Fotografia: Felipe Varanda. Acervo Museu Vivo do Fandango / Associação Cultural Caburé
ENFOQUES Revista dos Estudantes de Pós-‐Graduação VOL XX.X JUN 2016 em Sociologia e Antropologia IFCS UFRJ ISSN 1678-‐1813 Vol. 14 (n.2) Dez 2015
Sumário
Apresentação......................................................................................................4 Esquerda armada brasileira: uma revisão histórica, política e sociológica........................................................................................................9 Lucineli Pikcius Bezerra de Siqueira A noção de poder sob as perspectivas de Hannah Arendt, Michel Foucault e Pierre Bourdieu e as possibilidades para a pesquisa histórica.................46 Bolívar Kieling Junior Sociologia e história em duas análises da Revolução Francesa..................70 Mario Luis Grangeia Entre antropologia e história: fragmentos do debate racial na França do pós-guerra........................................................................................................95 Júlia Vilaça Goyatá Estudos sobre morbidade e mortalidade populacional no Brasil do século XIX: limites e possibilidades.........................................................................116 Daniel Oliveira Richard: una etnografía de la migración interna, ilegalidad y la violencia urbana en la ciudad de Quito-Ecuador.......................................................146 William Alvarez Entre dominação e consciência: um olhar sobre a literatura em Antonio Candido...........................................................................................................175 Alice Ewbank Apontamentos sobre as relações de sociabilidade e metafóricas da brincadeira de cavalo-marinho....................................................................202 Raquel Teixeira Dias Profissionalização e fragmentação temática: trajetória de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil .....................................231 Leonardo Puglia
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Vol. 14(2), Dez-2015 Enfoques Online revista eletrônica dos alunos do Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ. Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ISSN 1678-1813 1. Sociologia; 2. Antropologia; I. Universidade Federal do Rio de Janeiro; II. Centro de Filosofia e Ciências Sociais; III. PósGraduação em Sociologia e Antropologia. Organização do número Ciências Sociais e diálogos com a História Barbara Goulart Natália Fazzioni Joana Corrêa David Gonçalves Soares Pedro Alex Viana Renata Montechiare Tradução resumos Bárbara Goulart Capa Joana Corrêa Imagem da capa Felipe Varanda Museu Vivo do Fandango Associação Cultural Caburé
Diagramação Samantha Sales Bárbara Machado UFRJ Reitor Roberto Leher Vice-Reitor Denise Nascimento IFCS Diretor Marco Aurélio Santana PPGSA Coordenador André Botelho Vice-Coordenador César Gordon
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
As Ciências Sociais procuram
Apresentação
refletir sobre a dimensão temporal
A Revista Enfoques busca enfatizar e
dos fenômenos sociais, políticos e
celebrar a tradição interdisciplinar da
culturais. Logo, questões teóricas e
sociologia e antropologia brasileira
metodológicas
lançando uma edição que tem como
testadas em estudos sociológicos e
tema a relação entre Ciências Sociais
antropológicos que procuram abarcar
e História, promovendo o diálogo
recortes
entre as disciplinas. No caso da
processos e mudanças. Além das
antropologia, a História ocupa espaço
aproximações
central na narrativa dos indivíduos e
História e suas formas de entender a
na sua forma de autorrepresentação,
passagem
sendo
relevante”
acontecimentos, as Ciências Sociais
(Schwarcz, 2005: 135). No caso da
também se pensam como frutos de
Sociologia, a aproximação permite
processos temporais, que trilharam
analisar o passado como resultado de
diferentes caminhos por meio de
uma
sociais,
contribuições coletivas e singulares.
reunindo teias de determinações e
As biografias e trajetórias intelectuais
escolhas. É capaz então de promover
e de vida são ainda linhas de
um diálogo entre os parâmetros
pesquisa em que certas concepções
estruturais e as escolhas individuais
se fazem presentes no campo. Há
que explicam o passado (Reis, 1998:
também etnografias que procuram
8). Portanto, apesar de associadas ao
dialogar com a memória social e
estudo do presente, vemos que lentes
formas de compreender o passado
sociológicas e antropológicas também
por meio da oralidade. Destacam-se
podem ser usadas para se olhar para
ainda trabalhos que versam sobre a
o passado.
etno-história, ou que se utilizam de
“nativamente
série
de
processos
são
temporais
do
e
debatidas
para
diálogos
tempo
e
pensar
com
e
a
dos
arquivos, documentos e manuscritos.
3
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Os artigos aqui contidos são uma
como
categoria
fulcral,
pequena amostra das possibilidades
manifestando-se na obra daqueles
de pesquisa dentro da grande zona
três autores como aquilo que articula
interdisciplinar que existe entre as
todas
Ciências Sociais e História.
presentes,
configurações que
para
sociais
serem
bem
No artigo de Lucineli Pikcius
compreendidas necessitam de uma
Bezerra de Siqueira, a autora faz uma
mirada diacrônica e processual das
análise detalhada da literatura sobre
lutas e embates passados e correntes.
a esquerda armada brasileira, que
Em suma, teoria, poder e história são
atuou durante a ditadura militar. Sua
categorias mestras a partir das quais
pesquisa bibliográfica abarca tanto os
Kieling estrutura seu argumento,
autores das Ciências Sociais quanto
demonstrando
da História, permitindo identificar os
daqueles
motivos da ascensão e declínio desse
possibilidades, mas também desafios
grupo,
metodológicos e teóricos, para o
assim
como
as
suas
características estruturantes. A autora conclui
que
ainda
é
como
as
autores
obras instilam
ofício do historiador.
necessário
No
artigo
de
Mario
Luis
avançar nos estudos sobre o peso
Grangeia, o autor analisa como a
dessa experiência na arena política de
sociologia
esquerda.
abordagem das relações entre a
histórica
renovou
a
Em seu artigo, Bolívar Kieling
disciplina e a teoria, ou seja, entre
Junior identifica nas obras de três
eventos singulares e padrões gerais.
autores
ciências
O autor se propõe a analisar a obra
humanas – Pierre Bourdieu, Michel
de Skocpol (1985) e Mann (1993), a
Foucault
partir das leituras que cada qual
seminais
e
das
Hannah
Arendt
–
inovadoras linhas de análise que
realiza
muito têm a oferecer à pesquisa em
eminentemente
História. O poder surge nestas obras
campo de produção historiográfico: a
4
sobre
um pertencente
tema ao
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Revolução Francesa. Em sua análise,
sistemas nazifascistas na Europa. Faz
o autor demonstra como os dois
um
estudos
afastamento
de
Sociologia
histórica
recorrido
histórico
da
sobre
antropologia
o em
contestaram, com base em muitas
relação à história no século XIX
fontes
como
secundárias,
algumas
correntes
associadas
constituição da própria disciplina, e
àquela revolução. Argumenta que
sua reaproximação já em meados do
esta não se presta a realizar uma
século
adição linear de métodos e objetos
políticas e institucionais da UNESCO
entre as duas disciplinas – História e
em afirmar uma agenda antirracista
Sociologia –, o que refletiria uma
no ambiente científico.
explicações
estanque
divisão
epistemológico, produzindo
de
mas
profícua
trabalho
antes
parte
XX,
do
processo
frente
às
de
propostas
Daniel Oliveira traça um rico
vem
panorama acerca dos estudos de
circularidade
mortalidade no Brasil que se inserem
entre a teoria generalizante e os
no
eventos singulares, se aproximando
considerando
assim de concepções mais afins
trabalhos com a demografia histórica.
daquilo que se costuma denominar
Analisando pesquisas centradas no
transdisciplinaridade.
século XIX, com especial atenção
Julia Goyatá analisa o contexto pós-Segunda
Guerra
campo
da
história
social,
o
diálogo
destes
àquelas que tratam da mortalidade de
Mundial,
indivíduos
escravizados,
o
autor
enfocando o cenário francês mais
discorre sobre a importância dos
especificamente, e as contribuições
estudos de mortalidade – outrora
de Claude Lévi-Strauss (1973) e
considerados pouco produtivo pelos
Michel
historiadores
Leiris
(1969a)
para
uma
–
para
o
concepção antirracista nas ciências
aprimoramento das pesquisas em
modernas, proveniente dos debates
história social que se utilizam dos
posteriores à queda dos principais
conceitos e técnicas da demografia.
5
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
William Alvarez nos apresenta
das décadas de 1960 e 1970. Ao longo
um artigo que documenta a passagem
do artigo, propõe um olhar refinado
do tempo e a dimensão individual da
sobre
experiência de vida num contexto
Sociologia e a crítica literária de
histórico e político particular, através
Antonio Candido.
da análise da biografia de Richard.
a
aproximação
entre
a
No artigo de Raquel Dias
Este artigo se dedica a acompanhar
Teixeira,
etnograficamente a trajetória de um
brincadeira e os brincadores do cavalo-
sujeito envolvido em ambientes de
marinho de Aliança, Zona da Mata
ilegalidades, migrações e violência
Pernambucana. Na primeira parte do
urbana em Quito. Uma perspectiva
artigo,
importante
documentação histórica do século
da
contribuição
a
a
analisa
autora
a
revisa
a
metodológica da História com foco
XIX,
nas Ciências Sociais é tratada neste
inquérito de 1871 no qual foram
trabalho
interrogados
através
das
opções
de
mais
autora
especificamente
negros,
um
escravos
e
análise utilizadas para, numa micro-
alguns agricultores livres que são
perspectiva,
acusados de utilizar os brinquedos de
abordar
o
contexto
econômico e social do Equador no
cavalo-marinho
século XXI.
confabular insurreições. Na segunda
Alice Ewbank retoma em seu
parte,
e
problematiza
maracatu
recursos
para
da
artigo a trajetória e a atuação de
brincadeira através de sua pesquisa
Antonio Candido no cenário de
de campo com o brinquedo do cavalo-
aproximação
e
diálogo
entre
marinho de Mestre Batista. O artigo
escritores
intelectuais
latino-
e
não
busca
evidenciar
nenhuma
americanos durante o período das
relação causal entre os eventos do
ditaturas para tratar de dois temas
passado e a etnografia, mas como
caros em sua obra: “dominação” e
certos recursos como a ironia, a
“consciência”, abordados em ensaios
comicidade e as metáforas constroem
6
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
as relações de sociabilidade entre os
Antropologia (PPGSA) da UFRJ. Nós
brincadores e evidenciam as históricas
editores agradecemos a todos que
(e simbólicas) relações assimétricas
participaram
estabelecidas na região.
esperamos estimular novos debates
O artigo de Leonardo Puglia
e
fortalecimento
Ciências
Sociais
no
processo
e
entre as Ciências Sociais e História.
analisa o processo de expansão da produção
do
Boa leitura!
das Brasil.
Os Editores,
da
Barbara Goulart, David Soares, Joana
disciplina o autor chama atenção
Corrêa, Natália Fazzioni, Pedro Viana
para
e Renata Montechiare.
Reconstruindo
a
a
história
profissionalização
e
fragmentação temática da Sociologia, que se mantém como instrumento de reforma social, embora sua ação se torne cada vez mais cirúrgica e os objetos
sociais
cada
Este
processo
precisos. chama
de
vez
mais
o
autor
“americanização”
das
Ciências Sociais. É, portanto, com muita alegria que lançamos a nova edição da Revista
Enfoques,
alunos
do
Graduação
editada
Programa em
pelos
de
Sociologia
Pós e
Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1983. __________________. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1982.
7
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
__________________. O poder simbólico. 16ª edição . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes [1966]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011a. __________________. Literatura e subdesenvolvimento [1970]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011b. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1971. __________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. __________________. A história da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1999. LEIRIS, Michel. Race et civilization. In: LEIRIS, Michel, Cinqétudesd´ethnologie. Paris: Danoel/Gonthier, 1969a. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença, 1973. MANN, Michael. The sources of social power, vol. I: the rise of classes and nationstates. 1760-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. REIS, Elisa. Processos e Escolhas: estudos de sociologia política. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998. SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 72, p. 119-135, Julho 2005. SKOCPOL, Theda. Estados e revoluções sociais: análise comparativa da França, Rússia e China. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
8
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Esquerda armada brasileira: uma revisão histórica, política e sociológica Brazilian Armed Left: A historical, political and sociological review Lucineli Pikcius Bezerra de Siqueira 1 Resumo Este trabalho foi realizado com o objetivo de compreender como a História e as Ciências Sociais estudam a luta armada que ocorreu no Brasil durante a ditadura militar – 1964 a 1985. Realizamos uma pesquisa exploratória e essencialmente bibliográfica, que nos proporcionou identificar alguns dos motivos que geraram a ascensão dos grupos armados e também seu declínio. Além disso, conseguimos identificar algumas das características dos agentes e dos grupos que proporcionaram a estruturação das organizações armadas. Dividimos a literatura científica entre os exmilitantes da luta armada e os autores que não tiveram parti pris nesta experiência. A partir disso visualizamos algumas diferenças nos procedimentos metodológicos e nos resultados de todo o conjunto da literatura.
Palavras chave: Luta armada no Brasil, Extrema esquerda, Ditadura militar.
Abstract This work was conducted in order to understand how History and the Social Sciences study the armed struggle that occurred in Brazil during the military dictatorship 1964 to 1985. We conducted an exploratory and essentially bibliographic research, which made it possible for us to identify some of the causes that generated the rise of armed groups and their decline. In addition, we were able to identify some of the characteristics of agents and groups that provided the structure of the armed organizations. We divided the scientific literature between former militants of the armed struggle and authors who had not participated in this experiment. From this we noted some differences in the methodological procedures and in the results of the entire body of literature.
Keywords: Armed struggle in Brazil, Extreme left, Military dictatorship. 1
Mestranda em Ciência Política – Universidade Federal do Paraná
9
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
quartel da década de 1970 – a partir
Apresentação Os
debates
aspectos
científicos
que
sobre
os
circunscrevem
o
das categorias analíticas das Ciências Sociais, tais como composição social, classes, organização interna e externa
período da ditadura militar no Brasil
das facções da esquerda armada,
aquecem os campos científicos das Ciências
Sociais
e
da
relações
História.
entre
as
facções
e
as
instituições civis e governamentais,
Existem muitas teses que explicam os
com base em estudos da História e
motivos do golpe, as organizações de
das Ciências Sociais.
apoio e resistência a ele, o tipo de ditadura que resultou do pós-64 1 ,
Nosso
dentre outros temas. No entanto,
literatura científica os fatores de
verifica-se que as análises sobre a
ascensão e declínio da esquerda
experiência da esquerda armada são
armada, e as razões e significados
majoritariamente
da
internos e externos da luta armada. A
História. Este trabalho representa
pesquisa que gerou este trabalho foi
um esforço em reconstruir as análises
exploratória
realizadas sobre a esquerda armada
bibliográfica. Importante frisar que
brasileira – do último quartel da
para
década de 1960, até o segundo
poderíamos
ter
utilizado
referências,
tais
como
do
campo
1
Carlos Fico apresenta, analisa e confronta várias teses sobre os motivos e as razões do Golpe de 1964. Verificar: FICO, C. “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, n° 47, p.29-64 – 2004. Em relação às teses que tratam das organizações de apoio ao golpe, consultar, por exemplo: MENDES, R.A.S. “Direitas, desenvolvimentismo e movimento de 1964”. In: Coleção Comenius. Democracia e Ditadura no Brasil. Ed. UERJ, Rio de Janeiro, 2006. Jacob Gorender e Marcelo Ridenti abordam as organizações de resistência ao golpe.
é
e
verificar
na
essencialmente
alcançar
documentos
esse
das
objetivo outras
biografias,
organizações,
materiais jornalísticos. No entanto, como não houve tempo hábil para analisar essas matérias – que tornam mais
tênue
a
linha
entre
o
conhecimento científico e a realidade –, priorizamos a literatura acadêmica, ainda que desta façam parte autores 10
objetivo
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
que
eram/são
militantes
de
um
organizações de esquerda. Ao
analisar
selecionados
para
de
os este
pesquisa
cada
na formulação de algumas hipóteses
trabalho
realizada,
autor,
aspectos
síntese desse procedimento resultou
textos
que
poderão
para
ser
analisadas
futuramente.
o
problema, a hipótese, e as conclusões de
dos
constituintes dessas organizações. A
priorizamos identificar e destacar o tipo
mapeamento
A pesquisa nos revelou que
depois
alguns
estudiosos
militantes
complementações
teses
militar, preocuparam-se, sobretudo,
sobre a esquerda armada. Nesse
em detectar os motivos e as causas da
sentido, organizamos o trabalho em
derrota da esquerda armada e dos
duas partes, sendo a primeira voltada
movimentos de massa. Também há a
a explorar as teses sobre como
tendência
procedeu a ascensão da esquerda
direcionar seus estudos para frisar
armada brasileira durante o período
diferenças táticas e estratégicas entre
militar, e seu declínio na primeira
as diversas organizações que lutavam
metade da década de 1970; e a
contra a ditadura. Essas diferenças
segunda parte destinada a esmiuçar
são importantes, mas insistir em
quem, como e pelo que lutavam as
basear as análises nelas nos impede
organizações de esquerda armada – a
de
moral
resistência à ditadura militar como
revolucionária;
a
as
violência
período
eram
estabelecer conexões, comparações, entre
no
que
desses
avançar
compreensão
em
da
um
das organizações. Ou seja, a lógica do
estruturantes da esquerda brasileira.
trabalho
Falaremos disso mais a frente.
em
situar
as
de
autores
revolucionária; a composição social
consiste
período
na
ditatorial-
acontecimentos
Os
organizações armadas no processo
trabalhos científicos realizados por
estruturante do campo da esquerda
gerações posteriores à luta armada
brasileira, para isso desenvolvemos
abordam essa experiência a partir de 11
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
múltiplos
aspectos
que
necessariamente
não
ditatorial,
e
da
participação
estão
predominante das camadas médias
uma
das classes sociais. Essas hipóteses
determinada linha política, mas que
são conclusões do trabalho, e não
pretendem reconstruir a história de
foram
militantes e organizações, bem como
futuramente.
comprometidos
suas
principais
transformação
com
contribuições da
na
testadas,
podendo
sê-las
O interesse principal que fez
sociedade
surgir este trabalho está relacionado
brasileira.
às inúmeras interrogações em torno
A pesquisa também gerou a
dos significados, dos motivos e da
hipótese de que à medida que
relação entre concepções e ações de
direitos de natureza democrática são
uma fração da esquerda que se
violados, torna-se previsível a luta
radicalizou
por estes. E é nesse sentido que
contexto ditatorial. Tal radicalização
usamos o termo “extrema esquerda”,
esvaia-se à medida que retorna a
pois num período de radicalização de
democracia
uma ditadura, a tendência é que
Portanto, hoje em dia, é mais difícil
direita e esquerda caminhem ao
falar em “extrema esquerda”, levando
extremo. As frações de classes que
em conta ações práticas, e não
mais provavelmente lutariam para
concepções políticas. Portanto, este
recuperar
direitos
debate pode tornar mais evidentes
democráticos seriam aquelas com
alguns dos motivos que fazem surgir
maior
para
organizações
compreender a dimensão das perdas
radicalizadas
propriamente democráticas.
condições históricas.
e
capital
garantir
cultural
Isso
explicaria os motivos das táticas de guerrilha saírem dos pensamentos e dos
documentos
num
momento 12
no
e
interior
suas
políticas em
de
um
instituições.
classistas específicas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Parte I – Teses sobre as razões e os
pesquisa, além de ser um campo
significados
do
pouco explorado. Na onda dessa
armada
curiosidade, apresentaremos nesta
declínio
da
da
ascensão esquerda
e
parte
brasileira Não
é
estranho
esbarrarmos
isso nos leve a compreender em alguma medida o sentido, ou razão,
no Brasil, executada por organizações
alternativa
a
que
viam
solução
dessa “aventura”.
nessa
contra
importantes
esquerda armada, pressupondo que
luta armada contra a ditadura militar
esquerda
teses
sobre ascensão e o declínio da
no
termo “aventura” quando se trata da
de
algumas
Também
a
não
estranho
ditadura militar. Tal termo sugere
encontrarmos
que os grupos que optaram por essa
viveram
via foram efêmeros no campo da
disposição
esquerda
se
origem e principalmente os motivos
consolidaram em 1968 e declinaram
do fim, ou da derrota, das facções
em 1975. Os marcos dessa divisão
armadas da esquerda. Percebemos
são: i) o AI-5 e a impossibilidade de
que uma pesquisa realizada com base
organizar movimento de massa; e, ii)
numa relação muito próxima entre
o assalto total da Guerrilha do
cientista
Araguaia, última a ser desarticulada
negativos,
pela repressão militar. Ainda que
Dentre estes destacamos a riqueza
efêmera, acreditamos – mas não
nos detalhes e informações do dia-a-
sustentaremos isso aqui – que a
dia
experiência da luta armada culmina
aqueles destacamos a passionalidade
em rupturas e continuidades no
militante,
habitus da atual esquerda brasileira.
análise com tendências voltadas a
Remontar
defesa direta ou indireta de teses e
constituir
brasileira,
essa em
pois
trajetória tarefa
árdua
pode
13
essa
e
das
em
objeto e
aqueles
experiência
maior
orientações
de
entre
é
tem
também
pode
uma
apontar
organizações,
que
que
a
pontos positivos.
e
gerar
dentre
uma
político-partidárias.
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Entre os que representam esse grupo pris
na
abordagens e as conclusões já não
vivenciaram
em
estão mais voltadas a entender o
numa
porquê de uma suposta derrota ou
destacamos:
qual organização estava mais ou
João Quartim de Moraes, expulso da
menos certa em suas estratégias e
VPR em 1969, por determinação de
táticas. O estudo sociológico de
Onofre Pinto – divergência na linha
Marcelo Ridenti (2010), por exemplo,
política (GORENDER, 1987, p.133);
contribui para entender como era
Daniel Aarão Reis Filho, ex-militante
formado o campo da esquerda que
da Dissidência da Guanabara (DI-
lutou
GB), que posteriormente nomeou-se
surgiram,
Movimento
quem lutava, como era o contexto
de
autores
experiência, algum
com que
grau
organização
a
parti
da luta armada, percebemos que as
política
armada,
Revolucionário
8
de
contra
a
como
se
como
organizavam,
outubro (MR-8) (RIDENTI, 2010,
social,
p.30); Jacob Gorender, ex-militante
trabalhos mais atuais analisam, por
do PCB, que rompeu com este e
exemplo,
fundou, junto a outros dissidentes o
configuração
Partido
(ROLLEMBERG, 2007) e o papel dos
Comunista
Revolucionário estratégia
girava
Brasileiro
(PCBR), em
torno
cuja
o
político.
papel
do
Outros
exílio
da
na
esquerda
intelectuais (RAMOS, 2006).
da
Um dos dilemas do primeiro
revolução socialista imediata, ainda
grupo de autores – com parti pris – se
que esta não fosse realizada apenas
expressa numa das teses de João
pela via armada, mas acompanhada
Quartim de Moraes (1989), o qual
de um trabalho de massa (RIDENTI,
demonstrou que a luta armada no
2010, p.259). Nos estudos atuais,
Brasil
realizados por autores que vieram
foi
uma
resposta
aos
problemas internos, e não mero
nas próximas gerações, e, portanto,
reflexo do que ocorria em outros
não participaram – organicamente –
países. Essa discussão veio do campo 14
cultural,
ditadura,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
político para o teórico. Moraes coloca
movimento estudantil é destacado
que desde as mobilizações de massas,
por Moraes como um movimento que
como as estudantis da década de
atuou até esse período com pautas
1960, até o surgimento da esquerda
construídas a partir das condições
armada, os motivadores eram gerados
políticas e econômicas – sobretudo
por
essencialmente
relacionadas à educação – internas ao
nacionais. Na linguagem militante
país, e constituía um embrião da
isso representa que não foi nenhuma
esquerda armada.
problemas
organização soviética ou cubana, por exemplo,
que
As facções que aderiam ao
organizou
horizontalmente a luta armada. Nesse sentido, para Moraes, a esquerda
questão
1967. A conjuntura era mais favorável
no
amadurecimento
da
passou
a
adotar
outros
métodos de luta contra a ditadura,
para alguma participação política
pois as ações de massa foram ficando
durante a primeira fase da ditadura,
cada
quando os movimentos de massa
vez
mais
inviáveis.
Nesse
sentido, parte daqueles que antes
e
compunham
organicidade, como o próprio João
os
movimentos
de
massa, principalmente o estudantil,
Quartim de Moraes lembra: “até o dia
optou
13 de dezembro de 1968 (...) a
por
organizar
e
realizar
guerrilhas contra o novo regime
imprensa se exprimiu com alguma
político. Essas organizações surgem a
liberdade e a oposição pode fazer
partir
valer publicamente suas críticas e
da
crença/constatação
impossibilidade
suas denúncias” (1989, p.135-136). O
do
trabalho
da de
massas, fortemente reprimido pela 15
do
política
logo dos humanos –, a esquerda em
ditatorial através da Constituição de
constância
atuação
perderam
supressão dos direitos políticos – e
1964 e a consolidação do Estado
maior
espaço
de
massa
repressão ditatorial. No percurso da
direta a duas questões: o Golpe de
com
de
decorrer
armada brasileira foi uma resposta
agiam
movimento
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Ditadura. Esses fatos ilustram a
experiência ocorreu depois de um
afirmação de que a luta armada é
intenso processo de repressão e de
fruto da conjuntura nacional, no
aprofundamento da ilegalidade.
entanto é inegável que ela também tenha
tido
motivadores
As organizações – de ambos os
externos,
tipos – sofreram do que o autor
como por exemplo, os treinamentos
chama de “um desvio relativamente
ofertados pelo Estado Revolucionário
às suas concepções estratégicas”, pois
de Cuba e da China. Podemos dizer que
o
golpe
de
aprofundamento
1964
e
do
muitas
o
perseguindo
Estado
luta
armada,
fatos
que na teoria, a esquerda armada
que
defendia a revolução socialista, e o
justificam uma guinada aos métodos
objetivo era um novo modelo de
militaristas de luta política. João
produção social, e isso exige tomar
Quartim de Moraes diz ter havido,
de
em 1968, um encontro acidental
massa
armadas
em em
declínio ascensão,
e
estar na ilegalidade; ou seja, a luta imediata era garantir o mínimo de democracia. Se isso for verdade, as
acreditava na via única da luta fim
teses, talvez então as declarações e
da
toda fonte primária de pesquisa
trariam em si essa contradição, pois
2
O autor diz ser acidental pois, para ele, “não há relação direta de causa e efeito entre ambos” p.144.
concebem 16
esse
expressar, para se manter, apesar de
massas e ações armadas; e outra que
o
Mas
esquerda armada lutava para se
junção das duas táticas – trabalho de
que
Estado.
acontecer de fato. Na prática, a
desse
de facções: aquelas que defendiam a
Sendo
o
bases materiais e nem humanas para
ações
encontro surgiram tipos específicos
armada.
assalto
romântico objetivo não encontrava
(MORAES, 1989, p.144)2 entre ações de
objetivos
dizer, de acordo com nossa leitura,
Federal de 1967 foram os estopins a
outros
“estavam
estratégicos” (1989, p.144). Isso quer
Ditatorial-Militar e a Constituição
para
organizações
automaticamente
a
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
esquerda
armada
“revolucionárias”, “guiadas
ao
democrático-nacionais do PCB. O
de
autor afirma que “as organizações
invés
pela
revolucionária”.
como
vontade
Isso
nos
comunistas
faz
autoproclamavam-se
vanguardas
políticas,
estados-
questionar o alcance das análises dos
maiores” (1990, p.16), inspiradas nas
documentos das organizações, como
grandes
reveladores
internacionais, como Lenin, Mao
internas
das e
razões
e
ações
externas
destas.
referências
Tsé-Tung,
históricas
Guevara.
Essa
Defendemos que fontes primárias
autoproclamação gerava uma onda,
são
entre
mais
úteis
discursivas
de
individuais
e
como
atores
fontes
e
que
em processo de concretização, e isso
coletivos,
dependia da vanguarda, de suas capacidades e valores (1990, p.40). Para
Reis Filho também transpõe um
com
gerados
de
erros pelos
certeza
e a consequente vitória do Estado militar, por isso: “A revolução faltou
organizacionais comunistas
essa
culminaram na derrota da esquerda,
os
comunistas do PCB e elenca uma série
Filho,
se desdobravam os processos que
campo das análises acadêmicas, o contas
Reis
mostrou-se falsa na medida em que
problema do campo político para o
as
comunistas
brasileiros, de que a revolução estava
A abordagem de Daniel Aarão
acerta
militantes
atrizes,
compuseram a experiência.
autor
os
ao encontro”.
que
levaram à derrota da esquerda para o
Reis Filho (1990) remonta o
Estado ditatorial. Os comunistas da
conjunto
década de 60 são como raízes das
formam
organizações armadas, que surgem
comunistas, essa natureza passa a ser
como alternativa à impossibilidade
responsável pela derrota de todo o
das ações de massa, e também como
conjunto da esquerda para as forças
alternativa às teses e orientações
golpistas. 17
das a
características
natureza
O
das
autor
que
facções
afirma
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
indiretamente que se a esquerda
forte referência nos modelos das
tivesse agido de outra forma e sob
organizações comunistas que, sob
outras
possivelmente
algum aspecto, foram vitoriosas em
poderiam assegurar a derrota do
processos de conflitos sociais. Vemos
golpe militar. Sabemos que é muito
aqui uma opinião que diverge da tese
complicado explicar um fato pelo que
de Moraes que vimos anteriormente.
não
bases,
aconteceu,
poderia
ter
O sentimento de ser vanguarda do
características
da
proletariado, com responsabilidades
esquerda que levaram seu imenso
quase épicas, não tinha projeção
conjunto à derrota são chamadas por
material, visto que a composição
Reis Filho de “mitos coesionadores: a
social de tais facções era formada
revolução socialista (...) a missão
principalmente por “elites sociais
redentora do proletariado” (1990,
intelectualizadas, com alto nível de
p.182);
características
instrução, muito jovens, do sexo
vanguardistas; o alto grau, exigido e
masculino, residindo em algumas –
exercido, de disciplina e conduta
poucas – grandes cidades” (1990,
revolucionária; o papel majoritário
p.184), como veremos mais a frente.
acontecido.
dos
As
mas
as
intelectuais.
Portanto
seriam
Os comunistas, portanto, não
estes “os fatores determinantes dos
conseguiram
‘erros’ de avaliação que levam a tantos
desencontros,
a
uma
oposição e assim não foram capazes
tantas
de impedir o golpe. Nesse sentido,
derrotas” (REIS FILHO, 1990, p.
nosso terceiro autor com parti pris na
184), essas características são as
luta armada, Jacob Gorender, afirma
mesmas de organizações que outrora,
que a esquerda reconhece a derrota
e em outro lugar, foram vitoriosas em
de 1964 e constrói um modelo de
relação aos seus projetos políticos. O
organização
que o autor sugere é que a esquerda
que
representa
uma
“violência retardada” (1987, p.249).
comunista brasileira de 1960 tinha
Portanto, este autor não vê um 18
sistematizar
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
continuum entre comunistas de 1960
partidária. Esta ala rompe com o
e os guerrilheiros do pós-64, como
PCB e forma o PCdoB 3 ; c) havia
viu Reis Filho. Gorender remonta a
também os trotskistas do POR (T) –
gênese da esquerda armada a partir
Partido
de suas matrizes organizacionais. Ou
(Trotskistas),
seja, o campo da esquerda brasileira,
obreirismo e o Estado operário; d) a
antes de 1964 era formado: a) pelos
ORM-POLOP
comunistas do PCB, que abrem os
Revolucionária Marxista, da revista
anos 1960 defendendo as duas etapas
Política
da revolução socialista no Brasil,
ambiente intelectual, absorveu de
concepção oriunda do VI Congresso
forma não dogmática a produção
da
em
trotskista; e) a AP (Ação Popular),
é
oriunda do movimento estudantil
democrático-nacional, que seria uma
católico, que pretendia chegar ao
revolução burguesa, capaz de fazer
socialismo a partir de ações efetivas
com
de
Internacional
1928.
A
Comunista,
primeira
que
a
sociedade
desenvolvesse capitalismo
etapa
brasileira
potencialmente e
suas
o
Operário
massas,
reformas
defendiam
de
o
(Organização
Operária),
reivindicações
instituições,
que
Revolucionário
restrita
tendo
em
relacionadas bases;
f)
as
ao
vista às Ligas
avançando no sentido democrático.
Camponesas, que a partir de 1961
Essa etapa daria condições para a
defendem a guerra de guerrilhas
segunda etapa da revolução, que
como forma de chegar ao socialismo;
seria socialista (GORENDER, 1987,
e, g) a linha brizolista, que não era
p.29-30); b) pela ala Stalinista, de
socialista, mas se destacou pelo
concepções maoístas, que racha com
populismo trabalhista (1987, p.20-39).
o PCB em 1962, por conturbações
3
Em 1960, no V Congresso do PCB, este muda o nome de “Partido Comunista do Brasil” para “Partido Comunista Brasileiro”, para se defender das acusações que diziam que o PCB era uma seção da Internacional Comunista no Brasil.
causadas pelo relatório de Khruchov e
por
conflitos
gerados
por
diferenças nas concepções da prática 19
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Para Gorender essas organizações
esquerda brasileira” (1987, p.79-83).
sofriam
É nesse sentido que o autor concebe
de
males
que
as
impossibilitaram de resistir ao golpe
a
e
conjunto
de
surgiram
motivadas
fazer
uma
revolução.
São
características comuns a elas:
armada
como
um
organizações
que
pelos
erros
A hegemonia da liderança nacionalista burguesa, a falta de unidade entre as várias correntes, a competição entre chefias personalistas, as insuficiências organizativas, os erros desastrosos acumulados, as ilusões reboquistas e as incontinências retóricas – tudo isso em conjunto explica o fracasso da esquerda. Houve a possibilidade de vencer, mas foi perdida (1987, p.67).
anteriores e pelas inspirações dos
Gorender afirma que houve
derrota de 1964 que fez a esquerda
uma
falência
organizativos
dos das
revolucionárias, evidente
em
grandes
do
1964.
O
optar
caminho
guerrilheiro
faria
condições
subjetivas
inerentes
revolução
socialista.
Somado
pelas
trotskismo
de
das
armas
causas
e
da
abandonar
–
ainda
que
sejam
correntes com concepções políticas diferentes e divergentes entre si – formam o que Gorender chama de
foco
amadurecer
chama
O foquismo, o maoísmo e o
se uma alternativa viável para as um
Filho
“velhas” práticas do PCB.
tornou
foquista da revolução cubana torna-
brasileiras,
Reis
muitos elementos do leninismo e das
militantes. Dessa forma, a teoria
condições
que
reconhecimento
modelos
se
revolucionários
“violência retardada”, pois foi o
organizações
que
feitos
militaristas. Isso gerou a composição
pacífico estava descartado por muitos
“Receitas para a luta armada”, que
as
influenciam essa ala da esquerda
à
brasileira, pois concordam em um
ao
aspecto: a própria luta armada.
foquismo, “as sentenças de Mao – os
partir
imperialistas e os reacionários são tigres
da
análise
de
A
Gorender,
compreendemos que pode ter havido
de papel, o poder nasce da boca do fuzil
um alto grau de incorporação dos
– se tornaram senhas mágicas (...) da
modelos 20
esquerda
revolucionários
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
internacionais. O autor destaca várias
esgotamento da esquerda armada,
facções armadas que surgiram no
que se apoiava em assaltos, fugas,
pós-64: aquelas que surgem do racha
sequestros, ações armadas urbanas
no interior do PCB, propondo a luta
em geral, para dar condições de
armada
existência às suas organizações. Mais
imediata
Libertadora Partido
–
Nacional
a
Ação
(ALN),
Comunista
o
uma
Brasileiro
vez
aparece
a
questão
da
diferença entre objetivos políticos e
Revolucionário (PCBR); o Movimento
realidade
Nacionalista Revolucionário, oriundo
armada no discurso acadêmico de
“da articulação entre exilados de
autores com parti pris.
Montevidéu e os adeptos de Brizola no
Brasil”
(1987,
p.127),
capítulo das lutas de massas estava
Vanguarda Popular Revolucionária foquista
da
Política
Operária
(POLOP);
a
encerrado”
como se a violência tivesse sido a última cartada, o último apelo de
de uma decomposição da VPR, que
poder organizar-se. No entanto, a
se junta com parte do Comando de
repressão do Estado foi aprimorada
(COLINA).
com mecanismos que apelaram à
Essas organizações, e outras que optaram
pela
luta
profunda investigação, baseada em
armada,
prisões e torturas. Dessa forma a
sustentavam-se na clandestinidade, e
esquerda
sobreviveram nessas condições por
perseguida,
um curto período, entre 1968 e 1674. A
situação
segundo
de
gerou
foi
fatalmente
criminalizada
e
nessas condições, cada vez mais, os
o
grupos passam a carecer de base 21
armada
desmantelada. Gorender destaca que
clandestinidade,
Gorender,
1987,
combate frontal e militarizado. É
Palmares (VAR-Palmares), que surge
Nacional
(GORENDER,
p.153), restando à luta armada o
Vanguarda Armada Revolucionária –
Libertação
esquerda
pós AI-5 gerou a certeza de que “o
defendiam o foco guerrilheiro; a
dissidência
da
O aprofundamento da repressão
que
(VPR),
política
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
social. Além disso, entre 1968 e 1974
1965, em resposta à derrota expressa
o “milagre econômico”, fruto da
pelo golpe. Essa violência retardada,
modernização conservadora, estava
ainda
no seu auge, fortalecendo o apoio
novamente a esquerda perdeu. É
civil aos militares, em detrimento aos
como se a antiga lei penal de Talião
ditos “subversivos” (1987, p.158-159).
estivesse na agenda do dia: “olho por
Gorender relaciona o fracasso da
olho, dente por dente”, violência não
esquerda
tem outro antídoto que não seja ela
armada
com
questões
internas (os erros) das organizações –
a
elas–
determinadas
as
pela
Para
condições
política
colocando
esquerda que
o
gerou
do
(GORENDER, p.227), ou seja, as organizações armadas eram formadas
resposta
dos
oprimidos
nas
processo
de
organizações
de
pequeno-
burguês,
sobretudo
entre
dirigentes
(2006,
3-5).
Esse
autocrítica
se
de
p.
os
ainda que a composição social destas não fugisse ao padrão pequeno-
(das
burguês
referidas frações de classes). O autor
intelectualizado.
De
qualquer forma, os militantes das
finaliza sua análise afirmando que o
facções armadas, longe de serem
sentido da experiência armada foi a
maioria proletária, acreditavam que
violência retardada, elaborada desde
“o trabalho deveria continuar, a 22
Ramos
intensificou nas esquerdas armadas,
à
violência militar, surge a inevitável violência
intenso
comportamento
processo
por frações mais privilegiadas das Em
Freire
que os erros eram frutos da moral e
classe dominante para defendê-la”
sociais.
Alcides
esquerda, que as levaram a perceber
Militar
“cortou os galhos podres da própria
classes
um
autocrítica
armada,
Estado
e
na luta armada, o golpe de 1964
ainda toca na questão da composição da
falhou
(2006), autor que não teve parti pris
de
repressão do Estado Militar. O autor
social
organizada,
mesma.
como sectarismo e vanguardismo – e externas
que
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
partir
do
material
humano
simbólica” (RAMOS, 2006, p. 10). E é
7).
O
aqui que a análise de Ramos, como
comportamento dos guerrilheiros era
autor sem participação militante na
guiado pela confiança na Revolução,
luta
e pela certeza de que “firmeza,
autores anteriores, pois foca no
convicção ideológica e espírito de
sujeito militante, mas mesmo assim o
sacrifício” desencadearia este evento
autor parte do binômio erro/acerto,
(2006, p.8). Essa autocrítica levou a
vitória/derrota. A morte simbólica
esquerda
deriva
disponível”
(2006,
armada
intelectual
p.
a
substituir
pelo
o
armada,
de
se
diferencia
uma
sequência
dos
de
combatente
prescrições de comportamentos, que
responsável
foram identificadas por Ramos nos
pelo processo que intensificou a
documentos das organizações, já nos
militarização da extrema esquerda no
depoimentos dos militantes o autor
período
destaca as dificuldades que estes
revolucionário,
fator
ditatorial.
Podemos
identificar a máxima desse processo
encontravam
na Ação de Libertação Nacional
prescrições.
(ALN),
militantes em serem sujeitos da
de
Carlos
Marighella
e
em As
proceder
tais
dificuldades
dos
Câmara Ferreira, ex-militantes do
revolução
PCB, que passaram a promulgar a
convivência com a morte, em dois
ação
revolucionária
giravam
em
torno
da
como
fator
sentidos, o simbólico, acima descrito,
organização,
em
e a concreta, advinda da intensa
detrimento das discussões teóricas,
repressão (2006, p.14). Esses fatores
postas de lado.
dificultaram a criação do combatente
central
O
da
autor
afirma
que
e
“o
intelectual
orgânico,
em
detrimento do pequeno-burguês. E
intelectual de origem e formação
nesse sentido, a esquerda armada
pequeno-burguesa, que desejasse se
não se constituiu em grupos políticos
transformar em combatente deveria
potencialmente
passar por um processo de morte 23
do
revolucionários,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
devido à contradição entre a real
múltiplas
identidade de classe dos militantes, e
sentido, se o golpe e a Constituição
aquela
de
desejada,
prescrita
pelas
1967
determinações.
não
tivessem
Nesse
ocorrido,
organizações a partir dos processos
seriam mínimas as chances de ter
de autocrítica. Além disso, o que se
acontecido a luta armada. Moraes
esperava
parte
dos
militantes
eram
da
afirmação
de
Jacob
posturas que poucos adotam, dada a
Gorender, e a supera. Para este
diversidade
autor, a luta armada representou uma
de
preferências
e
tendências de indivíduos. Façamos comparação
agora
violência retardada, uma resposta à
uma
derrota de 1964, no entanto Moraes
breve
metodológica
esclarece que esta afirmativa esbarra
e
em alguns detalhes: “aqueles que
conclusiva entre estes autores, com o objetivo
de
visualizar
como
tomaram a decisão de não lutar em
a
1964, continuaram a não lutar em
literatura clássica e estudos mais
1968” (MORAES, 1968, p.140), além
recentes da História e da Sociologia
disso,
vêm tratando do período de maior
Quartim
de
Moraes,
condições
para
de
favoreciam
mais
o
amadurecimento desta, devido ao
defender sua hipótese 4 , faz uma
aprofundamento ditatorial. Moraes
análise comparativa entre os eventos
também se opõe a Gorender no que
históricos e as possibilidades do
se refere ao erro fundamental das
contrário, utilizando a tese marxiana
esquerdas, de não se prepararem
de que “o concreto é a síntese de
devidamente para a luta armada,
múltiplas determinações” (1989, p.
como se esta fosse uma fatalidade
138), logo a luta armada é a síntese de
(1968, p. 141), para Moraes essa tese
de Gorender engessa o movimento
4
De que a luta armada resultou da condição política posta pela Ditadura Militar, sendo a CF 1967 pré-condição, pois regulamenta os processos de coesão do Estado militarizado.
da luta de classes. Parece-nos que a 24
período
desencadeamento da luta armada, as
radicalização da esquerda brasileira. João
no
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
análise
de
Gorender
pretende-se
encontram-se os repetidos erros da
mais normativa no que se refere às
esquerda
e
formas de luta, e isso reflete um
derrotas.
O autor remonta, numa
pouco da relação do autor com o
pesquisa explicativa, o percurso da
objeto, como o próprio João Quartim
esquerda
de Moraes frisa. Este autor também
apresentá-la como um campo político
engessa,
a
constituído por grupos, cuja coesão
apreciação sobre o desencadeamento
estava alinhada aos parâmetros dos
da
“revolucionários
luta
em
certa
armada,
medida,
ao
delimitar
suas
brasileira
consequentes
de
modo
vitoriosos”
a
(1990,
rigorosamente, como dito alhures
p.186). Portanto, Reis Filho deixa
neste trabalho, os condicionantes da
recair sobre a esquerda todo o peso
luta armada no Brasil e a necessidade
de sua própria derrota, ao mesmo
de
de
tempo em que a minimiza enquanto
vanguarda que, segundo ele, faltou
agentes transformadoras da realidade
na resistência ao Estado Militar. Na
social. As assertivas elaboradas por
mesma linha, determinada pelo alto
Reis Filho são em parte convergentes
grau de envolvimento do pensador
com Moraes, quando este destaca o
com o objeto pensado, Reis Filho
forte
defende que naquele período, a
facções armadas, no entanto, Reis
esquerda tinha “um projeto político
Filho parece muito mais disposto a
com vida própria” (1990, p. 18), e os
um
militantes estavam condicionados a
Moraes. A Tabela 1 demonstra as
ele, precisavam manter princípios e
diferentes conclusões dos autores
condutas prescritas, e isso exigia
acerca
mais
abordando.
um
dos
verdadeiro
militantes
partido
do
que
a
componente
“acerto
do
de
dogmático
contas”
tema
que
compreensão da própria luta de classes no Brasil. Nesse processo Tabela 1. Teses de autores que militavam em organizações de
25
do
das
que
estamos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015 esquerda, sobre ascensão e declínio da luta armada no Brasil
Desencadeamento da luta armada
Moraes
Gorender
Reis Filho
Declínio da luta armada
Resposta aos condicionantes internos - golpe e aprofundamento ditatorial ligado a CF67 - e ao percurso dos movimentos de massas
Terrorismo de Estado
"Violência Retardada" ou seja, uma resposta à derrota configurada pelo golpe de 1964, em que a oposição estava sem direção.
A esquerda não se preparou para a luta armada
Resposta aos erros da prática democrática e massistas advindas das teses do PCB, que geram organizações guiadas por novas concepções de luta.
Erros de condutas, tais como o vanguardismo e a fragmentação das facções; erros de leitura da realidade da luta de classes no Brasil. (Organizado pela autora)
numa
outro se deu com a ascensão da luta
abordagem histórica, foca no papel
armada, ou seja, o agente político
do intelectual revolucionário, e como
que
este foi se modificando, e passou do
extremistas e armadas é aquele que
intelectual
age
Alcides
teorista,
Ramos,
pequeno-burguês, para
revolucionário.
o Ambos
combatente os
papéis
combina
muito
com
mais
organizações
que
conjuntura
nacional.
conjuntura
política
estuda
a
Portanto,
a
determina
a
sociais parecem pouco comuns na
agenda das organizações políticas.
sociedade. A substituição de um pelo
Ramos não apresenta os mesmos 26
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
impasses
dos
que
na
importam com os “erros”, muito mais
esquerda durante o período, isso
do que com os acertos, das ações e
resulta
menos
decisões das referidas facções, dado o
prescritiva. Além disso, o autor não
resultado final da disputa nada justa
se preocupa em explicar como a
entre esquerda resistente e ditadura
esquerda armada surgiu, mas sim um
militar. Há uma predominância da
efeito
historiografia, em detrimento dos
numa
militaram
análise
gerado
por
esta
nas
organizações de esquerda. O autor
métodos
compara
análise de discurso, das trajetórias,
documentos
das
organizações com depoimentos de
das
guerrilheiros,
e
análises
militante
almejado
conclui
que
o
da
pesquisa
instituições.
A
social,
base
são
da
dessas
documentos,
pelas
depoimentos e experiências, e o uso
organizações se constituía num tipo
de métodos quantitativos é escasso.
difícil
isso
Para efeito deste trabalho, defendo
os
que a história dos vencidos também é
guerrilheiros, que passavam por um
formada de acertos da parte destes e,
processo de morte simbólica para se
ainda que a derrota tenha ocorrido,
adequarem aos padrões.
nem
formava
de
concretizar-se, um
dilema
e para
alguma
composição
referência
social
da
social
ligado
sim
identificar
rupturas
cargos
entre
continuidades fatos
políticos
e e
sociais do passado e a atualidade. A
dirigentes, e reconhecido como a
luta armada ainda não foi conectada
fração de classe preponderante nas
com a atualidade, e acreditamos que
facções armadas. Também em algum
essa agenda política seja importante
grau, todos os autores partem do
para entender o habitus – numa
julgamento “errou ou acertou”, e se 27
tem
um ou outro lado estava certo, mas
esquerda
aos
vencido
importa para a ciência não é julgar se
à
armada, sendo o intelectual um agente
o
responsabilidade por ela. O que
Em suma, todos os autores fazem
sempre
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
linguagem bourdiesiana – do campo
A
desigualdade
de
recursos
foi
da atual esquerda brasileira.
importante tanto para a vitória do golpe sob a esquerda em 1964,
Medir forças com aqueles que
quanto
possuem os meios de coação é uma
para
a
intensificação
da
repressão pós AI-5. Dado que os
tarefa a qual se devem considerar
golpistas
fatores que escapam da lógica da
também
estavam
fragmentados e sua ação em 1964 não
derrota/vitória. A luta desigual – e
estava
essa desigualdade tem níveis, que
tão
bem
planejada
como
recorrentemente podemos imaginar.
talvez possamos definir comparando os meios de um e outro lado – entre grupos
sociais,
determinada
pela
Parte
posse dos meios de coação e pela
II
–
Características
das
organizações armadas
legitimidade da representação de classes e frações de classes, acaba
Inserir a esquerda armada no campo
determinando o resultado de um
político,
processo de combate. Com mais ou
compreender os motivos de sua
menos coesão, nascida de tal ou qual
ascensão
processo, a esquerda armada era
reconstruir
fraquíssima
inimigo
características, que apontem para a
número um, a ditadura, e mais fraca
forma e para o significado destas
ainda quando comparada ao inimigo
organizações
sistêmico, o capitalismo. A base
Assim,
social de apoio era cada vez mais
apresentaremos a esquerda armada
estreita e a posse de recursos de
sob o prisma de autores sem parti pris
guerra
menor;
que destacaram: i) a sua composição
grande era a confiança de que uma
social; ii) as teorias revolucionárias
vanguarda bem organizada poderia
que serviram como norteadoras das
transformar os rumos da sociedade.
organizações; iii) a moral estruturante
era
frente
ao
infinitamente
28
com
e
nesta
o
objetivo
declínio, algumas
no
requer de
campo parte
de
do
suas
político. artigo
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
do
militante
organização
e e;
estruturada iv)
a
pela
derrota da luta armada tem relação
violência
com
a
representação
das
bases
revolucionária. Essas características
sociais. Para ele, a derrota não foi de
foram
uma ou outra organização, mas sim
destacadas
por
serem
recorrentes na literatura sobre o
“de
um
projeto
político
de
tema.
representação” (2010, p. 241); sem apoio das bases sociais, as ações
2.1 Composição social da esquerda
armadas
armada
estavam
condenadas
ao
próprio fim. Ou seja, as classes e
A composição social da esquerda diz
frações de classes que formavam a
respeito
estas
esquerda
armada
organizações têm com as bases da
daquelas
cujos
sociedade. Ou seja, quais classes e
defendidos
frações de classes deram origem à
leitura,
luta armada, e quais classes e frações
considerável entre representantes e
de classes essas se dispuseram a
representados
representar. Nesse sentido, Marcelo
esquerda.
à
relação
que
Ridenti (2010), com base nos dados
Os
do Projeto Brasil Nunca Mais – que
de
cometida
pelo
direitos Estado
esquerda
–
(2010,
p.163-238).
social
dessa
parte
referidas
estas.
nossa
havia
uma
no
dados
Na
distância
campo
da
analisados
por
armada,
mesmo
organizações.
apresentamos
da
assim
duas
Abaixo
tabelas,
que
sintetizam um pouco a origem social
esquerda. Ridenti, ainda sobre o
da esquerda, e mais especificamente
prisma derrota/vitória, afirma que a
das facções armadas. Os militantes 29
por
origem social dos militantes das
Esse
estudo é importante no campo da projeção
eram
sugerem valiosas informações sobre a
analisou as bases sociais da esquerda armada
interesses
não representa todo o universo da
humanos Militar
distintas
Ridenti formam uma amostra que
pretende esclarecer e divulgar a violação
eram
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
listados na tabela compunham as
na guerra popular chinesa ou em
seguintes
“ALA”,
qualquer experiência que preconizou
“COLINA”,
formas de lutas – contabilizamos
“ALN”,
organizações: “AP”,
“CORRENTE”, “FALN”,
“DI-DF”,
“FLNe”,
de
dezoito
organizações
que
11”,
seguramente optaram pela via das
“MAR”, “MEL, “MNR”, “MOLIPO”,
armas: (“ALA”, “ALN”, “COLINA”,
“MR-21”, “MR-26”, “MR-8”, “MRM”,
“FALN”, “FLNe”, “MAR”, “MNR”,
“PCdoB”, “PCB”, “PCBR”, “PCR”,
“MOLIPO”,
“POC”, “POLOP”, “PORT”, “PRT”,
“PCdoB”, “PCBR”, “POC”, “PRT”,
“RAN”, “REDE”, “VAR”, “VPR”,
“RAN”, “REDE”, “VAR”, “VPR”).
“Vários
Dessas
grupos”
“G.
“DVP”,
(Ridenti,
2010,
“MR-26”,
organizações
“MR-8”,
participavam
p.277). Quando analisados um a um,
indivíduos que Ridenti categorizou
notamos que nem todos os grupos
como pertencentes a “camadas de
eram adeptos – preconizavam e/ou
base”, “camadas em transição” e
agiam – da luta armada. Dos que
“camadas médias intelectualizadas”,
optaram por esse tipo de tática – seja
descritas nas seguintes tabelas.
com referência no foquismo cubano, Tabela 2. Composição Social da Esquerda – todas as citadas Camadas médias intelectualizadas: Camadas em transição: Camadas de Base: Lavradores, empresários, estudantes, oficiais Autônomos, empregados, militares de baixa patente e militares, professores, profissionais funcionários públicos, militantes, trabalhadores manuais urbanos liberais ou com formação superior e técnicos médios e outros. religiosos. Total de militantes com ocupação conhecida
704 (19,0%)
1.085 (29,4%)
1.908 (51,6%)
Total
3.698 (100%)
(Fonte: adaptado de Ridenti, 2010, p.277.)
Tabela 3. Composição Social da Esquerda – facções seguramente armadas
30
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Camadas médias intelectualizadas: Camadas em transição: Camadas de Base: Lavradores, empresários, estudantes, oficiais Autônomos, empregados, militares de baixa patente e militares, professores, profissionais funcionários públicos, militantes, trabalhadores manuais urbanos liberais ou com formação superior e técnicos médios e outros. religiosos. Total de militantes com ocupação conhecida
273 (14,7%)
498 (26,8%)
1.089 (58,5%)
Total
1.860 (100%)
(Fonte: adaptado de Ridenti, 2010, p.277.)
As tabelas demonstram que no
especializados e pela pequena e
seio da esquerda armada, as camadas
média burguesia, proprietários dos
médias
eram
meios de produção e frações mais
Quando
privilegiadas das classes-que-vivem-
comparamos os dados das duas
de-trabalho. Ou seja, a representação
tabelas
a
de classe que era projetada pelas
esquerda armada do conjunto da
teses das esquerdas armadas não
esquerda, percebemos que dos 1.908
revelava suas próprias formações. As
militantes
camadas
frações da classe trabalhadora que
1.089
estavam em processo de ascensão ou
pertenciam a grupos armados. Ou
em ascensão social, aos moldes do
seja, o trabalho de Ridenti nos
capitalismo, lutavam motivadas pelos
mostra que a esquerda armada era
problemas
mais elitizada que o restante das
frações mais exploradas da classe
esquerdas,
trabalhadora. De fato, havia um
intelectualizadas
predominantes.
e
médias
quando
destacamos
oriundos
das
intelectualizadas,
a
grupos
origem
social
armados
dos
estava,
privilegiadas
trabalhadora
e
da da
vividos
pelas
problema de representação social.
preeminentemente, entre as frações mais
sociais
2.2
classe
Esquerda
armada
e
teorias
revolucionárias
pequena
burguesia, visto que as “camadas
A esquerda armada brasileira surge
médias
de
formadas
intelectualizadas” por
são
trabalhadores
teóricas 31
um
declínio e
das
práticas
concepções advindas
da
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
estratégia
democrática-nacional,
revoluções
como
a
chinesa,
a
defendida pelo PCB, como já vimos.
argelina, a cubana. Ridenti (2010),
Para as facções armadas, acreditar
com base num artigo de Marco
que há uma etapa revolucionário-
Aurélio
burguesa
características que diferenciavam a
socialismo
entre –
capitalismo no
e
sentido
de
para
uma
revolução
proletária – pesou na derrota de 1964, como indicam diversos autores, como Ridenti (2010), Gorender (1987) entre outros. Armar-se indicava uma mudança de tática e, portanto, de concepções
de
como
se
fazer
Estas subdivisões propostas por
revolução, já que a via pacífica e
Garcia,
democrática mostrou-se falha, na
revolução
China,
etc.
socialista
era
Fazer a
a
pilares
ação
da
ditadura.
o capitalismo, a luta de classes no Brasil e a ação no campo político variaram
alguns militantes passam a defender inspirados
entre
as
organizações
armadas, no entanto Ridenti defende
em
que 32
se
precedentes formas de compreender
esquerda frente ao golpe de 1964,
métodos,
teórico-metodológicos
armada. O grau de superação das
Baseados no completo imobilismo da
novos
conjuntura
constituiu e desenvolveu a esquerda
ainda que o motivo último tenha sido aprofundamento
da
a
eficazes para demonstrar sob quais
política fundamental desses grupos,
o
como
social apontada por Ridenti, são
apresentava-se como vitoriosa em na
bem
indissociabilidade
mesma medida que a via armada
Cuba,
as
em três grandes coordenadas as divergências entre os vários grupos em que se fragmentava a esquerda brasileira na década de 1960: uma referente ao caráter da revolução brasileira; outra, às formas de luta para chegar ao poder; uma terceira, ao tipo de organização necessária à revolução. As divergências em torno desses três grandes temas no interior das esquerdas tinham como paralelo indissociável as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira (RIDENTI, 2010, p.32).
amadurecimento do capitalismo, e isso
desdobra
esquerda brasileira. Separou-se
desenvolver as bases para o total
por
Garcia,
“muitas
organizações
que
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
pegaram em armas mantiveram com
reproduzia muitas das suas ações. O
poucas
quadro
alterações”
o
democrático-nacional
esquema
sintetiza
as
do
subdivisões de Garcia, usada por
PCB (Ridenti, 2010, p.33). Isso quer
Ridenti, e por nós consideradas
dizer
importantes para compreender a luta
que
superação
mesmo teórica
etapista
abaixo
havendo das
uma
estratégias
armada.
pecebistas, a esquerda armada ainda Quadro 1: Subdivisões no interior da esquerda socialista/comunista Tipo de organização Caráter da Revolução Formas de luta para necessária à Brasileira chegar ao poder revolução Via pacífica Democrática Nacional Insurreições de massas Guerra popular prolongada - guerrilha rural como Socialista catalisadora Foquismo
Partido de Vanguarda Pequenos grupos militarizados Exército popular, base campo
(Elaborado pela autora, com base em Ridenti (2010) p.32-56.)
A
estratégia
as
democrática-
partido
modelo do partido de vanguarda. O
Brasil.
Já
Brasil
como
já
estava
plenamente
desenvolvido, e a burguesia nacional
a
assumia
estratégia socialista era combinada
posição
cooperação
com as insurreições de massas, com 33
vanguarda
defendiam que o capitalismo no
imperialismo, e com isso amadurecer no
de
socialista, pois estas organizações
revolucionário
com o objetivo de libertar a nação do
capitalismo
de
estratégia das facções armadas era a
que a burguesia brasileira deveria
o
guerra
pequenos grupos militarizados. A
PCB era o melhor exemplo, defendia
bloco
de
de organização, poderia ser tanto um
pacífica e democrática e com o
um
formas
guerrilhas e, em relação ao modelo
nacional era combinada com a via
compor
várias
e
de
colaboração,
aliança
com
o
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
imperialismo, o que as tornavam
sobre formas de lutas e análises
aliadas, e jamais inimigas de classes.
conjunturais, havia certos parâmetros
No
geral,
ainda
que
compartilhados pelas facções desse
as
campo político. Esses parâmetros
estratégias, as formas de luta e o tipo
advinham da moral que circunscrevia
de organização fossem temas que
o conjunto das grandes experiências
despertavam calorosos debates entre
da esquerda no campo da luta de
as esquerdas, que divergiam e se
classes. Back nos lembra que
fragmentavam motivadas por essas
desde Engels, Gramsci, e Lukács a Mao Tse Tung, Che Guevara e Fidel Castro, são elencados ascetismo, solidez teórica e política, autosacrifício, iniciativa, disciplina, generosidade, modéstia, engajamento, espírito de camaradagem, disponibilidade, simplicidade, altruísmo, “despojamento heroico cotidiano” (palavras de Fidel), discrição, submissão aos interesses coletivos (BACK, 2001, p.4).
questões, ainda assim as facções armadas parecida,
agiam e
isso
de
forma
acontecia
muito pelas
condições materiais sob as quais elas se encontravam, a clandestinidade, a repressão, e pela similitude de suas bases sociais e seu consequente
Os militantes eram indivíduos
problema de representação. que, 2.3 Moral revolucionária
verdade
com
características
reais
e dos
quais
que mais
na anti-
políticos envolvidos das revoluções épicas. Nesse sentido, ainda que as
as
esquerdas estivessem fragmentadas, a
mesmos.
moral revolucionária que agia como
Ainda que entre as esquerdas fossem
uma herança no plano da cultura
recorrentes as divergências teóricas 34
muito
–
cunho
parâmetros descritos por agentes
organizações forjavam a identidade militantes,
de
projeto
construíam a si mesmos com base em
o
objetivo de entender como essas
seus
era
um
ditatorial, portanto democrático –
revolucionárias, a ALN (Brasil) e o (Argentina),
de
socialista/comunista
comparativo entre duas organizações
de
nome
revolucionário
Lilian Back (2001) fez um estudo
PRT-ERP
em
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
política,
e
que
culminava
na
seja, Back vê a moral dos grupos
construção de um novo homem, era
armados como voltada ao combate, à
um fator de coesão. E esse era um
sobrevivência da luta política, e Reis
traço comum entre a diversidade das
Filho vê essa mesma moral como
facções armadas. Vemos no estudo
desagregadora da esquerda.
de Back (2001) ecos do que Reis
Daniel Aarão Reis Filho (1990)
Filho escrevera em 1990. Essa moral
também elenca características que
forjada pela esquerda armada foi um
eram prezadas pelos comunistas, os
dos elementos que pesaram para sua
quais definiam suas organizações
própria derrota, pois a imobilizava e
como
seccionava. Back nos informa que o imobilismo
era
rechaçado
medida
composição
social
representação, anteriormente.
na
e
na
como Destacamos
organizações
Estados
Maiores,
se a
importância maior que o processo real da luta de classes no Brasil. Segundo o autor, essa lógica acabou
vimos
debilitando
das
a
ação
política
dos
comunistas, e os conduziram às
conclusões de Back o que importa
sucessivas derrotas. Em suma, a
para este trabalho, ou seja, havia uma
moral revolucionária dá coesão à
predisposição dos militantes – guiada
organização, e na mesma medida
pela moral revolucionária, forjada
limita suas ações, pois o conjunto de
pela inteligência coletiva das facções
valores e concepções gera impasses
– à violência, à transposição da ação
para a ação interna e externa – com
em relação à teorização e por isso
aliados e não aliados.
“um rechaço ao intelectualismo e ao imobilismo” (BACK, 2001, p.15). Ou 35
as
manutenção dos princípios tinha
ser e o vir a ser dos militantes. Essa aparece
que
afirmavam
nos revela uma contradição entre o
também
Maiores
revolucionários”. Para Reis Filho, à
pelas
facções armadas (2001, p.15), e isso
contradição
“Estados
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
2.4
Violência
revolucionária
e
esses fatos. Conforme vimos no
memória social
início, Moraes (1989) defende que sim, que a luta armada teve como
O uso da violência é característica básica
da
esquerda
base
armada.
oprimidos
–
violência
representante é
uma
dos
militares
ficaram sem espaço de atuação”
–
(RIDENTI, 2010, p.63), soma-se a isso o fato de que a esquerda que
golpe teria gerado entre a esquerda
lutava antes do golpe não era mais a
uma violência retardada. Essa tese
mesma daquela que se constituiu
torna, em alguma medida, nebulosa a
depois
história da esquerda que, muito antes
esquerda, como seus limites em
isso
relação ao uso da violência, oculta
defendemos que o motivador para a
outros, que dependem da percepção
esquerda rever suas táticas – e
da continuidade da composição das
preferir às armas em detrimento das
facções
ações de massa – foi o golpe militar,
Portanto,
bem como o aprofundamento da militar
em
1968,
esquerda
mas
duvidamos
armada
tenha
que
a
extrema
esquerda.
constituição
e
o
devem ser observados num prisma
a
1
João Quartim de Moraes nos lembra de que grande parte dos militantes da esquerda armada estavam, em 1964, envolvidos com movimentos de massas, sobretudo o estudantil.
sido
constituída apenas em resposta a 36
da
fortalecimento da esquerda armada
que
marcou o ápice da opção pela via armada,
mais
ainda que revele vários aspectos da
revolucionárias, como é o caso das
repressão
golpe,
seja, a tese da violência retardada,
já vinha esboçando táticas armadas
Sobre
do
especificamente depois do AI-51. Ou
do AI-5 e mesmo do golpe em 1964,
Camponesas.
a
último recurso para aqueles que
à
representantes dos opressores. O
Ligas
e
“a resistência armada teria sido o
dos
resposta
golpe
(fatores internos). Ridenti coloca que
clássica, afirmando que a violência da –
o
legitimação do Estado Autoritário
Gorender apresenta uma abordagem
esquerda
motivadora
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
que extrapola o período da ditadura
incorporado pela esquerda brasileira,
militar.
marcada, como toda a sociedade na época, por concepções e práticas
Nascimento (2004) fez uma
autoritárias” (ROLLEMBERG, 2007,
análise das produções acadêmicas de
p.
1980 e 1990 – dentre elas a de
frente
o regime militar. Para o autor, essas
tese
revolucionário’ ‘causas
da
e
do na
derrota’,
do
cometidos que,
Trabalhadores,
Partido
dos
dizer,
“no
quer
nova
facções em
armadas violência,
que
a
democracia
fosse
suprimida, e sua prática criticada, na mesma medida que a democracia voltasse a reger. Contudo, o que hoje se sabe,
qualquer forma de práxis sustentada
se pensa e se divulga sobre a
na
experiência
de
crítica
essa
a
guerra
pela
pelas
envoltas
medida
origem a uma concepção da luta norteada
que
se a violência fosse crescendo à
começo de 80, em particular, deu
política
Disso
foram destruídas – por ela. É como
estavam
ligadas ao novo projeto político, no
sociedade.
construíram-se e destruíram-se – ou
seja, Nascimento defende que as
materializado
à
negação tem por base os erros
política dos anos 80” (2004, p. 48). Ou
gênero
postura
política. Compreendemos que essa
projeto
demandas políticas da conjuntura
desse
nova
uma
da negação da violência como tática
das
revolucionário, a fim de atender as
produções
antigos
esquerda pós-80 formou-se a partir
‘suicídio busca
dos
compreendemos
produções “insistiram como premissa na
exigindo
guerrilheiros
Gorender – sobre a esquerda durante
básica
291),
guerrilhas”
(p.49).
armada
da
esquerda
Soma-se a isso o fato de que na
durante a ditadura militar gira em
segunda metade dos anos 1980 “a
torno, sobretudo, da anistia e dos
democracia foi aparecendo e se
direitos
impondo
perspectiva da memória. Sobre isso,
como
valor
a
ser 37
humanos,
envoltos
na
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Vitor Amorim de Ângelo fez um
atualmente abrange a história da luta
estudo
de
armada. Para Ângelo, a luta armada
compreender os reflexos da relação
não chegou a ameaçar a ditadura,
entre esquerda armada e ditadura
como a memória social da esquerda
militar na memória social. Para este
sustenta, no entanto, a construção
autor, a violência vivenciada pela
dos
esquerda era envolta na assertiva de
memória cumpre uma função de
que
verdade,
capital simbólico (ANGELO, 2012,
facilitou a vitória do regime – e não
p.23) no seio da atual esquerda. Essa
sua derrota – ao lhe fornecer o
conclusão do autor é instigante, pois
argumento de que precisava para
demonstra que a experiência armada
ampliar a repressão” (2012, p.1). Ou
se estendeu no percurso da práxis da
seja,
esquerda brasileira.
com
“a
a
o
objetivo
guerrilha,
violência
na
do
oprimido
intensificou a violência do opressor
guerra,
teve
facilidade
que
envolvem
essa
2.5 Procedimentos metodológicos da
que, muito mais provido de recursos de
mitos
literatura
em
desmantelar o projeto revolucionário
Esse conjunto de informações sobre
de esquerda.
a esquerda armada resulta de várias pesquisas históricas e sociais, com
Nesse contexto, a memória
procedimentos metodológicos bem
social da luta armada está imersa em mitos,
que
relativamente militar.
Os
ocultam
a
diferentes. O quadro 2 resume a
derrota
fácil
à
repressão
ideais
de
revolução
forma como a literatura histórica e social aborda a esquerda armada brasileira. Nele verificamos que o uso
socialista das organizações armadas
dos métodos analíticos das ciências
deram espaço, na memória social,
sociais
para a lógica democrática, o que
minoritário.
E,
como
utilizamos referências clássicas da
explica de certa forma o foco na anistia e nos direitos humanos que 38
é
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
década de 1980, observa-se forte ênfase na lógica da derrota. Quadro
2:
principais
estudos
sobre
esquerda armada brasileira
(Elaborado pela autora, dados coletados
Autor (a) e grande área
Problema
Hipóteses
Procedimentos metodológicos
Algumas Conclusões
Mobilização e studantil Qual a relação e ntre Separa "eventos" de desencadeou-‐se por motivos movimentos de massas A condição política fundamental "processos"; confronta e ventos internos, confirma-‐se a J.Q. de Moraes, e o desencadeamento para a l uta armada foi a ditadura históricos com a possibilidade hipótese. O e ncontro e ntre Ciências Sociais da l uta armada no militar, e a pré-‐condição foi a CF-‐67 do contrário, e stabelece mobilizações de massa e l uta Brasil e m 1968? relações causais, compara. armada fez surgir a certeza de que a e stratégia e ra outra. M.S. Ridenti Ciências Sociais
Qual as raízes sociais e Remonta a órbita política da A revolução brasileira frustou e não As organizações clandestina o significado da l uta esquerda e suas composições amadureceu, o acerto de contas é marginalizaram-‐se e perderam dos grupos de sociais. Utiliza dados do BNM, fundamental para que os e rros não representação; o i nimigo esquerda, sobretudo entrevistas e depoimentos. Uso se repitam. principal tornou-‐se a ditadura. os armados? da e statística.
Manter os princípios e ra O autor mostra-‐se fundamental para a e squerda, bem intensamente e nvolvido com o A derrota das e squerdas Como e xplicar a como a criação da vanguarda; os objeto, l ogo faz uma análise ocorreu pois a natureza das D.A. Reis Filho derrota dos comunistas motivos para as reviravoltas na histórica, clínica e e xplicativa da organizações e ra formada por História brasileiros? esquerda e ram i nternos; fragmentação, dos i mpasses e características que debilitavam predominavam os i ntelectuais, das atitudes dos comunistas as ações dos comunistas. sobretudo na cúpula. frente ao AI-‐5 A e squerda e rrou e m não ter se preparado para o combate armado; e ste representou J. Gorender uma violência retardada a História 1964; o milagre e conômico foi importante para o declínio da esquerda. A e squerda armada justificou a O aprofundamento da ditadura repressão, pois e ra vista como Qual a relação e ntre Identificou e lementos com o AI-‐5 deve ser e xplicado pela inimigo i nterno; sua ditadura militar e constitutivos da memória; V.A. de Angelo luta armada, formada por fragmentação facilitou a esquerda armada e reconstruiu o contexto histórico História organizações que depois passam a repressão; a l uta armada não qual o reflexo disso na no qual se e struturou e ssa serem vistas como combatentes ameaçou a ditadura, e passou memória social? memória. pela democracia. a ser vista como a l uta pela democracia. Esclarecer fatos políticos da relação entre e squerda e ditadura militar.
L. Back História
Comparar a moral revolucionária preconizada pelo PRT-‐ ERP e pela ALN e compará-‐las com os militantes reais.
O autor mostra-‐se A e squerda armada brasileira intensamente e nvolvido com o copiava os modelos objeto, l ogo faz uma análise revolucionários de outros paises, histórica e clínica, a partir de no e ntanto sua constituição pesquisa documental, ocorreu como resposta ao golpe observação, participação e militar, a violência retardada. análise l iterária.
O novo homem e ra o i ndivíduo moral dessas organizações de esquerda.
Pesquisa e x-‐post-‐facto, com variáveis i ndependentes não-‐ manipuláveis. Análise comparativa.
A moral forjada por ambas as organizações divergiam do imobilismo e i ntelectualismo, e convergiam a ação e a violência. Moral de e para o combate.
D.M. Nascimento História
O diagnóstico é composto por Vai do micro ( guerrilha do Qual o diagnóstico As causas da derrota guiam a críticas as ações e concepções da Araguaia) para o macro produzido e m 1980/90 crítica a e xperiência armada; é esquerda armada, e e stá (grerrilhas no Brasil). Pesquisa sobre a e squerda preciso e studar e sta subordinado ao projeto político do bibliográfica com e studo de armada? dissociada da defesa do PT. PT. casos.
A.F. Ramos História
Os i ntelectuais não A acusação de vícios pequeno-‐ conseguem agir de acordo com Analisar depoimentos e Como foi modificado o burgueses e ra tendência e ntre os interesses de uma classe que apontar diferenças e ntre os papel do i ntelectual militantes de e squerda; a l uta não é de origem; por i sso a documentos dos partidos e os revolucionário? armada fez o i ntelectual ser identidade de classe se depoimentos dos combatentes. substituído pelo combatente. constitui numa fragilidade da esquerda.
39
D. Rollemberg História
Como parte da esquerda e voluiu no exílio a respeito da sua participação política?
Os valores democráticos foram, numa dinâmica histórica, sendo impostos a e squerda.
Análise de e xemplares da A "Debate" foi renovada no revista "Debate", comparação exílio, e mesmo negando ser das matérias contidas na revista plural constituiu-‐se assim. com suas ações políticas.
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
de toda a bibliografia).
a
forma
Considerações finais
construção da memória social da esquerda
Grande parte da produção acadêmica
perceber
advém de pesquisas históricas, além
literatura
uma
mudança
sobre
luta
armada
no
Brasil, no campo da História ou das
projeto
suas
campo
Ou seja, existe uma tendência de a
rompem com a política das armas
logo,
do
não tenham parti pris” (2004, p.29).
processo de crítica e autocrítica,
democrático,
estrutura
frequente que pesquisadores do tema
ex-militantes, que no decorrer de um
um
No
geracional, sendo cada vez mais
alguns
estudos feitos na década de 1980 por
construir
a
“processa-se
militantes das organizações armadas.
para
brasileira.
a
político. Carlos Fico coloca que
disso, muitas são realizadas por ex-
analisa
armada
processou
fornecem dados importantes para
Brasil durante a Ditadura Militar
(2004)
se
entanto, as pesquisas históricas nos
que contempla a luta armada no
Nascimento
como
Ciências Sociais, superar as análises
teses
guiadas pela lógica da derrota.
expressam algo parecido com um Os autores que utilizamos para
acerto de contas com o período da
compor este estudo foram mapeados
luta armada.
a partir das categorias: tipo de Depois dessa fase da literatura,
pesquisa,
comprometida, segundo o autor, com
procedimentos
o projeto do PT, as pesquisas sobre
experiência
da
metodológicos
e
quadro 2, exibido anteriormente. A
totalidade
respeito
histórica, limitando a conexão dela
conclusão
com organizações políticas atuais.
disso, gira
reconhecimento
Isso não ocorre com o trabalho de
nossa
primeira
em
torno
de
que
do mais
variáveis devem ser mobilizadas para
Back (2001), por exemplo, que estuda
compreender os ecos das facções 40
hipótese,
conclusões, como demonstrado no
as facções armadas tendem a destacar essa
problema,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
armadas na política da esquerda
vitórias
atual. A análise guiada pela derrota
marxistas que se basearam na luta
encerra o assunto. Outra conclusão
armada, em Cuba, China, etc.; o
revelada pelo estudo e presente no
amadurecimento
quadro 2 é o uso estatístico aplicado
vanguarda combinado com a certeza
ao
da necessidade de um partido que
objeto,
muito
carente
na
de
espírito
de
guie
números revelam pouco sobre a
principalmente, a violação de direitos
realidade social, no entanto, torna-se
de natureza democrática. De modo
fundamental a quantificação quando
geral, o conjunto da literatura nos
se pretende demonstrar e remontar
permitiu gerar essas questões, em
um universo de relações sociais.
acordo e em desacordo com nossas
Podemos afirmar que os estudos
referências bibliográficas.
armada
brasileira
do
pouco
experiência
no
–
o
peso
campo
detalhados da forma de organização
dessa
hierárquica,
político
das
teses
revolucionárias, dos traçados táticos, das histórias dos militantes, entre
Também concordamos que os que
e,
a esquerda armada nos fornece dados
brasileiro da atualidade.
motivos
trabalhadora;
O conjunto da literatura sobre
período
ditatorial-militar, não revelam – ou revelam
classe
do
organizações
literatura. Temos certeza de que os
feitos até então sobre a esquerda
a
algumas
consagraram
outros aspectos. Isso representa que
a
o estudo deste objeto está localizado
militarização das facções foram: a
num terreno fértil da história. Além
impossibilidade de agir nas ruas e em
disso,
espaços
jornalísticas e memorialísticas sobre
públicos,
mobilizando
são
que
matérias
o
revolucionários preconizados pelas
pesquisas nesse campo. Os autores
organizações precedentes, como o
que estiveram envolvidos com as
PCB e a internacional comunista; as
organizações armadas tendem a vê-
o
as
massas; a descrença nos métodos
41
tema,
inúmeras
potencializa
as
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
las sob o prisma dos erros e acertos,
da
forma
e aqueles que não tiveram parti pris
relacionada ao projeto democrático,
tendem a explorar novos aspectos,
tenha sido uma resposta a este
como a memória, o intelectual e o
processo.
guerrilheiro, e a moral, por exemplo.
Dessa
A ascensão e o declínio da esquerda
foram
entender
Back
forma, a
coloca,
poderíamos
esquerda
armada
a
brasileira como uma fase radicalizada
muitos fatores, e neste trabalho
da esquerda, a partir de um processo
concluímos
ditatorial extremamente repressivo,
que
relacionados
como
os
motivos
da
ascensão são aqueles listados como
inspirada
de uma necessária militarização, e a
revolucionários
derrota está ligada à composição
desencadeavam em todo o mundo.
social e à conjuntura em que a
Seu declínio tem menos relação com
esquerda armada atuava. Ou seja, a
os
vanguarda
concepção
revolucionária
era
nos
possíveis
grandes
processos
que
erros
das
de
se
ação
e
organizações,
e
formada por indivíduos das frações
também com as condições em que
mais
estas estavam inseridas, além do
abastadas
da
classe
trabalhadora, e até mesmo de frações
problema
da burguesia. Isso gera o que Ridenti
projeção das bases sociais. Mesmo
chamou
assim,
de
problema
de
representação. Este problema, junto
da esquerda, fez murchar as bases de apoio das organizações armadas, que isolaram-se,
impossibilitadas de participarem da órbita política. Pensamos que a memória social da esquerda armada, 42
representação
e
todos os grupos de esquerda, armados ou não, embora gestados em lutas sociais, tornavam-se cada vez mais exteriores e distantes dos trabalhadores, pretendendo imporlhes as políticas mais diversas, de fora e de cima para baixo, alheios à sua realidade social. Nenhum grupo tinha condições de converter-se numa efetiva representação de classe, todos tendiam a arvorar-se em agentessubstitutos da ação política da classe trabalhadora, entrando numa
à intensa repressão e criminalização
gradualmente
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
atual
dinâmica que não os levariam a lugar algum (RIDENTI, 2010, p.252).
matérias jornalísticas e documentos
todo o conjunto da esquerda a novas
das
concepções de luta, portanto a luta momento
seria
do campo específico, bem como
acreditamos que a luta armada levou
um
isso,
de estudos científicos do período e
Ridenti ao final dessa passagem,
foi
Para
importante considerar todo o leque
Ao contrário do que afirma
armada
esquerda.
de
transformação em todo o campo da
organizações.
também
a
científico
de
divisão
Foi
notável
no
investigação:
campo quem
estuda a esquerda armada é guiado
esquerda.
por vontades políticas individuais e organizacionais, ou quem estuda a
Em suma, este trabalho nos alguns
esquerda armada está comprometido
processos que envolveram e foram
em esmiuçar um campo social com
envolvidos pelas ações políticas de
objetividade? De qualquer forma, nos
agentes da luta armada, guiados pelas
deparamos com um universo a ser
teses
explorado pelas Ciências Sociais,
possibilitou
compreender
marxianas
revolucionárias.
e
marxistas
Notamos
mais especificamente pela Sociologia
a
Política e pela Ciência Política.
necessidade de estudar os efeitos da experiência
da
luta
armada
na
composição – doxas e habitus – da
Referências ANGELO, V.A. Ditadura Militar, esquerda armada e memória social no Brasil. XI BRASA Congress. University of Illinois at Urbana-Champaign. 06-08 September 2012. BACK, L. Moral Revolucionário e construção do “novo homem” na esquerda armada revolucionária. Uma comparação entre a ALN-Brasil e o PRT-ERPArgentina. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2001. 43
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
FICO, C. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, nº 47, p.29-60, 2004. GIL, A.C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. 5ª impressão. São Paulo: Atlas, 2012. GORENDER, J. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. Série Temas, vol. 3. São Paulo: Ática, 1987. MORAES, J.Q. A mobilização democrática e o desencadeamento da luta armada no Brasil em 1968: notas historiográficas e observações críticas. Revista Tempo Social; USP, vol. 1, São Paulo: 1989, pp. 135–158. NASCIMENTO, D.M. Revisão Crítica da tese do “suicídio revolucionário”. Revista de História Regional 9 (1): 45-78, Verão 2004. RAMOS, A.F. A luta contra a ditadura militar e o papel dos intelectuais de esquerda. Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 3. Ano III nº 1. 2006. REIS FILHO, D.A. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990. RIDENTI, M.S. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. Revisada e ampliada – São Paulo: Unesp, 2010. ROLLEMBERG, D. Debate no exílio: em busca da renovação. In: História do Marxismo no Brasil. Vol. 6. Organizadores: Marcelo Ridenti e Daniel A.R. Filho – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
44
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
A Noção de Poder sob as Perspectivas de Hannah Arendt, Michel Foucault e Pierre Bourdieu e as Possibilidades para a Pesquisa Histórica The Notion of Power under the Perspectives of Hannah Arendt, Michel Foucault and Pierre Bourdieu and the Possibilities for Historical Research Bolívar Kieling Júnior 1 Resumo Hannah Arendt, Michel Foucault e Pierre Bourdieu foram autores seminais nas discussões das humanidades do século XX, destacando em seus escritos diferentes e profícuas abordagens sobre a noção de poder. Este artigo visa apontar algumas possibilidades de como as abordagens propostas pelos autores sobre o conceito podem instrumentalizar o historiador em temáticas variadas.
Palavras chave: Poder, Poder simbólico, Pesquisa histórica, Teoria Social, Historiografia.
Abstract Hannah Arendt, Michel Foucault and Pierre Bourdieu were seminal authors in the discussions of the humanities during the twentieth century, highlighting in their writings various and fruitful approaches to the notion of power. This article aims to point out some possibilities on how the approaches proposed by the authors to this concept can equip historians in the study of various themes.
Keywords: Power, Symbolic power, Historical research, Social Theory, Historiographys. 1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
45
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
trajetória incipiente aos eventos mais
Pensadores prestigiados, um conceito genérico e as possibilidades teórico-analíticas para a historiografia Este
artigo
possibilidades
visa de
marcantes dos períodos próximos à Segunda Guerra Mundial. A autora atingiu seu ápice profissional nos
apontar
apropriação
Estados
na
teórico-analíticas sobre a noção de elaboradas
fixou
Contemporânea
ao
nazismo
três
alemão, ao fascismo italiano e ao
ciências
stalinismo na União Soviética, seus
humanas do século XX: Hannah
principais trabalhos datam de fins da
Arendt, Michel Foucault e Pierre
década de 1950 até a de 1970, fatos
Bourdieu.
que, aliados à sua experiência de
importantes
por
onde
residência a partir de 1941.
pesquisa histórica das perspectivas
poder
Unidos,
autores
Arendt,
das
alemã
de
vítima do nazismo alemão, colocam-
origem
na
judaica, realizou seus estudos na Filosofia,
mas
em
vivência
momento
cientista
declarava-se
política,
por
relacionados à política. Seus focos
totalitarismo
e
a a
crítica
ao
defesa
da
de
propícios
de seus objetivos principais, o que
e dirigir suas discussões a assuntos
eram
especialmente
e
explicação da natureza do poder um
como
temática central a natureza do poder
principais
temporal
de poder. De fato, a autora tem na
como
ter
espaço
para a análise dos regimes totalitários
posterior, já estabelecida no meio intelectual,
num
justifica
sua
condição
de
auto-atribuição “teórica
à
política”.
Orientanda de Martin Heidegger e
democracia direta.
influenciada
por
percebemos
nas
Carl suas
Jaspers, obras
características típicas dos trabalhos carreira
de filósofos alemães: atenção ao
acadêmica coincidiu com a ascensão
curso de mudanças do significado
do
dos conceitos centrais abordados em
O
início
nazismo,
de
sua
entremeando
sua 46
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
seu trabalho em um amplo espaço
caracterizadas
histórico e retorno da analítica às
exterior e ascensão relativamente
discussões
rápida
filosóficas
greco-romano,
do
gerando
mundo extensas
por
nos
altos
intelectualidade
revisões de caráter semântico. De
acadêmica
acordo com Lafer (1979) as premissas
década de 1970.
destes dois filósofos foram fulcrais
A
para a formação das proposições
sobre
destacando-se
o
relações de
de
poder
estruturas
e
sociais
através de sistemas educacionais,
elemento basilar da política é o ponto
sobre o meio acadêmico, a mídia
de partida da noção de poder a partir
televisiva, entre outras.
da qual a autora efetua sua analítica.
Na abordagem destas variadas
e
temáticas
Foucault, pode se afirmar, sob um
emergem
as
principais
contribuições intelectuais do autor,
olhar genérico, que ambos tiveram
onde se destacam as teorizações
similares, 47
as
reprodução
vivência humana em sociedade como
acadêmicas
sociólogo
século XXI, destacam-se abordagens
posteriormente, esta perspectiva da
trajetórias
um
estendeu até os primeiros anos do
(LAFER,
Bourdieu
Bourdieu
decorrer de sua carreira, que se
mas
1979: 21-23). Como será demonstrado
a
de
temáticas trabalhadas pelo autor no
considerar que, politicamente, não
Quanto
da
de 1950 e início de 1960. Dentre as
chegou a uma filosofia política, “por
plural”
partir
cabila, na Argélia, em fins da década
considerava um dos poucos que
no
como
burocracia
trabalho de pesquisa com o povo
pensada” e de Jaspers, a quem
coexistimos
trajetória
antropológico,
um objeto de erudição e uma coisa
singular,
a
da
carreira realizado pesquisas de cunho
“Hannah aprendeu a distinguir entre
no
da
no
clássico, tendo no início de sua
Segundo o autor, com Heidegger,
existimos
e
círculos
francesa
demonstra-o
analíticas empreendidas pela autora.
vivências
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
sobre o caráter simbólico do poder,
uma badalação quase positivista de
como um exercício “mágico” de
suas teorizações. O autor refutou tal
domínio e controle de uns sobre
quadro,
outros, e dos diferentes tipos de
intransigência
capital (recursos) através dos quais os
empírico dos modelos explicativos,
indivíduos
como será apontado posteriormente.
e
grupos
sociais
estabelecem sua posição e agem dentro
de
(conjunto
determinado de
A
campo
relações
Embora
ressalto
empírico
sociológica,
na
da
medida
diversas.
encontrados
na
obra
por
sobre a aplicabilidade do conceito de
que
habitus elaborado por Bourdieu e outras
teóricos de
Pollak,
Wacquant pelo seu foco em estudos
realidade da qual era abstraída. postulados
Michael
estudos ligados à história oral; Löic
considerava indissociáveis a teoria e a
Os
das
exemplo, é bastante referenciado nos
a
analítica em
influência
que ganharam destaque em áreas
insistência do autor em defender o caráter
caráter
também de alunos e orientandos seus
estes
tornardo-se amplamente aceitos no acadêmico,
ampla
o
apenas através de seus escritos, mas
constructos teórico-analíticos tenham
meio
salutar
com
propostas de Bourdieu se fez não
sociais
balizadas por regras estabelecidas e respeitadas).
defendendo
temáticas
variadas,
antropologia
do
marginalidade
urbana;
como
corpo
e
Cristophe
Pierre
Charle, historiador com temáticas
Bourdieu emergem com força no
diversificadas, aborda com maior
meio acadêmico a partir da década de
destaque setores sociais vinculados à
1970, influenciando pesquisas no
intelectualidade e à noção de campo
campo da Sociologia, Antropologia e
do autor 1.
História. Cabe destacar como o autor
abstraiu estes modelos teóricos de
Pollak, destacam-‐se as relacionadas aos fenômenos sociais mnemônicos e identitários correlatos, como nas obras Memória e
1 Em relação às principais pesquisas de Michael
realidades diversificadas, o que gerou 48
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Antes de analisar o emprego
Michel Foucault apresentava-
das premissas de Bourdieu relativas à
se
noção de poder para a pesquisa
originalidade de suas abordagens
histórica, se faz importante destacar
dentro dos diferentes assuntos que
como a construção de suas propostas
analisou lhe conferiu respaldo em
teóricas foi pautada pela busca de
áreas diversas, como as ciências
uma interpretação sincrética entre o
jurídicas, médicas e humanas em
subjetivo e as estruturas, procurando
geral.
estabelecer de que forma os agentes
através
e
abordaram
as
estruturas
correlacionam-se.
como
filósofo,
Cabe da
porém
destacar qual o
a
seus
poder
a
maneira trabalhos
(coercitivo,
Partindo desta perspectiva, percebe-
normativo etc.) como algo exercido
se com maior clareza a função dos
de forma difusa na sociedade, em
conceitos de capital, campo e o de
instâncias e instituições variadas,
habitus 2
especialmente, postulados
deslocando o foco hegemônico deste
teóricos
basilares
exercício do poder nas instituições
importantes entendermos
do
autor
também as
definições
e
estatais.
para das
Este aspecto emerge como
formas de exercício do poder.
uma
central
do
pensamento do autor, na medida em
identidade (1992) e Memória, esquecimento, silêncio: a produção social de identidades frente a situações limite (1989); de Wacquant, Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe (2000) e Condenados da Cidade: estudos sobre marginalidade avançada (2008); de Christophe Charle, História das Universidades (1996). 2 Os capitais seriam recursos diversificados próprios aos agentes, que desempenham papéis de valoração destes dentro de determinados espaços. O habitus, sistemas duráveis e transponíveis de esquemas de percepção, apreciação e ação resultante da instituição do social no corpo, uma história social incorporada nos indivíduos. O campo é um espaço de relações entre agentes, com diferentes postos para serem ocupados de acordo com tipos de capital que apresentam.
que o próprio Foucault define sua analítica
do
“genealogia”.
poder
como
Segundo
uma
Roberto
Machado, estas análises genealógicas do poder, “produzem um importante deslocamento com relação à ciência e à filosofia política, que privilegiam em suas investigações sobre o poder a questão do Estado. Estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas
49
característica
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Desta
precisas e minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária e a constituição do dispositivo de sexualidade, Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo próprio material de pesquisa, viu delinear-se claramente uma não sinonímia entre Estado e poder” (MACHADO, 1988: 188).
Não
menos
importante,
suas teorizações e/ou análises. De fato, as discussões que propuseram sobre o tema foram basilares em suas
a
obras, tornando impossível pensar suas contribuições intelectuais sem considerar
a relação entre “o poder e a verdade”
a
empreenderam
- tornou-o basilar para autores cujas às
evidencia
de poder, um elemento chave para
a forma do saber institucionalizado –
dirigiam-se
se
como os três autores têm no conceito
análise pormenorizada do poder sob
críticas
forma,
discussão a
que
respeito
das
variadas formas de exercício do
mega-
poder. E justamente por partirem de
narrativas europeias e àquilo que
perspectivas diferentes e visarem
alguns denominavam como “racismo
objetos
epistemológico” ocidental. Em fins
seus
do século XX, autores apoiados
diversificados
pressupostos
de
análise,
abrangem
um
grande leque das relações de poder
nestas premissas passaram a ser
observáveis em variados contextos,
corriqueiramente encampados sob o
aplicáveis em relações sociais a níveis
rótulo de pós-coloniais3.
micro, meso ou macro.
3 Edward Said foi um dos autores seminais
Ainda em vida, em meio às
dentro das abordagens pós-‐coloniais. Homi Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Gayatri Spivak foram autores indianos destacados nesta perspectiva. Paul Gilroy e Stuart Hall são também figuras proeminentes deste movimento oriundas do Caribe. Na América Latina, próximos a esta perspectiva, podemos citar os “descoloniais” Anibal Quijano e Walter Mignolo. A importância de Foucault para estes autores reside em sua crítica ao saber institucionalizado e a seus intrínsecos efeitos de poder, o que gera análises direcionadas, que subalternizam determinados objetos e formas de saber não europeias.
suas
carreiras
acadêmicas,
os
postulados dos três autores atingiram grande
importância
humanas,
nas
tornando-se
ciências
pauta
de
discussões epistemológicas em áreas diferentes às de suas origens. Entre estas áreas, a História emerge com destaque. Tendo em vista o objetivo 50
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
deste
artigo
–
a
análise
da
determinados modelo teóricos nas
contribuição das proposições destes
ciências humanas no decorrer do
pensadores em relação à noção de
tempo.
poder em estudos históricos – se faz
Em fins do século XIX, a
necessário discorrer sobre alguns
busca
temas tangentes, a fim de situar a
em
científicos
discussão dentro da historiografia
estabelecer
padrões
razoavelmente
rígidos
visava oferecer métodos e objetivos
apropriadamente e realizar esta tarefa
específicos a cada disciplina, a fim de
de forma resoluta e satisfatória.
provar
sua
cientificidade.
Neste
ínterim, a História foi marcada pela A historiografia e as ferramentas teóricas de áreas afins
primazia às fontes escritas e pela
Na medida em que este artigo visa
por parte do historiador. Ainda nesse
estabelecer as possíveis contribuições
período
de autores de áreas variadas das
atualidade, o materialismo histórico,
ciências
humanas
pesquisa
ancorado nos pressupostos marxistas,
histórica,
é
abordar,
emerge
à
necessário
limitada margem de interpretação
e
estendendo-se
com
até
bastante
a
força,
mesmo que sucintamente, como a
inaugurando grandes contribuições
História
teóricas da sociologia à história.
enquanto
ciência
institucionalizada tem se relacionado
A partir da década de 1940,
com as áreas afins no plano teórico. Analisando
tal
algumas gerações de historiadores
relação
ligados à revista acadêmica francesa
temporalmente, é perceptível sua permeabilidade
a
teórico-analíticas
Annales, tendo como figura seminal
perspectivas de
Marc Bloch, ofereceu pressupostos
outras
analíticos
disciplinas, sendo que a força destas influências
pode
comparada
com
ser o
historiográfico,
facilmente
destaque
e
do
metiê
tornaram-se
referenciais basilares da área. De
de 51
próprios
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
acordo
com
Peter
Burke,
o
possibilitam ao historiador escapar
renovação
de modelos teóricos rígidos, que não
movimento
de
historiográfica
promovida
pelos
cumprem
com
suas
intelectuais ligados à revista pode ser
explicativas
compreendido como algo próximo a
determinados objetos de pesquisa
uma “escola”. Burke identifica três
(problema típico de interpretações
aspectos centrais nesta renovação:
“marxistas vulgares”5).
“a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma históriaproblema(...) a história de todas as atividades humanas e não apenas a história política (...) a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística, a antropologia e tantas outras.” (BURKE, 1990: 12).
Junto
à
proposição
em
funções
relação
a
Este aprisionamento teórico demonstra suas limitações na medida em que determinadas teorias são utilizadas para abordar fenômenos e realidades sociais distintas das quais
de
foram elaboradas, relegando a um
historiadores vinculados à revista
segundo
Annales,
do
importantes, superdimensionando a
século XX em diante, passou a
relevância de outras e buscando
ocorrer uma gradual intensificação,
interpretações pré-definidas a fim de
de forma cada vez mais explicita4, da
forçar a adaptação do objeto a uma
apropriação de premissas de autores
teoria
da
recorrente com o uso de teorizações
da
segunda
filosofia,
especialmente
da
metade
antropologia
e
sociologia
na
defesa
das
fornecido
que
4 Por explícita, entenda-‐se declarada, positivada, como um fenômeno valorizado no meio acadêmico, ao contrário de influências indiretas, não declaradas, sub-‐reptícias.
52
se
tornou
proeminente neomarxista britânico, ao designar interpretações materialista-‐históricas pouco aprofundadas, que operam de forma mecanicista concepções como luta de classes, primazia das relações econômicas e modelo base-‐superestrutura no estudo de seus objetos. Embora considere-‐as importantes por haverem abrigado “grandes quantidades de explosivo intelectual”, cometiam o erro fatal de partirem de respostas pré-‐determinadas para uma pesquisa que as confirmassem. (HOBSBAWN, 1998: 162-‐ 163)
propostas
subsídios
Isto
5 Termo cunhado por Eric Hobsbawn,
interdisciplinares. Estas teorizações têm
exótica.
características
produção historiográfica, pautadas pela
plano
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
próprias
às
mega-narrativas
relevantes às ciências humanas em
teleológicas.
geral e à historiografia, não menos. Foucault, por exemplo, faz a defesa
As propostas interdisciplinares
de
têm ampliado o espectro de teorias
fenômenos sociais. Na medida em que aborda realidades sociais sob um
agentes
e
consideradas
desqualificadas
discurso
espectro temporal, a historiografia
deste
ensaio, Bourdieu e Foucault. Uma série de trabalhos de cunho histórico desta
Pierre Bourdieu no que tange às
aos
ao exercício do poder simbólico.
correção
Através
penal,
ao
perceber
a
objetos
de
as
estudo,
tecnologias
pelo das
discurso genealogias,
científico. buscava
6 Em relação a conhecimento, o autor refere-‐se
ao saber institucionalizado, ao discurso científico dotado de poder normativo. Memórias locais faz alusão a saberes desqualificados de cientificidade, mascarados dentro de conjuntos sistemáticos do discurso cientifico dotado de poder, próprios de agentes sociais desconsiderados pelo discurso cientifico.
Estes dois autores apresentam importantes, 53
de
educacionais, entre outros.
empíricas
seus
balizado
internação hospitalar e psiquiátrica,
propostas
termo
políticas envoltas ao saber médico
cujos objetos de pesquisa sejam de
proposta
especificamente
tornou-se
referência obrigatória em trabalhos
instituições
o
resistência no meio historiográfico
noções de campo, habitus e capital e
Foucault,
com
O autor explica a importância
passaram a utilizar as teorizações de
a
dominante.
“o acoplamento do conhecimento com 6 as memórias locais , que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais.” (FOUCAULT, 2011:171)
Neste âmbito, destaco a relevância de
Quanto
pelo
genealogia, que seria
explicativa dos objetos abordados.
centrais
científico
detalhado
buscando potencializar a capacidade
autores
circunstâncias
Foucault referia-se a este estudo mais
tem sido pautada por estas propostas,
dos
históricos
pormenorizados, atentos à atuação de
disponíveis para a explicação dos
dois
estudos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
escapar da “tirania dos discursos
propostas
englobantes com suas hierarquias e
determinadas.
com os privilégios da vanguarda
Bourdieu
teórica” (FOUCAULT, 2011: 171), que
efetuam
a
simplificação
conjuntos
Foucault
de
relação
sentido
elementos outrora desconsiderados,
vivência social. Estes eram os saberes dominados, verdadeiros “blocos de saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento de erudição.” (FOUCAULT, 2011: 170).
do
se
pensados
em
e à atenção às lacunas do discurso
7 Nesta obra, organizada sob a forma de uma
entrevista, Bourdieu é questionado sobre a noção de campo. O entrevistador questiona como em realidades diferentes o autor abstraiu este conceito de forma altamente técnica. Em sua resposta, Bourdieu insiste em apontar o caráter empírico de sua teorização, defendendo sua intransigência em não elaborar um sistema de “teorias de médio alcance”, noção própria a teóricos da sociologia norte-‐americana.
considerado “científico”, evitando a determinadas
temáticas, esquemas explicativos préde 54
apenas
apropriados às realidades abordadas
de poder próprios a um discurso
carregados
pesquisa.
à construção de modelos teóricos
intelectual em estar atento aos efeitos
e
de
A defesa de ambos em relação
Desta forma, Foucault chama
configurados
objeto
“os conceitos não tem outras definições além das de tipo sistêmico, e estão destinadas a ser postas a trabalho de maneira sistemática. As mencionadas noções de habitus, campo e capital podem ser definidas, entretanto, apenas dentro do sistema teórico que as constituem, não de forma isolada.” (BOURDIEU & 7 WACQUANT, 2005: 148)
explicação de importantes espaços de
de
ao
relação à realidade abordada:
mas não menos importantes para a
preponderância
essa
explicativos de uma teoria fazem
minúcia permite a análise destes
importância
a
o autor defende como os conceitos
pesquisa histórica elaborada com
a
relação
de
Instado a explicar a noção de campo,
como irrelevantes. Para o autor, a
para
aproxima-se
intrínseco das teorias e conceitos em
solapando
determinados conteúdos históricos
atenção
em
pré-
proposição ao defender o caráter
explicativos
sistematizados,
interpretativas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
científico vigente são apontamentos
o esforço para a sobrevivência8, são
interessantíssimos
considerados de menor importância.
historiografia. propostas
A
na
para
a
aplicação
destas
pesquisa
Um
histórica
terceiro
adquire
elemento,
importância
a
fulcral,
ação, real
qualifica-na, forçando uma atenção
definidor do que seria a condição
maior ao objeto de pesquisa e
humana. Consiste no ato de vivência
indubitavelmente, elaboração
de
permitindo
a
das pessoas entre si enquanto seres
interpretações
e
plurais,
diferenciados.
Esta
ferramentas teórico-analíticas mais
pluralidade e a ação engendrada para
acuradas, conectadas ao objeto.
estabelecer a convivência seria uma condição
os indivíduos, como determinantes de sua condição de seres humanos. Como aponta a autora,
qual Hannah Arendt pautou sua
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. (ARENDT, 1983: 15)
analítica pode ser encontrada de em
um
de
seus
trabalhos mais notáveis, A condição humana, de 1958. Neste trabalho, a autora visa dirimir os elementos condicionantes
da
Considero este postulado um
existência
elemento
humana, elencando três principais, encampados
sobre
a
noção
política,
relações de poder estabelecidas entre
A noção de poder através da
nítida
da
atribuindo ampla importância para as
Hannah Arendt e a analítica da natureza do poder: possibilidades historiográficas
forma
geradora
revelador
sobre
teorização da autora. É uma premissa
vita
basilar, construída em uma discussão
activa. Dois destes elementos, ligados
às necessidades orgânicas humanas e
8 Em A condição humana (1983: 31), Arendt
argumenta que se realizássemos apenas estas atividades laborais voltadas à subsistência, desnecessárias da presença de outros,
55
a
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
que visa atingir estruturas profundas
oferece
das relações humanas, com o claro
interpretativas de variados eventos
objetivo de esmiuçar no plano mais
históricos. No seu trabalho Sobre a
básico, a natureza do poder. Tal
Revolução, de 1963, a autora propõe
percepção do alto caráter político da
perspectivas interessantes sobre três
experiência
ser
grandes processos revolucionários: a
transposta para a pesquisa histórica,
Revolução Americana, a Revolução
oferecendo
Francesa
humana
a
pode
possibilidade
de
novas
e
a
possibilidades
Revolução
Russa.
perspectivas analíticas originais. As
Arendt trabalha de forma particular a
abordagens da historiografia sobre
importância
das
motivações
questões políticas, geralmente, são
econômicas
no
processo
pautadas pela análise de um conjunto
revolucionário, apontando que as
de
revoluções são conseqüência e não
instituições,
estabelecidas,
corpos
palco
de
e
regras relações
causa
da
queda
da
autoridade
altamente condicionadas, focando a
política. Esta perde o poder na
estrutura do Estado. Pensar a política
medida
sob esta perspectiva tão basilar na
legitimidade,
historiografia nos remete a uma
respeitada por aqueles que acredita
análise
representar.
espectro
diferenciada das
de
relações
todo
o
humanas,
em
que não
cessa sendo
Segundo
sua mais
ela,
nos
lugares em que a revolução ocorreu
atingindo os espaços tidos como
entremeada
próprios da produção econômica e
econômicos de uma ampla camada
das manifestações culturais.
da
interesses
empobrecida,
o
processo revolucionário fracassou na
Hannah Arendt nos fornece
sua proposta democrática, casos da
um exemplo de como sua proposta
Revolução Francesa e Russa.
teórica sobre as relações de poder
Para a autora, a explicação
seríamos meros animal laborans, e não humanos.
para o fato de que o único processo 56
população
aos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
revolucionário exitoso em instalar
evidente este enfoque econômico
instituições políticas que oferecessem
pela
uma
“libertar
experiência
democrática
busca
de
o
Robespierre
povo
da
em
pobreza
e
duradoura ter sido a Revolução
promover a sua felicidade” e no caso
Americana se deve ao fato dos
russo,
colonos
socialismo
serem
prósperos,
economicamente
formando
um
amplo
em
Lênin russo
simplificação
considerar por
meio
“eletricidade
o da
mais
estrato social médio. Sendo assim,
sovietes”. Numa crítica recorrente a
justifica que apenas uma sociedade
Marx, a autora aponta como o autor
de
relações
tratou a questão social em termos
pela
políticos em sua juventude, porém, já
iguais
pode
políticas
atingir
caracterizadas
democracia direta. Por
na sua maturidade intelectual, passou
partilharem
característica
central
de
uma
em
suas
a considerar a abundância e não a liberdade, o objetivo da revolução. (ARENDT, 1988:50-51)
sociedades - a miséria e a penúria, mescladas na luta contra a tirania e opressão,
Arendt
vê
Embora considere a Revolução
processos
Americana como uma experiência
similares decorrentes nas revoluções
que
Francesa e Russa. O Terror francês e
políticas genuinamente democráticas,
os expurgos soviéticos, fenômenos
assemelhadas
característicos
ateniense 9 , a autora não considera
balizaram
dois
eventos,
à
relações
democracia
que este quadro tenha se mantido até
novos governos, ocorreram sob a
o momento presente. Postula que a
justificativa e
estabelecimento
permitido
dos
falácias
o
dos
tenha
de foram
desmascarar
as
noção de liberdade pública - a
marcantes
no
9 A democracia direta ateniense é para a autora
repentino processo de cerceamento
algo próximo a um modelo ideal de participação política, onde todos os cidadãos, na condição de iguais, têm a oportunidade de participar dos negócios públicos. Façam-‐se as
de propostas democráticas em ambas realidades. No caso francês, fica 57
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
participação nos negócios públicos
condição humana. Sua interpretação
ancorada nas experiências cotidianas
destes
de discussão e debate sobre a coisa
originalidade, gerando perspectivas e
pública - deu espaço para a garantia
discussões que a historiografia não
de
havia ainda efetuado.
liberdade
civil,
ou
seja,
a
estabilização de direitos e leis que dão
ampla
margem
para
Desta
a
chegada
dos
imigrantes
pela
elemento troca
ascensão
de
considera
pauta as
política.
relações
estadunidenses como
para
apropriadas
de
na
na
historiografia:
preocupação com as definições dos
esta
conceitos
Não
claro
políticas
explicativos
afastamento
interpretativas
contemporâneas
exemplo
destaco
como premissas tangíveis para serem
econômica,
fundamental
forma,
pela
elementos principais, que sinalizo
dos
séculos XIX e XX aos EUA, com sua busca
destaca-se
teorização de Hannah Arendt três
prosperidade econômica. A autora vê na
eventos
abordados,
de
propostas
teleológicas
e
valorização da analítica das relações
prática
de
democrática.
poder,
centrais
Acredito que o exemplo posto
para
consideradas a
como
explicação
dos
fenômenos sociais.
acima, envolvendo o livro Sobre a
revolução, elucida como a abordagem
O poder simbólico de Pierre Bourdieu e sua aplicabilidade na pesquisa histórica
da autora sobre a natureza do poder pode
ser
aplicado
à
pesquisa
Pensar a noção de poder de acordo
histórica. Vejo na sua interpretação a
com as premissas de Bourdieu é levar
primazia das relações políticas para a
em
análise dos fenômenos sociais, algo
seu
caráter
simbólico. Na analítica do poder, o
postulado em sua obra anterior, A
autor propõe-se a analisá-lo não sob
devidas ressalvas ao período histórico e à condição de sociedade escravista.
suas formas mais explícitas, físicas, 58
consideração
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
mas nas situações em que ele é
constitui-se enquanto um exercício
amplamente reconhecido e ignorado,
simbólico de poder.
portanto “mágico”. Para Bourdieu,
Bourdieu considera que este
“é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (BOURDIEU, 2012: 10).
exercício do poder simbólico é uma forma “irreconhecível, transfigurada e legitimada de outras formas de poder” (BOURDIEU, 2012: 15), e para abordá-lo de forma adequada, para
Esta forma de poder abordada
são
percepção de relações de poder em
espaços
de
vivência
todos
um
espaço
capital simbólico. Desta forma, o
então
exercício de poder por parte de uma classe dominante assume o caráter
linguagem. O ato de nomear, de
mágico,
inculcar determinada perspectiva das
e
ignorado,
produzindo efeitos reais sem exigir
social e é considerado por Bourdieu,
gasto de energia.
um intenso exercício de poder. Na
“(E)nfrentamentos de visões e de pressões da luta propriamente política encerram uma pretensão à autoridade simbólica enquanto poder socialmente reconhecido de impor uma visão do mundo social, ou seja, das divisões do mundo social.” (BOURDIEU, 1982: 82)
medida em que a linguagem é compartilhada socialmente e esta desconsiderada
enquanto manifestação de poder,
59
reconhecido
transformado em poder simbólico,
coisas, possui um caráter altamente
é
enquanto
tipos de capital dos agentes em
desconsiderado para análise, o da
nomeação
apenas
guiam a transmutação dos diferentes
humana.
até
pautadas
deve-se analisar os processos que
os
Podemos exemplificar esta amplitude citando
perspectivas
relações de força ou de comunicação,
uma ampla gama de relações sociais, praticamente
das
limitadoras onde as relações sociais
e teorizada pelo autor permite a
atingindo
além
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Neste sentido, percebemos a
grande clamor em diferentes estratos
importância em analisar a teorização
sociais
do autor que resulta na constituição
observáveis ao pesquisador na lida
dos conceitos supracitados de capital,
com diversos tipos de fontes. O
habitus e campo. São especialmente
exercício do poder na sua dimensão
configurados para operarem análises
simbólica, por sua vez, exige grande
relacionais das dinâmicas sociais, a
quantidade de fontes, que forneçam
partir das quais podemos investigar
indícios sobre a ação de dominadores
as manifestações do exercício do
e dominados. Tais informações só
poder simbólico.
podem ser encontradas na análise
uma quantidade maciça de dados
altamente operacional para todas as humanas,
História.
Entretanto,
inclusive exige
para que estes sistemas consigam ser
a
razoavelmente analisados, a fim de
um
possibilitar
aprofundamento maior na pesquisa
que
podem
interpretações
e
abstrações teóricas qualificadas.
das fontes e atenção mais apurada a detalhes
facilmente
poder e os sujeitados, o que exige
teórico-analítica
ciências
tornam
as relações entre os que exercem o
sobre o poder simbólico torna-se ferramenta
se
dos sistemas simbólicos que mediam
Desta forma, tal perspectiva
uma
e
passar
Cabe
destacar
que
tais
despercebidos10 . As formas clássicas
conceitos
de exercício de poder abordadas pela
operacionalizações são talhados para
historiografia
pela
uma analítica sincrônica, própria ao
reação dos dominados, estratégias de
metiê da Sociologia, onde um grande
resistência, fuga e retaliação, geram
conjunto de dados está disponível
para análise do pesquisador. Tal
caracterizam-se
10 De acordo com Bourdieu, o poder simbólico
situação
tem um caráter “quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
é
suas
respectivas
impossível
na
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (BOURDIEU, 2012: 14).
60
e
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
interpretação de inúmeros processos
coletiva ou individual, dentro de um
históricos, devido à indisponibilidade
modelo teórico adequado.
de fontes. Outros, onde o conjunto de
fontes
é
limitado,
exigem
As possibilidades de apropriação pela historiografia das perspectivas de Michel Foucault sobre o exercício do poder.
originalidade na sua leitura por parte do historiador e a procura de indícios sob formas peculiares.
De
De fato, utilizar as teorizações
além
de
um
–
prestigiados para esta análise.
amplo
Um dado relevante sobre o
porém,
estudo do poder levado a cabo pelo
interdependentes. Mas sem dúvida,
autor diz respeito à sua pretensão de
permite ao historiador interpretações
propor uma analítica do poder em
de
bastante
detrimento de uma teoria sobre o
diversificado das relações sociais que
poder. O autor evita esta dimensão
permearam os grupos e agentes
teórica
focados em seus estudos, atingindo
argumentando
aspectos
descrever o poder como algo que
um
abrangentes,
propôs
convívios sociais até então pouco
conhecimento de seus pressupostos teóricos
Foucault
e
das relações de força em espaços e
fontes
razoável e investigação intensa sobre estas,
Arendt
de poder, que permitiram o estudo
como uma tarefa complexa. Exige de
a
perspectivas originais sobre a noção
em pesquisas históricas apresenta-se
disponibilidade
similar
Bourdieu,
de Bourdieu sobre o poder simbólico
uma
forma
espectro
pouco
abordados
na
de
seus
estudos
que
exigiriam
historiografia, e possibilitando ampla
emerge
capacidade explicativa das dinâmicas
específicos, sendo necessário deduzi-
sociais, enquadrando as múltiplas
los e reconstruir sua emergência.
possibilidades
Para o autor, um constructo de
da
ação
humana,
num
tempo
e
espaço
caráter teórico do poder direciona 61
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
para
uma
proposta
interpretativa
objeto
descontextualizada, a-histórica, algo que
considera
inadequado.
Por
Os
sucintamente
de análise que dê espaço para uma
(DREYFUS
&
de
objetos
poder
RABINOW,
temas
os
quais
sobre
poder foram diversos. Examinarei
postula que basta formular uma rede
relações
uma
Foucault analisou esta incidência do
um conjunto de relações abertas,
das
para
abstração teórica.
considerar as relações de poder como
analítica
inadequado
três
que
conjuntos
considero
de
como
especialmente propícios para analisar
1995:
as possibilidades de apropriação para
202).
a pesquisa histórica e apontarei como Estes
postulados
estão
em
relação
ao
terceiro,
esta
alinhados à perspectiva do autor de
apropriação já tem ocorrido: um
analisar
conjunto analítico formado pelas
o
poder
enquanto
a
“operação de tecnologias políticas
formações
através do corpo social” (DREYFUS
concentrado na relação entre o saber
& RABINOW, 1995: 203). O autor
institucionalizado, a verdade e o poder;
visa descolar o estudo do exercício
e um terceiro sobre as tecnologias
do poder enquanto uma potência dos
políticas exercidas na emergência de
sujeitos
novas de estruturas de dominação.
ou
específicas, deste
de
focando
exercício,
instituições nas
cuja
práticas
lógica
O
se
estudo
das
outro
formações
discursivas proposto por Foucault
encontra nas estratégias formuladas a
fornece
fim de contemplar um conjunto de
para
objetivos por parte dos atores sociais.
perspectivas análise
de
interessantes fenômenos
importantes nas dinâmicas sociais,
Entretanto, não vê estabilidade, ou
tendo como foco o estabelecimento
uma espécie de equilíbrio sistêmico
de discursos sobre determinados
inerente a este conjunto de práticas,
fatos e realidades sociais. Para
considerando o poder como este 62
discursivas;
o
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
autor, não existe uma verdade a ser
dados às coisas e ao mundo é um
revelada sobre os fatos, apenas um
objeto
sentido
implícito
analisado
construído
11
socialmente
. A atribuição deste
de
estudo na
qualifica
que,
pesquisa
se
for
histórica,
enormemente
a
sentido implica uma disputa pela sua
interpretação do historiador sobre
legitimação, visando sua aceitação
um determinado período. Permite
entre os diferentes atores e grupos
desvelar as percepções dos agentes
sociais. Esta disputa procura apoio
concernentes a seu período, evitando
em suportes institucionais, sendo os
desta
espaços
anacronismos
científicos,
os
mais
proeminentes e respeitados porta-
verdadeiro”.
das
o
ao
saber
análise, percebemos a apropriação do autor
como o mais qualificado.
de
Nietzsche,
várias no
premissas
questionamento
de a
do
postulados centrais do pensamento
discurso dominante, das disputas
próprio da modernidade: suas noções
travadas
de
para
determinados
poder
discursivas,
institucionalizado e à verdade. Nesta
disputas sobre os quais ele se posta
de
formações
entremeado
em que isto mascara o palco de
efeitos
interpretação
pesquisado por Foucault: o poder
atravessa”
(FOUCAULT, 1971: 20), na medida
Os
na
de
encontramos outro importante objeto
“não pode reconhecer a vontade de que
ocorrência
Não muito distante da análise
Segundo
Foucault, o discurso “verdadeiro”
verdade
a
histórica.
vozes do que é entendido como o “discurso
forma,
legitimação sentidos
de
implícitos
totalidade,
cientificidade,
seu
caráter teleológico e a crença de que
o mundo é explicável. Conforme
menção a praticamente todo o espectro de inteligibilidade que as sociedades, seus grupos e atores aplicam ao mundo, fazendo com que existam sob várias dimensões, com diversificados alcances sociais.
abordado anteriormente, este viés da
11 Cabe ressaltar que os discursos fazem
análise
Foucault
tornou-se
referencial para as abordagens pós63
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
coloniais, pautadas pela crítica à
século
epistemologia
recebido
europeia,
atingindo
especialmente as ciências humanas.
abordagens
têm
atenção
na
“Se o estado é hoje o que é , é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade. (FOUCAULT, 2011:292)
nos
estudos históricos. Porém, não será abordado de forma aprofundada esta influência do autor. O debate sobre o assunto é vasto, e exigiria amplas considerações para ser tratado de minimamente
tem
da governamentalidade.
décadas, abrindo margem para novas
forma
maior
que
para Foucault dentro do fenômeno
também
interpretativas
aquele
novas tecnologias políticas insere-se
atingido a historiografia nas últimas
perspectivas
–
historiografia. A emergência destas
As discussões suscitadas por estas
XIX
A influência das propostas do
qualificada.
autor nos estudos históricos que
Apontei-o brevemente na medida em que sofreu influência da analítica do autor sobre o poder e é relevante
envolvem
instituições
educativo,
prisional,
de
caráter
hospitalar
e
psiquiátrico, ou do exercício de
para os estudos históricos.12
determinados Considero o terceiro conjunto
amparados
em
profissionais formas
de
saber os
de objetos que designei para análise
institucionalizados,
como
– as tecnologias de poder aplicadas
médicos,
significativas,
em instituições caracterizadas pela
ocorrendo há algumas décadas. As
individualização
do
relações de poder concernentes a
poder (ou biopolítica), emergentes no
estes espaços foram pauta de longa e
detalhada pesquisa do autor, nas
exigiria a análise dos estudos corriqueiramente encampados sob o rótulo de pós-‐coloniais, ou descoloniais, no caso de alguns autores latino-‐
quais se evidenciaram seus principais
do
exercício
12 Uma discussão qualificada a este respeito
têm
sido
americanos. Alguns estão supracitados (página
64
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
pressupostos
analíticos
sobre
o
corpos se fazia necessária, como
poder. Nestas pesquisas, Foucault
prisões, hospitais, etc. Sua principal
aponta como as mudanças sociais,
característica arquitetônica concernia
econômicas e políticas que marcam a
na possibilidade de todos os internos
instalação da sociedade burguesa na
serem vigiados por uma torre central,
Europa pautam um maior enfoque
demonstrando
aos indivíduos. As relações de poder,
arquitetura, as novas relações de
difusas em variadas instâncias na
poder
sociedade, são atingidas por esta
sociedades modernas.
mudança, e ocorre uma gradual reconfiguração
das
que
por
meio
perpassavam
da
as
Variadas pesquisas históricas
tecnologias
relacionadas a estas instituições e ao
políticas, visando atingir todos os
saber médico têm se apropriado da
indivíduos. Estas novas formas de
analítica de Foucault sobre o poder,
poder, entretanto, não podem ser
demonstrando-se bastante profícuas.
consideradas como apenas de caráter
Entretanto, exigem amplo acervo
coercitivo, mas sim, administrativo e
documental e análise esmiuçada das
normativo, na medida em que visam
fontes,
obter maior controle e conhecimento
a
fim
de
não
permitir
interpretações simplistas. O próprio
do comportamento das pessoas.
autor
aponta
que
construiu
sua
Como exemplo ideal desta
analítica do poder através de um
nova tecnologia política, Foucault faz
exame minucioso de fontes, em
menção ao Panopticum de Bentham.
longas
Trata-se de um projeto arquitetônico
(FOUCAULT, 2011:167-168), visando
do século XVIII que foi copiado,
uma
mesmo
variadas
históricas dentro da perspectiva das
reformulações, a instituições onde
genealogias, anteriormente referidas.
que
sob
esta nova tecnologia de controle dos 3, nota 2).
65
pesquisas
abordagem
documentais
de
situações
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Outro
ser
determinados conteúdos históricos a
considerado ao se pensar em utilizar
partir desta perspectiva, propiciando
os pressupostos analíticos sobre o
abordagens inovadoras a respeito de
poder de Foucault diz respeito às
três grandes revoluções dos últimos
suas propostas de análise do poder
séculos.
incrustados nos discursos científicos
postulados permite ao historiador
e saberes institucionalizados. Todos
descolar-se
estes âmbitos são correlatos para o
demasiadamente
autor e exigem análise. Utilizar parte
presentes em muitas interpretações
de suas proposições e desconsiderar
históricas.
outras
aspecto
requer
a
atenção,
amplo
fim
de
evitar
atenção
de
aos
seus
perspectivas materialistas,
A aplicabilidade das premissas
embasamento e explicação a respeito, a
A
de
interpretações
Bourdieu
sobre
o
poder
à
pesquisa histórica é notória, sendo
históricas voláteis.
recorrente
Conclusão
há
algumas
décadas.
Entretanto, bastante exigente quanto
Considero que algumas perspectivas
à quantidade de fontes a serem
importantes para o uso da noção de
pesquisadas, à busca por detalhes e
poder para o estudo histórico foram
peculiaridades nos indícios e ao
abordadas neste artigo, que chamam
conhecimento
atenção
simbólicos
para
um
conjunto
de
dos
pertinentes
sistemas ao
objeto
possíveis usos teóricos e analíticos e
histórico.
cuidados que o historiador deve estar
conhecimento intrincado dos outros
ciente no seu trabalho.
principais postulados teóricos do autor,
A análise das premissas de
profunda
simbólico.
e
inerentemente política das relações sociais
e
uma
revisão
de 66
interdependentes
também
de
sua
teorização sobre o exercício do poder
Arendt sobre o poder remeteu a uma perspectiva
Demanda
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
A apropriação da analítica de
históricos específicos para adequação
Foucault sobre o poder para a
a modelos teóricos teleológicos.
historiografia demonstra vigor há algumas
décadas,
Sucintamente
especialmente
acima, as premissas dos três autores
perceptível quando relacionadas a
sobre a noção de poder são não
espaços focados pelo autor, como as instituições
apenas
hospitalares,
caráter
histórico
à
pesquisa
importantes ferramentas analíticas e
Na medida em que estes estudos um
aplicáveis
histórica, mas também inovadoras e
psiquiátricas, prisionais e educativas.
tiveram
abordadas
teóricas para a interpretação dos
–
processos
mesmo visando deslindar em uma
históricos.
Ao
mesmo
tempo em que exigem mais atenção
análise das relações de poder – o
sobre as fontes e esforço na pesquisa,
autor também apontou a importância
permitem
da pesquisa histórica pormenorizada,
capacidade
atenta a detalhes e particularidades,
maior de
profundidade explicação
e dos
processos históricos. Sem dúvida,
distanciada de interpretações pré-
enriquecem e qualificam o trabalho
deterministas ou da ênfase a objetos
do historiador.
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Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
DREYFUS, Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica; (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1971. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2011. HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
68
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Sociologia e história em duas análises da Revolução Francesa* Sociology and History in Two Analyzes of the French Revolution Mario Luis Grangeia 1 Resumo O artigo analisa como a sociologia histórica renovou a abordagem das relações entre a história e a teoria, ou seja, entre eventos singulares e padrões gerais. A partir de um exame crítico de duas leituras transdisciplinares da Revolução Francesa, sustenta-se que essa linhagem sociológica, subexplorada pelos historiadores contemporâneos, contribui para uma articulação fértil de dois enfoques complementares. Após uma síntese do debate sobre os enlaces entre a sociologia e a história, são comparados e discutidos conceitos, teorias e métodos de Skocpol (1985) e Mann (1993). O diagnóstico sobre a circularidade entre o foco generalizante da sociologia e o da história no singular é matizado numa comparação com a análise de Hobsbawm (1977) sobre a revolução que inquietou os primeiros sociólogos e é o marco historiográfico da transição da Idade Moderna à Contemporânea.
Palavras chave: Sociologia histórica, Francesa, Theda Skocpol, Michael Mann.
Transdisciplinaridade,
Revolução
Abstract The article analyzes how historical sociology renewed the approach to the relationship between history and theory, or between singular events and general patterns. From a critical examination of two transdisciplinary readings of the French Revolution, this paper argues that this sociological lineage, underexploited by contemporary historians, contributes to a fertile articulation of two complementary approaches. After a brief discussion on the bonds between sociology and history, I compare and debate the concepts, theories and methods of Skocpol (1985) and Mann (1993). The diagnosis of the circularity between the generalizing focus of sociology and history’s focus on the singular is nuanced by a comparison to Hobsbawm’s analysis (1977) of the revolution that disquieted the first sociologists and is the historiographical milestone of the transition from Modern to Contemporary Age.
* Uma versão anterior deste trabalho foi escrita para o curso de Sociologia histórica, oferecido no PPHIS/UFRJ (2012/2) por Marcos Bretas e Vitor Izecksohn. Agradeço sugestões da professora Elisa P. Reis sobre aquela versão e dos dois pareceristas da revista Enfoques. 1 Doutorando em Sociologia (UFRJ) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED/UFRJ) desde 2008; e-mail: mario.grangeia@gmail.com.
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Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Keywords: Historical sociology, Transdisciplinarity, French Revolution, Theda Skocpol, Michael Mann. 1. Introdução Este
estudo
A terceira seção revisa em como
a
paralelo as leituras da Revolução
renovou
a
Francesa em Skocpol (1985) e Mann
abordagem das relações entre a
(1993), evidenciando traços comuns e
história e a teoria, ou entre eventos
singulares em abordagens do mesmo
singulares e padrões gerais. Para
processo.
tanto, discutem-se duas análises da
análises
Revolução
enfocarem eventos históricos não
sociologia
examina
histórica
Francesa,
fato
que
Essa realça
justaposição a
estratégia
de de
inquietou os primeiros sociólogos e é
visando
o marco historiográfico da transição
generalizações, mas formular teorias
da Idade Moderna à Contemporânea.
a partir de fenômenos singulares
O estudo comparativo dos conceitos,
que, nessas obras, foram submetidos
teorias e métodos de Skocpol (1985) e
a comparações – num caso, com as
Mann (1993) pretende lançar luz
revoluções chinesa e russa; no outro,
sobre possibilidades abertas por essa
com a revolução industrial e a
convergência transdisciplinar.
americana.
A questões
próxima sobre
seção
ou
explicar
A quarta seção articula os debates anteriores, refletindo sobre
harmônica, ora tensa, da história com
como Skocpol e Mann apreendem a
a
preocupações
sociologia e a história. A comparação
intelectuais sobre como ir além dos
ressalta semelhanças cuja origem é a
limites simbólicos dessas disciplinas
afiliação
são mapeadas a partir de obras de
histórica,
sociólogos e historiadores.
oriundas dos temas, perspectivas
As
relação,
ilustrar
ora
sociologia.
a
discute
só
de
ambos
bem
à
sociologia
como
distinções
teóricas e ênfases metodológicas – 70
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
como o uso da comparação para
2. Sociologia,
elaborar teoria (ambos) ou para, ao
Hobsbawm
suas
Ao definir os conceitos que julgava
contraste com o exame da Revolução em
e
articulações
mesmo tempo, qualificá-la (Mann). O
Francesa
história
fundamentais à sociologia, Weber
(1977)
(1991) opôs as pretensões das análises
matiza ainda mais tal diagnóstico
sociológica e histórica de modo
sobre a circularidade entre o foco
sintético: a sociologia considera que
generalizante da sociologia e o foco
há regularidades na ação social, logo
da história no singular.
cria conceitos de tipos e busca regras
A conclusão retoma questões
gerais dos acontecimentos, enquanto
suscitadas pelos enlaces entre a
a história analisa ações, formações e
sociologia e a história, contribuindo
personalidades
para
culturalmente
se
pensar
a
individuais importantes.
Um
transdisciplinaridade. Ao conciliar
denominador comum nelas, segundo
enfoques aqui identificados como
Weber, é o anseio de prestar um
“centrípeto” e “centrífugo” (de fora
serviço à imputação causal histórica
para dentro e vice-versa), a sociologia
dos
histórica é um exemplo de conjunto
relevantes.
cujo valor supera a soma de suas
fenômenos
culturalmente
Tais diferenciais poderão ser
partes. Em outras palavras, ela se
reconhecidos nas obras focalizadas
destaca pela capacidade de aliar a
na próxima seção.
teoria e os eventos com um equilíbrio que a sociologia e a história, por si
Muitos
autores
frisaram
as
mesmas, seriam insuficientes para
sobreposições entre a ciência social e
atingir.
a história, mas poucos foram tão contundentes quanto Giddens (1984), para quem as distinções entre elas, se houver, 71
são
meras
divisões
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
trabalho, pois não há cismas lógicos
conseguiriam criar uma grande teoria
ou metodológicos.
trans-histórica historiador,
Embora a sociologia histórica
os
1
.
Segundo
sociólogos
esse devem
lidar com o passado apenas quando o
tenha privilegiado macroprocessos,
fato estudado requerer; nesse caso,
como a gênese dos Estados nacionais
deveriam trocar fontes secundárias
ou a industrialização, ela se aplicaria
pelas originais, a exemplo do que
à microhistória. Abrams (1982), para
fazem os historiadores2.
quem a explicação sociológica é sempre histórica, indicou esse uso
Em que pesem críticas como
lembrando que a história, como
as
interação entre estrutura e ação, não
histórica avançou muito com obras
se
apoiadas
dá
apenas
em
sociedades
e
de
Goldthorpe,
basicamente
a
sociologia
em
fontes
civilizações, mas em prisões, fábricas,
secundárias, usadas com fartura não
famílias ou firmas. “O que se advoga
só por sociólogos – como os autores
quando
discutidos mais adiante –, mas entre
falamos
da
sociologia
histórica como o elemento central da
historiadores
sociologia como um todo é muito
(1977:16), segundo o qual “fora de
mais do que um pedido por mais
uma área razoavelmente estreita, eles
‘pano de fundo histórico’” (Idem:8).
[historiadores] precisam contar em
Para Abrams, o principal é tomar o
grande parte com o trabalho de
passado não só como o ventre do
outros historiadores”.
presente, mas como a única matéria-
Na ótica de Goldthorpe (1991), história
e
a
empreendimentos distintos
que
os
sociologia
são
intelectuais
tão
sociólogos
não 72
Hobsbawm
Goldthorpe frisou o caráter histórico da sociologia, não a vislumbrando sem a história. Ele tomou a natureza da evidência como a distinção crucial entre elas: a história privilegia “relíquias” (relics) do passado, enquanto sociólogos “têm o considerável privilégio de poderem gerar evidência no presente” (Idem: 225). 2 Outra sugestão para a sociologia histórica partiu de Kiser e Hechter (1998), que defenderam que a teoria da escolha racional 1
prima para a construção do presente.
a
como
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
contexto
de
presente.
3. Duas leituras sobre a Revolução
uma
(...)
experiência Mas
muito
frequentemente o resto da análise é
Francesa
bastante
a-histórica”
(Idem:8).
A revisão das análises da Revolução
Skocpol e Mann, como se verá, fazem
Francesa por Skocpol (1985) e Mann
justamente
(1993) visa identificar contribuições
sociologia e história de tal modo que
da sociologia histórica às disciplinas
deixam em primeiro plano o fundo
que nela confluem: a sociologia e a
histórico, não com mera pretensão
história. Logo, desloca-se o foco da
ilustrativa ou de explicação adicional,
íntegra dessas obras a um de seus
mas de elaborar teorias conciliando
temas compartilhados – as causas e
generalização e singularidade.
efeitos da mobilização deflagrada em
3.1.
1789 – a fim de realçar traços comuns
obras
são
Abrams
(1982):
(1911) e Rússia (1917) fazendo uma análise histórica comparativa para
a
“elaborar, testar e apurar hipóteses
separação de um capítulo ou uma
explicativas
parte para fixar o pano de fundo
do
livro.
“Tais
que
fornecem
Estados-nações”
de
(Idem:49).
Esse
método foi usado por autores como
o
Tocqueville, Marc Bloch e Barrington
Moore,
fosse usada por ela para vários temas, não restritos às abordagens microssociológicas.
73
causais
integram macroestruturas como os
capítulos
tipicamente dão conta de eventos ‘significativos’
e
acontecimentos ou estruturas que
histórico do que será discutido no corpo
social
revoluções na França (1789), China
maioria dos livros de sociologia por
revolução
Theda Skocpol (1985) pesquisou as
contraexemplos de uma prática da
criticada
primeira
entrelaçam
Em “Estados e revoluções sociais”,
teorias, sintetizados na seção 4. duas
oposto:
segundo Skocpol
e singulares nos conceitos, métodos e
As
A
o
que,
segundo
Skocpol,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
atentaram às causas dos processos,
administrativa e coerciva não atrelada
ao
só
contrário
dos
historiadores
naturais, que buscaram descrever
a
forças
e
interesses
socioeconômicos).
seus ciclos característicos como se
Rompendo com as visões de
eles tivessem sequências típicas.
então
Uma intenção alcançada por
sobre
revoluções,
Skocpol
usou o conceito de “revolução social”
Skocpol foi superar a defasagem
para
entre a teoria e a história que notava
daquelas crises político-sociais entre
nos
os franceses, chineses e russos. “As
estudos
marxistas
acadêmicas
da
e
teorias
sociologia
da
definir
os
revoluções
desdobramentos
sociais
são
revolução à época. Sem negar a
transformações rápidas e radicais das
influência recebida da concepção
estruturas de classe e de Estado de
marxista de relações de classes e das
uma sociedade; e são acompanhadas
ideias
e em parte levadas a cabo por
dos
político
teóricos
sobre
mobilizações, conceber
os
do
requisitos
Skocpol
três
conflito
inovou
princípios
das
revoltas
ao
das
(Idem:16).
classes
A
inferiores”
peculiaridade
das
teóricos
revoluções sociais, frente às políticas
alternativos aos estudos correntes de
como a inglesa, é que as mudanças
revoluções:
estrutural
centrais nas estruturas política e
(ênfase nos padrões de relações entre
social são simultâneas e se reforçam
grupos e sociedades, em oposição à
mutuamente. As lutas de classe são
visão
fundamentais nesses casos.
perspectiva
voluntarista);
referência
sistemática ao contexto internacional
Graças
e à história mundial (as teorias prevalecentes contextos
privilegiavam
os
intranacionais);
e
uma
de
análise
fim do Antigo Regime e os processos revolucionários na França, China e Rússia
organização 74
método
comparativa, Skocpol concluiu que o
autonomia potencial do Estado (visto como
ao
tiveram
causas
e
efeitos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
comuns, apesar das singularidades.
ela pôde atestar a insuficiência de
Como ela ressaltou, esses Estados,
explicações correntes da Revolução
que
e
Francesa – a ascensão da burguesia e
politicamente ambiciosos antes das
o aparecimento de um Iluminismo
revoluções,
tornar
crítico da autoridade tradicional e
e
arbitrária – e da síntese entre elas. A
com
ênfase no dilema fiscal (finanças
maior potencial de grande potência
agravadas por derrotas em guerras e
na
Essa
tentativas de cobrar mais impostos)
transformação teve uma conjuntura
evidencia a atenção de Skocpol às
semelhante, segundo a socióloga:
pressões militares estrangeiras e às
eram
agrários,
vieram
centralizados,
a
se
burocráticos
incorporadores
arena
fortes
de
massas,
internacional.
condições estruturais. Já ao detalhar
Nas três Revoluções, as crises aceleradas a partir do exterior combinaram-se com as condições e tendências estruturais internas e produziram a seguinte conjuntura: (1) a incapacitação dos aparelhos de Estado dos Antigos Regimes; (2) o alastramento das revoltas das classes mais baixas, mais decisivamente de camponeses; e (3) tentativas por parte dos líderes políticos mobilizadores de massas para consolidar o poder do Estado revolucionário. (SKOCPOL, 1985:54)
A
autora
interdependência
frisou de
a crise política, ela apontou os interesses
as
tensões
múltiplos
setores
envolvidos, como oficiais do exército, aristocratas e – na contramão de outros estudos – camponeses, cujas insurreições foram vistas à parte. Ao lado
da
desorganização
administrativa/militar, as insurreições
a
camponesas constituíram, segundo
estruturas
Skocpol,
socioeconômicas e político-militares, atribuindo
dos
os
fatores
conjunturais
decisivos para as três crises sociais-
naquelas
revolucionárias.
sociedades às relações de classe e àquelas entre cada classe e o Estado.
Sem
capacidade
repressiva
Ao aprofundar o exame do Estado,
organizada, o Estado francês, tal
economia, classe dominante, dilema
como o chinês e o russo, gerou
fiscal e crise política revolucionária,
condições 75
favoráveis
às
revoltas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
generalizadas e irreversíveis contra os
poderia ter se limitado às reformas
donos
constitucionais.
de
terras.
dominante
Com
afundada
a
classe
numa
crise
A passagem do Antigo ao Novo
política sob a pressão internacional em
meio
à
campesinato anseios
modernização,
Regime
o
concretizou
antigos
insurrecionais,
dando
importância
internacionais
permanência
do
campo,
a
e
na
de
situação
uma
predominantemente
do
sociedade
agrária
e
da
adesão à competição internacional. A
Skocpol notou que, se não fosse a no
marcada,
Estado – e continuidades, como a
campesinato indicada por Lefebvre,
revolta
foi
de classe, na economia, nas relações
outras mudanças políticas e sociais. a
França
portanto, por rupturas – nas relações
margem à crise responsável por
Citando
na
tabela
Revolução
1
a
seguir
sintetiza
as
mudanças principais para Skocpol:
Tab. 1. Antigo e Novo Regime na França (Skocpol) Antigo Regime Relações de classes
Novo Regime
Classe dominante bem influente na monarquia. Camponeses vs. senhores, que cobram direitos.
Economia agrária-comercial sem Economia grandes unidades. Indústria não mecanizada. Domínio por grupos de pequenos proprietários.
Domínio da propriedade privada e economia de mercado. Capitalismo facilitado, favorecendo grandes donos de terra.
Cenário Pressões moderadas (sucessivas internacio derrotas em guerras devido à competição com a Inglaterra). nal
França engaja-se na disputa militar continental como potência potentemente hegemônica.
Situação Monarquia absolutista do Estado semiburocrática.
Estado profissional-burocrático não controlado por partidos; promove estabilidade interna e 76
Direitos e privilégios senhoriais abolidos sem redistribuição da propriedade da terra.
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
expansão militar. Fonte: adaptado de Skocpol (1985:169-173).
estudiosos da Revolução Francesa –
Ao expor as consequências das
mostra-se muito fértil. Tal mirada
revoluções sociais, Skocpol citou
original serve ao debate da tese
que, ao contrário da Rússia e da
corrente
China, o Estado francês não foi
homens que dominaram a França
Revolução Francesa culminou na um
Estado
depois
de
nacionais
e
com
com
a
capitalistas,
mercados
o
seu
desabrochamento” Segundo
a
militar,
o
pelo que
Revolução
naqueles
o
ainda não mecanizada – inibiu o avanço dos investimentos industriais. A
três
economia
predominantemente
continuou agrária
e
os
camponeses continuaram a trabalhar destaque
conferido
a terra praticamente sem qualquer
por
mudança.
Skocpol à análise da estrutura e do funcionamento geralmente
do
Estado
negligenciados
–
pelos 77
retardou
terra – em detrimento da indústria
as
países. O
essencialmente
comércio, em profissões liberais e na
recrutamento
porém, a presença popular nos temas aumentou
mas
ou
A concentração da burguesia no
atividades políticas. No longo prazo,
estatais
industriais
desenvolvimento econômico francês.
mobilização
neutralizou
eram
acrescentou que, em certa medida, a
pleno
popular foi, após 1793, suprimida ou arregimentada
não
de bens de raiz” (Idem:191). Ela
(Idem:176).
Skocpol,
Revolução
burocratas, soldados e possuidores
propriedade
privada capitalista, tendo mesmo assegurado
da
empresários
burocratas profissionais que coexistia simbioticamente
“revolução
constatações como a de que “os
foi rotulada como “burguesa”. “A
de
uma
burguesa”, à qual a autora contrapôs
dirigido por um partido e a revolução
instauração
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
A percepção da Revolução
mais liberal não vingou devido à
Francesa como “burguesa” também
capacidade política limitada da classe
foi posta em xeque em termos
dominante (divisão interna sobre a
políticos, pois não foi a burguesia
escolha
capitalista nem seus representantes
representativas e entre as autoridades
que lideraram a luta. Atenta à
locais)
inserção francesa em guerras na
camponesas
Europa de 1792 a 1814, Skocpol
terra,
notou que elas foram mais decisivas
política na classe dominante). Nesse
do que interesses de classe para a
contexto, deputados mais militantes
criação
as
votaram o fim de direitos senhoriais,
exigências para gerir conflitos e suas
das elites do Terceiro Estado e do
repercussões políticas internas. Um
alto clero em 4 de agosto. O rei, ao
exemplo
não cooperar, reforçou as tendências
do
Estado,
foi
legislações,
a
dadas
substituição
tributos
e
de
alfândegas
Em
vez
de
massas
efeito
das
(atacando
ampliaram
–
revoltas
donos
a
de
polarização
republicanas
e
liberais não construíram um governo
“burguesa”,
parlamentar apto a unir a classe dominante contra ameaças políticas
tomar a revolução como “burocrática, de
ao
instituições
democráticas – e as elites mais
Skocpol considerou mais adequado
arregimentadora
e
radicais
regionais por variantes nacionais.
das
burocráticas e populares.
e
reforçadora do Estado” (Idem:196).
Em 1792, a guerra contra a
Afinal, suas consequências políticas
Áustria fechou a fase liberal e
não foram as preferidas pelos grupos
desencadeou
a
economicamente
governamental
e
dominantes,
que
centralização a
mobilização
almejavam algo próximo ao sistema
popular que culminaram no Terror
parlamentar inglês 1 .
Montanhês (1793-94) e na ditadura
Esse modelo
1 Tal
mas não do modo que desejam, bem como a ênfase de Weber nas consequências não
percepção ilustra a difundida ideia de Marx de que os homens fazem sua história,
78
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
napoleônica. O evento foi lido por tantos
como
um
acidente
Entre as mudanças no Estado
que
e
na
sociedade
pós-revolução,
desviou a revolução, mas Skocpol o
Skocpol frisou a criação do Exército
julgou
nacional com corpo profissional de
“um
elemento
fulcral
e
constitutivo justamente como seria
oficiais,
de esperar do conhecimento da
administrativo,
natureza
funcionalismo e a unificação do
e
Regime”
dilemas
do
(Idem:202).
Antigo
Logo,
a
o
aumento
do
aparato
com
um
erário, orçamento e controle de
revolução teria sido causa – e não só
receitas
antecedente
envolvimento estatal na sociedade,
belicista
–
que
de
um
visou
sistema
dominar
a
despesas,
e
o
maior
com funções novas como a educação
Europa.
secundária e universitária. Embora
A
análise
respondeu
a
de
presente
Skocpol
controvérsias
para
o
fim
da
quanto
ditadura
e
na
os
Estados-Partidos
comunistas da China e da Rússia.
revolução até 1794. Segundo ela, a de
sociedade
tão tentacular e dinâmico sobre elas
montanhesa e a radicalização da
combinação
na
economia, o Estado francês não foi
entre
historiadores, como em relação às razões
e
Com
contradições
autônomo
um e
Estado
uma
mais
economia
de
econômicas e políticas não é uma
mercado, Skocpol notou que os
explicação
donos
suficiente
–
como
de
riquezas aos
se
sustentam alguns historiadores – a
dedicar
não ser que se considere a inserção
econômicos, como alternativa aos
delas no contexto sociopolítico dos
cargos públicos e à apropriação de
fins do século XVIII.
mais-valias. Outro feito da revolução,
além de condições favoráveis ao
intencionais inerentes a processos históricos.
mais
poderiam
interesses
desenvolvimento capitalista, foi o modelo sociopolítico que distinguiu 79
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
a França de outras nações capitalistas
complexas
industriais:
os
saíram de seu controle” (MANN,
“resquícios medievais” do regime
1993:4).2 O avanço do capitalismo e
senhorial
privilégios
da revolução militar gerou alterações
particularistas, em prol do Estado,
ideológicas e políticas com lógicas
campesinato e donos de riquezas.
parcialmente autônomas: o maior
eliminaram-se
e
os
Estado moderno.
jogo
Mann notou que as classes e
Michael Mann analisou a Revolução
estados-nação não revolucionaram a
Francesa no segundo volume de “As
estratificação
fontes do poder social” (1993), no
a
propôs.
capitalismo e o industrialismo se
século XVIII, a matriz militar já
moldaram a formas mais antigas; e as
cedera seu coprotagonismo à política
relações de poder vão além da
quando os Bourbon decaíram. A
mudanças
nas
quatro
economia (modos de produção e
as
classes), incluindo relações de poder
envolveu fontes
político,
de
rivais
adiante
em
formas 80
militar,
geopolítico
e
ideológico. A teoria da mudança
poder, “levando classes, nações e seus
e
ideias: a tradição importa, isto é, o
militar prevaleceram no Ocidente do
industrial,
sociólogos
Lipset e Mayer, que frisaram duas
e política. Se os poderes econômico e
e
os
citou Barrington Moore, Rokkan,
poder: ideológica, econômica, militar
americana
Entre
historiadores com essa visão, ele
das sociedades tem quatro fontes de
como
poder
período do que a tradição teórica
retomando a tese de que a estrutura
Francesa,
o
gênero – foi menos transformado no
revolução
industrial e a I Guerra Mundial,
Revolução
social:
distributivo – exceto pela questão de
qual discutiu a ascensão de classes e entre
frequentemente
nível de instrução e o advento do
3.2 Mann: quatro fontes de poder em
estados-nação,
que
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
social de Mann se filia àqueles
de classe”, de Cobban e Goldstone,
autores.
que viu a liderança não burguesa
No
lugar
de
revolucionária como uma fratura de
teorias
um antigo regime em declínio; e a
dicotômicas com um fator-chave de análise
(a
exemplo),
luta
de
Mann
classes,
por
propunha
seu
“escola ideológica”, de Furet, Hunt e Sewell, que considerou a revolução como dirigida por ideias, formas
modelo IEMP – sigla para os poderes ideológico,
econômico,
militar
culturais e classes mais mobilizadas
e
simbolicamente
político –, que se mostrou muito
do
que
materialmente.
profícuo aplicado às revoluções do século XVIII. O poder ideológico,
Ao retratar tais vertentes, Mann
por exemplo, foi crucial na ascensão
expôs concordâncias – como à ênfase
das classes burguesas e nações, ao
de Furet e Hunt na orientação da
influir nas paixões, criando, nos
revolução mais por princípios do que
termos
por pragmatismo – e discordâncias –
de
Benedict
Anderson,
“comunidades imaginadas”.
como ao modelo “uma-classe” de Skocpol
A Revolução Francesa foi uma
questão
para
indicar
pequena
três
fiscal-militar”,
se
de
teria
burguesia
ao
frisar
perguntar
se
os
princípios
partiram da experiência dos atores de
Skocpol e Behrens, que ligou a
poder
revolução à disputa com a Inglaterra
ou
de
uma
criação
de
ideólogos alheia à vivência prática.
– raiz da crise fiscal – e à luta de
Tal questão o levou a focalizar as
classes gerada por ela; “revisionismo
infraestruturas
permitindo
2 Todos os trechos citados de Mann (1993) foram traduzidos livremente pelo autor deste artigo.
acessar
ideológicas, o
significado
causal do poder ideológico. Os erros 81
que
corretamente o campesinato. Daí ele
correntes que relativizaram tal noção: “revisionismo
Goldstone,
ignorado amplamente a burguesia e a
revolução de classe? Mann partiu dessa
e
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
dos agentes seriam essenciais às
ideológico
revoluções,
desenvolvem
letramento, que cresceu rápido e sob
perdem
menor controle de autoridade, até o
quando
que
os
se
regimes
os
poderes de se concentrarem sobre
Iluminismo,
seus interesses.
condenação
o
entre
houve
oficiais
e
outros
níveis,
e entre ricos e plebeus. Igualmente conjuntura
atento
internacional,
à Mann
frisou a relevância da crise fiscal gerada pela Guerra dos Sete Anos (1757-63) contra a Inglaterra. Os
problema
ministros teriam admitido que os camponeses
eram
perigosamente
levados à quase subsistência e que a
surtos
oposição a ações reformistas partia
revolucionários. Ele assinalou, em
de proprietários privilegiados que
consonância com Skocpol, que o
controlavam parlamentos e tribunais.
militarismo geopolítico francês gerou
Em meio a interesses das elites e
dificuldades fiscais, mas discordou
partidos, o rei hesitava ainda como
dela por tomar a França como um
um
Estado em desenvolvimento tardio
protetor
dos
direitos
de
propriedade. Diante disso, o autor
ou ímpar. A contribuição do poder 82
feudalismo,
classe entre “nascimento” e “mérito”
todos os outros países europeus, e não
a
motivando um conflito quase de
econômico era mais grave em quase
neles
do
como
cresceu o profissionalismo e a lacuna
origem da revolução foi rejeitada por quem
ideias
o
razão. Quanto ao poder militar,
A precedência da economia na
para
com
desde
superstição e metafísica e a fé na
A Revolução Francesa foi um evento histórico-mundial singular. Foi a primeira, e virtualmente a única, revolução burguesa bem-sucedida. Seus atores de poder estavam “inconscientes”, ao contrário de atores de poder posteriores em qualquer país. Eles não sabiam no começo que estavam numa revolução. Portanto, fizeram o que imprevisivelmente poderia se mostrar como sinistros erros de cálculo – do rei e das ordens privilegiadas especialmente. Seus erros de cálculo contribuíram para a exaustão da política prática e para o recurso a princípios ideológicos da revolução. (MANN, 1993:170).
Mann,
incluiu
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
viu a postura real como uma causa
Para
necessária da revolução.
contextualizando advogados
a
notou grande proporção inicial de
princípios, trajetória
iluministas
funcionários da coroa e advogados
de
independentes – com isso, afastou a
como
visão de um pioneirismo burguês.
pensavam como revolucionários, mas idealistas
da
das assembleias entre 1789 e 1794 e
Robespierre, que no começo não
como
hipótese
pesquisou a ocupação dos membros
Mann diagnosticou o aumento da por
a
liderança dos burgueses, o autor
Em paralelo à crise fiscal,
resistência
testar
desejando
A
uma
elevação
morais,
dos
ausente
princípios
em
tantas
“república da virtude”. Um canal
revoluções,
remontava
a
acessível para as queixas eram os
Iluminismo
que
religião,
“cahiers de doléance” (cadernos de
ciência,
reclamações),
por
bolcheviques, os princípios morais
representantes locais de cada estado,
vinham da teoria “científica” da luta
que não pareciam maus ao regime.
de
Os cahiers da nobreza e do terceiro
acreditavam
estado atacavam a arbitrariedade real
virtude”, mas alguns só porque fosse
e partilhavam, em grande parte,
útil crer nela. “Eles preferiam mérito
pleitos pela convocação dos Estados
e
Gerais
uma
universalismo sobre particularismo,
constituição escrita, liberdade de
laissez-faire sobre mercantilismo e
imprensa
monopólio[,]
e
tributária. democracia
feitos
às
e
vezes
igualdade
“Não ou
havia
por
da
carga
sinal
revolução,
e
de
unia
filosofia
classes).
e
Os
(nos
“república
sobre
(...)
artes
revolucionários
na
trabalho
um
o
da
privilégio,
acreditavam
na
propriedade privada absoluta a ser
sua
defendida
contra
privilegiados
e
linguagem era mais de advogados do
pares sem propriedade” (Idem:194).
antigo regime do que de filósofos”
Uma
(Idem:184).
revolucionários na França foi seu 83
singularidade
dos
líderes
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
temor ao Judiciário maior do que às
núcleo ativista ganhou consciência
ruas.
de classe e citou Barrington Moore, para quem “o campesinato foi o
Mann fez menções sucintas a
árbitro da Revolução, mas não sua
eventos como a convocação dos Estados
Gerais,
com
a
principal força propulsora” (MOORE
disputa
apud
quanto à reunião em separado ou
ressaltou
conjunta dos estados, e o 4 de agosto, com a votação quase unânime pelo fim de direitos feudais e privilégios.
da ação, uma propriedade emergente
rural.
Nessa
fase,
a
–
a
elite
ideológica,
a
A Revolução Francesa, que se
da política revolucionária.
tornara uma luta de classes pautada no fim do privilégio e em direitos de
julgou
propriedade
essencial a interação entre cinco
Judiciário;
absolutos,
logo
se
converteu num conflito nacional. No
atores de poder: o antigo regime,
início, a elite ideológica, oriunda
a
amplamente
burguesia substancial; a pequena
substantiva,
burguesia, com seu núcleo sans-
da
burguesia
compartilhava
a
administração e o exército com um
culotte; o campesinato; e a elite
rei desacreditado. Para pressioná-lo,
ideológica, líder inicial da revolução.
precisou apelar à violência popular,
Em relação aos camponeses, por
apoiada por instituições pequeno-
exemplo, ele comentou que seu
burguesas que uniram a imprensa 84
urbano
e
movimentos
da “nação”.
como consequência não intencional
no
os
princípio legitimador do “povo” ou
O princípio tornou-se, ainda que
núcleo
entre
“conexão
pequena burguesia – com o novo
emocionais entre os atores de poder.
com
da
Mann
burguesia substancial e, mais atrás, a
de princípios poderiam criar laços
Mann
motor
capitalista”
urbanos
quase acidentalmente que os slogans
1790,
o
1993:199).
Revolução concentrou-se nos atores
Segundo ele, os líderes descobriram
Após
MANN,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
inflamável
com
unidades
medida que a guerra adicionou a
semidisciplinadas da guarda nacional
intervenção econômica do governo”
e a plebe. Em 10 de agosto de 1792,
(MANN, 1993:206).
uma insurreição popular levou à
A guerra, que sobreviveu ao
queda do rei e à transformação numa
Terror
república. A mobilização e seus efeitos
foram
citados
com
marcada
por
da
a
então a um estado-nação mais forte e centralizado e que ganhou um tom
difícil de encontrar num historiador. etapa
alterou
legitimação revolucionária, vinculada
uma
míngua de informações que seria
Nessa
termidoriano,
autoritário sob Napoleão. Sua gestão
revolução,
centralizada reforçou o liberalismo
disputas
contra
burguês mais diretamente do que na
austríacos,
mesmo
Grã-Bretanha. Se no modelo anglo-
muitos moderados viram a guerra
saxão o Estado era centro e território
como
princípio
de uma sociedade civil e nação
iluminista. Ao contrário do que
capitalistas, o modelo continental de
esperava o líder girondino Brissot, a
Estado
guerra moveu a liderança esquerdista
explicitamente
e aproximou do Estado a guarda
ligeiramente mais despótico, fixando
nacional pequeno burguesa e os
e
comitês. Com esse novo ator coletivo,
capitalistas. Para Mann, a França
emergiu uma luta entre esquerda e
deixara de ser um agregado de
direita, girondistas e montanheses, e
corporações
facções de jacobinos. Segundo Mann,
autoritárias, reunido pela monarquia
era
mas
e igreja, e se tornara uma sociedade
entrelaçada e focada em outra grande
civil capitalista mais dependente de
questão:
um estado-nação do que a Grã-
prussianos
e
ativadora
uma
luta
quão
do
de
classes,
centralizado
ou
regionalizado seria o Estado. “A
85
reforçando
Bretanha.
França foi ainda mais centralizada à
era
mais
centralizado,
nacionalista
normas
particularistas
e
mais
e
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Enfim, Mann caracterizou a
apreenderam
Revolução Francesa como o principal
tabela
fosse – e a única revolução burguesa
desenvolvimento
deveu
ao
conjunto
das
ênfase no método comparado. A alusão
partia
de
uma
história
teoria
comparação
em
ilustrando
a
teoria;
teoria; e visando a elaboração teórica,
para
em
Skocpol
(1985).
comparação
histórica
em
A
Mann
(1993) teria servido aos dois últimos
Skocpol e Mann
desses propósitos.3
Na vasta literatura sobre a Revolução
Tilly (1984) propõe outra tipologia de comparações, de grandes estruturas e longos processos: individualizantes; universalizantes; buscando variações; e abrangentes. Ele classifica a comparação histórica de Skocpol (1985) como universalizante (indica propriedades comuns entre todas as instâncias de um fenômeno). O autor deste artigo classificaria Mann (1993) assim, dada a proposição do modelo IEMP. 3
Francesa, a justaposição das análises de Skocpol e Mann evidencia certas interseções e seus traços singulares. À luz das visões sobre a revolução, esta seção discute como tais autores
Tab. 2. Traços comuns e singulares em Skocpol e Mann 86
estudos
restringindo o alcance explicativo da
como história
da
comparativa
sociológicos:
fatos entre 1760 e 1914.
e
foco
Sommers (1980) para os três usos da
resultante de uma sólida análise de
4. Sociologia
ao
apropria-se da tipologia de Skocpol e
classes sociais e da nação. Essa resposta
de
duração; o interesse pela política; e a
possível na França, Mann concluiu se
concepções
procura pela causalidade de longa
uma revolução burguesa só fora
isso
resume
histórica segundo Reis (1998): a
saída,
fracassaram. Ao se perguntar como
que
2
dos traços distintivos da sociologia
outras foram apoiadas pelos exércitos sua
a
Skocpol (1985) e Mann (1993) a partir
com sucesso por mérito próprio –
com
e
Para introduzir esse debate, a
marxista – embora inicialmente não
e,
sociologia
história.
exemplo de luta de classes no sentido
franceses
a
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Skocpol, 1985
Mann, 1993
Análise de fenômenos macro-históricos Busca da causalidade de longa duração
Grandes revoluções sociais
Origens do poder (1760-1914)
Maior interesse pela dimensão política da vida social Interesse pela política
Perspectiva estrutural e ênfase na escala internacional e autonomia estatal
Poder político soma-se ao econômico, militar e ideológico (modelo IEMP)
Comparação a serviço da análise e elaboração teórica Ênfase no método comparado
Para elaborar teoria sobre as causas das revoluções francesa, chinesa e russa
a generalização, a explicação teórica,
As semelhanças entre Skocpol
para melhor iluminar o histórico, o
e Mann, como mostra a tabela,
singular” (Idem:21). Os estudos da
referem-se mais à opção comum de
Revolução Francesa ilustram bem tal
privilegiar a história, enquanto as
ideia.
distinções vinculam-se aos objetos da pesquisa,
métodos
orientações
A circularidade entre a teoria
teóricas, como a influência de teorias
generalizante e os eventos singulares
marxistas e do conflito (Skocpol) e
que
das
resenhadas
próprias
e
Serve à criação e qualificação de teoria do 1º volume
concepções
(Mann).
se
verifica
nas
distingue-as
análises de
uma
Ambos ilustram uma percepção de
leitura da Revolução Francesa como
Reis
a de Hobsbawm (1977). Sem a
(1998)
sobre
a
vertente
sociológica deles: “No marco da
intenção
sociologia histórica, a relação entre o
historiador inglês dedicou o primeiro
particular e o genérico tem para o
volume de sua trilogia sobre o “longo
analista uma dupla função: não se
século XIX” ao exame do que então
trata
chamou
apenas
de
estudar
casos
singulares para generalizar; busca-se
propor
“dupla
teoria,
revolução”:
o
a
francesa de 1789 e a industrial 87
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
inglesa. A revolução que eclodiu até
se depreenda dessa imagem que
1848 foi, segundo ele, “a maior
Hobsbawm
transformação da história humana
articulação da Revolução Francesa a
desde os tempos remotos quando o
eventos em outros países, mas só que
homem inventou a agricultura e a
seu foco foi o que havia de singular
metalurgia, a escrita, a cidade e o
na segunda “revolução gêmea”, como
Estado” (Idem:17). Seu propósito foi
em
reconstituir
a
trajetória
“revoluções
gêmeas”
sem
daquelas extrair
sua evolução e seus resultados – tais elementos, por sinal, nomeiam as partes do livro. A comparação entre as análises de Mann
e
Hobsbawm
esclarece mais sobre a articulação entre teoria e história feita pelos dois sociólogos.
Enquanto
Hobsbawm
Outro
narrou os eventos com um olhar
trecho
desse
historiador, de um trabalho sobre
predominantemente centrípeto (de
revolução, foi citado por Skocpol
fora para dentro), fornecendo uma
(1985)
descrição densa da revolução e seus
como
alerta
relevante
da
sobrevalorização de indivíduos: “a
agentes, Skocpol e Mann conciliaram
evidente importância que os atores
tal abordagem com uma perspectiva
possam
centrífuga (de dentro para fora),
ter
no
drama
(...)
não
significa que eles sejam também
propiciando uma teorização sobre os
dramaturgo, produtor e cenógrafo.
eventos à luz da análise comparativa
(...) as teorias que dão demasiada
com outros contextos nacionais. Não 88
a
Ao contrário das revoluções do fim do século XVIII, as do período pósnapoleônico foram intencionais ou mesmo planejadas. Pois o mais formidável legado da própria Revolução Francesa foi o conjunto de modelos e padrões de sublevação política que ela estabeleceu para uso geral dos rebeldes de todas as partes do mundo. (...) os modelos políticos criados pela Revolução de 1789 serviram para dar ao descontentamento um objetivo específico, para transformar a intranquilidade em revolução, e acima de tudo para unir toda a Europa em um único movimento – ou, talvez fosse melhor dizer, corrente – de subversão. (HOBSBAWM, 1977:130).
generalizações, mas apenas retratar
Skocpol,
negligenciou
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
ênfase aos elementos subjetivos ou
do sentido inverso, geralmente mais
voluntaristas na revolução devem ser
estudado. Considerou, de modo um
tomadas
tanto
com
precaução”
apud
(HOBSBAWM
controverso,
porém,
que
SKOCPOL,
Skocpol não atingiu o desejo de
1985:30-31). O autor ilustra essa
corrigir a “centralidade da sociedade”
precaução em “A era das revoluções”,
das teorias pluralistas e marxistas
ignorado por Skopol e referido sem
com a perspectiva de “centralidade
maior relevo por Mann (1993) em
do Estado”. Outras discordâncias, já
dois trechos. O melhor exemplo da
referidas neste texto, foram geradas
cautela dos dois sociólogos quanto
pelo modelo “uma-classe” da autora
aos elementos voluntaristas são suas
– para Mann, ela frisou corretamente
menções pontuais a Napoleão. A
o campesinato, mas ignorou muito a
exposição sucinta de sua trajetória
burguesia, a pequena burguesia e as
por Skocpol visou apenas ilustrar as
disputas intraelites e partidárias – e
mudanças no Exército – logo, no
pela caracterização da França de 1789
Estado – francês. Mann, por sua vez,
como
responsabilizou-o
desenvolvimento tardio ou ímpar.
“institucionalizar enquanto
por o
castrou
Estado-nação a
um
Estado
em
Divergências à parte, essas
cidadania
análises
política” (Idem:238).
da
evidenciam
Skocpol e Mann se apoiaram
Revolução
Francesa
possibilidades
aos
estudos da história proporcionadas
fontes
pela sua articulação com a sociologia,
de
como saudaram Giddens (1984) e
Hobsbawm. Aliás, Mann citou ideias
Abrams (1982) e contestaram autores
expressas mais de uma década antes
como Goldthorpe (1991). Em meio às
por Skocpol. Ele julgou acertada sua
opções teóricas e metodológicas na
opção
sociologia
decisivamente secundárias,
de
sobre a
analisar
exemplo
o
efeito
da
geopolítica na luta de classes, em vez
há,
naturalmente, as que para alguns 89
histórica,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
parecerão mais promissoras, como se
como estudos valiosos por abrirem
vê no balanço de Skocpol sobre esse
veredas férteis a essa disciplina.
campo disciplinar: Na avaliação final, sociólogos que orientam suas problemáticas historicamente, como Marc Bloch e Barrington Moore, podem nos dizer mais sobre estruturas sociais e mudança social do que sociólogos históricos que retrabalham, ou que argumentam com, paradigmas teóricos excessivamente genéricos. Esta é minha percepção de uma das lições mais importantes que podem ser aprendidas pela comparação dos feitos dos pesquisadores. (SKOCPOL, 2004:26).
5. Conclusão Ao
uma
sua análise. Em vez de apoio, eles fizeram da história a alavanca para suas teorias sobre as revoluções sociais e as origens do poder. A
disciplina
diferença entre um uso e o outro é significativa e este trabalho buscou
propor teoria geral e tem uma gama
esclarecê-la de modo ora explícito –
de teorias especiais, mas também direções
especializadas
dos
de apoio para a contextualização de
diversificada que se esforça para
alcança
maioria
tomaram a história como mero ponto
da sociologia histórica, Subrt (2012) a como
da
sociólogos, Skocpol e Mann não
Num recente panorama crítico
identificou
contrário
como no contraste com Hobsbawm
e
(1977) ou na revisão de Mann sobre
elabora pesquisas empíricas. “Isso
as três linhagens de estudos que
sugere que a sociologia e história não
relativizaram a visão da Revolução
se separaram completamente e, pelo
Francesa como luta de classes –, ora
contrário, que o volume do diálogo
implícito,
recém-iniciado entre os dois ramos
como
ao
justapor
as
narrativas históricas e as respectivas
se desenvolverá e intensificará ainda
teorias sobre o Estado. Ao oscilar
mais” (SUBRT, 2012:414, trad. livre).
entre a narrativa e a teoria, os autores
Após mais de duas décadas, as obras
teriam fluído em movimentos que se
de Skocpol e Mann podem ser lidas
propôs chamar de “centrípetos” e “centrífugos” – de fora para dentro, e 90
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
vice-versa –, com um alcance para a
à alegada importância da ideologia
compreensão do evento que apenas
para os desdobramentos após 1789.
um
desses
enfoques
seria
Com análises que interpelaram
insuficiente de alcançar.
duradouras
Os dois estudos de sociologia
controvérsias
historiadores,
Skocpol
e
entre Mann
histórica comentados contestaram,
exemplificaram múltiplos méritos de
com
fontes
se aliar a sociologia com a história,
explicações
tornando concreta a circularidade
correntes para a ruína dos Bourbons,
entre as teorias e os eventos referida
como
da
por alguns autores. A julgar pela
burguesia e os efeitos colaterais do
contribuição da sociologia histórica
Iluminismo, avesso às práticas da
para
autoridade central. Daí o oportuno
convergem, são muito promissoras as
questionamento a quem toma, sem
tentativas de se pôr em prática a
maiores ponderações, a Revolução
propalada transdisciplinaridade, no
Francesa
e
ensino e na pesquisa. Assim como
“capitalista”, o que costuma refletir
este trabalho demonstrou em relação
desatenções como ao papel decisivo
à confluência entre a generalização e
dos camponeses. Skocpol especificou
a
as
base
em
secundárias,
a
muitas
algumas
simples
como
transições
ascensão
“burguesa”
disciplinas
singularidade,
as
que
nela
perspectivas
tornam
esses
abertas pelo encontro entre ciências
ela
Mann
humanas são mais amplas do que se
articularam as mudanças nas classes
poderia pensar inicialmente. Basta
com aquelas do Estado. Em outro
examinar o quanto a Revolução
exemplo de bom aproveitamento da
Francesa
pesquisa
sociologia,
compreendida por meio daquelas
ainda que menos abrangente, Mann
duas abordagens para se certificar da
partiu de dados sobre o perfil dos
pertinência de se transpor os limites
líderes da Revolução para dar corpo
consolidados por cada disciplina.
rótulos
válidos
que
as
e
histórica
na
e
91
pode
ser
mais
bem
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
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92
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Entre antropologia e história: fragmentos do debate racial na França do pós-guerra Between Anthropology and History: fragments of the racial debate in postwar France Júlia Vilaça Goyatá 1 Resumo O esforço deste artigo é o de capturar algumas das relações entre antropologia e história na passagem do século XIX para o XX e fundamentalmente na metade deste. Argumenta-se que por volta dos anos 1950 um debate específico iluminou de modo surpreendente a noção de História, que havia sido deixada de lado pela teoria antropológica no momento de sua consolidação como ciência da alteridade e da diversidade cultural em oposição ao evolucionismo. Através dos trabalhos paralelos de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e Michel Leiris (1901-1990), ao mesmo tempo similares em propósito e distintos em forma e conteúdo, vê-se como através de sua articulação negativa com a noção de raça, a História passa a ganhar novos sentidos. Os autores exploram ainda as relações entre tempo, cultura e política.
Palavras chave: Antropologia, História, Raça, Leiris, Lévi-Strauss.
Abstract This paper's effort is to grasp some of the relationships between anthropology and history in the period spanning from the end of the 19th century until the mid-20th century. We put forward the idea that during the 1950s a specific debate shed a surprising light over the notion of History, which had been cast aside by anthropological theory in the moment of its consolidation as a science of alterity and cultural diversity, in opposition to evolutionism. Through the works of Claude LéviStrauss (1908-2009) and Michel Leiris (1901-1990) - similar in their goals but distinct in their form and content - we see that through their negative articulation of the notion of race, History gained new meanings. These authors also explore the relationship between time, culture and politics.
Keywords: Anthropology, 1
History,
Leiris,
Lévi-Strauss.
Doutoranda em Antropologia Social – Universidade de São Paulo
e história a partir do debate racial
Introdução
presente na teoria antropológica, de
O presente texto pretende lançar luz
modo geral, e na francesa, em
sobre as relações entre antropologia 93
Race,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
especial na metade do século XX,
esses trabalhos sejam significativos
mais precisamente no pós-Segunda
do
Guerra Mundial. Supõe-se que há
mencionamos:há
nesse momento uma espécie de
renovado
inflexão por parte da antropologia,
história, já que, para desconstruir o
que, se antes se construíra em
racismo, se tornava imprescindível
oposição à disciplina histórica, passa
conceber múltiplas noções de tempo,
agora não só a reivindicá-la enquanto
fazendo, ao mesmo tempo, uma
disciplina auxiliar, como também a
crítica
usar
reivindicação
frequentemente
“história”
como
o
um
termo
consideração
Lévi-Strauss
afastamento
(1908-2009) e “Race et civilisation” de
com
modernidade
e
unívoca
a
sua de
primeiro a da
leva
em
tentativa
de
disciplina
sobre os problemas raciais e a realização de uma campanha educativa sobre esse assunto” (MAUREL, 2007: 116). Além disso, nesse mesmo ano, Leiris e Lévi-Strauss participariam das reuniões que preparariam a “Déclaration sur la race” de 14 de dezembro de 1949, também parte do mesmo programa (idem). 2 Vale ressaltar que Lévi-Strauss e Leiris, apesar de contemporâneos, são antropólogos raramente postos lado a lado. Uma hipótese para isso refere-se às distintas trajetórias profissionais de ambos: Lévi-Strauss inserido no meio acadêmico e Leiris voltado para o trabalho em instituições, tanto museológicas quanto voltadas para políticas públicas. Para uma exceção à regra, ver: PEIXOTO, 2006.
UNESCO
(Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura) em 1952, com o objetivo de embasar uma postura antirracista através de estudos científicos1. Acredita-se que 1
A referida coleção seria parte do amplo programa da UNESCO de combate ao racismo intitulado “A questão das raças” (1949). Fazia parte da agenda “uma resolução que previa a coleta de material científico
94
discussão
La question raciale devant lãs cience pela
interesse
que se dá basicamente na primeira
publicados na coleção de brochuras
editadas
um
que
antropológica em relação à história,
Michel Leiris (1901-1990), ambos
moderne
da
percurso:
dois textos: o célebre “Race ET Claude
pela
virada
O trabalho segue, pois, o seguinte
tomaremos como caso paradigmático
de
de
historicidade2.
conceito
operatório. Para fazermos tal reflexão
histoire”
ponto
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
metade do século XX e em diversas tradições (inglesa, francesa e norte-
Quando a história não faz parte do
americana), para depois refletir sobre sua
posterior
que somos
aproximação.
Tomaremos o trabalho de A. R.
A
Radcliffe-Brown
(1881-1955)
como
constitui de forma inaugural na
representativo
desse
primeiro
segunda metade do século XIX,
teoria
antropológica,
momento. No segundo momento,
tornou-se
pretende-se
“evolucionismo”.
lançar
luz
sobre
a
conhecida
que
pelo
se
termo
Representada
aproximação da antropologia com
principalmente pelos trabalhos do
relação à história, pensada em duas
inglês Edward Tylor (1832-1917) e do
dimensões
norte-americano
articuladas:
uma
Lewis
Morgan
tentava
entender
disciplinar, e para isso refletiremos
(1818-1871),
sobre um texto de Lévi-Strauss em
como
que tenta enlaçar os saberes, e uma
“primitivas”, aquelas com as quais os
conceitual: aqui veremos de maneira
países europeus vinham entrando em
mais detida o debate francês - através
contato a partir da expansão colonial,
de Lévi-Strauss e Leiris - tentando
se
mostrar como se deram as reflexões
“civilizadas”, sociedades das quais
sobre a diferença cultural em torno
advinham os próprios antropólogos.
de
Para tal, concebeu-se que haveria
regimes
temporalidade.
discrepantes Interessa
de
entender
uma
também em que sentido os termos
opõem)
nessa
relacionavam
única
com
linha
as
ditas
então
evolutiva
de
e da temporalidade”, ministrada no segundo semestre de 2014 pelos professores doutores Lilia Schwarcz e João Felipe Gonçalves no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Para mais detalhes sobre as leituras feitas e os debates travados no curso, ver SCHWARCZ (2005). Agradeço aos professores os comentários fundamentais feitos à primeira versão deste texto.
discussão
específica3. 3
Este artigo foi estimulado pelas discussões feitas na disciplina “Antropologia do tempo
95
sociedades
“raça” e “história” se relacionam (ou se
as
ela
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
progressão para toda a humanidade,
ruptura com os problemas colocados
sendo que as sociedades “primitivas”
pela história. Ao que tudo indica, a
seriam
estágios
antropologia passara por uma espécie
anteriores e menos desenvolvidos das
de trauma após o uso do conceito
sociedades ocidentais. Ainda que
feito pelos evolucionistas; uso este
coabitando
que justificou o projeto colonial e
consideradas
num
histórico,
mesmo
as
tempo
primeiras
colocou
de
um
população mundial em condição de
momento já vivido pelas segundas:
inferioridade intelectual e política
elas eram a prova viva da infância de
diante das sociedades consideradas
uma
havia
“avançadas”. Como comenta Lilia
progredido; estavam, então, paradas
Schwarcz em artigo dedicado às
no tempo. Para os antropólogos
relações
dessa corrente, a diferença entre as
história:
representariam
rastros
humanidade
que
sociedades era redutível, assim, a um
linha vetorial de desenvolvimento histórico, o que pressupunha um destino e um sentido de progresso único para todas elas. Pode-se dizer que é em função um
evolucionista,
combate que
à
teoria
teve
grande
grande
entre
parcela
antropologia
da
e
foi por conta do modelo conjectural dessa escola [evolucionista] que antropólogos culturalistas norteamericanos, de um lado, e funcionalistas ingleses, de outro, buscaram distanciar-se da diacronia e se opor à história. Condenava-se o evolucionismo não só porque sua reconstituição histórica não era verificável, mas também porque a história dessas sociedades parecia diminuta, perante o “presente etnográfico” (2005:121).
problema de localização em uma
de
uma
Para entender melhor o lugar de
destaque
desse
“presente
impacto no meio intelectual e na
etnográfico”
arena pública de sua época (e segue
consideração da história por parte
tendo ainda nos dias de hoje), que a
dos
teoria
funcionalistas,
antropológica
da
primeira
metade do século XX buscou uma
antropólogos
oposição
culturalistas
olhemos
mais
à
e de
perto para a argumentação de um 96
em
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
deles,
considerado
o
pai
da
fato, dar mais privilégio ao primeiro aspecto (1997: 12)4.
antropologia inglesa: A.R. RadcliffeBrown. Na introdução da célebre
É o conceito de estrutura social
coletânea de textos Structure and function
in
a
primitive
que ganha maior destaque em seu
society,
trabalho e, fundamentalmente, se
publicada tardiamente em 1952, o autor
irá
destacar
o
lugar
vincula
da
específicas
escreveu entre os anos 1920 e 1940. os
diversos
deixa
teórica
que
prioritariamente
clara
a
do
sociologia”, da qual a antropologia é
da
parte,
tempo.
social
Embora
social
da
de
continuidade
nos
arranjos
das
pessoas umas em relação às outras”
sua formulação teórica e dissesse
(idem: 10). Contudo, lançar o foco de
estar interessado tanto no estudo da
luz mais intenso para o problema da
“continuidade nas formas da vida
continuidade não significa dizer que
social”, quanto na compreensão dos mudança
natureza
depende
continuidade
processo social como sendo a base de
de
a
estrutural, que é uma espécie de
concebesse a tríade estrutura, função e
“processos
“é
continuidade. Continuidade na vida
sociedades permanece, apesar da do
continuam
problemas teóricos fundamentais da
estática social, isto é, aquilo que nas
passagem
estas
ela. Em suas palavras: “um dos
trata-se
estudo
e
possíveis mudanças instauradas por
plataforma
constrói:
de
persistentes através da história e das
temas
presentes em seu trabalho, RadcliffeBrown
sentido
em função de necessidades sociais
presente ao apresentar os textos que
abordar
um
permanência: a estrutura é ordenada
antropologia enquanto ciência do
Ao
a
Radcliffe-Brown não concebia, em
dessas
nenhum aspecto, a mudança no seio
formas”, Radcliffe-Brown parece, de
das
sociedades
ditas
primitivas.
4
Esta e as próximas traduções contidas no texto são de minha autoria.
97
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Muito pelo contrário, em oposição
há como fazer história de maneira
aos
advogará,
rigorosa, pois não temos acesso aos
contemporâneo
materiais necessários, que não a
evolucionistas,
assim
como
Franz
Boas
seu
ele
(1858-1942),
pela
façamos
de
maneira
conjectural
diversidade cultural e histórica, não
como fizeram os evolucionistas; o
redutível a um único destino: a
melhor, desse modo, seria que os
civilização ocidental
5
. O que o
problemas históricos não entrassem
antropólogo inglês não fará é incluir
na
o estudo do devir histórico dessas
caberia
sociedades primitivas na agenda de
então, definido pelo que os seus
trabalho da antropologia.
olhos alcançam, pela realidade que se
problema
impossibilidade de lidarmos com a
ausência
história dessas populações devido à
estaria,
de de
ordem materiais
prática,
a
suficientes
sobre o passado das populações
escritos
primitivas, Radcliffe-Brown concebe
deixados por elas. A mensagem que
que a história estaria fora do escopo
ele parece passar é a de que, se não
da
antropologia,
pois
ela
transcenderia o objeto de estudo da
5
Apesar de também buscar um lugar próprio para a antropologia em oposição a outras disciplinas, o trabalho de Boas parece ser mais afim aos problemas colocados pela história que o de Radcliffe-Brown, até por isso tomamos o trabalho do último como paradigmático de uma espécie de reação antropológica à história. Como comenta Lévi-Strauss, a preocupação em inventariar a maior quantidade de costumes possíveis fez com que Boas descobrisse aspectos surpreendentes do passado de algumas sociedades e de sua relação com outras tantas (LÉVI-STRAUSS, 2008:19). Para mais detalhes ver: BOAS, 1966.
disciplina: essa realidade observável e palpável a que ele dá o nome de “processo da vida social” e que só podemos compreender através do estudo de sua estrutura e funções correspondentes BROWN, 1997:4). 98
antropólogos
que
presente etnográfico. A partir de um
Brown chama a atenção para a
documentos
aos
O
etnografia; daí a importância do
comenta Schwarcz (2005), Radcliffe-
de
antropológica.
pode observar (e tocar) através da
Nesse sentido, como também
ausência
pauta
(RADCLIFFE-
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
história] é de orientação e não de objetivo”
Quando a história nos auxilia a ser o
e
que
são
indissociáveis”(idem: 67). O texto de
que somos
Lévi-Strauss
citado
Data de 1961 um texto de E.E. Evans
Pritchard
o
Pritchard
Histoire
(1902-1973)
“ambas
intitulado
é et
por
quase
Ethnologie,
Evans-
homônimo publicado
Anthropology and History em que o
pouco mais de uma década antes, em
antropólogo inglês atenta para as
1949. Nesse momento, o etnólogo
necessidades
restabelecimento
francês, que acabara de publicar o
dos laços entre a sua disciplina e a
célebre Les Structures élémentaires de
história, mostrando as consequências
La parenté (1949), fora chamado de
perniciosas
formalista por muitos de seus pares,
de
de
seu
afastamento,
ocasionado
principalmente
influência
de
que o acusavam de ter deixado de
pela
lado
Radcliffe-Brown,
em
sua
teoria
estrutural
“extremadamente hostil” à história,
elementos históricos. O historiador e
como bem vimos acima (1990:44).
filósofo Claude Lefort (1924-2010), de
Depois de enumerar dez tópicos
quem voltaremos a tratar em seguida,
referentes
do
era um desses críticos e questionava
divórcio entre as disciplinas - dentre
o lugar da experiência na teoria lévi-
as quais estão listadas a dificuldade
straussiana, fundada sob modelos
dos
com
matemáticos 6 . Embora a crítica de
fontes documentais e a falta de
Lefort seja pertinente, a história não
atenção dada por eles ao problema
parece ter tido um papel assim tão
da
Evans-Pritchard
tímido na teoria de Lévi-Strauss,
conclui o texto dizendo que concorda
principalmente a partir dos anos
com Claude Lévi-Strauss quando
1950, quando escreve os textos que
este afirma que “a diferença entre as
vão consolidar sua teoria estrutural.
duas
às
consequências
antropólogos
memória
-,
disciplinas
em
lidar
[antropologia
e 99
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Não apenas no texto em questão, em
de como, a partir da segunda metade
que ele se dedica precisamente a
do século XX, a história volta à cena
pensar as relações entre história e
antropológica. Lévi-Strauss constrói
etnologia, mas também em pelo
o texto de modo a ressaltar a
menos
importância do trabalho conjunto
mais
antropólogo
três parece
momentos, se
o
debruçar
entre
etnólogos
e
historiadores,
cuidadosamente sobre a história,
considerando
que
mostrando sua importância para a
profissionais
traz
teoria que está desenvolvendo 7 . De
distintas para a compreensão do
acordo
“a
fenômeno humano que lhe interessa:
etnologia não pode (...) permanecer
a maneira como os símbolos são
indiferente aos processos históricos e
construídos e trocados entre distintas
às expressões mais conscientes dos
sociedades8. Após ressaltar o esforço
fenômenos sociais” (2008:37).
de Boas na direção de compreender
com
Lévi-Strauss:
citado
por
contribuições
crítica à antropologia inglesa, mais
Evans-
diretamente à Bronislaw Malinowski
Pritchard, pois ele parece fornecer,
assim como o do inglês, um exemplo
8
Não entraremos aqui nas questões que abarcam o nascimento da antropologia francesa e nas relações profundas de LéviStrauss com a obra de Émile Durkheim (1858-1917) e Marcel Mauss (1872-1950). Basta dizer que diferentemente da antropologia inglesa, como vimos com Radcliffe-Brown, a antropologia francesa foi fundada a partir da compreensão do que Durkheim chamava de representações coletivas, isto é, a maneira como ideias são organizadas socialmente. Para Durkheim, a sociedade se constituiria pela dimensão simbólica, pela ideia que teria de si mesma, mais que pela junção concreta de indivíduos que partilham um espaço/tempo. Para ver mais: DURKHEIM, 1968.
6
Ver: LEFORT, 1979b. Sobre a crítica de Lefort a Lévi-Strauss ver: POUILLON, 1973. 7 Os momentos a que referimo-nos se expressam pelos seguintes trabalhos: o texto que abordaremos a seguir, “Race et Histoire”, publicado em 1952; o último capítulo de La pensée sauvage (1962), “Histoire et dialectique”, em que discute com o filósofo Jean Paul Sartre e, por fim, um segundo texto também intitulado “Histoire et ethnologie” escrito em ocasião da conferência Marc Bloch na Sorbonne e publicado em 1983. Para mais detalhes sobre a importância da história no trabalho de Lévi-Strauss, ver: GOLDMAN, 1999.
100
dos
sociedades diversas e fazer uma
perto o texto de Lévi-Strauss, não acaso
um
melhor o sentido da historicidade em
Diante disso, vejamos mais de
por
cada
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
(1884-1942), por deixar a história de
através
lado, o autor chega ao ponto alto do
combinações fonéticas binárias que
trabalho,
possibilitam a comunicação entre os
que
diferenciação
consiste
entre
na
uma
ideias
de
conjunto simbólico, seria constituída
Ciências
para Lévi-Strauss da mesma maneira
irmãs e complementares, a primeira
que a linguagem, e o papel do
seria responsável por se dedicar aos
antropólogo seria atingir, então, o
“fenômenos
vida
nível em que são processadas essas
se
combinações, realizadas por todos os
voltaria para a dimensão inconsciente
homens em todas as sociedades.
da
Assim, é como se o historiador, que
consciente
e
social”
das
inconsciente.
conscientes
enquanto
mesma
a
da
segunda
(LÉVI-STRAUSS,
2008:38).
tem
Apanágio estruturalista
da de
visíveis
a
linguística,
dessas
combinações
de
língua (langue). Segundo o autor:
mais
Assim, tanto em etnologia como em linguística, não é a comparação que funda a generalização, e sim o contrário. Se, como cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um conteúdo, e se essas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados (como mostra tão claramente o estudo da função simbólica tal como expressa na linguagem), é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e outros costumes, contanto, evidentemente, que se
precisamente do estudo da fonética9. Para essa ciência, a linguagem é estruturada de maneira inconsciente 9
Lévi-Strauss dialoga principalmente com os trabalhos dos linguistas Roman Jakobson (1896-1982) e Ferdinand de Saussure (18571913). Segundo o próprio etnólogo, sobre Jakobson: “percebi que o que ele dizia sobre a linguagem correspondia ao que eu vislumbrava de modo confuso a respeito dos sistemas de parentesco, das regras do casamento e, de modo mais geral, da vida em sociedade” (LÉVI-STRAUSS & ERIBON, 2005: 143).
101
dimensão
como objeto e, o etnólogo, a própria
inspiração do autor em conceitos da
à
símbolos possíveis, tomasse a fala
noção de inconsciente se refere à
advindos
apenas
enquanto
consciente, isto é, aos resultados
teoria
Lévi-Strauss,
acesso
cultura,
de
e
através
A
variedade
história
etnologia
homens.
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015 avance suficientemente (2008:35).
Para
o
avanço
na
da
Depois de breve incursão sobre
análise
alguns dos dilemas disciplinares que
análise
estrutural, Lévi-Strauss afirma ser fundamental que os antropólogos tenham, portanto, a ajuda da história, pois não é possível atingir a estrutura
progressiva
reaproximação
antropologia
e
pensar
outra
uma
história,
e
a
entre iremos
dimensão
da
maiúsculo, como grande narrativa
símbolos sem levar em conta a
disciplinar feita de uma posição
diacronia. Apesar de ser inegável o
específica, o saber ocidental, e mais
lugar de preeminência da dimensão a
afastamento
refletir menos na História com H
possível fazer análise sincrônica dos
sobre
o
relação entre os saberes. Trata-se de
sem tomar o evento, como não é
inconsciente
envolveram
no uso da história como um conceito
consciente,
operatório pela antropologia, que
como determinante explicativa da
permite pensar distintos regimes de
vida social, não parece exagerado
temporalidade social10.
afirmar que a tentativa de LéviStrauss parece ser a de renovar os
Aproximaremo-nos da história
laços de amizade com a história, tão
como questão conceitual para a
desgastados
antropologia
antropologia através de um debate
(principalmente inglesa) precedente.
preciso feito na França dos anos
Embora o lugar cedido à história seja
1950: o debate racial. Sem entrarmos
de bastidor com relação à etnologia,
pela
10
A distinção entre “história como processo” e “história como narrativa” está extremamente bem desenvolvida no trabalho do antropólogo haitiano Michel-Rouph Trouillot (1995). Segundo o autor, não há como escapar da ambiguidade da história, mas é possível identificar seus aspectos complementares: trata-se de uma diferença entre os sentidos ontológico e epistemológico do termo, que envolvem uma ideia de verdade sobre o passado, por um lado, e de construção fictícia sobre ele, por outro.
ela não deixava de ter um lugar fundamental e indispensável.
Quando a história é uma questão para nós
102
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
nos meandros institucionais que a
pelos ideólogos dos regimes fascistas,
envolvem, podemos dizer que a
que recuperaram principalmente o
coleção de brochuras La question
teórico Arthur de Gobineau (1816-
raciale
moderne
1882) para embasar suas formulações
publicada pela UNESCO em 1952, da
sobre a superioridade ariana. O que a
qual faziam parte os trabalhos de
antropologia,
Lévi-Strauss e Leiris – os quais
outras ciências convocadas para o
falaremos –, é significativa desse
debate, tinha a dizer sobre essa
debate e se torna uma fonte exemplar
questão? Como ela se posicionava?11A
de observação. Tratava-se de um
hipótese que tecemos aqui é a de
empreendimento
era
que, para se contrapor à noção de
de
raça, a produção antropológica se
devant
preciso
las
cience
urgente:
combater
a
noção
perante
as
diversas
superioridade
racial
amplamente
vale do conceito de história, como
propagada
pelos
sistemas
uma espécie de arma de combate ao
nazifascistas que ganharam espaço na
etnocentrismo e à xenofobia. Se, logo
Europa e culminaram na Segunda
após
Guerra Mundial, recém terminada.
evolucionista vimos uma isenção por
De fato, o fantasma do discurso
parte da teoria etnológica em tratar a
evolucionista,
a
história, veremos agora uma nova
antropologia do século XIX, voltava a
postura: a história é trazida ao centro
angariarsolo
da
que
assombrara
político
sob
novas
roupagens. Diante
formulação
mesa
de
da
trabalho
teoria
dos
antropólogos. desse
“retorno
do
recalcado”, se é que podemos chamá-
11
As publicações foram escritas a partir de diferentes aproximações ao tema racial, “científica, educativa e psicológica, etnológica, religiosa, demográfica e histórica”, sendo a antropologia uma das várias ciências convocadas a participar (MAUREL, 2007: 119). Para mais detalhes das obras publicadas na coleção ver: MAUREL, 2007.
lo assim, cientistas de várias áreas foram chamados pela UNESCO para contribuir de modo a desconstruir a ideia de raça tal como difundida 103
a
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Leiris e Lévi-Strauss
desconstruir a ideia de raça no
estabelecido hoje em dia que as diferenças físicas hereditárias não intervém de maneira considerável como causa das diferenças de cultura observáveis entre os diversos povos; será, então, muito mais a história desses povos (sendo, para cada um deles, a soma de suas experiências sucessivas, vividas em uma certa cadeia) que deve ser, no momento, levada em consideração (1969a:57).
sentido de uma transposição simples
Aqui, o autor explicitamente
de um conceito biológico para um
coloca em campos opostos as noções
conceito
Os
de raça e história, afirmando ainda
antropólogos dirão, basicamente, que
que é para a história de outros povos
tanto não é possível determinar
que devemos voltar nossos olhares se
características de personalidade e
quisermos
cultura através de um critério racial
sobre a diferença entre eles e nós.
único quanto muito pensar raças
Contudo, não se sabe muito bem o
humanas de maneira isolada, já que
que Leiris quer dizer precisamente
toda história social é uma história de
quando
misturas e influências mútuas entre
conceitos incongruentes. Em outro
povos de origens diferentes. Se o
momento do texto, ele voltará à
conceito de raça funcionaria como
questão ressaltando que “é então
sinal diacrítico na biologia, no plano
mais pela consideração do que foi a
da antropologia ele parecia não trazer
história de diferentes povos que por
muitos ganhos explicativos e deveria
sua
ser, no mínimo, complexificado.
explica-se sua diversidade cultural”
Os textos de Lévi-Strauss e Leiris, Race et Histoire e Race et civilisation, têm como base a mesma espécie de argumentação.
Trata-se
psicológico/cultural.
de
raça
Leiris
afirma
em
Race
sugere
63,
que
compreensão
esses
geográfica
grifos
do
são
que
autor).
Novamente, o autor eleva a história à
et
condição
civilisation:
de
explicação
da
diversidade cultural, querendo dizer
Uma tal ideia não resiste ao exame dos fatos e podemos ter por algo
com isso que não se pode julgar uma 104
uma
consideração
(idem:
Nessa direção, sobre a ideia de
ter
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
cultura como superior ou inferior a
pelo termo. A história aparece como
depender
no
uma espécie de substituta fácil para o
globo. Seu discurso certamente está
cargo ocupado antes pela causalidade
combatendo
determinismo
biofísica. Leiris, em tom relativista,
geográfico - isto é, a ideia de que o
conclui que não há como julgar
desenvolvimento de um grupo social
inferioridade
depende de condições climáticas,
culturais, pois, em última instância,
morfológicas e geográficas favoráveis
somos
- que, bem como o determinismo
diferença;
biológico,
das
diferentes, temos um passado que
teorias racistas. Se, num primeiro
difere entre si e, por isso, somos
momento, a oposição a que está a
todos capazes de proezas técnicas e
cargo da noção de história se dá em
intelectuais. O nosso olhar sobre os
relação
biológicas,
outros está, então, sempre informado
agora, são as condições físicas que se
por nossa própria cultura, que é
interpõem de maneira insuficiente
resultado de nossa história.
de
sua
localização
o
embasou
às
condições
muitas
para a explicação da diversidade
e
todos
superioridade
iguais
em
construímos
nossa
histórias
Apesar de seguir a mesma toada
humana.
do texto de Leiris, inventariando as
Contudo,
nos
contribuições de diferentes culturas
perguntar: que história é essa, tão
para a humanidade e invertendo a
mencionada por Leiris, capaz de se
posição de superioridade ocidental
opor a tantas outras explicações
construída pelo pensamento racista,
referentes à variedade cultural? Se é
Race et Histoire de Lévi-Strauss,
verdade que o autor aponta a história
parece adicionar certa complexidade
ao longo de todo o seu texto para se
ao
contrapor
diferentemente de Leiris, o autor
à
devemos
constituição
cultural
debate.
através da raça, é também verdade
dialoga
que ele não esmiúça o que entende
introduzindo 105
com
Isso
o
problema uma
porque,
racial questão
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
fundamental: a de pensarmos em
vez em Race et Histoire 12 . Sujeita a
diferentes maneiras de construir a
todo tipo de mal-entendido, como
história. Não que a questão do tempo
comenta
não seja abordada por Leiris, mas, de
(1983), essa distinção visava naquele
fato, em seu texto não vemos uma
momento a advogar pelo fato de que
reflexão tão detida sobre o que
muitas são as maneiras dos homens
significa a própria ideia de história,
de lidar com o próprio tempo e, mais
quando em Lévi-Strauss essa é uma
que isso, de narrá-lo. Essa distinção é
questão que já se mostra importante
também dinâmica, na medida em que
desde o título do trabalho. O que o
enxergar o movimento do tempo
autor nos mostra é que só se pode
depende do lugar de onde se olha
falar em avanço e atraso social, tal
para
como fizeram os evolucionistas e
Segundo o autor trata-se, em última
repetiram os ideólogos nazifascistas,
instância,
se se concebe um único sentido para
perspectivas:
a história. É nessa chave que ele
progresso: será que há apenas uma direção
para
avançar
no
tempo? A tão conhecida distinção entre progressivas
sociedades cumulativas,
e
estacionárias,
ou
Lévi-Strauss
historicidade
de
uma
do
outro.
diferença
de
que
12
Os termos “sociedades frias” e “sociedades quentes” foram introduzidos por LéviStrauss em 1961 nas entrevistas concedidas à Radio Francesa para Georges Charbonnier (GOLDMAN, 1999). 13 Para ver mais desdobramentos sobre a distinção de Lévi-Strauss consultar: GOLDMAN, 1999 e SCHWARCZ, 2005.
depois seria popularizada também pelos termos sociedades quentes e sociedades frias, é feita pela primeira
106
próprio
A historicidade ou, mais precisamente, a factualidade, de uma cultura ou de um processo cultural é assim função, não das suas propriedades intrínsecas, mas da situação em que nos encontramos em relação à ela, do número e da diversidade dos nossos interesses nela apostados. A oposição entre culturas progressivas e culturas inertes parece assim resultar, primeiro, de uma diferença de localização (1973: 34, grifos do autor)13.
reflete também sobre a ideia de
única
a
o
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Assim, fica claro que, com o adjetivo
temporalidade;
“estacionária”,
não
historiador, não estamos falando de
queria dizer que existiam sociedades
uma só “essência”, mas de “soluções
sem
diferentes” para o mesmo problema,
Lévi-Strauss
história
imobilizadas
ou
no
sociedades
tempo.
Como
(LEFORT,1979a:54-56).
seu segundo texto intitulado Histoire Ethnologie
(1983):
“todas
Assim,
as
diferentes
sociedades são históricas da mesma
questão:
maneira, mas algumas o admitem francamente
enquanto
outras
alguns
mesma
Lefort
parece
assinalar
“primitivas”.
Ele
ocidentais
ou
quer,
14
distintas
Como
diria
nem
as
sociedades
nem
as
sociedades
possuem
múltiplas
A sugestão de Leach refere-se, na verdade, à ideia de que existem duas maneiras de lidar com o tempo em todas as sociedades, maneiras estas que são “derivações de duas experiências básicas”: a experiência de que “certos fenômenos da natureza se repetem” e a experiência de que “as mudanças da vida são irreversíveis” (LEACH, 1974: 193). Segundo o autor, vivemos essas duas formas de temporalidade e é “nossa visão moderna e sofisticada” que “tende a jogar ênfase no segundo destes aspectos do tempo” (idem). Leach chama a atenção, assim como Lévi-Strauss e Lefort, para a existência de variabilidade da percepção de tempo na experiência social, em contraposição à uma única versão oficial de historicidade dada por uma determinada sociedade.
pelo
contrário, destacar a diferença na relação dos grupos sociais com a 107
é
usá-los de maneira a sugerir ausência
não
sociedade.
sociedades
um de seus polos, Lefort não parece
sociedades
que
cíclico e repetitivo14. É certo que as
em Race et Histoire, a imobilidade de
das
em
“primitivas” têm apenas o tempo
dos termos também invocarem, como
parte
de
concebermos
pensam,
de “sociedades estagnantes”. Apesar
por
o
aqui
ocidentais são tão lineares como se
a
distinguindo “sociedades históricas”
historicidade
primeiro,
momento,
mesma preocupação do antropólogo,
de
estão
pontos
Edmund Leach (1910-1989) em outro
aspectos
como vimos anteriormente, nesse ponto
dois
formas de lidar com o tempo em uma
(1983:1218). Apesar de discordar de em
são
que
possível
o
recusam ou preferem o ignorar”
Lévi-Strauss
o
no caso, o da passagem do tempo
comenta de forma bastante clara em
et
segundo
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
temporalidades, contudo - e isso diz
ocidentais frequentemente não se
respeito ao segundo ponto -, elas
veem dessa maneira, isto é, não
elegem uma das formas possíveis
ressaltam
para refletirem sobre si mesmas, isto
existência. É ocidental a narrativa
é,
formas
que salienta os saltos técnicos como
História. Assim, a narrativa que uma
significativos da passagem do tempo
sociedade faz de si mesma com
e dá a ela o nome de História, o que
relação ao tempo corresponde a
não quer dizer que outras sociedades
apenas uma de suas possibilidades de
não tenham dado tais saltos.
tornam
uma
dessas
experimentá-lo.
esse
Nesse
Diante disso, não parece tão
que
aspecto
sentido,
sua
acreditamos
Lévi-Strauss
concordaria
estranha a afirmativa de Lévi-Strauss
também
feita em outro ponto do texto em
desenvolvido
questão,
as
Reinhart Koselleck (2006), quando
sociedades podem ser, e são, em
este afirma que a História como
última instância, cumulativas. De
conceito
acordo com ele “a diferença não é,
fórmula indissociável da experiência
pois, entre história cumulativa e não
moderna, é somente a partir dela que
cumulativa;
é
se pode conceber uma história “em si
cumulativa, com diferenças de graus”
e para si”. O problema estaria, então,
(1973:53). Se todos os agrupamentos
na imputação do conceito para outras
humanos contribuíram e contribuem
realidades,
para o que ele chama de um
deformação: a visão de que, diante da
progresso
marcha
que
diz
toda
da
que
todas
história
humanidade,
esse
com
de
o
argumento
pelo
historiador
independente
o
que
ocidental
é
causaria
de
uma
uma
progresso,
progresso, contudo, não tem uma
outras sociedades estariam atrasadas.
única direção, mas múltiplas. Apesar
Como
de
e
francês, ver a historicidade do outro
não
requer um deslocamento do ponto
poderem
progressivas,
ser as
cumulativas sociedades
108
comenta
o
antropólogo
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
de vista daquele que olha, pois se de
dinâmica constante de assimilação e
um
diferenciação,
determinado
lugar
uma
esse
sociedade parece estacionária, “isso
interminável
não quer dizer que, sob outro ponto
diferença ressaltado por ele em todo
de vista, ela não seja sede de
o texto.
importantes transformações” (1973:
O
54).
entre
movimento identidade
importante
para
e
Lévi-
Strauss é, assim, menos os pólos da distinção que faz em Race et Histoire
Assim, apesar de falar em pontos de vista pela qual passa a
(sociedades
historicidade alheia, acreditamos que
cumulativas) e mais a distinção em si,
Lévi-Strauss segue tendo sobre essa
enquanto
questão
menos
importante
parece
relativista (e culturalista) que a de
substância
bipartida
Leiris: se o segundo concebe que
história/cultura pela qual se pode
existem tantas histórias quanto há
compreender
culturas, o primeiro parece dar mais
Novamente, é o próprio Lévi-Strauss
ênfase às distintas maneiras de narrar
quem
a história, apostando na unidade do
distinguir
processo
da
apenas, com um objetivo heurístico,
colaboração entre as alteridades de
dois estados que, para parafrasear
que fala o tempo todo Lévi-Strauss.
Rousseau
Há
uma
existiram, não existirão jamais e que
“civilização mundial”, para a qual
é, portanto, necessário ter deles
todas as culturas deixam um legado e
noções precisas’” (1983: 1218). Assim,
a única forma de tentar compreender
se é verdade que Leiris e Lévi-
essa
podemos
Strauss tinham um mesmo objetivo
chamar também de humanidade)
com suas publicações paralelas, o de
passa por estarmos atentos à sua
desconstrução
para
uma
postura
social:
ele,
totalidade
afinal,
no
(a
é
limite,
que
109
estacionárias
que,
para
a
salienta:
categorias
do
Leiris, ser
o essa
nomeada
alteridade.
“eu
‘não
e
não
queria
reais,
existem,
racismo,
mas
não
as
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
maneiras pelas quais erigem seus
colonizadora
argumentos
nítidas
(1969b:88). Em Race e civilisation, a
diferenças de fundo filosófico: se o
história ganha também esse sentido
primeiro flerta com a fenomenologia,
de combate à exploração colonial,
o segundo tende ao humanismo
apesar de não entrar muito a fundo
racionalista15.
em seus sentidos, Leiris a toma como
deixam
ver
Leiris
um
sentido
ocidental com relação às sociedades colonizadas se dá não apenas por um
reivindicação política. Ao descrever o
problema
papel do antropólogo diante das
cultural,
populações coloniais com as quais
devant
relativo mas
à
diferença
também
por
um
problema relativo às relações de
toma contato, em outro texto da L’ethnographe
pertencem”
É ele quem diz que a incompreensão
mais
concreto, é instrumento direto de
época,
que
motor de transformação da realidade.
Não por acaso, a história tem para
a
poder
le
em
jogo
entre
essas
sociedades, há aqui um nexo de
colonialisme (1950), esse ponto fica
sujeição e exploração da qual não se
claro: é com a colonização que Leiris
pode fugir.
estabelece interlocução e é contra ela sua luta. Ele dirá que antropólogos
Embora Race et histoire tenha
são para os povos colonizados com as
sido fundamental como plataforma
quais
“advogados
de combate ao colonialismo após ser
a
escrito, e isso muito em função da
naturais
têm
contato perante
nação
prestigiosa
15
Como já ressaltado na nota 7, é conhecida a querela entre Lévi-Strauss e Sartre, de quem, não por acaso, Leiris fora colaborador na revista Les temps modèrnes entre os anos 1940 e 1970. Também se sabe do envolvimento conjunto de Leiris e Sartre com o movimento da negritude, plataforma artístico-política liderada por artistas negros de origem africana e caribenha residentes em Paris. Para mais detalhes ver: FRIOUXSALGAS, 2009.
de
Lévi-
Strauss, no corpo do texto o autor não chega a mencionar diretamente o tema16. Como dito, apesar de ambos 16
Race et Histoire foi a obra mais popular da então coleção da UNESCO que citamos. Alfred Métraux, que estava a cargo do departamento de relações raciais da
110
reputação
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
os textos terem um caráter político-
tom de manifesto político. Nesse
institucional, afinal, faziam parte da
sentido vê-se, em seu trabalho, mais
plataforma de ação de um organismo
uma das facetas de sentido que a
internacional, o trabalho de Leiris
história ganha quando trazida como
certamente deixa mais explícito seu
conceito antropológico: ela é também
um recurso eficaz à exigência política
instituição, teria dado atenção especial à ela, observando em correspondência interna que: “A publicação desse novo título constitui um evento importante, não somente do ponto de vista do acervo da nossa coleção A questão racial, mas também do interesse que o nome de Lévi-Strauss tem em meio ao publico” (MÉTRAUX apud MAUREL, 2007: 119).
vinculada à descolonização e matéria potente de crítica à modernidade ocidental.
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Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
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112
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Estudos sobre morbidade e mortalidade populacional no Brasil do século XIX: limites e possibilidades Studies on Population Morbidity and Mortality in Nineteenth-Century Brazil: Limits and possibilities Daniel Oliveira 1 Resumo A análise da mortalidade e morbidade, sob perspectiva da história social, é empregada na historiografia como recurso para examinar questões específicas em torno das condições sociais de vida e morte de diversos grupos populacionais. Estas condições consideram diversos fatores: socioeconômicos, culturais, políticos, morais, entre outros, que permearam a vida dos indivíduos e grupos. Com este panorama, analisaremos como a historiografia nacional recente, fazendo uso do arcabouço teórico e metodológico ligado à história social e demografia, está trabalhando o tema para o contexto brasileiro do século XIX. Destacaremos as principais contribuições suscitadas pelos autores nas suas pesquisas, seus avanços e, de forma preliminar, procuraremos esboçar oportunidades de progressões para o exame da problemática.
Palavras chave: mortalidade; história social; século XIX; historiografia; Brasil.
Abstract The analysis of mortality and morbidity in the perspective of social history is employed in historiography as a resource to examine specific questions about the social conditions of life and death in various population groups. These conditions consider several factors: socio-economic, cultural, political, moral, among others, that influenced the lives of individuals and groups. With this background, we are going to analyze how recent national historiography, making use of the theoretical and methodological framework linked to social and demographic history, is approaching this subject in the Brazilian context of the nineteenth-century. We highlight the main contributions raised by the authors in their research, their advancements and, in a preliminary way, we outline opportunities to advance further in the study of this issue. Keywords: mortality; social history; XIX century; historiography; Brazil.
1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul -‐ UFRGS.
113
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
como,
Introdução A
análise
da
mortalidade,
perspectiva
da
história
sobre
os
temas
explorados.
sob
social,
teorias
é
No
Brasil,
analisando
empregada na historiografia como
principalmente
recurso
questões
escravizados, mas não se limitando a
específicas em torno das condições
este grupo populacional2, os estudos
sociais de vida e morte de diversos
sobre mortalidade desenvolveram-se
grupos
Estas
de forma acentuada a partir da
diversos
para
condições
examinar
populacionais. consideram
história: ensaios de teologia e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 2 Destaca-‐se que são vários os estudos que trataram sobre mortalidade no século XIX, alguns detendo-‐se especialmente sobre ela, outros utilizando-‐a pontualmente, como um recurso dentre outros, para análise de determinado problema. Assim como, apesar de predominarem, entre os estudos de maior vulto, os escravos como indivíduos, outros grupos sociais também foram investigados, e ainda, grupos por faixa etária, tal como as inúmeras pesquisas que se ocuparam da mortalidade infantil. Também deve-‐se mencionar os estudos que se detiveram mais em causas de morte do que em grupos sociais. Alguns exemplos (no artigo de Marcílio podem ser identificados diversos estudos que, mesmo não se detendo sobre a mortalidade, a exploraram de forma pontual): BARRETO, Maria Renilda Nery. Entre brancos e mestiços: o quotidiano do Hospital São Cristóvão na Bahia oitocentista. In: MONTEIRO, Yara Nogueira (org.). História da saúde: olhares e veredas. Instituto de Saúde, 2010. BASSANEZI, Maria Silvia Beozzo. Imigração e mortalidade na terra da Garoa. São Paulo, final do século XIX e primeiras décadas do século XX. XIX. Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, São Pedro/SP. 2014. MARCILIO, Maria. Luiza. A demografia histórica brasileira nesse final de milênio. REBEP -‐ Revista Brasileira de Estudos de População. V. 14, n. 1/2 (1997). SANTOS, Cândido dos. Nota sobre a mortalidade infantil nos séculos XVIII e XIX. Humanidades, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 2, Abril de 1982, p. 47-‐[75].
fatores socioeconômicos, culturais, políticos, morais, entre outros, que permearam a vida dos indivíduos e contextos.
As
pesquisas
sobre
mortalidade inserem-se no campo historiográfico
conhecido
como
história da saúde e das doenças1 que, ao
longo
das
últimas
décadas,
consolida-se dentro da historiografia nacional, construindo métodos de análise específicos sobre fontes, bem
1 No entanto, nem todos os trabalhos deste campo inserem-‐se nas perspectivas teóricas da história social. Muitos estudos são conduzidos sob análises pós-‐estruturalistas, mais precisamente, inspiradas nos estudos de Michel Foucault. Conforme Hebe Castro, o pós-‐ estruturalismo significaria: “um rompimento radical tanto com a presunção da existência de estruturas sociais quanto com a ênfase no vivido e na experiência, que classicamente definiam o campo da história social”. CASTRO, Hebe. História Social. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
114
indivíduos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
década de 1970 de forma interligada
Em relação às fontes utilizadas
à história social e à demografia. Esta
para o exame da mortalidade no
última,
métodos
decorrer do século XIX no Brasil,
seriais, quantitativos e estatísticos, foi
destacam-se os registros paroquiais
considerada por muitos historiadores
produzidos pela Igreja Católica e,
sociais pós-década de 1970 3 como
também,
uma ciência dura, que pouco poderia
realizados pelas Santas Casas de
auxiliar na apreensão da complexa
Misericórdias do Brasil. As Santas
realidade
ou
Casas, em muitas grandes cidades do
suas
país, eram as administradoras dos
relações. Em outras palavras, tal
cemitérios municipais, estabelecidos
abordagem
não
a partir das reformas cemiteriais da
dariam conta da face humana que
metade do século XIX 5 . Destaca-se
constitui tais relações, tão cara para a
que, no caso de Porto Alegre, a Santa
grupos
permeada
social
por
dos
agentes
populacionais
história
e
seus
4
social
em
métodos
.
Atualmente,
Casa
os
de
registros
de
Misericórdia
e
óbitos
o
seu
pesquisadores ligados às abordagens
cemitério, para além de concentrar
recentes da história social e ao seu
todos
aparato teórico e metodológico, ao
ocorridos na cidade a partir de 1850,
trabalharem a mortalidade, voltaram
também reproduziria em seus livros
a fazer uso de técnicas e conceitos
de
criados
realizados pelas paróquias da cidade.
pela
oportunizando
o
demografia, refinamento
enterramentos
óbitos,
de
Com
análises e a criação de novas teorias e
reflexão
metodologias acerca dos problemas
suscitadas
estudados.
todos
este
parte por
desenvolvimento
os
5 REIS,
legais
registros
panorama, de
pesquisa que
esta
inquietações
explora
3 PRADO JR, Caio. História quantitativa e método da historiografia. São Paulo, Debate e Crítica (6), jul. 1975. 4 CASTRO, Hebe. Op. cit. p. 49-‐50.
em as
João José. A morte e uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 357 p.
115
os
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
condições
de
da
Objetiva-se assim, por meio de
população de Porto Alegre e a
revisão de literatura recente7 sobre o
estrutura social daquela cidade, no
tema, analisar como estas questões
último quarto do século XIX, tendo
podem
como base documental principal,
historiografia nacional e como se
registros de óbitos6. As inquietações
relacionam ao arcabouço teórico e
advindas do uso desta fonte e da
metodológico ligado à história social
pesquisa empreendida se formulam a
e
partir de alguns questionamentos: até
principais contribuições suscitadas
que ponto a análise da mortalidade
pelos autores e suas pesquisas, seus
pode nos dizer algo sobre as reais
avanços e, ainda, mesmo que de
condições de morte e vida dos
forma
indivíduos analisados e suas relações
oportunidades de progressões para o
com o todo social em que estão
exame da problemática.
incluídos?
E
mortalidade
ainda,
sobre
o
entendidas
conceito,
tendo
como
como ponto
os
limites
e
também
considerando
as
esboçar
suscintamente
sobre
a
história social, a demografia e os estudos de mortalidade; a segunda,
as
abarcando estudos atuais e pioneiros do campo, procura observar como os
a
pontos
metodologia a ser aplicada?
de
reflexão
trazidos
são
Escolhidos pela afinidade de diálogo que estabelecem com as questões propostas por este artigo. 8 A demografia, nesta concepção, é observada como interligada à história social (não ciências separadas), como será identificado na exploração sobre a relação entre a história social e mortalidade. 7
Livros de Óbitos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (SCMPA). Centro Histórico-‐Cultural Santa Casa (CHC) de Porto Alegre. 6
116
destacando
interface que se estabelece entre a
possibilidades oferecidas por estas fontes,
,
preliminar,
discorre
de
seu contexto histórico de construção? são
8
na
divide em três partes: a primeira,
um
partida os seus registros, dentro do
Quais
demografia
observadas
Com este horizonte, o texto se
conhecimento das causas de morte e doenças,
ser
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
tratados;
a
terceira,
analisa
as
factual e política historicista alemã,
principais contribuições e indagações
centrada
observadas
acontecimentos 11 , propondo: “uma
buscando
nos o
estudos
tratados,
aprofundamento
do
nos
grandes
história problema, viabilizada pela
exame da mortalidade.
abertura da disciplina às temáticas e métodos
das
demais
Ciências
Humanas, num constante processo História
social,
demografia
de
e
uma
definição
de
objetos
aperfeiçoamento metodológico”
estudos sobre mortalidade Buscar
alargamento
sobre
e 12
.
Dentre estas ciências, destacam-se a
o
Sociologia e a Antropologia13.
significado de história social não é
Além disso, a história social
tarefa fácil, sendo difícil identificar pontualmente a sua origem como
evocava
forma de se analisar e escrever a
passado, sendo mais analítica do que
história9. Sua gênese estaria ligada ao
narrativa e mais temática do que
movimento dos Annales10, formando-
cronológica
se em contraposição à historiografia
interdisciplinaridade,
principais
9 De acordo com o objetivo proposto, a gênese
14
face
.
humana
Marcada as
do
pela suas
características
constituidoras seriam estabelecidas
da história social será realizada de forma resumida. Para informações pormenorizadas sobre o surgimento da história social, seu desenvolvimento e relacionamento com os Annales, consultar as obras de alguns dos autores aqui debatidos: BURKE, Peter. O surgimento da história Social. São Paulo: UNESP, 2002. CASTRO, Hebe. Op. cit. HOBSBAWM, Eric. J. Da história social à história da sociedade. In. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 10 Fundado por Marc Bloch e Lucien Febvre (1929). No entanto, pode-‐se considerar que tal postura historiográfica teria surgido anteriormente, na década de 1890, identificada em estudo realizado pelo historiador norte-‐ americano Frederik Jackson Turner. Ver: BURKE, Peter. Op. Cit. p. 29.
pela criação de novos problemas de pesquisa,
métodos
e
novas
11 CASANOVA,
Julían. La historia social y los historiadores. Barcelona: Crítica, 1997. p. 39. 12 CASTRO, Hebe. Op. cit. p. 45. 13 Fernand Braudel, um dos principais historiadores dos Annales, chegaria a propor a união entre a História e Sociologia. Entre os sociólogos que influenciaram profundamente a história social, destacam-‐se: Max Weber, Émile Durkheim e François Simiand. Na Antropologia, destacam-‐se Clifford Gertz e Claude Lévi-‐ Strauss. Sobre as origens destas relações, consultar: CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 20-‐24.
117
uma
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
abordagens, tendo como cerne de
como campo específico de estudos,
análise o homem em sociedade,
observada e tomada como uma nova
independentemente de sua posição15.
postura historiográfica, passando a se
No entanto, em seu início, esta
tornar
proposta desenvolvia-se priorizando
historiadores18. Até então, conforme
os
Hobsbawm: “Nem o tema em si nem
fenômenos
coletivos
sobre
o
hegemônica
indivíduo, privilegiando a análise das
a
estruturas
conheceram
sociais,
sob
olhar
discussão
entre
os
de
seus
problemas
um
desenvolvimento
socioeconômico 16 . No que toca à
efetivo”19. Estes anos também foram
demografia e à história quantitativa,
marcados pelo ápice das abordagens
já
anos
estruturalistas, assim como pelo uso
iniciais por meio de registros de
vasto da quantificação, observando
nascimentos, matrimônios e mortes,
que a utilização deste método estaria
Casanova indica que historiadores
ligada à euforia ocasionada pelos
dos Annales ligados aquela ciência e
primeiros avanços da informática e às
método
importantes
facilidades que esta nova ciência
estudo
da
oportunizava para a pesquisa de
sociedade e do fato social como
dados quantitativos, principalmente,
objetos de pesquisa17.
demográficos e econômicos20.
empreendidas
naqueles
forneceriam
contribuições
para
o
Seria somente a partir de 1950, principalmente historiadores
por marxistas
meio
Entre os anos de 1960 e 70
de
ocorreria
a
sofisticação
destes
métodos e o aumento do número de
britânicos,
que a história social se estabeleceria
pesquisas
14 CASTRO, Hebe. Op. cit. p. 39.
17 CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 96.
15 Idem.
18 Momento
caráter.
Neste
em que a historiografia marxista liberou-‐se de enfoques limitados que haviam orientado a história política e ideológica do movimento operário. CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 96. 19 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p. 85. 20 CASTRO, Hebe. Op. cit. p.47-‐48.
Seria a partir da economia que se esclareceria a estrutura da sociedade e suas mudanças, e ainda, se dariam as relações entre os grupos sociais. A economia estabelecia-‐se como o fundamento central da sociedade. HOBSBAWM, Eric. J. Op. Cit. 16
118
deste
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
momento,
entre
os
historiadores
naqueles anos, criar-se-ia um campo
cresce o interesse por documentos
específico
seriais, em meio a eles, os registros
como “demografia histórica” 22 , que
de óbitos. O enfoque predominante
incentivou
nestas
o
poucos
a
populacional.
pesquisas
socioeconômico,
ainda
era
enfatizando
análise sobre as estruturas sociais,
a
sobre
que
mortalidade
de
que
“os
definitivamente não se conformavam
. No
a
historiografia
ficar
confinados
a
modelos
preestabelecidos”24, a própria ênfase
brasileira seria marcada por muitas
dos estudos dentro da história social
destas concepções e características e,
Demografia histórica: campo de estudos iniciado no Brasil por Maria Luiza Marcílio em 1968, com a pesquisa intitulada La ville de São Paulo. Peuplement et population. 1750-‐1850. Marcílio, que estudou por muitos anos na França, foi profundamente influenciada por demógrafos franceses. No Brasil, foi lançada com o nome A cidade de São Paulo, povoamento e população: 1750-‐1850. MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo, povoamento e população: 1750-‐1850. São Paulo, Pioneira, 1974. Entre outros pesquisadores importantes do campo, naquele período, encontra-‐se Iraci del Nero da Costa. 23 Os campos privilegiados pela demografia histórica naquele período foram a “nupcialidade, família, concubinato e infância” e “estruturas e dinâmicas populacionais da população livre e escrava”, dedicando pouco espaço para a análise da morbidade e mortalidade das populações analisadas. MARCILIO, Maria. Luiza. A demografia histórica brasileira nesse final de milênio. REBEP -‐ Revista Brasileira de Estudos de População. V. 14, n. ½, 1997. 24 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 50. 22
21 Trata-‐se de concepções sobre a relação ente
indivíduo, grupos de indivíduos, cultura, política, economia, mentalidade e a conformação da sociedade. Existe uma extensa discussão sobre esta relação, oportunizada pela história social, ao longo de sua existência. Atualmente, pode-‐se entender estrutura, dentro da história social, como conceito: “a palavra estrutura designa simultaneamente um conjunto, as partes de um conjunto e as relações dessas partes entre si”. Deste modo, “são construídas pelos homens e, como tal, surgem, transformam e, quando perdem sua diferenciação, desembocam em outras, como acontece com todos os modos de organização que emergem nas sociedades humanas, decorrentes de suas práticas, decisões etc.”. Neste sentido, as estruturas são produtos de relações sociais, humanas. PETERSEN, Silvia e LOVATO, Bárbara. Ciência moderna e conhecimento histórico. In: Introdução ao estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: Edição das autoras/Gráfica das UFRGS, 2013. P. 249-‐250.
119
,
ainda
comportamentos e realidades sociais
indivíduo encontrar-se-ia ainda um
período,
23
consciência
para o enfoque da ação humana. O
mesmo
estudos,
intitulado
com a crise dos estruturalismos e a
de longa duração, sem muito espaço
21
estudos,
A partir da década de 1970,
utilizando-se de um tempo histórico
tanto preso às estruturas
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
se modificou. Momento este em que
enfatizados pela historiografia social28
os historiadores sociais, criando ou
e, mais que isso, indivíduo, espaço,
utilizando
tempo e estrutura passariam a ser
conceitos,
hipóteses,
técnicas
algumas
emprestados
de
e
vezes
29
.
ciências,
Outra marca das pesquisas recentes
passaram a direcionar os seus olhares
da história social seria a redução da
– na análise de novos ou antigos
escala de abordagem nas análises30. É
problemas
neste cenário que a história social se
-
movimentos
outras
problematizados nas pesquisas
para e
as
estruturas,
processos
que
desenvolve na atualidade e que o estatística
caráter
população25, também privilegiando a
demografia passa a ser repensado,
ação humana, seu comportamento e
assim como o uso das suas fontes -
experiência
26
,
em
conjunturas
da
dureza
envolvem a sociedade, economia e
da
para o que aqui nos interessa, os
específicas: "Esta postura leva o
registros
historiador a privilegiar durações
trabalhadas de forma conceitual, em
curtas, em relação às abordagens
conjunto
econômicas, demográficas ou das
qualitativas.
mentalidades,
sem
que
estas
as
abordagens socioculturais sobre os enfoques socioeconômicos até então 25 CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 38. 26 E de acordo com Burke, esta seria uma das
pretensões de Braudel ao propor a união entre história e sociologia. BURKE, Peter. Op. Cit. p. 31. 27 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 49.
120
de
-
ao
outras
serem
fontes
Para uma análise conceitual sobre estas dimensões, ver: PETERSEN, Silvia e LOVATO, Bárbara. Op. Cit. p. 230-‐265. 30 Abordagem denominada como micro-‐ história. A micro-‐história foi oportunizada por um grupo de historiadores italianos, entre eles, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Objetiva a reconstituição de trajetórias individuais, observando e analisando o comportamento humano em seu meio social, cultural, econômico etc. específico. Trata-‐se de uma redução de escala de abordagem sobre determinado problema, representando “um ponto de partida para um movimento mais amplo em direção à generalização”. CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 53. Ver também: LEVI, Giovanni. Sobre a micro-‐história. In BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. 133-‐161. 29
de referência”27. assim,
óbitos
28 Ibidem. p. 50.
deixassem de compor-lhes um campo
Cresceriam,
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
cabe
Finalizando esta explanação,
Karasch - A Vida dos Escravos no Rio
trazer
de
história
o
social
entendimento tomado
por
de esta
Janeiro
produzidas
(1808-1850) na
34
década
,
ambas
de
1970,
reflexão. Tal como indicado por
conformam-se como os principais
Julían Casanova, diferentemente de
referenciais teóricos e metodológicos
uma
sobre
especialidade
acadêmica
ou
historiográfica, a história social se
mortalidade
Iraci
análise que deveria estar presente em
do
del
Nero
da
Costa,
conhecido por seus trabalhos ligados
qualquer forma de problematizar o
à
passado31, tendo em vista que o seu
demografia
histórica,
sob
abordagem metodológica estatístico-
objeto, o ser humano em sociedade,
descritiva,
dado a sua complexidade, não pode
analisou
as
principais
causas de morte entre os segmentos
ser analisado de forma isolada sob
populacionais
qualquer aspecto32.
de
Vila
Rica:
os
escravos, forros e livres. Procurou determinar
possíveis
estariam relacionadas à mortalidade
sobre mortalidade no século XIX
daquelas populações. Costa indicou
As pesquisas de Iraci Del Nero da
que
Costa - Vila Rica: mortalidade e
epidêmicas
33
as
condicionantes socioeconômicas que
O passado e o presente nos estudos
a
ocorrência e
de
mortalidade
doenças estaria
associada à decadência econômica de
e de Mary
Vila Rica35. Outros aspectos em torno
31 CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 47-‐8.
das populações estudadas (culturais,
32 Ibidem. p. 40-‐1. E neste ponto inclui-‐se para
a análise, também como resultado do desenvolvimento da história social, os conceitos de sujeito, estrutura, tempo e espaço. 33 COSTA, Iraci del Nero da. Vila Rica: mortalidade e morbidade (1799-1801). In: BUESCU, M. & PELÁES, C. M. (coord.). A moderna história econômica. Rio de Janeiro, APEC, 1976. p. 115-127.
políticos etc.) e análises conceituais 34
Resultado de pesquisa de doutorado finalizada em 1972. KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Cia das Letras, 2000.
121
Brasil
século XIX.
constitui como uma dimensão de
morbidade (1799-1801)
no
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
sobre
as
informações
fonte
ainda, aos diversos grupos sociais,
utilizada, incluindo as doenças e
econômicos, étnicos etc. existentes
causas
em
de
morte,
da
não
foram
consideradas pelo autor. Observa-se,
histórica
naquele
período
Mary
realizados no
e
outros
empreendeu
escravos urbanos no Rio de Janeiro.
das estruturas socioeconômicas.
este
Karasch
esferas do cotidiano de vida dos
abordagem direcionada para o exame
enfoque,
e
minucioso estudo sobre diferentes
Brasil,
Independentemente
localidade
contexto.
assim como em outros estudos da demografia
determinada
Nesta deste
pesquisa,
realizou
análise
específica sobre a mortalidade dos
estudos
escravos,
preocupando-se
em
realizados por Costa36 são de extrema
resgatar aspectos que indicassem as
relevância por fornecerem noções
possibilidades sociais e econômicas
metodológicas de trabalho sobre os
em vida – tomadas como condições
dados
por
de vida - daquela população. Utilizou
demonstrar a importância de que as
como fonte registros de óbitos da
informações contidas nos registros
Santa Casa de Misericórdia do Rio de
sobre
Janeiro,
de
óbitos
e,
ainda,
determinado
populacional,
grupo
devem
ser
analisando
de
forma
interligada doenças, causas de morte,
consideradas em relação aos demais
etnicidade,
dados
estudada
liberdade e trabalho dos indivíduos.
populacional,
Identificou que as atividades de
demográfico,
trabalho desenvolvidas, os alimentos,
coeficientes de mortalidade etc), e
o local de moradia, os castigos
impostos
COSTA, Iraci del Nero. Vila Rica: população (1719-1826). Ensaios Econômicos, 1. São Paulo, IPE-USP, 1979. ______. Populações mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos
outros
da
(nascimentos, crescimento
população total
35 COSTA, Iraci del Nero da. Op. cit. p. 125. 36
pelos fatores,
condição
senhores, impactavam
de
entre de
mineiros no alvorecer do século XIX. São Paulo, IPE-USP, 1981. 335 p.
122
idade,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
maneira decisiva sobre a mortalidade
sobre
da população escrava urbana do Rio
pesquisados37. Observa-se assim, uma
de Janeiro.
estreita relação de diálogo entre a
Tornou-se campo
não
referência somente
da
e
doenças.
temas
história
social
e
as
suas
abordagens, que se desenvolviam e se modificavam naquelas décadas.
metodologias de classificação das morte
e
o arcabouço teórico e metodológico
pela
mas também pela elaboração de
de
problema
pesquisa empreendida por Karasch e
no
profundidade analítica sobre o tema,
causas
o
A
Certamente, oportunizou
perpassa
estatístico-
condicionantes socioeconômicas que
descritiva das causas de morte. Os
envolviam as doenças dos escravos.
dados são explorados sob diversas
No entanto, nota-se que a análise
esferas: social, cultural e econômica,
empregada pela autora sobre os
procurando trazer não somente a
dados de mortalidade também foi
visão da medicina ou dos senhores
fortemente
conduzida
de escravos do período, mas também,
abordagem
estatístico-descritiva,
a da população escrava.
comum nos estudos relacionados à
análise
das
pela
demografia histórica, quanto tratam
Tal como a autora descreve no
do tema38. Ligado a esta abordagem,
prefácio da edição brasileira de 2000,
observa-se que não foram realizadas
a primeira versão da pesquisa (1972)
problematizações sobre as descrições
não trazia toda a complexidade acima
das doenças e causas de morte
resumida. A construção da “versão
encontradas na fonte e os seus reais
completa” da pesquisa, se daria
imersa aos debates intelectuais das
37 KARASCH, Mary. Op. cit. p. II. 38 A
autora realizou a análise sobre diversas tabelas que expunham os dados trabalhados sob forma quantificada.
décadas de 1960, 70 e 80, marcada definitivamente por olhar cultural 123
além
olhar
pesquisa é marcada por interesse que a
ir
tal
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
significados dentro daquele contexto
Staudt
específico39.
sociedade escravista porto alegrense
Estudos
recentes
aprofundando
de saúde e morte dos escravos,
a
aprimorando
e
de
das
trabalho,
41
, tendo como
fonte
os
registros
paroquiais de óbitos42 . os
senhores
No
exigindo dos escravos mais do que
cativos
decorrer
interrogou-se
podem, cometem homicídio”: vida e
fragilidades
nos
do
sobre encontradas
texto diversas naquela
fonte, sendo a mais importante, de
oitocentos através dos registros de óbito
acordo com o objetivo aqui proposto,
(Porto Alegre/RS) 40 , Paulo Roberto
a incerteza quanto aos diagnósticos
das causas de morte mencionados na
39 A pesquisadora Diana Maul de Carvalho, ao debruçar-‐se sobre a obra de Karasch em anos recentes, realizaria algumas críticas neste sentido, mais detidamente, sobre a vinculação entre tuberculose, escravos e a cidade do Rio de Janeiro. Ver: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; SANTA, Marcos Roma. O método comparativo em história das doenças. In: NASCIMENTO, D. R.; CARVALHO, D. M.; MARQUES, R. (orgs.). Uma história brasileira das doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 23. 40 MOREIRA, Paulo Roberto S. “Portanto, os senhores exigindo dos escravos mais do que podem, cometem homicídio”: vida e morte de indivíduos cativos nos oitocentos através dos
fonte, por tantas vezes descritos de registros de óbito (Porto Alegre/RS). Espaço Plural, nº 22, 2010. 41 Em Karasch ao realizar abordagem para além dos aspectos socioeconômicos. Em ambos por empregar o uso da metodologia estatístico-‐ descritiva ao examinar os dados de óbitos. Além disso, por utilizar os métodos de sistematização das doenças e causas de morte por grupos, tal como realizado pelos dois autores.
124
vida
principal
registros de óbitos.
indivíduos
condições
Karasch e Costa
oportunizando novo olhar para os
de
reflexo
espaço e tempo. Inspirou-se em
não tratadas por Karasch e Costa,
morte
como
que envolvia os indivíduos naquele
fragilidades antes não percebidas ou
“Portanto,
visualizando-as
considerando a conjuntura específica
metodologias e teorias, detectando
Em
a
sob olhar que privilegia as condições
problematização das doenças e suas concepções,
investigou
da primeira metade do século XIX
vêm
aprofundando a exploração sobre o tema,
Moreira
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
forma sucinta, não padronizada ou genérica
43
.
Aprofundando
pelo autor sobre a fonte utilizada
esta
que, sistematicamente, seguirá para a
questão, observa-se outro problema,
maior
que direciona a atenção para o
realmente significavam as doenças e
discurso médico do período que, de
causas de morte identificadas nos
acordo com Moreira: “[...] misturava,
documentos analisados. Tal crítica é
sem constrangimento algum, ciência e
estabelecida sob olhar que privilegia
crítica
a agência dos indivíduos imersos em
comportamental,
moral
e
religião. Evidentemente que tais ideias eram
compartilhadas
contemporâneos,
caso
por contrário
problematização
do
que
seu complexo contexto social.
seus
Em linha de pesquisa muito
os
semelhante, Kaori Kodama et al.45, a
médicos seriam ridicularizados como
partir
delirantes (o que em muitos casos
de
análise
sociodemográfico
ocorreu)” 44.
do dos
perfil óbitos
conduzida por meio dos registros da
É essencial olhar com cuidado
Santa Casa de Misericórdia do Rio de
para este fator no sentido de que este
Janeiro,
discurso poderia se tornar aspecto
grande epidemia de cólera ocorrida
fundamental para a atribuição da
no
causa de morte no registro do óbito.
remontando aspectos característicos
Verifica-se intensa crítica realizada
do universo de vida dos escravos
urbanos, em período posterior ao
Assentamentos de óbitos dos escravos falecidos da Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, 1820 e 1858. 43 Também são apontadas como fragilidades: a heterogeneidade das anotações, pois, conforme o autor, “parecem estar sob o absoluto capricho dos párocos”; na idade, o problema se daria por ser definida mais pela aparência do indivíduo, as vezes indicando-‐o como muito mais velho (aparência fragilizada pelas condições de vida) do que realmente era; a problemática que envolve a identificação pela cor e, ainda, confundida com a origem dos indivíduos. Ibidem. 42
de
Janeiro
na
primeira
(1855-1856),
final do tráfico negreiro. A análise, conduzida
pela
abordagem
estatístico-descritiva, também atenta 44
Ibid. p. 87. KODAMA, Kaori; PIMENTA, Tania Salgado; BASTOS, Francisco Inácio; BELLIDO, Jaime Gregorio. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma 45
125
Rio
deter-se-ão
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
para a parte conceitual que envolve
parte
da
realidade
vivida
pelos
os óbitos.
escravos e pobres do período: as condições de trabalho, a exposição ao
Os autores aprofundaram o
clima quente e úmido, as habitações
debate sobre o discurso médico no
em
que toca às concepções e ocorrência
locais
insalubres
e
de
alta
concentração humana, alimentação
de determinadas doenças, indicadas
de má qualidade e diversas outras
como “doenças de negros”. Tratando
privações. Porém, tal realidade não
especificamente do cólera, também
se resumia a estas situações. De
fazendo uso de relatórios e teses
acordo com aquele olhar médico, a
médicas, destacaram o imbricamento
falta de higiene voltava-se mais para
entre epidemia, condições de vida e
uma questão de escolha daquela
preceitos morais médicos do período.
população do que pela falta das
De acordo com estes documentos, a
condições materiais, envolvendo uma
maior parte dos acometidos pelas
série de “costumes viciosos”, tais
doenças eram “os pretos, os homens
como “excessos e abusos” praticados
de cor”. Como razão para justificar o
de forma constante, que estariam
fato, os médicos destacavam as duras
vinculados ao modo de viver dos
condições de trabalho as quais os
negros47.
“pretos” estavam submetidos, em conjunto do “desprezo” desta parte
Em
sentido
semelhante
da população para com os preceitos
destacam-se os trabalhos de Alisson
básicos de higiene46.
Eugênio
Muitas
das
causas
especificadas
pelos
médicos
e André Nogueira
49
.
47
Ibidem. p. 63. Cabe indicar que todo este discurso estaria focado em prolongar a vida dos escravos, mas não em denunciar o sistema escravista em si. 48 EUGÊNIO, Alisson. As doenças de escravos como problema médico em Minas Gerais no final do Século das Luzes. Varia História, Belo Horizonte, n.23, jul/ 2000. p.154-163. 49 NOGUEIRA, André. Universos coloniais e 'enfermidades dos negros' pelos cirurgiões régios
analisados exemplificavam, de fato, análise preliminar. In: História, Ciência, Saúde – Manguinhos. v. 19, supl. dez. 2012. 46 Ibidem. p. 62.
126
48
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Ambos os autores têm por objetivo analisar
como
último
fator,
destacam-se as relações estabelecidas
negros” eram concebidas e nomeadas
pelo discurso médico com as doenças
no
Jean
venéreas, moralidade e depreciação
intitulado
dos negros, entrando em jogo, para
Observações sobre as enfermidades dos
além da cor da pele, diferenças
negros, suas causas, seus tratamentos, e
anatômicas, que se demonstrariam
os meios de as prevenir.
como
Barthelemy
do
Dazille
“doenças
este
dos
trabalho
as
Sobre
médico 50
,
fatores
de
predisposição
àquelas doenças. Sob este ponto de
Nogueira indica que, conforme
vista,
a obra de Dazille, seriam três os
organismos
brancos
fatores que afetavam a saúde dos
de
funcionariam
negros de
e
modo
diferenciado e, de acordo com as
negros: 1: características naturais do
suas distinções, estariam mais ou
ambiente, um tanto especificadas,
menos propensos a determinados
considerando também os humores e
vícios ou doenças.
miasmas 51 ; 2: condições de vida e trabalho, pensando na atuação do
O aprofundamento da análise
escravo e doenças explicadas pela
levou Nogueira, a partir das ideias de
condição de cativo52; 3: traços inatos
Charles Rosemberg54, a refletir sobre
de seus corpos e personalidade,
o conceito de doença e a sua
sendo três as características inatas:
complexidade para a história, o que é
libertinagem, preguiça, alcoolismo53.
de vital importância para a discussão
em pauta:
Dazille e Vieira de Carvalho. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 19, p. 179-196, 2012. 50 DAZILLE, Jean Barthelemy. Observações sobre as enfermidades dos negros, suas causas, seus tratamentos, e os meios de as prevenir. Trad. Antônio José Vieira de Carvalho. Lisboa: Tipografia Arco do Cego, 1801. s/p. 51 Estabelecendo vínculo direto entre ambiente e doença. NOGUEIRA, André. Op. cit. p. 9. 52 Ibid. p. 10. 53 Ibidem.
Contudo, como historiadores, somos desafiados a pensar nas doenças e suas possibilidades de explicação e tratamento não de forma dada e/ou naturalizada, mas como construção
54
ROSEMBERG, Charles. Framing disese: Illness, society and history. In: Explanning epidemics and others studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 305;
127
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
de
plural de uma época determinada e, por isso, possuidora de especificidades e meios de ação que lhes são próprios e legítimos e, por conseguinte, socialmente aceitos no âmbito das crenças e das práticas dos indivíduos circunscritos num dado contexto55.
Observa-se, pesquisas
a
trazidas,
partir
das
que
esta
forma
intercruzada
com
a
mortalidade e doenças dos escravos, utilizando-se de registros de óbitos paroquiais, inventários post-mortem e
relatos
médicos,
procurando
compreender as doenças que faziam parte da vida nas senzalas e como a
concepção social, cultural, política,
morte e as doenças eram vividas e
moral e histórica sobre doença,
experimentadas pelos escravos.
analisada como problema e conceito, ligando-a a determinado contexto
A autora objetivou quebrar
específico, aos seus agentes e à
com concepções estereotipadas sobre
conformação das estruturas sociais
o tráfico atlântico de escravos, que
das quais faz parte, dialoga de
em
maneira muito afinada com as ideias
período, se constituía como principal
e preocupações dos estudos ligados à
propagador de doenças e epidemias.
história social produzidos nas últimas
Visto dessa forma, o tráfico de
décadas.
escravos:
De
outra
maneira,
doenças: notas para o estudo das dimensões da diáspora africana no 56
analisou a escravidão no
Brasil, entre os anos de 1820 e 1831, 55
NOGUEIRA, André. Op. cit. p. 5. BARBOSA, Keith. Escravidão, mortalidade e doenças: notas para o estudo das dimensões da diáspora africana no Brasil. XIX Encontro Regional de História, poder, violência e exclusão. ANPUH/ SP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. 56
128
visões
médicas
do
“como agente da migração de doenças e patologias” desqualifica a experiência africana e escravas na diáspora tanto como agentes de circulação de idéias, saberes, cosmologias e expectativas diante das doenças, mortes e práticas terapêuticas decorrentes. Pensamos que a ideia do tráfico atlântico como propagador de doenças e epidemias, incidindo sobre padrões da mortalidade escrava deve ser matizado, considerando outras variáveis das sociabilidades e das ideologias migratórias, assim como os seus desdobramentos. Não resta dúvida que o impacto migratório forçado trouxe consequências conjunturais e demográficas, porém, é
Keith
Barbosa em Escravidão, mortalidade e
Brasil
algumas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
cidade59. Tal questionamento fez com
fundamental dar relevo aos aspectos ambientais, as condições sanitárias, os regimes de trabalho, as dietas alimentares, os vestuários, entre outros, para explicar as dinâmicas de morbidade e mortalidade numa sociedade escravista57.
que Barbosa utilizasse o método comparativo 60 , detendo-se sobre a dimensão espacial.
Desse modo, a autora enfocou
Assim,
examinou
a
o contexto e diversas esferas da vida
mortalidade entre duas freguesias
da população escrava, evitando na
distintas do Rio de Janeiro, uma
pesquisa historiográfica a reprodução
situada em zona rural (Jacarepaguá) e
do pensamento estigmatizado de que
outra
a ocorrência de doenças e epidemias
(Candelária). Verificou que os dois
no Brasil seria resultado da origem
espaços,
africana dos escravos 58 . Destaca-se,
sanitárias, possuíam similitudes, tal
ideia esta que muito comum na
como a maior incidência de doenças
literatura médica do século XIX.
infecto-parasitárias: varíola
Sob outro ponto de vista,
realizadas
por
bexigas,
diferenças
tuberculose, assim
como
diferentemente
da
In: Encontro de Regional de História, 12, 2006. Rio de Janeiro. Anais. 59 BARBOSA, Keith. Op. cit. p. 3. 60 Conforme Nascimento e Santa: “trata-se, na verdade, de se pensar a comparação não como uma estratégia a favor da máxima generalização teórica ou, pelo contrário, da afirmação do caráter exclusivamente individual do fenômeno histórico, e sim de se trabalhar simultânea e criticamente com o geral e o particular, com os modelos e suas variantes concretas, de modo a se apreender a dinâmica de um determinado modelo histórico”. NASCIMENTO, Dilene; SANTA, Marcos Roma. Op. cit. p. 20. Ver também: NADALIN, Sérgio Odilon. A demografia numa perspectiva histórica. Belo Horizonte, 1994. Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Unicamp. Disponível em http://www.abep.org.br. Acesso em 01 set. 2011.
cidades em relação às zonas rurais, o que se daria, principalmente, pela dos
escravos ao ambiente mórbido da 57 Idem. p. 3. 58 Visão
que também foi duramente criticada por Carvalho. CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas?
129
das
cidade
escrava seria maior nas grandes
adaptação
e
da
conclusão de Karasch em relação ao
afirmativa de que a mortalidade
de
apesar
Contudo,
Mary
Karasch, especificamente, sobre a
dificuldade
centro
também identificado por Karasch.
Barbosa interrogou-se sobre algumas conclusões
no
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
efeito do estado sanitário da cidade
homens em sociedade, permeado por
que impactaria drasticamente sobre a
aspectos
mortalidade,
ambientais.
além
constatou
deste
que
aspecto,
para
eram
socioeconômicos
e
as
condições sociais de vida, trabalho e moradia,
aliadas
às
doenças,
as
Reflexões em torno deste panorama
variáveis responsáveis pela alta taxa
O primeiro ponto de atenção,
de mortalidade entre os escravos. As condições
sanitárias
da
tal como proposto pelos Annales,
cidade
refere-se à importância de identificar
constituir-se-iam como mais um fator
as
associado a outros tantos para o
fragilidades
sobre as fontes e problematizar as
comparativa adotada pela autora não
suas informações, tomando assim o
foi utilizada para analisar as doenças
cuidado, tão preciso na História, de
(e ambiente) dos escravos em relação
não
aos demais grupos sociais existentes.
se
tomar
como
É necessário entender a fonte como
ainda será explorada posteriormente,
o
nota-se que a autora, ao retomar e
presente
reformular
dentro
de
intermédio e do
entre
as
suas
seu
passado
contexto
construção.
das concepções teóricas da história
62
como
horizonte
produzido
como
um
conceito,
historicamente
pelos
61
BARBOSA, Keith. Op. cit. p. 7.
130
Partindo
de desta
Inspirando-se em Georges Duby, ao tratar sobre a relação historiador e fonte: “No le basta tampoco ir más allá del contenido de tales textos, y examinar su aspecto formal, com la finalidade de [...] intentar alcanzar la verdadera relación con el mundo de aquellos que compusieron y utilizaron dichos textos”. DUBY, Georges. La historia social como sínteses. In: CARDOSO, Ciro. F. e BRIGNOLI, Héctor. Perspectivas de la
a
problematização e o entendimento de doença
e
informações
vertente demográfica, situa-se dentro
tendo
verdades
indubitáveis, os dados observados 62 .
Realizada esta ressalva que
social,
dos
cada vez mais, aprofundar a crítica
principal61. Entretanto, a perspectiva
problemas
limitações
registros de óbitos, sendo preciso,
aumento da mortalidade, mas não o
antigos
e
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
advertência que vale para a quase
segundo, por tratarem de ponto
totalidade
que
fundamental para pensar sobre como
constam nos registros de óbitos,
médicos, funcionários do Estado ou
verifica-se de extrema importância a
de outras instituições (tal como as
retomada
Santas Casas) e, até mesmo, párocos,
de
do
informações
entendimento
de
doença (ou causa de morte) como um
definiam
conceito
diagnóstico da doença ou causa de
e
o
ferramenta
para
sociedade
ou
seu
uso
como
compreender grupo
de
o
morte para indivíduos membros de
social
grupos populacionais estigmatizados. Pode-se,
análises
registravam
a
investigado. As
e/ou
ainda,
inverter
o
Moreira,
olhar e realizar outra interrogação: a
Kodama et al., Eugênio e Nogueira
partir da consciência de que dada
sobre o efeito moral do discurso
enfermidade
médico em relação às concepções das
maneira estigmatizada, quem seriam
doenças
os indivíduos diagnosticados com tal
possibilitam
importantes
avanços
vislumbrar sobre
questão.
Primeiramente,
agregarem
maior
era
concebida
de
esta
doença? Esta pergunta traz à tona
por
outras questões, aqui pensadas de
conhecimento
maneira
hipotética:
será
que
sobre as doenças do período, o que é
determinado indivíduo chegou ao
fundamental para qualquer análise
óbito,
histórico-social
determinada
sobre
causas
de
de
fato,
pela
doença
ação
da
descrita
na
morte, doenças e condições de vida,
fonte? Ou seria uma concepção
considerando a complexidade que
moral
envolvia os saberes da medicina, no
diagnóstico, de acordo com o corpo,
decorrer do século XIX
63
. Em
teria
influenciado
o
a fisionomia e posição social do
indivíduo?
historiografia contemporânea. Mexico, SEPSetentas, 1976. p. 95. 63 Dentre esta complexidade, ressalta-‐se as diferentes teorias sobre as causas e ações das
Isso,
sem
falar
dos
doenças, o racismo científico que as permeavam, a luta entre curadores e médicos,
131
que
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
possíveis
erros
involuntários
de
na atualidade. Mas como ultrapassar
diagnóstico ocasionados por falta de
estas barreiras?
conhecimento por parte do médico
Paulo
ou responsável pelos registros. Mas
avançar
como ultrapassar estas barreiras?
em
apontados.
Quiçá seja impossível buscar
Moreira um Ao
concepções
morais
consegue
dos
sentidos
destacar do
as
discurso
mas,
médico (tais como sobre os vícios tão
considerando o papel do historiador
comuns entre os pobres e escravos) e as
de buscar a realidade que existe
incertezas em relação ao diagnóstico
intrínseca ao objeto de estudo, tal
contido
intuito deve ser, ao menos, tentado.
solução o “cruzamento de fontes”65, o
Dar-se conta das inconsistências das
que realiza de forma exímia e efetiva,
informações da fonte64 é de extrema
ao menos, como solução para a
importância e se constitui como o
verificação
primeiro passo na busca de avanços.
generalistas.
Do contrário, corre-se o risco de
observar o registro de óbito do
pesquisas
escravo “pardo Atanásio”, descrito
respostas
precisas,
atuais
diagnósticos indicar,
repetirem
inconsistentes
descrever
e
na
fonte,
propõe
de Por
como
diagnósticos exemplo,
ao
ao
como “por ferimentos”, em julho de
contabilizar
1877, investigou jornais e processos
determinadas doenças a indivíduos
crimes
específicos, reproduzindo, de certa
encontrando
forma, involuntariamente, discursos
Atanásio em jornal e processo crime,
ou até mesmo equívocos (como erros
onde se verificou que o escravo foi
de diagnósticos) do tempo estudado,
assassinado, por dois italianos66.
mesmo
período,
informações
sobre
Como se observa, trata-se de
entre outras questões. 64 Para além dos diagnósticos, pode-‐se estender a questão para as informações em relação à determinação da cor dos indivíduos e outras constantes na fonte.
trabalho de pesquisa árduo, mas que
65 MOREIRA, Paulo Roberto S. Op. cit. p. 87.
132
do
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
oferece bons resultados para alguns
intrínsecos à fonte, tais como a
dos questionamentos aqui realizados.
descontinuidade
Verifica-se, assim, contribuições de
registro, as mudanças nos métodos
extrema importância possibilitadas
de
por pesquisas ligadas à história social
imprecisas69; e ainda, o problema de
e seu desenvolvimento como prática
diagnóstico atribuído mais por causas
historiográfica,
por
morais do que nosológicas. Sendo
meio da redução de escala de análise,
assim, como é possível chegar a um
do
quadro próximo da realidade?
uso
de
rompendo
identificadas
múltiplas com
fontes,
polarizações
os
estas, por sua vez, não afastadas da
processos
relacionados
estrutura social da qual faz parte e
e à
informações
que também à conforma67.
documentos,
informações
trâmites
legais
conformação
das
trazidas
nos
as
instituições
um
envolvidas e quem as registrava.
problema: como descobrir o real
Visa-se assim, entender o processo
diagnóstico para casos de morte em
de confecção da fonte, verificar como
que não houve envolvimento com as
as
esferas policial e judicial, tal como as
identificar
mortes não violentas ou que não
responsáveis legais pela criação dos
ganharam espaço em jornais, que
dados. Ou seja, não se trata somente
compõem mais de 99% dos óbitos
de entender e descrever a fonte
registrados
68
considera-se:
persiste
e
do
ser dado no sentido de pensar sobre
pela ação e experiência humana,
entanto,
diagnósticos
forma
Talvez o passo seguinte deva
quantitativas e qualitativas e da busca
No
da
obtidas,
eram
os
68 Conforme pesquisa que está sendo realizada
problemas
pelo autor, ao tomar como referência mais de 30.000 registros de óbitos. 69 Problemas também apontados por Dina Czeresnia: COSTA, Dina Czeresnia. Comentários sobre a tendência secular da tuberculose. Cad. Saúde Pública, Dez., vol.4, no.4, 1988. p.398-‐ 406.
66 Ibidem.
67 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 54.
133
quem
eram
? Nesta interrogação, os
informações
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
internamente,
mas
também
de
também envolvem micro contextos -,
capturar o contexto, os motivos da
ainda são raros os estudos existentes.
sua produção, os atores e instituições envolvidos,
realizando
a
O objetivo deste esforço, que
crítica
possibilita compreender a fonte e as
completa da fonte 70 . Seguindo os caminhos
traçados
pela
suas
história
ser
considerados
(como
nas
ponto de vista ambicioso (e que conta com o elemento sorte), procurar
abordagens
resgatar quem eram os indivíduos
Rankianas 71 ). Tal procedimento não
envolvidos
se demonstra como novidade no
72
das
envolviam
instituições
que
com
trâmites
os
médico
dos
responsável
pelo
laudo,
estudando aspectos em torno da sua
se
formação
e
concepções
sobre
doenças e sociedade, seja possível
burocráticos sobre a morte - que
obter pistas em relação às ideias que
70
Inspirando-se em Georges Duby, ao tratar sobre a relação historiador e fonte: “No le basta tampoco ir más allá del contenido de tales textos, y examinar su aspecto formal, com la finalidade de [...] intentar alcanzar la verdadera relación con el mundo de aquellos que compusieron y utilizaron dichos textos”. DUBY, Georges. La historia social como sínteses. In: CARDOSO, Ciro. F. e BRIGNOLI, Héctor. Perspectivas de la historiografia contemporânea. Mexico, SEPSetentas, 1976. p. 95. 71 CASTRO, Hebe. Op. Cit. Ibidem. p. 45. 72 Neste ponto, observa-‐se como exemplo, o quanto os processos crimes se tornaram mais valiosos aos historiadores a partir do conhecimento dos detalhes da fonte e da sua construção.
permearam
a
determinado
diagnóstico.
confecção
de
Trata-se
assim de resgatar a atuação humana que conformou e fez parte daquele cenário. Logo, conforme sugerido e realizado
por
pesquisadores,
Moreira a
e
utilização
outros e
o
cruzamento de diversas fontes são procedimentos esta busca. 134
conformação
possível identificação individual do
,
porém, para os registros de óbitos e o papel
na
registros. Desse modo, a partir da
mundo historiográfico e não se limita aos documentos aqui tratados
forma
para, num segundo momento, sob
como
portadores, isoladamente, da verdade histórica
de
qualitativa, pode ser o primeiro passo
social, as fontes, os documentos, não podem
informações
fundamentais
para
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Como último ponto de análise,
quando uma epidemia ocorre por
retoma-se a questão trazida por
doença não endêmica de dado local73.
Barbosa que se refere ao uso do
Porém,
método comparativo nos estudos
para
demográficas, das
que
mortalidade do Brasil no século XIX
etc.
enfocaram os escravos ou somente
análise ao mesmo tempo geral e
73
Em pesquisa realizada por este autor, investigou-se que taxas de mortalidade poderiam ser consideradas dentro de um padrão específico para Porto Alegre, no século XIX. Para isso, foi necessário recorrer ao método comparativo, seja entre diferentes períodos no espaço estudado ou em relação a outras cidades do período. OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). 2012. 293f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [2012]. p. 192. 74 É importante salientar que, ainda que poucos, existem estudos que realizaram a análise conjunta e comparativa da mortalidade de diversos grupos sociais, sendo alguns deles: KODAMA, Kaori. Africanos no Rio de Janeiro na Epidemia de Cólera, 1855-‐1856. In 6º Encontro Escravidão e Liberdade. Florianópolis, 2013. Kodama, Kaori; Pimenta, Tânia Salgado; Bastos, Francisco I.; Bellido, Jaime G. “Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-‐1856): uma análise preliminar”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.19, supl., dez. 2012. FALCI, M. B. K. A mortalidade por causa e grupos sociais no Rio de Janeiro. Revista do Mestrado em História da Uss, Vassoura, 1998.
específica, de tal maneira que se permite verificar padrões normais e anormais da mortalidade, ocorrências de epidemias, doenças endêmicas etc. tudo isto, dependendo do quanto dados
são
principalmente, realizadas
das
pelo
conseguinte,
aprofundados
a
e,
perguntas
pesquisador. comparação
Por é
importante tanto sob o ponto de vista espacial, conforme trazido, quando temporal, por exemplo, para observar
135
mais
exceções74, muitos dos estudos sobre
Esta forma de investigação possibilita
os
o
analisados. Conforme verificado, com
mortalidade, crescimento ou queda populacional
elemento,
o indivíduo, ou melhor, os indivíduos
fenômenos sociais como natalidade,
contingente
outro
importante, dentro da história social:
visam
compreender a dinâmica que envolve
do
da
temporal, é necessário voltar o olhar
tal método é largamente utilizado em
principalmente
além
importância das esferas espacial e
sobre mortalidade. Cabe alertar que
pesquisas
para
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
um ou outro grupo social. Não se
atingem determinada população ou
trata
grupo
aqui
discussão
de de
retomar
a
reivindicar
velha estudos
[...] a comparação pode contribuir tanto para o rompimento com a abstração empobrecedora da pesquisa dos fenômenos históricos quanto para a descrição puramente monográfica que, por privilegiar o único, o individual, corre muitas vezes o risco de se reduzir à condição de um simples relato de fatos [...] Por atentar para as peculiaridades estruturais, sem menosprezar a pesquisa dos fatos históricos, o método comparativo parece prestar-se especialmente bem ao objetivo da ciência histórica hoje: explicar e interpretar as trajetórias das sociedades humanas75.
se indicar para a necessidade de buscar um caminho dinâmico que viabilize resgatar, mais do que já realizaram os estudos existentes, a que
sentido,
comparativo:
outro. Aliás, talvez o contrário: quer-
social
Neste
destacam-se os benefícios do método
voltados para um grupo social ou
complexidade
social.
liga
doenças, morte e a posição social, econômica, jurídica e cultural dos indivíduos. Deve-se considerar que, em
E estas considerações podem
uma determinada sociedade, há uma
ser trazidas para os estudos sobre
multiplicidade social, onde cada um
mortalidade.
dos grupos que a compõe coexiste
pesquisador defina o seu objeto, os
em relação aos demais, isso, sem
seus
considerar as diversidades internas
manter a visão do todo em que estão
de
É
indivíduos,
inevitável
porém,
que
o
deve-se
específico.
Esta
incluídos e, ainda, procurar resgatar
estabelecida
pela
o que pode ser considerado como
coexistência, se dá no plano das
específico ou não para determinado
diferenças
grupo, inclusive, quando se trata da
um
grupo
multiplicidade,
existentes
entre
os
mortalidade.
diversos grupos que compõe uma dada sociedade. Mesmo que esta afirmativa possa parecer um tanto
básica, deve ser considerada ao se analisar
fenômenos
sociais
NASCIMENTO, Dilene Raimundo; SANTA, Marcos Roma. Op. cit. p. 23. 75
que 136
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
importância do resgate das análises
Conclusão Sintetizando
as
demográficas
questões
propostos,
principal
fim
da
resgata-se história
o
nas
social
quanto
comportamento
ao
últimas
décadas
após
o
e de abordagem micro), de forma aliada às teorias, abordagens e aos
específicos e
aparato
crescimento de pesquisas qualitativas
descrito por Hebe Castro: “formular históricos
seu
suas preocupações 77 (tão esquecidas
quando do seu surgimento, assim
problemas
do
metodológico (e também teórico) e
problematizadas de acordo com os objetivos
e
métodos recentes, utilizados pelos
às
pesquisadores
relações entre os diversos grupos
ligados
à
história
social, que quebraram a ultrapassada
sociais”76. Trata-se de um esforço no
dualidade entre as análises, expressas
sentido de compreender de modo
pelas bipolarização das abordagens
aprofundado os múltiplos aspectos
quantitativa e qualitativa.
que constituem as especificidades do mundo social e dos seus diversos
Assim observado, há de se
grupos populacionais, sobre as suas
referenciar artigo de Caio Prado
condições
trabalho,
Júnior que examinou esta dualidade,
doenças e causas de morte, sejam nas
seus significados e suas relações
cidades, zonas rurais, em diferentes
como métodos historiográficos, já na
tempos históricos, não de forma
década de 1970:
de
vida
e
É que não há nenhuma história “quantitativa” em oposição a outra dita
isolada, mas como parte de um conjunto social complexo.
77 Neste
sentido, é elucidativo verificar que a pesquisa empreendida por Costa, ainda na década de 1970, apesar de possuir várias limitações dentro dos aspectos aqui tratados e de priorizar somente aspectos socioeconômicos (isso sem desconsiderar o caráter pioneiro da obra), teve a preocupação de relacionar os principais grupos sociais que faziam parte da sociedade de Vila Rica na análise dos óbitos. COSTA, Iraci del Nero. Op. Cit. Ver, também: MARCÍLIO, Maria Luiza. Op. Cit.
Neste ínterim, a partir da observação
das
abordagens
empreendidas
autores
analisados,
pesquisas
e pelos
destaca-se
a
76 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 48.
137
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
conduzir pesquisas por meio de uma
por contraste (como tinha que ser por uma questão de simetria linguística), “qualitativa”. Isso porque tanto a quantificação e a qualificação, imbricadas uma na outra, são apenas procedimentos conceptuais ou operações mentais do indivíduo pensante que é o homem78.
abordagem teórica e metodológica em detrimento de outras. Espera-se, pontos
Diante da trajetória da história
sobre os limites que cercam os
sem problematizá-las: é necessário
estudos sobre mortalidade e doenças
como
no Brasil do século XIX, bem como,
conceitos que estão ligados de forma
prosseguir para novas possibilidades
íntima com os agentes históricos,
de apreensão da realidade passada,
suas ações, experiências e contextos
compreendo a sociedade brasileira e
específicos: tem-se, assim, a história problema,
tal
seus agentes, as suas relações, dentro
como
das suas complexidades de espaço,
almejada, ainda no início do século XX,
por
Febvre.
Marc
Bloch
Neste
e
tempo e estruturas próprias, ou seja,
Lucien
inseridas
sentido,
nos
seus
específicos de produção.
consequentemente, torna-se também impensável analisar documentos e 78 PRADO JR, Caio. Op. cit. p. 10.
138
pela
cem anos de existência, avançar
óbitos, como verdades indubitáveis,
um
suscitadas
pela história social nos seus quase
como as contidas nos registros de
como
diversas
teorias e metodologias oportunizadas
tomar informações de fontes, tais
entendê-las
as
campo, de forma articulada com as
historiográfico não é mais permitido
e
e
os
pioneira e nova historiografia do
no atual cenário do conhecimento
analisá-las
levantados
contribuições
social aqui observada, verifica-se que
considerando
contextos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
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141
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Richard: una etnografía de la migración interna, ilegalidad y la violencia urbana en la ciudad de Quito-Ecuador Richard: Uma Etnografia da Migração Interna, Ilegalidade e Violência Urbana na Cidade de Quito, Equador
Richard: Ethnography of Internal Migration, Illegality and Violence in the City of Quito, Ecuador. William Alvarez 1 Resumen En este artículo analizo el relato de vida de Richard, un joven afrodescendiente que migró a la ciudad de Quito, Ecuador, escapando de la violencia y pobreza que vivía en la provincia de Esmeraldas. También describo las circunstancia que forjaron su migración haciendo un resumen de su trayectoria personal, económica y urbana, enfatizando principalmente las múltiples estrategias de supervivencia que tuvo él que afrontar hasta conseguir una mediana estabilidad económica. El principal objetivo de este artículo es describir la trayectoria y cotidianidad del sufrimiento, subalternidad y violencia estructural encarnada en un joven afrodescendiente migrante. Palabras clave: Estrategia de Supervivencia, Violencia, Ilegalidad, Informalidad.
Resumo Nesse artigo analiso o relato de vida de Richard, um jovem afrodescendente que migrou para a cidade de Quito, Equador, escapando da violência e pobreza que vivia na província de Esmeraldas. Também descrevo as circunstâncias que forjaram sua migração, fazendo um resumo de sua trajetória pessoal, econômica e urbana, enfatizando principalmente as múltiplas estratégias de sobrevivência enfrentadas por ele para conseguir uma razoável estabilidade econômica. O principal objetivo desse artigo é descrever a trajetória e cotidiano de sofrimento, subalternidade e violência estrutural encarnada em um jovem afrodescendente migrante.
1
Graduado en sociología por la Universidad del Atlántico (Colombia), Maestría en Antropología por FLACSO-Quito (Ecuador), Doctorante en Sociología por la Universidad Federal de São Carlos (UFSCAR)/ São Paulo (Brasil). Williamlogia@gmail.com
142
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Palavras-chave: Informalidade.
Estratégia
de
sobrevivência,
Violência,
Ilegalidade,
Abstract In this article I analyze the life story of Richard, a young afro descendant who migrated to the city of Quito, Ecuador, to escape from the violence and poverty experienced in the province of Esmeraldas. I also describe the circumstances that led to his migration, summarizing his personal, economic and urban trajectory, and emphasizing the multiple survival strategies that he had to face to achieve reasonable economic stability. The main objective of this article is to describe the trajectory and daily life of suffering, subordination and structural violence embodied in a young afro descendant migrant. Palavras-chave: Survival strategy, Violence, Illegality, Informality. observación participante. Durante un
Introducción El
artículo
que
presento
año seguí de cerca la vida de
a
microtraficantes
continuación, es el resultado de un
ellos la violencia de las calles, el
realicé para obtener mi título de en
antropología
1
.
consumidores
callejizados de droga, viviendo con
trabajo mucho más extenso que
maestría
y
racismo,
La
sus
estrategias
de
supervivencia, la criminalidad y el
investigación se realizó en Quito,
consumo compulsivo de pasta base
Ecuador, en un barrio ubicado en el
de cocaína2.
centro histórico de la ciudad. El método que usé para recopilar datos
El
barrio
donde
hice
la
fue la descripción etnográfica y la
investigación se llama El Paraíso,
1 De
forma resumida, la hipótesis principal de mi tesis, era el de explicar; cómo un proceso de violencia estructural (Galtung, 1969) y segregación étnico/racial condicionado por una administración de población (Guerrero, 2010) blanca/mestiza durante el siglo XIX y mediados del XX, produciría en las minorías étnicas, especialmente afroecuatorianos, una tendencia fuerte hacia oficios y estrategias de supervivencia por medio de prácticas económicas informales e ilegales.
2 Es
una droga de bajo costo similar al crack elaborada con residuos de cocaína y procesada con ácido sulfúrico y queroseno. En ocasiones suele mezclarse con cloroformo, éter o carbonato de potasio, entre otras cosas. Es el residuo o la basura restante del proceso de elaboración de cocaína. En Colombia se le conoce con el nombre de bazuco, en Ecuador como polvo, y en la Argentina como paco. Para Este trabajo he optado por denominar esta droga como pasta base/polvo.
143
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
pero de paraíso tiene muy poco, de
abrió para mí las puertas del mundo
hecho, he puesto este nombre para
ilícito, criminal y violento de las
no dar pistas a las autoridades de la
calles de El Paraíso. Su ayuda
ubicación de los interlocutores 3 que
también me brindó la seguridad que
hacen parte de este texto. Además, el
necesitaba para deambular las calles
nombre del barrio no lo he inventado
del
yo, lo extraje del titular de un
relacionarme con microtraficantes 6 ,
periódico
conocer
local
que
decía
lo
barrio
tarde
de
cerca
en
sus
la
noche,
prácticas
siguiente: El (nombre original del
ilegales, y especialmente, conocer las
barrio), es el paraíso de la droga. Y
lógicas de distribución y venta de
sobre esta fama; los consumidores,
drogas al interior de El Paraíso.
usuarios y compradores de pasta
Además
base/polvo de toda clase social que
él,
conocí
a
muchos otros jóvenes inmigrantes de
conocí durante mi estadía en Quito,
la Costa pacífica ecuatoriana. Su
no tienen ninguna duda.
estilo
de
vida,
solidaridad
y
Cuando me mudé al barrio en
afrodescendientes y migrantes (en su mayoría colombianos y peruanos). 6 Sobre este aspecto, las relaciones sociales no fluyen de la misma forma a pesar de contar con gran aceptación dentro de un grupo determinado. Metodológicamente tuve que transformar la forma en que interactuaba cuando conocía algún microtraficante (brujo), con ellos debía sostener un lenguaje moderado y sin pretensiones, por lo tanto el hacer de observador pasivo producía un efecto contrario a sabiendas que al observador también se le observa. Como ellos son sujetos que han vivido experiencias límites con la ley (encarcelamientos, persecuciones, seguimientos, amenazas, enemigos, el crimen, ilegalidades e informalidad), tienen un “olfato callejero” y una psicología aguda para desenmascarar a cualquiera que tenga intenciones que estén por fuera de su cultura y códigos de honor.
el mes de julio 2012, en la segunda noche conocí a Richard 4 , un joven afroecuatoriano5 quien se convertiría (casualmente) en el interlocutor clave de toda mi investigación, fue él quien 3 Uso
esta categoría para evitar el clásico término colonialista, informante. 4 Para una mejor comprensión de este personaje, véase el capítulo I de la tesis de: Alvarez, William (2014). “Sobreviviendo con la pipa” Drogas, violencia y conflictos Interétnicos en el Barrio El Paraíso. Quito: FLACSO-Ecuador. Aún sin publicar 5 El barrio está compuesto étnicamente por: blanco/mestizos, indígenas,
144
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
recibimiento
caluroso
fueron
En la siguiente etnografía se
acciones que llamaron mi atención
podrán observar algunos de los
desde un principio. Al descubrir día
rasgos ocultos de su migración a la
a día sus historias de vida, la forma
ciudad.
en que llegaron a la ciudad y sus
relato
variadas estrategias económicas de
conseguido
subsistencia, esto me visibilizó el otro
claves de su condición social, los
lado del estigma, el miedo y la
cuales ayudan a entender de forma
inseguridad
descriptiva
que
afroesmeraldeños
7
proyectan
los
Haciendo de
vida
seguimiento de
Richard
reconstruir
las
al he
aspectos
diferencias
en la sociedad
estructurales que existen entre la
quiteña. Con el consentimiento de
Costa y la Sierra ecuatoriana, y entre
Richard8, líder carismático del grupo
lo afrodescendiente y blanco/mestizo.
y uno de los más antiguos migrantes
No solo se trata de hacer una
afroesmeraldeño en el barrio, se me
radiografía de sus estrategias de
permitió una entrada solidaria a su
supervivencia en la ciudad, sino de ir
mundo de la vida9.
más allá en el entendimiento de la
desigualdad estructural y como ésta
7 A
lo largo de todo el texto se emplearán las categorías: afroecuatoriano, afroesmeraldeño y afrodescendiente, para nombrar lo que en la literatura brasilera se conoce como: negro o preto. Hay que resaltar, además, que las categorías de identificación o autoidentificación étnicas varían en casa país. En el caso de mi investigación, el termino afroesmeraldeño lo empleo para diferenciar al negro de la Costa pacífica, del negro Andino. 8 Hasta el momento de escribir este capítulo, Richard lleva viviendo 14 años en la ciudad de Quito. 9 Para lograr ganarme su confianza; el tiempo, mi lenguaje, la sinceridad y la cercanía identitaria, fueron clave para cerrar los abismos culturales y las sospechas psicosociales sobre mí. En varias oportunidades les invité a mi casa y ellos a las suyas, pasamos muchas noches
genera las causas de un tipo de violencia simbólica y estructural que atañe mayormente a un grupo étnico y territorial que a otros en el escenario de la cotidianidad en la ciudad de Quito.
departiendo en un bar y restaurante del barrio en la cual se consolidaron muchos negocios ilegales, se produjeron conflictos o se pensaron crímenes y robos.
145
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Escapando de la muerte, de uma islã pacífica al frio de la ciudad
comida que le dejaban de ganancia
Desde el primer día que conocí a
Pero la venta neta podría llegar a
Richard no me han dejado de
cien, ciento veinte o ciento treinta
asombrar sus múltiples formas de
unidades, dependiendo del día.
de veinticinco a treinta dólares libres.
ganarse la vida en todos los aspectos
Las
ventas
que
pudiera
de la economía, pasando de lo
conseguir en el barrio le daban lo
legal/formal a lo ilegal/informal, un
suficiente para sobrevivir, pero no le
constante
las
satisfacían comparándose con otros
márgenes de polos opuestos, pero a
tiempos en que vender en la calle no
su vez imperantes dentro del sistema
estaba tan restringido como lo está
productivo o, en el sentido de esta
en este momento:
ir
y
venir
entre
tesis, estrategias de supervivencia.
puesto de comida sobre una esquina
Antes de vender en el barrio vendía en otros lugares, la calle Amazonas fue mi primera plaza, me iba bien, un viernes me hacía 150 o 200 una sola noche, pero de ahí me sacaron, mucho control, luego me vine acá cerca en La Marín, te digo que esto ya hace varios años, ahí me iba muy bien, me tocaba duro, pero al día malo malo, vendía 130, y 180 todos los días, excelente plaza, pero los municipales empezaron a joder y a sacar a los vendedores (Richard entrevista, 2012).
concurrida del barrio para ofrecer su
Esta serie de desplazamientos a
producto a un precio de un dólar o
los que se ha enfrentado Richard
dólar y medio de forma rápida y fácil
tiene como propósito la erradicación
de llevar. Por medio de ese puesto de
del uso del espacio público de las
comida se ganaba la vida y sostenía
ventas ambulantes del centro de
un hogar constituido por su mujer
Quito
(Rebeca) y su hijo de 4 años. En
restricciones no se observan los
promedio,
Durante
mi
estadía
en
el
barrio, la venta informal de comidas era el principal ingreso económico de Richard. Todas las noches, desde las cinco de la tarde hasta pasadas las nueve de la noche, disponía de un
diariamente
vendía
,
10 Considerado
pero
detrás
de
estas
patrimonio de la humanidad por la Unesco desde 1978.
cincuenta o sesenta unidades de 146
10
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
motivos
o
estos
labores económicas de toda clase,
vendedores al usar ese espacio, ni sus
formales e informales, dependiendo
historias ni procedencias, ni siquiera
de la oferta real de trabajo que
la
estos
emergía en las temporadas de pesca,
desplazamientos, ni mucho menos
agricultura o el turismo. La venta de
las resistencias que esto genera en
artesanías y la gastronomía eran sus
los vendedores informales. En el
principales
caso de Richard, la venta informal de
subsistencia, y estas se aprenden
comida ha sido una estrategia de
según Richard de dos formas; 1) por
supervivencia de las tantas que ha
medio del ocio y la creatividad que
tenido para ganarse la vida.
emerge de un ambiente limitado
violencia
necesidades
generada
de
por
de
materialmente como lo es la isla, y 2)
Cuando Richard vivía en Isla
principalmente,
Bonita (Esmeraldas11), se dedicaba a
por
la
monetarización de su vida cotidiana.
Estas labores (por un lado la
11 Ecuador
está compuesto por 25 provincias con sus respectivas capitales. Provincia se puede entender como categoría territorial que para su comprensión, es homologa la categoría de Estados en Brasil. La provincia de Esmeraldas se ubica en la región Costa y está poblada en su mayoría por población afrodescendientes, pero su condición estructural, económica y social, en relación con la región central donde se ubica la mayor parte de la población blanco/mestiza está por debajo del índice nacional, como se dice a continuación: “Si bien la incidencia de la pobreza en el país es de 38.3% en el 2005-2006, existen grupos sociales que son más pobres. El análisis de la pobreza según grupo étnico permite detectar dos grupos que presentan una incidencia de pobreza mayor que la observada a nivel nacional. Estos dos grupos son: los indígenas y los afroecuatorianos. Dentro de la población indígena 7 de cada diez se encuentran por debajo de la línea de pobreza, lo que representa casi el doble de los niveles presentados a nivel nacional. En la
producción de artesanías y por el otro la agricultura y la pesca) han sido prácticas culturales adquiridas y heredadas
culturalmente
por
Richard, quien las ha capitalizado, empleado
y
trasladado
a
su
cotidianidad en los espacios urbanos donde se ha radicado. Su principal fuerte económico inició con la venta población afroecuatoriana aproximadamente 5 de cada 10 son considerados pobres. Este análisis revelaría que la pobreza se concentra mayoritariamente en los grupos étnicos mencionados” (SIISE- STMCDS, 2006: 1415)
147
alternativas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
al por mayor de camarones a grandes
la
banda
de
extorsionistas
era
hoteles en Atacames12 (Esmeraldas):
hacerse con el dinero que Richard guardaba en su casa, pero como él no
Arranqué vendiendo camarón en pequeñas cantidades a comerciantes del pueblo, yo no pescaba, le compraba a un conocido que me vendía barato y como intermediario vendía más caro, por ejemplo, de un quintal (50 kilos), sacaba 15-20 dólares, ahí estaba el negocio, luego me hice de un contacto en un hotel y empecé a venderle 10, 20, 30 quintales, hasta más, y como la venta era buena, le daba un porcentaje a mi amigo para que me diera el mejor producto, entonces comencé a venderle a los hoteles resort y ganaba buen dinero (Richard entrevista, 2012).
accedía, le cortaron lentamente un extremo
de
oreja,
Richard
lo
describirá como sigue:
la
Yo no iba dejar que me quitaran mi dinero, bravié con todos dos, me dieron con el mango de la pistola, pero aun así resistía hasta que me tumbaron y amarraron las manos. Como yo no quería decir nada me amenazaron con cortarme la oreja, pero no comía de esa presión, entonces me pusieron sobre una mesa y uno de esos manes cogió un cuchillo y me preguntó por última vez dónde estaba el dinero, me volví a resistir y fue ahí donde empezó con el cuchillo a torturarme, ya no aguantaba, entonces les entregué el dinero (Richard entrevista, 2012).
intimidación y la extorsión que se
Después de este suceso Richard
vivían en Esmeraldas. La envidia y la
quedó ofendido y, como la justicia en
sospecha
Richard
Esmeraldas, según sus palabras, «no
alrededor de su mejoría económica
sirve para nada», tomó la venganza en
trajeron consigo una persecución
sus propias manos. Luego de indagar
secreta por parte de una banda de
en las cercanías del pueblo sobre los
extorsionistas.
dos
extorsionistas, dio con uno de ellos y
hombres se presentaron a su casa
lo asesinó, pero el otro se escapó.
fuertemente
quienes
Richard no pudo recuperar los 15 mil
agredieron a Richard y a su pareja, a
dólares que le robaron, y estos
ella le amarraron mientras Richard se
ajustes
resistía y le golpeaban. El objetivo de
migrar a la ciudad de Quito.
Sin embargo, esta bonanza económica estuvo opacada por el aumento de la violencia cotidiana (Scheper-Hughes
que
1997),
produjo
Una
noche
armados,
12 Nombre
de una ciudad turística.
148
de
cuentas
le
obligaron
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Sin mucho dinero con qué
serranos. Lo que he observado en los
contar, Richard se dirigió donde un
afroesmeraldeños me indica que su
hermano,
sus
exposición en la calle tiende a ser
primeros meses en la ciudad, pero al
pasajera; el hurto y la delincuencia
cabo de un tiempo decidió vivir
componen formas útiles de ganarse
aparte por evitar las diferencias
la vida mientras encuentran otras
suscitadas con su cuñada. De modo
formas dentro de la economía formal
que este fue el principio de un
e informal en donde proyectarse,
periplo vital, económico, espacial y
pero cruzar la línea de una actividad
social, de sus nuevas estrategias de
considerada ilegal hacia una legal, no
supervivencia en la ciudad, y un
siempre suele ser un acto voluntario.
con
quien
vivió
trasegar por las márgenes flexibles de la estructura normativa hegemónica. Siendo
un
«Dámelo todo, chucha tu madre»
joven
afrodescendiente sin empleo, sin
Desde una perspectiva comparativa,
dinero y sin casa, acudió a la calle, es
las
decir, al delito y al robo como su
étnico/raciales en la Región Andina,
principal fuente de ingresos. Pero
en especial en Colombia y Ecuador,
este volcamiento estaba en cierta
países
medida
características
restringido
por
una
condiciones
con
de
ciudades
clase
que
históricas
y
tienen
comunes,
economía moral. La posición de los
como la explotación de la mano de
jóvenes afroesmeraldeños sobre la
obra indígena y la esclavitud. Pero en
calle
que
cada ciudad las condiciones socio-
difiere del habitus13 de los habitantes
étnicas varían dependiendo de las
tiene
una
perspectiva
experiencias pasadas y funciona en cada momento como matriz estructurante de las percepciones, las apreciaciones y las acciones de los agentes cara a una coyuntura o acontecimiento y que él contribuye a producir” (Bourdieu, 1972: 178).
Bourdieu define esta categoría de la siguiente manera: “El habitus se define como un sistema de disposiciones durables y transferibles -estructuras estructuradas predispuestas a funcionar como estructuras estructurantes- que integran todas las 13
149
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
condiciones
materiales
subsistencia,
esto
determina
de
segunda
la
objetivas.
instancia,
por
razones
desigualdad étnica y la segregación
El Paraíso es el lugar de
racial que se presentan comúnmente
procedencia de muchos jóvenes que
en las ciudades latinoamericanas.
salen a robar en barrios del norte de la ciudad, pero conocer de cerca su
Mientras que en Cartagena (Colombia)
la
mayoría
es
población
en
trato y personalidad dejaron por
su
fuera los estereotipos negativos que
afrodescendiente,
sobre ellos se tiene. En el trato
socialmente la discriminación y el estigma
sobre
peligrosidad
la
de
delincuencia su
imagen
cotidiano los jóvenes, entre esos
y
Richard y Guacho, interactúan de
son
acuerdo con la convivencia básica de
menores que las que pude percibir
los barrios, respeto a los mayores, a
en Quito desde mi llegada, y es muy común
escuchar
en
las
las mujeres, a la apropiación de las
calles
zonas de juego (canchas, parques),
céntricas y residenciales un discurso
cumplimiento de los contratos de
temeroso sobre lo afrodescendiente.
renta, etc. Sin embargo, bajo esa construcción estratégica del habitar
En zonas reconocidas de la ciudad como el barrio La Mariscal
barrial,
(La Zona) es frecuente observar
construye:
robos de toda clase, pero lo más
familiar, por un lado, y un habitus
común es que estos robos sean
público disidente, por otro. La vida
hechos
de Richard describe muy bien este
por
jóvenes
doble un
fachada
habitus
se
privado
habitus polivalente.
afrodescendientes. Lo mismo pasa
Cuando llegué a Quito lo primero que conseguí fue un trabajo en una papelería que era conocida de mi hermano, la dueña al rato de conocernos resultó ser familia lejana. Yo no estaba familiarizado con nada ahí, pero hacía de todo, hasta lo que no sabía: prender computadoras, sacar
con las detenciones o requisas que hace la Policía en la calle cuando se sospecha, en una primera medida por el color de la piel, y, en una 150
una
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
luz). Algunos, como el primo de
copias, barría, atendía clientes. La dueña me cogió mucho aprecio y me ayudó económicamente, pero yo ya estaba aburrido ahí, eso no era lo que me gustaba y, como tenía problemas en la casa, renuncié (Richard entrevista, 2012).
Richard y la Belleza, ganaron algo de dinero jugando en la B de la Liga Deportiva Universitaria de Quito. Pero las exigencias nutritivas de este
A Richard le costó seguir
deporte estaban por encima de las
subordinado, de modo que desistió
capacidades
de ese empleo. Al cabo de unos días
carbohidratos
Richard había dejado la casa de su
cubrían lo necesario para durar hasta
también migrantes, entre ellos su
fin de mes.
primo Genaro y la Belleza14.
Estas dos circunstancias les
jóvenes
empujaron
afroesmeraldeños migrantes armaron
a
abandonar
la
liga
profesional, pues no contaban con
una red de apoyo y un lugar de
recursos mínimos vitales ni detenían
residencia. Entre todos 15 se dividían
las condiciones materiales que les
los gastos de alimentación (que en el
dieran estabilidad, por lo tanto, en el
peor de los casos se basaban en
caso de ambos, el único ideal futuro
migas de pan y agua de panela), renta
estable,
y gastos de servicios públicos (agua,
el
proyecto
profesional,
de
vida
acabaría
desvaneciéndose ante circunstancias
14 Ellos
llegaron a Quito por dos motivos: la ‘Belleza’ huyendo a la cárcel que le esperaba por intento de asesinato y porte ilegal de armas, y Genaro, por líos de faldas y ajuste de cuentas con bandas criminales. 15 Un número variable pues la casa estaba abierta al recibimiento de jóvenes provenientes de Esmeraldas sin casa. Al mismo tiempo se iban rotando las plazas por
urbanas no previstas dentro de su estructura
cultural
y
social.
La
ausencia de estructuras políticas y las concurridas salidas del lugar por razones laborales o provisionales.
151
para
demoraban en llegar y tampoco
con otros jóvenes afroesmeraldeños,
otros
necesarias
de
diarias del cuerpo. Los pagos se
cuarto en el barrio que compartía
con
mínimas
reponerse y rendir las exigencias
hermano y se había mudado a un
Junto
reales
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
sociales en sus lugares de origen
cumplir las exigencias mínimas de
(Esmeraldas) equiparables a las que
contratación laboral, pues, en su
se
caso, no haber terminado la escuela
viven
en
Quito
económica/laboral
en
materia
disminuyen
las
restringe aún más sus posibilidades
posibilidades de inclusión a labores o
de
sistemas productivos cualificados de
porque esta ausencia incide en el
muchos jóvenes afrodescendientes,
desconocimiento del funcionamiento
incluso de otras regiones del país que
del sistema burocrático, aspecto que
no tengan instrumentos estructurales
limita
similares a las exigencias urbanas
instituciones legales/formales, como
capitales.
nos dirá:
El anterior argumento devela
cultural
cuando
se
estructuras
territorializado
enfrenta (campos)
con
otras
sociales
o
escenarios sociourbanos que cuentan con
ciertas
ventajas
su
al
sistema
interacción
formal,
con
las
Acá es que joden con tanta vaina que pide el Municipio, en mi tierra usted quiere montar un negocio, va y pide el permiso y se lo dan sin tanto papel, pero acá te piden que lo uno y lo otro. Quiero montar un negocio de comida y te piden chimenea de tantos metros, tener instrumentos de calidad y todos los permisos sanitarios y un poco de impuestos, y uno que llega sin plata, ¡dígame! ¿Cómo puedes ser legal sí hasta para pedir un crédito te piden un respaldo? En cambio allá en el pueblo usted monta un negocio ahí mismo en la casa sin tanta vaina y te ganas la vida (Richard entrevista, 2012).
la disparidad simbólica y objetiva del capital
inclusión
histórico-
estructurales sobre otras. Por lo tanto, esto ha incidido parcialmente en que Richard fuera empujado con mayor fuerza16 al sector económico
Sin embargo, la falta de esa
informal e ilegal, al no conseguir
titulación no ha sido una limitante en
su quehacer cotidiano, se maneja con
Muy diferente a lo que sucede en el mundo económico de muchos grupos indígenas en Ecuador. Estructuras sociales de producción consolidadas en la economía urbana; venta de alimento, artesanías y comercio principalmente. Opciones legitimadas y consolidadas en parte por los 16
lo básico: lectura, escritura, lógica matemática, contaduría. Y tanto es su conocimiento sobre leyes penales y lasos de parentesco y la cercanía histórica
152
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
derechos ciudadanos que sorprende
negativa
escuchar sus conversaciones cuando
éticamente permisible a su condición
él o alguno de sus conocidos ha sido
estructural, que no necesariamente
señalado
asocia delito con despilfarro y gastos
por
algún
abuso
de
autoridad, captura o acusación. La
incidencia
se
de
convirtieran
estos
básicas.
en
La
un
acción
criminal de forma individual o de modo colectivo es una consecuencia casi
imperante
ante
instrumentos
práctica
viable
Una vez yo estaba en la mala mala, Rebeca estaba a punto de parir y yo sin plata. Una tardé salí a caminar la Amazonas y vi salir de un banco a un japonés, lo seguí un rato y llegando a un parque le cogí por la espalda y le quité el maletín, cuando llegué a la casa me encontré con 1 600 dólares, con esa plata compré las cosas del bebé y pagué el parto, adelanté arriendos, me surtí de comida, pagué deudas, incluso invité a beber y comer a los amigos (Richard entrevista, 2012).
escenario ideal para resolver sus necesidades
una
banales. Así comenta Richard:
aspectos lleva a que las calles de Quito
en
tantos
burocráticos Esquinas, masculinidade recursividade
legales/formales. En una ocasión, en la ‘esquina del sabor’, los jóvenes
y
hacían memoria de los asaltos, la
El Paraíso es el centro de salida y
‘Belleza’
modo
llegada de muchos de los jóvenes
natural: «¿Es que tú no robas,
afrodescendientes que migran de la
parce?»,
Costa. Cuando están instalados, los
frunció
me
preguntó
de
al escuchar mi negativa el
ceño,
incrédulo.
puntos de encuentro dentro del
La
naturaleza de su expresión y la
barrio,
comodidad con la que narraba sus
reconocidos por la red de parentesco
experiencias violentas, naturalizan un
tienden a significar espacios urbanos
habitus
economía
en los cuales se concentran la
política de la vida transforma las
información sobre trabajos, cruces,
acciones delictivas de una visión ética
sucesos familiares, relatos de vida,
memorias y el ocio; en el caso del
que
desde
su
campo-ciudad.
153
es
decir,
los
lugares
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015 18
barrio, este lugar de encuentro es
Marcos
una esquina17.
constante.
A mi llegada al barrio la
,
ese
número
era
la
En calle, y en especial en
‘esquina del sabor’ fungió como un
dicha
lugar
mi
hombres, lo que claramente me
socialización con los jóvenes del
indicaba la ausencia de mujeres en la
entorno, pero a lo largo de mi estadía
esfera pública. La única excepción
fui comprendiendo que no se trataba
fue la compañera de Richard, a
solo de un lugar de encuentro
quien, durante los seis meses que
común,
esa
duró mi trabajo de campo, fue a la
esquina Richard ponía su puesto de
única que observé hacer parte de las
comidas, sino, por el contrario, se
socializaciones esquineras.
preponderante
porque
para
además
en
esquina,
constituía como un lugar clave para
se
reunían
solo
La calle después de
el desarrollo de la economía ilícita
horas laborales estaba restringida a
callejera.
los
Durante el día y la noche me
hombres,
presente
y
la
única
asimilaba
mujer estos
encontraba con alguno de los jóvenes
comportamientos, es decir, de modo
afroesmeraldeños que constituían el
performativo actuaba dentro y fuera
grupo común del barrio y la esquina;
del grupo y fuera de forma masculina
eran entre 8 a 15 personas, número
en los momentos en que fuera
que se mantuvo a lo largo de mi
necesario, por ejemplo, para hacer
trabajo
respetar el territorio de invasores de
de
campo
y
sólo
con
excepción de uno de ellos, a quien
18 La
captura de este joven estuvo plagada de múltiples interpretaciones por parte de su grupo de amigos. El principal y más comentado argumento relaciona su captura con líos de faldas, es decir, celos por parte de un policía que salía con la que, según relataron personajes de confianza del barrio,
apresaron por tráfico de drogas (pasta base) en el mercado de San 17 En adelante este espacio urbano tendrá el nombre de: esquina del sabor.
154
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
otros
barrios,
persecuciones
donde el azar del día y la noche
policiacas, y como forma de ganarse
ofrece muchas sorpresas, de las
la vida en la calle por medio de la
cuales la más significativa son los
intimidación19.
negocios u oportunidades de hacer
Al
en
segundo
día
dinero o conseguirlo de forma fácil.
de
De modo que la sociabilidad que
llegada a El Paraíso conocí a Richard
manifiestan los afroesmeraldeños en
por casualidad, aquella noche me
la mencionada esquina tiene otros
acerqué a comer a su puesto de
propósitos que están por fuera de lo
comida y le pregunté lo siguiente: «
que a simple vista parece ocio.
¿Es peligroso salir de noche por el barrio?».
Luego
él
respondió
En
dos
ocasiones
pude
sonriendo: «Nada de eso, compita,
corroborar lo anterior y ganarme algo
acá la gente es bien… usted nomás
de dinero solo por hacer presencia
hágase conocer y ya» (Entrevista,
en la esquina del sabor y ayudar a
2012). Y eso fue exactamente lo que
Richard a negociar una bicicleta
fui construyendo noche a noche
robada a cambio de un paquete con
cenando en su puesto de comida, y
ocho o diez sobrecitos de pasta
conversando con él y todo el que
base/polvo que le había dado a
llegara en ese momento.
guardar Guacho 20 . En esa ocasión
Para Richard la esquina es el vínculo
de
congéneres
encuentro y
un
lugar
con
estuvo buscando, pues le impusieron orden de captura. 20 Guacho hace parte de los tres interlocutores principales que da corpus al resto de la investigación. Él es conocido entre los demás afroesmeraldeños como el único que continúa regularmente vendiendo drogas, y aunque tenga un horario y lugar de venta determinado para ejercer su labor, suele andar con algunas papeletas de pasta base/polvo cuando se encuentra a la noche con sus amigos en el barrio. Sin embargo, como él estuvo en la cárcel 4 años, sufre de paranoia y le dan ataques de nervios cuando la policía transita las calles de El Paraíso.
sus
práctico
era una mujer mayor con preferencias erótico-sexuales hacía jóvenes menores. 19 Durante el último mes de residencia en el barrio, desde finales de noviembre, se encontraba prófuga por el asesinato con arma de fuego de una mujer a la entrada del barrio. En varias ocasiones la Policía le
155
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
nos estábamos resguardando de la
a darle un dólar, el chico aceptó y se
lluvia, cuando un joven se acercó a
marchó.
Pasados
decirnos que acababa de robarse una
apareció
un
bicicleta en el sur de la ciudad y la
bicicleta y Richard la vendió en
estaba ofreciendo por treinta dólares.
cuarenta dólares, de los cuales cinco
«Esa bicicleta se ve buena, pero estás
fueron para mí, que no pensaba en
pidiendo mucho. Vea, ñaño, yo lo
recibir nada a cambio.
que tengo es polvo, te cambio estas 10 papeletas por la bici, ¿te sirve?» (Richard entrevista, 2012), le propuso Richard, pero este joven insistió en que le encimaran algunos dólares, pues no tenía con qué hacerse las pistolas (cigarrillo, fósforos). Para que se terminara el negocio yo accedí
156
diez
comprador
minutos para
la
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Autor: William Álvarez, La ‘esquina del sabor’.
varios billetes de veinte dólares. La
Cualquier cosa puede pasar en las esquinas, desde robos, venta de
mayoría
cilindros de gas, tanques de basura,
afroesmeraldeños
armas,
futbolistas
pasta
base
/polvo,
hasta
de
y
los
presentes
eran
migrantes,
exfutbolistas.
Todos
ofertas de trabajos para pintar casas,
discutían por el porcentaje que les
plomería, mudanza, incluso arreglos
correspondía, el cual fue repartido en
ilegales
futbol
partes equitativas (de haber llegado
profesional que aseguren triunfos o
cinco minutos antes hubiera recibido
produzcan derrotas. Una noche, de
algún dinero).
de
partidos
del
regreso al barrio, me encontré con
Lo
un gran alboroto en la esquina: se
había
sucedido
previamente se relacionaba con el
había formado un círculo alrededor
mundo de las apuestas ilegales. Un
de Richard, quien tenía en la mano 157
que
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
par de colombianos (según relató
quien tenía el contacto del arquero
Richard) emparentados con la mafia
del Emelec había perdido su celular
del narcotráfico en Ecuador1 llegaron
días antes, con lo que el cruce no se
al barrio porque sabían que algunos
logró.
de los muchachos que residían en la
Los anteriores relatos fueron
zona tenían contacto con jugadores de
primera
nacional.
La
división
del
propuesta
tan solo dos sucesos de los muchos y
futbol de
frecuentes
los
la
redes de parentesco, la economía
un gol ante el Corinthians (de Brasil)
ilegal e informal, y la identidad
en los octavos de final de la copa
regional en un solo lugar expone en
Libertadores de América (2012). Al
el espacio público variables como lo
arquero le ofrecerían 80 mil dólares y
masculino, lo étnico, el regionalismo,
por el favor darían 20 mil dólares, los
la
cuales se dividirían entre cuatro ‘Belleza’
en
genera la esquina para organizar las
(Ecuador) para que se dejara anotar
la
viven
barrio popular. Pero el poder que
arquero del Club Sport Emelec
Richard,
se
cotidianidad de la esquina de un
colombianos consistía en comprar al
(Guacho,
que
territorialidad
aspectos
y
que
y
la
autoridad:
explicaré
a
continuación.
Genaro). Para cerrar el trato dieron 100 dólares de adelanto a Richard el
Para
el
caso
de
la
dividió con los otros. Sin embargo,
masculinidad
jóvenes le dan al espacio describe su
1 Este
tipo de apuestas develan la presencia invisible de una red de lavados de activos que emplean al fútbol como un instrumento que permite blanquear fuertes sumas de dinero. Según los relatos de varios jóvenes del barrio que en un inicio llegaron a Quito a emplearse en las ligas menores de equipos profesionales con la expectativa de llegar a la primera división, las apuestas fraudulentas y los acuerdos ilegales para beneficiar o perjudicar resultados deportivos al parecer suelen ser frecuentes.
uso
que
estos
hegemonía, pero sin que esto omita el habitar de la mujer, el cual se produce de otra forma. Sin embargo, su uso en la mayoría de los casos se limita a circularlo de un punto a otro sin mucha pretensión de habitar la 158
el
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
calle y hacer de este un lugar
de
estratégico,
masculina.
demás
como
jóvenes
Richard lo
y
hacen.
los Esta
observar
en
la
Muchos
performance visitan
con
frecuencia a sus amigos en la cárcel
manifestación de masculinidad se
para
puede entender en dos vías: la
hermandad, pero otros como Richard
primera como un performance, y la
manifiesta sus emociones de otra
segunda
forma sin que esto lo deslegitime
como
una
construcción
mantener
los
lazos
de
masculina estratégica de resistencia y
ante los otros.
supervivencia que se refuerza por las
saber que algún pana lo metieron
duras
preso, a mí eso me entristece, por ese
condiciones
territoriales
y
históricas,
ecológicas
que
«Es duro visitar o
se
motivo me cuido de no caer preso, ni
agudizan en la cotidianidad agreste
tampoco ir a visitar alguien ahí
que les representa sus prácticas
dentro» (Richard entrevista, 2012).
laborales callejeras.
En cuanto a lo étnico, la
«No verse como un gil ni que
presencia
afrodescendiente
en
el
te vean las pelotas» es una de las
barrio se ve representada con su
frases comunes entre los hombres
habitar en la esquina, pero esta
del barrio cuando ven vulnerado su
afrodescendencia
honor y respeto frente a los demás, lo
entender de forma pluriterritorial,
que tampoco significa que ese tipo
porque
de
únicamente
masculinidad
niegue
los
no
quiero
se a
hacerla
circunscribe
jóvenes
de
la
y
provincias de Esmeraldas, también
afectivos, aspectos que he logrado
incluye jóvenes de Manabí y Guayas,
observar,
cuando
esto es importante de resaltar porque
alguno de sus amigos ha sido puesto
aunque exista una raíz identitaria en
en prisión. Cuando se presentan esos
común, las diferencias regionales son
casos se despliegan emotividades que
tan fuertes que tensionan los lazos
en otras circunstancias son difíciles
identitarios
acompañamientos
por
emotivos
ejemplo,
159
y
fracturan
las
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
socializaciones interculturales. Pero
el mencionado espacio un lugar
dado
social
que
la
provenientes
de
mayoría
son
Esmeraldas,
que
le
ha
sido
negado
el
históricamente mediante el discurso
criterio de selección del grupo de
racial y las prácticas excluyentes
amigos de Richard da preferencias al
devenidas de este tipo de conciencia
‘negro’ esmeraldeño. Por lo tanto, la
étnico/racial
superposición del regionalismo local
espacialmente.
es habitual a sabiendas del rechazo
Para
cultural que generan cierto tipo de
blanco/mestiza
participación
donde
afrodescendiente
jóvenes
lugar en el barrio ha sido un proceso
la
de luchas sistemáticas contra otros
es
actores ya territorializados como las
mínima. Y
los
afroesmeraldeños el hacerse de un
habitus dentro de un espacio racial de mayoría
estructurada
pandillas, que reflejan a su vez luchas cuando
las
diferencias
de reconocimiento ante la sociedad
culturales traen consigo una carga
en general. Los Latin Kings 2 o los
racial histórica, este tipo de violencia
Inmortales, según los relatos de
estructural
Richard,
tuvieron
una
encontradas, es decir, negaciones
presencia
en
barrio
hacia lo otro que conllevan a la
comienzos y mediados de la primera
producción
y
década del siglo XXI. Luego nuevos
subculturas, como lo he notado en la
actores como grupos juveniles o
apropiación que del espacio barrial
subculturas
asumen muchos de estos jóvenes. El
plantearon un nuevo escenario de
territorio, entonces, por parte de los
conflicto
afroesmeraldeños en El Paraíso está
produce
de
reacciones
microterritorios
juveniles
para
(hiphoperos)
territorial
que
se
Para una mayor información sobre los Latin Kings, véanse los trabajos de Mauro Cerbino: Pandillas juveniles, conflicto y cultura en la calle (2004) y Jóvenes en la calle, cultura y conflicto (2006). 2
legitimado tanto por el uso que ellos hacen del espacio callejero, como por la propia necesidad de encontrar en 160
el
fuerte
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
enfrentaban con jóvenes de otros
«Con la lengua se puede todo».
barrios con similares apropiaciones
Por lo tanto, la palabra se
subculturales. En medio de estos conflictos
y
sumado
a
la
convierte en una herramienta clave
fama
de supervivencia. El énfasis que
histórica de barrio bravo que carga consigo
El
afroesmeraldeños
Paraíso,
los
tuvieron
que
muchos de ellos hacen del lenguaje3 y con ello al habla, pero un habla que a medida pasa el tiempo se va
entrar en este campo de luchas uno a
educando,
uno, y luego en grupo para hacer
configurar
respetar su lugar en el barrio sin
estratégico
comprometerse con ningún bando.
domando, un y
logra
capital
cultural
discursivo
callejero
frente al que puedan tener otros grupos étnicos. Richard nos dirá:
«Con la lengua se puede todo»
Estos pelaos de ahora les hace falta verbo, a mi cuñado que es todo sano lo coge la Policía y teniendo todas las de ganar se deja llevar preso, mientras que el otro que cogieron con él robando salió rapidito, y… ¿sabe por qué? Le faltó lengua al pelao. Todo tiene salida, nada más soltar la lengua y más cuando te tienen cogido. A un primo de Rebeca le cogieron sin salvoconducto y con orden de captura. Ese man cuando estuvo dentro de la patrulla negoció con la policía su salida; esa misma noche me tocó prestarle 400 gambas para que saliera, además de dejar el arma (Richard entrevista, 2012).
El Con frecuencia en los relatos de otros jóvenes, además de los de Richard,
he
encontrado
muchas
experiencias violentas con la Policía. Pero en este tipo de violencia hay una profusa distinción. A diferencia de la violencia sobre jóvenes serranos y consumidores callejizados de pasta base/polvo, los afroesmeraldeños se
3 Ferdinand
de Saussure es quien suscita esta dicotomía estableciendo que existe una diferencia real entre “la realización concreta de una expresión lingüística o un conjunto de ellas” (habla) y el “sistema o estructura que genera las expresiones de dichas expresiones” (lengua). Para mayor información véase su Curso de lingüística general (1991).
han ganado un respeto considerable de la Policía, en buena medida por el hecho de hacerse respetar de sus abusos mediante el discurso y el enfrentamiento
físico,
o,
como
argumenta Richard: 161
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Para Richard, los policías no
mano con ganas de darle a ese hijueputa (Richard entrevista, 2012).
representan una autoridad por el
El
hecho de que carguen un arma o
particular
representen la ley. En una ocasión la
alrededores de la estación céntrica de transporte de La Marín por hacer uso indebido del espacio público con su venta informal: Una vez en La Marín me sacó la policía casi que a patadas, me tocó guardar las cosas rápido porque se estaban llevando todo lo que estuviera en la calle invadiendo; al que se pusiera bravo le echaban gas pimienta. Conmigo se prendió un agente a echarme como animal y yo me le paré convidándolo a pelear como hombre, pero como estaba con mi hijo me apresuré a dejarlo en la entrada del barrio porque estaban tirado gases lacrimógenos (Richard entrevista, 2012).
de
trataran con violencia sin importar repetidas
ocasiones
que
él
reclamó ser tratato con dignidad, es decir: con respeto. En esa ocasión
La ‘arrechera’ del momento
estuvo a punto de clavarle su hacha
llevó a Richard a sacar el machete
de defensa personal a un policía que
que cargaba en su carrito de comida
le seguía.
y responder con violencia los ataques
Los manes estaban tan alzados que ¿sabes qué hicieron? Uno se vino atrás mío para ver dónde vivía, apenas vi a mi hijo en la puerta le pedí que me sacara el hacha rápido porque se la quería enterrar a ese agente si me volvía a decir algo, pero él otro [policía] se dio cuenta y le silbó para que se devolviera, tenía el hacha en la
del policía: A mí esa injusticia y atropello me arrechan, ya cuando vi que mi hijo estaba arriba saqué el machete y me les enfrenté a los manes. Al que me quería ver cara de gil le clavé el machete entre el cuello y el hombro.
162
varias
cuando le intentaron desalojar de los
Richard contra la policía era que lo
las
en
es
ocasión lo hizo en defensa propia,
Estos manes yo no sé qué se creen, vinieron cinco motorizados (10 agentes) para obligarme a salir de acá. Hermano, yo estoy tranquilo vendiendo, no hace falta tanta violencia para decirme que no puedo tener mi negocio aquí, pero llegan alzados, hablando de mala manera como si yo fuera un delincuente. Dos motos me cerraron, querían quitarme el carrito, yo entonces me les alcé y les pedí que me respetaran, que ya me iba retirar porque vivía en la misma calle (Richard entrevista, 2012).
reclamo
que
Richard
cuerpo con la Policía. En otra
comidas en la esquina del barrio:
principal
dado
de
oportunidades ha peleado cuerpo a
Policía le prohibió tener su puesto de
El
caso
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
del barrio, porque estando fuera
Apenas vi que él sacaba su arma agarré a correr esquivando los disparos. Llegué a la tienda de un amigo donde guardé el machete y me hice una calle más arriba donde los panas, y como muchos ya habían visto el atropello de estos manes, los sacamos a punta de piedra (Richard entrevista, 2012).
corre peligro. Como las anteriores hay otra serie de historias que reflejan la relación conflictiva que se produce
En las ocasiones en que los
entre
la
Policía
y
los
jóvenes
policías me detuvieron en el barrio
afrodescendientes,
mientras
calles
blanco/mestizos en El Paraíso. Pero
acompañado de Richard y otros
en especial se ejerce mayor presión
jóvenes, ellos nunca lo hicieron con
sobre
la intención de llevarnos presos ni
afrodescendientes
tampoco
forma
drogas. Esta presión obliga a muchos
violenta, la policía es consciente que
de estos jóvenes a aprender otra serie
en el barrio no pueden sobrepasarse
de estrategias menos violentas o
en el uso de su fuerza legítima
impulsivas para resistir las redadas
porque
policiacas.
merodeaba
lo
sus
hicieron
de
inmediatamente
agredidos.
Pero
serán
cuando
estas
«La
que
él
no
valioso, pero, en definitiva, no es un recurso último para escapar de los
tenga
encuentros indeseados con la ley. De
enemistades con la policía, todo lo contrario;
le
conocen
bien,
modo que la lengua, es decir, la
le
estrategia discursiva, puede salvar de
observan, tiene cuentas pendientes
aprietos
con ellos y Richard lo sabe, esto
pero
también
empeorar situaciones.
explica su afán de no moverse lejos 163
de
emplean se convierte en un recurso
todo». Pero esa distancia y respeto no decir
usurarios
que los jóvenes fuera de la ley la
lengua,
muchachos, con la lengua se puede
quiere
y
jóvenes
lengua en el sentido estratégico en
primero en dar la cara, para luego diciendo:
hombres
o
Hacer un buen uso de la
detenciones sucedían Richard era el
regresar
los
serranos
puede
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
La mayoría de los jóvenes a
también es riesgoso, desgastante»
quienes entrevisté, que mezclan lo
(Richard entrevista, 2012). Dentro de
ilegal/informal con lo legal/formal o
la esfera de actividades que ha
solo están en el campo (en sentido
realizado Richard para sobrevivir, la
bourdiano
lo
venta de drogas no ha sido aislada,
ilegal/informal, saben de antemano
pero tampoco ha sido una actividad
qué decir, qué hacer y bajo qué leyes
de
ampararse cuando son retenidos por
esporádicos y coyunturales.
del
término)
de
la Policía. Además, están al tanto de
desesperado y molesto él me expuso
bien que la discriminación y el práctica
sucesos
espacio público en el barrio, en tono
los afrodescendientes saben muy
una
sino
hizo el operativo de control sobre el
al consumo de drogas, y en el caso de
son
preferencia,
La misma noche que la policía
las nuevas leyes referentes al robo o
racismo
su
lo siguiente:
ilegal
Hey, pana, la verdad me gustaría ahorrar un buen dinero para dejar a mi familia montada y luego amarrarme una bomba al cuerpo para acabar con todos esos hijueputas. Ya nos los soporto, hermano, voy a tener que volver a vender drogas, llenarlos toditos de polvo, pues ya no puedo, tengo deudas pendientes, ahora mi hijo va al colegio y ya necesita de los útiles… Yo esperaba pararme esta semana con la venta, pues, como tú sabes, por ayudar a mi cuñado me quedé sin dinero (Richard entrevista, 2012).
penalizada, sobre todo cuando es ejercida por la Policía.
Informalidad e Ilegalidad: subsistiendo con lo que sea Muchos de los jóvenes migrantes afroesmeraldeños habían tenido o continuaban teniendo algún tipo de
Richard
relación con el tráfico ilícito de pasta
tenía
contactos
base/polvo. Para Richard fue una
suficientes para comprar cualquier
entrada
importante
tipo
durante
un
de
dinero
y
cantidad
de
droga;
sin
él,
embargo, y luego que se le pasara la
«vender polvo es un buen negocio,
rabia por el incidente, argumentó
socio,
que volver a vender polvo ya no era
deja
tiempo.
mucho
Según
dinero,
pero 164
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
una opción. En el caso de Richard, el
bolsos originales o de imitación a
factor que más influyó para dejar la
pedido. Sin embargo, los trabajos
calle tuvo relación con el nacimiento
que realizan no ofrecen estabilidad,
de su hijo. Con mucha insistencia en
dependen en un gran porcentaje de
varias conversaciones que tuvimos, él
condiciones
hacía un fuerte énfasis en que su hijo
externas. La construcción tiene sus
era la razón de su vida y el principal
bajas y es inconstante, al igual que la
pretexto para volverse legal, desde el
subcontratación
día en que nació. Entre los jóvenes
circunstancias obligan a buscar otras
que
formas de ganarse la vida cuando los
conocí
existía
una
gran
diferencia entre quienes eran padres
trabajos
y quienes no lo eran. El habitus
sobrevivir.
delictivo de los últimos tendía a medir
menos
el
riesgo
en
motivación
para
textil.
formales
no
Estas
dan
para
Por lo tanto, la dependencia
las
que
actividades ilegales, incluso tenían mayor
socioeconómicas
se
forja
en
los
lasos
de
parentesco y las socializaciones al
hacerlo;
interior del barrio, sirven de puente
mientras los primeros evitaban en lo
para conseguir trabajos en sectores
posible volver a la delincuencia y
como
alentaban a sus congéneres moverse
la
construcción
manufactura
de la economía ilícita a la legal.
condiciones
(muchas
o
la
veces
en
a
los
adversar
Para el primo de Richard y la
amparados por la ley), empleos que
‘Belleza’, vender drogas también ha
suelen convertirse en alternativas
sido una opción, mas no una práctica
laborales
hegemónica de subsistencia. Todos
además de salvavidas económicos.
desempeñan actividades dentro del
a
corto
plazo,
Durante mi último mes de
mercado laboral legal/formal. Genaro
incursión
es maestro de construcción y la
en
el
barrio,
Richard
pasaba más tiempo en la esquina
‘Belleza’ confecciona en una empresa 165
viables
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
esperando cualquier oportunidad de
comida,
hacer algún cruce que vendiendo
responderá: «Ya me salí de ese
comida. Los últimos altercados con
negocio, socio, me tiene aburrido esa
la Policía y un daño que provocó el
hostigadera, quiero hacer otras cosas,
choque4 del automóvil de un vecino
en esto no me desgasto tanto aunque
contra su puesto de comida lo
tenga que ir lejos y cumplir un
desalentaron y lo desmotivaron de
horario» (Richard entrevista, 2012).
seguir en ese rebusque. Después de
En su nuevo trabajo le estaban
este incidente Richard no volvió a
pagando entre 120 y 150 dólares por
vender
esquina.
semana. Sin embargo, Richard no
persecución
consiguió encontrar estabilidad en la
policial y aprovechando la ayuda de
construcción de un solo golpe, de
sus amigos, consiguió un empleo
hecho, tuvo problemas desde un
temporal
principio porque no le pagaban a
comida
en
por
tanta
Aburrido
como
la
obrero
en
una
construcción. Para Richard
ya
tiempo diciembre había
de dejado
y
los
esta
decisión
trabajos
él
eran
temporales, lo cual le afectaba, ya
2012
que tenía deudas atrasadas.
por
completo la venta ambulante de
Pero este tipo de limitantes no
le
Para Richard este accidente fue un pretexto, con ello evitó trabajar una semana esperando le pagaran 120 dólares que según él cubrían los costos sobre los daños del puesto de comida, además, sumado la mercancía perdida. Pero el puesto de comida no sufrió mayor daño, él sobredimensionó el accidente y por esos días sin trabajar perdió más dinero de lo que recibiría en una jornada de trabajo. Las ganancias diarias pueden variar entre 40-80 dólares según el día de la semana y del tiempo que dedique a la venta. Haciendo una estimación media, es posible que Richard, durante el tiempo no laborado por el pretexto del accidente, dejó 4
impedían
rebuscarse
de
otra
manera dentro de esa estructura laboral irregular. De tal forma que hacía lo que fuera por percibir mayores ingresos, incluso vendiendo pasta base/polvo a algunos obreros colegas o teléfonos celulares de segunda mano que compraba barato de percibir durante esos días: 150 -200 dólares.
166
sobre
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
a ladrones en el barrio, y hasta la
días de trabajo, esto le fuerza a
posibilidad de robar el taller de
buscarse
herramientas de la construcción.
supervivencia6.
Muchas
estrategias
de
actividades
En el caso de Richard vender
económicas ilegales emergían en ese
comida informalmente en la calle o
espacio formalizado. Richard siempre
ser
busca la manera de sacar provecho,
representan
ingeniarse cualquier forma de ganar
peligro de las acciones ilegales y de la
dinero sin que esto lo involucre o
carga moral que conlleva situarse en
perjudique directamente. Como dice
dicho espacio como única estrategia
él: «Ñaño, las cosas hay que hacerlas
económica
con cabeza, uno ya no es ningún
embargo, este tipo de sucesos que
pelao
pueden ser frecuentes o esporádicos
para
otras
otras
arriesgarse
perder»
(Richard entrevista, 2012).
presentase
de
ajenas
subsistencia.
al
Sin
que los remarca negativamente y los criminaliza.
dólares extra haciendo cualquier tipo se
actividades
ellos se crea, se mediatiza, se habla, y
tampoco le impedía ganarse algunos
que
construcción
ahonda en el estereotipo que sobre
espacio barrial, tener un empleo legal
cruce
de
en los migrantes afroesmeraldeños
De regreso a casa, en el
de
obrero
Reflexiones finales
al
momento5. Richard es consciente de
En la etnografía presentada
la inestabilidad del trabajo en la
anteriormente podemos observar un
construcción, y aunque puede llegar
Richard, durante ese período de incertidumbre, concretó varios trabajos esporádicos pintando casas. Incluso surgió la posibilidad de irse a trabajar a una petrolera al Oriente, la cual le pagaría 600 dólares mensuales por trabajar 20 días y descansar 10. Sin embargo, esto no se pudo dar porque Richard tenía problemas serios con su cédula, aspecto que le impedía ser contratado directamente en empresas públicas. 6
a ganar de 400 a 500 dólares en 20 5 La
urgencia de conseguir dinero para pagar la renta mensual (90 dólares) y tener para los gastos de su hijo, obligó a Rebeca (su pareja) a dejar la escuela nocturna para conseguir un empleo mientras Richard encontraba una fuente estable de ingresos.
167
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
relato de vida que describe uno de
me remito a la categoría violencia
los tantos motivos que da pie para la
estructural, la cual describe una:
migración. Para el caso de Richard como
el
de
otros
muchos
Opresión político-económica crónica y desigualdad social enraizada históricamente, que incluye desde acuerdos comerciales de explotación económica internacional, hasta condiciones de trabajo abusivas y altas tasas de mortalidad infantil. (Citado en Bourgois, 2005: 14).
que
hicieron parte de esta investigación, la violencia física en su sentido más crudo
se
ha
convertido
en
el
Por lo tanto, este relato de
principal motivo para desplazarse mejor
vida es una muestra de cómo la
bienestar fuera de la precariedad de
violencia estructural da forma a otros
sus
Sin
de tipos de violencia que refuerzan la
embargo, este tipo de precariedad,
desigualdad, la miseria, pero sobre
sufrimiento, estrategias ilegales e
todo los estereotipos étnico/raciales
informales de sobrevivencia, tenemos
sobre este clase de población joven
que analizarlo también por encima,
que llega a las ciudades capitales
es decir, ¿por qué estas prácticas y
como lo es Quito, pero que puede ser
acciones se producen con mayor
cualquier otra ciudad en América
frecuencia en un determinado grupo
latina y encuentra en lo ilegal e
étnico? Para entender este proceso
informal una posibilidad de ascenso
hacia
otros
lugares
territorios
de
con
origen.
168
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
social. Y si bien no todos los jóvenes
ejercida
afrodescendientes migrantes realizan
producida en la cotidianidad de las
estas
de
diferencias e indiferencias de los
aquellos a quienes conocí en mi
residuos racistas y raciales que aún
residencia de campo en el barrio El
perduran
Paraíso,
urbanas del Ecuador del siglo XXI.
prácticas,
todos
la
mayoría
concuerdan
que
históricamente
en
las
y
otra
sociabilidades
sufren de una doble violencia, una Autor: William Alvarez, (El callejón, casa de un brujo)
Referências Alvarez, W. Fumando pasta base de cocaina en la Zona: ansiedad, adicción y violencia. Áskesis V 3- N1, p. 72-84, 2014. Bourdieu, P. Esquisse d’une théorie de la pratique, precedido de Trois études d’ethnologie kabyle. París: Seuil, 1972. Bourgois, P. Mas allá de una pornografía de la violencia. Lecciones desde el Salvador. En C. F. (Eds.), Jóvenes sin tregua Culturas y políticas de la violencia (pág. 237). Barcelona: Anthropos, 2005. Cerbino, M. Pandillas juveniles, conflicto y cultura en la calle. Quito: El Conejo, Abya Yala, 2004. Cerbino, M. Jóvenes en la calle, cultura y conflicto. Quito: Anthropos, 2006. Galtung, J. Violence, Peace, and Peace Research. Journal of Peace Research 6, 167191, 1969. Guerrero, A. Administracion de poblaciones, ventriloquia y transescritura: Analisis historico: Estudios teóricos. Lima: IEP: FLACSO sede Ecuador, 2010. Saussure, F. d. Curso de liguística general. Bilbao: Akal, 1991. Scheper-Hughes, N. La muerte sin llanto: violencia y vida cotidiana en Brasil. Madrid: Ariel, 1997. Unidad de Análisis e Información de la Secretaría Técnica del Ministerio de Coordinación de Desarrollo SocialSIISE- STMCDS. (2006). www.scribd.com. Recuperado el martes de Mayo de 2013, de www.scribd.com: 169
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
http://es.scribd.com/doc/77050424/Mapa-de-Pobreza-y-Desigualdad-en-ElEcuador
170
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
Entre dominação e consciência: Um olhar sobre a literatura em Antonio Candido Between domination and consciousness: a regard through literature on Antonio Candido’s writings Alice de Oliveira Ewbank 1 Resumo Neste trabalho procura-se explorar o diálogo crítico de Antonio Candido, através da crítica literária, com o período da ditadura militar no Brasil por meio de um jogo de contrários que caracteriza dois de seus ensaios produzidos neste momento. Assim, lidando com os termos “dominação” e “consciência”, que são tencionados a partir da sua oposição nos ensaios “Literatura e subdesenvolvimento” (1970) e “Literatura de dois gumes” (1966), parece possível perceber um diálogo implícito do texto com o contexto. Os ensaios de crítica literária são então tomados como objetos de análise sociológica, e o que resulta da pesquisa é a percepção sobre um movimento crítico que é próprio do autor – o de trabalhar com a oposição para melhor explicitar o tema – e que não se limita ao viés literário. Em outras palavras, e como já se disse uma vez acerca de outro ensaio seu, tratando de literatura Antonio Candido acaba por dar com a realidade do país.
Palavras chave: Antonio Candido, Literatura e sociedade, Crítica literária, Pensamento social brasileiro.
Abstract This article aims to explore Antonio Candido’s dialogue through literary criticism with the military dictatorship in Brazil (1964-1985) by means of a pair of opposite ideas that guides two of his essays written during this period. So being, through the notions of “domination” and “consciousness” which are tensioned based on the contradiction they produce, it is possible to stablish a relation between text and context at his essays “Literatura e subdesenvolvimento” (“Literature and underdevelopment”) (1970) and “Literatura de dois gumes” (“Literature and the rise of brazilian self-identity“) (1966). His writings on literary criticism become the object of sociological analysis from which it is possible to perceive that interest in opposing things represents a critical movement that cannot be reduced to the literary field only. As it has been said once about another of his works, by handling literature Antonio Candido ends up to reflect on brazilian reality.
1
Doutoranda pelo PPGSA/UFRJ.
171
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
Keywords: Antonio Candido, Literature and society, Literary criticism, Brazilian social thinking. realidade
Tomando como objetos de análise
significados pelo confronto com o
dois gumes” (Candido, 2011a), este
seu contrário. O diálogo entre os
trabalho parte de dois conceitos que meio
termos e entre os textos talvez não
da
rendesse não fosse a interlocução
oposição – recurso, aliás, frequente
implícita
na crítica do autor1. Assim, através do
contexto
de
Brasil. Portanto, começo fazendo
dois ensaios, procuro perceber como “sentimento
o
primeiros anos da ditadura militar no
que regem o encaminhamento destes
certo
com
surgimento destes dois ensaios, nos
par “consciência” e “dominação”,
um
busca
na medida em que tencionam seus
(Candido, 2011b) e “Literatura de
por
se
relação podem provocar esses limites
“Literatura e subdesenvolvimento”
dialogar
que
compreender. Quando postas em
dois ensaios de Antonio Candido,
parecem
do
uma volta no tempo.
dos
contrários”, para usar um termo do próprio
autor
(Candido,
2011a),
1. Sobre o contexto
opera na sua escrita produzindo
Os anos 1960, período no qual os
leituras que não costumam se fechar
textos de Antonio Candido passam a
em compreensões rígidas. Ou seja, focando dominação
nos
termos,
alcança
nem
o
incorporar com maior evidência a
a
América
controle
nitidez
olhar crítico do autor. Além da
a
instauração de diversas ditaduras
militares
1 Desenvolvo
melhor este tema na minha dissertação de mestrado, cujo segundo capítulo é aproveitado em boa parte neste trabalho.
pelo
continente
latino-
americano – no Brasil e na Bolívia em 172
um
que confirmam a pertinência do
impõe, nem a consciência ilumina com
revelam
conjunto de fatos e problemáticas
completo sobre aquilo ao qual se
necessariamente
Latina,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
1964, na Argentina em 1966, no Chile
desenvolvimentismo, como a Cepal
e no Uruguai em 1973 (Sader, 2006) –
(1948), que teria um papel central na
, o que em si já representava um
articulação
dos
elemento de aproximação entre esses
continente,
o
países,
Brasileiro
nessa
periféricos
década
os
países
experimentaram
a
de
intelectuais IBESP
Estudos
do
(Instituto Sociais
e
Políticos – surgido em 1952) e o ISEB
exaustão o incômodo da consciência
(Instituto
do
Em
Políticos – criado em 1954), que
realidade, já vinha da década de 1950
concentrariam esforços em uma nova
a
guinada dos estudos sociológicos e
subdesenvolvimento.
preocupação
com
o
atraso
Superior
econômicos
neste momento começara a deixar de
conformaria esse quadro a atuação da
ser
UNESCO
como
algo
em
no
Brasil.
Estudos
irremediável da América Latina, que
percebido
no
de
Também
financiamento
de
suspenso, possivelmente corrigível
estudos e instituições de pesquisa no
pela pretensão de superar 50 anos de
Brasil, como foi, por exemplo, a
atraso (e muitos mais) em 5, para
criação da CLAPCS (Centro Latino
lembrar
Americano de Pesquisas em Ciências
o
slogan
de
Juscelino
Kubitschek, e se transformara em
Sociais)
problema urgente a ser resolvido. O
agências,
momento era de repensar a condição
Unidos a LASA (Latin American
de dependência destes países – nos
Studies Association), em 1966, que
planos social, econômico, político e
reuniria
cultural – e tentar consertar aquilo
americanos exilados em função do
que atravancava o desenvolvimento
interesse pelo continente, que agora
das forças do continente latino-
se colocava como uma necessidade, e
americano. Se orientariam por este
a
objetivo alguns programas surgidos
Latinoamericana
no contexto de explosão do nacional173
em
1957.
surgiria
Além nos
intelectuais
FLACSO
destas Estados
latino-
(Facultad de
Ciencias
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Sociales), criada em 1958 no Chile2.
1962 a primeira cadeira de Literatura
No conjunto fica claro o interesse em
Comparada em uma universidade
impulsionar
brasileira
o
desenvolvimento
4
.
Recém
ingressado
destes países, como demonstra a
institucionalmente no universo de
criação dessas agências ocupadas
estudos de literatura, com a outorga
com
e
do magistério nessa área na também
propostas para a superação do nosso
recém criada Faculdade de Filosofia
subdesenvolvimento.
de Assis, Antonio Candido teria um
o
fomento
Também
de
nesta
estudos
época
papel
se
fundamental
desenvolvimento
percebe o esforço intelectual de
da
no área
de
Literatura no país e na América
construção de uma área de estudos
Latina.
de literatura comparada na América Latina, somando às pesquisas no
Pulando
uma
década,
e
campo econômico e sociológico o
passando para o ano de 1973, é
impulso para uma visão integrada do
preciso
continente através das dificuldades
“Milagre Econômico” propagandeado
partilhadas
3
lembrar
o
período
do
. No Brasil, Antonio
pela ditadura militar ao longo dos
Candido teve papel fundamental na
anos de 1968 a 1973, quando a
articulação da produção de estudos
economia brasileira experimentaria
literários
um crescimento vertiginoso, com
desenvolvidos
no
continente, inclusive fundando em
redução
inflação, em oposição ao período
2 Lucia
Lippi Oliveira (2005) desenvolve num artigo justamente o contexto de surgimento dessas instituições no momento de voga do nacional-desenvolvimentismo, chamando a atenção para a produção sociológica em torno das questões então postas, e do diálogo do Brasil com os Estados Unidos e a América Latina. 3 Sobre o surgimento dos estudos de Literatura Comparada na América Latina e no Brasil, ver Nitrini (1997).
da
taxa
de
inflacionário dos anos 1962 a 1967. 4
Além do livro de Sandra Nitrini mencionado acima, ver, a propósito da criação da cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo, Nitrini (1994), Ramassote (2006). Sobre os estudos comparados realizados no
174
significativa
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
Ao contrário do que então era
artigo, entre outras questões, aparece
difundido na imagem de um Brasil
a falta de empenho dos intelectuais
pujante e promissor, que confirmaria
brasileiros na construção de uma
o
e
área comum de estudos literários na
burocratas desde a década de 1950
América Latina. É de se notar que,
em busca de um certo ideal de
no mesmo ano, Ángel Rama dera um
modernidade,
o
curso na Universidade de São Paulo
subdesenvolvimento ganharia novos
a convite de seu amigo Antonio
contornos. Curiosamente o ano de
Candido, e que antes mesmo do texto
1973 reúne alguns dos fios soltos que
ser
se busca entrelaçar neste diálogo
congresso, sairia em primeira mão
entre literatura e sociedade.
em língua portuguesa na revista
empenho
dos
Neste Ontário,
debate
ano
no
congresso
se
sobre
realizou
Canadá,
o
da
Internacional Comparada.
o
intelectuais
em
Antonio
sétimo
crítico
o
participaram
uruguaio,
autonómico:
5 O
las
literaturas nacionales a la literatura latinoamericana” (Rama, 2008). Neste Brasil antes da institucionalização da área, ver Candido (2004).
175
seus
ensaio
“Literatura
e
artigo de Ángel Rama foi publicado no número 3 da revista. Cf. Nitrini, 1997. 6 “Literatura e subdesenvolvimento” (Candido, 2011b) foi publicado pela primeira vez em tradução francesa na revista Cahiers d'Histoire Mondiale, da UNESCO, em 1970, e logo em seguida foi publicado em espanhol no livro coletivo a que se destinava, América Latina en su literatura, também editado com a colaboração da UNESCO. Em português sairia pela primeira vez no número 1 da revista Argumento, em 1973, até passar a integrar, em 1987, o livro de Antonio Candido, A educação pela noite (Idem, 2011e).
(Candido,
de
os
1978), e o segundo com o texto “Un processo
entre
não convergisse com o interesse
o
“Le roman latino-américain et les brésiliens”
Candido
subdesenvolvimento” 6 , que embora
primeiro com a apresentação do texto
novateurs
do
publicado, em seu número de estreia,
Antonio Candido e Ángel Rama, renomado
anais
organizadores. A mesma revista havia
Literatura
Dele
nos
Argumento, em 1974 5 , que tinha
Associação
de
publicado
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
desenvolvimentista
que
marcou
do caráter predatório da economia
majoritariamente
a
produção
capitalista na desigualdade entre o
intelectual nessa época, não deixava
Primeiro e o Terceiro Mundo, o que
de dialogar com a temática. Para
estava em jogo era perceber sem
puxar mais um fio deste ano de 1973
ingenuidade a condição do nosso
dando caldo para a correlação entre
atraso.
literatura e sociedade, também no primeiro
número
da
Antes
Argumento
especificamente
foram publicados os artigos de Celso Furtado,
“O
desenvolvimento
mito e
o
futuro
dois gumes”, de 1966, apareceu pela primeira vez na leitura feita por Celso
um
Lafer,
crise
inglesa,
na
and the rise of brasilian self-identity”
de
na
importância?” 7 . Cada texto, a seu
Luso-Brazilian
Review,
de
Wisconsin, em 1968 8 . Pouco tempo
modo, expressava o quadro mais cru
depois foi publicado em português
do subdesenvolvimento do país. Seja
no Suplemento Literário de Minas
tratando da taxa de analfabetismo,
seja pela constatação de um consumo
Gomes, 1973; Cardoso, 1973; Bernardet, 1973. 8 Considerando-se o momento em que primeiro surgiu “Literatura de dois gumes”, dois anos antes da sua primeira publicação, ao longo deste capítulo a data utilizada como referência ao contexto do artigo, salvo indicação contrária, será a do seu aparecimento, portanto, o ano de 1966.
aflitivo da cultura de massas norteamericana, ou ainda pela denúncia 7 Os
artigos referidos constam na bibliografia respectivamente como: Furtado, 1973;
176
tradução
publicado com o título de “Literature
como Paulo Emílio, tinha o título “Uma
em
Universidade de Cornell, tendo sido
Bernardet, que, tratando de cinema
de
ensaio
enfoco neste artigo. “Literatura de
caminho possível?”, e de Jean-Claude
expressivo
o
ensaio de Antonio Candido que
subdesenvolvimento”, de Fernando “Chile:
sobre
mais
cabe adentrar o percurso do outro
do
Salles Gomes, “Cinema: trajetória no
Cardoso,
tratar
“Literatura e subdesenvolvimento”,
do
terceiro mundo”, de Paulo Emílio
Henrique
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
Gerais, em 1969, até passar a integrar
Outro aspecto digno de nota
o livro de 1987, A educação pela
diz
noite, que reúne ensaios de Antonio
português dos dois artigos, já que
Candido
De
ambos saíram em português pela
antemão, nota-se que ambos os
primeira vez também em periódicos –
ensaios estrearam em publicações
“Literatura de dois gumes” saiu no
estrangeiras,
Suplemento
(Candido,
2011e).
conferindo
uma
respeito
à
publicação
Literário
de
em
Minas
circulação mundial aos textos que é
Gerais com o nome de “Literatura e
garantida, sobretudo, pela condição
consciência nacional” 9 . Embora o
transnacional dos dois periódicos e
Suplemento
do livro, mas também pela própria
pelo governo do estado de Minas
temática que trabalham. O periódico
Gerais, o que neste período de cerco
norte-americano traz no nome a
político indicava muitas restrições,
relação fundamental de vínculo entre
mantinha
o Brasil e Portugal, a colônia e a
contrário ao regime militar 10 . Entre
metrópole; o livro publicado no
tantos autores consagrados e tantos
México com auxílio da UNESCO,
outros
pelo o que o título mesmo indica,
naquelas páginas, Libério Neves e
aborda o contexto continental no
Bueno de Rivera, surgiam, nos anos
qual o Brasil se insere ao mesmo
a América Latina – objetos do artigo de Antonio Candido – em âmbito
receptáculos
alguma dos
forma
artigos
os
também
dinamizam a chave comparativa com a qual Antonio Candido lida. 177
subvencionado
posicionamento
como
foram,
se lê através do site organizado pela Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais, que digitalizou todos os artigos publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, que ainda hoje é veiculado. Cf. Novaes & Marques, 2013; Dantas, 2002. 10 Fundado em 1966, o Suplemento em pouco tempo atingiu um número significativo de publicações, tornando-se uma das revistas literárias de maior circulação na época, dentro e fora de Minas Gerais. Entre os seus colaboradores estavam Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes, a fina flor da literatura brasileira.
revista da UNESCO integra o Brasil e
De
um
estreantes,
9 Conforme
tempo em que se diferencia; e a
mundial.
fosse
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sinistros da ditadura militar, poemas
“O
e artigos de oposição e crítica, o que
Antonio
levaria, em 1969, à demissão do
importância
idealizador e editor do Suplemento,
escritores,
Murilo Rubião, seguida por três
pontos, mas reunidos em defesa da
nomeações
garantia das liberdades intelectuais
efêmeras
no
mesmo
ano11.
dos
Candido da
escritores”, lembra
reunião
divergentes
em
a dos
vários
contra a censura do Estado Novo, o Para
Antonio
Candido
que
e
São
ditadura de Getúlio Vargas durante o Estado
Novo
teria
repercussão
e
no
Congresso
dos
O em
Congresso, consequência
da
que da
movimentação
política promovida pela recém-criada
política e de expressão, censura da violência
Paulo.
aconteceu
representado
semelhante restrição às liberdades
imprensa,
resultou
Escritores, realizado em 1945, em
muitos intelectuais da sua geração, a
Associação Brasileira de Escritores
repressão,
(ABDE), tinha o propósito claro de
como as que repunha a ditadura
congregar intelectuais como força de
militar de 1964. Como declarou
oposição à ditadura, e culminou no
Antonio Candido em um artigo
manifesto político lido pelo escritor
publicado durante a ditadura de
gaúcho, Dionélio Machado, no qual
1964, mas que, perspicazmente, fala
se exigia a legalidade democrática
de um movimento de oposição à
como garantia da total liberdade de
ditadura de 1937, lembrar de “certos
pensamento. Apesar de, segundo
momentos do passado pode [sic]
Antonio Candido, o Congresso ter
servir de pretexto ou estímulo para
acontecido em um momento em que
refletir sobre o presente” (Candido,
a ditadura já se desmanchava, e,
2007a: 99) 12 . Neste artigo, intitulado
ditadura” na revista Opinião, em 1975. Foi posteriormente publicado no que é considerado, provavelmente com razão, o livro mais político de Antonio Candido: Teresina, etc. (Candido, 2007b).
Sobre o Suplemento Literário de Minas Gerais, Cf. Novaes & Marques, 2013. 12 O artigo “O Congresso dos Escritores” surgiu com o nome de “Os escritores e a 11
178
Congresso
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
portanto, não ter repercutido tão
Retomando o enfoque comparativo
negativamente para os já frágeis
entre os dois artigos de Antonio
órgãos
sido
Candido, “Literatura de dois gumes”
importantíssimo pelo que significou.
(Candido, 2011a) e “Literatura e
Não apenas pelo que representou
subdesenvolvimento”
para o grupo dos escritores nas
2011b), depois das várias publicações
discussões
questões
em meios diversos, foram reunidos,
relativas à profissão, que teria sido o
em 1987, no livro A educação pela
objetivo inicial do Congresso, mas,
noite.
sobretudo, pela mobilização política
panoramas
de
tratados
do
governo,
acerca
oposição
teria
das
que
promoveu.
Não
(Candido,
sendo pouco
em
cada
exatamente
minuciosos ensaio,
os
como
Mobilização ampla contra as forças
escreve o autor, são textos marcantes
reacionárias, contra a restrição das
e esclarecedores sobre a literatura
liberdades,
governos
brasileira a partir do seu ponto de
autoritários e fascistas que vingavam
vista. Apesar do interesse que teriam
na Europa e tinham o apoio, meio
despertado
camuflado, do governo brasileiro. A
reunidos, quando das suas primeiras
referência,
este
publicações, o livro que os colocava
momento do passado, não passa
lado a lado não teria tido grande
despercebida
repercussão:
contra
neste
a
os
artigo,
quem
o
a
lê
no
presente do texto, no ano de 1975.
escritos
agora
Não sei explicar a diferença de recepção: talvez os estudos já tivessem cumprido o seu papel de impacto e intervenção provocativa no momento cultural. Entretanto, reunidos em livro, compõem um conjunto impressionante pela variedade e complexidade das questões abordadas. Por contraste com o título – e de acordo com ele – são ensaios iluminadores, que projetam uma compreensão nova sobre assuntos tão diversos como ficção e autobiografia, literatura e subdesenvolvimento, origens da teoria do romance ou nova
Como queriam os escritores em 1945, e insistiam os intelectuais “trinta anos depois” (Ibidem: 103).
2. Textos da noite
179
os
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
pela noite” para o contexto de
narrativa brasileira. (Lafetá, 1992: 205206)
Neste
último
surgimento
aspecto
contra
algumas das observações que faz
a
escuridão de
da
dois
ditadura,
gumes”
e
provocavam a reação contrária à
de particular interesse. Por isso as
tencionada
aproveito aqui, com o perdão da
pela
disciplina
de
controle, ambos se voltando, em seus
sequência de citações. O título do
temas
livro é devido a João Cabral de Melo
e
proposições,
para
o
amanhecer da consciência através de
Neto, o poeta pernambucano, cuja
uma prosa profundamente crítica.
obra A educação pela pedra exprimiria
Além da vocação esclarecedora num
conotações de peso, dureza e solidez que decorrem da metáfora da ‘pedra’, [..] [enquanto] Antonio Candido escolhe a imagem romântica da ‘noite’, com as conotações opostas de imponderável, de fluido e de dissoluto. […] no seu sentido mais comum, ilustrado e iluminista, a educação é o espancamento das trevas, o afastamento da noite.” (Lafetá, 1992: 210, grifo meu)
período obscuro, conformam um par que acentua ainda mais a tensão explicitada por Lafetá, e cujas ideias ainda hoje são ágeis em interpelar aqueles que se aventuram a pensar o Brasil. Um par de contrários poderse-ia dizer, ainda que não menos
O fecundo na apreciação que
ligados
faz Lafetá sobre a obra de Antonio
pelas
suas
diferenças.
Enquanto “Literatura de dois gumes”
combinação
versa
contraditória entre a “noite”, que é
sobre
instrumento
escuridão e, portanto, falta de visão e
imposição
vazio de saber, e a “educação”, que é
a de
de
literatura
como
dominação,
ideias
de
estrangeiras,
“Literatura e subdesenvolvimento”
movimento de esclarecimento, de
trata da aquisição de consciência
abertura do olhar e expansão do
nacional com relação à condição
conhecimento. Trazendo a “educação 180
artigos,
“Literatura e subdesenvolvimento”
ensaios e ao volume que os reúne são
na
a
“Literatura
João Lafetá com relação aos dois
está
dois
metáfora se torna cortante. Indo
ressaltado acerca do título do livro,
Candido
dos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
dependente e marginal do Brasil. Em
consequências que ao mesmo tempo
duas
como
reforçam e dificultam as tentativas de
como
compreensão
palavras,
dominação
literatura
e
literatura
do
nacional.
consciência. Nada mais próximo de
Observados em relação à Formação,
uma “educação pela noite”.
operam
Relembrando
então
dilatam a tese numa comparação com a América Latina, aliás, com toda a
qual se falou no início deste texto, dizer
que
o
América, ainda que por vezes ela
ensaio
apareça de forma difusa. E o segundo
“Literatura de dois gumes” forma ao lado
de
“Literatura
movimento diz respeito aos períodos
e
abordados, que dando continuidade
subdesenvolvimento” um par (de
à
contrários) que dá continuidade a
da
literatura
aprofundam
mas,
elementos
empresa portuguesa de colonização, justamente na fase precedente ao
de
surgimento da “literatura comum”, e,
anteriormente
portanto, quando teria sido plantada
trabalhados, avançam para além dos
a semente do que viria a ser mais
limites estabelecidos. Em ambos,
tarde a literatura brasileira. Vai mais
Antonio Candido trabalha com a questão
do
duplo
referente
fundo no passado da formação da
da
nossa literatura, para mais uma vez
cultura brasileira e latino-americana, cuja
origem
europeia
manifestações
mais
acarretaria
uma
das
demonstrar
suas
a
origem
americanas pôde, ao contrário do
de 181
como
estrangeira das literaturas latino-
determinantes série
estão
no momento de estabelecimento da
problemas
partindo
Formação,
recua um pouco no tempo e se detém
presentes na célebre história da literatura,
da
primeiro ensaio, Antonio Candido
brasileira
(Candido, 2012). Cada qual a seu tempo,
temática
orientados para direções opostas. No
certas questões centrais contidas na Formação
movimentos
significativos. O primeiro, é que
o
“sentimento dos contrários” sobre o
pode-se
dois
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
que previra a empresa, resultar em
de maneira comparada. Para usar os
processos originais. Em “Literatura e
seus termos, eles são “amostras de
subdesenvolvimento”
crítica
a
direção,
esquemática”
(Candido,
como se disse, é contrária, e o que se
2011d: 10) que, ao retomar estas
lê é um avanço no tempo da questão
questões,
comparativa
preocupação
que
move
a
sua
explicitam norteadora
uma da
concepção de literatura brasileira (e
crítica,
latino-americana).
ensaio
possibilidades de desdobramento da
Antonio Candido retoma em outro
problemática em diferentes textos e
plano
contextos.
o
Neste
problema
da
“dupla
fidelidade” dos nossos escritores,
Insisto
revendo na consciência nacional as implicações
correspondentes
publicação
ao
contexto
reelaboração da cultura importada
apurando
brasileira em finais do século XIX
e
a
literatura
presentes
na
sociedade. Quanto ao que dizem
daquela
esses
ensaios
detalhado,
latino-
no
pode-se
plano dizer
mais de
“Literatura de dois gumes” que é
americana, aliás, americana, sempre
provavelmente o artigo que melhor 182
temas
percepção sobre o andamento da
ensaios
necessidade de se pensar a literatura brasileira
à
qualidade peculiar da literatura e a
previamente
escopo
indispensável
numa composição elaborada e sutil a
conjunto com a Formação, porque
o
é
para o momento presente, fundindo
pós II Guerra Mundial. Pensados em
ampliam
ensaios
anteriores, eles orientam as questões
no século XX, chegando a autores do
dois
dois
Formação e em outros textos seus
para a literatura sua contemporânea
estes
destes
da
trazem. E isto para perceber como,
encerrada na Formação da literatura
esboçadas,
momento
compreensão das questões que eles
em algo novo, estendendo a temática
questões
no
as
porque me parece que a chave do
influxo de cultura europeia e à
aprimoram
prolongando
sua
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
retoma, nos termos da Formação da
dialética
literatura brasileira, a centralidade da
brasileira: da literatura portuguesa
comparação
que fora para cá transplantada até a
na
compreensão
do
central
consolidação
do
a
brasileira, o que guia esta passagem é
literatura
o desejo ambíguo de possuir uma
brasileira, adensando a análise crítica
literatura própria, brasileira, mas que
sobre a questão com acentos mais
seja tão boa como as europeias; o
agudos em determinados pontos. Se
desejo, no fundo, de possuir uma
no livro o propósito é o de escrever
literatura, e, por conseguinte, uma
uma história da literatura no desejo
nação independente da influência
dos brasileiros em possuírem uma,
metropolitana. O desejo de se livrar
apresentando
e
da influência colonial se sustentaria
atores, e os seus traços, dentro de
até certo ponto, porque seria dela
uma continuidade entre os seus dois
que se nutriria o modelo de literatura
períodos
artigo
que se quer construir. Neste sentido,
Antonio Candido dá maior ênfase ao
a dialética do local e do universal dá
aspecto
pouco destaque ao efeito castrador
origem
pressuposto
europeia
os
sobre
da
seus
formativos,
político
autores
neste
da
literatura.
Ressalta um traço que pouco aparece na
Formação,
cultura
europeia
literatura
sobre
a
a
pluralidade ainda não unificada do
centralidade da comparação entre o
que viria a ser o Brasil, porque
Brasil e a Europa por meio do
interessava analisar o processo de
aspecto impositivo e colonizador que
surgimento
teve a literatura oficial nos primeiros
brasileira,
anos da ocupação portuguesa. No
cultural que contivesse em si uma
livro
unidade
de
1959,
indicando
da
uma
literatura
Brasil a partir da sua literatura. Parte mesmo
de
da
o
traço
político
de de
alheia
uma uma
à
literatura
manifestação
sua
origem
acompanha todo o encaminhamento
portuguesa. De modo que o caráter
narrativo,
pulsante de uma nova literatura
posto
que
figura
na 183
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
garantida
pela
continuidade
da
origem estrangeira através do papel
dinâmica
do
sistema
literário
que ela teve como instrumento de
importava mais que os possíveis voos
imposição
da
compelindo
imaginação
reprimidos
pela
imposição da cultura estrangeira. Era preciso
diferenciar
cultura a
europeia,
variedade
das
manifestações culturais indígenas ao
literatura
desaparecimento ou a uma existência
brasileira da literatura portuguesa,
frágil e controlada13. Quer dizer, não
ainda
deixa lugar à dúvida quanto ao berço
que
a
a
da
explicitação
desta
diferença se fundasse na combinação
das
supostamente
colônias
contraditória
do
literaturas
surgidas
nas
ex-
latino-americanas,
elemento europeu com o brasileiro.
sublinhando,
No ensaio de 1966, escrito num
violenta do processo. Em segundo
contexto muito diferente daquele da
lugar, a contradição apontada pelo
Formação, a preocupação, apesar de
autor dentro deste mecanismo de
partir
dominação,
dos
mesmos
pressupostos,
ainda,
que
a
faria
natureza
com
que
avança o posicionamento sobre a
surgisse de dentro dele um espírito
mesma dialética.
reivindicatório
busca daquilo que seria próprio da
acordo com o caráter impositivo que
terra,
ela pode exercer sobre uma cultura,
elas
possuem de uma combinação tensa entre o referente europeu e as características
nacionais.
Em
primeiro lugar, o acento na literatura como
dominação
explicita
a
sua 184
o
estímulo
13 No domínio da literatura, embora, em geral, as culturas nativas latino-americanas não tivessem uma produção que pudesse ser aproveitada em combinações particulares com a cultura trazida com a Conquista, Antonio Candido nota, a propósito da possibilidade não lograda de desenvolvimento de uma literatura original na Bolívia, como o caráter impositivo da colonização impediu que até mesmo estas raras produções sobrevivessem depois do estabelecimento dos europeus na América (Candido, 2011b).
literatura brasileira e das literaturas que
condicionaria
torna mais nítida a ambiguidade da
no
independência
que, em consequência, levaria à
Ao atualizar a função da literatura de
latino-americanas
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
nacional.
Apesar
do
aspecto
esteticamente (como procura de originalidade). (Candido, 2002a: 99)
impositivo da literatura europeia que
Literaturas como estas, profundamente ‘comprometidas’ (no sentido amplo de construção de uma cultura), devem ser encaradas no seu movimento dialético, essencialmente integrador, para poder-se avaliar a sua função histórica nas diferentes etapas. (Ibidem: 102)
aqui teria se instaurado, ela não impediria
que
manifestações
surgissem
contrárias
interesses
dos
fecundando
o
aos
colonizadores, início
de
uma
literatura nacional e de um país independente da metrópole através
3. Dominação e consciência
do despertar da consciência nacional. Assim, ficaria posta a dualidade que
Pensando sobre a dominação e a
qualificaria os processos formativos
contradição que ela gera a contrapelo
das literaturas (e das nações) na
do seu propósito castrador, ganha
América Latina, fundadas sob a sua
outra luz o contexto de surgimento
condição dupla de local e universal.
do artigo. Da mesma forma que no
Como
texto
explica
Antônio
Candido
sobre
o
Congresso
dos
numa fala sobre temas da Formação
escritores (Candido, 2007a), Antonio
da literatura brasileira:
Candido remete a um passado para
Para estudar a literatura na América Latina há dois ângulos que podem gerar dois tipos de teorias e metodologias. Ambos são válidos e não devem ser considerados mutuamente exclusivos; e sim correspondentes a dois ‘momentos’ dialéticos do processo global: a) a literatura como prolongamento das literaturas metropolitanas - e; b) como ruptura em relação a elas. As nossas literaturas são ‘prolongamento’ porque se ligam organicamente às do Ocidente, transplantadas para aqui já constituídas (singularidade que deve ser levada em conta). (...) Ao mesmo tempo, as nossas literaturas são ‘ruptura’, tanto politicamente (como consciência de separação), quanto
interpelar o presente através dele. Pensando sobre o sentido da análise da literatura enquanto dominação, sobretudo geraria,
talvez
paradoxo dialogasse
que com
ela o
caráter constritivo da ditadura militar naquele ano de 1966. A preocupação em caracterizar como essencialmente dominadora a literatura que para cá fora transplantada no século XVI, 185
no
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
revela uma afinidade maior com o
seria vestida e pintada de grandezas
momento da publicação do artigo
imaginárias.
justamente
redigido nos moldes da literatura
pela
correspondência
Tudo
claro,
europeia
portuguesa
transplantada, o que não impediria,
caracterizara
pela
culturas instalados para instituir à
imposição
força os valores e as tradições que
servisse de “fermento crítico capaz de
traziam de Portugal e da Espanha,
manifestar
também naquele momento as forças
colonização” (Candido, 2011a: 207).
militares
como
O contraste, por sua vez, estimularia
movimento de dominação sobre a
o interesse pelas coisas do país. O
democracia estabelecida.
apogeu desta tendência, que teria como
A cultura, expressa no artigo
estaria apontando neste momento para um traço negativo na sociedade,
liberdade
e
no
componente
elemento oposto,
o
que
pela
desejo
diferenciação busca
de
da um
brasileiro.
A
aspiração
a
Europa
o
seu
sentido
formação da consciência nacional. Como diz Antonio Candido em outro
iria
ensaio
de
dentro
dos
tom
desenvolverem
compensatória na qual a realidade 186
político
sistemas
conservadores
promover na literatura uma escrita
metrópole
o
orientador, conjuga na literatura a
Antonio
aos da metrópole estimulariam um nacional,
de
com
seu
cada vez mais contrários dos colonos
no
crescente
ao
da
contrastiva, que tem na comparação
Candido faz notar como os interesses
mergulho
predominante levaria
a
culturais
desarmonias
marca
nacional,
da
dignidade humana. Por outro lado, vendo
que
antepassado – e de um passado –
um traço oposto aos valores da da
padrões
as
Indianismo,
principalmente a partir da literatura,
democracia,
dos
Autor,
fora
como
impunham
o
cá
determinação de subjugar os povos e
se
insiste
para
é
temática. Se o início da empresa se
que
isto,
é
“mesmo
fechados possível
tendências
e se
contra”
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
(Candido, 2002c: 377). Quer dizer,
idealizada da terra, oriunda da visão
aproximando o contexto tratado no
idílica que fora difundida sobre a
ensaio com o do aparecimento do
América
texto, o argumento parecia adequado
primeiros europeus. Esta visão do
aos dois: apesar da imposição de
paraíso acabaria desenvolvendo uma
interesses opressivos e opressores, o
crença na autonomia e na grandeza
controle sobre a sociedade e as suas
da pátria, e durante longo tempo
manifestações
culturais
conviveria
impediria
nela
que
não
desde
a
com
chegada
o
dos
sentimento
surgissem
ambíguo de afirmação da riqueza da
movimentos contrários aos interesses
terra e o desejo de alcançar o
dominantes. No caso de “Literatura
patamar europeu de “civilização”.
de dois gumes”, a alegação estaria
Existira,
comprovada historicamente através
entusiasmo
do paradoxo que teria se dado dentro
percepção “amena do atraso”, que se
da literatura colonial. Passando do
faria notar no sentimento de estar
texto para o contexto, ela poderia
aquém do modelo almejado. Com o
servir como uma provocação ao
fim
autoritarismo imposto pelo regime
consciência sobre o país se tornaria
militar, como quem dissesse que
mais realista, e reconhecendo sem
todo aquele controle não impediria a
idealismos o seu lugar dependente,
formação de tendências contrárias à
perceberia a sua condição de país
disciplina que se queria assegurar.
subdesenvolvido.
Em
“Literatura
força
nitidez
distintos dessa consciência. Um se
do
Guerra
que
do
“Literatura
percepção 187
II
uma
Mundial
Neste
ensaio
a
a
em
Formação
da
literatura brasileira, e com maior
do seu país. Haveria dois momentos
uma
propagado,
no
incorpora a América Latina com mais
sobre a consciência dos atores acerca
por
da
camuflada
comparação entre Brasil e Europa
e
subdesenvolvimento” o foco recai
exprimiria
portanto,
que de
aparece dois
em
gumes”,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
decalcando
na
diversidade
da
momentos como complementares na
literatura e na consciência dos países
percepção sobre o país – tanto o
latino-americanos (entre os quais o
Brasil
Brasil se inclui) uma uniformidade
americanos –, reconhecendo que a
que os reuniria no mesmo lugar de
euforia primeira e o desencanto
atraso e subdesenvolvimento diante
posterior revelam o amadurecimento
dos europeus. Como se vê, a visada
da consciência nacional.
se insere no momento em que o debate
sobre
o
percurso
literaturas, americanos
toma a Mário Vieira de Mello os
conjunto
termos da análise que desenvolve
se moldar tivesse em vista o referente
futuro
do qual, no entanto, pretendia se
“país
supera
separar. A celebração eufórica do
a
“país
anterior visão turva sobre a realidade
do
crítica
identifica
estes
fundaria
na
celebração e terno apego, favorecida pelo Romantismo, com apoio na
dois
hipérbole e na transformação do 188
se
literatura teria se feito “linguagem de
nosso
subdesenvolvimento. O pressuposto da
novo”
supervalorização da natureza, que em
do país, decalcando em tinta forte o cenário
experiência
grandeza de um “país novo”, que ao
riquezas da terra dava a ilusão
que
uma
no
teriam fomentado a aspiração da
e otimista, quando a exaltação das
subdesenvolvido”,
evidenciariam
pela Europa até as últimas migalhas,
nacional: a de “país novo”, entusiasta
de
latino-
suas riquezas naturais, consumidas
destas duas fases da consciência
a
países
celebratório diante da opulência das
geral, costurando o ensaio em torno
e
os
autonomia. Iludidos com o tom
terreno da literatura e da cultura em
promissor;
latino-
semelhante de afirmação da sua
sobre o Brasil e a América Latina no
um
países
processos de formação das suas
solo comum. Antonio Candido então
de
os
Tendo passado por fases variadas nos
de
superação da dependência é tido em
acalentadora
como
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
exotismo
em
estado
alma”,
Candido, simbolicamente nomeado
conduzindo a uma literatura “que
“Perversão da Aukflarüng” 14 . Nele o
compensava o atraso material” no
autor
enaltecimento da riqueza natural
estrutural que condena a maior parte
(Candido,
se
dos brasileiros a um acesso restrito à
acreditaria que a exuberância da
cultura, quando não à sua dissolução
América trazia em si a semente da
numa
cultura
grandeza
vezes
reprodutora
2011b:
de
170).
futura
da
Pois
nação.
O
parte
do
o
analfabetismo
massificada de
muitas
valores
e
entusiasmo percebido nos nossos
imagens alheias ao Brasil – tema,
escritores atenta para um elemento
aliás, caro ao debate dos anos 1960.
fundamental,
Analisando o ideal ilustrado das
contraditório, pensamento
e na
totalmente formação
otimista.
deste
Sendo
nossas elites, observa como elas
os
teriam realizado uma perversão do
escritores desta fase membros da elite,
partilhavam
da
padrão que valorizavam.
ideologia
A história dos ideais ilustrados na América Latina tem às vezes um sabor quase trágico de perversão dos intuitos ostensivos, porque acabaram funcionando como fatores de exclusão, não de incorporação, de sujeição, não de liberdade. Este fato nem sempre chegou ao nível da consciência clara, tanto nos grupos dominantes quanto nos dominados; tornou-se uma espécie de perplexidade, como se os objetivos ideais fossem ficando sempre para mais adiante. (Candido, 2002d: 321)
ilustrada segundo a qual a educação e o saber trariam a redenção de todos os males do país, possibilitando, assim, o alcance do modelo desejado de civilização. Mas esta educação, como se sabe, ficou restrita às classes dominantes até o início do século XX, de maneira que o ideal de difusão realizado
das
luzes
porque
incorporavam
a
nunca as
ele
seria
elites o
Relembrando
povo.
“Literatura
não
de
argumento dois
gumes”,
de a
14 Este
artigo apareceu em 1985 no Jornal do Brasil com o título “E o povo continua excluído”, depois de ter sido apresentado na forma de uma fala no II Encuentro de Intelectuales por la Soberanía de los Pueblos
O
argumento aparece também afiado em um artigo posterior de Antonio 189
o
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
literatura, a língua e o conhecimento
Candido delata a impostura dos
teriam prevalecido na América como
governos
instrumentos de dominação, sendo
ampliação da alfabetização no Brasil,
impostos pelo colonizador com a
os quais, multiplicando o número de
finalidade
controle
instituições de ensino, não teriam
social. A voga dos ideais ilustrados
investido na qualidade do mesmo.
não transformaria o quadro, de modo
Contra o risco de ver naqueles anos
que os valores de uma educação que
autoritários o retrato de um “país
conduzisse ao progresso teriam sido
novo”, sem miséria, sem violência e
mantidos sob o interesse das classes
com
dominantes,
Antonio
expressa
que,
do
contrariamente
militares
ótimos
na
índices
Candido
suposta
econômicos, denuncia
a
àquilo que apregoavam, manteriam o
sobrevivência da dependência mais
saber e as luzes como forma de
espúria através da consciência crítica
dominação. A visão de um “país
do subdesenvolvimento.
novo” não contestaria a estrutura
Na estrutura da sociedade, avaliada através da distribuição da riqueza, observa-se a mesma polarização iníqua que ocorre no domínio da cultura intelectual: o máximo de concentração dos bens ou do saber convive funcionalmente com o máximo de miséria e ignorância, como se esta proporção fosse a própria razão de ser da nação brasileira. Não se pode dizer que isto seja fruto de um propósito deliberado; mas é como se houvesse um projeto implícito, decorrente da própria natureza da sociedade vigente. O resultado é que talvez não haja no mundo um afunilamento tão violento, uma coexistência tão chocante dos extremos. (Candido, 2002d: 326)
desigual da sociedade, e as luzes tão estimadas
não
escuridão
da
desmanchariam noite
na
a
qual
permaneceria a maior parte do povo. O ponto não deixa de ser atual principalmente no que diz respeito à falta de investimento numa educação de qualidade que atinja de fato todos os setores da sociedade brasileira. Como
quem
quer
fazer
ver
as
O convívio em ritmo contínuo
verdadeiras intenções por trás de
desta “dança macabra dos extremos”
projetos bem intencionados, Antonio
amplia outra vez a percepção sobre a
de Nuestra América, ocorrido em Havana no
mesmo ano (Candido, 2002d).
190
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
realidade brasileira para o continente
predomínio de analfabetos; em boa
latino-americano. Não que, para o
parte dos países latino-americanos, a
autor, a solução para superar o atraso
diversidade de idiomas; o número
estivesse no mesmo ideal ilustrado
pequeno
dos intelectuais do século XIX, que
publicações;
o
viam no saber o remédio para todos
reduzido;
a
os
males
15
.
Pelo
contrário,
ao
de
e
escritores
editoras,
livrarias,
público
leitor
dificuldade
em
dos
manterem-se
concentrar seu argumento na atrofia
unicamente como artistas. Dizendo
do
latino-
de outro modo, os elementos que
seus
garantiriam a vida do sistema literário,
sistema
americano,
educacional em
todos
os
suportes de difusão do saber – com a
com
exceção de Cuba, que teria esse
contexto eles seriam tão frágeis que
grande mérito –, Antonio Candido
antes
atenta para uma das formas do
desenvolvimento
subdesenvolvimento que a América
público
Latina ainda não teria cuidado em
analfabeto, o que eliminaria uma
transformar.
parcela imensa da quantidade de
Em
“Literatura
subdesenvolvimento”,
neste
desestimulariam
seria
da em
o
literatura. sua
O
maioria
rádio e a televisão, sobretudo esta última, que corrói a expectativa do aumento no consumo de literatura
os condicionantes da estrutura do
erudita, mantendo-os “numa etapa
o
folclórica
de
comunicação
oral”,
diluindo-se na cultura de massas
A propósito de um suposto ideal iluminista em Antonio Candido, Paulo Arantes evidencia o equívoco retomando as sugestões provocativas de Alfredo Bosi. Cf. Arantes, 2004. 15
mais paralisante (Candido, 2011b: 174). Imperaria uma desigualdade 191
que
atraídos nestes novos tempos pelo
existência da literatura”, lembrando
Seriam:
de
que sabem ler minimamente, seriam
Antonio
seriam as “condições materiais de
literário.
diferença
leitores possíveis. Além do mais, os
e
Candido chama a atenção para o que
sistema
a
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
perpetuada por uma elite que se
literatura como consciência. Daí o
fecha em si e se ausenta de promover
estímulo
mudanças
da
desmascarar a realidade camuflada e
sociedade,
tomar como tarefa a abordagem
enquanto proliferaria uma cultura
sincera da sua terra, sem encanto
massificada, moldada, quando não
pitoresco ou tom patriótico. Seria na
diretamente produzida, pelos valores
literatura
dos países desenvolvidos, acabando
subdesenvolvimento
por
nos
superaria o sentimento ilusório sobre
públicos valores estranhos aos dos
o país, dando meia volta na promessa
países subdesenvolvidos.
do “país novo” para penetrar sem
no
democratização
inculcar
Apesar
do
sentido da
negativamente
quadro
transformação
ocorrido
certa forma pela categoria de país subdesenvolvido,
árduo
das
literaturas
miséria
real
homens
assolar
a
população,
privando-a do acesso ao mínimo de
latino-
recursos para manter uma existência
americanas entrevista mais acima.
digna – na economia, na cultura, no
Daí a ênfase de Antonio Candido na 192
os
Antonio Candido, sempre que a
mistificação, respondendo em parte à
autonomia
que
violência do atraso. No entender de
realidade do “homem rústico” sem
da
Brasil
experimentariam com mais força a
diante do interior para abordar a
acerca
no
Latina, pois seria no interior mais
abandonar o tom de curiosidade
posta
tanto
como nos demais países da América
teria
expressado esta transformação ao
pergunta
primeiro
regionais estaria condicionado de
na
realista sobre o nosso atraso. A ficção brasileira
do
do atraso. O interesse pelos temas
literatura, acentuando a visão mais
regionalista
consciência
Candido viveria os efeitos mais duros
uma
determinante
a
em
interior, que na visão de Antonio
de 1930 e o momento do pós-guerra, teria
que
escritores
rodeios na vida áspera do homem do
preocupante,
Antonio Candido relembra a década
quando
dos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
lazer –, persistirão as formas literárias
o caso de Borges. Atuando como
que expressam a discrepância dos
variedade cultural de um mesmo
extremos. Como diz noutro texto, o
fundo de valores e tradições – uma
regionalismo
certa
uma integração menos desigual, pois o que “era imitação vai cada vez mais virando
às literaturas latino-americanas se
para os que veem de fora o interior,
contrapõe ao retrato nada favorável
ou ser alvo da crítica daqueles que
do subdesenvolvimento da América
ainda hoje enxergam na consciência
Latina. Talvez porque o andamento
do atraso uma desfeita ao país,
do social e do literário, por mais que
Antonio Candido integra a América
entrelaçados,
Latina através da consciência da
transformação
empenhadas
sinal
significaria
operada
em
um
outro.
191). A superação da dependência no literário
ritmos
da necessidade de transformação do
de
amadurecimento na escrita (2011b:
plano
a
serviria como estímulo à consciência
quanto as nossas”, o dedo na ferida seria
obedeça
diferentes. Ou, talvez, porque a
afinidade intelectual entre os países.
atraso
recíproca”
tênue otimismo do autor em relação
poder redundar em atrativo pitoresco
do
assimilação
(Ibidem: 187). Ao final, parece que o
atraso na literatura, que a despeito de
“tão
o
desenvolvimento caminharia para a
Por meio da experiência do
literaturas
ibérica”–,
aprofundamento da reflexão sobre o
existiu, existe e existirá, enquanto houver condições como a do subdesenvolvimento, que forçam o escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura urbana. (Candido, 2002b: 86-87)
Em
“opção
Então, uma coisa se desdobra
uma
em outra fazendo ver como os
interação menos desigual no nível
significados não são tão estáveis
transnacional, a ponto de certos
como se poderia supor. A isto se
autores e obras periféricas influírem
soma outro componente importante
nas literaturas de centro, como seria
na visão do autor, podendo-se dizer 193
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
em parte, que o operar por meio dos
obra somente os seus elementos
contrários
pela
formais, ou somente aquilo que a
abordagem da literatura como algo
confirma como produto ligado ao
além
estética.
meio, é exatamente este balanceio
Respeitando a autonomia da obra,
entre a crítica e a sociologia, que
não se furta a lidar com o cenário
procura tirar das duas o melhor
histórico e social no qual ela se
proveito, e que deriva numa visão
insere e do qual, em parte, resulta,
mais abrangente da obra. E entre
tirando proveito da relação entre
outras marcas desse entrecruzamento
literatura e sociedade no rendimento
da sociologia com a crítica literária,
das suas considerações. Ficasse o
um dos lugares onde ele se faz
autor somente dentro das margens
melhor ver é no privilégio da relação
formais do texto, possivelmente as
entre literatura e sociedade no seu
suas análises não teriam o alcance e a
exercício crítico. O interessante é
riqueza
perceber como na visão do autor o
se
da
condição
que
perderia
enriquece
as
na
sua
consagra,
pois
visão
parte
enfoque
predominante
em
constitutiva da obra. Por outro lado,
determinado elemento não exclui a
se sobrepusesse ao estudo estético as
necessidade de se atentar para os
determinações sociais, limitaria o
demais, de modo que a crítica mais
texto
condicionamento
completa da obra literária ou da
externo, fazendo mais sociologia da
literatura deva encará-las no que elas
literatura do que crítica literária.
têm de conjunto. Diante de certos
Como se sabe, a crítica literária de
elementos
Antonio Candido não enveredou por
integrativa da crítica poderia então
nenhum dos dois caminhos. Uma das
exigir
suas especificidades, que não deixa
contrários, que ao estabelecer como
de ser uma opção aos modelos
dinâmica rentável o jogo de opostos,
restritivos daqueles que veem na
desdobrasse
ao
seu
194
díspares,
aquela
a
metodologia
a
partir
força
dos
dele
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
considerações fecundas. Seria o caso, outra
vez,
das
adaptações
e
deformações que teria sofrido a literatura quando incorporada a um contexto
estranho,
quando
não
oposto, àquele do qual era oriunda16. 16 A respeito dessa questão, o argumento de Antonio Candido também pode ser apreendido em “Os primeiros baudelairianos” (Candido, 2011c).
195
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2016
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197
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Apontamentos sobre as relações de sociabilidade e metafóricas da brincadeira de cavalo-marinho Notes on the sociability and metaphorical relationships of the “Seahorse Game”. Raquel Teixeira Dias 1 Resumo Este artigo resulta de pesquisa antropológica colocada em diálogo com a micro-história. O universo estudado é a brincadeira e os brincadores do cavalo-marinho de Aliança, Zona da Mata Pernambucana. Minha análise baseia-se em documentação histórica de 1871 e em trabalho de campo. Na primeira parte analiso inquérito policial com negros escravizados, dos engenhos de cana de açúcar da região, acusados de utilizar os brinquedos de cavalo-marinho e maracatu com fins de confabular insurreições contra seus senhores. Na segunda parte problematizo recursos da brincadeira como ironias, comicidade e metáforas com base em pesquisa etnográfica com o brinquedo de Cavalomarinho Mestre Batista. Busco examinar as relações de sociabilidade dos brincadores e metafóricas do brinquedo. Também procuro ressaltar as históricas (e simbólicas) relações assimétricas estabelecidas na região, por meio da brincadeira de cavalo-marinho.
Palavras chave: cavalo-marinho; sociabilidade, simbolismo.
brincadeira,
trabalhadores
da
cana,
Abstract This article results from anthropological research in dialogue with micro-history. The universe researched is the “Seahorse game” ritual and its players in Aliança, Pernambuco. My analysis is based on historical documentation of 1871 and in fieldwork. In the first part I analyze the documentation on slaves in the sugarcane plantations of the region, accused of using the Seahorse and maracatu rituals for insurrection purposes. In the second part, I problematize the resources used in the Seahorse ritual, such as irony, humor and metaphors, based on ethnographic research with one of the members of the ritual, Mestre Batista. I examine the sociability relationships of the “players” and the metaphorical relationships of the “toy”. I also discuss the historical (and symbolic) asymmetrical relationships established in the region, through this ritual.
Keywords: Seahorse, Game, Sugarcane workers, Sociability, Symbolism. 1 Doutoranda em Antropologia Cultural no Programa de Pós-‐graduação em Sociologia e Antropologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
198
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
por
Introdução
artigo
resulta
de
pano
pesquisa
micro-história.
estudado é a brincadores
3
O
brincadeira
Zona
Pernambucana. documentação
evidencio
as
Na primeira parte do texto exploro
Mata
fonte
histórica
fundo
e os
da
Com
de
de diversão, cosmologia e política.
do cavalo-marinho de
Aliança,
da
prática cotidiana que envolve planos
universo 2
desenrolar
interações sociais do brinquedo como
antropológica posta em diálogo com a
do
brincadeira de cavalo-marinho. Como
“Corto, cana, amarro cana, deixo tudo amarradinho”1
Este
meio
e
documentação
descoberta
em
pela historiadora Beatriz Brussantin
em
(2010;
2011)
5
.
Trata-se
de
um
trabalho de campo 4 , minha análise
inquérito policial de 1871 no qual
busca conectar dados de ordem,
foram
temporalidade
negros
e
contextos
interrogados
dezenas
escravizados
alguns
particulares num interesse incomum:
agricultores
o exame das relações de sociabilidade
utilizar os brinquedos
dos brincadores e metafóricas do
marinho e maracatu com fins de
brinquedo.
as
confabular insurreições. Na segunda
relações
parte do texto, examino recursos da
assimétricas estabelecidas na região,
brincadeira como ironias, comicidade
e metáforas, contidas em suas loas
históricas
Procuro (e
ressaltar
simbólicas)
1
Trecho de toada de cavalo-marinho. Neste texto utilizo o itálico para identificar as categorias nativas. 2 Brincadeira é uma categoria local que diz respeito a uma série de manifestações tradicionais como cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, caboclinhos, ciranda, coco de roda entre outros. Outros termos para brincadeira são brinquedo, samba, sambada. 3 Brincador é uma categoria local que se refere ao participante de um brinquedo.
acusados
de
de cavalo-
(estrofes poéticas recitadas), toadas (versos poéticos cantados) figuras 6 e 4
Os dados etnográficos advêm da minha pesquisa de mestrado (Teixeira, 2013) realizada entre os anos de 2011 e 2012. 5 SSP Nazaré 247 vol652 APEJE/Recife. 6 Figuras são os tipos da brincadeira como Mateus e Bastião (“escravos” dos antigos engenhos), Catirina (mulher que cozinhava para
199
livres,
e
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
passagens
7
, baseada em pesquisa
trabalha mais o Pisa-pilão, ele pisa o milho e ela peneira. O Soldado tem, o Vaqueiro tem, o Ambrósio tem, Matuto da goma tem, o Mané Romão que é o bebo tem, o Cavalo tem, o Boi tem, Mestre Domingo tem, o Véio tem, Perna de pau tem, Babau tem, Ema tem, Margarida tem. [...] O Verdureiro que vende verduras, o Bicheiro que passa jogo, o Seu Fumeiro que vende fumo, isso é tudo do cavalo-marinho. Tem o Nego quitanda, tem o Doutor, tem o Mané da batata que vem com a Burra, tem a Caipora, o Mané pequenino, Mané chorão, muita coisa. [...]Cavalomarinho é uma coisa que brinca uma noite todinha e ninguém compreende tudo o que tem dentro dele. Tem muita história, tem poesia nele!8
etnográfica realizada nos anos de 2011 e 2012. Não sugiro nenhuma relação de causa e efeito entre tais períodos, nem tampouco ambiciono fazer
uma análise historiográfica.
Meu
objetivo
é
esmiuçar
os
encadeamentos históricos e sociais, para
investigar
certas
narrativas,
representações e subversões que se dão no brinquedo do cavalo-marinho. O brinquedo de cavalo-marinho mobiliza
um
amplo
Para a discussão que realizo
espectro
neste
artigo,
relacionado à vida cotidiana, ao
históricos
trabalho,
relações
as
relações
sociais
e
e
sobre
os
simbólicos
assimétricas
planos de
da
das
região,
cosmológicas. Ele é também repleto
colocarei
de comicidade, poesia e safadeza
figuras e passagens da brincadeira que
(Acselrad, 2002), coisas como “a
se conectam ao universo da cana, às
vadiação, o namoro, a cachaça, o
relações
fumo,
sociabilidade dos brincadores.
a
farra,
e
a
alegria
são
em
de
evidência
trabalho
algumas
e
de
elementos recorrentes” (p. 31). Cavalo-marinho tem muita coisa, muita figura, tem o Fiscal, o Varrerua, o Padre que é da igreja, tem a Morte que é do infinito né, e que ninguém sabe onde ela vive. Tem a tal da Véia sem vergonha, é uma véia que gosta de samba. Tem Lica que
Idealmente um brinquedo de cavalo-marinho pode estender-se por até 8 horas, 85 figuras e 63 passagens. As figuras do cavalo-marinho, que
possuem indumentárias, máscaras e
os negros em suas tentativas de fugas); o Bode (feitor) e o Capitão (senhor de engenho. 7 Categoria local que identifica as partes do enredo (histórias) do brinquedo.
200
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
artefatos próprios, são colocadas9 por
sociais e cosmológicas. Muitas das
dois ou três figureiros 10 . O cavalo-
figuras também estão ligadas a certa
marinho acontece numa roda na qual
memória
se circunscreve a audiência
11
da
escravatura
como
(ou
Mateus, Bastião e Catirina (“escravos”),
assistência) do brinquedo. Os músicos
o Capitão (“senhor de engenho”) ou o
pandeirista,
e
Bode (“capitão do mato”). A fala
) permanecem sentados
abaixo de um mestre de cavalo-
num banco, na frente do qual
marinho, ilustra bem este universo.
(rabequista, mineirista
12
bagista
acontece a brincadeira. As passagens se desenrolam por meio de dezenas de
diálogos,
loas
e
toadas.
O cavalo-marinho tem a curiosidade de fazer esse manual com esse povo e mostrar o que existia. [...] o capitão do campo, ele era do tempo que na escravatura tinha aqueles negros carrasco, o cavalo-marinho botou ele como carrasco também pra infernizar o Mateus. O Mateus é que nem um trabalhador escravo. O cavalomarinho representa coisa que a escravatura tinha, o cavalo-marinho vai e coloca aquela figura que existiu aquilo, não foi do tempo da gente, mas o cavalo-marinho coloca. 14
Os
brincadores também realizam diversos trupés
e
ligeiros)
pisadas e
(passos rítmicos
danças
13
durante
a
brincadeira. As figuras e passagens do cavalomarinho
mobilizam
diversas
Cada
circunstâncias relacionadas à vida
figura
parece
estar
cotidiana, ao trabalho, as relações
fundamentada em uma série de
elementos próprios. Ela possui suas
8 Entrevista concedida por Mariano Teles, mestre do Cavalo-‐marinho Mestre Batista, janeiro 2012. 9 Colocar ou botar uma figura é a maneira como os brincadores se remetem a quem “incorpora” um determinado tipo como Mateus, Bastião, Capitão, Bode, Empata-Samba, A véia, O Véio etc. 10 Como são chamados os brincadores que colocam as figuras do cavalo-marinho. 11 Como é chamado o público que assiste a brincadeira. 12 Em geral, os instrumentos mais utilizados no brinquedo são: rabeca, pandeiro, bage de taboca (ou reco-‐reco) e mineiro (ou ganzá).
toadas,
pisadas,
trupés,
mungandas 15 e danças. Idealmente, cada figura possui roupas, máscaras e acessórios específicos. Assim a figura 13 Como o mergulhão, o coco e a dança de São
Gonçalo. 14 Entrevista concedida por Mariano Teles, julho de 2012. 15 Categoria local ligada à comicidade das figuras, às suas “trapalhadas” e “bestalhadas” no brinquedo.
201
loas,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
tem seu nome, aparência, fisionomia,
Os dados etnográficos advêm
comportamento e história. Por fim, a
de minha pesquisa realizada junto ao
corporalidade das figuras no decorrer
Cavalo-marinho Mestre Batista e o
de uma brincadeira parece estar
Maracatu Estrela de Ouro, ambos
ligada
criados por Severino Lourenço da
à
postura
de
um
trabalhador/brincador na própria lida
Silva,
diária com a cana. O trecho a seguir
Batista, falecido em 1991. Seu avô foi
dá
este
o dono de um maracatu criado em
potencial simbolismo do corpo no
1882 com nome de Nação Cambinda
brinquedo do cavalo-marinho.
Nova,
algumas
pistas
sobre
que
assumido
O eixo corporal do Mateus, e da maioria das figuras, é com os joelhos flexionados, a base bem firme no chão e o tronco curvado para frente. A movimentação da cintura para cima é menor. Os trupés todos são localizados na parte de baixo do corpo, com uma movimentação ligeira dos pés e joelhos e passos rítmicos complexos, que sempre acompanham e marcam também os pulsos fortes da música, que é em tempo ternário, com acento nos dois primeiros. Vale observar que esse eixo surge do cotidiano dos brincantes, que em sua maioria trabalham no corte da cana, situação esta que molda seus corpos e se reflete nas suas expressões criativas. Essa organização do corpo, durante a brincadeira, acaba propiciando uma notável agilidade nos pés e pernas, uma vez que a base, bem presente, proporciona imensa estabilidade. O centro do corpo, no abdômen, concentra toda a energia e faz com que a parte de baixo e a parte de cima fiquem bem independentes, dando aos brincantes uma grande flexibilidade e disponibilidade física. (Lewinson, 2007:26)
por
como
Mestre
posteriormente seu
tio
foi
materno.
Mestre Batista fundou o seu cavalomarinho no ano de 1956 e o Maracatu Estrela de Ouro em 1966. Mestre Batista nasceu na década de 30 no povoado de Santa Luzia pertencente ao Engenho Fortaleza, Zona rural de Aliança. Aos dez anos começou a trabalhar nos canaviais onde, ao longo da vida, exerceu diversos tipos de atividades. Na década de 60, após a morte de seu sogro, foi morar e administrar o Sítio Chã de Camará. Batista “comandava” os trabalhos do sítio como a lida com a cana, com a lavoura e a produção de esteiras de
202
conhecido
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
cangalhas 16 que eram vendidas para
brinquedo, após a morte de Batista.
as Usinas de cana. Entre as décadas
Segundo Mariano,
de 60 até 80, havia muitas famílias
trabalhadores da cana e brincadores.
“Batista contava que o pastorio, candango e cavalo-marinho vem de uma época só, diz que foi na época que chegou cana-de-açúcar aqui em Pernambuco, na época da senzala de engenho, os negros quem faziam essas brincadeiras”. [...] A época desses senhores de engenhos não era igual aos donos de engenhos de hoje, era um pouco ignorante, desmantelavam o samba, botavam pra correr, acabava a brincadeira19.
Foi neste ambiente que Batista tocou
Os
que trabalhavam e viviam em casas dentro do sítio, eram mais de cem moradores (Silva, 2008). O lugar assemelhava-se às vilas de engenho da
região,
reunindo
muitos
o cavalo-marinho e o maracatu que ganharam legitimidade e prestígio .
brincadeiras em suas terras. Para tanto,
brincadeiras de cavalo-marinho que
morou
brincar
a
Marinho
Mestre
no
que
onde
permaneceu
comum nos
ocorrer
muitas
terreiros
dos
Se brincava nos terreiros, as pessoas convidavam nos fins de semana, ficava o povo do cavalo-marinho, as vendas, porque se levava coisas [comidas e bebidas] para vender, vendia tapioca, bolo essas coisas, se botava jogo de azar, baralho, se apurava dinheiro para pagar o povo. Mas, o dinheiro era uma besteira, dinheiro pouco. Hoje em dia ninguém brinca mais no terreiro, porque o povo não pode pagar, quem
por
muitos anos. Tornou-se o mestre18 do
16 Utilizadas para o transporte da cana feita no lombo dos burros. 17 O Ponto de Cultura Estrela e Ouro foi criado em 2004 com base em dois brinquedos de cavalomarinho e maracatu. Posteriormente o ponto reuniu outras expressões como o Coco Popular de Aliança e a Ciranda Rosas de Ouro. 18 O mestre do cavalo-marinho tem um amplo domínio do repertório simbólico do brinquedo.
Ele comanda os brincadores e desempenha múltiplas funções. 19 Entrevista concedida por Mariano Teles, abril de 2012.
203
constantes
engenhos.
pouco
depois foi morar no Sítio Chã de Camará,
era
brincadeiras
Cavalo-
Batista,
preciso
seus patrões. Apesar disso, dizem
desde
criança. No final da década de 60 começou
era
negociações entre os trabalhadores e
ocorriam nos diversos engenhos nos e
que
resistentes quanto a realização de
Mariano Teles acompanhava as
trabalhou
contam
muitos donos de engenhos eram
17
quais
brincadores
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
prefeituras
pode pagar é a prefeitura que recebe dinheiro das cobranças de rua20.
Mariano
conta
também
quando um brinquedo
e
governo
estadual,
regidos por certo calendário oficial
que
de festas.
queria se do
Em resumo, o cavalo-marinho
ser
tem sua gênese ligada aos negros
“apadrinhado pela autoridade”, ou
escravizados dos engenhos da zona
seja, fazia-se necessário “pegar ofício
da
com o delegado” de certa localidade.
décadas,
o
Assim, os brincadores tinham que
“dentro
das
estar sempre negociando a realização
demonstra a documentação que será
de um brinquedo, seja com o dono
analisada na primeira parte deste
dos
artigo. Segundo o testemunho dos
apresentar
fora
engenho,
do
era
engenhos,
território preciso
seja
com
as
se
Por outro lado, neste tempo as aconteciam
regularidade
do
que
com
maior
brinquedo
Por
sobreviveu
senzalas”,
como
perpetuou
no
período
das
2012. 21 Os moradores de engenho, trabalhadores que viviam nas terras do proprietário, recebiam como concessão uma casa, acesso a um pedaço de terra para cultivar bens de subsistência e criar alguns animais, além da remuneração pelo trabalho com a cana. O processo de aniquilamento da morada, iniciado na década de 50, não provocou uma ruptura no trabalho com a cana. Pois, os trabalhadores foram viver em vilas, mas permaneceram vendendo sua força de trabalho para os proprietários. Contudo, essa mudança alterou as relações sociais de vínculo entre os proprietários e seus trabalhadores. Na medida em que o morador foi expropriado de determinadas condições de produção e garantias de existência que antes lhe eram asseguradas como casa, terra para plantio, água e lenha. Assim a submissão do trabalhador rural ao proprietário permaneceu por meio de outros mecanismos que dizem respeito ao trabalho e a forma com que é explorado (Sigaud,1979).
atualmente,
que vivem em diversas localidades da Zona da Mata, demanda certo custo e necessidade de organização. Antes, era com a renda obtida com jogatinas paralelas organizadas, e com a venda de comidas e bebidas, que se pagava o trato com determinado brinquedo. Atualmente, a brincadeira é bem dependente de contratos com as Entrevista concedida por Mariano Teles, janeiro
204
Pernambuco.
moradas 21 (Sigaud, 1979), ocorrendo
quando o transporte dos brincadores
20
de
brincadores, o cavalo-marinho também
autoridades policiais.
sambadas
mata
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
dentro das terras dos engenhos.
inspetor
Atualmente,
das
ofício24 ao subdelegado do distrito de
dezenas de brinquedos e centenas de
Nazareth. Este ofício denunciava que
brincadores é da zona da mata, a
negros
maioria ainda trabalha em atividades
avaliados em mais de cem, tinham se
ligadas à cana de açúcar. O brinquedo
reunido para atacar a casa de seu tio,
ainda ocorre nos terreiros dos sítios,
com fins de roubar, matar e gritar a
nas cidades da região e na capital
liberdade. Segundo o relato, tal
Recife.
os
tentativa não teria se efetivado, pois
num
os “escravos” estariam desprevenidos
datas
de armamentos. Prontamente foi
por
emitido o seguinte comunicado do
a
Nos
maior
últimos
brinquedos
estão
calendário
de
comemorativas,
parte
anos,
inseridos festas
e
organizado
políticas públicas de cultura. A
pisada
da
Senzala:
Em março de 1871 um sobrinho do
Secca
23
de
Alagoa
, que exercia o cargo de
22 Trecho de toada de cavalo-‐marinho. 23 No ano de 1871 os atuais territórios de Aliança (sede do município), e os distritos de Macujê (antiga Lapa), de Tupaóca (antiga Nossa Senhora do Ó), de Upatiniga (antiga Alagoa Secca), “pertenciam” a Nazaré da Mata (Nazareth). Destaco que Aliança é o município do Cavalo-‐Marinho Mestre
de
um
engenhos,
Alagoa
Secca,
Batista, com o qual realizei minha pesquisa etnográfica. 24 SSP Nazaré 247 vol652 APEJE/Recife. 205
diversos
enviou
Ilustríssimo Senhor, constando-me que entre os engenhos Alagoa Secca e Urubu há um pequeno arraial e ali nos dias santificados há reuniões de vadios, folgazões e com uma porção de escravos de diferentes pontos, onde se tem tratado de negócios perniciosos, correndo o boato que no último maracatu de sábado para o domingo passado reunirem-se mais de quinhentos escravos de diferentes engenhos, Vicência e diferentes lugares. Estando, portanto, na devida apreciação disto tenho concluído que o fato é verdadeiro, porém um pouco exagerado. [...] e inclusive a canalha que a pretexto de cavallos-marinhos e outros brinquedos desta ordem ali se reúnem para fins sinistros. Hoje prestei auxílio ao Senhor de engenho
“É pra matar, levanta o pau. É pra matar, levanta o pau”22
Engenho
polícia,
dirigido ao Delegado de Nazareth.
cavalo-
1871.
do
de
subdelegado
marinho, maracatu e liberdade em
senhor
de
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
descreve o trecho a seguir, todos
Alagoa Secca para capturar dois escravos seus que dizem serem influentes neste negócio correndo a averiguação do dito Senhor de engenho, cujo resultado ainda ignoro e com tudo isso seja no próximo distrito desta cidade cumpre que Vossa Senhoria de as ordens convenientes devendo cientificar-lhe que estou bem informado que de sábado próximo vindouro há oito dias há reunião magna naquele ponto. Será, pois, conveniente que na noite do indicado dia esteja a polícia em atitude em todos os pontos da comarca para conhecer da verdade capturando quantos escravos transitarem sem motivo justificado. Presumo ter informado com a precisa clareza quanto é mister para o governo de Vossa Senhoria. Assim vos guardo por dilatados anos. 25
seguiram em direção ao engenho Alagoa Secca para fazer um cerco nas senzalas, de modo a prender os “escravos” “indicados de estarem no conluio
[...] A esta subdelegacia se apresentaram os proprietários dos engenhos Alagoa Secca, Cipoal, Camaleão e Veludo deste distrito, acompanhados por Antônio Tavares de Araújo e Luiz de Andrade de Albuquerque Maranhão senhores dos engenhos Taquara e Gotiubinha dizendo-me que suspeitavam com fundamento que as fábricas se achavam insubordinadas e que em vias atrasados em lugares determinados já se havia reunido com os fins sinistros de assassinarem aos senhores e roubarem para em seguida darem o grito de liberdade. Não devendo desprezar semelhantes informações partidas de proprietários abastados e credores de todo o conceito, na conformidade das ordens de Vossa Senhoria, resolvi auxiliá-los dirigindolhes com as forças que de momento pude reunir acompanhado pelo alferes comandante do destacamento Severino Vieira da Paz e praças do mesmo destacamento, segui acompanhado dos proprietários em direção ao engenho Alagoa Secca para fazer junção com a força que de ordem de Vossa Senhoria ali devia achar-se pelas duas horas da madrugada.
levou em consideração tais “boatos 26
e
deu
“parte
do
quilombo27”. Fez então marchar um inspetor, acompanhado de 50 praças de polícia da guarda nacional, que se juntaram ao subdelegado de Nazareth e
aos
engenhos
proprietários da
de
região.
alguns
Conforme
25
Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley, emitido pelo Subdelegado Feliciano José de Mello. Subdelegacia de Polícia do3º Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife. 26 17 de março de 1871. Ofício do subdelegado de polícia Feliciano José de Mello de Alagoa Secca dirigido ao delegado de Nazareth, João Calvacante Maurício Wanderley . SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. 27 Idem.
28 14 de março de 1871. Ofício do delegado de polícia João Calvacante Maurício Wanderley dirigido ao chefe de polícia de Narareth Luiz Antonio Fernandes Pinheiro. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. 206
premeditada
insurreição”.28
O subdelegado de Alagoa Secca
aterradores”
da
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Durante o inquérito, cada preso
Chegando ali há uma hora da noite esperei até que chegasse a força e com efeito pelas duas horas da madrugada chegaram 50 praças e um inspetor de quarteirão mandados pelo subdelegado capitão Feliciano José de Mello e reunindo-a com a força que levei parti para o engenho Alagoa Secca com seu proprietário, procedi o cerco nas senzalas e prendi aos escravos por ele indicados dos comprometidos, e depois de os por em segurança, segui para os engenhos Cipoal e Camaleão onde procedi iguais varejos, prendendo a 30 escravos nos três engenhos e os fiz recolher a cadeia, e já os sigo interrogando para ver se consigo obter a verdade e o resultado do que colher participarei a Vossa Senhoria, devo ainda dizer a Vossa Senhoria que fiz igualmente recolher a dois indivíduos de nome Joaquim Guabiru e José Pedro Leitão por dizerem que nas casas destes que os escravos faziam suas reuniões. 29
Nesta
30
ocorrido no engenho de
Alagoa Secca, por quem tinha sido convidado e se tinha escutado (e a que se destinava) os gritos de vivas neste samba. O preso também era coagido a identificar os homens libertos que teriam frequentado o samba. Outra pergunta frequente tratava
da
existência
de
algum
convite para matar seus senhores e senhoras ou para roubar as vilas e os engenhos.
Identifiquei
ainda
as
seguintes interrogações recorrentes dirigidas aos negros escravizados: se
diversos
tinham ouvido dizer que a Rainha
engenhos, além dos homens livres
iria para o Recife dar a liberdade a
que se identificam como agricultores.
todos os “escravos”, e portanto se
Todos
eles estariam confabulando uma ida
escravizados
foram
foram
samba
presos
negros
ocasião
foi questionado se tinha assistido ao
de
interrogados
pela
delegacia e subdelegacia de Nazareth
ao
na presença, inclusive, do promotor
convidados por alguém para assistir à
público.
missa
29 9 de março de 1871. Ofício do subdelegado de polícia José Pinto de Souza Neves dirigido ao delegado de Nazareth, João Calvacante Maurício Wanderley. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.
30 É comum que a palavra, samba, se refira a brincadeira de cavalo-‐marinho e/ou maracatu. Também pode ser utilizada como sinônimo de festa, farra, ou um estilo de improviso utilizado pelos mestres no Maracatu Rural, ou no próprio cavalo-‐marinho. 207
Recife;
da
e
se
Conceição
tinham
na
sido
Capela
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Louvação de Alagoa Secca, onde, de
Pedro (que também foi preso e
acordo com o boato, haveria a leitura
interrogado).
de um “papel da liberdade dos
Alguns
escravos”, que estaria em poder do
dos
interrogados
confirmaram a presença de libertos
capelão desta igreja31.
neste samba, que contou com a
Dos que confessaram a ida ao
participação dos negros (mais de
samba, quatro declararam que o
duzentos,
convite foi feito pelo escravo Rufino
procedentes de diversos engenhos
(do engenho Alagoa Seca). Muitos
como Alagoa Secca, Bonito, Coricó,
negros
Sipual,
escravizados
apontaram
dizem
Camaleão,
os
relatos)
Terra
Preta,
Rufino como sendo também o “chefe
Caricé, Pau D’Alho, Rosário, Talau,
do samba”. Outros afirmaram não
Marotos e Veludo.
terem tido convite de ninguém e que
Vários negros disseram que o
teriam ido por simples curiosidade. Seis
“escravos”
declararam
samba
que
sido
motivado
pelo
batizado de Daniel, filho de Rufino.
souberam do samba por estarem em
Assim, ao contrário do que sugeriam
um Saravá na casa do agricultor José
as autoridades os gritos de vivas, não
31 Em sua tese, Beatriz Brusantin (2011b) lembra que a Lei do Ventre Livre, foi promulgada em setembro daquele ano (1871). Deste modo, seria provável que no mês de março (época do interrogatório) já houvesse rumores sobre alguma modificação legislativa em prol dos “escravos”. Além disso, desde o fim da Guerra do Paraguai em 1870, haviam sido retomadas as discussões sobre a emancipação dos “escravos”, e tal fato pode ter reverberado nas conversas das casas grandes e senzalas, contribuindo para a ideia de que a libertação dos “escravos” estava próxima.
eram “gritos de liberdade” ou por acreditarem “já estarem forros, mas sim gritos de homenagem ao batizado da criança, filho do chefe do samba. Todos negaram que as reuniões dos negros eram um conluio para roubar e matar seus senhores e senhoras. Também disseram nada saber sobre a ocasião da leitura do
208
teria
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
papel da liberdade pelo capelão na
O “escravo” José Loiola (do
Capela Louvação de Alagoa Secca.
engenho Alagoa Secca) disse que ouviu Rufino dizer que a Rainha
Contudo, alguns confirmaram a
vinha para o Recife dar a liberdade a
existência de rumores referentes à
todos os “escravos”. O “escravo”
libertação da escravidão. O “escravo”
Juvenal
Luis (do engenho Sipual) disse que
os
engenho de Limeira) havia dito há
Vicente,
feitor
do
brevemente
seriam
Rufino havia dito que estava em busca dos “direitos” para libertar os
relatou que este Francisco havia o
negros
(do engenho Caricé) relatou que
negros
escravizado, do mesmo engenho,
convidado
Camaleões)
alforriados. O “escravo” Alexandre
mais de dois meses que não existiam “escravos”.
engenho
respondeu que Rufino havia dito que
um “escravo” de nome Francisco (do
mais
(do
negros escravizados. Falou também
engenho
que João Mandeiga (do engenho
Sipual para ir à Nazareth buscar a
Papicú) havia dito que os negros
liberdade. O “escravo” José Luis (do
estavam todos forros, e só era preciso
engenho Bonito), relatou que os
esperar a chegada da Rainha.
negros falavam muito ao respeito da liberdade que estava por vir. Disse
Disponibilizarei a seguir um
que seu próprio senhor lhe havia dito
trecho do interrogatório do “escravo”
que a liberdade estava para chegar,
Rufino, de Alagoa Secca, apontado
mas enquanto ela não vinha, era para
como chefe do samba, e indicado
se trabalhar com gosto. O “escravo”
como alguém envolvido em boatos
Luis (do engenho Rosário), apontou
sobre a liberdade.
que
um
Constâncio
“escravo” (do
de
engenho
nome
[...] Perguntado se tinha assistido a um samba que se dera em terras do engenho Alagoa Secca no dia cinco do corrente e se tinha sido chamado por alguém? Respondeu que fez o samba por ter batizado um filho pela festa de natal. [...] Perguntado mais se no dia do samba ele respondente não se havia
Bonito)
andava fazendo convites para que os “escravos” seguissem pelos engenhos a exigir a liberdade. 209
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
dos senhores”, os “escravos foram
combinado para sair a outros ou quais dias a roubarem e assassinarem o seu senhor e depois sair para outros lugares com o fim de matar os senhores dos outros escravos e gritarem a sua liberdade? Respondeu negativamente. Perguntado mais em que lugar haviam feito o samba já referido? Respondeu que entre a casa de Joaquim Guabirú e uma mulher de nome Vivencia que moram fora do engenho do seu senhor mais a pequena distância. Perguntado mais porque não fez o samba na senzala? Respondeu que não fez com receio de que o seu senhor brigasse. Perguntado mais se no samba ouviu vivas? Respondeu que apenas houveram dois vivas um a ele respondente e outro a Daniel e que não é exato ter se dado viva a liberdade e que não é exato ter Antônio de Castro, escravinho de seu senhor dado viva a este sendo esse viva referido para ele respondente [...].32
Desse
modo,
castigados
palmateadas
e
açoites, e depois foram entregues a seus senhores"
33
. Em seguida, o
delegado ordenou a "formação" de piquetes em diferentes lugares de Nazareth com a ordem de capturar os “escravos” que transitassem depois das nove horas da noite, sem uma autorização
por
escrito
de
seus
senhores. Segundo as autoridades, isso funcionaria como uma "medida preventiva"34 para evitar as rebeliões. [...] tendo procedido os interrogatórios chegou ao conhecimento de que com efeito havia este plano e eles aliciavam outras fábricas [escravos de engenhos] para mais tarde darem o grito de liberdade e assassinarem os senhores. Isso ainda foi confirmado pela fábrica dos engenhos Bonito e Ribeiro Grande. Concluído os interrogatórios foram a requerimento dos respectivos senhores, castigados (com moderação) aqueles que se verificou serem coniventes e depois entregues aos donos. E não tem constado nada mais a ver a respeito. Tendo no entretanto
Rufino
confirmou a versão dada pelos outros negros, já que afirmou ter realizado o samba por conta da comemoração do batizado de seu filho Daniel, o que também justificaria os gritos de vivas. Além disso, negou qualquer ligação
33 3 de abril de 1871. Ofício do delegado de polícia João Calvacante Maurício Wanderley dirigido a Luiz Antônio Fernandes Pinheiro, chefe de polícia de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.
com as possíveis mobilizações por busca da liberdade. Após a conclusão dos interrogatórios, “a requerimento 32 10 de março de 1871. Interrogatório feito ao escravo Rufino. Delegacia de Polícia de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.
34 17 de março de 1871. Ofício do subdelegado de polícia de Alagoa Secca, Feliciano José de Mello, dirigido a delegado João Calvacante Maurício Wanderley, delegado de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.
210
com
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
A
oficiado a todos os subdelegados para conservarem os inspetores com piquetes e alerta e bem assim avisei aos senhores de engenhos que se acautelassem35.
“escravos”,
apontamentos.
a
lembra
da
região
nesta
sobre
o
plano
de
insurreição, o interrogado disse que no samba só havia “pessoas a cantar,
sociabilidade entre os trabalhadores cana
questionado
afirmar que nada ouviu a respeito da
certos
planos conectados às relações de
da
dos
divertimento dos brinquedos. Pois, ao
outros
Evidencio
quando
um
samba e atos de insurreição, nos
nos ofícios e interrogatórios nos também
de
sobre as possíveis ligações entre o
A análise das pistas contidas
conduzem
resposta
beber aguardente e dançar”36.
época
(escravizados e livres). Tais planos
O aspecto político possibilitado
dizem respeito às interações sociais
pelas
no domínio de práticas cotidianas de
brinquedos é a dimensão que fica em
diversão, devoção e política.
relevo na análise da documentação.
interações
no
espaço
dos
Fica claro que ocorriam frequentes
Verificamos que era cotidiana a
conversas sobre o tema da escravidão
interação social entre os negros
e sobre os possíveis planos de ação
escravizados de diferentes engenhos
em favor da libertação.
e os agricultores livres da região. Tais encontros ocorriam nas brincadeiras
Também ficamos sabendo que
de cavalo-marinho e de maracatu que
as brincadeiras costumavam ocorrer
podiam
nos dias santificados, o que nos
localizados
ocorrer dentro
em ou
espaços fora
das
remete ao plano da devoção. Por
senzalas.
outro
35 14 de março de 1871. Ofício do delegado de polícia João Calvacante Maurício Wanderley dirigido a Luiz Antônio Fernandes Pinheiro, chefe de polícia de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.
encontros
verificamos entre
os
que
os
negros
36 Interrogatório feito ao escravo Antônio (Engenho Camaleões). 10 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. 211
lado,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
escravizados
e
agricultores
livres
agricultores livres da cana. Esta
podiam ocorrer de outras formas,
sociabilidade envolvia momentos de
visto que alguns dos interrogados
diversão, conversas e luta política em
relataram terem ficado sabendo da
busca da liberdade e até ligações com
realização do samba, por estarem na
práticas devocionais.
casa de um homem livre em um
Penso que as relações de
saravá ocorrido naquele mesmo dia.
sociabilidade
Lembro que saravá é um nome
“escravos” e homens livres diziam
genérico
como
respeito também ao fato de serem
Batuque, Linha Cruzada e Umbanda.
sujeitos submetidos a uma série de
Além
dos
explorações sociais. Era a potencial
brinquedos e as práticas religiosas de
insurgência de revolta o que tornava
muitos dos brincadores possuem até
as reuniões de tais sujeitos algo
hoje forte ligação com a Umbanda,
potencialmente perigoso para seus
Jurema e Xangô (D'Amato, 2006;
donos e patrões. O medo de uma
Feitosa, 2011; Garrabé, 2010; Silva,
insurreição (pelo grito de liberdade!)
2005; Silva, 2008). Portanto, acho
era
uma hipótese plausível que o saravá
engenho
acionaram
os
poderes
ocorrido no dia do samba, reunindo
policiais
locais.
Os
quais
“escravos” e homens livres, fosse
providenciaram averiguações, prisões
uma denominação deste universo
e interrogatórios, que resultaram
religioso.
numa série de castigos (palmateadas
dado
disso,
a
a
religiões
cosmologia
de
marinho e maracatu se configuravam um
lugar
de
transito
os
os
senhores
de
piquetes
a
fim
de
capturar
“escravos” que transitassem, depois
da
das nove da noite, sem autorização
complexa sociabilidade (Strathern,
dos senhores. Algo que certamente
2006) estabelecida entre os nestros escravizados, mas também com os 212
que
entre
e açoites). Além do estabelecimento
Enfim, os brinquedos de cavalo-
como
tanto,
dadas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
dificultaria
a
realização
das
próprios. Nota-se que o referido
brincadeiras dentro dos engenhos.
documento registra termos como cavalo-marinho, brinquedos, samba e
“Cavalo-marinho é muito velho, tem
folgazões. As categorias de brinquedo
pra lá de 400 anos”37
e
brincadeira
possuem
diversos
Alguns autores defendem a tese de
aspectos simbólicos relacionados ao
que brincadeira do cavalo-marinho é
cotidiano,
uma derivação do bumba-meu-boi
cosmologias dos brincadores. Samba e
(Grillo 2011; Souza 2010). Segundo
sambada são até hoje termos usados
esta versão, o cavalo-marinho se
por eles para se referenciarem à
diferenciou
do
bumba-meu-boi
ao
trabalho
brincadeira/brinquedo
e
de
e
às
cavalo-
passou a ter denominação própria na
marinho e maracatu. Muitas vezes é o
década de 1960. Souza (2006) indica
nome dado a “uma espécie” de
que foi a partir de 1980 que os
ensaio destes brinquedos, onde os
pesquisadores começaram a utilizar o
brincadores brincam à paisana, sem
termo cavalo-marinho. Em oposição a
indumentárias. As saídas do maracatu
esta perspectiva, a documentação de
para o carnaval, também costumam
1871 aqui explorada, assim como os
ser
testemunhos dos brincadores, atestam
também utilizados como sinônimos
que ao menos desde o século XIX o
de brincadeira, festa, farra e de um
brinquedo, sob esta denominação, já
estilo de improviso do maracatu.
ocorria nas senzalas dos engenhos da
Com
Zona da Mata Pernambucana. O quê
folgazão
que, já nesta época, concepções e
estavam
deste repletas
universo de
base
sambada.
no
era
(pelas
relacionado a vadios
social
São
inquérito,
autoridades) 38
. Encontrei
significados
37 Entrevista concedida por Mariano Teles,
abril de 2012. 38 Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do Subdelegado.
213
de
podemos apreender que o termo
me interessa neste ponto é ressaltar
categorias
chamadas
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
outros documentos da delegacia de
noção de divertimento permanece
Recife (entre os anos 1868, 1870 e
como uma das concepções básicas
187439) que tratavam de regular (dar
que
visto de autorização ou mudar lugar
brinquedos
de
realização)
os
brinquedos
de
envolve
os
são
brinquedos. tidos
entretenimento,
um
como
Os um
divertimento
maracatu. Tais documentos também
para quem o faz e para quem os
mencionavam os termos brinquedo e
assiste,
folguedo. Dizia que este brinquedo era
Mariano Teles.
um divertimento que deveria ter sido
estava sendo tolerado na capital. Em tais documentos a noção de folguedo era também entendida como o ato de
aproximada
à
de
opostas. “Fazer o povo gostar e se entre
os
divertir”,
meus
como
os
brincadores
costumam dizer, tem a ver com “fazer
interlocutores, a pessoa que brinca o
direito”. Para tanto, é necessário
cavalo-marinho pode ser chamada de
certa disciplina e seriedade para com
brincador, sambador ou folgazão. A
o brinquedo. Além disso, a disciplina
tem a ver também com o fato da
Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. “Constando-me que entre os engenhos Alagoa Secca e Urubu há um pequeno arraial e ali nos dias santificados há reuniões de vadios, folgazões e com uma porção de escravos de diferentes pontos, onde se tem tratado de negócios perniciosos” 39 Delegacia de polícia da capital, 22 de janeiro de 1870; Delegacia de polícia do primeiro distrito termo da cidade de Recife 25 de outubro de 1874; Delegacia de polícia do primeiro distrito da capital, 14 de setembro de 1868. SSP 420 e SSP 425.
função de cada um no brinquedo, uma ideia próxima à de obrigação, de compromisso com o seu papel dentro da
brincadeira,
para
com
seus
companheiros e perante a audiência.
214
fala
brincar e de seriedade não são
de
vadiação. Atualmente,
a
Vale ressaltar que a ideia de
folgar, se divertir, e a ideia de era
explica
A brincadeira pra mim é um tipo de diversão, a gente brinca ela assim fora do contexto da luta diária, que a gente temos de lutar para ganhar o pão. Para mim ela é uma diversão fora, tipo uma fantasia no final de semana, [...] e isso aí para alegrar, para o povo sorrir, e se sentir honrado pelo o que faz40.
tomado das terras africanas e que
folgazão
como
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
No inquérito de 1871, muitos
O “enredo estrutural” do cavalo-
negros escravizados disseram que o
marinho se desenvolve a partir de um
samba tinha um chefe que teria
baile que a figura do Capitão (“senhor
organizado e convidado muitas das
de engenho”), planeja oferecer aos
pessoas
Santos
envolvidas.
Hoje,
estas
funções
do
mestre
de
do
Oriente.
Ele
“contrata” então Mateus e Bastião
poderiam ser consideradas algumas das
Reis
um
(“escravos”)
para
cuidar
do
seu
brinquedo. O mais comum é que o
“terreiro”. Depois do marguio 43 , os
mestre
do
brincadores se retiram. O Capitão 44
brinquedo, ou seja, ele quem possui,
permanece no terreiro junto ao
guarda, conserva e renova todas as
banco. Inicia-se então, gradamente,
máscaras, as roupas, e os artefatos
as entradas e saídas das figuras na
que um brinquedo possui. O mestre
roda
comanda a brincadeira, e está sempre
“mandadas embora” pela entoação
atento ao “bom cumprimento” das
das toadas.
seja
também
o
dono
funções de cada um dos brincadores,
que
são
“chamadas”
ou
Mateus é a primeira figura que
dos figureiros e do banco41. Por fim, o
entra no terreiro, chega arrastando-
mestre é um grande conhecedor de
se no chão, assim como seu pareia
todo o repertório narrativo, musical e
(parceiro), o Bastião que é chamado
poético que envolve o brinquedo.
em seguida. Apesar de Mateus ter
Sobre ironia, comicidade e metáfora
uma função um pouco mais ativa na
no brinquedo de cavalo- marinho
brincadeira, as duas figuras possuem
“Senhor de engenho tá no inferno, labrador tá nas profunda” 42
43 Espécie de aquecimento da brincadeira onde o público também participa ativamente. Com os pés ou com as mãos, os brincadores indicam ou puxam um parceiro de um lado oposto do círculo para o dentro da roda, onde são improvisados diversos tipos de trupés, pisadas e rasteiras. 44 A figura do Capitão, em geral, é
40 Entrevista concedica por Mariano Teles, abril
de 2012. 41 Categoria local que identifica o grupo de músicos e instrumentos do brinquedo. 42 Trecho de toada de cavalo-‐marinho.
colocada pelo próprio mestre do brinquedo. 215
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Ambos
negros escravizados de Mateus e
permanecem do início ao fim do
Bastião, assim como o matulão, que é
samba. Os dois possuem uma bexiga
uma trouxa improvisada. Segundo o
de vaca ou de boi utilizada como
mestre Mariano Teles, o matulão seria
instrumento sonoro e marcação de
a bagagem de um “escravo” que, ao
ritmo45 ao batê-la em suas pernas. A
fugir, carrega amarrado à sua cintura
bexiga também serve para “surrar”
os poucos bens materiais que possui.
várias
semelhanças.
ou defender-se de outras figuras.
O Capitão negocia com Mateus
Mateus e Bastião possuem vestimentas
para “tomar conta e dar conta”46 do
e acessórios parecidos, como roupas
terreiro
com estampas marcantes, chapéu em
terreiro. A partir daí desdobram-se
Durante as danças, trupés, diálogos e
outras
as diversas estripulias que os dois
colocadas
protagonizam, as batidas das bexigas, e
os
baile.
passam identificar como donos do
matulão feito de folha de bananeira.
caretas
o
pareia. Contudo, Mateus e Bastião
laminados coloridos e brilhantes, e o
cômicas
ocorrerá
Bastião é chamado para ajudar seu
forma de cone coberto com papéis
as
onde
tantas 47
passagens.
dezenas
de
acompanhadas de trupés,
gritos
48
São figuras, danças,
loas e toadas. A parte musical é
estridentes são fortes marcas. Enfim,
executada pelo banco do brinquedo.
os gestos, as expressões e os diálogos dos dois são repletos de comicidade.
Quando Bastião é chamado a
Os rostos melados de preto com
roda, seu pareia Mateus se mostra
carvão são símbolos da condição de
46 Fala típica nos diálogos entre o Capitão e Mateus. 47 Colocar ou botar uma figura é a maneira como os brincadores se remetem a quem “incorpora” um determinado tipo como Mateus, Bastião, Capitão, Bode, Empata-‐Samba, A véia, O Véio etc. 48 Passos rítmicos e ligeiros.
45 Em todas as evoluções e trupés dos pareias a “bateção” de bexiga é um importante elemento que os acompanham. Luiz Carneiro, quem coloca o Bastião, explica que além de sincronizadas, as bexigas precisam estar em ritmo com as toadas do banco, especialmente, “no instrumento do pandeiro e do mineiro, ali a gente faz o som da bexiga. Porquê se a gente for no ritmo das bages não acompanha”.
216
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
muito
animado,
se
ser contraditório o enredo, no qual
cumprimentam sentados no chão,
dois “escravo” travam uma tentativa
encangados, ou seja, entrecruzam as
de negociação de dinheiro com seu
pernas um no colo do outro e se
patrão
abraçam ao mesmo tempo. Todo o
serviço. Contudo, simbolicamente,
desenrolar, seus gestos e expressões
há de se levar em conta que na
são
dois
região, desde o tempo da escravidão,
realizam uma série de diálogos com o
passando pelo período da morada, ou
Capitão, especialmente, no que diz
quando os trabalhadores foram para
respeito à empeleitada, ou seja, ao
a rua, eles continuaram a trabalhar
trato da quantia de dinheiro para a
com
execução do serviço que estão sendo
senhores de engenho”. Os antigos
contratados. Destaco que a maioria
donos
das figuras que chegam no terreiro
passaram a ser patrões, mantendo-se
tem improvisações semelhantes em
senhores e donos da terra. A relação
relação à empeleitada, que se baseiam
entre os trabalhadores e os patrões,
em
independente
muito
uma
e
engraçados.
confusa
valores,
os
dois
Os
negociação
tentando
de
O
apesar das figuras negociarem os
e
não
negros
da
os
“mesmos
escravizados,
época,
sempre
etnomusicólogo
John
o cavalo-marinho na década de 199049,
paga
sustenta o seguinte:
nenhuma delas.
[…] a encenação evoca em seus participantes uma imagem ideal das relações patrão-empregado no cenário da plantação de cana tradicional. E ao evocar, critica não apenas o
É interessante também pensar nas inúmeras relações envolvidas
49 Um dos principais interlocutores da sua pesquisa foi Mestre Batista.
entre as figuras de Mateus e Bastião. Em um primeiro momento parece 217
dos
para
Murphy, que realizou pesquisa sobre
preços dos seus serviços, o Capitão enrola
cana
determinado
acerca de seus deveres e direitos.
ser pago. É significativo relatar que
as
a
realizar
envolveu tentativas de negociação
enganar-se
mutuamente acerca do montante a
sempre
para
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
“escravos”, Mateus e Bastião. Acredito
comportamento dos patrões – a base para a visão estabelecida sobre o bumba-meu-boi e o cavalo-marinho como crítica social – mas também o dos empregados que deixam de cumprir suas responsabilidades. (Murphy, 2008:13)
Para
Murphy
(2008)
que a multivocalidade simbólica da brincadeira é o que proporciona o trânsito entre elementos distintos e contraditórios no discurso.
a
brincadeira deve ser compreendida
Em
passagem
uma
da
como uma “janela para a visão moral
brincadeira, o Capitão chama à roda a
dos seus participantes, imprensados
figura do Soldado da Gurita para
entre
paternalismo
prender Mateus e Bastião. O soldado
tradicional e sua substituição pela
traja calça comprida, paletó, uma
economia da indústria local moderna
máscara de couro de bode, um boné
da cana-de-açúcar” (p.132). Enfim,
de militar e carrega uma espada. Do
seu principal seu argumento é que,
alto de sua autoridade, o militar tenta
apesar de envolverem críticas às
prender os “escravos” presepeiros, os
relações de poder hierárquicas da
“amarram” no chão e os bolinam
brincadeira também as
com sua espada. Mateus e Bastião
a
região, a
morte
do
reforçam.
Concordo
que
brinquedo,
em
passagens,
certas
o
enfrentam e rechaçam o soltado com suas bexigadas.
celebra as figuras simbólicas “de
50Sou
um Soldado da Gurita Soldado véio dispensado Boto um apito na boca Chamo pelo delegado Se Capitão dá licença Eu do nesses nêgo amarrado (Oliveira, 2006: 398).
autoridades” como a do senhor de engenho, do padre, do capataz ou de alguma autoridade policial. Por outro lado, também há diversas situações
Apesar
de desconstrução deste status e de
muitos
momentos
soldado
de
persegue
dois
negros
escravizados e os violentam com sua
perseguições, “açoites” e lutas entre
50 Exemplo de loa do soldado.
tais figuras “de autoridade” e as dos 218
situação
possivelmente dramática, onde um
deboche direcionado a elas. Ademais há
da
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
espada, e do momento ser uma
partes de um mesmo conjunto de
espécie de luta e enfrentamento, esta
práticas coerentes entre si. Ou seja,
é
da
os atos simbólicos presentes na
o
subordinação são vinculados ao seu
soldado enfia sua espada nas partes
processo de exploração material. Do
íntimas de um dos negros é comum
mesmo modo, a resistência velada às
se escutar gritos como: “Ai, Seu
ideias de dominação, não é separável
soldado!
das
uma
parte
brincadeira.
muito
Às
Ai!
vezes,
Ai!
cômica quando
Pára!
Entrou!
lutas
concretas
contra
a
Entrou! Aiii, gostei!” Neste ínterim
exploração. São como duas frentes,
então, conforme o soldado molesta
uma mais ligada ao campo da prática
Bastião, Mateus o esmurra com sua
outra ao discurso. Na dialética entre
bexiga, e vice-versa. A confusão
essas
resulta por fim na expulsão do
acertado conceber o discurso oculto
soldado do samba, e da opressão que
como uma condição da resistência
ele representa. Este é um dos muitos
prática, do que como um substituto
momentos do brinquedo no qual a
dela.
“imagem” de violência e opressão é
Partindo
combinada com a ideia de “sarcasmo
entre
A análise de James Scott (2007) os
de
da
seria
mais
dialética
de
os
subordinados
e
os
dominantes, Scott (2007) determina o
resistência
que chama de discurso público e
cotidiana, o discurso oculto, ou ainda
discurso oculto. O primeiro diz
sobre
e
respeito à conduta do subordinado
polissêmicos presentes na cultura
na presença do dominador, enquanto
popular é profícua para se pensar tais
o segundo configuraria o que se
relações na brincadeira. Scott (2007)
passa fora de sua observação direta.
afirma
resistência
O discurso oculto, que nos interessa
material quanto a simbólica são
aqui, estaria assim constituído por
os
tipos
frentes,
ocultamento e vigilância das relações
e safadeza”.
sobre
duas
elementos
que
tanto
ambíguos
a
219
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
manifestações linguísticas, gestuais e
som que provoca a batida de uma
práticas,
ou
bexiga produzem um efeito de uma
no
grande surra, no entanto, a força com
discurso público. As técnicas do
que realmente uma bexiga acomete a
ocultamento citadas por Scott são
vítima é irrelevante, o que torna seu
elementos como o anonimato, o
feito algo bem engraçado. Por outro
eufemismo, e o que ele chama de
lado, as inúmeras risadas que tais
“refunfuño”.
situações
que
contradizem
confirmam
o
que
aparece
dos negros escravizados51. A risada e o cômico são também por vezes “utilizados” na brincadeira a título de efeito maquiador. Coisas que, tomadas a sério, poderiam causar
algum
tipo
de
chega
a
constrangimento, ao serem tratadas
completamente,
o
em tom de chacota, ou mesmo
dos
seguidas por uma careta, se tornam
que
eufemismo
também
insubordinações e enfrentamentos
Compreendido como alusão ao
manifestar-se
são
uma maneira de “desconstruir” as
Una analogía sodolingüística adecuada de mecanismo es la transformación, gracias al eufemismo, de lo que sería una blasfemia en una mera insinuación de blasfemia, que evita las sanciones aplicables a la blasfemia explícita. Eufemizarión es un término adecuado para describir lo que le sucede a un discurso oculto enunciado por un sujeto que quiere, en una situación de poder, evitar las posibles sanciones contra la declaración directa [...] (Scott, 2007:184).
insulto,
provocam,
nunca
parece
ser
um
recursos simbólicos utilizados na
engraçadas
brincadeira. Como, por exemplo, o
seguinte toada da figura Mané do
uso que Mateus e Bastião fazem da
motor.
bexiga
do
boi.
As
bexigas
banais.
Como
na
Senhor de Engenho Vai pro inferno E labrador vai pras produnfas E o cambiteiro vai atrás Com os cambito nas cacunda Fogo meu, Fogo! (Oliveira, 2006: 502)
são
utilizadas constantemente como arma (além de instrumento de percussão)
pelos “escravos” Mateus e Bastião
51
É relevante sublinhar que as bexigas nunca são usadas contra o Capitão (o dono das terras) durante a brincadeira. Contudo, isso não significa que os “escravos” não façam outros tipos de “presepadas” com o Capitão a brincadeira.
contra as autoridades na brincadeira. O expressivo movimento e o forte 220
e
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Os Bodes (ou Capitães de campo)
abraçados, e fazem uma série de
são como Capitães do mato, como diz
trupés.
Mariano, eram quem “perseguiam
intercalados pela declamação de loas
negros fugidos dos engenhos”.
das figuras e por diversas danças. Ao
de
Campo,
no
episódios
são
final, os Bodes também são expulsos a
“Tem dois que a gente chama o Capitão
Esses
bexigadas.
cavalo-
marinho apelidado de Bode, é que
Segundo Scott (2007) outro
quando os negros fugiam ou do
recurso
trabalho ou da senzala, o senhor
subordinados, seria o “refunfuño”,
deles mandava ir buscar, porque às
algo próximo ao que chamamos de
vezes, estava escondido lá por outra
murmuro,
fazenda, procurando ocupação”.52
velada. Já que ao mesmo tempo em
entre as figuras dos Bodes e Mateus e Bastião. Sou capitão de campo Bom e reconhecido Sou bom para o senhor de engenho E sou ruim pra o nego fugido [...] (Murphy, 2008:245)
Na passagem dos Bodes, eles negros,
Seria
gritando e os ameaçando com suas
queixa
incorreto
afirmar
que
brincadores do cavalo-marinho são
espadas. Contudo, por diversas vezes,
anônimos. Porém é verdade que a
os capitães do mato dançam juntos e
utilização de máscaras, pinturas no
rosto, roupas e todos os acessórios
52
Entrevista concedida por Mariano, dezembro 2011.
que caracterizam o brinquedo acabam 221
uma
El refunfuño debe considerarse como un ejemplo de un tipo muy general de disidencia apenas velada, y un ejemplo particularmente útil para los grupos subordinados. Se trata de un tipo de actos cuya intención es transmitir una idea, precisa pero negable, de ridículo, descontento o animosidad. Casi cualquier recurso de comunicación puede servir para transmitir dicho mensaje: un gemido, un suspiro, un quejido. una risa contenida, un silencio oportuno, un guiiío o una mirada fija. (Scott, 2007:186)
demonstra o tenso tipo de relação
os
seja,
grupos
possibilita uma fácil negação.
em sua pesquisa um verso que
perseguem
ou
pelos
que comunica um descontentamento,
Murphy (2008) disponibilizou
realmente
utilizado
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
brincadores
brincadores, ou até mesmo com a
enquanto figuras específicas. Assim
audiência. O objetivo é ter sempre
durante as horas da brincadeira os
uma resposta rápida para um confuso
brincadores efetivamente são Mateus,
e acelerado jogo duplo de palavras.
por
configurar
os
Bastião, Capitão etc. As falas da maioria das figuras
Conclusão
são ditas por detrás das máscaras, algo
que
o
Considerando que é a prática da
entendimento do que é dito. Os
dominação o que cria o discurso
diversos termos de um vocabulário
oculto, quanto mais severa for a
típico entre os brincadores também
dominação, maior a complexidade
comprometem a compreensão dos
simbólica
que
destes
Scott (2007) nos lembra ainda que
significados. As figuras costumam
dentre os espaços sociais em se
dialogar uma de frente para outra, e
desenvolvem o discurso oculto, os
não voltados para a audiência (como
mais autônomos e menos vigiados,
no teatro), o que se torna mais um
são os mais privilegiados. Para isso
elemento de dificuldade para se
deveriam
ter
entender os diálogos e loas
primeira
é
não
dificulta
bastante
compartilham
do
brinquedo. Outro linguístico
tipo da
de
recurso
brincadeira
no
duas que
discurso.
condições, sejam
lugares
apartados,
onde
o
vigilância
e
repressão
a
a
controle,
a dos
dominadores não os alcancem. E, a
que
segunda, que estes ambientes sociais
dificulta o entendimento do que se
estejam integrados por confidentes
diz por conta de seu duplo sentido
próximos
são as púia ou pulha, como são
que
compartilhem
experiências similares de dominação.
chamadas as palavras ou frases cheias
Diante
de malícias que são trocadas entre os
desta
ideia,
recorro
a
documentação de 1871 analisada na 222
elaborada
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
primeira parte do artigo. Lembro que
explorei
uma
os
utilizados pelas figuras do brinquedo e
interrogados, negros escravizados e
nas passagens da brincadeira, que se
agricultores livres, visava descobrir se
encontram-se
havia ocorrido, durante o samba,
relacionadas à história de trabalho e
gritos de “Viva a liberdade”. Percebo
sociabilidade
pergunta
feita
a
todos
que o poder opressor queria dar conta até das palavras e do discurso dos
“trabalhadores
subordinados”
em sua vida cotidiana e durante suas brincadeiras. Apesar da distância temporal e contextual, chamei atenção para a ligação
entre
dominação,
as as
relações
de
quais
os
brincadores/trabalhadores de cana da região, sempre estiveram sujeitos, e ao
simbolismo
complexo
e
contraditório presente no cavalomarinho. Para tanto é que evidenciei, elementos ambíguos presentes na linguagem
verbal
e
corporal
no
brinquedo, que por sua polissemia são capazes, por vezes, de reforçar ou desconstruir
(metaforicamente)
as
históricas relações assimétricas entre os trabalhadores de cana e os “donos de terra e poder” na região. Enfim, 223
alguns
dos
recursos
intrinsicamente
dos
brincadores
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
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Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
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225
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Profissionalização e fragmentação temática: trajetória de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil Professionalization and thematic fragmentation: retracing Social Sciences institutionalization in Brazil. Leonardo Puglia 1 Resumo Desde o fim da ditadura, as Ciências Sociais brasileiras vêm passando por um acelerado processo de expansão da produção e fortalecimento institucional que alterou o papel social do profissional da área. Fenômeno que remonta às origens da institucionalização do campo no país, mas acabou acompanhando os desvios da história. Tentativas de interpretação da trajetória das Ciências Sociais brasileiras tornam-se válidas portanto, se quisermos debater soluções para os impasses gerados pelo atual quadro, marcado por tendências de profissionalização, burocratização e fragmentação temática.
Palavras chave: Ciências Americanização; Intelectuais.
sociais;
Sociologia;
Institucionalização;
Abstract Since the end of the military dictatorship, Brazilian Social Sciences have experienced a period of intense institutionalization and increase of production that has changed the social role of the field´s professionals. This process started at the beginning of the institutionalization of this area of knowledge in Brazil and has followed the country´s history. To propose solutions and understand the current scenario (bureaucracy, professionalization and fragmentation), we must take into account the Brazilian Social Sciences’ path.
Keywords: Social Sciences; Sociology; Institutionalization; Americanization; Intellectuals.
1 Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio De Janeiro
(PUC-‐RJ).
226
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
minimalista,
Introdução
sociedade civil.
Ciências Sociais brasileiras passaram por acelerado processo de expansão produção
e
de
interesses e, portanto, mais afim à
A partir do fim da ditadura militar, as
da
legitimadora
Nesse
fortalecimento
contexto
profissionalização
e
de
fragmentação
institucional, tendo o número de
científica, a Sociologia se mantém
programas de pós-graduação na área
como instrumento de reforma social,
praticamente dobrado entre 1989 e
mas sua ação se torna cada vez mais
2012
(PERLATTO,
período
2014:136).
O
cirúrgica e os objetos sociais se
assistiu
à
mostram cada vez mais precisos. Tal
também
especialização crescente das agendas
fenômeno
de
retomada e o aprofundamento, após
estudo
e
proliferação
à
consequente
de
nichos
de
nos
revistas
e
lado
de
historicamente contribuiu
outros
1930,
transformar
o
tempo
do
dá
década
de
criadas
a
Trata-se
de
tendência
Sociais, “na medida em que se aproxima
da
Sociologia
como
instrumento de reforma social, tal
que
como nas primeiras três décadas de
exclusivamente através da mediação
sua
da ciência (WERNECK VIANNA,
institucionalização
em
universidades como a de Chicago”
1997:230). Intervenção de caráter 227
foram
sua
como “americanização” das Ciências
“mandato
quase
na
à
identificada por Werneck Vianna
cientistas sociais, o acesso à vida se
quando
Paulo.
a
público”. Para as novas gerações de
pública
seguintes
Livre de Sociologia e Política de São
identidade do profissional da área. Foi-se
a
Universidade de São Paulo e a Escola
fatores
determinados,
para
anos
institucionalização,
congressos
seriam expressões desse fenômeno ao
verdade,
processo que encontra suas origens
O crescimento de grupos de
que,
na
anos de idas e vindas, de um
investigação.
pesquisa,
seria,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
(1997:230). Uma chave interpretativa
(...) com existência universitária antes de encontrarem expressão na vida social, com seus praticantes isolados dos seres subalternos e dos seus problemas, inclusive pela situação repressiva às liberdades imposta pelo Estado Novo. (WERNECK VIANNA, 1997:195)
que, sem desconsiderar o peso da contribuição
de
outras
escolas
sociológicas
na
formação
dos
quadros nacionais, como a francesa e
Destituída
a inglesa, ajuda a compreender a direção
que
a
trajetória
do
poder
pela
Revolução de Vargas, a oligarquia
de
institucionalização da disciplina no
paulista
buscava
Brasil acabou tomando ao longo das
através da racionalidade científica,
décadas.
mas
não
a
autorreforma
conseguiu,
ao
final,
instrumentalizar a academia como pretendido. Os pioneiros lograram se
Institucionalização “por cima” Apesar
da
manter independentes tanto da elite local quanto do Estado Novo, ao se
expressão
“americanização” acima citada, esta
isolarem
não se refere à forma como a
acadêmica com fronteiras delimitadas
profissionalização foi introduzida em
pelo rigor científico.
nosso país. Enquanto nos Estados
A
Unidos as Ciências Sociais nascem
apropriação
sociais
dos
pela
dos
movimentos
universidade
como
reforma”,
“academização no
Brasil,
institucionalização
surge
projeto
de
intelectual
uma
tendência
de
objetos
de
estudo
surgem,
cientistas sociais de carreira, que precisavam
da
amarras
a
libertar-se políticas
institucionalização
como
quanto
elite
da
pensamento
conservadora,
tanto de
“por
própria social
das uma
cima”,
tradição
do
brasileiro,
marcada desde o momento inicial da 228
comunidade
portanto, do esforço dos primeiros
–
denominado por H. Turner e S. P. Turner
uma
profissionalização e a fragmentação
da sociedade civil, em um processo de
em
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
construção do Estado Nacional pela
denominar intelectuais de Estado
intervenção
mesmo aqueles que não pertenciam
direta
das
elites
intelectuais na vida pública.
diretamente aos quadros de governo. De
A partir do marco da fundação da
USP,
o
pensamento
classificado
interpretativo
como
pela
principais
classificação
motivos
seria
a
paradigma
USP,
a
linguagem
de
Alberto Torres seria científica apenas
na
na aparência. Não passaria de recurso
perspectiva da jovem academia. Um dos
o
pensadores como Oliveira Vianna e
esforço
pré-científico,
com
epistemológico introduzido no país
social
produzido até então no Brasil passa a ser
acordo
retórico
desta
para
justificar
a
ação
civilizadora do agente estatal sobre
constante
uma sociedade arcaica e amorfa.
proximidade entre a elite intelectual e o Estado, que encontra nos debates
Na
visão
uspiana,
a
entre Tavares Bastos e Visconde do
predominância do ensaio enquanto
Uruguai em torno do modelo de
suporte
estilístico
centralização a ser adotado pelo
comum
entre
Império, um exemplo de afastamento
americanas
do padrão científico, caracterizado
virtude, mas como expressão de falta
idealmente
de rigor metodológico (MARTINS,
pela
independência
política e pelo rigor metodológico.
Ciências
desta
sociedade civil, mas pela primazia do
depositavam-se
nele
as
esperanças
não
como
Sociais
tradição
passava
pela
superação
de
erudição
uma posição firme para plantar a
que
semente
da
profissionalização
científica que germinaria com maior
modernizadoras. Por isso é possível 229
latino-
intervencionista. Era preciso marcar
Estado enquanto agente pedagógico Era
nações surge
necessariamente
buscava a reforma não a partir da
modelador.
fenômeno
2013:25). A institucionalização das
De maneira geral, esta tradição
e
–
–
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
intensidade
a
partir
da
híbrido. Nada de fórmulas prontas. O
redemocratização nos anos 1980. O
contexto
político
tempo de transplantação de regras exógenas ficara para trás. Agora era o
nada
momento
favorável já dava indícios do quão
contradições
tortuoso seria este processo histórico.
as
liberdades
preciso
ainda
civis,
incorporar
a
uma
mera
diversas
elite
legitimação
estratégia
ideológica,
realidade
das
latino-
posições
principalmente
no
de
comando,
Ministério
da
Educação.
de um
Se a essência do ensaio, como
desdobramento natural, já que o
afirma Lukács, reside na recusa ao
novo papel do Estado enquanto
direito
agente
indutor
mas
da
diante
“Novo” e “modernistas” ocupavam
era
intelectual. Não se tratava, contudo, de
inovar
americana. Afinal, o Estado era
À ditadura de Vargas não bastava sufocar
de
absoluto
transformação
(MARTINS, 2013:67), seria natural
e
administrador
que
os
pioneiros
das suas consequências, era uma
institucionalização
constante
abertamente
Oliveira
método
da
econômico-social
no
do
pensamento
Vianna,
por
social.
exemplo,
à
se
da
opusessem
tradição
do
pensamento social brasileiro, já que
desempenhou papel central através
o
do Ministério do Trabalho.
conquistado através justamente do
Com
sua
plasticidade
missão
de
decisões de Estado, os intelectuais da USP puderam se dedicar à produção
o
de um pensamento tão rigoroso do
moderno em um território vasto e
ponto de vista teórico quanto o de 230
seria
político e do peso das complexas
intelectuais-
construir
só
acadêmico. Distantes do emaranhado
estadistas, comprometidos com a hercúlea
ciência
foi possível graças ao isolamento
continuava sendo a forma natural de destes
de
rigor metodológico. E essa posição só
e
abertura para a imaginação, o ensaio
expressão
status
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
qualquer campo do conhecimento
papel
legitimado.
primazia
liderança
Fernandes,
mas
de
estímulo à ordem competitiva através de
Florestan
estudo.
Gradativamente,
poucas
a
de
uma
palavras:
a
modernização
partiria da cidadania.
primeiros anos são deixadas de lado favor
moleculares
moral, sem esquecer dos direitos. Em
etnografia e as análises locais dos
em
transformações
provocadas pela reforma intelectual e
principalmente
através do alargamento dos objetos de
civil.
principal estratégia passa a ser o
da
sociologia paulista, principalmente a
sociedade
a
ganham contornos dramáticos), a
empíricos, pois o rigor continuou
sob
a
perde
crise do segundo Governo Vargas
através do afrouxamento dos critérios
fundamental
para
que
modelo interventor populista (que na
foi acontecendo aos poucos. Não
marca
Estado,
Diante dos sinais de esgotamento do
A aproximação com a tradição
sendo
do
Despida
de
seu
caráter
abordagem
revolucionário, a obra de Marx vai
macroestrutural que revalorizasse a
desempenhar papel relevante nesse
historiografia.
processo – principalmente com a criação do Grupo do Capital na USP, sob liderança de Fernando Henrique
Estado e Sociedade Civil
Cardoso – ao disponibilizar duas
Retoma-se, então, o “transformismo”
ferramentas teóricas importantes: o
da classe dirigente brasileira e seus
método dialético e a chave de classe.
métodos de “absorção de elementos
Serão
ativos”
aliados
investigação dos entraves à expansão
(GRAMSCI,
da ordem competitiva burguesa, que
2011:63) como foco principal das
deveria ser levada ao máximo, pois
investigações sociológicas, com uma
acreditava-se que encontraríamos ao
diferença fundamental quanto ao
final
quanto
tanto
de
inimigos
grupos
231
ambas
do
utilizadas
processo,
na
agentes
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
subalternos
transformados
em
“Sociologia enlatada”, clamava por
cidadãos, indivíduos autônomos e
uma Sociologia “em mangas de
conscientes de seus direitos.
camisa”, que utilizasse a ciência
O
processo
“americanização” avançar
puxado
continuava por
como ferramenta para a intervenção
de
São
social
a
pesquisa
-
estímulo
permaneceram
se
Brasil,
incapaz
de
superar
e social.
“sob
Por
autoridades educacionais do governo
Fernandes
expressava
federal”
discordância
em
VIANNA,
1997:214). neste
contexto
que
resistência o
da
Estado
tradição como
publicado
que
ISEB, instituição desvinculada da Guerreiro aos
Ramos
esforços
se
paulistas,
social”.
Contra
em
1962
na
Revista
eclipsando pontos de convergência
essa
relevantes entre os dois autores. 232
às
O tom da polêmica acabaria
criticando sua alienação em “detalhes vida
relação
Alguns cientistas sociais pensam que devem cultivar um padrão de ensino simplificado e estimular somente investigações sobre a situação histórico-social global, como se nos competisse acumular explicações comparáveis às que o conhecimento do senso comum produziu na Europa. (Apud MATOS, 1996:149).
Superior de Estudos Brasileiros -
da
sua
Brasileira de Ciências Sociais:
agente
tecido social. Através do Instituto
opunha
Florestan
artigo A Sociologia Como Afirmação,
primordial das transformações do
academia,
turno,
clara e direta, como nesse trecho do
a
Capital Federal se tornou o núcleo
colocava
seu
proposições de Guerreiro de forma
Foi
de
os
impasses à modernização econômica
à
permanente jurisdição política das
(WERNECK
daria
se mostrara historicamente fraca no
Janeiro, onde os cientistas sociais nem
não
o
espontaneamente e a sociedade civil
vindas principalmente do Rio de
carreira,
Afinal,
desenvolvimento
Paulo,
apesar das forças na direção contrária
sem
direta.
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Segundo Braulio de Matos, foram
sociedade civil, depositária de tantas
ambos
que
esperanças, com o intuito de remover
assumiram posturas independentes
impiedosamente qualquer obstáculo
em
à implantação do capitalismo. A
“homens
relação
radicais
às
esquerdas
hegemônicas do país”, “dedicaram à
surpresa
negritude trabalhos importantes e
cariocas não era menor, pois a
investidos de interesse militante” e
economia passara a se modernizar
“foram
por
em ritmo frenético, pois vivíamos o
autores como Mannheim e Weber”
período do milagre do crescimento
(1996:
de dois dígitos, mas não através de
muito
influenciados
163).
dos
cientistas
sociais
uma coalizão nacional-popular que democratizasse
Ditadura Militar
Ao
Alinhado aos Estados Unidos,
disputas em torno dos pontos que
potência
separavam ISEB e USP não teriam
atropeladas
desdobramentos
históricos.
hegemônica
grande
conduzia o processo sem deixar
pelos
espaço para as camadas populares.
Pois
Na verdade, o achatamento salarial e
mais surpreendente que o golpe
a supressão das liberdades foram, ao
militar desferido sem resistência da
lado
esquerda aparentemente forte, foi o
do
investimento
conglomerados
que veio a seguir.
principais a
e
fiadora do golpe, o Estado brasileiro
um vencedor. Ambas instituições
Atônita,
sociedade.
contrário.
De uma maneira ou de outra, as
seriam
a
dos
multinacionais,
bases
do
as
crescimento
econômico projetado pelo ministro
intelectualidade
paulista assistia à tão desejada ordem
da fazenda Delfim Netto.
competitiva ser expandida por cima,
justamente
através da ação brutal de um Estado
regime
que desorganizava deliberadamente a
sobretudo através da expansão do 233
na
economia
buscava
E era que
o
legitimação,
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
consumo
da
classe
média,
sua
contrapunham, como formavam um
principal base de sustentação. O
sistema simbiótico “em que seus
desdobramento
respectivos
natural
seria
o
interesses
estavam
aprofundamento, mesmo no contexto
entrelaçados”
de modernização, de um quadro de
1999:108). Residiam aí os limites que
desigualdade
levaram o populismo à queda em
social
que
já
se
mostrava obsceno. O
1964, e a ideia da aliança de classes
milagre
pelo progresso da nação passou a
econômico
receber
contrariava, portanto, as previsões estagnacionistas,
desnudando
então
nas
Ciências
duras
principalmente
a
Weffort,
fragilidade da oposição hegemônica até
(LAHUERTA,
que
sindicalismo
Sociais
críticas,
de
Francisco
clamava livre
da
por
um
tutela
do
Estado.
brasileiras, entre atraso e moderno. Aos poucos, os brutais homens de
O contexto histórico também
farda mostravam aos intelectuais que
levou as Ciências Sociais à retomada
não havia vínculo consubstancial
da
entre
ensaísmo, agora com foco principal
modernização
e
democratização. Ao
abandonar
a
entre
tradição
Japão,
modernização
e
nações das
de
quais
capitalismo Inglaterra
e
exemplos. Foi nesse período, durante
estagnação na América Latina (1968) -,
os anos 1970, que o pensamento de
o pensamento social brasileiro foi
Antonio Gramsci ganhou força no
percebendo que os setores arcaicos e não
de
Estados Unidos seriam os principais
Furtado no livro Subdesenvolvimento e
apenas
casos
maduro,
destaque para a inflexão de Celso
Brasil
se
e
desempenhou
papel
importante não apenas fornecendo 234
velho
retardatária, como Alemanha, Itália e
do CEPAL foram fundamentais, com
não
do
na sociologia histórica comparada
dualista - e nesse processo os estudos
modernos
grande-angular
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
ferramentas para a compreensão do
Vencido
nosso
sobrevivência, os cientistas sociais,
processo
de
“revolução
o
desafio
inicial
passiva”, como também ao estimular,
mesmo
a partir da esquerda, a valorização da
desenvolvendo
sociedade civil que ganhava força no
pensamento e, quando a conjuntara
contexto de resistência à ditadura.
tornou-se mais favorável, mostraram-
Mesmo
as
brasileiras
Ciências
Sociais
conseguem
dar
continuidade
ao
gradual
seu
não
de
transição
mas
pelo
tentavam com
pulso
transformações
de
parte
pela
própria autoritária,
por
baixo
e
de
maneira molecular os fundamentos da ordem.
foram
marginalidade,
a
militares
desestabilizam
na
aniquilados, mas deixados em um quadro
conduzir
iniciada
modernização
esfera econômica e não ideológica. intelectuais
segura”
Os
grande
regime, diferentemente do Estado
Os
seu
natureza societal, estimuladas em
à sua tradição. A legitimação do
essencialmente
e
regime.
firme,
preciso enfrentar concorrência oficial
dava-se
atualizando
no processo de abertura “lenta,
desenvolvimento histórico. Não era
Novo,
e
continuaram
se aptos a assumir papel estratégico
enfraquecidas,
identificadas como “comunismo” e “subversão”,
isolados,
da
A
onde
oposição
assumindo
a
configuração
lograram resistir à censura, ao exílio,
heterogênea
às demissões e à falta de recursos,
previsível (diante do caráter militar
mantendo-se fiéis “às suas tradições
do regime) de uma ampla aliança
críticas” e a “certos ‘estilos’ de
civil. Contexto em que a crítica ao
pensar”
Estado populista toma cada vez mais
(LAHUERTA,
1999:88).
e
fortalecia-se,
até
certo
ponto
a forma de uma crítica ao próprio Estado,
Redemocratização
todas
as
esperanças na sociedade civil, como 235
depositando
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
se o seu fortalecimento por si só, em
Progresso da Ciência - SBPC, que
nome
atraiu em 1973 o apoio da Ordem dos
dos
interesses,
levasse
automaticamente à democracia.
Advogados do Brasil - OAB e de setores
Cientistas sociais participarão ativamente
desse
setores,
da
Igreja
Católica.
processo,
aproximando-se cada vez mais de outros
progressistas
O CEBRAP, criado em 1969,
principalmente
pouco depois do AI-5, como espaço
através de revistas de opinião, como
para dar continuidade à tradição de
Civilização Brasileira e Argumento, por
pesquisa social a qual se filiavam,
onde passaram intelectuais do porte
fora
de Barbosa Lima Sobrinho, Erico
sufocado (muitos dos fundadores
Veríssimo e Celso Furtado.
haviam
Diante
das
que
acadêmico
expulsos
papel
principalmente
de no
da
USP),
protagonista processo
de
aproximação com a classe política.
com uma situação contraditória. Ao tempo
ambiente
sido
assume
transformações
sociais, o Governo Geisel se depara
mesmo
do
investe
Após o período inicial de
maciçamente no ensino superior e
distanciamento cético, os cientistas
em pesquisa, assiste a setores da
sociais sob liderança de Fernando
academia
Henrique
privilegiados,
como
as
Cardoso,
aproximam-se
ciências exatas, formarem aliança
finalmente do MDB, e o CEBRAP
contra o regime com seus primos
aceita o convite de Ulisses Guimarães
pobres e subversivos das Ciências
para elaborar o programa do único
Sociais.
partido de oposição para as eleições
Sendo
o
ápice
desse
processo a ação conjunta entre o
de
Centro
e
surpreendendo
a
resultado é um documento de caráter
o
progressista,
Brasileiro
Planejamento Sociedade
-
de
Análise
CEBRAP
Brasileira
para
e
236
1974,
na
qual o
“com
acabam
regime.
ênfase
O
nos
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
sindicatos,
na
necessidade
de
participou ativamente da fundação
renda,
nos
do PT, exemplo do envolvimento
movimentos sociais”. (LAHUERTA,
cada vez maior destes intelectuais na
1999:208)
vida pública durante o processo de
distribuição
de
redemocratização.
A partir daí a aproximação entre intelectuais e a classe política só vai se intensificar. Passam a
Intervenção na vida pública através
participar ativamente das grandes
da universidade
questões públicas e, com o fim do
O fluxo, contudo, reverter-se-ia após
bipartidarismo em 1979, envolvem-se
a queda da ditadura, já que o
diretamente na fundação de novos
processo
partidos. Com destaque especial para
Estudos
de
origens de sua institucionalização, não encontraria mais obstáculos no
por Francisco Weffort, na criação do
campo político. O que tivemos a
Partido dos Trabalhadores em 1979:
partir de então foi o aprofundamento
um ator político que se pretendia
da
inovador por recusar a tradição
sindicalismo
livre
sociais da
e
no
tutela
do
na vida pública. Intervenção que se dá a partir de objetos cada vez mais precisos
Os tempos eram outros. Até
institucionalização
VIANNA,
Entre 1989 e 2012, a produção
e
sociológica brasileira, em suas mais
defensor do isolamento científico,
variadas expressões, deu um grande 237
(WERNECK
1997).
mesmo Florestan Fernandes, grande da
científica,
campo preferencial de intervenção
Estado.
pioneiro
profissionalização
tornando a própria universidade o
populista, fundamentando suas bases movimentos
Werneck
Ciências Sociais, iniciado ainda nas
Cultura
Contemporânea - CEDEC, liderado
nos
por
Vianna como “americanização” das
o papel desempenhado pelo Centro de
descrito
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
salto quantitativo. Livros, artigos,
que tornou obrigatório o ensino da
trabalhos
Sociologia nas escolas do ensino
apresentados
em
congressos, dissertações de mestrado
médio (PERLATTO, 2014:137).
e teses de doutorado multiplicaramse
acompanhando
o
ritmo
O movimento, contudo, não
do
ficou restrito às fronteiras nacionais,
acelerado processo de crescimento,
à
descentralização e interiorização dos programas
de
graduação
graduação,
cujo
e
pós-
número
medida
que
os
profissionais
brasileiros
ampliaram
participação
em
sua
associações
internacionais como a International
praticamente dobrou (PERLATTO,
Sociological Association - ISA e a
2014:136).
Associação
Latino-Americana
de
O mesmo período assistiu ao
Sociologia - ALAS. Sem deixar de
fortalecimento institucional do setor.
mencionar a importância do aumento
A Sociedade Brasileira de Sociologia
significativo da oferta de estágios de
- SBS, por exemplo, vem realizando
pós-doutorado e “bolsas sanduíche”,
com sucesso desde 1987 congressos
principalmente
nacionais
bienais
instituições
cidades,
com
docentes
em
diferentes
participação
e
discentes
de em
ditadura,
atividades. Também foram fundadas federações e sindicatos, alguns dos
Sociólogos
o de
Sindicado São
as
fomento
Ciências
Sociais
brasileiras,
reconstituídas
disciplina
institucionalizada
departamentos
dos
como nos
universitários,
retomam a trajetória iniciada na USP
Paulo,
dos anos 1940, mas com algumas
desempenharam papel decisivo na
diferenças
mobilização que culminou na sanção
fundamentais.
Primeiramente em relação à natureza
em 2008, da Lei Federal N° 11.684, 238
de
Após o intermezzo sombrio da
e grupos de trabalho, entre outras
como
públicas
de
como Capes, CNPq e Fapesp.
conferências, mesas redondas, cursos
quais,
através
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
da própria ciência, que, além de estar
para
fragmentada
detectado
em
um
número
o
fenômeno nos
–
também
Estados
crescente de especializações, “não
(D´Antonio,
tem mais sua expressão regulada por
encontrada na baixa seletividade de
construções
paradigmáticas”,
seus exames vestibulares, forma que
segundo afirma Werneck Vianna.
os departamentos encontraram para
Sem falar na transformação do papel
viabilizar sua reprodução, mesmo
social dos intelectuais, pois estes
diante da natureza autoritária do
“não mais se veem nem são mais
capitalismo. Tendo em vista que os
vistos como personagens centrais da
seus
vida pública”. A ideia manneimiana
mobilizados pelo mercado ou pela
de intelligentzia, antes hegemônica,
administração pública, mesmo diante
torna-se anacrônica entre nós.
dos “problemas sociais derivados da
reclamar
anos
1990,
e
a
pode
pouco
que
sua
ser
são
poderiam
intervenção”
(WERNECK VIANNA, 1997:227). Destituído
do
mandato
público dos fundadores, o jovem
E essa democratização, já no dos
-
profissionais
modernização
É sob esse registro novo de uma Sociologia dos Intelectuais que se pode compreender a situação atual das Ciências Sociais como de transição de um modelo que podemos chamar de aristocrático para um modelo democrático (WERNECK VIANNA, 1997:229).
início
1992)
Unidos
cientista social encontra acesso à vida
também
pública
através
da
mediação
de
encontrava expressão no perfil dos
objetos de especialização elaborados
estudantes da área, mais plural do
no
que o das profissões tradicionais.
enquanto laboratórios, centros de
Cerca de um quinto declarava-se
pesquisa
negro ou pardo, enquanto quase
universitários ganham, cada vez mais,
metade era formada por filhos de
o
pais que sequer possuíam o 2° grau
intelectuais
orientados
de ensino. Uma possível explicação
‘mudança
social
239
rigor
do
contorno
método
e
científico;
departamento
de
“agências para
de a
provocada”
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
(WERNECK VIANNA, 1997:228). Um
As preocupações de Werneck
movimento duplo e contraditório,
Vianna estão ligadas não somente aos
pois ao mesmo tempo em que os
possíveis
agentes de transformação ganham
processo de “americanização” das
caráter coletivo, a forma de ação dos
Ciências
mesmos se torna cada vez mais
problematizado
minimalista, colada às demandas de
Revolução
objetos sociais específicos (a mulher,
Americanismo no Brasil (1997) -, mas
o negro, os sem-terra, os movimentos
também a uma tendência global de
sociais, etc.).
burocratização da vida acadêmica,
Werneck
Vianna
a
um
processo
objetos”
colocados
por
em
A
Iberismo
e
ele
Passiva:
-
rigidez e produtivismo quantitativo encontram
de
sua
expressão
mais
evidente na Plataforma Lattes.
“perversão corporativa em torno de pequenos
brasileiras
próprias políticas de Estado, cuja
tendência de fragmentação temática origem
Sociais
do
que no Brasil é estimulada pelas
chama
atenção para o risco de que essa
dê
desdobramentos
a
Todavia,
não
seria
correto
serviço da carreira do especialista,
classificar os problemas do cenário
que passa a ser “um fim burocrático
atual como desvio inesperado da
da vida universitária”, deixando-se de
trajetória
lado a ciência e sua finalidade social.
institucionalização
Como resultado, poderíamos ter uma
distorções
comunidade científica
processo não fosse conduzido com
da
com
a
área.
Tais
aconteceriam
se
o
cuidado, já alertavam os pioneiros.
(...) cada vez mais focada em extrair recursos das políticas públicas para a sua autorreprodução, encerrada em si mesma e destituindo as Ciências Sociais da sua relevância, não apenas social, mas também científica, em virtude de condenar o processo de conhecimento à particularização e a fragmentação. (VIANNA, 1997:231)
Florestan Fernandes, por exemplo, declarou em suas pesquisas sobre o “Brasil Moderno”, de 1976, que a escolha dos temas de investigação em países subdesenvolvidos não poderia 240
iniciada
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
se dar a partir de uma operação
Ciências Sociais com cautela. Até
intelectual totalmente livre, pois
como
forma
sejam
manipuladas
de
adaptação
Guerreiro
Ramos,
contemporâneo.
intransigente
em
como
uma
sempre à
do
às
mundo
do
processo
origem a distorções, deve ser levado em consideração, sobretudo diante
duas obras que ajuda a iluminar a um
disciplina
delineado nas páginas anteriores dê
Mais um ponto de diálogo entre as
de
da
aprofundamento
conserva
cultural” (Apud BARIANI, 2007:153).
complexidade
maneira
Todavia, o risco de que o
“consumida
verdadeira
de
sinal de maturidade institucional e
transformações
enlatada”,
as
pluralidade temática não deixa de ser
as posições de seu grande rival,
“sociologia
que
reducionista. É certo que a atual
Declaração que converge com
crítica
evitar
preocupações de Werneck Vianna
O que importa não é ‘conhecer qualquer coisa’; mas, aquilo que, nos processos de desenvolvimento em curso, possui real significação para a renovação do horizonte cultural e a solução racional dos dilemas nacionais. (FERNANDES, 1976:325).
sua
de
da posição periférica que as ciências
debate
humanas continuam ocupando não
intelectual que, com o passar dos
apenas
anos, acabou tendo sua verdadeira
no
campo
científico
brasileiro, mas também mundial,
riqueza encoberta por tendências
especialmente no que diz respeito ao
polemistas de caráter muitas vezes
financiamento à pesquisa.
anedótico.
A demanda
Considerações finais
situação
é
complexa
investigações
que
e vão
muito além do escopo desse artigo,
Diante dos perigos de simplificações
mas, no âmbito da ação imediata,
desse tipo, é importante analisar a
métodos de seleção mais rigorosos e
configuração atual do campo das
reformulações dos programas dos 241
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
cursos surgem como formas possíveis de atenuar tendências de excessiva burocratização
e
fragmentação
temática, principalmente através do aprofundamento clássicos,
do
incluindo
ensino o
dos
chamado
“pensamento social brasileiro”. Seria uma estratégia no sentido de atacar as tendências fragmentárias já na raiz, dotando o jovem cientista de um arcabouço teórico sólido capaz de ampliar seu leque de ferramentas e de alargar seu campo de visão. Tais
iniciativas,
contudo,
mostrar-se-ão pouco efetivas se não dialogarem
com
as
políticas
de
educação e pesquisa do governo federal. Por isso é fundamental que os cientistas sociais se mobilizem, unindo forças a outros setores da comunidade científica, não somente para
pressionar
reversão
de
no
sentido
tendências
da de
burocratização nocivas, mas também para atuar em parceria com o poder público na busca por respostas aos desafios
da
educação
no
país.
242
Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-‐2015
Referências BARIANI , Edison. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes x Guerreiro Ramos. Cronos (Natal. Impresso), v. 7, p. 151-160, 2007. D´ANTONIO, William. Recruiting Sociologists in a Time of Changing Opportunities, in T. Halliday e M. Janowitz (org.), Sociology and its Publics. Chicago: University of Chicago Press, 1992. FERNANDES, Florestan. A Sociologia Como Afirmação. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. II, n. 1, p. 3-39, mar. 1962 FERNANDES, Florestan. A Sociologia numa Era de Revolução Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. LAHUERTA, Milton. Intelectuais e Transição: entre a Política e a profissão. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH, 1999. MARTINS, Maro Lara. Interesse e Virtude: a Sociologia Modernista dos Anos 1930. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: IESP/UERJ, 2013 MATOS, B. T. P. Diálogo de surdos: academia e política na trajetória de Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. Caderno Linhas Críticas, Brasília, n. 3 e 4, p. 149- 171, jul. 1996 PERLATTO, Fernando. Sociologia pública. Imaginação Sociológica Brasileira e Problemas Públicos. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: IESP/UERJ, 2014. VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997.
243
VOL XX.X JUN 2016
Enfoques -‐ Revista Eletrônica dos Estudantes do PPGSA/IFCS/UFRJ Programa de Pós-‐Graduação em Sociologia e Antropologia Largo de São Francisco, nº 1 -‐ Sala 420 -‐ Rio de Janeiro -‐ RJ -‐ 20051-‐070 http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques