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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA Enfoques. Revista dos Estudantes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. – v.1, n.14 – Rio de Janeiro: PPGSA, 2015- Semestral ISSN 1678-1813 1. Sociologia; 2. Antropologia; I. Universidade Federal do Rio de Janeiro; II. Centro de Filosofia e Ciências Sociais; III. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. CORPO EDITORIAL Organizadores da Edição Keila Lucio de Carvalho Leonardo Nóbrega da Silva Eduardo H. N. Borges Layssa Bauer Von Kulitz Marcelo Augusto de Paiva dos Santos Comissão Editorial Alexandre Barbosa Fraga Barbara Goulart Lopes David Gonçalves Soares Eduardo H. N. Borges Joana Ramalho Ortigão Corrêa Keila Lucio de Carvalho Layssa Bauer Von Kulitz Leonardo Nóbrega da Silva Marcelo Augusto de Paiva dos Santos Natália Helou Fazzioni Pedro Alex Rodrigues Viana Renata Montechiare Yago Quiñones Triana PARECERISTAS Adriana Amaral Ferreira Alves (UFES) Allene Carvalho Lage (UFPE) Ana Maria Simão Saldanha (UNESP) André Kaysel Velasco e Cruz (UNILA) Antonio da Silveira Brasil Junior (UFRJ) Bila Sorj (UFRJ) Caio Eduardo Teixeira Vasconcellos (USP) Carlos Eduardo Sell (UFSC) 2
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Carolina Burle de Niemeyer (UERJ) Claudia Junqueira de Lima Costa (UFSC) Daniel Fanta (UNESP) Davide Giacobbo Scavo (UFGD) Edilene Maria de Carvalho Leal (UNASE) Fabio Chang de Almeida (UEM) Fabio Rodrigues Ribeiro da Silva (UFJF) Fabricio Pereira da Silva (UNIRIO) Fernando Marcelo de la Cuadra (Universidade Estácio de Sá e CLACSO) Fernando Perlatto (UFJF) Florencia Stubrin (CLACSO) João Marcelo Ehlert Maia (CPDOC) Joana El-Jaick Andrade (IFMT) Manuel Tavares Gomes (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias) Marco Antonio Perruso (UFRRJ) Maria Ligia Ganacim Granado Rodrigues Elias (UEM) Maria Livia De Tommasi (UFF) Mariela Natália Becher (UERJ) Natalia dos Reis Cruz (UFF) Sara Araújo (Universidade de Coimbra) Thais França da Silva (Universidade de Coimbra) Vera Lúcia Maia Marques (UFMG) PRODUÇÃO EDITORIAL Projeto Gráfico, capa e diagramação Rayssa Natalia da Penha dos Santos (UVA) Revisão de textos Beth Cobra, Marcelo Augusto de Paiva dos Santos, Sabrina Primo, Vanessa Baptista dos S. Borges e Vânia Santiago. Tradução dos resumos Ben Kohn e Vanessa Baptista dos S. Borges.
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E D I T O R I A L APRESENTAÇÃO É característico da teoria social um constante exercício reflexivo que faz da discussão de suas próprias bases e conceitos uma atitude necessária. A partir da segunda metade do século XX, discussões acerca do estatuto dos conceitos passaram a questionar diversas perspectivas hegemônicas presentes nas ciências sociais. Os debates desenvolvidos no interior das críticas pós-coloniais trouxeram para o centro da discussão os problemas relacionados à pretensão de universalidade de conceitos construídos a partir de pontos de vista muito particulares. No mesmo período, a efervescente teoria sociológica latinoamericana chamou a atenção para a necessidade de se pensar as relações estruturais de poder e dominação. Tendo em vista tal panorama, a Revista Enfoques apresenta esta edição temática intitulada Teoria Social em Perspectiva Crítica cujos artigos se debruçam sobre diversas facetas deste campo de análise. Acentuadamente no início do século XXI, agentes fundamentais e tradicionalmente relegados ao segundo plano, por meio dos movimentos sociais, passaram a questionar diversos aspectos da construção epistemológica dominante nas ciências sociais. A perspectiva de uma sociologia pública é recolocada, de forma a tornar complexo o debate que envolve uma produção sociológica cientificamente comprometida e uma inserção dialógica do pensamento no debate público junto à sociedade civil. Este é o tema central do artigo de Keila Lucio de Carvalho, intitulado “Sociologia
pública e engajamento”. Através do estudo das contribuições de Michael Burawoy e de seus críticos, a autora sugere que este tema é fundamental na batalha sobre o futuro da sociologia. Os movimentos sociais assumem protagonismo na discussão da teoria social e não poderiam deixar de ser também foco de reflexão. É o que faz Sarah Carneiro em “O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e os desafios analíticos que o seu percurso sugere à teoria social”. A atuação política dos zapatistas, analisada a partir de comunicações veiculadas pelo grupo, é vista como uma voz contestatória, colocando desafios tanto de ordem social ao capitalismo mundial quanto às abordagens acadêmicas em torno dos próprios movimentos sociais. Também no campo dos movimentos sociais, Wesley do Espírito Santo apresenta em “Confrontando Escalas: contribuições da etnografia para as teorias sociais sobre movimentos populares urbanos”, um relato etnográfico sobre a V Conferência Nacional das Cidades, apontando as relações entre movimentos sociais urbanos e suas articulações em torno do Estado. O artigo de Leonardo Nóbrega da Silva argumenta que os processos políticos em curso na Bolívia e no Equador, a partir das noções de Buen Vivir e Pachamama, colocam em cena desafios para a teoria social contemporânea. Para tanto, o autor busca revelar os limites das teorias pós-coloniais, decoloniais e das epistemologias do 4
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Sul, apontando a necessidade de construção de um pensamento crítico que supere particularismos teóricos e metodológicos e que seja capaz de colocar em evidência a produção global de conhecimento no sentido político da emancipação humana. O horizonte de uma teoria social comprometida com a emancipação da humanidade também é objeto de reflexão em “Epistemologia das lutas sociais”. Roberta Lobo e Leandro dos Santos propõem uma análise a respeito do que seria uma “filosofia da liberdade”, vinculada às lutas sociais emancipatórias. Os autores buscam confluir as concepções presentes em Freud e Benjamim como forma de demonstrar a viabilidade epistemológica, para a teoria social, de elementos políticos e cognitivos presentes na memória e na experiência empírica das classes populares. A ênfase do artigo “Gênero e cultura: uma reflexão pós-colonial”, de Maria Eduarda Borba Dantas, recai na relação entre cultura e teoria política feminista. Nele, a autora propõe que o pensamento pós-colonial pode se apresentar como uma alternativa teóricoepistemológica, na medida em que auxilia a descentralizar o debate feminista que, muitas vezes, se pretende universal sem levar em conta os discursos e as práticas particulares das sociedades e culturas as quais estão envolvidas. A teoria das relações internacionais também é analisada, à luz do pensamento descolonial, por Alexandre da Fonseca, em seu artigo intitulado “Ocupar ou desocupar? uma reflexão sobre perspectivas em RI”. A análise sugere uma crítica à perspectiva eurocêntrica, uma vez que a teoria está relacionada a um conhecimento supostamente desterritorializado e neutro, ainda hegemônico nas relações
internacionais e na teoria social como um todo. “A revolução brasileira”, obra de Caio Prado Jr publicada em 1966, é analisada por Alexandre Loreto à luz da geopolítica do conhecimento, buscando sugerir sua pertinência à proposição de uma teoria social alinhada ao contexto social na qual está inserida. O autor examina a geopolítica do conhecimento como chave de análise para a obra do intelectual marxista, buscando apontar algumas pistas para a necessária articulação entre a elaboração teórica e as condições sociais e institucionais mais amplas para sua realização. O artigo de Aristeu Portela Júnior oferece uma reflexão sobre os pressupostos liberais no interior da discussão sobre a democracia presentes em Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes. O autor problematiza estes pressupostos, considerando que a apropriação do “liberalismo democrático”, apesar de se colocar como o fundamento de críticas sociais progressistas, apresenta limites, uma vez que acaba obscurecendo os alicerces sócio históricos nos quais a democracia pode emergir, para além de uma análise exclusivamente institucional desse fenômeno. Carlos Douglas Filho, em “O poder no islã clássico e na filosofia política de Ibn Khaldun: um estudo dos conceitos de umma e assabya”, traça uma construção dos conceitos apontando para a importância social que tiveram e o seu entrelaçamento, a partir do interesse em compreender a noção de poder no pensamento social árabe-muçulmano. O número também traz o artigo de Eric Monné, que apresenta uma reflexão sobre uma organização neonazista da atualidade. Tomando como referência as reflexões de Touraine, Tarrow e 5
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Honnet, o autor busca evidenciar que a negação do reconhecimento de formas diversas de alteridade, empreendida por esta organização, permite caracterizá-la como um “novo antimovimento social”. Se, por um lado, a ideia de uma teoria crítica possibilita um debate a partir das diversas vozes e enunciados políticos localizados na sociedade civil, por outro, pode também superar as
perspectivas particularistas, garantindo à teoria social o espaço para discussões gerais sem cair na substancialização e reificação dos fenômenos sociais. A Revista Enfoques espera, dessa forma, contribuir com o efervescente campo de discussões das ciências sociais em torno do estatuto dos seus conceitos e construções teóricas, mediados pelas práticas sociais em curso.
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ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS: SOCIOLOGIA PÚBLICA E ENGAJAMENTO Keila Lúcio de Carvalhoi Resumo Este artigo apresenta uma reflexão sobre a sociologia pública, através de um estudo das contribuições de Michael Burawoy e das principais críticas dirigidas a essa proposta, em torno das polêmicas acerca do engajamento dialógico com públicos no interior da sociedade civil. Tamanha reação no interior dos círculos acadêmicos parece indicar que a sociologia pública pode ser considerada um ponto focal de batalhas sobre o futuro da sociologia. Palavras chave: Sociologia pública, engajamento, sociedade civil, Michael Burawoy, Teoria Sociológica.
OPENING THE SOCIAL SCIENCES: PUBLIC SOCIOLOGY AND ENGAGEMENT Abstract: This paper presents a reflection over public sociology, through a study about Michael Burawoy’s contributions and the main criticisms to this proposal, around the controversy about the dialogical engagement with the public within civil society. Such reaction within the academic circles seems to indicate that public sociology can be considered a focal point of battles over the future of sociology. Keywords Public sociology, engagement, civil society, Michael Burawoy, Sociological Theory. Introdução
Sociological Association (ASA) em 2004. Seu discurso representou um diálogo com o relatório da Comissão Gulbenkian sobre a reestruturação das ciências sociais, dirigido por Immanuel Wallerstein e intitulado “Abrir as ciências sociais”. Para Burawoy (2007), o relatório demonstra a ausência da abordagem
Este artigo sugere uma reflexão sobre a sociologia pública, tendo como foco as contribuiçõesdosociólogoMichaelBurawoy, a partir de suas primeiras formulações que culminaram em sua célebre conferência na condição de presidente da American
Keila Lúcio de Carvalho é doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ) e professora da Coordenação de Sociologia (Campus Maracanã) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). E-mail: keilalucio@yahoo.com.br i
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de duas questões centrais. A primeira é “conhecimento para quem?”. A sociologia dialoga com seus próprios pares ou com pessoas exteriores à academia? De acordo com as indicações de Burawoy (2009b), esta questão diz respeito a uma distinção entre audiências: de um lado, a comunidade de acadêmicos e de cientistas que buscam compreender e explicar o mundo (audiência acadêmica) e, por outro, pessoas para além da academia (audiência extra-acadêmica). A segunda questão, “conhecimento para quê?”, separa analiticamente o conhecimento segundo seus meios seus fins últimos. O conhecimento sociológico é instrumental, ou seja, está preocupado em determinar os meios apropriados a determinados fins ou, por outro lado, é reflexivo, dedicado à discussão daqueles mesmos fins? Esta questão se refere à maneira pela qual diferentes grupos podem se beneficiar da sociologia enquanto conhecimento que auxilia os indivíduos a compreenderem seu lugar no mundo (Burawoy, 2009b) e reconhece os próprios intelectuais (inclusive os sociólogos) como partes inerentes do mundo por eles estudado (2005b). É com base nessas duas questões1 relacionadas ao caráter reflexivo da sociologia orientado para audiências extra-acadêmicas que Burawoy vai formular sua proposta da sociologia pública. Abrir as ciências sociais, nesta perspectiva, significaria:
qual tematiza sua relação com os valores e as propostas da sociedade; e isso significa, por fim, abri-las às audiências extra-acadêmicas e particularmente aos públicos – especialmente aqueles ameaçados pela erosão de sua autonomia e de sua voz. (Burawoy, 2007: 146)
Os principais argumentos norteadores da ideia de sociologia pública foram apresentados por Burawoy em torno de onze teses,2 com o objetivo de amparar a defesa de uma sociologia capaz de consagrar-se não apenas como ciência, mas como força moral e política. Para os propósitos deste artigo, não recuperarei exaustivamente as onze teses de Burawoy, apenas as linhas gerais de sua argumentação teórica e metodológica em torno da questão do engajamento da sociologia e, por sua vez, do sociólogo enquanto ator político. A sociologia pública: engajamento e prática dialógica O desenvolvimento da sociologia acadêmica, principalmente norteamericana, resultou em uma especialização baseada na ideia de “ciência pura” – pretensiosamente livre de valores – que retirou, ao menos transitoriamente, o compromisso moral da sociologia de contribuir para a realização de mudanças na sociedade. Entretanto, concordamos com Burawoy (2005b) quando considera a insustentabilidade desta premissa, já que
Abri-las ao conhecimento reflexivo, o
A questão “Sociologia para quem?” foi posta por Alfred McLung Lee em 1976, em seu discurso presidencial da American Sociological Association (ASA). Já a outra questão, “Sociologia para quê?”, foi colocada por Robert Lynd em 1939. Segundo Zussman & Misra (2007), o discurso de Burawoy por ocasião de sua presidência da ASA, em 2004, resgata uma longa tradição na referida organização de discursos presidenciais que refletem sobre a disciplina e sua direção. Mas, segundo os autores, a novidade trazida por Burawoy diz respeito ao apelo a uma nova prática, para além da reconceitualização do pensamento sociológico (Zussman & Misra, 2007). 2 As onze teses de Burawoy foram apresentadas em sua conferência “For public sociology”, publicada na American Sociological Review (2005a). Elas correspondem a uma clara alusão às Teses sobre Feuerbach, que consistem em onze breves notas filosóficas escritas por Karl Marx em 1845. 1
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seu caráter antipolítico não é menos político que o engajamento público em si. Buscandose contrapor a uma concepção de ciência “pura” e “aplicada” da sociologia é que Burawoy propõe a sociologia pública está prioritariamente relacionada ao contexto da sociologia norte-americana, embora seja de extrema importância sua discussão em outros contextos nacionais, como o Brasil. Neste sentido, a sociologia pública consiste em uma concepção de superação positiva do perfil predominantemente acadêmico e profissional da disciplina, através do engajamento da sociologia com diferentes públicos fora do mundo acadêmico, visando ao fortalecimento da sociedade civil (2005b). Ainda segundo o autor:
à posição de Burawoy como presidente da ASA à época – e, posteriormente, como presidente da Associação Internacional de Sociologia (ISA)3 – quanto à sistematicidade e difusão de sua proposta em outros contextos nacionais. Juntos, tais elementos configuram-se importantes balizadores para a análise da pertinência da sociologia pública e seu lugar na teoria sociológica contemporânea. A intenção de Burawoy trata, então, de um apelo para a revitalização da sociologia em direção a uma sociologia pública, que poderia ser capaz de resgatar a “vocação moral” da sociologia, através do diálogo dos sociólogos a respeito da natureza da sociedade e seus valores, através da transformação dos problemas privados dos variados públicos em questões públicas.4 Interessa particularmente à discussão que pretendo desenvolver neste artigo a ideia de que os sociólogos podem – e devem –, segundo Burawoy, constituir-se como público e, deste modo, como atores políticos. A configuração proposta por Burawoy – sociólogos que se constituem como atores políticos e que estejam em diálogo constante com os demais públicos – pressupõe uma pluralidade de públicos e, consequentemente, compromissos axiológicos distintos. Em outras palavras, a necessidade de diálogo com os públicos não determina o conteúdo dos posicionamentos políticos e morais desses
Temos passado um século construindo um conhecimento profissional, traduzindo o senso comum em ciência, então, agora, estamos mais do que prontos para nos envolvermos numa sistemática retradução, devolvendo o conhecimento àqueles de onde esse conhecimento veio, tornando questões públicas para além de problemas privados e regenerando, assim, a fibra moral da sociologia. Localiza-se aqui a promessa e o desafio da sociologia pública, o complemento e não a negação da sociologia profissional. (Burawoy, 2005a: 5)
A importância da proposta da sociologia pública está relacionada tanto
Até alguns meses antes da finalização deste trabalho, Burawoy era presidente da Associação Internacional de Sociologia (Comitê Executivo 2010-2014). Foi membro do Conselho Executivo da Associação Americana de Sociologia (ASA) entre 2000 e 2005, estando na presidência da referida associação entre 2003 e 2004. 4 Uma importante referência para Burawoy neste sentido são as contribuições de Wright Mills, considerado “líder da sociologia pública tradicional” (Burawoy, 2005a: 9). Segundo Mills (1975), a sociologia deveria assumir seu caráter reflexivo, em constante diálogo com a vida cotidiana. Essas reflexões estão presentes na obra A imaginação sociológica, publicada originalmente nos Estados Unidos em 1959. Tal consideração não impede, contudo, a defesa de Burawoy por uma determinada concepção de sociologia pública, que o autor afirma manter diálogo com a teoria marxista. Esta questão será retomada posteriormente. 3
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mesmos compromissos. Isto porque, para Burawoy, toda sociologia repousa sobre um conjunto de valores e são estes valores que se tornam objeto de discussão e diálogo entre os sociólogos e os públicos. Como existe uma pluralidade de públicos e de valores, Burawoy (2005a) defende a existência de uma multiplicidade de sociologias públicas, desde as mais liberais até as mais críticas.5 Assim, uma primeira consideração de Burawoy é a existência de uma diversidade de públicos, com variadas orientações axiológicas (2005b). Para o autor, a definição de público supõe o mapeamento dos arranjos nacionais e, consequentemente, a avaliação das inter-relações de diferentes públicos no interior da esfera pública. Dada a atuação privilegiada da sociologia no âmbito da sociedade civil, a esfera pública aparece como um espaço de disputa possível, através do engajamento público (2005a). A sociologia pública tem, portanto, o objetivo de promover engajamento público mediante a necessidade de fortalecimento e democratização da sociedade civil, em tempos atuais de fundamentalismo de mercados e tirania dos Estados (Burawoy, 2009a). Os diversos pontos de vista da sociedade civil definem e constituem a unidade do olhar sociológico, sendo a sociologia pública, por estabelecer diálogos com os mais diferentes públicos, representantedosinteressesdahumanidade como um todo. Ainda assim, considera o caráter contraditório, marcado por cisões e dominações que, de maneira alguma, contemplaria a sociedade civil como uma espécie de “comunitarismo harmonioso” (2005a: 24). A sociedade civil é entendida como um campo de disputa, sendo, na
presente conjuntura, o melhor espaço para a defesa da humanidade, auxiliada pelo estímulo de uma sociologia pública de matriz crítica. Estas constatações colocam em cena alguns elementos que merecem destaque. Em primeiro lugar, a natureza conflituosa das relações entre Estado, sociedade e mercado. Em segundo lugar e, consequentemente, os antagonismos presentes no interior da sociedade civil, que a caracteriza como espaço de consentimento e resistência. Por fim, e desta maneira, os públicos são heterogêneos, orientados por identidades plurais, cujos interesses podem chocar-se uns com os outros. De todo modo, os esforços para explicar a história, os fundamentos e os processos internos das categorias de público, esfera pública, e sociedade civil, através do trabalho de reconstrução teórica a partir da síntese empírica, não deve ser dispensado. É neste sentido que tomar tais categorias como ideais normativos deslocados de uma análise das condições históricas que engendram e transformam essas categorias, é uma solução aqui desprezada. Em Burawoy – com base no pensamento de Antonio Gramsci – a sociedade civil é considerada como importante arena de luta de classes. É nela que as classes lutam para conquistar hegemonia, ou seja, a direção política. Por esta razão, é a esfera que resulta da socialização da política e faz parte do Estado, em seu sentido amplo. Na literatura que discute a relação entre o Estado e a sociedade civil, pode-se identificar uma vertente que procura situar a sociedade civil como parte da constituição de uma esfera pública, que se diferencia tanto
Tal consideração não impede, contudo, a defesa de Burawoy por uma determinada concepção de sociologia pública, que o autor afirma manter diálogo com a teoria marxista. Esta questão será retomada posteriormente. 5
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da esfera tipicamente estatal quanto das regras estritas do mercado. Como Burawoy argumenta, as cisões presentes no interior da sociedade civil são reproduzidas na divisão do trabalho no interior da sociologia, já que esta reflete, em última instância, a própria sociedade. Burawoy busca demonstrar que a sociologia pública não constitui o único horizonte possível para a sociologia, mas que está inserida em uma “divisão do trabalho” que inclui também a sociologia para políticas públicas, a sociologia profissional e a sociologia crítica.6 Segundo Burawoy (2005a), são as questões “para quem” e “para que” fazemos sociologia que norteiam o conhecimento sociológico e que o divide em quatro tipos de perspectivas diferentes, caracterizadas por sua interdependência na sociologia para políticas públicas, profissional, crítica e pública – a partir de um claro investimento na sociologia pública como conhecimento privilegiado de defesa da sociedade civil. Estas questões, longe de serem arbitrárias, dizem respeito à gênese da sociologia e às suas potencialidades teóricas e normativas. Burawoy (2007) busca enfatizar como as sucessivas condições históricas reconfiguram o conteúdo das relações entre
Estado, mercado e sociedade civil que, em última instância, condicionam as relações entre os quatro tipos de conhecimento sociológico, referidos anteriormente. Os conflitos disciplinares entre estas divisões refletem, de certa maneira, aqueles presentes nas articulações e processos sociais que engendram cada uma dessas “sociologias”. As próprias disputas em torno da proposta da sociologia pública são manifestações, segundo Burawoy, de um embate pela (re)articulação da divisão do trabalho sociológico. As lutas internas da sociologia e suas divisões, além de representarem uma interdependência positiva para a disciplina, não ofuscam o fato de que “os sociólogos compartilham de um programa distintivo, enraizado na defesa e na expansão da sociedade civil” (Burawoy, 2009a: 234). Somente quando as divisões forem reconhecidas como positivas ao desenvolvimento da disciplina – através de uma colaboração intradisciplinar – é que Burawoy parece ver realizar o ideal normativo da sociologia pública. Isto porque, segundo o autor, a tarefa de reconstrução disciplinar consiste em transformar a sociologia em si para a sociologia para si: da divisão antagônica e fragmentária do trabalho sociológico,
A especificidade da sociologia no conjunto das diversas disciplinas e a institucionalização da divisão do trabalho sociológico demarcada por Burawoy, embora possuam consequências metodológicas pertinentes à abordagem que busco privilegiar, não serão desenvolvidas neste artigo. Por ora, cabe destacar que a sociologia pública aparece, no interior da divisão do trabalho, como um ideal teórico e prático que depende da sociologia profissional. Assim, a sociologia profissional – em sua condição hegemônica no contexto atual da organização disciplinar da sociologia nos EUA – representa uma condição à própria existência da sociologia pública, já que consiste em um conhecimento instrumental dirigido a um público acadêmico e que estabelece o rigor científico da formulação de teorias, conceitos, métodos e técnicas de pesquisa sociológica, garantindo que as exigências científicas e a objetividade do conhecimento estejam asseguradas. Já a sociologia para políticas públicas tem como objetivo prover soluções para problemas de caráter público e coletivo e se define por sua provisão de serviços a partir de um conhecimento instrumentalizado a públicos extra-acadêmicos. Por fim, a sociologia crítica visa a analisar os fundamentos – analíticos e normativos – da sociologia profissional, através de sua relação com uma audiência acadêmica a respeito de um conhecimento que se caracteriza por sua reflexividade sobre o próprio objeto da sociologia profissional – teorias, conceitos, métodos e técnicas de pesquisa sociológica são questionados e avaliados. Segundo Burawoy, “a sociologia crítica é a consciência da sociologia profissional, assim como a sociologia pública é a consciência da sociologia para políticas públicas” (Burawoy, 2005a: 10). 6
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marcada por “intrigas palacianas inúteis”, rumo a uma “divisão sinérgica e simbiótica do trabalho, transformada num movimento social pela expansão da esfera pública, enraizada numa sociedade civil poderosa e autogerida” (Burawoy, 2009a: 243). Na décima-primeira tese, Burawoy aprofunda sua formulação e apresenta com mais clareza a sua concepção de sociólogo como ator político – ou, nas suas palavras, como militante.7 O apelo de Burawoy (2009a: 242, 234) é para que os sociólogos abandonem seus nichos e partam para a cena pública em um “contra-ataque centrado na sociedade civil”, emergidos “de seus nichos e casulos acadêmicos para assumir seus lugares e influir na direção da sociedade”. No entanto, a constatação de uma pluralidade de públicos e de contradições no interior da sociedade civil não impede que Burawoy indique a perspectiva do “socialismo sociológico” como parte integrante do seu projeto normativo de sociologia pública. Deste modo, considera o engajamento com “utopias reais” uma visão de socialismo possível, que coloca a sociedade civil em uma posição privilegiada (2005c) em relação à tirania dos Estados e ao fundamentalismo de mercados. A sociologia pública consiste, desta forma, em uma sociologia para os públicos. Por outro lado, a indicação e preferência por um público privilegiado – os “subalternos” – para a sociologia pública não, retira, assim, a possibilidade de interlocução com os mais variados públicos. Como consequência das hipóteses sugeridas, buscarei analisar a questão do engajamento do sociólogo e da sociologia, como um todo, a partir
de um conjunto crítico de leituras em que foram explicitamente enfatizadas antigas controvérsias a respeito da neutralidade científica e do engajamento. A história do pensamento sociológico revela um cenário de intensas controvérsias em torno das questões de ordem metodológica e epistemológica recuperadas por Burawoy. Estas questões serão apresentadas à luz de um balanço bibliográfico do debate em torno da sociologia pública, embora as categorias de Burawoy permaneçam como referenciais para a análise. O mais importante aqui é evidenciar que os pontos mais intensos de polêmica ilustram questões controversas da disciplina, que ainda não são suplantadas pela teoria sociológica contemporânea. Uma hipótese aqui levantada é que as críticas mais intensas à sociologia pública estão concentradas no caráter dialógico da sociologia pública em relação aos públicos. Minhas primeiras aproximações com a temática permitem indicar que se localiza aí uma das principais contribuições da sociologia pública à teoria sociológica contemporânea. As guerras da sociologia pública8 A proposta da sociologia pública formulada por Burawoy foi alvo de diversas críticas. Essas “guerras da sociologia pública”, como denomino aqui, foram travadas em uma série de eventos, debates, periódicos e dossiês. O conjunto de críticas à sociologia pública que será recuperado, de forma breve, neste artigo, está relacionado às considerações especialmente relativas ao engajamento do sociólogo nas questões públicas e, portanto, políticas. Segundo
Expressão inspirada na obra de Alvin Gouldner, The sociologist as partisan: sociology and the Welfare State. 8 Denominação inspirada no artigo de Burawoy (2009c) The public sociology wars, da coletânea Handbook of public sociology, organizada por Vincent Jeffries. 7
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Zussman & Misra (2007), a preocupação mais profunda dos sociólogos que estão “nervosos” com as perspectivas apontadas por Burawoy é que a sociologia pública vai politizar a sociologia, em vez de investir na qualidade científica baseada em uma independência intelectual. Embora Burawoy tenha insistido no fato de que a sociologia pública não está relacionada a determinados valores a priori, o fato de ser declaradamente marxista fez com que muitos críticos tivessem uma postura bastante cética em relação a um pretenso descompromisso com uma ideologia de esquerda.9 Lynn Smith-Lovin (2007) afirma que a sociologia pública pode minar o desenvolvimento do conhecimento sociológico, justamente por carregar um forte conteúdo valorativo. O problema parece não consistir no fato de que sociólogos individuais possam se envolver em questões públicas e políticas e que façam de sua profissão um engajamento. Para a autora, a questão problemática da sociologia pública é que isto se daria como projeto disciplinar coletivo. Assim como para Stinchcombe (2007), politização diz respeito à intromissão de preocupações políticas nos interesses intelectuais e científicos da sociologia (Smith-Lovin, 2007). Segundo Stinchcombe (2007), uma pretensão duvidosa da proposta de Burawoy é a de que os sociólogos possuem algo de relevante a dizer ou dialogar com os mais variados públicos. Mas, assim como Smith-Lovin, Stinchcombe é simpático à participação política individual, embora crítico da participação coletiva pela
disciplina, já que a introdução de valores representaria uma corrosão dos padrões profissionais disciplinares. Já para Boyns & Fletcher (2005), a sociologia pública é uma tentativa equivocada de corrigir os problemas de engajamento público e da identidade disciplinar, que cercam a disciplina ao longo das últimas décadas. Alguns pontos de crítica são evidenciados pelos autores na tentativa de apresentar as limitações deste programa. A suposta filiação da sociologia pública ao marxismo, que contribuiria para ressaltar as divisões existentes dentro da disciplina, e o avanço público da sociologia em direção a uma agenda voltada para uma “sociologia para públicos” em vez de uma “sociologia dos públicos”, que condicionaria limitações ao desenvolvimento de uma interface pública, por exemplo. O que estes autores buscam propor é que somente o desenvolvimento de um programa forte de sociologia profissional pode conformar um meio para reparar os problemas da disciplina. Ou seja, estão preocupados com “a crise de legitimação endêmica à sociologia que decorre de questões sobre as possibilidades de engajamento público da sociologia e a coerência da sua identidade disciplinar” (Boyns & Fletcher, 2005: 6). Isto significa que, para os autores, no lugar de energias dedicadas ao desenvolvimento de uma sociologia pública, os esforços deveriam ser primeiramente direcionados para reforçar a coerência do conhecimento disciplinar da sociologia e do desenvolvimento de um programa forte de sociologia profissional. Neste mesmo sentido, para Brint
Embora sob uma perspectiva distinta, a relação entre a sociologia pública e o marxismo é também apontada por Calhoun (2005), quando afirma que “para além de sua [de Burawoy] agenda da sociologia pública, existe um esforço para recolocar a sociologia marxista”. Em outro trecho, considera que Burawoy esteja preocupado em superar uma versão do marxismo pós 1970, desvinculado dos movimentos sociais (Calhoun, 2005: 357-58). 9
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(2005), é o suposto potencial de querer “mudar o mundo” que torna a sociologia pública tão problemática, já que os sociólogos não se confundem com atores políticos. Enquanto os sociólogos precisam estar em conformidade com as teorias, o fato de se identificarem como atores políticos significa estarem preso às visões de mundo, às crenças e aos valores. É neste sentido que, segundo Brint, Burawoy reduz a importância da sociologia profissional, baseada na pesquisa empírica orientada pela teoria, em vez de aumentar sua influência. Tendo como base o cenário brasileiro, Schwartzman (2009: 277) afirma, diferentemente de Burawoy, que “é no mundo acadêmico, da liberdade de pesquisa e do rigor científico, que deveria estar a âncora” da sociologia. Apesar de apontar para a necessidade de a sociologia estar relacionada às questões públicas, o foco, segundo Schwartzman, deve ser o esforço, ainda incompleto no país, em “consolidar uma sociologia que mantenha sua independência e sua relevância, tanto em relação aos rituais acadêmicos quanto em relação às organizações e movimentos sociais com os quais dialoga ou dos quais participa” (Schwartzman, 2009: 277). Outra crítica à sociologia pública de Burawoy é realizada por Deflen (2005), que considera a sociologia pública um disfarce velado de uma versão particularista do chamado “marxismo sociológico”.10 Segundo o autor, o problema não está no ativismo sociológico individual, nem no caso de uma sociologia ativista tomar posições políticas, mas na ligação da disciplina com as questões públicas mais gerais da sociedade de forma a engajarse coletivamente. Uma análise semelhante
é oferecida por Jonathan Turner (2005, 2009), para quem a sociologia pública compõe um pensamento de esquerda, que vai infundir ideologia à face pública da sociologia. A questão apontada por Turner refere-se ao fato de que a sociologia, ao se orientar ideologicamente, pode escapar ao controle da explicação científica. Turner propõe construir uma “engenharia social”, que enfatize a necessidade da neutralidade dos valores e a possibilidade de uma ciência natural do mundo social. Segundo o autor, o que as pessoas precisam é de um “conhecimento imparcial e preciso sobre o mundo social, que pode ser utilizado pelos públicos, clientes, formuladores de políticas ou quem tiver um problema de organização social” (Turner, 2009: 263). Partindo de outro patamar crítico, Touraine (2007) argumenta que a sociologia pública é, em nenhum sentido, periférica ao empreendimento sociológico, mas fundamental para a restauração teórica e prática da agência dos atores no âmbito da disciplina. Assim, a sociologia pública deve, segundo este autor, ocupar o lugar central na sociologia em sua busca de atores. Para ele, tais públicos devem ser constituídos de indivíduos e grupos localizados em situação de vulnerabilidade social, submetidos a alguma forma de exploração e opressão pelas forças dominantes. Além disto, para Touraine (2007), estamos diante de uma necessidade histórica de superação da divisão entre sociologia profissional e crítica. É neste sentido que seu projeto de uma “sociologia geral dos atores” contribuiria para esta tarefa, ao conferir uma orientação normativa ao processo de reconhecimento sociológico de direitos dos atores relacionados anteriormente.
Na trilha de que o “conhecimento sociológico não pode desafiar o mundo” (Deflen, 2005), o autor elaborou, já em 2005, o site da campanha “Save Sociology” (www.savesociology.org), com o objetivo de salvar a sociologia da sociologia pública e dos valores. 10
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Já para Immanuel Wallerstein (2007), a sociologia pública realiza uma falsa distinção entre conhecimento instrumental e conhecimento reflexivo, propondo outra solução para a questão apontada por Burawoy sobre os distintos tipos de conhecimento no contexto de uma divisão do trabalho sociológico. Segundo Wallerstein (2007), os sociólogos deveriam se envolver em ambos os conhecimentos, instrumental e reflexivo. Os sociólogos – e os cientistas sociais de uma forma geral – deveriam realizar três funções, de forma simultânea e consciente: uma função intelectual, que corresponde ao desenvolvimento de análises plausíveis sobre o mundo empírico; uma função moral, como forma de entender as implicações morais da nossa atividade; e, por fim, uma função política, que leva em conta a melhor maneira de realizar uma boa moral (Wallerstein, 2007). Estas funções, segundo argumenta, estão ligadas de forma sequencial e inevitável. Assim, a sociologia pública não deveria ser um tipo de sociologia separada das demais, já que “todos os sociólogos [...] são, e não podem ser de outra forma, sociólogos públicos. A única distinção é entre aqueles que estão dispostos a vestir o manto e aqueles que não estão” (Wallerstein, 2007: 174). Maia & Perlatto (2012: 103) buscam apontar que, no caso brasileiro, a partir de um contexto periférico, a história das ciências sociais demonstra uma “evidente disposição pública, conectando-se, em muitos casos, não apenas a temas públicos, mas ao próprio ativismo político”. Para estes autores, a sociologia pública precisa levar em conta as experiências nacionais, para além da literatura anglosaxã, como forma de fugir ao caráter de mera ilustração de teses gerais, sem levar em conta as especificidades de outras geografias. Para tanto, a sociologia pública precisa ampliar seu escopo de análise, sendo o caso brasileiro interessante para demonstrar a “diversidade de formas de
articulação entre imaginação sociológica e vida pública” (Maia & Perlatto, 2012: 108). Deste modo, as primeiras aproximações com as diferentes respostas críticas e entusiastas permitem considerar que a sociologia pública intensificou a reatualização de questões caras às mais diversas tradições sociológicas. A discussão a respeito do engajamento parece sugerir que se localiza, nesta questão, uma das principais contribuições da sociologia pública à teoria sociológica contemporânea. Considerações finais A intenção de recuperar algumas leituras críticas consiste em analisar a reação ensejada e em que medida podemos apostar na sociologia pública enquanto um projeto duradouro, seguindo o questionamento de Calhoun (2005), ou seja, pensar seus limites e possibilidades na atualidade. Uma hipótese que busquei trabalhar neste artigo é que uma das críticas mais fortes ensaiadas em direção à ideia de sociologia pública questiona seu horizonte de intervenção política, a partir da valorização de uma prática dialógica com segmentos da sociedade civil. Esta concepção de intervenção e diálogo no interior da sociologia representaria, segundo os autores que recuperei neste trabalho (Boyns & Fletcher, 2005; Brint, 2005; Turner, 2005; Deflen, 2005; Smith-Lovin, 2007; Stinchcombe, 2007; Schwartzman, 2009), uma politização perigosa que colocaria em risco o caráter científico da sociologia e, por este motivo, representaria uma ameaça à sua própria existência enquanto área de conhecimento. Grande parte destas leituras identificou na sociologia pública uma tentativa de resgatar o pensamento marxista para o interior da sociologia. Neste aspecto, foram feitas referências ao fato do próprio Burawoy se declarar marxista, mas também a conhecida formulação do “marxismo sociológico”, em conjunto com 15
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Erik Olin Wright.11 É neste sentido que compreendo a sociologia pública como um campo teórico e metodológico de disputas sobre o futuro da disciplina. As primeiras “guerras da sociologia pública” que recuperei neste artigo recolocaram em cena alguns elementos, subjacentes às questões apontadas, que merecem destaque. As tensões entre engajamento e reconhecimento científico não podem ser deslocadas de uma discussão sobre a natureza do conhecimento sociológico, sempre mediado por processos mais amplos, relacionados à materialidade das condições sociais. Por este motivo, a sociologia pública não é resultado apenas de embates e discursos localizados no interior da disciplina, mas envolve tanto as condições e processos sociais sob os quais emergiu a ideia de sociologia pública
quanto as estratégias de intervenção no âmbito dos atores sociais – neste caso, os sociólogos individuais, cujas perspectivas e discursos são, de todo modo, mediados por posições sociais. Assim, considero as indicações apontadas como pistas para pensarmos os limites e as possibilidades da sociologia públicanateoriasociológicacontemporânea – ou, relembrando a questão de Calhoun (2005), nos faz refletir se a sociologia pública é um projeto duradouro. De qualquer forma, as leituras e análises que busquei apontar neste artigo me permitem considerar, desde já, a pertinência da sociologia pública, nem tanto pelas respostas que Burawoy buscou oferecer, mas pelas questões e embates que suscitou. Nas palavras do próprio Michael Burawoy, “fazemos nossa própria sociologia, mas não sob as condições de nossa própria escolha”.12
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Segundo Burawoy & Wright (2000), a tarefa de reconstruir o marxismo como uma teoria coerente deve estar amparada em uma teoria da reprodução contraditória das relações de classe capitalistas, em vez de uma teoria marxista da trajetória histórica. A proposta do marxismo sociológico busca identificar os processos causais dentro da sociedade capitalista que têm amplas implicações para a natureza das instituições em tais sociedades e as perspectivas para a emancipação humana. Neste sentido, o socialismo não deve ser entendido como resultado de um processo teleológico ou uma necessidade histórica, mas como o resultado potencial da estratégia, da restrição e da contingência. Segundo Braga (2009, 2010), em um cenário ainda predominantemente positivista da sociologia, o debate contemporâneo da sociologia pública é uma oportunidade para problematizarmos as relações entre a sociologia crítica e o marxismo. O desafio consistiria em localizar a sociologia marxista na sociologia pública, como espaço privilegiado para desenvolver tanto teorias quanto programas de pesquisa e, também, alicerçar um projeto político. 12 Esta frase (Burawoy, 2009b: 225) é uma alusão à clássica “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 2002: 21). 11
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O EZLN E OS DESAFIOS ANALÍTICOS QUE SEU PERCURSO POLÍTICO SUGERE À TEORIA SOCIAL Sarah Roberta de Oliveira Carneiroi Resumo O presente artigo, tomando como base dezessete comunicados zapatistas, pontua as particularidades do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ator social de forte oposição ao capitalismo, com o objetivo de demonstrar os desafios que sua singular trajetória política apresenta ao campo da teoria social. A insurgência do EZLN, em janeiro de 1994, demarca a chegada à arena política do México de uma voz contestatória, que convoca não somente a sociedade mexicana e mundial para repensarem os rumos do planeta, mas também desafia as abordagens acadêmicas em torno dos movimentos sociais, e as referências marxistas sobre revolução. Palavras-chave: EZLN; despossuídos; percurso político singular; novos movimentos sociais; abordagens marxistas. ANALITICAL CHALLENGES THAT ITS POLITICAL PATH SUGGESTS TO SOCIAL THEORY Abstract The present article, built upon 17 Zapatista official reports, points out the particularities of the EZLN, a social actor with strong opposition to capitalism. It aims to present the challenges that EZLN’s unique political path offers to the field of social theory. EZLN’s insurgency in January 1994 defines the beginning of an opposing voice in the Mexican political arena which urges not only Mexican and international societies to rethink the future of the planet but also challenges the academic approaches regarding social movements and the Marxist references about revolution. Keywords EZLN; dispossessed; unique political path; new social movements; Marxist approaches.
Sarah Roberta de Oliveira Carneiro é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Université de Strasbourg, e pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (Nuclear/UFBA). Suas áreas de interesse são sociologia política e comunicação. E-mail: sarah.palavra@gmail.com. i
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A proposta do presente artigo1 é examinar a trajetória política do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) com o objetivo de revelá-la como subsídio empírico que desde sua insurgência, na década de 1990, vem desafiando as interpretações sociológicas acerca dos atores sociais contestatórios. As práticas zapatistas, assim como muitas outras ações coletivas recentes, apontam para o limite interpretativo das abordagens que se pautam pela clássica tensão capital x trabalho. Para, além disso, o EZLN não pode ser lido com base apenas nos novos repertórios analíticos que se pautam, sobretudo, a partir das referências de identidade e dos direitos difusos, pois o EZLN demonstra que as problemáticas de ordem econômica não estão todas resolvidas e persistem, portanto, como fontes de exclusão. Em outras palavras, o EZLN é um movimento no qual coexistem distintas dimensões da luta social, de modo que as suas demandas, a sua forma organizacional e a sua concepção de poder exigem a multiplicidade de olhares e lhe afastam das possibilidades: 1) de ser compreendido somente como uma guerrilha latinoamericana; 2) de ser classificado apenas como uma revolução nos moldes do roteiro marxista; e 3) de ser visto imediatamente como um novo movimento social que se relaciona mais com a questão identitária e menos com o horizonte da economia.
As sociedades contemporâneas têm experimentado diferentes modalidades de contestação, de modo que a grade teórica que se dispõe a analisar as mobilizações sociais vem sendo alvo de revisões, problematizações e questionamentos. Neste sentido, alguns estudos estão sendo produzidos, e suas abordagens, de um modo geral, têm sido direcionadas principalmente à compreensão de quais são as clivagens que, hoje, perpassam as sociedades; quais são os sujeitos a elas ligados e como se caracterizam as ações coletivas que vêm sendo chamadas não mais de Novos Movimentos Sociais, mas Novíssimos Movimentos dos Indignados (Gohn, 2014). Disposto a evidenciar o emaranhado conceitual sugerido pelo EZLN, o presente artigo se vale não somente das contribuições dos seus estudiosos, mas também da voz dos próprios zapatistas, a qual se faz representada, aqui, através dos comunicados emitidos pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI), a Comandância Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional (CG) e pelo subcomandante Marcos.2 Os comunicados são textos que se opõem ao neoliberalismo, reivindicam liberdade, justiça e democracia; contêm apelos poéticos e aforismos filosóficos, e desde janeiro de 1994, graças ao apoio de ativistas simpatizantes ao EZLN, são disseminados pela Internet. Um conjunto
O presente artigo é um desmembramento do terceiro capítulo de minha tese de doutorado intitulada Do silêncio das montanhas ao grito para o mundo; a saga de uma voz insurgente, cuja defesa foi realizada em dezembro de 2012 no âmbito do Programa de Pós-graduação de Ciência Sociais da Universidade Federal da Bahia (PPGCS/UFBA). 2 Na década de 1980, um mexicano urbano chamado Marcos refugiou-se na Selva Lacandona, reduto dos indígenas no sudeste do México, para renovar os seus sonhos de guerrilha. Do seu encontro com os indígenas emergiu o EZLN, e ele se tornou seu porta-voz. No mês de maio, no entanto, ele saiu de cena para dar lugar ao subcomandante Galeano. Mas todos os documentos zapatistas examinados para a produção deste artigo são ainda de quando o subcomandante atendia pelo nome de Marcos, de modo que será este o nome usado aqui. 1
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de 17 comunicados (todos publicados em 1994 e 1995) foi então consultado e compõe o corpus deste trabalho. Mas foram usados, também, entrevistas mais recentes com o subcomandante Marcos feitas por pesquisadores e, ainda, livros e artigos sobre o EZLN. De 1994 até o momento, o EZLN publicou seis Declarações, cartas para diferentes organizações, como as organizações indígenas, comunicados para a sociedade internacional, para a mídia, para as crianças, poemas e tantos outros escritos. Para dar cabo à discussão que este artigo propõe, sua estrutura está assim delineada: num primeiro momento, tem-se a apresentação sucinta do EZLN; em seguida, são expostas algumas interpretações analíticas a seu respeito; e, por fim, são trazidas reflexões que têm por base as referências marxistas. O EZLN, seu Crescente Organizacional e as Negociações Subsequentes O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ator social contestatório de forte oposição ao capitalismo, fez-se conhecido mundialmente no dia 1º de janeiro de 1994, por meio da ocupação de sete cidades de Chiapas e a enunciação do grito ¡Ya basta!, proferido contra o ingresso do México no Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que estabeleceu um mercado livre e sem fronteiras entre o México, o Canadá e os Estados Unidos. O grito ¡Ya basta! é um pedido de teto, trabalho, educação, terra e saúde, com um reclame de democracia, liberdade e justiça. A década compreendida entre 1983, ano em que se deu o surgimento da primeira célula político-militar da região da Selva Lacandona, formada por cinco homens e uma mulher, e 1993, quando houve uma consulta ampla a todas as comunidades zapatistas, decidindo-se
pela ofensiva militar que desembocou na aparição pública do EZLN, em 1° de janeiro de 1994, foi um período de preparação, que nas palavras do Exército, se chamou “Crescimento explosivo”. O grito “Já basta” ecoou da boca de homens e mulheres, cujos rostos estavam sob o paliacate, isto é, lenço colorido, e sob o passa-montanha, que é o gorro negro. Este gorro esconde o rosto e garante ao Exército uma unidade visual, que em sua primeira aparição pública provocou inúmeras perguntas na cabeça dos que não tinham noção do processo organizativo que transcorria nas montanhas e, inesperadamente, no dia 1° de janeiro de 1994, vieram a tomar conhecimento da existência de homens, mulheres e crianças, habitantes de uma selva, no estado de Chiapas, selva esta que não é, vale dizer, “próxima das câmeras” (Kingsnorth, 2006: 20), ou seja, não tinha apelos midiáticos, mas, ainda assim, após o grito dado pelo EZLN, saiu da dimensão de lugar totalmente desconhecido e tornou-se rapidamente um assunto nos noticiários do México e também de outras partes do mundo. Dentre as possibilidades analíticas que o uso do passa-montanha inspira, está a constatação de que os zapatistas “esconderam” o rosto, ocultaram os traços dados pelo fenótipo e guardaram a fisionomia num pano “opaco”, o qual, acrescido de uma voz singularmente contestatória, arremessou interrogações perturbadoras no mundo e acabou por construir um elo com as inúmeras caras dos desfavorecidos, de modo que o subcomandante Marcos, “falando de si” no comunicado “O conto de Antônio”, diz: [...] Marcos é um gay em São Francisco, negro na África do Sul, um asiático na Europa, chicano em San Isidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, bagunceiro em Neza, roqueiro na cidade 21
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que é nossa razão e a justiça que é nossa vida”.4 O esforço zapatista esteve todo o tempo empregado no sentido de sublinhar a justiça da luta por eles “desencadeada”, na medida em que os zapatistas são uma resposta ao esquecimento ao qual ficaram submetidos por séculos.
universitária, judeu na Alemanha, ombudsman em Sedena, feminista nos partidos políticos, comunista após a guerra fria, prisioneiro em Cintalapa, pacifista na Bósnia, Mapuche nos Andes professor da CNTE, artista sem galeria nem portfólio, dona de casa num sábado à noite não importa em qual bairro, em qual vila, em qual México, guerrilheiro no México do fim do século XX, grevista na CTM, jornalista sem prestígio nas páginas interiores, machista no movimento feminista, mulher sozinha na estação do metrô às dez horas da noite, aposentado que faz piquete no Zócalo, camponês sem terra, editor marginal, operário desempregado, médico sem gabinete, estudante inconformado, dissidente do neoliberalismo, escritor sem livros ou leitores, e, claro, zapatista do Sudeste mexicano. Finalmente, Marcos é um ser humano qualquer deste mundo. Marcos é todas as minorias não toleradas, oprimidas, que resistem, que exploram e dizem “basta”. Tudo que é minoria no momento de falar e maioria no momento de calar e de sofrer. Tudo que incomoda o poder e as boas consciências, tudo isso é Marcos, um zapatista no sudeste mexicano. (Comunicado “O conto de Antonio”, ¡Ya Basta!, 1994: 284)
Hoje, 12 de janeiro de 1994, nós soubemos que o senhor Carlos Salinas de Gortari, em sua qualidade de chefe supremo do Exército federal, ordenou às suas tropas para cessarem fogo. [...] O Comité Clandestino Revolucionário Indígena, o Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional saúdam a decisão do senhor Salinas de Gortari e ver um primeiro passo em direção à abertura do diálogo entre os beligerantes. [...] Nossa luta é justa e verídica, ela não responde a interesses pessoais, mas ao cuidado com a liberdade de todo o povo mexicano em geral e do povo indígena em particular. Nós queremos a justiça e iremos adiante porque em nossos corações vive a esperança. (Comunicado “Sobre o cessar-fogo”, ¡Ya basta!, 1994: 78).
Assim o EZLN respondeu ao cessarfogo acionado pelo governo, dizendo ainda que não deixaria as armas e não se renderia a nenhum mau governo. A partir de propostas dos zapatistas e pressões da sociedade civil, o governo concordou em “dialogar” com o EZLN. Foi criada a Comissão de Mediação para a qual o EZLN indicou como mediador o bispo de San Cristóbal de Las Casas, Don Samuel Ruiz García, que tinha uma forte ligação com a Teologia da Libertação. Em 1996, ou seja, passados dois
Nota-se, portanto, neste depoimento a vinculação do EZLN com o universo dos despossuídos3 e fragilizados, seja materialmente, seja emocionalmente. Depois da insurgência do EZLN, em 1º de janeiro de 1994, o governo, no dia 12 de janeiro, declarou unilateralmente um cessar-fogo, enquanto o EZLN solicitava ser visto como uma força beligerante: “Nós perseguimos o combate até obtermos a liberdade, que é nosso direito, a democracia
Esta terminologia é adotada neste artigo para traduzir os sujeitos que sentem qualquer tipo de despertencimento social, os quais aparecem como “desprovidos” no discurso zapatista. 4 Extraído do comunicado “Chamada a todos os mexicanos” (¡Ya basta!, 1994: 106). 3
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anos da insurgência, foi assinado o Acordos de San Andrés entre os zapatistas e o governo mexicano e para reforçar este acordo foi elaborado o projeto de lei pela Comisión de Concordia y Pacificación (COCOPA). O Acordos de San Andrés foi construído por meio de um processo que contou com a composição de mesas de negociação, a saber: Direitos e Cultura Indígena, Democracia e Justiça, Bem-estar e Desenvolvimento, Mulheres, Reconciliação em Chiapas e Fim das Hostilidades, e tinha como propósito alterar a Constiutição para que os direitos fundamentais dos indígenas fossem reconhecidos. Mas o cumprimento destes pactos não aconteceu. As negociações de paz entre o EZLN e o governo federal mexicano foram interrompidas em setembro de 1997, devido às grandes divergências na mesa de diálogo sobre Democracia e Justiça. Desde sua insurgência, o EZLN continua firme em suas pautas, oscilando momentos de aparição pública com o de retraimento, tendo realizado importantes eventos e marchas pelo México, as quais contaram com a participação de grandes nomes da intelectualidade, a exemplo do pensador francês Alain Touraine. A últma grande aparição do EZLN aconteceu em dezembro de 2012, através de uma marcha absolutamente silenciosa. É sabido que a palavra ocupa um importante lugar nas ações políticas do EZLN, de modo que a decisão do silêncio tem propósito político. Vale dizer que Bernard Duterme (2014), ao pautar a extensa durabilidade do EZLN, comunica que o balanço que os zapatistas fizeram deles mesmos, depois de 20 anos da insurgência, é majoritariamente positivo. Para o autor, o senso de autonomia do EZLN e sua proposta radical de democracia são grandes legados, ainda que os zapatistas e o Estado mexicano não tenham chegado aos acordos desejados. Atualmente, o mote que aparece com
mais frequência nos artigos sobre o EZLN diz respeito à capacidade de permanência e continuidade do movimento, que mesmo tendo reduzido significamente suas aparições, persiste enquanto ator social contestátório, dotado de um discurso que ativistas de todas as partes do mundo se interessam em escutar. Além disso, vale mencionar a experiência da Escola Zapatista, que, segundo Amaury Ghijselings (2014), implica uma iniciativa pedagógica inédita na trajetória zapatista, pois se trata da abertura dos Caracóis para o horizonte da educação popular mais detida. Voltada para sujeitos críticos que enxergam no zapatismo uma referência de luta pela justiça social, a escuelita (como se chama a vivência formativa), segundo Ghijselings, tem o poder de inspirar movimentos sociais europeus. Alguns Esforços Interpretativos O EZLN, embora contenha uma forte referência étnica, não deve ser associado de imediato a um movimento social que se relaciona prioritariamente com questões identitárias, pois os zapatistas abarcam pautas que estão para além das demandas indígenas. Em seu repertório de luta há a indicação de diferentes problemáticas que afetam a sociedade mexicana, desde a falta de moradia à escassez de salas de aula, de modo que se existe um traço unitário que vincula os zapatistas, esta é a condição de despossuídos. Desde que o grito ¡Ya basta! ecoou – sua emissão ano passado completou 20 anos –, o EZLN prossegue sendo uma força política que demanda reflexões acerca de seu modo organizacional e sua forma particular de intervir na construção da realidade, na medida em que elegeu a comunicação como vetor importante, e assim conseguiu se constituir como sujeito falante no espaço público mexicano e mundial, falando em nome de todos os 23
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despossuídos. Antônio da Silva Câmara lembra que a grande parte dos estudos voltados ao zapatismo busca entender as causas que teriam dado origem ao levante em janeiro de 1994 na região de Chiapas. Ele afirma que uma multiplicidade de causas é apontada pelos diversos autores: alguns buscam entendê-las a partir da própria história do México, e muitos são os que compreendem que as raízes da rebelião se encontrariam na própria história de exclusão dos indígenas. Câmara verifica que o EZLN provoca certo incômodo nos intelectuais, na medida em que os obriga a posicionaremse diante da rebelião, ao mesmo tempo em que testa a ideologia pós-moderna que não comporta movimentos de caráter revolucionário, herdeiros do pensamento utópico.
(Câmara, 2000: 1)
A investigação acerca do EZLN feita por Yvon Le Bot, que em suas pesquisas realizou uma longa entrevista com o subcomandante Marcos, permite uma leitura do EZLN como o resultado de um desenvolvimento crescente de mobilização vivenciada no seio da população indígena, sendo o zapatismo, segundo ele, uma mistura de motivos religiosos, econômicos e políticos (Le Bot, 1997: 39). Ele diz ainda que o processo educativo vivido na Selva Lacandona foi importante para a edificação do movimento, mas são as mudanças religiosas e as lutas sociais as duas entradas necessárias à compreensão da gênese do zapatismo. A mobilização, que se efetivou no seio da vida indígena antes da insurgência do EZLN e para a qual Le Bot direciona o olhar, também é considerada nos estudos feitos por Jérôme Baschet (2005). Este autor afirma que não podemos reduzir o EZLN à personalidade do subcomandante Marcos, nem muito menos deixar de compreender que o zapatismo não nasceu em janeiro de 1994, pois há em torno dele e antes dele um amplo e forte movimento social desenvolvido pelos camponeses indígenas, sendo este um movimento que conta com aproximadamente 20 anos de luta e experiência. Na entrevista publicada no livro Zapatistas: a velocidade do sonho, de Pedro Ortiz, Marco Brige e Rogério Ferrari, o subcomandante Marcos fala que o EZLN “tem duas raízes: um grupo político-militar urbano e uma organização indígena” (Marcos apud Ortiz, Brige & Ferrari, 2006: 167). Esta afirmativa confirma, então, que a característica indígena é um dos traços do movimento, mas, como já foi dito, o zapatismo não se compõe como uma contestação exclusivamente indígena, e um dos comunicados zapatistas que
[...] encontra-se um grupo significativo
de autores, às vezes até mesmo influenciados, em certos aspectos, pelo debate discursivo modernidade/ pós-modernidade que concebem o movimento de Chiapas como um novo capítulo da luta contra a opressão social, compreendida classicamente apenas enquanto subordinação de classe, aportando enquanto novidade a participação dos indígenas enquanto verdadeiros sujeitos sociais, locais e universais ao mesmo tempo. O ideário do EZLN que não pretende a destruição do Estado mexicano, mas sim o respeito à autonomia indígena e o fim da exploração e da miséria social, o diferencia dos movimentos nacionalistas europeus e indicam novas possibilidades na resolução dos conflitos originários das formas de subordinação desenvolvidas na sociedade capitalista, por isto estas análises, mesmo apresentando, em alguns casos, certas incongruências teóricas, são ricas e abrem novos horizontes para o estudo dos movimentos classistas e étnicos. 24
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anunciam isto diz assim: “A luta do EZLN não é somente dos zapatistas, nem dos chiapanescos, nem dos indígenas. É de todos os mexicanos, daqueles que não têm nada, dos desprovidos, da maioria entregue à miséria, à ignorância, à morte”.5 Outra confirmação desta ideia aparece na “Carta a um jornalista honesto”, assinada pelos zapatistas, e na qual está expresso: “Se diz a verdade e procura a justiça, é zapatista, então, somos todos zapatistas” (¡Ya basta!, 1994: 143). Vale dizer que em relação ao vasto conteúdo indígena que contorna o EZLN, Le Bot chama a atenção para o lugar da cultura maia na construção do movimento, pois, embora ela seja bastante presente enquanto fonte de conhecimento, segundo ele, os zapatistas não reivindicam uma especificidade maia, ou seja, não pretendem edificar uma nação sobre uma base étnica, pelo contrário, fazem uma afirmação insistente da mexicanidade. “Os zapatistas se querem resolutivamente mexicanos, indígenas mexicanos” (Le Bot, 1997: 85). Baschet (2005) informa que o EZLN entrelaça os componentes étnico, nacional e internacional, pois a um só tempo contém uma forte referência indígena, exige exaustivamente que se faça a superação do modelo Estado-partido, vivido no México – na medida em que o Partido Revolucionário Institucional (PRI) se perpetuou na presidência do país por sete décadas – e se opõe explicitamente ao neoliberalismo, configurando-se como um ator antissistema. Nas palavras dos próprios zapatistas está dito: “O EZLN é uma realidade política e militar em nível regional, nacional e internacional”.6 A terminologia Novos Movimentos Sociais (NMS) é uma das mais usadas,
5 6
atualmente, quando se fala em mobilização social, e essa nomenclatura é indissociável das mobilizações contestatórias que surgiram no final dos anos 1960 e extrapolaram a esfera industrial (Neveu, 2002; Fillieule, Mathieu & Péchu, 2009), e quando se assinala isto, estamos a evidenciar que, atualmente, os movimentos sociais não se identificam puramente com a classificação de movimento operário (Touraine, 1999). Em contato com esta referência, Melucci (2001) diz que as mobilizações contemporâneas estariam, então, relacionadas ao feminismo, consumo, aos movimentos regionais e estudantis, movimentos da contracultura jovem, movimentos anti-institucionais, à ecologia e às lutas desencadeadas por imigrantes. Mas ainda que este seu mapeamento porte algum sentido orientador e ajude na realização de um debate sobre as características dos movimentos sociais na sociedade contemporânea, uma vez tomando-o como roteiro de análise, deve se levar em consideração que, se antes, os movimentos contestatórios se centravam quase que exclusivamente em reivindicações de caráter classista, sendo este praticamente a única variável que interferia na definição da identidade, e por isto os movimentos sociais, em sua grande maioria, se voltavam à incessante busca pela ampliação de renda, garantia da seguridade social e outras conquistas de caráter estrutural, como o direito à saúde e à moradia, hoje, ainda que se note uma diversidade de quereres sendo exercitada, as reivindicações não deixam de dizer respeito à dimensão de classe. A novidade, segundo José Maurício Domingues, é que existe uma amplitude
Extraído do comunicado “Respeito aos direitos do homem e falsos testemunhos” (¡Ya basta!, 1994: 136). Extraído do comunicado “Precisões para o diálogo” (¡Ya basta!, 1994:126).
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temática perpassando-as. Este autor compreende que os movimentos contra a pobreza, por exemplo, continuam existindo e chama a atenção para o espírito de rede.
Sendo assim, os contornos da ação coletiva, em virtude das novas clivagens que povoam a sociedade contemporânea, estão a demandar outras abordagens teóricas. Contudo, há de se ter cuidado com alguns excessos que vêm sendo cometidos quando são as novas clivagens objeto de observação, pois alguns estudiosos têm se voltado à pesquisa acerca dos movimentos sociais, tomando como ponto de partida o abandono total de formulações anteriores, por acreditarem que elas não mais contribuem na construção de respostas. A teoria Novos Movimentos Sociais, em termos de componente novo, traz para a abordagem dos movimentos sociais “uma nova forma de fazer política e a politização de novos temas” (Touraine, 1999: 124), além do deslocamento do lugar do sujeito; caracteriza-se pela mudança do eixo das demandas para um patamar mais cultural. Entretanto, para Maria da Glória Gohn (2006), esta teoria está incompleta, pois os conceitos que lhe dão base não estão suficientemente explicitados, e o que se tem é um diagnóstico das manifestações coletivas contemporâneas, de modo que reorienta categorias já usadas anteriormente e desloca a ênfase de uma lógica racional do sistema, comum às análises marxistas, para uma lógica de racionalidade dos indivíduos. Conforme Gohn, as primeiras referências a ações coletivas e movimentos sociais datam de 1957, e daí em diante as investigações teóricas transitaram pelas mais diferentes percepções, de modo que há desde registros de uma abordagem mais instrumental, que analisou os movimentos a partir do binômio integração/ funcionalismo, à realização de um conjunto de observações que tem se preocupado em envolver mais amplamente o universo de relações que diz respeito aos movimentos sociais, a exemplo dos campos de força, da identidade e da tessitura de redes. Em sua obra Teorias dos movimentos
Embora as classes tenham perdido a proeminência de que desfrutavam tanto do discurso político quanto no sociológico, movimentos contra a pobreza e a “exclusão” vêm se reconstituindo em muitos países, caracterizando muito da crítica social da terceira fase da modernidade e sendo amiúde marcados igualmente por um espírito de rede como forma de organização e autodefinição. (Domingues, 2002: 211)
Carlos A. Gadea alerta para a permanência na contemporaneidade de alguns elementos comuns à luta social que antecedem o novo perfil dos movimentos, o qual se configura mediante reivindicações mais conectadas com o exercício da subjetividade, mas ao mesmo tempo alerta também para a necessidade de ultrapassar “toda uma tradição sociológica que vai desde o marxismo clássico à teoria do sistema-mundo, em que a ‘liberdade dos atores’ parecia submetida ao determinismo da alienação econômica” (Gadea, 2008: 501). Atento para a ruptura com os movimentos antigos, Neveu (2002) especifica tal ruptura dizendo que ela pode ser notada em quatro dimensões, a saber: formas de organização e repertórios de ação, valores e reivindicações que acompanham a mobilização, relação com a política e identidade dos atores. A alteração ocorrida nestes eixos, segundo ele, traz como principais desdobramentos: a destituição da expressão “classe operária” como o único recurso identitário contido num movimento, estruturas mais descentralizadas, emergência do corpo como pauta política e outras modalidades de enfrentamento das forças antagônicas. 26
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sociais, a autora passa em revista os principais paradigmas usados para compreender os movimentos, e faz isso munida da certeza de que “não há um conceito sobre movimento social mas vários, conforme o paradigma utilizado” (Gohn, 2006: 13). Além deste pressuposto, Gohn se equipa de mais outro: a América do Norte, a Europa e a América Latina possuem contextos históricos específicos, e lutas e movimentos sociais correspondentes a eles. Logo, existem diferentes metodologias voltadas ao estudo dos movimentos sociais. O escritor mexicano Carlos Fuentes e a mídia internacional classificaram o movimento como a primeira guerrilha póscomunista e pós-moderna7 do mundo. Mas, o subcomandante Marcos responde a esta fala informando que não se trata de uma guerrilha moderna, nem pós-moderna, mas, sobretudo, um sintoma daquilo que se passa no mundo. Afirmando que o EZLN é um sintoma do que se passa no mundo, o subcomandante considera os zapatistas como os “representantes” de todos aqueles que lutam para ter uma vida decente onde vivem, e este seu pensamento, quando confrontado com o debate acerca do reconhecimento da diferença e da participação igualitária no espaço público, desenvolvido por Fraser (2000), autora que faz um chamado para as políticas urgentes de reconhecimento da diferença, vem a revelar um ator social que em suas reivindicações reúne o particular e o universal. Le Bot (1997) pontua que os zapatistas não querem ser tratados como cidadãos como os outros, conforme preconiza a democracia formal, e nem como cidadãos diferentes dos outros, mas, sim, como cidadãos com suas diferenças, numa perspectiva da democracia plural.
Esse autor contribui ainda para a reflexão aqui desenvolvida, ao informar que sob o ângulo político-militar a força militar do movimento zapatista estaria mais para o cumprimento de uma dimensão simbólica do que para a construção de uma referência bélica. Para ele, o EZLN não se constitui como uma guerrilha e nem muito menos é o relançamento de uma antiga guerrilha; ao contrário, nasce do fracasso deste modelo de luta revolucionária (Le Bot, 1997: 69). Contudo, embora Le Bot localize o aspecto da guerrilha na composição do EZLN, de um modo que deixa sugerido que os zapatistas se relacionam com esta prática somente pelo viés da influência, ou seja, apenas toma como inspiração este tipo de atuação política, é preciso ter em mente que, em virtude da insurgência, os zapatistas realmente travaram no plano militar uma luta contra o Exército mexicano, e uma luta desigual, posto que o armamento zapatista, em termos de quantidade e potência, é consideravelmente menos sofisticado do que o empregado pelo Exército mexicano. Um elemento que o leva a demarcar esta distinção é a relação dos zapatistas com o poder, pois, segundo Le Bot, enquanto “as guerrilhas revolucionárias dos últimos decênios, na América Latina, tinham em comum – todas sem exceção – o objetivo de tomarem o poder do Estado, por meio das armas” (Le Bot, 1997: 71), os zapatistas afirmam não quererem ocupar o poder e desejam ser soldados desnecessários. Afinal, a existência deles significa a inexistência da justiça social, de modo que, para materializá-la, eles precisam lutar. Para Yúdice, os zapatistas realizam uma insurgência que desestabiliza o status quo e instala uma possibilidade de repensar a política e a cultura no México. Ele também
Não se pretende fazer aqui nenhuma grande problematização acerca da modernidade e/ou pós-modernidade, mas trazer este comentário feito por um escritor mexicano bastante conhecido. 7
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pontua que os zapatistas não são “um exército guerrilheiro no estilo convencional latino-americano, como os rebeldes de Castro, os sandinistas, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional de El Salvador, ou mesmo o Sendero Luminoso” (Yúdice, 200: 444-445). Para ele, trata-se de um movimento que é muito mais do que um combate armado, é um movimento que conseguiu abrir um espaço para comunicar seu projeto de sociedade. Le Bot (1997) e Yúdice (2000) fazem questão de demarcar as diferenças entre o EZLN e as guerrilhas porque, de um modo geral, nota-se um ímpeto, por parte sobretudo da mídia mexicana em classificar o EZLN como uma guerrilha, talvez porque se trate de um movimento surgido na América Latina e que usou armas em sua insurgência, mas o próprio EZLN no comunicado “Quem vai nos perdoar” diz não seguir os modelos dos chefes das guerrilhas anteriores.8 No comunicado “Chamada para todos os mexicanos” estão valorizadas todas as formas de luta pela liberdade, pela democracia e pela justiça, e o EZLN afirma que não tem pretensões de ser uma vanguarda histórica.
acolher todos nós. A bandeira de um movimento nacional revolucionário que daria lugar às mais diversas tendências, aos pensamentos mais variados, às diferentes maneiras de lutar, mas que representariam uma única vontade, um único objetivo: liberdade, democracia, justiça. (¡Ya basta!, 1994: 105)
Reflexões Marxistas
Base
nas
Referências
Nas palavras do subcomandante Marcos uma das descrições do EZLN é esta: um pequeno grupo urbano que se aproximou dos indígenas de Chiapas; este grupo tinha orientação marxista-leninista com perfil de organização clandestina, constituído por pessoas de classe média, as quais eram adeptas do trabalho político e detentoras do projeto de um dia aderirem à luta armada, na medida em que se deparou com o fechamento de todas as alternativas políticas ocasionado pelo monopólio do poder durante décadas pelo PRI. Tal grupo buscava um espaço para se preparar militarmente, enquanto os indígenas, por sua vez, haviam chegado à conclusão de que a via pacífica para a transformação do país estava esgotada, e da conjunção destes dois grupos, ambos insatisfeitos com os rumos do México, surgiu, em novembro de 1983, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Vale retomar o comentário do subcomandante acerca da orientação marxista-leninista à luz das reflexões tecidas por Le Bot (1997), na medida em que este autor sinaliza para uma observação nesse sentido. É que para ele a substituição das categorias socialismo, luta de classes e ditadura do proletariado pelas categorias democracia, justiça e liberdade, por parte do EZLN, é mais que uma reformulação,
A verdade é que nós nos organizamos assim porque nós não fizemos de outra maneira. O EZLN saúda o desenvolvimento honesto e consequente de todas as organizações independentes e progressistas que lutam pela liberdade, pela democracia e pela justiça para a Pátria inteira. Existe e existirão outras armas populares. Nós não pretendemos ser a vanguarda histórica, uma, única e verdadeira. Nós não temos a pretensão de juntar sob nossa bandeira zapatista todos os mexicanos honestos. Nós oferecemos nossa bandeira. Mas existe uma bandeira maior e mais pulsante que pode
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com
Extraído do comunicado “Quem vai nos perdoar?” (¡Ya basta!, 1994: 94).
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menos que uma ruptura revolucionária e estaria, portanto, mais alinhada ao que pode se chamar de uma passagem. Le Bot diz ainda que os zapatistas buscam compor uma democracia plural, começando pelo fim da ditadura exercida pelo PRI e a deposição do presidente Carlos Salinas de Gortari,9 de modo que eles exigem um governo de transição e a abertura de um espaço político. A esta reflexão convém agregar o comentário feito por Marcos em sua entrevista a Le Bot na qual expressa que os teóricos do zapatismo são todos aqueles que contribuíram para a construção de uma nova abordagem do mundo. Marcos esclarece: “ser marxista não é um pecado, mas ser de esquerda ou ser revolucionário significa estar sempre em movimento e se renovar continuadamente, eu acredito que o zapatismo é revolucionário e lógico com ele mesmo. A gente chama isto como quiser: marxismo, antimarxismo, revisionismo, reformismo...” (Marcos apud Le Bot, 1997: 266-267). Marcos pontua ainda que “o zapatismo contribuiu para desconstruir muitos esquemas, não pela via intelectual, mas pela ação, pelo movimento” (Marcos apud Le Bot, 1997: 270-271). Logo, fica muito evidente que na perspectiva do subcomandante o EZLN convoca para uma revisão de muitas categorias de análise política. Considerando o que diz Le Bot (1997: 83): “a condução dos zapatistas desconserta os dogmáticos e confunde as classificações”, é de se imaginar que as leituras científicas lançadas em torno do EZLN gerem todo tipo de inferência, tendendo inclusive a um esforço de verificação no sentido de observar em
que grau seu encaminhamento guarda referências do marxismo e em que grau avança em relação a estes. Lembremos que para Marx e Engels (1848) toda luta de classe é uma luta política, e a história de todas as sociedades existentes é a história das lutas de classes, a qual envolve antagonismos de diferentes ordens. No que tange ao camponês, é importante salientar que Marx diz que os camponeses, por viverem em condições econômicas que os separam uns dos outros, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, compõem uma classe. Contudo, se só existe entre os pequenos camponeses um elo local e a semelhança entre eles, e não se cria entre eles uma comunidade, nem também uma ligação nacional, nenhuma organização política, neste sentido, os camponeses não constituem uma classe. Este aparente paradoxo diz respeito a uma existência material e uma inexistência de uma consciência de classe, de modo que o campesinato não seria uma classe para si, apesar de usufruir dos atributos de uma classe. Entretanto,cabefrisarqueocamponês manobrado do bonapartismo não equivale ao camponês de Chiapas. Em outras palavras, o zapatista não é o francês do 18 Brumário, mas sim o camponês organizado em ejidos, unidades comunitárias que vinham sendo desmontados mesmo antes de 1994. Lembrando que os zapatistas retomam a cosmogonia indígena da apropriação coletiva, questionam a fragmentação em parcelas, tomando como referência o princípio de Zapata de que a
Salinas foi eleito em 1988 num pleito cujo resultado foi bastante contestado pela oposição democrática Ele assumiu a presidência, tendo como sua agremiação política o PRI, partido que governou o México, conforme já foi mencionado, por um período de 71 anos ininterruptos, tempo que os zapatistas chamam de ditadura e contra a qual se posicionam. 9
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terra é de quem nela trabalha, conforme eles afirmam no comunicado “Resposta à proposição de acordo de paz do governo supremo”.10 Nos Manuscritos EconômicoFilosóficos, Marx salienta que os ciclos econômicos ocasionam diferentes efeitos sobre as distintas classes sociais. Apanhando este indicativo, é pertinente, no entanto, considerar que em se tratando do EZLN, verifica-se que há uma aliança de classes e grupos sociais numa mesma frente política, configurando, portanto, uma força política que integra diferentes segmentos sociais, conforme evidencia o Comunicado “Precisões sobre o EZLN e condições de um diálogo”, cujo um dos trechos segue abaixo:
revolucionário passível de acolher todas as formas de organização social que se proponham, com honestidade e patriotismo, melhorar nosso México. (Comunicado “Precisões sobre o EZLN e condições de um diálogo – ¡Ya basta!, 1994: 64-65)
Fica evidente que o ideário político e social do EZLN apresenta características semelhantes àquelas analisadas por Marx na sociedade capitalista ocidental. Afinal, o zapatismo compõe-se também como uma luta classista, na medida em que, como já foi mencionado, abarca sob sua bandeira todos os despossuídos. Eles dizem: “Três forças devem unir os passos: a força dos operários, a força dos camponeses, a força popular. Estas três forças conosco, nada irá nos parar”.11 Além disto, os zapatistas defendem a autonomia política, se opõem ao governo e se indignam com a inexistência da liberdade e da democracia, apontando tais ausências como as causas da pobreza que alastra o México. Segundo Vásquez (1998: 29), o pensamento marxista guarda quatro importantes dimensões, a saber: “teoria da realidade, crítica do existente, projeto de emancipação e imperativo político de transformar o mundo”. Ele faz esta afirmativa, tomando como ponto de partida O manifesto comunista, cujas páginas, segundo Vásquez, trazem a vocação prática da revolução e um conteúdo eminentemente programático. Ele diz ainda que o manifesto continua sendo um texto político vivo, e isso pode ser realmente comprovado, a partir das correspondências percebidas entre o EZLN e as camadas da teoria marxista. Abaixo o fragmento de um dos comunicados zapatistas:
As graves condições de pobreza de nossos compatriotas não têm outra causa, senão: a ausência de liberdade e de democracia. Nós consideramos que o respeito real das liberdades e da vontade democrática do povo é a condição indispensável de uma melhoria do estado econômico e social dos despossuídos do nosso país. Por esta razão, da mesma forma que nós agitamos a bandeira da melhoria das condições de vida do povo mexicano, nós exigimos a liberdade e a democracia política, a demissão do governo ilegítimo de Carlos Salinas de Gortari, assim como a formação de um governo de transição democrática que garanta eleições honestas em todo o país e em todos os níveis do governo. Nós reafirmamos a atualidade de nossas reivindicações políticas e econômicas em torno das quais nós queremos juntar todo o povo do México e suas organizações independentes, para que através de todas as formas de luta, nasça um movimento nacional 10 11
Disponível em <http://enlacezapatista.ezln.org.mx> Extraído do comunicado “A injustiça porta um novo nome: neoliberalismo” (¡Ya basta!, 1994: 268).
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exclusivo; Baschet acredita que os zapatistas propõem uma reformulação crítica da noção de revolução (Baschet, 2005: 91). O autor faz esta consideração, em virtude da fala de Marcos de que o EZLN não quer uma revolução ortodoxa, mas sim alguma coisa mais difícil. Por isso, para Baschet, “a fisionomia própria do zapatismo não poderá se construir se não sobre uma base de trabalho que permite uma explícita reapropriação crítica, seletiva e refletida do marxismo” (Baschet, 2005: 97). É importante deixar dito que a região de Chiapas, onde está o EZLN, comunica para o mundo um contrapoder popular, o qual se revela, através dos Caracóis, dos Municípios Autônomos e das Juntas de Bom Governo Revolucionários Zapatistas. Os Caracóis são “territórios liberados” da lógica capitalista dominante, com novos modos de convivência social, funcionam como células locais, com uma gestão de autogoverno. Em sua fachada está escrito: “aqui o povo manda e o governo obedece”, o que implica no exercício de uma nova forma de gestionar assuntos públicos. Segundo Le Bot, os zapatistas não querem uma rearrumação política, eles almejam uma alteração da cultura política, uma inversão da pirâmide do poder. Alain Touraine, por sua vez, lança mão de enunciados que problematizam o modelo de construção rumo a uma nova sociedade, conforme está descrito nos apontamentos marxistas. Ele diz que no passado a ação política popular foi concebida como “portador de uma lógica positiva, como colocado no movimento da história, porque ele era comunidade, trabalho, energia ou povo, contra os atores dominantes que defendiam interesses particulares, privilégios ou lucros” (Touraine, 1999: 114). Acreditava-se que a vitória desse ator popular devia representar a reconciliação
O trabalho coletivo, o pensamento democrático, a submissão à voz da maioria são uma tradição na zona indígena, eles são a única chance de sobrevivência, de resistência, de preservação da dignidade e da revolta. Estes “pensamentos errados”, aos olhos dos proprietários da terra e dos comerciantes, vão ao encontro do preceito capitalista que diz “muito em poucas mãos”. (Comunicado “Chiapas: O sudeste está em dois ventos, um trovão e uma profecia” – ¡Ya basta!, 1994: 56)
Os zapatistas, contudo, não se identificam com a ideia de que a desejada nova sociedade será resultado do cumprimento de um passo a passo pré-estabelecido, conforme aparece na concepção marxista de mudança social, que sugere a tomada da produção das mãos da burguesia e sua centralização temporária nas mãos do Estado, deslocamento este que só se realizaria, a princípio, através de uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesa, alterando desta forma todo o modo de produção. Deduz-se que esta concepção revolucionária imputa ao povo um papel bastante determinado, de modo que se dele vem a sublevação, cabe à elite intelectual e política a interpretação do sentido da história, a submissão das práticas sociais à razão e à realização do progresso. Nestes termos, lembremos o que Marx (1989) nos fala na Ideologia alemã: “todos os homens devem ter condições de viver para poder ‘fazer a história’” (Marx, 1989: 22). E este apelo indubitavelmente é um dos que orientam os zapatistas. A contribuição de Baschet no que toca à interseção do EZLN com o marxismo passa, sobretudo pela afirmativa de que o EZLN abandona a ideia de ditadura do proletariado, na medida em que não enxerga o proletariado como um ator revolucionário 31
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da sociedade consigo mesma, a superação das contradições, o júbilo da igualdade, da fraternidade e da justiça, de modo que quanto maior a infelicidade dos dominados, mais necessária era a violência revolucionária para fazer emergir a unidade do povo. Touraine informa que foi esta a mensagem de todas as revoluções, desde a Convenção na França até a revolução mexicana, passando pela revolução cubana e pela revolução cultural chinesa. Quando o subcomandante Marcos reivindica o direito à indefinição, está dado o informe sobre o manejo libertário que o EZLN faz das concepções de revolução que o mundo conhece. Lembremos que o próprio Marx (1848) disse: ao longo do tempo, vivem-se novas divisões, novas condições de opressão e novas formas de luta. Portanto, é possível encontrar vias revolucionárias de superação da opressão que não reproduzem integralmente as orientações arroladas, por exemplo, em O manifesto comunista. Vale dizer que Le Bot (1997) preconiza que o movimento zapatista é um movimento de recomposição a partir de uma distensão irremediável, e não um retorno à tradição; nasceu de múltiplos impasses, divisões e rupturas, reinventa a democracia e não defende o comunitarismo. Le Bot diz ainda que em um tempo no qual proliferam movimentos de caráter nacionalista, étnicos ou religiosos e também se verifica que as iniciativas em oposição ao neoliberalismo se exprimem, sobretudo, por um viés identitário, o zapatismo aparece como “uma das tentativas mais significativas de combinar identidade, modernidade e democracia” (Le Bot, 1997: 106). Baschet (2005), por sua vez, percebe o EZLN como um movimento que adota uma concepção 12 13
de etnicidade aberta, articulada à dimensão social e englobada numa perspectiva vasta, que associa indígenas e não indígenas. O que fica evidente é que, se olharmos o EZLN a partir da gramática do conflito, nós veremos certas particularidades, sobretudo, em relação aos movimentos de contestação da América Latina e que são, conforme explica Pierre Vayssière (2001), associados à revolução e à guerrilha. Em sua concepção, o EZLN não está dirigido apenas contra o Estado mexicano, como os movimentos anteriores. “No fundo, este movimento está enraizado com determinação no passado indígena do México que pretende se alargar até a dimensão do mundo globalizado” (Vayssière, 2001: 359). Trata-se de um projeto ambicioso que quer levar em conta não somente os milhões de indígenas, mas os quarenta milhões de pobres e todas as minorias oprimidas: os deficientes, as mulheres, os artistas, os homossexuais, explica Vayssière. Neste sentido, vale mencionar as contribuições de René Zavaleta (1990) e García Linera (2007). O primeiro pontuando a formação social verdadeiramente ancorada na diversidade, tendo em vista a intersubjetividade e a autodeterminação, e o segundo ressaltando a cosmogonia indígena como uma ruptura da referência de subalternidade, o que fica, segundo ele, muito bem explicitado na Bolívia, cuja realidade bastante particular no que se refere à composição de classes sociais, uma vez observada em profundidade pelo grupo Comunas,12 permitiu a este a elaboração de apontamentos que agregam ao repertório de reflexões marxistas a extensão de muitas de suas categorias analíticas. Conclusão
Para saber mais sobre o grupo Comunas, ver Gonçalves (2013). Extraído do comunicado “O EZLN e a mídia” (¡Ya basta!, 1994: 161).
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Como se observa, o EZLN não se encaixa tão confortavel mente na terminologia dos Novos Movimentos Sociais porque suas pautas não estão amplamente centradas nas questões alusivas, por exemplo, à identidade e ao corpo. Além disso, não se nota um deslocamento do coletivo para o sujeito; pelo contrário, suas reivindicações são voltadas essencialmente à dimensão coletiva. Por outro lado, embora sua trajetória dialogue com algumas interpretações clássicas a respeito das ações implementadas pelos despossuídos, ela as ultrapassa, na medida em que os zapatistas não tomam para si um plano linear de feitura da revolução. Se buscarmos nas falas proferidas
pelo EZLN indicativos de que a luta zapatista detém aspectos políticos originais, encontramos uma variedade de frases que atestam tal perspectiva, como, por exemplo, esta: “o EZLN é [...] um movimento, cujas origens, na melhor situação, são uma enigma, e, na pior, uma provocação”.13 Indiscutivelmente, o EZLN se compõe como um movimento, cujo percurso incentiva a releitura de algumas definições políticas, como as que se encontram ancoradas no arcabouço marxista, por exemplo, na medida em que suas ações portam uma dinâmica nova, mas ao mesmo tempo sinaliza o enfoque restritivo dos novos aportes teóricos que parecem ler a sociedade como se vivêssemos um momento pós- classe.
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CONFRONTANDO ESCALAS: CONTRIBUIÇÕES DA ETNOGRAFIA PARA AS TEORIAS SOCIAIS SOBRE MOVIMENTOS POPULARES URBANOS Wecisley Ribeiro do Espírito Santoi Resumo O artigo apresenta um relato etnográfico sobre a V Conferência Nacional das Cidades, com especial interesse na atuação dos movimentos sociais urbanos. O material de campo, depois de apresentado, é confrontado com uma escala mais abrangente, na qual emergem divergências e convergências entre estes mesmos movimentos em nível macrossociológico. Por fim, testa-se a hipótese segundo a qual há uma continuidade entre o caráter segmentar presente nas situações de interação social registradas no âmbito da Conferência, de um lado, e os conflitos e coalizões testemunhados entre entidades dos movimentos urbanos e as esferas estatais de governo, de outro. As considerações finais destacam alguns aspectos culturais que subjazem à organização segmentar destas entidades. Palavras chave: Movimentos sociais; urbano; escalas; segmentaridade; conflitos.
CONFRONTING SCALES: THE CONTRIBUTION OF ETHNOGRAPHY TO SOCIAL THEORIES ABOUT URBAN POPULAR MOVEMENTS Abstract: The article presents an ethnographic report about the 5th National Conference of Cities, with special interest in the performance of urban social movements. The field material, once presented, is confronted with a broader scale, in which emerge differences (deviations) and convergences among these same movements in a macrosocial level. Finally (at last), the hypothesis according to which there is a continuity between the segmental character of the social interactions observed within the scope of the conference and the conflicts and coalitions witnessed between urban movement entities and State spheres of Government is tested. The final considerations highlight some cultural aspects underlying the segmented organization of these entities. Keywords Social movements; urban; scales; segmented social organization (segmentarity); conflicts.
Wecisley Ribeiro do Espírito Santo é mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ; professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEH/UERJ); pesquisador bolsista do Colégio Brasileiro de Altos Estudos/UFRJ e membro do Núcleo de Antropologia do Trabalho, de Estudos biográficos e de trajetórias (NuAT/PPGAS/MN/UFRJ). E-mail: wecisley@gmail.com i
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Introdução
dos Movimentos Populares (CMP). O objetivo desta investigação foi o de tentar compreender as relações entre movimentos sociais urbanos e a esfera pública.2 O crescimento e a intensificação das ações dos movimentos sociais urbanos (do que o protagonismo e a visibilidade recentes do MTST constitui o exemplo mais evidente) – bem como a diversificação de seus “repertórios de ação coletiva” (Tilly, 1977) – lança luz sobre a importância crescente assumida pela questão urbana, na história do Brasil. Tanto entidades que, nos últimos anos, têm priorizado a participação institucional (nos conselhos e conferências, por exemplo) quanto as que se concentram sobre a ação direta, por meio de mobilizações de rua, vêm denunciando a privatização dos territórios das cidades – por meio da ação de incorporadoras, construtoras, empreiteiras, bancos de terra. É neste contexto que as reivindicações por uma inversão de prioridades na política urbana – vale dizer, a passagem do primado concedido à política de terceirização da produção das cidades por meio de empreiteiras e construtoras (com financiamento público) e da privatização do espaço público, à garantia do direito à cidade (e aos equipamentos urbanos de saúde, educação, transporte, lazer, saneamento, habitação etc.) para todos os cidadãos – ganham fôlego. Os conflitos decorrentes destes processos intensificam-se na razão mesma da radicalização da questão
Os relatos etnográficos podem trazer algum aporte às teorias sociais de escala macrossociológica? O detalhamento da etnografia, seu interesse pelos aspectos “menores” da vida cotidiana, oferece uma contribuiçãoparticularparaoenfrentamento das questões sociais abrangentes? Pode ser profícua a operação de lançar uma escala contra outra, compreendidas como níveis distintos de observação de um mesmo objeto? Estas indagações, nada originais e há tempo consolidadas no interior da Antropologia (L’Etoile, Neiburg & Sigaud, 2002), em particular, e das Teorias Sociais, em geral, servem como fio condutor para as notas etnográficas que se seguem. A partir do caso dos movimentos sociais empenhados na luta pela Reforma Urbana1 e pelo Direito à Cidade, apresento um relato sobre a V Conferência Nacional das Cidades (ocorrida em novembro de 2013, doravante V CNC) buscando depreender deste exercício algumas hipóteses mais gerais sobre as lutas urbanas brasileiras na atualidade. A observação desta Conferência constituiu uma parte do trabalho de campo etnográfico multissituado (Marcus, 1995) que desenvolvi entre dezembro de 2012 e novembro de 2014 – acompanhando a atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), da União Nacional por Moradia Popular (UNMP), do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), da Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAN) e da Central
As categorias nativas dos movimentos sociais urbanos são discriminadas em itálico, sobretudo quando aparecem pela primeira vez, mas também quando vale a pena enfatizá-las novamente. 2 Este artigo apresenta um fragmento dos resultados de uma ampla pesquisa coletiva que reuniu cerca de 20 pesquisadores (entre antropólogos, sociólogos e historiadores), concentrada sobre as relações entabuladas entre movimentos sociais brasileiros e Estado. Esta investigação foi realizada sob os auspícios do Colégio Brasileiro de Altos Estudos, com financiamento da Secretaria Geral da Presidência da República. O que se segue diz repeito especificamente aos movimentos populares empenhados na luta pela Reforma Urbana. Um relato mais panorâmico sobre o “estado da arte” dos movimentos populares urbanos, produto desta mesma pesquisa, pode ser encontrado em Pandolfi & Espírito Santo (2014. Agradeço a Dulce Pandolfi, com quem tive a honra de trabalhar nesta pesquisa, pela leitura crítica do material ora apresentado. 1
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urbana. Ocupações de terra e de imóveis que não cumprem a “função social da propriedade” (Constituição Federal e Estatuto das Cidades), reintegrações de posse, violência policial, criminalização dos movimentos sociais e das regiões mais pobres das cidades, ruídos introduzidos de várias partes no diálogo entre sociedade civil organizada e governantes, conflitos deflagrados entre entidades distintas dos movimentos; eis alguns dos principais problemas colocados na agenda pública atualmente pela atuação dos movimentos sociais urbanos. A pergunta central deste artigo pode ser, neste sentido, assim formulada: que contribuição a etnografia destes movimentos e de suas múltiplas entidades pode oferecer à reflexão pública acerca destes problemas centrais de escala nacional? No que se segue, tento arriscar algumas possibilidades de resposta a esta questão.
os trabalhos do plenário, seguindo com seu embate particular. Embora não seja possível ouvir o tema da altercação, a linguagem corporal de ambas permite entrever um terceiro ator, que é objeto da conversa – a mesa coordenadora. Uma das mulheres, sentada, ergue as mãos com as palmas voltadas para cima, fazendo círculos simultâneos evocativos de indagações. A outra, permanecendo de pé, aponta de modo acusador para a mesa, balançando a cabeça negativamente; coloca o dedo indicador sob o globo ocular, sinalizando que ela “está de olho”. O caráter inflamado dos gestos, acompanhado de certa negligência com relação aos trabalhos do plenário, permite supor tratar-se de polêmica muito importante, pelo menos do ponto de vista de ambas. Este episódio, banal em aparência, evoca uma característica recorrente nos trabalhos da V CNC – a saber, uma série de pequenas tensões muito difusas por todo o auditório. Embora estes pequenos conflitos relacionem-se com as grandes questões em jogo na Conferência, também guardam certa autonomia relativa. Alguns destes pequenos debates – que lembram o conceito de “sociabilidade agonística” empregado por Comerford (2003) para descrever interações sociais na Zona da Mata de Minas Gerais – relacionam-se, antes, a correções recíprocas das formas pelas quais os militantes se expressam entre eles do que ao conteúdo das falas. Muitas das solicitações para fazer uso da palavra por parte dos delegados constituem o espaço/tempo no qual estes conflitos menores ganham expressão e visibilidade. Elas são, na feliz expressão de Leite Lopes & Heredia (2014), parte das “estratégias de visibilização” de suas entidades, identidades e reivindicações (gerais, específicas e, mesmo, por vezes, pessoais). Do ponto de vista dos militantes que coordenam os trabalhos e daqueles que
Tensões rituais Por volta das 16h40min de uma quinta-feira (21 de novembro de 2013), em meio à plenária do painel 1 da V CNC, duas militantes da UNMP, identificadas por camisetas, debatem de modo acalorado. O Auditório Máster do Centro de Convenções Ulisses Guimarães de Brasília (com capacidade para 2.827 pessoas), encontra-se majoritariamente ocupado por delegados representantes dos quatro movimentos nacionais de luta por habitação com assento no Conselho Nacional das Cidades (ConCidades) – a CONAM, o MNLM, a CMP, além da própria UNMP. O que desencadeia o debate entre as duas delegadas é uma votação para deliberar sobre um documento que visa garantir maior controle sobre grandes projetos com impactos ambientais. Se bem que este seja o momento de levantar as credenciais para decidir sobre as propostas, ambas ignoram soberanamente 37
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acompanham e participam mais ativamente deles, estas intervenções pontuais atrasam o andamento do plenário. Por outro lado, para os protagonistas destes conflitos, os trabalhos não podem continuar até que estas questões sejam enfrentadas. Isto que mesmo os militantes consideram um “atraso” nos trabalhos parece ser um aspecto estruturante destas reuniões. Com efeito, nenhum dos plenários da V CNC conseguiu encerrar os trabalhos no horário previsto pela programação; todos eles avançaram mais de uma ou duas horas o teto estabelecido. Estas tensões que expressam conflitos segmentares entre militantes isolados ou grupos segmentares de militantes parecem desempenhar um papel de tensões rituais, cujo objetivo é conservar a estrutura e os processos habituais das reuniões dos movimentos sociais – que supõem uma participação ativa dos militantes, sem a qual a concepção de democracia participativa que está em jogo, bem como o próprio conteúdo prático que define a noção mesma de militância, não se concretizam. O Painel 1 tem por objetivo deliberar sobre substitutivos ao texto original do Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano – com vistas a consolidar um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano com caráter popular e participativo. Todos os substitutivos são propostas provenientes das Conferências Estaduais e Municipais das Cidades. Tendo, pois, já sido debatidos no âmbito destas conferências locais, a mesa coordenadora julga não ser necessário abrir inscrições para uso da palavra. Este fato desagrada o plenário, que solicita instauração de regime de votação no qual se delibera pela abertura de inscrições. Daí em diante os militantes mais participativos ocupam, até o fim da reunião, o local diante do microfone, permanecendo de pé, com o caderno de propostas em mãos. Alguns deles, por vezes, pedem a palavra, formulam suas defesas e, quando
da votação, não erguem as credenciais para votar; encontram-se, já, concentrados sobre as questões que serão debatidas a seguir. Esta aglomeração humana que se constitui perto da mesa coordenadora é um dado recorrente de todos os plenários do evento. E tamanho é seu potencial para disputar a agenda, os rumos e a velocidade dos trabalhos das reuniões que, em todos os painéis, um membro da mesa desempenha o papel de mediador das demandas deste grupo. De pé, diante da aglomeração, este mediador ouve os pedidos de inscrição, os destaques, mas também certas demandas não previstas ou estabelecidas no protocolo de condução dos trabalhos destes plenários. Há, pois, uma gramática da participação nestes espaços que não coincide, em todos os seus aspectos, com o protocolo oficial de condução destas reuniões. Estas transgressões do protocolo (solicitações de uso da palavra quando as inscrições já foram encerradas, de aberturas de defesas de propostas adicionais ao número deliberado em plenário, alteração da redação de textos que, por definição, não podem ser alterados naquele fórum visto já terem sido aprovados em plenários anteriores etc.) não parecem ser um “desvio” ou um “defeito” no andamento das reuniões, mas parte constitutiva e estruturante delas. Tanto assim que foi preciso criar a figura daquele mediador, espécie de intermediário entre a mesa coordenadora dos trabalhos e a aglomeração de militantes que disputa com aquela a dinâmica da reunião. Por vezes, quando os trabalhos estagnam por conta das intervenções desta aglomeração, todo o plenário entoa gritos de “senta, senta”. Ao que menos da metade dos que estão de pé atendem de fato. Mas, se esta aglomeração frontal à mesa exerce de modo mais ativo sua crítica, investida nas questões em jogo, ela apenas leva ao paroxismo o senso crítico 38
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que constitui um pré-requisito para todos os militantes dos movimentos sociais, senso crítico que pode ser definido como o idioma por meio do qual o princípio da “segmentaridade” (Evans-Pritchard, 1969; Goldman, 2006) – voltarei a este ponto – se expressa nas relações sociais entabuladas na Conferência. Diante do plenário, exercendo um controle quase paralisante sobre a mesa coordenadora, estes militantes oferecem um modelo de ação para os demais, que o exercitam ali como alhures.
de pelo menos 10% dos delegados credenciados”. A militante formula então a proposta de redução do percentual das assinaturas para encaminhamento das moções, de 10% para 1%. Em sua defesa, argumenta que a exigência dos 10% constitui uma barreira para o encaminhamento de moções, fazendo com que somente os movimentos com representatividade nacional controlem a aprovação delas. Na sequência, concordando, um delegado da Bahia, que não declara a entidade de pertencimento, toma a palavra e propõe que, na proposta, substitua-se a expressão “delegados credenciados” por “delegados presentes no plenário”. E emenda que, por vezes, os delegados credenciados vão a Brasília para “fazer turismo” e não comparecem aos plenários e ao que grande parte dos presentes no auditório responde com vaias. A mesa argumenta que sua proposta não facilitaria o encaminhamento de moções, já que as assinaturas não são recolhidas apenas no plenário, mas em diversos espaços. Um delegado representante do poder público municipal do Pará toma a palavra e apresenta a defesa do percentual de 1%. Outro delegado, este da CMP, defende a manutenção do texto original. E argumenta que o percentual de 1% não garante representatividade dos documentos. Entra-se em regime de votação e a manutenção do percentual de 10% é aprovada. O plenário é encerrado com a aprovação do regimento da V CNC. Antes, porém, que todos se retirem do auditório, uma delegada da UNMP toma a palavra:
A escala etnográfica Quarta-feira, 20 de novembro de 2013 – plenária para a aprovação do regimento interno da 5ª Conferência Nacional das Cidades. Cerca de 2/3 dos assentos do Auditório Planalto do Centro de Convenções Ulisses Guimarães (cuja capacidade máxima é de 983 pessoas) se encontram ocupados. Chego ao plenário em pleno andamento dos trabalhos. A discussão em pauta se refere ao horário de credenciamento dos delegados. A proposta registrada no regimento determina que o credenciamento dos titulares será até as 18h00min do segundo dia do evento. No entanto, alguém do plenário encaminha uma proposta de redução do teto, segundo a qual o credenciamento dos titulares encerrar-se-ia às 14h00min. A mesa pergunta se alguém defende a manutenção do texto original sem que ninguém se manifeste. Um delegado, representante do poder público estadual de Mato Grosso, faz a defesa da proposta de redução do horário. Por fim, entra-se em regime de votação, quando o plenário delibera pela manutenção do teto original. Segue-se a votação de outro destaque apresentado por uma delegada do movimento popular de Vila Velha, ES, referente ao artigo do regimento que determina o seguinte: “As moções serão levadas a plenário mediante a assinatura
Companheiros, a gente tem uma denúncia a fazer aqui. O Ministério das Cidades está tratando os delegados dos movimentos populares pessimamente. A alimentação está precária, não tem horáriocerto,nãotemônibuspraconduzir a gente até o centro de convenções e até o hotel. Nós queremos denunciar aqui, neste primeiro plenário, este tratamento 39
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do Ministério das Cidades para que a situação seja resolvida. Senão nós vamos escrever uma moção de repúdio ao Ministério das Cidades para entregar à Dilma.
Única dos Trabalhadores (CUT) de São Paulo, comentando a denúncia da UNMP, referente aos problemas com hospedagem, transporte e alimentação. Ele confirma as denúncias:
Seguem-se aplausos acalorados de todo o plenário. Uma mulher, sentada no assento atrás de mim, vestida com uma camisa do MNLM, faz alguns comentários acerca de militantes em um hotel.
Nós chegamos ao aeroporto e a coordenação da conferência nos recepcionou e levou para o hotel. Os hotéis foram divididos por segmento, segmento de luta por moradia ficaram todos no mesmo hotel, movimentos de trabalhadores ficaram em outro, cada segmento ficou num lugar. Tudo definido pela organização da conferência. Mas quando a gente chegou no hotel que ficou com os delegados representantes dos trabalhadores não tinha mais vaga. Aí falaram pra gente almoçar e fazer o credenciamento e nos mandaram pra outro hotel. Eu nem fui ainda pro outro hotel que me mandaram. Acabei de fazer o credenciamento agora e perdi a primeira plenária. Só vou pro hotel depois da cerimônia de abertura.
Aqui é o lugar certo pra denunciar. O responsável por esta situação é o Ministério das Cidades, mas lá no hotel os representantes dos movimentos populares estavam tratando mal os funcionários do hotel. Aí teve um funcionário que virou pra eles e disse: “nós também somos trabalhadores como vocês”. Aí teve um militante que respondeu: “você é trabalhador pelego”. Esses são os revolucionários de merda que tem aqui.
O episódio introduz a pergunta central deste artigo: há algum princípio ordenador que nos permita formular uma interpretação unificada das distintas relações conflituosas que testemunhamos aqui (os conflitos entre movimentos sociais e Ministério das Cidades; entre militantes destes movimentos e os trabalhadores do hotel; e, finalmente, entre os próprios militantes – entre a delegada que fez a denúncia e a que formulou os comentários críticos sobre os “revolucionários de merda”)? A hipótese aventada é de que o próprio pré-requisito fundamental da formação de um militante, qual seja, a formação do senso crítico, se converte frequentemente num fato social total, investido doravante em todas as situações de interação (sejam elas entre militantes, entre estes e quaisquer outras pessoas, entre entidades dos movimentos sociais, e entre estes e as várias esferas do Estado). Ao sair do auditório entabulo conversa com um militante da Central
Perguntei diretamente qual era a opinião dele a respeito da relação entre os movimentos sociais ali presentes e os governos em suas três esferas. Segue-se sua resposta: Em São Paulo os movimentos de luta por moradia buscam dialogar com o governo, com o Fernando Haddad e com a Dilma, mas resguardando autonomia. A estratégia lá tem sido ocupar os imóveis vazios no centro para pressionar para que os trabalhadores retornem pro centro da cidade, de onde eles foram expulsos historicamente.
Não por acaso o Secretário Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, encerrou sua fala, no segundo dia do evento, com as seguintes palavras: “Vamos continuar amigos e continuar brigando. Porque a briga de vocês é essencial pra gente continuar avançando”. Esta fala – que poderia ser concebida 40
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como uma formulação nativa do princípio antropológico da segmentaridade – sintetiza bem a maneira pela qual alguns dos grandes movimentos nacionais que têm assento no ConCidades, como a CONAM e a CMP, caracterizam sua relação com o Governo Federal – em consonância com as linhas gerais do depoimento do delegado representante da CUT, acima registrado.3 Quinta-feira, 21 de novembro de 2013, Painel 2 – plenário para a criação de mecanismos que garantam participação e controle popular no Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano. A fala de abertura é proferida por Gilberto Carvalho. Uma aglomeração de militantes cerca o ministro quando ele desce da tribuna. O delegado da UNMP responsável por coordenar os trabalhos da mesa toma a palavra: “companheiros, a contribuição de vocês agora é aqui no plenário, deliberando sobre a participação e controle popular. Deixem o ministro Gilberto Carvalho ir trabalhar”. Episódios desta natureza se repetem em várias conferências nacionais e lançam luz sobre as forças centrípetas investidas nas conferências, que aproximam a sociedade civil organizada dos centros de poder estatal. Os militantes das entidades que participam destes espaços institucionais parecem ter consciência destas forças centrípetas e manipulam as possibilidades de negociação e de visibilização de suas demandas que elas possibilitam. Sexta-feira, 22 de novembro de 2013, Painel 3 – plenário para deliberar sobre a Função Social da propriedade. O painel inicia-se com algumas falas de membros convidados da mesa. O Auditório Máster
encontra-se ocupado, em sua maior parte, por delegados representantes das entidades CMP, CONAM e MNLM. Em meio à primeira exposição de um dos convidados, gritos e palavras de ordem chegam ao auditório, vindos de fora. O coordenador da mesa, representante da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas, interrompe a fala da expositora e diz: “Companheiros, parece que está ocorrendo uma mobilização lá fora e está vindo pra cá. Vamos aguardar a chegada dos companheiros”. A UNMP chega em bloco, entoando palavras de ordem: “É a União, é a União, é a União que constrói o mutirão”. As mulheres da União seguram pompons amarelos – cor da UNMP – agitando-os enquanto cantam. Todos os militantes da União ocupam lugares do auditório sem, no entanto, se sentar – fato que obstrui a visão de parte dos presentes que já se encontravam acomodados. Um dos delegados da entidade sobe na balaustrada que separa o plenário da mesa e registra, com sua câmera filmadora, a chegada de seus companheiros, enquanto oblitera a visão de alguns dos presentes. O coordenador dos trabalhos pede atenção aos recémchegados que, contudo não param de cantar ainda por um tempo. Por fim, com sagacidade, ele pede uma salva de palmas aos companheiros da União. Somente ao cabo das saudações os delegados da entidade se acomodam e silenciam os cantos. A chegada triunfante da UNMP não pareceu levantar nenhuma demanda, nenhuma reivindicação específica. O formato de ato público teve por objetivo aparente apenas marcar forte posição da
Com efeito, um jornal informativo da CMP caracteriza a trajetória da entidade nos seguintes termos: “O 5º Congresso Nacional da Central dos Movimentos Populares celebrou os 20 anos da entidade, destacando a sua participação fundamental na luta contra o projeto neoliberal, no período de 1994 a 2002, tendo sido uma das entidades organizadoras de grandes mobilizações de rua, a exemplo da marcha dos 100 mil em Brasília, dentre outras. Já entre 2003 e 2013, nos governos Lula e Dilma, a conclusão é que a CMP, em alguns estados, priorizou a participação em espaços institucionais, como as conferências e conselhos”. 3
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entidade no plenário. Parecia tratar-se de mais uma das “estratégias de visibilização” (Leite Lopes & Heredia, 2014) levadas a curso pelos atores dos movimentos sociais no âmbito das conferências. O coordenador da mesa restitui a palavra à expositora. Súbito, um militante do MNLM se levanta e começa a gritar: “Aqui no plenário tá todo mundo calado...”, principia o delegado, a partir do que não consigo entender suas palavras. A mesa pede a alguém da coordenação que vá falar com ele, ao que uma mulher se levanta e vai ouvi-lo. Reinicia-se, pela terceira vez, a exposição da palestrante. Em linhas gerais, sua fala consistiu em denunciar o que ela denominou de “cidade da mercadoria”, uma antítese de espaço público, garantidor dos direitos de todos aos equipamentos urbanos, e contrário à satisfação das necessidades coletivas. Afirmou a importância do Plano Diretor dos municípios como um espaço de democratização das políticas públicas. Mas disse também: “O aumento dos recursos públicos governamentais, nos últimos dez anos, para fazer a reforma urbana, não tem sido suficiente. O que nós vivemos hoje é uma antirreforma? urbana”. Durante todas as exposições dos convidados, grande parte dos delegados dos movimentos sociais não param em suas cadeiras. Na fileira onde me sento, militantes levantam-se recorrentemente e me pedem passagem. Este fato, somado à manifestação do delegado do MNLM que diz “aqui no plenário tá todo mundo calado...”, sugere certa falta de interesse por parte dos militantes em ouvir, de um modo passivo, os expositores; seu objetivo na conferência é, antes, o de participar ativamente e tomar a palavra. Inicia-se finalmente a votação das propostas do Painel 3. Antes mesmo que o coordenador inicie a leitura das emendas aditivas ou substitutivas, no momento da leitura do texto original uma fila de
militantes com questões de ordem e de encaminhamento se constitui diante do microfone reservado às intervenções do plenário. Caso o plenário aprove a preservação do texto original, no entanto, não há motivos para aquela aglomeração, posto não ser necessário abrir defesas das emendas. Mas aqueles delegados disputando o microfone são, já, uma premonição de que o texto original será reprovado. A alteração do texto original das propostas abre, pois, a possibilidade de interações sociais específicas – as intervenções de defesas das emendas (leia-se, a tomada da palavra por parte de militantes do plenário, de outro modo monopolizada pela mesa coordenadora). Estas defesas das emendas são sempre precedidas de conversas e debates (mais ou menos acalorados), em pequenas aglomerações muito difusas por todo o auditório e, sobretudo, diante do microfone do plenário. Na 257ª emenda aditiva há um erro de digitação. Um delegado pede a palavra e sugere a correção. A mesa acata o encaminhamento. Outro delegado argumenta que a mesa não pode alterar o texto. E emenda que, por mais que o texto apresente erros de digitação, sua alteração pelo plenário é um precedente perigoso, visto que os textos foram redigidos no âmbito das conferências locais e que a conferência nacional não tem competência para alterar propostas dos estados e municípios. A aglomeração aumenta diante do microfone; gritos exaltados e gestos de indignação pululam em todos os cantos. Entretanto, a possibilidade de ajustar o texto, em caráter extraordinário e somente em casos de erros de digitação, é aprovada pelo plenário. Retiro-me do auditório em direção ao pátio do centro de convenções. Sento-me perto de um grupo de cinco delegados que conversam animadamente. Um militante 42
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de prioridades. De fato, uma frase muito comum entre os movimentos sociais, referida ao latifúndio urbano, é: “quem tem a terra domina a política urbana”. Daí também resulta o ponto de vista mais recente de Maricato sobre a participação dos movimentos sociais nos conselhos e noutras vias institucionais:
da CONAM diz para outro da UNMP: “Se você sair da União e vier pra CONAM, vai provocar a queda do técnico” – referindose metaforicamente ao presidente da UNMP. Seguem-se uma série de metáforas futebolísticas. Diz o militante da União: “Mas eu já tô é pendurando as chuteiras, visse?” Ao que o outro responde: “tá nada, nós estamos montando uma seleção na CONAM pra você vir jogar com a gente. Porque nossa camisa é amarela, mas aqui não é União não, visse? Aqui é CONAM”.
Não tem falta, no Brasil, de planos e leis. Recentemente nós tivemos uma festa de planos diretores que foi a campanha dos planos diretores participativos. Eu realmente acho que nós temos que fazer um balanço disto e parar de acreditar que planejamento urbano vai passar por cima de interesses que são muito fortes na produção da cidade. [...] Nós temos que acabar com essa ingenuidade. O Flávio Villaça escreveu “A ilusão do plano diretor” antes da última campanha dos planos diretores participativos. Naquela campanha nós também cometemos o erro muito grave que foi de colocar todo o movimento popular discutindo plano diretor, discutindo lei, fazendo capacitação de instrumentos técnicos. Não é função do movimento popular achar saídas técnicas e urbanísticas. É função do movimento popular fazer exigências. E talvez é função de um técnico, quando procurado, achar saídas. Durante esse período de tempo, desses anos recentes, nós tivemos uma febre participativa. Tem bibliografia que fala que nós tivemos 20 mil conselhos participativos; de criança, adolescente, idosos, saúde, educação, cidades, habitação. Isto tudo multiplicado por municípios, estados e governo federal. Mas o que é que aconteceu com as nossas cidades, durante esse período?
Confrontando escalas “Nós vamos retomar a proposta de reforma urbana em novas bases”. Assim Ermínia Maricato – liderança histórica da luta pela reforma urbana e uma das principais formuladoras do projeto do Ministério das Cidades (reivindicação dos movimentos sociais transformada em realidade, durante o governo federal de Luiz Inácio Lula da Silva) – rematou sua participação num debate sobre os megaeventos, organizado pelo Comitê Popular Rio, Copa e Olimpíadas no dia 25 de novembro de 2011.4 Em linhas gerais, a exposição da urbanista sugeriu que os megaeventos não inauguram uma dinâmica nova nas cidades brasileiras. Eles apenas intensificam uma “febre” sempre presente que tem como causador o grande capital urbano (incorporadoras, construtoras, empreiteiras, o latifúndio urbano,aespeculaçãoimobiliária,aindústria automobilística). Segundo Maricato, estas seriam as forças que dominam a política urbana no Brasil, a razão pela qual o Estado brasileiro não tem condições para atender o que os movimentos populares urbanos defendem como uma inversão
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Ver <http://www.youtube.com/watch?v=Ctadh7ehMQo>. Acesso em 12 set 2014. A crítica de Maricato vai além ao denunciar a flexibilização da normativa urbanística para atender a interesses do capital urbano, que é perpetrada no interior de alguns conselhos: “Eu fui convidada para participar de uma manifestação que era de defesa de uma promotora que foi afastada por um juiz porque ela queria brecar um projeto francamente ilegal de cinco torres que serão construídas (se o nosso movi4 5
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Pode-se tomar essa fala de Maricato como um caso expressivo dos movimentos que não acreditam na eficácia da participação institucional. Este é, por exemplo, o caso dos Comitês Populares da Copa, dentre os quais a entidade carioca que organizou o debate acima citado. Entretanto, fazer uma separação rígida entre os que participam ou não de determinadas instâncias institucionais, ou entre os que apoiam ou que se opõem ao governo federal, pode conduzir a uma visão simplista da realidade. Esboçada assim, de modo simplificado a posição (melhor seria dizer no plural) acima, perdemos muitas de suas nuances segmentares. De fato, se desconsiderarmos estas variações, parecerá estranho que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que privilegia a ação direta nas ruas, tenha se mobilizado em conjunto com a Central dos Movimentos Populares (CMP) em defesa da recente aprovação do Plano Diretor do município de São Paulo, defendido, também, pelo prefeito da capital paulista Fernando Haddad. Se as formulações de Maricato, bem como as ações dos Comitês Populares da Copa e do MTST, expressam a posição dos movimentos populares críticos à atuação nos conselhos participativos que se multiplicaram nos últimos doze anos com estímulo do Governo Federal, a posição da CMP, por outro lado, ilustra o ponto de vista predominante não apenas entre os seus militantes, mas também nas entidades nacionais com assento no ConCidades.
Mesmo críticos ao caráter apenas consultivo dos conselhos, e lutando para torná-los deliberativos, tais movimentos reconhecem neles certo poder de influência sobre as políticas urbanas (conquanto ínfimo frente ao poder de lobby do grande capital). Além disto – o que talvez seja ainda mais fundamental –, as entidades que participam dos conselhos e conferências veem neles, de um lado, uma porta de acesso a múltiplas esferas do poder estatal e, de outro, um importante espaço de formação política de seus quadros, que precisa ser protegido contra as forças que o querem extinguir, bem ilustradas na reação ao recente decreto presidencial nº 8.243/2014 que cria o Sistema Nacional de Participação Social. Os conflitos entre movimentos sociais e os representantes do grande capital urbano podem ser compreendidos de modo relativamente simplificado (ao menos para efeitos de argumentação, já que os casos particulares frequentemente assumem formas bastante complexas), por meio da chave da luta de classes, da oposição estrutural entre capital e trabalho. Entretanto, as relações conflituosas que se estabelecem entre as entidades destes movimentos sociais e as distintas esferas do Estado brasileiro (incluindo governos que têm em sua composição segmentos da sociedade historicamente vinculados às lutas populares) – e mais ainda, as relações entre estes movimentos e a chamada “mão esquerda do Estado” (Bourdieu, 1998) –
mento nas ruas não impedir) na fachada do porto de Recife. E a promotora exigiu o impacto ambiental e paisagístico e o juiz afastou a promotora. E eu conversei com vários funcionários da prefeitura e eles me disseram que tinham negado o alvará pras cinco torres. E simplesmente eu perguntei: ‘mas como é que foi aprovado?’ ‘Ah, passou no Conselho de Desenvolvimento Urbano’. Sabe esses conselhos que a gente faz para [exercer] o controle social sobre o Estado? Simplesmente o Conselho de Desenvolvimento Urbano aprovou algo ilegal. Porque cinco torres? De trinta, quarenta andares? Num centro histórico de ruas estreitas? Como é que faz?” (Fala de Maricato em sua participação no debate acima citado). O desdobramento das lutas populares contra o projeto Novo Recife (que atualmente prevê a construção não de cinco, mas de doze torres na zona portuária de Recife), teve seu ponto culminante no movimento “Ocupe Estelita”.
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são, por seu turno, bastante complexas e apenas começam a ser estudadas pelas ciências sociais, no país (por exemplo, em Leite Lopes & Heredia, 2014). Mas, ainda mais complicações para interpretação sociológica trazem os conflitos deflagrados entre as entidades dos movimentos populares, bem como aqueles que ocorrem no interior mesmo das entidades. Estamos aqui em pleno cruzamento das escalas etnográficas e macrossociológicas. E talvez seja este exercício mesmo de confrontar escalas um procedimento heurístico para a interpretação das questões em jogo. Em seu livro Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política, Marcio Goldman (2006) destaca, como um aspecto central das relações políticas entre grupos de carnaval do sul da Bahia, a segmentaridade – vale dizer, a alternância entre distinção e identificação, de acordo com a conjuntura política, entre militantes de grupos (rivais ou aliados) e mesmo de subgrupos no interior de um mesmo grupo. Embora, em termos abstratos, a oposição binária entre solidariedade e egoísmo tenda a ser deslocada (mediante um balanço do conhecimento etnográfico) pelo meio termo da solidariedade vicinal ou parcial – e o dualismo homólogo entre cooperação e competição, desarticulado pelas práticas corporativas (Deleuze, 2001: 32) – no nível empírico parece haver diferenças substanciais entre o grau de segmentaridade em cada sociedade
particular. É assim que Guillermo O’Donnell (1982), em seu estudo comparado entre sociabilidade e política no Brasil e na Argentina, conclui que este último país não teria conseguido constituir um projeto político unificado, diferentemente do Brasil, em decorrência do caráter mais conflituoso das relações sociais argentinas. Uma comparação contemporânea entre os dois países poderia talvez aventar uma hipótese contrária à tese de O’Donnell. Seja como for, a interpretação que o cientista político argentino elabora sobre seu próprio país não saiu de minha lembrança durante o trabalho de campo na V CNC; como também não saiu o relato de Goldman, sobre a política dos grupos carnavalescos do sul da Bahia. Em suma, e para conferir maior concretude a este confronto de escalas, a pergunta que a observação – inspirada pelos autores mencionados – fez emergir é esta: será útil conceber os microconflitos segmentares entre militantes, registrados pela etnografia, de um lado, e as grandes tensões entre entidades destes movimentos, e entre elas e o Estado (em suas múltiplas esferas), de outro, como dois polos de um contínuo? Na medida mesma em que a segmentaridade – desde o trabalho pioneiro de Evans-Pritchard, The Nuer (1969) – tem como característica a capacidade de borrar as fronteiras6 entre escalas de observação, não seria esta categoria ela mesma uma chave para a compreensão das contribuições da
Charles Tilly, revendo o postulado segundo o qual a noção de sociedade delimita “uma coisa à parte”, nota o caráter necessariamente fluido de fronteiras que delimitam unidades sociais em diferentes escalas: “To what extent do the boundaries of different kinds of social relations coincide?” (Tilly, 1984: 23). “Yet these politically reinforced frontiers do not contain all social life. Economic geographers enjoy demonstrating how different in scale and contour are the units defined by different activities or social relations” (Tilly, 1984: 24). Com efeito, o geógrafo David Harvey não apenas endossa a afirmação de Tilly como enfatiza os problemas analíticos que podem decorrer de mudanças abruptas de escala (ver Harvey, 2014: 138). A análise pautada na segmentaridade pode ser um antídoto contra estes problemas, já que ela engloba as complexidades estruturais que são adicionadas quando passamos de uma escala a outra. 6
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etnografia para a construção de teorias sociais macrossociológicas? Se a resposta a estas questões for afirmativa, então as diferenças entre o jogo de conflitos e adesões que testemunhamos na etnografia (“nossa camisa é amarela, mas aqui não é União não, visse? Aqui é CONAM”) e as coalizões e cisões entre movimentos e governos em escala macrossociológica (como a luta unificada do MTST, da CMP e do prefeito de São Paulo pela aprovação do Plano Diretor), não são de natureza, mas de grau – ou melhor, de escala.
se manifesta, sobretudo por meio da correção professoral dos demais. Por vezes, o único subterfúgio encontrado para exercitar tal modo de se relacionar com os companheiros, afirmando estas tensões rituais, é a forma de falar. Uma vez que, do ponto de vista do conteúdo político das falas, pode haver grandes concordâncias 7 entre os movimentos sociais participantes da Conferência, a correção recíproca das formas de falar, a retificação no uso de conceitos não adequados para certos contextos etc., é a maneira mais recorrente por meio da qual se afirmam estas tensões rituais. Esta espécie de sociabilidade agonística entre os militantes, entre os quatro grandes movimentos, entre partes deles etc., motivada pela quase compulsão por demonstrar senso crítico em todos os momentos da Conferência, me chamou muito a atenção. Trata-se talvez do aspecto que mais caracteriza a maneira pela qual os movimentos sociais se relacionam entre si (e, talvez, com setores do Estado). Esta demonstração quase “obrigatória”8 do senso crítico, entre militantes, talvez possa ser melhor interpretada (e, por conseguinte, também as formas de relações socais que ela produz) por alguma coisa semelhante ao que se tem chamado de “sociologia da crítica” mais do que por uma “sociologia crítica” (Boltanski & Thévenot, 1999). Creio também que muito se poderia ganhar aplicando ao estudo destes fóruns de debate, plenários, conferências etc. uma abordagem antropológica
Considerações finais Caracterizei os pequenos conflitos difusos pelos espaços da V CNC como “tensões rituais”. Trata-se de considerar que pode ser profícuo pensar sobre a maneira pela qual a maior parte dos militantes presentes na Conferência exercita sua crítica. Parece-me que são pelo menos duas as motivações que levam a maioria dos militantes delegados da Conferência a exercer exaustivamente seu senso crítico, em todas as oportunidades possíveis: a) uma necessidade imperiosa que estes atores sentem de afirmar, até à exaustão, o caráter democrático e popular do plenário, com voz e voto garantidos a todos; e b) outra necessidade, também imperiosa, de afirmar a própria consciência crítica (pré-requisito fundamental para participar em certos circuitos sociais de interação de militantes dos movimentos sociais). Esta afirmação da própria consciência
Embora a conferência, como venho argumentando, constitua um espaço de interação dos movimentos sociais com a esfera pública repleto de polêmicas e de formas agonísticas de sociabilidade, há, sem dúvida, também, em sua esfera, alguns grandes acordos (ou pressupostos compartilhados). Poder-se-ia dizer, algumas “verdades”, sancionadas pelo coletivo, sobre as quais não se admite discussão; aquilo a que Pierre Bourdieu se refere como doxa – isto é, pressupostos compartilhados que estão fora da esfera da dúvida. O próprio caráter compulsório da expressão do senso crítico, independente da situação sobre a qual ele se aplica me parece um destes grandes acordos. 8 Trata-se, segundo me parece, de uma obrigação que emana do coletivo e que constrange a pessoa a demonstrar as habilidades e conhecimentos necessários a um militante. Algo como “a expressão obrigatória dos sentimentos” de que fala Mauss (1979). 7
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semelhante à que Moacir Palmeira & Beatriz Heredia (2009) aplicaram ao estudo dos comícios; tratando-os como rituais que possuem configurações espaciais e temporais específicas e tomando-os em sua positividade sociológica, buscando entender, pois, as relações sociais que estes rituais produzem. A hipótese deste artigo sugere que estas formas específicas de relação entre militantes de movimentos sociais, produzidas no âmbito da V CNC, guardam alguma relação com as maneiras pelas quais estes movimentos se relacionam também com a esfera pública. Talvez eles usem os mesmos óculos (do senso crítico) para se olharem entre si e para olharem para os governos, em suas várias esferas. Cabe indagar (com alguma ambição propositiva da sociologia pública e como fizera outrora O’Donnell acerca da Argentina) se esta modalidade específica de sociabilidade agonística entre militantes e entidades dos movimentos sociais urbanos não impõe um limite à agenda de uma luta unificada pela reforma urbana. Com efeito, por ocasião do processo eleitoral para a presidência da República, no ano de 2014, foi possível observar estas divisões segmentares, no interior da esquerda e dos movimentos sociais brasileiros, em
contornos bastante nítidos (embora, como tenho enfatizado aqui, dinâmicos). Diante de uma direita unificada que quase logrou eleger seu representante, as forças democrático-populares do país seguem perigosamente com suas formas aguerridas de se relacionar entre si. Vale a pena encerrar com o editorial expressivo do site Carta Maior, que no âmbito mais engajado da intervenção intelectual formula o mesmo problema geral apresentado por estas notas etnográficas; o problema dos limites da segmentaridade como princípio estruturador das relações políticas: O que se quer saber é se Lula já conversou com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro [do PSOL]; se Luciana Genro já conversou com a CUT; se a CUT já conversou dom Stédile [do MST]; se todos já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcadas das providências que a urgência revela quando se pensa grande. Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que, uma vez mais, ameaça abortar o nascimento de um Brasil emancipado e progressista, bem... Serão avisados de forma desastrosa quando o alarme soar. (Leblon, 2014)
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A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO E SEUS LUGARES DE ENUNCIAÇÃO: CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO PÓS-COLONIALISMO, DECOLONIALISMO E EPISTEMOLOGIAS DO SUL Leonardo Nóbrega da Silvai Resumo Os recentes processos de mudança social ocorridos em países latino-americanos chamam a atenção para as limitações do pensamento hegemônico no Ocidente. O envolvimento de diversos movimentos sociais, como dos indígenas e campesinos, exige uma reconsideração epistémica ampla. Neste texto, abordo questões relativas às mudanças sociais recentemente levadas à cabo tendo como corte analítico algumas discussões sobre o que se pode chamar de pós-colonialismo, decolonialismo e epistemologias do Sul, apontando potencialidades e limites existentes. Palavras chave: Estado; América Latina; Pós-colonialismo; Decolonialismo; Epistemologias do Sul.
KNOWLEDGE PRODUCTION AND WHERE IT IS EXPRESSED: CONSIDERATIONS REGARDING POSTCOLONIALISM, DECOLONIALISM AND EPISTEMOLOGIES OF THE SOUTH Abstract: This paper presents a reflection over public sociology, through a study about Michael Burawoy’s contributions and the main criticisms to this proposal, around the controversy about the dialogical engagement with the public within civil society. Such reaction within the academic circles seems to indicate that public sociology can be considered a focal point of battles over the future of sociology. Keywords State; Latin America; Postcolonialism; Decolonialism; Epistemologies of the South.
Leonardo Nóbrega da Silva é doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL/IESP) e ao Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura (NUSC/ UFRJ). E-mail: leonobrega.s@gmail.com. i
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Teoria é o trabalho que o centro faz Raewyn Connel 1 Dessa maneira seguimos sendo o que não somos. E como resultado não podemos nunca identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos resolvê-los, a não ser de uma maneira parcial e distorcida. Aníbal Quijano 2 Introdução
momento, são apresentadas algumas propostas centrais do pensamento póscolonial, decolonial e das chamadas epistemologias do Sul, todas elas comprometidas, de formas variadas, com um horizonte emancipatório que leve em conta a pluralidade de vozes que devem ser ouvidas, interrompendo um ciclo colonial que inibe, e mesmo exclui, perspectivas diversas de mundo e de construção de conhecimento. Trazendo tais perspectivas para o âmbito da modernidade global e da construção do conhecimento sociológico, considerase, entretanto, equivocada a posição tomada por alguns dos principais pensadores de tais correntes de negar a modernidade, não reconhecendo nela potencial emancipatório e dificultando um diálogo que possa ser estabelecido no próprio âmbito das ciências sociais. Recuperando a tradição da teoria sociológica latino-americana, argumenta-se que tal pensamento traz em seu seio um questionamento emancipatório, no sentido de reclamar a construção de um conhecimento autônomo e introvertido, porém sempre em diálogo com as linhas de pensamento universais, o que possibilita, portanto, realizar essa discussão no próprio
Processos de refundação do Estado, especificamente na Bolívia e no Equador, tendo as noções de Buen Vivir e Pachamama como possíveis horizontes normativos, consolidam, ao menos formalmente, e não sem discordâncias, antigas demandas de movimentos sociais indígenas e campesinos. Esses processos apresentam não apenas novos desafios políticos, mas epistêmicos, no sentido de que o conhecimento produzido nos centros hegemônicos de ciências sociais toma seus achados e discussões como universais, limitando o pensamento produzido na periferia como particularismo de menor escopo e poder explicativo. O texto começa por considerar alguns dos elementos principais referentes à noção do Estado moderno, atentando para os recentes processos de refundação do Estado ocorridos na Bolívia e no Equador. Apesar de não ser possível falar em uma relação óbvia entre movimentos sociais e construção de conhecimento, parte-se da noção de “dupla hermenêutica” para propor uma tensão epistêmica que tais modificações impõem ao pensamento racional ocidental. Em um segundo
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Connel (2012: 1). Quijano (2005: 118).
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horizonte das ciências sociais. Sem a expectativa de apresentar argumentos inéditos, este texto conclui que existem potenciais ainda a serem explorados tanto nos movimentos de refundação de Estados latino-americanos, como ocorreu no Equador e na Bolívia, quanto nas tradições de pensamento que visam desconstruir essencialidades produtoras de dominação, sendo necessário, entretanto, trazer essa discussão para o âmbito da modernidade. A partir de tais processos, é possível, portanto, tensionar a própria teoria social de forma a complexificar seu potencial crítico, autônomo e emancipador.
laica, politicamente neutra, apenas um aparato burocrático-administrativo. O Estado moderno seria essencialmente um Estado burguês, e a inerente noção de cidadania, consolidada na promulgação dos Direitos do Homem, nada mais seria do que os direitos do homem burguês, legitimando os valores do individualismo e da propriedade privada em detrimento do coletivismo e da partilha de bens. No universo da teoria crítica de origem marxista, entretanto, diversos outros adjetivos podem acompanhar a palavra Estado, dependendo da realidade em análise: periférico, subdesenvolvido, colonial etc. Todos esses adjetivos revelam algo fundamental: um Estado não se constitui por si só, mas em relação com outros Estados e instituições; e essa relação se dá sempre de forma desigual. A relação desigual entre Estados revela a dominação de uns em relação a outros. É a partir da experiência comum de heteronomia, portanto, que se permite falar em países do Norte Global e do Sul Global. Tal perspectiva, apesar de indicar distinções geográficas, e por vezes até coincidir com tais divisões, não representa uma delimitação precisa no mapa, mas, como foi apontado, uma partilha de relações comuns de dominação no sistema global, uma espécie de geografia moral das relações de poder. São muitas as características desta relação e ainda mais diversas e opressoras suas consequências para os povos que a vivem. Atento, porém, para as consequências epistêmicas e seus desdobramentos práticos tanto na construção de conhecimento quanto nas atividades políticas e de formatação do Estado. O avanço de reformas sociais de caráter progressista na América Latina, bem como o protagonismo de movimentos indígenas e campesinos, tem requerido um tensionamento nas
Considerações preliminares sobre o Estado e movimentos políticos de refundação na América Latina Um elemento fundamental para iniciar o debate da relação entre movimentos sociais, que trazem a noção de cidadania como elemento central na articulação entre suas demandas e sua luta efetiva, e a construção de conhecimento que tenha em si um caráter emancipatório — é a própria noção de Estado. Tal protagonismo é inegável, tendo em vista a sua configuração moderna como aparato administrativo, burocrático, repressivo e político de grande poder de controle e ordenamento das vidas sob sua tutela. Entretanto, desde Marx — pelo menos —, o Estado não pode, ou não deveria, ser visto como instituição neutra, essencializada ou coisificada. O campo de disputas em que se constitui o Estado revela traços constitutivos que evidenciam as forças sociais presentes e o poder de dominação a ele inerente. O Estado, para Marx (2010) — embora não se queira entrar aqui na discussão da existência ou não de uma teoria do Estado no pensamento marxiano —, não poderia ser visto como uma instituição 51
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categorias analíticas usuais à teoria social. Questões postas em discussão, como os conceitos de Buen Vivir, nos movimentos de refundação do Estado na Bolívia e no Equador, por exemplo, desafiam a racionalidade instrumental ocidental e revelam seus limites cognitivos, ou ao menos inserem reflexões que chamam atenção para a relevância do lugar de construção e enunciação do saber científico. Movimentos sociais latinoamericanos, partindo de uma experiência de subjugação em relação tanto aos países centrais do capitalismo global quanto a uma situação de colonialismo interno, têm protagonizado mudanças significativas nas configurações das nações do continente. Principalmente no Equador e na Bolívia, países que passaram recentemente por grandes mudanças no sentido de uma refundação do Estado, promulgando novas constituições. As vozes desses movimentos sociais se fazem ouvir de forma mais ou menos significativa, embora, como é de se esperar de qualquer movimento político de enfrentamento de estruturas consolidadas, permeadas por conflitos. Tal movimento de refundação do Estado pode ser entendido como uma atualização das bases normativas do Estado a partir
das tradições e repertórios nacionalpopulares, viabilizado por uma aliança social de base indígena e campesina, ao lado de uma democratização radical, entendida como um conjunto de crenças, valores e modos de vida carregados de potencial igualitário (Pereira da Silva, 2013). Segundo Alberto Acosta (2010: 5), ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador: “Toda Constitución sintetiza un momento histórico. En toda Constitución se cristalizan procesos sociales acumulados. Y en toda Constitución se plasma una determinada forma de entender la vida”. A Constituição do Equador (2008) e a Constituição da Bolívia (2009) trazem, de forma explícita, demandas dos movimentos sociais, marcadamente dos movimentos indígenas. A noção de Buen Vivir (em kichwa: sumak kawsay, em aymara: suma qmaña, em guarani: ñandareko; cf. Acosta, 2010), fortemente presente em ambas as constituições,3 ou dos direitos da natureza, entendidos sob a cosmovisão andina de Pachamama,4 marcam um novo paradigma consolidado institucionalmente em projeto de país. A perspectiva de um Estado plurinacional e intercultural acompanha tais mudanças. Em vez de simplesmente
O artigo 275 da Constituição do Equador (2008), diz: “El régimen de desarrollo es el conjunto organizado, sostenible y dinámico de los sistemas económicos, políticos, socio-culturales y ambientales, que garantizan la realización del buen vivir, del sumak kawsay. El Estado planificará el desarrollo del país para garantizar el ejercicio de los derechos, la consecución de los objetivos del régimen de desarrollo y los principios consagrados en la Constitución. La planificación propiciará la equidad social y territorial, promoverá la concertación, y será participativa, descentralizada, desconcentrada y transparente. El buen vivir requerirá que las personas, comunidades, pueblos y nacionalidades gocen efectivamente de sus derechos, y ejerzan responsabilidades en el marco de la interculturalidad, del respeto a sus diversidades, y de la convivencia armónica con la naturaleza”. O artigo 306 da Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia (2009), diz: “I. El modelo económico boliviano es plural, y está orientado a mejorar la calidad de vida y el vivir bien de todas las bolivianas y los bolivianos. II. La economía plural está constituida por las siguientes formas de organización económica: la comunitaria, la estatal y la privada. 3
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reconhecer os diferentes povos que constituem a nação, trata-se de assumir a perspectiva de tais povos e etnias. Assume-se, portanto, segundo definição de Boaventura de Sousa Santos (2010: 83), um projeto político de país:
em diferentes frentes, dentre elas algo que se pode chamar de descolonização cognitiva, entendida como a possibilidade de uma construção autônoma e introvertida do conhecimento, atendendo a demandas reais dos participantes de tal debate intelectual. É notável, portanto, que parte do caminho para tal descolonização da sociedade passa pela própria descolonização do pensamento. Ao estabelecer o Buen Vivir como horizonte constitucional de projeto de país, os movimentos de refundação dos Estados latino-americanos estabelecem, de certa forma, um enfoque cognitivo novo, embora não unânime nem isento de conflito, que compete com aquela racionalidade instrumental 5 ocidental moderna em que o sujeito está separado da natureza, sendo esta, portanto, passível de dominação. Tal processo, apesar de bastante complexo, pode ser entendido como envolvido numa espécie de relação recíproca de troca entre a experiência dos movimentos sociais e a produção acadêmica comprometida com um projeto de emancipação social, próxima àquilo que Giddens (1991) chamou de movimento de “dupla hermenêutica” para designar a apropriação moderna de elementos pertencentes à sociologia
El sentido político de la refundación del Estado deriva del proyecto de país consagrado en la Constitución. Cuando, por ejemplo, las Constituciones de Ecuador y Bolivia consagran el principio del buen vivir (Sumak Kawsay o Suma Qamaña) como paradigma normativo de la ordenación social y económica, o cuando la Constitución de Ecuador consagra los derechos de la naturaleza entendida según la cosmovisión andina de la Pachamama, definen que el proyecto de país debe orientarse por caminos muy distintos de los que conducirán a las economías capitalistas, dependientes, extractivistas y agroexportadoras del presente.
Esse projeto político se estabelece não só contra a expropriação desenfreada da natureza (Pachamama), como contra qualquer tipo de desigualdade social, assumindo um “processo de continuada descolonização da sociedade” (Acosta, 2010: 11). Essa noção ampla de descolonização da sociedade se insere
III. La economía plural articula las diferentes formas de organización económica sobre los principios de complementariedad, reciprocidad, solidaridad, redistribución, igualdad, sustentabilidad, equilibrio, justicia y transparencia. La economía social y comunitaria complementará el interés individual con el vivir bien colectivo. IV. Las formas de organización económica reconocidas en esta Constitución podrán constituir empresas mixtas”. As passagens foram consultadas em Acosta (2010) e nas constituições originais. 4 O artigo 71 da Constituição do Equador (2008), diz: “La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.” 5 É importante notar que a noção de Buen Vivir, posta aqui em oposição à racionalidade ocidental moderna (também identificada como de dominação instrumental da natureza), não se opõe ao pensamento ocidental clássico, que conta, pelo menos desde Aristóteles, com a perspectiva da “boa vida” no seu horizonte discursivo.
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por movimentos sociais e, em via reversa, a apropriação por sociólogos de elementos elaborados internamente no âmbito das lutas políticas. Apesar de considerar diversas formas de racionalidade, Max Weber, principalmente em seus estudos sobre as religiões mundiais, voltou-se ao entendimento da racionalidade ocidental moderna, que ele define como sendo um “racionalismo de dominação do mundo”, podendo também ser entendido como uma “atitude instrumental” de adequação de meios ótimos para a realização de determinados fins, não importando valores como a pessoalidade, a ética religiosa etc. Esta racionalidade, que se concretiza na “ética econômica” do protestantismo calvinista, tornase hegemônica no Ocidente moderno. A atitude de dominação e instrumentalização da natureza, da forma como se concebeu na gênese dessa racionalidade ocidental moderna, coloca-se notadamente em choque com os princípios do Buen Vivir e de Pachamama demandados pelos diversos movimentos sociais que participaram da configuração das constituições em debate. Mais do que uma forma de organização social alternativa àquela ocidental moderna, tais princípios lançam-se como a consolidação de outra racionalidade constantemente abafada no processo de colonização. A partir da exemplaridade da promulgação de demandas sociais nas constituições do Equador e da Bolívia, e de processos ainda em aberto, podese falar em desafios epistêmicos de alçada global, em que o pensamento se coloque na direção contrária ao processo de colonização. As propostas de descentramento do pensamento devem ser postas em discussão para que se perceba, portanto, seu potencial
propositivo e seus limites analíticos. Sul global e desafios cognitivos: pós-colonialismo, decolonialismo e epistemologias do Sul A discussão entre universalidade dos conceitos da teoria social e a particularidade demandada por diversas formas de organização da vida, como vista na discussão da relação entre os processos de refundação dos estados da Bolívia e do Equador e os limites do conhecimento científico ocidental, pode ser melhor entendida em um quadro geral de dominação em que se pode contrapor as noções de Norte e Sul global. Essa divisão evidencia não uma clivagem geográfica, mas diferenças de posição nas relações de poder. Apesar de muitas das localidades do Sul global estarem localizadas no hemisfério Sul, países do hemisfério Norte também tem seu “Sul”, assim como países do Sul também têm seu Norte, como fica evidente nas formas de colonização internacional e interna. O conceito de colonização interna não é simples e tem diversos desdobramentos a depender do momento histórico e da situação social em foco. Não será, portanto, desenvolvido neste texto de forma satisfatória, tendo em vista os limites do debate aqui proposto. Basta, entretanto, deixar registrada a importância dada a tal conceito por Pablo Gonzáles Casanova (2007), trazendo à tona a conflitiva relação entre mercados, Estados-nação e diversidade étnica, pensado principalmente, mas não somente, no caso da América Latina. Tal colonização interna é apropriada por Silvia Rivera Cusicanqui (2010), socióloga e líder indígena ayamara, em crítica direcionada ao pensamento decolonial, que será tratado mais à frente, tendo como principal referência as ideias de Walter Mignolo. Para Cusicanqui, muito 54
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do que se convencionou chamar de conhecimento decolonial constrói-se como um “triângulo sem base”, em que se formam redes de intelectuais, alguns dos quais estabelecidos em universidades estrangeiras, que se apropriam de demandas das lutas indígenas, mas esvaziam suas pautas ao tratá-los como “povos originários”, relegando-os a um lugar fora da modernidade e, portanto, sem capacidade de gerenciamento do Estado. Reconhecendo, dessa forma, a complexidade em que se estabelecem as relações de dominação, seja em nível internacional ou interno ao Estado, este texto se focará numa concepção mais generalista. Tal qual define Boaventura de Sousa Santos (2010:43), o Sul global pode ser aqui entendido como “uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo e colonialismo em escala global [e interna, incluo] e da resistência para superá-lo ou minimizá-lo”.6 O que define, portanto, essa delimitação é a sua localização na periferia do sistema capitalista industrial e/ou a experiência moral e cognitiva de subalternidade, tanto em uma perspectiva global quanto em relação à reprodução que as elites dos países periféricos realizam em sua própria realidade. Embora esta categoria de Sul global seja potente em termos de oposição política ao que se denomina relacionalmente de Norte global, ela não pode ser entendida como uma categoria estanque, mas como um processo de articulação7 (Cairo y Bringel, 2010). Estabelecidas as bases de tal geografia moral dos processos de dominação, faz-se necessário uma
observação de algumas das propostas investigativas que trazem tal relação como objeto de análise. Edward Said foi um dos primeiros a chamar atenção para a delimitação de localidades e povos em termos de oposição relacional e suas consequências políticas, morais e cognitivas. Ativista político defensor da causa palestina e intelectual comprometido com questões que envolviam o mundo árabe, Said teve seu nome associado ao surgimento do que se convencionou chamar estudos pós-coloniais. Seu livro mais conhecido, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (2007), publicado originalmente em 1978, suscitou amplo debate. Sua argumentação central, e exposta aqui de forma resumida, é de que o Oriente, tal qual visto em romances, poesias, estudos históricos, compêndios sobre política e religião, cartilhas etc., sobretudo pelos principais países colonialistas modernos, quais sejam, o Reino Unido, a França e, posteriormente, os Estados Unidos, é uma invenção do Ocidente. Diante da centralidade do processo de descolonização assumida após a Segunda Guerra Mundial, cuja demanda principal era (e ainda é) a autodeterminação dos povos, o estudo de Said vem na esteira daqueles que passam a questionar os processos de colonização e as raízes deixadas nas mais diversas esferas da vida. Said deixa claro que seu objetivo é mostrar que o Oriente, tal qual se conhece, é uma construção histórica feita em oposição ao Ocidente, e que essa construção está baseada em um jogo de forças políticas, ou melhor, em uma configuração de
Tradução minha do original em espanhol. Para um aprofundamento da questão do Sul global como processo de articulação, bem como a participação de movimentos estabelecidos no “Norte” neste processo, marcadamente Espanha e Portugal, e de um perfil emergente do “ativista diaspórico”, ver Cairo y Bringel (2010). 6 7
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poder. O reconhecimento desse lugar de subalternidade e das consequências econômicas, morais e cognitivas que tal posição acarreta incentivou uma série de estudos críticos que têm como horizonte político a superação dessa condição. Tomar distância da crítica eurocêntrica não significa (ou não deveria significar, como será defendido mais à frente) jogar fora toda sua rica tradição, mas procurar novas soluções diante de problemas particulares postos. No âmbito do pensamento decolonial latino-americano, Walter Mignolo é figura central e estabelece seu argumento com base na noção de colonização cognitiva. Mignolo (2010) afirma que “só a descolonização do ser e do saber levará a um câmbio do horizonte econômico e político”. Como um dos intelectuais mais proeminentes de sua geração no que diz respeito ao debate entre produção de conhecimento e colonização, Mignolo defende que a partir de uma expansão para o Atlântico em meados do século XV, estabelece-se a construção de um imaginário baseado em estruturas de poder modernas e coloniais. A construção de tal argumento está fortemente embasada nas noções de sistema-mundo de Immanuel Wallerstein e de colonialidade de Aníbal Quijano, embora nem um nem outro autor estejam totalmente contemplados em relação aos desdobramentos do pensamento de Mignolo. O argumento que aqui importa no pensamento de Wallerstein, é que, a partir da estruturação do que chama de sistemamundo capitalista, que toma forma no século XVI, o “universalismo europeu” se impõe como forma de legitimação de dominação ou “retórica de poder”, baseado na noção de conhecimento científico em contraposição ao que seria um conhecimento humanístico,
supostamente carente de objetividade. A desconstrução desse universalismo europeu seria então tarefa fundamental na construção de um universal “que recusa as caracterizações essencialistas da realidade social, historiciza tanto o universal quanto o particular, reunifica os lados ditos científico e humanístico em uma epistemologia e permiti-nos ver com olhos extremamente clínicos e bastante céticos todas as justificativas de “intervenção” dos poderosos contra os fracos (Wallerstein, 2007: 118). Já para Quijano, a concentração, pela Europa, das formas de controle da subjetividade e da produção de conhecimento tem, como um dos eixos centrais, a ideia de raça — “uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo” (Quijano, 2005: 107). A experiência da colonialidade é explicada por meio da metáfora do espelho distorcido, em que o sujeito vê a si mesmo pelo conhecimento eurocêntrico, enxergando traços que reconhece como seus, posto que tal imagem não é de todo quimérica, mas sempre de forma parcial e distorcida, exagerando algumas características e escondendo outras, dificultando, portanto, o reconhecimento pleno daquele que observa. Essa colonialidade cognitiva moderna é o alvo de denúncia de Mignolo, sendo a sua desconstrução uma tarefa imprescindível para a formulação de um conhecimento autônomo e emancipatório. A potência de tal atitude poderia ser encontrada na formulação de movimentos sociais comprometidos com tal pauta. Como afirma Mignolo (2005: 48), O surgimento zapatista, a força do 56
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acredita conhecer o futuro através do presente, estabelecendo-se teleologias como a de progresso econômico ou desenvolvimento. Para combater a razão metonímica, Santos propõe o que ele define como “sociologia das ausências”, que pode ser entendida como a investigação que tem como objetivo mostrar que o que não existe é ativamente produzido como não existente, concepção essa muito próxima daquela defendida por Said quando afirma que a “não existência” do Oriente é uma produção ativa do Ocidente. O objetivo dessa sociologia das ausências seria transformar os objetos ausentes em objetos presentes. Em contraposição à razão proléptica, Santos dispõe a “sociologia das emergências”, que propõe substituir o determinismo teleológico, estabelecido pela razão indolente, por uma utopia possível, traçada a partir das diversas experiências reveladas pela sociologia das ausências. Para Santos, não é possível, no atual estado de transição em que se encontra a racionalidade, uma epistemologia geral.8 Esta continuaria a delimitar a infinita possibilidade de formas de conhecimento. E a forma de toda essa infinidade de conhecimento fazer sentido seria por meio do processo de “tradução”, que consistiria em “traduzir saberes em outros saberes, traduzir práticas em outras práticas e sujeitos de uns aos outros, (...) buscar inteligibilidade sem “canibalização”, sem homogeneização” (Santos, 2007: 39). Propõe, portanto, o que denomina de Epistemologias do Sul, que devem ser entendidas como
imaginário indígena e a disseminação planetária de seus discursos fazemnos pensar em futuros possíveis além de todo fundamentalismo civilizatório, ideológico ou religioso, cujos perfis atuais são o produto histórico da “exterioridade interior” a que foram relegados (leia-se submetidos) pela autodefinição da civilização ocidental e do hemisfério ocidental (...).
Confluindo com essa discussão, porém estabelecendo referencial semântico próprio, Boaventura de Sousa Santos (2007; 2010), cunha a noção de epistemologias do Sul, lançando mão do que chama de “dupla sociologia transgressiva das ausências e das emergências”. Parte da concepção de que existe hoje uma crise das ciências sociais, desde sempre produzidas hegemonicamente em países do hemisfério Norte. Essa crise se revelaria por meio da discrepância entre teoria e prática, uma vez que tais teorias não parecem dar respostas nem mesmo enxergar problemas postos no hemisfério Sul. Seria necessário, portanto, uma reinvenção das ciências sociais, de forma que ela passe a ser parte da solução dos problemas. Os problemas postos a partir das ciências sociais hegemônicas fariam parte de uma racionalidade ocidental moderna que nega outras racionalidades possíveis, o que Santos chama de “racionalidade indolente”. Essa razão indolente se manifesta de duas principais formas: por meio da “razão metonímica”, que tende a tomar a parte pelo todo, excluindo aquilo que fica fora daquele particular que serviu de referência; e da “razão proléptica”, que
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Para uma discussão anterior sobre as bases da produção científica, consultar Santos (2003; 2008).
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de se construir conhecimentos que desviassem de seu caminho. Embora, como será visto, parte dessas correntes de pensamento, diferentemente do que é defendido por Costa, se coloque, sim, contra o pensamento científico, é a partir da defesa de um conhecimento fundamentado em bases epistemológicas sólidas que este texto desdobra suas análises. É preciso, portanto, apontar limites e falhas na construção do pensamento pós-colonial, decolonial e das epistemologias do Sul para que possam avançar em suas pautas, mas sem se distanciar do pensamento sociológico, que muito ainda tem como contribuir para a construção de um imaginário emancipatório em nível global.
el reclamo de nuevos procesos de producción y de valoración de conocimientos válidos, científicos y no-científicos, y de nuevas relaciones entre diferentes tipos de conocimiento, a partir de las prácticas de las clases y grupos sociales que han sufrido de manera sistemática las injustas desigualdades y las discriminaciones causadas por el capitalismo y por el colonialismo (op. cit.: 43).
A partilha da preocupação com a condição colonizada, bem como a superação da heteronomia, é o ponto em comum aos pensadores citados. Embora as três correntes de pensamento sejam bastante complexas e não estejam aqui devidamente contempladas, é necessário compreender suas denúncias de forma a se pensar em desdobramentos cognitivos mais propositivos, que aponte para um horizonte de um conhecimento autônomo e emancipador. Sergio Costa (2006: 117), tratando do que se convencionou chamar de estudos pós-coloniais (mas que pode aqui ser extrapolado para pensar também os estudos decoloniais e as epistemologias do Sul), afirma que esta corrente de pensamento realiza “o esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade”. Ao elaborar uma análise do pensamento de alguns representantes de tais correntes, Costa nega o veredito de alguns críticos de que o pensamento pós-colonial tenha o objetivo de minar as bases e a possibilidade de se realizar ciência. Para ele, as críticas póscoloniais são dirigidas, principalmente ao campo sociológico, não às bases epistemológicas das ciências sociais, mas a uma vertente específica, a da teoria da modernização, cuja pretensão de universalidade limitou a possibilidade
Limites do pós-colonialismo e a recuperação da tradição sociológica latino-americana João Marcelo Maia (2013) compartilha a preocupação de que, por mais exitosa que seja a crítica póscolonialista, esta não pode resumir todos os esforços em relação a uma descentralização do pensamento eurocêntrico. Um dos problemas, sugere, é que os estudos pós-coloniais ou decoloniais deixam de fora de seus mitos de origem pensadores mais próximos da teoria sociológica, que no caso brasileiro teria como potenciais referências os pensamentos de Guerreiro Ramos ou Florestan Fernandes. Segundo Maia, a tradição sociológica latinoamericana constitui-se, em boa medida, por um “diálogo tenso e crítico com a imaginação social europeia” (op. cit.: 105), revelando-se, portanto, como um rico arcabouço crítico de descentralização do pensamento de matriz centrado na Europa e que não deve ser deixado de fora. 58
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Em primeiro lugar, é preciso dizer que boa parte da imaginação sociológica latino-americana foi forjada justamente a partir da experiência de um processo modernizador que não seguia o mesmo curso descrito pela teoria europeia. Ou seja, o desconforto com o falso universalismo das teorias produzidas na Metrópole não foi um fenômeno que surgiu posteriormente, mas um elemento definidor dessa própria tradição intelectual (op. cit.: 109).
Em caminho parecido segue a crítica de José Maurício Domingues (2011) em relação ao pensamento decolonial de Walter Mignolo. Analisando o argumento central de Mignolo, Domingues afirma que este, apesar da importância de suas colocações, deve ser criticado principalmente por duas perspectivas equivocadas: uma rejeição integral da modernidade, não enxergando nesta qualquer possibilidade emancipatória; e a adoção de uma perspectiva unilateral da questão étnica, valorizando quase que automaticamente aquilo que é considerado por ele como não moderno, operando, no limite e de forma politicamente perigosa, uma inversão da teoria da modernização. Para Domingues, a modernidade deve ser vista como um fenômeno duplo, em que se pode localizar tanto elementos de dominação — capitalismo, estado burocrático, patriarquia, racismo — quanto elementos emancipatórios — liberdade, igualdade e solidariedade —, sendo estes últimos condições de possibilidade dos próprios movimentos sociais. A crítica decolonial, assim como a pós-colonial, portanto, é válida, embora deva ser localizada no próprio arcabouço moderno, evitando-se cair em particularismos infrutíferos e vazios.
Além de Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, muito da tradição teórica latino-americana produzida entre os anos de 1950 e 1970 reflete tal preocupação.9 Está na raiz do pensamento econômico gestado na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, criado em 1955 por Anísio Teixeira, do Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS), criado em 1957, na cidade do Rio de Janeiro (Oliveira, 2005; Bringel, Macedo e Silva, 2014, Maia, 2014), e da elaboração da Teoria da Dependência, momento em que a discussão sobre o subdesenvolvimento ganhou maior refinamento sociológico e político (Maia, 2013). As preocupações do autor seguem, portanto, no sentido de ampliar e complexificar as possibilidades de descentramento da teoria social eurocêntrica, considerando a importância da matriz pós-colonial, mas recuperando a tradição do pensamento sociológico latino-americano, cujas questões em muito confluíam com as preocupações descolonizantes.
Ao passo que a emergência dos movimentos dos “povos originários” e, em menor grau, dos movimentos negros em vários países do subcontinente contemporâneo é, de modo bastante apropriado, uma preocupação-chave do trabalho de Mignolo — e na teorização
Para uma discussão mais detida no pensamento social brasileiro, consultar Maia (2011). Também o trabalho de Brasil Jr (2013) sobre o processo de “aclimatação” das teorias da modernização em Florestan Fernandes, no Brasil, e Gino Germani, na Argentina, traz hipóteses promissoras em relação ao lugar da periferia como opção metodológica de análise da própria produção sociológica da metrópole. 9
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extroversão a ser superada (Domingues, 2014).10 Também a referência às epistemologias do Sul pode ser criticada, não sem deixar de reconhecer seus acertos, por, de forma geral, desconsiderar muito do pensamento gestado no Norte e tomar a tradição ou os “povos originários” do Sul como legítimos por si só, sem trazer à tona a discussão concernente à própria possibilidade de conhecimento científico. Como afirma Marcelo Rosa em crítica direcionada às teorias que trazem o Sul como categoria de análise, no caso da construção analítica de Boaventura de Sousa Santos, “é importante notar que por mais que o Sul seja concebido como o encontro entre a ciência e outras formas locais, são suas qualidades não científicas — outros saberes — que recebem a atenção do autor” (Rosa, 2014: 48). Tento em vista a denúncia promovida por tais linhas de pensando, de toda forma justas e bastante construtivas, é necessário, entretanto, apontar a falta de diálogo, maior ou menor a depender dos autores em questão, com o pensamento sociológico e a modernidade de forma geral. A recuperação da tradição sociológica latino-americana serve, dessa forma, para apontar possibilidades da construção de um conhecimento ao mesmo tempo descentralizado, crítico e em diálogo com uma construção de ciência universal. O pensamento de Guerreiro
pós-colonial latino-americano mais amplamente —, localizá-los fora da modernidade é, contudo, incorrer em erro. Gostaria de, em vez disso, sugerir que eles podem levar a cabo algumas mudanças nos quadros epistêmicos modernos, mas que isso se faz em estreita conexão com giros modernizadores episódicos, contingentes, que constroem caminhos específicos pela modernidade, mesclando distintos “espaços de experiência” e “horizontes de expectativa”, derivando de panos de fundo civilizacionais diferentes (Domingues, 2011: 75).
A autonomia é central em diversas vertentes da tradição sociológica latinoamericana, sem, entretanto, distanciar-se da construção do pensamento moderno. Domingues aponta, dessa forma, como a autonomia se constitui em horizonte da reflexão em que os intelectuais latinoamericanos de meados do século XX estão envolvidos, fortemente presente em suas interpretações e na construção de identidades na América (2003). Tal perspectiva autônoma, com a disposição de uma discussão intelectual que se volta para a própria realidade local, próxima àquela defendida por Paulin Houtondji (2009) — referente à necessidade da uma comunidade acadêmica sólida em que os debates passem por problemas vividos pelos participantes e sejam direcionados a si próprios, em diálogo, entretanto, com as demais comunidades acadêmicas do mundo —, contrapõese a uma condição de heteronomia e
Fernanda Beigel (2012; 2014), em suas pesquisas recentes, tem se dedicado a compreender as dinâmicas de circulação internacional de conhecimento, tendo em vista as relações entre centro e periferia e o tema da dependência acadêmica. Os sistemas de indexação dos periódicos científicos, baseados na mercantilização e especialização, os sistemas de acesso, as referências citadas, os modelos das agências financiadoras e mesmo a predominância da língua inglesa na comunicação entre pesquisadores marcam alguns dos pontos centrais da estrutura internacional desigual do conhecimento e a consequente heteronomia nos países periféricos ou semiperiféricos. 10
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Ramos pode ser tomado como um índice da tradição sociológica brasileira comprometida com o descentramento da teoria eurocêntrica dentro do quadro de reflexão geral da modernidade. No seu livro clássico A redução sociológica (1996), publicado originalmente em 1958, afirma como pretende contribuir com a atualização da sociologia no Brasil, sendo seu objetivo, por um lado, “integrar a disciplina sociológica nas correntes mais representativas do pensamento universal contemporâneo” e por outro, “formular um conjunto de regras metódicas que estimulem a realização de um trabalho sociológico dotado de valor pragmático, quanto ao papel que possa exercer no processo de desenvolvimento nacional” (Ramos, 1996: 41). As preocupações metodológicas de Guerreiro Ramos são guiadas, portanto, pelas questões objetivas postas no Brasil de seu tempo. O necessário processo de transposição de conhecimentos e experiências entre culturas, fundamental na fundação da sociologia proposta pelo autor, permitindo um diálogo com a tradição europeia mas impondo questões emergentes na sociedade brasileira, leva o nome de “redução sociológica”. Adotando uma linguagem que em muito lembra a dos estudos pós-coloniais citados, Ramos estabelece o horizonte político de sua prática científica, comprometida com o processo de descolonização e consequente superação da heteronomia: “A colônia é, por definição, instrumento da metrópole. Quando, porém, um povo passa a ter projeto, adquire uma individualidade subjetiva, isto é, vê-se a si mesmo como centro de referência” (op. cit.: 58).
de diálogo com as tradições do pensamento tanto centrais quanto periféricas, criando interlocução com os conceitos hegemônicos, mas pautado sempre por questões autodeterminadas e relevantes para a realidade social brasileira. Importa, portanto, o olhar crítico voltada para a realidade interna do país, incorporando, ao mesmo tempo, um diálogo com a produção sociológica global, estabelecendo uma importante dimensão transnacional. Como afirma Maia, “não há teoria que possa se contentar com um certificado de nacionalidade” (2011: 87). Pode-se apontar, portanto, o pensamento de Guerreiro Ramos como exemplar desse amplo debate em torno do processo de descolonização protagonizado por diversos movimentos sociais e pensadores do Sul global. A importância do pensamento sociológico de Ramos é fundamental por “ter mostrado que o ‘universal’ da sociologia definiu-se a partir da centralidade de casos históricos” (Oliveira, 2006: 189) e que interessa a um pensamento crítico emergente um diálogo autoconsciente com a produção global de conhecimento. Considerações finais Este texto buscou salientar algumas possíveis contribuições que os recentes movimentos de refundação do Estado, mais especificamente na Bolívia e no Equador, podem trazer para o tensionamento e a ampliação do arcabouço conceitual da teoria social. Para tal, foram apresentados, no início, alguns elementos referentes à constituição do Estado moderno e elementos inerentes aos movimentos de contestação nas localidades delimitadas, como as noções de Buen Vivir e Pachamama. Se não é óbvia a relação entre os embates realizados no âmbito dos movimentos sociais
A perspectiva de Guerreiro Ramos estaria fundada na estratégia 61
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e aqueles realizados no âmbito da construção do conhecimento, a noção de “dupla hermenêutica” deixa claro, entretanto, que algumas relações são possíveis. Alguns dos representantes mais proeminentes das correntes de pensamento conhecidas como póscolonial, decolonial e das epistemologias do Sul, que têm se valido, de uma forma ou de outra, dos movimentos de descolonização e de rearticulação do Estado, apesar de serem férteis em desconstruir essencialismos e denunciar sistemas de opressão estabelecidos pela hegemonia do conhecimento racional ocidental moderno, vão por caminhos equívocos ao, muitas vezes (mas nem sempre, visto a heterogeneidade de seu pensamento e os limites da reflexão estabelecida neste texto), negar a própria modernidade. Parte da tradição sociológica latino-americana, exemplificada pelo pensamento do sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos, foi recuperada de forma a apresentar possibilidades
interpretativas que, por um lado, está em consonância com as anteriormente referidas correntes de pensamento, e por outro, as complementa, na medida em que estabelece um diálogo construtivo com a modernidade e o pensamento sociológico. A conclusão deste texto, embora nem inédita nem definitiva, é de que é necessário ter atenção à condição periférica em que o Sul global se encontra, percebendo as consequências cognitivas e de dominação dessa condição, tal como apontada pelas correntes aqui analisadas, mas sempre em diálogo com as tradições modernas de pensamento, para que não se incorra no erro de inverter uma lógica perversa de exclusão e criação de essencialismos. As ciências sociais são uma ferramenta potente de entendimento da realidade social e de práticas políticas, sendo a sua produção crítica e autônoma, em diálogo com as demais produções, uma etapa fundamental no horizonte político de emancipação.
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EPISTEMOLOGIA DAS LUTAS SOCIAIS Roberta Loboi Leandro dos Santosii Resumo Pretendemos com este texto travar um debate epistemológico sobre o potencial políticopedagógico presente na memória das lutas sociais que têm como protagonista as classes populares. Deste modo, as lutas sociais carregam em si uma forma própria de observar, conhecer e criticar a realidade, que, diferentemente das correntes de pensamento hegemônicas convencionais, congrega em suas análises razão e experiência empírica, sensibilidade, objetividade e posicionamento político-ideológico. Palavras chave: Lutas sociais e epistemologia; Racionalidade e experiência sensível; Memória e história.
EPISTEMOLOGY OF SOCIAL STRUGGLES Abstract: We want with this text lock an epistemological debate about political-pedagogical potential present in memory of social struggles that have as protagonist the popular classes. In this way the social struggles carry itself a shape to observe, understand and criticize the fact that unlike conventional, hegemonic currents of thought brings together in its analysis reason and empirical experience, objectivity and political-ideological positioning. Keywords Social struggles and epistemology; Rationality and sensitive experience; Memory and history.
Roberta Lobo é doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisadora do grupo de pesquisa Filosofia e Educação Popular. E-mail: roberta.lobo@gmail.com. i
Leandro dos Santos é mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e professor do Departamento de Educação e Sociedade do curso de Graduação em Pedagogia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisador do grupo de pesquisa Filosofia e Educação Popular. E-mail: marxcso@yahoo.com.br. ii
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Apresentação do problema
às lutas sociais pela emancipação humana. O pensamento tem que fugir das raias do burocrático e se emaranhar na historicidade de questões que encaminham labirinticamente para seu problema, que consiste em desvendar uma nova episteme contida na memória das lutas sociais forjadas pelas classes populares ao longo da história. Esse conjunto de memórias se apresenta como um concreto temporal sujo, perturbado, esquecido, comum e maldito, resistente e melancólico, mas que, ainda assim, contém centelhas de promessa de liberdade, ação prática, realização no mundo (Benjamin, 1994).
A questão – o que é teoria – parece
não oferecer maiores dificuldades dentro do quadro atual da ciência. No sentido usual da pesquisa, teoria equivale a uma sinopse de proposições de campo especializado, ligadas de tal modo entre si que se poderiam deduzir de algumas dessas teorias todas as demais. [...] Sua validade real reside na consonância das proposições deduzidas com os fatos ocorridos. Se, ao contrário, se evidenciam contradições entre a experiência e a teoria, uma ou outra terá que ser revista. (Horkheimer & Adorno, 1983: 117)
Na Dialética do esclarecimento (1985), Max Horkheimer & Theodor W. Adorno demonstram como a ciência universalizante pretendeu reduzir progressivamente a possibilidade de erro de seus resultados hipotéticos. Nesta direção, o conhecimento cotidiano, supostamente simples, não satisfaz as necessidades do conhecimento puro, já que, diferentemente da ciência, esta forma popular de pensar a realidade não se distancia da superstição, do dogma, dos sentidos, das questões relacionadas à cultura, à política ou à economia; ao contrário, as evidencia em sua construção analítica própria.
Na contemporaneidade, as tensões existentes entre teoria, experiência social e historicidade nos provocam para a abertura da emancipação humana como um problema indeterminado, isento de garantias quanto à sua realização, porém ainda ativo na construção de uma filosofia da liberdade. Realidade e pensamento, conceito e objeto são demarcados por impossibilidades intransponíveis, mediações, radicalizações e racionalizações opostas e complementares. Mas, diante de tantos desencontros e rotas sem saída, como fazemos para realizar a travessia da extinção da singularidade, da reificação do sujeito cognoscente e da coisificação do sujeito sensível ao sujeito emancipado? Com base nas reflexões de Adorno & Horkheimer (1983) podemos deduzir que razão e realidade não coincidem, revolução e sujeito revolucionário não se apresentam em um horizonte próximo.
Do indefinido homem da ciência ao cientista foram séculos de moldagens, fórmulas, instituições na constituição concreta de uma sociedade moderna, capaz de dominar a natureza interna, os instintos e desejos humanos, bem como a natureza externa, o cosmos, a physis tomando forma de máquina, montável e desmontável ao bel-prazer da necessidade de se mercantilizar como inexaurível meio de produção, progresso, civilização.
Uma epistemologia a contrapelo que, como em um risco cirúrgico, tateia as tensões postas na história de uma teoria do conhecimento vinculada 66
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Galileu, Descartes, Newton, Bacon tomam a natureza como verdadeiro objeto da ciência, produção de teoria, operacionalização, manipulação e intervenção, o que se pensa do mundo, se faz do mundo. O conhecer e o fazer alimentam uma identidade capaz de se reproduzir como cultura científica. O modelo das artes mecânicas revelam os processos da natureza. Métodos, processos e linguagem das técnicas são objetos de reflexão numa aprendizagem calcada na experiência errante, acúmulo constante para a formação de um corpo orgânico e sistemático do conhecimento. Pesquisa teórica e atividade prática, o que é posto na prática é o mais verdadeiro na teoria, a prática é garantia de verdade. O útil e o verdadeiro estão de mãos dadas.
Se esta razão como posse do homem pode ser ensinada, tomamos o ideal de homem esclarecido de Kant (2008), enquanto autonomia da vontade como fonte da independência da razão, realização da verdade. A saída da menoridade como um salto da antiga caverna vai produzindo um sujeito humano que se concebe como portador da razão, consciente do poder histórico objetivado, do desenvolvimento científico e técnico desta razão, do progresso da consciência, do conhecimento e da moral posta na preservação da espécie como um fim em si mesmo, unindo felicidade, justiça e liberdade. Mas a dialética da razão pura e da razão prática não deixou de apresentar os processos de regressão social frente ao progresso técnico da civilização burguesa. A tensão entre desenvolvimento lógico analítico dos conceitos da razão pura de Kant e suas efetivações como realidade demostrou como a razão não é capaz de fundamentar racionalmente a liberdade, visto que os homens, suas instiuições e lógicas mercantis são autônomos em relação à razão. São os interesses privados e não o interesse comum que permeiam o fluxo das coisas existentes. A dialética negativa da razão pura e da razão prática tensiona a cultura compreendida como moralidade, aperfeiçoamento dos costumes e o progresso técnico e material como civilização. O bem-estar material não traz felicidade. A arte e a ciência não aperfeiçoaram os costumes, verdade já posta nos tempos de Rousseau e Kant (Menegat, 2006: 126).
Com a revolução científica dos séculos XVI e XVII, o tema da produção do conhecimento é retomado com mais vigor, já que a modernidade como condição histórica impulsionava seus pensadores a estabelecerem distinções entre as formas racionais e empíricas de pensar a realidade, o homem e a natureza. A modernidade se estabelece como razão humana individual e progresso técnico em ritmo de uma dialética positiva altiva e promissora. A dúvida metódica, provisória e sistemática, aliada a uma natureza sem finalidades, reduzida a um mecanismo sem mistérios para a linguagem matemática compõem a teoria do conhecimento e das atividades técnicas do homem moderno. A natureza como posse do homem, apenas uma quantidade medida e não mais uma qualidade sentida. A razão como posse do homem, instrumento universal para o esclarecimento, inteligência das coisas, fornecimento de meios para prever o futuro e dominar a natureza.
O racional, reproduz livre da 67
modelo ideal de homem livre, justo, culto produz e socialmente um conhecimento possibilidade de erro, como
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também livre das pulsões instintivas que os sentidos ou os instintos humanos podem proporcionar. A elaboração de uma razão instrumentalizadora do homem e da natureza implicou a redução metódica do conhecimento a mero conhecimento técnico, amparado por hipóteses universalmente verdadeiras e métodos científicos válidos em qualquer tempo e espaço. Nesta direção, desmistificar a realidade, para os defensores desta forma de racionalidade, é esquartejar o ser humano e a natureza em dimensões organizadas hierarquicamente, na tentativa de fazer com que as potencialidades e dimensões racionais subjuguem progressivamente as dimensões sensíveis e instintivas, ou seja, trata-se de dissolver os mitos anulando a imaginação por meio da razão instrumental (Horkheimer, 1983).
As guerras mundiais, o fascismo, o stalinismo, a sociedade administrada foram fenômenos históricos que colocaram em xeque a promessa de progresso e felicidade da razão iluminista e instrumental. Nesta perspectiva, os modelos de razão e ciência puras ampliam de forma exponencial o processo de barbarização do real, pela degradação da natureza e da história. A ciência iluminista “enquanto ciência do espírito [...] deixa de cumprir aquilo que promete ao espírito: iluminar suas obras desde dentro” (Adorno, 2008: 24). Iluminar as obras desde dentro a contrapelo é revirar as ruínas das inúmeras catástrofes de uma civilização sem moralidade e em permanente excesso. É iluminar as derrotas dos projetos levantados pelas classes populares em seus processos de luta como elaboração prática e teórica de novas formas de socialização humana para além do capital. Nesta contrailuminação teceremos um possível fio da meada no que diz respeito a uma epistemologia das lutas sociais, fio rastreado aqui a partir de duas questões fundamentais: a emancipação como problema e a reconstrução da memória dos traumas das derrotas das revoluções como forma de conhecimento.
Livres dos feitiços e fantasmas que as dimensões humanas nãoracionais podem criar, o ser humano seria mais feliz e autônomo, já que desta forma ele conheceria o mundo à sua volta em profundidade e não apenas superficialmente. Transformar as dimensões humanas supostamente não-racionais, no sentido restrito do termo – no que se refere a algo instrumental, em dimensões menores é uma estratégia no sentido de reduzir não somente o humano, mas também suas percepções diante da realidade. Assim, o pensamento hegemônico, ao separar experiência sensível da produção de conhecimento cria um hiato entre a chamada intelligentsia e a sociedade como um todo, pois se os primeiros vivem na posse da razão, os segundos estariam despossuídos da dialética ascendente que supera os sentidos ao encontro da razão, do conhecimento verdadeiro, útil, prático e eficaz (Horkheimer, 1983).
A emancipação como problema O problema da emancipação não foi tratado exclusivamente pela tradição que constitui o pensamento crítico. Embora seja através desta tradição que a discussão sobre a emancipação humana ganhe vigor, teóricos do pensamento liberal e iluminista dedicaram um tempo significativo de reflexão a esta questão. Uma das referências, inclusive para o pensamento crítico, foram as reflexões de Kant que, mesmo sendo identificado 68
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como um dos principais teóricos do Iluminismo, não deixou de se ater à questão da emancipação humana e de ter a crítica como método de conhecimento, vide o título de suas principais obras: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica do juízo.
desta elaboração está em reduzir a produção de conhecimento ao exclusivo acionamento autônomo das dimensões racionais do ser humano, desconsiderando as múltiplas dimensões que o constituem. Como diria Hegel (1992), o escravo tem a consciência da necessidade de liberdade, porém não possui objetivamente a prática da liberdade.
Segundo Kant, conhecimento, razão e autonomia andam juntos, configurando entre eles uma relação de interdependência. Em seu texto Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? (2008), Kant afirma que todos os seres humanos são dotados de razão, considerando que para ele a razão é uma característica inata, independente das condições de sua natureza, ou seja, independente de questões sociais, políticas, culturais que envolvem o ser em questão. No entanto, esta característica inata não pode ser acionada por todos, mas apenas por aqueles que progressivamente vão se libertando de seus tutores. Em outras palavras, somente o homem capaz de fazer uso autônomo de sua razão possui condições de produzir conhecimento. A autonomia é uma condição indispensável para a produção de conhecimento socialmente válido, já que sem ela, isto é, sem a progressiva libertação de seus tutores, o sujeito somente reproduziria as ideias de seu mentor, seja este o Estado Absoluto ou o Dogma Religioso.
Mas será que a racionalização do sujeito como condição de liberdade é processo tão simples? Basta vontade própria para que o sujeito conquiste sua autonomia? A forma como organizamos a vida social não influencia no processo? As tensões entre moralidade/ cultura e civilização/progresso material anunciadas por Kant nas dialéticas positivas e negativas da razão pura e da razão prática se materializaram em barbárie objetivada ao longo do século XX, mal-estar que comunica as determinações sociais, os traumas e a dinâmica da psiquê humana no processo de construção da autonomia do sujeito (Freud, 1974). Herbert Marcuse (1981) problematizou as constatações kantianas e iluministas sobre a ideia de autonomia. Para o autor, o processo de esclarecimento ou de consolidação do sujeito autônomo não se dá de modo amistoso, pois ao longo da vida o sujeito é submetido a uma série inumerável de questões que o impedem de se tornar autônomo, a ponto de ter, inclusive, seus desejos mais primitivos condicionados pela forma de sociedade em que está situado.
Esta racionalização constante da vida social tornariam os seres humanos melhores, mais justos, conscientes e felizes. Para alcançar tais objetivos o sujeito dependia somente de sua força interior, pois, embora mediada pelo conhecimento científico, a emancipação é um processo que se dá de dentro para fora e depende da vontade que cada um tem de ser livre. O problema
Em Eros e civilização (1981), Marcuse apresenta o pensamento de Sigmund Freud a partir de uma interpretação filosófica, buscando 69
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fundamentar a possibilidade concreta e real de constituição de uma Civilização Não-Repressiva. Marcuse inicia suas reflexões tendo como referência o tensionamento apresentado por Freud entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Segundo o criador da psicanálise, a coexistência entre princípio da realidade e princípio do prazer como fluxo do processo civilizatório é impossibilitada, visto que o princípio de prazer exigiria a negação total do princípio de realidade e vice-versa. Ou seja, segundo Freud (1974), a afirmação do Ego, em seu estado primitivo, movido por uma busca ilimitada pelo princípio do prazer seria incompatível com a civilização, tendo em vista que o estado de sociedade imprime a necessidade de renúncias ao sujeito em função dos limites institucionais, morais, culturais etc. Ou seja, a civilização com seu princípio de realidade fundamentado na sublimação dos desejos inviabiliza o sujeito que “por um lado, visa a ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer” (Freud, 1974: 8).
integral de necessidades – é abandonado” (Marcuse, 1981: 33), ou seja, à medida que o Ego abandona seu estado primitivo, amadurece e se choca com a realidade, sendo obrigado a submeter a satisfação de suas necessidades a fontes externas, pois “o princípio do prazer irrestrito entra em conflito com o meio natural e humano. O indivíduo chega à compreensão traumática de que uma plena e indolor gratificação de suas necessidades é impossível” (Marcuse, 1981: 34). Segundo Freud (1974), o Ego passa a reconhecer o mundo exterior quando este se torna uma fonte de prazer; neste momento o Ego está vulnerável, pois corre o risco de ser reificado, coisificado, reduzido a algo que não é mais ele mesmo, subjugado, ou melhor, capaz de subjugar suas necessidades e respostas fisiobiológicas a necessidades e respostas externamente criadas, condicionando seu prazer a elas, eis o princípio da realidade (Freud, 1974). Essa reificação progressiva do Ego é perfeitamente compreensível, pois diante de um cenário em que as fontes de sofrimento assumem dimensões cada vez mais abrangentes, e que as pressões sobre o indivíduo são elevadas à milionésima potência, não espanta que ausência de sofrimento tenha o mesmo efeito que a felicidade, e que não-encarceramento seja considerado liberdade, ou mesmo que a reprodução de ideias e pensamentos seja sinônimo de autonomia.
Em seu estado primitivo, as necessidades fisiológicas de prazer do Ego encontravam respostas internas. Nesta perspectiva, a satisfação desses desejos era encontrada no próprio sujeito, isto é, a necessidade e a sua satisfação compõem a mesma unidade metabólica tendo em vista que ambas eram intrínsecas ao ser. Assim sendo, o Ego não teria que se submeter a algo externo, eis o princípio do prazer: “O princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade” (Freud, 1974: 9).
Freud (1974) identificava no princípio da realidade, ou seja, na civilização, um profundo sentimento de mal-estar, pois seu amadurecimento exigia a anulação progressiva das necessidades instintivas do sujeito, submetido a uma sucessão de experiências traumáticas, repressivas.
“A civilização começa quando o objetivo primário – isto é, a satisfação 70
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Para Freud, a noção de uma civilização não-repressiva é impossível. A repressão das liberdades ou de sua busca dá origem a um indivíduo autorreprimido e a sua “autorrepressão apoia, por seu turno, os senhores e suas instituições” (Marcuse, 1981: 37). Essa repressão que se acumula feito catástrofe na subjetividade humana reduz a ideia de liberdade, de autonomia e de felicidade do ser autorreprimido ao simples ato de cotidianamente escapar da infelicidade, do encarceramento ou do sofrimento.
é bom e mau, útil ou inútil, verdadeiro e falso, em outras palavras, “torna-se um sujeito consciente, pensante, equipado para uma racionalidade que lhe é imposta de fora” (Marcuse, 1981: 34). Esse Ego ordenado realiza sua descarga motora na “alteração apropriada da realidade: é convertida em ação” (Marcuse, 1981: 35). No tempo em que Marcuse está refletindo, bem como no momento presente essas potencialidades racionais são direcionadas para uma ação reificada, para trabalho alienado, para a manutenção do sistema mercantil, de suas instituições e de sua estrutura de dominação. Entretanto, o mesmo Ego ordenado acumula excessivamente estímulos contra a própria forma mercantil e, consequentemente contra a sua própria repressão. Recupera, por exemplo, as ideias de liberdade, autonomia e felicidade ocultas em uma memória distante, porém, sempre passível de recuperação (Freud, 1974; Benjamin, 1994).
Marcuse (1981) concorda parcialmente com Freud. Acredita que a formação social atual, regida por uma forma mercantil que reifica os sujeitos e as relações por ele travada reprime o Ego na substituição da luta pela felicidade pela simples luta pela existência. Para Marcuse, a repressão inconsequente dos desejos tanto no desenvolvimento filogênico, quanto no desenvolvimento ontogênico é uma característica específica de nosso tempo histórico marcado pelo capitalismo moderno. Nestes termos, onde Freud vê um tremendo mal-estar instransponível, Marcuse vê um imenso potencial dialético, dado que o princípio de realidade, estrutura fundamental da civilização, do mesmo modo que oprime, que reifica o Ego, pode contribuir para a sua total liberação, pois, com o estabelecimento da civilização, isto é, com a afirmação do princípio de realidade o ser humano “esforça-se por obter o que é útil e o que pode ser obtido sem prejuízo para si próprio e para o seu meio vital. Sob o princípio de realidade, o ser humano desenvolve a função da razão: aprende a examinar a realidade” (Marcuse, 1981: 34).
De acordo com Marcuse (1967: 4), “as aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensuravelmente maiores do que nunca dantes”, no entanto, em vez da liberação do sujeito à filosofia, à arte de modo geral, à política etc., o que se tem é um aumento incomensurável da repressão e da dominação, ou seja, todas as aptidões intelectuais e materiais servem, na verdade, para garantir que os tentáculos da sociedade administrada alcancem os lugares e sujeitos em todos os cantos do Planeta. Neste sentido, a emancipação humana é inversamente proporcional à capacidade produtiva da atual forma de organização social, na medida em que nosso Ego reificado – que desconhece quase que completamente seus instintos
Este desenvolvimento da razão permite ao sujeito distinguir entre o que 71
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primários – passa a ser um fragmento reificado de um princípio da realidade que não se autoconhece, reduzindo, com isso, nossa percepção, nossas necessidades (inclusive as fisiobiológicas), resumindo à minimização da dor, do sofrimento, do desprazer cotidiano, na mesma medida em que reduz a nossa visão de liberdade.
criatividade e a realização de atividades livres (Marx, 2004). Os traumas das derrotas das revoluções e a reconstrução da memória como forma de conhecimento Desde que superamos o erro de supor que o esquecimento com que nos achamos familiarizados significa a destruição do resíduo mnêmico [relativo à memória] – isto é, a sua aniquilação –, ficamos inclinados a assumir o ponto de vista oposto, ou seja, o de que, na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer – o de que tudo é, de alguma maneira, preservado e que, em circunstâncias apropriadas (quando, por exemplo, a regressão volta suficiente atrás), pode ser trazido de novo à luz (Freud, 1974: 4).
Essa percepção reduzida do mundo ofusca a nossa visão de uma catástrofe sem trégua. A racionalidade irracional do atual modelo de sociedade pautado pela livre concorrência e por um padrão de produtividade que destrói o livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas, mantém-se através da constante ameaça de guerra e da insistente repressão das potencialidades individuais e coletivas para a minimização da luta pela existência (Marcuse, 1967: 14). Com a terceira revolução técnicacientífica iniciada em meados do século XX, pautada no desenvolvimento da informática, da robótica, na utilização de novas fontes energéticas e na biotecnologia, a luta pela existência pode, sim, ser equilibrada com uma luta pelo tempo livre, pelo tempo da criação e do prazer.
Neste momento de perplexidade generalizada em que a perspectiva de futuro se restringe à garantia da sobrevivência diária – diante da fome, das epidemias, dos desastres naturais, da guerra convencional ou dos inúmeros contextos de guerra civil espalhados pelo Planeta – na selva de pedra das cidades em que a imagem do passado parece desaparecer paulatinamente da nossa memória, surge a necessidade de refletirmos sobre nossas experiências históricas, sobretudo as que vivemos até aqui, com o sentido de ressignificar o passado, utilizando todo o seu material explosivo como agente catalisador das nossas experiências no tempo presente (Benjamin, 1994), ampliando com isso o nosso horizonte histórico diante das possibilidades de um futuro diferente.
Autoconservação da espécie, liberdade e autonomia como necessidades vitais (Freud, 1974; Fromm, 2004) parecem desconhecidas para as sucessivas gerações que nasceram, foram formatadas, coisificadas e desumanizadas pelo domínio da repressão e da escassez elevada à milionésima potência pelo sistema capitalista contemporâneo que, ao longo de seu processo contínuo e crescente de deformação, foram sendo retiradas do humano as características que os distinguem dos outros animais, a necessidade de liberdade, a autonomia, a
Nossa tarefa, nada simples por sinal, consiste, como diria Freud (1974), em voltar no tempo, em sentar no divã da história desta experiência, em 72
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regredir suficientemente até que seja possível perceber e recuperar, ao menos teoricamente, parte daquilo que fora deixado, melhor dizendo, “esquecido” pelo caminho, isto é, tudo aquilo que a sucessão de experiências traumáticas que vivemos nos fizeram esquecer. É bom enfatizar que se trata apenas de “esquecimento”, pois em algum lugar da nossa psiquê coletiva está armazenada a memória desta tradição crítica de uma Epistemologia das Lutas Sociais, pois, como afirma Freud (1974: 4), “no domínio da mente, por sua vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado”:
prédios que outrora ocuparam essa antiga área, nada encontrará, ou, quando muito, restos escassos, já que não existem mais. No máximo, as melhores informações sobre a Roma da era republicana capacitariamno apenas a indicar os locais em que os templos e edifícios públicos daquele período se erguiam. Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas restaurações posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição. Também fazse necessário que todos esses remanescentes da Roma antiga estejam mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu muito nos últimos séculos, a partir da Renascença. Sem dúvida, já não há nada mais que seja antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os edifícios modernos. Este é o modo como se preserva o passado em sítios históricos como Roma (Freud, 1974: 4).
Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase Septimontium, uma federação das povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os períodos da república e dos césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas muralhas. Não acompanharemos mais as modificações por que a cidade passou; perguntar-nos-emos, porém, o quanto um visitante, que imaginaremos munido do mais completo conhecimento histórico e topográfico, ainda pode encontrar, na Roma de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. À exceção de umas poucas brechas, verá o Muro de Aureliano quase intacto. Em certas partes, poderá encontrar seções do Mudo do Sérvio que foram escavadas e trazidas à luz. Se souber bastante – mais do que a arqueologia atual conhece –, talvez possa traçar na planta da cidade todo o perímetro desse muro e o contorno da Roma Quadrata. Dos
O mais interessante é que o pai da psicanálise não vai se contentar em construir conjecturas somente com a vida mental dos indivíduos, mas também com a história das sociedades, com o intuito de nos mostrar que, diferentemente da estrutura psíquica, a história guarda suas sequências relacionando diretamente tempo e espaço, sendo necessário que se sobreponha sempre uma fase à outra, de forma que elas nunca existam no mesmo tempo e espaço simultaneamente. Freud (1974) nos fala ainda que, com a estrutura mental, a preservação da memória não necessita de uma sobreposição de imagens ou fases: dependendo do ângulo e da posição do observador, todas as imagens e fases vão estar sempre disponíveis à observação. A leitura que Freud (1974) faz da história certamente está 73
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contaminada com aquilo que Benjamin (1994) chamou incansavelmente de história tradicional, considerando que esta concepção apresenta a história em uma linearidade (unidimensional, a “linha” do tempo) mórbida, como se os sujeitos caminhassem sempre em direção ao paraíso/progresso.
desvios estratégicos e resolvê-los para que possamos recomeçar a história de onde paramos, melhor dizendo, de onde as nossas experiências traumáticas nos fizeram parar. Sabendo, com isto, que todo fio histórico perdido pode ser retomado desde que possamos voltar suficientemente atrás, com ângulos e posições diferentes, sabendo que, até aqui, a nossa regra esteve marcada pela barbárie, pela opressão, pela violência dos vencedores que contaram e contam a “história oficial”. O que esta versão oficial da história não conta é que, ao longo desta trajetória, os projetos revolucionários foram impedidos “por contratendências e por movimentos opostos” (Marcuse, 1969: 16), estatais ou extraestatais, lançando mão de mecanismos espirituais de violência (relações econômicas: escassez e coerção em estado latente) ou de violência extraeconômica (fisicamente repressivas).1 No Brasil isto nunca foi novidade, pois até mesmo em nossos momentos de democracia pálida, a exceção sempre foi a forma reinante de manutenção da governabilidade e, de milagre em milagre, o preço da penitência para os oprimidos, para as classes populares “nacionais” foi bastante elevado. Golpes de Estado, ditaduras militares ou empresarial-militares, suspensão dos
Entretanto, o que nos interessa, neste momento, é compreender que existe uma confluência interessante entre os pensamentos de Benjamin e Freud, sobretudo quando Freud (1974) afirma que, na estrutura mental, toda memória é preservada e, dependendo da posição que o sujeito observador assume no tempo e no espaço, ele poderá fazer uso de cada estrutura, de cada fragmento de memória em seu estado perfeito, mesmo que ela faça parte de um passado longínquo, podendo recuperá-la em qualquer tempo (ressignificando-a, é claro, à luz do presente). Nestes termos, por um processo de rememoração, como nos fala Benjamin (1994), esse(s) passado(s) estará(ão) sempre à nossa disposição para ser(em) reinterpretado(s), recontado(s). O que aproxima esta dupla ilustre de pensadores judeus é que o passado pode ser resolvido, reapropriado, isto é, que a qualquer momento podemos caminhar em direção aos nossos medos, aos nossos traumas da infância e da juventude, às nossas derrotas, aos nossos erros táticos, aos nossos
É importante considerar que para Marcuse (1969) tanto a primeira quanto a segunda forma de violência estão condicionadas ao desenvolvimento do sistema mercantil, pois em momentos em que a taxa de acumulação permanece estável a violência se manifesta em estado latente, pouco visível, pois são ofuscadas pelas relações econômicas e alienadas do próprio processo produtivo; em contrapartida, caso a taxa de acumulação tenha um movimento regressivo, ou seja, o sistema social esteja em um processo de crise e a violência espiritual seja insuficiente para conter a insatisfação da massa, a violência extraeconômica seria utilizada de modo mais intenso. Cabe destacar, ainda, que no desenvolvimento histórico do capitalismo os dois tipos de violência serão utilizados simultaneamente, dependendo de sua vida orgânica. 1
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direitos civis e políticos, supressão dos salários, dentre outras, sempre fizeram parte da nossa vida cotidiana, pois aqui o arcaico e o moderno fizeram uma dobradinha perfeita, alimentando um ao outro (Oliveira, 2008). Combinar estado de exceção e crescimento econômico, trabalho escravo e precarização do trabalho com avanços técnicos e tecnológicos é nossa especialidade, sendo a forma pela qual o capitalismo se desenvolverá no Brasil. Tanto é que, na atualidade, chegamos a exportá-la alimentando uma brazilianização do mundo (Arantes, 2004).
da esquerda alemã na Primeira Guerra Mundial, das vanguardas culturais e políticas da Revolução Russa, o fracasso das insurreições operárias na República de Weimar e na República de Conselhos da Hungria; a derrota dos anarquistas na Guerra Civil Espanhola, o nazismo, o stalinismo, as ditaduras civil-militares na periferia, o milagre econômico e a violência das modernizações tardias, a sociedade administrada. Catástrofes em repetição apontam para uma suspensão da práxis política? Sem práxis política existe uma teoria crítica? Ou uma epistemologia das lutas sociais? (Santos, 2011).
Esse cortejo triunfante dos vencedores, marcado pela universalização da exceção entre os vencidos, continua a percorrer seu caminho, encontrando pela frente várias forças de resistência, trucidadas por uma intensa “repressão agressiva legal e extralegal por parte da estrutura de poder – uma concentração de força brutal contra a qual a Esquerda não possui defesa” (Marcuse, 1981: 43) – e que vão ser narradas pelos historiadores da história oficial como focos dispersos e sem continuidade de resistência.
Se os tempos atuais nos retiram de uma práxis política como sujeito coletivo, ao menos exigem para o bom entendedor uma crítica da cultura socialista e da cultura libertária, um pôrse a contrapelo possuído pela melancolia hostil à atividade do esquecimento: Num mundo no qual se encoraja a amnésia, em que o recalcamento toma o lugar do esquecimento, a melancolia de esquerda ainda é capaz de apelar a coisas que de outra forma estariam perdidas. Manter uma relação com o passado significa relembrar o melhor para impedir o pior: que o passado se repita. A melancolia passa a representar uma resistência à razão tecnológica e administrativa que liquida a memória [...]. O papel da memória é, pois, fundamental: se a tecnologia arquiva o passado para se transformar em apologia do existente, a recordação é o que preserva o melhor do que foi e o melhor do que pode ser. (Matos, 1989: 21)
Rememorar o passado, como diria Benjamin (1994), voltar suficientemente atrás não significa negar que os oprimidos tiveram inúmeras experiências de autorreflexão e autoprodução de conhecimento, mas considera que a Epistemologia das Lutas Sociais, na perspectiva crítica, corresponde à práxis política das classes populares nos processos e para os processos de luta social, bem como sua rememoração, tendo a crítica da história e a sensibilidade narrativa do sujeito como faróis desta epistemologia a contrapelo.
Recordar, narrar e não deixar de perceber, como uma atividade consciente, a emancipação humana como um problema concreto, real, finito, posto
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na ordem do dia como contraponto da luta pela sobrevivência e afirmação da necessidade vital da felicidade e da liberdade. Uma epistemologia das lutas sociais não se abstém da dialética da
dor, porém é unindo luta social, memória, atividade livre e lúdica que demarca no processo histórico objetivado a busca e a realização de uma razão sensível.
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GÊNERO E CULTURA: UMA REFLEXÃO PÓSCOLONIAL Maria Eduarda Borba Dantasi Resumo O propósito deste artigo é refletir sobre a teoria política feminista, interpretada como uma teoria social, crítica e reflexiva, desde uma perspectiva pós-colonial — entendida aqui não apenas em sua crítica epistemológica às formas de produção do conhecimento, mas também em sua denúncia às assimetrias globais de poder. A análise da forma como a “cultura” intercepta o debate feminista, ilustrada neste artigo pela obra de autoras como Susan Okin, Anne Philips e Martha Nussbaum, impõe-se como o fio condutor deste trabalho, cujo objetivo é tatear as interfaces entre a teoria feminista e a crítica póscolonial, percebendo possíveis linhas de continuidade entre o feminismo e a epistemologia colonialista. Aponta-se para a necessidade de o feminismo problematizar os conceitos, as categorias e as premissas em torno dos quais ele é construído — como o de “gênero” —, mister para o qual a crítica pós-colonialista em muito contribui. Palavras chave: Teoria política; Filosofia política; Feminismo; Cultura; Pós-colonialismo
GENDER AND CULTURE: A POSTCOLONIAL REFLECTION Abstract: The purpose of this article is to reflect on feminism, interpreted as a critical and reflexive social theory, from a postcolonial perspective – here understood not only as an epistemological critique of the forms through which knowledge is produced, but also as a denouncement of the global asymmetries of power. The paper is guided by an analysis of the way in which “culture” intervenes in the feminist debate, illustrated through the work of authors such as Susan Okin, Anne Philips and Martha Nussbaum. Its main purpose, therefore, is to grasp the interfaces between feminist theory and the postcolonial critique, identifying potential lines of continuity between feminism and colonialist epistemology. It points the need for feminism to critically question the concepts, categories and premises upon which it is built, such as “gender”, a requirement to which the postcolonial critique has a lot to add. Keywords Political theory; Political philosophy; Feminism; Culture; Postcolonialism.
Maria Eduarda Borba Dantas é mestranda em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UNB). E-mail: mariaeduarda.borbadantas@gmail.com i
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Introdução
mulher — ou de tornar-se uma, em homenagem a formule célèbre de Beauvoir — é afetada de maneiras diferentes, conforme se faça incidir sobre ela outras classificações estruturantes dos padrões de distribuição do poder na sociedade (Quijano, 2005). Graças às contribuições de autoras como Johanna Brenner, Angela Davis, Elizabeth Spelman, Bell Hooks ou, no Brasil, Sueli Carneiro, o feminismo pôde politizar-se não só em relação ao “gênero”, mas também à raça e à classe. As tentativas de incluir a “cultura” como um fator importante de particularização das experiências femininas ao redor do planeta — “we have become politicized about race and class, but not culture” (AbuLughod, 2002: 789) — são, todavia, ainda incipientes e sempre cercadas por bastante polêmica. É compreensível a preocupação, expressa por autoras como Susan Okin, de que diferenças culturais acabem por permitir e legitimar formas de dominação das mulheres — afinal, de acordo com a autora, “most cultures have as one of their principal aims the control of women by men” (Okin, 1999: 13). É igualmente legítimo, porém, manifestar alguma preocupação: a) quando o próprio feminismo é empregado para apagar a marca das relações assimétricas de poder inegavelmente existentes entre o que Stuart Hall, ironicamente, chamou de “The West and The Rest”, denunciando a “divisão sexual do trabalho” em “países do terceiro mundo” e sublimando, por completo, a divisão internacional do trabalho (Spivak, 2010); b) quando ele serve para oprimir e silenciar, estereotipar e deslegitimar as experiências de vida de certas mulheres, tratadas como um objeto monolítico, a-histórico e generalizante — “The Third World Woman” (Mohanty,
As teorias feministas trouxeram um aporte muito distinto para pensar as sociedades contemporâneas e seus limites, elaborando críticas a respeito de como noções de universalidade, liberdade e imparcialidade, bem como pretensões de suspensão das diferenças individuais, constroem referenciais e embasam sistemas sociais extremamente excludentes: Por que razão e de que modo pode a desigualdade coexistir com a pretensão de igualdade universalizada (Phillips, 1997)? Se, por um lado, pode-se enxergar essa contradição apenas como uma questão de universalidade incompleta — mas atingível, talvez, “a longo prazo”, como nos prometem os economistas —, por outro, é igualmente possível — e talvez mais interessante — seguir o insight de Pateman, tentando compreender de que formas essa construção abstrata da igualdade oculta, chancela e legitima, deliberadamente, a permanência de formas bastante específicas de desigualdades (Pateman, 1993). Com efeito, os indivíduos abstratos que povoam as teorias democráticas liberais são, na verdade, reflexos de experiências individuais bastante particulares: a do homem branco, proprietário, ocidental, cisgênero, heterossexual. É um tanto paradoxal, portanto, que o caminho trilhado pelo feminismo tenha, por vezes, enveredado pela construção de outra categorização abstrata, “as mulheres”, cujas experiências, ao fim e ao cabo, poderiam ser subsumidas a algum tipo de universalidade — haveria uma espécie de denominador comum determinante das vivências femininas, independentemente do lugar, do tempo e das condições em que vivem essas mulheres. E, no entanto, não é difícil perceber que a experiência de ser 79
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1991); ou, ainda, c) quando ele é parte da retórica utilizada para justificar e legitimar intervenções armadas e práticas flagrantemente colonializantes em certos países, sejam na Índia e no Egito sob o jugo britânico (Abu-Lughod, 2013: 33), sejam no Iraque e no Afeganistão sob a ocupação militar norte-americana (AbuLughod, 2013. Kandiyoti, 2007a/b). Com essas preocupações em mente, o objetivo deste artigo é problematizar certas maneiras como a “cultura” tem atravessado a teoria política feminista, ilustrado, aqui, pelas obras de Susan Okin, Anne Phillips e Martha Nussbaum, acrescentado um maior nível de complexidade à crítica feminista, na medida em que ela se depara com dificuldades postas pela desgastada disputa entre relativismo e universalismo; pela divisão internacional do trabalho; pelos efeitos — concretos e simbólicos, evidentes e latentes — do imperialismo europeu; pelos padrões globais de distribuição de poder — econômico, bélico, científico — que acabam determinando os limites entre o verdadeiro e o místico, entre o que faz sentido e o que não faz, entre o que é possível e o que é impossível; pela irrecusável (e desconfortável?) presença de certos tipos de imigrantes nos países centrais; pela incontornável existência de subalternos nas periferias do mundo; pelas linhas invisíveis, abissais (Santos, 2007), que, uma vez traçadas, sustentam práticas e discursos hegemônicos,
desenvolvimentistas, emancipatórios, universalistas — que podem, às vezes, até ir “fundo no que olham, mas não no próprio fundo”.1 A hipótese aqui levantada é a de que o feminismo, compreendido como uma teoria social crítica e reflexiva, inevitavelmente, deve lidar com uma série de contradições e aporias2 inerentes a qualquer discurso que tenha a margem como locus de enunciação. Ignorar esses paradoxos, ou tentar encontrar uma solução para eles, é, senão um exercício vão, uma manobra perniciosa, cujo efeito, mediata ou imediatamente percebido, é o adoçamento, a diluição, o adestramento do feminismo, cujo potencial crítico fica, assim, prejudicado — inclusive em sua capacidade de dizer algo sobre as nossas sociedades. Contemporaneamente, a “cultura” parece ser um desses conceitos que, com mais força, vem solicitar3 o feminismo, acrescentando-lhe alguma radicalidade. Nessa medida, o póscolonialismo — abraçado aqui tanto em sua crítica epistemológica às formas de produção de conhecimento, como também em sua denúncia às assimetrias globais de poder — pode revelar-se um espaço profícuo para a articulação entre “gênero” e “cultura”; um exercício cujo resultado esperado, portanto, não pode ser senão o próprio aprofundamento da crítica feminista. O artigo está estruturado em duas partes: primeiro, tentaremos situar
Veloso, Caetano. “Americanos”. In: Circuladô Ao Vivo. Polygram do Brasil, 1993. Do grego ἀπορία,,a-poros. Significa não caminho, uma rota que não permite passagem. Na filosofia, é um problema de resolução aparentemente impossível. 3 Em referência ao emprego derrideano da palavra “solicitar”, derivada do latim sollicitare (sollus, “tudo”, e ciere, “mover, abalar”). Solicitar, assim, significaria “abalar a totalidade”: toda totalidade pode ser totalmente abalada, mostrando estar fundada, precisamente, naquilo que ela exclui, ignora, trata como impossível. “It is the domination of beings that différance everywhere comes to solicit, in the sense that sollicitare, in old Latin, means to shake as a whole, to make tremble in entirety” (Derrida, 1982: 21). 1 2
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teoricamente a forma como pretendemos desenvolver nosso argumento em torno da “cultura”, o que necessitará de uma breve consideração acerca da epistemologia das ciências modernas, para em seguida ensaiar enquadrar os atritos entre o feminismo e o póscolonialismo como as dissonâncias que surgem do encontro de duas margens — de duas formas distintas de falar sobre diferenças. Em um segundo momento, dedicaremos mais atenção a identificar as linhas de continuidade entre o feminismo e a epistemologia colonial, tendo por suporte trabalhos que se enquadram no campo do feminismo pós-colonial. A isso, sucede uma breve conclusão acerca das questões ponderadas neste artigo.
de perspectiva, de ponto de vista, de explicitação de premissas — e não uma afirmação categórica de que aquilo que o cientista diz é a encarnação absoluta da verdade. Na impossibilidade de atingir-se um conhecimento objetivo, absoluto e racional do mundo, os cientistas poderiam, no mínimo, estar cientes de que estudam o mundo e a natureza como se eles pudessem, de fato, ser conhecidos e explicados; falam do seu conhecimento sobre o mundo como se suas invenções sobre ele de fato existissem. É o caso da ideia de “gravidade”: um conceito criado para poder falar de como as coisas caem. E a consciência desse como se muda tudo, na medida em que confere à posição do observador uma espécie de “objetividade relativa”, que coloca muito mais destaque no próprio investigador, no próprio cientista, no recorte que ele resolveu dar à realidade e nas formas como ele decidiu explicá-la, do que na realidade em si mesma. Vai nesse sentido a tese defendida por Wagner em “A invenção da cultura”. O antropólogo norte-americano começa por uma definição do seu campo de estudo. Como a própria palavra deixa adivinhar, a antropologia seria o estudo do fenômeno do homem:
Do ‘ hypothesis non fingo’ de Isaac Newton à ‘invenção da cultura’ de Roy Wagner; ou pós-colonialismo e feminismo: o que acontece quando duas margens se encontram? Em um ensaio anexado à segunda edição do seu célebre Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, em que apresentava a equação à qual obedecia todo o universo — a Lei da Gravitação Universal –, —, Isaac Newton declarava, orgulhosamente, “não formular hipóteses”: hyphotesis non fingo. Ele insinuava, assim, não se dedicar à desimportante tarefa de estudar fenômenos naturais para, a partir deles, elaborar explicações plausíveis. Pelo contrário: a partir de suas fórmulas é que ele deduzia o mundo (Wagner, 2014: 20-21). Roy Wagner, todavia, sugere uma interpretação um tanto benévola do imperativo newtoniano, que poderia ser lido “como uma humilde e sóbria declaração de procedimento, e não como vanglória” (Wagner, 2014: 21). Tratar-seia, enfim, de uma simples declaração
A mente do homem, seu corpo, sua evolução, origens, instrumentos, arte ou grupos, não simplesmente em si mesmos, mas como elementos ou aspectos de um padrão-geral ou de um todo. Para enfatizar esse fato e integrá-lo a seus esforços, os antropólogos tomaram uma palavra de uso corrente para nomear o fenômeno e difundiram seu uso. Essa palavra é cultura (Wagner, 2014: 37).
Para Wagner, o antropólogo tentará denominar a situação que ele está 81
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estudando como “cultura”, de forma apriorística, como uma maneira de falar sobre as coisas, compreendê-las e lidar com elas. A conclusão que ele tira daí é que a “cultura” não existe como um objeto monolítico, apreensível, cognoscível, dominável: ela é inventada pelo antropólogo quando ele se depara com a diferença; quando ele sofre o “choque cultural” durante o seu trabalho de campo. Desse susto, desse espanto, desse confronto com “O Outro”, o antropólogo inventa não só a “cultura” que ele acredita estar estudando, conhecendo, como também a sua própria “cultura”: “antes disso, poder-se-ia dizer, ele não tinha nenhuma cultura, já que a cultura em que crescemos nunca é realmente ‘visível’ — é tomada como dada, de sorte que suas pressuposições são percebidas como autoevidentes” (Wagner, 2014: 43). O trabalho do antropólogo nada mais é do que a construção de um conjunto de analogias, relações e comparações, levando a cabo um processo em que duas culturas — a dele próprio e a que ele pretende estudar — são simultaneamente criadas, “objetificadas”, isto é, tornadas objetos por ele. Segue daí que algo como “cultura” não existe de fato: nesse jogo, a relação nascida da diferença, cujo elo é o próprio antropólogo, é muito mais real do que as coisas que ela pretende relacionar – a “cultura” “A” e a “cultura” “B”; a “cultura” estudada e a “cultura” do próprio antropólogo. A ideia de “cultura” apenas tornou-se a linguagem geral por meio da qual a antropologia se comunica. A antropologia, portanto, seria o estudo do homem “como se a cultura existisse na qualidade de uma ‘coisa’ monolítica” (Wagner, 2014: 52). A ideia de “cultura”, por sua vez, seria uma espécie de “muleta de pensamento”, que
nos permite falar sobre algo bastante complicado: a diferença. Os problemas surgem quando se esquece de que essa diferença é construída relacional e contingentemente, e começa-se a acreditar que as fronteiras traçadas para poder falar de diferenças constatadas são fixas, imutáveis — esquecemos que elas são somente analogias que usamos para falar de coisas, e começamos a tomá-las pelas coisas em si. Em O que é a política?, Hannah Arendt elabora um raciocínio semelhante, referindo-se aos “pré-juízos” que informam a atividade política — juízos que obliteram o fato de serem juízos e, por isso, são empregados como verdades naturais, evidentes por si mesmas. Ainda que nenhuma comunidade política possa prescindir do pré-juízo para funcionar cotidianamente, o perigo residiria na circunstância de que, obliterando uma parcela do passado — dos juízos que foram tomados anteriormente —, o pré-juízo poderia levar à renúncia da capacidade humana de julgar, tendo por efeito o esquecimento da contingência da política — o fato de que as coisas que são, na superficialidade da política, poderiam muito bem ser de outra forma (ARENDT, 1997: 52-59). Também Nietzsche, valendo-se da metáfora das moedas cuja efígie foi apagada pelo uso, fala da verdade como um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, 82
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não mais como moedas (Nietzsche, 1983: 48).
estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha” (...). A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. (...)
É importante iniciar “uma reflexão pós-colonial” sobre “cultura” e feminismo com essas considerações porque uma das melhores formas de entender do que trata a crítica pós-colonial é referindose a ela como um esforço de politizar fronteiras, uma tentativa de problematizar diferenças — uma forma de relembrar que os conceitos ordinariamente utilizados para extrair algum sentido do mundo (“nacionalidade”, “raça”, “religião”, “gênero”, “etnia”, “cultura”) são apenas “muletas de pensamento”, analogias, metáforas; formas de falar sobre as coisas como se elas existissem e que não são, jamais, as coisas em si, objetivas, reais. Essa característica do póscolonialismo pode ser identificada tanto na sua denúncia à constante produção de “Outros” pelo Ocidente — como mostram, paradigmaticamente, o “orientalismo” de Edward Said e o binarismo West/Rest de Stuart Hall —, quanto na sua denúncia ao “epistemicídio em massa” (Santos, 2007: 91) que acompanhou a expansão colonial da Europa, ou, mesmo, à “colonialidade do poder” (Quijano, 2005), mas também em sua constatação de como o desenvolvimento, a modernização e a produção de teorias emancipatórias e humanistas no Ocidente tinham, como contrapartida, a aporética exclusão do Resto do mundo — podemos aqui voltar à abissalidade do pensamento ocidental a que se refere Boaventura, incluindo também Gilroy, Staheli e Mignolo.
A humanidade moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme como universal (e essa negação fundamental permite, por um lado, que tudo o que é possível se transforme na possibilidade de tudo e, por outro, que a criatividade do pensamento abissal banalize facilmente o preço da sua destrutividade (Santos, 2007: 71;76).
Para Quijano, o mundo contemporâneo estaria atravessado por eixos fundamentais que determinam os padrões de distribuição global do poder, cuja origem e caráter seriam tipicamente coloniais, mas que, todavia, haveriam provado ser muito mais duradouros e estáveis do que o próprio colonialismo em que foram estabelecidos. Um deles, para o autor, seria “a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial” (Quijano, 2005: 2). Já Paul Gilroy chama atenção para o fato de que o fenômeno da escravidão colonial revelaria as fissuras internas do próprio conceito modernidade, ao escancarar o fato de que a escravidão não seria algo externo a ela:
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são
In this setting, it is hardly surprising that if it is perceived to be relevant at all, the history of slavery is somehow assigned to blacks. It becomes our 83
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desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade” (Costa, 2005: 117). O feminismo, certamente, reúne teorias múltiplas e plurais, cuja categorização sob um único nome — “feminismo” — ocorre não sem uma redução bastante significativa de sua complexidade. Não obstante, é possível, com alguma boa vontade, argumentar que o “feminismo” poderia bem enquadrar-se como um esforço parecido com o da crítica pós-colonial — já que ele é, também, uma tentativa de politizar e problematizar a diferença, mas uma diferença específica, que é a diferença de gênero.
special property rather than a part of the ethical and intellectual heritage of the West as a whole. This is only just preferable to the conventional alternative response which views plantation slavery as a premodern residue that disappears once it is revealed to be fundamentally incompatible with enlightened rationality and capitalist industrial production (Gilroy, 1993: 49).
O referido autor acrescenta, ainda, que Hegel teria sido um dos únicos filósofos a perceber a íntima associação entre a modernidade e a escravidão. Nesse mesmo sentido, Staheli, apoiandose em Laclau, nota que os discursos de globalização são exemplo de uma “política de construção do impensável”, que torna impensável “that which does not fit in with the hegemonic definition of the global. (...) Deconstructing the global requires us to trace that which is excluded by talking about the global, and to examine how these constitutive exclusions affect the very possibility of globality (Staheli, 2003: 2). Mignolo, por sua vez, percebe que “from the perspective of modernity, coloniality is difficult to see or recognize, and even a bothersome concept” (Mignolo, 2005: 5) e se pergunta como é que dois conceitos umbilicalmente ligados — modernidade e colonialidade — sobrepõe-se um ao outro para constituir dois lados de uma mesma realidade e dar forma à ideia de “América”, durante o século XVI, e de “América Latina”, durante o século XIX (Mignolo, 2005: 5). Sérgio Costa está correto ao notar que “os estudos pós-coloniais não constituem propriamente uma matriz teórica única”, indo, antes, tratar-se de “uma variedade de contribuições com orientações distintas, mas que apresentam como característica comum o esforço de esboçar, pelo método de
(...) feminist scolarship, like most other kinds of scholarship, is not mere production of knowledge about a certain subject. It is a directly political and discursive practice in that it is purposeful and ideological. It is best seen as a mode of intervention into particular hegemonic discourses (for example, traditional anthropology, sociology, literary criticism etc.); it is a political praxis which counters and resists the totalizing imperative of age-old “legitimate” and “scientific” bodies of knowledge. Thus, feminist scholarly practices (whether reading, writing, critical, or textual) are inscribed in relations of power — relations which they counter, resist, or even perhaps implicitly support (Mohanty, 1991: 53).
Os possíveis atritos existentes entre a crítica pós-colonial e a crítica produzida pelo feminismo podem ser interpretados, em alguma medida, como choques que — talvez inevitavelmente? — surgem quando duas formas distintas de falar sobre diferenças se cruzam: O que acontece quando duas margens 84
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se encontram? Há consonâncias — mas também abundam as dissonâncias; e, nesse sentido, as formas como a “cultura” tem atravessado o debate feminista conferem um prisma privilegiado a partir do qual esses confrontos se tornam mais tangíveis, mais tácteis, mais perceptíveis. Neste trabalho, tentaremos ilustrar essas tensões por meio da análise da obra de três autoras, Martha Nussbaum, Susan Okin e Anne Phillips, escolhidas por haverem desenvolvido argumentos bastante importantes sobre a “cultura”, desde uma perspectiva feminista. É imprescindível iniciar essa discussão com uma situação do contexto teórico das autoras abordadas. Para tanto, é proveitoso apontar para o fato de a “cultura” ter se tornado foco de atenção dessas autoras, preponderantemente, por meio de reflexões em torno do que Hall chamou de “questão multicultural” (Hall, 2003), e, mais especificamente, de um “multiculturalismo pluralista” cujo desdobramento principal seria a possibilidade de concessão de direitos ou privilégios especiais a “minorias culturais” (Okin, 1999: 10; Kymlicka, 1995) — os group rights. É o caso, notadamente, dos trabalhos de Susan Okin e de Anne Phillips, preocupadas com a presença de “minorias culturais” em países centrais, desenvolvidos, ocidentais. Daí os argumentos desenvolvidos pelas autoras serem construídos em torno de problemas como políticas públicas para imigrantes, normas de Direito Internacional Privado e incidentes processuais possivelmente levantados em face do Poder Judiciário.
relevantes envolvendo “gênero” e “cultura” que minariam a força dos argumentos em favor da concessão de “privilégios” a “minorias culturais”. A primeira delas passaria pelo fato de que “personal, sexual, and reproductive life functions as central focus of most cultures” (Okin, 1999: 12-13). Como resultado, “the defense of ‘cultural practices’ is likely to have much greater impact on the lives of women and girls than on those of men and boys” (p. 13). Em segundo lugar, para a autora, “most cultures have as one of their principal aims the control of women by men” (Idem), e, portanto, argumentos em favor das diferenças culturais teriam por consequência mais provável a permissão, a legitimação e a perpetuação da dominação das mulheres. É importante notar que Okin reconhece que práticas de dominação e discriminação sexual também são encontradas em “culturas” liberais ocidentais (p. 16), muito embora, para a autora, elas estejam mais adiantadas do que outras “culturas” do mundo, “including many of those from which immigrants to Europe and North America come” (p. 17). É com base nessas considerações que Okin, ao final do seu texto, chega à conclusão de que a concessão de direitos de grupo a minorias “culturais mais patriarcais”, em sociedades “menos patriarcais”, não é uma solução adequada. Com efeito, as mulheres daquelas “culturas” poderiam estar much better off if the culture into which they were born were either to become extinct (so that its members would become integrated into the
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Para Okin, há duas interfaces
Ver, por exemplo, a extensa discussão de jurisprudências de cortes inglesas e norte-americanas levada a cabo por Anne Phillips no terceiro capítulo de “Multiculturalism without culture”. 4
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many fundamental ways, touching on some of the most central elements of human being’s quality of life — health, education, political liberty and participation, employment, self-respect, and life itself ” (p. 30.), Nussbaum desenvolve seu argumento no sentido de resolver os potenciais conflitos que as “culturas” podem causar, por via, simplesmente, da sua desconsideração, sempre que elas se mostrarem contrárias à “dignidade humana”. Com alguma ironia, Nussbaum afirma preferir correr o risco de ir para o “inferno” especialmente reservado para “ Westernizers and imperialists”, do que desistir da posição de que “there are universal obligations to protect human functioning and its dignity, and that the dignity of women is equal to that o men. If that involves assault on many local traditions, both Western and non-Western, so much the better, because any tradition that denies these things is unjust” (Idem). Em outro trecho, Nussbaum afirma que “real cultures contain plurality and conflict, tradition, and subversion. They borrow good things from wherever they find them, none too worried about purity” (p. 37). Não fica claro, porém, que “coisas boas” são essas que as “culturas” deveriam tomar para si, nem de acordo com qual critério as “tradições” devem ser “atacadas” por serem consideradas “injustas” — não é difícil imaginar, porém, que algumas “culturas” estão mais propensas do que outras a sofrerem esse “ataque” (e a sua alegada “injustiça” muito improvavelmente seria o único fator envolvido na decisão dessa investida). Nussbaum pretende, no fim das contas, varrer a “cultura” do conjunto de aspectos que devam ser considerados politicamente relevantes, talvez tentando replicar, macrocosmicamente — e globalmente ¬— a manobra
less sexist surrounding culture), or, preferably, to be encouraged to alter itself so as to reinforce the equality of women – at least to the degree to which this value is upheld in the majority culture (Okin, 1999: 22-23).
A análise da “cultura” em Phillips, por sua vez, caracteriza-se pelo seu esforço em enquadrar “cultura” como algo potencialmente positivo (Phillips, 2007: 132), e não como mero constrangimento à autonomia de indivíduos, reconhecendo, inclusive, tanto que as sociedades ocidentais de tradição liberal têm, também, “cultura” (Phillips, 2007: 127), quanto que a “cultura” não pode ser tratada como algo essencializado, reificado, estável: culturas mudam ao longo do tempo. Todavia, não é difícil perceber que o que incomoda Phillips no multiculturalismo, e que é a linha por trás dos argumentos desenvolvidos em Multiculturalism without culture, é muito mais a preocupação de como compatibilizar a noção “cultura” com uma tradição liberal centrada em torno da autonomia individual, da capacidade de agência dos indivíduos e de sua respectiva liberdade para fazer escolhas, para, assim, poder manter de pé seu argumento em favor da igualdade — e, tal como em Okin, o pano de fundo dessa análise são os países centrais, ocidentais, desenvolvidos, tomados pela presença do imigrante. Em “ Sex and social justice”, Martha Nussbaum, desenvolvendo uma poderosa argumentação que une as preocupações das teorias feministas e da justiça social, parte da premissa de que “human beings have a dignity that deserves respect from laws and social institutions” (Nussbaum, 1999: 5). Constatando que “tradições”, tanto ocidentais quanto não ocidentais, “perpetrate injustice against women in 86
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liberal de suspensão das diferenças, a fim de produzir um espaço neutro em que indivíduos possam ser livres e autônomos — possam “florescer”, conforme ela diz, exercendo livremente as funções descritas na lista de “central human functional capabilities” (p. 41). Se, por um lado, pode-se parabenizar Nussbaum pelo esforço de construir uma teoria da justiça bastante ousada e com pretensões declaradamente universalistas, por outro, não é equivocado, também, apontar que por trás desses argumentos, balança a crença de que os preceitos das sociedades liberais ocidentais são, de fato, universais, e que o seu universo simbólico é elástico o suficiente para englobar o mundo inteiro. A impossibilidade dessa manobra, porém, está inscrita no próprio tecido das relações globais de poder — e defender o contrário implica, como bem nota Chandra Mohanty, simplesmente apagar as diferenças que existem entre o Ocidente e o Resto do mundo, tendo por efeito a confirmação da presunção de que o Resto apenas ainda não se desenvolveu, evoluiu, modernizou-se tanto quanto o Ocidente (Mohanty, 1991: 72). Reconhecer essa impossibilidade, por outro lado, não implica, como teme Nussbaum, um “colapso moral” — ser uma das almas, descritas por Dante, que vagueia eternamente no vestíbulo do inferno, incapaz de assumir qualquer posicionamento em relação a problemas políticos ou morais (Nussbaum, 1999:
30). Não significa, tampouco, concluir que “the only way to respect people’s dignities as agents is to create an uphill unequal struggle for them at every turn in the road ” (Idem, p. 18); ou ainda desconsiderar certas correntes feministas como expressões do colonialismo, com o fito de excluí-las ou descartá-las; ou, muito menos, sugerir que não haja desigualdades e formas de dominação com base no gênero, seja em países ocidentais, seja em países não ocidentais, nem que elas não precisem ser criticadas e problematizadas. Implica, sim, tomar ciência das complexidades, aporias e contradições envolvidas nesses mesmos problemas. Complexidades, pois, como notam Lazreg e Abu-Lughod, o conhecimento acerca de como a dominação masculina se dá em outras “culturas” não é facilmente adquirido ou imediatamente acessado;5 contradições e aporias, pois qualquer discurso que se proponha a ser minimamente crítico e que ocupe a margem como o seu locus de enunciação encontrará essas dificuldades — e, quando se tenta simplesmente superá-las ou sublimá-las, traça-se, inevitavelmente, uma clara linha de continuidade entre a crítica feminista e a epistemologia colonialista. As linhas de continuidade entre o feminismo e a epistemologia colonial Essa “linha de continuidade” entre o feminismo e o colonialismo está presente no trabalho das três autoras comentadas acima. Okin e Phillips
“The split vision of the world that relegates non-Western women to a residual category, where fancy more than fact rules, is a significant error in feminist scholarship as a whole. It can be corrected only if and when Western feminists are ready and willing to think differently about the variety of modes of being female, including their own. They must recognize that knowledge of North African/Third World women is not given all at once. It is, like knowledge of women in Western societies, a process of sifting the true from the false and making visible that which remains submerged” (Lazreg, 1988: 100). 5
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parecem traçá-la de partida, ao tomar como foco de atenção de suas análises, como notado acima, o “multiculturalismo”. Stuart Hall, estudando o caso britânico, nota que a “questão multicultural” emerge, justamente, a partir de um problema concreto que a Inglaterra teve de enfrentar a partir, principalmente, da segunda metade do século XX, quando, efeito do desmantelamento do seu império colonial, houve um expressivo incremento na imigração de indivíduos provenientes de ex-colônias no Caribe e na Ásia: é o ingresso dos “filhos do império” em cena, daqueles que vinham das “franjas obscuras da commonwealth ” para “poluir a pequena Inglaterra”. A história, pois, é contada como se, antes dessa onda migratória, a GrãBretanha fosse “uma cultura homogênea e unificada” — como se houvesse uma “britanidade” prévia que, agora, tivesse de abrigar em si uma “jamaicanidade”, uma “paquistanidade”, uma “indianidade”. É aí que surge não só a questão de como “remodelar” a Inglaterra contemporânea, por meio de uma reinterpretação da sua vida nacional, pura e autêntica, à luz desses novos elementos, mas também o problema de como esses “grupos” deveriam ser tratados — que tipo de políticas públicas deveria ser destinadas a eles?, deveria haver alguma relativização das leis britânicas para esses indivíduos? etc. A emergência da “questão multicultural”, assim, é o sinal do deslocamento de uma daquelas “linhas abissais” a que se refere Boaventura de Sousa Santos: antes, ela separava a metrópole da colônia; agora, ela é traçada na própria metrópole, por força da presença do imigrante, criando “um território confuso, atravessado por uma linha abissal sinuosa” (Santos, 2007: 79.). Para fazer mais uma vez referência a Hall, tratar-se-ia da invasão do centro
pelas margens, fenômeno de inegável força transruptiva: “somente nesse contexto se pode compreender por que aquilo que ameaça se tornar o momento de fechamento global do Ocidente — a apoteose de sua missão universalizante global — constitui ao mesmo tempo o momento do descentramento, lento e prolongado do Ocidente” (Hall, 2003: 62). Dessa maneira, enquanto o objetivo de Nussbaum parece ser o de manter de pé um projeto de claras pretensões universalizantes — ignorando que a sua condição de existência é a necessária exclusão de um excesso que torna essa archia possível (Derrida, 1978: 62) —, em Phillips e Okin a questão de por que de as “minorias” com quem elas tanto se preocupam estarem ali — na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos — sequer é tratada com o cuidado suficiente. Okin, ademais, dá a impressão de reduzir todas as dificuldades e obstáculos a que imigrantes são submetidos à questão da “diferença cultural”, sendo paradigmático o trecho em que condena a poligamia — “an inescapable and barely tolerable institution in their African countries of origin, and an unbearable imposition in the French context” (Okin, 1999: 10) —, com base na circunstância de a falta de espaço privado e de a superpopulação de apartamentos em Paris levar à hostilidade, ao ressentimento e à violência nessas famílias. Tudo é descontado sob a rubrica da “cultura”, que, in casu, é encarnada e exoticizada por meio da “poligamia”. É evidente que a opressão e a dominação das mulheres, seja no “Ocidente” ou não, geralmente estão inscritas no que, à falta de palavra melhor, chamamos de “cultura” — e essas questões precisam ser enfrentadas e discutidas. Não poderíamos jamais descartar a preocupação de Okin de 88
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que diferenças culturais acabem por permitir e legitimar formas de dominação dos homens sobre as mulheres e, fazendo-o, pretender ainda nos chamar de “feministas”. Nesse passo, é imprescindível ressaltar que o que pretendemos apontar, com as ponderações feitas até aqui, é, tão somente, que quando a crítica feminista se debruça sobre a “cultura” sem ter o cuidado ou a preocupação de situar na discussão outras questões — como os efeitos concretos e simbólicos, evidentes e latentes do imperialismo europeu e do colonialismo; a assimetria profunda entre o centro e as periferias da sociedade mundial; a desigualdade nos padrões globais de distribuição de poder; ou, mesmo, a divisão internacional do trabalho —, ela acaba servindo para apagar e invisibilizar o simples fato da diferença entre o “Ocidente” e o “Resto” — e, com isso, a teoria política feminista não só perde, claramente, potencial crítico, como também corre o sério risco de ser arregimentada por discursos colonializantes, como exporemos a seguir. Com efeito, o potencial colonializador do feminismo — essas linhas de continuidade que podem ser identificadas e traçadas entre a teoria política feminista e a epistemologia colonial — vai bastante além das críticas aos trabalhos examinados até o momento, conforme demonstra o debate desenvolvido por autoras como Chandra Mohanty, Lila Abu-Lughod, Sara Suleri, Marnia Lazreg e Deniz Kandiyoti. Uma característica amiúde notada dessa continuidade é o poder explanatório privilegiado que é concedido à “religião” — como a muçulmana —, circunstância para a qual chamam atenção tanto Abu-Lughod quanto Lazreg, indicando que são bastante comuns narrativas feministas que pretendem explicar a
“opressão” das mulheres em países islâmicos a partir de uma única variável, que seria o Islã — ou o “IslamLand ”, como Abu-Lughod ironicamente coloca: What I discovered was a continuity between the traditional social science modes of apprehending North African and Middle Eastern societies rooted as they are in French colonial epistemology and academic women’s treatment from these societies. One continuity, for example, is expressed in the predominance of a “religious paradigm” that gives religion a privileged explanatory power. Most academic feminist practice takes place within this paradigm, thereby reproducing its presuppositions and reinforcing its dominant position (Lazreg, 1988: 83). Islam is not a place from which one can come. Yet ‘IslamLand’, as I would call this mythical place, annoints the call to arms for women with transparent goodness. IslamLand enables those who advocate for women’s right to accrue moral capital. (...) IslamLand is the problem and Islam is condensed in the figure of the victimized Muslim woman (Abu-Lughod, 2013: 69-70).
A parcialidade desses discursos, afirma Lazreg, torna-se patente se revertem os seus termos para propor que as mulheres da Europa ou da América do Norte devam ser estudadas como “mulheres cristãs”; e, não obstante, esse raciocínio é feito sem maiores constrangimentos em trabalhos que usam “mulheres muçulmanas” como categoria de análise, um rótulo que, simultaneamente, invisibiliza e estereotipa essas mulheres, já que ele “affirms what ought to be seen as problematical. Whether the ‘Islamic women’ are truly devout or whether the societies in which they live are 89
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theocracies are questions that the label glosses-over” (Lazreg, 1988: 88). A materialização dessa “opressão”, por sua vez, seria o véu, registrado ora como algo que oprime, encapsula e invisibiliza a subjetividade das mulheres, anulando-as completamente como indivíduos, ora, também, como algo de sensual e de misterioso, quase fetichizado, que esconde alguma coisa.
se: “mulheres oprimidas são facilmente ignoradas” — com efeito, algo como a “agência” dessas mulheres é também facilmente ignorado, quando alguém ativamente a apaga: e é isso que essa campanha, precisamente, faz. Seguindo na esteira de Abu-Lughod, seria possível falar desse “feminismo colonial” enquanto uma preocupação seletiva em torno de determinadas formas de opressão das mulheres, servindo a propósitos colonialistas, mas que não está, em momento algum, efetivamente comprometido com a questão do empoderamento dessas mulheres. A obsessão em torno do véu é precisamente isso — uma preocupação que, ademais, apaga completamente a pluralidade de significados e de variedades que essa vestimenta tem: “one cannot reduce the diverse situations and attitudes of millions of Muslim women to a single item of clothing. And we should not underestimate the ways that veiling has entered political contests across the world ” (Abu-Lughod, 2013: 40). Certamente, nem toda mulher que usa véu estará usando uma burqa, e nem toda mulher que usa uma burqa — ou um niqab, um hijab, um khimar, um chador — estará sendo obrigada ou compelida a fazê-lo — pelo menos não em um sentido distinto do que se pode dizer que uma mulher “ocidental” se sente compelida a pintar as unhas, a passar batom ou a depilar-se (Wolf, 1992). O problema, claro, estaria em assumir que a mulher ocidental é livre, autônoma e produz individualmente as suas próprias preferências, enquanto a mulher muçulmana é oprimida e subjugada pela sua própria cultura — isso até Phillips, como vimos, percebe claramente, e mesmo Nussbaum chegou a publicar artigos no New York Times, quando países na Europa consideravam editar leis banindo o uso de burqas,
Historically, of course, the veil has held an obsessive interest for many a writer. In 1829, for example, Charles Forster wrote Mohammetanism Unveiled, and Frantz Fanon, the revolutionary, wrote in 1967 about Algerian women under the caption: “Algeria Unveiled”. Even angry responses to this abusive imagery could not escape its attraction as when a Moroccan feminist titled her book: Beyond the Veil. The persistence of the veil as a symbol that essentially stands for women illustrates the difficulty researches have in dealing with a reality with which they are unfamiliar. It also reveals an attitude of mistrust. A viel is a hiding device; it arouses suspicion (Lazreg, 1988: 85).
Exemplos impressionantes desse poderoso simbolismo conferido ao véu são abundantes. Abu-Lughod, por exemplo, narra que na Argélia sob o domínio francês, o governo colonial organizava eventos públicos em que mulheres argelinas, vestidas com roupas tradicionais, eram solene e cerimoniosamente “desveladas” por mulheres francesas (Abu-Lughod, 2013: 33). A autora também se reporta a uma campanha publicitária veiculada pela ONG alemã International Human Rights, em 2011, na qual a imagem de uma mulher trajando uma burqa confundia-se com sacos de lixo azuis colocados ao fundo (Fakhraie, 2011). Na legenda, lia90
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demonstrando que o que estaria por trás de tais propostas seria, na verdade, intolerância religiosa e medo de muçulmanos: “what inspires fear and mistrust in Europe, clearly, is not covering per se, but Muslim covering” (Nussbaum, 2011b). O livro de Abu-Lughod, Do Muslim women need saving?, gira em torno do questionamento do que ela identifica como uma retórica salvacionista, de caráter flagrantemente colonializante, do Ocidente em relação às “Mulheres do Terceiro Mundo” — algo em que Spivak já havia agudamente reparado, em seu famoso Pode o subalterno falar?:
“algo” não raro é a própria “cultura” ou a “religião” da pessoa; segundo, porque isso implica que o objeto do resgate está sendo salvo para alguma coisa. Para o que aquelas mulheres da Argélia de 1958 estavam sendo salvas por suas sisters in struggle (Mohanty, 1991: 56.) francesas? Como devemos interpretar o programa beneficente de 2 milhões de dólares, custeados por empresas de cosméticos como L’Óreal, Revlon e Clariol, destinado a ensinar às mulheres afegãs os segredos da maquiagem, da moda e do hair styling, montado no Afeganistão após o Talibã haver perdido sua hegemonia naquele território (Ghafour, 2004.)? Tudo se passa como se, uma vez levantado o véu da opressão do Talibã, as mulheres afegãs pudessem, enfim, desfrutar plenamente de sua liberdade, dando vazão à sua verdadeira essência feminina. O resultado desse discurso de “salvação”, para AbuLughod, não é senão a autorização de “cruzadas morais” do Ocidente contra, nesse caso, a IslamLand:
Este é o momento para revelar que sati ou suttee, como o nome próprio do ritual de autoimolação de viúvas, celebra um erro gramatical por parte dos britânicos, assim como a nomenclatura “índio americano” celebra um erro factual por parte de Colombo. A palavra em várias línguas indianas é ‘a queima da sati ’ ou da boa esposa, que assim escapa da estagnação regressiva da viúva em brahmacrya. Isso exemplifica as sobredeterminações das questões de gênero-classe-raça referentes à situação. Pode talvez ser apreendido até mesmo quando é dito às claras: homens brancos, procurando salvar mulheres de pele escura de homens de pele escura, impõem sobre essas mulheres uma constrição ideológica ainda maior ao identificar, de forma absoluta, dentro da prática discursiva, o fato de ser boa esposa com a autoimolação na pira funerária do marido (Spivak, 2010:115).
This language insists that people around the world must learn how to be just and to measure up in an universal metric of humanity that is defined, in part, by aspirations for gender equality and women’s freedom. If the authority for this moral crusade to rescue women in other parts of the world, and usually from their cultures or traditions, depends on associating itself with the high ground of universal rights talk that has been forged in a range of international institutions, its emotional persuasiveness derives from the bedrock on which such advocates build (Lughod, 2013:81).
Abu-Lughod, então, intui que há algo de perverso nesse discurso de “salvação” de mulheres: primeiro, por isso pressupor que há alguém em posição de salvar outrem de alguma coisa — e, como apontamos acima, esse
O cenário se torna ainda mais alarmante quando vemos a crítica feminista sendo mobilizada juntamente ao conjunto retórico utilizado para 91
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justificar guerras a outros países. Em uma coletiva de imprensa feita em 11 de outubro de 2001,6 logo após os Estados Unidos haverem declarado guerra ao Afeganistão, no rescaldo dos ataques de 11 de setembro, o presidente George W. Bush articulou expressamente o argumento de que a guerra ao terror seria também uma guerra pelas “mulheres muçulmanas” — às quais ele candidamente se refere como “women of cover”: “I was struck by this: that in many cities, when Christian and Jewish women learn that Muslim women – women of cover – were afraid of going out of their homes alone, that they went shopping with them, that they showed true friendship and support – an act that shows the world the true nature of America”; esse relato “really touched my heart”, acrescenta posteriormente o presidente. Em agosto de 2010, quando o presidente Obama estava considerando diminuir o contingente de tropas norteamericanas no Afeganistão, a revista Time, por sua vez, veiculou uma edição cuja capa trazia o retrato de Bibi Aisha, uma jovem afegã cujo nariz havia sido mutilado pelo Talibã.7 No canto inferior direito, lia-se “what happens if we leave Afghanistan”, insinuando que as mulheres seriam as primeiras a sofrer com a ausência de tropas norte-americanas naquele país. Como nota Abu-Lughod, “unremarked was the fact that this act of mutilation had been carried out while U.S. and British troops were still present in Afghanisthan” (Abu-Lughod, 2013: 27). Nesse sentido, um ponto bastante importante construído por Kandiyoti,
referindo-se ao Iraque e ao Afeganistão no rescaldo do pós-conflito, é o de que aquilo que para o “Ocidente” parece ser “tradição”, é, muitas vezes, a manifestação de formas novas e muito mais brutais de subjugação do mais fraco, as quais se tornam possíveis em uma economia que gira em torno do crime, em que há uma total falta de segurança e em que os laços de confiança, parentesco e solidariedade em torno dos quais essas sociedades, em grande medida, rurais e tribais, encontravam-se estruturadas são testados até o limite pela pobreza, pelos conflitos entre grupos — e, muito obviamente, pela presença de exércitos estrangeiros em seu território, lutando uma guerra declarada por outras nações àqueles países (Kandiyoti, 2007b: 511). Conclusão Construímos um debate em torno das formas como a “cultura” tem atravessado a teoria política feminista usando, como exemplos, as obras de três importantes autoras, Martha Nussbaum, Anne Philips e Susan Okin. O nosso propósito, com isso, não é jamais o de desconsiderar as contribuições dessas autoras à teoria feminista, ou, pura e levianamente, tachá-las de “imperialistas” ou “ocidentalistas”. Pelo contrário, pretendemos, com essa análise, apenas ilustrar a hipótese de que a “cultura” seria um desses conceitos que, com mais força, viriam solicitar feminismo, colocando-o face a face com os seus próprios limites, com suas próprias contradições — que seriam os desafios compartilhados, aliás, por qualquer discurso que adote a margem como o
Disponível em: <http://www.johnstonsarchive.net/terrorism/bush911e.htm>. Acesso em 23/11/2014. Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/b/bc/Bibi_Aisha_Cover_of_Time.jpg>. Acesso em 23/11/2014. 6 7
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seu locus de enunciação e, com isso, se perceba constrito a valer-se de conceitos e categorias que, por si sós, são parte do motivo que o mantém à margem. Nesse ímpeto, o pensamento póscolonial se apresenta como um bom fio condutor da nossa argumentação, na medida em que nos auxilia a elaborar raciocínios e manobras críticas necessárias à explícita contestação e à incessante problematização das linhas e das fronteiras que traçamos para poder falar das coisas que estão ao nosso redor, para poder produzir um sentido do mundo. Não se deve ter a falsa impressão de que a teoria política feminista seja um corpo monolítico e homogêneo, e, muito menos, que haja uma oposição clara entre um “feminismo colonial” e um “feminismo pós-colonial”. Foi com isso em mente que tivemos o cuidado, neste trabalho, de: a) falar apenas em possíveis linhas de continuidade que podem ser identificadas ou traçadas entre a epistemologia colonialista e a teoria política feminista; e, também, de b) introduzir as interfaces entre o feminismo e o pós-colonialismo como o “encontro” ou o “choque” de duas margens — de duas formas diferentes de falar sobre diferenças, politizálas. Por isso, os efeitos do póscolonialismo sobre o feminismo podem ser interpretados como uma tentativa de “descentrar” este último — uma tentativa de desconstruir aquilo que a crítica feminista, muitas vezes por estratégia política, tentou construir: uma categoria abstrata, universal e homogênea chamada “As Mulheres”. O que se pretende apontar com isso é que há várias fronteiras sendo traçadas quando o feminismo mobiliza determinadas categorias a fim de problematizar a dominação das mulheres pelos homens — sendo a
própria categoria do “gênero”, registrada como um binarismo que opõe o feminino ao masculino, uma delas: “ feminist critique ought also to understand how the category of ‘women’, the subject of feminism, is produced and restrained by the very structures of power through which emancipation is sought” (Butler, 2006: 4). Se a crítica feita por Pateman em O contrato sexual está correta — se a exclusão das mulheres do contrato social pode ser interpretada não como mera casualidade, ou questão de uma universalidade ainda por completar-se, mas, sim, como uma maneira deliberada e proposital de manter formas específicas de desigualdade sob um discurso de igualdade universalizante, ele próprio sendo sustentado, precisamente, por aquilo que ele exclui —, isso significa que a dominação — ou arriscaria agora sugerir: a colonização? — das mulheres pelos homens é uma aporia da sociedade moderna, tanto quanto o próprio fenômeno colonial — e aqui se revela uma conexão bastante tangível entre esses dois pensamentos marginais, a crítica feminista e a pós-colonial. O fato de tratar-se de aporias acrescenta às ponderações feitas neste artigo uma nova complexidade: tanto o feminismo quanto o pós-colonialismo estão cercados pelas contradições, pelos paradoxos e pelos erros intelectuais que, fatalmente, acompanham o discurso de quem quer que se proponha a pensar a partir das margens, das franjas, dos limites, das fronteiras nas quais as diferenças, os conceitos, os binarismos que conferem sentido ao mundo são constituídos.8 Mesmo quando o póscolonialismo coloca para si a missão de desmantelar a centralidade do “Ocidente”, ele se vê impingido a mobilizar ideias, conceitos e categorias que fazem parte da maneira como o próprio “Ocidente” 93
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classifica e interpreta o mundo e que, por si sós, são parte da razão pela qual o “Resto” se encontra na posição de subalternidade — o próprio raciocínio marginal reproduz e perpetua as causas da sua marginalidade. É essa a crítica feita por Paul Gilroy à aderência à ideia de “nacionalidade”, ou de “identidade nacional”, que ele identifica em movimentos de resistência negros como os Panteras Negras ou o Pan-Africanismo e que o leva a introduzir o conceito de “Black Atlantic”, em grande medida, como uma leitura alternativa da modernidade, uma contraepistemologia que nos permitiria chegar a categorias de pensamento mais adequadas à compreensão das formas de resistência e de acomodação da “cultura” negra — daí o título do primeiro capítulo do seu livro: The Black Atlantic as a Counterculture of Modernity. É parecida, também, a crítica desenvolvida por Sara Suleri aos movimentos feministas negros e à constrição que lhes parece impingir o próprio conceito de “raça”, o que a leva a, controversamente, afirmar que “its feminism is necessarily skin deep in that the pigment of its imagination cannot break of a strictly biological reading of race” (Suleri, 1992: 765). É essa, igualmente, a crítica feita pela teoria queer ao feminismo e à sua recepção, muitas vezes inquestionada, da categoria do “gênero” e dos binarismos que ele implica, o que motiva Butler a argumentar que
that it itself constructs has the ironic consequence that feminist goals risk failure by refusing to take account of the constitutive powers of their own representational claims. (...) Perhaps, paradoxically, “representation” will be shown to make sense for feminism only when the subject of “women” is nowhere presumed (Butler, 2006: 6-8).
Não há saída possível — daí a a/ poria; “there is no position outside this field, but only a critical genealogy of its own legitimating practices” (Butler, 2006: 7). Talvez por isso, também, chegue Spivak à conclusão da impraticabilidade de fala do subalterno: “não há nenhum espaço a partir do qual o sujeito subalterno sexuado possa falar” (Spivak, 2010: 121) — e, na impossibilidade de o intelectual representá-lo (no sentido de vertreten), já que isso implicaria uma apropriação do Outro por assimilação, Spivak acata a sugestão de Derrida, o qual, em vez de invocar que “se deixe os outros falarem por si mesmos”, “faz um ‘apelo’ ou ‘chamado’ ao ‘quase outro’ (tout-autre, em oposição a um outro autoconsolidado), para ‘tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós’” (p. 83). O que a crítica feminista, assim como a pós-colonialista, pode fazer com mais coerência é, justamente, tentar tatear as aporias que envolvem os discursos, as práticas e as categorias analíticas em que o mundo, as sociedades e elas próprias estão envoltas. Quando nos deparamos com os excessos que a archia excluiu —
the suggestion that feminism can seek wider representation for a subject
“(...) the excesses and the limitations that marginal discourses must inevitably accrue, even as they seek to map the ultimate obsolescence of the dichotomy between margin and center. For until the participants in marginal discourses learn how best to critique the intellectual errors that inebitably accompany the provisional discursivity of the margin, the monolithic and untheorized identity of the center will always be on them” (Suleri, 1992: 757). 8
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archia que esses discursos marginais pretendem criticar —, ela própria vem a ser solicitada, integralmente abalada — e aí, sim, lembramo-nos das fundações contingentes da archia, bem como das linhas, dos limites, das fronteiras — dos juízos — que foram um dia traçados e tomados no passado, e que, uma vez traçados, uma vez tomados, sustentam-
na, demarcando a diferença entre o que é possível e o que é impossível, entre o pensável e o impensável, entre o que faz sentido e o que não faz sentido; recuperamos, de alguma forma, aquela imagem que estava cunhada na superfície da moeda, e podemos considerá-la enfim como moeda, não apenas como metal.
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OCUPAR OU DESOCUPAR? UMA REFLEXÃO SOBRE PERSPECTIVAS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS1 Alexandre Marques da Fonsecai Resumo A ciência “ocidental” construiu o privilégio de “deslocalizar” seu pensamento para fazê-lo passar por universal, objetivo e neutro. Neste artigo, parte-se do pressuposto contrário, de que não existe pensamento que não esteja ligado a condições históricas e sociais particulares. Busca-se, dessa forma, analisar criticamente a manutenção do paradigma científico cartesiano nas relações internacionais (RI) e desmistificar a persistência desse “Norte” epistemológico e político na disciplina. Postula-se, por fim, a necessidade de uma leitura hermenêutica sobre aquela que seria uma política descritiva do mundo – dos “vencedores” –, ao mesmo tempo que se problematiza a intenção de “dar voz” aos subalternos. Palavras chave: relações internacionais; pensamento descolonial; eurocentrismo; hermenêutica; movimento Occupy.
TO OCCUPY OR DISOCCUPY? A REFLECTION ON PERSPECTIVES IN INTERNATIONAL RELATIONS Abstract: Western science has constructed the privilege to “delocalize” its own thought in order to render it supposedly universal, objective and neutral. This article takes the opposite assumption, i.e., it assumes that there is no thought which is not connected to particular historical and social conditions. The article aims to critically analyze the persistence of this Cartesian scientific paradigm in International Relations (IR) and tries to demystify the persistence of this epistemological and political guiding principle in the discipline. Finally, it postulates the need for a hermeneutic reading about what might constitute a descriptive version of the World, from the “winners” point of view. It also critically questions the intention to “give voice” to the subalterns. Keywords International Relations; Decolonial Thinking; Eurocentrism; Hermeneutics; Occupy movement
Alexandre Marques da Fonseca é graduado em Línguas e Relações Internacionais (FL-UP), Mestrado 1º ano em Línguas Estrangeiras Aplicadas (Univ. Rouen) e 2º ano História do Pensamento Político (ENS de Lyon); Doutorando do CES - Universidade de Coimbra. E-mail alexandremarquesfonseca@gmail.com. i
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Introdução
48) e da emergência de uma classe “transnacional capitalista” (Self, 2014),2 de um novo socialismo para os ricos e um capitalismo mais cruel para os pobres3 (Stiglitz, 2009; Jones, 2014), um mercado que não é autorregulado nem “livre” (Graeber, 2011: 363; Triffin, 1978: 2), que respostas deram ou devem dar as relações internacionais (RI) e as ciências sociais? Se o movimento Occupy falhou, para que ainda procurar “ocupar” essas disciplinas? Ou será melhor procurar “desocupá-las”, isto é, “aprender a desaprender” (Mignani, 2013)? Partindo da premissa de que esse movimento se constitui “não por exigências específicas” mas como uma “visão do mundo” (Bailey, 2012: 139), pretendo fazer deste um estudo fundamentalmente epistemológico de repensar as raízes, as perspectivas e os objetivos, bem como os territórios de uma disciplina que se tornou – ou foi desde o início – hegemônica. O ponto de partida desse questionamento é a edição n. 5 do Journal of Critical Globalisation Studies (2012), devotada ao tema “Imperialism, Finance, #Occupy”. É daí que começo para logo em seguida me distanciar
“A perspectiva é a essência da escrita.” (Boaventura de Sousa Santos) O movimento Occupy emergiu em 2011, durante o “ano de sonhar perigosamente” (Žižek, 2012b) ou o “ano da raiva” (Vrasti, 2012: 124). Depois da chamada Primavera Árabe, no Médio Oriente, e dos Indignados espanhóis, o movimento se tornou global em 15 de outubro, quando “indignados” de várias localizações se juntaram em assembleia pelo mundo afora. Passados três anos, muitas questões foram levantadas e, talvez, deixadas sem resposta. Algumas foram silenciadas ou não chegaram a ser feitas, e outras ainda revelaram o que se pode chamar de “corrupto simulacro de democracia” (Kiersey, 2012: 159). No entanto, algo é certo: esse movimento, em suas variadas encarnações, mudou o diálogo político e providenciou-nos com a “tinta vermelha” da verdade (Žižek, 2013). Perante novas (?) questões de redistribuição de riqueza, do papel do Estado em uma economia globalizada e “financeirizada”, do “novo constitucionalismo” (Gill, 2002: 47-
O autor gostaria de agradecer os comentários e a revisão de Marta Araújo e de Igor Fonseca, bem como dos dois pareceristas anônimos deste artigo. 2 Tal expressão se apoia em Self (2014), que define essa classe como tendo “connections to each other [...] more significant than their ties to their home nations and governments. Forums such as [the one] at Davos are where these hyper-elites [...] become a class without a country: the new global leadership. This bloc is composed of the transnational corporations and financial institutions, the elites that manage the supranational economic planning agencies, major forces in the dominant political parties, media conglomerates and technocratic elites and state managers [...] but the core membership is businessmen […]. What makes this class different from the traditional ruling class in previous epochs is that the interests of its members are [...] globally linked, rather than exclusively local and national in origin”. 3 Essa distinção se refere, nesse caso, exclusivamente à intervenção do poder estatal e à utilização do dinheiro público, em particular depois da crise financeira de 2008, para “salvar” bancos privados, e à aplicação de medidas de austeridade para a maioria das populações. Por exemplo, como afirma Owen Jones (2014), na Grã-Bretanha, “social security for the poor is shredded, stripped away, made ever more conditional. But welfare for large corporations and wealthy individuals is doled out like never before”. 1
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do movimento Occupy.4 Um texto em particular merece atenção – e é nele que tem início o distanciamento do movimento Occupy. Em “Occupy Wall Street? Position-blindness in the new leftist revolution”, Gagyi afirma que, “ao olhar para o movimento OWS de outra posição – a partir do leste da Europa –, poderia parecer que o movimento tem falado “em nosso nome, mas não necessariamente por nós” (2012: 146, grifo meu).5 Se “somos todos 99%”,6 será que existem alguns que são mais 99% que outros? Será que a esquerda europeia, eurocentrada ou eurocêntrica, pode, por sua “position-blindness”, ser imperialista?7 Se apenas o centro, mesmo que crítico, tem legitimidade para falar de e em nome de, que consequências advêm para aquela que deveria ser a “disciplina global por excelência”, as RI (LaMonica, 2011: 239)? O artigo está dividido em três partes: na primeira, são feitas algumas clarificações posicionais com base na ideia de que teoria e prática são inseparáveis; em seguida, é estudada a permanência de um norte fundador na disciplina de RI; por fim, é apresentada uma breve reflexão sobre o papel do
“investigador”, bem como dois casos de pensadores do chamado “centro metropolitano” que, embora “críticos”, podem efetivamente silenciar uma perspectiva descolonizadora. Algumas clarificações necessárias
Localizando o pensamento Nenhum pensamento nasce no vácuo, por isso começo este artigo como muitos militantes e intelectuais descoloniais e anticoloniais: com uma “localização” do meu próprio pensamento. Isso porque, por muito tempo, o “cientista” foi agraciado com o privilégio da “desterritorialização” de seu pensamento – aquilo a que CastroGómez (2005) chamou de “hybris do ponto zero”. Se o pensamento científico fosse desterritorializado, poderia também ser, por consequência, objetivo, neutro e desinteressado, sendo o cientista o intérprete privilegiado dessa linguagem “imparcial”. Foi nessa “atmosfera teórica” que a disciplina de relações internacionais (RI) nasceu e na qual ainda parece imbuído um ponto ao qual retornarei. Ao localizar meu pensamento, aproveito como exemplo – não só
A referência ao movimento Occupy (ou a outros, como dos Indignados) serve aqui a dois propósitos que, embora diferentes, se conjugam: o primeiro é a ligação com o próprio percurso intelectual que percorri – desde uma perspectiva crítica “eurocentrada” à descolonial; o segundo é procurar perceber de que forma esses diferentes entendimentos enviesaram minha visão e também a visão das relações internacionais. Essa compreensão me parece fundamental para começar a “desocupar” as relações internacionais. 5 No original: “[...] when viewed from another position – such as that of Eastern European – it would seem that OWS has been speaking in our name, but not necessarily for us” (grifo do original). Todas as traduções para o português são de minha responsabilidade. 6 Um dos principais slogans e, ao mesmo tempo, reivindicações do movimento Occupy que Gagyi, entre outros, problematizaram. De forma muito curta, essa autodesignação incorre em vícios similares a outras designações “superabrangentes”, como a de “povo”. 7 Por “imperialista” entende-se, nesse contexto, uma atitude intelectual e simbólica – que decorre e simultaneamente (re)produz uma dominação econômica e social – sobretudo da parte dos intelectuais hegemônicos (localizados majoritariamente na Europa ou nos Estados Unidos) que, acreditando ou querendo fazer acreditar que falam pelo mundo inteiro, ignoram e apagam voluntariamente outros povos, teorias, modos de saber ou experiências (Maldonado-Torres, 2004: 32). 4
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pelas semelhanças mas também pelas diferenças – a apresentação que Bouteldja (2014b), militante do Mouvement des Indigènes de la République (MIR), faz de si própria:
passado colonial não é (suficientemente) problematizado (Gomes & Meneses, 2011: 3 e 8; Araújo & Maeso, 2010: 259). Contudo – e é a razão pela qual frisei o “europeu do Sul” –, também vivo em um país que, em quarenta anos, foi “resgatado” pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em três ocasiões diferentes, um país que vive, em sua maioria, ignorante dessas mesmas “ajudas estruturais” do FMI ao Sul global, que destruíram e arrasaram vidas e estruturas sociais em nome de uma dívida que é, como se sabe, impagável. É dessa posição e parcialidade que olho e olhei, que penso e pensei o “global”, com todas as vantagens e limites, pois, se Deleuze (s.d.) dizia que existe um “Terceiro Mundo” no “Primeiro Mundo” (e vice-versa), em muitos de nós também convive um Norte no Sul e um Sul no Norte.9
Faço parte, simultaneamente, do Sul e do Norte. Sou uma indigène da República Francesa [e] um sujeito colonial. Faço parte do “Sul do Norte”, o que faz de mim uma branca, em minha relação com o Sul, porque me beneficio, direta e indiretamente, da exploração do Norte pelo Sul. Mas […] sou igualmente uma “não branca” em relação ao “corpo legítimo” da nação francesa, isto é, àqueles que são europeus e cristãos [...]. O que faz de mim uma “branca” é o fato de viver em um país imperialista, e o que faz de mim uma “não branca” é viver em um país estruturalmente racista.
Há aí diferenças claras. A principal é que, ao contrário de Bouteldja, posso escolher “posicionar-me”, e o pensamento dessa ativista e intelectual será sempre visto como “específico” e “comprometido”. Essa constitui uma grande diferença que (se) reflete no argumento estruturante deste artigo.8 Sou também, em uma expressão odiosa, um “português português”, homem, branco e europeu (do Sul), o que quer dizer que não vivo a experiência direta do racismo e do sexismo estruturais. Ao mesmo tempo, tiro partido, como Bouteldja, da “exploração do Norte pelo Sul” e nasci em um país em que o
Conceptualização teórica Antes de procurar responder à questão lançada na introdução – se as RI são realmente a disciplina global (e plural) que deveriam ser –, talvez seja necessário clarificar algumas posições de entrada, de modo que o argumento se vá clarificando e construindo. Uma das consequências do ano de 2011 foi fazer reemergir a “intuição” de Zinn (1997): “Nixon e Brezhnev têm muito mais em comum um com o outro do que temos com Nixon […]. É como os partidos Republicano e Democrata que
Agradeço a reformulação deste parágrafo a Marta Araújo. Essas expressões de autoanálise, embora pareçam afastar o texto de uma “análise científica da realidade”, como referiu um dos pareceristas, são aqui apresentadas exatamente para reforçar um dos pontos principais da teoria descolonial (e deste artigo): o de que não existe uma teoria ou um teórico sem “territorialidade”, sem uma experiência de vida particular e única, que dificilmente pode ser universalizada, como se constrói o discurso científico, a partir do Discurso do método, de Descartes. As tensões, hesitações, dúvidas ou interesses devem ser transparentes e tão expostas quanto possível. 8 9
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clamam que vai fazer uma diferença enorme se um ou outro ganhar, mas no fundo são todos o mesmo. Basicamente, somos nós contra eles.”10 O que Zinn clama é que não existe um discurso que seja “universal”. O que existem são “posições” e movimentos fluidos e em constante mudança, é certo, mas também localizados. Se talvez seja claro quem são “eles”, é com a mesma facilidade que definimos o “nós”, os 99%? Vivemos todos em condições similares de opressão? Quantos de “nós” se identificam ou pretenderiam ser parte de “eles”? O que é relevante para o “eu” o é também para alguém do outro lado do mundo? São talvez demasiadas e complexas perguntas, portanto definamos o “objeto” em questão. O objeto em análise são os “eles” metafóricos de que Zinn fala. Em vez de estudar o “subalterno”, reconhecendo não só os problemas dessa denominação mas também do próprio ato, pretende-se estudar, criticar e denunciar as estruturas de poder globais (Mato, 2000), nomeadamente as que se refletem nas RI. Evita-se – ou procura-se evitar –, assim, falar pelo “outro”, alertados, entre outros, por Spivak (1988) do papel nefasto de intelectuais europeus que, embora críticos, falam por e sobre esse “outro” subalternizado. Precisamente por isso e localizando(-me) – física e, muitas vezes, intelectualmente – na Europa, como evitar o papel de “esquerda branca [...], intelectuais do Sul e do Norte que
criticam o colonialismo, sem abrir mão das categorias europeias”? (Grosfoguel, 2012 apud Rosa, 2014: 52). Essa é a primeira denúncia a fazer, seguindo o conselho de Grosfoguel. É necessário reconhecer que “o colonialismo enquanto relação socioeconômica sobreviveu ao colonialismo enquanto relação política” (Santos, 2004 apud Pureza & Cravo, 2005: 9). Contudo, não será necessário igualmente evitar categorizações e prescrições “eurocêntricas” que mantêm intacto um privilégio epistêmico? Simplificando a questão, será que a solução para todos os problemas são “democracia”, “mercado livre” e uma “sociedade civil forte”? Ou, conforme pergunta Mignolo (2009: 20), pode-se argumentar que existem “corpos” ou “regiões” que precisam de ser guiados por “corpos” ou “regiões” desenvolvidas que chegaram lá primeiro e sabem como fazê-lo. Como um liberal honesto, reconhecer-se-ia que não se quer “impor” o conhecimento e experiência, mas “trabalhar com os locais”. O problema é: que agenda vai ser implementada: a sua ou a deles?11
Essa é uma reflexão essencial para qualquer militante comprometido, um “liberal honesto”, membro dos 99%, mas também para quem estuda e investiga as RI. Então, procedendo novamente de forma negativa, rejeita-se a ideia
No original: “Nixon and Brezhnev have much more in common with one another than we have with Nixon […]. It’s like the Republican and Democratic parties, who claim that it’s going to make a terrible difference if one or the other wins, yet they are all the same. Basically, it is us against them.” 11 No original: “You can […] argue that there are “bodies” and “regions” in need of guidance from developed “bodies” and “regions” that got there first and know how to do it. As an honest liberal, you would recognize that you do not want to “impose” your knowledge and experience but to “work with the locals”. The problem is, what agenda will be implemented, yours or theirs?” 10
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desse fato; os não ocidentais nunca esquecem”12 (1997: 51, grifo meu).13 Finalmente, ligado a essas duas “verdades” ocidentais, entende-se a história não como uma “sequência de eventos, mas como um modo holístico de pensar o mundo” (Cox, 2010: 5) e, sobretudo, como objeto de disputa, de revisões e de revisionismos políticos. A bem dizer, uma história “factual” e “objetiva” não poderia deixar de considerar o “Ocidente” o único agente no mundo com o poder e a capacidade de manter todo o globo sob sua alçada, não deixando nenhuma margem de manobra aos “outros”. Nesse ponto, torna-se essencial recapitular o conceito de “violência simbólica”, um “processo de submissão pelo qual os dominados percebem a hierarquia social como legítima e natural” (Kibler, 2010) ou, como Bourdieu (1991: 167) refere, citando Weber, “a domesticação dos dominados”14. Numerosos exemplos poderiam ser citados aqui,15 mas o que importa frisar são as continuidades históricas imperialistas entre o pensamento e a visão ocidental dos “outros”. Foi esse pensamento que criou e reforça hierarquias civilizacionais, distinções binárias, “o orientalismo, distingui[u] o sul da Europa de seu centro (Hegel) e remapeou o mundo em
de que existe um “Ocidente” e que ele é não um lugar, mas sim um projeto político (Glissant apud Trouillot, 2011: 83), com todos os aparelhos teóricos e ideológicos próprios (“modernidade”, “progresso”, entre outros), um projeto político forjado a armas, aniquilação e violência, mas também fruto de uma “dominação simbólica” (Kibler, 2010), à qual retornaremos. Procurando oferecer uma tentativa de resposta ao motivo da dominação do Ocidente, nego duas “verdades” do discurso ocidental: a primeira é que a expansão ocidental decorreu de sua superioridade “natural” e imanente, e não de uma violência tanto física quanto simbólica; a segunda é que a pobreza e o “subdesenvolvimento” são condições também “naturais” do “não ocidental” (Jones, 2006a) ou “verdade” igualmente perniciosa, fruto de “erros” culturais ou da “mentalidade” desses povos (Trouillot, 2010). Recorro precisamente a um dos maiores expoentes do “ocidentalismo”, ideólogo do “choque de civilizações”, Samuel Huntington: “O Ocidente conquistou o mundo não pela superioridade de suas ideias ou valores ou religião (aos quais poucos membros das outras civilizações se converteram), mas graças à sua superioridade em aplicar violência organizada. Os ocidentais se esquecem frequentemente
No original: “The West won the world not by the superiority of its ideas or values or religion (to which few members of other civilizations were converted) but rather by its superiority in applying organized violence. Westerners often forget this fact; non-Westerners never do.” 13 Do outro lado do espectro geopolítico, Fanon (2002: 86) não diz outra coisa quando se refere à colonização física e mental das potências ocidentais: “Chaque statue, celle de Faidherbe ou de Lyautey, de Bugeaud ou du sergent Blandan, tous ces conquistadors juchés sur le sol colonial n’arrêtent pas de signifier une seule et même chose: ‘Nous sommes ici par la force des baïonnettes [...]’.” 14 Não que essa dominação – “material ou simbólica” – não engendre as próprias formas de resistência, como o próprio Bourdieu reconhece (Wacquant, 1989: 36). 15 Embora seja difícil “provar” esse ponto de forma conclusiva, pensemos, por exemplo, na visão de Hegel sobre o papel da África como nunca tendo entrado na história e uma declaração substantivamente similar do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy em seu discurso em Dakar (Purtschert, 2010). 12
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primeiro, segundo e terceiro” (Mignolo, 2009: 3). O círculo está completo; a ligação entre poder, violência física e simbólica, riqueza e conhecimento torna-se mais evidente. Partamos então para ocupar – ou talvez desocupar? – o “edifício” das RI.
englobante e totalizante que terminasse em um dos muitos “neo” e “ismos” que compõem a e pululam na disciplina, o que se procura aqui é, como Chakrabarti (2007: 18), combinar a tradição analítica que permita “desmistificar a ideologia [das RI] para produzir uma crítica que procure uma ordem mais justa”, realizando, concomitantemente, uma leitura hermenêutica da própria disciplina ao tomar “seu pensamento [como] intimamente ligado a lugares e a formas particulares de vida”. Essa combinação nos permite olhar para as RI como uma disciplina não natural nem nascida em um vazio, mas sim como a “manifestação histórica de visões em conflito, cuja unidade e identidade são o produto da vitória nesse conflito” (Smith, 1995: 3). Aliás, embora a “data de nascimento” oficial das RI seja o período que procedeu à Primeira Guerra, seria ingênuo considerar que o “internacional” já não estava na mente de muitos teóricos e pensadores que são, agora, parte do cânone filosófico e político (Shilliam, 2009: 6 e 9).
A primeira ocupação: o edifício das RI Sobre que fundações e de que substância foram as relações internacionais (RI) construídas e materializadas? Que papel tem seu contexto fundador em sua(s) teoria(s) dominante(s)? Como influiu sua Weltanschauung e seus paradigmas no status quo e vice-versa? Que espaço existiu ou pode existir para outras visões? Que mudanças – se algumas – existiram desde sua concepção como disciplina autônoma nos Estados Unidos no final da Primeira Guerra Mundial (Smith, 1995: 14)? A [disciplina] relações internacionais foi formalmente estabelecida após a Primeira Guerra Mundial […], no auge do imperialismo, quando os poderes europeus ocupavam e controlavam vastas áreas do mundo por meio de controle colonial direto. Nessa época e ao longo dos séculos anteriores, a partir dos quais as relações internacionais traçam sua herança, um conjunto profundo de concepções ideológicas e racistas era tido pelos colonizadores sobre os povos, terras e histórias colonizadas. (Jones, 2004: 4).16
O “norte” que guia as RI Se a proposição de que as RI nasceram em um contexto local norte-americano e em um período de dominação geopolítica nascente dos Estados Unidos, é minimamente consensual que a afirmação de que as RI continuam sendo dominadas por essa visão particular pode já não ser tão consensual. Aliás, a própria expressão “particular” pode ser posta em causa e
Mais do que preconizar uma teoria
No original: “IR was formally established in the aftermath of the First World War [...] at the height of imperialism, when the European powers were occupying and controlling vast areas of the world through direct colonial rule. At this time and during the preceding centuries from which IR draws its heritage, a whole set of profoundly ideological and racist notions were held by the colonizers about the colonized peoples, lands and histories.” 16
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defender-se, em vez disso, uma forma de “universalismo anglo-saxônico”17 ou afirmar até que as RI são a disciplina global (e, por isso, plural) por excelência. Essa não poderá ser a posição defendida neste texto. Parto, por isso, da mesma pergunta, aparentemente simples, descrita por Stuenkel (2012):
Mata (2014: 54), “enquanto a coleta e a aplicação de dados acontecem nas colônias, as teorizações são privilégio das metrópoles”?19 Por que é que, como afirma categoricamente Trouillot (1997), a “teoria é feita no centro; a cor vem das margens”? As ciências sociais e humanidades têm ainda de teorizar a experiência do mundo fora do Atlântico Norte […] a maioria dos humanistas vê a experiência histórica da maioria da humanidade como um avatar de algo cuja verdadeira face pode ser vista apenas naquilo que chamamos hoje de Ocidente. A teoria é feita no centro; a cor vem das margens. (TROUILLOT, 1997, grifo meu). 20
Qual foi a última vez que um teórico não americano de uma instituição não americana formulou uma ideia que mudou a forma como vemos o mundo? (perguntou um participante numa conferência dos Think Tanks de Política Externa do G20). Existe alguma ideia não americana que tenha tido um verdadeiro impacto no pensamento global […], como o choque de civilizações de Samuel Huntington, o fim da história de Fukuyama ou o soft power de Joseph Nye?18
Obviamente o domínio militar, cultural e político (e também econômico) ainda é do “Norte”, nomeadamente dos Estados Unidos. No entanto, continua sendo também uma hegemonia epistemológica fundamental que faz que a maioria dos temas e das perspectivas venha “americanizada” mesmo quando não está necessariamente ligada a esse país21 (Stuenkel, 2012):
Partilho assim de uma intuição semelhante à de Stuenkel, a de que “o campo das relações internacionais é dominado, como poucas outras disciplinas, por pensadores estadounidenses” (Stuenkel, 2012; Mata, 2014: 32). Antes de interrogar sobre que possíveis consequências advêm do “local” onde a teoria é feita, é importante procurar perceber o porquê. Por que é que, como refere
Os brasileiros que queiram estudar a China ou a Índia ainda são obrigados a ler livros estado-unidenses […] sobre como pensar sobre esses
Tenho consciência da natureza paradoxal desse termo. No original: “When was the last time a non-American thinker based at a non-American institution came up with an idea that changed the way we see the world? (asked a participant at the G20 Foreign Policy Think Tanks Summit). Is there any non-American idea that had a true impact on global thinking […], such as Samuel Huntington’s Clash of Civilization, Fukuyama’s End of History, or Joseph Nye’s Soft Power?” 19 Cf. também Mignolo (2009: 1 e 9). 20 No original: “[T]he social sciences and the humanities have yet to theorize the experience of the world outside the North Atlantic […] most humanists see the historical experience of the majority of humankind only as an avatar of something of which the true face can be seen only in what we now call the West. Theory is done at the center; color comes from the margins.” 21 Paradoxalmente ou não, grande parte deste artigo foi realizada recorrendo à consulta de autores (homens) anglo-saxônicos, enfatizando ainda mais o argumento aqui exposto. 17
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lugares. O mesmo é verdade em tópicos globais como terrorismo ou intervenção humanitária. Enquanto os acadêmicos sobre a China, Índia ou terrorismo estão localizados nos Estados Unidos, suas análises são inevitavelmente afetadas por sua localização geográfica e, em consequência, por interesses estadounidenses. 22
Enquanto acadêmicos estadounidenses possam acreditar que a proliferação nuclear, o terrorismo ou o crescimento da China são os assuntos mais importantes do mundo, [acadêmicos] africanos podem se preocupar mais com doenças infecciosas, redução da pobreza ou degradação ambiental. No entanto, esses tópicos parecerão sempre como não atrativos para os editores e pareceristas da Foreign Affairs ou da Foreign Policy. (Stuenkel, 2012). 25
Se os investigadores são “inevitavelmente afetados por sua localização”, majoritariamente nos Estados Unidos, será possível negar que as RI estão presas “em um casaco de forças não apenas vestefaliano 23 mas ‘ocidentófilo’” e imbuídas na pressuposição de que a “agência e o poder ocidental no mundo são a única explicação”24 (Hobson, 2007: 93)? Ao mesmo tempo, tudo aquilo que possa interferir na narrativa “ocidentófila” triunfante parece eliminado sob o manto de expressões como “relevância global”, “grandes ideias” ou “interesse científico”:
Fazendo usado das palavras de Stuenkel, recorremos a Mata (2014: 34) para afirmar que ver temas como “‘cooperação’ e ‘desenvolvimento’ [como] ‘específicos’ da área de estudos africanos é revelar uma ‘desorientação ideológica’ que [só] a mentalidade imperial explicaria”. Será que é disso que se trata? De uma “arrogância epistêmica” fundacional? Se substituirmos “relevância global” por “relevância hegemônica”, o efeito será o mesmo? Ou será que, como afirmou Fanon (2002: 80), “para o colonizado, a objetividade é sempre dirigida contra ele”? Ao mesmo tempo, um contramovimento tem emergido nas últimas décadas. No âmbito acadêmico, a denúncia da ocultação da “geo-história e da localização biográfica” (Mignolo,
Os jornais científicos líderes no campo das relações internacionais escolhem artigos de “relevância global”. Ainda assim, o que é relevante e o que não é difere muito consoante a quem se pergunta.
No original: “Brazilians who seek to study China or India still need to read US-American books [...] about how to think about these places. The same is true about global topics such as terrorism and humanitarian intervention. While the leading India, China or terrorism scholars are no doubt based in the United States, their analyses are inevitably affected by their geographic location and, as a consequence, by US American interests.” 23 No original: “Westphilian straitjacket.” 24 No original: “The only game in town.” 25 No original: “The world’s leading academic journals in the field of international relations choose articles on topics of “global relevance”. Yet what is relevant and what is not greatly differs on whom you ask. While US-American scholars may believe nuclear proliferation, terrorism and the rise of China are the world’s most important issues, Africans may care more about infectious diseases, poverty reduction and environmental degradation. Yet these topics will always certainly seem unappealing to the editors and reviewers of Foreign Affairs or Foreign Policy.” 22
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2009: 2) das RI (e das ciências em geral) tem chegado lentamente das margens ao centro. Para Bourdieu e Wacquant (1999: 41), essa dissimulação é um processo de “neutralização do contexto histórico” da emergência de disciplinas ou problemáticas que se tornam efetivamente universais.26 Não se pense, todavia, que esse deslocamento de um contexto histórico particular para um pretenso universalismo ocorre sem a força, o capital financeiro e a vontade de uma bateria de instituições, universidades e “think tanks” (Bourdieu e Wacquant, 1999: 42 e 46; Suárez-Krabbe, 2011: 195-196; Mato, 2000: 489). Em contraponto a essa maior percepção dos poderes hegemônicos que se conjugam e se servem da academia, emerge, na vida política internacional, um movimento dialético semelhante. Isto é, à medida que as chamadas “potências emergentes” ganham espaço político, econômico e geográfico no cenário internacional, mais e mais a “comunidade internacional” se torna privilégio elocutório dos presidentes ocidentais, e as intervenções militares se tornam mais repetidas e unilaterais. Tudo enquanto a “realidade” mostra que “nenhum desafio global pode ser resolvido apenas pelos Estados Unidos”
(Stuenkel, 2012). Tendo em atenção esses dois movimentos, postulo, como Cox (2003: 133), que “a teoria segue a realidade e também precede e molda a realidade”. Assim, separar a academia, lugar pretensamente livre de valores e apolítico, e a “realidade”, em que teria lugar a disputa de visões do mundo, revela-se um gesto tão desnecessário quanto enganador. Cabe então perguntar “onde se podem encontrar os interesses dos países em desenvolvimento27 n(o) cânone” (Smith, 1995: 17). O autor conclui então que as RI continuam a se formar de um ponto de vista “ocidental branco, masculino [e] conservador” que falseia o debate, transformando-o em um debate “ocidental ou até norte-americano” (Smith, 1995: 24). Compreende-se bem que não se trata de “boas ideias”, mas sim de legitimidade hegemônica: quem pode dizer o que sobre quem? Quem pode definir o que e como se estuda? Segundo Owen Jones “Stephen Krasner capturou a essência do estado atual da teoria sobre relações internacionais nos Estados Unidos: ‘Estou certo de que as pessoas em Luxemburgo têm boas ideias’, disse ele, ‘[…] mas quem se importa? Luxemburgo não é hegemônico’” (2004: 19).28
Um exemplo interessante é a emergência do “direito internacional”, por meio das obras de Hugo Grotius, tido como um dos ‘pais fundadores’ da disciplina. O que é ofuscado é o fato de Grotius provavelmente ter agido “como conselheiro [da ‘Dutch East India Company’]” contra os juristas e interesses portugueses. Além disso, usou igualmente como precedentes legais a lei costumária marítima asiática (Liu, 2004: 28). Esse é um dos exemplos paradigmáticos que demonstra como “questões supostamente filosóficas, debatidas como universais por toda a Europa e não só, originaram-se [...] em particularidades (e conflitos) históricos próprios de um universo singular” (Bourdieu & Wacquant, 1999: 41). 27 Essa expressão também se constitui problemática. 28 No original: “Stephen Krasner [...] captured the essence of the present state of theorizing about International Relations in the United States: ‘Sure people in Luxemburg have good ideas,’ he said, ‘[…] but who gives a damn? Luxemburg ain’t hegemonic’.” 26
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Uma perspectiva incompleta
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necessariamente
pensamento descolonial que “privilegia hermenêutica sobre epistemologia” (2011: 206). A visão dos vencedores teria, nas RI, sua expressão mais forte no realismo, a força teórica mais conservadora no cânone da disciplina. Talvez por isso Smith (1995: 13) considere que as “teorias de RI são interessantes não pelas explicações substantivas que oferecem [...], mas como expressão dos limites da imaginação política contemporânea”. Todavia, será possível – e aí reside o problema com algumas das proposições de Vattimo e Zabala (e de outros autores) – escrever ao lado dos com os fracos do outro lado do “pensamento abissal” (Santos, 2007)? Essa é a mesma pergunta com que deparo aqui – que procurei explicitar na introdução – e com que muitos investigadores deparam diariamente. Talvez seja útil, por isso, relembrar o trabalho de dois autores do Sul (geográfico e político): Ramón Grosfoguel e Daniel Mato. Se o primeiro nos alerta para os perigos e peripécias da manutenção de uma visão desenvolvimentista e linear na esquerda “radical”, o segundo rejeita a missão de “dar voz” àquelas que seriam as “classes subalternas”.
A visão dominante das RI ainda é adequada ao mundo de hoje? Que limites e fronteiras se devem derrubar? Que “globalização” se quer? Que perspectiva o “eu” tem do mundo? O que condicionou sua formação? Que perguntas seriam diferentes se não fosse essa perspectiva? Que responsabilidade tem o chamado cidadão global29 no século XXI? Não busco dar respostas a essas questões – seria impossível neste espaço limitado –, a um tão complexo problema epistemológico, fundamental e fundacional. Minha perspectiva é necessariamente incompleta, localizada e implicada em valores, movimentos e processos demasiado complexos. Por isso, talvez seja necessário reescrever a velha proposição de Marx: “Os filósofos apenas descreveram o mundo de diversas formas; o momento chegou para interpretá-lo” (Vattimo & Zabala, 2011: 17). Vattimo e Zabala contrastam, assim, uma política ontológica dos “vencedores”, que implica uma visão descritiva e conservadora (de manutenção do “estado das coisas”) do mundo, com uma visão interpretativa, hermenêutica e engajada em uma mudança efetiva, uma visão “fraca”,30 que pertenceria, nas palavras de Benjamin, à “tradição dos oprimidos” (Vattimo & Zabala, 2011: 71). Essa é também a base, para Mignolo, do
Hardt e Negri ou como ser imperialista contra o Império No artigo “Del imperialismo de Lenin al Imperio de Hardt y Negri:
Expressão usada correntemente e que denota o reforço dos processos globalizantes. Os autores não entendem sua proposição de um “pensamento débil”, no sentido de um pensamento ineficaz ou desprovido de “força” teórica. Pelo contrário, o “pensamento débil” torna-se “uma teoria (forte) de enfraquecimento como um sentido interpretativo da história, que se revela como emancipatório [...]. Em lugar de outro sistema de pensamento, essa luta [emancipatória] deve confiar em um “pensamento débil”, isto é, na ideia da impossibilidade de ultrapassar a metafísica, ao mesmo tempo que se estabelece a capacidade de viver sem valores fundadores ou legitimantes” (Vattimo & Zabala, 2011: 96-97). 29 30
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é a tese de Império segundo a qual “o trabalhador industrial diminuiu significativamente, dando lugar ao trabalhador intelectual”, com o capitalismo a “evoluir”32 para uma forma “cognitiva”. Aí reside o principal equívoco dos autores de Império. O fato é que seu “horizonte cognitivo” não lhes permite contemplar “o crescimento de maquilladoras na periferia neocolonial do planeta” e que, por isso, nunca como hoje houve tantos “trabalhadores industriais [...] na história do capitalismo” (Grosfoguel, 2008: 17-22). Hardt e Negri se encontram, nesse aspecto, mais próximos daqueles(as) governantes que acreditam que o Ocidente (ou todo mundo talvez?) vive agora na chamada “economia do conhecimento”, desmaterializada e 33 hiperconectada (Boron, 2004: 32). Aí reside outra diferença fundamental para Grosfoguel e a teoria descolonial. É que, fruto quiçá de sua perspectiva, ambos menorizam a luta descolonial, tomando-a como um “projeto culminado” e subordinada à “análise dos processos de trabalho” (Boron, 2004: 24-25). É uma distância fundamental para uma miríade de autores (Bahba, 2002: 23; Fonseca & Jerrems, 2012: 2; Hobson, 2007: 103; Jones, 2006b: 10) que olham para o fenômeno colonial como inacabado e transmutado. Para esses autores, a independência política é insuficiente em face da dependência econômica e da persistência de um modelo civilizacional que não se esgota
‘fases superiores’ del eurocentrismo”, Grosfoguel (2008) desmistifica algumas das concepções dominantes que, desde Marx, afetam a economia política e sobretudo a extrema-esquerda europeia. Como o próprio afirma, o livro Império, de Hardt e Negri, não é mais do que “uma continuidade atualizada das teses eurocêntricas marxistas e leninistas de etapas do capitalismo” (Grosfoguel, 2008: 21). Antes de explorar a tese de Grosfoguel, torna-se necessário explicar o porquê de problematizar a “esquerda europeia” nesse contexto. Para fazê-lo, recorro novamente a Bouteldja (2014a), que afirma que a esquerda, “porque é mais aliada dos indigènes [...], é também seu pior inimigo”. É talvez por isso que Grosfoguel (2008: 23) considere Hardt e Negri – ícones de certo “altermundialismo”– um “bom exemplo [...] de como a esquerda/branca/eurocentrada é cúmplice [...] da colonialidade do poder”. O problema de Império não é tanto seu conteúdo, como sua perspectiva de partida e, sobretudo, o fato de essa perspectiva da “colonialidade do poder”31 – a “localização epistemológica” de Hardt e Negri do “lado dominante e colonizador” “centrada na Europa ou nos Estados Unidos” – influenciar sua visão sobre tópicos fundamentais (Grosfoguel, 2008: 23) da teoria e da militância descolonial. O primeiro caso, que ilustra perfeitamente a crítica de Grosfoguel,
Expressão adaptada por Grosfoguel com base em Quijano (2000). Note-se a persistência da narrativa “evolucionista”. 33 Ao mesmo tempo que se celebrava a “vitória para a liberdade” que se diz ser a queda do Muro de Berlim, poucos lembraram os muros – visíveis em Melilla e Ceuta, no México e na Palestina – e invisíveis – que impedem, física, material e intelectualmente a “hiperconexão” da humanidade e permitem a hiperconexão do capital (o aspecto a que Negri e Hardt se referem). 31
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na velha formulação de “superestrutura e infraestrutura”, mas que se constitui como uma “rede de relações globais de poder raciais, sexuais, de gênero, espirituais, militares e de conhecimento” (Grosfoguel, 2008: 24). Pode-se considerar uma reação exagerada a um livro que está longe do mainstream acadêmico. É, porém, um livro que teve e tem seu impacto naqueles que lutam e se engajam por um mundo não imperial. Dessa forma, não apenas por exigência de “democratização cognitiva”, mas sobretudo pela desorientação estratégica a que pode conduzir todos aqueles que pugnam por um mundo descolonizado em todas as vertentes essa obra merece examinação. Ou, como precisa Boron (2004: 30), autor de uma das mais detalhadas críticas a Império, esse livro “contiene gravísimos errores de diagnóstico e interpretación que, en caso de pasar desapercibidos y ser aceptados por los grupos y organizaciones que hoy pugnan por derrotar al imperialismo, podrían llegar a ser la causa intelectual de nuevas y más duraderas derrotas”. A verdade é que, se o sofrimento do mundo é infinito, a realidade é demasiado complexa, e a capacidade humana é limitada, mais do que uma política descritiva de “vencedores” ou uma crítica contundente que se mantém em uma posição de privilégio epistemológico, o lema de Fanon, no final de Pele negra, máscaras brancas, impõe-se: “Ó meu corpo, faz de mim sempre um homem que interroga!” (apud Wallerstein, 2010:
5). É nesse sentido que pretendo discutir a sempre tão polêmica questão de “dar voz” aos subalternos.
É necessário deixar de falar “sobre o”, “pelo” ou “do” subalterno Em um plano ideal, a esquerda e a direita34 estarão sempre de acordo em algo: é preciso acabar com os subalternos. Obviamente que não pelos mesmos motivos nem da mesma forma, mas, em uma sociedade ideal, o “subalterno” não existiria. Abandonando essa descrição caricatural, não residirá na própria designação o primeiro problema? Como nota Mato, “não fico satisfeito com [...] a expressão subalterno, porque me parece que [...] reifica a condição social que nomeia” (2000: 499, grifo meu). Qualquer investigador ou investigadora deverá ser atravessado pelos mesmos questionamentos que levaram Mato a se interrogar sobre seu trabalho de pesquisa. Muitos continuam empenhados em estudar o subalterno, inconscientes ou convencidos de que essa é sua missão ou a melhor forma de amparar esse “outro” necessitado (ou não) de ajuda. Mantêm-se, assim, em uma posição de privilégio epistemológico de “estudar o outro para escrever e ensinar sobre eles em línguas que lhes são estranhas” (Mato, 2000: 480). Não pretendo aqui postular que essa posição seja errada de partida, nem em todas as condições. No entanto, as perguntas que Mato (2000: 483) coloca para esses investigadores são, acima
Entendidas aqui como categorias de divisão e definição política, econômica e social, que emergiram depois da Revolução Francesa e indicam, de modo maniqueísta, para a esquerda um interesse “pela eliminação das desigualdades sociais” e, para a direita, a “convicção de que as desigualdades são naturais e [...] não são elimináveis”, bem como a ideia de que “os homens […] devem submeter-se à lei do darwinismo social”, isto é, à “seleção [...] entre os indivíduos que podem se desenvolver – ‘os vencedores’ – e os que podem apenas sobreviver – “os perdedores” (Nogueira da Costa, 2010, grifos do original). 34
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cogito36 de outro (Castro-Gómez, 2005: 52; Dussel, 2000: 29)? Dessa forma, qualquer investigação “comprometida com a descolonização da investigação acadêmica” deve ponderar essas questões. Para Mato (2000: 482 e 486), a resposta é clara: sempre que não seja possível estudar com o ou ao lado do subalterno,37 devem-se estudar as “práticas dos agentes hegemônicos” – os “responsáveis pela injustiça social” e pela existência da subalternidade – e as “articulações globais-locais do poder”. Eventualmente esses dois casos poderão parecer um deslocamento sociológico ou antropológico das RI. No entanto, os avisos de Grosfoguel e Mato são essenciais para estudantes e investigadores dessa disciplina. O foco no poder e a transmissão de conhecimento ao subalterno (que é também o investigador?), com todas as suas limitações, são talvez a melhor estratégia para quem está comprometido com uma descolonização substantiva nos âmbitos acadêmico, cultural e econômico.38
de tudo, introspectivas e merecem, por isso, uma reflexão detalhada: “Quem tem interesse em extrair essa informação? Os ‘grupos subalternos’ pediram para ser estudados? Quem pode eventualmente lucrar com tal produção de conhecimento? […] O que vão os grupos sociais ‘subalternos’ ganhar de tal produção de conhecimento?”35 Talvez a seguinte reflexão ajude a ilustrar o problema fundamental: quem é que, com toda a honestidade, gostaria de se sentir “um sujeito de pesquisa, peça de museu ou imagem exótica no projeto de outras pessoas”? Frequentemente, mesmo sem intenção, é nisso que o “subalterno” se transforma ante as pesquisas “invasivas” daqueles que vêm do “centro”. Assim, retomo a pergunta de Mato: “Quem pode eventualmente lucrar com a informação produzida [sobre grupos subalternos]” (2000: 484)? Não são os “agentes econômicos das sociedades metropolitanas” que vão se beneficiar com a “informação extraída desses grupos”? Aliás, o projeto colonial não avançou sempre desse modo, ego conquiro de um lado e ego
No original: “Who is interested in extricating this information? Have the ‘subaltern’ groups asked to be studied? Who may eventually profit from such knowledge production? [...]. What will the ‘subaltern’ social groups gain from such knowledge production?”. 36 Para Dussel (2000: 48), “o moderno ego cogito foi precedido mais de um século pelo ego conquiro (eu conquisto) prático do hispano-lusitano que impôs sua vontade [...] ao índio americano. A conquista do México foi o primeiro campo do ego moderno. A Europa (Espanha) tinha uma superioridade óbvia sobre as culturas astecas, maias, incas etc., em particular por suas armas de ferro [...]. A Europa moderna usa, desde 1492, a conquista da América Latina [...] como trampolim para ganhar ‘vantagem comparativa’ decisiva sobre suas antigas culturas antagônicas (turco-muçulmana etc.). Sua superioridade é, em grande parte, resultado da acumulação de riqueza, de experiência, conhecimento etc., que vai recolher a partir da conquista da América Latina”. Não será possível traçar um paralelo com o papel atual do exército dos Estados Unidos, um dos maiores responsáveis – se não o maior responsável – pelo avanço do conhecimento e da pesquisa científica intrinsecamente ligada à conquista militar? 37 Reconhecendo, como se disse, que tal categoria não existe realmente, não passando de construção teórica. 38 Gostaria de agradecer os comentários de uma das pareceristas sobre esta seção em particular e no que concerne à problemática de estudar “o subalterno” ou estudar as “articulações de poder”. Importa talvez esclarecer que não se procura rejeitar totalmente a primeira abordagem, tanto quanto se pretende 35
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Repensar a ação ou a perspectiva?
seriamente considerada. É manifestamente inútil avançar sem uma compreensão global – que implica pluralidade e diferença, mas também conjugação e reunião (de esforços, saberes, vontades) – para as lutas que se avizinham. Não é tempo de sermos Dom Quixote “confundindo moinhos de vento com poderosos cavaleiros de lança” (Boron, 2004: 22). Esse debate é necessário hoje e, em especial, em uma disciplina como as relações internacionais (RI), que se pretende global, mas que ainda é provincial, parcial e, infelizmente, hegemônica. Afinal, não serão atualmente as RI como o mapa-múndi criado pelo alemão Mercator, que, embora projetando o mundo inteiro de forma aparentemente igualitária, privilegia seu próprio centro, a Europa, o local onde foi produzido?39 A solução não está em uma alteração de proporções ou de medidas, como na projeção de Gall-Peters, mas em uma radical mudança de centro e em uma total inversão de paradigma, que
Para concluir, um último pensador europeu merece referência. Refiro-me a Žižek (2012a), ícone cultural e confesso eurocêntrico que, em um pequeno vídeo intitulado “Don’t act. Just think”, argumenta em favor disso mesmo, ou seja, a primazia da reflexão sobre a ação. Nas palavras de Žižek, deve-se evitar “ficar preso na pressão pseudoativista: façamos algo, vamos etc. Não, o tempo é de pensar” (2012a). Embora as palavras de Žižek possam induzir a olhar o pensamento e a reflexão como “não ações”, a verdade é que elas têm o mérito de prevenir certo voluntarismo e encorajam, em vez disso, uma reflexividade e um pensamento estratégico que permita “agitar o debate público [...] sem ser acusado de utópico, no pior sentido do termo” (Žižek, 2012a). Essa chamada do filósofo esloveno para refletir e (se) questionar sobre o mundo e, sobretudo, sobre a própria ação – no seguimento das proposições de Chakrabarti, Zabala e Vattimo, Boron e Fanon – deve ser
rejeitar essa categorização (e quem tem a “legitimidade” de fazê-la) e de avançar o argumento que, ao compreender e “partilhar” os mecanismos dos poderosos, exista a possibilidade (mesmo que ínfima) não só de inverter a tradicional hierarquia do conhecimento como também de servir a essa dita classe subalterna. 39 Existe uma vasta literatura sobre a projeção mais “correta” do globo terrestre. A resposta é nenhuma, visto que a distorção está sempre presente ao “esticar” uma esfera. Então, a discussão passou, por meio da projeção Gall-Peters, por exemplo, por suas implicações políticas, vista como uma projeção (pró-) terceiro-mundista. Não pretendo, por falta de espaço, discutir todas as projeções e seu impacto. Todavia, Roberts, citado em Hall (1992: 9, grifos meus), destaca a projeção de Mercator, que se tornou dominante, como tendo influenciado uma visão dos europeus de si próprios, (literalmente) no centro do mundo: “Mercator’s new ‘projection’, first used in a map in 1568 [...] drove home the idea that the land surface of the globe was naturally grouped about a European centre. So Europe came to stand in some men’s minds at the centre of the world [...]. It did not often occur to them that you could have centred Mercator’s projection in, say, China, or even Hawaii, and that Europeans might then have felt very different. The idea still hangs about, even today. Most people like to think of themselves at the centre of things [...]. Mercator helped his own civilisation to take what is now called a ‘Eurocentric’ view of the world.” É nesse sentido que utilizo o exemplo de Mercator, sem pretender afirmar que o alemão tenha propositalmente influenciado o pensamento eurocêntrico ou negar que sua projeção tenha servido sobretudo para navegações marítimas.
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sim, “centrar nossas preocupações e visões do mundo para depois saber e compreender a teoria e a pesquisa de nossa perspectiva e para nossos próprios objetivos” (Smith, 2008: 38, grifos meus). A primeira, ou a descolonização que ainda falta completar – para o “ocidental” e o “indígena” –, é a da mente, porque “a” alternativa nunca ocorrerá sem uma substantiva mudança de perspectiva.
permita o desaparecimento dos centros e o fim de “suis” e “nortes”. Ainda que rudimentar e modesta, a proposta deste artigo, seguindo Linda Smith (2008), não é pensar a descolonização como a “rejeição total de toda pesquisa, teoria ou conhecimento ocidental” – um empreendimento tão inútil quanto impossível. Para essa acadêmica, descolonização implica, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Aliás, embora esse último uso possa ter sido predominante, serviu inegavelmente não só à conquista marítima e ao tráfico de população escravizada mas também como consequência (direta ou indireta) a estabelecer o “norte” geográfico no topo do mundo e a projetar a imagem de certos países e continentes como “centrais” (dominação simbólica), além de ser um excelente exemplo da conjugação entre ego cogito e ego conquiro. A projeção de Mercator serve assim como resumo e bom exemplo da tese principal deste artigo.
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TEORIA E PRÁXIS: PENSANDO A GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO A PARTIR DE CAIO PRADO JR. Alexandre Loreto de Melloi Resumo Em A revolução brasileira, Caio Prado Jr. critica a análise do Brasil feita pelos teóricos marxistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O autor aponta para o problema de se fazer uma análise com conceitos produzidos nos centros hegemônicos, pois, por serem inspirados em outros contextos sócio-históricos, implicam interpretações errôneas das condições socioeconômicas do país. Importado, o arcabouço teórico-conceitual adotado se mostrou inadequado à economia e à história brasileiras ao não articular teoria e práxis. Procura-se, então, discutir brevemente a crítica da utilização pela “periferia” do pensamento produzido nos “centros” a partir da obra de Caio Prado, mostrando como esta evidencia os limites epistemológicos da teoria sociológica clássica (no caso, a sociologia marxista utilizada pela agenda política dos membros do PCB). Palavras-chave: Geopolítica do conhecimento; Caio Prado Jr.; teoria e práxis; PCB; sociologia marxista THEORY AND PRAXIS: CONSIDERING THE GEOPOLITICS OF KNOWLEDGE BASED ON CAIO PRADO JR. Abstract Caio Prado Jr., in A revolução brasileira, criticizes the analysis made of Brazil by Marxist theorists in the Brazilian Communist Party (PCB). The author points out the problem that drawing an analysis based on concepts produced in hegemonic centers may result in erroneous interpretations of the socio-economic conditions of Brazil, due to their being inspired by different socio-historical contexts. The imported theoretical and conceptual framework which has been adopted has proved to be inappropriate to the Brazilian economy and history, with an absence of any connection between theory and praxis. This paper seeks to briefly review the use by the “outskirts” of the theory produced in the “centers” based on the work of Caio Prado to show how this highlights the epistemological limits of the classical sociological theory (in this case Marxist sociology used by the political agenda of PCB members). Keywords Geopolitics of knowledge; Caio Prado Jr.; theory and praxis; Brazilian Communist Party; Marxist sociology Alexandre Loreto de Mello é mestrando em Sociologia e Antropologia - PPGSA/UFRJ. Email: almello@hotmail.com i
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social. Marcada pela importação de teorias dos países centrais (Comissão Gulbenkian, 1996: 29), a análise da institucionalização das ciências sociais no país revela-se fecunda por meio da obra de Caio Prado Jr. Os primeiros impulsos, como a tradução de obras europeias e a elaboração de compêndios por parte de uma pequena elite intelectual brasileira (Meucci, 2007), aliados a questões sociopolíticas (Costa Pinto, 1949), expõem seu caráter eurocêntrico. Nesse cenário, há ainda os intelectuais do PCB que, segundo Prado Jr. (1966), aplicaram a teoria marxista à realidade brasileira sem quaisquer adaptações, o que implicou interpretações errôneas da realidade socioeconômica do país. Embora essa produção teórica fosse pautada por fins de prática política, as análises elaboradas pelos teóricos do PCB estavam marcadas por um eurocentrismo epistemológico, uma vez que se baseavam em conceitos elaborados em outra conjuntura sóciohistórica, evidenciando um caráter de dependência acadêmica (Alatas, 2003: 600). A crítica de Prado Jr. evidencia que não houve articulação necessária entre teoria e práxis para uma análise cientificamente adequada da sociedade. Pretende-se, assim, elaborar aqui uma discussão bibliográfica relacionando sua crítica à adoção ortodoxa da sociologia marxista pelos teóricos do PCB com a relação acadêmica entre centro e periferia como consequências da divisão social do trabalho nas ciências sociais (Keim, 2008: 30). Será feita uma análise considerando a ótica da dependência
Introdução O presente artigo visa analisar brevemente, à luz da geopolítica do conhecimento, a crítica feita por Caio Prado Jr., em A revolução brasileira (1966), aos teóricos marxistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB)1. Em outros termos, busca-se pensar a institucionalização das ciências sociais no Brasil, marcada pelos paradigmas centrais da Europa, como consequência de uma subjugação bélico-intelectual, de um imperialismo acadêmico (Alatas, 2003: 606). Procura-se, assim, analisar os limites da imaginação sociológica europeia, uma vez que as teorias cristalizadas como cânones – os clássicos (Alexander, 1999: 24) – não se mostram adequadas e eficazes para dar conta de outros panoramas sócio-históricos. Segundo Connel, a elaboração de conceitos é uma reificação da experiência social (2012: 10), evidenciando que há limites para sua transnacionalização. A institucionalização das ciências sociais como disciplinas universitárias, no Brasil, só se deu a partir de 1930,2 em virtude de esforços individuais de alguns estudiosos autodidatas da elite brasileira (Costa Pinto, 1949: 279). Costa Pinto (1949) aponta que as mudanças estruturais pelas quais passava o país, em decorrência da Revolução de 1930, propiciaram o panorama para que ocorresse tal processo. A elite do Brasil buscava a habilitação de pessoas para pensar a sociedade de forma científica, e não apenas juridicamente. Como relata o autor, esse processo deve ser também objeto de análise sociológica, visto que também é um produto da vida
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Ressalta-se que, até 1960, o nome dessa organização política era Partido Comunista do Brasil. Toma-se esse ano como marco analítico. Para mais informações, ver Costa Pinto (1949) e Meucci (2007).
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acadêmica proposta por Alatas (2003) para refletir sobre as contingências sociais e extraintelectuais da sociologia (Maia, 2012: 267).
uma apreensão sociológica da realidade brasileira, que, desde a década de 1930, passava por mudanças estruturais significativas. Visava-se, portanto, a uma melhor compreensão da realidade social em prol do progresso do país. O debate se dava com os bacharéis em direito, os autodidatas, uma vez que suas análises se limitavam a um aspecto abstrato-teórico que desarticulava teoria e realidade. A sociologia surge, assim, como um novo caminho para analisar e compreender a realidade social por meio da observação aliada ao conhecimento teórico, possibilitando mediações entre teoria e práxis. Meucci ressalta também que os autores brasileiros se encontravam limitados às escolas sociológicas estrangeiras. Mais especificamente, viamse dependentes de uma epistemologia eurocêntrica das ciências sociais, uma vez que eram intelectuais da elite engajados na causa sociológica. Com a publicação de livros, manuais e compêndios sociológicos, buscava-se formar uma geração de intelectuais capaz de compreender melhor a sociedade. Um detalhe importante é que não somente os conceitos e teorias eram importados mas também os dados de pesquisa, pois não haviam sido feitas, ainda, pesquisas em território nacional que permitissem a acumulação de dados. Com isso, há um incentivo à libertação do aluno da tirania do compêndio (Meucci, 2007: 52). Em outros termos, alguns autores propunham que os leitores se organizassem em grupos para realizar pesquisas de campo e acumular dados referentes à realidade brasileira.
A institucionalização das ciências sociais no Brasil e seu caráter eurocêntrico Como consequência da Revolução de 1930, o âmbito socioeconômico se diversificou, apresentando novos problemas, como urbanização, crescimento do mercado interno, industrialização, expansão do proletariado, entre outros. Com isso, a elite intelectual brasileira buscou novas formas de se pensar a sociedade. Foram importados conceitos e teorias visando renunciar ao bacharelismo (Costa Pinto, 1949: 280) – isto é, a formação autodidata em sociologia ou antropologia de bacharéis de outras áreas. Conforme aponta Meucci, os primeiros livros de sociologia surgiram no Brasil em virtude da institucionalização da sociologia como disciplina no ensino regular e da emergência de um mercado editorial com investimentos na área pedagógica. Dessa forma, constituiu-se um material didático de manuais de sociologia, os primeiros contatos em língua portuguesa com os conhecimentos sociológicos, antes limitados àqueles que dominavam as línguas estrangeiras (Meucci, 2007). A autora ressalta o caráter elitista desse processo apontando para o fato de a perspectiva teórica marxista não estar presente. Ela nota que, pela situação repressiva da época, a maioria dos autores tinha preocupações por serem oriundos de famílias ligadas à política (Meucci, 2007: 12). O boom editorial que acompanhou e possibilitou a institucionalização das ciências sociais conduziu à desvalorização da prática jurídica e à convocação de
O Partido Comunista Brasileiro e a entrada da literatura marxista no Brasil Em meio às mudanças estruturais, destaca-se a modernização consequente da Revolução de 1930, que engendrou 120
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grande êxodo rural em busca de emprego nos centros urbanos. Foi nesse contexto, aliado à expansão da consciência sociológica, que as obras de Karl Marx e de Friedrich Engels foram traduzidas. No entanto, a trajetória da publicação de suas obras, entre 1930 e 1964, foi muito conturbada em decorrência de elementos como a Segunda Guerra Mundial e a conjuntura política do Brasil, que envolvia a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – principal difusor das teorias de Marx e Engels. Houve ainda grande limitação de publicações, tanto em termos de quantidade quanto de títulos. Procuravase, em primeira instância, traduzir e publicar obras que divulgassem o marxismo, visando a uma propagação mais imediata de seus ideais. De acordo com Novais Azevedo (2010: 120), essa pressa e esses obstáculos influenciaram negativamente a interpretação das nuanças da realidade brasileira pelos membros do PCB. Até os anos 1960, segundo Costa (2011), a difusão da literatura de Marx no Brasil teve como maior colaborador o PCB, por meio de seus aparatos político-culturais como editoras, jornais e revistas. Em sua maioria, as publicações eram de cunho simplificador, caracterizando-se por resumos cujo foco era a divulgação das obras. Cabe ressaltar que, em geral, todas as traduções eram feitas da língua francesa ou espanhola, ou seja, eram traduções de traduções. Mesmo com a repressão decorrente da Revolução de 1930, o PCB conseguiu manter alguns de seus aparatos políticoculturais, como a revista Espírito Novo, que contou com a participação de diversos intelectuais, entre os quais Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Caio Prado Jr. No entanto, com o governo Dutra, em 1947, acirrou-se a repressão ao comunismo, censurando
suas publicações. Alguns anos depois, surgiu a revista Brasiliense, que, com inspiração marxista e nacionalista, tratouse de uma publicação político-cultural independente e crítica em relação às teses do PCB. Foi veiculada pela editora Brasiliense, fundada por Prado Jr. em 1943. Embora a revista tenha parado de circular com a implementação da ditadura militar em 1964, a editora continuou publicando livros e difundindo o marxismo. Caio Prado Jr. e o Partido Comunista Brasileiro Nascido em 1907, de origem aristocrática, formado em direito e em geografia, Caio Prado Jr. integra o quadro dos intelectuais que fizeram parte da institucionalização das ciências sociais no Brasil (Reis, 1999: 1). Estudioso das teorias marxistas, escreveu na revista Brasiliense, ao longo dos anos 1950, diversos artigos nos quais analisava a estrutura político-econômica do Brasil. Nessa época, os estudos sobre a realidade brasileira se pautavam no desenvolvimento econômico e na possibilidade de reforma nas instituições políticas. Questionamentos sobre a estrutura econômica e o passado nacional permeavam as interpretações das questões agrárias do país, destacando-se o debate sobre qual teria sido o sistema herdado do colonialismo (feudalismo ou capitalismo). Considerado uma condição intrínseca à elaboração de políticas de transformação social, esse debate ocorreu em um momento complicado para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), pois havia um conflito interno em decorrência da submissão do partido ao pensamento marxista-leninista inspirado pela União Soviética. Alegando que essa submissão o afastava da realidade do país, aqueles que criticavam as 121
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interpretações “dogmáticas” do passado buscaram dialogar com intelectuais progressistas da época (Silva, 2008: 5253). Em meio a esse debate, as diretrizes do PCB foram definidas: aproximarse mais da sociedade brasileira, conhecê-la melhor e a definição do projeto democrático-burguês – que era antifeudal e anti-imperialista. A revista Estudos Sociais, criada em 1958, foi um dos veículos de manifestação do ideário pecebista na cena intelectual nacional (Silva, 2008: 53). Com o golpe militar, fecharam a revista Brasiliense, fundada por Prado Jr., e, em 1966, o autor publicou o livro A revolução brasileira, que, segundo Reis (1999: 2), representa uma espécie de síntese da análise de Prado Jr. da sociedade brasileira. Nessa obra, critica a conduta dos teóricos marxistas do PCB, assinalando que estes interpretavam de forma dogmática os preceitos de Marx. Baseavam-se, desse modo, em formulações a priori que não atentavam para a conjuntura socioeconômica brasileira. Em outras palavras, tentavam adaptar teorias importadas, oriundas de condições distintas da realidade do país, ignorando-se os fatos presentes (Prado Jr., 1966: 33). Decorreu-se dessa atitude uma desarticulação entre teoria e práxis. Buscando a rearticulação entre abstrações teóricas e realidade social, a interpretação de Caio Prado rejeitou a orientação do PCB por não compactuar com o modelo interpretativo e político democrático-burguês. Esse modelo, para ele, carecia de revisão crítica dos preceitos marxistas importados e, com isso, estes tornaram-se dogmas que enviesavam o olhar dos teóricos do PCB (Prado Jr., 1966: 35). Não se trata, portanto, de analisar a sociedade com base em conceitos dados de forma apriorística, uma vez que tal atitude
implicou uma interpretação errônea do panorama socioeconômico do país. Por mais que possa haver similaridades em alguns detalhes, cada conjuntura sóciohistórica demanda sua própria leitura, cada práxis pede uma teoria específica, e não um esquema teórico único. Essa importação e adaptação forçada de conceitos à realidade compreendia um esquema de etapas sucessivas para a chegada ao socialismo. Mais especificamente, baseado nas teorias de Marx e Lenin sobre a Rússia, as sociedades deveriam passar por três estágios: feudalismo, capitalismo e, por fim, socialismo (Prado Jr., 1966: 38-39). Ao aplicarem dogmaticamente essa teoria à realidade brasileira, interpretaram as oligarquias latifundiárias e os camponeses como resquícios de um regime feudalista a serem superados (Prado Jr., 1966: 46). Com esses resquícios, julgavam necessário implementar uma revolução democrático-burguesa plena, uma vez que já havia centros urbanos desenvolvidos abrindo caminho para a etapa sucedente, o socialismo. Embora a crítica de Caio Prado tenha sido formulada de forma genérica e sem citar nomes, entre os intelectuais criticados pelo autor estava Nelson Werneck Sodré. A obra de Sodré representava as diretrizes interpretativas do PCB, visto que era tido como o maior expoente intelectual do partido. Apesar da aplicação do método marxista ao panorama brasileiro, sua análise é consequência de um engajamento político, de uma “posição política” (Sodré, 1990: IX). Para o autor, ainda que diferente do modelo europeu, o Brasil tinha traços feudais que necessitavam ser superados pelo desenvolvimento da indústria do país que levaria à consolidação da “burguesia nacional”. Outro intelectual que se destacou 122
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latifúndios com o sistema de plantation (monocultura para exportação). Com um marxismo heterodoxo, em oposição à ortodoxia dos teóricos do PCB, Prado Jr. buscou compreender o Brasil em seu sentido estrutural, analisando as relações de trabalho e de produção capitalista para além da teoria importada. Foi situado, por isso, em “uma segunda fase, posterior à primeira fase da ‘recepção dogmática’, que vai de 1922 a 1940, [...] [a] ‘etapa da autonomização teórica (1940-1960)” (Reis, 1999: 6). A revolução brasileira, para João Alberto da Costa Pinto (2007), foi uma espécie de “acerto de contas” com a agenda teórica e política do PCB. Como sua proposta não envolvia práticas revolucionárias soviéticas, mas sim melhorias trabalhistas, agravou-se o debate que travava com o partido desde a época das revistas Brasiliense e Estudos Sociais. A posição teórica de Prado Jr. rendeu árduas críticas à sua obra, como a feita por Assis Tavares (pseudônimo de Marco Antônio Tavares Coelho, dirigente do PCB), que afirmou que o programa “defendido pelo historiador era vago e estava aquém do programa do PCB” por ter feito uma análise que desvinculou a economia da política (Kaysel, 2012: 57). Dito de outra forma, essas críticas evidenciam o estatuto teórico distinto entre a sociologia acadêmica a que se propunha Caio Prado e o marxismo do PCB, vinculado à prática política. Segundo Reis, A revolução brasileira foi escrita em um período conturbado para a democracia nacional, período em que se instaurou o golpe militar de 1964. Com isso, o Estado associou-se ao poder militar, e “o sonho de uma revolução ‘democrático-burguesa’ transformou-se em um pesadelo-realidade da revolução autoritário-burguesa” (Reis, 1999: 8). Era um momento importante para repensar
entre os teóricos do PCB e pode ser mencionado é Alberto Passos Guimarães. Sua perspectiva pode ser vista como inserida no debate que se desdobrava nas revistas Brasiliense e Estudos Sociais (Santos, 1994: 54). Assim como Sodré, Guimarães ressalta o caráter político de seu estudo, evidenciando que sua análise da realidade se imiscui em uma leitura política (Santos, 1994: 55). Alinhando-se à perspectiva de Sodré e às diretivas pecebistas, Guimarães reafirmou a tese da feudalidade em sua interpretação da questão agrária brasileira. Para Prado Jr., nunca houve feudalismo no Brasil, mas sim relações de trabalho reconhecidas pelo autor como sistema de parceria, barracão e cambão. Vistas como resquícios do escravismo, trata-se de relações de emprego, porém com uma remuneração in natura do trabalho. A primeira caracteriza-se pelo arrendamento de terra que é pago com parte da produção (Prado Jr., 1966: 52-53); a segunda é uma espécie de fornecimento do que se produz a preços extorsivos; e a terceira é a prestação de serviços gratuitos em troca do direito de utilização e de ocupação de um pedaço de terra (Prado Jr., 1966,: 56). O autor aponta, assim, para a diferença entre escravismo e feudalismo: neste, a exploração da força de trabalho é legitimada por privilégios da aristocracia. No caso brasileiro, a natureza das relações de trabalho era, de certo modo, assalariada, constituindo, portanto, forma de trabalho capitalista (Prado Jr., 1966: 52-53). Caio Prado explicita, com isso, que o Brasil foi fundado em um contexto semicapitalista, pois foi consequência da expansão internacional do mercantilismo – o colonialismo. Composta de comerciantes portugueses integrados à população depois da abertura dos portos, a burguesia era essencialmente escravista e baseada em 123
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as interpretações e retomar discussões sobre a conjuntura político-econômica do Brasil. Caio Prado expõe então que os teóricos do PCB não souberam utilizar analiticamente a teoria marxista. Para ele, “a dialética é um método de interpretações das ações reais, e não um dogma que enquadre esquemas abstratos preestabelecidos” (Reis, 1999: 8). Em suma, Prado Jr. critica a leitura, do ponto de vista teórico, da literatura marxista feita pelos teóricos do PCB, visto que, em sua concepção, compreenderam mal a dialética, adotando dogmaticamente os preceitos elaborados com base no contexto soviético. Há uma espécie de “erro histórico” (Reis, 1999: 10) pela leitura do passado brasileiro, influenciando a interpretação do presente e a previsão para o futuro. É preciso, portanto, partir do panorama social do Brasil para interpretá-lo. Prado Jr. mostrou-se, assim, um dos questionadores dos métodos de análise da realidade brasileira que estavam associados à prática política do PCB.
realidade, afirmando que os modelos estruturam o pensamento sociológico. Seu argumento é que os trabalhos empíricos são apriorísticos, pois cada tomada de posição tem implicações: se umas portas se abrem, outras se fecham. Para compreender as teorias, Alexander (1987) alega que se devem conhecer aqueles que as elaboraram e, sobretudo, como pensavam. Em uma abordagem crítica das relações político-econômicas do colonialismo, Connell (2012) define teoria como a produção feita pelo centro, baseada em seus casos concretos. Essa situação, segundo a autora, é fruto da geopolítica do conhecimento e pode ser revertida. Para transpor a assimetria da produção de conhecimento, devem-se enfatizar as tradições locais, visando escapar do eurocentrismo por meio da incitação a um pluralismo epistemológico (Connell, 2012). O pensamento social consequente desse embate teórico-epistemológico foi denominado southern theory (Connell, 2012: 12), e sua intenção é questionar a epistemologia consolidada, uma vez que a colonialidade do poder cria diferentes condições para o entendimento social. Seu argumento se baseia na divisão social do trabalho, cujas implicações materiais são evidentes: os intelectuais da periferia buscam especializações nas metrópoles e publicações em seus periódicos acadêmicos. Ressaltando-se o caráter ontoformativo do encontro colonial, realidades sociais foram criadas com a integração de economias locais ao capitalismo global. Em outros termos, surge o Estado colonial com o envio de missionários, economias de plantation, entre outros elementos (Connell, 2012: 12). Nesse contexto, conceitos elaborados pelo Norte mostram-se limitados para a compreensão desse
Teoria e práxis: a geopolítica do conhecimento e suas consequências analíticas De acordo com Jeffrey Alexander, a teoria é uma abstração de dados particulares de determinado período histórico; são generalizações baseadas em casos concretos. Embora os dados sejam fundamentais, a teoria tem certa autonomia em relação à realidade concreta, pois depende da inserção no tempo e no espaço daqueles que as elaboram. As tradições nas quais estão inseridos seus criadores são mais importantes que suas observações. No caso das ciências sociais, o autor aponta para o fato de que elas produzem os dados e estruturam a 124
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tipo de realidade social, uma vez que foram elaborados em outros panoramas sócio-históricos. Embora a reflexão sobre a realidade social se dê sob condições distintas, os intelectuais da periferia estão marcados pelo uso de elementos do pensamento das metrópoles (Connell, 2012:13) em virtude do caráter eurocêntrico da institucionalização das ciências sociais. Buscou-se, neste artigo, ilustrar essa questão por meio da análise da recepção e da apropriação ortodoxa da teoria marxista pelo PCB, criticada por Caio Prado Jr. por não possibilitar a articulação entre teoria e práxis. Esse autor elaborou então uma análise do cenário socioeconômico do Brasil partindo da realidade brasileira, evidenciando os limites de uma dependência epistemológica. Segundo Alatas, podem-se chamar de discurso alternativo críticas ao imperialismo acadêmico (2010: 230). Esses discursos são produzidos em um contexto de dependência acadêmica, que, de acordo com o autor, é um contexto análogo à dominação econômica colonial. Tem-se em questão, no âmbito das ciências sociais, uma relação em que paradigmas de um lugar imperam sobre outros (Alatas, 2003: 601). Para compreender esse fenômeno, deve-se olhar para a história, para o período de colonização, no qual havia uma educação imposta às colônias, desde as missões civilizatórias. Se antes a dominação era bélico-econômica, atualmente se dá pela dependência acadêmica, evidenciando um neocolonialismo (Alatas, 2003: 602). O autor supracitado estabelece alguns critérios para reconhecer os países que exercem a dominação acadêmica: produção de dados científicos em forma de publicações de livros, revistas e artigos; ter alcance mundial de suas produções; influenciar o pensamento de outros lugares por
meio de suas produções; e, por fim, possuir reconhecimento e prestígio por suas análises. Dentre esses, destacamse aqui o consumo e o prestígio de suas pesquisas, ilustrados neste artigo pelo debate entre Prado Jr. e os teóricos do PCB. Para além da importação teórica, a institucionalização das ciências sociais no Brasil foi marcada pela dependência em relação a instituições e ideias que influenciaram as agendas de pesquisa. Influenciaram até os resultados – como bem aponta a crítica de Prado Jr. Para definir os países intelectualmente dominantes, Alatas utiliza o termo center – um lugar que emana influência (Alatas, 2003: 603). Essa hegemonia intelectual é consequência de séculos de dominação políticoeconômica, implicando reverberações culturais em períodos recentes. Evidencia, portanto, uma relação desigual entre a produção científico-social dos países centrais em relação aos países do denominado Terceiro Mundo. O âmago dessa desigualdade se encontra na divisão social do trabalho das ciências sociais, que foi moldado a partir da dominação colonial (Alatas, 2003: 606). O fator mais ilustrativo dessa questão é a produção de teorias, feita somente nos centers, enquanto a periferia se limitou a fazer pesquisas empíricas. Isso, para o autor, é um entrave ao progresso científico, uma vez que limita as pesquisas a análises apriorísticas. Em outros termos, utilizam-se, em realidades distintas daquelas de suas origens, conceitos, teorias, modelos e métodos produzidos alhures. O modelo centro-periferia é uma boa ferramenta analítica para compreender o processo de produção, difusão, recepção e comunicação das ciências sociais em nível global. Keim (2008: 23) relata que há uma diferença 125
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entre a disciplina sociologia e o social thinking presente em diversos lugares, mas institucionalizado pelos europeus.3 Nesse contexto, a sociologia surgiu nos países periféricos com um caráter de subordinação, que ainda perdura na busca por especializações em instituições de ensino do centro. Em sua análise, fica evidente que o caráter de reconhecimento e de prestígio das teorias produzidas nos países centrais é uma consequência da dominação político-econômica ocorrida ao longo da história. Ou seja, é fruto de uma geopolítica do conhecimento. De acordo com os critérios definidos pela autora, uma sociologia desenvolvida deve ser um sistema autônomo de produção, difusão e acumulação de conhecimento. Para tal, é necessário que haja centros especializados para pesquisa e ensino, com publicação em periódicos acadêmicos, financiamentos e mercado de trabalho. O desenvolvimento institucional é definido com presença de mercado editorial, tecnologia, bibliotecas, entre outros fatores. Percebe-se, dessa forma, a necessidade de haver uma comunidade escolar integrada, com divisão interna do trabalho adequada – coleta de dados empíricos e estudos de caso, metodologia e elaboração teórica. Embora isso indique que uma sociologia subdesenvolvida careça desses elementos, a autora destaca o caso do Japão, que, mesmo com infraestrutura, não atingiu um nível de autonomia que transponha a dependência acadêmica. Tomando a geopolítica como chave de leitura para a obra de Caio Prado Jr., evidencia-se, portanto, a necessidade de analisar a articulação entre a teoria
elaborada por alguns autores e as condições institucionais mais amplas na qual estão inseridos (Maia, 2012: 268). Trata-se de pensar o debate a partir dos limites da transnacionalização teóricometodológica da realidade europeuanglo-saxã, trazendo à tona processos mais gerais, extraintelectuais, sobre os dilemas modernos globais (Maia, 2009: 156). Considerações finais: dar cores locais ou revolucionar a teoria social De acordo com Caio Prado Jr., membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em suas elaborações teóricas voltadas para a prática política, utilizaram-se de conceitos que não tinham correspondentes na realidade brasileira. Dentre outros, destacam-se latifúndio, feudalismo, camponeses e burguesia nacional. Com a utilização do modelo elaborado para analisar a situação europeia, estavam mal equipados teórica e historicamente. O autor quis evidenciar que, para rever a história do Brasil, era necessário rediscutir a teoria e propor novas formas de compreensão e intervenção, sem ajustar a realidade aos textos clássicos de outros contextos. Com isso, deixariam de ser apriorísticos e dogmáticos, possibilitando uma análise adequada da conjuntura socioeconômica do país (Reis, 1999: 10). Com base na crítica elaborada em A revolução brasileira, buscou-se, neste artigo, ilustrar questões como a dependência acadêmica, levantada por Alatas, para expor como o panorama brasileiro pode falar não apenas do Brasil mas da questão global da social
A autora cita Ibn Khaldun, que buscava fundar uma ciência da civilização. Para mais informações, ver Alatas & Sinha (2001). 3
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theory (Maia, 2009: 156). Procurou-se ressaltar, assim, como essa obra pode ser lida a partir da geopolítica do conhecimento, evidenciando o caráter iminente da revolução na teoria social. Mais especificamente, as ciências sociais podem dar voz aos marginalizados, engendrando críticas às estruturas de poder, possibilitando a democratização da teoria, isto é, a produção e a circulação de conhecimento social (Connell, 2012). Para reverter a dependência acadêmica, ou o colonialismo acadêmico, Alatas propõe a expansão de estudos teóricos e empíricos sobre o tema. Esses estudos devem ser difundidos no ensino em universidades e por meio de publicações em periódicos e conferências internacionais. Deve-se também ir além dos estudos e escrever livros de teoria sociológica clássica que
não se limitem a falar somente de Marx, Durkheim e Weber, incluindo pensadores não europeus. Esses esforços serão fecundos se houver uma comunicação maior entre os cientistas sociais do Terceiro Mundo (Alatas, 2003: 609-610). Esta abordagem se mostra relevante por evidenciar a camisa de força do campo da sociologia formada pelos clássicos (Alexander, 1999: 24). Buscouse ressaltar sua presença na sociologia brasileira com o intuito de questionar os limites da imaginação sociológica, uma vez que teorias e conceitos cristalizados como paradigmas não se mostram eficientes para realidades diferentes das quais são frutos. Dessa forma, o estudo da influência da geopolítica do conhecimento no Brasil traz à tona a necessidade de se partir da realidade para chegar à abstração, conjugando, assim, teoria e práxis.
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PRESSUPOSTOS LIBERAIS DA DISCUSSÃO SOBRE DEMOCRACIA EM TRÊS INTÉRPRETES DO BRASIL: UM ESTUDO DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, RAYMUNDO FAORO E FLORESTAN FERNANDES Aristeu Portela Júniori Resumo O artigo analisa pressupostos liberais contidos em proposições-chave na discussão sobre democracia que perpassa autores centrais do pensamento social brasileiro. Detêm-se em três intérpretes, responsáveis por modos influentes de se analisar a democracia no Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes. Aponta como uma concepção liberal de democracia orienta as análises de Buarque e Faoro sobre as heranças ibéricas da nossa política. E argumenta que Fernandes, num momento inicial da sua trajetória, concebe que a democracia somente é possível no Brasil com o desenvolvimento concomitante da ordem social competitiva. O artigo termina por apontar como a apropriação do liberalismo democrático pode ser simultaneamente o fundamento de críticas sociais progressistas e uma limitação em termos de perspectivas políticas. Palavras chave: Desenvolvimento.
Democracia.
Liberalismo.
Patriarcalismo.
Patrimonialismo.
LIBERAL ASSUMPTIONS OF THE DISCUSSION ON DEMOCRACY IN THREE AUTHORS WHO ANALYZE BRAZIL: A STUDY INTO SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, RAYMUNDO FAORO AND FLORESTAN FERNANDES Abstract: This article examines liberal assumptions contained in key propositions in the discussion about democracy that pervades Brazilian social thought. It analyzes three authors, responsible for influential modes of interpreting Brazil: Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro and Florestan Fernandes. The article argues that a liberal
Aristeu Portela Júnior é professor assistente do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e bolsista do CNPq. Integrante do grupo de pesquisa “Sociedade Brasileira Contemporânea: Cultura, Democracia e Pensamento Social”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFRPE. E-mail: aristeu.portela@gmail.com. i
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conception of democracy guided Buarque’s and Faoro’s analyses of the Iberian legacy found in Brazilian politics. And it argues that Fernandes, at an early phase of his career, concludes that democracy is possible in Brazil only with the concomitant development of competitive social order. The article ends by pointing out how the appropriation of democratic liberalism may be both the basis for progressive social criticism and a limitation in terms of political perspectives. Keywords Democracy. Liberalism. Patriarchy. Patrimonialism. Development. concretização dos ideais da democracia liberal, dada a sua vinculação histórica com o modo de produção capitalista e com as clivagens sociais de gênero (Moraes, 2001; Phillips, 2011: 340). No âmbito da teoria democrática, “modelos” alternativos de democracia vêm sendo constantemente discutidos, num leque que abrange formulações como a da “democracia participativa” e da “democracia deliberativa” (Miguel, 2005). Visando complementar estes esforços de crítica e reflexão em torno do modelo hegemônico de democracia, o presente trabalho busca analisar o modo como os princípios de uma concepção liberal de democracia atuam enquanto pressupostos, nem sempre reconhecidos, de importantes debates políticos brasileiros, e também investigar, concomitantemente, as limitações e potencialidades da incorporação de tais pressupostos ao estudo da democracia brasileira (ou dos seus fundamentos sociais, mais especificamente). Neste sentido, dentro de um vasto leque de representantes do pensamento social brasileiro, iremos nos focar nas obras de três autores específicos: Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Raymundo Faoro (1925-2003) e Florestan Fernandes (1920-1995). Eles foram responsáveis pela cristalização de modos ativos e influentes de se interpretar a história e a política brasileiras, elaborando
Introdução Um certo consenso no meio intelectual e político costuma se referir ao século XX como o “século da democracia”, baseado na generalização e estabilidade da democracia enquanto regime político ao redor do Globo. O que tal consenso tende a omitir é que pressuposto nesse discurso está a cristalização de uma noção de “democracia” que a reduz à forma de governo estabelecida nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Com efeito, na oratória política do nosso tempo [...] o termo “democracia” tem como significado esse modelopadrão de Estado; e isto significa um Estado constitucional, que oferece a garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é governado por autoridades, que devem necessariamente incluir assembleias representativas, eleitas por sufrágio universal e por maiorias numéricas entre todos os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares entre candidatos e/ou organizações que competem entre si. (Hobsbawn, 2007: 98)
No entanto, o século XX também pode ser visto como prenhe de críticas a esse modelo hegemônico de democracia. No plano da organização política, movimentos como o socialismo e o feminismo apontaram sérias limitações à 130
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temas e formulações fundamentais, que exerceram e exercem influência marcante em muitas análises contemporâneas. Na discussão dos autores, a seguir, optamos por dividir suas reflexões em dois blocos temáticos: as influências ibéricas sobre a formação social e política brasileira; e a questão do desenvolvimento.1 São dois eixos de discussão em torno dos quais se construíram pressupostos sobre a democracia brasileira que ainda hoje estão presentes no debate intelectual e político. De um lado, encontra-se a análise de padrões socioculturais que dotariam a atividade política no Brasil de caracteres específicos, os quais não são completamente coerentes com os princípios da democracia liberal. De outro lado, temos a querela entre o desenvolvimento econômico e o chamado “desenvolvimento político”, isto é, a discussão em torno da possibilidade de se manter um padrão de crescimento da economia ao mesmo tempo em que se busca a consolidação de um regime político democrático. Para ambos os eixos de discussão, os autores com que trabalharemos desenvolveram reflexões fundamentais. Esta divisão temática permite, ao mesmo tempo, distinguir as reflexões dos autores, e aproximá-los em alguns dos seus pressupostos políticos mais fundamentais. Essa técnica de exposição deixa entrever também que aquelas discussões não ficaram restritas ao momento de produção desses
autores, mas que se incorporam em e perpassam diversas outras análises que se desenvolveram (e se desenvolvem) nas ciências sociais brasileiras. É a reverberação dessas discussões no debate intelectual contemporâneo que torna necessário o seu estudo. Democracia e a herança ibérica do patriarcalismo e do patrimonialismo Tanto Buarque de Holanda quanto Faoro concedem acentuado destaque ao papel da cultura e das instituições ibéricas na formação da nossa sociedade.2 Para Buarque, o personalismo é a herança mais fundamental que recebemos da colonização portuguesa, no sentido de que está na base de muitos dos processos formativos da sociedade brasileira. A cultura da personalidade, segundo o autor, é o traço mais distintivo da evolução das nações ibéricas (e que elas não partilham com os demais países europeus). Consiste na importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um em relação aos semelhantes (Holanda, 2009: 32). Seria o personalismo a raiz tanto dos nossos muitos males, como a preponderância de uma ética aventureira em relação a uma ética do trabalho ou a subordinação do elemento cooperativo e racional ao pessoal e afetivo, como também de algumas de nossas poucas virtudes, como a plasticidade. [...] Para Buarque, também não existe solução
Importante frisar que não estamos fazendo um estudo exaustivo de suas obras, mas apenas tratando de aspectos específicos das mesmas, relevantes para o tema em questão. Para outras visões acerca dessa problemática, ver Ricupero & Ferreira (2005), Rodrigues (2007), Souza, L. (2007). 2 A análise que segue está focada nas suas obras mais influentes – Raízes do Brasil (publicada inicialmente em 1936 e depois, substantivamente reformulada, em 1948) e Os Donos do Poder (que teve a primeira edição publicada em 1958 e a segunda, muito ampliada, em 1975). Para uma comparação entre as diferentes versões das respectivas obras, ver Waizbort (2011) e Balbino (2002). 1
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da gestão política brasileira, para o autor, deriva da influência de padrões societários formados no (ou de acordo com) o âmbito familiar patriarcal:
de continuidade entre personalismo e herança rural. Pelo contrário, é precisamente pela ubiquidade da influência rural avassaladora que [ele] explica as formas mais abstratas e permanentes que o personalismo assume no nosso país. Nesse sentido, o patriarcalismo, especialmente na sua versão patrimonialista, seria a forma política específica ao personalismo. (Souza, J., 2000: 164)
[Um] dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (Holanda, 2009: 146)
Segundo o historiador paulista, a família patriarcal era o centro a partir do qual se dinamizavam os processos políticos e econômicos da sociedade brasileira colonial. Nos domínios rurais relativamente isolados e autossuficientes que se formaram nesse período, os senhores de terras absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as funções judiciárias – as quais, por essa via, acabavam por se tornar, em vez de principais garantidoras de direitos civis, simples instrumento de poder pessoal. A influência dessa configuração familiar se estenderia no espaço e no tempo na medida em que os indivíduos que tocariam à frente os processos de urbanização e industrialização no Brasil provinham desse meio. Formados nesse ambiente familiar patriarcal, não era fácil para os “detentores das posições públicas de responsabilidade” compreenderem “a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público” (Holanda, 2009: 145). Sérgio Buarque os chama de funcionários “patrimoniais”, para os quais a gestão pública (inclusive a política) apresenta-se como assunto do seu interesse particular, não estando relacionada a interesses objetivos, “como acontece no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos” (Holanda, 2009: 146). Assim, o caráter patrimonialista
Derivaria dessa “supremacia incontestável” do “núcleo familiar” o desagrado dos brasileiros quanto às relações burocráticas e impessoais, características do Estado, e o fato de tentarmos sempre reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo. Padrões que, justamente porque baseados em critérios como simpatia e lealdade, são necessariamente assimétricos, estabelecem uma hierarquia entre os indivíduos na qual os “conhecidos” (“protegidos”, “amigos” etc.) são sempre privilegiados em relação aos outros, “desconhecidos”, “estranhos”. Ou seja, enquanto a política democrática moderna se fundamenta na busca de uma igualdade (ao menos formal) dos indivíduos, nossa matriz cultural nos conduziria ao estabelecimento de distâncias e hierarquias entre eles. Toda essa configuração social leva à constituição, no âmbito da política institucional, de uma camada social voltada para a realização dos seus interesses e dos seus iguais, não particularmente preocupada com as necessidades e desejos da nação como um todo. Ocorre uma verdadeira cisão 132
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entre Estado e nação, em que apenas o primeiro polo passa a contar em termos da confecção de políticas e do controle dos caminhos da transformação social brasileira. Não é por acaso, arremata o autor, que a “ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós” (Holanda, 2009: 160). É nesse sentido que, segundo Sallum Jr. (2012: 50), em Raízes do Brasil,
próprio estamento burocrático. “Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político [...] impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando” (Faoro, 2008: 824). A característica mais importante desse Estado patrimonial (para os fins restritos do presente trabalho), conforme traçada por Faoro, está em que ele necessariamente coexiste com um sistema político marcado por uma autocracia de caráter autoritário (Faoro, 2008: 829). Trata-se de uma organização política na qual um único detentor do poder (uma só pessoa, uma assembleia, um comitê, uma junta ou um partido) monopoliza o poder político sem que seja possível aos seus destinatários a participação real na formação da vontade estatal. “O único detentor [do poder político] impõe à comunidade sua decisão política fundamental, isto é, ‘dita’-a aos destinatários do poder” (Loewenstein, 1964 apud Faoro, 2008: 829). Nessas condições, segundo Faoro, “a soberania popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo” (Faoro, 2008: 829). É notório como, em Faoro, a “herança ibérica” do patrimonialismo recai, sobretudo, na conformação do Estado. Ao contrário de Sérgio Buarque de Holanda, cujas noções de “personalismo” e “cordialidade” remetem ao tecido mesmo da vida social, às relações sociais entendidas de modo amplo – na perspectiva de Faoro, o “patrimonialismo” aplica-se a um âmbito bem mais restrito. Para usar a distinção de Vianna (1999), teríamos em Faoro o patrimonialismo como um “fenômeno de Estado”, e não como um “fenômeno societal”, como seria o caso em Florestan Fernandes e Maria Sílvia de Carvalho Franco, por exemplo. Para essa concepção centrada no domínio
a noção de democracia referia-se a uma relação política inexistente no Brasil, mas que apontava para uma aspiração cujo suporte social e político estava ainda em construção; ela se definia em contraponto aos valores do personalismo e às relações sociopolíticas oligárquicas. Estas relações oligárquicas de mando se materializavam, institucionalmente, no Estado patrimonial e se assentavam no predomínio agrário, na família patriarcal e na escravidão, excluindo do corpo político uma grande arte dos indivíduos subordinados ao Estado.
Esse diagnóstico coincide, em linhas gerais, com a análise de Raymundo Faoro acerca da conformação do Estado brasileiro. Também enfatizando a herança ibérica a marcar nossa configuração política, o autor aponta para como teríamos enraizado um modelo de Estado derivado basicamente, em seus traços fundamentais, da tradição histórica portuguesa, um Estado cujo controle político-administrativo é exercido, desde sua mais tenra formação, pela camada social que o autor denomina de “estamento burocrático”. O instrumento de poder desse estamento é o controle patrimonialista do Estado – um controle em que as fronteiras entre as esferas pública e privada são atenuadas para satisfazer imperativos ditados pelo 133
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estatal, o “atraso” da sociedade brasileira (seu tumultuado caminho em direção à modernização) seria
incrustada na formação da sociedade brasileira. Não se trata, portanto, de uma exceção de certos períodos históricos, mas do próprio andar normal da política brasileira.
resultante de um vício de origem, em razão do tipo de colonização a que fomos submetidos – a chamada herança do patrimonialismo ibérico – cujas estruturas teriam sido reforçadas ainda mais, com o transplante, no começo do século XIX, do Estado português para o solo americano. Desse legado, continuamente reiterado ao longo do tempo, adviria a marca de uma certa forma de Estado duramente autônomo em relação à sociedade civil, que, ao abafar o mundo dos interesses privados e inibir a livre iniciativa, teria comprometido a história das instituições com concepções organicistas da vida social, e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racional-legal. (Vianna, 1999: 175)
A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário. [...] O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. (Vianna, 1999: 836-837)
Em suma, para Buarque e Faoro a distinção – ou mesmo a distância – que se estabelece historicamente entre Estado e nação no Brasil não é condizente com um regime político democrático. Mas nos cabe perguntar – e é essa a questão central aqui – qual é a concepção de democracia que está subjacente a essas críticas? Não que essa problemática se eleva explicitamente ao nível de reflexão dos autores – uma determinada noção de democracia está pressuposta em suas análises, e justamente por isso é importante, na medida em que fornece o horizonte normativo a partir do qual suas críticas são realizadas. Segundo interpretamos, as reflexões dos autores se aproximam de uma concepção de democracia guiada por princípios liberais. É certo que, historicamente, essas duas doutrinas políticas nem sempre foram compatíveis – muito pelo contrário. Como mostra Bobbio (2007: 7-8), “liberalismo” é, antes de tudo, uma concepção de Estado, na qual este tem poderes e funções limitadas; um Estado liberal não é necessariamente democrático: ao contrário, realiza-se historicamente em sociedades nas quais a participação no governo é bastante restrita, limitada
Na perspectiva de Faoro, este quadro é completamente distinto de uma estrutura constitucional normativamente democrática. Nesta, mesmo que o controle efetivo do poder político esteja nas mãos de elites possuidoras (minoritárias, por definição), os verdadeiros detentores do poder – isto é, as camadas sociais que compõem o povo – participam da formação das decisões estatais mediante mecanismos de controle e seleção dessas elites. “Não importa que o encadeamento que vai da cúpula à base esteja enrijecido por minorias detentoras, contanto que o circuito percorra a escala vertical” (Vianna, 1999: 829-830). Faoro alcança a mesma conclusão que Buarque: a cisão entre Estado e nação, com uma independência característica daquele quanto aos interesses desta, está estruturalmente 134
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às classes possuidoras. “Democracia”, por sua vez, segundo o autor italiano, é uma forma de governo na qual o poder está nas mãos da maioria; um governo democrático não dá vida necessariamente a um Estado liberal: este último é justamente posto em crise pelo progressivo processo de democratização produzido pela gradual ampliação do sufrágio até o sufrágio universal. Mas também é igualmente certo que as duas doutrinas encontrarão compatibilidade ao longo dos seus respectivos desenvolvimentos, ainda que não mantenham intocadas suas características originais. Como diz Bobbio (2007: 42-43): “Não só o liberalismo é compatível com a democracia, mas a democracia pode ser considerada como o natural desenvolvimento do Estado liberal apenas se tomada não pelo lado de seu ideal igualitário, mas pelo lado da sua fórmula política, que é [...] a soberania popular”. Hoje o método democrático é necessário para a salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa, que estão na base do Estado liberal. A maior garantia de que os direitos de liberdade sejam protegidos contra a tendência dos governantes de limitá-los e suprimilos está na participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis. Liberalismo e democracia encontramse, conformando uma concepção de democracia assentada em princípios políticos do liberalismo. São estes princípios que mais diretamente importam para o presente trabalho, dado o caráter de apresentação difusa que essa ideologia apresenta
no pensamento dos intérpretes do Brasil aqui analisados. O liberalismo democrático é aqui concebido como uma “ideologia política”3 comprometida com um conjunto específico de valores e crenças, em especial o indivíduo, a liberdade, a razão, a justiça e a tolerância (ver Heywood, 2010: 40). O tema central da ideologia liberal é o compromisso com o indivíduo e o desejo de construir uma sociedade em que as pessoas possam se realizar e satisfazer seus interesses pessoais. Os liberais acreditam que os seres humanos são, acima de tudo, indivíduos, dotados de razão. Daí decorre que todo indivíduo deve desfrutar da máxima liberdade compatível com uma liberdade similar para todos. Porém, embora tenham os mesmos direitos jurídicos e políticos, os indivíduos devem ser recompensados de acordo com seu talento e sua disposição para o trabalho. As sociedades liberais são organizadas politicamente em tono de dois princípios: constitucionalismo e consentimento, criados para proteger os cidadãos dos riscos de um governo tirano. (Heywood, 2010: 37)
Assim, mais do que observar a vinculação dos autores com formulações específicas do liberalismo, seja o “clássico” ou o “moderno” (ver Merquior, 1991), o que faremos é analisar como a formação social brasileira, na análise tanto de Holanda quanto de Faoro, desenrola-se, negando alguns dos princípios norteadores da “ideologia liberal”. Comecemos pelo individualismo
Na caracterização da “ideologia liberal”, tomamos como guia principal a sistematização de Heywood (2010). Mas nos servimos também do suporte de Bobbio (2007) e Merquior (1991). 3
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moderno, esta “crença na importância suprema do indivíduo acima de qualquer grupo social ou corpo coletivo” (Heywood, 2010: 41), característico do liberalismo. Aparentemente ele poderia se aproximar do personalismo, conforme definido por Sérgio Buarque de Holanda. No entanto, na verdade, eles diferem em vários aspectos, principalmente (isto é, tomando por referência os objetivos que nos interessam neste trabalho) nas distintas direções políticas que apontam. De um lado, o individualismo foi a base para a luta liberal em torno da garantia de direitos e liberdade no âmbito político, econômico e social (Bobbio, 2007: 11-16) – direitos e liberdade cuja negação está na base do Estado patrimonial conforme teorizado por Faoro –, os quais foram posteriormente incorporados como pressuposto fundamental da democracia liberal (Heywood, 2010: 52-53). De outro lado, na visão de Buarque de Holanda, o personalismo dá origem a um tipo de solidariedade social restrita aos ambientes em que há vinculação de sentimento mais do que relações de interesses, sendo antes inimigo do que favorecedor das associações políticas estabelecidas sobre um plano vasto como o nacional (Sallum Jr., 2004). Um princípio (o individualismo) aponta para a democracia e a luta por direitos; o outro (o personalismo), para o autoritarismo e a subserviência. Observe-se a diferença:
decisões sem qualquer vínculo de mandato. [...] [A] democracia moderna pressupõe a atomização da nação e a sua recomposição num nível mais elevado e ao mesmo tempo mais restrito que é o das assembleias parlamentares. Mas tal processo de atomização é o mesmo processo do qual nasceu a concepção do Estado liberal , cujo fundamento deve ser buscado [...] na afirmação dos direitos naturais e invioláveis do indivíduo. (Bobbio, 2007: 36, grifos nossos)
Nas nações ibéricas [...] o princípio unificador foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares [...]. Por isso mesmo que rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes, para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência [...] tenha sido até agora, para eles, o único princípio político verdadeiramente forte. [...] Não existe, a seu ver, outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na obediência. (Holanda, 2009: 38-39, grifos nossos)
Como bem aponta Sallum Jr. (2012: 54), o personalismo ibérico opunha-se ao individualismo moderno porque, enquanto o primeiro “era uma afirmação das qualidades de pessoa apenas para parte dos membros da sociedade e tinha como pressuposto a desigualdade essencial dos indivíduos”, o segundo “tem como pressuposto a igualdade essencial entre os homens,
A dissolução do Estado de estamento liberta o indivíduo na sua singularidade e na sua autonomia: é ao indivíduo enquanto tal, não ao membro de uma corporação, que cabe o direito de eleger os representantes da nação – os quais são chamados pelos indivíduos singulares para representar a nação em seu conjunto e devem, portanto, desenvolver sua ação e tomar suas 136
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desiguais apenas pelas condições em que vivem e, por consequência, pelos resultados a que chegam”. Em segundo lugar, nós temos o princípio da liberdade negativa, característico do liberalismo clássico, enquanto ausência de restrições ou limitações externas ao indivíduo (Heywood, 2010: 44; Merquior, 1991: 25). Ora, se pensarmos a própria configuração das relações sociais característica da família patriarcal, conforme colocada por Holanda (2009: 80), temos já aí uma negação deste princípio, na medida em que é básica a sujeição ao patriarca. Como apontamos acima, a concentração de diversos poderes em suas mãos o colocava como catalisador de poderes arbitrários, voltados não para a garantia das liberdades individuais, mas para a realização dos seus próprios interesses. Enquanto essa descrição também se aplica ao Estado patrimonial de Faoro, acreditamos que é na caracterização do “capitalismo político” que podemos ver mais claramente a negação do princípio da liberdade (negativa). O próprio Faoro (2008: 819) coloca que, sob esse capitalismo politicamente orientado, a
dessa comparação aparece a crítica de Faoro ao papel do Estado como condutor das transformações da sociedade, significando aqui a necessidade do fortalecimento das diversas esferas da sociedade civil de modo a tornálas aptas a fazer frente a essa “social enormity” (Faoro, 2008: 837) que é o Estado no Brasil (uma clássica visão liberal, por sinal). O quanto esta configuração social foge aos princípios liberais, é evidente, na afirmação de Bobbio, de que a democracia, hoje, é o melhor método de proteção dos direitos individuais, especialmente da liberdade. [A] maior garantia de que os direitos de liberdade sejam protegidos contra a tendência dos governantes de limitá-los e suprimi-los está na possibilidade que os cidadãos tenham de defendê-los contra os eventuais abusos. O melhor remédio contra o abuso de poder sob qualquer forma [...] é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis. (Bobbio, 2007: 43-44)
Por fim, temos o próprio princípio da racionalidade (Heywood, 2010: 4446), herança iluminista que o liberalismo partilha com todo o chamado pensamento “moderno”, e que, nesse contexto, diz respeito à superação da tradição e dos costumes como embasamento da vida social. Trata-se da construção de um ordenamento social com base em princípios laicos e que tomam por referência o desenvolvimento do pensamento científico. Ora, como vimos nas análises de Faoro e Buarque, ambos, comparando mesmo que indiretamente a formação histórica brasileira com países europeus ou os Estados Unidos, parecem caminhar no sentido de mostrar que o Brasil, a partir de tais
comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos.
O que é justamente o oposto do “capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo – liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob a garantia das instituições” (Faoro, 2008: 819). Por trás 137
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parâmetros, não é “moderno”, que o aparentemente “moderno”, aqui, esconde padrões sociais “arcaicos”. E é justamente por isto que a noção de uma “herança ibérica” é sempre lida numa chave negativa. Pois, seja em termos do predomínio de princípios familiares em outras esferas sociais (Buarque), seja em termos do patrimonialismo, com a sua confusão entre as esferas do público e do privado (Faoro), os padrões socioculturais que vieram de Portugal são justamente o oposto dos princípios racionais de ordenamento social. Por um lado, a “colonização” de diversas esferas sociais pelo padrão de relações sociais característico da família patriarcal conforma uma sociedade marcada, de cima a baixo, por relações hierárquicas, concentradoras de um poder arbitrário, em que o lema “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei” não poderia ser mais distante do “Igualdade, liberdade, fraternidade” fixado pela Revolução Francesa de 1789. Ou seja, mais do que os ordenamentos jurídicos fixados racionalmente, é o padrão de relações familiares e de amizade (por definição, restritos) que dita os caminhos da vida social e política. Por outro lado, o controle patrimonial e autocrático-autoritário do Estado por uma camada social que não se renova, voltada exclusivamente para a consecução dos seus próprios interesses, e que relega o “Povo” à condição de mera massa de manobra, é, na verdade, o antípoda de uma organização política
aberta ao controle popular, em que os interesses e necessidades das camadas desfavorecidas são em alguma medida levadas em conta, até pelo fato de serem destas que parte a legitimidade do controle político por uma minoria representativa. O corolário de tudo isso é a negação, na realidade brasileira conformada por legados políticos, culturais e sociais ibéricos, dos princípios que norteiam a constituição de uma democracia liberal. No caso, especificamente da garantia das liberdades civis e da limitação do poder estatal em prol de uma sociedade civil que possa exercer a “soberania popular” (Bobbio, 2007: 42-43; Heywood, 2010: 52-55). Mas é preciso que fique claro que, em nenhum desses autores, a aceitação de tais pressupostos redunda numa defesa puramente institucional da democracia liberal. A questão primordial não consiste nos arranjos jurídicos necessários à conformação no país de eleições periódicas livres, parlamento independente etc. O ponto que preocupa esses autores, na nossa leitura, são os pressupostos socioculturais necessários para que os princípios liberais da democracia sejam minimamente concretizáveis. Trata-se do estudo das condições sociais de possibilidade da implantação de uma democracia liberal no Brasil.4 Democracia e os desenvolvimento
pressupostos
do
Sobretudo a partir do 2º PósGuerra, a “linguagem política dominante”
É esta a razão pela qual o nosso estudo não se concentra nos arranjos institucionais delimitados pela tradição liberal para a conformação de um governo democrático. Dado o próprio conjunto de temas trabalhados pelos autores aqui analisados, nos interessa menos questões como divisão de poderes e governabilidade, por exemplo, e mais o modo como a própria formação da sociedade brasileira dificultaria a concretização dos pressupostos ideológicos da democracia liberal. 4
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no Brasil se caracteriza pelo enfoque na problemática do desenvolvimento e do nacionalismo (Weffort, 2006: 298). A respeito desse contexto, Lamounier (2011: 152) afirma que a democracia estaria sem lugar na discussão intelectual. Segundo o autor, entre as décadas de 1950 e 1960 a ênfase do debate político se deslocaria para a questão da industrialização como requisito da autonomia nacional, o foco sendo, então, menos a consolidação e ordenação de um “sistema político democrático”, do que os “‘obstáculos’ políticos ao crescimento econômico”. Florestan Fernandes é um autor que encarna exceções a esta hipótese, na medida em que trata conjuntamente as problemáticas da democracia e do desenvolvimento. Conforme as palavras do próprio:
as quais apenas indiretamente se apropriariam dos benefícios materiais e morais do desenvolvimento. Este não consiste, portanto, numa questão apenas “técnica” ou “econômica”, possuindo uma clara carga política: a inexistência de mecanismos sociais capazes de garantir o controle e a orientação coletivos das opções de mudança social invariavelmente conduz à concentração dos benefícios da mudança nas mãos das camadas sociais possuidoras e detentoras do poder. Fernandes vai buscar as raízes histórico-sociais dessa situação na própria formação da sociedade brasileira. Segundo ele, a organização da sociedade colonial e imperial se dava de um modo tal que a participação regular em direitos e deveres reconhecidos socialmente obedecia a critérios e normas estabelecidos pela tradição, como a integração a uma dada comunidade familiar, o sexo, a idade e, evidentemente, a situação econômica e a localização na hierarquia social. Graças a essa composição estrutural, a maior parte da população brasileira adulta não tinha participação direta na vida política, ou nela tinha acesso para exercer atividades subordinadas aos interesses das camadas dominantes. Esta situação é que dá origem ao que Florestan chama de “democracia restrita”, um dado modo de organização do poder político e social marcado pela expressão na sociedade civil apenas (ou majoritariamente) de representantes das camadas possuidoras, que a República teria recebido como herança do Império e que teria marcado a história posterior do Brasil. No entender de Fernandes, as elites das camadas dominantes trabalharam (e trabalham) contra a implantação de uma ordem de coisas compatível com os “ideais de igualdade,
Por motivos diferentes, os alvos de desenvolvimento social, valorizados tanto nos “países adiantados” (como a Inglaterra, a Alemanha, a França, os Estados Unidos etc.) quanto nos “países subdesenvolvidos” (da América, da Ásia, da Oceania ou da África), incentivam mudanças direta ou indiretamente subordinadas aos interesses e aos valores sociais das camadas dominantes na estrutura de poder. Medidas formuladas em nome dos “interesses da nação” raramente correspondem, de fato, às necessidades vitais da comunidade como um todo. (Fernandes, 2008b: 293)
Aqui já estão colocados os principais pontos da crítica que Fernandes realiza ao desenvolvimentismo. Fundamentalmente, esta crítica aponta para a exclusão, no que tange aos alvos da mudança social planejada, dos interesses e valores sociais das camadas majoritárias da população, 139
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de segurança e de plena realização da pessoa difundidos pela civilização moderna”, porque “temem não encontrar de novo um lugar ao sol na estrutura de poder de uma sociedade brasileira renovada” (Fernandes, 1976b: 207). Essas camadas só aceitam as inovações que conseguem dominar, dirigir e aproveitar, ou seja, as inovações que não modificam a estrutura da situação e suas perspectivas de desenvolvimento. Em suma, Fernandes aponta para o fato de que, numa nação que não possui mecanismos consistentes de democratização do poder, as escolhas dos alvos básicos do desenvolvimento econômico, político e social são feitas por pequenas minorias, mais empenhadas em atender a seus próprios interesses sociais, que a levar em conta os interesses sociais da coletividade como um todo. Analiticamente, vamos nos deparar com uma situação semelhante à surgida a partir do estudo de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. As peculiaridades do processo de formação da sociedade brasileira apontam para as dificuldades de conformação no Brasil de um regime democrático entendido nos moldes liberais. Mas Florestan é mais explícito: são as “deformações” da ordem social competitiva no Brasil que obstaculizam o solapamento dos padrões políticos e sociais tradicionais, forjados na sociedade colonial (Fernandes, 2008a: 573). Um padrão restrito de democracia vai na contramão da história ao impedir a generalização de direitos e obrigações sociais que atuam como fundamentos da ordem social competitiva.
humana, a democratização da educação e do poder, a divulgação e a consagração de modelos racionais de pensamento e de ação, a valorização e a propagação do planejamento em matérias de interesse público etc. (Fernandes, 2008b: 295)
A inserção do Brasil na esfera de influência deste tipo de civilização torna inevitável a absorção de determinados padrões societários e matrizes culturais indispensáveis para o seu desenvolvimento. Para o autor, entre outros fatores, a fixação do desenvolvimento em torno dos interesses da classe dominante, exclusivamente, impede a conformação dos caracteres essenciais para o estabelecimento de uma ordem social competitiva e democrática. Ou seja, para Fernandes – nesse momento da sua produção intelectual, por volta das décadas de 1950 e 1960 (ver Portela Júnior, 2013) – a concretização da democracia no Brasil aparece umbilicalmente relacionada ao desenvolvimento da ordem social competitiva. A democracia faria parte das “potencialidades” da civilização moderna ainda a serem devidamente exploradas. Em várias ocasiões, ele afirma que a democratização (da renda, do prestígio social e do poder) é “inerente” à emergência e ao desenvolvimento da ordem social competitiva; e que, no caso brasileiro, a persistência de desigualdades herdadas da ordem social tradicionalista conformam “deformações” no padrão de integração, funcionamento e evolução da ordem social competitiva, que obstam, por consequência, a conformação de uma democracia no País (ver Fernandes, 2008b: 8). Assim, para o autor, o padrão civilizatório da sociedade ocidental
A expansão orgânica da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica requer, essencialmente, a universalização e o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa 140
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moderna necessariamente implica a conjugação entre ordem social competitiva e (algum nível de) democratização do poder, da renda e do prestígio social. Ou seja, a conformação de uma ordem social democrática deve ser buscada também porque permite superar as “inconsistências” que marcam o processo de conformação de uma ordem social competitiva no Brasil. Isto é, superar as “falhas” que advêm da sua harmonização com fatores característicos do ordenamento social do período colonial.
aquela que começa a surgir no século XIX e que desemboca na construção dos fundamentos da “democracia liberal”) foi e é dependente da aceitação de pressupostos capitalistas. Segundo Macpherson (1978), tendo surgido nas sociedades capitalistas de mercado, a democracia liberal, como conceito (e, depois, como instituição concreta), desde o início admitiu uma pressuposição básica inconsciente que o autor define como “o mercado marca o homem”. No campo da teoria política, essa característica teria apenas se acentuado com o passar do tempo. Veja-se a formulação do modelo de democracia mais influente no período pós-guerra, o de Joseph Schumpeter. Nele, a democracia aparece, primeiro, como um simples mecanismo para escolher e autorizar governos, e, segundo, como um mecanismo marcado pela competição entre dois ou mais grupos dos quais sairão as minorias (elites) governantes. Macpherson é claro ao desnudar a analogia pressuposta nesse modelo: a democracia, aqui,
Isso não significa afirmar que Florestan Fernandes concebeu a sociedade de classes brasileira como um projeto abortado; pelo contrário, em sua interpretação, a sociedade de classes estava em pleno desenvolvimento no Brasil. No entanto, se ela não era um projeto frustrado era, ao menos, um projeto mutilado, pois lhe faltava o vigor de um elemento central no moderno padrão de civilização: a igualdade na competição (em termos de uma ordem social competitiva) e a igualdade na participação do processo politico e no usufruto dos direitos previstos pelo estatuto legal (em termos de uma ordem social baseada no princípio político-jurídico democrático). [...] Em suma, para atingir sua plenitude – não sendo apenas uma caricatura de uma ordem social que se realiza somente no âmbito do crescimento econômico – a sociedade de classes brasileira teria de consolidar efetivamente o estilo de vida democrático, sob pena de sua frustração (Souza, P., 2007: 90)
é tão somente um mecanismo de mercado; os votantes são os consumidores; os políticos são os empresários. Não surpreende que o homem que primeiramente propôs esse modelo fosse um economista que passou toda a sua vida profissional elaborando modelos de mercado. Nem surpreende que os teóricos (e depois os publicistas e o público) tomassem esse modelo como realista, porque também eles viveram e trabalharam numa sociedade impregnada de conduta mercantil. Não apenas o modelo do mercado parece corresponder, e, portanto, explicar, ao verdadeiro comportamento político das principais partes componentes do sistema político – os votantes e os partidos; ele parecia justificar aquela conduta,
Florestan Fernandes não está sozinho nessa linha de argumentação. Em termos históricos, a reflexão moderna sobre a democracia (isto é, 141
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e daí todo o sistema. (Macpherson, 1978: 82-83)
política, também envolveria denotações democráticas. Nas palavras do autor:
Não é nossa intenção aproximar o pensamento de Fernandes de Schumpeter, apenas destacar o pressuposto comum da realização de democracia no seio de uma ordenação capitalista do sistema econômico e das relações sociais. Mas a analogia encontra aí seus limites, pois o próprio sentido com que Fernandes concebe a democracia, enfatizando a necessidade da definição coletiva dos rumos do desenvolvimento da nação, está na contramão de um pensamento que restringe a elites dominantes o papel de condução do futuro da sociedade. A diferenciação continua mesmo no nível da relação axiológica do sociólogo paulista, tanto com o modelo estadunidense de democracia, quanto com a ordem social competitiva. De um lado, é notório como, no interior de uma discussão acerca da incorporação de dividendos da civilização moderna no Brasil, ele afirma que “ninguém tem dúvidas de que seria muito mais produtivo importar os ideais democráticos norte-americanos, verbi gratia, que a forma histórica de realização atual da democracia nos Estados Unidos” (Fernandes, 1976a: 245). Isto porque Fernandes reconhece que “à democracia liberal são inerentes limitações fundamentais, que redundam na sua incapacidade de eliminar iniquidades sociais que são incompatíveis com a própria democracia” (Fernandes, 2008c: 167). Na verdade, o próprio termo “ordem social competitiva” – que remete diretamente à constituição de uma ordem social capitalista, burguesa – não pode ser entendido apenas nessa referência, segundo Cohn (1986). O uso do termo por Florestan Fernandes, nesse momento da sua trajetória intelectual e
Mas, quando ele [Florestan Fernandes] fala numa “ordem social competitiva”, ele está pensando o competitivo em termos que envolvem uma referência democrática, eu quase diria uma incorporação pelo viés socialista de certos temas ao pensamento liberal, a saber, uma ordem social em que os mecanismos de organização e funcionamento dos processos sociais assegurem a possibilidade de acesso universal a meios, recursos e instrumentos e na qual de alguma maneira [...] haja algo assim como a possibilidade de uma carreira universal aberta ao mérito. (Cohn, 1986: 135-136)
Nesse sentido, o desenvolvimento (democratizado) da ordem social competitiva no Brasil é visto como o caminho possível e provável, nas condições imperantes no país, de superar os entraves do “antigo regime” que mantém vivas formas pré e subcapitalistas de exploração do trabalho, e que impedem a plena universalização da cidadania. É em termos dos seus potenciais democratizantes que tal desenvolvimento é encarado e defendido, e não como “solução política”, isto é, não significando uma identificação com a proeminência econômica, sociocultural e política da classe burguesa, que ela implica. Democracia e liberalismo As reflexões de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Florestan Fernandes, no quadro interpretativo estabelecido acima, nos parecem expressivas de como a apropriação do liberalismo democrático pode ser, simultaneamente, o fundamento de críticas sociais progressistas e uma limitação em termos de perspectivas 142
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políticas. Num sentido, ela embasa críticas sociais que reclamam, e lutam, pela concretização dos seus ideais na realidade histórica. O liberalismo democrático fornece como que moldes ideais, marcados pelos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade (e mesmo da racionalidade, como é o caso em questão), que possibilitam a apreensão das contradições políticosociais da formação brasileira sob uma perspectiva progressista. Assim em Sérgio Buarque de Holanda, para quem a superação das matrizes culturais herdadas de Portugal possibilita o estabelecimento de relações sociais, embasadas institucionalmente, mais igualitárias e racionais entre as pessoas, portanto não hierarquizadas a partir de “relações de simpatia” ou de relações familiares; em Faoro, que contrapõe ao patrimonialismo a organização de um Estado aberto ao controle, mesmo que limitado, do “Povo”, e que garanta liberdades individuais fundamentais não apenas na esfera política, mas também na econômica; e em Fernandes, que advoga, no sentido de superar a “democracia restrita” que marca a história política brasileira, a definição coletiva (isto é, atenta aos interesses e necessidades da maioria) dos rumos, do desenvolvimento da sociedade. No entanto, a apropriação do liberalismo democrático é também limitadora na medida em que fixa um horizonte político além do qual não se ousa avançar. No caso dos três autores trabalhados, este limite se evidencia no fato de não chegarem ao ponto de
questionar o quanto a relação entre a democracia liberal e o capitalismo5 obstaculiza a realização desses mesmos ideais democráticos. Na verdade, uma crítica geral que se pode fazer aos três é que eles, em alguma medida, idealizam os traços da evolução social, política e econômica dos países “centrais”, isto é, dos países não ibéricos, para Buarque e Faoro, notadamente os Estados Unidos (Souza, J., 2000); e os “casos clássicos” ou “típicos” do desenvolvimento capitalista e da Revolução Burguesa, para Fernandes (Cardoso, 2005: 23, 28). Em Buarque, a aposta nas relações sociais construídas no ambiente urbano como principal caminho para a superação das nossas heranças ibéricas (Souza, J., 2000: 167) deixa não pensadas as hierarquias sociais que são estabelecidas por esse novo mundo urbano, as quais não se coadunam com princípios que ditam a necessidade de relações igualitárias entre as pessoas. Faoro, de modo semelhante, em sua crítica do “capitalismo politicamente orientado”, não aborda as contradições sociais envolvidas no estabelecimento e desenvolvimento do “capitalismo moderno”, as quais mantêm a exclusão intrínseca à ordem capitalista. Por fim, Fernandes conscientemente põe em segundo plano o fato de que uma ordem social competitiva desenvolvida, ao mesmo tempo em que insere o Brasil na esfera da “civilização moderna”, não altera o caráter subordinado das camadas sociais majoritárias. A constituição de uma ordem social democrática, estabelecida a partir de princípios liberais, se pode em alguma medida contribuir para a definição coletiva dos
Uma “economia capitalista ou de iniciativa privada organizada em linhas mercadológicas” é mesmo uma das principais características de um regime liberal-democrático, conforme Heywood (2010: 52). 5
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rumos do desenvolvimento, encontra seus limites ao não possibilitar, por si mesma, a superação das desigualdades econômicas e sociais intrínsecas à ordem social competitiva. É certamente possível argumentar que essas perspectivas dos autores – ou, caso se precise fazer essa ressalva, o modo como nós interpretamos as perspectivas dos autores – advenha, em boa parte, não de uma identificação completa com o liberalismo democrático ou a ordem social competitiva; mas que, dentro das condições histórico-sociais colocadas no Brasil, nos diferentes momentos em que eles escreveram, eles viam esse caminho como sendo o
mais capaz de êxito no sentido de se constituir uma democracia no país.6 Em todo caso, no conjunto, esses três autores mostram um aspecto da análise da democracia que aparece em segundo plano atualmente: o estudo dos fundamentos sócio-históricos em que a democracia brasileira se desenvolve. Certamente eles fornecem um ponto de apoio para se construir a crítica seja de análises exclusivamente voltadas para os aspectos institucionais da democracia, seja de estudos embasados numa visão anistórica do presente, que desconsidera os próprios processos formativos da sociedade brasileira.
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O PODER NO ISLÃ CLÁSSICO E NA FILOSOFIA POLÍTICA DE IBN KHALDUN: UM ESTUDO DOS CONCEITOS DE UMMA E ASSABIYA Carlos Douglas Martins Pinheiro Filhoi Resumo Com o propósito de compreender a noção de poder no pensamento social árabemuçulmano, realiza-se um estudo dos conceitos de umma e assabiya, em diálogo com Ibn Khaldun (1332-1402), na obra Al-Muqaddimah, e seus interlocutores. Neste sentido, articulo elementos da narrativa biográfica do profeta Mohammad (Maomé, ou Muhammad) com o propósito de construir uma sociogênese da umma, unidade políticosocial precursora do Império Árabe-Islâmico. Por fim, retorno a Ibn Khaldun e a seu conceito de assabiya, que tem como propósito designar os laços de solidariedade advindos do parentesco, comunidades ou nações, traduzido com “espírito de corpo” ou “solidariedade de grupo”. Palavras chave: Poder; Política; Islã clássico; Ibn Khaldun; Pensamento social árabemuçulmano.
POWER IN CLASSICAL ISLAM AND IN IBN KHALDUN’S POLITICAL PHILOSOPHY: A STUDY OF THE CONCEPTS OF UMMA AND ASSABIYA Abstract: To understand the notion of power in the Arab-Muslim social thought, this research makes a study of the umma and assabiya concepts in dialogue with Ibn Khaldun (1332-1402) in Al-Muqaddimah and his interlocutors. For the purpose of building a sociogenesis of the umma – the political and social unit precursor of the Muslim Empire –, we introduced the biographical narrative of the Prophet Muhammad (or Mohammed). Finally, to demonstrate the socio-cultural intermingling of these two concepts, we return to Ibn Khaldun and his concept of assabiya, which is designated as bonds of solidarity arising from kinship, communities or nations, translated as “Spirit of Corps” or “Group Solidarity”. Keywords: Power; Policy; Classical Islamic philosophy; Ibn Khaldun; Islamic social thought.
Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisas em Sociologia da Cultura (NUSC/UFRJ). Atualmente é professor de Sociologia pela Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC), na Escola Técnica Estadual Henrique Lage. i
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Introdução
religiosas, formuladas por intelectuais e grupos inseridos neste contexto com o propósito de inserir estes autores como vozes legítimas para o diálogo com as Ciências Sociais modernas. Parto dos conceitos de umma e assabiya como categorias nativas, procurando descrever e analisar os discursos de agentes, sua configuração e o seu contexto histórico. Busca-se desenrolar sua historicidade dando voz aos protagonistas desta experiência, como Ibn Khaldun e outros, e seus interlocutores como Bisso, Coggiola, Lawrence, Alatas, Dhaouadi e Connell, com o propósito de traçar uma sociogênese1 desses conceitos, pela descrição e análise histórico-cultural do islã, abordando elementos da biografia do profeta Muhammad. Inicialmente procura-se compreender a relação entre o islã e as demais religiões monoteístas, nas suas origens, pois a plurirreligiosidade é uma noção-chave para compreender o conceito de umma, comunidade fundada na tolerância com as religiões monoteístas e tributária da tradição árabe pagã da Meca pré-islâmica. Neste sentido, pode-se pensar a umma como uma comunidade plurirreligiosa nas origens, mesmo que não haja um Estado “laico” no sentido ocidental, relativizando narrativa característica do processo civilizatório euro-cristão. Posteriormente, procura-se
O propósito deste estudo é compreender como o poder foi abordado no pensamento social árabemuçulmano, a partir dos conceitos de umma e assabiya. A compreensão dos conceitos depende do entendimento do contexto em que estes são reificados, e vice-versa, na medida em que o próprio conceito mantém “fossilizadas” certas expressões dessas vivências e das formas de pensamento a ela culturalmente atreladas. Neste sentido, apesar de sua historicidade, penso que o estudo desses conceitos colabora na compreensão da noção de poder na atualidade, constituindo um patrimônio intelectual que deve ser reivindicado pelas Ciências Sociais. Este estudo também é uma resposta ao etnocentrismo intelectual, de maneira crítica, mas positiva e propositiva (Spickard, 1998: 174). Como alerta o autor, a transposição de modelos de análise ocidentais e os pressupostos culturais euro-cristãos nas formulações da sociologia da religião, como problema da autoridade religiosa em Weber, a teoria da secularização e da escolha racional, não podem ser considerados paradigmas universais para compreender as religiões. Pelo inverso, o propósito do trabalho é considerar os elementos culturais, morais e éticos do Islã, sua cosmologia própria e concepções sociopolíticas e
Utilizo o conceito de sociogênese inspirado nas obras de Norbert Elias, O processo civilizador, volumes 1 e 2 (Elias, 1992, 1993), em que define sua abordagem dos processos históricos, compreendendo sociogênese e psicogênese como elementos relacionais articulados em um processo mais amplo de longa duração. A sociogênese, grosso modo, refere-se às mudanças gerais e estruturais deste mesmo processo histórico. Assim, Elias estudava um determinado processo civilizatório, europeu, que acabou por influir nos demais, num sentido universal. Porém, destacamos que compreendemos sua teoria como método, não sendo aplicáveis os mesmos pressupostos relativos ao processo civilizatório europeu, como descrito por Norbet Elias, como modelo de compreensão ético para o processo histórico específico da cultura árabe-muçulmana. 1
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levantar elementos para compreender o entrelaçamento entre a religião e a comunidade no islã, explorando o viés sociopolítico do debate. Assim, descrevese como o profeta Mohammad tornouse líder daquela comunidade ao fundar a umma, e cujo poder decorre de uma racionalidade política, comunitária e suprarreligiosa. Por fim, busca-se descrever o conceito de assabiya a partir dos estudos de Ibn Khaldun (1987) a respeito da ascensão e queda dos Estados, que trata de elementos do islã clássico, outros acontecimentos históricos e acontecimentos de sua atualidade no Norte da África.
que Jesus era mais que profeta. (Lawrence, 2008: 27)
Osvaldo Coggiola (2007) em Islã histórico e islamismo político, cita Karen Armstrong ao descrever a origem do islamismo, dizendo que o autor relacionou seu nascimento com mudanças significativas na vida social dos coraixitas2 da região de Meca. “Especificamente com uma mudança rápida e dramática de uma vida nômade nas estepes da Arábia para uma vida muito próspera baseada no comércio da região de Meca” (Coggiola, 2007: 5). O autor comenta que o Islã, quando Mohammad começou a defini-lo, recebeu uma variedade de influências, especialmente do Judaísmo e do Cristianismo, religião com comunidades crentes na região. Após a queda do reino judeu de Asmoneus, em 37 a.C., e uma nova diáspora, os judeus haviam se instalado em toda a Península Arábica. Era grande a sua comunidade em Meca e nos arredores. Os cristãos também eram numerosos na Arábia pré-islâmica e o Cristianismo havia se espalhado pela península e pela África, onde a Igreja Copta era forte e o Egito figurava como reino cristão.
Os Primórdios do Islã Na Meca pré-islâmica, Alá, que significa o Deus em árabe, era mais um dos 360 ídolos de pedra em torno da Ka’ba, onde diversos cultos conviviam conjuntamente. A peregrinação e as sete voltas em torno da Pedra Negra eram práticas comuns em diversos cultos. A Ka’ba havia se tornado uma Casa Sagrada muito frequentada, um lugar que Abraão partilhava com outros, com ídolos que representavam deuses locais e divindades tribais. Dizia-se que esses ídolos possuíam um poder que rivalizava com o do Deus de Abraão. Algumas pessoas iam a Meca lançavam dúvidas sobre o poder dos ídolos, dizendo que, após Abraão, haviam surgido outros profetas, todos proclamando um deus não presente nos ídolos. Alguns dos não-partidários dos ídolos eram os judeus, cujo profeta era Moisés. Outros eram os cristãos, cujo profeta era Jesus, embora alguns deles fossem mais longe, afirmando
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O Islamismo era uma síntese nova, capaz de transcender e de superar as divisões entre as tribos, unindo os árabes. Das condições novas de vida surgia a necessidade, tanto como a possibilidade, da união dos árabes sobre as divisões tribais. (Coggiola, 2007: p. 6)
Citando Armstrong, Coggiola (2007) apresenta como Mohammad foi o agente de uma nova espiritualidade ajustada às suas próprias tradições
Os coraixitas foram os integrantes da tribo dominante na cidade de Meca.
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que se oferecia aos árabes, mas que também poderia proporcionar, ao mesmo tempo, um conhecimento universal para poder comerciar. Neste sentido, o caráter “multicultural” do povo muçulmano é interpretado como garantia de sobrevivência comercial, adotando a tolerância como forma de relação com o “outro” e de convívio com a alteridade (Coggiola, 2007: 6). O surgimento de Mohammad operou sérias mudanças na vida cotidiana daquela sociedade. Ele estava decidido a trilhar uma vida moral ascética, com preces e jejuns, procurando uma “doutrina clara para substituir o caos de divindades e os matadouros que eram os sacrifícios de sangue realizados em volta do templo de Meca” (Rogerson, 2004: 101).
à sua frente. Disse Gabriel: “Recita!” Mohammad era analfabeto, porém disse as palavras sem as ler, saíram de sua boca como se fizessem parte dele (Lawrence, 2008: 28-29). Assim se faz a “revelação” de Deus a Mohammad, tornando-o a última voz a serviço divino. O então negociante de Meca se transformará em profeta, centrando-se na pregação do monoteísmo e no discurso da salvação do juízo final. Sua voz, legitimada pela sua experiência visionária da escritura sagrada do “livro-visão”, muda sua vida, levando-o a pregação em Meca. A oralidade é um aspecto de notória importância, reflexo não apenas do islã, mas de toda tradição oral préislâmica na qual Mohammad estava inserido, fato traduzido no Corão, um livro para ser lido em voz alta, com rimas que imprimem uma determinada entonação, fazendo da fala um canto. A compreensão do Corão está ancorada “no patrimônio de récitas legendárias que constituíam o fundo comum da poesia árabe” (Bissio, 2012: 133). Diga-se de passagem, antes de ser um livro escrito, o Corão era um “livromemória” que o profeta Mohammad recitava para sua esposa Khadijah e os primeiros muçulmanos e, depois, para toda a comunidade muçulmana, a umma. Destaco uma elucidativa passagem de Bruce Lawrence (2008), recordada da discussão sobre a transformação do comerciante de vida mundana no profeta do Islã:
Do Comerciante ao Profeta Mohammad era um comerciante oriundo de uma família pobre da poderosa tribo dos Banu Quraysh ou coraixitas, força sociopolítica dominante em Meca. A despeito de sua origem, era órfão de pai e mãe, criado inicialmente pelo avô e, depois do falecimento deste, pelo tio Abu Talib. Por indicação deste tio, começou a trabalhar logo na infância com a condução de camelos. Amadurecido, casa-se com a viúva Khadija, muitos anos mais velha do que ele, e membro de família de ricos comerciantes mecanos. Desta maneira, Mohammad torna-se um comerciante e passa a dirigir caravanas. Tinha o costume, como muitos comerciantes de Meca, dentre eles muitos cristãos e judeus, de jejuar e meditar nas cavernas de Hira, onde costumava passar o mês sagrado do Ramadã. A primeira revelação, ocorrida ali enquanto meditava, consiste num diálogo com o anjo Gabriel que ordena que ele recite um pergaminho que surge
Tinha de suportar longos períodos em eu não havia voz interior. Sempre que a ouvia, repetia o que escutara para que os outros pudessem lembrar as palavras exatas. Acima de tudo, contava com sua amada [...] esposa Khadijah. Ela se tornou a primeira muçulmana [...]. (Lawrence, 2008: 31) 150
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A primeira muçulmana é aquela que primeiro, por ser sua esposa, sua família, compartilha suas palavras recitando, construindo sua memória e fazendo multiplicar as vozes. A recitação tornou-se um extraordinário ato de memória coletiva, que ecoou após a morte de Mohammad, permitindo que esse mesmo “livro-memória” fosse finalmente escrito. Logo veio a experiência visionária da Viagem Noturna. Nesta noite Mohammad teria viajado, conduzido pelo anjo Gabriel, para Meca, Jerusalém e ao mais elevado trono do céu. Lá encontra e é saudado pelos profetas ancestrais: Adão, Jesus, João Batista, José, Salomão, Moisés, Miriam, Ismael, Isaac, Elias, Noé e Abraão, o profeta máximo, que encontra no sétimo e último nível. Nesta noite, na Sidrati il-Muntahab,3 Gabriel ofereceu sua comunidade e beneficência divina, contanto que os seus seguidores rezassem 50 vezes por dia. Mohammad teria aceitado. No retorno Moisés lembrou-lhe que 50 orações era demais. Então Mohammad retorna e negocia com Gabriel a recitação diária de 5 preces (Lawrence, 2008: 34). É notório como a passagem reflete uma hexis3 do diálogo e negociação, em que Mohammad é saudado em um ato de apoio consensual ao “ultimo profeta de Deus”. Finalmente, legitimado por este “fórum-visão”, Mohammad estava pronto para tornar-se líder político. Comparando a revelação divina do evangelho bíblico, cujo caráter histórico
de sua narrativa tem como produtoprodutor Jesus, um homem, a revelação divina no Islã tem como sujeito-objeto a voz, a palavra divina expressa na fala do líder profético, eternizada no Corão. Hégira e a Formação da Umma Os muçulmanos passaram a incomodar os governantes de Meca, ricos comerciantes da tribo dos coraixitas, e Mohammad foi muito perseguido pelo seu tio Abu Lahab e sua mulher. Crítico da vida suntuosa e fútil, ele instava os muçulmanos a criar uma sociedade justa e igualitária e a respeitar e ajudar os pobres [...]. A mensagem de Allah transmitida por seu profeta atraía sobretudo as camadas mais pobres e todos os descontentes com as desigualdades sociais. (Bissio, 2012: 104)
Seus caminhos encontram uma profunda mudança ao morrer Khadija e seu tio, pai adotivo e protetor, Abu Talib. Assim, Mohammad ficou vulnerável à solidão e à perseguição, tornando-se cada vez mais visado e atacado. O principal canal de comunicação de que Maomé [Mohammad] dispunha com o exterior eram as feiras anuais realizadas nos arredores de Meca. Nesses eventos, reconhecidos como intervalos de trégua, até seus mais virulentos adversários não podiam atacar. (Lawrence, 2008: 41)
Num momento de intensa perseguição no ano de 622 d.C., o profeta
Cito Muniz Sodré (2009: 84) que, partindo dos estudos de Aristóteles, define: “Hexis é a possibilidade de instalação da diferença na imposição estaticamente identitária do ethos. O sujeito se apropria dos costumes herdados e tradicionalmente reproduzidos (portanto, concretamente, da moral, socialmente condicionada e limitada) com a disposição voluntária e racional de praticar atos justos e equilibrados dirigidos para um bem, uma virtude, um dever-ser [...]. Satisfaz deste modo uma exigência propriamente ética [...]”. 3
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e seus adeptos muçulmanos (muhajirun) se refugiam em Yathrib, um povoado situado num oásis que, posteriormente, se chamaria Medina (literalmente cidade em árabe). Sua diáspora é chamada de hégira (hijrah) e passou a marcar o início do calendário muçulmano. Ao chegar, Muhammad e os muçulmanos unificam as tribos de Aus e Khazraj que convertidas ao islamismo pelo “Pacto de Aqaba” passam a se chamar Ansar (“os ajudantes”). Além disto, segundo Ibn Ishaq (2013), os muçulmanos e judeus da região teriam feito um acordo que os comprometia a colaboração mútua numa comunidade plurirreligiosa.
Com relação a Moisés, profeta máximo judaico, este teria sido seu conselheiro na negociação com Gabriel que se seguiu à Viagem Noturna, conforme citada anteriormente. Refletindo sobre a plurirreligiosidade, um personagem apresentado por Raewyn Connell em seu livro Southern theory (2007) é exemplar: Al-Afghani foi um intelectual e líder político do séc. XIX, considerado o pai do modernismo islâmico, associava a defesa do islã à interculturalidade. Despendeu boa parte de sua vida adulta viajando pelo mundo islâmico, de Kolkata ao Cairo, passando alguns períodos em países cristãos, sem se fixar em nenhum lugar. Estava profundamente envolvido com a política das elites, tendo sido conselheiro dos monarcas do Afeganistão, Irã e do Império Otomano. Também se envolvera com a reforma política em diversos países como o Egito e Irã. Al-Afghani foi um pensador original e teve um potente impacto intelectual que influenciou outros pensadores depois dele de diversas maneiras. Pode ser considerado um intelectual de tipo historicamente novo. Estava dividido entre duas culturas, a dos imperialistas e a dos colonizados, e atuou na sua interseção; era considerado um dos primeiros pensadores do mundo a tentar mobilizar recursos de ambas as culturas para gerar poderosas questões. Parece ter sido um grande orador e professor, além de ter criado um dos primeiros jornais do mundo islâmico. Sobre a comunidade, Beatriz Bissio (2012) nos coloca que Muhammad é o elo que unifica a sociedade muçulmana, toda ela parte da umma, comunidade fundada em Medina. A referência em um determinado território sempre foi questão secundária para os membros da umma, fato que teria grande importância
As regras de convivência definidas por Mohammad, cujo manuscrito original chegou intato até os nossos dias, ficaram conhecidas como “Constituição de Medina” ou “Pacto do Ano I” e traduzem a visão política do profeta. (Bissio, 2012: 105)
Surge assim a umma, a comunidade muçulmana, que em seus primórdios compartilhava decisões políticas comuns, muçulmanos e judeus. Apesar de a umma corresponder à comunidade de muçulmanos em termos religiosos, politicamente tinha suas ações com base na decisão conjunta com outras comunidades religiosas. Tanto o que diz respeito ao Corão quanto nas sunas e hadith é possível uma interpretação que ressalta tolerância religiosa com os “Povos do Livro”, judeus e cristãos, as religiões monoteístas abraâmicas, reconhecendo, inclusive, os profetas de ambas como verdadeiros: Ó Povo do Livro, não vos excedais em vossa religião, e não digais acerca de Deus nada senão a verdade. O messias, Jesus filho de Maria, foi somente um Mensageiro de Deus [...]. (Qu’ran, 2013, 4: 171) 152
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O conceito de assabiya, como definido por Ibn Khaldun (1985), é considerado central em sua obra Al-Muqadimah, estimado por seus interlocutores como o conceito mais estudado do autor, termo que tem se revelado de difícil tradução, pois tratase de um neologismo criado por Ibn khaldun (Bissio, 2012: 134). Entretanto, a última palavra deriva da raiz arábica assab, que significa vincular (Dhaouadi, 1990: 325). Sem um sinônimo preciso de tradução para as línguas vernáculas, o termo tem sido traduzido como espírito de corpo, group feeling, social cohesion ou solidariedade agnática (Tradulse, 1987; Bissio, 2012; Dhaouadi, 1990; Alatas, 2006, 2007). Ibn Khaldun (1987) realizou estudos sobre a ascensão e queda de vários estados do Magreb, concentrando sua análise nas diferenças sociais de organização da vida entre as sociedades nômades e sedentárias. Segundo Syed Farid Alatas (2006: 401), “Ibn Khaldun’s thesis was that groups with strong ‘assabiya’ could establish political rule over those with weak ‘assabiya’”. Como exemplo, a assabiya dos beduínos, que foi mais forte e presente, permitiu derrotar militarmente grupos sedentários, possibilitando o estabelecendo de suas próprias dinastias no entorno das áreas urbanas (Alatas, 2006: 401). Esses grupos, diz o autor, onde a assabiya é mais forte, são grupos nômades que conservam seus laços de solidariedade e que possuem seus próprios meios de defesa, mantendo sua soberania. São grupos cuja política é exercida pela comunidade, representada na figura de um líder, um pai fundador, e a soberania assegurada pelo ímpeto guerreiro dos membros masculinos mais jovens da sociedade. Segundo Beatriz Bissio (2012: 134), a assabiya é o elemento de
na coesão e irradiação do Império Muçulmano. A concepção muçulmana de pertencimento a uma unidade transcendente no plano religioso, o que torna difícil isolar os componentes do Islã, como a religião e seu legado temporal. Neste sentido, para os fiéis, não existe caráter duplo e, sim, um Islã único e indissociável (Bissio, 2012: 103). Assim, a fala do profeta tem nova transformação: além de professar a fé em Allah, Deus único, também assume caráter político, de líder da comunidade. A diáspora, para Medina (hégira), marca o início da contagem do tempo do calendário muçulmano por determinação do califa Umar Ibn Khattab, primeiro a interpretar essa mudança como decisiva para a fé islâmica. Ibn Ishaq (2013) também dá destaque a esta passagem: From a persecuted religious teacher in Mecca, Muhammad in Medina became the leader of a religious community and was acknowledged to be the messenger of God […] [and] by careful diplomacy and firmness of purpose, he began to create a brotherhood of the faith, transcending all other ties and relationships, even those of father and son. This brotherhood united all Muslims by giving them a common purpose – the defence of the faith – and made God, and His prophet, the final source of law. (Ibn Ishaq, 2013: s/p)
Neste sentido, o profeta, líder carismático, aparece como fundador do Estado, sua voz, a lei. A unificação tribal e o monopólio da violência por parte do profeta, posteriormente do Califa, ocorre pela voz como mediadora dos conflitos, estabelecendo a lei. A voz do profeta é a voz de Deus, mas também a voz do líder, do governante. Ibn Khaldun e o Conceito de Assabiya 153
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coesão do grupo que torna os beduínos tão temíveis e que permite entender por que os povos menos civilizados realizam conquistas mais vastas.
cada uno de sus combatientes, de proteger a su familia y su agnación, es la primordial (Ibn Jaldun, 1987: 276)
La soberanía es, pues, la meta concluyente de la assabiya. En una tribu compuesta de varias familias principales, con sus respectivos assabiyas, se precisa que una de estas últimas supere a las demás y las reúna bajo su dirección, formando con ellas un solo haz. Entonces la tribu constituiría una sola y poderosa assabiya. Sin tales providencias la desunión sobrevendría en la comunidad, resultando de allí las pugnas y querellas. (Ibn Jaldun, 1987: 296)
O ato fundador da política entre os homens é a ligação entre parentes para ajuda mútua e proteção, o que, segundo Ibn Khaldun (1987), ocorre antes da formação dos Estados, visto que a vida nômade antecede o sedentarismo, a formação das cidades e o surgimento do Estado (Ibn Khaldun, 1987: 267). Ibn Khaldun (1987) reconhece o fundamento político da sociedade, em termos diacrônicos, nos grupos nômades de beduínos (al-umran al-badawa) em que a política é pautada pela liderança e soberania, de forte assabiya; e, em termos sincrônicos, nos laços de relação mais elementares, como no parentesco. Sendo a assabiya uma categoria analítica que não remete à razão, mas ao afeto, a solidariedade e relações que não dependem de vínculos racionais. Assim, Ibn Khaldun (1987) mobiliza uma primeira definição de assabiya na explicação da coesão de grupo advinda dos laços de parentesco, os primeiros e mais próximos laços entre as pessoas. Para o autor, “cuanto más inmediato es el parentesco entre los coligados, más íntima se es la unión y más sólida” (1987: 277). A assabiya é a força que deriva do conhecimento ou crença de que esses indivíduos compartilham uma origem comum (Alatas, 2007: 276). Podemos dizer, então, que em termos de relações humanas num dado contexto, sua força é primeiramente definida de forma absoluta, ou seja, pelos laços agnáticos.4
Ibn Khaldun (1987) contextualiza sua definição na análise dos grupos nômades, tribos do deserto nas quais a agressão recíproca entre membros do grupo “cesa a la voz de sus ancianos y de sus jefes, a quienes todo el mundo respeta y venera profundamente” (Ibn Jauldun, 1987: 275). No que diz respeito à proteção, os nômades são autossuficientes, e cada tribo “cuenta com selectos grupos de guerreiros compuestos por su juventude más briosa” (Ibn Jauldun, 1987: 275). Porém, estes grupos só poderiam repelir ataques externos caso pertencessem a uma mesma assabiya, ou seja, caso compartilhassem laços comuns de sangue, partilhando um partidarismo entre os parentes de sangue, a força vital de uma tribo ou povo que se expressa na vontade comum. Eso es justamente le que hace a los contingentes beduinos tan fuertes y tan temibles; puesto que la idea de
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Parentesco por sanguinidade de linha masculina.
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Posteriormente, Ibn Khaldun (1987) traz uma segunda definição de assabiya, ilustrada por ele no exemplo do homem que deixa sua tribo e adere a outra, adotando a genealogia da outra tribo e encontrando um novo lar ali (Dhaouadi, 1990: 325). Neste caso, a origem comum não ocorre por laços agnáticos, mas por outros fatores relativos, como parentesco ou a crença na origem comum. Dentre esses tipos de laços enquadrados nesta definição, cita a relação entre o patrão e o cliente, o familiar, o amigo e o agregado.
O processo de conversão do conceito absoluto para o relativo decorre da análise da constituição sócio-histórica do poder nas sociedades árabe-muçulmanas analisadas por Ibn Khaldun (1987). Descreve o abandono da vida nômade e de uma linhagem “pura” em prol da fundação de cidades e formação de um Estado. Conclusão Pode-se dizer que a assabiya é o núcleo de entendimento da teoria política de Ibn Khaldun, em que, assim como demonstra Bissio (2012: 138), o espaço onde o poder é exercido se configuram como círculos concêntricos em que o núcleo é a capital.
Estos lazos son casi tan fuertes como los sanguíneos […]. Quiere decir que el verdadero parentesco consiste en esa unión de ánimos que hace valer los lazos sanguíneos y que impele a los hombres a la solidaridad; exceptuad esa virtud el parentesco no es más que una cosa prescindible, un valor imaginario, carente de realidad. (Ibn Jaldun, 1987: 277)
Una dinastía es mucho más poderosa en la capital de su gobierno que en los extremos y fronteras de su imperio. Cuando ha extendido su poder hasta su radio, que es el límite máximo, ya no podría llevarlo más allá. Es así como los rayos de la luz que emanan de un punto central, y las ondulaciones circulares que se extienden sobre la superficie del agua al ser herida. (Ibn Jaldun, 1987: 334)
Essa segunda análise traz uma definição relativa da assabiya, que pode se fazer pelos vínculos afetivos e de solidariedade que os grupos estabelecem entre seus membros, como no caso da diáspora que fez surgir a umma em Medina. Neste sentido, Ibn Khaldun (1987) diz que o “sentimiento de afecto y solidaridad” é o que “conduce el espíritu de la ‘assabiya’” (Ibn Jaldun, 1987: 278). A assabiya é uma força social “centrípeta” que descreve o processo pelo qual um grupo dominante conquista outros grupos, atraindo-os para sua liderança e centralizando o poder, levando à acumulação crescente de assabiya e à extensão de seu raio de influência. Neste sentido, “la finalidad última de toda assabiya es la conquista del poder” (Ibn Jaldun, 1987: 297).
Porém, Ibn Khaldun (1985) nota que os impérios têm um ciclo próprio de ascensão e queda. Ao realizarem conquistas e formarem impérios, as tribos dominantes vão tornando-se sedentárias e passam a experimentar uma erosão gradual de sua assabiya na medida em que vão assumindo o modo de vida sedentário. Em outras palavras, os hábitos sedentários vão substituindo o modo de vida nômade, reduzindo o sentimento de coesão social. Os impérios possuem um ciclo que podem ser reduzidos a cinco fases, segundo Ibn Khaldun (1985: 356): a primeira corresponde à conquista de 155
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um reino com a tomada do poder de uma antiga autoridade; a segunda, o soberano usurpa toda a autoridade e priva o povo da participação do poder; a terceira é um período de ociosidade e sossego. Com a redução da coesão na vida social, a força militar de um líder será minada e sua capacidade de governar estará comprometida. O ciclo se completa quando a dinastia é conquistada por um grupo de tribos pré-sedentárias, com a assabiya intacta, que substitui o mais fraco, urbanizado. As tribos dominantes e as elites são substituídas em uma base cíclica, mas o sistema permanece estável. Esta é a natureza do ciclo Khaldunian. Analisando o processo em que grupos humanos conquistam e exercem o poder, Ibn Khaldun (1987) explicita que o poder e a religião não estão necessariamente vinculados. Exemplifica como sociedades que não professam religião e nas quais há um poder estabelecido. Porém, o autor atribui papel fundamental à religião que duplica a força da assabiya dirimindo conflitos entre os seus componentes. “Señala a todos una dirección común, la de la verdad.” (Ibn Jaldun, 1987: 328). Sendo a umma a unidade política basilar para formação de um novo tipo de Estado na região, ela é plataforma de unificação das tribos árabes, apesar de se expressar em definições religiosas, tem seu fundamento numa racionalidade política intramundana, definida pela articulação de interesses extrarreligiosos: aliança entre diferentes grupos para o combate de um inimigo em comum, unificação territorial de diferentes grupos, monopólio da violência, da justiça e do poder. A umma seria caracterizada pelos deveres e direitos, políticos e sociais, definidos no Corão, somados à fé, tanto no plano espiritual como
temporal. Assim, foram tomando forma seus rituais, festividades, calendários e suas vestes, chamadas na jurisprudência islâmica dar al-Islam, desafiado a se expandir para o território estrangeiro, dar al-harb. O fato de a umma se situar acima de qualquer divisão étnica, linguística, política ou social, dá-lhe o caráter universal (Bissio, 2012: 107). Constitui, de fato, uma nação formada por aqueles que reconhecem na fé comum o espaço de convívio social, separando os grupos que não professam a mesma fé por fronteiras invisível, barreiras culturais. Essa foi à primeira fronteira invisível e abstrata que Muhammad quis alargar substituindo a solidariedade tribal de sangue por uma adesão voluntária ao Islã, unindo os árabes muçulmanos frente àqueles que recusavam sua mensagem (Bissio, 2012: p. 109)
Para Al-Afghani, a religião é a chave do progresso, pois recusava a dicotomia modernidade/tradicionalismo tão familiar ao pensamento social ocidental: Pois é sabido que a religião é, sem dúvida, a fonte de bem-estar do homem, por isso, se for colocada em bases firmes e sólidas, a religião se tornará naturalmente a fonte da completa de felicidade e perfeita tranquilidade. Acima de tudo, será a causa do progresso material e moral. (Connell, 2007: 115)
Segundo Ali Shariati (Connell, 2007:115), o Islã não está apenas envolvido com o social, mas é, especificamente, uma religião revolucionária, comprometida desde o início com a igualdade social e contra as estruturas de poder de qualquer tipo, reforçando o caráter político da 156
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religião, estruturada pela militância e mobilização social. Para Ibn Khaldun (1987), o povo cuja assabiya está fortalecida por uma doutrina religiosa, estando todos unidos numa mesma meta, torna-se invencível.
dos árabes e lhes permitiu expandir a mensagem islâmica além da península Arábica, com o universalismo da umma, sendo a base da liderança inspirada por vocação religiosa; posteriormente, o efeito assabiya, elemento fundamental que dá suporte para tornar a religião um movimento histórico, mesmo sendo a religião um fator determinante na história islâmica. Por último, outros fatores sociais, que se mantiveram a despeito da ascensão do Islã, que não pôs fim à diversidade de grupos constitutivos da sociedade muçulmana. Na visão de Al-Jabri, religião e assabiya são fundamentais para a compreensão da dinâmica da sociedade árabemuçulmana (Dhaouadi, 1990: 326).
Una dinastía mantiene bajo su obediencia a pueblos tan fuertes como el suyo, e incluso más fuertes, a condición de que lo haya sometido después de haber duplicado sus fuerzas con el influjo de la religión. (Ibn Jaldun, 1987: 328)
Al Jabri, segundo Dhaouadi (1990), identifica três forças que moldaram a história árabe-islâmica até o tempo de Khaldun. Primeiro, o fator religioso, pois o Islã havia mudado o caráter beduíno
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BLOOD & HONOUR: NEONAZISMO E TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Eric Monné Fraga de Oliveirai Resumo O intuito, neste artigo, é discutir uma organização de caráter neonazista da perspectiva da teoria dos movimentos sociais. Com base nas contribuições teóricas e empíricas de Alain Touraine e Sidney Tarrow, a proposta é pensar como essa teoria pode contribuir para a compreensão da organização neonazista Blood & Honour e como esta se encaixa nas proposições contemporâneas acerca dos movimentos sociais. Além disso, são considerados os apontamentos de Axel Honneth acerca das lutas por reconhecimento em um caso emblemático, no qual a capacidade dos agentes de se sentirem reconhecidos e estimados depende da desigualdade material e jurídica entre eles e aqueles a quem se opõem. Palavras chave: Teoria dos movimentos sociais; neonazismo; luta por reconhecimento; racismo, violência
BLOOD & HONOUR: NEO-NAZISM AND SOCIAL MOVEMENT THEORY Abstract: The article aims to discuss a neo-Nazi organization from a Social Movement Theory perspective. Based on the theoretical and empirical contributions provided by Alain Touraine and Sidney Tarrow, our purpose is to evaluate how such a theory can contribute to the understanding of the neo-Nazi organization Blood & Honour and how this organization can be classified according to the contemporary propositions regarding social movements. Furthermore, we will also consider Axel Honneth’s arguments on the struggles for recognition in order to understand such an emblematic case, in which the possibility for the agents to feel recognized and valued depends directly on the material and legal inequalities between themselves and those they oppose. Keywords: Power; Policy; Classical Islamic philosophy; Ibn Khaldun; Islamic social thought.
Eric Monné Fraga de Oliveira é mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e atualmente é doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), conduzindo pesquisa independente. E-mail: ericmfo@hotmail.com. i
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Introdução
organização.2 Nosso intuito é verificar se essa organização pode ser pensada como um movimento social, além de refletir sobre as formas pelas quais se constitui a estrutura de oportunidades e de mobilização de recursos, quais são seus símbolos e como são manipulados, quais são seus objetivos, aliados e opositores. Antes, porém, faz-se necessário esclarecer a relação de Salas e de Buford com o tema tratado. Antonio Salas é um jornalista espanhol que se infiltrou em um terreno em que se articulam três áreas distintas mas interligadas: música e estética skinhead, neonazismo e hooliganismo no futebol.3 Salas (2006) se relacionou, durante a infiltração, com diversos grupos neonazistas, skinheads (incluindo os que se identificam à esquerda do espectro político) e hooligans, mas, no presente artigo, apenas sua interação com as divisões espanholas do Blood & Honour e a discussão sobre o início da “subcultura”4 jovem skinhead e sua relação com o
Neste artigo, o objetivo é realizar uma breve análise da organização de extrema-direita Blood & Honour do prisma das teorias dos movimentos sociais e do multiculturalismo. O referencial teórico utilizado é composto sobretudo dos desenvolvimentos de Axel Honneth, Alain Touraine e Sidney Tarrow dentro dessa temática, uma vez que suas contribuições para a teoria dos movimentos sociais, não sendo mutuamente excludentes, ajudam a elucidar o caso de organizações calcadas no preconceito racial e étniconacional. Além disso, vamos nos valer, por meio de utilizações pontuais, de apontamentos teóricos e empíricos de Benedict Anderson, Norbert Elias, Stuart Hall e Ron Eyerman. As informações sobre o Blood & Honour – e, pontualmente, sobre outros grupos neonazistas – foram extraídas dos trabalhos de Antonio Salas e Bill Buford, além da coleta realizada no site1 da divisão britânica da própria
Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk>. Acesso em abr. 2015. Desse modo, apresentamos dois tipos de informação: as de primeira mão, obtidas da organização, sem o uso de intermediários; e as de segunda mão, conseguidas por meio de mediadores. Com isso, oferecemos mais riqueza e complexidade à análise. 3 O conceito de hooliganismo tem sido intensamente disputado por vertentes divergentes e apresenta uma problemática bastante profunda, dada a multiplicidade de formas de uso da violência física no contexto de futebol que se pretende abarcar em cada análise. Para fins de esclarecimento, todavia, optamos por utilizar a definição oferecida por Spaaij (2006: 11): “Hooliganismo no futebol é definido aqui como a violência competitiva de grupos de fãs de futebol socialmente organizados, dirigida sobretudo contra grupos de fãs opostos [Football hooliganism is defined here as the competitive violence of socially organized fan groups in football, principally directed against opposing fan groups]” (grifo do original). 4 Uma discussão aprofundada sobre o termo “subcultura” pode ser encontrada em Subculture: the meaning of style (Hebdige, 1991), em Resistance through rituals: youth subcultures in post-war Britain (Hall & Jefferson, 2004) e em Subcultures: cultural histories and social practice (Gelder, 2007). A fim de não fugir a nosso escopo, de forma resumida, podemos dizer que, com base nas discussões das três obras citadas, o conceito de subcultura se refere a um sistema de práticas culturais, crenças, ideologias, rituais e estilos de vida pertencentes a um grupo social – normalmente formado exclusiva ou majoritariamente por jovens – que se inclui dentro de uma comunidade cultural maior, mas que procura ativamente se diferenciar desta por meio da contestação de e da disputa por seus símbolos culturais. 1 2
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neonazismo têm relevância. Já a obra de Buford (2010), um norte-americano que realizou um trabalho, também de cunho jornalístico, entre hooligans ingleses, foi utilizada mais com a finalidade de corroborar as informações de Salas sobre as organizações neonazistas e suas relações com o hooliganismo e com a subcultura skinhead, fornecendo elementos para uma generalização mais correta. Seu papel secundário é providenciar dados para a afinidade entre o National Front e o neonazismo. Neonazismo: conceito
breve
elaboração
a Adolf Hitler e aos demais líderes do nazismo tradicional; eleger e privilegiar oponentes sociais, políticos e culturais distintos etc.5 Dessa forma, a organização aqui estudada representa apenas uma das diversas nuanças de articulação dessa ideologia. A segunda precaução está relacionada ao fato de que a categoria neonazista normalmente não é utilizada pelos membros dos próprios grupos para identificarem a si mesmos individualmente ou aos próprios grupos. Trata-se de uma categoria de acusação,6 utilizada por pessoas e grupos que não pertencem ao movimento. Essa designação tem sido atribuída amplamente por diversos jornais (Castro, 2014), grupos políticos (Whitford, 2011), pesquisadores acadêmicos e também pela esfera jurídico-legal. De acordo com BailerGalanda e Neugebauer, “neonazismo, um termo jurídico, é compreendido como a tentativa de propagar, desafiando diretamente a lei (Verbotsgesetz), a ideologia nazista ou medidas como a negação, a subvalorização, a aprovação ou a justificação do assassinato em massa nazista, especialmente o Holocausto” (1996: 6).7 Em nossa pesquisa, não se verificou a ocorrência do termo neonazismo em nenhuma das seções do site da organização Blood & Honour. Assim como outros grupos identificados como neonazistas, os membros da Blood & Honour preferem utilizar em
do
As formas de se conceituar o polêmico e disputado termo “neonazismo” nas ciências humanas em geral e nas ciências sociais em particular encontram alguns problemas que necessitam de abordagem específica antes de iniciarmos a análise, a qual precisa de elaboração prévia do conceito. Faz-se necessário ter duas precauções ao se utilizar o termo neonazismo, sobretudo em artigos acadêmicos. A primeira diz respeito à variedade de grupos que podem ser abarcados por esse termo. As coletividades identificadas como neonazistas não formam um grupo homogêneo: cada grupo pode vir a apresentar as próprias definições acerca do caráter no nacional-socialismo; mobilizar de modo específico sua simbologia, sua memória e sua história; atribuir diferentes níveis de importância
De acordo com Andrade (2014), por exemplo, grupos brasileiros como o Valhalla 88 trazem o foco de seu ódio sobretudo para nordestinos e nortistas migrados para as regiões Sul e Sudeste do Brasil, além de homossexuais, judeus e comunistas. 6 Sobre as categorias de acusação, ver Velho (2008: 59-60) e Duque (2014). 7 Todas as citações em idioma estrangeiro foram traduzidas por mim. No caso dessa citação, escolhi traduzir a expressão “a legal term” por “um termo jurídico”, em vez de “um termo legal”, mesmo sabendo que não são sinônimos perfeitos, por ser uma opção que, sem mudar o sentido original, oferece mais clareza e fluidez ao texto. 5
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especial termos como “nacionalistas” ou “nacional-socialistas”8 para se referir a seu caráter político individual e coletivo. Magalhães (1998) pôde constatar a mesma ocorrência em sua pesquisa acerca dos defensores do negacionismo/ revisionismo do Holocausto: “Esta corrente [revisionista do Holocausto] é a efetiva herdeira do [Partido NacionalSocialista dos Trabalhadores Alemães] NSDAP e dela fazem parte indivíduos que se autodenominam simpatizantes do nazismo, sem o prefixo neo” (Magalhães, 1998: 201, grifo do original). Além da definição oferecida por Bailer-Galanda e Neugebauer (1996), outras duas definições acadêmicas para o conceito de neonazismo merecem destaque, uma vez que ajudam a precisar o termo. A primeira foi oferecida por The Danish Center for Holocaust and Genocide Studies (Centro Dinamarquês de Estudos do Holocausto e do Genocídio): “Neonazismo é o nome da derivação moderna do nazismo. É uma ideologia radicalmente de direita, cujas principais características são o nacionalismo extremo e a xenofobia violenta”.9 De acordo com esse centro de estudos, o neonazismo é uma continuação da ideologia nazista tradicional, porém adaptada a um novo contexto histórico, visando a seu restabelecimento como ideologia política válida. Para McGowan (2003), o neonazismo é a corrente ideológica à qual pertencem indivíduos e grupos que defendem a restauração do Terceiro Reich e anseiam por um Estado
totalitário baseado em uma ideologia étnico-racial, ainda quando tais grupos se apresentam fora da Alemanha, uma vez que o pangermanismo não é a única forma de nacionalismo possível para esses grupos. O termo neonazismo apresenta, portanto, diversas definições acadêmicas possíveis, de acordo com a orientação de cada pesquisa, tanto do ponto de vista teórico-metodológico quanto do ponto de vista empírico, isto é, do objeto real estudado. Contudo, embora abordem pontos distintos, tais definições não são mutuamente excludentes, podendo ser combinadas para a análise. Aqui trataremos o conceito de neonazismo como uma característica atribuída a grupos – formais ou não – que se organizam, a partir do pós-Guerra, em torno dos ideais promovidos pelo nacional-socialismo, adaptando essa ideologia política às novas condições históricas, sociais, culturais e econômicas. Suas principais intenções incluem a aceitação pública do nazismo como uma orientação política legítima; o endurecimento das leis de migração, sobretudo no território europeu; o orgulho “racial”, “nacional” ou mesmo “pancontinental” (no caso dos grupos neonazistas europeus); o estabelecimento político, econômico, cultural e social da superioridade da “raça ariana”; e a criação de estados totalitários ancorados no nacionalismo étnico-racial. Além disso, o revisionismo do Holocausto promovido pelos nazistas
Na seção “Home” do site, a organização afirma ter sido fundada para acolher aqueles que lutam por seu povo, “sendo eles racistas de direita, patriotas, nacionalistas ou nacional-socialistas lutadores da liberdade”. Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/home1.html>. Acesso em abr. 2015. 9 Disponível em <http://www.holocaust-education.dk/eftertid/nynazisme.asp>. Acesso em 12 abr. 2015. 8
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e a aversão a orientações de gênero e de sexualidade alheias ao padrão heteronormativo são características predominantes.
futebol e violência ao estilo musical. Avessos ao pacifismo hippie, esses jovens começaram a formar grupos relativamente coesos e orientados por um comportamento violento (já em suas origens jamaicanas, a postura violenta estava presente no estilo musical). Raspar a cabeça, além de deixar o rosto perfeitamente imberbe, tornou-se regra nos grupos como sinal de que eles estavam constantemente preparados para o combate físico.10 Com o passar do tempo, esse estilo musical se tornou cada vez mais popular entre jovens brancos, que passaram a constituir a maioria de seus ouvintes. Após uma ligeira queda desse fenômeno na segunda metade da década de 1960 e no começo dos anos 1970,11 com o surgimento do movimento musical punk na Inglaterra, os grupos de jovens skinheads (apelido derivado de suas cabeças raspadas) voltaram a ganhar força e número. No início, eram politicamente apartidários, embora fossem fortemente marcados por um sentimento de rejeição e de revolta. Entretanto, suásticas e cruzes gamadas, elementos do imaginário simbólico nazista, foram reapropriadas por alguns desses grupos, sendo de início utilizadas unicamente para fins provocativos, como forma de transgressão, de demonstração de repulsa contra a sociedade inglesa, na qual se sentiam abandonados. Em pouco tempo, porém, esses símbolos deixaram de ser meramente sinais de
Surgimento da organização Blood & Honour A organização Blood & Honour tem um início bastante particular, cuja elucidação demanda que se explique, mesmo que superficialmente, um fenômeno que lhe é anterior. Apesar de ser uma organização europeia de caráter neonazista, apenas é possível compreendê-la situando o contexto internacional de mudanças geopolíticas. De acordo com Salas (2006), depois da independência jamaicana em relação ao Reino Unido, conquistada gradualmente entre 1958 e 1962, grandes contingentes de jovens jamaicanos migraram para a Inglaterra em busca de melhores oportunidades de emprego e levaram sua música consigo. Logo esse estilo musical que os acompanhou – uma mistura “agressiva” de mento, calipso, swing, jazz, jive e rhythm & blues que veio a se chamar ska –, combinado com um ritmo bastante intenso de dança, alcançou notável popularidade entre outros jovens urbanos de origem proletária, tornando-se parte de seu estilo de vida e de sua construção identitária. Dessa integração surgiram os mods (diminutivo de modernists, modernistas), que, com o passar do tempo, começaram a agregar cerveja,
Por questões práticas, cabelos e barbas compridos podem facilmente ser fatores negativos em lutas físicas: podem se enroscar em lugares inoportunos, atrapalhar a visão e possibilitar puxões desestabilizadores por parte dos adversários. 11 Segundo Salas (2006), a responsabilidade por isso recai sobre a ação da polícia, dos tribunais e da imprensa contra esses jovens, cujas ações violentas se intensificaram e passaram a se relacionar cada vez mais com o futebol depois da vitória da seleção inglesa no Mundial de Futebol de 1966, criando o fenômeno hooligan. 10
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revolta e se tornaram parte do nascente movimento neonazista.12 A mobilização de símbolos nazistas eventualmente levou à mobilização de conceitos, sentimentos e ideologias neonazistas. Foram necessários alguns anos até que, desse contexto, a figura de Ian Stuart Donaldson, vocalista da banda Skrewdriver – que, a partir de 1984, se torna central no cenário skinhead neonazista13 –, emergisse com destaque. De acordo com o site da Blood & Honour, seus membros originais começaram a se organizar no White Noise Club, em Londres, considerado por eles até então a linha de frente da “revolução musical” do Rock Against Communism.14 Em 1985, Ian Stuart cantou pela primeira vez no clube a música “Blood & Honour”, que se tornaria o hino da organização. Em 1987, depois de uma desilusão com a casa de música mencionada, os skinheads neonazistas que a frequentavam e que se agrupavam cada vez mais sob o lema Blood & Honour e menos sob seus nomes anteriores, como Last Resort Skins e West London Skins, compareceram à reunião convocada por Ian Stuart para um diálogo acerca do futuro dos skinheads que frequentavam o White Noise Club. Com Paul Burnley, membro da No Remorse, outra banda neonazista proeminente, em junho de 1987, Ian Stuart formou um grupo político e de distribuição de música neonazista chamado Blood & Honour (Sangue e Honra), com a ajuda de
membros de outras bandas skinheads neonazistas, como a Sudden Impact e a Brutal Attack. A organização tem, desde então, como suas principais atividades o preparo de concertos de música neonazista, especialmente na Europa, e a composição e publicação de uma revista homônima para divulgação tanto de música neonazista quanto de sua ideologia. Seu nome é uma referência direta ao imaginário nazista: Blut und Ehre era o lema da juventude hitlerista, a organização paramilitar do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP). Cabem, então, as perguntas: o Blood & Honour, como representante do neonazismo, pode ser considerado um movimento social? Por quê? Que códigos morais e simbólicos o guiam? Quais são suas oportunidades políticas e suas formas de ação? Como se captam e mobilizam os recursos? Qual é a base sobre a qual está assentada sua estrutura? Quais são seus aliados e oponentes? Segue uma tentativa de respostas a essas perguntas. Blood & Honour: um movimento social? Para pensar se a organização Blood & Honour, fundada para a divulgação de música e de ideologia de caráter neonacionalistas, constitui um movimento social, vamos nos debruçar, neste artigo, sobre o livro Poderemos viver juntos?, de Touraine (1998), pois consideramos que sua definição de
Não se deve cometer o equívoco, todavia, de tomar todo grupo skinhead como um grupo de ideologia neonazista. Em verdade, a maior parte dos grupos skinheads pode ser classificada de três formas: 1) neonazistas; 2) anarquistas ou comunistas (em suas diversas vertentes), também chamados de SHARPs, sigla para SkinHeads Against Racial Prejudice, ou seja, skinheads contra o preconceito racial; e 3) apartidários, embora normalmente descontentes com a ordem política e econômica atual. 13 Salvo exceção, utilizaremos o termo skinhead para nos referirmos aos skinheads neonazistas. 14 Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/home1.html>. Acesso em 14 abr. 2015. 12
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grupo acredita que se posiciona contra uma forma de dominação que defende o multiculturalismo em detrimento da identidade branca inglesa/europeia que os constituiu em sujeitos. Podemos notar a presença dessa crença no editorial da 42a edição de sua revista homônima, como se demonstra no fragmento a seguir: “‘As condições da experiência vivida de um grupo oprimido estão diretamente conectadas ao tipo de músicas de resistência que este grupo vai produzir’. Nós somos a resistência branca do rock’n’roll ”.16 Dando sequência à formulação de sua teoria, Touraine distingue os movimentos sociais em três tipos: societais, culturais e históricos. Será suficiente, para os propósitos definidos aqui, que nos atenhamos apenas aos movimentos societais. Os movimentos societais “combinam um conflito propriamente social com um projeto cultural” (Touraine, 1998: 118-119), nos quais se constrói o sujeito em seus direitos, ao mesmo tempo que se luta contra um adversário. O que constitui um movimento de tipo societal “é a associação entre um apelo moral e um conflito diretamente social, isto é, opondo um ator socialmente definido a outro” (Touraine, 1998: 122). No caso das sociedades ocidentais atuais, o apelo dos movimentos societais é quase sempre em direção às liberdades individuais. De modo bastante “deformado”, a Blood & Honour corresponde a esta característica: a defesa de seus princípios, de seu pensamento e de sua expressão está frequentemente
movimento social, particularmente de antimovimento social, é especialmente capaz de fornecer uma abordagem inovadora e pertinente ao assunto. Embora definir de modo preciso o que é um movimento social para esse autor não seja tarefa simples, quando a questão é uma organização como a Blood & Honour, esse tipo de raciocínio se torna mais possível. Segundo Touraine, os movimentos sociais são caracterizados como “um tipo muito particular de ação coletiva [...] pelo qual uma categoria social, sempre particular, questiona uma forma de dominação social [...] invocando contra ela valores e orientações gerais da sociedade, que ela partilha com seu adversário, para privar este de legitimidade” (1998: 113). Em outras palavras, um movimento social busca não apenas defender os interesses de determinado grupo mas também destruir uma relação de dominação. Até aqui, ainda é muito nebuloso definir se o Blood & Honour constitui um movimento social, dadas as particularidades desse grupo, as quais serão analisadas mais adiante. Podemos adiantar, todavia, que o Blood & Honour, por não lutar contra uma forma de dominação à qual eles estariam de fato sujeitos – já que gozam do privilégio étnico-racialnacional (uma vez que suas fileiras são integradas sobretudo por jovens brancos ingleses/europeus,15 e não imigrantes ou descendentes de imigrantes de outros grupos étnicos), em cujo terreno constroem suas demandas –, não seria um movimento social. Por outro lado, o
Optamos por salientar a identidade inglesa, apesar da transnacionalidade do grupo, por ter sido fundado na Inglaterra e ser lá onde se realiza a maior parte de suas operações. 16 Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue42/issue42p_3.html>. Acesso em 15 abr. 2015. 15
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acompanhada pelas noções relacionadas à ideia de liberdade individual, ainda que seus membros neguem esse ideal para seus oponentes e não raro se manifestem contra esse próprio ideal. Em suma, a Blood & Honour defende a liberdade individual deles próprios de serem contra as liberdades (e mesmo contra a existência) de seus oponentes. Boa parte dos editoriais das revistas do grupo deixa esse apelo às liberdades individuais, sobretudo à liberdade de expressão, evidente por meio de seu disclaimer:
organize simultaneamente pela rejeição de algo existente (no plano material ou no imaginário) e pela conquista de alguma forma de reconhecimento (seja na luta por bens – materiais ou imateriais – escassos, seja pela garantia de direitos efetivos ou simbólicos, ou por outros tipos de conquista). Então, nesse sentido, o que define a organização Blood & Honour? Seria a defesa de uma ameaçada “raça ariana” ou o ataque direto aos estrangeiros, judeus e grupos jovens de tendência anarquista? Em uma primeira análise, tende-se a responder a essa questão com a segunda alternativa proposta. Entretanto, é fácil compreender, por meio dos trabalhos de Buford (2010) e Salas (2006), além do que se pode ler no próprio site da organização, que, para os sujeitos que dela são membros, a primeira alternativa de resposta seria a mais correta.18 Reformulemos, então, a pergunta: os objetivos reais desse grupo são os expostos por seus membros ou os que os não membros veem com base nas ações dos próprios membros do grupo? Na realidade, defendemos que não é possível pensar analiticamente esse
[A revista] Blood & Honour é produzida para refletir os pontos de vista de seus leitores e não tem a intenção de prejudicar, desonrar ou pregar nenhuma política ou ódio contra nenhuma religião ou raça. Os artigos incluídos nestas páginas não são necessariamente do editor e não deveriam ser interpretados como tais. Liberdade de expressão deve ser aplicada a todos nós.17
Segundo Touraine, enquanto os movimentos societais se definem por seus objetivos construtivos, as revoltas se orientam por aquilo que rejeitam. É difícil imaginar uma luta coletiva que não se
Disponível em várias edições: <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue42/issue42p_3.html>; <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue41/issue41p3.html>; <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue19/issue19p02.html>; <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue40/issue40p3.html>. Acesso em 15 abr. 2015. 18 Supor que a “autodefesa da raça ariana”, como costuma ser dito pelos sujeitos que participam dessas organizações, não passa de uma demagogia utilizada por eles é ignorar o sentido que esses grupos têm para os agentes que deles formam parte. Embora reconheçamos que não existam formas de preconceito racial direcionado à “raça ariana” e que são pessoas e grupos majoritariamente brancos que continuam a ocupar as principais posições de dominação, sobretudo no Ocidente, não podemos dizer que a crença ideológica da Blood & Honour seja meramente demagógica. Ao contrário, ela está ancorada em um modo específico de interpretar o mundo, por mais que exista uma quantidade quase infinita de dados que demonstre a falta de adequação dessa crença à realidade da dominação étnico-racial. 17
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grupo sem considerar os dois objetivos em conjunto. É preciso interpretar tanto o que o grupo diz quanto o que se diz sobre ele. Nesse caso, uma hipótese não precisa excluir a outra. Para o Blood & Honour, o que eles entendem como “defesa da raça ariana” aparece sempre junto ao ataque contra grupos não arianos, sobretudo imigrantes ou judeus, ou de orientação política de esquerda – ataques advindos de uma rejeição radical que não permite nenhum diálogo com os grupos adversários. Sendo assim, o neonazismo em geral e o Blood & Honour especificamente parecem se encaixar naquilo que Touraine chama de “antimovimento social”, ou seja, aquilo que surge “quando um ator social identifica-se inteiramente com uma aposta cultural [...] e então rejeita seu adversário como inimigo, traidor ou simples obstáculo a eliminar” (1998: 140). Dessa forma, os antimovimentos sociais rompem com qualquer possibilidade de diálogo ao recusar completamente qualquer legitimidade a seus adversários. Os skinheads neonazistas do Blood & Honour constituem um exemplo concreto dessa situação: estão completamente identificados (ideológica e emocionalmente) com a proposta neonazista; esta não é uma posição política à qual se possa aderir apenas parcialmente.19 Sua “aposta cultural” é, primeiro, em uma Europa racial e culturalmente branca, livre de estrangeiros – e, em menor grau, com menos importância, tal proposta também serviria para a América do Norte20 e
para a Austrália. Para eles, essa seria a precondição para a Europa “reconstruir sua antiga glória”, reafirmando a posição de superioridade da raça branca. Para cumprir esse ideal, faz-se necessário destruir seus inimigos (os sionistas – designação destinada a todos os judeus – em sua economia neoliberal supranacional e os migrantes que chegam à Europa, sobretudo os negros – africanos, afro-caribenhos, jamaicanos, sul-americanos, entre outros – e os muçulmanos – tanto os africanos quanto os árabes e asiáticos – mas também orientais e latinos), os traidores (brancos europeus e americanos com orientação política liberal – os quais são vistos como traidores da causa branca que buscam o lucro imoral do mercado liberal controlado pelos sionistas – ou de esquerda, particularmente os mais “radicais”, como anarquistas e comunistas) e seus maiores obstáculos (as políticas multiculturais, que incluem os estrangeiros nas terras europeias e que, para o Blood & Honour, têm como efeito a destruição da identidade tradicional branca europeia). A área do site da organização voltada para citações de seu fundador, Ian Stuart Donaldson, oferece diversos modelos dessa visão de mundo. Vejamos duas que se demonstram exemplares: [1] Eu não sou o tipo de pessoa que vai rastejar para um bando de esquerdistas pacifistas frouxos e sionistas de duas caras. Você deve ser honesto para as pessoas em relação às suas crenças, especialmente
Embora a adoção da estética geralmente utilizada pelos membros desse grupo não precise ser completa, especialmente entre as mulheres. 20 A maior parte dos skinheads europeus tem uma posição confusa – até para eles – e mesmo ambígua em relação aos Estados Unidos. Os motivos para essa confusão serão abordados mais adiante. 19
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de um comunitarismo antimulticultural centrado na Europa. Ele representa a recusa a qualquer tipo de relação social com comunidades não brancas: para o Blood & Honour, é necessário que se crie um orgulho público da raça branca23 para que esta possa se unir contra os imigrantes e contra a dominação sionista. Isso significa que a resposta para todos os problemas presentes na sociedade europeia, desde a década de 1970 (com os choques do petróleo, o desmonte de grande parte do welfare state e a implementação de práticas econômicas neoliberais), é, para o Blood & Honour, muito simples: retirar os imigrados das terras europeias, em defesa das tradições locais e devolvendo o emprego aos homens brancos, ao mesmo tempo que se devem desarticular a economia e a política sionistas.
quando a sobrevivência da nossa própria raça está em jogo. [2] Muitas pessoas sentem que raças e culturas não se misturam. Isso pode estar tocando em algumas feridas, mas a verdade é que os negros estão roubando nossos empregos e deixando o homem Branco com o desemprego. Olhe então para os judeus. Sua dieta básica é o dinheiro, o controle de tudo de que se pode retirar um belo lucro. E então você tem os comunistas que querem esse absurdo de igualdade para todos. 21
Retornando à elaboração teórica desenvolvida por Touraine, o autor percebe, nos antimovimentos sociais, uma ação de defesa contra a dominação da “globalização”,22 “em nome de uma tradição comunitária e não para defender a liberdade do sujeito” (Touraine, 1998: 140), impossibilitando a construção de conflitos, levando a uma resposta violenta contra a possibilidade de relacionamento com as outras comunidades. Dessa forma, o “antimovimento social” Blood & Honour pode ser considerado uma expressão
O desenvolvimento de um antimovimento social Partindo da concepção dos movimentos (e antimovimentos) sociais construída por Touraine, o Blood & Honour se constitui, portanto, não propriamente como um movimento social, mas como
Disponível em <http://www.bloodandhonourworldwide.co.uk/isd/quotes.html>. Acesso em 15 abr. 2015. Cabe observar que a inicial da palavra “branco” está em maiúscula. No original, o termo “White man” também encontrava a inicial da palavra “white” em maiúscula. Isso não pareceu erro de digitação, uma vez que tal ocorrência pode ser vista diversas vezes na página em expressões como “White man” e “White people”. Acreditamos que esse uso seja a expressão, no uso da linguagem, da crença na superioridade da raça branca. 22 Não é o escopo do presente trabalho discutir o termo globalização, o que, por si só, levaria a um artigo ou a um livro inteiro, dependendo do motivo da discussão. Para nossos fins, é suficiente pensarmos a globalização nos termos que propõe Hall em Da diáspora: identidades e mediações culturais: uma intensificação ocorrida a partir da década de 1970 de um processo muito mais antigo, que já havia tomado formas muito distintas, mas que, desde então, é regido sobretudo pelo fortalecimento de um sistema econômico em escala global, “no sentido de que sua esfera de operações é planetária” (Hall, 2003: 56). 23 O editorial da edição n. 43 da revista nos oferece um exemplo: “Se racismo é admitir/ que existe diversidade racial,/ então você pode me chamar de racista/ e eu estou orgulhoso em sê-lo!/ Isso não tem a ver com odiar as outras raças/ isso tem a ver com amar a sua própria./ Então, você vê, não existe nada de errado mesmo/ quando é demonstrado orgulho racial”. Disponível em <www.bloodandhonourworldwide.co.uk/magazine/issue43/issue43p_2.html>. Acesso em 15 abr. 2015. 21
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parte de um antimovimento social mais amplo, visto que suas propostas não são consideradas por meio do conflito pela via do diálogo, mas do confronto pela via da violência (Wieviorka, 2006), dada a recusa completa de reconhecimento da legitimidade da alteridade – ainda que essa proposta apareça revestida como simples autodefesa de uma supostamente ameaçada raça branca, de uma supostamente ameaçada cultura europeia. Faz-se necessário compreender como se constitui esse antimovimento social. Já foi dito contra o que e contra quem o Blood & Honour se propõe a lutar. Agora, antes mesmo de entendermos sua gramática moral e suas formas de ação, cabe demonstrar quem são seus aliados e quem constitui sua base a fim de compreendermos como se comporta sua estrutura de oportunidades e de mobilização de recursos. A filiação de Ian Stuart, em 1979, já então líder da banda skinhead Skrewdriver,24 ao National Front,25 partido político da extrema-direita nacionalista britânica que costuma estar vinculado a propostas xenofóbicas e racistas, teve dois efeitos: primeiro, gerou uma filiação em massa de jovens skinheads ao mesmo partido26 e, segundo, fez que todo o movimento skinhead passasse a ser tomado publicamente como sinônimo de neonazismo.27
Segundo Buford (2010: 141), “as fileiras do baixo escalão do National Front consistiam basicamente em pessoas que sentiam, com certo fundamento, que não tinham nenhum outro lugar para onde se voltar”. Muitas dessas pessoas eram skinheads de direita, fãs de músicos que se haviam filiado ao partido ou hooligans recrutados em estádios de futebol durante as partidas dos campeonatos nacionais, ou seja, tipos de jovens fortemente marcados pela sensação de falta de reconhecimento e de estima social. Anos mais tarde, Ian Stuart deixou o partido por acreditar que este não era radical o suficiente em suas proposições, e, para corresponder às próprias expectativas, como mencionado anteriormente, o Blood & Honour foi formado. No entanto, o National Front continuou a ser um ponto de referência para muitos dos membros do Blood & Honour, especialmente em época de eleição. Mesmo depois do falecimento de Ian Stuart Donaldson, em setembro de 1993, alguns partidos políticos continuaram relacionados extraoficial ou indiretamente com o Blood & Honour no contexto internacional. Um exemplo disso está na França, onde jovens neonazistas, incluindo os que estão ligados ao Blood & Honour, apoiam o partido de extrema-direita Front
Vale notar, entretanto, que o primeiro álbum da banda, All Skrewed Up, lançado em 1977, não contém nenhum elemento neonazista: a temática das letras é predominantemente sobre o sentimento de rejeição social, o que é perceptível pelos títulos das canções, como “An-Ti-So-Ci-Al”, “I don’t like you” e “I don’t need your love”. 25 O que aconteceu cinco anos antes da fundação do Blood & Honour. 26 Não parece mera coincidência que o partido tenha alcançado seu auge nas eleições nacionais gerais nesse mesmo ano. Entretanto, o partido entrou em queda vertiginosa depois dessa data, demonstrando um tímido novo crescimento a partir de 2001. 27 Essa imagem permanece até os dias atuais aos olhos de boa parte do público que não está de alguma forma envolvido com o movimento. 24
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National (inspirado no National Front britânico, embora não exista nenhuma relação de caráter oficial entre os dois), presidido por Marine Le Pen, a qual recusa qualquer ligação com os jovens skinheads, indo contra a recomendação de outros membros do partido. Marine Le Pen foi candidata do Front National às eleições presidenciais de 2012, na França, e chegou a ser cotada para figurar no segundo turno (Sage, 2011), obtendo mais de 6 milhões de votos no primeiro turno. Apesar dessa recusa em aceitar o apoio explícito desses setores, era inevitável que o Front National – assim como outros partidos da direita nacionalista em outros países europeus – o recebesse, pois algumas de suas propostas estão em acordo com as exigências do Blood & Honour, particularmente na questão da imigração. Salas (2006) nota que, na Espanha, partidos e movimentos de extrema-direita recebem apoio dos jovens neonazistas durante as eleições e oferecem recursos, especialmente financeiros, para que suas associações (incluindo a Blood & Honour) mantenham suas atividades. Além das ligações extraoficiais entre as organizações neonazistas e alguns partidos políticos de extremadireita, existem, como o esperado, relações íntimas dessas organizações neonazistas entre si, embora nem sempre de caráter oficial. O caso da Hammerskin, uma das maiores e mais importantes organizações neonazistas, merece destaque por sua força na Espanha e nos Estados Unidos, onde se
fundou, ainda que tenha bases também na Holanda, na Suécia, na Hungria, em Portugal, na Nova Zelândia, no Canadá e na Austrália. É interessante notar que, nos dois lugares onde é mais forte, a Hammerskin se liga a elementos diferentes: nos Estados Unidos, além dos elementos que constituem o neonazismo na Europa, o ódio aos mexicanos e porto-riquenhos (incluindo, sem dúvida, outros latinos) é um dos principais focos mobilizadores de suas ações. Já na Espanha, a Hammerskin está presente nos estádios de futebol de alguns dos principais clubes do país por meio das chamadas torcidas “ultras”, como a Ultrassur, que apoia o Real Madrid Club de Fútbol.28 A relação entre Hammerskin e Blood & Honour, entretanto, tem um caráter muito fluido e instável: as duas organizações não estão diretamente interconectadas entre si por toda parte, embora alguns de seus membros mantenham contato em virtude da música e da ideologia compartilhada. Em alguns países – na Espanha, por exemplo –, existe mesmo uma rivalidade entre as duas organizações (Salas, 2006). Por outro lado, cabe observar como exemplo que o site da Hammerskin pôs à venda um DVD, produzido por sua divisão australiana, a Southern Cross Hammerskins, em 2007, em conjunto com a 9% Productions e a divisão australiana da Blood & Honour, cujo conteúdo é a gravação de um concerto realizado em homenagem a Ian Stuart Donaldson.29 Podemos, portanto, exemplificar a relação existente entre as
Embora haja outras torcidas de futebol ligadas à extrema-direita na Europa, a ligação entre a Ultrassur e o Real Madrid é a mais evidente. 29 Disponível em <http://i564.photobucket.com/albums/ss90/BloodHonourAustralia/dvd-ad.jpg>. Acesso em abr. 2015. 28
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duas organizações por meio destes dois casos paradigmáticos quase opostos: rivalidade na Espanha (mesmo que, eventualmente, existam oportunidades de apoio mútuo) e parceria íntima na Austrália. Nos outros países, essa relação é menos óbvia, porém varia de acordo com cada caso, em algum lugar entre os dois exemplos mencionados. Os outros aliados desse antimovimento são essencialmente associações neonazistas e skinheads menores, além de pequenas lojas e gravadoras de música destinadas ao público skinhead neonazista. Dentre elas, podemos destacar Rampage Productions, Rune & Sword Productions, Final Conflict Store, Dissident Mail-order, American Front, Gesta Bélica e Associazione Culturale Veneto Fronte Skinheads – além da Falange, Democracia Nacional, Alternativa por la Unidad Nacional, que não são associadas, mas estão sempre no entorno das divisões espanholas de Blood & Honour e Hammerskin. São todas, porém, aliadas menores. Não tendo êxito em se aliar oficialmente com os partidos de extrema-direita,30 que temem ter sua imagem contaminada, nas representações coletivas, pela postura violenta dos skinheads, o Blood & Honour acaba por não conseguir oportunidades políticas no que tange à arena política estatal. Dessa forma, o antimovimento social neonazista Blood & Honour está relativamente isolado, pois não pode entrar nas vias políticas de fato,31 tendo que se restringir à captação de membros
para suas fileiras para poder fazer o antimovimento crescer e continuar a buscar por oportunidades políticas. Para isso, é necessária a mobilização de recursos financeiros. A responsabilidade na realização dessa tarefa recai sobre as divisões nacionais do antimovimento, que o fazem sobretudo com a venda de material de veiculação da ideologia neonazista (revistas, livros, CDs e camisetas de produção independente ou semi-independente, além de outras mercadorias de menos importância) e com a realização de shows de música RAC (sigla de Rock Against Communism, embora seu teor atual pareça majoritariamente voltado contra imigrantes e seus descendentes, além de judeus), com o apoio de outras organizações neonazistas. Quanto às oportunidades de manifestação política, a situação da Blood & Honour, assim como de outras associações similares, é muito pouco definida. A princípio, qualquer mobilização contrária à sua ideologia se torna uma possibilidade de oportunidade política: de passeatas do movimento pelos direitos de homossexuais, bissexuais e transexuais às políticas de ação afirmativa das populações afrodescendentes e de outras minorias, todos esses movimentos geram, como efeito colateral indesejado, oportunidades para a (re)ação física ou ideológica da Blood & Honour. Cada autoafirmação dos grupos aos quais a Blood & Honour se opõe é tomada por eles como tentativa de destruir a identidade branca e a cultura europeia
Salas (2006) chega mesmo a defender que os skinheads são manipulados como massa de manobra por esses partidos. 31 A conduta violenta de seus líderes e sua recusa a participar do jogo político das democracias liberal-burguesas impedem que entre eles se crie um habitus político profissional. O conceito de habitus aqui se refere a Bourdieu (1998). 30
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e, portanto, é transformada pelo grupo em oportunidade para fortalecer sua identidade e recrutar novos membros.
reconhecimento de superioridade; um antimovimento social marcado pelo sentimento de superioridade étnicoracial, nacional e cultural só poderá se sentir reconhecido se, e à medida que, for reconhecida sua suposta superioridade. A ausência desse reconhecimento significa a infração dessas expectativas. Oferecer-lhes tratamento igual ao dado às outras “raças” e culturas é igualá-los a elas. Uma vez igualados àqueles que são por eles considerados inferiores, os neonazistas se sentem rebaixados, desprezados, não reconhecidos. Os skinheads, conforme relatado por Salas (2006), incluindo os membros da Blood & Honour, são marcados por um sentimento de submissão e de exclusão desde antes de o componente político entrar em cena. É difícil conhecer exatamente todos os porquês de o antimovimento skinhead neonazista ser escolhido por um indivíduo como um meio para expressar esse sentimento, tendo em vista que existem várias outras formas de organização que poderiam servir para esse mesmo fim e que, mais especificamente, nesse antimovimento, existem várias organizações às quais o indivíduo pode se associar além da Blood & Honour. Todavia, o que é fácil de compreender é que esse antimovimento fornece elementos fortes, ainda que sejam equivocados, para seus membros expressarem sentimentos de revolta contra a submissão e a exclusão que eles sentem que lhes são impostas, independentemente de isso corresponder corretamente à realidade. Uma vez que se começa a participar dessa associação, o sentimento de pertença gerado pela solidariedade que se encontra no interior do grupo gera “uma espécie de estima mútua” (Honneth, 2009: 260) entre os membros, aumentando a identificação com a causa.
Símbolos, memória e construção da identidade neonazista Parafraseando Tarrow (2009), adaptando ao objeto de estudo aqui proposto, podemos nos perguntar: o que motiva os membros do Blood & Honour a participar de atitudes violentas em nome de seu ideal, arriscando as próprias integridades físicas e patrimoniais? Que recompensas materiais ou imateriais podem obter por se arriscarem? Que objetivos pretendem alcançar? Qual é a estrutura moral que informa seu comportamento? É o caso de uma luta por reconhecimento, para pensarmos também nos termos de Honneth (2009)? Comecemos pela última questão para, a partir daí, desenvolvermos as demais. É possível pensar que o antimovimento neonazista se trata, em termos, de uma luta por reconhecimento desde que se realize uma interpretação específica sobre o conceito de Honneth. A cada direito conquistado por seus adversários, mais esse antimovimento se sente injustiçado, depreciado: enquanto sua suposta superioridade não for publicamente reconhecida, enquanto seus adversários compartilharem de isonomia jurídica, os membros da organização continuarão a se sentir menosprezados. Segundo o autor, “os motivos da resistência social e da rebelião se formam no quadro de experiências morais que procedem da infração e de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas” (Honneth, 2009: 258). Seu sentimento identitário e de autoestima depende, em larga medida, de sua condição de dominação; depende da inferiorização da alteridade. No caso do antimovimento neonazista, há a expectativa de se alcançar o 172
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De acordo com Honneth, “o engajamento individual na luta política restitui ao indivíduo um pouco de seu autorrespeito perdido” (2009: 259260). O antimovimento Blood & Honour acolhe seus membros em um grupo coeso, unido, cuja ideologia canaliza todas as angústias sentidas contra inimigos reduzidos a rótulos simples: judeus e, com eles, o sistema econômico global; homossexuais, que, para os neonazistas, ameaçam a integridade da família branca; socialistas, comunistas e anarquistas, por não defenderem a raça ariana; e, sobretudo, imigrantes, que supostamente se recusariam a se integrar às populações nativas. Para esse movimento, a resposta é simples: com a eliminação dos imigrantes (física, especial ou simbólica), a Europa pode se fortalecer e construir uma supremacia branca, lutando contra o sionismo e subjugando os demais povos. A “violação de um consenso tácito” – consenso que, no caso do Blood & Honour, assim como de todo o antimovimento neonazista, reside na suposta superioridade da raça branca – “é vivenciada pelos atingidos como um processo que os priva de reconhecimento e, por isso, os vexa no sentimento de seu próprio valor” (Honneth, 2009: 263). O Blood & Honour envolve os indivíduos em um meio no qual a estima mútua entre os “camaradas” (para usar uma categoria nativa) restitui seu autorrespeito, seu sentimento de valor próprio, por meio da manipulação de símbolos que apelam à superioridade da raça ariana e da identidade europeia
defendida pelo grupo. Além das já mencionadas suásticas e cruzes gamadas, ligadas diretamente ao nazismo, o antimovimento neonazista possui símbolos próprios. Curiosamente, alguns dos principais símbolos utilizados são numéricos: “18” vem da primeira e da oitava letras do alfabeto latino, A e H, fazendo referência a Adolf Hitler; “88” segue uma lógica similar, H e H, de Heil Hitler; o mesmo se dá com “28”, que é outra forma de se referir ao Blood & Honour. Já com outro dos algarismos mobilizados, o “14”, a lógica é outra; trata-se de uma alusão às 14 palavras do supremacista branco David Lane, uma frase que deve obrigatoriamente ser de conhecimento de todo jovem neonazista: “We must secure the existence of our people and a future for White Children”, isto é, “Devemos assegurar a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas”.32 É pela via simbólica, portanto, que se mobiliza e se organiza a gramática moral do grupo. Esses símbolos apelam não apenas ao sentimento de uma superioridade não reconhecida mas também à memória coletivamente criada, que sustenta a identidade do grupo. Como ressaltou Eyerman (2004), a memória é parte fundamental na formação da identidade – tanto individual quanto coletiva –, bem como da constituição de conflitos e processos políticos. Os “traumas culturais” que marcam a memória neonazista são a derrota na Segunda Guerra Mundial e a perda da condição imperialista econômico-militar da Europa. Além
Há também referências simbólicas menores, como as divisões Panzer. Além disso, cada associação neonazista conta com símbolos próprios. Na Hammerskin, por exemplo, um machado tatuado ou em uma camiseta substitui os símbolos do Blood & Honour, mobilizando a identidade grupal com tanta força quanto a suástica. 32
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disso, como se pôde perceber pelos principais símbolos do antimovimento, sua memória está profundamente orientada pelo imaginário do Terceiro Reich – o ápice do reconhecimento da suposta superioridade da raça ariana. Anderson (2005), em Comunidades imaginadas, também destaca, entre outros fatores, o papel da memória como um processo de lembrança e de esquecimento na construção da identidade coletiva de uma comunidade que existe sobretudo no plano 33 imaginário, especialmente no que se refere à nação, ou melhor, à identidade nacional. Todo o antimovimento neonazista apresenta uma característica particular nesse sentido: por um lado, suas reivindicações são nacionalistas, na medida em que se propõem a fazer a defesa das tradições nacionais; por outro lado, suas organizações são transnacionais, e seus discursos fazem apelo tanto à nação quanto ao continente europeu – no caso dos grupos sediados em países europeus. Considerando-se que a maior parte do antimovimento se situa na Europa, ao se associar ao Blood & Honour, o sujeito faz uma afirmação com um duplo sentido de lugar:34 em um primeiro nível, afirmase uma nacionalidade (espanhol, inglês, alemão, holandês etc.), enquanto, em um segundo nível, afirma-se uma pertença “racial” determinada pelo continente – a Europa. Esquecem-se as rivalidades e
os conflitos intraeuropeus em prol da defesa da raça ariana. Também na questão da memória, é importante ressaltar que, como em toda idealização do passado, o antimovimento neonazista reformula todos os problemas que já afligiram a Europa, especialmente os do passado mais recente (como a crise econômica de 2008 em diante, mas sobretudo as crises provocadas pelos sucessivos choques do petróleo, pelo desmonte de elementos centrais ao Estado de bemestar social e pela reestruturação da divisão internacional do trabalho, com a fuga de diversas indústrias europeias para outros lugares do globo),35 responsabilizando de preferência uma suposta influência judaica ou a presença dos imigrantes, que estariam tirando os empregos das populações locais. Mais além, um episódio inteiro do trauma cultural judaico na história recente é apagado da memória neonazista: o Holocausto é completamente negado pela maioria dos membros dessa organização; é tratado como uma invenção do judaísmo para poder se travestir de vítima – embora a maioria desses membros não fosse hesitar em realizar um novo holocausto. Conforme relatado por Salas (2006), o revisionismo/negacionismo histórico sobre o genocídio judaico nos últimos anos do Terceiro Reich é uma marca presente em todas as organizações
A nação “é [uma comunidade] imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão” (Anderson, 2005: 25). Nesse contexto, de modo algum dizer que a nação é imaginada poderia implicar que a nação não fosse também real. 34 Assim como ocorre na expressão “afro-americano”, fazendo referência ao país em que se vive – os Estados Unidos da América – e ao continente de “origem” (real ou simbólica) – a África –, conforme observou Eyerman (2004). 35 Existe vasta bibliografia sobre esse processo macroeconômico. Sugerimos Harvey (2008). 33
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neonazistas. O negacionismo sobre o Holocausto pretende apagá-lo oficialmente da memória não apenas de neonazistas, mas de todos. Em países como Áustria e Alemanha, o revisionismo do Holocausto ganha importância na agenda de debates públicos, tanto na política quanto na historiografia, durante a década de 1980 (Bailer-Galanda & Neugebauer, 1996). O Historikerstreit – expressão que pode ser traduzida como debate, disputa ou conflito entre historiadores – apresentou uma tendência a ignorar a especificidade histórica do Holocausto, minimizando os crimes de guerra da Alemanha nazista. Para os autores, essa é uma característica típica dos grupos neonazistas, os quais tiveram sua estrutura desarticulada na Áustria depois de medidas que tornaram a negação do Holocausto um crime passível de punição legal, fazendo que tais grupos permanecessem na ilegalidade. Para Castro (2014: 7), o negacionismo ou revisionismo do Holocausto constitui um exemplo de pseudo-história ancorada em interpretações reducionistas do extermínio nazista. Essa prática pseudohistórica funciona como elemento aglutinador das formas fascistas contemporâneas, assumindo um papel central em sua identidade (Castro, 2014: 8). Tanto para Castro quanto para Moraes (2011), o negacionismo do Holocausto não deveria ser interpretado por meio da terminologia historiográfica de “revisionismo”, pois
e que não permitiriam que seus resultados fossem diferentes do que são (por exemplo: a afirmação de que em Auschwitz não existiam câmaras de gás. (Moraes, 2011: 3, grifo do original).
O negacionismo pode ser então definido não como uma prática historiográfica legítima, mas como um instrumento de afirmação política de extrema-direita empreendida por ideólogos que “negam ou minimizam os efeitos do Holocausto e afirmam que o assassinato de milhões de judeus, ciganos, eslavos etc. é uma mentira criada e mantida pelos vencedores da II Guerra Mundial em estreita aliança com os judeus sionistas fundadores do Estado de Israel” (Castro, 2014: 9). Conclusão Em seu estudo sobre o papel da noção de nação na construção identitária de comunidades, Anderson (2005) percebe como o adjetivo “novo” para denominar cidades fundadas pelos europeus em terras distantes (como New York e Nouvelle-Orléans na América do Norte) não tem o significado de substituição de um lugar antigo que existia; quando isso ocorria, por exemplo, no Sudeste Asiático, a cidade assim nomeada era considerada sucessora ou herdeira de uma cidade antiga desaparecida. O significado do “novo” nas cidades fundadas pelos europeus em lugares remotos é de uma nova versão com base no topônimo inspirador. Podemos usar essa dinâmica como analogia para nosso caso. O prefixo “neo-” em “neonazismo” reúne essas duas características simultaneamente: é o substituto de um nazismo praticamente desaparecido e, ao mesmo tempo, uma nova versão, herdeira da antiga ideologia. O neonazismo é a adaptação de algumas das principais ideias nazistas originais
o que caracteriza a prática e os textos dos negacionistas não são os resultados de seus trabalhos – as suas supostas “interpretações” sobre um tempo passado (o período de 1933 a 1945) –, mas sim os fundamentos e os propósitos mesmos de seus trabalhos, que determinam os procedimentos daí decorrentes 175
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a uma nova condição histórica, unindoas a seu antigo espírito de rejeição da alteridade, pensada sempre como algo inferior. Tanto o nazismo original quanto sua versão reformulada partem de um misto de sentimento de falta de reconhecimento da superioridade imaginada com um conjunto de ideias que têm como foco a negação do reconhecimento de múltiplas formas de alteridade. O fato de o nazismo ser, em grande parte, motivado pela crise do liberalismo e pela humilhação imposta à Alemanha com o Tratado de Versalhes, além do antigo antissemitismo presente em diversas populações europeias (Elias, 1997), junto com todo o contexto histórico e social em que estava envolvido, ajuda a explicar aquela que é a maior diferença entre ele e o neonazismo: o caráter transnacional deste, diferente do caráter exclusivamente nacional do nazismo. O neonazismo não é, nem ao menos em parte, uma resposta alemã a uma humilhação sentida estritamente no plano nacional: as duas principais organizações neonazistas foram criadas por ingleses e por norte-americanos, respectivamente a Blood & Honour e a Hammerskin. A unidade à qual o grupo apela deixou de ser a unidade pangermânica, passando a mobilizar diversos níveis: 1) o nível nacional; 2) o nível continental-cultural (já que a maior parte do antimovimento é europeia); e 3) o nível étnico-racial. Embora utilizem símbolos do passado nazista alemão, o antimovimento social neonazista se situa para muito além da Alemanha; esses símbolos são ressignificados de um contexto nacional para o supranacional, de um movimento político – no significado mais tradicional da palavra “política” – para um antimovimento social predominantemente juvenil. Segundo Tarrow (2009: 157),
“os símbolos culturais não estão automaticamente disponíveis como símbolos mobilizadores, mas exigem agentes concretos para transformálos em quadros interpretativos de confronto” – e é precisamente o que acontece com a Blood & Honour em relação aos antigos símbolos nazistas: a organização, por meio dos confrontos sociopolíticos, manipula e mobiliza esses símbolos para fornecer um “quadro interpretativo” de todos os elementos que compõem o confronto em que se insere. A combinação do novo quadro interpretativo da xenofobia pan-europeia com o antigo quadro do imaginário nazista, em uma “matriz cultural” (Tarrow, 2009: 158), produziu um “quadro interpretativo explosivo de ação coletiva”, isto é, um quadro que possibilitou o surgimento de um novo antimovimento social. Em outras palavras, o neonazismo, por meio de suas organizações supranacionais, mobiliza antigos símbolos nazistas dando-lhes um novo significado – ainda enraizado no significado anterior –, fornecido pelos conflitos sociopolíticos em que seus adeptos se encontram, organizando suas experiências de falta de reconhecimento em torno de uma luta pela negação do reconhecimento e da legitimidade a seus opositores, em um contexto em que muitos jovens enfrentam um mercado de trabalho extremamente competitivo, em uma economia que enfrenta crises periódicas, fazendo que a presença de trabalhadores estrangeiros seja vista como ameaça à sua sobrevivência econômica. O neonazismo, por meio de organizações como a Blood & Honour, funciona como uma ponte cognitiva que liga experiências de exclusão social e de risco econômico, sentidas individualmente pelos sujeitos, a uma luta política por reconhecimento dentro 176
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de uma coletividade, fornecendo-lhes um mapa cognitivo para explicar suas experiências pessoais e o mundo que os cerca mas os exclui e ameaça – ainda que esse mapa não esteja de acordo com a realidade dos processos sociais. Essa luta é marcada por uma conduta agressiva não apenas pela violência intrínseca à própria ideologia do movimento mas também porque, tendo recursos limitados, a “violência real ou potencial [é] a forma mais fácil para a iniciação” (Tarrow, 2009: 126) de sujeitos que se sentem interditados em suas vidas cotidianas para se vincular ao antimovimento. A violência é também “usada deliberadamente [...] para unir apoiadores, desumanizar opositores e demonstrar a coragem” (Tarrow, 2009: 126) do antimovimento, criando “uma identidade coletiva baseada na virilidade
e no poder”.36 Neste artigo, nosso objetivo foi analisar brevemente o funcionamento de alguns dos elementos mais básicos da organização neonazista Blood & Honour com base em dois eixos principais: 1) as teorias dos movimentos sociais pensadas por Tarrow, Honneth e Touraine; e 2) as teorias sobre o multiculturalismo de Touraine e Hall. Além disso, foram utilizados os estudos de Anderson e Eyerman sobre o papel da memória na construção da identidade em conflitos políticos. Nosso objetivo foi sobretudo demonstrar como a experiência de exclusão e de interdição do sujeito precisa de um conjunto simbólico coletivamente organizado para poder se transformar em um elemento que mobilize a ação política coletiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Anderson, Benedict. (2005). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70. Andrade, Guilherme Ignácio Franco de. (2014). Neonazismo, racismo e supremacia racial: a ideologia racial do Valhalla 88. Revista Escrita da História, v. 1, n. 1, p. 63-79. Bailer-Galanda, Brigitte & Neugebauer, Wolfgang. (1996). Incorrigibly right: right-wing extremists, “revisionists” and anti-semites in Austrian politics today. Vienna: Stiftung Dokumentationsarchiv des österreichischen Widerstantes/Anti-Defamation League. Bourdieu, Pierre. (1998). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Buford, Bill. (2010). Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência. São Paulo: Companhia das Letras. Castro, Ricardo Figueiredo de. (2014). Extrema-direita, pseudo-história e conspiracionismo: o caso do negacionismo do Holocausto. In: Anais... XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: Saberes e Práticas Científicas. Disponível em <http://www.encontro2014.
Não é mera coincidência, portanto, que a maior parte do antimovimento seja composta de homens, especialmente mais jovens. 36
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