velho clichê do homem ordinário emergindo dos restolhos de um monstro. Não se trata, evidentemente, de censurar essas imagens amadoras, nem de negar o interesse nelas; mas é preciso estar consciente de seu manuseio delicado, inventar um dispositivo que permita distingui-las e confrontá-las com os arquivos oficiais.
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O destino singular das imagens de arquivo / Sylvie Lindeperg
Os artifícios de uma “realidade aumentada” A colorização de Apocalypse aboliu todas essas diferenças de natureza e estatuto, impondo uma falsa continuidade visual entre imagens concebidas de diferentes pontos de vista.13 Ela permite também a Isabelle Clarke e Daniel Costelle tornarem menos discernível o amálgama persistente que produziram entre documentos de arquivo e planos de ficção, mantendo os espectadores na ilusão de que todos os acontecimentos do passado teriam sido filmados.14 O fato dessa uniformização das cores ser realizada, em Apocalypse – La Première Guerre mondiale, com a participação de especialistas da história militar, não a torna nem mais verdadeira, nem mais aceitável; pode-se mesmo considerar que essa colaboração agrava a impostura. Pois tais historiadores, apresentados como garantia de autenticidade, asseguram aos realizadores o certificado de que as cores adicionadas são as “verdadeiras cores” do passado. Deixemos de lado o fato de que a expertise desses historiadores dificilmente vai além dos acessórios militares – armamentos, bandeiras, uniformes – e permanece ineficaz para “reencontrar” as nuances de um céu de inverno, a cor dos cabelos de um soldado ou dos olhos de uma transeunte; felizmente, sua arbitragem não é mais soberana diante do sangue vermelho de uma ferida, da carnação de um rosto mutilado ou de um corpo desmembrado.15 O verdadeiro problema é que esses consultores históricos, seja qual for a extensão do seu saber, não conferem às imagens suas “verdadeiras cores”: eles as submetem aos artifícios de uma realidade aumentada. Essa colorização “certificada conforme”, que se obstina a negar os aspectos técnicos e a historicidade das eras do visível, apenas reanima a velha ilusão de um passado recuperado em sua completude, ampliando a confusão entre o acontecimento e o seu registro filmado. As imagens do passado não são consideradas como testemunhos, como pontos de vista sobre o mundo, mas como “a realidade visível das coisas, a verdade da própria história na medida em que aparece como evidência na tela”.16 Essa verdade histórica que já nasce pronta da imagem confere, por sua vez, de maneira abusiva, a autoridade do que é visto ao comentário e às escolhas narrativas questionáveis dos dois realizadores. Como sublinha André Gunthert, “Costelle e Claeke abrigam uma narração unívoca por trás do material documental,
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13. Ver Georges Didi-
Huberman, “Des images pour ne pas voir”, artigo citado.
14. Como a introdução,
em uma sequência sobre Auschwitz, de um plano de La Dernière Étape (1948), ficção de Wanda Jakubowska sobre o campo de mulheres de Birkenau (Apocalypse. La Seconde Guerre mondiale) ou, ainda, a utilização de imagens de ficção filmadas por Léon Poirier em 1928 para seu filme Verdun, vision d’histoire (Apocalypse. La Première Guerre mondiale).
15. Sobre as questões
éticas levantadas pela colorização dos cadáveres em Apocalypse. La Seconde Guerre mondiale, poupando os dos judeus por razões bastante contingentes, ver Sylvie Lindeperg, La Voie des images, op.cit. p. 35.
16. François Niney, Le
Documentaire et ses faux-semblants, Klincksieck, 2009, p. 116.
17. André Gunthert, artigo
citado.
18. Comentários feitos por Daniel Psenny (artigo citado). Encontramos a estética do JT até na maneira de inscrever nas imagens o nome das personalidades da época, como Nicolas II, Georges V ou Guillaume II.
19. François Hartog, Régimes
d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Le Seuil, 2003, p. 200.
mobilizado, ao mesmo tempo, como ilustração e garantia do relato. Este método, aparentemente inatacável, não é nada mais do que uma ilusão redobrada, típica da história oficial”.17 Os consultores históricos de Apocalypse – La Première Guerre mondiale são capturados em outra contradição do discurso de marketing que apresenta a colorização como meio ideal para “modernizar” o conflito, apresentando aos espectadores imagens “mais próximas” deles. Como explica Isabelle Clarke, o objetivo confesso deles é “se reaproximar dos telejornais atuais”.18 Essa visão conscientemente a-histórica exibe todos os sintomas do “presentismo”: ela nivela a distância temporal em relação ao passado, abole as distâncias e suprime as articulações. O passado revisitado pelos realizadores de Apocalypse se vê obrigado a retornar a um presente inteiramente dilatado, cujos julgamentos morais, maneiras de ver, de “ressentir”, de tornar sensível eles assumem; um “presente maciço, invasivo, onipresente, que não possui outro horizonte além de si próprio e que fabrica cotidianamente o passado e o futuro de que necessita, dia após dia”.19 Assim, “modernizadas”, as duas Guerras Mundiais, tratadas por Isabelle Clarke e Daniel Costelle, comentadas pela voz de Mathieu Kassovitz, submetidas à concepção gráfica da “marca” Apocalypse, apresentam o mesmo rosto esticado pela plástica das técnicas digitais. Cada episódio propõe ao espectador um mergulho livre na imagem e no som, uma montagem agitada e veloz que pulveriza a duração dos planos, uma visão do passado governada apenas pela solicitação dos afetos e sentidos. E como já se anuncia, com Stálin e a Guerra Fria, novas temporadas sob a franquia “Apocalypse”, é de se esperar que todos os acontecimentos do século XX, temerosamente revisitados por Clarke e Costelle, sejam em breve submetidos à mesma visão escatológica da História que renova o fatalismo dos povos diante da catástrofe, nutre o terror impotente das vítimas diante da “loucura dos tiranos”, em vez de tentar esclarecer as múltiplas causas de suas tomadas de poder, em vez de despertar a inteligência crítica do cidadão diante da História, de armar o olhar do espectador diante da imagem. São essas as obrigações de um serviço público que respeita sua audiência. E pode-se considerar como fator agravante que a série Apocalypse seja coproduzida pela France
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Télévisions, financiada com dinheiro das taxas pagas por quem tem televisão em casa. É ainda mais grave se pensarmos que essa série interfere no ensino secundário (alguns professores de escolas e liceus utilizam esses arquivos manipulados em aulas) e no campo da conservação dos arquivos. O Institut national de l’audiovisuel (Ina) não tem, ele mesmo, planos de criar um serviço de colorização permitindo rentabilizar seus fundos e vender imagens embelezadas? Aceitar-se-ia, sem debate, que o Banco da França abrisse um escritório especializado em moeda falsa ou que os Arquivos Nacionais começassem a retocar os documentos sob sua responsabilidade, a fim de torná-los mais atraentes? Essas diferenças mostram o nível do tratamento singular reservado aos arquivos filmados, submetidos a uma imprecisão jurídica persistente, relegados ao triste destino de mercadorias, sobre as quais bastaria pagar os direitos patrimoniais para se ver livre das servidões históricas e morais que a utilização delas requer.
Por uma reflexão ética sobre o maltrato das imagens A servidão dos arquivos filmados às leis atreladas do comércio e do espetáculo não vai se limitar à colorização, uma vez que as inovações técnicas oferecerão efeitos de real cada vez mais “impressionantes”.20 Depois das fotografias em relevo, as pesquisas acústicas permitirão, em breve, recriar a voz de grandes personagens do passado e fazê-los falar, partindo de documentos mudos. Podemos apostar que conselheiros históricos serão, mais uma vez, consultados, a fim de validar a textura da voz de Rasputin ou do imperador Guilherme II. Se as técnicas digitais facilitam a metamorfose sem limite das marcas do passado, elas não deveriam suscitar uma reflexão ética equivalente àquela que acompanha o progresso da medicina? Se os avanços tecnológicos não podem ser postos em causa nem, obviamente, proscritos21, os historiadores não teriam a responsabilidade de apontar seus efeitos perversos, de mascaramento da verdade histórica? O concerto midiático empobrecedor orquestrado em torno de Apocalypse pretende fazer de seu sucesso público um argumento de autoridade, que o imporia como a receita de documentários do horário nobre, “a única solução” para alcançar o “grande público”. É fazer pouco
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20. Para retomar uma das
expressões recorrentes da campanha de marketing. Nota do tradutor: no original, “époustouflants”, termo utilizado na linguagem comercial e publicitária francesa, para caracterizar, com afetação, algo considerado “impressionante”.
21. Sobre o assunto, ver
Sylvie Lindeperg, La Voie des images, op.cit, p. 32-33.
22. Daniel Costelle e Isabelle Clarke atuam, permanentemente, em todas as frentes – história, pedagogia, edificação moral, “dever de memória” – sem nenhuma crise de consciência ou receio de contradição. Eles parecem tão aptos a evocar a verdade histórica (“Aqui está a verdadeira história da Segunda Guerra Mundial”, afirmam sem pestanejar na abertura da primeira temporada de Apocalypse...) quanto a se servir da licença poética e da liberdade de criação, quando precisam justificar suas escolhas narrativas.
caso dos realizadores – ainda existe, desses – que se destinam à uma grande audiência com invenção formal e exigência, certos de que a conquista do público não pode ser obtida por meio do maltrato das imagens, desprezando a História.22 Encorajar a diversidade, promover outros modos de fazer, discutir publicamente os usos dos arquivos fílmicos são necessidades ardentes. Elas levantam questões eminentemente políticas; elas engajam o futuro; elas prefiguram as condições de escritura da História de amanhã.
Tradução de Julia Fagioli e Pedro Veras Revisão técnica por Anita Leandro
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O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada em O fundo do ar é vermelho* Julia Fagioli Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais, da linha de pesquisa Pragmáticas da Imagem, sob orientação do Prof. André Brasil. É mestre pela mesma instituição.
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Resumo: O que propomos neste artigo é uma comparação entre as duas versões do filme O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993), de modo a investigar as diferenças entre as duas montagens e, ainda, se há, de uma à outra, uma mudança de perspectiva. Para realizar essa análise, será imprescindível refletir sobre o trabalho de montagem de Marker, característica essencial do seu cinema. Palavras-chave: Montagem. O fundo do ar é vermelho. Retomada. Abstract: What we propose in this article is a comparison between two versions of the film A grin without a cat (Chris Marker, 1977/1993) in order to investigate the differences between the two montages, and also if there is a change in perspective. For this analysis, it will be essential to reflect on Marker’s work with montage as a hallmark of his cinema. Keywords: Montage. A grin without a cat. Retake. Résumé: Nous procédons dans cet article à une comparaison entre les deux versions du film Le fond de l’air est rouge (Chris Marker, 1977/1993), en vérifiant les différences entre les deux montages, et l’éventuel changement de perspective du cinéaste par rapport à l’histoire. Pour effectuer cette analyse, il sera essentiel de réfléchir sur le travail de montage de Marker, marque de son cinéma. Mots-clés: Montage. Le fond de l’air est rouge. Reprise.
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O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli
Introdução
* Este artigo faz parte de
O trabalho de montagem de Chris Marker é a característica mais marcante do seu cinema. É através da articulação entre imagens e textos que ele desenvolvia os argumentos de seus filmes. Em O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993), podemos perceber de forma particular esse gesto de Marker, primeiro, pois há uma densa reflexão sobre os anos 1960 e 1970. Ao retomar essas imagens, em 1993, ele mostra que as questões políticas são uma preocupação permanente em sua obra. Sobre sua relação com a história e a política, em uma de suas raras entrevistas, Chris Marker afirma:
Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e a política, a arte do compromisso (como lhe é atribuído, porque, se não há compromisso, existe apenas a força bruta, da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia profundamente. O que me interessa é a História, e a política me interessa apenas na medida em que carrega a marca da história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu identifico à de alguns dos personagens de Kipling, o elephantboy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável): indago como as pessoas conseguem viver em um mundo como este? E vem daí a minha mania de perceber “como as coisas são”, neste lugar ou naquele.1
Ao montar um filme como O fundo do ar é vermelho, Chris Marker deixa claro esse entendimento da política como “marca da história no presente”. O diretor retoma imagens da história, mais especificamente aquelas referentes aos movimentos sociais dos anos 1960 e 1970, não simplesmente para uma reconstrução factual dos acontecimentos da época, mas para uma análise de um contexto social e político, a partir das imagens, visando não só o passado, mas o próprio presente. O filme, sabemos, possui duas versões. Uma primeira montagem, de 1977, com quatro horas de duração, foi realizada logo após um período de militância mais intensa, em que Marker elabora uma espécie de balanço, uma reflexão em retrospecto de tudo o que se passou, como, por exemplo, os movimentos estudantis dos anos 1960, a organização do movimento operário e dos partidos comunistas e a guerra do Vietnã. Porém, num gesto de retomada, ou de repetição, quinze anos depois, Marker
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pesquisa de doutoramento, ainda em processo. Quando foi escrito, tínhamos conhecimento de duas versões do filme: uma de 1977 e outra de 1993, como reforça a maior parte da bibliografia sobre a obra de Chris Marker. Porém, após um aprofundamento da pesquisa, descobrimos outras duas versões, de 1988 e 1998, sendo esta, na verdade, aquela que acreditávamos ter sido montada em 1993. A segunda montagem, de 1988, foi realizada para um canal de televisão alemão e, em 1993, uma nova versão foi realizada para o britânico Channel 4. Entre 1988 e 1993, foram feitas mudanças de tradução da legenda e inscrições nas imagens para situar o espectador em relação aos lugares e personagens. A quarta e última é realizada em 1998, por ocasião da retrospectiva “Marker mémoire” organizada pela cinemateca francesa e considerada por Marker a única versão de referência. 1. No original: “Pour beaucoup
de gens, “engagé” veut dire “politique”, et la politique, art du compromis (ce qui est tout à son honneur, hors du compromis il n’y a que les rapports de force brute, on en voit quelque chose en ce moment...), m’ennuie profondément. Ce qui me passionne, c’est l’Histoire, et la politique m’intéresse seulement dans la mesure où elle est la coupe de l’Histoire dans le présent. Avec une curiosité récurrente (si je m’identifie à un personnage de Kipling, c’est l’enfant-d’éléphant des Just so stories, à cause de son “insatiable curiosité”) : mais comment font les gens pour vivre dans un monde pareil
D’où ma manie d’aller voir «comment ça se passe» ici ou là”. Trecho de entrevista com Chris Marker, disponível em: http://next.liberation.fr/ cinema/2003/03/05/raremarker_457649. Acesso em: 14 de Maio de 2015
remonta o filme e chega a uma segunda versão, com três horas de duração. Uma comparação entre as duas versões do filme não apenas mostra que há diferenças nas imagens e na montagem, mas revela, também, uma mudança de perspectiva do montador, uma mudança de tom do argumento central. Trata-se de um gesto significativo na obra do diretor, pois o filme de 1977 remete a um ciclo de sua carreira que muitos já acreditavam fechado. A retomada da montagem, em 1993, desmistifica a separação completa entre o cinema militante e o cinema ensaístico de Chris Marker. Por isso, buscamos analisar mais detalhadamente as semelhanças e diferenças entre as duas versões, levando em consideração os acontecimentos históricos e os outros filmes de Marker produzidos nesse intervalo, sendo essencial para realizar esta análise compreender a importância da montagem em sua obra, de modo geral. O que podemos perceber ao comparar as duas montagens de O fundo do ar é vermelho é que há mudanças pontuais, no entanto significativas e reveladoras. Para comparar as duas versões, foi preciso ver os dois filmes simultaneamente. Quando havia diferenças, o filme mais recente foi pausado e, em todos os casos, o filme de 77, mesmo com 60 minutos a mais, alcançava a imagem congelada do filme de 93, de modo que o encadeamento dos acontecimentos na montagem foi respeitado. Há um eixo fílmico e uma organização lógica das imagens dos acontecimentos que estão nas duas versões do filme. Ao longo da comparação, percebemos que, apesar das diferenças entre as duas versões, há uma forma de organizar os acontecimentos e os temas tratados que é mantida. Além da divisão em duas partes, há uma outra divisão temática, bem mais sutil, em blocos temáticos. Dentro dos blocos é que detectamos as principais diferenças entre as duas montagens, como veremos adiante com mais detalhe. Em O fundo do ar é vermelho a reconfiguração do sentido não recorre apenas a uma estratégia ou a um procedimento de montagem, mas se realiza por meio de diferentes formas de associar as imagens, tais como operações dialetizantes, serializações, analogias, mimeses de gesto, associações entre arquivos de imagens e de áudio. Assim, ao longo do filme – nas duas versões – os efeitos produzidos pela montagem são diversos e complexos. Por essa razão, a memória evocada no filme permanece aberta e seu significado se altera à medida que as imagens são organizadas
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de uma maneira ou de outra. Ao longo da comparação entre as versões será possível compreender melhor como o diretor realiza esses gestos e as implicações sensíveis produzidas por eles. O gesto de montagem de Chris Marker O fundo do ar é vermelho, de Chris Marker, além de um gesto expressivo de montagem, é um filme exemplar de como a temática da revolução atravessa a obra do diretor, pela riqueza de materiais de arquivo reunidos e também pelo fato de que foi montado em 1977, com quatro horas de duração e remontado em 1993, com três horas. Trata-se de um filme, com duas versões, que mostra enfaticamente o caráter militante do cinema de Marker e a importância do seu trabalho de montagem dos arquivos, retomado no filme de 1993, quando reinicia um processo reflexivo em relação às imagens, aos contextos em que foram produzidas e como devem ser articuladas. Nas duas versões, mantém-se a divisão em dois blocos: As mãos frágeis e Mãos cortadas. O primeiro bloco tem como ponto de partida a guerra do Vietnã e trata do surgimento e fortalecimento do socialismo. Já o segundo bloco, parte da primavera de Praga para abordar o declínio do socialismo ao redor do mundo. O intervalo de 15 anos entre as duas versões incitou-nos a analisar as diferenças entre as duas montagens e, ainda, buscar indícios na obra de Chris Marker – tanto nos filmes anteriores a 1977, como naqueles realizados entre 77 e 93 – que pudessem sugerir o porquê de se retornar às imagens e, por meio da remontagem, lançar sobre elas um novo olhar. Para Catherine Lupton (2005), Marker dá o tom do filme movido por aquilo que tomava como uma amnésia histórica em relação ao período, causada, principalmente, pelo tratamento dado pela televisão ao tema, quando os ideais são substituídos por um relato frio – pretensamente neutro – dos fatos. Ao contrário, o filme consiste em um processo contínuo de recontextualização e reinterpretação dos fatos (tomados em seu inacabamento) através da montagem e do comentário. O trabalho de montagem de Marker toma um acontecimento passado e cria uma abertura para esse inacabamento da história. A primeira versão do filme O fundo do ar é vermelho foi realizada em 1977, logo após o momento de maior engajamento
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2. Rhodiaceta é uma sociedade industrial têxtil fundada em 1922 na França. Após o início da greve na sede em Lyon, os operários de Besançon também iniciam uma paralização. O filme “Até logo, eu espero” foi realizado a pedido dos próprios trabalhadores. Tratava-se de uma greve de caráter original: ela teve duração de um mês, a fábrica foi ocupada pelos operários, as ideias eram inovadoras, no sentido de que não se tratava apenas do aumento do salário, mas de um desequilíbrio ligado às condições de trabalho.
3. Os Cinetrácts são uma série de 41 documentários curtos – eles têm entre dois e quarto minutos – realizados por diretores franceses tais como Chris Marker e Jean-Luc Godard em 1968. Os filmes tinham um cunho político de esquerda, eram como panfletos revolucionários.
político de Marker. Em 1967, ele realiza Longe do Vietnã, com o coletivo SLON (sociedade para o lançamento de novas obras) e Até logo, eu espero, filme sobre a greve de um mês na fábrica de Rhodiaceta,2 na cidade de Besançon, na França. Em 1968, finaliza A sexta face do pentágono, sobre uma manifestação de estudantes em Washington contra a Guerra do Vietnã, além dos Cinetrácts.3 Em 1969 cria, junto com o coletivo Groupes Medvedkine, Classe de lute, um filme panfleto sobre a luta operária. No início dos anos 1970, lança a série On vous parle de com filmes sobre Paris, Praga, Brasil, Chile e Cuba. Após toda essa produção do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, Marker dispunha de um vasto repertório de imagens sobre os movimentos sociais e sobre o comunismo ao redor do mundo. O diretor recolhe então esse material, junto a outras fontes de imagens de arquivo, e monta O fundo do ar é vermelho. Os filmes citados acima possuem um caráter de urgência política, de intervenção no momento em que são feitos, e tratam de cada um dos acontecimentos de forma bem específica. Em O fundo do ar é vermelho, Marker coloca esses acontecimentos em relação, criando uma reflexão mais densa e sofisticada sobre o assunto. A primeira versão possui uma hora a mais de imagens, porém, ao remontá-la em 1993, Marker mantém a estrutura do filme, composto de duas partes, conforme já mencionado: Mãos frágeis e Mãos cortadas. De maneira geral, podemos afirmar que, além dos 60 minutos a mais de imagens na primeira versão, a diferença mais marcante está nos comentários. Na segunda versão, os comentários possuem um caráter mais analítico e reflexivo, funcionando como um argumento que vai sendo construído ao longo de todo o filme. Já a primeira versão, possui um volume maior de imagens, porém, não nos parece que há um desejo de explicá-las o seu excesso, em alguns momentos, torna a compreensão dos acontecimentos filmados um pouco mais difusa. Tal fato pode ser associado justamente à proximidade do período mais fortemente militante da carreira de Marker ao montar a primeira versão. A produção de uma imagem em meio a uma revolução, ou em meio a uma situação de luta política, pode separá-la de sua compreensão: só a montagem e um olhar reflexivo sobre as
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imagens associadas permitem seu entendimento mais amplo. Ao desenvolver uma reflexão sobre as imagens de arquivo, Sylvie Lindeperg (2010) ressalta a importância da experiência a partir da qual são produzidas. Para a autora, é preciso nos atentar a dois momentos distintos e essenciais do cinema de arquivos: uma tomada e uma retomada. Lindeperg considera a montagem dos arquivos como uma “retomada”, mas chama atenção para a importância da “tomada”, a saber, o olhar de quem a produziu. Teríamos então, uma dupla operação: uma primeira legibilidade (a tomada), que está na gênese da imagem; momento da captura, em que se define um enquadramento, um campo e um fora de campo. A segunda legibilidade, portanto, será dada na e pela montagem. A autora afirma ainda, que uma imagem se torna arquivo a partir da forma como é utilizada e recontextualizada. Tomando essas formulações como base, acreditamos que há, na remontagem de O fundo do ar é vermelho, um duplo gesto de retomada das imagens do filme. O primeiro deles, em 1977, diz respeito a uma retomada das imagens de arquivos de outros cineastas e de outros filmes realizados por Marker, após anos de militância intensa, de trabalho com os coletivos, como os Groupes Medvedkine, o que se reflete na primeira montagem como o ponto de vista de um cineasta militante. A escolha das imagens nos permite perceber a urgência da montagem, pois naquele momento, era preciso olhar para aquelas imagens, mesmo que não fosse possível – tanto para o diretor como para o espectador – compreendê-las totalmente. Já na segunda retomada, quinze anos depois, é claro que há uma primeira legibilidade – a da tomada – que permanece, porém, trata-se de voltar a um filme montado quinze anos antes e lançar a ele uma nova reflexão e não necessariamente voltar ao banco de imagens (muito mais amplo), que foi consultado na primeira montagem. No intervalo entre as duas versões, o diretor realiza Sem Sol, em 1983, filme considerado como um retorno ao cinema pessoal, sem, no entanto, abandonar o viés político. Nele, o diretor apresenta uma reflexão sobre a história e o tempo por meio da montagem de imagens de arquivo e de uma narração de cartas ficcionais escritas por um cinegrafista viajante. A montagem do filme funciona como a organização de uma consciência coletiva, privilegiando as relações entre a memória e a história: “Como em
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4. No original: “Like Le fond de l’air est rouge, Sunless is preoccupied with the tensions between official cultural memory and those historical events and experiences that it routinely represses and denies” (LUPTON, 2005, p. 159).
O fundo do ar é vermelho, Sem sol está preocupado com as tensões entre a memória cultural oficial e os eventos e experiências históricas que são diariamente reprimidas e negadas” (LUPTON, 2005: 159).4 Outro trabalho marcante desse intervalo é Elegia a Alexandre (Chris Marker, 1992), realizado um ano antes da remontagem de O fundo do ar é vermelho, em que Marker conta a história de Alexandre Medvedkine – cineasta russo que inspirou a denominação dos Groupes Medvedkine. Assim como Sem sol, o filme possui um caráter ensaístico, pois seu argumento é construído através de cartas de Marker a Medvedkine, que ele diz ter escrito sem nunca entregar. Além disso, os dois cineastas eram amigos e a motivação para o filme, neste momento, foi a morte de Alexandre Medvedkine em 1989, o que reforça o tom pessoal do filme. Por outro lado, em boa parte do filme são utilizadas imagens dos filmes de Medvedkine e, o fato de que ele era um cineasta militante (e nesse sentido uma fonte de inspiração a Marker), faz com que Elegia a Alexandre ganhe um viés histórico e político. Através das cartas, Marker faz um apanhado da história da Rússia, bem como do cinema soviético. Há referências a outros cineastas russos, como Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. Assim como em O fundo do ar é vermelho, Marker retoma imagens de O encouraçado Potemkin, mais especificamente aquelas da escadaria de Odessa, e as articula com imagens mais atuais do local. Assim, Elegia a Alexandre aparece como um indicativo do desejo de Marker de retornar a esse período de militância dos anos 1960 e 1970, porém, acrescentando ao filme essa inflexão mais pessoal do comentário, presente na versão de 1993. Acreditamos que esses filmes, produzidos no intervalo entre as duas montagens, oferecem indícios de uma mudança de perspectiva de Marker para além daquelas que estão explícitas nas alterações feitas na montagem.
Mãos frágeis As primeiras imagens em ambas versões são de O Encouraçado Potemkin (Sergei Eseinstein, 1925), em referência inicial ao comunismo, em que Marker indica, alternando imagens, o contexto dos anos 1960, período que tratará mais
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frontalmente. Existem algumas subdivisões do filme, que acontecem de forma sutil, e que interpretamos como blocos temáticos, pois todas elas são encadeadas pelos argumentos do diretor. Os temas tratados nos blocos são os mesmos nas duas montagens, o que muda, de fato, é a forma de abordálos. Num primeiro bloco temático, Marker toma a guerra do Vietnã como ponto de partida para diversas manifestações pela paz ao redor do mundo, sugerindo como isso impulsionou a organização do movimento estudantil e o fortalecimento dos partidos comunistas. Nesse bloco surge uma das primeiras diferenças mais marcantes entre as duas versões: após mostrar uma fala de Daniel Cohn-Bendit – um dos líderes do movimento estudantil na França – Marker monta uma sequência de imagens de Marchas militares em La Paz, na Bolívia, em junho de 1967. A narração é descritiva, com referências a Fidel Castro. Nas duas versões há imagens do livro de Régis Debray e de estudantes em bibliotecas, em referência ao movimento estudantil. Na primeira versão, temos, a princípio, um comentário de Chris Marker, em que diz:
Sobre os muros de La Paz, em junho de 67, vimos os “Viva Fidel”, as foices e martelos e, também, os cartazes que exigiam a morte de Régis Debray, preso por suas relações com a guerrilha, que todos sabiam ser um filósofo e que acabara de escrever um livro publicado pela editora Maspero, Revolução na revolução?”. (MARKER, 1978: 38-39)5
Logo em seguida, a voz é de François Maspero, que diz:
Eu não penso que os livros que eu publico sejam bons. Seria formidável se publicássemos bons livros. Eu não seria o editor que eu sou, eu seria um instituto de estudos marxistas, que definiria todos os conceitos, cientificamente e teoricamente e que, uma vez definidos os conceitos, os utilizaria nesses livros que seriam uma perfeição e que te diga que não será mais necessário ter o livro para que a revolução aconteça... seria maravilhoso!”. (MARKER, 1978: 39)6
As imagens são as mesmas, porém, na montagem de 93 nos deparamos com outra narração de Marker:
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5. No original: “Sur les murs
de La Paz, en juin 67, on voyait des “Viva Fidel”, des faucilles et des marteaux, et aussi des affiches qui réclamaient la mort pour un nommé Régis Debray, emprisionné pous ses rapports avec la guérrilla dont on savait qu’il étaient philosophe, et qu’il avait écrit un livre publié chez Maspero, Révolution dans la révolution?” (MARKER, 1978: 38-39) 6. No original: “Je ne pense
pas que les bouquins que je publie soient bons. Ça serait formidable si on ne publiait que des bons bouquins. Je ne serais pas du tout l’éditeur que je suis, je serais un institut d’études marxistes qui définirait tous les concepts, scientifiquement et théoriquement, et qui, une fois tout les concepts définis, les utiliserait dans des livres qui seraient une perfection que je te dis qu’il n’y aurait plus qu’à sortir le livre pour que la révolution soit faite... ce serait merveilleux! (MARKER, 1978, p. 39).
Dez anos depois, Daniel Cohn-Bendit diria sobre esse passado: “Era a revolta estudantil. Utopias revolucionárias às quais nenhuma chance poderia ser dada nesses países”. Nunca esqueceremos como começou esse carrossel da morte. O atentado contra Rudi para os alemães. Para os franceses a condenação de Régis Debray na Bolívia. Eu estava lá. Vi os Viva Fidel nos muros de La Paz, foices e martelos e também cartazes pedindo a morte desse jovem filósofo teórico da guerrilha que publicara um livro intitulado Revolução na Revolução? Quase a mesma frase que Rudi. Esse livro cuja inspiração era atribuída a Fidel Castro circulou tanto por acampamentos quanto pelas livrarias europeias onde se reunia a literatura da nova esquerda e onde uma geração ia alimentar a sua fé revolucionária. Atenção, dizia Maspero. Ler não basta. Não imagine que apenas um livro comece a revolução.
Essa mudança de uma versão para a outra do filme é significativa por duas razões: a primeira delas é o fato de que, enquanto a versão de 77 é mais longa (há mais imagens e os planos duram mais), na versão de 93, Marker acrescenta alguns comentários ao seu argumento textual. O início do comentário é bem parecido nas duas versões, trata-se de uma explicação do que se vê nas imagens, contextualizando-as, quando Marker diz que são de 1967, e faz a referência ao livro de Régis Debray, “Revolução na revolução?”. Já na segunda parte do comentário da primeira versão, a fala de François Maspero, responsável pela publicação do livro de Debray, revela uma visão do momento do lançamento do livro, no tom da fala percebemos uma esperança revolucionária, por exemplo, quando diz, entusiasmado, como seria maravilhoso o momento em que os conceitos e ideais marxistas fossem incorporados e a revolução se tornasse, finalmente, possível. Já no comentário de Marker, em 1993, quando se refere a uma fala de Daniel Cohn-Bendit, em 1977, ou seja, dez anos depois dos movimentos de 1967, ele não fala mais da esperança de uma revolução, mas de uma utopia revolucionária. Apesar do comentário ser atribuído a Cohn-Bendit, a escolha de inseri-lo no filme, neste momento, é de Marker, que, ao invés de lançar às imagens do acontecimento um olhar apaixonado, lança, desta vez, um olhar mais distanciado e reflexivo. Além disso, o fato de Marker acrescentar ao filme uma fala como esta de Cohn-Bendit, também é significativo, pois trata-se do principal líder do movimento estudantil em Paris
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dizendo que aquele desejo revolucionário de 1967 e 1968, eram apenas utopias. O acesso a essa fala do então estudante foi posterior, dez anos após sua a primeira fala sobre os protestos de 1967 na Alemanha, tratando-se, portanto, de uma reflexão mais distanciada do acontecimento, o que possibilita abordá-lo de outra maneira, tanto por parte de Cohn-Bendit, quanto por parte de Marker. O comentário de Cohn-Bendit mostra que o líder estudantil de 1967, após 10 anos, reconhece a fragilidade do movimento, ao considerá-lo como uma “utopia revolucionária”. Marker também mostra certa descrença ao repetir quase a mesma expressão em seguida (“fé revolucionária”).
Figura 1: Fotogramas de O fundo do ar é vermelho (versão de 1993)
O bloco seguinte – em ambas as versões – traz como tema o comunismo nos países da América Latina. A figura de Fidel Castro, a partir daí, torna-se recorrente no filme, bem como as menções a Che Guevara. Ele termina com a captura e a morte de Che e um argumento conclusivo de Marker sobre o movimento estudantil e suas “mãos frágeis”. No trecho seguinte, com a inscrição na tela: “Porque as imagens se põem a tremer?”, os cineastas comentam as imagens que produziram, referindo-se a possíveis defeitos nas câmeras que alteram as imagens. Uma delas está em câmera lenta, outra muito tremida e, mesmo inconscientemente, o sentido se altera a partir da falha técnica, pois a imagem do acontecimento não o representa fielmente, o que interfere na forma como o percebemos. Marker trata agora da violência da repressão às manifestações.
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Nas sequências que abordam a noite das barricadas em primeiro de maio de 1968 em Paris, nota-se outra diferença significativa entre as duas versões. Na versão de 1977, há um longo trecho – cerca de dez minutos – de imagens desse acontecimento, enquanto, no áudio, ouvimos diversas gravações de rádio da data pedindo que os manifestantes não atravessem as barricadas; trata-se de um gesto de montagem de arquivos de imagem e de áudio. A maioria das imagens é noturna, há muita fumaça e tumulto, com manifestantes e policiais correndo. São imagens feitas no calor das manifestações em que pouco se vê e se compreende, senão a própria circunstância do acontecimento em seu momento de emergência.
Figura 2: Fotogramas de O fundo do ar é vermelho (versão de 1977)
Já no filme de 1993, a maioria dessas imagens é retirada e substituída por um comentário de Marker que, distanciado, descreve o que aconteceu naquela noite. Talvez, após 15 anos passados, as consequências do que aconteceu e a reflexão desenvolvida a partir daí sejam, para o diretor, mais importantes, de forma que, com os comentários que acrescenta ao longo da segunda versão do filme, a dimensão analítica ganhe maior ênfase. Na primeira versão, em que havia apenas a montagem das imagens, sem um argumento desenvolvido que as amparasse, a produção de sentido por parte do espectador se dava de forma mais livre, porém, ao mesmo tempo, mais desamparada. Nesse
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momento, a relação do espectador com as imagens estava vinculada às circunstâncias históricas, inscrita na emergência das imagens. Ao substituir as imagens pelo comentário, Marker deixa mais claro seu ponto de vista, construído pela distância temporal dos acontecimentos, as imagens produzidas no calor dos conflitos são, agora, colocadas em perspectiva. Nas duas versões, a primeira parte do filme – “Mãos frágeis” – termina com um último bloco que mostra a destruição após a noite das barricadas, a ocupação da Sorbonne e a intensificação das greves na França. Há um longo trecho, desde a morte de Che Guevara até o momento em que Marker retoma as imagens de uma manifestação em Washington contra a guerra do Vietnã que são, originalmente, do filme A sexta face do pentágono (Chris Marker, 1968), em que todas as imagens coincidem nas duas versões. Porém, daí até o fim da primeira parte do filme, há várias imagens que foram retiradas na remontagem, a começar por uma entrevista para a televisão com Alain Peyrefitte, ministro da educação na França em 1968, falando sobre o movimento estudantil. Ele diz que as manifestações são violentas e deploráveis. O trecho seguinte, está nas duas versões: são imagens em câmera lenta de um policial batendo em uma mulher e, logo depois, um retorno à entrevista de Peyrefitte, que é encadeada a outras imagens de manifestações com diferentes áudios de rádio e televisão, nos quais a mídia repercute as manifestações e a violência policial e também a dos manifestantes. Em seguida, na versão de 1977, vemos muitas imagens de pessoas nas ruas, imagens das manifestações, muitas cenas noturnas, com pouca narração. Quando há narração, é uma voz feminina, que diz, por exemplo, “nascimento de uma imagem”, ou “sob o pavimento...”. Já no filme de 1993, muitas dessas imagens, especialmente as noturnas, são retiradas do filme, e a narração, o comentário de Marker, ganha um tom conclusivo, sobre a noite das barricadas:
E de repente, numa bela noite de primavera, nessa cidade que na véspera se achava calma e próspera, vimos barricadas, vimos carros em chamas, vimos burgueses nas janelas aplaudindo estudantes e insultando a polícia. Vimos aparecerem inscrições que se tornariam lendárias: “Sob os paralelepípedos, a praia”, “É proibido proibir”. Vimos a polícia perseguir manifestantes até dentro das casas, um prêmio Nobel acusando o ministro
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da Educação no rádio, e pelo rádio, justamente, toda a cidade e o país acreditaram que sua história estava se fazendo pelos choques ocorridos numa única pequena rua do Quartier Latin.
A partir daí o que vemos, nas duas versões, são imagens do dia após a noite das barricadas, seguidas de imagens de manifestações em vários outros lugares do mundo, tais como Japão, Chile e Brasil. Daí até o fim da primeira parte ainda há diferenças entre as duas versões. Na mais antiga, há mais imagens de entrevistas com operários e mais notícias de maio de 1968, ou seja, o filme se mostra mais colado ao acontecimento. É possível que Marker tenha suprimido essas imagens na segunda versão para deslocar o foco principal dos acontecimentos de maio de 68 na França, conferindo igual importância aos movimentos de outras regiões, tais como Venezuela, Cuba, Brasil, Tchecoslováquia, China etc., mas também percebemos que aquelas imagens confusas de manifestações em que pouco se vê – imagens de noticiários, áudios de programas de rádios, entrevistas de operários durantes as greves –, bem como a forma como são inseridas no filme, têm um caráter muito mais urgente. A montagem, nesse caso, está mais próxima dos acontecimentos, por isso é preciso, ainda, descrevêlos, compreendê-los. No segundo caso, 15 anos mais tarde, por mais que ainda não seja completa, a tentativa de compreensão dos acontecimentos e a forma como eles são apresentados no filme se dá de forma mais elaborada. Forma-se assim um pensamento mais amplo sobre o crescimento dos movimentos sociais e do comunismo em todo o mundo, oferecendo ainda um contexto mais completo para se pensar o caso específico da França.
Mãos cortadas A segunda parte do filme – Mãos cortadas – começa com um cinejornal francês com imagens dos últimos dias de ocupação de Praga em 1945. Inicia-se então um bloco temático sobre a então Tchecoslováquia, com muitas referências ao stalinismo. Nesse trecho, diversas imagens são retiradas na remontagem, mas não há nenhuma alteração que nos pareça significativa em relação ao argumento do filme. O bloco seguinte trata do comunismo na China e do maoísmo. Há, em seguida, imagens de um encontro entre Mao Tsé-Tung e Georges Pompidou (presidente da França
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entre 1969 e 1974). Após as imagens desse encontro, Marker se dedica ao fim do governo de Charles De Gaulle, ao referendo que levou à sua renúncia, incluindo entrevistas com operários e membros do Partido Comunista Francês sobre o assunto. Após a renúncia de De Gaulle, a hipótese a ser desenvolvida no filme é a necessidade de “união da esquerda”. Também nessa passagem, há uma redução nas imagens da primeira para a segunda versão, mas, novamente, o argumento e a estrutura se mantêm. A última imagem, que está no filme de 77 e não no de 93, é de 5 de abril de 1972, de uma greve de operários de uma companhia elétrica em Saint-Brieuc, na França. Daí em diante, as imagens e a forma como são organizadas são iguais nos dois filmes, porém ainda há mudanças nos comentários. A imagem seguinte é de 6 de abril de 1974, do velório de Georges Pompidou, e Marker a insere no filme para explicar que a morte do político gerou receio nos chefes de estado de que houvesse um governo de esquerda na França. Em seguida, vemos imagens da cidade de Ypres, onde se realiza todo ano uma “Cat parade”. Em montagem associativa, vemos em seguida gatos e pessoas em convulsão: são os habitantes de Minamata que consomem água envenenada de mercúrio pela companhia química Chisso. Nas cenas seguintes, as imagens são as mesmas para as duas versões: trata-se de um encontro de acionistas da Chisso em Osaka no dia 28 de novembro de 1970. A população invade o encontro para protestar. Na versão de 1993, porém, há um comentário de Marker:
Por toda parte, a luta contra os poderes organizados e tradicionais encontrou o fracasso, a repressão. Então, outras formas de ação aparecem, mais diretas, mais locais, nascidas de uma situação concreta. Não se trata mais de tomar o poder num futuro longínquo mas de se opor ao poder no mesmo local onde ele se opõe a você. Em Minamata, os habitantes se cotizam para comprar ações da Chisso e durante a assembleia de acionistas em Osaka eles estão lá para atacar.
Mais uma vez, vemos que, mesmo com uma hora a menos de imagens, no filme de 1993 o argumento se expande, talvez se adense, movido por um distanciamento maior dos acontecimentos. Além disso, se para o diretor a montagem é uma forma de permitir
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que o espectador desenvolva um pensamento sobre as imagens, as diferenças de uma versão para a outra revelam uma tomada de posição mais clara e enfática de Marker. Isso não significa que a segunda versão tenha um sentido fechado, significa apenas que, enquanto na primeira versão, que é mais descritiva, constituída por imagens que não necessariamente encontram explicações nos comentários, o espectador ganha mais liberdade de interpretação, e reage à emergência dos acontecimentos, na segunda versão, por ser mais analítica, exige-se que o espectador também se distancie dos acontecimentos. Esse distanciamento é, ao mesmo tempo, devido ao tom do argumento e à distância temporal. Logo em seguida, a América Latina volta a ser o tema central com depoimento de Douglas Bravo – ativista venezuelano – sobre seu projeto de revolução comunista na Venezuela. Há um trecho sobre a consolidação do poder de Fidel Castro em Cuba, bem como a repercussão desse processo nos Estados Unidos. O último exemplo do filme é o de Salvador Allende, no Chile. Dele vemos a primeira imagem como presidente, um longo discurso – sem cortes – para trabalhadores da estatal Sumar em setembro de 1972 e, logo depois, a sua última imagem, em 11 de setembro de 1973, quando acena para as pessoas da sacada de um prédio, antes de falecer. Todo esse trecho é exatamente igual nas duas versões do filme. Temos então as imagens do discurso de Beatriz Allende, filha de Salvador Allende, em Havana, ainda em setembro de 1973. Ela está atrás de um púlpito, com a cabeça baixa, mal vemos seu rosto. Sentado ao lado dela está Fidel Castro. Há um corte e vemos em uma imagem aérea a multidão que a escuta. Ela fala sobre o pai e transmite uma mensagem dele: “Diga a Fidel que cumprirei o meu dever”. Ao terminar o discurso ela é muito aplaudida e agora a câmera a mostra num plano fechado. A cabeça continua baixa e sua expressão séria permanece. As imagens são as mesmas, mas na versão mais recente há uma atualização, com um fato ocorrido já no fim de 1977, com a legenda: “No dia 12 de outubro de 1977, Beatriz Allende se suicidaria em Havana, como seu pai no Chile, quatro anos antes”. Percebemos aqui, com clareza, a ideia de que a imagem de arquivo se transforma no momento da retomada e que sua percepção está fortemente vinculada ao contexto de reutilização. Neste momento do filme, essa simples inscrição na tela confere um tom mais grave e melancólico ao discurso de Beatriz Allende. O discurso continua
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seguido de imagens em câmera lenta de Allende. Assim termina esse último bloco temático do filme. As imagens que se seguem são a conclusão do filme: comemorações do primeiro de maio de 1977 em vários locais, imagens de greves, logo depois um depoimento de Maria Augusta Carneiro, a brasileira libertada pela ditadura por ocasião do sequestro do embaixador dos Estados Unidos. As imagens são do filme On vous parle du Brésil: Tortures, filmado em quatro de setembro de 1969 em Cuba. Há um retorno às imagens de greves e protestos. Vemos ainda imagens de uma exposição de tanques militares e a última imagem do filme: lobos correndo, alvejados por tiros disparados de cima de um helicóptero. Essa é a sequência de imagens que encerra os dois filmes, porém, na edição de 1993, há um comentário conclusivo e que remete a diversos acontecimentos posteriores a 1977:
Imagine agora que quem fez essa montagem em 1977 de repente tenha a oportunidade de ver essas imagens anos depois. Poderia ser, por exemplo, 1993, 15 anos depois, o espaço de uma juventude, a idade que tinham vários dos heróis desse ano lendário: 1968. Poderíamos meditar sobre esse tempo que passou e medir as mudanças com um instrumento simples, enumerando as palavras que não fariam sentido nos anos 60: Palavras como boat-people, AIDS, tatcherismo, aiatolá, territórios ocupados, Perestroika, coabitação, ou essa sigla que substituiu a URSS e ninguém consegue pronunciar: C.E.I. A poderosa e temida União Soviética deixara de existir. A motivação dessa transição havia sido “Direitos Humanos” e agora era a “economia de mercado”. O terrorismo substituíra o comunismo como encarnação do mal absoluto. Ainda nem se compreendia que em certa época não era tão errado sequestrar o embaixador dos EUA para libertar uma brasileira dos seus carrascos.
Há aqui uma interrupção no comentário para a inserção de um pequeno trecho do depoimento de Maria Augusta Carneiro Ribeiro, líder estudantil carioca, para o filme On vous parle du Brésil: Tortures (Chris Marker, 1969), sobre a tortura que sofreu durante a ditadura no Brasil. Em seguida, a narração continua:
Hoje, o Brasil é uma democracia, o Chile também, até certo ponto. O sonho comunista implodiu. O capitalismo ganhou a
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batalha, senão a guerra. Mas uma lógica paradoxal faz com que inimigos do totalitarismo soviético, homens dessa nova esquerda a quem este filme é dedicado, tenham sido levados no mesmo turbilhão. Revanche dos stalinistas. Sua oposição de esquerda morreu com eles. Estavam ligados, como escorpião e tartaruga. Lembrem-se de Orson Welles. Era o seu caráter. Nosso autor ficaria maravilhado com os recursos da história que tem mais imaginação que nós. Ele pensaria no fim do filme como concebera em 1977, quando comparava o tráfico de armas das grandes potências a estes caçadores que devem manter a pequena população de lobos. Adivinhem quem elas armam hoje. Um consolo, entretanto: 15 anos depois ainda havia lobos.
Figura 3: Fotogramas de O fundo do ar é vermelho (imagens presentes nas duas versões)
No comentário final, Marker faz um apanhado dos acontecimentos históricos posteriores a 1977, criando, assim, uma atualização da sua reflexão. Ele se refere à quem montou o filme de 1977 na terceira pessoa (“nosso autor”), indicando que ele não é mais aquele militante de 15 anos antes. Esse mesmo recurso foi utilizado em Sem sol, quando criou um personagem alter ego, Sandor Krasna, um cinegrafista viajante. No argumento, um tanto pessimista, ele diz que o “capitalismo ganhou a batalha, senão a guerra”, ou seja, aquele desejo revolucionário, comunista, presente no filme de 1977 foi destruído. Porém, por outro lado, quando Marker diz que “15 anos depois ainda havia lobos”, ele nos mostra ainda um traço de esperança, talvez, para ele, ainda seja possível – e preciso – lutar.
O duplo gesto de retomada Em nossa análise de O fundo do ar é vermelho, interpretamos a rememoração como operação concreta de montagem. Uma vez que tomamos a compreensão da história com algo inacabado e contingente e não como um progresso ininterrupto e inevitável, a
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historicidade poderia ser construída pelo cinema, já no momento da tomada e, posteriormente, na montagem. Na esteira do pensamento de Walter Benjamin buscamos, através da análise do gesto de montar e remontar um filme, perceber de que modo a montagem se concebe como operação de rememoração.7 Marker retoma imagens de uma década, visando não uma reconstrução cronológica ou didática da história, mas, ao contrário, uma análise das imagens dos acontecimentos, colocando-os em relação uns com os outros. Trata-se de uma contínua operação de retomada. Pois se no primeiro filme, de 1977, ele retoma as imagens produzidas por outros cineastas e por ele mesmo em outros contextos, em 1993, o gesto de retomada é duplo, pois além da tomada, do que restou do olhar de quem produziu a imagem, há também o olhar lançado pelo próprio diretor, em 1977, quando montou as imagens pela primeira vez. Ou seja, trata-se de não apenas de revisitar imagens de arquivo, mas de repensar a forma como as montou pela primeira vez. As imagens de arquivo ganham aí um papel essencial, pois elas guardam vestígios dos acontecimentos que podem propiciar a rememoração. Para Benjamin, a imagem deve ser lida para que o acontecimento que ela retrata não seja perdido, e a memória deve dar conta do acontecimento no presente, no cintilar de um instante de perigo. O arquivo, mesmo que seja apenas uma pequena parte do acontecimento, significa algo apesar de tudo e suscita uma leitura. Essa parte não dá conta do todo, mas, apesar de tudo, dá conta de alguma coisa (DIDI-HUBERMAN, 2008). Reutilizar uma imagem de arquivo do passado é encontrar as condições necessárias para reinscrevê-lo no curso da história. Sobre as imagens de arquivo e a memória, Chris Marker afirma: “o cinegrafista imagina (como fazem os cinegrafistas, pelo menos aqueles que você vê nos filmes) sobre o significado dessa representação do mundo da qual ele é instrumento, e sobre o papel das memórias que ele ajuda a criar” (MARKER apud LUPTON, 2005: 153).8 E é apenas por meio da montagem das imagens de arquivo que se torna possível uma nova experiência, que está ligada não só à memória, mas também à imaginação. Ao se debruçar sobre as imagens de O fundo do ar é vermelho duas vezes em momentos distintos, Chris Marker demonstra levar a sério a necessidade de rememoração dos acontecimentos passados, o que, no trabalho do diretor, se traduz
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7. Gostaria de agradecer
às valiosas contribuições dos colegas do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência durante o segundo semestre de 2014, quando nos dedicamos ao estudo das teorias de Walter Benjamin. Agradeço especialmente ao professor César Guimarães pelas colocações sobre as possíveis relações entre os gestos de rememoração e de montagem.
8. No original: “the
cameraman wonders (as cameraman do, at least those you see in movies) about the meaning of this representation of the world of which he is the instrument, and about the role of the memories he helps create” (MARKER apud LUPTON, 2005: 153).
na montagem. A partir desse duplo gesto de retomada, o diretor cria um processo de rememoração que não se encerra na primeira montagem e, com isso, permite que o espectador também rememore o acontecimento novamente. Com quinze anos entre as duas versões, o espectador é convidado a olhar as imagens novamente, e a renovar sua compreensão dos acontecimentos a partir das mudanças históricas do período, mas também, a partir da transformação da forma de Marker olhar as mesmas imagens. Isso acontece pois há um corte no excesso de imagens do filme de 1977, mas, principalmente, pelo acréscimo de comentários e pela mudança no tom de alguns deles que, como vimos, são mais reflexivos e analíticos e menos colados aos acontecimentos. Na introdução ao curta-metragem Junkopia, que realizou em 1981, Marker se refere a O fundo do ar do vermelho, dizendo que o comentário funciona como um guia, porém é a montagem que cria a abertura necessária para que o espectador crie o seu próprio comentário em torno das imagens. Portanto, na montagem está não só o gesto de rememoração de Marker, que a partir do seu próprio olhar sobre a história organiza as imagens de modo bem particular; mas também está o inacabamento, pois a montagem permite que o espectador possa lançar o seu próprio olhar às imagens e àquilo que elas carregam da história. Giorgio Agamben, em seu texto sobre o cinema de Guy Debord, ressalta a relação estreita entre cinema e história, referindo-se, nesse caso, não a uma história cronológica, mas a uma história messiânica, no sentido benjamininano. Para o autor, “a experiência histórica se faz pela imagem, e as imagens estão elas próprias carregadas de história” (AGAMBEN, 1995: s/p). Como lugar de elaboração histórica, a montagem cinematográfica oferece duas condições de possibilidade: a repetição e a paragem. Para nossa análise da “remontagem” de um filme, interessa mais especificamente a repetição, que consiste em tornar algo novamente possível, aproximando-se, por isso, do gesto de rememoração. O cinema produzido a partir de imagens de arquivo, nesse sentido, ganha uma força política, pois elas são uma citação do passado, um vestígio material que nos permite rememorá-lo. Na esteira de Agamben, Anita Leandro afirma que é dessa maneira que “a montagem torna possível o trabalho historiográfico e até arqueológico por parte do espectador” (LEANDRO, 2010: 109).
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Trata-se de um gesto de repetição, de retorno às imagens, que permite a Marker uma nova rememoração (que aqui se desenha como uma espiral). Ao remontar as imagens, Marker torna essa memória novamente possível, porém com um outro olhar. Se na montagem de 1977 há muito mais imagens e, com isso, uma abertura maior para que o espectador possa produzir um sentido particular em relação a elas, em 1993 os comentários ganham força, pois, talvez, após 15 anos, Marker tenha olhado para as mesmas imagens a partir de outra perspectiva, de forma mais distanciada. O período em que Marker se dedicou à produção coletiva influenciou muito seu estilo e, O fundo do ar é vermelho, montado em 1977, funciona como um filme síntese desse momento e, ainda, como o fechamento de um ciclo em sua obra. A partir daí, a preocupação com a memória se torna ainda mais decisiva, característica marcante da obra de Marker. O que a remontagem de O fundo do ar é vermelho nos mostra é que, apesar de trazer fatos novos em poucos momentos, os acontecimentos históricos posteriores a 1977, tais como a queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1990, influenciam o tom dos argumentos. Além disso, outro aspecto fundamental é um gesto autoral mais enfático de Marker, o que revela sua mudança de perspectiva como cineasta e militante. A força das imagens e da tomada permanecem; porém, o comentário ganha maior importância e isso pode ser atribuído ao tom mais pessoal que vimos em filmes como Sem sol e O túmulo de Alexandre.
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REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. 1995. Disponível em: http://www.intermidias.blogspot.com.br/2007/07/ocinema-de-guy-debord-de-giorgio.html. Acesso em: 07 de setembro de 2013. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images in spite of all. Four photographs from Auschwitz. Chicago: University of Chicago Press, 2008. LEANDRO, Anita. O tremor das imagens: notas sobre o cinema militante. In: Revista Devires, Belo Horizonte, v. 7, n. 2, p. 98117, jul-dez 2010. LINDEPERG, Sylvie. Imagens de arquivos: imbricamento de olhares. In: Catálogo Forumdoc.bh. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2010. (Entrevista concedida a Jean-Louis Comolli). LUPTON, Catherine. Chris Marker: Memories of the Future. Londres: Reaktion Books, 2005. MARKER, Chris. Le fond de l’air est rouge: textes et description d’un film de Chris Marker. Paris: François Maspero, 1978.
FILMOGRAFIA
Até logo, eu espero. Direção: Chris Marker, Mario Marret. Paris: SLON – Iskra, 1967. Junkopia. Direção: Chris Marker. Paris: Argos, 1981. Longe do Vietnã. Direção: Jean-Luc Godard, Joris Ivens, William Klein, Claude Lelouch, Chris Marker, Alain Resnais, Agnès Varda. Paris: Sofracima, 1967. O encouraçado Potemkin. Direção: Sergei Einsenstein. Moscou: GosKino, 1925. O fundo do ar é vermelho. Direção: Chris Marker. Paris: Iskra, 1977/1993. Elegia a Alexandre. Direção: Chris Marker. Paris: Les films de l’Astrophore, 1992.
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O cinema de Chris Marker e o duplo gesto de retomada / Julia Fagioli
On vous parle du Brésil: Tortures. Direção: Chris Marker. Paris: Iskra, 1969. Sem sol. Direção: Chris Marker. Paris: Argos, 1983.
Data do recebimento: 02 de junho de 2015 Data da aceitação: 16 de setembro de 2015
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Kluge e os arquivos: a contraescrita da história Leonardo A maral Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Crítico de cinema e ensaísta. Curador e membro das comissões de seleção do Festival de Curtas de BH e do Forumdoc. BH. Roteirista e diretor de cinema.
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 12, N. 1, P. 52-75, JAN/JUN 2015
Resumo: O cinema de Kluge promove uma contraescrita da história porque seus filmes questionam as versões oficiais e correntes da história alemã, tal como reproduzidas pelos livros didáticos e também disseminadas pelo senso comum. Kluge volta sua atenção para os arquivos do passado que tendem a ser recobertos pelo esquecimento. Em A patriota, o cineasta propõe a contraescrita a partir de uma montagem ensaística que combina esses arquivos heteróclitos acumulados pelo autor. Palavras-chave: Arquivo. Contraescrita. Montagem. Ensaio.
Abstract: Kluge’s cinema promotes a counter-writing of history because his films question the official and current versions of the german history, as played by textbooks and also disseminated by common sense. Kluge turns his attention to the archives of the past that tend to be covered by forgetfullness. In The patriot, the filmmaker proposes a counter-writting from an essayistic editing combining these heteroclite archives accumulated by the author. Keywords: Archive. Counter-writing. Editing. Essay. Résumé: Le cinéma de Kluge développe une contre-écriture de l’histoire car ses films interrogent les versions officielles et actuelles de l’histoire allemande, telle quelle est racontée dans les manuels didactiques et assimilée par le sens commun. Kluge se tourne vers des archives du passé, souvent recouverts par l’oubli. Dans La patriote, le cinéaste propose une contre-écriture de l’histoire, à partir de une montage essayiste qui combine des archives hétéroclites accumulées par l’auteur. Mots-clés: Archive. Contre-écriture. Montage. Éssais.
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Kluge e os arquivos: a contraescrita da história / Leonardo Amaral
Vi em sonhos o terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei rindo. Walter Benjamin
Contraescrita da história Um rosto feminino (fig. 1). Esta é a primeira imagem de A patriota, acompanhada do seguinte comentário do narrador: “Gabi Teichert, professora de história na região de Hesse. Uma patriota que tem interesse por todos os mortos da nação”. Este é o prólogo de A patriota, que alude à história da Alemanha desde seu processo de unificação, no século XIX. Há um paradoxo criado por Kluge nessa designação da professora Gabi Teichert, personagem ficcional do filme. Ser patriota é necessariamente se engajar nas questões nacionais e se alinhar a uma história contada pelos vencedores. No entanto, não é essa a atitude da professora; seu intuito é buscar outra história, diferente daquela encontrada nos livros. Neste sentido, ela não é uma patriota. Ao buscar a história dos mortos no período do III Reich, Gabi Teichert se torna – por estranho que pareça – uma contra-heroína nacional, ao se posicionar na contramão de diversos princípios e movimentos constituidores da história da Alemanha no século XX. A personagem, ao se rebelar solitariamente contra a história oficial, se engaja pessoalmente na escrita de outra história alemã.1 Alexander Kluge concebe a história a partir de seu Traverarbeit (trabalho de luto), ou seja, os personagens de seus filmes, para além da elaboração de suas vidas particulares, resgatam uma memória coletiva e se servem da rememoração como meio de reescrita de história.2 Etimologicamente, Traverarbeit deriva de Arbeit, que significa trabalho, e Durcharbeitug, que pode ser entendido como elaboração, perlaboração, trabalho aprofundado, trabalhar através.
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1. Para Kluge, ser patriota,
tendo a história da Alemanha como legado, é algo contraditório. 2. A rememoração guarda
o sentido de uma memória coletiva que está para além da história oficial contada pelos vencedores.
Figura 1: Gabi Teichert
O uso do conceito por Freud, na psicanálise, tem a ver com um trabalho aprofundado com e por meio do passado. Neste caso, como afirma Paul Ricoeur (2008): a memória se distingue da história porque se vincula à capacidade de produzir novas narrativas a respeito dos fatos ocorridos, sem uma fidelidade integral ao que efetivamente aconteceu. Kluge está em busca desses relatos que promovem novas conexões com a experiência histórica e que confrontam a história oficial. Podemos aproximar esse gesto daquela concepção da história sustentada por Walter Benjamin, tal como a caracteriza Jeanne Marie Gagnebin (1994: 13):
cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta etc.; essa dinâmica ilimitada da memória é da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos.
É assim que, logo após apresentar Gabi Teichert, o cineasta lança mão de uma nova e insólita narrativa: na tentativa de alcançar outros pontos de vista acerca da história alemã, o filme adota a perspectiva do joelho de um soldado de guerra, Wieland, morto na batalha de Stalingrado, em 29 de janeiro de 1943.
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Na sequência inicial, logo após a imagem do rosto de Gabi Teichert, vemos, em sequência, um conjunto de imagens de corpos de soldados mortos, acompanhados por um longo movimento em travelling ao som da composição de Hanns Eisler para a obra Noite e neblina (Alain Resnais, 1955). Noite e neblina mostra, de maneira perturbadora, os locais onde ficavam alojados os judeus nos campos de concentração, acompanhadas pela trilha de Eisler e pela narração de um texto de Jean Cayrol, poeta francês sobrevivente dos campos de extermínio. Os corpos atirados ao solo são excertos do filme A última companhia (Curtis Bernhardt, 1930),3 filmado em Havelland, em Brandemburgo, e que faz parte de um ciclo de filmes prussianos do período entreguerras que ressaltavam cenas patrióticas da história da Prússia. Neste fragmento, Kluge combina a trilha musical do filme de Resnais – e as significações a que ela remete – com imagens de arquivos de um filme patriótico de guerra, deixando em aberto os sentidos da ligação entre um e outro. Os efeitos de sentido produzidos pela combinação estão na lacuna existente entre o som e a imagem. O som remete diretamente ao terror nazista, enquanto as imagens do filme de Bernhardt retomam as primeiras afirmações do nacionalismo germânico. A disjunção presente na cena proporciona uma lacuna no tempo, na qual se insere o nazismo e suas formas de repressão. O recurso alegórico se dá exatamente a partir dessa lacuna. Nessa sequência inicial, Kluge apresenta uma cartela com o letreiro “O joelho”. Em seguida, ele oferece uma ilustração com uma árvore e muita neve, ao passo que, mais ao fundo, é possível ver uma enorme tocha e um casarão. Surgem, ainda na sequência, a narração feita pelo joelho, que recita o poema de Christian Morgenstern4:
3. Curtis Bernhardt foi um dos
cineastas alemães de origem judaica que, perseguido, imigrou para os EUA.
4. Esta imagem grotesca
surge do poema “Das Knie”, de Christian Morgenstern, poeta e escritor ligado à literatura do absurdo e do nonsense. A obra de Morgenstern é fortemente marcada pelo conteúdo satírico e irônico, pelas formas ilógicas e por situações incomuns, como é o caso do poema em questão. O poema, citado no filme, faz parte do livro Galgendichtung, publicado em 1905.
5. “Das Knie”
Ein Knie geht einsam durch die Welt. Es ist ein Knie, sonst nichts! Es ist kein Baum! Es ist kein Zelt!
“O joelho”
Es ist ein Knie, sonst nichts.
Na terra perambula um joelho solitário. É apenas um joelho, nada mais.
Im Kriege ward einmal ein Mann
Não é uma barraca, não é uma árvore,
erschossen un und un.
É apenas um joelho, nada mais.
Das Knie allein blieb unverletzt
Na batalha, há muito tempo, um homem
als wärs ein Heiligtum.
Foi crivado e pensou e pensou. O joelho sozinho escapou ileso
Seitdem gehts einsam durch die Welt.
Como se isso fosse apenas um tabu.
Es ist ein Knie, sonst nichts.
Desde então, perambula um joelho solitário,
Es ist kein Baum, es ist kein Zelt.
É apenas um joelho, isso é tudo.
Es ist ein Knie, sonst nichts. (Tradução nossa a partir da versão em inglês)
Não é uma barraca, não é uma árvore, É apenas um joelho, isso é tudo.5
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6. Coincidentemente, o exército napoleônico também sofreu com esse tipo de dificuldade e acabou derrotado em território russo. Não é por menos que esta história é retomada por Kluge, que, em determinado momento do filme, apresenta uma ilustração com a figura de Napoleão, para afirmar, na narração, que este imperador acabou derrotado e não pode levar ao cabo seu projeto de expansão.
7. A referência a Caspar
Friedrich, um dos mais importantes pintores do Romantismo alemão, nos auxilia a pensar a maneira como Kluge traça um paralelo entre algumas das paisagens carregadas de nostalgia, opressão, sombras e misticismo pintadas pelo artista e algumas das imagens filmadas pelo cineasta no filme, em especial, as paisagens invernais e outonais presentes na obra.
8. “The knee can in this context also be read literally, as concrete image for the ‘between’” (KAES, 1992: 113).
9. “A central category for Kluge, which can be rendered only approximately as seeing things in their interconnection” (KAES, 1992: 113).
10. “Between the past and the present, the dead and the living, memory and anticipation, the dream world of history and the waking world of the moment” (KAES, 1992: 114).
Em seguida, temos a Terra e a lua em rotação (em uma das várias referências de passagem do tempo), e um novo corte apresenta a ilustração (vinda, talvez, de um conto) de um homem subindo por uma encosta repleta de neve, tendo, ao lado, um castelo refletido na água (cabeça para baixo). O final da sequência apresenta pessoas caminhando na neve, tanques de guerra explodindo juntamente com soldados, imagens de explosão na guerra. Essas figuras e imagens de arquivo não identificáveis remetem sempre à Batalha de Stalingrado, na qual o exército nazista alemão sucumbiu diante do exército soviético por conta das dificuldades climáticas.6 Essa relação se faz possível graças à narração do joelho, que afirma ser a parte sobrevivente do soldado morto na batalha. As figuras de corujas em árvores podem ser correlacionadas à série de pinturas e desenhos de Caspar Friedrich7 que mostram caixões, sepulturas e corujas. A iconografia do artista, que surge nesse primeiro momento de A patriota, é o quadro Sarg am grab (1830): um caixão afundado, enferrujado e próximo de uma âncora. Em seguida, surge um outro quadro de Friedrich, Landschaft mit eule, grab und sarg (1837), com uma coruja sobre caixão e uma pá ao lado. O trabalho do artista romântico tem uma referência no período gótico e uma forte proximidade com um espírito de solidão e morte (algo bastante significativo para uma narrativa que se propõe a buscar a história dos mortos no período do III Reich). A montagem ainda traz uma foto de vários homens uniformizados e perfilados, para, em seguida, apresentar movimentos panorâmicos que percorrem uma paisagem da vegetação da Alemanha, enquanto o joelho-narrador afirma seu interesse na história da nação. O joelho tem como função anatômica conectar as junções da perna e permitir que o corpo se movimente; ele é um elo entre as partes superiores e inferiores do corpo humano. “Nesse contexto, o joelho também pode ser lido literalmente, como imagem concreta do estar entre” (KAES, 1992: 113, trad. nossa).8 Ele funciona aqui como um recurso de junção da montagem, “uma categoria central para Kluge, que só pode ser realizada em aproximação, como a visão das coisas em sua interligação” (KAES, 1992: 113, trad. nossa).9 Assim sendo, o joelho torna-se o principal comentador e fomentador das articulações promovidas pelo filme. Ele se torna a mediação básica “entre o passado e o presente, os mortos e os vivos, memória e antecipação, o mundo onírico da história e o mundo desperto do momento” (KAES, 1992: 114, trad. nossa).10
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Esse é apenas um dentre os vários recursos narrativos e estilísticos utilizados na escritura do filme, com o intuito de apresentar fragmentos, vestígios e esboços de pequenas estórias que compõem o que poderíamos chamar de uma contraescrita da história. O trabalho de Kluge é marcado pela heterogeneidade de materiais expressivos, sob diversos registros, articulados por uma operação de montagem que nem os encerra em um conjunto totalizante, nem os alinha segundo uma teleologia. Após a realização dos primeiros três longas-metragens, o cinema de Kluge se aproxima mais do cruzamento entre ficção e documentário. Outrora, o cineasta já fazia uso de algumas imagens gráficas e iconográficas montadas entre as encenações fictícias. Posteriormente, o autor passou a recorrer cada vez mais a arquivos e materiais heteróclitos. Podemos afirmar que o cinema de Kluge promove uma contraescrita da história porque seus filmes questionam as versões oficiais e correntes da história alemã, tal como reproduzidas pelos livros didáticos e também disseminadas pelo senso comum. Em especial, Kluge volta sua atenção para os acontecimentos traumáticos que foram recobertos pelo esquecimento. Esse gesto contradiscursivo está presente em diversas atitudes das personagens femininas, que se colocam na contramão do discurso oficial em seus respectivos contextos. Protagonistas de pequenas estórias que se multiplicam, esses personagens promovem o elo entre o presente e os arquivos do passado. Isso pode ser reconhecido, por exemplo, na maneira “ingênua” como Gabi Teichert indaga e provoca o presente. A multiplicação das estórias menores é fundamental para Kluge, como vemos no relato do joelho de Wieland, nas breves encenações de situações do passado, como a dos oficiais no front de guerra, ou, ainda, nas imagens documentais que mostram a execução de soldados nazistas pelas forças aliadas na primavera de 1945, seguidas pelos ataques aéreos estadunidenses sobre pequenas cidades alemãs e pelos relatos acerca do bombardeio britânico sobre o território germânico. A proliferação de pequenas narrativas desafia a pretensão de uma narrativa histórica totalizante e convoca o trabalho de uma montagem que as associa livremente, aliada às reflexões de natureza ensaística. Lembremos que, para Adorno (2003), o ensaio é uma escrita que recusa, criticamente, a história monumental e acumulativa. O
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ensaio é uma resposta à grandiloquência e à categorização dos fatos em engavetamentos abstratos. Em determinado momento de A patriota, a professora Gabi Teichert parte para sua empreitada de escavar a história. A história não está nos livros, mas enterrada nas valas do solo pátrio, segundo seu modo de pensar e agir. De acordo com o pesquisador Anton Kaes (1992: 108, trad. nossa):
11. “As an amateur archaeologist, she searches for traces and vestiges of the German past. In her expeditions through two thousands years of history, she digs so many contradictory things that she can no longer make sense of them. History becomes a mere jumble to her” (KAES, 1992: 108).
12. “When Gabi Teichert shows interest, for instance, in the hundreds of little everyday stories that been excluded by the ‘official’ historiography, she deals with German history in the spirit of Kluge’s project” (KAES, 1992: 108).
13. “And what else is the history of a country but the vastest narrative surface of all? Not one story but many stories” (KLUGE, 1981-82: 206).
Como uma arqueóloga amadora, ela busca traços e vestígios do passado alemão. Em suas expedições através de dois mil anos de história, ela desenterra tantas coisas contraditórias que já não pode encontrar sentido nelas. A história se torna para ela uma grande confusão.11
Nesse processo de escavação, o que se vê no filme é uma conjunção de narrativas e arquivos heteróclitos que funcionam como peças de um quebra-cabeça historiográfico: desde o movimento alegórico presente na banda sonora (que narra a história do joelho sobrevivente do oficial alemão) até a conversa entre dois soldados em um campo de batalha. Essas partes desiguais funcionam como tijolos de uma parede de construção improvável. “Quando Gabi Teichert demonstra interesse, por exemplo, nas centenas de pequenas histórias cotidianas que foram excluídas pela historiografia ‘oficial’, ela lida com a história alemã de acordo com o espírito do projeto de Kluge” (KAES, 1992: 108, trad. nossa).12 O projeto de Kluge é norteado pelo seguinte questionamento: “o que é a história de um país senão a mais vasta de todas as superfícies narrativas? Não uma história, mas muitas estórias” (KLUGE, 198182: 206, trad. nossa).13 Essas pequenas estórias mostram, muitas vezes, aquilo que está fora dos livros, a vida ordinária na época retratada. Esse conjunto de estórias exibe uma forma de vida comum, abafada tantas vezes pelo estrondo dos grandes eventos. Nessa contestação reside o principal argumento de Kluge, que percebe a história em seu movimento descontínuo e fragmentário. Assim como Walter Benjamin, o cineasta compreende a história a partir de suas fissuras e de seus aspectos não-teleológicos. De acordo com o pensador alemão, a história não se constrói linearmente. Ao contrário, é o presente que deve estar sempre atento ao lampejar do passado (BENJAMIN, 1994). É desta forma que Kluge insere as diversas pequenas estórias cotidianas de
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personagens ordinários em suas buscas e trajetórias particulares. Algo que ocorre, por exemplo, em outro filme do cineasta, O ataque do presente contra o resto do tempo (1985), com a educadora que tenta entregar aos parentes uma menina que perdeu os pais, ou com a médica que se sente inútil em sua profissão e tenta encontrar um novo tipo de engajamento social e histórico. Na fatura do filme, o desenvolvimento desse argumento ganha corpo nas diversas contraposições de personagens ordinários a um amontoado de carros enferrujados em um ferro velho. A história se constrói em analogia às ferragens, aos restos e aos vestígios esquecidos no ambiente e tomados pela corrosão. Portanto, é preciso escavar e recuperar, de algum modo, todo esse material.
Os arquivos e a história Kluge nasceu em 14 de fevereiro de 1932, na cidade alemã de Halberstadt. No dia 8 de abril de 1945, uma bomba aérea lançada pelos Aliados explodiu a cerca de 10 metros de sua casa, deixando em ruínas os arredores. O acontecimento, que marcou para sempre a vida e a obra do cineasta, explica a grande quantidade de referências a episódios de explosões de bombas durante a Segunda Grande Guerra. Em A patriota, há uma encenação que mostra dois oficiais responsáveis pelo desarmamento de bombas, além da história de uma professora, Gerda Baethe, que, presa em casa junto de seus filhos, tenta protegê-los das bombas que caem sobre a cidade. Esse relato aparece em “Der Luftrangriff auf Halberstadt AM. 8 April 1945”, de autoria de Kluge, em um texto que reconstitui o bombardeio à sua cidade natal durante a Segunda Guerra Mundial, quando ainda era criança. O escritor narra a experiência da mãe e dos filhos enquanto a cidade é arruinada pelas bombas:
Ela caiu com o impacto ocorrido a 5 metros de distância. O quintal balançou com a onda de pressão do ar, seguindo uma série de detonações: Woort, Kulkplatz, Paulsplan, a Igreja Calvinista, etc. Gerda sentiu tudo distante. Afinal, ela não conseguiu perceber tudo em nenhum mapa de operações para ver isso. (KLUGE apud SEBALD, 2011: 55)
Kluge insere outra perspectiva acerca do bombardeio, tanto em seu texto quanto em A patriota. Gerda Baethe escuta os estrondos, mas não sabe exatamente o que ocorre e onde
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ocorrem (fig. 2). A sua preocupação imediata é a de proteger os filhos do perigo próximo e iminente. Algo que também ocorre com outros personagens de A patriota envolvidos na situação. Após a apresentação de várias ruínas de uma cidade (fig. 3), vemos uma cova em um cemitério. Os sons de uma sirene revelam um estado de perigo. Um homem salta para dentro da sepultura e nela se esconde (fig. 4). No plano seguinte, o coveiro dorme encostado na pá (fig. 5). O narrador nos revela então uma nova estória: “Outono de 1943. O coveiro Bischof procura abrigo em uma sepultura recémcavada. Haverá muito trabalho a fazer. Mas ele acaba tirando uma soneca”. O coveiro, assim como a mãe e os filhos, não consegue ter a exata dimensão dos fatos e do perigo. Em seu instinto de proteção imediata, ele salta para dentro da cova. Com o passar do tempo, acaba adormecendo e não percebe o que ocorreu na cidade. A operação de montagem realizada pela montadora da maioria dos filmes de Kluge, Beate Mainka-Jellinghaus, traz uma terceira estória que tem início com imagens de aviões e um bombardeio em vários lugares (fig. 6). Na sequência das imagens, uma nova encenação: dois oficiais de bombardeio fumam um cigarro (fig. 7). O narrador afirma: “Dois pilotos de bombardeio estão de volta de uma missão. Eles não conheciam a Alemanha. Eles simplesmente aproveitavam o país durante dezoito horas”. Outras imagens de arquivo dos pilotos britânicos. Eles pegam um carro em grupo. O narrador relata: “Agora eles se dirigem até o quartel para dormir”.
Figura 2: Gerda Baethe se esconde junto aos filhos Figura 3: Cidade alemã é bombardeada Figura 4: Coveiro Bishop se esconde das bombas Figura 5: Coveiro Bishop cochila após os ataques Figura 6: Ataque aéreo dos Aliados Figura 7: Soldados fumam após o ataque
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A descrição destas três cenas é fundamental para compreender o método de concatenação de Kluge, que conecta arquivos heterogêneos, à procura de conexões não usuais ou insuspeitadas entre os acontecimentos históricos. Para ele, as possibilidades oferecidas pela encenação e pelos procedimentos documentais são múltiplas e inseparáveis. Um homem a fumar na neve pode ser apenas o simples retrato de alguém em uma ação cotidiana. No entanto, se essa imagem é colada a outra, a de aviões de guerra e um bombardeio, ela se transforma em uma construção ficcional. O homem que fuma na neve é parte integrante de uma mesma história, que conjuga a família em seu desespero, tentando se esconder das bombas, o coveiro que dorme em serviço e os pilotos estrangeiros que acabaram de atacar uma cidade alemã. Esta sequência faz parte da cena apresentada a partir de uma visão de um telescópio. Nela, Kluge procura desconstruir algumas definições costumeiras que opõem muito esquematicamente o documentário e a ficção. A sequência traz os seguintes elementos: uma cartela mostra o verbete “Documentário”. Em um plano aberto, um homem, a uma grande distância, fuma um cigarro em meio à paisagem branca e congelada. A lente grande-angular mostra apenas a luz que vem do cigarro aceso. O comentário da banda sonora diz: “Documentário! Um homem com um cigarro a oitocentos metros de distância. Eu não conheço sua história”. A seguir, vemos uma nova cartela: “Encenação”. Vemos um esquadrão de bombardeio aéreo lançando bombas. Lá embaixo, uma mãe e seus dois filhos estão sentados à mesa, ao lado de uma maleta. Para David Roberts essa composição escapa à divisão corriqueira entre documentário e ficção:
Kluge não almeja nem uma documentação objetiva do bombardeio de Halberstadt, nem uma impressão ou encenação humana, subjetiva, dos eventos. Seu objeto é, antes, a dialética extremamente complexa entre o concreto e o abstrato, o visível e o invisível, o momento e a história. (ROBERTS, 2012: 130, trad. nossa)14
O que o filme faz é concatenar os eventos: os que sofrem sob o ataque das bombas, o trabalho do coveiro e os aviadores que despejam as bombas. Essas três estórias acabam soterradas pela História oficial narrada nos livros didáticos, esta que Gabi Teichert insiste em contestar. A professora escava as ruínas para
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14. “Kluge is aiming neither at
an objetive documentation of the bombing of Halberstadt nor at a human, subjective impression or staging of the events. His object rather is the extremely complicated dialectic of the concrete and the abstract, the visible and the invisible, the moment and the history” (ROBERTS, 2012: 130).
trazer de volta os mortos, como na anedota alegórica do conto do menino morto (presente no filme) que não se deixa enterrar: “Era uma vez uma criança teimosa, que detestava Deus e sua mãe. Ele estava em seu leito de morte. Mesmo depois de ser enterrado, sua mão escapava da sepultura”. O trabalho de luto realizado pelo filme se apresenta nessa relação da personagem com os mortos. O luto também aparece nas diversas iconografias e nos diferentes arquivos que aparecem conectados por textos e narrações. Imagens documentais da campanha russa no inverno de 1942 são mostradas ao mesmo tempo em que um verso apócrifo é declamado na banda sonora: Um homenzinho que não era sábio Construiu a sua casa sobre o gelo. Disse: Ó Senhor, mantenha-o congelado Ou então minha casinha eu vou perder. Mas a pequena casa afundou E o homenzinho se afogou.
15. “The film’s trauerarbeit
surfaces mutely in the patriot’s tears: mourning for the many war victims and for the lost fatherland; mourning also for the cold rigidity that keeps the society together”.
Logo em seguida, acompanhamos Gabi dentro de um automóvel, a chorar enquanto dirige. “O Trauerarbeit do filme desponta em silêncio nas lágrimas da patriota: luto pelas numerosas vítimas da guerra e pela pátria perdida; luto também pela fria austeridade que mantém a sociedade unida” (KAES, 1992: 131, trad. nossa).15 A personagem chora por aqueles que perderam suas vidas em uma história trágica. O interesse da personagem é o mesmo de Kluge: a busca pelos mortos soterrados pela história. A metáfora da escavação é um elemento fundamental do método de Kluge e em sua desconstrução crítica da história alemã. Seu gesto é benjaminiano, ao conceber essa história como a acumulação de diferentes materiais de épocas diversas, sobreposto em camadas variadas. Ao mesmo tempo, há também as questões do trauma e do silêncio que, durante anos, acompanharam a história alemã. Gabi questiona o presente por entender que o passado é lacunar, envolvido por silêncios e interditos. Seu gesto contestatório implica questionamentos fundamentais para essa forma de pensar uma outra história. Para tanto, é preciso refletir a respeito de alguns aspectos. Qual história o filme de fato atrita? Por que, para o cineasta, é impossível se escrever uma história
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patriótica da Alemanha? Quem são, de fato, os silenciados por essa história? É possível falar de uma história dos vencidos nos termos benjaminianos? Quais são os porquês do silêncio logo após a experiência traumática da Segunda Guerra Mundial? Se, em determinado instante, a própria Teichert diz que “é impossível explicar a história aos alunos”, precisamos, então, buscar alguns dos acontecimentos marcantes da história oficial alemã a fim de entender melhor essas impossibilidades e para que compreendamos essa outra história a ser contraescrita. De acordo com Jacques Le Goff (2003: 18-19): A palavra “história” (...) vem do grego antigo historie, em dialeto jônico. Esta forma deriva da raiz indo-européia wid-, weid-, “ver”. Daí o sânscrito vettas, “testemunha”, e o grego histor, testemunha no sentido de “aquele que vê”. Esta concepção da visão como fonte essencial de conhecimento leva-nos à ideia de que histor, aquele que vê, é também “aquele que sabe”; historein, em grego antigo, é “procurar saber”, “informar-se”. Historie significa, pois, “procurar”. É este o sentido da palavra em Heródoto, no início de suas Histórias, que são investigações, “procuras”. (...) Ver, logo saber, é um primeiro problema.
Essa definição entreabre uma série de significados para o termo “história” presente nas línguas românicas. Essa procura das ações realizadas pelos homens proposta por Heródoto acaba por se constituir em uma ciência histórica. O objeto de pesquisa da história seria, portanto, aquilo que é realizado pelos homens. Para Paul Veyne (1968: 423-424), “a história é que quer uma série de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos”. Essa definição da história pode ganhar um terceiro sentido, o de narração, como afirma Le Goff (2003: 18-19): “Uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade histórica’ ou puramente imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula”. Ao conceber a história como narração, o autor acaba por aproximar o processo historiográfico de uma formulação pela linguagem a partir do tempo presente. Para Le Goff, as novas orientações da história são: “crítica do documento, o novo tratamento dado ao tempo, as novas relações entre material e ‘espiritual’, as análises do fenômeno do poder sob todas as suas formas, não só de seu aspecto político”
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(LE GOFF, 2003: 143). Recorreremos, portanto, a alguns dos conceitos da chamada Nova História, a fim de discutir outros modelos de história, como, por exemplo, o positivista, criticado por Walter Benjamin. A concepção de história encontrada nos filmes e no pensamento de Kluge está fortemente orientada pelos questionamentos da própria história, bem como na maneira como as questões nacionalistas se estabeleceram ao longo do tempo. Esse pensamento mostra o quanto se torna complicado reestruturar uma nova escrita da história sem esbarrar nas dificuldades impostas pelas construções nacionalistas, patrióticas e míticas presentes nessa história oficial. Assim como faz a personagem Gabi Teichert, é preciso escavar a história alemã para que se retome todas essas questões, para que dela retornem os fantasmas que insistem em assombrar e a silenciar aqueles que fazem parte, ao seu modo, desta mesma história.
Ensaio de uma contraescrita da história Podemos dizer que, já nos movimentos da vanguarda dos anos 1920, o ensaio – numa acepção mais ampliada – se fazia presente, como, por exemplo, no cinema de Jean Epstein, Hans Richter ou mesmo na obra de Sergei Eisenstein. No entanto, na maioria das vezes, o ensaio se vinculava mais ao cinema documentário do que às ficções. Coube a alguns críticos franceses nas décadas de 1950 e 1960 a caracterização de algumas obras como ensaísticas. É o que faz, por exemplo, Godard, quando diz, em um de seus aforismos cinematográficos, que Rossellini se expressava através do ensaio. Numa acepção restrita e mais atenta aos princípios formais, Suzanne Liandrat-Guigues (2004) afirma que o gesto ensaístico pode se dar diante das câmeras, na mise-en-scène, ou ainda na montagem, na narração ou na banda sonora. Kluge, em A patriota, faz uso, sobretudo, dos artifícios da montagem e da narração. Sua dicção ensaística está diretamente conectada a esses dois recursos. O próprio cineasta se constitui como narrador, ora se apresentando como o próprio realizador do filme, ora a partir da alegoria do joelho do soldado Wieland.
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Na fatura da obra, a forma do ensaio encontra sua manifestação cinematográfica, por assim dizer, nas operações da narração e da montagem. A maneira como a narração aparece nos filmes de Kluge pode ser aproximada, de acordo com Peter C. Lutze (1998), de uma orientação modernista. Para o comentador, a narração (tão fundamental na constituição do gesto ensaístico) tem, em Kluge, um caráter que é, ao mesmo tempo, ambivalente e inovador: o cineasta é fascinado pelo processo de narração clássico, todavia rejeita, por diversas vezes, os modelos tradicionais de narração. Admirador confesso do Primeiro Cinema, Kluge se aproxima dessas obras na medida em que constrói seus filmes através de histórias episódicas que surgem como interrupções a um fio condutor de uma narrativa linear, que supostamente teria uma unidade causal entre espaço e tempo. O cineasta se apropria, muitas vezes, dessa estrutura que, desde o surgimento do cinema, mostra a capacidade que esta arte tem de modificar a própria realidade. Neste sentido, pode-se mesmo dizer que não existe, no Primeiro Cinema, uma tentativa de ilusionismo. A admiração de Kluge está diretamente relacionada a essa capacidade que o cinema tem de criar suas fábulas com elementos do real. Segundo Lutze, Kluge pode ser colocado no patamar de Franz Kafka, por se constituir como um fabulista que não está preocupado em constituir estórias com algum tipo de moral explícita. Em seus primeiros filmes, Despedida de ontem (1966) e Artistas na cúpula do circo: perplexos (1968), a narrativa é estruturada pela trajetória de suas personagens principais. Existe uma narração em off que procura ressaltar certos aspectos da vida de Anita e Leni (a meta de ambas nos respectivos filmes é bastante vaga, tanto que, ao final, as duas acabam retornando ao mesmo lugar: Anita para a prisão, Leni sem uma solução para o seu circo). Posteriormente, a partir de Trabalho ocasional de uma escrava (1973), o próprio Kluge passou a narrar seus filmes. A possibilidade de narrar propiciou ao diretor um maior controle das entonações e inflexões dadas ao texto. “A voz de Kluge tem um calor e uma inteligência muito peculiares. Muitas vezes, ele é irônico, mas de um modo gentil em vez de sarcástico. Ele cria um narrador onisciente, mas também pessoal, que não prega ou constrange, mas quase sussurra para a audiência” (LUTZE, 1998: 85, trad. nossa).16 Para Lutze, essa mudança torna-se cada vez mais importante enquanto fonte de informação narrativa: “esta
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16. “Kluge’s voice has a
very distinctive warmth and intelligence. He is often ironic, but in a gentle rather than sarcastic way. He creates an omniscient narrator, but also a personal one, who does not preach or compel, but rather almost whispers to the audience” (LUTZE, 1998: 85).
17. “This oral storytelling foregrounds both the role of the director and the process of narration” (LUTZE, 1998: 64).
narração oral evidencia tanto o papel do diretor quanto o processo de narração” (LUTZE, 1998: 64, trad. nossa).17 A alteração no procedimento oral da narração transforma, também, a forma de constituição narrativa dos filmes. Se em Despedida de ontem e em Artistas na cúpula do circo: perplexos a narrativa ainda não se mostrava tão fragmentária quanto nos filmes seguintes, em Trabalho ocasional de uma escrava já é possível observar alguns fragmentos de outras imagens que aparecem na narrativa, como acontece com as inserções do filme soviético Chapaev (Georgi e Sergei Vasileyev, 1934). Em razão dessa mudança das formas de narração e dos usos de outras imagens em seus filmes, é possível, segundo Lutze, compreender as estruturas narrativas em dois extremos: um modelo tradicional mais próximo ao de Hollywood, com uma trama linear de desenvolvimento direto (presente, em parte, nos primeiros longas-metragens); e um modelo modernista de colagem de arquivos diversos de pequenas narrativas cujas interconexões são de ordem temática e estilística. Para Lutze, A patriota poderia ser visto como um filme de transição entre os dois modelos, por sua tentativa de traçar uma trajetória da personagem principal, mas também por trazer outras micronarrativas, além de exibir, em sua montagem, diversos fragmentos de imagens e narrações em off. O ensaio opera então a partir da narração, na tentativa de organizar os diversos fragmentos.
18. “These titles have a stylistic function of visual contrast and repetition” (LUTZE, 1998: 84).
19. “Kluge’s obsessive use of
quotation marks, figuratively speaking, foregrounds the act of enunciation itself, suspending and simultaneously provoking the question of authorship: a discourse in search of spectators who can remember and revise” (HANSEN, 1983: 65).
Além da narração presente na banda sonora, Kluge insere, em diversos momentos, intertítulos que possuem uma função não somente narrativa: “esses títulos têm uma função estilística de contraste visual e repetição” (LUTZE, 1998: 84, trad. nossa).18 Estes intertítulos, muitas vezes, se constituem em citações sem uma referência clara a respeito de sua autoria. Para Miriam Hansen (1983: 65, trad. nossa), “o uso de aspas obsessivo por Kluge, figurativamente falando, enfatiza o próprio ato de enunciação, suspendendo e provocando, ao mesmo tempo, a questão da autoria: um discurso em busca de espectadores que podem lembrar e rever”.19 Para Kluge, o texto é também imagem, assim como são elementos visuais as imagens de arquivo de velhos filmes documentários ou de ficção, fotografias encontradas em arquivamentos pessoais, revistas, livros, frames ou desenhos, pinturas e outros tipos de ilustração. Cabe à operação de montagem a reunião desses materiais.
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“A combinação desses (...) tipos de materiais é utilizada em três modos diferentes de narração: condensação, ilustração e excerto” (LUTZE, 1998: 87, trad. nossa).20 Essas três formas de narração representam, em boa medida, modos de ensaio na obra do autor. Lutze afirma que os três modelos de narração e montagem aparecem de diversos modos. A condensação surge, normalmente, vinculada a uma temática de longa duração ou explicação. O cineasta condensa, então, essa temática a partir de algumas imagens e da narração. “Como um bom modernista, Kluge salienta esse processo de colagem e as diferenças entre os materiais midiáticos através do uso de câmera lenta, quadros congelados e efeitos de íris” (LUTZE, 1998: 87, trad. nossa).21 Um exemplo desse modo de narração pode ser observado na cena em que o diretor apresenta a história da invasão napoleônica ao usar uma ilustração do imperador francês e também pela narração presente na banda sonora. A ilustração está diretamente ligada à maneira encontrada por Kluge de representar determinado conto, passagem ou texto por ele narrado em off. Como exemplo, Lutze retoma uma cena de Despedida de ontem em que o diretor narra uma passagem de um livro infantil ilustrado na qual um mamute da era glacial se descongela nos tempos modernos. Em A patriota, no instante de apresentação do joelho do soldado Wieland, por meio da leitura do poema de Morgenstern, o cineasta associa a narração a antigas pinturas, desenhos, fotografias e imagens de arquivo, de modo a ilustrar alguns momentos da história da Alemanha. “Esta técnica permite a Kluge pegar materiais literários, tradições orais, ou materiais originais e visualizá-los sem representá-los” (LUTZE, 1998: 88, trad. nossa).22 O terceiro modo de narração introduz uma parte de uma representação visual (cena de um filme ou fragmento de uma ópera) para que nela se possa “usar a narração para fornecer o contexto e explicar a ação” (LUTZE, 1998: 88, trad. nossa).23 Nessa operação, Kluge faz uso apenas da parte ou do episódio de um determinado conto, livro ou peça que lhe interesse naquele momento. Em O ataque do presente contra o resto do tempo, o cineasta mostra alguns excertos da ópera Tosca, de Giacomo Puccini, enquanto comenta as ações dos intérpretes. Algo que também ocorre em A patriota na cena em que o Ministro da Cultura alemão, especialista em contos de fadas, comenta alguns ensinamentos morais encontrados nessas
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20. “The combination of
these (...) types of material are utilized in three different modes of storytelling: condensation, illustration, and excerpt” (LUTZE, 1998: 87).
21. “Like a good modernist,
Kluge foregrounds this process of collage and the differences between the media by using slow motion, freeze frames, and iris framing” (LUTZE, 1998: 87).
22. “This technique allows
Kluge to take literary material, oral traditions, or original material and visualize it without enacting it” (LUTZE, 1998: 88).
23. “Use the narration to
provide the context and to explain the action” (LUTZE, 1998: 88).
24. “This oral storytelling
allows Kluge to tell many more parallels and interconnections, than he could using standard narrative techniques in standard ways” (LUTZE, 1998: 89).
estórias. Depois da explicação do Ministro, Kluge, em off, comenta importância que esses contos possuem na constituição da história alemã. Como reitera Lutze (1998: 89, trad. nossa), “esta narração oral permite a Kluge criar muitos outros paralelos e interconexões do que seria possível se ele usasse técnicas narrativas convencionais de modos padronizados”.24 A organização do material pelos modos de narração e pela montagem dá a ver o método ensaístico cinematográfico de Kluge. Encontramos na escritura do filme as ranhuras deste “método antimetodológico” (na forma adorniana do ensaio): em uma sequência do filme, vemos o rosto de Gabi Teichert em close-up. Um corte na montagem e temos a figura de elefantes sobre o casco de uma tartaruga. Trata-se do mito do planeta em formato plano, que, posteriormente, foi contestado por Copérnico. Para Kluge, existem vários modelos de explicação do mundo ao longo da história e várias mudanças no pensamento e nos paradigmas científicos.
25. “Il ne s’agit pas ici de
rétablir la signification prèmiere de l’image, mais d’en élargir le champ, de manière à produire une sort d’éxces de sens: le film naît alors, comme dit Kluge, dans la tête du spectateur” (BLÜMLINGER, 2004: 64).
Em outra cena, a professora de Hesse vasculha textos e documentos. A câmera, posicionada do lado de fora, observa a ação da personagem. O narrador afirma que ela corrige os trabalhos de seus alunos nesse instante. Em um papel, lemos a seguinte mensagem: “As montanhas se levantarão um dia, elas estão dormindo por curto período de tempo”. Como podemos notar, há na operação de montagem de A patriota um jogo complexo de relações. O trabalho rotineiro da personagem é atravessado pelo aparecimento dos elementos textuais que reconfiguram sua ação. Kluge abre espaço para que as frases enigmáticas criem interpretações diversas. “Não se trata aqui de restaurar a significação primária da imagem, mas de ampliar o campo, de maneira a produzir um tipo de excesso de sentido: o filme nasce, como afirma Kluge, na cabeça do espectador” (BLÜMLINGER, 2004: 64, trad. nossa).25 Estamos diante de um processo ensaístico que conjuga imagens, sons e narração de uma maneira aberta, que deixa, propositadamente, parte do sentido em suspenso. As informações e relatos dados na banda sonora acabam por complicar e multiplicar as significações carregadas pelas imagens, textos e sons. Trata-se de trabalho meticuloso e polifônico que intercruza tempos, informações e imagens em um tecido marcado por diversos pontos de vista. Kluge procura, assim, organizar os materiais de acordo com um princípio de ruptura que, como elucida Miriam Hansen, ocorre entre os diferentes níveis cinematográficos: entre a imagem em movimento e a escrita, entre
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a imagem, a voz e a música, entre períodos diferentes de imagens; entre um sentido épico do tempo e da temporalidade dos números, cenários e miniaturas. As rupturas desse processo de criação podem ser observadas em outra cena. Um homem cava um buraco. O narrador afirma: “Enterrado sob a cidade de mentiras sem detonar bombas da Segunda Guerra Mundial e objetos de valor do imperador Augusto e dos Celtas. Primeiramente ele encontrou apenas copos, potes, utensílios. Agora eles são tesouros. O museu da história antiga está equipado. Agora em todo lugar, um trator cava um pouco de terra, e cidadãos, chamados de ladrões de tumbas, cavam e salvam os tesouros da história”. A operação da montagem, nessa passagem, reforça o caráter transformador que ela tem dentro da obra. Uma simples escavação transforma utensílios simples em vestígios de um passado soterrado. A história é escrita a partir dos materiais encontrados por seus escavadores. No comentário do narrador, há sempre uma orientação irônica: a história transforma utensílios comuns em tesouros e os ladrões de tumbas em historiadores. A reconfiguração do sentido de um objeto ao longo da história é de grande interesse para o cineasta. Não é por menos que ele reconhece que, em todos os vestígios soterrados, há uma maneira de se contar a história. Para ele, qualquer um que vasculha e cava a terra em busca dos vestígios age como um historiador. A sequência seguinte traz um plano de Gabi Teichert ao lado do coveiro da cena anterior. Ela pergunta o quão profundo ele pode cavar. “Zero metros é a regra”. “Zero metros? Isso é nada”, indaga a professora. Mais uma vez, a escavação torna-se uma tentativa de Teichert de encontrar os vestígios dessa outra história que não aquela encerrada nos livros que seus alunos leem em sala de aula. Segundo Blümlinger, o objetivo de Godard em Aqui e acolá (1975) é “atribuir a uma dada imagem uma nova imagem, para criar um estágio intermediário que transporta o pensamento ao coração da imagem. Nesse espaço vazio, a imagem pode ser radicalmente colocada em questão” (BLÜMLINGER, 2004: 65, trad. nossa).26 Podemos dizer que esse tipo de deslocamento surge também em A patriota, na maneira com que Kluge se apropria de outras imagens e, através do artifício da narração, desloca os seus sentidos. Ao apresentar uma imagem de arquivo (como, por exemplo, a imagem de aviões de guerra em um bombardeio) junto a uma encenação (os desarmadores de bombas em
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26. “Il s’agit d’attribuer, à une
image donnée, une image nouvelle, pour créer un entre-deux qui transporte la pensée au coeur de l’image. Dans cet espace vide, l’image peut être radicalement mise en question” (BLÜMLINGER, 2004: 65).
conversa em um esconderijo, um bunker), esses dois fragmentos são reconfigurados. O ensaio, que, segundo Adorno, possibilita essa liberdade de elaboração frente a certo tipo de cientificismo, garante a Kluge um procedimento admirável no deslocamento das imagens, com possibilidades diversas de poder combiná-las e delas obter uma escrita condizente com as propostas do filme em relação a uma outra história da Alemanha.
27. “What remains important
is that Kluge still affirms his belief in the ‘ghosts of the past’, such as Marx, Eisenstein and Brecht” (KOUTSOURAKIS, 2011: 222). 28. “Despite the fact that
he does not share their ideological certainties, he constantly returns back to them and re-reads them so as to question the naturalization of capitalism” (KOUTSOURAKIS, 2011: 222).
O ensaio vem, portanto, promover conexão entre esses fragmentos. O resultado de toda a busca e combinação seria o gesto ensaístico e o olhar para a história. O emblema máximo dessa empresa está na personagem de Gabi Teichert e na maneira como ela questiona a história e ensaia uma outra. Kluge rompe com uma tradição positivista e cientificista de se conceber a história para dar vazão a um método que combina fatos, expressões artísticas, literárias e memorialísticas. “O que continua importante é o fato de Kluge ainda afirmar sua crença nos ‘fantasmas do passado’, como Marx, Eisenstein e Brecht” (KOUTSOURAKIS, 2011: 222, trad. nossa).27 Koutsourakis ainda diz que, “apesar dele [Kluge] não partilhar totalmente das suas certezas ideológicas [desses autores], ele constantemente volta a eles e os relê, de modo a questionar a naturalização do capitalismo” (KOUTSOURAKIS, 2011: 222, trad. nossa).28 No ensaio cinematográfico, o cineasta e escritor encontra uma forma libertária para lidar com essas questões atravessadas pelo capitalismo e pela história. Talvez, a liberdade concedida pela forma do ensaio e seus lances mais inventivos necessitem dessa deriva indagadora (e desnorteadora) à qual se entrega a protagonista. Em seu percurso, Gabi Teichert faz diversas experiências: participa de conferências, questiona seus contemporâneos, estuda livros e documentos, faz medições dos corpos das pessoas e mistura, em um laboratório, livros e documentos, perfura-os, corta-os, transforma-os em líquido e bebe, a fim de compreender o que de fato busca. Talvez essa busca tenha, também, algo a ver com o corpo daqueles que experimentam as situações que permanecem invisíveis na escrita corrente da história. Entre as pequenas estórias, os contos, os mitos, as canções, as ilustrações e os acontecimentos históricos talvez exista uma linha em zigue-zague a qual somente o ensaio pode percorrer, livremente, passando por diferentes escalas de temporalidade, para colocar em questão as causas até então atribuídas aos fatos.
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REFERÊNCIAS
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FILMES
AQUI e acolá (Ici et ailleurs). Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, França, 1975, 52 min. ARTISTAS na cúpula de circo: perplexos (Die Artisten in der Zirkuskuppel: ratlos). Alexander Kluge, República Federal da Alemanha, 1968, 103 min. CHAPAEV (Chapaev). Georgi Vasilyev e Sergei Vasilyev, URSS, 1934, 96 min. DESPEDIDA de ontem (Abschied von gestern). Alexander Kluge, 1966, República Federal da Alemanha, 1966, 84 min. NOITE e neblina (Nuit et brouillard). Alain Resnais, França e Alemanha, 1955, 20 min. PATRIOTA, A (Die Patriotin) Alexander Kluge, República Federal da Alemanha, 1979, 120 min. TRABALHO ocasional de uma escrava (Gelegenheitsarbeit einer Slavin). Alexander Kluge, República Federal da Alemanha, 1973, 87 min. ÚLTIMA companhia, A (Die letzte kompagnie). Curtis Bernhardt, Alemanha, 1930, 79 min.
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Data do recebimento: 03 de junho de 2015 Data da aceitação: 09 de setembro de 2015
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Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos: acerca de Noite e neblina Rodrigo Carreiro Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFPE). Doutor e Mestre em Comunicação pela UFPE, e Bacharel em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco.
Ricardo Lessa Filho Mestrando do PPGCOM da UFPE, e jornalista formado pelo Centro Universitário Cesmac (AL).
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iResumo: Este artigo parte da análise de cenas de um dos mais importantes filmes feitos sobre o Holocausto, Noite e neblina (Alain Resnais, 1955), para insistir na validade histórica das imagens de violência produzidas durante o conflito, argumentando que mesmo manipulações posteriores ou pequenas inexatidões históricas na apresentação não são capazes de obscurecer, invalidar ou desvalorizar o uso de fotografias e imagens em movimento como documentos históricos Palavras-chave: Documentário. Arquivo. Holocausto. Alain Resnais. Abstract: This paper makes an analysis of some images of one of the most important films made about the Holocaust, Night and Fog (Alain Resnais, 1955), to insist on the historical validity of the images of violence produced during the conflict. We argue that even subsequent manipulations or minor historical inaccuracies in the presentation of these images are not able to obscure, invalidate or depreciate the use of photographs and moving images as historical documents. Keywords: Documentary. File. Holocaust. Alain Resnais. Résumé: Cet article analyse certaines images de l’un des films les plus importants sur l’Holocauste, Nuit et Brouillard (Alain Resnais, 1955), en revenant sur la validité historique des images de violence produite pendant la guerre. Nous soutenons que même les manipulations ultérieures ou les petites imprécisions historiques dans la présentation de ces images ne parviennent pas à masquer, à invalider ou la valeur historique des documents photographiques et des images en mouvement du génocide. Mots-clés: Documentaire. Déposer. Holocauste. Alain Resnais.
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Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Introdução: sobre o valor dos arquivos documentais Apesar de terem sido lançados com trinta anos de intervalo entre si, Noite e neblina (Nuit et brouillard, Alain Resnais, 1955) e Shoah (Claude Lanzmann, 1985) são, sem duvida, os dois filmes mais conhecidos e aclamados que tematizaram o Holocausto contra o povo judeu. Apesar disso, eles compartilham pouco mais do que o evento histórico que lhes serve de tema; são filmes de estética completamente diferente, a começar mesmo pela duração – 32 minutos da produção de Resnais contra 566 minutos do titulo concebido pelo historiador Lanzmann. Mas a diferença mais marcante, e também mais polêmica, reside provavelmente no uso que ambos dão aos arquivos como documento histórico. Como se sabe, Shoah está fundado sobre um hercúleo trabalho de pesquisa, através da qual Claude Lanzmann localizou testemunhas do Holocausto, persuadiu-as a lhe conceder depoimentos (alguns muito longos e minuciosos) e construiu a narrativa inteiramente sobre a palavra falada dessas pessoas, a maioria sobreviventes de campos de concentração nazistas. Lanzmann recusou quase que completamente o uso de arquivos de imagens da Segunda Guerra Mundial.
As imagens de arquivo são imagens sem imaginação. Elas petrificam o pensamento e matam todo o poder de evocação. Vale bem mais fazer o que fiz, um imenso trabalho de elaboração, de criação da memória do acontecimento. O meu filme é um ‘monumento’ que faz parte daquilo que monumentaliza como diz Gérard Wajcman. [...] Preferir o arquivo fílmico às palavras das testemunhas, como se pudesse mais do que estas, é reconduzir sub-repticiamente esta desqualificação da palavra humana na sua destinação para a verdade. (LANZMANN, 2001: 274, trad. nossa)1
A posição absolutamente inflexível de Lanzmann a esse respeito, aliada à quantidade nada desprezível de críticas que lançou em muitas ocasiões a várias obras que tentaram documentar e/ou discutir o Holocausto, lhe renderam críticas pessoais e uma fama de enfant terrible, uma espécie de guardião carrancudo que se apossou do evento histórico, atribuindo a si próprio a suposta de protegê-lo de quaisquer tentativas de representação – porque o Holocausto, para Lanzmann, é um evento irrepresentável.
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1. Les images d’archivé
sont des images sans imagination. Elles pétrifient la pensée et tuent toute puissance d’évocation. Il vaut bien mieux faire ce que j’ai fait, un immense travail d’élaboration, de création de la mémoire de l’événement. Mon film est un “monument” qui fait partie de ce qu’il monumentalise, comme le dit Gérard Wajcman. [...] Préférer l’archive filmique aux paroles des témoins, comme si celle-là pouvait plus que celles-ci, c’est subrepticement, reconduire cette disqualification de la parole humaine dans sa destination à la vérité.
Essa posição tem sido objeto de contestação há muitas décadas. Tomando Noite e Neblina como estudo de caso, este artigo pretende examinar com rigor o uso de fotografias e registros de imagem em movimento, feitos ao longo da guerra e utilizados por Alain Resnais em seu filme, a fim de demonstrar que o caráter delicado da obra não obscurece seu caráter documental e nem seu valor simbólico, e que eventuais inexatidões históricas e/ou retoques visuais, como aqueles realizados pelo diretor francês, não reduzem em nada o caráter histórico de Noite e neblina, tampouco provocando qualquer tipo de desvalorização da palavra testemunhal, como sugere o argumento de Lanzmann.
Arquivos, memórias e História O filósofo Georges Didi-Huberman descreve que o filme de Resnais, tal como mais tarde Shoah, começa com a dor imóvel de paisagens vazias ou, pior ainda, banais. Ele relembra a voz de Michel Bouquet, declamando parte do texto escrito por Jean Cayrol (e revisado por Chris Marker), que abre o filme: “mesmo uma paisagem tranquila, mesmo uma pradaria com voos de corvos, colheitas e queimadas, mesmo uma aldeia de férias, com uma feira e um sino, podem conduzir simplesmente a um campo de concentração”. Shoah, continua Didi-Huberman, perturbou-nos com as clareiras vazias do campo de concentração de Chelmno, reconhecida por Simon Srebnik, assim como Noite e neblina perturbou-nos com seus campos vazios percorridos por extraordinários “travellings sem tema” (DIDI-HUBERMAN, 2012: 165). Esses travellings, também percebidos por Alain Fleischer, apontam no filme de Resnais para um desapossamento do drama e do espetáculo, nos quais o movimento da câmera captura não o elemento humano, mas o vazio, o abismo, um fantasma:
Em travellings lentos, a câmera não se mexe senão nos cenários vazios, reais e vivos – ligeira agitação dos tufos de erva – mas vazios de qualquer ser, e de uma realidade quase irreal à força de pertencer a um mundo que, para mais, é o de uma improvável, impossível sobrevivência. A câmera parece deslocar-se em vão, sem efeitos reais, desapossada do drama, do espetáculo que estes movimentos parecem acompanhar, mas que não são senão os de fantasmas invisíveis. Tudo está vazio, imóvel e silencioso; fotografias seriam suficientes. Mas,
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precisamente, a câmera move-se, ela é a única a mover-se, ela é a única vida, não há nada a filmar, ninguém, só resta o cinema, não há nada de humano e de vivo a não ser o cinema, diante de alguns vestígios insignificantes, derrisórios, e é este deserto que a câmera percorre, é sobre ele que ela inscreve o rastro suplementar, rapidamente apagado, dos seus trajetos muito simples. (FLEISCHER, 1998: 33, trad. nossa)2
Durante a montagem do filme, neste raro momento em que o homem pode controlar o nascimento da efígie, Resnais, confrontado com a “nova” natureza daquelas imagens, foi acometido por uma vertigem insustentável:
Tinha certa impressão de irrealidade, porque pegar uma dessas tomadas com outra, logo deslocá-la para obter certo efeito... me dava má consciência, e ao mesmo tempo me obrigava a refletir sobre a condição humana... fiz a montagem do filme em uma espécie de estado de vertigem. (RESNAIS apud LINDEPERG, 2009: 59 trad. nossa)3
Essa vertigem se apoderou de boa parte da equipe que estava ajudando na montagem do filme, como aponta Sylvie Lindeperg (2009: 59, trad. nossa) a partir da recordação de Henri Colpi, ao relatar o momento de pânico de Anne Sarraute, assistente de direção, quando foi deixada sozinha por alguns minutos na sala de montagem: “[ela] enlouqueceu quando viu na moviola uma tomada que nunca havia visto, e que era um horror. Teve medo, saiu correndo e veio nos buscar, com o coração batendo desesperadamente”.4 Esta vertigem que é também um malaise, no sentido proposto por Danielle Quinodoz (1997), como aquilo que pode causar uma fraqueza, uma perda dos poderes mentais e físicos, sudorese fria, náusea etc. A destruição absoluta a partir de uma montagem nos faz sim compreender a profunda vertigem da equipe que trabalhava na Rue de Poissy; afinal, como suportar tais imagens? Assim,
[...] a vertigem não exclui o rigor, e o risco de cair, intencionalmente, na “má consciência”, cada tomada de Noite e neblina está colocada com uma precisão e uma maestria que provam o excepcional talento de um montador que dava a esta etapa do trabalho uma função equivalente a uma encenação. Este confronto da arte com a dor e o trágico foi produzido na Rue de Poissy. (LINDEPERG, 2009: 59, trad. nossa)5
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2. La caméra ne bouge, en
lents travellings, que dans des décors vides, certes réels et vivants - légère agitation des touffes d’herbe - mais vides de tout être, et d’une réalité presque irréelle à force d’appartenir à un monde qui est plus encore celui d’une improbable, d’une impossible survie. La caméra semble se déplacer pour rien, à blanc, dépossédée du drame, du spectacle que ces mouvements semblent accompagner mais qui ne sont plus que ceux de fantômes invisibles. Tout est vide, immobile et silencieux, et des photographies pourraient suffire. Mais précisément, la caméra bouge, elle est seule à bouger, elle est la seule vie, il n’y a rien à filmer, personne, il n’y a que du cinéma, il n’y a plus d’humain et de vivant que le cinéma face à quelques traces insignifiantes, dérisoires, et c’est ce désert que la caméra parcourt, c’est sur lui qu’elle inscrit la trace supplémentaire, aussitôt effacée, de ses trajets très simples. 3. Lenía cierta impresión de
irrealidad, porque pegar una de esas tomas com otra, luego desplazarla para obtener cierto efecto... daba mala conciencia, y al mismo tiempo lo obligaba a uno a reflexionar sobre la condición humana... Se hizo el montaje del film en una especie de estado de vértigo. 4. Enloqueció cuando vio
en la moviola una toma que nunca había visto, y que era un horror. Tuvo miedo, salió corriendo y vino a buscarnos, con el corazón latiendo desaforadamente. 5. El vértigo no excluye el
rigor, y a riesgo de caer, sabiéndolo, en la “mala conciencia”, cada toma de Noche y niebla está colocada
con una precisión y una maestría que prueban el excepcional talento de un montajista que daba a esta etapa del trabajo una función equivalente a la puesta en escena. Esta confrontación del arte con el dolor y lo trágico se produjo en la Rue de Poissy.
6. Para mostrar hasta qué punto se trata de otro mundo, nos esforzaremos por montar cortos los planos generales y largos los primeros planos.
Há uma espécie de “outro mundo” habitando as imagens de Noite e neblina, como se um excerto das imagens de arquivo que Resnais se utiliza tivessem sido capturadas a partir de uma dimensão de vestígios inumanos: os corpos mutilados, os corpos desmembrados das cabeças, os corpos ora incinerados completamente, ora parcialmente, as crateras que atravessam a pele e a face humanas, a bacia que sustenta uma pilha de crânios de homens e mulheres (e a máxima de Lévinas, que dizia que era o rosto humano que impedia o homem de matar, foi aniquilado), os sabões feitos a partir da gordura do corpo humano, os mortos esquálidos que morrem de olhos abertos, a imagem dos “muçulmanos”, estes homens mais mortos do que vivos... “para mostrar até que ponto se trata de outro mundo”, diz Resnais, e “nos esforçamos para montar curtos planos gerais e longos primeiros planos” (RESNAIS apud LINDEPERG, 2009: 59, trad. nossa).6 E diante das fusões entre a imagem-arquivo (as imagens em preto e branco) e as imagens do presente (daquele presente de 1955, filmadas a cores), existe uma diferença estilística considerável, perfeitamente visível ao analisarmos a duração média dos planos, a saber: as imagens-arquivo duram de dois a cinco segundos, enquanto as imagens coloridas duram aproximadamente entre quinze e vinte segundos cada. Além disso, como mais detalhadamente aponta Linderperg (ibid.), as tomadas coloridas que representam um terço do filme são apenas vinte e oito, enquanto as tomadas em preto e branco totalizam 279, trazendo a conclusão de que “um plano em cores dura em média o mesmo que quatro ou cinco planos em preto e branco”. O ritmo do filme, como escreve a historiadora francesa, estaria dado pela oposição entre a alternância do movimento “amplo e longo” das sequências coloridas, e o movimento “brusco, entrecortado” das imagens de arquivo. A preferência formal de Resnais por longos primeiros planos em detrimento dos planos gerais curtos tem uma consequência estética: fragmenta o corpo das vítimas e deixa um rastro preparatório que evoca a transformação do ser humano em coisa, alguma coisa que pode ser trocada, experimentada, ou simplesmente exterminada. Vale lembrar que as imagens de arquivo que Resnais utiliza em Noite e neblina não são somente as imagens filmadas dos campos nazistas (sejam quando estes ainda funcionavam,
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sejam logo após a liberação), mas o cineasta francês também recorre a imagens da genealogia do cinema para compor o conjunto de arquivos que é o seu filme. Nos primeiros planos de Noite e neblina, Resnais utiliza fotogramas de O triunfo da vontade (1934) (fig. 1), de Leni Riefenstahl, assim como um plano de A última etapa (1948) (fig. 2), de Wanda Jakubowska, quando um grupo de soldados, cobertos por uma névoa que amplifica a obscuridade da paisagem, vigia os deportados que estão saindo dos vagões de um trem.
Figura 1: Imagem de O triunfo da vontade (1934) presente em Noite e neblina (1955)
Figura 2: Um plano de A última etapa (1948) presente em Noite e neblina (1955)
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7. No famoso artigo Le travelling de Kapo, Daney escreve: “Eu ouvi o comentário desolado de Jean Cayrol na voz de Michel Bouquet e a música de Hanns Eisler que parecia odiar existir. Estranho batismo de imagens: compreender ao mesmo tempo que os campos eram verdadeiros e que o filme era justo. E que o cinema – ele sozinho? – era capaz de acampar nos limites de uma humanidade desnaturada. Eu sentia que as distâncias estabelecidas por Resnais entre o assunto filmado, o sujeito filmante e o sujeito espectador eram, em 1959 como em 1955, os únicos possíveis. Noite e neblina, um ‘belo’ filme? Não, um filme justo” (DANEY, 1992).
8. Didi-Hubernan revive um depoimento de Claude Lanzmann a Vincente Lowy no seu livro L’Histoire infilmable, em que o documentarista francês diz a um projetista que, caso Noite e neblina seja exibido na sessão anterior a Shoah, ele cancelará a exibição do seu filme, já que nas palavras do próprio: “a confrontação ou a contiguidade dos dois filmes não tem sentido. Mesmo se o tema é idêntico, Shoah não tem nada a ver com Noite e neblina” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.170). Essa é apenas mais um dentre os tantos atos polêmicos de Claude Lanzmann em relação a tudo aquilo que veio antes ou depois de seu filme Shoah. De alguma maneira, Lanzmann tenta fazer de seu filme a verdade absoluta da catástrofe, optando pela não utilização de outras imagenss, os outros testemunhos fissurados; enfim, impossibilitando, à luz de sua obra máxima,
O sempre cirúrgico Serge Daney tinha razão, como aponta Didi-Huberman: Noite e neblina apostava em abalar a memória partindo de uma contradição entre documentos inevitáveis da história e marcas repetidas do presente.7 Estes documentos da história são as famosas imagens de arquivo – a preto e branco –, que deixaram mudos de pavor os espectadores da época e que o cineasta Claude Lanzmann, hoje, pretende refutar pelo que considera como falta de rigor histórico,8 embora o arquivo “felizmente não esgota nem seus mistérios nem sua profundeza” (FARGE, 2009: 12). Devido a sua natureza sobrevivente, não há razão para desprezar o arquivo, como fez Lanzmann, porque é ele mesmo uma prova possível do que foi o nazismo; testemunhos é aquilo que essas imagens-arquivo são, porque embora deslocadas e fragmentadas, apesar de sua natureza incompleta, elas nos permitem pensar e ver a ferida diante da humanidade que o Lager impôs. As marcas do presente, diz o Didi-Huberman, vêm do “olhar sem tema” que Resnais lança sobre as paisagens vazias dos campos nazistas filmados em cores, “mas vêm também de uma vontade de dar todo o espaço sonoro do filme a dois sobreviventes das perseguições nazistas:9 não testemunhos no sentido estrito da palavra, mas escritas voluntariamente distanciadas” (DIDI-HUBERMAN, 2012: 168). Georges Didi-Huberman por fim aponta para a decisão formal – de índice radical – que Alain Resnais elege para o seu documentário, e onde essa escolha comporta sempre uma aporia correlativa, já que o que é atingido num dado momento, perde-se noutro:
Nas escolhas que faz relativamente à duração dos planos e à montagem, Resnais atinge esse poderoso sentimento de presente, que nos dá uma representação sintética daquilo que poderia ser “um campo” na Alemanha nazi. Consequentemente, “os campos” não se distinguem e a dimensão da análise histórica passa para segundo plano (lembramos que a distinção entre campos de exterminação e de concentração ainda não era prática corrente na historiografia dos anos cinquenta). Consequentemente, a imagem dos corpos esqueléticos vem constituir um “ecrã que se interpõe ao massacre de mulheres e de crianças perfeitamente sãs, conduzidas às câmaras de gás mal acabavam de descer dos vagões”. (DIDI-HUBERMAN, 2012: 168)
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As imagens de arquivo utilizadas em Noite e neblina exibem um excerto fundamental da história dos campos nazistas, momentos desoladores e assombrosos, onde a natureza do testemunho e do arquivo reivindicam tanto as suas partes corroídas quanto seus papeis históricos e imprescindíveis. No panorama arquivista que Resnais monta, há um espectro de abandono, de lacunas atravessadas, de gritos da morte sufocados; da imagem dos campos emana uma orfandade, um luto pelo homem exterminado pelo homem. O arquivo, como escreveu Arlette Farge (2009: 20), “ao mesmo tempo que invade e imerge, ele conduz, por sua desmesura, à solidão”. Solidão e abandono que essas imagens em sua dolorosa tarefa de transmissão legaram ao mundo. A imagem cesurada das câmaras de gás que o filme gravou à eternidade, aquele espaço onde o homem, como disse Blanchot, foi destruído apesar de sua indestrutibilidade, este silêncio mesmo que contamina tanto o tempo da obra de Resnais: os fantasmas daqueles mortos por gaseamento habitam o quadro do filme e o metro quadrado do chão, quando a câmera invade uma das câmaras de gás, esta ruína absoluta criada pelo homem para exterminar o seu semelhante, retirando-lhe qualquer esperança, destituindo-o de qualquer verdade. Assim, recordemos
a foto de origem norteamericana que mostra os deportados deitados em seus dormitórios em Buchenwald, a foto do “muçulmano” tirada pelos ingleses em Sandbostel; a imagem do deportado sustentado por seus camaradas em Wobbelin sob o olhar dos soldados norteamericanos; a foto do moribundo com os olhos desorbitados – que faz lembrar do olhar de Van Gogh – tirada por Germaine Kanova no campo de Vaihingen em 13 de abril de 1945. (LINDEPERG, 2009: 61, trad. nossa)10
Ou ainda quando vemos um último efeito da montagem, igualmente criticado por certos historiadores, no que toca a sequência do “aniquilamento”. Mostrando a visita de Himmler a Auschwitz em julho de 1942, o excerto do filme está organizado assim:
[...] travelling ao longo da coluna de pessoas detidas; comboio acentuado; trem de Dachau; fotografia do “Álbum de Auschwitz” que mostra a seleção na rampa de Birkenau; seis fotografias de homens, mulheres e crianças nus ou que se despem antes de sua execução; plano fixo das caixas de Zyklon B; sequência
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que os vestígios de parte fundamental da história sejam reavaliados, estudados novamente como um esforço, por mais frágil que ele seja, de tentar compreender um pouco mais dessa cesura legada à humanidade. 9. Os dois sobreviventes
das perseguições nazistas a que Didi-Huberman faz referência são justamente o poeta francês Jean Cayrol, sobrevivente do campo de Mauthausen-Gusen, que foi convidado por Resnais para escrever o texto de Noite e neblina, e Hanns Eisler, compositor alemão e responsável pela banda sonora do filme, que fugiu da Alemanha nazista em 1933.
10. La foto de origen
norteamericano que muestra a los deportados ocostados en sus camastros en Buchenwald, la foto del “musulmán” tomada por los ingleses en Sandbostel; la imagen del deportado sos tenido por sus camaradas en Wobbelin bajo la mirada de los soldados norteamericanos; la foto del moribundo con los ojos desorbitados – que hace recordar la mirada de Van Gogh – tomada por Germaine Kanova en el campo de Vaihingen el 13 de abril de 1945.
11. Travelling a lo largo de una columna de personas detenidas; convoyen picado; tren de Dachau; fotografía del “Álbum de Auschwitz” que muestra la selección en la rampa de Birkenau; seis fotografías de hombres, mujeres y niños desnudos o que se desvisten antes de su ejecución; plano fijo de las cajas de Zyklon B; secuencia en colores en la cámara de gas. Este montaje es tributario de las ambivalencias de la escritura del guión y de la versión final del texto de Jean Cayrol. Ocultando toda referencia a la “Solución final”, el comentario presenta implícitamente la cámara de gas como una de las modalidades de la muerte del conjunto de deportados. Pero, si se exceptúa la toma del tren con los cadáveres, filmada durante la liberación de Dachau, los documentos de archivo que componen esta secuencia se refieren, todos, a la destrucción de los judíos europeos. 12. se trata de las mujeres y los niños judíos del gueto de Mizocz, fotografiados antes de su ejecución por la policía ukraniana en octubre de 1942.
em cores da câmara de gás. Esta montagem é tributária das ambivalências da escritura do roteiro e da versão final do texto de Jean Cayrol. Ocultando toda referência a “Solução final”, o comentário apresenta implicitamente a câmara de gás como uma das modalidades da morte do conjunto de deportados. Mas sim, com exceção da tomada do trem com os cadáveres, filmada durante a liberação de Dachau, os documentos de arquivo que compõe esta sequência se referem, todos, à destruição dos judeus europeus. (LINDEPERG, 2009: 64-65, trad. nossa)11
E diante do profundo impacto que as imagens, à luz da montagem do filme, tiveram sobre Resnais e sua equipe, alguns equívocos históricos ocorreram, a saber: as seis fotografias exibidas em Noite e neblina mostram as vítimas fotografadas antes da execução por tiros; no roteiro do filme, quando a quinta imagem aparece, a montagem nos leva a acreditar na legenda, “fotos alemãs tiradas na União Soviética”, o que se revela um erro factual. A quarta imagem, de mulheres nuas juntas a uma cova (algumas levam bebês nos braços), como aponta Lindeperg (2009: 65, trad. nossa), é bastante conhecida e na verdade “se trata de mulheres e crianças judias no gueto de Mizocz, fotografadas antes de suas execuções pela polícia ucraniana em outubro de 1942” .12 Como é destacado por Clément Chéroux (2003) na sua coletânea de imagens e teorias sobre o erro fotográfico, essa famosa imagem, reproduzida tantas vezes, foi durante muito tempo usada erroneamente em vários livros de história como sendo a entrada dos deportados na câmara de gás. Se o arquivo foi incluído de forma historicamente incorreta dentro do filme, distorcendo o seu significado original, é compreensível que este erro tenha sido fruto de um maelstrom de imagens sobreviventes, como ao mesmo tempo da violência que quem as vê é compelido a suportar. Esta tarefa de resistência à imagem do horror da catástrofe nazista, aliás, tem um momento delicado e caro ao nosso trabalho, quando Resnais utiliza em seu filme uma das quatro imagens tirada em agosto de 1944 pelo judeu grego Alex, um dos membros do Sonderkommando, no Crematório V de Auschwitz-Birkenau. Neste caso específico, a incorreção se encontra no reenquadramento do fotograma (fig. 3) promovido pelo cineasta francês, uma operação imagética sutil, mas que acaba por reduzir a terrível circunstância em que a fotografia foi tirada – ela elimina a assustadora sombra da porta, presente no arquivo original, corte que acaba por excluir o perigo moral e o caráter secreto e proibido do esconderijo do autor da foto, para o qual
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a silhueta da escuridão foi cúmplice essencial do gesto heroico, passível de punição com morte imediata. Tal sombra ameaçadora está presente na foto original (fig. 4).
Figura 3: Foto de um dos membros do Sonderkommando reenquadrada para Noite e neblina, mostrando cadáveres a serem incinerados
Figura 4: Foto original tirada pelo Sonderkommando
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Diante dessas imagens fundamentais que nos permitem apontar uma ideia do que foi a Shoah, apesar da natureza terrível da mesma, que torna difícil qualquer pensamento lógico, por qual motivo um filme como Noite e neblina, testemunho repleto de vestígios – como é, de fato, todo o testemunho da catástrofe –, sofreu e ainda sofre um afrontamento de especialistas da história e autores de imagens, em particular a obstinada cruzada antiarquivo liderada por Claude Lanzmann, que apontam no filme de Resnais uma natureza abjeta por causa da presença de arquivos como este? Talvez seja porque o filme mostra, com uma rudeza crua e chocante, aquilo que jamais deve ser extinto: a imagem da destruição (quase) total do homem. O arquivo, ao existir, não somente legitima historicamente uma história de extremo horror e racismo, mas também difunde e transmite um fragmento da dimensão horrorífica daquilo nele gravado – uma dimensão que a palavra, cuja validade histórica é defendida por Lanzmann, por mais fundo no abismo que ela possa ir (caso, sem dúvida, dos depoimentos contidos no filme Shoah), não conseguirá reter de forma tão indelével como o fazem as imagens de arquivo que Noite e neblina nos permite ver: a perpétua memória do horror (real) cravado no cinema. Mesmo nos equívocos que a utilização de imagens de arquivo possam vir a conter, o arquivo, o seu relevo de catástrofe, fundamenta a percepção de “onde as vidas colidem com o poder sem que tenham optado por isso”, e que é “preciso ordenar pacientemente essas situações trazidas à luz por esse choque súbito, demarcar as descontinuidades e as distâncias”, porque o “real do arquivo torna-se não apenas vestígios, mas também ordenação de figuras da realidade; e o arquivo sempre mantém infinitas relações com o real” (FARGE, 2009: 35). Existe um momento, aproximadamente no nono minuto do filme, em que o narrador do texto de Cayrol, Michel Bouquet, diz: “onde o próprio sono era uma ameaça”, o que nos remete à descrição onírica de Primo Levi em dois momentos cruciais de sua obra literária: em seu primeiro livro É isto um homem?, escrito entre 1946 e 1947, e A trégua, escrito em 1963. Sobre o relato presente no primeiro livro de Levi, Peter Pál Pelbart explica:
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[...] o sonho que o acometia anos antes, durante sua estadia no campo: ele está em casa entre seus familiares, e lhes conta a vida no campo, a cama dura, a fome, o controle dos piolhos, o soco do kapo, mas ninguém escuta, continuam conversando entre si, indiferentes. Este sonho era comum a muitos de seus companheiros de infortúnio. (PELBART, 2000: 171)
Assim, Levi se pergunta: “Porque o sofrimento de cada dia se traduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração que os outros não escutam?” (LEVI, 1988: 60). O segundo relato destes fenômenos oníricos, Primo Levi relata na última página de A trégua:
É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. (LEVI, 2010: 214)
E Pelbart, por fim, lapida: “ainda está por ser escrita a história dos sonhos no Holocausto, essas toneladas de matéria etérea que deram estofo à noite dos internos, que os acompanharam até o momento da morte, no campo ou fora dele” (PELBART, 2000: 171). É justamente nesta perspectiva, de algo que precisa ainda ser escrito, que o narrador de Noite e neblina, no momento em que a câmera executa um travelling enfurnado entre os dormitórios de um campo de concentração e com suas imagens a cores, faz seu narrador dizer: “Destes dormitórios de tijolo, destes sonos ameaçados, só conseguimos mostrar-lhe um esboço... a cor”; o esboço, aquilo que precisa ser finalizado, escrito, e que para além dos pesadelos materializados através do subconsciente no momento do sono, quando acordados, narra Bouquet, o deportado “reencontra a obsessão que dirige a sua vida e os seus sonhos: comer”. A imagem mesma da gamela e da
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sopa do Lager (espécie de lavagem para porcos) é um assombro constantemente detalhado não somente em Levi, mas também em Robert Antelme, Jean Améry, Wiesel e outros. O arquivo, nas “infinitas relações com o real” de que nos fala Farge (2009: 35), revelam constantemente as ligações possíveis com os relatos testemunhais dos sobreviventes, porque tanto o arquivo quanto o testemunho da catástrofe partilham de uma natureza ruinosa e lacunar, ambos preenchidos pela vulnerabilidade de suas presenças no mundo, e eles não podem ser, como pretende Lanzmann, uma “imagem mínima”, algo “sem imaginação”, excertos abjetos da catástrofe, que como reproduziu o diretor de Shoah, teria sido um evento “sem imagens”, irrepresentável, indizível, um acontecimento inserido no seio do inimaginável. O arquivo, a fragmentação histórica que o compõe, é um testemunho e como tal nos permite esboçar uma outra intepretação possível – uma reconstrução desenhada a partir das ruínas dos campos nazistas. Ele não pode ser desprezado, porque:
[...] por um lado, o arquivo desmembra a compreensão histórica em virtude do seu aspecto de “fragmento” ou de “vestígio bruto de vidas que de modo nenhum exigiam ser assim contadas”. Por outro lado, “abre-se brutalmente a um mundo desconhecido”, liberta um “efeito real” absolutamente imprevisível que nos fornece o “esboço vivo” da interpretação a reconstruir. (DIDI-HUBERMAN, 2012: 130)
O arquivo, esse esboço vivo da interpretação a reconstruir, é também um “depósito que cataloga os traços do já dito para os consignar à memória futura” (AGAMBEN, 2008: 145). É por isso que Todorov (1995) insiste na noção do ‘não esquecer’ contida nas imagens. Tal noção, aliás, que Claude Lanzmann parece querer inverter, quando insiste que os registros em arquivo da Shoah são abjetos, porque mostram aquilo que não deveria existir, e assim propagam uma suposta cultura do esquecimento. Lanzmann chama esse material de imagens ausentes, o que supõe erroneamente uma lacuna imagética, algo não filmado ou capturado, quando na verdade as imagens da catástrofe existiram aos milhões (a maior parte destruídas pelos nazistas com a aproximação das tropas aliadas dos campos de extermínio e de concentração), e as milhares que sobreviveram a esse extermínio do arquivo estão, como escreve
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Didi-Huberman (2012: 91), sendo na verdade “mal vistas [...]: mal descritas, mal legendadas, mal classificadas, mal reproduzidas, mal utilizadas pela historiografia da Shoah”. Essas imagens ausentes (essas imagens que não nos chegam, que não nos tocam, que não a vemos e que não nos vê) não legitimam a ausência, mas antes uma falta, e neste sentido a definição de Godard sobre as imagens registradas da Shoah é exemplar: antes que por imagens ausentes, a Shoah é composta por imagens faltantes. A imagem-arquivo capturada pelo judeu grego Alex (fig. 3 e 4) e usada por Resnais em Noite e neblina tem o seu valor irrefutável porque é uma imagem que prova e testemunha um momento real a partir do congelamento de um gesto genocidário, e mesmo que a imagem não nos diga tudo (a sua falta), ela nos permite pensar um excerto possível daquele tempo por ela retido: fagulhas, chamas e fumaça do extermínio do homem, cujos cadáveres amontoados amplificam a noção terrível do horror que a imagem instaura. E sobretudo, porque uma foto como essa não foi feita a partir do ponto de vista nazista, senão antes dos deportados, e “não tem somente o valor de ser uma prova, senão que são também documentos” e que “não são de nenhuma maneira inúteis, nem se pode pensar em destruí-las”; assim simplesmente temos de “analisá-las como documentos históricos que permitem aprofundar nosso conhecimento dos acontecimentos que representam” (LINDEPERG, 2009: 68, trad. nossa).13
Conclusão: Bergen-Belsen, Georges Stevens e Godard Sylvie Lindeperg, assim como Serge Daney, fala de “documentos históricos”. De fato, o arquivo, como colocou a historiadora francesa, é um documento que testemunha, sempre, uma história (e o profundo sabor do arquivo, como também nos ensinou uma outra historiadora francesa, Arlette Farge, reside justamente nos rastros dos vencidos, no inesperado encontro com um arquivo que obriga o seu estudioso a modificar toda a rota de seus estudos), e que o desprezo por ele é negar a possibilidade de uma imersão ainda mais profunda no seio da História. Assim, para compreendermos um pouco mais da importância da imagem-arquivo diante da catástrofe, podemos lembrar do episódio das filmagens do exército britânico no momento da liberação dos prisioneiros do campo de concentração de Bergen-Belsen (figs. 5 a 7), feitas por soldados ingleses, em
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13. No tienen solamente el
valor de ser una prueba, sino que son también documentos. No son de ninguna manera inútiles, ni se puede pensar en destruirlas; simplemente hay que analizarlas como documentos históricos que permiten profundizar nuestro conocimiento de los acontecimientos que representan.
abril de 1945. A violência abismal dessas imagens continua, hoje, intactamente a nos ferir, porque impele a tarefa soçobrante de confrontar a “espécie humana”, como disse Robert Antelme (2013), em seu limiar de extinção. Essas imagens capturadas pelas tropas britânicas revelam a figadal importância de suas existências, porque exige que vejamos, que olhemos apesar de tudo.
14. Como escreveu o filósofo e historiador de arte francês a propósito do produto final que as imagens da liberação de Bergen-Belsen tiveram nas mãos do “mestre do suspense”: “Hitchcock compreendeu imediatamente que esta espécie de processo exigia uma montagem que nada separasse; em primeiro lugar, era preciso não separar as vítimas dos carrascos, isto é, mostrar conjuntamente os cadáveres dos prisioneiros diante dos próprios responsáveis alemães, daí a decisão de cortar o mínimo possível as longas panorâmicas da filmagem, cuja lentidão era tão assustadora; em seguida, era preciso não separar o próprio campo de concentração do seu enquadramento social, ainda que este fosse - ou precisamente porque ele era - normal, cuidado, rural ou até bucólico. Desde o início, Hitchcock e Bernstein compreenderam que o carácter insustentável destes arquivos, que contrastavam com tudo o resto - isto é, com o resto da humanidade para lá do arame farpado -, podia suscitar a denegação, a rejeição destas evidências demasiado pesadas. Tanto mais que a negação do genocídio se inscreve na própria diferença que separa o campo de concentração dos seus arredores mais próximos” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.175-6).
Figura 5, 6 e 7: Fotogramas de filmagens feitas por soldados ingleses em abril de 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen
Já as imagens dos momentos de liberação dos campos de Buchenwald e Dachau (figs. 8 a 11) foram filmadas pela batuta do cineasta americano George Stevens, diretor de filmes como Um lugar ao sol (A place in the sun, 1951), Os brutos também amam (Shane, 1953) e Assim caminha a humanidade (Giant, 1956). Os serviços da armada americana, inclusive, pediram que John Ford, amigo pessoal de Stevens e cineasta consagrado em Hollywood, refletisse sobre o uso e a montagem dessas imagens capturadas em 1945. Outro proeminente cineasta da época, o inglês Alfred Hitchcock, também recebeu um insistente pedido de seu amigo Sidney Bernstein para refletir sobre as imagens filmadas pelo exército britânico em Bergen-Belsen. Didi-Huberman14 relata que o “mestre do suspense”, diante de imagens de tipo “absolutamente novo”, não soube num primeiro momento como proceder, como montar as imagens, e cuja perplexidade deixara Alfred caminhando de “um lado para o outro”, sem saber o que fazer.
Figura 8 e 9: Corpos em Buchenwald e Dachau foram filmados por George Stevens
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Figura 10 e 11: Registros de soldados norte-americanos
Na obra-prima de Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinema (1988-1998), o cineasta franco-suíço se utiliza de algumas imagens filmadas por George Stevens em Buchenwald e Dachau, e na monumental genealogia do cinema – e da imagem do século vinte – resgatada e construída a partir de uma montagem sui generis, Godard realiza uma fusão alhures impossível senão no cinema, a saber: junta excertos de dois filmes de Stevens, filmes absolutamente distintos em todos os níveis possíveis, isto é, alguns planos de Buchenwald-Dachau e a imagem de um momento em Um lugar ao sol onde Elizabeth Taylor acaricia Montgomery Clift; no eclipse brutal que a montagem executa do momento de “felicidade sombria” do filme com dois astros de Hollywood, um inesperado horror invade estes tempos fundidos, como se toda a felicidade do mundo para esses dois personagens, depois de 1945, tivesse um sufocamento intrínseco a partir dos fantasmas dos campos nazistas filmados alguns anos antes pelo mesmo diretor. Assim, o insight de Didi-Huberman se torna uma peça basilar para definir este momento definitivo da montagem cinematográfica – e na própria concepção que, ao citar esta passagem, também reconhecemos a nossa incapacidade de redigir algo mais preciso e profundo:
O que está morto, inclinado para a esquerda, parece gritar ainda, exprimir um sofrimento sem fim; o que está vivo, inclinado para a direita, parece apaziguado por uma felicidade definitiva. Mas podemos continuar a perguntar em que é que a vítima real e o amante fictício podem “responder” mutuamente um ao outro. [...] É aí que intervém o pensamento de Godard, inerente a todas as formas construídas no filme: este é apenas um entre inúmeros exemplos que figuram nas História(s) do Cinema e exprimem as tensões extremas da sua grande “imagem dialéctica”. De facto, não podemos deixar de compreender ou, pelo menos, de pressentir que, na sua sucessão destes fotogramas, as felicidades privadas acontecem sob um fundo de infelicidades históricas; que a beleza (dos
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corpos massacrados, da história); que a ternura de um ser em particular por outro ser em particular se destaca com frequência sobre um fundo de ódio administrado por seres em geral contra outros seres em geral. Este contraste filosófico pode encontrar, como aqui, a sua expressão cinematográfica no paradoxo de uma morte real a cores - Godard paralisou o filme de Stevens em dois fotogramas - e de uma vida fictícia a preto e branco. (DIDI-HUBERMAN, 2012: 186)
Godard explica sobre a efígie da “felicidade sombria” que irradia de Elizabeth Taylor, e que o fascinou e a fez fundir com as imagens da morte de Buchenwald e Dachau:
15. Godard rewrites an episode of A Place in the Sun and puts the love affair between the beautiful heiress played by Elizabeth Taylor and the young careerist played by Montgomery Clift in the light of the Image, reborn from the death it had died in the camps that George Stevens filmed in 1945. […] The young woman stepping out of the lake appears encircled, iconized, by a halo of light that seems to outline the imperious gesture of a painted figure apparently descended from the heavens. Elizabeth Taylor stepping out of the water is a figure for the cinema itself being reborn from among the dead. The angel of the Resurrection and of painting descends from the heaven of Images to restore to life both the cinema and its heroines. This is a strange angel, though, who seems to have come down from heaven without wings.
Há uma coisa que sempre me tocou muito num cineasta de quem gosto mais ou menos, George Stevens. Em Um Lugar ao Sol, encontrei um sentimento profundo de felicidade que raramente encontrei noutros filmes, mesmo em filmes melhores. Um sentimento de felicidade laico, simples, perceptível, momentâneo, em Elizabeth Taylor. E quando soube que Stevens tinha filmado os campos de concentração e que, então, a Kodak lhe tinha confiado os primeiros rolos a cores de dezesseis milímetros, não encontrei outra explicação para quem em seguida ele pudesse ter feito este grande plano de Elizabeth Taylor irradiando esta espécie de felicidade sombria. (GODARD apud DIDI-HUBERMAN, 2012: 187)
Jacques Rancière também comenta esta fusão godardiana a partir de uma leitura da imagem que ressuscita, que renasce na silhueta da morte dos mortos nos campos nazistas:
Godard reescreve um episódio de Um lugar ao sol e põe o relacionamento amoroso entre a bela herdeira interpretada por Elizabeth Taylor a o jovem carreirista interpretado por Montgomery Clift à luz da imagem que renasce da morte que tinha morrido nos campos onde Georges Stevens filmou em 1945. [...] A jovem mulher indo em direção ao lago aparenta estar cercada, iconizada por um halo de luz que parece um rastro do gesto imperioso de uma figura pintada aparentemente a partir de uma descendência do paraíso. Elizabeth Taylor caminhando para fora da água é uma imagem que incarna o próprio cinema ressuscitado de entre os mortos. É o anjo da Ressurreição e a pintura descende do paraíso das imagens para restaurar a vida tanto do cinema quanto de suas heroínas. Esse é um anjo estranho, que parece descer do paraíso sem asas. (RANCIÈRE, 2006: 183-4, trad. nossa)15
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Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Deste renascimento do qual fala Rancière,16 desta fusão cinematográfica em que a morte da morte nos campos é emergida anos depois pela efígie de Elizabeth Taylor e de sua efêmera “felicidade sombria”, impossível não lembrarmos das ruínas da história da qual fala Walter Benjamin (2012: 17) a partir do quadro Angelus Novus de Klee, este anjo que “parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente” (Taylor olhando para Clift), e que “tem os olhos esbugalhados” (os olhos dos deportados filmados por Stevens em Buchenwald e Dachau) e cuja “cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas e lhas lança aos pés” (a inferência de Godard após descobrir que Stevens tinha filmado a liberação17 dos prisioneiros em 1945). Ruínas, a impossibilidade de ir ao futuro com a imagem da catástrofe cravada nos riscos do rosto de Taylor, a “felicidade sombria” da personagem eclipsada pela imagem da morte fundida por Godard: “ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstruir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído” (BENJAMIN, 2012: 17). É, por fim, esta espécie de torpor que consome toda a presença de Elizabeth Taylor, onde a memória da catástrofe corromperá toda a sua felicidade possível, o seu lugar ao sol.
16. Essa presença do
renascimento na fusão de Godard, apontada por Rancière, é criticada por Didi-Huberman: “Não há ressurreição, no sentido teológico do termo, porque não há conclusão dialéctica. Neste momento, o filme acaba de começar. E logo depois de Liz Taylor surgir, qual vénus, do meio das águas - sobre o fundo de uma tradição iconográfica facilmente reconhecível - surge, por sua vez, uma imagem dilacerada, resistente a qualquer leitura imediata. Algumas letras são aí sobreimpressas: lemos primeiro End, como no fim de todos os clássicos de Hollywood. Mas percebemos que a palavra - tal como as História(s), como a própria história e como a dialéctica segundo Godard - não acabou por causa disso. Não será endlos (‘sem fim’, ‘interminável’), e Endlösung (‘Solução final’), que devemos ler aqui? Não será o sem fim da destruição do homem pelo homem que Godard quer sublinhar com esta história e com essa prática de montagem?” (DIDIHUBERMAN, 2012: 190). 17. “Se George Stevens
não tivesse usado o primeiro filme colorido em dezesseis milímetros em Auschwitz e Ravensbrück, indubitavelmente a felicidade de Elizabeth Taylor nunca teria encontrado um lugar ao sol” (GODARD apud RANCIÈRE, 2006: 183).
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REFERÊNCIAS
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Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
RANCIÈRE, Jacques. Film fables. Oxford e Nova Iorque: Berg Publishers, 2006. TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus, 1995.
Data do recebimento: 15 de junho de 2015 Data da aceitação: 14 de setembro de 2015
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Como representar o “irrepresentável”? – uma análise sobre a abordagem do Holocausto no cinema documentário Rafael V alles Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
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Resumo: Este artigo tem como objetivo interpretar a construção discursiva sobre o Holocausto no cinema documentário e as implicações que isso pode trazer para o entendimento desse fato histórico. Procurando analisar o uso da ideologia na representação do Holocausto, este trabalho terá como estudo de caso o documentário The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999). Palavras-chave: Cinema documentário. Ideologia. Holocausto. Abstract: This article aims to interpret the discursive construction about the Holocaust in the documentary film and the implications this may bring to the understanding of this historical fact. Trying to analyze the use of ideology in the representation of the Holocaust, this work will have as case study the documentary The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999). Keywords: Holocaust. Documentary film. Ideology. Résumé: Cet article analyse la construction discursive de l’Holocauste dans le film documentaire et ses implications dans la compréhension de cet événement historique. Dans le but de comprendre l’utilisation de l’idéologie dans la représentation de l’Holocauste, on partira d’une étude de cas du documentaire The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999). Mots-clés: Holocauste. Cinéma documentaire. Idéologie.
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1- Por trás do “irrepresentável” Falar sobre as representações relacionadas ao Holocausto é um convite para se adentrar um terreno complexo e perigoso. Diante do pressuposto de que “os fatos que constituem o passado não nos chegam em estado bruto; apresentam-se em forma de relatos” (TODOROV, 2002: 169, trad. do autor).1 As construções discursivas sobre o Holocausto não estão isentas de escolhas sobre “como” relatar determinado evento. Ao assumirem intenções e escolherem abordagens, os relatos terminam revelando um desprendimento entre o discurso e o fato em si. Entender um acontecimento histórico está longe de ser uma atividade simples e objetiva. Se essa constatação pode parecer evidente num primeiro momento, o problema que existe entre o fato em si e as suas representações tornou-se determinante para o entendimento das implicações históricas geradas pelo Holocausto.
Como abordar o impossível que a guerra havia tornado possível? A inquietação que tomou conta do pensamento europeu após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo quando os documentos do horror começaram a ser divulgados, representou muito mais que simples perplexidade. Tendo que enfrentar as evidências da barbárie nazista, parte dos intelectuais da época viu-se compelida a reconsiderar as bases de um humanismo que a realidade colocava radicalmente em xeque. Mais ainda: a própria noção de humanidade tornou-se frágil e, diante do saldo de onze milhões de mortos, alguns se lançaram à urgência de repensá-la. (MORAES, 2000: 149)
É a partir dessa perplexidade e da impossibilidade de reparar o genocídio cometido pelos nazistas que surge um profundo questionamento sobre os limites para se abordar esse fato histórico. Dentro de um contexto de pós-guerra, surgiram sobreviventes dos campos de concentração e intelectuais que começaram a trabalhar com a ideia da impossibilidade de representação do que foi o Holocausto. Nomes como o intelectual alemão Theodor Adorno afirmaram que “depois de Auschwitz não se pode escrever uma poesia”; sobreviventes, como o italiano Primo Levi, disseram que somente os que morreram nos campos poderiam trazer no seu testemunho a real dimensão do que foram as atrocidades nesses locais.
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1. Traduzido do espanhol:
“los hechos que constituyen el pasado no nos llegan en estado bruto; se presentan en forma de relatos”. (TODOROV, 2002: 169)
É como se o ato de relatar o que foi a catástrofe terminasse sempre revelando a impossibilidade de expressar o que as pessoas ali vivenciaram.
Da reflexão sobre a impossibilidade de representação da catástrofe, uma vez que o real está todo ele impregnado por essa catástrofe, passou-se a uma condenação da representação de um modo geral [...] No centro dessa discussão localiza-se – como um poderoso buraco negro – a Shoah. Esse eventolimite, a catástrofe, por excelência, da Humanidade e que já se transformou no definiens do nosso século, reorganiza toda a reflexão sobre o real e sobre a possibilidade da sua representação. Busca-se agora uma nova concepção de representação que permita a inclusão desse evento. (SELIGMANN-SILVA, 2000: 75)
2. Traduzido do espanhol:
“Si entendemos en este nuevo sentido la singularidad del exterminio judío, si declaramos que no tiene relación alguna con cualquier otro acontecimiento pasado, presente o futuro [...] nos prohibimos, al mismo tiempo, cualquier lección para el resto de la humanidad, cualquier ‘puesta en servicio’. Sería paradójico, como mínimo, afirmar a la vez que el pasado debe servirnos de lección y que no tiene relación alguna con el presente: lo que es sacralizado de este modo no puede ayudarnos en absoluto en nuestra existencia actual. Si se desea mantener el acontecimiento pasado en cuarentena, es todavía posible mantenerlo en la memoria y actuar en función de este recuerdo, pero no podría ya servir para comprender mejor la especie humana y su destino” (TODOROV, 2002: 196).
É diante do “irrepresentável” que se constrói todo um debate sobre as construções discursivas referentes ao Holocausto. O que pode se entender como “irrepresentável”? Como se pode definir o que é ou não “representável” dentro dos relatos sobre os campos de concentração? Quem pode fazer isso? Por trás da impossibilidade de representação acaba se construindo uma posição de autoridade e um caminho de restrições. Segundo Tzvetan Todorov, posições como essa acabam criando um sentido de “sacralização da catástrofe”. Partindo do ponto de que a sacralização é a construção do inalcançável, em que se revela a impossibilidade de tocar algo ao se colocar numa situação à parte dos demais, os discursos sobre o irrepresentável impedem uma reflexão mais profunda sobre o próprio sentido do Holocausto para a humanidade.
Se entendemos neste novo sentido a singularidade do extermínio judeu, se declaramos que não tem relação alguma com qualquer outro acontecimento passado, presente ou futuro [...] proibimo-nos, ao mesmo tempo, qualquer lição para o resto da humanidade, qualquer “colocação em serviço”. Seria paradoxal, no mínimo, afirmar ao mesmo tempo que o passado deve nos servir de lição e que não tem relação alguma com o presente: o que é sacralizado deste modo não pode nos ajudar em nada na nossa existência atual. Se se deseja manter o acontecimento passado em quarentena, é ainda possível mantêlo na memória e atuar em função dessa recordação, mas não poderia já servir para compreender melhor a espécie humana e o seu destino. (TODOROV, 2002: 196, trad. do autor)2
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Nesta recusa por aprofundar um estudo sobre as implicações geradas pelo Holocausto na história do homem e do século XX, também se acaba assumindo uma construção políticoideológica de dominação discursiva sobre um fato histórico. Se, por um lado, o sentido do “irrepresentável” procura trazer uma dimensão mais profunda sobre uma catástrofe de grandes proporções, por outro lado termina condenando uma questão tão paradigmática ao silêncio e à impossibilidade de analisar suas implicações sócio-históricas num contexto mais amplo.
[...] os que reivindicam atualmente a indizibilidade de Auschwitz deveriam ser mais cautelosos nas suas afirmações. Se quiserem dizer que Auschwitz foi um acontecimento único, frente ao qual a testemunha deve, de algum modo, submeter toda sua palavra à prova de uma impossibilidade de dizer, então, eles têm razão. Se, porém, conjugando unicidade e indizibilidade, fizerem de Auschwitz uma realidade absolutamente separada da linguagem [...] então eles estarão repetindo inconscientemente o gesto dos nazistas, e se mostrarão secretamente solidários com o arcanum imperii. (AGAMBEN, 2008: 157)
É partindo desse contexto que cabe aos estudos, relatos e demais representações o papel de “dessacralizar” o “irrepresentável”, de encontrar, nas suas lacunas e fissuras, um meio em que se possam refletir de forma mais ampla e profundamente as razões de o Holocausto ter se tornado tão determinante para o entendimento do homem e do seu contexto sócio-histórico. Será também diante desse pressuposto que o cinema documentário assume seu protagonismo para se constituir numa visão crítica sobre as construções discursivas relacionadas ao genocídio judeu nos campos de concentração.
2. A representação do Holocausto no cinema documentário O primeiro e inevitável questionamento que se coloca na relação entre o cinema documentário e o Holocausto é como esse tipo de representação audiovisual pode se posicionar diante desse fato histórico. De que forma a questão do “irrepresentável” e da busca por uma abordagem crítica inserem-se nesse mesmo âmbito cinematográfico?
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O primeiro passo para se responder a essas questões é delimitar o que se entende por ideologia e como isso se relaciona com a imagem e a construção discursiva no cinema documentário. Tendo-se em conta a diversidade de recortes teóricos e metodológicos, realizados por diversos autores, para definir o que é ideologia, este artigo trabalha com o conceito definido por John Thompson, no livro Ideologia e cultura moderna (1995). Para Thompson, a ideologia é uma forma de entendimento sobre como as construções simbólicas entrecruzam-se com as relações de poder: “Estudar a ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON, 1995: 76). O autor faz uma importante distinção entre dois tipos de concepções. São elas: - Concepções neutras: aquelas que tentam caracterizar fenômenos como ideologia, ou ideológicos, sem implicar que esses fenômenos sejam, necessariamente, enganadores ou ilusórios, ou ligados com os interesses de algum grupo em particular: “[...] é um aspecto da vida social (ou uma forma de investigação social) entre outros, e não é nem mais nem menos atraente ou problemático que qualquer outro” (THOMPSON, 1995: 72). - Concepções críticas: aquelas que têm um sentido negativo, crítico ou pejorativo. As concepções críticas implicam que o fenômeno caracterizado como ideologia – ou como ideológico – seja enganador, ilusório ou parcial; e que a própria caracterização de fenômenos, como ideologia, carregue consigo um criticismo implícito ou a própria condenação desses fenômenos (THOMPSON, 1995: 73). Dentro de uma concepção neutra, qualquer representação artística e cinematográfica tem uma ideologia por assumir, independentemente do desejo de uma transformação ou da preservação da ordem social. Essa busca pela neutralidade não significa necessariamente que a ideologia seja um campo em que deve haver embates e vencedores, enquanto “um fenômeno que deve ser combatido e, se possível, eliminado” (THOMPSON, 1995: 73). A concepção neutra é importante por entender que qualquer construção simbólica está constituída por uma elaboração ideológica. No entanto, essa concepção também pode assumir uma abordagem muito ampla, que não consiga aprofundar uma análise mais crítica sobre as especificidades existentes em propostas ideológicas, como, por exemplo, na relação entre a ideologia e o poder.
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Neste sentido, para se interpretar as construções discursivas sobre o Holocausto no cinema documentário e as implicações que isso pode trazer para o seu entendimento, é importante servir-se de uma concepção crítica. Se as tensões existentes entre o real e as suas representações nunca foram um ponto pacífico desde os primórdios do cinema documentário, esse problema acentuou-se justamente na metade do século XX, a partir do questionamento sobre como representar o “irrepresentável” do Holocausto. Falar sobre as imagens de arquivo dos campos de concentração, por exemplo, por si só já constitui um problema à parte dentro do cinema documentário, por se entender que as divergências ideológicas nesse tipo de produção assumem um forte embate no âmbito discursivo. Ao mesmo tempo em que existem poucas imagens de arquivo pertencentes ao regime nazista durante o Holocausto, grande parte das imagens feitas pelas Forças Aliadas, após a vitória sobre os alemães, foram excessivamente mostradas e reutilizadas para se tentar entender o que foram os campos de concentração. A exposição de tais imagens terminou criando, então, uma forte resistência por parte de sobreviventes e intelectuais, que tratavam de afirmar que esses registros fílmicos não traziam a real dimensão do que foi o Holocausto, porque terminavam “banalizando o horror”. Mais que discutir o fato histórico em si, a questão do representar o Holocausto no cinema acabou se tornando um campo de divergências discursivas. Um dos referentes para esses embates e um dos maiores opositores das imagens de arquivo sobre o Holocausto foi o francês Claude Lanzmann, realizador de Shoah (1985). Recusando-se a utilizar qualquer tipo de imagem de arquivo da época da guerra no seu documentário de nove horas de duração, Lanzmann entende para se conhecer o que foram os campos de concentração, é necessário realiza-lo através de testemunhos dos sobreviventes. Shoah é um documentário que busca trabalhar com a ausência de vestígios nos locais que foram os campos de concentração 44 anos atrás (em relação à época da realização de Shoah), para assim estabelecer um contraste com a busca pela precisão dos testemunhos dos ex-prisioneiros na reconstituição das suas vivências. No entanto, o que parece ser um enfoque bastante particular por parte de Lanzmann acaba se tornando uma posição bastante ortodoxa quando o realizador afirma que as imagens
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de arquivo existentes sobre os campos de concentração não são válidas para o entendimento do que foi o Holocausto.
Eu sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem imaginação. Elas petrificam o pensamento e matam todo o poder evocativo. É muito melhor fazer o que eu fiz, um trabalho de elaboração enorme, criando a memória do evento. (LANZMANN, 2001: 274).
3. Tradução do original: “Mon
film est un « monument » qui fait partie de ce qu’il monumentalise”. (Lanzmann, 2001: 274).
Para ele, esses arquivos são apenas informação que petrifica o pensamento e perde o poder de evocação; não trazem uma dimensão suficiente do que foi esse fato histórico. Lanzmann propõe uma “criação da memória do acontecimento”, não uma simples reconstituição do que aconteceu, mas a inscrição do tempo nessa memória. Para o realizador, somente é possível entender o Holocausto a partir de registros audiovisuais como os que estão contidos no seu filme, no qual, por meio dos testemunhos, não somente se constroem as imagens, mas se afirma a evocação da memória, dos depoimentos que relatam os fatos. Segundo Lanzmann, “meu filme é um “monumento” que é parte do que ele monumentaliza” (Lanzmann, 2001: 274).3 Todavia, o filósofo francês Georges Didi-Huberman, defensor da tese de que as imagens de arquivo podem de alguma forma revelar o que foi o Holocausto “apesar de tudo”, referese à posição de Lanzmann como algo que sai do rigor “para tornar-se discurso, depois dogma e, finalmente, rigorismo” (DIDIHUBERMAN, 2012: 123). Eis o que se assemelha menos a um cogito do que à paixão especular de um homem pelo seu próprio trabalho. [...] Lanzmann ilude-se assim ao especular sobre um documento que não existe, com fins bastante obscuros que o levam a não refletir sobre os documentos que, de fato, existem. Ilude-se, sobretudo, ao enraizar todo o seu discurso – não o seu filme, elaborado desde 1985, mas a sua certeza dogmática reivindicada dez ou quinze anos mais tarde – numa incompreensão obtusa do que são um arquivo, um testemunho ou um ato de imaginação. (DIDI-HUBERMAN, 2012: 128-129)
Na sua essência, a posição de Lanzmann pertence a um contexto mais amplo de intelectuais que rejeitam uma liberdade e
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uma diversidade de interpretações divergentes. A ideia de impor certos limites à representação e de determinar como o Holocausto deve ou não ser entendido termina revelando, assim, um profundo caráter ideológico, que transcende o fato histórico em si. Posições como a do realizador de Shoah assumem uma busca de dominação discursiva na qual se pretende considerar uma referência inquestionável para se entender o que foi o Holocausto. Ele assume o que Thompson entende como “uma estratégia através da qual o produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender, ou justificar um conjunto de relações e com isso persuadir uma audiência” (THOMPSON, 1995: 82-83). Lanzmann, ao querer abolir as imagens de arquivo, constrói uma estratégia simbólica de alguém que se considera com legítimo direito para dizer o que deve ou não ser utilizado. Essa intenção discursiva revela também uma busca pelo estabelecimento de boas e más interpretações sobre o Holocausto. Por trás desse ponto de vista, Lanzmann constrói um sentido de “monumentalizar” o discurso, de tornar absoluta uma posição a partir da recusa de outras que possam vir a questioná-la. Ao desqualificar as imagens de arquivo, o realizador de Shoah também desqualifica outras potenciais leituras e significações que ajudem a ampliar uma compreensão sobre a complexidade do Holocausto. Existem arquivos que podem revelar questões que vão muito além de meras informações. É o que ocorre, por exemplo, no filme Bilder der Welt und Inschrift des Krieges (Imagens do mundo e inscrições da guerra, 1988), em que o documentarista alemão Harun Farocki parte de algumas imagens feitas de tomadas aéreas, realizadas por fotógrafos da força aérea norteamericana que voaram sobre os campos de concentração alemães em 1944, a sete mil metros de altitude. Como os soldados não tinham ordem expressa para buscar os campos de concentração, terminaram registrando fotos em que identificaram uma central eléctrica, uma fábrica de carburadores e uma usina de hidrogenação de carburadores. A questão é que somente em 1977, quando oficiais da CIA voltaram a buscar esses mesmos arquivos e analisaram as tomadas aéreas de Auschwitz, encontraram o mirador, a casa do comandante, a oficina de registro, o muro de execução, o Bloco nº 11 e o termo “câmara de gás”. Farocki encontrou nesses vestígios da imagem uma forma para entender o Holocausto.
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Naquele momento essas imagens me pareceram um meio apropriado para mostrar os campos pela distância que mantêm das vítimas. Mais apropriadas que as imagens aproximadas: a seleção na rampa, os prisioneiros famélicos nas barracas, as montanhas de cadáveres removidas por uma retroescavadeira. Com essas imagens se voltava a exercer uma violência simbólica sobre as vítimas. Inclusive com a melhor das intenções terminava-se utilizando-as. Sobre estas imagens aéreas dos campos nazistas onde o indivíduo não é muito maior que um pixel, escrevi no seu devido momento o seguinte comentário: “A personalidade encontra resguardo no granulado da fotografia”. (FAROCKI, 2013: 159, trad. do autor)4
4. Traduzido do espanhol:
“En aquel momento esas imágenes me parecieron un medio apropiado para mostrar los campos por la distancia que mantienen de las víctimas. Más apropiadas que las imágenes de cerca: la selección en la rampa, los prisioneros famélicos en las barracas, las montañas de cadáveres removidas por una retro escavadora. Con esas imágenes se volvía a ejercer una violencia simbólica sobre las víctimas. Incluso con la mejor de las intenciones se las terminaba utilizando. Sobre estas imágenes aéreas de los campos nazis donde el individuo no es mucho mayor que un pixel, escribí en su momento el siguiente comentario: ‘La personalidad halla resguardo en el granulado de la fotografía’” (FAROCKI, 2013: 159).
5. A partir do meu primeiro
trabalho sobre o tema chamei ‘imagens operativas’ a essas imagens que não estão feitas para entreter nem para informar. Imagens que não buscam simplesmente reproduzir algo, mas que são mais precisamente parte de uma operação” (FAROCKI, 2013: 153, trad. do autor). Traduzido do espanhol: “A partir de mi primer trabajo sobre el tema llamé ‘imágenes operativas’ a estas imágenes que no están hechas para entretener ni para informar. Imágenes que no buscan simplemente reproducir algo, sino que son más bien parte de una operación” (FAROCKI, 2013: 153).
Foram necessários 33 anos para se descobrir o que a imagem já possuía desde o seu registro original. Os nazistas não perceberam que estavam sendo fotografados; os americanos não perceberam o que fotografaram, e as vítimas tampouco perceberam algo. O olho da máquina conseguiu ir mais além do que o olho humano. O que se imaginava uma barraca de depósitos era, na verdade, um campo de concentração, e o que não se viu dentro da própria imagem, em 1944, poderia ter contribuído para mudar o próprio curso da história. No que Farocki chama de “imagens operativas”5, ele terminou por encontrar uma forma de realizar uma reflexão mais ampla sobre as possibilidades da imagem técnica contida na fotografia e no cinema. Mais do que uma “imagem sem imaginação”, as imagens de arquivo desafiam o nosso próprio imaginário: podem não somente escapar à nossa percepção, como também dizer mais do que imaginamos. É neste sentido que, ao revelarem os vestígios de algo que pode ir mais além que a própria construção discursiva originária, as imagens de arquivo podem trazer um entendimento muito mais amplo sobre os fatos históricos. Trabalhos como o de Farocki tornam-se essenciais para realizar um processo dialético sobre discursos ideológicos que pretendam assumir um sentido definitivo para temas tão complexos. É num processo de confrontações entre distintos arquivos e distintas perspectivas sobre esses arquivos que se poderão encontrar novos entendimentos críticos sobre o Holocausto.
É preciso uma aposta, imaginária ou não, feita por sujeitos para sujeitos. Um impulso, um movimento capaz de repor tais imagens em jogo, de arriscá-las entre nós, de fazê-las circular
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pelos nossos circuitos significantes. É preciso, pois, montar as imagens, sobrepô-las a outras imagens, a outras associações. [...] É preciso, de início, que as imagens nos identifiquem – o que queremos delas, o que queremos de nós com elas? –, para que, por nossa vez, possamos identificá-las. Presas fáceis, sim, mas que não se deixam domesticar facilmente. (COMOLLI, 2015: 198)
Mais do que seguir a uma ideologia, mais do que constatar uma “irrepresentabilidade”, cabe ao cinema documentário confrontar posições com uma visão dogmática. Mais do que afirmar o que se deve ou não fazer com as imagens de arquivo, é necessário encontrar nelas os vestígios, para um entendimento maior da sua representatividade histórica. É no trabalho de associações entre materiais de arquivo e testemunhos que cabe ao cinema seguir abrindo caminhos para um entendimento mais profundo do que representou o Holocausto para o homem.
3. UMA ANÁLISE SOBRE O DOCUMENTÁRIO THE SPECIALIST Na medida em que muito já se falou e se mostrou sobre o Holocausto e as suas implicações, coube aos dois realizadores israelenses Rony Brauman e Eyal Sivan a árdua tarefa de trazer uma nova perspectiva dentro das representações cinematográficas sobre esse tema, a partir do documentário The specialist, portrait of a modern criminal (1999). Sem pretender ouvir os sobreviventes, como fez Lanzmann, ou se concentrar em imagens relacionadas aos campos de concentração, como fez Farocki, The specialist é um documentário feito totalmente com materiais de arquivos que abordam um importante fato histórico acontecido anos depois do Holocausto, mas relacionado diretamente ao genocídio judeu: o julgamento de Adolf Eichmann em Israel, no ano de 1961. Partindo das 350 horas de registros audiovisuais do julgamento, o documentário trabalha exclusivamente com esse acervo para a sua construção narrativa, sem inserir qualquer outra fonte que não sejam essas imagens. Tenente-coronel do regime nazista, ex-chefe de Segurança do Terceiro Reich, Adolf Eichmann foi o encarregado da expulsão dos judeus na Alemanha entre 1938 e 1941 e, logo depois, entre 1941 e 1945, organizou a deportação de judeus, poloneses, eslovenos e ciganos para os campos de concentração. Eichmann atuou diretamente nos processos de
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5. Traduzido do espanhol: “Eichmann, culpable de un crimen extraordinario, era un hombre común, cuya ‘normalidad es mucho más aterradora que todas las atrocidades reunidas’, como lo subraya Hannah Arendt. No es el genocidio, que tiene precedentes en la historia, sino el crimen administrativo y la ejecución industrial lo que constituye el crimen moderno por excelencia” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 24).
6. Traduzido do espanhol:
“un ensayo politico sobre la obediencia y la responsabilidad” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 13).
extermínio, embora tenha feito isso por meio de documentos técnicos, no âmbito burocrático ao qual pertencia, sem sair do seu escritório. Neste sentido, sua trajetória personificou o sentido racional e burocrático contido no genocídio orquestrado pelos nazistas.
Eichmann, culpado de um crime extraordinário, era um homem comum, cuja “normalidade é muito mais aterradora que todas as atrocidades reunidas”, como destaca Hannah Arendt. Não é o genocídio, que tem precedentes na história, mas o crime administrativo e a execução industrial o que constitui o crime moderno por excelência. (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 24, trad. do autor)5
Ao abordar o referido julgamento, no documentário vem à tona uma série de reflexões sobre as escolhas discursivas buscadas pelos realizadores. Baseando sua abordagem no conceito de “banalidade do mal”, formulado por Hannah Arendt (1999), Brauman e Sivan definem o seu filme como “um ensaio político sobre a obediência e a responsabilidade” (1999: 13, trad. do autor).6 Assim como na tese de Arendt, The specialist trabalha com a ideia de que o horror do Holocausto não provém de uma anomalia ou uma patologia por parte dos nazistas, mas sim de uma série de mecanismos burocráticos movidos por técnicos que tratavam de cumprir suas funções dentro do regime. Se já não bastasse abordar um tema difícil, The specialist é um documentário que pretende assumir riscos no que se refere à representação dos nazistas. Brauman e Sivan decidem conceder a palavra ao “inimigo”, propõem que as argumentações de Eichmann sejam escutadas. Sem emitir juízos de valor que direcionassem a visão do espectador, The specialist não cai na solução fácil de pretender demonizar os nazistas e vitimizar os judeus. A proposta do documentário é entender como a monstruosidade pode surgir a partir de uma construção técnica e racional, operada por homens “comuns”, e como esse fator torna-se central no embate entre duas construções ideológicas (a nazista e a judaica) no julgamento de Eichmann. Na escolha dessa abordagem, o documentário abre espaço para se refletir sobre até que ponto, nos depoimentos do militar nazista, transparece um oficial seguindo os preceitos do
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regime nazista ou um homem que contraria as suas convicções por se encontrar acurralado em um julgamento. Esse fator de ambiguidade faz de Eichmann um personagem desafiador, tendo-se em conta que o filme não propõe um pré-julgamento das posições que ele defende. É o que ocorre, por exemplo, na conclusão, quando Eichmann, ao final do julgamento, decide declarar o que gostaria de escrever no seu livro de memórias. 7. Traduzido do espanhol:
EICHMANN – Declararei para terminar que já, nessa época, pessoalmente, considerava que esta solução violenta não se justificava. Considerava-a um ato monstruoso. Mas, para meu grande pesar, ao estar ligado por meu juramento de lealdade, no meu setor devia me ocupar da questão da organização dos transportes. E não fui liberado desse juramento... (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 160, trad. do autor)7
Ao assumir esta abordagem, The specialist buscou afrontar uma ideologia dominante dentro do imaginário judaico, aprofundando uma reflexão segundo a qual também se deveria incluir o ponto de vista nazista, para se realizar uma reflexão mais ampla sobre o tema. Sem adotar a locução enquanto forma condutora na estrutura do filme ou algum outro elemento mais marcante de indução interpretativa no espectador, como o uso de trilha sonora ou uma edição mais tendenciosa, este documentário assumiu decisões narrativas que colocam em discussão não somente a “banalidade do mal” nazista, mas também a própria construção ideológica judaica nesse julgamento.
A dupla imagem do mártir – sacrifício e redenção – foi imposta pouco a pouco em um processo de sacralização do genocídio dos judeus. O êxito do termo bíblico Holocausto – sacrifício do filho oferecido a Deus – mostra a força dessa transformação religiosa. Assim, as vítimas judias foram instaladas num status ambíguo de inocência absoluta, imagem no espelho do veredito de culpabilidade absoluta pronunciado pelos nazistas contrários a isso. Esta absolutização da vítima, transmitida de geração em geração com um êxito crescente, é a condição e a consequência da despolitização de um acontecimento contemplado na sua “radical singularidade”, já que seu status de insuperável mistério somente requer o silêncio e a meditação. (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 58-59, trad. do autor)8
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“EICHMANN – Declararé para terminar que ya, en esa época, personalmente, consideraba que esa solución violenta no estaba justificada. La consideraba como un acto monstruoso. Pero para mi gran pesar, al estar ligado por mi juramento de lealtad, en mi sector debía ocuparme de la cuestión de la organización de los transportes. Y no fui relevado de ese juramento...” (BRAUMAN/ SIVAN, 1999: 160). 8. Traduzido do espanhol:
“La doble imagen del mártir – sacrificio y redención – fue impuesta poco a poco en un proceso de sacralización del genocidio de los judíos. El éxito del término bíblico Holocausto – sacrificio del hijo ofrecido a Dios – muestra la fuerza de esa transformación religiosa. Así, las víctimas judías fueron instaladas en un status ambiguo de inocencia absoluta, imagen en espejo del veredicto de culpabilidad absoluta pronunciado por los nazis en su contra. Esta absolutización de la víctima, transmitida de generación en generación con un éxito creciente, es la condición y la consecuencia de la despolitización de un acontecimiento en adelante contemplado en su ‘radical singularidad’, ya que su status de insuperable misterio sólo requiere el silencio y la meditación” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 58-59).
9. Traduzido do espanhol: “fue en este espacio tenue que separa identificación, comprensión e indulgencia donde quisimos evolucionar” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 102).
10. Traduzido do espanhol:
“nadie puede hoy mirar cómo se expresa Eichmann sin tener inmediatamente presente el terror, uno de cuyos actores principales ha sido él” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 102).
The specialist move-se numa linha bastante frágil entre uma possível identificação do espectador com Eichmann e uma posição crítica frente à “espetacularização” desse julgamento por parte dos judeus israelenses. Acurralado numa pequena jaula de vidro, participante de um julgamento cujo final já se mostrava premeditado, o documentário assume o risco de colocar Eichmann na posição de vítima de todo esse processo. Como afirmam Brauman e Sivan, “foi nesse espaço tênue que separa identificação, compreensão e indulgência onde quisemos avançar” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 102, trad. do autor).9 A “banalidade do mal” está justamente em encontrar nessa delicada aproximação, entre a familiaridade e a suposta ausência de anormalidade, uma forma de encontrar o horror. É preciso assinalar também que este documentário parte de um contexto em que as imagens registradas do Holocausto já estão onipresentes dentro de um amplo imaginário coletivo. Não é necessário reafirmar essas imagens de arquivos dos campos de concentração, mas sim buscar novas formas de abordá-las. Brauman e Sivan partem do ponto de que “ninguém pode hoje olhar como se expressa Eichmann sem ter imediatamente presente o terror, no qual um dos principais atores foi ele” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 102, trad. do autor).10 Assim como o documentário Shoah, de Lanzmann, The specialist recusase a expor imagens de arquivo dos campos de concentração, mas a diferença fundamental entre ambos é que, em vez de descartar categoricamente esse tipo de arquivo, os realizadores Brauman e Sivan as utilizam fora de quadro, enquanto fonte para captar as reações de Eichmann. Nesta escolha de enfoque, o documentário termina reforçando a reação de neutralidade de Eichmann ao ver as imagens do genocídio operado pelos nazistas sendo projetadas durante o julgamento. Por trás da frieza do personagem, o documentário consegue captar sutilmente a perversidade contida nele. Outro fator que particulariza The specialist em relação aos demais filmes sobre o Holocausto é como os judeus estão representados dentro do documentário. Embora ao longo do filme existam muitos depoimentos de judeus que relatam os trágicos momentos vividos nos campos de concentração, o que mais chama a atenção é o fato de aparecer o desejo por um ajuste de contas, que encontra em Eichmann uma forma de vingar as atrocidades
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cometidas pelos nazistas. Isso fica bastante evidente desde o início do filme, quando o Fiscal General Hausner pronuncia o seu discurso de abertura:
GENERAL HAUSNER: Senhoras, senhores, honorável Corte, diante de vocês se encontra o destruidor de um povo, um inimigo do gênero humano. Nasceu como homem, mas viveu como uma fera na selva. Cometeu atos abomináveis. Atos tais que quem os comete não merece já ser chamado homem. Pois existem atos que se encontram mais além do concebível, que se colocam do outro lado da fronteira que separa o homem do animal. E solicito à Corte que considere que atuou por vontade própria, com entusiasmo, ardor e paixão, até o final. (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 108, trad. do autor)11
Conforme afirmam Brauman e Sivan, o julgamento de Eichmann assumia inclusive um caráter simbólico mais amplo do que um ajuste de contas: buscava uma forma de legitimação do recém-criado país israelense e uma forma de agregação do próprio povo judeu, que, num primeiro momento, mostrou-se tão resistente à criação de um Estado judeu. Neste processo, a construção discursiva efetuada pelos israelenses tornava-se fundamental para o país assumir uma posição institucional sobre o Holocausto e assim conquistar o voto de confiança dos judeus.
“Necessitava-se de um acontecimento que cimentasse à sociedade israelense – escreve Tom Seguev – uma experiência coletiva, impressionante, purificadora, patriótica, uma catarse nacional”. Se os serviços secretos israelenses não haviam sido enviados para capturá-lo (a Eichmann) antes, com certeza não foi devido à eficácia de sua proteção, que na Argentina era mínima. (...) Era necessário reunir essa sociedade fragmentada, e o processo Eichmann ia produzir esse efeito. (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 38-39, trad. do autor)12
The specialist evidencia, assim, a “espetacularização” desse julgamento, que existiu como uma forma de demonstrar um poder emergente contido na política israelense, a fim de fazer justiça às vítimas do Holocausto. Embora o documentário detenha-se em alguns casos específicos nos quais Eichmann esteve diretamente envolvido, por momentos essa confrontação entre o acusado e os seus julgadores concentra-se no nível estritamente moral, sem
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11. Traduzido do espanhol:
“GENERAL HAUSNER: Señoras, señores, honorable Corte, ante ustedes se encuentra el destructor de un pueblo, un enemigo del género humano. Nació como hombre, pero vivió como una fiera en la jungla. Cometió actos abominables. Actos tales que quien los comete no merece ya ser llamado hombre. Pues existen actos que se hallan más allá de lo concebible, que se ubican del otro lado de la frontera que separa al hombre del animal. Y solicito a la Corte que considere que actuó por propia voluntad, con entusiasmo, ardor y pasión, hasta el final” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 108) 12. “‘Se necesitaba un
acontecimiento que cimentara a la sociedad israelí – escribe Tom Seguev – una experiencia colectiva, impresionante, purificadora, patriótica; una catarsis nacional’. Si los servicios secretos israelíes no habían sido enviados a capturarlo antes, con seguridad no fue debido a la eficacia de su cobertura, que en la Argentina era mínima. (...) Era necesário reunir a esa sociedad fragmentada, y el proceso Eichmann iba a producir ese efecto” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 38-39).
13. Traduzido do espanhol:
“EICHMANN – Era un hombre desdichado. GENERAL HAUSNER – Era un criminal?
a necessidade de provas, como o é no caso em que o General Hausner pergunta se “alguém que se ocupava do extermínio dos judeus era um criminoso”:
EICHMANN – No quiero aventurarme a responder esa pregunta, porque nunca estuve en tal situación.
EICHMANN – Era um homem de má sorte. GENERAL HAUSNER – Era um criminoso? EICHMANN – Não quero me aventurar a responder a esta pergunta, porque nunca estive em tal situação.
GENERAL HAUSNER – Usted vio que Hess hacía eso en Auschwitz. Lo consideró usted como un criminal, un asesino?
GENERAL HAUSNER – Você viu que Hess fazia isso em Auschwitz. Você o considerou como um criminoso, um assassino?
EICHMANN – Tenía piedad de él, estaba desolado por él.
EICHMANN – Tinha piedade dele, estava desolado por ele. GENERAL HAUSNER – Considerava-o como um criminoso, sim ou não?
GENERAL HAUSNER – Lo consideraba como un criminal, sí o no?
EICHMANN – Não revelarei meus sentimentos íntimos.
EICHMANN – No revelaré mis sentimientos íntimos” (BRAUMAN; SIVAN, 1999: 158).
(BRAUMAN; SIVAN, 1999: 158, trad. do autor)13
The specialist revela um embate entre duas construções ideológicas que, em diferentes contextos e fins, buscaram constituir um discurso de poder. Sem assumir partido, sem pretender vitimizar ou condenar judeus e nazistas, mas procurando entender como se elaboram discursivamente ambas ideologias, Brauman e Sivan buscaram desafiar o imaginário do espectador. Ao trazerem uma perspectiva mais ampla e menos indutiva, este filme aponta caminhos para se pensar a importância que têm as imagens de arquivo no processo de reflexão sobre os discursos relacionados ao Holocausto. Neste documentário, não está mais em jogo o “irrepresentável”, a impossibilidade de representar o horror, mas o desejo de confrontar paradigmas, de pensar as representações sobre o Holocausto a partir de uma ótica mais ampla e crítica.
4. Considerações finais Não é possível encontrar uma definição absoluta para se entender o que foi o Holocausto. Diante de um acontecimento com tantas implicações na história do século XX e na própria história do homem, o seu entendimento não pode partir somente de estatísticas e relatórios empíricos. A fim de se construir um conhecimento mais amplo, é necessário partir também de uma reflexão sobre as
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elaborações discursivas que procuraram se apropriar do que de fato aconteceu ou que tentaram explicar isso. É preciso ver, na diversidade de representações e testemunhos, na divergência de pontos de vista e no uso de arquivos de diferentes fontes, um processo que não pode ser fechado por conceitos definitivos ou afirmações categóricas. É neste sentido que abordagens críticas como as que foram propostas em The specialist aportam uma reflexão pertinente para se entender como as imagens de arquivo inserem-se num contexto de representações sobre o Holocausto. O documentário de Rony Brauman e Eyal Sivan apresenta o mérito de encontrar, nas imagens de arquivo do julgamento de Eichmann, um sentido muito mais amplo do que serem meras ferramentas para fins ideológicos, como fez o governo israelense na época em que essas imagens foram registradas e mostradas ao vivo pela televisão. Ao ressignificarem essas imagens, deslocarem esse material do seu sentido original, The specialist traz à tona uma reflexão sobre como as construções discursivas apropriam-se de um fato como o Holocausto, para atender a determinados fins ideológicos. O que está em jogo neste filme não são somente o julgamento e a figura de Eichmann, mas um embate de duas construções ideológicas pelo poder simbólico de um mesmo fato histórico: o genocídio dos judeus nos campos de concentração nazistas. The specialist comprova, portanto, que as imagens de arquivo são muito mais do que “imagens sem imaginação”, porque elas não apenas evidenciam uma elaboração discursiva na sua origem, mas também desafiam a nossa percepção porque estão abertas para novas formas de significação que ampliem ou que até mesmo possam negar o seu sentido original. Essas imagens têm um caráter transitório, podem ter a sua significação original transformada de acordo com o contexto e com as intenções de quem pretenda utilizálas. É justamente nesta questão que reside tanto o seu potencial como o seu perigo nesse processo de representação do real. O cinema documentário também deve partir do pressuposto de que não pode se transformar numa mera ferramenta de propaganda de um discurso hegemônico, mas sim deve ser uma fonte constante de questionamento sobre posições absolutistas. Assim como o cinema deve evidenciar as dimensões trágicas do que foi o Holocausto, também deve refletir sobre as suas fissuras, as questões mal esclarecidas e as complexidades que ainda suscitam reflexões
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sobre esse episódio da história recente. Através da análise dos seus rastros, da busca pelos seus vestígios, as imagens de arquivo não podem ser descartadas para se entender o Holocausto e a posição que desempenham na sua representação. Cabe ao cinema – por meio de obras como The specialist – o papel de resgatar essas imagens para seguir assumindo uma posição questionadora diante da construção dos discursos ideológicos de poder.
REFERÊNCIAS
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Como representar o “irrepresentável”? / Rafael Valles
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995. TODOROV, Tzvetan. Memoria del mal, tentación del bien. Barcelona: Ediciones Península, 2002.
FILMOGRAFIA
IMAGENS do mundo e inscrições da guerra (Bilder der Welt und Inschrift des Krieges). Harun Farocki, Alemanha, 1988, 75 min. SHOAH. Claude Lanzmann, França, Reino Unido, 1985, 280 min. THE SPECIALIST, portrait of a modern criminal. Rony Brauman e Eyal Sivan. Israel, França, Alemanha, Áustria, Bélgica, 1999, 128 min.
Data do recebimento: 10 de junho de 2015 Data da aceitação: 12 de setembro de 2015
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Fragmentos de guerra: estética e política em El Perro Negro, de Péter Forgács Jamer Guterres de Mello Doutor em Comunicação e Informação pelo PPGCOM-UFRGS. Realizou estágio de Doutorado Sanduíche na Universitat Autònoma de Barcelona. Possui mestrado em Educação pelo PPGEDU-UFRGS.
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Resumo: Este trabalho busca problematizar as dimensões estéticas e políticas do uso de imagens de arquivo no documentário contemporâneo a partir das contribuições de Jacques Rancière. Para tanto, nos debruçamos sobre El Perro Negro (2005), filme em que Péter Forgács abre mão da tentativa de contar a história da Guerra Civil Espanhola de um modo convencional ao se utilizar de imagens amadoras. Podemos dizer que as dimensões estéticas e políticas do cinema produzem novos agenciamentos dos regimes do visível e do enunciável. Palavras-chave: Documentário. Imagens de arquivo. Estética. Política. Filmes de família. Abstract: This paper aims to question the aesthetic and political dimensions of the use of archival footage in the contemporary documentary from the contributions of Jacques Rancière. Therefore, we fix our attention on El Perro Negro (2005), a film in which Péter Forgács gives up the attempt to tell the story of the Spanish Civil War in a conventional manner, as he uses amateur images. We can say that the aesthetic and political dimensions of cinema produce new agencies of the visible and the enunciable regimes. Keywords: Documentary. Archival footage. Aesthetic. Politics. Amateur movies. Résumé: Cet article interroge les dimensions esthétiques et politiques de l’utilisation d’images d’archives dans le documentaire contemporain, en partant des réflexions de Jacques Rancière. Nous y analysons El Perro Negro (2005), film dans lequel Péter Forgács renonce à l’idée de raconter l’histoire de la guerre civile espagnole d’une manière conventionnelle, en revenant sur des images d’amateur. Les dimensions esthétiques et politiques du cinéma produisent ainsi des nouveaux agencements des régimes du visible et d’énoncés. Mots-clés: Documentaire. Images d’archives. Esthétique. Politique. Film de famille.
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O eixo central do pensamento de Jacques Rancière incide sobre o problema da imagem em um conjunto de relações indissociáveis entre estética e política. São reflexões críticas que partem de campos distintos do saber como a filosofia, a literatura, o cinema e a teoria da arte. Suas obras têm configurado os debates contemporâneos sobre arte e política, constituindo linhas de força que não cessam de produzir um pensamento de referência constante nas análises e nas observações das imagens, sejam elas artísticas ou midiáticas. Este artigo tem como ponto de partida uma tentativa de aproximação entre as problematizações de Rancière e algumas manifestações do arquivo observadas no documentário El Perro Negro – Histórias da Guerra Civil Espanhola (El Perro Negro – Történetek a Spanyol Polgárháborúból, 2005), do cineasta húngaro Péter Forgács. Assim, seria possível pensar o arquivo em sua potência de diferenciação, aspecto fundamental para compreender como as imagens já existentes vêm sendo utilizadas – de forma cada vez mais frequente – no documentário contemporâneo. O objetivo deste texto é problematizar os agenciamentos que possibilitam enunciar o arquivo e seus dispositivos estéticos e políticos, segundo Jacques Rancière, e também suas condições de visibilidade e dizibilidade, segundo Michel Foucault. Para tanto, tratamos de pensar o uso de fragmentos de filmes caseiros não como um discurso unificado ou singular próprio do mundo histórico, mas como “práticas complexas, sedimentadas, ativas e contraditórias para uma historiografia imaginativa e transformadora” (ZIMMERMANN, 2008: 17). Afirmar que as imagens não são apenas representações do mundo, mas sim acontecimentos que tomam lugar, agem, atuam e transformam este mundo é assumir um posicionamento político, um gesto de colocar-se frente às imagens considerando-as como potências de uma partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009a). Assim, o arquivo deixa de ser apenas um artefato ou um documento histórico para se converter em um sistema discursivo que estabelece relações ativas tanto estéticas quanto sociais e políticas.
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Segundo Jacques Rancière, há uma dimensão estética que se expressa na ordenação social dos modos de visibilidade e dizibilidade e, ao mesmo tempo, uma dimensão política
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na reconfiguração dessa ordenação, na possibilidade de agenciamento de novos modos de fazer, ver e dizer. Haveria, então, um fundamento estético na política que, segundo o autor, seria um modo de partilha (tanto no sentido de divisão quanto de distribuição) de uma experiência sensível comum. É importante ressaltar que as dimensões estética e política, para o autor, se diferenciam do fenômeno da estetização da política apontado por Walter Benjamin (1987). Não se trata, aqui, de uma estetização da arte a serviço da política, do poder e do autoritarismo, como discutido por Benjamin em relação ao regime nazista. Ao evidenciar os paradoxos que acompanham o pensamento moderno e adentram a pós-modernidade, Rancière (1996a) produz uma série de problematizações no cerne das questões que envolvem a imagem em suas dimensões estética e política. Há, inclusive, um deslocamento das próprias noções que estes termos (estética e política) designam na contemporaneidade. A estética não estaria reduzida e submetida à filosofia da arte ou às artes do belo, mas antes definiria as possibilidades de ruptura e distribuição do sensível, um problema evidente de comunicação que caracteriza a era moderna. A política, por sua vez, seria antes um recorte comum do mundo sensível, uma composição entre visibilidades e dizibilidades e uma possibilidade de reconfigurar o espaço e o tempo, ao contrário de como é entendida num sentido comum, na maneira como grupos sociais organizam seus interesses. Rancière define a política como uma cena que coloca em jogo conflitos entre mundos perceptíveis, entre o que se vê e o que se pode dizer sobre o que é visto, em sintonia com o pensamento de Michel Foucault (2010). Toda atividade política é um conflito, um “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do grito que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2009a: 16-17). Esta cena política é produtora de dissensos, rompendo com a estabilidade de conflitos pré-existentes, fazendo emergir as ações daqueles sujeitos que, até então, não estavam em posição de interlocutores. São os sujeitos do dissenso, aqueles que tomam a palavra (ou a ação) sem tutela reconhecida, que se tornam sujeitos políticos apenas quando assim o fazem, quando e onde não teriam o poder de fazê-lo.
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Existe, portanto, um princípio da emancipação política que é essencial para a compreensão do problema estético na contemporaneidade. As cenas do dissenso provocam rupturas nas unidades do visível, permitindo a emergência de situações que modificam nossa relação com os objetos e as imagens do mundo, assim como nossas atitudes com relação ao ambiente coletivo. O dissenso expressa um processo de subjetivação política não de um discurso a ser enunciado por um interlocutor com lugar de fala definido, mas antes na própria criação da condição de fala, por um interlocutor sem a devida autorização para fazê-lo. Portanto, a constituição do comum não é exatamente a partilha da possibilidade de fala na comunidade, da possibilidade de tornar algo comum a todos ou a apropriação realizada por um gênio criador, mas a subversão do inaudível que advém de um lugar, um espaço onde geralmente não há fala por não haver título para tanto. Tomar o arquivo como dissenso – mais do que isso, pensar o uso de imagens de arquivo enquanto práticas do dissenso no cinema documentário – equivale a dizer que sua função enquanto imagem não diz respeito apenas às palavras, enquanto discurso, enquanto conteúdo, mas diz respeito também à sua própria condição de fala, de enunciado, no sentido engendrado por Michel Foucault (2010). Este conjunto radical de relações entre estética e política, quando endereçado ao problema da imagem, se configura em uma importante reflexão para a constituição de um estatuto do arquivo no documentário, uma vez que este se apresenta como modo de circulação do sensível e oferece diversas possibilidades de reconfigurar as formas de visibilidade e enunciação do real. O arquivo, entendido nestes termos, possibilita maneiras de constituir o visível e o invisível, de (des)organizar o sensível. Para Rancière, a imagem não deve ser reduzida à sua visualidade, pois nela operam também o dizível, o indizível e aquilo que não é visível, portanto a imagem deve ser compreendida em seu caráter paradoxal. A imagem é ao mesmo tempo autônoma e elemento que compõe uma parte em um determinado fluxo imagético. Com efeito, tomar a imagem pelo que ela possui de meramente visual significa desconsiderar o complexo jogo de
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relações que define o seu amplo sentido e sua especificidade. Diante desta série de paradoxos entre as operações, os modos de circulação e o discurso crítico das imagens desenvolvida por Rancière o intuito é o de tentar compreender a imagem de arquivo no espectro dos fenômenos estéticos da contemporaneidade a partir de seus sistemas de visualidades (visibilidades e dizibilidades). A imagem nunca é uma realidade simples. As imagens do cinema são antes de mais nada operações, relações entre o dizível e o visível, maneiras de jogar com o antes e o depois, a causa e o efeito. Essas operações mobilizam funções-imagens diferentes, sentidos distintos da palavra imagem. O encadeamento de dois planos cinematográficos pode, assim, depender de uma imagéité diferente. E, inversamente, um plano cinematográfico pode pertencer ao mesmo tipo de imagéité que uma frase romanesca ou um quadro (RANCIÈRE, 2012b: 14). Neste contexto, o arquivo pode se configurar como um elemento metamórfico destituído de seu caráter utilitário de documento ou testemunho do passado. Ou melhor, o continuum metamórfico das imagens coloca o arquivo no espaço do sensível heterogêneo, o retira de um nível de superioridade ao qual o ideal de testemunho o encerra, assumindo uma função ou um ofício que não era exatamente o seu, tornando-se estranho a qualquer finalidade que pudesse ser a ele conferida como atributo. De fato, a imagem não se caracteriza apenas como imagem, ela mesma em sua intransitividade, mas também como alteridade apta a executar sua função em um meio expressivo qualquer, que possibilite tecnicamente sua exibição. Trata-se de pensar as imagens como operações, como “relações entre um todo e as partes, entre uma visibilidade e uma potência de significação e de afeto que lhe é associada, entre as expectativas e aquilo que vem preenchê-las” (RANCIÈRE, 2012b: 11-12). As operações seriam, para Rancière, um conjunto de capacidades das imagens de conter múltiplas funções, nelas mesmas, que se expressam como performance em um determinado meio de exibição. Quando associamos o arquivo a uma propriedade operacional da imagem estamos trabalhando com uma potência que não está diretamente ligada às características de
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um dispositivo técnico (de captação ou exibição da imagem), nem a um caráter interpretativo daquilo que se vê, de forma estanque, mas antes a uma propriedade funcional, um efeito que é determinado operacionalmente. Uma cena de um filme, por exemplo, vista em uma sala de cinema, em uma televisão ou em uma tela de celular não deixa de ser a mesma cena, nem mesmo se torna algo completamente diferente em função de seu dispositivo de exibição. Há aí um duplo movimento operacional da imagem que se dá, menos pelas múltiplas interpretações possibilitadas por formas distintas de recepção do que por sua capacidade de executar diferentes performances em cada um destes dispositivos. Neste contexto, o autor desenvolve o que chama de imagem pensativa, referindo-se a uma capacidade de autonomia da imagem em relação à construção de significados. Portanto, se a imagem, para Rancière, não é simplesmente um determinado tipo de realidade, mas antes uma determinada ideia e, mais do que isso, uma ideia polêmica de realidade, é possível afirmar que existe uma potência das imagens que é de ordem tanto estética quanto política. Assim, o uso de imagens de arquivo pode ser discutido à luz dessas duas dimensões. No regime estético da arte, a imagem é uma categoria da partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009a), ou melhor, a arte define-se – para além de uma aptidão técnica de produção de objetos e performances – pela capacidade de dissenso, por uma competência de recolocar em questão um certo estatuto do senso comum (um modo dominante de apresentação das coisas, um modo dominante de interpretação das imagens). Portanto, existe uma ideia de arte como formas sensíveis e modos de visibilidade, em ruptura, relativamente ao regime geral das imagens, e é isso que interessa a este trabalho. Grosso modo, os arquivos são imagens que se ignoram como imagens e que se projetam como formas sensíveis que pertencem a um outro sensorium, a um novo mundo sensível, dependente de sua ressignificação. Na esteira de Rancière, podemos dizer que não se pode antecipar o efeito de uma obra de arte, portanto parece infrutífero tomar o arquivo como objeto de apropriação no sentido exclusivo de criação artística.
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[...] quando dizemos que uma imagem é pensativa [...] não se supõe que uma imagem pense. Supõe-se que ela é apenas objeto de pensamento. Imagem pensativa, então, é uma imagem que encerra pensamento não pensado, pensamento não atribuível à intenção de quem a cria e que produz efeito sobre quem a vê sem que este a ligue a um objeto determinado. (RANCIÈRE, 2009b: 103)
Podemos estabelecer agora uma propriedade de pensatividade no arquivo, uma zona de indeterminação entre pensamento e não pensamento, uma espécie de intervalo, potência que está contida no interior do arquivo. Para isso é preciso, portanto, definir o efeito do arquivo sem reduzi-lo à intenção do cineasta ou à interpretação do sujeito observador. A noção de estética como distribuição do sensível, conforme determinada por Rancière, ajuda a pensar o arquivo no plano das repartições do comum, como objeto político. O arquivo pode, então, ser tomado como “um sistema de formas a priori determinando o que se dá a sentir. [...] um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2009a: 16). O que distingue o arquivo das demais imagens não é sua natureza, mas seus regimes de enunciação e visibilidade. Os entrecruzamentos entre diferentes regimes podem chegar a constituir, por si mesmos, modelos ou estratégias estéticas. As abordagens de Michel Foucault sobre os sistemas de pensamento e as práticas discursivas também podem produzir um conjunto de questões bastante pertinentes para pensar algumas das relações entre o documentário contemporâneo e o estatuto do arquivo que se propõe neste artigo. Em Arqueologia do saber, Foucault (2010) considera que o documento não é algo neutro, mas antes fruto de um efeito de poder das sociedades históricas a fim de conservar determinadas imagens do passado, ou seja, a história acaba transformando certos documentos em monumentos.
O autor afirma que:
o documento, pois, não é mais, para a história, essa massa inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas
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rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações. (FOUCAULT, 2010: 7)
Com efeito, é este conjunto de relações de poder estabelecido pelos interesses da própria sociedade que constitui valor e sentido ao documento perante a história.
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Péter Forgács é um artista multimídia e cineasta independente que vive em Budapeste e se auto intitula um colecionador de memórias. Seus filmes e videoinstalações são fortemente marcados pelos mecanismos de manipulação de filmes de família dos anos 1920 aos anos 1960 e são associados a uma prática bastante específica de uso de imagens de arquivo, uma apropriação interessada tanto no valor plástico e pictórico quanto poético e simbólico dos fragmentos de filmes antigos. Esta estratégia tem o intuito de explorar as possibilidades de uma arqueologia poética da película, explorando os limites entre o cinema e as artes visuais. Em sua obra, com mais de 30 documentários produzidos desde 1978, destacam-se A Família Bartos (A Bartos Család, 1988), O Turbilhão – Uma Crônica Familiar (A Malestrom, 1997), O Êxodo de Danúbio (Dunai Exodus, 1998) e Hunky Blues – O Sonho Americano (Hunky Blues – az amerikai álom, 2009). São filmes que “optam por sublinhar a complexidade do conhecimento sobre o mundo através de uma ênfase nas dimensões subjetivas e afetivas” (REBELLO, 2012: 6). Os filmes de família são cada vez mais explorados por cineastas que procuram dar lugar a testemunhos pessoais, seja no sentido da micro história, como Forgács, ou em obras autobiográficas como Alain Berliner ou Jonas Mekas. El Perro Negro é um filme de 84 minutos que mostra, em sua maior parte, imagens caseiras captadas por dois cineastas amadores que estiveram envolvidos diretamente com os acontecimentos da Guerra Civil Espanhola. São eles também os dois principais personagens do filme. Um é Joan Salvans, filho de Francesc Salvans, um importante industrial
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1. O cineasta Jonas Mekas – nascido em 1922 na Lituânia e radicado nos Estados Unidos desde 1939, dono de uma extensa filmografia e reconhecido por sua importância na história do cinema experimental americano com seus filmesdiário, marcos inaugurais do cinema autobiográfico – se intitula um filmador e não um cineasta, em alusão à sua obsessão por filmar praticamente tudo o que envolve o seu cotidiano, mais do que filmar para posteriormente produzir obras cinematográficas. Este é um termo que define, de certa forma, a ação de registro do cotidiano de Joan Salvans e Ernesto Noriega.
catalão, ambos assassinados por um anarquista chamado Pedro el Cruel, seis dias após o início da guerra; e o outro é Ernesto Noriega, estudante de Madri e membro do exército republicano que é capturado e detido como prisioneiro e posteriormente convertido em soldado nacionalista, tendo conseguido filmar clandestinamente alguns detalhes do conflito. Podemos chamar estes cineastas amadores também de filmadores1 ou sujeitos da câmera, já que eles não produziam filmes no sentido comercial do termo. Seus filmes não eram exibidos ao público, não ganhavam forma como filme, como cinema. Trata-se de duas pessoas que tinham um particular interesse em registrar o cotidiano com uma câmera. O filme recorre também a outros fragmentos de filmes amadores, alguns de procedência anônima, e a cenas de alguns filmes espanhóis, um emaranhado poético de imagens de arquivo que culmina num olhar mais amplo sobre os acontecimentos de um período bastante caótico da história espanhola. Apesar de ter uma construção nitidamente cronológica, El Perro Negro não é um filme exatamente linear. Como Joan Salvans e seu pai são assassinados na primeira semana da guerra e Ernesto Noriega produz suas imagens no decorrer do conflito, há uma linearidade cronológica que mantém uma predominância das imagens de Salvans na primeira metade do filme, acentuando a exposição das imagens captadas por Noriega da metade até o final. Porém, essa característica não mantém uma linearidade óbvia no decorrer da obra, pois a própria narrativa é constantemente fraturada e abalada por elementos heterogêneos que se acentuam na medida em que o filme avança. São elementos paradoxais que permeiam o filme, como a constante fragmentação e a justaposição de cenas que, apesar de documentais, parecem não ter ligação com a história que vai sendo comentada pela narração em off: cenas de crianças brincando, de barricada nas ruas ilustram metaforicamente o conflito armado que se instaura na Espanha; o áudio de um discurso do ditador Miguel Primo de Rivera junto a cenas de um anão dançando de forma desengonçada; o uso de diversas cenas de animais em meio ao discurso narrativo sobre os desfechos da guerra; e a grande quantidade de cenas abstratas filmadas por Salvans e Noriega que são utilizadas no filme sem uma proposta narrativa definida (ver figura 1).
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Figura 1
Logo no início do filme, nos primeiros minutos, são revelados detalhes do assassinato do jovem cineasta amador e de seu pai, arrancados da mansão La Barata, próxima a Barcelona, onde a família Salvans vivia. Esta informação, colocada no início do filme, equivale ao papel que o Holocausto desempenha na narrativa de outros filmes de Forgács, pois “nos permite saber que a pessoa que está filmando as imagens da vida luxuosa do clã dos Salvans a partir dos anos 1920, que veremos nos 30 minutos seguintes, vai, no final das contas, morrer de forma violenta” (ROSENSTONE, 2012: 35). Aqui não se trata de uma comparação do Holocausto com a Guerra Civil Espanhola, muito menos com o assassinato violento de Joan Salvans e seu pai, mas antes de um paralelo entre este assassinato com o papel narrativo que o Holocausto desempenha no desenvolvimento da trama em alguns filmes de Forgács. Em O Turbilhão – Uma Crônica Familiar (A Malestrom, 1997), por exemplo, Forgács utiliza imagens de filmes de uma família judia em um período prévio ao Holocausto. Neste filme vemos imagens desta família em uma animada preparação para uma viagem a um campo de trabalho quando, na verdade, estavam rumo ao terror de Auschwitz. Em El Perro Negro, Forgács deixa claro logo no início do filme que Joan Salvans e seu pai foram assassinados na primeira semana da Guerra Civil Espanhola, o que contribui especificamente para que o espectador se posicione frente às imagens que compõem o restante do filme.
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As imagens de Joan Salvans e de Ernesto Noriega potencializam uma possibilidade de ruptura da lógica dominante e linear da história da Guerra Civil Espanhola, como a conhecemos. As imagens carregam em sua essência a possibilidade de gerar o dissenso entre a Grande História e as micronarrativas que fazem parte dessa mesma história. Mais do que isso, os filmes domésticos de Salvans e Noriega podem exercer a função de sujeitos do dissenso, como definiu Rancière, ao abordarem a Guerra Civil Espanhola sem ter o poder e o reconhecimento para fazê-lo. À primeira vista, Péter Forgács tem por objetivo transformar filmes de família em documentos que contam algo sobre a história de uma época, mais especificamente da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial. Podemos dizer que em seus filmes, de modo geral, os registros pessoais, as imagens de uma memória íntima e familiar, carregam rastros de uma memória do mundo. Porém, é possível ir além e afirmar que a intimidade dos filmes de família – e a possibilidade de reconfiguração do público e do privado que se observa em filmes como El Perro Negro – pode operar como um recorte comum do mundo sensível que opera na contemporaneidade, exatamente como o conceito de política, à luz de Jacques Rancière. Mais do que isso, as imagens da intimidade dos contemporâneos da Guerra Civil Espanhola reconfiguram o espaço e o tempo ao partilhar um outro mundo sensível, compondo novas visibilidades e dizibilidades que, tornadas comuns em nosso tempo, são suscetíveis de serem apreendidas. El Perro Negro pode, portanto, ser considerado como um filme que coloca à prova as imagens íntimas e amadoras. Podemos também destacar o principio ensaístico de El Perro Negro ao contar as histórias particulares de dois personagens para chegar a uma narrativa maior que é histórica. O modo de compor esta narrativa possui uma dimensão ensaística bastante evidente. Parte de imagens de arquivo, de filmes de família, de histórias íntimas, usa voz off e faz associações inusitadas entre as próprias imagens. Em suma, produz pensamento sobre o mundo histórico através de associações não tão óbvias entre as imagens e os demais recursos apresentados no filme. Tanto Salvans quanto Noriega possuem, de certa forma, um senso estético apurado, o que provavelmente tenha despertado o interesse de Forgács em trabalhar com suas filmagens. Ambos produziram filmes amadores, entre o documentário e a ficção,
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mas a maior parte das imagens utilizadas em El Perro Negro são imagens do cotidiano pessoal e familiar. Joan Salvans produzia filmagens de momentos importantes na mansão La Barata, como casamentos, reuniões partidárias e encontros de negócio. Ernesto Noriega captava imagens de sua namorada e seus amigos em tom de descontração, criando sequências poéticas, como por exemplo a de um de seus amigos mergulhando (ver figura 2). É interessante notar que Forgács não apenas escolheu utilizar as imagens captadas por estes dois filmadores, mas os coloca como personagens principais do filme. Uma espécie de metalinguagem cinematográfica onde a criação fala sobre o criador.
Figura 2
Forgács reitera em seus filmes uma série de estratégias de manipulação do material encontrado. Não trabalha apenas na montagem deste material, mas também interfere esteticamente nas imagens das quais se apropria. Entre os recursos utilizados reiteradamente na maioria de seus filmes estão a trilha sonora – quase sempre composta por Tibor Szemzö – comentários lacônicos, zooms, imagens congeladas, velocidade lenta, coloração e o uso de imagens com efeito de negativo. Em El Perro Negro há uma importante diferença de matizes entre as imagens de Salvans, em tom sépia, e as imagens de Noriega, em tons frios. Em alguns momentos aparecem oposições entre positivo e negativo (ver figura 3), em outros aparecem elementos que parecem ter sido
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colorizados pelo cineasta, como bandeiras vermelhas. Assim como as narrações em voz off, que geram um tipo de confusão referente à autenticidade dos comentários, as manipulações que transformam esteticamente as imagens utilizadas no filme podem causar estranheza no seu dispositivo narrativo. Em outras palavras, são estratégias estéticas que evidenciam o caráter de criação no documentário poético, sobrevalorizando as imagens de arquivo.
Figura 3
A trilha sonora também possui características importantes na obra e confere ao filme um tom bastante ensaístico. Tibor Szemzö, parceiro de Forgács em quase todos os seus filmes, produz sons, ruídos, músicas específicas para cada obra. Em El Perro Negro, a música acompanha o processo narrativo do filme. Na primeira metade, junto às imagens de Joan Salvans, há uma predominância de músicas típicas da Espanha, como o flamenco. À medida que o filme avança e a narrativa vai ficando cada vez mais fraturada, os comentários cada vez mais lacônicos e desconexos, a música também vai se transformando. No terço final do filme há predominância do jazz experimental. Todos os ruídos parecem também minimamente orquestrados para cada cena. Barulhos dos cascos de cavalo, de carroças, árvores caindo, etc., possuem grande importância em um filme com imagens das décadas de 1920 e 1930, pois são todas imagens que não foram originalmente gravadas com som.
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A partir desse conjunto de estratégias fortemente marcadas no filme, podemos dizer que as imagens tomam uma dimensão política através de seus agenciamentos estéticos. Não há mais uma estabilidade entre passado e presente, entre história e memória, entre público e privado, entre visível e invisível. Há apenas acontecimento em seu estado bruto, em seu devir pleno. O que se vê e o que não se vê estão em pleno jogo discursivo a partir do conjunto de elementos que são colocados em relação através das imagens, dos sons, das narrações, etc. Não se trata de mostrar uma verdade escondida da Guerra Civil Espanhola que teria a chance de ser revelada em filmes caseiros, mas de mostrar imagens que trazem à tona as cenas comuns, cenas do dissenso. As imagens são agenciadas esteticamente para gerar um dissenso político, imagens que provocam rupturas nas unidades do visível e, desta forma, fazem emergir situações que modificam nossa relação com os fatos históricos, com as imagens do mundo, com a história pré-estabelecida. Imagens caseiras que colocam em jogo o acontecimento tanto quanto qualquer imagem que serviria de discurso da história hegemônica. Acontecimento, para além do fato. A maneira como a intimidade é colocada em jogo e o tipo de intimidade que é provocada como visibilidade estabelecem relações poéticas e políticas com fatos históricos que não são os fatos puros da história como a conhecemos, pois esta história não foi escrita a partir deste tipo de narrativa doméstica. Estão lá vários dos elementos que nos remetem a uma memória coletiva da Guerra Civil Espanhola: as bandeiras anarquistas, as imagens de Franco e seus generais, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Gabriel Garcia Lorca. Imagens que Forgács recupera e as coloca em situação limítrofe na relação com a intimidade dos filmes de família. É como se pudéssemos reconhecer que há mais sobre a guerra a ser visto do que as imagens que nos remetem a ela. Péter Forgács percebe que nos filmes de família há uma possibilidade de revelar uma ordenação social dos modos de visibilidade e dizibilidade que até então não podia se revelar de outra forma, como queria Rancière. Mais do que isso, os filmes de família podem, por si sós, reconfigurar novos modos de fazer, ver e dizer. Se não é possível voltarmos no tempo para descobrir o passado, pois que não seja esta a tentativa do cinema documental. As dimensões estéticas e políticas do cinema não passam por uma arqueologia da memória e do passado no sentido de descoberta
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científica, de uma verdade escondida nos ínfimos segredos da história, mas antes por uma possibilidade de agenciamento desses distintos modos de visibilidade e dizibilidade. Ou seja, para o cinema, é mais produtivo criar essas condições do que tentar encontrá-las nas imagens. Nada mais dissenssual que reconfigurar politicamente uma dimensão estética das imagens de arquivo no lugar de criar novas imagens que representem um fato histórico. Outro aspecto pertinente a ser detalhado é que em El Perro Negro há uma narração em voz off que a priori parece linear, branda e explicativa, mas que está muito longe de ser a voz de Deus do documentário expositivo. O surgimento, sem explicação óbvia ou aparente, de outros narradores, elimina esta possibilidade de narração linear e explicativa. Pelo contrário, ela apenas segue a ordem sucessiva do tempo cronológico, mas acaba por confundir a linha de raciocínio do filme ao se tornar cada vez mais difusa e dissonante em relação às imagens. “Esse voiceover é, ao mesmo tempo, intermitente e frequentemente tão desconectado das imagens que ele força continuamente o espectador a pensar em termos de metáforas visuais” (ROSENSTONE, 2012: p. 35). O primeiro narrador é o próprio Forgács, que tece comentários sobre os personagens, sobre a origem de algumas das imagens e, evidentemente, sobre os aspectos mais gerais da Guerra Civil Espanhola. O segundo narrador é, provavelmente, Ernesto Noriega, que conta como conseguiu sobreviver como prisioneiro de guerra e mostra, de forma difusa, como conseguiu continuar filmando. Outros narradores surgem na segunda metade do filme, como Buenaventura Durruti, anarquista revolucionário e militante do movimento libertário espanhol. Percebe-se, na obra, uma heterogeneidade de vozes que se confundem com as imagens. Em El Perro Negro há uma série de paradoxos, frutos da montagem e de outros recursos técnicos, mas que são produzidos e possibilitados pelos próprios arquivos. Há uma cena onde o povo grita “Viva a Espanha! Viva a Espanha!” em comemoração à tomada do poder pelos militares, no final da Guerra Civil Espanhola, e logo a seguir vem uma cena que mostra um cadáver. Ou, ainda, uma cena onde aparece uma inscrição em uma parede: “viva o grande partido comunista” e logo depois vemos alguns homens marcando uma parede com um stencil do rosto do ditador Franco. O paradoxo não é apenas a falta de um sentido em uma proposição, nem mesmo
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uma contradição explícita do sentido em um discurso, como muitas vezes é entendido no senso comum. Gilles Deleuze (2007) propõe uma condição paradoxal do sentido e sugere que o paradoxo pode ser usado como instrumento de análise da linguagem. O paradoxo pode ser considerado, então, como um devir que se expressa em duplo sentido e, neste caso, de forma contrária ao uso do termo no senso comum, vinculado a identidades fixas. Mais do que isso, o paradoxo é capaz de comunicar algo por meio da linguagem, por meio da exterioridade dos acontecimentos enquanto efeitos incorporais (DELEUZE, 2007). Há também a evidência de paradoxos nas colisões entre diferentes níveis de narrativa. Embora a macroestrutura de El Perro Negro seja narrativa, estamos diante de um filme totalmente composto por fragmentos de imagens que formam blocos de construção da narrativa, ou seja, o conjunto narrativo do filme é formado por vários fragmentos micro narrativos. O que nos interessa é perceber, na esteira de Deleuze, que o paradoxo não se constitui simplesmente ao fazer o sentido seguir uma outra direção, mas fazer justamente que o sentido tome, ao mesmo tempo, duas direções diferentes, ou melhor, que o sentido possa absolutamente não ter uma, mas múltiplas direções. A força do paradoxo é mostrar que um acontecimento é o próprio sentido, que é comunicado e que se constitui na linguagem (DELEUZE, 2007). Podemos dizer também que o arquivo carrega, em sua essência, algo de arquivo morto. Isto pode ficar um pouco mais claro quando nos debruçamos com maior atenção sobre algumas cenas em que algo ficcional – que não pretendia representar algo documental, no sentido histórico – serve de motor para dar a ver algumas características reconhecíveis em fatos históricos. Seria um modo de fazer surgir outro regime de visibilidade, no sentido de que o arquivo contém cenas ficcionais que não teriam outra vida pra além de contar uma determinada história ficcional, ali muito bem representada, mas que, ao serem retomadas e recolocadas em funcionamento, podem desempenhar uma nova função, desta vez documental. Como se estivessem sob a luz de um roteiro da vida real – do passado – que seria capaz de transportá-las de um sistema de invisibilidade para um sistema de visibilidade.
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Nas cenas iniciais de El Perro Negro, Fórgacs utiliza de forma alegórica imagens de um filme amador de ficção, produzido por Joan Salvans, uma espécie de teatro filmado onde alguns garotos dançam ritualisticamente e encenam a execução de um suposto inimigo. Trata-se de uma alegoria tão emblemática para o tema do filme que o cineasta resolve colocá-la como um possível prefácio, antes mesmo dos créditos iniciais do filme. Ou seja, são imagens que servem de prenúncio da Guerra Civil Espanhola, apesar de sua carga ficcional, expediente contrário ao que seria comum no documentário.
***
Podemos concluir que o uso do arquivo, da forma como é praticado por Forgács, parece não fazer parte de um processo homogêneo de distribuição e consumo das imagens, ao contrário do uso banal do arquivo, largamente praticado no documentário expositivo tradicional. Este uso clássico do arquivo não cria dissenso, na medida em que usa o arquivo que teria voz, lugar e identidade de arquivo, aquelas imagens que são registradas, arquivadas, catalogadas, com um objetivo concreto – a possível utilização como documento visual de um acontecimento factual do mundo histórico. As imagens de El Perro Negro seriam equivalentes aos sujeitos sem parte, aos sem voz de Rancière. Aquelas imagens que não possuem valor de documento num sentido mais amplo, mas que carregam em sua essência uma potência de criar o dissenso em uma ordem constituída, ao falarem como documentos, contando histórias.
2. Na concepção desenvolvida
por Georges Didi-Huberman (1998).
O arquivo assume, assim, um papel essencial no documentário contemporâneo ao se configurar como imagem metamórfica, na concepção desenvolvida por Rancière. Desta forma, o arquivo funciona como acontecimento do dissenso, uma operação política própria das imagens críticas2 e que se evidencia de forma mais ampla e nítida no uso de imagens de arquivo como aparece no filme de Péter Forgács.
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REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996a. ______. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996b, p. 367-382. ______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009a. ______. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009b. ______. A comunidade estética. In: Revista Poiésis, n. 17, p. 169187, Jul. de 2011. ______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012a. ______. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012b. REBELLO, Patrícia. Fazer ver ou tornar visível? A arquitetura da memória em Péter Forgács. In: REBELLO, Patrícia; SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012, p. 5-7. ROSENSTONE, Robert. Tornando estranho o familiar: El Perro Negro e a Guerra Civil Espanhola. In: REBELLO, Patrícia; SAMPAIO, Rafael (Orgs.). Péter Forgács: arquitetura da memória. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012, p. 34-38. ZIMMERMANN, Patricia. The home movie movement: excavations, artifacts, minings. Berkeley: University of Carolina Press, 2008.
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Data do recebimento: 06 de junho de 2015 Data da aceitação: 09 de setembro de 2015
O atrativo de planos encontrados*
Christa B lĂźmlinger Professora de Estudos FĂlmicos na Universidade Vincennes-Saint-Denis (Paris 8). Foi professora assistente na Universidade Paris 3 e professor convidada na Free University Berlin.
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Resumo: O impulso arquivístico que, segundo Hal Foster, caracteriza a arte contemporânea, é também um fenômeno próprio do cinema. Este artigo não pretende alimentar ainda mais a teoria do filme de found footage ou do filme de montagem. Busca-se, antes, uma abordagem estética do gesto da retomada no interior de três filmes (de Filipa César, de Jean-Louis Comolli com Sylvie Lindeperg e de Philip Scheffner), colocando em cena o próprio dispositivo do arquivo, com o objetivo de esboçar o campo epistemológico no qual intervêm as operações estéticas de reutilização imagens e sons de arquivos ou de recomposição com material pré-existente. Certos filmes de ensaio, retomando elementos da história do cinema, se interessam pela qualidade epistêmica da técnica de registro e pela unicidade da experiência própria ao visionamento e à escuta de um documento visual ou sonoro. Este artigo propõe igualmente uma análise dos modos de afecção suscitados pela retomada das imagens e dos sons, na medida em que formas inerentes a essa arte arqueológica suscitam uma sensibilização ao dispositivo e às lógicas temporais do arquivo — e, dessa maneira, uma potência de imaginação, que tende à ficção. Résumé: L’impulsion archivistique qui, selon Hal Foster, caractérise l’art contemporain est aussi un phénomène propre au cinéma. Cet article ne cherche pas à alimenter à nouveau la théorie du film de found footage ou du film de montage, mais tente plutôt une approche esthétique du geste de la reprise au sein de trois films (de Filipa César, de Jean-Louis Comolli avec Sylvie Lindeperg et de Philip Scheffner) mettant en scène le dispositif même de l’ar- chive, en vue notamment d’esquisser le champ épistémologique dans lequel interviennent les opérations esthétiques de réutilisation ou de recomposition des images et des sons d’archives. Certains films d’essai, reprenant des éléments de l’histoire du cinéma, s’intéressent à la qualité épistémique de la technique d’enregistrement et à l’unicité de l’expérience propre au vision- nement et à l’écoute d’un document visuel ou sonore. Cet article propose également une analyse des modes d’affection créés par la reprise des images et des sons, dans la mesure où des formes propres à cet art archéologique suscitent une sensibilisation au dispositif et aux logiques temporelles de l’archive — et par là une puissance d’imagination, tendant vers la fiction.
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O atrativo de planos encontrados / Christa Blümlinger
Se o cinema é habitado, desde os seus primórdios, por um “impulso arquivístico”, é porque sua emergência é contemporânea ao nascimento dos arquivos no sentido moderno.1 O desejo de preservar alguma coisa do presente constitui uma espécie de imperativo temporal que leva à antecipação de um futuro olhar e à construção de uma memória cultural (no sentido de Aby Warburg, de Maurice Halbwachs ou de Jan Assmann): uma memória formada por suas técnicas de estocagem e transmissão. Hoje, esse desejo tornou-se um sintoma da arte contemporânea, particularmente atraída pelos materiais e suportes provenientes da história do cinema, e pelo “devir arquivo” das imagens do presente, sua capacidade de constituir “arquivos do futuro” (LINDEPERG, 2004: 200). O artista toma a liberdade de “tapar os buracos” de maneira diferente da do historiador, que só tem acesso a uma proporção ínfima do “concreto” que constitui seu objeto (VEYNE 1971: 194). Dessa forma, Walid Raad, por exemplo, com o The Atlas Group, inventa falsos arquivos e uma instituição libanesa fictícia, para tornar visível o invisível de sua época; ele mostra, com esse gesto, a possibilidade de aparecimento ou de desaparecimento deste ou daquele documento: a violência militar e política no Líbano, ocasionada pela ausência de um certo tipo de vestígios sob a forma de coleções de fotografias e filmes. Numa mesma direção, seu compatriota Akram Zaatari (2006), trabalhando concretamente com arquivos fotográficos que ele inscreve em um campo cultural de significações complexas, fala, por sua vez, de uma “arte das escavações”. Ao mesmo tempo, experimentamos um novo regime dos arquivos, na medida em que a passagem ao digital afeta os níveis técnicos, discursivos e políticos de sua organização, modificando a estocagem, a conservação e a distribuição das fontes escritas e das imagens. Sem dúvida, um projeto tão vasto como The Clock (2011), de Christian Marclay, que, por meio da montagem de trechos de filmes transformados em marcadores do tempo, simula um verdadeiro relógio, não teria sido possível sem o suporte digital. Essa instalação mostra também até que ponto o próprio lugar da imagem de arquivo é questionado pelas últimas mutações técnicas. Quando passam pela Internet, as imagens se deslocam de maneira efêmera. A cultura de visionamento dos filmes mudou. A consciência da historicidade do objeto filme (enquanto objeto fabricado) pode se dissolver ao longo da transferência para
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* Artigo originalmente
publicado em francês: BLUMLINGER, Christa. “L’attrait de plans retrouvés”. Cinémas. Revue d’Études Cinématographiques, vol. 24, nºs 2-3, printemps 2014, pp.69-95. 1. Invenções e técnicas
do final do século XVIII, desenvolvidas ao longo do século XIX, contribuíram para criar uma nova forma de arquivos que, para além da utilidade administrativa, permitiam aos historiadores se basearem em “documentos” para construir a “história” de uma maneira diferente daquela feita à partir de anais ou de relatos anteriores (VEYNE, 1971, p. 114). Sobre a contemporaneidade do nascimento do cinema e da era do arquivo, ver Doane (2002, p. 221-222).
o digital, mesmo quando se trata de uma restauração. O uso do DVD e das plataformas digitais leva a uma valorização do trecho, na qual pode-se ver tanto os “riscos de fetichização do fragmento e de sacralização do vestígio” (LINDEPERG, 2004: 199) quanto um modo de visionamento capturador, possessivo, produzindo o que Laura Mulvey (2006: 144) chama de um delayed cinema: um “cinema desacelerado”, que produz “um espectador pensativo”. Aqui, o desafio será, sobretudo, entender o efeito do grande interesse pelos arquivos na criação contemporânea e avaliar como certos planos são investidos ou reinvestidos de significação e potência imaginária e afetiva, insuflados por uma espécie de confusão temporal produtora de saltos, falhas, presenças e sincronizações do não-sincrônico.
2. “Uma fonte não pode nunca dizer o que devemos dizer”, sublinha Reinhart Koselleck (1979, p. 206), assinalando que “o que faz de uma história a História não são apenas as fontes: é preciso uma teoria de histórias possíveis para poder fazer falar as fontes”.
Se, no século XIX, no espaço ocidental, a idade moderna do arquivo viu-se ligada a uma nova concepção de escrita da história, o estatuto das fontes e o regime dos arquivos se inscreveram, por sua vez, num dispositivo ao mesmo tempo técnico e político. A relação conceitual entre arquivo e archè, que Jacques Derrida (1995: 11 e 148) sublinha em sua abordagem freudiana da questão, não conduz, nesse sentido, a um começo. Ela remete, principalmente, a uma construção da história e da memória. É precisamente nesse sentido que o poder e a lei interferem enquanto mandamentos. Bem mais do que uma origem, é preciso procurar uma proveniência (no sentido nietzschiano de Herkunft). Essa nova tarefa do historiador pode ser formulada com Foucault (1971: 152), para quem, em qualquer abordagem genealógica, trata-se de “localizar os acidentes, os ínfimos desvios — ou, ao contrário, as reviravoltas completas —, os erros, os equívocos de avaliação [...] que geraram o que existe e que é válido para nós”. Para o historiador Reinhart Koselleck (1979: 204), o pivô do pensamento da história e da temporalidade histórica é, sobretudo, a distinção entre espaço de ação e espaço de consciência, essa relação nova entre espaço de experiências e horizonte de expectativa. Doravante, os arquivos serão o lugar que “expõe o historiador à tensão produtiva entre uma teoria da história e a relação com as fontes”.2 Por outro lado, o arquivo, no singular, pelo menos na acepção de Foucault (1969: 171), visa um sistema geral, um nível particular “entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas”. Trata-se, então, de
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voltar à ideia de um arquivo geral (REVEL, 2002: 8) e ao estudo das regras que definem, em determinada época, o que é dizível e visível, conservado, apropriado ou reativado. Quando os artistas ou os cineastas vão aos arquivos, eles não se transformam em historiadores. Eles não escrevem a história, pois eles se encontram num outro campo epistêmico e expressivo, o das artes plásticas ou do cinema. Mas alguns participam daquilo que Foucault (1969: 172) chama de descrição do arquivo, no sentido em que este “dissipa essa identidade temporal na qual gostamos de mirar a nós mesmos para conjurar as rupturas da história” (cf. ed. brasileira). Paul Veyne (1978: 428) resume dessa maneira a abordagem arqueológica de Foucault : “Toda história é arqueológica por natureza e não por escolha: explicar e explicitar a história consiste em percebê-la, primeiro, por inteiro; em reportar os pretensos objetos naturais a práticas datadas e raras, que os objetificam; e em explicar essas práticas, não a partir de um motor único, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais elas se ancoram”. Trata-se, então, de um método em que as relações substituem os objetos. É nessa perspectiva que Veyne, se apoiando em Kurt Badt, compara o método de Foucault à pincelada de Cézanne: “Foucault não faz mais pintura abstrata do que Cézanne; a paisagem de Aix é reconhecível, mas impregnada de uma violenta afetividade: ela parece sair de um terremoto” (428). É, justamente, esse tipo de afetividade que nos interessa aqui, quando a pincelada apaga a identidade prática dos objetos e dos rostos para criar um mundo em que “tudo é individual, mesmo que nada o seja” (429). Sem dúvida, foi o cinema de vanguarda que levou mais longe esse gênero de transfiguração das imagens do real, em particular no campo do found footage. A criação onírica de Phil Solomon é um dos exemplos mais potentes disso. Devido à materialidade e à plasticidade da película, bem como à carga mitológica das imagens que ele recicla, o cineasta, em seu filme The Secret Garden (1988), comunga, em certo sentido, a ideia derridiana do arquivo secreto, ligada à paixão e destinada, por vezes, às “cinzas” do arquivo, à sua destrutibilidade, àquilo que pode, “nesse mal de arquivo, queimar” (DERRIDA, 1995: 155) ou, ao contrário, ser, apesar de tudo, apenas dissimulado e, finalmente, conservado. Solomon constrói uma forma poética da memória, renunciando a qualquer fala, para permanecer estritamente no terreno do sensível, do som e das imagens. Outros filme-ensaios de que
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falaremos aqui, colocam em cena uma espécie de descrição do arquivo, das atividades e relações que o produzem, com o intuito de produzir um efeito de arquivo que, em vez de suprir a penúria das imagens de um determinado episódio histórico, busca, sobretudo, produzir uma certa sensibilização à arqueologia e à riqueza desse ou daquele registro visual ou sonoro. O impulso arquivístico não remete, simplesmente, a um objeto qualquer, proveniente de uma outra época. Ele diz respeito, sobretudo, a relações. É nesse sentido que em seu texto “An Archival Impulse”, Hal Foster (2004: 4-5) se posiciona contra o pressuposto dominante segundo o qual o lugar ideal da arte do arquivo seria, hoje, “o mega-arquivo Internet”: à ideologia das plataformas e das interfaces, ele opõe obras de arte voltadas para a interpretação humana, e não para o reprocessing gerado por máquinas e algoritmos. Assim, ele visa, particularmente, obras abertas, indeterminadas como o conteúdo dos arquivos dos quais elas se servem, o que implica no que Foster chama de “impulso anarquivístico”: a arte dos arquivos estaria menos ligada às origens absolutas do que aos rastros obscuros, dando origem a projetos incompletos e anunciando, assim, trabalhos futuros. Ao argumento de Foster (sua noção de anarquivo é bem diferente da ideia de pulsão destruidora de Derrida), poderíamos associar a visão de arte proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari, ligada, acima de tudo, à experiência sensível: a obra de arte seria um “bloco de sensações”, compondo, de maneira durável, em uma espécie de monumento, um conjunto de “perceptos” que pode “se resumir a alguns traços ou linhas” (DELEUZE & GUATTARI, 1991: 154-155); ou, ainda, ela formaria “blocos de movimento/duração” (DELEUZE, 1998: 293), como na constituição dos espaços-tempos próprios ao cinema. As noções de duração e de monumento, em Deleuze e Guattari, não remetem à conservação da obra em arquivos e museus ou por meio da técnica, nem à sensação de um espectador, mas à sensação enquanto ser que extrapola a experiência vivida e vale por si próprio: “Mesmo se o material durasse apenas alguns segundos, ele daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si mesma, na eternidade que coexiste com esta curta duração” (DELEUZE & GUATTARI, 1997: 157). O que isso pode significar para uma arte do cinema obcecada pelo arquivo? A partir de alguns exemplos, tentaremos sondar momentos de retomada que se interessam menos pela
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representação e pelo julgamento (em relação a um fato histórico, em particular) do que pela experiência estética, pela sensação e a ética do olhar. O documentário “de criação”, como é chamado, se distingue da informação midiática justamente por liberar as imagens e os sons de sua subordinação a discursos pré-existentes. É nesse sentido que John Rajchman (2000: 125) explica o conceito de arte em Deleuze pela criação de “planos de composição”, pela abertura de espaços de possibilidades: “No mundo moderno, de uma banalidade e rotina estupeficantes, feito de clichés, de reproduções mecânicas ou automáticas, o desafio consiste em extrair uma imagem singular, uma maneira de pensar e de enunciar que seja vital, múltipla, e não uma teologia de reserva ou um “objeto aurático”. Em Cinéma 2. L’image-temps, Deleuze (1985: 32- 33) explica esse problema: em uma civilização do clichê (que tende a tornar-se imagem sensório-motora) é preciso repensar a ideia de imagem, a fim de produzir uma espécie de liberação de qualquer programa prévio (contido na imagemação), de qualquer ponto de vista externo ou olhar condicionado, que esconda; uma nova imagem “ótica-sonora pura” produz, em Godard ou Rossellini, por exemplo, “a imagem inteira e sem metáfora que faz surgir a própria coisa”; uma imagem assim, “inteira”, permitiria, justamente, “restaurar” tudo o que lhe foi subtraído para torná-la interessante ou, ao contrário, criar uma espécie de vazio, de rarefação. Quando se trata de trabalhar com materiais de filmes pré-existentes, esse programa estético é um duplo desafio, tanto para o criador quanto para o espectador. Nesse sentido, podemos mostrar em que medida esse ou aquele plano de um filme, enquanto material para uma arte de arquivos, não remete, obrigatoriamente, à indústria cultural, infinitamente reciclável, ou a uma civilização do clichê, mas pode, ao contrário, constituir um espaço-tempo específico de experiência estética e de memória singular. Godard teve uma visão premonitória disso tudo. Recorrendo amplamente ao arquivo, e neste caso, essencialmente, à coleção privada de vídeos de um cineasta-cinéfilo, suas Histoire(s) du cinema sugerem uma ligação específica entre percepção e memória.3 Outros cineastas ou artistas tentaram produzir esse tipo de temporalidade paradoxal, propondo um espaço virtual, menos enciclopédico e mais voltado para o próprio dispositivo do
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3. Comentei, em outro texto,
algumas das numerosas leituras do gesto sintomático de Godard, ancorado na história cultural da cinefilia francesa e numa vanguarda que Peter Wollen chamou de “europeia”, em oposição à vanguarda americana (BLÜMLINGER, 2013: 249-262).
4. Sobre a dialética da memória e do esquecimento nas Histoire(s) du cinéma, ver, entre outros, Aumont (1999). 5. É preciso lembrar que as Histoire(s) du cinéma foram igualmente mostradas no cinema e que existe até mesmo uma versão mais curta, condensada em 84 minutos, intitulada Moments choisis des Histoire(s) du cinéma (2004), feita para salas de projeção. Os oito capítulos da versão integral foram também mostrados em contextos de exposições, como no dispositivo de visão de Dan Graham, com transparências e reflexos entre os espaços de visão, apresentado na Documenta de 1997, dirigida por Catherine David. 6. Os estudos sobre o found
footage e a remontagem, com os quais contribuí (BLÜMLINGER 2013), se acumulam há alguns anos. Sem ter a pretensão de exaustividade, podemos citar, depois de Tom Gunning, William Wees e Bart Testa, alguns autores como Marco Bertozzi, Livio Belloï, Nicole Brenez, André Habib, Sylvie Lindeperg, Patrick Sjöberg, Jeffrey Skoller ou ainda Georges Didi-Huberman.
arquivo, para uma nova ficção ou, ainda, para a potência do surgimento. Se a remontagem das Histoire(s), devido à sua extrema fragmentação, constrói um bloco de sensações e dá acesso à “própria coisa” que Deleuze chama de imagem-tempo, a remontagem de milhares de filmes de ficção durante 24 horas, como acontece em The Clock, de Marclay, produz um outro tipo de carga memorial: aqui, o espectador se encontra ainda mais orientado para a representação, uma vez que alguns planos ou trechos, por sua duração, produzem a metáfora na imagem de que fala Deleuze, criando objetos de memória providos de aura. O fato de que, em Marclay, o princípio da escolha dos trechos seja eminentemente conceitual (a presença de um indicador de hora no som ou na imagem, sincronizado com o tempo real da recepção), conduz o espectador a uma tripla posição reflexiva: sua atenção se volta para o modo de representação do tempo nos filmes citados (e assim, de uma certa maneira, para a sua lógica narrativa), para o trabalho prévio de pesquisa sobre esses momentos precisos nos arquivos, nas bases de dados ou nas coleções, e para a sua própria capacidade de identificar, reconhecer e, até mesmo, de se lembrar desses filmes. Godard, por sua vez, cria com as suas misturas densas de imagens e sons uma consciência do efeito amnésico do cinema4 e de sua forma de experiência sensível. Se o conjunto de capítulos das Histoire(s) foi, antes de tudo, criado para a televisão e destinado a uma fruição individual e privada, posteriormente modulável, com o suporte DVD,5 a força da instalação de Marclay reside em desafiar o espectador a determinar a duração do visionamento em função de seu tempo de passagem pela exposição e a escolher, assim, momentos precisos no interior do espaço-tempo de um dia. É por isso que o atrativo principal de The Clock está na experiência exacerbada da consciência do tempo. E é por isso também que o dispositivo de visão torna-se crucial nesse contexto. Várias outras obras, ao retomarem planos de arquivos, avaliam a qualidade epistêmica do cinematógrafo e levantam questões sobre a unicidade da experiência característica do visionamento e da escuta das imagens e dos sons. Mas o objetivo, aqui, não é, mais uma vez, alimentar a teoria do filme de found footage ou do filme de montagem.6 Tentaremos, sobretudo, uma abordagem estética do gesto da retomada em filmes que colocam em cena o próprio dispositivo do arquivo, obras cuja forma é a do 146
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filme-ensaio. No caso, três filmes que tornam sensível, sob formas diversas, a historicidade dos planos retomados, o que os inscreve numa lógica arqueológica.
Arquivo vivo Num filme-instalação da artista portuguesa Filipa César, vê-se uma citação célebre, proveniente de um curta metragem de Alain Resnais e Chris Marker: “Um objeto morre quando o olhar vivo lançado sobre ele desaparece”.7 Cacheu (2012), retomando essa frase, mostra estátuas, como no filme citado, Les Statues meurent aussi (1953). Mas, diferentemente de Resnais e Marker, Filipa César não mostra a arte africana transposta para um museu europeu; ela se interessa pelas esculturas dos colonizadores deixadas na África. Trata-se de quatro estátuas gigantes, representando o poder colonial português, localizadas pela artista em um forte guineano, onde aguardavam restauração, e filmadas por ela em 2012: “As condições sempre vivas de produção dessas estátuas parecem mantê-las mortas-vivas”, diz uma conferencista numa sala de exposição, rodeada de espectadores, diante de um grande muro no qual o material reunido é projetado. Cacheu revisita, assim, outros filmes, como o de um cineasta da Guiné Bissau, Flora Gomes, autor do primeiro filme realizado depois da independência de seu país, Mortu Nega (1988). Um plano mostra duas das estátuas em questão, diante das quais passam duas pessoas. Nessa conferência-performance, filmada com grande cuidado, uma atriz comenta essas imagens e para diante delas, com seu texto nas mãos, como se fosse uma guia de museu. De vez em quando, ela entra na frente da imagem e seu corpo se torna, assim, superfície de projeção. “Cacheu” é o nome de uma fortaleza da Guiné-Bissau, da qual as forças portuguesas se serviram para assegurar sua presença militar e estabelecer o comércio de escravos no século XVI. O filme de Filipa César mostra planos desse antigo forte onde estão reunidas essas estátuas “mortas-vivas”, vestígios da era colonial e sinais da condição pós-colonial, confrontados aos rastros de sua “vida” anterior. Assim, vê-se as mãos de um arquivista guineano folheando um álbum de fotografias e parando na estátua de um general português particularmente violento, Teixeira Pinto, colocada sobre o pedestal. A imagem
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7. Essa frase do filme
de Alain Resnais e de Chris Marker (autor do comentário), continua assim: “[...] e quando tivermos desaparecido, nossos objetos irão para onde mandamos os objetos dos africanos: para o museu”.
é acompanhada de uma outra frase das Statues de ResnaisMarker: “Um dia, por sua vez, nossos rostos de pedra se decomporão”.
8. Chris Marker havia, na verdade, formado cineastas guineanos, ajudando-os a filmar o engajamento na luta pela libertação e transformação política da Guiné. Esses planos provêm, provavelmente, de um desses cineastas. Ver o testemunho de Anita Fernandez no Arsenal, no contexto do programa “Living Archive”, de 17 de junho de 2013. 9. O Arsenal — Institut für Film und Videokunst (conhecido inicialmente pelo nome de Freunde der Deutschen Kinemathek e fudado por Ulrich e Erika Gregor) reuniu em cinquenta anos uma coleção de mais de 8.000 filmes. “Living Archive”, um vasto programa de valorização desses arquivos, religa a pesquisa, a programação e a criação artística contemporânea, visando assim não apenas a possibilidade de conservação dos arquivos mas, também, seu papel na formação do novo na arte. Ver Schulte Strathaus et al. (2013).
A conferencista de Cacheu mostra, então, um trecho de Sans soleil (1983), de Marker, o filme que, segundo ela, teria encarnado visualmente essa frase premonitória de 1953. De repente, ouve-se uma outra voz feminina, a de Alexandra Stewart, a voz do filme de Marker em sua versão inglesa, evocando a liberação da Guiné-Bissau por meio de planos que mostram estátuas guineanas derrubadas: “Por que um país tão pequeno e tão pobre interessaria ao resto do mundo? [...] Quem se lembra de tudo isso? A História joga suas garrafas vazias pelas janelas”. Durante a projeção desse trecho, a atriz se afasta, e o efeito da projeção é tal que se pode mensurar com intensidade a confusão temporal de Sans soleil. A precisão do trabalho de montagem de Cacheu permite, justamente, intuir até que ponto essas imagens de Sans soleil não são meros vestígios de um acontecimento (a derrubada das estátuas), mas imagens carregadas de uma energia que as conduz alhures, na direção de espectadores futuros, sem que esse destino possa ser canalizado para fins políticos. É justamente essa falta de destinação ou de determinação – o valor de “garrafa vazia” dessas imagens, tão bem definido por Marker –, que confere, por sua vez, uma certa potência aos planos das estátuas, hoje à espera de restauração.8 Cacheu faz parte do projeto “Fantasmas da liberdade”, dirigido por Tobias Hering, responsável pelo programa “Living Archive”, do Arsenal, em Berlin,9 com a colaboração de Filipa César e Catarina Simão. Esse projeto reúne filmes realizados durante períodos de transformação política ou neles inspirados, ou que são, eles próprios, a expressão de um “tempo novo” (HERING, 2013: 110). Filipa César havia descoberto nos arquivos do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA) uma coleção de filmes militantes dos anos 1970, período de luta contra a dominação portuguesa. Com a coleção em estado de deterioração, Filipa César (2013: 46) quis tirar esses “fantasmas de vinagre” de suas latas e catalogá-los, para que se pudesse, em seguida, conserválos, projeto que ela conseguiu lançar a partir de sua própria atividade de artista e cineasta. Aqui, a dimensão espectral não se deve apenas ao estatuto precário dos filmes da descolonização, da resistência e da emancipação, geralmente mal conservados, ou à própria ideia de
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liberdade que eles representam, ou, ainda, ao fato de que, por demais ancorados nas esperanças de seu tempo, esses filmes com frequência produzem anacronismos. Ela provém, antes, de uma pesquisa, no seio dos arquivos, daquilo que Hering (2013: 111) chama de um “terceiro cinema”:10 uma espécie de cinema em devir, para além das utopias e das representações, um cinema que desestabilizaria o pacto em torno do seu próprio direito de liberdade; um cinema que levaria em conta, nesse face-à-face entre o antigo colonizado e o pós-colonizador, a existência de um terceiro, que seria “o outro do outro”, no sentido de Derrida (2001: 85-86), que apareceria, no seio de uma impossibilidade, enquanto possibilidade da ética.
O efeito fantasma Assim, a cena e a performance podem servir para expor o arquivo como processo de uma pesquisa e os documentos-filmes como objetos vivos, dependendo do olhar de quem os ausculta. Nessa perspectiva, o desafio do documentário Face aux fantômes (2010), realizado por Jean-Louis Comolli, com Sylvie Lindeperg, foi tornar sensível a espessura das fontes, mostrando, em ato, o pensamento e o método da historiadora. Trata-se de “adaptar” um livro11 sobre a historicidade das imagens utilizadas em Nuit et brouillard (1956) de Resnais, uma pesquisa arqueológica sobre a gênese e a recepção do filme, logo, sobre o exato conhecimento que orientou sua realização e sobre o contexto político e cultural em que ele iria circular a seguir. A mise en scène a Comolli optou, como a de Filipa César, pela projeção de trechos e pelo recurso a uma conferencista. Nesse dispositivo, portanto, a autora do livro se torna a coautora do filme, mas, sobretudo, uma espécie de atriz. Aqui, o lugar da cena não é mais uma galeria, mas um estúdio de filmagem, com acessórios variados: livros, fotografias, documentos escritos, todo tipo de projetores e aparelhos midiáticos. O primeiro plano mostra os trilhos dos travellings (du filme de second niveau) do próprio filme de Comolli. Para quem conhece o tema do livro, esses trilhos conduzem à essência do parti pris de Resnais: filmar Auschwitz (e seus trilhos) dez anos depois, a cores, e colocar, assim, de antemão, uma distância entre o tempo dos arquivos e o tempo da filmagem. Comolli retoma essa lição para nos fazer entender, por meio dos arquivos e da micro-história na qual sua “atriz” nos mergulha, a relação que
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10. As formas possíveis de
um “terceiro cinema” (no sentido do manifesto de 1969 de Octavio Getino e de Fernando Solanas), que se descolonizaria em vários níveis e não se situaria nem do lado do cinema industrial americano nem do lado de um cinema de autor europeu, foram tema de diversos debates ideológico-estéticos ao longo dos anos 1970 (HENNEBELLE, 1979).
11. Nuit et brouillard. Un film
dans l’histoire (LINDEPERG, 2007).
12. O neologismo Schlagbild
foi criado por Warburg no contexto de sua iconografia política da pesquisa das imagens-fala. Um Schlagbild é, ao mesmo tempo, uma espécie de imagem-choque e uma imagem de marca, funcionando como um Schlagwort, uma palavrachave ou um cliché que circula nas mídias. Ver Diers (1997).
se constrói entre espaço de experiências e horizonte de espera, principalmente no que diz respeito à distinção entre campos de concentração e campos de extermínio. A mise en scène, bastante complexa, nos apresenta uma espécie de investigação, conduzida por Comolli, ao interrogar Lindeperg no local, manipulando documentos, ouvindo registros sonoros, visionando fotografias e filmes, às vezes diante de uma telinha, outras vezes face à imagem projetada, a fim de destrinchar o filme de Resnais e melhor apreciar sua lógica de composição. Comolli dialoga com Lindeperg, compara Nuit et brouillard a outros documentários da época, confronta o filme ao que haviam dito, então, os historiadores, mostra a circulação material das imagens de arquivo e cria, assim, uma alternância entre a reconstrução do saber e das escolhas políticas do pós-guerra e a evolução de nossa cultura histórica nos últimos cinquenta anos. O que se torna evidente, graças à fala da historiadora, é como se faz a história, como essa relação entre arquivos e história se constrói e como a escrita da história e a de um filme podem entrar em conflito com as questões de memória. Face aux fantômes amplia a montagem de Nuit et brouillard no espaço e no tempo, enriquecendo-o, graças a um dispositivo aberto — inclusive às dimensões opacas do anarquivo —, graças a outros documentos e testemunhos e, sobretudo, a uma leitura erudita das suas imagens singulares, do seu comentário e da sua música. Dessa forma, o agenciamento preciso de Resnais, às vezes criticado ao longo dos anos, é explicado por meio de uma abordagem genealógica, que traz à luz os desvios que “deram origem ao que existe e que é válido para nós”. Juntos, o cineasta e a historiadora se colocam, eles próprios, face aos fantasmas, para avaliar o estatuto dessas imagens de corpos marcados. Comparadas a tantos filmes (de informação, de propaganda) do imediato pósguerra, essas imagens aparecem, no filme de Resnais, como que rarefeitas, irredutíveis ao papel de provas, com viés político. Os planos e as fotografias dos internos não aparecem como “imagens impactantes” (no sentido do Schlagbild de Warburg12). Eles são apresentados com precaução, dotados de um fora de campo e de uma distância introduzida, entre outros, pelo efeito de real dos lugares revisitados. Assim, Comolli projeta, por exemplo, um trecho de Nuit et brouillard no qual vemos um travelling dos alojamentos vazios de Auschwitz, acompanhado pelo comentário de Jean Cayrol, sublinhando os limites dos planos rodados por Resnais: “desse dormitório de tijolos, desses sonos ameaçados,
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só podemos mostrar-lhes a casca, a cor”. Face aux fantômes analisa o efeito desse “enquadramento” dos arquivos feito por Resnais, dessa visita dos lugares que estão se tornando lugares de memória. “Essas imagens, previne Lindeperg, se dirigindo a Comolli, não permitem apreender o acontecimento, elas são, de certa forma, impotentes”. A emoção, nesse filme, nasce da mise en scène de um encontro entre um filme e uma pesquisadora. A extrema atenção de Comolli à narrativa dessa atriz historiadora de hoje, que ele filma sempre em planos aproximados, sua maneira de fazer ouvir as vozes dos historiadores testemunhas da época, de ver os detalhes de cada documento fotográfico ou de projetar imagens do filme de Resnais, para compreender sua organização, tudo isso contribui para produzir uma espécie de laboratório sensível. Essa arqueologia coloca em evidência o risco que o cineasta corre quando “tapa buracos” (assim Veyne qualifica a tarefa do historiador), tentando encontrar uma forma artística. Não é somente do ponto de vista do presente e de um saber histórico concernente à morte das pessoas filmadas que certas imagens de arquivo criam um efeito-fantasma. Referindo-se, em seu último livro, à obra literária de Winfried Georg Sebald e aos filmes de Marker, Lindeperg (2013: 122) mostra como a textura evanescente dos planos — seu corpo material —, que torna-se particularmente pregnante com uma visão imaginada em slow motion, pode contribuir para “rasgar o véu da propaganda” de um filme nazista sobre o campo de Terezín, que, transfigurando-os em fantasmas, tornou “eternos” os “seres frágeis e ameaçados” que registrou. Ela mostra, assim, a ambiguidade e a singularidade de toda experiência afetiva dos planos provenientes do passado. Nesse contexto, é importante notar que o exemplo poético escolhido — o visionamento de Theresienstadt imaginado por Sebald em seu romance Austerlitz — implica a projeção da cópia de um filme sobre o qual o tempo se inscreveu, e não de um filme restaurado e digitalizado. Mesmo se podemos dizer, com Derrida (1995: 132), que o arquivo é a priori, espectral, “remetendo sempre a um outro, cujo olhar é impossível cruzar”, cada filme situa o espectador de maneira diferente e singular diante dos fantasmas. E se Georges Didi-Huberman (2002: 67), a princípio, também atribuiu à imagem “sobrevivente” (no sentido de Warburg) um valor espectral, visando exatamente seu efeito de aparição e sua qualidade de rastro, por outro lado, ele não leva em conta as implicações de sua sacralização, ao comentar a conhecida posição de
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Godard com respeito às “imagens que faltam” do nazismo, aquelas que teriam documentado o ato de destruição dos judeus (ver DidiHuberman 2003: 206, e Lindeperg 2007: 111). Nesse contexto, a acepção dada à palavra “sobrevivência” por Yosef Yerushalmi (1993: 151-152) e Derrida (1995: 96) parece ter uma nuance importante: não é o retorno do espectro, “mas a sobrevida de um excesso de vida que resiste ao aniquilamento”.
O corpo do arquivo No que se refere ao cinema enquanto mídia fotográfica, a ideia do excesso atravessa as teorias das imagens desde os anos 1920, mas raramente no sentido de Yerushalmi. Para Siegfried Kracauer (1927: 59), por exemplo, para quem as fotografias constituem, em sua totalidade, uma espécie de arquivo, um “inventário geral da natureza”, mas de uma natureza “condenada a querer dizer”, são o excesso quantitativo das imagens fotográficas, sua acumulação e o continuum espacial, a lógica de semelhança produzida pelo aparelho perspectivo, indutora de um efeito ulterior de desagregação dos elementos, são esses excessos que entravam sua função de memória e colocam em perigo seu valor histórico. Para Kracauer ( 56), o fato do mundo ter se tornado fotografável eterniza o presente fotografado: “Ele parece ser salvo da morte; na verdade, ele fica exposto a ela”. Assim, os jornais ilustrados (sobretudo os americanos) produzem, aos olhos de Kracauer, uma tempestade de fotografias que resultam na “indiferença ao que as coisas querem dizer”. Ao mesmo tempo, seguindo sua teoria ontológica, a fotografia implicaria, em si, uma “realidade fantasmática” (53), ela tornaria presente o mundo dos mortos “na sua independência em relação aos humanos” (59). A questão que se coloca consiste, evidentemente, em saber como organizar de outra forma um inventário desse tipo, sem ter que se submeter ao contexto de uma cultura industrializada, e em que medida as novas mídias podem contribuir para isso. O próprio Kracauer oferece uma visão utópica do problema no final de seu texto, visando o cinema e suas capacidades de montagem. Bem mais tarde, em 1986, Allan Sekula, em um texto inaugural inspirado por Foucault, desenvolve uma ideia bem diferente de arquivo em geral: na medida em que a omnipresença da fotografia na vida cotidiana introduz, a partir do século XIX,
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o fantasma panóptico de um arquivamento do corpo humano, a fotografia teria reunido, de um modo geral, duas funções da imagem — “honorífica” e “repressiva” —, sem que elas pudessem ser claramente separadas ou atribuídas, respectivamente, à vida burguesa e à realidade policial. Segundo Sekula (1986: 235), os retratos teriam, de maneira implícita, ocupado um lugar no seio da hierarquia social, com a vida privada se mantendo “à sombra” de dois olhares públicos, um voltado para o alto e outro para baixo. Sekula analisa, por exemplo, como a invenção do criminoso moderno, inscrita em dois grandes paradigmas epistemológicos (a frenologia e a fisiognomonia), não pode ser dissociada da construção de um corpo respeitoso da lei. Ele fala, nesse sentido, de um “arquivo de sombras”, uma espécie de arquivo geral, posicionando, inclusive, os indivíduos no interior de um terreno social: “Esse arquivo contém arquivos subordinados, territorializados, cuja interdependência semântica é, normalmente, obscurecida pela “coerência” e pela “exclusividade mútua” dos grupos sociais inscritos em cada um deles”. Em um arquivo geral desse tipo, os rastros visíveis dos corpos dos dirigentes políticos e dos chefes encontram o seu lugar, da mesma forma que os dos corpos dos criminosos, dos loucos, dos “não-brancos” ou dos pobres. Desse ponto de vista estrutural, o arquivo fotográfico pode, então, ser compreendido como um sistema epistemológico, técnico e social que se concretiza em uma instituição, “fornecendo uma relação de equivalência geral entre as imagens” (SEKULA, 1986: 242). Daí a importância da materialidade dos arquivos e, portanto, do lugar deles, de seus suportes e de seu sistema de inventário: “O artefato central desse sistema, diz Sekula, não é o aparelho fotográfico, mas o armário de classificação” (241-242). É, justamente, essa dimensão estrutural e material que o documentário The Halfmoon Files (2007), do cineasta berlinense Philip Scheffner traz à tona, a partir de uma pesquisa arqueológica em torno do dispositivo complexo dos arquivos multimídias criados durante a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, em um campo de prisioneiros de origem extraeuropeia, chamados, outrora, de “soldados coloniais”. A concentração deles perto de Berlin, no Halbmondlager de Wünsdorf, inicialmente prevista para criar um djihad a serviço das forças da Tríplice Aliança (LANGE, 201013), estava associada a um quadro científico que tinha por objetivo o recenseamento
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13. Halbmondlager significa
“campo da lua crescente”. Nele, os alemães internavam, sobretudo, os “soldados coloniais” muçulmanos.
antropológico e linguístico desses soldados pelas novas mídias. O trabalho artístico do filme, como constata Friedrich Balke (2009: 61), consiste em devolver a esse dispositivo complexo de formação de um saber “sua dimensão de acontecimento e sua presença [Gegenwärtigkeit] espectral”.
14. Num documento fotográfico, vemos a implicação dos corpos nesse processo de gravação em disco: diante de um imenso corneto, estão os prisioneiros, os cientistas lendo fichas de papel e os técnicos controlando a distância correta da boca da pessoa que fala, em relação ao corneto. 15. Um livro alemão de 1916, intitulado O circo étnico de nossos inimigos, é apresentado em sua historicidade midiática: o livro é lido e rabiscado por uma garotinha que ocupa o espaço vazio embaixo das fotografias dos “soldados coloniais” recrutados pela Inglaterra ou pela França e transformados em animais treinados por seus mestres colonizadores.
The Halfmoon Files é pontuado por longos momentos de tela preta, durante os quais ouve-se o barulho dos arranhados dos discos produzidos em laboratório pelos pesquisadores e técnicos, nos quais foram gravados, segundo um procedimento padronizado, números, contos, listas de palavras, lidas por prisioneiros africanos ou indianos. Algumas fotografias, cuidadosamente retomadas e comentadas, permitem apreciar a mise en scène do registro das línguas por uma equipe dos arquivos fonográficos, intimamente ligada às pesquisas antropométricas feitas com instrumentos óticos. Além da fotografia, do cinema e de diversos instrumentos de medida, servia-se de um fonógrafo e de discos para gravação durável das falas dos prisioneiros.14 É, então, numa cena científica, que se produz a leitura dos textos prescritos e, também, a produção dos sons por meio de peças de museu. Outras fontes, encontradas na cidade de Wünsdorf e apresentadas como “todo o arquivo da história militar da Alemanha”, dão a ver o contexto cultural e político desse tipo de pesquisa antropológica, desenvolvida no contexto de uma espécie de zoológico humano.15 Interessando-se por lendas e dispositivos de apresentação das imagens e dos sons arquivados, o filme desloca e desconstrói o olhar do poder científico, estreitamente ligado aos poderes militares e coloniais. Há, em Halfmoon Files, dois registros sonoros que ecoam um no outro, e dos quais Scheffner se serve para exemplificar a ideia de arquivo geral, no sentido de Sekula, reunindo arquivos territorializados, mas interdependentes, no plano semântico: um deles deixa ouvir as vozes de prisioneiros originários da Índia; o outro, a voz do imperador Guilherme II. A dimensão espectral dessas vozes sem corpo se transforma, ao longo do filme, numa espécie de sobrevivência resistente (no sentido de Yerushalmi), graças à existência de espaços de sensações, que produzem o não-sincrônico, o desvio, a interrupção, a confusão. “O imprevisto não é desejado”, explica o comentário, introduzindo a escuta “cega” de um disco em que um prisioneiro chamado Baldeo
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Singh pronuncia “guten Abend”. O plano seguinte mostra uma ficha amarela desbotada, indicando a inscrição de “anotações especiais” por parte dos cientistas. Nesse documento, vê-se uma frase rabiscada em alemão: “No final, sem ser solicitado, Baldeo Singh grita boa noite”. Desse “boa noite”, que forma uma espécie de punctum sonoro, passamos a um barulho indiscernível. Diante de uma luz branca, a voz do cineasta recomeça o seu comentário para explicar a dificuldade desse procedimento científico rigoroso, ameaçado por irrupções e interrupções de todo tipo. Indo dessa luz branca para uma bruma incerta e uma paisagem desfocada, o comentário abre o espaço de possibilidades e os “buracos” do historiador, especulando sobre a escolha dos temas, dependente das informações pessoais dos prisioneiros, difíceis de serem verificadas: por exemplo, esse homem que talvez não seja originário da região do Punjab, mas que fala o punjabi e que prefere passar na barraca dos cientistas para fazer gravações, a fim de escapar ao seu trabalho cotidiano ou, simplesmente, “porque ele quer falar com alguém”. Ou ainda: um outro prisioneiro, escapando à regra, transforma em riso a frase prevista pelos cientistas: “Eu sou um prisioneiro de guerra em 1914. O imperador alemão cuida muito bem de mim. Heil, Heil, Heil!” E o filme nos faz ouvir, pouco depois, esse mesmo imperador, proferindo seu discurso nacionalista, dirigido “ao povo alemão”, para anunciar a entrada da Alemanha na Grande Guerra: “Chegou a hora de sacar a espada. O inimigo nos ataca em plena paz. De pé! Armas em punho!” Essa gravação sonora de um discurso pronunciado, na verdade, por Guilherme II em agosto de 1914, data do fim da guerra. Ela foi feita pelo mesmo cientista que havia organizado o registro das vozes dos prisioneiros de guerra, Wilhelm Doegen, diretor da comissão prussiana dos arquivos sonoros. Em vez de sincronizar essa voz com uma fotografia que também, parece, à primeira vista, prover o momento histórico do discurso, The Halfmoon Files nos leva de volta ao dispositivo de gravação da voz, minuciosamente descrito nas memórias de Doegen. Religando dois tempos e duas mídias distintas, Scheffner coloca em relação três regimes: o regime político e simbólico do imperador que, num elã de reconstituição, quer guardar um
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vestígio de seu discurso inaugural da Grande Guerra, mesmo quando fica claro que vai perdê-la; o regime técnico, que permite dissociar o tempo inicial de produção dessa voz (na sacada do castelo) do tempo de seu registro para a eternidade; enfim, o regime epistêmico, no qual se ancora essa prática, notadamente pela ideia da criação de um “museu das vozes de todos os povos”, no momento em que se inventa “a Primeira Guerra Mundial”. Scheffner mostra, então, como a construção do corpo do outro (classificado como não-branco pelos antropólogos e como prisioneiro de guerra pelo poder imperial) se associa, no âmbito de um arquivo geral, à construção do corpo do imperador. Esse último, ultrapassando seu corpo real, mortal e falho, repetindo seu discurso ao povo alemão para integrá-lo na eternidade espectral do arquivo, institui o que Louis Marin (1981) chama de fantasma de um corpo único, fundado não mais apenas no nome próprio e seus ícones, mas apoiado também no gramofone e no cinematógrafo, os dois “sistemas de inscrição” (Kittler, 1986) mais modernos da época – nem que seja para construir e afirmar no final da guerra a legitimidade política de sua autoridade. Assim, mostrando não somente os objetos e os documentos, mas também as relações entre as práticas que os objetivisam e as práticas vizinhas nas quais essas relações se ancoram, o filme se torna, ele próprio, arqueológico. O atrativo desses documentos visuais e sonoros nasce da capacidade do filme de dotá-los de uma rede de extracampos que permite adivinhar o próprio princípio que regia, na época, sua visibilidade ou sua audibilidade, num ato de sincronização que conserva a dimensão não-sincrônica daquilo que Koselleck (2003) chama de “camadas do tempo”. Rumo à ficção Incluindo, numa abordagem que se pode qualificar de “genealógica”, os acidentes, os ínfimos desvios ou, ainda, as reviravoltas das imagens e dos sons provenientes dos arquivos, os procedimentos dos três filmes comentados até aqui se situam na fonte da fábrica da história. Isso não quer dizer, simplesmente, que eles estão ligados, enquanto fábulas, à narrativa dos códigos fundamentais de uma cultura (de suas técnicas e de seus esquemas perceptivos), mas que eles levam em conta uma taxinomia que conduz a um pensamento “sem espaço”, que Foucault (1966: 9) chama, em Les mots et les choses, “heterotópico”: categorias “sem
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eira nem beira, mas que, no fundo, repousam num espaço solene”, de inspiração borgesiana, em que uma desordem heteróclita e inquietante perturba a dimensão fundamental da fábula e a ordem existente de uma classificação. Interessando-se, antes de tudo, pelo que torna os documentos em questão visíveis, audíveis ou legíveis, cada um dos cineastas inventa um espaço do possível que tende à ficção: por meio de uma performance que inclui a projeção de bobinas encontradas e a apresentação da pesquisa das estátuas coloniais ainda “vivas”; pela lógica de um livro sobre a trajetória dos materiais tratados num filme e a encenação de uma historiadora se transformando em atriz, no duplo sentido do termo; e, enfim, pela exposição das técnicas culturais que produzem um arquivo, o estabelecimento de ligações entre os campos heterógenos dos mitos e saberes e a arte da montagem que os integra em blocos de sensações. Nas três obras aqui evocadas, aparecem dois modos de afeto: um deles passa pela mise en scène do dispositivo e pela sensibilização aos materiais; o outro, pelo arquivo imaginado, numa abertura para a ficção. Mas há, também, na criação contemporânea, uma tendência geral a um devir ficção das imagens de arquivo. Não no sentido de um gênero televisivo paródico, o mockumentary, que faz referência às convenções de utilização dos arquivos no documentário, mas no sentido daquilo que Deleuze (1985) chama de “potências do falso”, valorizando o eventual efeito de fabulação dos planos do real. Para Foucault (1977: 236), “existe a possibilidade de trabalhar com a ficção num registro de verdade, de induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, de forma que o discurso de verdade possa suscitar, fabricar alguma coisa que ainda não existe e que, então, se “ficcionaliza”. No cinema, a riqueza das formas nesse campo é tal que, à guisa de conclusão, podemos apenas assinalar algumas delas, sem nenhuma pretensão de exaustividade. Há, primeiramente, o “gênero” do ensaio, que mistura ciência e arte, verdade e ficção, para desembocar não no terreno das certezas, mas em uma rede de conexões. Assim, em sua videoinstalação Lettre au pilote qui a désobéit (2013), Akram Zaatari faz referência a um episódio da guerra de Israel contra o Líbano em 1982, que ele próprio, ainda criança, havia documentado. Mas em vez de revelar a identidade do piloto israelense em questão, o
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filme se atarda em um certo número de objetos heteróclitos, como o livro infantil Le Petit prince, escrito pelo escritor-aviador Antoine de Saint-Exupéry durante uma outra guerra. Com frequência, a evocação de uma história possível passa, primeiramente, pela pista sonora. Um exemplo recente disso é Redenção (2013), de Miguel Gomes, dedicado, sem dúvida por essa razão, a Raul Ruiz e a Chris Marker. Essa fábula em quatro capítulos, relacionados a quatro vozes off, tem uma montagem heteróclita de imagens impactantes (Schlagbilder), provenientes de atualidades filmadas, fragmentos de filmes de família e trechos de filmes de ficção. É uma mistura de gêneros, submetida a uma lógica diacrônica. Redenção situa suas narrativas em quatro países europeus, em quatro momentos diferentes da história. Só se compreende os entrelaces enigmáticos dessas confissões graças às datas que aparecem na ficha técnica do final, com os nomes das personalidades históricas às quais são atribuídas essas lembranças fabuladas. Há também cineastas que inventam imagens de arquivo para melhor expor seu atrativo. É o caso do filme onírico Tren de sombras (Le spectre de Thuit, 1997), de José Luis Guerín, cujo título, “Trem de sombras”, se inspira do famoso texto de Gorki sobre a experiência inquietante do cinematógrafo. Guerín cria cenas mudas em preto e branco, no estilo do filme de família dos anos 1920. Esses planos “reencontrados”, registrados em suporte de prata, com seu claro-escuro particular acentuado pelo acréscimo de uma pátina de película usada, se juntam, no filme, a planos suntuosos em cores douradas, rodados em 35 mm no mesmo lugar, mas na penumbra outonal. O som contribui para a aparição de um mundo fantasmagórico de variações de luz e de sombra, que transforma esse estudo melancólico em homenagem poética às técnicas culturais e à memória do cinema. Enfim, há, ainda, os filmes de ficção que integram planos de arquivo (verdadeiros ou falsos), para criar efeitos múltiplos. É a longa história que tem Citizen Kane como vedete. Mas é raro que a emoção capaz de nascer desse tipo de incorporação seja suscitada por meios tão sutis como os que emprega Edgardo Cozarinsky em seu filme Nocturnos (2011), que segue a corrente de consciência de um homem errante na noite de Buenos Aires, depois de ter esperado, em vão, o retorno de uma mulher. Ao longo de encontros insólitos, de reflexões e lembranças, encadeadas numa série de travellings em ruas desertas, se superpõem, com intensidades variáveis, cenas dramáticas (de violência, de catástrofe, de repressão e de guerra),
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tiradas de filmes em preto e branco. Quanto mais progredimos nessa série de trechos superpostos, que nos levam, pouco a pouco, da ficção ao documentário, mais eles se impõem na ficção inicial, acabando por assombrar os lugares de Buenos Aires filmados nos dias atuais. São planos “reencontrados”, que escapam a qualquer classificação, a qualquer determinação: fiel a Borges, Cozarinsky mistura, assim, inextricavelmente, memória e sensação.
Tradução: Anita Leandro
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Farocki e
os arquivos
Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki Amélie Bussy Doutora em Artes (Historia, Teoria e Prática) pela Université Bordeaux Montaigne. Vinculada ao Laboratório CLARE.
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Resumo: Como a ficção pode ser um meio cinematográfico “apropriado” para retomar os arquivos? Como ela pode ser um processo respeitoso em relação às imagens e até mesmo produzir um ato potente de legibilidade, real, cinematográfico e, porque não, testemunhal? Este artigo propõe um questionamento sobre as virtudes ou “potências do falso” em duas sequências de filmes de Harun Farocki que retomam imagens de arquivo, com o objetivo de entender qual é o alcance de um comentário fictício, na perspectiva de uma história escrita com os meios do cinema. Palavras-chave: Harun Farocki. Ficção. Potências do falso. Comentário. Arquivos. Abstract: How can fiction be a « proper » way to retake archives? Can it be an approach respectful of the images so much as to create a real, cinematographic, strong manner to make the archives readable, and sustain their testimony? This article will investigate on two filmstrips where Harun Farocki retake archives with the “powers of the false” in order to understand what are the qualities of a fictionnal commentary in his writing of history. Keywords: Harun Farocki. Fiction. Powers of the false. Commentary. Archives. Résumé: Comment la fiction peut-elle être un moyen cinématographique “adéquat” pour reprendre les archives? Comment peut-elle constituer une démarche respectueuse des images et même fonder un acte de lisibilité puissant, réel, cinématographique et, osons-le, testimonial? Cet article se propose d’interroger les vertus ou “puissances du faux” dans deux séquences de films de Harun Farocki qui reprennent des archives, afin de saisir les qualités du commentaire fictif dans la perspective d’une histoire écrite avec le cinéma. Mots-clés: Harun Farocki. Fiction. Puissances du faux. Commentaire. Archives.
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Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
I. Introdução: o problema da ficção Não é raro, no cinema de Harun Farocki, encontrar uma crítica aos filmes de ficção e aos procedimentos por eles utilizados para escrever a História. Em Wie man sieht (Como se vê, Farocki, 1986), o cineasta monta, a pouca distância uma da outra, duas fotografias das ruas de Berlim, em 1919. Quando surge a primeira imagem, a voz off chama a atenção para os diferentes adereços que cobrem a cabeça de três homens fotografados: um boné de operário, um chapéu de empregado administrativo e um capacete de soldado. Armados, os três homens estão agachados atrás de grandes rolos de papel de impressão de jornal, que lhes servem de barricada. Em seguida aparece uma segunda fotografia dessa mesma Berlim insurrecta, quando a capital viveu a insurreição espartakista. Essa segunda imagem é a tal ponto parecida com primeira que o comentário precisa anunciar: “Soldados rebeldes de 1919”. Novamente, aparecem chapéu, boné e capacete. “É tão fácil confundi-los com soldados do governo! (…) Difícil é determinar, à primeira vista, quem se insurge e quem coopera!”, diz, então, o comentário. E, com efeito, desse lado da barricada, os mesmos tipos de chapéu sinalizam alguma coisa ao espectador. A originalidade da montagem comum às duas fotografias em Wie man sieht reside, exatamente, na “indecidibilidade” dos signos da imagem, que funcionam como meios de acesso à História desse período. Farocki propõe ao espectador a justaposição dessas duas fotografias, afim de apreender a questão do testemunho das imagens, interpelando, assim, a necessidade frequente na história de opor revolucionários e governo.1 Ora, acontece que essas duas imagens, sendo as mesmas e, no entanto, diferentes, encorajam o resgate de uma complexidade dos acontecimentos e das escolhas feitas pelos homens que deles participaram. Justamente, a sóbria relação estabelecida por Farocki entre as duas fotografias convida a pensar a história a partir da linha tênue que separa aqueles que foram seus atores. A força historiográfica dessa montagem só pode, no entanto, ser experimentada à luz de um outro comentário, que se refere, desta vez, ao cinema: face à essa difícil distinção dos dois campos – entre quem se insurge e quem coopera – o cinema de ficção teria encontrado uma saída astuciosa, diz Farocki. Ele teria dado sinais distintivos (como se distribui qualidades aos personagens de ficção – bons ou malvados) e teria atribuído, a
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1. Cada vez que lhe sugeriam,
para a trilogia Norte-Sul, a noção de “comparação”, o cineasta Johan Van der Keuken disse preferir a ideia de justaposição” (KEUKEN, Apud BOULEAU, 2013 : 777-778 ). Mesmo que não possamos desenvolvê-la mais adiante, nós a empregamos aqui devido à proximidade entre os intervalos empregados por Farocki et Keuken (fragmentação; intervalos entre as imagens; montagem em forma de constelação, ou seja, repartição de diversas fontes de imagens que se alternam e retornam ao longo da montagem). Aqui, a justaposição se refere, na realidade, à montagem mental feita pelo espectador, uma vez que Farocki insere entre as duas imagens da Berlim insurrecta uma entrevista com o doutor Cooley, fonte de imagem que retorna várias vezes em Wie man sieht.
um campo, “cartucheiras em cruz sobre o peito, por exemplo”. Se é impensável para o cinema de ficção não distinguir dois campos opostos e, talvez, até mesmo não separar bons e maus, Wie man sieht critica o sentido “pleno” dos signos do cinema de ficção, seu aspecto voluntariamente reducionista, a cartucheira em cruz sobre o peito sendo característica de um cinema que não confia no espectador para “ver” as imagens e apreender os homens na história, nem confia na capacidade do cinema em tornar-se um potente analista de imagens confusas, lacunares, cujas falhas representativas constituem, na verdade, o próprio lugar de seu testemunho, mesmo sem mostrar tudo. Dois anos depois, em Bilder der Welt und Inscrift des Krieges (Farocki, 1988), Harun Farocki criticará o telefilme Holocaust por ele apresentar uma versão kitsch do horror, enquanto que os historiadores falarão, alguns anos mais tarde, de uma americanização do Holocausto (WIEVIORKA, 2013: 153, 159; MAYERS, 2005). O problema colocado por esse telefilme não reside, no entanto, na dimensão “épica” do “drama” que foi essa série. A questão não diz respeito a sua qualidade nem a sua recepção. Ela tem a ver, na verdade, com as críticas implicitamente formuladas em Bilder der Welt contra a série. Preocupado com a veracidade, o diretor de arte da série televisiva teria se servido de um desenho do deportado e sobrevivente Alfred Kantor, afim de dar à ficção um aspecto “realista”. O decorador que seguiu os desenhos de Kantor, reproduzindo as indicações “DR Kassel” marcadas no vagão de um trem, se encontra exposto, em Bilder der Welt, à crítica do espectador. No entanto, a montagem de Farocki não questiona a pessoa do decorador e nem mesmo o realismo do detalhe, mas aquilo que o próprio desejo de realismo implica, ou seja, o procedimento por meio do qual a ficção apaga o sobrevivente e as razões de sua vontade de desenhar os campos de forma realista: a ausência e a interdição de fotografias no campo. De fato, colocando sua vida em perigo, sob risco de morte, Kantor desenhava esboços de Auschwitz, conservados e escondidos por seus companheiros detentos. O risco que eles enfrentavam, a necessidade de realismo do desenho, se encontram, literalmente, apagados na representação fictícia de Holocaust. O problema não é o realismo desse telefilme, mas o reemprego de um realismo ancorado nos próprios traços do desenho, um desenho que exige, na verdade, concretamente, cinematograficamente, não ser “traído” (RANCIÈRE, 2012: 66). O telefilme kitsch Holocaust 168
Sobre algumas ficções de arquivo na obra de Harun Farocki / Amélie Bussy
se serve dos detalhes do desenho de Kantor sem, no entanto, enfrentá-lo, sem propor, dele, um novo uso e uma visibilidade inédita para o presente.2
2. Do ponto de vista de
um pensamento sobre o reemprego das imagens de arquivo, questão que se coloca na prática dos cineastas, poderíamos opor utilitarismo e uso: “se servir” da imagem implica numa servidão do arquivo a um outro propósito ou representação (utilitarismo do arquivo); o uso, por sua vez, implica numa convocação dos valores da própria imagem reempregada (mesmo que ficcional, a retomada do arquivo leva em consideração a imagem, seus signos, sua matéria, sua produção).
Figura 1: O cinema de ficção teria encontrado uma saída astuciosa
Aquilo que as ficções do cinema têm dificuldade em realizar, o lugar da crítica, Harun Farocki torna compreensível aos seus espectadores, procedendo “de outra forma”.3 Em Wie man sieht, primeiramente, e, depois, em Bilder der Welt, a remontagem de duas imagens, com um intervalo entre elas, propõe uma legibilidade histórica dos arquivos, sem negar a dimensão material e indiciária das fotografias ou dos desenhos que Farocki retoma. O arquivo, na obra de Farocki, deve ser entendido na sua materialidade; deve-se prestar certa atenção à razão de ser das imagens, aos seus sinais, às necessidades de suas estéticas. A escolha de uma forma tem, na verdade, sempre a ver com uma maneira de ver o mundo e de mostrá-lo. No entanto, seria equivocado opor ficção e arquivo, sentido pleno do signo e trabalho em torno do vestígio, lacunar. Isso porque, por um lado, os documentários atribuem um valor pleno aos arquivos retomados (há uma positividade do arquivo em certos filmes que atribuem um valor probatório à imagem de arquivo, tida como capaz reproduzir o passado ou o de fazê-lo surgir na tela); por outro lado, os filmes de ficção trabalham com a capacidade do cinema de convocar o que desapareceu, de mostrar o que não podemos (ou não pudemos) mostrar... Talvez devêssemos nos perguntar, sobretudo, como é que as condições
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3. Ideia desenvolvida
igualmente por DidiHuberman no segundo e no quinto tomos de L’Oeil de l’Histoire, a propósito de Farocki e Godard. Na obra desse último, tratar-se-ia de “tornar necessária uma forma totalmente diferente de contar histórias” (DIDIHUBERMAN, 2015: 68). Sobre o cineasta Farocki, ele fala de uma “outra economia”, que “libera a potência do olhar” (DIDIHUBERMAN, 2010: 105-108).
4. O questionamento de
Bilder der Welt sobre a “vontade de controle do real por meio de sua redução, sua submissão ao visível” (ROLLET, 2011: 56) não seria uma questão para o cinema? E essa questão não corresponderia à crítica de Farocki às duas ficções evocadas, ou seja, essa “submissão” da imagem histórica, do desenho de Kantor, das fotografias de Berlin, a um discurso e uma representação que “controlam o real”?
para a retomada de uma imagem de arquivo ou para a narração de uma história confiam ou não na capacidade do espectador de traduzir os filmes, de ler as imagens.4 O problema não seria tão complicado se não concernisse, a fortiori, a questão da retomada das imagens e das vítimas dos campos. Presente com vinte anos de intervalo em Bilder der Welt (1988) e Respite (Farocki, 2007), a questão concerne intimamente o cinema de Farocki. Os procedimentos cinematográficos, mas também jurídicos e históricos relacionados ao tratamento dos arquivos foram sempre objeto de preocupação do cineasta, inclusive em um texto recente, intitulado “Comment montrer des victimes?” (FAROCKI, 2009), no qual ele se posiciona novamente contra a mutilação dos arquivos:
“O expert habitual explicava que os principais criminosos tinham, assim, escapado ao seu castigo. Para ilustrar seu argumento, o filme mostrava, alternadamente, nazistas e montes de cadáveres. Cada imagem durava em torno de três segundos. Essa forma de utilizar as imagens dos mortos é revoltante.” (FAROCKI, 2009: 16).
Difícil não pensar, trinta anos depois, no que o cineasta já dizia sobre o Vietnã: “Mostra-se uma imagem para trazer a prova de alguma coisa que ela não pode provar” (Farocki, citado por BLÜMLINGER, 2002: 13). Aí está o cerne da questão que animou o debate na França em torno da exposição dos quatro clichés dos membros do Sonderkommando e que a torna tão perigosa. Se Claude Lanzmann sempre se recusou a retomar qualquer imagem de arquivo, estabelecendo uma separação entre a prova pela imagem e a multiplicidade dos testemunhos oculares e orais, fundamentando toda a sua poética nessa exigência, o cinema de Harun Farocki – que é, essencialmente, um cinema de retomada – se apega a essas mesmas imagens que Lanzmann recusa, propondo uma crítica e uma nova legibilidade para elas. Para além de uma crítica da representação, as duas retomadas de imagens do cinema de ficção em Wie man sieht e Bilder der Welt continham, então, as questões a serem colocadas no âmbito de uma retomada ficcional das imagens de arquivo no trabalho de Farocki. A crítica ao telefilme Holocaust elaborada
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por Harun Farocki aponta para o fato de que o cinema precisa respeitar a matéria e a memória dos arquivos, uma vez que a escrita da história pelas testemunhas depende de sua retomada. Tanto nos filmes que ele critica, quanto em seus próprios filmes, o respeito pela memória das testemunhas residiria nos procedimentos utilizados para tratar os documentos. Haveria, assim, algo inerente aos arquivos a preservar e a não trair, quando são retomados para escrever a história. Mas será que a ficção, enquanto elemento “imaginativo” do cinema, não estaria mais propensa a desviar os arquivos do que, realmente, a respeitá-los? Em que medida uma ficção de arquivo pode dar acesso à história contida na imagem? No livro L’Épreuve du réel à l’écran (A provação do real na tela), François Niney evoca a potência do comentário nos filmes de Chris Marker, uma voz off geralmente poética, que lança mão de formas de interlocuções múltiplas e de formas epistolares, por vezes ficcionais. Ele evoca a presença, na obra de Marker, de um comentário imaginativo, para endereçar ao espectador as imagens retomadas, “re-tourner”5 essas imagens (NINEY, 2002: 93-112), ou seja, transformar as tomadas em retomadas, ou as retomadas em tomadas, ao ponto de questionar a capacidade do cinema de escrever o passado no “futuro anterior” (Ibidem: 106). De fato, a questão da ficção não pode ser tão facilmente descartada, quando se fala de cinema de arquivo. No final de seu livro, Niney consagra um capítulo às “Virtudes do falso”, tomando como exemplo L’Ambassade (Chris Marker, 1973) e a “interferência ficção/documentário” nesse filme que, embora rodado num apartamento em Paris, remete ao Chile de Pinochet. Sobre a “produção de verdade” do comentário ficcional, pode-se ler essa frase importante: “trata-se de fazer com que o espectador compreenda que a realidade, lá, ultrapassa essa ficção aqui” (NINEY, 2002: 305). Na mesma perspectiva das reflexões de Deleuze sobre as “potências do falso”, na Imagem-Tempo, seria, necessário, no entanto, aproximar a questão formulada pelo filósofo aos filmes de Jean Rouch e de Pierre Perrault, sobre o devir ficcional de pessoas reais (DELEUZE, 1985: 195-199), da questão específica da retomada dos arquivos. Num documentário, a ficção não poderia criar um devir ficcional de documentos reais que nos convidaria, como na obra de Rouch, a perceber o lugar em que o estatuto do arquivo muda de estatuto, passando, incessantemente, da condição de documento à de imagem de cinema?6
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5. Niney faz um jogo de
palavras com os verbos “tourner” (filmar) e “retourner” (“filmar de novo”, mas, também, virar do avesso; devolver; voltar atrás; provocar emoção, no sentido de “sacudir”). Nota da tradutora.
6. O documentário já admitiu
o uso da ficção há muito tempo (aliás, eles já foram separados algum dia?). Niney e Deleuze sublinharam muito isso. Nas duas obras que citamos, esses autores tentaram, cada qual ao seu modo, mostrar que o cinema era capaz de colocar em jogo o real, com seus próprios meios.
7. Informação talvez
desconhecida dos espectadores no momento em que ele realiza esse filme, em 1988, ou seja, depois do lançamento do Shoah de Claude Lanzmann, em 1985, e antes que o debate francês em torno das imagens dos campos não ganhasse tanto espaço, até chegar a episódios mais recentes. 8. Sylvie Lindeperg analisou
com muita fineza o quanto essas informações sublinham, com crueldade, “os efeitos de eufemização da legendagem dos clichés fotográficos” do Álbum de Auschwitz e remetem o espectador à sobrevivência e à “experiência dos testemunhos presentes nos lugares”, testemunhos que permitiram “reconhecer e ver o que estava inscrito na fotografia, mas que não podia ter sido lido nem interpretado” (LINDEPERG, 2008: 40).
Apesar de suas críticas severas à ficção, Harun Farocki não recusa, de modo algum a sua utilização. Muito pelo contrário, a ficção percorre seus filmes e sua aparição perturba, com conhecimento de causa, obras que acreditávamos documentais. Trata-se de reativar, no espectador, uma avaliação das imagens e de encorajar, nele, uma presença crítica face aos arquivos, que, muito frequentemente, tomamos pelo próprio passado, seu registro, sua reprodução. Em Farocki, a ficção sustenta o gesto da retomada; para não ofuscá-lo, ela o reitera: a ficção acentua uma certa verdade da imagem, evidenciando que os arquivos não são apresentados ao espectador mas re-apresentados e re-montados. Afinal, porque a ficção não é legítima para retomar uma imagem de arquivo, na medida em que, antes de ser histórica, uma imagem é, sobretudo, uma imagem? Mas, então, como ela pode ser um meio “apropriado”? Como ela pode constituir um procedimento respeitoso em relação às imagens e até mesmo produzir um ato de legibilidade potente, real, cinematográfico e, mesmo, testemunhal? É a partir dessas questões que propomos uma reflexão sobre as virtudes ou potências do falso nas duas sequências dos filmes de Harun Farocki aqui evocadas, construídas à base de imagens de arquivo, a fim de cernir as qualidades de um comentário ficcional, na perspectiva de uma história escrita com o cinema.
II. Isso é uma fotografia: Bilder der Welt e o comentário ficcional Que a ficção é “produtora de verdade” (NINEY, 2002: 320) para o arquivo e que ela é uma escolha adequada para recolocar em cena uma imagem, é algo comprovado por uma das sequências mais conhecidas e comentadas de Bilder der Welt. Ela começa com a aparição, discretamente reenquadrada e legendada, de uma fotografia da Aussortierung – a “Seleção”. Um pouco antes, Farocki havia nos informado, com essa mesma fotografia, que os SS tinham feito, de fato, imagens de Auschwitz,7 reunidas em um álbum folheado pelo cineasta. Se “a razão de ser desse álbum (...) continua misteriosa” (ROLLET, 2011: 65), Farocki tenta, assim mesmo, dar as informações de que dispõe sobre a proveniência das imagens, explicando, em voz off, de maneira simples e sóbria, que as fotografias que vemos foram tiradas por dois SS da seção “Effekten” (Efeitos).8 No entanto, parece que essas informações só têm importância em função de sua correlação com o cliché fotográfico que se segue. O estudo de Farocki não se debruçará
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sobre o “Álbum de Auschwitz” em seu conjunto nem sobre suas consequências. Em vez disso, deterá longamente o seu olhar sobre uma única fotografia: a de uma mulher no momento em que ela chega no campo, imagem feita, justamente, por um desses dois SS. A imagem da chegada ao campo vem logo após a da “seleção”, vista em plano aberto. Uma mulher fotografada olha para nós. Atrás dela, vemos uma fila de homens que esperam. Uma mão pega o paletó do primeiro deles, deixando transparecer que se trata do gesto da triagem. Sylvie Lindeperg levanta a hipótese de que a força dessa fotografia viria desse encontro entre o pano de fundo da “seleção” e a passagem pela triagem (COMOLLI e LINDEPERG, 2008: 31). Juntos, os dois planos da foto formariam o “punctum” dessa imagem.9 Sylvie Rollet, quanto a ela, prefere falar do conjunto de reenquadramentos sucessivos operados por Farocki para mostrar o rosto dessa jovem, capturado na foto:
Com efeito, a retomada da fotografia da jovem na rampa de Auschwitz é acompanhada por uma série de reenquadramentos que, isolando-a do resto dos deportados, produzem uma singularidade. Enquanto o fotógrafo nazista registra uma operação de rotina (…), Farocki enquadra o acontecimento único de um destino particular. (ROLLET, 2011: 69)
Rollet dá continuidade, aqui, de maneira notável, ao estudo dessa imagem, pois desta vez são três reenquadramentos sucessivos realizados pelo próprio Farocki na montagem que permitem compreender, de outro modo, como essa foto nos dá acesso ao destino dessa mulher como um destino singular. O comentário ficcional empregado na sequência produz igualmente essa singularidade. Mas se ele reitera o caráter pungente dessa imagem, é, antes de tudo, porque insiste no gesto do fotógrafo:
Uma mulher chegou em Auschwitz. O fotógrafo instalou sua câmera. E quando essa mulher passa diante dele, ele tira uma foto – da mesma forma como ele olharia para ela na rua, porque ela é bonita. A jovem vira o rosto, apenas o suficiente para captar esse olhar fotográfico e ver, de soslaio, o homem que olha para ela. É assim que, numa avenida, seu olhar esquivaria o de um senhor atento, para ir se pousar sobre uma vitrine. Por meio desse olhar furtivo, ela tenta se transportar para um mundo em que há avenidas, senhores, vitrines, longe daqui. (FAROCKI, 1988)
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9. Barthes definiu,
inicialmente, o punctum na Câmera clara, como o encontro do primeiro plano e do pano de fundo –freiras passando atrás de soldado é o que faz da fotografia da insurreição na Nicarágua mais do que uma fotografia de guerra que, ao contrário, solicitaria de nossa parte apenas um olhar estudioso (BARTHES, 1980: 42-44).
10. Difícil não pensar nessa
célebre fotografia de um soldado americano com sua arma apontada para a têmpora de um vietnamita. Harun Farocki reconstitui essa cena com crianças e acrescenta um terceiro personagem, o que tira a foto, mostrando, assim, a mise en scène do documento. É uma forma de apresentar, de novo e pelos meios da ficção, um fora de campo/ contracampo da imagem, no entanto implicitamente presente: o do produtor da imagem, que aperta o botão do aparelho (Voir BLÜMLINGER, 1995: 30).
Entre as imagens do Álbum de Auschwitz, essa é, certamente, uma das únicas que, pelo olhar dirigido ao fotógrafo, nos assinala essa condição da fotografia: para que uma imagem seja produzida, é preciso um sujeito fotografando e um sujeito fotografado. A voz off insiste exatamente nesses elementos. “Ele aperta o botão”, ela diz. “Quando essa mulher passa diante dele, ele aperta o botão, da mesma forma que ele olharia para ela na rua, porque ela é bonita”. Em seguida, vem a ficcionalização do olhar da mulher: “É assim que, numa avenida, seu olhar se esquivaria do olhar de um senhor atento, para ir se pousar sobre uma vitrine”. O comentário ficcional insiste na produção do cliché fotográfico. Ele revela que, no momento da tomada, a imagem precisou de mais do que da presença dessa mulher, solicitando, também, a presença do fotógrafo, fora de campo.10 A ficção constitui uma tentativa de apreender como o sujeito fotografado, da mesma forma que o fotógrafo, pôde, no campo de Auschwitz, viver essa situação, que necessita da co-presença de ambos – a situação de produzir uma imagem. Aliás, deve ser o que despertou o interesse de Farocki por essa fotografia, mais do pelas outras do mesmo álbum. Cineasta que sabe o que é produzir uma imagem, Farocki singulariza ao extremo a foto, escolhendo abordá-la a partir da relação filmadorfilmado, fotógrafo-fotografado, questão já abordada por Comolli:
Para localizar as coordenadas de um plano ou de uma fotografia, acho que é preciso levar em conta não apenas as suas condições espaço-temporais e político-históricas, mas também o que está em jogo na relação entre filmadores e filmados. Eu diria que se alguma coisa é documentada, é essa relação. O documento sobre a relação entre fotógrafo e fotografados torna-se extremamente precioso. São relações verdadeiramente ligadas a um momento, a um instante preciso, a um acontecimento preciso. (COMOLLI e LINDEPERG, 2008: 33)
Nessa sequência, para mostrar que a imagem provém dessa história de olhares e que ela documenta isso, Farocki recorre a uma ficção. É justamente por isso, porque Farocki exagera, porque seu filme recoloca em cena a fotografia e a re-produz, cinematograficamente, no presente (“ele aperta o botão”), que o arquivo fotográfico, vestígio de um instante único, começa a ganhar vida. Com a imagem do campo de Auschwitz, aparecem as condições de realização da foto, que tornaram possível esta imagem e não outra. Alguns verão,
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no entanto, com reticência, essa história banal de sedução sugerida entre o homem e a mulher, para chamar a atenção para a troca de olhares, o “mal gosto do comentário” de que fala Rancière (2015: 99). Por que transpor a cena para uma avenida, com senhores, vitrines, mulheres? Há muito tempo o documentário moderno entendeu que, da dissociação entre a imagem e o som, nascem distâncias férteis o suficiente para produzir uma terceira imagem, mental, proveniente do encontro, no plano, dos dois elementos separados. Essa ficção, vinda de fora, ajuda a “criar uma situação” para que o arquivo seja visto. Trata-se, realmente, nessa sequência, de dizer que o SS e essa mulher se comportam “como” numa avenida? O próprio espectador não acredita nesse interpretação. Melhor: ele se choca com ela. Farocki “força” esse encontro entre a narração da ficção e a imagem, para que o arquivo se estratifique, com novos sentidos. Por exemplo, a presença da avenida ou de um mundo de vitrines só reforça a presença, aqui e agora, dessas duas pessoas, como se a sentença final do comentário (“num mundo em que há avenidas, senhores, vitrines, longe daqui”), mais do que o desejo dessa mulher de não ver o que se passa, de se transportar para outro lugar, longe de Auschwitz, fizesse “o espectador compreender que aquela realidade ultrapassa esta ficção” (NINEY, 2002: 305). A simplicidade da história de sedução – sua banalidade – devolve o campo à sua própria realidade, realidade que aquela imagem poderia, no fim das contas, esconder. Uma das “potências do falso” consiste em abrir um caminho para pensar, ver e perceber os arquivos de outro modo. Por meio da ficção, Farocki provoca deslocamentos múltiplos de sentido e mantém o espectador ativo face àquilo que vê, às maneiras de interpretar os arquivos. Para isso, ele desenvolve um método, feito de estranhos desajustes: (Eu) não mostro nada por razões estritamente sintomáticas, nada que não me sirva para justificar. Eu tento sempre evitar as interpretações que desaparecem com o filme – que o pilham, de alguma forma – na exegese. Uma de minhas estratégias consiste em interpretar um filme em excesso ou de maneira deliberadamente equivocada. Talvez essa interpretação salve alguma coisa. (FAROCKI, 2002: 96)
Na verdade, essa estratégia contribui para que o questionamento se faça o mais perto possível das imagens que estamos vendo. A interpretação excessiva de um plano ou de
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uma imagem de arquivo, como essa ficção que acompanha a mulher na sua chegada ao campo de Auschwitz, permite não “pilhar” a imagem, como faria um expert, isto é, não diluí-la em uma “exegese” que, da mesma forma que os adeptos da prova irrefutável pela imagem, a fariam dizer tudo. Na obra de Farocki, a ficção, ao se assumir enquanto tal, é uma porta, uma via, um acesso à imagem e ao que ela documenta, e não ao passado “tal como ele foi” (BENJAMIN, 1990: 435). Seu método de retomada de filmes para montar Os operários saem da fábrica o comprova. O comentário ficcional de Bilder der Welt und Inscrift des Krieges é uma sobre-interpretação da foto. Aquilo que ele “salva”, ou antes, aquilo que ele traz à superfície da imagem, são as condições de sua tomada. Mas porque tornar presente esse outrora que deu origem à imagem? Porque Farocki se detém, em seu próprio filme, na gênese do arquivo? Porque razão ir tão longe na remontagem? Ao mesmo tempo em que o fotógrafo captura o rosto dessa mulher, ficamos sabendo que ela vai morrer. Como, a partir dali, suportar seu olhar fotografado? A imagem, último vestígio, produzida na iminência da morte, ganha um outro sentido quando o comentário se distancia da ficção das avenidas, para anunciar: “O campo, dirigido pelos SS, vai destruí-la. E o fotógrafo que captura, que eterniza sua beleza, também faz partes desses mesmos SS”. Essa mulher de rosto muito claro, muito bonito, e que Farocki transporta para uma avenida, é eternizada e eliminada por um mesmo gesto: o da tomada. “Eternizar a beleza”: a ficção dava, então, um acesso a essa imagem?
Figura 2: “Talvez essa interpretação salve alguma coisa” (FAROCKI, 2002: 96)
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Roland Barthes foi, talvez, quem melhor compreendeu a dramaturgia da fotografia, de suas temporalidades próprias, dos rostos e dos mortos que ela capturou... Em A câmara clara, ele fala do retrato que Alexandre Gardner fez de Lewis Payne: “A fotografia é bela e o rapaz também” (BARTHES, 1980: 148). E, como ele explica, o “puctum” (Ibidem: 149), nela, não é tanto o fato de que Lewis Payne espera na sua cela a morte por enforcamento, em 1865. Ele provém da reunião intempestiva do antes e do depois para o espectador atual, da estranha cristalização, na foto, desses dois tempos, que podemos, agora, reunir: “ele morreu e ele vai morrer” (Idem). Segundo Barthes, esses dois tempos configuram a dramaturgia da fotografia.11 Ele nos fala, assim, de sua qualidade testemunhal: essa dramaturgia não provém da pessoa filmada ou fotografada e de seu passado, mas da imagem e de sua capacidade de evocar, ao mesmo tempo, a morte e a vida do fotografado, ao permitir-nos dizer dessa pessoa: “ela morreu e ela vai morrer”.12 Aliás, se aprofundarmos essa reflexão e aproximarmos dela o pensamento de Agamben sobre o testemunho e o arquivo, quando o filósofo diz, em O que resta de Auschwitz, que a testemunha é “o que resta”, “o que sobreviveu” (AGAMBEN, 2003 :17), não ficaremos surpresos com o fato de que a mulher fotografada em Bilder der Welt, a vítima, a desaparecida, não é a testemunha real. Ela está morta quando vemos sua foto; a sobrevivente é a imagem, a imagem de seu olhar, a imagem de seu desejo de responsabilizar aquele que a captura e de se esquivar dele, a imagem de seu rosto fotografado por um SS. A imagem é a testemunha. Compreende-se melhor, então, que o cinema tenha o dever de retomar essa imagem de arquivo e de levar a fundo o seu valor testemunhal, seja por meio da ficção ou do documentário, da montagem ou da mise en scène. Pode-se considerar “adequada” qualquer retomada que torne possível a com-preensão e a apropriação do arquivo. Vimos que a ficção permitia localizar na imagem de arquivo aquilo que remete à sua tomada, ou seja, aquilo que informa o espectador sobre a produção do documento. Ela fornece, então, uma indicação importante para a história, pois, mais do que nutri-la com um simples contexto, a narração ficcional da tomada da fotografia propõe um conhecimento íntimo das formas fílmicas ou fotográficas. Ela se debruça sobre o que desencadeou a produção do documento visual, como no caso
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11. Barthes diz: “é a ênfase
dilacerante do noema (“isso foi”), sua representação pura. (…) Eu me estremeço (…) por causa de uma catástrofe que já aconteceu” (Ibid.: 148-149). 12. É o que Sylvie Rollet,
em seu comentário sobre essa sequência, denomina como “o momento único da tomada no passado” e o “futuro anterior de sua morte programada” (ROLLET, 2011 : 69). Ela diz que é a retomada que “coloca em contato” esses dois momentos. Nós pensamos que é a imagem, e somente ela, uma vez lida, mais tarde, que apresenta essa temporalidade heterogênea ao espectador. Farocki apenas a sustenta.
da relação filmador-filmado. Mais ainda, ela nos informa também sobre “o que resta” na imagem e que permite ao cineasta apreender essas informações: a relação filmador-filmado, tal como ela se inscreve no rosto da mulher que se volta para a câmera. Visível na superfície da imagem, esse ínfimo vestígio autoriza o cineasta a retomar a foto dessa maneira. Ele torna possível a retomada ficcional do documento, sem que o cineasta tenha, no entanto, que demonstrar um controle excessivo do mesmo. É esse “resto” que guia o trabalho da retomada, que leva a mão do cineasta a reenquadrar ou que o convida a produzir uma ficção. Não se trata, então, de um “puro desvio”, como na obra de Debord, mas de um “autêntico método, impuro”, “experimental”, como diz DidiHuberman, “fundado em uma afinidade com a imagem” (DIDIHUBERMAN, 2010: 99). Os dois sentidos da palavra “permitir” aqui empregados, “autorizar” e “tornar possível”, dizem o quanto Farocki escolhe minuciosamente as suas ferramentas, o quanto o cineasta está sempre em busca de um gesto adequado para a retomada dos arquivos. Quanto à ficção em seus filmes, ela só se apropria da imagem para poder sustentar alguma coisa que essa imagem contém e que é preciso levar à tela. Isso o cineasta mesmo diz, e está presente em sua maneira de decupar e de montar. Em Schnittstelle (Farocki, 1995), ouvimos Farocki dizer: “Hoje não posso mais pensar em um filme se não estou na mesa de montagem. Eu escrevo de dentro das imagens, depois as leio”.
13. Sobre isso, ver a distinção pertinente que Didi-Huberman faz entre desaparecimento e destruição no texto dedicado a Farocki em L’Oeil de l’Histoire 2 (DIDIHUBERMAN, 2010: 103-104)
Uma outra virtude ou potência do comentário ficcional de Farocki é a de escrever fundamentalmente uma história para as vítimas. Ele traz consigo a exigência de memória dos mortos que se encontram na superfície da imagem, levando em conta o fato de que uma memória apropriada só pode provir de uma forma de filmar e de mostrar. Harun Farocki transmite, nessa sequência, toda a importância de dois gestos: o da tomada inicial da fotografia e o de sua retomada. Trata-se de nos situar em uma relação com a imagem marcada pelo desejo de que uma outra história seja escrita para aquela mulher. Colocando-nos diante do seu rosto, imperceptível, claro e belo, eternizado pelo SS que a fotografa, a ficção do comentário, ao restituir o contexto da tomada no seu conjunto, nos torna solidários em relação à morte da fotografada, à sua destruição, e não simplesmente ao seu desaparecimento.13 Do arquivo à ficção, da tomada à retomada, trata-se de escavar passagens cinematográficas da história para o cinema. “De repente, um rosto, ali, me olha”: virtude do comentário, que consiste em 178
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sustentar a aparição da imagem, em partilhar o destino dessa mulher, ao inventar “um gesto de cinema para se colocar diante do acontecimento” (LINDEPERG, 2007: 92), para responder à exigência “daquele que viveu, ali” (BENJAMIN, 2000: 99). Há uma outra razão para o uso do comentário. Farocki sabe que essa fotografia não constitui uma prova do extermínio dos judeus. O problema consiste, sobretudo, em não criar o desejo de prova, em observar uma regra de parcimônia que visa estabelecer e delimitar, aos olhos do espectador, o testemunho de uma imagem. A distinção entre testemunha e vítima (entre a imagem que é a testemunha sobrevivente e a vítima, na superfície da imagem) serve, justamente, para compreender que cabe à retomada da imagem atualizar o vestígio e lembrar que o gesto de tirar uma foto pode evocar o de tirar uma vida. É o que faz a ficção, um meio propriamente cinematográfico e imaginativo, quando ela nos propõe enfrentar a imagem do rosto dessa mulher, plenamente conscientes do tempo que dela nos separa. Aquilo que foi registrado no momento da tomada precisa ser retomado, afim de elevar o arquivo à potência de uma imagem que, sabendo-se imagem, pode também tornar imaginável o que ela não mostra. A imaginação e a prova foram sempre os dois freios ou interdições impostos à representação ficcional ou documental dos campos de concentração e de extermínio. A maior virtude da ficção está na possibilidade de mostrar o seu avesso, a saber, o fato de que ela é apenas uma narrativa, impossibilitada de testemunhar plenamente. Ao contrário do que foi dito anteriormente, a ficção, quando encontra as propriedades documentais da imagem que a autorizam a retomar os arquivos, não é apenas apropriada. Ela só se torna adequada ao mostrar, de maneira pertinente, sua “impropriedade fundamental”, isto é, ao abordar as imagens como mediações e não como o real, ao mostrar que um arquivo não testemunha sobre o passado tal como ele foi, mas sobre a sua captura numa imagem parcial e lacunar.
III. “Rodaríamos um filme?”: Respite e a interpretação sucessiva dos arquivos A adequação dos meios escolhidos por Farocki em Respite já foi comentada por vários autores, com ênfase na escolha das cartelas pretas (DESPOIX, 2008: 89-91; LINDEPERG, 2009: 2730; DIDI-HUBERMAN, 2010: 111). Entrecortando as imagens de arquivo filmadas, as cartelas interpelam um material encontrado
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pelo cineasta no Memorial de Westerbork, o material bruto de um filme inacabado, rodado em 1944 a pedido dos nazistas e destinado a enaltecer o campo transitório holandês. As cartelas de texto inseridas por Harun Farocki serão o único comentário sobre as imagens, nesse filme que ele preferiu deixar mudo. Diferentemente de Bilder der Welt, não é mais a relação imagemsom que fabrica, então, nossa leitura e nossa apreensão dos arquivos, mas uma relação texto-imagem que obriga Farocki a mostrar as imagens várias vezes. Sobretudo, a interferência entre a imagem e o comentário depende de um antes e um depois, e não mais de uma simultaneidade. Com efeito, ora as cartelas designam o que acabamos de ver, para nos ajudar a observar certos detalhes dessas imagens que, apesar da propaganda de onde provêm, deixam transparecer alguma coisa do campo de concentração; ora elas propõem uma interpretação das imagens filmadas, dificilmente legíveis. As cartelas permitem re-ver o que foi visto, fazendo dos arquivos um objeto de olhar e de leitura, de ver e de saber. A cena que nos interessará aqui é aquela do trabalho na fazenda. Trata-se de uma sequência do filme na qual o cineasta desenvolve, de maneira explícita, uma leitura dos arquivos, interpretando-os ao extremo, a fim de mostrar a irresolução dos planos. O material retomado por Farocki não foi apenas encomendado pelo SS Albert Konrad Gemmeker, mas também foi filmado por Rudolf Breslauer, um prisioneiro judeu do campo. A ambivalência dos planos se deve, então, à “identidade da equipe de realização” (LINDEPERG, 2009: 27). Quem sabe se Breslauer não queria filmar para documentar o campo? Em que medida ele se submeteu efetivamente ao protocolo de filmagem encomendado? Farocki não faz essas perguntas diretamente às imagens. Embora ele tenha lido inúmeros textos e documentos sobre Westerbork e complementado seu visionamento dos arquivos com uma pesquisa documental, Respite acaba sendo, antes de tudo, um filme que se debruça sobre o que as imagens trazem como possibilidade de acesso ao campo de concentração. Mesmo se os documentos ajudam Farocki nessa tarefa, o filme procede a um movimento contrário, partindo das imagens, em direção ao saber. Trata-se, assim, de não fazer as imagens dizerem aquilo que não contêm. Se atendo ao material filmado de Westerbork e apenas a ele, Farocki oferece a essas imagens do campo de concentração transitório a ocasião de poderem, enfim, revelar sua
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própria especificidade e dar acesso à história da deportação a partir daquilo que elas registraram, mostraram, produziram, daquilo de que elas são o vestígio. Foi vendo os filmes de Resnais et Leiser, nos quais eles retomam alguns planos do campo de Westerbork – principalmente a sequência da plataforma ferroviária, “uma das únicas imagens existentes da deportação” –, que Farocki teve a ideia de fazer de Respite um filme mudo, tendo como única fonte as imagens de Westerbork e, como comentário, apenas algumas cartelas pretas de intertítulos. Farocki se insurge contra a remontagem operada por Resnais e Leiser, que procura mostrar e fazer acreditar que esses trens chegam em Auschwitz: “Porque esse tipo de sugestão? Não podemos acreditar no que nos mostram, quando não há nenhuma imagem?” (FAROCKI, 2009: 23). A retomada dessas imagens, e somente essas, diz respeito ao poder do cinema de mostrar e fazer imaginar aquilo que não tem nenhuma imagem. Eu diria até mais: é considerando a potência dos arquivos que existem e o que eles mostram que Farocki torna possível escrever uma história dos campos a partir das raras imagens que foram rodadas ali, das imagens lacunares de que dispomos. A cena dos trabalhos na fazenda começa, justamente, com uma cartela branca do filme encomendado, inacabado: “Unser Bauernhof” (nossa fazenda).14 Enquanto cena que se inscreve em uma lógica de apresentação do campo de concentração como pequena empresa viável, seu ponto de vista poderia simplesmente ser atribuído ao seu mandatário, o SS Gemmeker. Mas o “nós” da cartela introduz, de antemão, algo implícito. Na imagem, vemos apenas detentos fazendo o trabalho da lavoura, com um ardor particular. Dois deles, anuncia uma cartela, teriam até “substituído um cavalo”, a fim de expor, por conta própria, sua condição de trabalhadores e justificar sua utilidade. É aqui que aparece a primeira tentativa de sobre-interpretação de Farocki: “Isso só pode querer dizer: nós somos os seus animais de carga”. Sentenciosa, a frase é completada por uma segunda cartela: “Nós fazemos o trabalho que, normalmente, é feito pelas máquinas e pelos animais”. Farocki arrisca, aqui, uma leitura das imagens. Ele insinua que haveria uma convergência dos objetivos dos detentos com os do mandatário do filme, Gemmeker (mostrar que o campo é viável, para não fechá-lo) e, também, uma forma de “adesão” dos filmados “à sua missão!” (ROLLET, 2011: 105). “Percebe-se bem o
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14. Mais uma vez, “a ironia
da legenda” das imagens filmadas...
que essa […] tradução tem de provocador”, escreve Sylvie Rollet sobre o assunto (Idem). No entanto, é ela que nos indica que as imagens do filme de Westerbork contêm vários olhares cruzados e difíceis de ler... Claramente exageradas, as cartelas não proferem uma verdade; elas tentam traduzir essa impressão surda de que os arquivos evocam, potencialmente, um espaço em que detentos e algozes parecem não estar separados, mas envolvidos em uma relação reveladora daquilo que Primo Levi chamou de “zona cinza”. Aliás, é por isso que Farocki não pode parar por ali. É preciso completar as imagens com outras traduções contraditórias, submetê-las a um texto e uma leitura, a fim de tornar “palpável” o que, nas tomadas, é tão inextricável. Em primeiro lugar, são as imagens que vão resistir a essa interpretação. A esse “querer dizer” que Farocki assinalava como unívoco (“isso só pode querer dizer”) se opõe o conteúdo relativamente vivo dos planos que ele utilizou. Um dos dois homens que substituem o cavalo sorri do fundo do plano, até chegar perto da câmera. A jovem que, pouco depois, descarrega os tijolos, sorri, igualmente, em seu labor, como o resto do grupo. “Essas imagens em que os homens substituem os animais como força de trabalho são, sem dúvida, aviltantes, mas elas deixam transparecer, ao mesmo tempo, um tom idílico”, como diz Philippe Despoix (2008: 91). E, de fato, essas imagens, que só podiam significar uma coisa, “podem ser lidas de outra maneira”, anuncia o filme. Os planos retomados por Farocki revelam, doravante, uma beleza frágil. Os corpos e os gestos, filmados em câmera lenta e contra-plongée, fazem pensar nos filmes soviéticos que mostram o trabalho na lavoura. A segunda interpretação proposta por Farocki tem como efeito, justamente, apreender esse outro aspecto dos planos rodados por Breslauer. Em câmera lenta, é como se os “detentos semeassem terras novas. Como se eles desenvolvessem alto que lhes fosse próprio, uma nova sociedade, talvez”, como o comentário nos convida a crer. Com certeza, essa versão idílica é tão inverossímil quanto a primeira, que falava da adesão dos detentos. Mas ela convida, antes de tudo, a observar o valor dos planos, a prestar atenção nos corpos daqueles que, semeando batatas, descarregando tijolos, parecem convocar a esperança. Como se, pela empatia da leitura proposta, o que era visto como participação se tornasse, agora, uma afirmação, isto é, a recusa, talvez, de uma reação ao confinamento do campo, uma
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participação no seu mecanismo. “Como se desenvolvessem algo que lhes fosse próprio”, diz a cartela. Por que temos dificuldade em acreditar nisso? Essa sobre-interpretação de Farocki faz pairar a dúvida sobre a forma como os detentos viviam no campo de concentração transitório. Ela deixa transparecer também que, nesse campo de concentração, podia ter lutar a afirmação de si, mesmo a pessoa estando confinada e condenada ao trabalho forçado. Farocki propõe não mais a adesão como modo de leitura, mas uma resistência, apesar do confinamento. A opção por “oferecer várias leituras possíveis do material” (DESPOIX, 2008: 92) ou várias “traduções sucessivas” (ROLLET, 2011: 104) faz com que Respite dê conta da ambiguidade das imagens, remetendo à ambivalência que liga detentos, filmadores e algoz... O mais interessante é que Farocki propõe pensar em algo como uma “zona cinza” própria ao cinema, ligada ao contexto de filmagem e àquilo que cada um esperava do filme. Mas como não se pode saber ao certo o que uma imagem quer dizer, tanto mais porque o filme em questão permaneceu inacabado, Farocki interpela as imagens e navega entre diferentes polos de sentidos, às vezes interpretando em excesso, outras vezes reformulando uma interpretação que parecia definitiva. Em sua observação, ele leva constantemente em conta elementos de mise en scène que, não se sabe, podem ter sido desejados somente pelo filmador (o estilo russo dos planos); ele parece atento à imagem que os filmados oferecem de si mesmos, que pode ser lida de várias formas. Se ele põe em dúvida a atribuição das imagens, entre o olhar nazista do mandatário e o olhar judeu do filmador, e, ainda, o desejo dos filmados, é para não circunscrever os homens e os arquivos a uma explicação causal e fechada. Trata-se de devolver o passado ao seu próprio possível, às resistências dos filmados, às contradições da história. Essas sobre-interpretações correspondem, ainda, ao exemplo da Berlim insurrecta de 1919, no qual Farocki justapõe duas imagens, dizendo que elas se parecem: trata-se de compreender que o cinema de retomada talvez não tenha o objetivo de “ultrapassar as diferenças” ou decidir sobre o que pertence a um olhar ou a outro, mas de tratar os arquivos “no jogo de sua instância”, como dizia Foucault (2001: 733). Esse jogo, em Respite, está extremamente ligado à filmagem e às condições segundo as quais uma imagem pode documentar um olhar e um ponto de
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vista. Atento aos elementos da tomada, aos filmados, à superfície da imagem, a qualquer sinal que testemunhe sobre a encomenda (as cartelas brancas, por exemplo), tanto quanto ao valor idílico dos planos, Harun Farocki mostra que é impossível decidir por um único aspecto. Para isso, ele é levado a inventar uma forma de mise en scène das imagens que interpela incessantemente o que nós vemos. As cartelas sucessivas de Respite exigem um olhar atento à singularidade de cada plano. Cada informação cinematográfica visível no arquivo é uma via de acesso à complexidade oculta do plano, rumo à complexidade da história.
Tradução do francês: Anita Leandro
* NB: Nós utilizamos os títulos
originais em alemão, com exceção de Respite, cujo título original é o título em inglês, uma vez que o filme foi realizado no contexto do Jeonyu Digital Project de 2007.
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ENTREVISTA COM HARUN FAROCKI / EDNEI DE GENARO E HERMANO CALLOU
“A máquina sempre quer algo de você” Entrevista com Harun Farocki Ednei de Genaro Doutorando em Comunicação na Universidade Federal Fluminense
Hermano Callou Mestre em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro
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A entrevista a seguir aconteceu em 21 de janeiro de 2014, no apartamento de Harun Farocki em Friedrichshain, em Berlim. Farocki respondeu gentilmente a nossa lista de perguntas, produzida em razão de nossas pesquisas acadêmicas (doutorado e mestrado) sobre a obra do artista. A entrevista durou cerca de quarenta e cinco minutos, nos quais Farocki nos surpreendeu com a naturalidade, a simplicidade e o bom humor com que nos respondia. Com o seu falecimento, o cineasta não pode ver o resultado da entrevista, como havíamos combinado, nem responder as nossas perguntas adicionais. Nós tínhamos decidido explorar um pouco a sensibilidade e a experiência de Farocki no que diz respeito ao papel do aparato técnico e às estratégias políticas e estéticas relevantes em sua obra. Como retorno, obtivemos um discurso sobre a materialidade presente na relação entre humano e não-humano na produção cinematográfica, que destaca o valor que o artista atribui às imagens em si mesmas. O cineasta sempre procurou se afastar das tentativas naturais de demarcação de seus trabalhos por críticos e teóricos. Dada a multiplicidade de suas ocupações e posições (crítico, cineasta, professor, artista visual, montador, pensador), Farocki sempre procurou desviar-se de qualquer palavra-chave que poderia fechar sua obra em um sentido dado. Farocki filme-ensaísta? Crítico das imagens? Arqueólogo? Em cada oportunidade, ele preferiu manter o pensamento indeterminado ou, como ele diz na entrevista, a “cabeça aberta”. Ednei de Genaro e Hermano Callou (E.G. H.C.): Atualmente, é muito comum descrever o seu trabalho como uma espécie de arqueologia. O que você acha disso? Harun Farocki (H.F.): Eu acho a palavra “arqueologia” um pouco dramática. Se você for para esses arquivos totalmente esquecidos, ligar e testar todos os materiais, ainda assim a palavra “arqueologia” é um pouco exagerada. Para mim, arqueologia significa quando nós encontramos culturas – como na Grécia – das quais nós não temos nenhum conhecimento, apenas alguns elementos testemunhando sua existência. Isso para mim é arqueologia. Não acho que um tipo de história do cinema tende a ser já arqueologia, especialmente agora com quase todos os arquivos em sites como o youtube, acessíveis on-line. Então, acho a palavra dramática. Continue, por favor.
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E.G. H.C.: A gente gostaria de te perguntar, ainda assim, sobre a relação entre a montagem e o teu trabalho com os arquivos. Qual “arqueologia” se torna possível através da prática da montagem? H.F.: Há quinze ou vinte anos na Holanda, era inteligente dizer que os arquivos não significavam apenas alguma coisa que deveria ser guardada, mas também alguma coisa que precisava ser trabalhada – alguém tem que lidar com os arquivos. E existiam cineastas que faziam filmes com old footage. Eu acho isso uma ideia muito interessante, fazer uso do patrimônio dos arquivos. E é isso o que eu tenho tentado fazer. Se você olhar as imagens guardadas há cinquenta ou cem anos, talvez possa achar agora leituras diferentes do que as pretendidas então, quando o olhar frio do aparato estava somente gravando alguma outra coisa. Você sabe o texto de Rancière1 sobre o filme de Chris Marker2 no qual se vê o Czar e o policial e tal? Então, a câmera quer apenas gravar e ela não distingue as intenções do cineasta e o que não é intenção do cineasta. Isso é de algum modo uma grande vantagem porque há um suplemento documental nessas imagens “frias”. A montagem, em sentido amplo, pode tornar esses significados acessíveis. E.G. H.C.: Gostaríamos de perguntar agora sobre a sua concepção da máquina, do aparato técnico. Você sabe, a ideia do olhar da câmera como um olhar da máquina foi uma ideia muito forte no começo do cinema, com Vertov e outros. Nós acreditamos que você é de algum modo fiel a tal ideia, de que o olhar da câmera não é redutível ao olhar humano, que é como um olhar não-humano. Então, como você leva em consideração tal ideia em seu trabalho? H.F.: Eu acho que um aspecto da questão, que eu acabei de comentar, é que uma máquina grava qualquer coisa – qualquer coisa que esteja dentro do frame. E não somente alguma coisa que você pretendeu destacar. Anos depois, você pode ler um significado diferente, que não foi intencional. Isso também pode acontecer na pintura: as pessoas que pedem para esses pintores famosos pintarem sua filha favorita ou noiva ou amante. Eles podem alcançar também diferentes significados em relação àqueles que eles intencionaram. Se você pensa no que as pessoas chamam de câmera subjetiva... hoje em dia, em videogames, você também tem uma câmera atrás da pessoa, do atirador, você anda pela rua e pelo cenário e vê que estranha construção de um ponto de vista
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1. Farocki se refere ao
ensaio de Jacques Rancière “Documentary Fiction: Marker and the Fiction of Memory”, incluído em Film Fables, 2006 [traduzido para o português como “A ficção documentária: Marker e a ficção da memória” in: A fábula cinematográfica. Trad. Christian Pierre Kasper. Campinas: Papirus, 2013].. 2. Farocki se refere ao filme
Elegia a Alexandre (Le tombeau d’Alexandre, Chris Marker, 1993)
subjetivo é essa. Ela deveria ser um ponto de vista subjetivo, ela deveria ser uma perspectiva, mas ela não é, é claro, o mesmo que um olhar humano, porque, claro, nós não somos máquinas – nós estamos olhando fragmentos e os estamos comparando. Estamos fazendo um milhão de operações mentais quando olhamos para uma imagem. O que a gente vê não são apenas cores, pontos e luz, nossa percepção é bem mais complexa. A literatura tenta nos descrever (tal percepção), por exemplo, no fluxo de consciência de James Joyce. E.G. H.C.: Hoje em dia a questão da delegação das ações humanas para a máquina é cada vez mais real. Desde os anos 1980, pelo menos, nós podemos ver você fazendo apontamentos abundantes sobre isso nos seus filmes. Como você pode explicar a questão hoje? H.F.: A questão é: o que a palavra “delegação” significa? Deixar a máquina trabalhar para nós não significa delegar o trabalho para a máquina. Provavelmente delegação é um processo complexo. Para mim, o termo “delegação” não significa muita coisa. Você pode tentar delegar algo, mas não consegue realmente, porque depois a máquina sempre quer algo de você. No nível mais simples, o que pensamos primeiramente foi que quando tivéssemos o computador nós não teríamos que trabalhar mais. Hoje com o grande interesse que a indústria tem em produzir software, passamos dez horas por dia na frente do computador. Hoje temos mais trabalho do que antes. Nesse sentido, eu acho que “delegação” é uma palavra complicada. No meu filme Imagens do mundo e inscrições da guerra, de 1988, eu lidei com esse aspecto parcialmente. Por um lado, mostrei o início da gravação automática e técnica da história pela fotografia. Hoje, é claro, há vários outros meios, mas naqueles dias, era a fotografia aérea. Na época da guerra, já havia máquinas registrando informações históricas, mas por outro lado temos no filme essas pessoas “fora de moda” em uma espécie de odisseia: dois homens de Auschwitz, que tinham testemunhado o que se passava, escaparam para contar ao mundo o que viram. Trata-se do antigo método historiográfico, que é de certa forma a base de nossa ideia de história. E.G. H.C.: Sobre a questão do trabalho com arquivos digitais, nós podemos lembrar que você trabalhou em um projeto com o arqueólogo da mídia alemão Wolfgang Ernest. Você poderia nos
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contar qual foi o objetivo? H.F.: Mais de doze anos atrás, houve um congresso em Berlim, no qual nós pedimos às pessoas para comentarem as seguintes questões: como imagens podem comentar imagens? Como podemos localizar imagens em arquivos sem o uso da linguagem? Até hoje, se você tem um arquivo, você tem que ter pequenas notas avisando “isto aqui é de Colônia”, “isto aqui é de 1919” ou o que seja. Ter um outro meio de consulta significaria ter um software que perguntasse: quais imagens são sobre fábricas? Nós temos esta imagem de uma fábrica, que outras fábricas podemos encontrar? Nós temos hoje software para isso, no Google e tal, mas ainda não funciona como se gostaria. Ele não te ajuda realmente como uma ferramenta. Pode te ajudar a encontrar rostos, como na polícia, mas ainda não funciona de modo a criar uma ordem própria. Foi sobre isso a conferência. E.G. H.C.: Temos também uma questão sobre a mesa de montagem. Você parece dar muita importância aos diferentes tipos de mesa de edição. Você mesmo já falou que o seu trabalho com o vídeo mudou a sua maneira de trabalhar com imagens, na medida em que (na mesa de edição de vídeo) há dois monitores. Como você reflete sobre as mudanças na mesa de montagem e nos programas de edição? Como essas mudanças influenciam a maneira de você fazer filmes? H.F.: Em linhas gerais, eu acho que o desenvolvimento tecnológico é bom, a qualidade do som e da imagem melhorou. Eu não penso muito no aspecto negativo. Já na época em que eu trabalhava com filme, era minha ambição não distinguir entre produção e pós-produção. Eu começava editando logo no primeiro dia. Isso tem se tornado cada vez mais fácil com a edição no computador. Voltando da viagem das filmagens em Frankfurt, no trem, eu já posso ir editando, fazendo alguns testes. Para mim isso tem deixado tudo mais concreto, mais sobre a qualidade real da imagem, não sobre as minhas intenções, porque você já tem alguma coisa e você pode começar a pensar o que vai se encaixar com ela, qual vai ser a próxima imagem. Você pode comparar imagens de fato, comentar imagens com outras imagens, que é uma coisa que eu amo fazer. E.G. H.C.: Você pode falar mais sobre essa ideia de não diferenciar produção e pós-produção? Desde quando você começou a tentar
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fazer isso? H.F.: A partir principalmente dos anos 1980, em Imagens do mundo e inscrição da guerra (1988) e em Como se vê (1986). O que eu procurava superar era esse modelo tolo de que primeiro você tem um roteiro e depois você tem que traduzi-lo para o filme concreto. Isto, é claro, não é algo novo, muitos cineastas também puderam improvisar. Godard também improvisa um pouco, Cassavetes também. O que está em questão é improvisar um pouco mais. Se você, tecnicamente, diz: eu começo filmando, eu edito um pouco e daí surge a nova ideia para a próxima filmagem. Esse processo é muito comum quando você está pintando ou escrevendo um livro, onde você não tem primeiro um conceito e depois tem que executá-lo. Você vai passo a passo. E.G. H.C.: Nos seus trabalhos encontramos referências às vanguardas estéticas. Críticos afirmam que sua forma de montagem se aproxima da teoria do distanciamento de Brecht e da pop art, por exemplo, mas mantém distância do método de détournement de Debord. O que você acha disso? H.F.: Em certo sentido, eu meu aproprio de certos elementos pop estranhos também em meus filmes, de livros escolares e de diferentes fontes. Em certo sentido eu trabalhei com détournement, mas não de maneira tão forte. Mas eu também tenho às vezes a tendência de me apropriar de materiais de fontes distintas. Em meus filmes sobre tecnologia militar, eu cito por exemplo propagandas em vídeo da indústria armamentista – não é totalmente diferente. E.G. H.C.: O gesto humano parece ser algo muito importante no seu trabalho. Em A expressão das mãos, você tenta pensar como o cinema procura criar uma gramática dos gestos. Você está interessado também, por exemplo, nos gestos do trabalho, nos seus documentários observacionais. O que você diria que está procurando quando analisa o gesto? H.F.: Muitas coisas. Na sintaxe cinematográfica, é muito presente a visão do rosto. Por que o rosto? Isto é de certa forma esquisito – digamos assim, bourgeois. Um empreendimento burguês. Se eu tirar meus óculos, eu reconheço as pessoas que eu conheço pelo jeito que elas andam. De alguma forma, é muito mais típico o modo como alguém se move, como alguém se comporta. Esses
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aspectos são interessantes. A cinematografia também os inclui, ela também inclui os outros gestos, mas nós acabamos tendo todas essas expressões faciais. A câmera normalmente não está realmente focada em outros aspectos dos movimentos corporais. O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2013) é sobretudo sobre rostos, rostos, rostos. E.G. H.C.: Em filmes como Doutrinamento (1987), Os criadores do império das compras (2001) ou, recentemente, Um novo produto (2012), você leva em conta uma estratégia de observação de gestos e discursos no locus sensível dos capitalismos e biopoderes. Você já falou uma vez da sua surpresa diante da facilidade de pôr uma câmera nesses ambientes. Você poderia elaborar isso? H.F.: Eu disse que não foi difícil conseguir uma permissão para filmar porque eles não tinham nada a esconder. Eles não têm esse inacreditável conhecimento científico que eles sempre fingem ter. As regras da indústria de shoppings exigem apenas duas mãos ou alguma coisa assim para serem contadas. Não é grande coisa. Por isso eles constroem esse grande decorum, fingindo que fazem algo científico. Nesse sentido, eles não têm nada a esconder, porque eles não sabem muita coisa. Eu pesquisei bastante e sempre pensei que seria muito difícil filmá-los, que eles teriam segredos. Na verdade, eles não têm segredo nenhum – esse é o verdadeiro segredo que eles tentam guardar! E.G. H.C.: Em uma entrevista você disse que os seus filmes dos anos 1970 e 1980 estão de certa forma politicamente obsoletos. Nós gostaríamos de saber o que você queria dizer com isso e o que você acha que ainda está vivo em filmes como Entre duas guerras (1978). H.F.: Eu só queria dizer que, ideologicamente, contar a história da República da Alemanha do ponto de vista tecnológico sintomaticamente é interessante, mas, claro, se você está interessado em história, você sabe que ela não é redutível ao determinismo tecnológico, às forças produtivas, como eu procurei fazer. Todas as especificidades que formam a história deste século estão de alguma forma desaparecidas. Nesse sentido, eu acho obsoleto, porque isso revela um estranho dogmatismo, que não tem mais nenhum valor significativo – felizmente. Existe um autor alemão que escreveu bons livros sobre os movimentos políticos
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dos anos 1960 e 1970 que disse que, nos anos 1970, de tudo que os cinco ou dez mil jovens mais inteligentes na Alemanha escreviam e falavam dia e noite, nem uma palavra sequer tem valor nos dias de hoje. Eu concordo mais ou menos com isso. E.G. H.C.: Nos últimos anos, desde que começou a trabalhar com instalações, você parece assumir uma outra abordagem em relação ao comentário discursivo. Você está, digamos assim, mais lacônico, não parece mais tão interessado em voz em off. Você parece esperar ainda mais das imagens em si mesmas. Gostaríamos de saber o que isso mudou na sua reflexão sobre imagem e política. H.F.: Vocês estão certos, mas há algumas exceções. Em 2003, Reconhecer e perseguir teve muitos comentários. Mas em geral, está certo. A série Jogos sérios (2004) é mais ou menos baseada em um pequeno paradoxo: você tem as mesmas imagens para se preparar para a guerra e para curar o trauma da guerra. De alguma forma, é uma ideia muito simples. Eu gosto então de colocar mais comentário estrutural do que o comentário falado. A simplicidade sem simplificação é um objetivo importante. Em galerias e museus, onde eu tenho mostrado esses trabalhos, as coisas tendem a ser mais curtas. Eu também encontro vantagens nisso, porque em espaços de arte as coisas podem ser mostradas em paralelo. Eu acho vantajoso exibir em paralelo, com capítulo 1, 2, 3, etc. Eles estão todos separados e ao mesmo tempo são um tipo de estrutura. Você tem capítulos verdadeiramente autônomos, mas que têm uma inter-relação, que se relacionam uns com os outros, e você não precisa mediá-los como em um filme convencional. E.G. H.C.: Você acredita que o ambiente da instalação contribui para uma mudança no estilo do comentário? H.F.: Ele contribui sim, como um tipo de montagem espacial. É uma abordagem diferente. E.G. H.C.: Ainda sobre o tema do espaço das artes e da instalação: Raymond Bellour, em La Querelle des Dispositifs (2012), escreveu que o momento de crise da sala escura, do cinema tradicional, representa uma abertura para novos modos e questões, especialmente em diálogos com vários campos da
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arte contemporânea. Nesse livro, entre outros autores, Bellour analisa você como um exemplo. Como você vê esse processo contemporâneo de mudança? H.F.: Bellour também falou que o estado do cinema e da televisão hoje em dia está terrível e que, por isso, ainda há muitos bons filmes sendo feitos pelo mundo. Uma crise pode ser também libertadora. Uma crise pode significar que uma nova forma de cinematografia ou uma nova forma de percepção pode aparecer. Um pouco como nossas formas de comunicação, que estão ficando mais complexas. Nesse sentido, há uma crise, sem dúvida, mas a crise pode ser algo positivo. E.G. H.C.: Queremos saber como a ideia de um filme ou uma instalação se inicia. Você começa já com tudo na cabeça? Você já falou aqui que procura não planejar muito, procura fazer o trabalho de pós-produção durante a produção – há muito espaço para surpresa então. Em Interface (1995), você fala que não consegue mais escrever sem que tenha duas imagens na sua frente! Gostaríamos de saber como a relação entre produção e pós-produção, palavras e imagens, se põe em jogo durante seu processo criativo. H.F.: Na maior parte das vezes, quando você trabalha com dinheiro da televisão, você tem que se inscrever e ter um projeto. Nessa situação, claro, eu preciso inventar alguma coisa, digamos cinco ou dez páginas. Em alguns casos eu não tenho a menor ideia da forma que o filme vai tomar – eu finjo saber! – mas tento manter a cabeça aberta. Eu quero manter o horizonte aberto. Como eu consigo meus meios de sobrevivência agora de galerias e museus, eu não posso dizer “eu preciso disso” ou o que quer que seja, mas eu tenho que esperar por oportunidades, como alguma exposição que me ofereça algum dinheiro para realizar alguma ideia. Eu aprendi a manter pensamentos na minha cabeça sem que eu saiba realmente onde eles vão dar! Assim que vejo uma oferta de dinheiro, eu começo a tentar ajustá-los. Algumas vezes funciona, algumas vezes não funciona tão bem. Algumas vezes é previsível, algumas vezes não. É muito difícil, mas eu acho muito bom não ter esse impulso idealista, “este é meu projeto, como posso conseguir o financiamento?”, mas achar os recursos e alguma ideia que se adeque a eles. Isso é uma coisa que muitas pessoas fizeram na sua vida, como os pintores que tinham que
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esperar por um trabalho. Nesse sentido, não é muito importante se eu escrevo na frente de duas imagens, na mesa ou o que seja. Só é importante que a forma que o filme tome esteja baseada nas imagens que você realmente tem e em seu próprio julgamento. E.G. H.C.: Podemos nos referir a sua posição intelectual como um “pensador de mídias” e descrever seu trabalho como uma “forma de pensamento” ou uma “forma que pensa”. O que você acha disso? Especificamente, estamos interessados nas relações entre montagem e pensamento. Que tipo de pensamento você está procurando na montagem ou na mídia do filme? H.F.: Com toda modéstia, eu tento achar meios nos quais não apenas as palavras criem as ideias ou o discurso cinematográfico, mas que de algum modo a forma – a montagem – do filme contribua para tal. Desta maneira, pode soar um pouco poético ter “imagens que pensam” ou “filmes que pensam” etc, mas esta é de fato uma das minhas ambições: achar alguma autonomia da forma cinematográfica, pela qual você não apenas repita coisas que já existem no papel e as traduza para a forma do filme. Eu tento achar alguma autonomia para a forma do cinema – este é de fato um dos meus objetivos. E.G. H.C.: Pensamos que no seu trabalho tanto o gesto iconoclástico quanto o gesto iconofílico estão suspensos. Você parece achar uma espécie de terceiro caminho. Gostaríamos de perguntar sobre a sua posição diante das “imagens do mundo”. Como você se comporta diante delas? Como a elaboração de uma forma de montagem ajudaria a pensá-las? H.F.: Eu sou muito, muito idiossincrático em relação a palavras. Eu sou às vezes fóbico das palavras – eu odeio algumas expressões, não exatamente por causa de uma má construção, mas porque o seu sentido está conectado a uma cadeia ruim de significados. Acontece algo muito próximo com as imagens. Eu acho alguma coisa, eu revelo alguma coisa, que poderia realmente ajudar o filme, constituir um bom argumento e tal, e eu não consigo usar, porque há essa falta de intensidade – eu não consigo descrever exatamente o que é. Eu tento manter um certo aspecto intuitivo: eu apenas assisto às imagens e elas devem se revelar fortes o suficiente, senão elas precisam deixar o filme. É de certa forma como na vida: existem as pessoas que você acaba conhecendo que
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você não decide, mas apenas descobre depois, se vocês vão se ver frequentemente, se vão se tornar amigos, se vão compartilhar a vida juntos de certa forma ou se elas vão simplesmente deixar seu horizonte. Eu lido com as imagens também dessa maneira. Elas não precisam ser belas, nem precisam ser únicas e tal, às vezes elas podem ser quase vulgares, mas elas precisam ter certa tensão, aspectos interessantes, algum sentido contraditório. Isso é o que é importante. E.G. H.C.: Você acha que a ideia de soft montage veio com o intuito de construir tal abordagem? H.F.: De certa forma, essa ideia de não apenas falar “A ou B”, mas “A e B” também. Como Deleuze falou a respeito de Godard, as imagens não estão se excluindo umas às outras, mas estão construindo uma relação entre elas. Isso é, de fato, uma abordagem diferente em relação às imagens, que vai mais além do iconoclasmo. Por um lado você tem a soft montage, porque há a conjugação de imagens separadas, por outro lado, você tem a inter-relação de um primeiro e um segundo filme no espaço expositivo, o que não é exatamente uma soft montage. É mais como uma batalha ou alguma coisa assim. É um pouco cacofônico – eu não sei se há uma expressão equivalente para imagens, como caco-imagens, eu não sei. Nesse sentido, a montagem pode ser pesada em certas partes da obra.
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O que resta do tempo: ficção e política no cinema de Elia Suleiman Maria Ines Dieuzeide Doutoranda em Comunicação Social pela UFMG
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Resumo: Neste artigo, empreendemos uma análise do filme O que resta do tempo, de Elia Suleiman (2009), buscando a maneira com que o diretor instaura outras configurações para um cotidiano marcado pelo conflito israelo-palestino. No percurso da análise, valemo-nos do pensamento de Jacques Rancière sobre a ficção como um modo de operação de dissenso e redistribuição do sensível. A opção pelo tom do burlesco, aliada a particulares características de enquadramento e construção temporal, operam fissuras na ordem consensual e instauram outras possibilidades de compreensão (ou invenção) da vida sob a ocupação israelense. Palavras-chave: Ficção. Política. Cinema palestino. Elia Suleiman. Abstract: In this article, we engage in an analysis of the film The time that remains (Elia Suleiman, 2009), seeking the way the director establishes different configurations for a life marked by the Israeli-Palestinian conflict. In the course of the analysis, we take the thought of Jacques Rancière about fiction as a dissent mode of operation and redistribution of the sensible. The option for the burlesque tone, combined with particular characteristics of framework and temporal construction, operates cracks in the consensual order and introduces other possibilities of comprehension (or invention) of life under Israeli occupation. Keywords: Fiction. Politics. Palestine Cinema. Elia Suleiman. Résumé: Dans cet article, nous avons entrepris une analyse du film Le temps qu’il reste (Elia Suleiman, 2009), en ordre de rechercher la manière dont le réalisateur établit différentes configurations pour une vie marquée par le conflit israélopalestinien. Au cours de l’analyse, nous mettons à profit la pensée de Jacques Rancière sur la fiction comme un mode de redistribution du sensible. Le choix du ton burlesque, combiné avec des caractéristiques particulières des cadres et de la construction temporel, provoque les fissures dans l’ordre consensuel et apporte d’autres possibilités de compréhension (ou d’invention) de la vie sous l’occupation israélienne. Mots-clés: Fiction. Politique. Cinéma Palestinien. Elia Suleiman.
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Neste ensaio, propomos uma análise do filme O que resta do tempo – crônica de um presente ausente (2009), o último da trilogia palestina do diretor Elia Suleiman, composta ainda por Intervenção Divina (2002) e Crônica de um desaparecimento (1996). Nos três filmes, acompanhamos o personagem Elia Suleiman – às vezes identificado em letreiros ou em outras inscrições pelas iniciais E. S. –, um palestino auto-exilado interpretado pelo próprio diretor, na tentativa do retorno à terra natal. Este personagem, cuja biografia acompanha, em alguma medida, a do homônimo criador, já estava sendo gestado desde seu primeiro curta-metragem, Homage by assassination (1992). Neste, filmado enquanto o diretor ainda vivia em Nova York, pela primeira vez encontramos o personagem E. S., um cineasta palestino em vias de realizar seu primeiro filme. Enquanto aguarda uma entrevista a ser realizada por telefone – a qual não se concretiza –, ele reflete sobre o exílio no seu pequeno apartamento, onde revê imagens da família e acompanha o desenrolar da Guerra do Golfo pela televisão. Convocando uma forma de narrativa mais próxima do diaa-dia, aquela de quem escreve “do simples rés-do-chão” (CANDIDO, 1993), a trilogia palestina elabora, de maneira bastante peculiar, o cotidiano presenciado pelo personagem interpretado por Suleiman. Em Crônica de um desaparecimento (1996), acompanhamos pela primeira vez o retorno de E. S. à casa dos pais. Sem se deter em apresentações de personagens ou construções de intrigas, o filme se desenrola em planos fixos que dão conta de pequenos episódios e situações recorrentes, às vezes acompanhados de brevíssimos comentários digitados em uma tela de computador. O comentário, na maior parte das vezes, se restringe à marcação temporal “no dia seguinte”, inscrição que ganha conotação irônica ao indicar meramente a passagem dos dias, em uma sucessão que não trará nenhuma novidade ou revelação. Na primeira parte, intitulada “Nazaré – diário pessoal”, esses pequenos episódios estão relacionados à vida da família e a um pequeno universo de vizinhos e amigos. Na segunda parte, “Jerusalém – diário político”, o caminho de E. S. cruza com o de uma jovem e misteriosa mulher que, no final do filme, será responsável por reger um complexo e louco balé de viaturas israelenses pelas ruas da cidade.1 O segundo filme, Intervenção divina, também se estrutura em duas partes, novamente centradas nas cidades de Nazaré e Jerusalém – mais especificamente, na barreira entre Ramalá
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1. Desenvolvemos uma
primeira análise de Crônica de um desaparecimento em trabalho apresentado no V Encontro Anual da AIM, ocorrido em maio de 2015 em Lisboa. No presente artigo, desenvolvemos algumas questões que já tinham sido apontadas naquela apresentação.
2. Em 29 de novembro de
1947, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas aprova a divisão da Palestina (então sob administração britânica) em dois estados: um judeu e outro árabe. Em 14 de maio de 1948, o presidente da Agência Judia para a Palestina, David BenGurion, anuncia a fundação do Estado de Israel. Os palestinos, com o apoio de países árabes vizinhos, não reconhecem o novo país e tem início a chamada Guerra de Independência de Israel, que os palestinos denominam Nakba, a primeira de uma série de conflitos entre árabes e israelenses. A guerra termina em 1949. Israel não só vence, como consegue a ampliação do Estado judeu. 3. A Guerra dos Seis Dias
(1967) consistiu em um conflito armado entre Israel e uma liga de países árabes: Egito, Jordânia e Síria, apoiados pelo Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Argélia e Sudão. Israel sai vencedor, ampliando a ocupação para a Cisjordânia, o setor oriental de Jerusalém e as Colinas de Golã, na Síria. 4. Nasser foi Presidente da República do Egito de 1954 até sua morte, em 1970. Participou do movimento que aboliu a monarquia no Egito e promoveu o pan-arabismo (política de reunião dos países árabes em uma grande comunidade de interesses). 5. A Intifada é um levante espontâneo da população da Palestina, armada com pedras e paus, contra a presença israelense nos territórios ocupados. A Primeira Intifada, à qual o
e Jerusalém. A primeira parte se detém no cotidiano do pai de Suleiman e dos poucos vizinhos. As relações entre os personagens são sempre tensas, presas em enquadramentos rígidos e em situações que beiram o absurdo. Ausente durante toda a primeira parte, E. S. aparecerá após um colapso sofrido por seu pai, quando tem início a segunda parte do filme. O personagem se dividirá, então, entre as idas ao hospital e os encontros furtivos com uma namorada misteriosa e poderosa: ela consegue, com passo firme e olhar desafiador, derrubar o posto de controle de fronteira com seu simples caminhar; no final do filme, se revelará guerreira ninja, com poderes de super-herói capaz de dar fim a um grupo de soldados israelenses em treinamento. Aqui também alguns comentários pontuarão a estrutura do filme, dessa vez escritos em pequenos post-its que o personagem cola nas paredes, terminando com a breve anotação “papai morreu”. O que resta do tempo – crônica de um presente ausente, filme sobre o qual nos debruçaremos nesta análise, elabora uma espécie de flashback emoldurado pela chegada de Suleiman à casa agora habitada unicamente pela mãe, numa viagem de táxi do aeroporto à cidade de Nazaré, percurso interrompido por uma grande tempestade. Entre o início da tempestade e a calmaria desenrola-se a história da ocupação palestina, desde a criação do Estado de Israel até os dias de hoje. Dividido meio frouxamente em quatro partes, o filme desfila episódios importantes da história do lugar, contados por meio de acontecimentos vividos, na primeira parte, pelo pai do personagem, e depois por Elia criança, adolescente e finalmente adulto, sempre calcados na banalidade de situações cotidianas da família e dos absurdos a que são submetidos pela repressão israelense. Com grandes elipses demarcadas por alguns segundos de tela preta, em O que resta do tempo sublinha-se a fundação do Estado de Israel em 19482 e a resistência palestina, que leva à prisão de Fuad (pai de Elia); a infância do diretor, marcada pelo recrudescimento da ocupação israelense após a Guerra dos Seis Dias3 e pontuada, no filme, pela morte de Gamal Abdel Nasser em 1970;4 a juventude, correndo ao lado da Primeira Intifada Palestina,5 quando Elia é associado aos manifestantes árabes e aconselhado a deixar o país; e os dias atuais, quando Suleiman visita sua mãe durante as festas de fim de ano. Nesse último segmento, o personagem transitará entre Nazaré – a casa materna, agora sob os cuidados de um vizinho
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policial e uma empregada asiática – e Ramalá – onde presencia a atual resistência árabe. Por fim, temos uma espécie de posfácio em que o personagem retorna outra vez à casa da família, agora para testemunhar os últimos momentos de vida de sua mãe.
filme faz referência nesse momento, se dá no fim da década de 1980, e a Segunda se passa nos anos 2000.
Para efeitos de análise do filme, enumeramos e contextualizamos os episódios essenciais que pontuam a narrativa. Eles não são, no entanto, de modo algum explicados pelo diretor, mas apenas apreendidos de passagem – uma notícia vista na televisão (a morte de Gamal Abdel Nasser) ou um acordo caricatamente assinado e “imortalizado” em fotografia (o acordo entre as forças militares israelenses e o governo de Nazaré em 1948). Como os filmes anteriores, O que resta do tempo valoriza as pequenas situações cotidianas, caracterizando-se por uma estrutura baseada na fragmentação e repetição de episódios, mediada por múltiplas referências e citações a outros filmes ou gêneros cinematográficos, aproximando-se especialmente do burlesco. Assim como outros diretores da tradição burlesca (Jacques Tati e Buster Keaton, por exemplo, são referências confessas), o diretor cria para si um personagem com quem partilha não só o corpo, mas também o nome, a profissão, alguns episódios biográficos. Nos três filmes, E. S. é um personagem interpelado pelas situações cotidianas, sem a elas reagir. Sua figura impotente parece apenas observar os episódios, a partir de uma distância (não só espacial, mas encarnada em sua postura/atuação) que o coloca num lugar quase à parte, deslocado, como se não fosse mais possível a integração ao cotidiano para alguém que retorna do exílio. Parece-nos que a experiência de exílio e retorno é fundamental na elaboração da obra de Suleiman e, tal como equacionada nos filmes, permite um olhar distanciado, mas não desimplicado, dirigido ao presente. Assim, se fazem necessárias algumas palavras acerca do exílio palestino antes de continuarmos. Suleiman nasceu na década de 1960 na cidade de Nazaré, território que desde 1948 pertence a Israel. Ali, o árabe-palestino vive numa condição que o pensador Edward Said (2012: 118) chamou de “exílio interno”: “ganhou o status jurídico de um indivíduo menos real do que qualquer um que pertencesse ao ‘povo judeu’”. Ainda que o diretor efetivamente tenha saído do país na década de 1980, vivendo entre Estados Unidos (onde começou sua carreira de cineasta) e Europa, a “presença ausente” comum aos árabes habitantes de Israel faz do exílio algo bastante peculiar ao povo palestino.6
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6. Edward Said escreveu
vários textos sobre a cruzada empreendida pelo sionismo para apagar da região da Palestina a existência do povo palestino. É de seus textos (ademais do subtítulo do filme que aqui analisamos) que tomamos a expressão de uma “presença ausente”, que se refere à condição dos palestinos vivendo sob a ocupação israelense, desprovidos de direitos básicos como o da própria terra.
Vivendo já há mais de seis décadas sob o jugo israelense, desde a expulsão de suas terras em 1948, os palestinos assistem a uma repetição farsesca do jogo político internacional, marcada por sucessivas incursões do exército israelense em territórios palestinos (Gaza e Cisjordânia). Essas incursões terminam com um cessar fogo sempre provisório, quando a situação volta ao “normal”: o território e a população palestina são controlados e bloqueados pelo governo israelense, que lhes nega o direito de viver em um estado viável e soberano nas terras que historicamente foram suas. Idelber Avelar destaca, nesse contexto, as “inúmeras distorções, falsificações, encobrimentos de indícios de limpeza étnica e uma massiva e poderosa campanha de propaganda do estado sionista” (AVELAR, 2009) que atravessa a história palestina. Edward Said, no ensaio “Entre mundos”, no qual reflete sobre seu trabalho de escritor, ressalta a necessidade constante de afirmar a existência de sua própria história:
“Não existem palestinos”, disse Golda Meir em 1969, e isso estabeleceu para mim e muitos outros o desafio algo absurdo de refutá-la, de começar a articular uma história de perda e expropriação que tinha de ser deslindada, minuto a minuto, palavra por palavra, polegada por polegada, da verdadeira história da criação, da existência e das realizações de Israel. Eu trabalhava quase que inteiramente com elementos negativos, com a não-existência, a não-história que eu precisava de algum modo tornar visível apesar das oclusões, representações erradas e negações (SAID, 2003: 310).
O povo palestino não é só marcado pela invisibilidade política e histórica, mas também pela privação do território: além dos milhares de mortos, dois terços da população foram expulsos de suas terras no Nakba, o grande desastre para os palestinos, também chamado de Guerra de Independência de Israel, em 1948. Além da expulsão, todas as propriedades foram tomadas e, de acordo com Said (2003: 291), “eles deixaram de existir como povo”:
[…] fizeram com que não existíssemos lá, nos tornaram invisíveis, e a maioria de nós foi expulsa e rotulada como nãopovo; uns poucos ficaram dentro de Israel e foram chamados juridicamente de “não-judeus”, em vez de “palestinos”. O resto deixou de existir oficialmente, e a maioria, que fugiu
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para o mundo árabe, foi confinada em campos de refugiados; aprovaram-se leis odiosas para eles, que se tornaram refugiados sem pátria. No mundo árabe e na esfera internacional, nossa história e nossa existência nacional não foram reconhecidas ou foram tratadas como uma questão local. (SAID, 2003: 292)
A questão palestina tem múltiplas facetas e complicadores. O que aqui nos interessa é refletir sobre as formas encontradas para a organização e narração dessa história e da experiência presente, as ficções possíveis para a configuração dessas vidas marcadas pelo exílio – e o exílio em dupla perspectiva, como mostramos: ele não se restringe aos que foram obrigados a sair e oficialmente não têm para onde retornar, mas se estende também aos que ficaram, expatriados em sua própria terra. Como organizar narrativamente o tempo, uma vez que o espaço foi suprimido? Em O que resta do tempo, parece-nos que, ao retratar a zona de conflitos entre palestinos e israelenses, o diretor busca na coreografia da banalidade absurda do cotidiano os elementos que podem dizer algo sobre o mundo que o cerca. Ao refletir sobre a obra elaborada pelo cineasta, encontramos nas relações entre política e ficção estabelecidas pelo filósofo Jacques Rancière um caminho para nos aproximarmos de um cinema que, ao colocar em cena um cotidiano violentamente controlado, inventa maneiras de romper com “a lógica do consenso que submete previamente as imagens a seu sentido” (RANCIÈRE, 2013: 14).
Política, arte, ficção Num primeiro momento, parece-nos importante delinear um contorno para os termos com os quais estamos lidando. Jacques Rancière trabalha a noção de política como algo que opera no campo da “partilha do sensível”. Traçaremos um percurso que nos leva da ideia da partilha do sensível para a definição de política que daí decorre, compreendendo como a arte trabalha enquanto reconfiguração do sensível – nesse caso, inseparável da dimensão política, como veremos – e qual a reflexão sobre a ficção que se instaura com isso. Rancière parte de uma reformulação do conceito de política. Para o autor, a política não tem a ver, como frequentemente associamos, com os processos de consentimento
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ou consenso, com a organização dos poderes e a gestão das populações, que distribuem lugares e funções, e os sistemas que legitimam essa distribuição – para isso, o autor guarda o termo polícia. A palavra política é reservada para o conjunto de atividades que vêm justamente perturbar essa ordem, essa distribuição de espaços. A política opera pelo dissenso “no sentido mais originário do termo: uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável” (RANCIÈRE, 2006: 372). A política se configura no campo da “aparência”, do que aparece. O que está em jogo é a partilha do sensível, o que “faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (RANCIÈRE, 2009: 16). A política é o que instaura mas também reconfigura o sensível, e opera no âmbito do dissenso, de um confronto que, mais do que disputa de pontos de vista, se define como “um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que nele falam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são designados” (RANCIÈRE, 2006: 374). Ao compreender que a política se dá no campo do sensível, nas determinações sobre o que se dá ou não a ver, o autor identifica uma dimensão estética na base da atividade política, e vincula-a à arte: ambas são operações que caminham em movimentos afins. As práticas artísticas são processos que intervêm na distribuição geral das formas de visibilidade, que configuram outras formas, que podem subverter ou desconstruir os modos estabelecidos de ver e de pensar o mundo visível, consensual. Assim, a relação entre arte e política vai muito além de uma “representação” de estruturas sociais ou de conflitos, de uma mensagem mobilizadora ou conscientizadora do público. A arte é política na medida em que configura modos de perceber ou de sentir espaços e tempos, e altera ou determina maneiras de habitar esse espaço-tempo. “Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras” (RANCIÈRE, 2010: 46).
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É a partir dessa concepção de arte e política que a noção de ficção é definida pelo autor. Não se trata, de maneira nenhuma, de uma divisão entre gêneros – a ficção como o oposto ao documental, ou a ficção como o fabular, em oposição ao real –, mas de uma possibilidade de configuração e distribuição do sensível. A ficção diria respeito aos “rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2009: 59). A ficção, entendida como construção do espaço que abriga o que pode ser dito ou visto, é o que configura as diversas apreensões do real, não sendo privilégio ou exclusividade das artes. Não há real em si, mas maneiras como os objetos de nossas percepções são configurados, por meio de ficções. E há inclusive a ficção dominante, aquela que constrói consensos, evitando se deixar apreender como ficção, fazendo-se passar pela realidade. Assim, o trabalho da ficção, seja ela a da ação política ou a da forma artística, é de fraturar, de imprimir fissuras no consenso, desenhando outras paisagens do visível. O que nos importa pensar são os modos como os artistas ou as obras concedem sentido ao que antes não era visto, como eles mudam os referenciais daquilo que pode ser visível e enunciável. O que nos desperta interesse são os modos como a arte – o cinema, neste caso – mostra de outro jeito, correlaciona o que aparentemente não tem relação, produz rupturas no aparente. Para Rancière, é neste sentido que devemos compreender a ficção: Ficção [...] é o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. Esse trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras. (RANCIÈRE, 2012b: 64-65)
É em diálogo com esses conceitos que abordamos a obra de Elia Suleiman.
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A ficção de um “presente ausente” – os quadros, o espaço, a encenação Na reflexão sobre O que resta do tempo, gostaríamos de nos ocupar, num primeiro momento, com o trabalho de reconfiguração do espaço em que se colocam palestinos e israelenses em conflito, observados a partir da distância que mencionamos na apresentação da trilogia. No filme, predomina um distanciamento vinculado, pela imagem, ao personagem/ diretor, que tudo observa sem nunca pronunciar uma palavra. De modo recorrente, podemos vê-lo olhando o que se passa na cidade através de janelas, varandas ou sentado na calçada, uma postura observativa traduzida pela imobilidade do olhar: o uso frequente da câmera fixa e o enquadramento mais aberto, próximo ao ângulo natural da percepção humana. A distância, no entanto, não é apenas física, relacionada ao personagem, mas é acentuada também pelas múltiplas mediações propostas pelos recursos cinematográficos (destacadamente aqueles herdeiros do burlesco), que desnaturalizam – e “estranham” – o cotidiano marcado pela ocupação militar. Em uma das sequências que se passam na juventude de Suleiman acompanhamos uma “disputa” entre médicos e soldados por um paciente, num comprido corredor de hospital. A cena decorre em um longo plano aberto, bloqueado pela série de batentes das janelas do corredor, pelo qual passam médicos com a maca, correndo para um lado, seguidos de soldados; após uma pausa, voltam os soldados com a maca, seguidos pelos médicos, que recuperam o paciente. A situação repete-se algumas vezes, até que os médicos sejam violentamente reprimidos pelas armas dos soldados, que “ganham” a disputa. Ainda que trágica, a cena ilustra a dimensão cômica da encenação do filme, filiada ao burlesco, que trabalha com corpos e objetos no espaço da cena para subverter e contestar os ordenamentos e as regras. Mesmo que os soldados tenham saído “vitoriosos”, esta exposição dos modos de funcionamento da ordem vigente ressalta a sua dimensão risível, ridícula, desmontando-a. Lembremos aqui das reflexões de Henri Bergson acerca do cômico, desenvolvidas no livro O riso – Ensaio sobre a significação da comicidade (2001). O autor reflete sobre o desenho caricato, o teatro e a comédia dos palhaços e bufões, tradição que chegará ao
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cinema burlesco. Neste ensaio, o autor destaca como risível aquilo que mostra a rigidez mecânica no lugar da maleabilidade e da flexibilidade de uma pessoa viva. A comicidade, para o autor, viria de certo desvio da naturalidade da vida, do imbricamento entre a vida e o mecânico, o corpo e a coisa: “A comicidade é esse lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, aspecto dos acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um tipo particular, imita o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim o movimento sem a vida” (BERGSON, 2001: 64-65). É por isso que a repetição é recurso frequente na comédia: a vida não deveria repetir-se; nas situações de repetição, pressentimos o mecânico, o automático, funcionando por trás do vivo. A “mecanicidade” dos personagens de O que resta do tempo é ressaltada por uma encenação bastante elaborada, impressa nas pequenas ações cotidianas dos personagens. Nos quadros fixos, o filme desenvolve arranjos gráficos utilizando elementos cênicos e figurantes geometricamente posicionados, em composições bastante equilibradas, em meio aos quais a ação principal irá se desenrolar em movimentos coreografados: no ambiente íntimo da casa, por exemplo, durante a infância de Elia, todos levam a xícara à boca ao mesmo tempo, com trocas marcadas de olhares. Esse automatismo dos corpos, ao mesmo tempo em que insere toques sutis de comicidade, ressalta a “feitura” do filme, a ficção como o espaço de reelaboração do vivido. O componente cômico é, em outras sequências, reforçado também pela postura de “observador distanciado” assumida pelo personagem, que estranha o cotidiano e consegue perceber ali a incongruência de uma situação considerada “normal”, o que acentua nos outros personagens a inconsciência do automatismo de suas ações. No último segmento do filme, acompanhamos o personagem Elia melancólico e observador na grande cidade ocupada, Ramalá. A sequência começa ainda no hotel, com o plano fechado no rosto do personagem que dorme. O ambiente está completamente silencioso, até que irrompem sons de gritos, tiros, correria, que despertam o personagem. Ao se aproximar da janela, Suleiman vê manifestantes em confronto com soldados israelenses. O personagem volta para a cama, e o barulho do confronto é subitamente interrompido; em meio ao silêncio, só ouvimos um rangido de rodinhas. Elia se aproxima da janela de
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novo e vê que o som é de um carrinho de bebê, levado por uma mulher que desafia os soldados. Assim que ela passa, o confronto continua. Na cena seguinte, Elia sai do hotel e, por sobre um muro, acompanha com o olhar um morador que sai de casa para colocar o lixo na rua. O telefone do homem toca, e ele começa uma conversa banal, caminhando distraidamente de uma calçada a outra. Atrás dele, um tanque de guerra, desproporcional para aquela cena tão pacata, persegue com sua mira o indiferente morador, até que ele volte para casa, sempre ignorando o grande canhão. Tudo é filmado em um plano aberto lateral, intercalado por alguns planos frontais do rosto de Suleiman, escondido atrás do muro. O som exagerado que ouvimos na cena – o ruído do giro da mira, mais alto até que a voz do morador – acentua os movimentos da máquina, e torna mais notável a indiferença do homem que fala ao telefone. Quando o morador entra novamente em casa, a mira do tanque varre a rua até apontar diretamente para a câmera – parece apontar para Elia, mas também nos mira, espectadores. Sobre o som ambiente da rua, soam rajadas que poderiam ser disparos dos policiais que dispersavam os manifestantes na cena anterior. Mas o corte nos leva para uma casa/boate durante a noite, e a música eletrônica que anima a festa é o que sintetiza aquelas batidas/disparos. A casa, vista do exterior, cercada por vidraças, abriga vários jovens dançando. Um carro do exército se aproxima, avisando, em vão, do toque de recolher. Parados ali, sem conseguir acabar com a festa, os soldados são envolvidos pelo ritmo da música, balançando a cabeça enquanto continuam anunciando o toque de recolher. A sequência, parece-nos, poderia dialogar diretamente com a ideia de política proposta por Jacques Rancière: aquilo que desestabiliza a ordem, a “distribuição sensível dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2006: 372). Suleiman coloca em jogo esse sistema policial, figurado nos corpos autômatos dos homens fardados. Aqueles jovens árabes impedidos de uma vida comum nos territórios israelenses ignoram a ordem estabelecida, criando maneiras de ocupar seus espaços. O diretor, ao escancarar na cena o componente absurdo do funcionamento da repressão, quebra a ordenação do mundo instaurado, oferecendo a possibilidade de novas compreensões ou novas configurações do visível/ dizível. Parece haver uma preocupação em colocar o “inimigo” em cena, mas deslocado de sua aparição recorrente: os soldados
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israelenses aparecem sob um modo derrisório, diminuídos em seu poder, personagens que, na figuração do cotidiano proposta por Suleiman, não são muito mais do que corpos que fazem funcionar a máquina da ocupação, inconscientes de seus gestos. De acordo com Bazin (1991: 64), “se o burlesco triunfou antes de Griffith e da montagem, foi porque a maioria das gags dependia de uma comicidade do espaço, da relação do homem com os objetos e com o mundo exterior”. Com Suleiman, como tentamos mostrar, a comicidade passa, em grande medida, pela coreografia dos gestos, numa relação particular com os espaços e os objetos em cena. Parece-nos que esta é uma das estratégias de instauração do dissenso, que contribui, quase sempre, para propor outra visibilidade aos que vivem sob o conflito. Pela via da encenação burlesca, os opressores são destituídos do poder com que oprimem os palestinos. Quando Fuad foge pela cidade, no início do filme, observamos com ele, de longe, homens fardados em um pequeno beco, saqueando uma casa. Um deles traz um gramofone e coloca para tocar uma valsinha, que servirá como base para que dois soldados desenvolvam passos de uma dança patética, enquanto dobram juntos um grande lençol branco. Em diálogo com a encenação burlesca, marcada pela repetição de acontecimentos e atuações rigidamente coreografadas, é preciso atentarmo-nos para o espaço enquadrado pela câmera. Naquela sequência do hospital descrita anteriormente, mais uma característica importante do filme se destaca: a vinculação ambígua do enquadramento ao ponto de vista do personagem de Suleiman. Após vermos os soldados levarem o paciente, um corte nos leva ao quarto onde Fuad é atendido, acompanhado por Elia, que olha para fora por uma janela, estabelecendo uma ligação entre ponto de vista da câmera e ponto de vista do personagem. Essa ligação, que muitas vezes aparece clara, por vezes nos engana: é o caso da cena em que Fuad dirige sozinho pela estrada, que está bloqueada por um caminhão tombado, carregado de armas israelenses. A sequência se desenvolve em plano fixos nos quais a câmera, ora olhando para Fuad, ora olhando para o caminhão, permanece ostensivamente presa ao banco do carona, sugerindo uma presença ao lado do motorista que, no entanto, não se concretiza no corpo de nenhum personagem.
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Acreditamos que as escolhas bem marcadas do ponto de vista da câmera, assim como os modos de enquadrar essas vistas em planos fixos, contribui para ressaltar não só a imobilidade e a impotência do personagem principal (e, talvez, a nossa, espectadores), mas se relaciona também com a aposta no cinema como possibilidade de construir, ou restituir, um espaço e uma imagem aos palestinos, uma resposta ao processo de desterritorialização sofrido por eles. Lembremos, por exemplo, dos interiores das casas palestinas que aparecem na primeira parte de O que resta do tempo: simétricos, amplos, iluminados, decorados, e que afirmam uma existência violentamente apagada pela ocupação israelense. Por outro lado, o diretor propõe intervenções fantasiosas sobre a realidade, que também dizem respeito aos modos de ocupação do espaço. No último segmento do filme, temos a emblemática cena em que Suleiman, adulto, na cidade de Ramalá, munido de uma vara para salto em altura, tenta transpor o muro que faz a divisão entre as regiões árabe e israelense (e com esse gesto coloca em jogo, simbolicamente, as ideias de nação, território, bloqueio). Qual o lugar de um povo sem território? Como dar lugar a essa gente? Os interiores das casas somam grande parte do filme, fazendo com que os corpos, que obedecem a uma gestualidade quase autômata, não tenham amplo espaço de ação e movimentação. A mise-en-scène é precisa, com o espaço cênico arquitetado para manter os personagens restritos a determinados cômodos, muitas vezes reenquadrados por móveis, portas ou janelas. Quando Suleiman reencontra sua mãe, já velhinha, na casa agora habitada por uma empregada asiática e seu marido policial israelense (ambos cuidadores da senhora), ele a observa na varanda. Ainda ocupando o mesmo espaço da juventude, a mulher não mais escreve cartas, simplesmente fica ali. Em diferentes momentos do dia, a velha senhora aparece no centro do plano, enquadrada pela janela da casa, sentada à mesa, de perfil, com a cidade ao fundo. Seu olhar está perdido no vazio. Na noite de ano novo, os fogos de artifício colorem o céu com as cores da bandeira palestina. A empregada corre para ver, e impele a mãe de Elia a que olhe também. Mas, uma vez mais, a mulher desloca seu olhar para o vazio. Ainda que a cidade esteja ali, é como se não houvesse horizonte para aquele olhar.
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Nos espaços externos, o que vemos é uma cidade quase esvaziada de corpos. Não há outras presenças que não aquelas estritamente necessárias. Além de vazia, a cidade é um espaço não demarcado: há esquinas, ladeiras, escadas, mas não se apreende, em sua totalidade, a configuração do lugar. Voltemos ao início de O que resta do tempo: a primeira cena do filme, depois do crédito do título, mostra um soldado caminhando por uma pequena rua, num plano frontal. Um corte nos mostra um grupo de civis armados sentados em mesas distribuídas na calçada. O plano é também frontal, e eles acompanham com os olhos o soldado que passa. Novamente, há um corte para o soldado. Estabelece-se um diálogo entre os civis e o soldado, num esquema de plano e contraplano que, no entanto, não se dá sobre o mesmo eixo: a câmera varia entre um plano frontal da rua e um plano frontal da calçada, formando um ângulo de 90º entre elas. O soldado procura por uma cidade, os civis lhe dão a direção apontando com o braço. O soldado se põe a caminhar, e os civis o enviam para outro lugar. Esse jogo de plano e contraplano com eixo variado e deslocamento das direções – dos braços que apontam e da marcha do soldado – faz imperar a confusão espacial, dando a ver o espaço desconfigurado do filme, ao mesmo tempo em que se distancia da solução mais recorrente no cinema clássico – o plano/ contraplano sobre o mesmo eixo. Por fim, o soldado senta-se à mesa com os civis, já não havendo mais lugar para onde ir.
A narração dos restos: os giros do tempo Em O que resta do tempo, Elia, criança, leva para casa diversas vezes um prato de lentilhas oferecido pela tia Olga, mas que vai direto para o lixo. A tia, por não enxergar direito, sempre confunde os personagens na televisão com membros da própria família. Ao longo da infância e juventude de Elia, vemos por três vezes seu pai e um amigo serem interrompidos durante a pescaria noturna por guardas israelenses que, sem saírem do jipe em que fazem a ronda, apontam uma luz forte e fazem bobas perguntas de rotina: enquanto querem saber de onde são e se levam seus documentos, perguntam também se não sentem frio, se os peixes estão fisgando ou se em Nazaré não tem mar. Ainda que acompanhemos o crescimento de Elia, temos a sensação de imutabilidade do cotidiano, de imobilidade, reforçada também pela repetição de enquadramentos. A mãe,
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na varanda, sentada à pequena mesa em que lê ou escreve, é mostrada recorrentemente sempre no mesmo ângulo, como se nada mudasse. Elia, em sua juventude, observa pela janela do quarto o confronto entre palestinos e israelenses, e a cena se repete no quarto do hotel em Ramalá, com o personagem já adulto. Ressaltando a pouca transformação pela qual passa o mundo retratado pelo filme, a repetição vai além daquilo que sucede a um mesmo personagem, parecendo ser geracional: no início do filme, presenciamos Fuad, sentado com companheiros armados na calçada de um café, esperando o que virá após a rendição de Nazaré; no fim do filme, é Elia e seus amigos que ocupam aquela mesma calçada, agora esperando não se sabe o quê. Se, como dissemos, a repetição dos gestos contribui para a instauração da comicidade, a repetição das situações, com mínimas modificações, nos prende a um presente que não acena com possibilidades de futuro. No desenrolar da coreografia das banalidades, os personagens parecem presos em um “presente ausente”. O que há é o retorno constante aos mesmos gestos, às mesmas situações, numa estrutura quase cíclica. Essa elaboração temporal tem íntima relação com o contexto social e político sobre o qual o filme se detém: a repetição farsesca das ofensivas militares e dos acordos internacionais que mantêm a terra e os palestinos sob ocupação israelense, tal como destacou Idelber Avelar (2009). Ao mesmo tempo, as descontinuidades da montagem criam uma construção temporal singular que, por meio da ficção, dá forma a uma experiência da vida sob a ocupação israelense, experiência marcada pela violência, pelo apagamento da história, pelo exílio, e que por isso não pode ser totalizante, consensual, conclusiva. A figura do personagem encarnado por Suleiman é sempre a de alguém deslocado, distante, impotente, que observa os acontecimentos, o cotidiano. Mas, se o personagem é impotente, o filme, de seu lado, se vale dos recursos da ficção para estabelecer uma possibilidade de retorno ao vivido para reformulálo, reapresentá-lo sob novas formas, novas configurações, guiado por outra temporalidade. Suleiman parece optar por um controle da cena, do plano, da montagem, não para organizar o desestruturado, e sim para ressaltar o estatuto aleatório, absurdo, irracional do mundo. O diretor coloca em cena a experiência da vida sob a
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ocupação israelense, e a forma cinematográfica possível para essa vida parece passar, pelo que vemos em O que resta do tempo, pela encenação coreografada e pelo cotidiano desnaturalizado; pela construção do espaço no quadro, que confina e complexifica as relações entre corpo e espaço; e pela fragmentação dos episódios, que instaura uma temporalidade difusa. O que temos no filme é uma suspensão da continuidade temporal, que dá lugar à rememoração da história. Ainda que o filme siga uma cronologia que remete aos marcos importantes da ocupação e da resistência palestina, as partes que o compõem estão estruturadas em episódios que quebram a sucessão dos acontecimentos, e impõem uma temporalidade mais confusa. Isso fica mais evidente se pensamos, por exemplo, nas cartas escritas pela mãe à cunhada na abertura da segunda e da terceira partes: ao narrar situações cotidianas, as cartas antecipam alguns acontecimentos da vida da família, e a montagem que o filme faz, em seguida, retorna com os episódios contados, numa sucessão que embaralha a progressão natural dos fatos narrados. Quando ela conta da tentativa de suicídio do vizinho, por exemplo, um som interrompe a escrita da carta, um corte nos mostra a vizinha que chega à porta pedindo ajuda, e ao voltarmos para a cozinha onde a mãe escrevia, já estamos em outro tempo. Esses sutis jogos de montagem, câmera, corpo e espaço traduzem uma outra apreensão do lugar e do tempo. Como ressaltam Ângela Prysthon e Marcelo Pedroso (2013: 482), há neste cinema uma militância que
[…] guarda talvez a faculdade de atenuar temporariamente, no campo do sensível, o pesar da violência, da morte, da dor que atravessa décadas de conflito, mas que talvez justamente por trazer essa aparente – e falsa – leveza, consegue repor em jogo o peso de tal fardo histórico, contribuindo para introduzir novas perspectivas de entendimento do estado das coisas.
Julgamos que em O que resta do tempo a elaboração de uma narrativa fragmentada e descentrada, com o controle rigoroso da mise-en-scène e da construção temporal, é um modo de afirmar o cinema como lugar de criação, de reinvenção ou de desnaturalização dos sentidos e das ficções construídas pelo poder. Se há aqui um forte componente político, no sentido
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mais tradicional do termo, uma vez que trata-se de um cinema realizado em uma região de conflito, de disputa por território e autonomia, não há, por outro lado, um tratamento usual do tema. Como nos lembra Jacques Rancière, o que está em jogo é a maneira como o cineasta trabalha com a ficção e com os dois significados da palavra política que a caracterizam:
[…] a política como aquilo de que trata um filme – a história de um movimento ou de um conflito, a revelação de uma situação de sofrimento ou de injustiça – e a política como estratégia própria de uma operação artística, vale dizer, um modo de acelerar ou de retardar o tempo, de reduzir ou de ampliar o espaço, de fazer coincidir ou não coincidir o olhar e a ação, de encadear ou não encadear o antes e o depois, o dentro e o fora. (RANCIÈRE, 2012a: 121)
Suleiman opta por um caminho que se esquiva das formas imagéticas e narrativas recorrentes. O filme se revela político não só porque retrata a vida sob a ocupação, mas porque se vale das operações de ficção para recolocar no jogo essa vida, deslocando a ordem policial por meio das operações do burlesco, da repetição e do trabalho de reconfiguração do espaço e do tempo. Nas condições do exílio constituintes do povo palestino, como narrar, tematizar, construir imagens para um retorno que é sempre incompleto? Lembremos que, já no início do filme, essa questão surge: quando o taxista se perde na tempestade e não consegue estabelecer contato pelo rádio, ele se pergunta, repetidamente: “Que faço agora? Como voltar para casa? Onde estou?”. A forma do filme nos leva a pensar que, para Suleiman, o lugar do cinema face ao cotidiano de exceção (criado pela ocupação israelense) só pode ser um lugar “exilado”, um lugar que aproveita o distanciamento conquistado no exílio e o transforma em imagem, em uma tradução espacial de uma aposta política.
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REFERÊNCIAS
AVELAR, Idelber. A questão humanitária definitiva do nosso tempo. In: O biscoito fino e a massa. Disponível em: <http:// www.idelberavelar.com/archives/2009/02/a_questao_ humanitaria_definitiva_do_nosso_tempo.php>. Acesso em: 19 de setembro de 2014. BAZIN, André. O cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. PRYSTHON, Ângela; PEDROSO, Marcelo. Elia Suleiman e as crônicas contra a desaparição. Contemporânea - comunicação e cultura. Salvador, v.11, n.3, p. 471-488, set-dez 2013. Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/ contemporaneaposcom/article/view/8859/6738>. Acesso em: 4 de junho de 2014. RANCIÈRE, Jacques. El poder del cine político, militante, “de izquierdas”. Entrevista a Jacques Rancière, concedida a Javier Bassas Vila. Cinema Comparat/ive Cinema. v. I, n. 2, p. 9-17, Primavera 2013. ______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012a. ______. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012b. ______. Política da arte. Urdimento. Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, UDESC/CEART, v.1, n. 15, p. 45-59, out 2010. ______. A partilha do sensível: estética e política. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2009. ______. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. 2. reimp. São Paulo/ Rio de Janeiro/ Brasília: Companhia das Letras/Ministério da Cultura/Fundação Nacional de Arte, 2006. p. 367-382.
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SAID, Edward. A questão da Palestina. São Paulo: UNESP, 2012. ______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FILMOGRAFIA
CRÔNICA de um desaparecimento (Chronicle of a disappearance). Elia Suleiman, Palestina, Israel, EUA, Alemanha, França, 1996, 88 min. HOMAGE by assassination. Elia Suleiman, EUA, 1993, 25 min. INTERVENÇÃO divina (Yadon ilaheyya). Elia Suleiman, França, Alemanha, Palestina, 2002, 92 min. O QUE RESTA do tempo: crônica de um presente ausente (The time that remains). Elia Suleiman, Reino Unido, Itália, Bélgica, França, 2009, 109 min.
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IMAGENS Capa: APERJ/ Retratos de identificação (Anita Leandro, 2014) Apocalipse. La 2eme Guerre Mondiale (Isabelle Clarke e Daniel Costelle, 2009) (p. 12) O fundo do ar é vermelho (Chris Marker, 1977/1993) (p. 28, 39, 40, 46) A patriota (Alexander Kluge, 1979) (p. 52, 56, 62) Noite e Neblina (Alain Resnais, 1956) (p.76, 83, 87) Fotografia realizada pelo Sonderkommando (p. 87) Imagens feitas por soldados ingleses no campo de concentração Bergen-Belsen (1945) (p. 92) Imagens feitas por Georges Stevens e reapropriadas em História(s) do Cinema (Jean-Luc Godard, 1988-1998) (p. 93) The specialist, portrait of a modern criminal (Rony Brauman; Eyal Sivan, 1999) (p. 98) Perro Negro – Histórias da Guerra Civil Espanhola (Péter Forgács, 2005) (p. 118, 129, 131, 132) The Halfmoon file (Philip Schefner, 2007) (p. 138) Como se vê (Harun Farocki, 1986) (p. 164, 169) Imagens do mundo e inscrições da guerra (Harun Farocki, 1988) (p. 4, 5, 176) Fogo Inextinguível (Harun Farocki, 1969) (p. 190) O que resta do tempo (Elia Suleiman, 2009) (p. 204)
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