Revista Enfoques PPGSA UFRJ

Page 1

Fotografia: Felipe Varanda. Acervo Museu Vivo do Fandango / Associação Cultural Caburé

ENFOQUES Revista dos Estudantes de Pós-­‐Graduação VOL XX.X JUN 2016 em Sociologia e Antropologia IFCS UFRJ ISSN 1678-­‐1813 Vol. 14 (n.2) Dez 2015


Sumário

Apresentação......................................................................................................4 Esquerda armada brasileira: uma revisão histórica, política e sociológica........................................................................................................9 Lucineli Pikcius Bezerra de Siqueira A noção de poder sob as perspectivas de Hannah Arendt, Michel Foucault e Pierre Bourdieu e as possibilidades para a pesquisa histórica.................46 Bolívar Kieling Junior Sociologia e história em duas análises da Revolução Francesa..................70 Mario Luis Grangeia Entre antropologia e história: fragmentos do debate racial na França do pós-guerra........................................................................................................95 Júlia Vilaça Goyatá Estudos sobre morbidade e mortalidade populacional no Brasil do século XIX: limites e possibilidades.........................................................................116 Daniel Oliveira Richard: una etnografía de la migración interna, ilegalidad y la violencia urbana en la ciudad de Quito-Ecuador.......................................................146 William Alvarez Entre dominação e consciência: um olhar sobre a literatura em Antonio Candido...........................................................................................................175 Alice Ewbank Apontamentos sobre as relações de sociabilidade e metafóricas da brincadeira de cavalo-marinho....................................................................202 Raquel Teixeira Dias Profissionalização e fragmentação temática: trajetória de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil .....................................231 Leonardo Puglia


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Vol. 14(2), Dez-2015 Enfoques Online revista eletrônica dos alunos do Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ. Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ISSN 1678-1813 1. Sociologia; 2. Antropologia; I. Universidade Federal do Rio de Janeiro; II. Centro de Filosofia e Ciências Sociais; III. PósGraduação em Sociologia e Antropologia. Organização do número Ciências Sociais e diálogos com a História Barbara Goulart Natália Fazzioni Joana Corrêa David Gonçalves Soares Pedro Alex Viana Renata Montechiare Tradução resumos Bárbara Goulart Capa Joana Corrêa Imagem da capa Felipe Varanda Museu Vivo do Fandango Associação Cultural Caburé

Diagramação Samantha Sales Bárbara Machado UFRJ Reitor Roberto Leher Vice-Reitor Denise Nascimento IFCS Diretor Marco Aurélio Santana PPGSA Coordenador André Botelho Vice-Coordenador César Gordon


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

As Ciências Sociais procuram

Apresentação

refletir sobre a dimensão temporal

A Revista Enfoques busca enfatizar e

dos fenômenos sociais, políticos e

celebrar a tradição interdisciplinar da

culturais. Logo, questões teóricas e

sociologia e antropologia brasileira

metodológicas

lançando uma edição que tem como

testadas em estudos sociológicos e

tema a relação entre Ciências Sociais

antropológicos que procuram abarcar

e História, promovendo o diálogo

recortes

entre as disciplinas. No caso da

processos e mudanças. Além das

antropologia, a História ocupa espaço

aproximações

central na narrativa dos indivíduos e

História e suas formas de entender a

na sua forma de autorrepresentação,

passagem

sendo

relevante”

acontecimentos, as Ciências Sociais

(Schwarcz, 2005: 135). No caso da

também se pensam como frutos de

Sociologia, a aproximação permite

processos temporais, que trilharam

analisar o passado como resultado de

diferentes caminhos por meio de

uma

sociais,

contribuições coletivas e singulares.

reunindo teias de determinações e

As biografias e trajetórias intelectuais

escolhas. É capaz então de promover

e de vida são ainda linhas de

um diálogo entre os parâmetros

pesquisa em que certas concepções

estruturais e as escolhas individuais

se fazem presentes no campo. Há

que explicam o passado (Reis, 1998:

também etnografias que procuram

8). Portanto, apesar de associadas ao

dialogar com a memória social e

estudo do presente, vemos que lentes

formas de compreender o passado

sociológicas e antropológicas também

por meio da oralidade. Destacam-se

podem ser usadas para se olhar para

ainda trabalhos que versam sobre a

o passado.

etno-história, ou que se utilizam de

“nativamente

série

de

processos

são

temporais

do

e

debatidas

para

diálogos

tempo

e

pensar

com

e

a

dos

arquivos, documentos e manuscritos.

3


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Os artigos aqui contidos são uma

como

categoria

fulcral,

pequena amostra das possibilidades

manifestando-se na obra daqueles

de pesquisa dentro da grande zona

três autores como aquilo que articula

interdisciplinar que existe entre as

todas

Ciências Sociais e História.

presentes,

configurações que

para

sociais

serem

bem

No artigo de Lucineli Pikcius

compreendidas necessitam de uma

Bezerra de Siqueira, a autora faz uma

mirada diacrônica e processual das

análise detalhada da literatura sobre

lutas e embates passados e correntes.

a esquerda armada brasileira, que

Em suma, teoria, poder e história são

atuou durante a ditadura militar. Sua

categorias mestras a partir das quais

pesquisa bibliográfica abarca tanto os

Kieling estrutura seu argumento,

autores das Ciências Sociais quanto

demonstrando

da História, permitindo identificar os

daqueles

motivos da ascensão e declínio desse

possibilidades, mas também desafios

grupo,

metodológicos e teóricos, para o

assim

como

as

suas

características estruturantes. A autora conclui

que

ainda

é

como

as

autores

obras instilam

ofício do historiador.

necessário

No

artigo

de

Mario

Luis

avançar nos estudos sobre o peso

Grangeia, o autor analisa como a

dessa experiência na arena política de

sociologia

esquerda.

abordagem das relações entre a

histórica

renovou

a

Em seu artigo, Bolívar Kieling

disciplina e a teoria, ou seja, entre

Junior identifica nas obras de três

eventos singulares e padrões gerais.

autores

ciências

O autor se propõe a analisar a obra

humanas – Pierre Bourdieu, Michel

de Skocpol (1985) e Mann (1993), a

Foucault

partir das leituras que cada qual

seminais

e

das

Hannah

Arendt

inovadoras linhas de análise que

realiza

muito têm a oferecer à pesquisa em

eminentemente

História. O poder surge nestas obras

campo de produção historiográfico: a

4

sobre

um pertencente

tema ao


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Revolução Francesa. Em sua análise,

sistemas nazifascistas na Europa. Faz

o autor demonstra como os dois

um

estudos

afastamento

de

Sociologia

histórica

recorrido

histórico

da

sobre

antropologia

o em

contestaram, com base em muitas

relação à história no século XIX

fontes

como

secundárias,

algumas

correntes

associadas

constituição da própria disciplina, e

àquela revolução. Argumenta que

sua reaproximação já em meados do

esta não se presta a realizar uma

século

adição linear de métodos e objetos

políticas e institucionais da UNESCO

entre as duas disciplinas – História e

em afirmar uma agenda antirracista

Sociologia –, o que refletiria uma

no ambiente científico.

explicações

estanque

divisão

epistemológico, produzindo

de

mas

profícua

trabalho

antes

parte

XX,

do

processo

frente

às

de

propostas

Daniel Oliveira traça um rico

vem

panorama acerca dos estudos de

circularidade

mortalidade no Brasil que se inserem

entre a teoria generalizante e os

no

eventos singulares, se aproximando

considerando

assim de concepções mais afins

trabalhos com a demografia histórica.

daquilo que se costuma denominar

Analisando pesquisas centradas no

transdisciplinaridade.

século XIX, com especial atenção

Julia Goyatá analisa o contexto pós-Segunda

Guerra

campo

da

história

social,

o

diálogo

destes

àquelas que tratam da mortalidade de

Mundial,

indivíduos

escravizados,

o

autor

enfocando o cenário francês mais

discorre sobre a importância dos

especificamente, e as contribuições

estudos de mortalidade – outrora

de Claude Lévi-Strauss (1973) e

considerados pouco produtivo pelos

Michel

historiadores

Leiris

(1969a)

para

uma

para

o

concepção antirracista nas ciências

aprimoramento das pesquisas em

modernas, proveniente dos debates

história social que se utilizam dos

posteriores à queda dos principais

conceitos e técnicas da demografia.

5


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

William Alvarez nos apresenta

das décadas de 1960 e 1970. Ao longo

um artigo que documenta a passagem

do artigo, propõe um olhar refinado

do tempo e a dimensão individual da

sobre

experiência de vida num contexto

Sociologia e a crítica literária de

histórico e político particular, através

Antonio Candido.

da análise da biografia de Richard.

a

aproximação

entre

a

No artigo de Raquel Dias

Este artigo se dedica a acompanhar

Teixeira,

etnograficamente a trajetória de um

brincadeira e os brincadores do cavalo-

sujeito envolvido em ambientes de

marinho de Aliança, Zona da Mata

ilegalidades, migrações e violência

Pernambucana. Na primeira parte do

urbana em Quito. Uma perspectiva

artigo,

importante

documentação histórica do século

da

contribuição

a

a

analisa

autora

a

revisa

a

metodológica da História com foco

XIX,

nas Ciências Sociais é tratada neste

inquérito de 1871 no qual foram

trabalho

interrogados

através

das

opções

de

mais

autora

especificamente

negros,

um

escravos

e

análise utilizadas para, numa micro-

alguns agricultores livres que são

perspectiva,

acusados de utilizar os brinquedos de

abordar

o

contexto

econômico e social do Equador no

cavalo-marinho

século XXI.

confabular insurreições. Na segunda

Alice Ewbank retoma em seu

parte,

e

problematiza

maracatu

recursos

para

da

artigo a trajetória e a atuação de

brincadeira através de sua pesquisa

Antonio Candido no cenário de

de campo com o brinquedo do cavalo-

aproximação

e

diálogo

entre

marinho de Mestre Batista. O artigo

escritores

intelectuais

latino-

e

não

busca

evidenciar

nenhuma

americanos durante o período das

relação causal entre os eventos do

ditaturas para tratar de dois temas

passado e a etnografia, mas como

caros em sua obra: “dominação” e

certos recursos como a ironia, a

“consciência”, abordados em ensaios

comicidade e as metáforas constroem

6


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

as relações de sociabilidade entre os

Antropologia (PPGSA) da UFRJ. Nós

brincadores e evidenciam as históricas

editores agradecemos a todos que

(e simbólicas) relações assimétricas

participaram

estabelecidas na região.

esperamos estimular novos debates

O artigo de Leonardo Puglia

e

fortalecimento

Ciências

Sociais

no

processo

e

entre as Ciências Sociais e História.

analisa o processo de expansão da produção

do

Boa leitura!

das Brasil.

Os Editores,

da

Barbara Goulart, David Soares, Joana

disciplina o autor chama atenção

Corrêa, Natália Fazzioni, Pedro Viana

para

e Renata Montechiare.

Reconstruindo

a

a

história

profissionalização

e

fragmentação temática da Sociologia, que se mantém como instrumento de reforma social, embora sua ação se torne cada vez mais cirúrgica e os objetos

sociais

cada

Este

processo

precisos. chama

de

vez

mais

o

autor

“americanização”

das

Ciências Sociais. É, portanto, com muita alegria que lançamos a nova edição da Revista

Enfoques,

alunos

do

Graduação

editada

Programa em

pelos

de

Sociologia

Pós e

Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1983. __________________. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1982.

7


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

__________________. O poder simbólico. 16ª edição . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes [1966]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011a. __________________. Literatura e subdesenvolvimento [1970]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011b. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1971. __________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. __________________. A história da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1999. LEIRIS, Michel. Race et civilization. In: LEIRIS, Michel, Cinqétudesd´ethnologie. Paris: Danoel/Gonthier, 1969a. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença, 1973. MANN, Michael. The sources of social power, vol. I: the rise of classes and nationstates. 1760-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. REIS, Elisa. Processos e Escolhas: estudos de sociologia política. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998. SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 72, p. 119-135, Julho 2005. SKOCPOL, Theda. Estados e revoluções sociais: análise comparativa da França, Rússia e China. Lisboa: Editorial Presença, 1985.

8


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Esquerda armada brasileira: uma revisão histórica, política e sociológica Brazilian Armed Left: A historical, political and sociological review Lucineli Pikcius Bezerra de Siqueira 1 Resumo Este trabalho foi realizado com o objetivo de compreender como a História e as Ciências Sociais estudam a luta armada que ocorreu no Brasil durante a ditadura militar – 1964 a 1985. Realizamos uma pesquisa exploratória e essencialmente bibliográfica, que nos proporcionou identificar alguns dos motivos que geraram a ascensão dos grupos armados e também seu declínio. Além disso, conseguimos identificar algumas das características dos agentes e dos grupos que proporcionaram a estruturação das organizações armadas. Dividimos a literatura científica entre os exmilitantes da luta armada e os autores que não tiveram parti pris nesta experiência. A partir disso visualizamos algumas diferenças nos procedimentos metodológicos e nos resultados de todo o conjunto da literatura.

Palavras chave: Luta armada no Brasil, Extrema esquerda, Ditadura militar.

Abstract This work was conducted in order to understand how History and the Social Sciences study the armed struggle that occurred in Brazil during the military dictatorship 1964 to 1985. We conducted an exploratory and essentially bibliographic research, which made it possible for us to identify some of the causes that generated the rise of armed groups and their decline. In addition, we were able to identify some of the characteristics of agents and groups that provided the structure of the armed organizations. We divided the scientific literature between former militants of the armed struggle and authors who had not participated in this experiment. From this we noted some differences in the methodological procedures and in the results of the entire body of literature.

Keywords: Armed struggle in Brazil, Extreme left, Military dictatorship. 1

Mestranda em Ciência Política – Universidade Federal do Paraná

9


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

quartel da década de 1970 – a partir

Apresentação Os

debates

aspectos

científicos

que

sobre

os

circunscrevem

o

das categorias analíticas das Ciências Sociais, tais como composição social, classes, organização interna e externa

período da ditadura militar no Brasil

das facções da esquerda armada,

aquecem os campos científicos das Ciências

Sociais

e

da

relações

História.

entre

as

facções

e

as

instituições civis e governamentais,

Existem muitas teses que explicam os

com base em estudos da História e

motivos do golpe, as organizações de

das Ciências Sociais.

apoio e resistência a ele, o tipo de ditadura que resultou do pós-64 1 ,

Nosso

dentre outros temas. No entanto,

literatura científica os fatores de

verifica-se que as análises sobre a

ascensão e declínio da esquerda

experiência da esquerda armada são

armada, e as razões e significados

majoritariamente

da

internos e externos da luta armada. A

História. Este trabalho representa

pesquisa que gerou este trabalho foi

um esforço em reconstruir as análises

exploratória

realizadas sobre a esquerda armada

bibliográfica. Importante frisar que

brasileira – do último quartel da

para

década de 1960, até o segundo

poderíamos

ter

utilizado

referências,

tais

como

do

campo

1

Carlos Fico apresenta, analisa e confronta várias teses sobre os motivos e as razões do Golpe de 1964. Verificar: FICO, C. “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, n° 47, p.29-64 – 2004. Em relação às teses que tratam das organizações de apoio ao golpe, consultar, por exemplo: MENDES, R.A.S. “Direitas, desenvolvimentismo e movimento de 1964”. In: Coleção Comenius. Democracia e Ditadura no Brasil. Ed. UERJ, Rio de Janeiro, 2006. Jacob Gorender e Marcelo Ridenti abordam as organizações de resistência ao golpe.

é

e

verificar

na

essencialmente

alcançar

documentos

esse

das

objetivo outras

biografias,

organizações,

materiais jornalísticos. No entanto, como não houve tempo hábil para analisar essas matérias – que tornam mais

tênue

a

linha

entre

o

conhecimento científico e a realidade –, priorizamos a literatura acadêmica, ainda que desta façam parte autores 10

objetivo


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

que

eram/são

militantes

de

um

organizações de esquerda. Ao

analisar

selecionados

para

de

os este

pesquisa

cada

na formulação de algumas hipóteses

trabalho

realizada,

autor,

aspectos

síntese desse procedimento resultou

textos

que

poderão

para

ser

analisadas

futuramente.

o

problema, a hipótese, e as conclusões de

dos

constituintes dessas organizações. A

priorizamos identificar e destacar o tipo

mapeamento

A pesquisa nos revelou que

depois

alguns

estudiosos

militantes

complementações

teses

militar, preocuparam-se, sobretudo,

sobre a esquerda armada. Nesse

em detectar os motivos e as causas da

sentido, organizamos o trabalho em

derrota da esquerda armada e dos

duas partes, sendo a primeira voltada

movimentos de massa. Também há a

a explorar as teses sobre como

tendência

procedeu a ascensão da esquerda

direcionar seus estudos para frisar

armada brasileira durante o período

diferenças táticas e estratégicas entre

militar, e seu declínio na primeira

as diversas organizações que lutavam

metade da década de 1970; e a

contra a ditadura. Essas diferenças

segunda parte destinada a esmiuçar

são importantes, mas insistir em

quem, como e pelo que lutavam as

basear as análises nelas nos impede

organizações de esquerda armada – a

de

moral

resistência à ditadura militar como

revolucionária;

a

as

violência

período

eram

estabelecer conexões, comparações, entre

no

que

desses

avançar

compreensão

em

da

um

das organizações. Ou seja, a lógica do

estruturantes da esquerda brasileira.

trabalho

Falaremos disso mais a frente.

em

situar

as

de

autores

revolucionária; a composição social

consiste

período

na

ditatorial-

acontecimentos

Os

organizações armadas no processo

trabalhos científicos realizados por

estruturante do campo da esquerda

gerações posteriores à luta armada

brasileira, para isso desenvolvemos

abordam essa experiência a partir de 11


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

múltiplos

aspectos

que

necessariamente

não

ditatorial,

e

da

participação

estão

predominante das camadas médias

uma

das classes sociais. Essas hipóteses

determinada linha política, mas que

são conclusões do trabalho, e não

pretendem reconstruir a história de

foram

militantes e organizações, bem como

futuramente.

comprometidos

suas

principais

transformação

com

contribuições da

na

testadas,

podendo

sê-las

O interesse principal que fez

sociedade

surgir este trabalho está relacionado

brasileira.

às inúmeras interrogações em torno

A pesquisa também gerou a

dos significados, dos motivos e da

hipótese de que à medida que

relação entre concepções e ações de

direitos de natureza democrática são

uma fração da esquerda que se

violados, torna-se previsível a luta

radicalizou

por estes. E é nesse sentido que

contexto ditatorial. Tal radicalização

usamos o termo “extrema esquerda”,

esvaia-se à medida que retorna a

pois num período de radicalização de

democracia

uma ditadura, a tendência é que

Portanto, hoje em dia, é mais difícil

direita e esquerda caminhem ao

falar em “extrema esquerda”, levando

extremo. As frações de classes que

em conta ações práticas, e não

mais provavelmente lutariam para

concepções políticas. Portanto, este

recuperar

direitos

debate pode tornar mais evidentes

democráticos seriam aquelas com

alguns dos motivos que fazem surgir

maior

para

organizações

compreender a dimensão das perdas

radicalizadas

propriamente democráticas.

condições históricas.

e

capital

garantir

cultural

Isso

explicaria os motivos das táticas de guerrilha saírem dos pensamentos e dos

documentos

num

momento 12

no

e

interior

suas

políticas em

de

um

instituições.

classistas específicas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Parte I – Teses sobre as razões e os

pesquisa, além de ser um campo

significados

do

pouco explorado. Na onda dessa

armada

curiosidade, apresentaremos nesta

declínio

da

da

ascensão esquerda

e

parte

brasileira Não

é

estranho

esbarrarmos

isso nos leve a compreender em alguma medida o sentido, ou razão,

no Brasil, executada por organizações

alternativa

a

que

viam

solução

dessa “aventura”.

nessa

contra

importantes

esquerda armada, pressupondo que

luta armada contra a ditadura militar

esquerda

teses

sobre ascensão e o declínio da

no

termo “aventura” quando se trata da

de

algumas

Também

a

não

estranho

ditadura militar. Tal termo sugere

encontrarmos

que os grupos que optaram por essa

viveram

via foram efêmeros no campo da

disposição

esquerda

se

origem e principalmente os motivos

consolidaram em 1968 e declinaram

do fim, ou da derrota, das facções

em 1975. Os marcos dessa divisão

armadas da esquerda. Percebemos

são: i) o AI-5 e a impossibilidade de

que uma pesquisa realizada com base

organizar movimento de massa; e, ii)

numa relação muito próxima entre

o assalto total da Guerrilha do

cientista

Araguaia, última a ser desarticulada

negativos,

pela repressão militar. Ainda que

Dentre estes destacamos a riqueza

efêmera, acreditamos – mas não

nos detalhes e informações do dia-a-

sustentaremos isso aqui – que a

dia

experiência da luta armada culmina

aqueles destacamos a passionalidade

em rupturas e continuidades no

militante,

habitus da atual esquerda brasileira.

análise com tendências voltadas a

Remontar

defesa direta ou indireta de teses e

constituir

brasileira,

essa em

pois

trajetória tarefa

árdua

pode

13

essa

e

das

em

objeto e

aqueles

experiência

maior

orientações

de

entre

é

tem

também

pode

uma

apontar

organizações,

que

que

a

pontos positivos.

e

gerar

dentre

uma

político-partidárias.


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Entre os que representam esse grupo pris

na

abordagens e as conclusões já não

vivenciaram

em

estão mais voltadas a entender o

numa

porquê de uma suposta derrota ou

destacamos:

qual organização estava mais ou

João Quartim de Moraes, expulso da

menos certa em suas estratégias e

VPR em 1969, por determinação de

táticas. O estudo sociológico de

Onofre Pinto – divergência na linha

Marcelo Ridenti (2010), por exemplo,

política (GORENDER, 1987, p.133);

contribui para entender como era

Daniel Aarão Reis Filho, ex-militante

formado o campo da esquerda que

da Dissidência da Guanabara (DI-

lutou

GB), que posteriormente nomeou-se

surgiram,

Movimento

quem lutava, como era o contexto

de

autores

experiência, algum

com que

grau

organização

a

parti

da luta armada, percebemos que as

política

armada,

Revolucionário

8

de

contra

a

como

se

como

organizavam,

outubro (MR-8) (RIDENTI, 2010,

social,

p.30); Jacob Gorender, ex-militante

trabalhos mais atuais analisam, por

do PCB, que rompeu com este e

exemplo,

fundou, junto a outros dissidentes o

configuração

Partido

(ROLLEMBERG, 2007) e o papel dos

Comunista

Revolucionário estratégia

girava

Brasileiro

(PCBR), em

torno

cuja

o

político.

papel

do

Outros

exílio

da

na

esquerda

intelectuais (RAMOS, 2006).

da

Um dos dilemas do primeiro

revolução socialista imediata, ainda

grupo de autores – com parti pris – se

que esta não fosse realizada apenas

expressa numa das teses de João

pela via armada, mas acompanhada

Quartim de Moraes (1989), o qual

de um trabalho de massa (RIDENTI,

demonstrou que a luta armada no

2010, p.259). Nos estudos atuais,

Brasil

realizados por autores que vieram

foi

uma

resposta

aos

problemas internos, e não mero

nas próximas gerações, e, portanto,

reflexo do que ocorria em outros

não participaram – organicamente –

países. Essa discussão veio do campo 14

cultural,

ditadura,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

político para o teórico. Moraes coloca

movimento estudantil é destacado

que desde as mobilizações de massas,

por Moraes como um movimento que

como as estudantis da década de

atuou até esse período com pautas

1960, até o surgimento da esquerda

construídas a partir das condições

armada, os motivadores eram gerados

políticas e econômicas – sobretudo

por

essencialmente

relacionadas à educação – internas ao

nacionais. Na linguagem militante

país, e constituía um embrião da

isso representa que não foi nenhuma

esquerda armada.

problemas

organização soviética ou cubana, por exemplo,

que

As facções que aderiam ao

organizou

horizontalmente a luta armada. Nesse sentido, para Moraes, a esquerda

questão

1967. A conjuntura era mais favorável

no

amadurecimento

da

passou

a

adotar

outros

métodos de luta contra a ditadura,

para alguma participação política

pois as ações de massa foram ficando

durante a primeira fase da ditadura,

cada

quando os movimentos de massa

vez

mais

inviáveis.

Nesse

sentido, parte daqueles que antes

e

compunham

organicidade, como o próprio João

os

movimentos

de

massa, principalmente o estudantil,

Quartim de Moraes lembra: “até o dia

optou

13 de dezembro de 1968 (...) a

por

organizar

e

realizar

guerrilhas contra o novo regime

imprensa se exprimiu com alguma

político. Essas organizações surgem a

liberdade e a oposição pode fazer

partir

valer publicamente suas críticas e

da

crença/constatação

impossibilidade

suas denúncias” (1989, p.135-136). O

do

trabalho

da de

massas, fortemente reprimido pela 15

do

política

logo dos humanos –, a esquerda em

ditatorial através da Constituição de

constância

atuação

perderam

supressão dos direitos políticos – e

1964 e a consolidação do Estado

maior

espaço

de

massa

repressão ditatorial. No percurso da

direta a duas questões: o Golpe de

com

de

decorrer

armada brasileira foi uma resposta

agiam

movimento


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Ditadura. Esses fatos ilustram a

experiência ocorreu depois de um

afirmação de que a luta armada é

intenso processo de repressão e de

fruto da conjuntura nacional, no

aprofundamento da ilegalidade.

entanto é inegável que ela também tenha

tido

motivadores

As organizações – de ambos os

externos,

tipos – sofreram do que o autor

como por exemplo, os treinamentos

chama de “um desvio relativamente

ofertados pelo Estado Revolucionário

às suas concepções estratégicas”, pois

de Cuba e da China. Podemos dizer que

o

golpe

de

aprofundamento

1964

e

do

muitas

o

perseguindo

Estado

luta

armada,

fatos

que na teoria, a esquerda armada

que

defendia a revolução socialista, e o

justificam uma guinada aos métodos

objetivo era um novo modelo de

militaristas de luta política. João

produção social, e isso exige tomar

Quartim de Moraes diz ter havido,

de

em 1968, um encontro acidental

massa

armadas

em em

declínio ascensão,

e

estar na ilegalidade; ou seja, a luta imediata era garantir o mínimo de democracia. Se isso for verdade, as

acreditava na via única da luta fim

teses, talvez então as declarações e

da

toda fonte primária de pesquisa

trariam em si essa contradição, pois

2

O autor diz ser acidental pois, para ele, “não há relação direta de causa e efeito entre ambos” p.144.

concebem 16

esse

expressar, para se manter, apesar de

massas e ações armadas; e outra que

o

Mas

esquerda armada lutava para se

junção das duas táticas – trabalho de

que

Estado.

acontecer de fato. Na prática, a

desse

de facções: aquelas que defendiam a

Sendo

o

bases materiais e nem humanas para

ações

encontro surgiram tipos específicos

armada.

assalto

romântico objetivo não encontrava

(MORAES, 1989, p.144)2 entre ações de

objetivos

dizer, de acordo com nossa leitura,

Federal de 1967 foram os estopins a

outros

“estavam

estratégicos” (1989, p.144). Isso quer

Ditatorial-Militar e a Constituição

para

organizações

automaticamente

a


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

esquerda

armada

“revolucionárias”, “guiadas

ao

democrático-nacionais do PCB. O

de

autor afirma que “as organizações

invés

pela

revolucionária”.

como

vontade

Isso

nos

comunistas

faz

autoproclamavam-se

vanguardas

políticas,

estados-

questionar o alcance das análises dos

maiores” (1990, p.16), inspiradas nas

documentos das organizações, como

grandes

reveladores

internacionais, como Lenin, Mao

internas

das e

razões

e

ações

externas

destas.

referências

Tsé-Tung,

históricas

Guevara.

Essa

Defendemos que fontes primárias

autoproclamação gerava uma onda,

são

entre

mais

úteis

discursivas

de

individuais

e

como

atores

fontes

e

que

em processo de concretização, e isso

coletivos,

dependia da vanguarda, de suas capacidades e valores (1990, p.40). Para

Reis Filho também transpõe um

com

gerados

de

erros pelos

certeza

e a consequente vitória do Estado militar, por isso: “A revolução faltou

organizacionais comunistas

essa

culminaram na derrota da esquerda,

os

comunistas do PCB e elenca uma série

Filho,

se desdobravam os processos que

campo das análises acadêmicas, o contas

Reis

mostrou-se falsa na medida em que

problema do campo político para o

as

comunistas

brasileiros, de que a revolução estava

A abordagem de Daniel Aarão

acerta

militantes

atrizes,

compuseram a experiência.

autor

os

ao encontro”.

que

levaram à derrota da esquerda para o

Reis Filho (1990) remonta o

Estado ditatorial. Os comunistas da

conjunto

década de 60 são como raízes das

formam

organizações armadas, que surgem

comunistas, essa natureza passa a ser

como alternativa à impossibilidade

responsável pela derrota de todo o

das ações de massa, e também como

conjunto da esquerda para as forças

alternativa às teses e orientações

golpistas. 17

das a

características

natureza

O

das

autor

que

facções

afirma


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

indiretamente que se a esquerda

forte referência nos modelos das

tivesse agido de outra forma e sob

organizações comunistas que, sob

outras

possivelmente

algum aspecto, foram vitoriosas em

poderiam assegurar a derrota do

processos de conflitos sociais. Vemos

golpe militar. Sabemos que é muito

aqui uma opinião que diverge da tese

complicado explicar um fato pelo que

de Moraes que vimos anteriormente.

não

bases,

aconteceu,

poderia

ter

O sentimento de ser vanguarda do

características

da

proletariado, com responsabilidades

esquerda que levaram seu imenso

quase épicas, não tinha projeção

conjunto à derrota são chamadas por

material, visto que a composição

Reis Filho de “mitos coesionadores: a

social de tais facções era formada

revolução socialista (...) a missão

principalmente por “elites sociais

redentora do proletariado” (1990,

intelectualizadas, com alto nível de

p.182);

características

instrução, muito jovens, do sexo

vanguardistas; o alto grau, exigido e

masculino, residindo em algumas –

exercido, de disciplina e conduta

poucas – grandes cidades” (1990,

revolucionária; o papel majoritário

p.184), como veremos mais a frente.

acontecido.

dos

As

mas

as

intelectuais.

Portanto

seriam

Os comunistas, portanto, não

estes “os fatores determinantes dos

conseguiram

‘erros’ de avaliação que levam a tantos

desencontros,

a

uma

oposição e assim não foram capazes

tantas

de impedir o golpe. Nesse sentido,

derrotas” (REIS FILHO, 1990, p.

nosso terceiro autor com parti pris na

184), essas características são as

luta armada, Jacob Gorender, afirma

mesmas de organizações que outrora,

que a esquerda reconhece a derrota

e em outro lugar, foram vitoriosas em

de 1964 e constrói um modelo de

relação aos seus projetos políticos. O

organização

que o autor sugere é que a esquerda

que

representa

uma

“violência retardada” (1987, p.249).

comunista brasileira de 1960 tinha

Portanto, este autor não vê um 18

sistematizar


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

continuum entre comunistas de 1960

partidária. Esta ala rompe com o

e os guerrilheiros do pós-64, como

PCB e forma o PCdoB 3 ; c) havia

viu Reis Filho. Gorender remonta a

também os trotskistas do POR (T) –

gênese da esquerda armada a partir

Partido

de suas matrizes organizacionais. Ou

(Trotskistas),

seja, o campo da esquerda brasileira,

obreirismo e o Estado operário; d) a

antes de 1964 era formado: a) pelos

ORM-POLOP

comunistas do PCB, que abrem os

Revolucionária Marxista, da revista

anos 1960 defendendo as duas etapas

Política

da revolução socialista no Brasil,

ambiente intelectual, absorveu de

concepção oriunda do VI Congresso

forma não dogmática a produção

da

em

trotskista; e) a AP (Ação Popular),

é

oriunda do movimento estudantil

democrático-nacional, que seria uma

católico, que pretendia chegar ao

revolução burguesa, capaz de fazer

socialismo a partir de ações efetivas

com

de

Internacional

1928.

A

Comunista,

primeira

que

a

sociedade

desenvolvesse capitalismo

etapa

brasileira

potencialmente e

suas

o

Operário

massas,

reformas

defendiam

de

o

(Organização

Operária),

reivindicações

instituições,

que

Revolucionário

restrita

tendo

em

relacionadas bases;

f)

as

ao

vista às Ligas

avançando no sentido democrático.

Camponesas, que a partir de 1961

Essa etapa daria condições para a

defendem a guerra de guerrilhas

segunda etapa da revolução, que

como forma de chegar ao socialismo;

seria socialista (GORENDER, 1987,

e, g) a linha brizolista, que não era

p.29-30); b) pela ala Stalinista, de

socialista, mas se destacou pelo

concepções maoístas, que racha com

populismo trabalhista (1987, p.20-39).

o PCB em 1962, por conturbações

3

Em 1960, no V Congresso do PCB, este muda o nome de “Partido Comunista do Brasil” para “Partido Comunista Brasileiro”, para se defender das acusações que diziam que o PCB era uma seção da Internacional Comunista no Brasil.

causadas pelo relatório de Khruchov e

por

conflitos

gerados

por

diferenças nas concepções da prática 19


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Para Gorender essas organizações

esquerda brasileira” (1987, p.79-83).

sofriam

É nesse sentido que o autor concebe

de

males

que

as

impossibilitaram de resistir ao golpe

a

e

conjunto

de

surgiram

motivadas

fazer

uma

revolução.

São

características comuns a elas:

armada

como

um

organizações

que

pelos

erros

A hegemonia da liderança nacionalista burguesa, a falta de unidade entre as várias correntes, a competição entre chefias personalistas, as insuficiências organizativas, os erros desastrosos acumulados, as ilusões reboquistas e as incontinências retóricas – tudo isso em conjunto explica o fracasso da esquerda. Houve a possibilidade de vencer, mas foi perdida (1987, p.67).

anteriores e pelas inspirações dos

Gorender afirma que houve

derrota de 1964 que fez a esquerda

uma

falência

organizativos

dos das

revolucionárias, evidente

em

grandes

do

1964.

O

optar

caminho

guerrilheiro

faria

condições

subjetivas

inerentes

revolução

socialista.

Somado

pelas

trotskismo

de

das

armas

causas

e

da

abandonar

ainda

que

sejam

correntes com concepções políticas diferentes e divergentes entre si – formam o que Gorender chama de

foco

amadurecer

chama

O foquismo, o maoísmo e o

se uma alternativa viável para as um

Filho

“velhas” práticas do PCB.

tornou

foquista da revolução cubana torna-

brasileiras,

Reis

muitos elementos do leninismo e das

militantes. Dessa forma, a teoria

condições

que

reconhecimento

modelos

se

revolucionários

“violência retardada”, pois foi o

organizações

que

feitos

militaristas. Isso gerou a composição

pacífico estava descartado por muitos

“Receitas para a luta armada”, que

as

influenciam essa ala da esquerda

à

brasileira, pois concordam em um

ao

aspecto: a própria luta armada.

foquismo, “as sentenças de Mao – os

partir

imperialistas e os reacionários são tigres

da

análise

de

A

Gorender,

compreendemos que pode ter havido

de papel, o poder nasce da boca do fuzil

um alto grau de incorporação dos

– se tornaram senhas mágicas (...) da

modelos 20

esquerda

revolucionários


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

internacionais. O autor destaca várias

esgotamento da esquerda armada,

facções armadas que surgiram no

que se apoiava em assaltos, fugas,

pós-64: aquelas que surgem do racha

sequestros, ações armadas urbanas

no interior do PCB, propondo a luta

em geral, para dar condições de

armada

existência às suas organizações. Mais

imediata

Libertadora Partido

Nacional

a

Ação

(ALN),

Comunista

o

uma

Brasileiro

vez

aparece

a

questão

da

diferença entre objetivos políticos e

Revolucionário (PCBR); o Movimento

realidade

Nacionalista Revolucionário, oriundo

armada no discurso acadêmico de

“da articulação entre exilados de

autores com parti pris.

Montevidéu e os adeptos de Brizola no

Brasil”

(1987,

p.127),

capítulo das lutas de massas estava

Vanguarda Popular Revolucionária foquista

da

Política

Operária

(POLOP);

a

encerrado”

como se a violência tivesse sido a última cartada, o último apelo de

de uma decomposição da VPR, que

poder organizar-se. No entanto, a

se junta com parte do Comando de

repressão do Estado foi aprimorada

(COLINA).

com mecanismos que apelaram à

Essas organizações, e outras que optaram

pela

luta

profunda investigação, baseada em

armada,

prisões e torturas. Dessa forma a

sustentavam-se na clandestinidade, e

esquerda

sobreviveram nessas condições por

perseguida,

um curto período, entre 1968 e 1674. A

situação

segundo

de

gerou

foi

fatalmente

criminalizada

e

nessas condições, cada vez mais, os

o

grupos passam a carecer de base 21

armada

desmantelada. Gorender destaca que

clandestinidade,

Gorender,

1987,

combate frontal e militarizado. É

Palmares (VAR-Palmares), que surge

Nacional

(GORENDER,

p.153), restando à luta armada o

Vanguarda Armada Revolucionária –

Libertação

esquerda

pós AI-5 gerou a certeza de que “o

defendiam o foco guerrilheiro; a

dissidência

da

O aprofundamento da repressão

que

(VPR),

política


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

social. Além disso, entre 1968 e 1974

1965, em resposta à derrota expressa

o “milagre econômico”, fruto da

pelo golpe. Essa violência retardada,

modernização conservadora, estava

ainda

no seu auge, fortalecendo o apoio

novamente a esquerda perdeu. É

civil aos militares, em detrimento aos

como se a antiga lei penal de Talião

ditos “subversivos” (1987, p.158-159).

estivesse na agenda do dia: “olho por

Gorender relaciona o fracasso da

olho, dente por dente”, violência não

esquerda

tem outro antídoto que não seja ela

armada

com

questões

internas (os erros) das organizações –

a

elas–

determinadas

as

pela

Para

condições

política

colocando

esquerda que

o

gerou

do

(GORENDER, p.227), ou seja, as organizações armadas eram formadas

resposta

dos

oprimidos

nas

processo

de

organizações

de

pequeno-

burguês,

sobretudo

entre

dirigentes

(2006,

3-5).

Esse

autocrítica

se

de

p.

os

ainda que a composição social destas não fugisse ao padrão pequeno-

(das

burguês

referidas frações de classes). O autor

intelectualizado.

De

qualquer forma, os militantes das

finaliza sua análise afirmando que o

facções armadas, longe de serem

sentido da experiência armada foi a

maioria proletária, acreditavam que

violência retardada, elaborada desde

“o trabalho deveria continuar, a 22

Ramos

intensificou nas esquerdas armadas,

à

violência militar, surge a inevitável violência

intenso

comportamento

processo

por frações mais privilegiadas das Em

Freire

que os erros eram frutos da moral e

classe dominante para defendê-la”

sociais.

Alcides

esquerda, que as levaram a perceber

Militar

“cortou os galhos podres da própria

classes

um

autocrítica

armada,

Estado

e

na luta armada, o golpe de 1964

ainda toca na questão da composição da

falhou

(2006), autor que não teve parti pris

de

repressão do Estado Militar. O autor

social

organizada,

mesma.

como sectarismo e vanguardismo – e externas

que


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

partir

do

material

humano

simbólica” (RAMOS, 2006, p. 10). E é

7).

O

aqui que a análise de Ramos, como

comportamento dos guerrilheiros era

autor sem participação militante na

guiado pela confiança na Revolução,

luta

e pela certeza de que “firmeza,

autores anteriores, pois foca no

convicção ideológica e espírito de

sujeito militante, mas mesmo assim o

sacrifício” desencadearia este evento

autor parte do binômio erro/acerto,

(2006, p.8). Essa autocrítica levou a

vitória/derrota. A morte simbólica

esquerda

deriva

disponível”

(2006,

armada

intelectual

p.

a

substituir

pelo

o

armada,

de

se

diferencia

uma

sequência

dos

de

combatente

prescrições de comportamentos, que

responsável

foram identificadas por Ramos nos

pelo processo que intensificou a

documentos das organizações, já nos

militarização da extrema esquerda no

depoimentos dos militantes o autor

período

destaca as dificuldades que estes

revolucionário,

fator

ditatorial.

Podemos

identificar a máxima desse processo

encontravam

na Ação de Libertação Nacional

prescrições.

(ALN),

militantes em serem sujeitos da

de

Carlos

Marighella

e

em As

proceder

tais

dificuldades

dos

Câmara Ferreira, ex-militantes do

revolução

PCB, que passaram a promulgar a

convivência com a morte, em dois

ação

revolucionária

giravam

em

torno

da

como

fator

sentidos, o simbólico, acima descrito,

organização,

em

e a concreta, advinda da intensa

detrimento das discussões teóricas,

repressão (2006, p.14). Esses fatores

postas de lado.

dificultaram a criação do combatente

central

O

da

autor

afirma

que

e

“o

intelectual

orgânico,

em

detrimento do pequeno-burguês. E

intelectual de origem e formação

nesse sentido, a esquerda armada

pequeno-burguesa, que desejasse se

não se constituiu em grupos políticos

transformar em combatente deveria

potencialmente

passar por um processo de morte 23

do

revolucionários,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

devido à contradição entre a real

múltiplas

identidade de classe dos militantes, e

sentido, se o golpe e a Constituição

aquela

de

desejada,

prescrita

pelas

1967

determinações.

não

tivessem

Nesse

ocorrido,

organizações a partir dos processos

seriam mínimas as chances de ter

de autocrítica. Além disso, o que se

acontecido a luta armada. Moraes

esperava

parte

dos

militantes

eram

da

afirmação

de

Jacob

posturas que poucos adotam, dada a

Gorender, e a supera. Para este

diversidade

autor, a luta armada representou uma

de

preferências

e

tendências de indivíduos. Façamos comparação

agora

violência retardada, uma resposta à

uma

derrota de 1964, no entanto Moraes

breve

metodológica

esclarece que esta afirmativa esbarra

e

em alguns detalhes: “aqueles que

conclusiva entre estes autores, com o objetivo

de

visualizar

como

tomaram a decisão de não lutar em

a

1964, continuaram a não lutar em

literatura clássica e estudos mais

1968” (MORAES, 1968, p.140), além

recentes da História e da Sociologia

disso,

vêm tratando do período de maior

Quartim

de

Moraes,

condições

para

de

favoreciam

mais

o

amadurecimento desta, devido ao

defender sua hipótese 4 , faz uma

aprofundamento ditatorial. Moraes

análise comparativa entre os eventos

também se opõe a Gorender no que

históricos e as possibilidades do

se refere ao erro fundamental das

contrário, utilizando a tese marxiana

esquerdas, de não se prepararem

de que “o concreto é a síntese de

devidamente para a luta armada,

múltiplas determinações” (1989, p.

como se esta fosse uma fatalidade

138), logo a luta armada é a síntese de

(1968, p. 141), para Moraes essa tese

de Gorender engessa o movimento

4

De que a luta armada resultou da condição política posta pela Ditadura Militar, sendo a CF 1967 pré-condição, pois regulamenta os processos de coesão do Estado militarizado.

da luta de classes. Parece-nos que a 24

período

desencadeamento da luta armada, as

radicalização da esquerda brasileira. João

no


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

análise

de

Gorender

pretende-se

encontram-se os repetidos erros da

mais normativa no que se refere às

esquerda

e

formas de luta, e isso reflete um

derrotas.

O autor remonta, numa

pouco da relação do autor com o

pesquisa explicativa, o percurso da

objeto, como o próprio João Quartim

esquerda

de Moraes frisa. Este autor também

apresentá-la como um campo político

engessa,

a

constituído por grupos, cuja coesão

apreciação sobre o desencadeamento

estava alinhada aos parâmetros dos

da

“revolucionários

luta

em

certa

armada,

medida,

ao

delimitar

suas

brasileira

consequentes

de

modo

vitoriosos”

a

(1990,

rigorosamente, como dito alhures

p.186). Portanto, Reis Filho deixa

neste trabalho, os condicionantes da

recair sobre a esquerda todo o peso

luta armada no Brasil e a necessidade

de sua própria derrota, ao mesmo

de

de

tempo em que a minimiza enquanto

vanguarda que, segundo ele, faltou

agentes transformadoras da realidade

na resistência ao Estado Militar. Na

social. As assertivas elaboradas por

mesma linha, determinada pelo alto

Reis Filho são em parte convergentes

grau de envolvimento do pensador

com Moraes, quando este destaca o

com o objeto pensado, Reis Filho

forte

defende que naquele período, a

facções armadas, no entanto, Reis

esquerda tinha “um projeto político

Filho parece muito mais disposto a

com vida própria” (1990, p. 18), e os

um

militantes estavam condicionados a

Moraes. A Tabela 1 demonstra as

ele, precisavam manter princípios e

diferentes conclusões dos autores

condutas prescritas, e isso exigia

acerca

mais

abordando.

um

dos

verdadeiro

militantes

partido

do

que

a

componente

“acerto

do

de

dogmático

contas”

tema

que

compreensão da própria luta de classes no Brasil. Nesse processo Tabela 1. Teses de autores que militavam em organizações de

25

do

das

que

estamos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015 esquerda, sobre ascensão e declínio da luta armada no Brasil

Desencadeamento da luta armada

Moraes

Gorender

Reis Filho

Declínio da luta armada

Resposta aos condicionantes internos - golpe e aprofundamento ditatorial ligado a CF67 - e ao percurso dos movimentos de massas

Terrorismo de Estado

"Violência Retardada" ou seja, uma resposta à derrota configurada pelo golpe de 1964, em que a oposição estava sem direção.

A esquerda não se preparou para a luta armada

Resposta aos erros da prática democrática e massistas advindas das teses do PCB, que geram organizações guiadas por novas concepções de luta.

Erros de condutas, tais como o vanguardismo e a fragmentação das facções; erros de leitura da realidade da luta de classes no Brasil. (Organizado pela autora)

numa

outro se deu com a ascensão da luta

abordagem histórica, foca no papel

armada, ou seja, o agente político

do intelectual revolucionário, e como

que

este foi se modificando, e passou do

extremistas e armadas é aquele que

intelectual

age

Alcides

teorista,

Ramos,

pequeno-burguês, para

revolucionário.

o Ambos

combatente os

papéis

combina

muito

com

mais

organizações

que

conjuntura

nacional.

conjuntura

política

estuda

a

Portanto,

a

determina

a

sociais parecem pouco comuns na

agenda das organizações políticas.

sociedade. A substituição de um pelo

Ramos não apresenta os mesmos 26


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

impasses

dos

que

na

importam com os “erros”, muito mais

esquerda durante o período, isso

do que com os acertos, das ações e

resulta

menos

decisões das referidas facções, dado o

prescritiva. Além disso, o autor não

resultado final da disputa nada justa

se preocupa em explicar como a

entre esquerda resistente e ditadura

esquerda armada surgiu, mas sim um

militar. Há uma predominância da

efeito

historiografia, em detrimento dos

numa

militaram

análise

gerado

por

esta

nas

organizações de esquerda. O autor

métodos

compara

análise de discurso, das trajetórias,

documentos

das

organizações com depoimentos de

das

guerrilheiros,

e

análises

militante

almejado

conclui

que

o

da

pesquisa

instituições.

A

social,

base

são

da

dessas

documentos,

pelas

depoimentos e experiências, e o uso

organizações se constituía num tipo

de métodos quantitativos é escasso.

difícil

isso

Para efeito deste trabalho, defendo

os

que a história dos vencidos também é

guerrilheiros, que passavam por um

formada de acertos da parte destes e,

processo de morte simbólica para se

ainda que a derrota tenha ocorrido,

adequarem aos padrões.

nem

formava

de

concretizar-se, um

dilema

e para

alguma

composição

referência

social

da

social

ligado

sim

identificar

rupturas

cargos

entre

continuidades fatos

políticos

e e

sociais do passado e a atualidade. A

dirigentes, e reconhecido como a

luta armada ainda não foi conectada

fração de classe preponderante nas

com a atualidade, e acreditamos que

facções armadas. Também em algum

essa agenda política seja importante

grau, todos os autores partem do

para entender o habitus – numa

julgamento “errou ou acertou”, e se 27

tem

um ou outro lado estava certo, mas

esquerda

aos

vencido

importa para a ciência não é julgar se

à

armada, sendo o intelectual um agente

o

responsabilidade por ela. O que

Em suma, todos os autores fazem

sempre


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

linguagem bourdiesiana – do campo

A

desigualdade

de

recursos

foi

da atual esquerda brasileira.

importante tanto para a vitória do golpe sob a esquerda em 1964,

Medir forças com aqueles que

quanto

possuem os meios de coação é uma

para

a

intensificação

da

repressão pós AI-5. Dado que os

tarefa a qual se devem considerar

golpistas

fatores que escapam da lógica da

também

estavam

fragmentados e sua ação em 1964 não

derrota/vitória. A luta desigual – e

estava

essa desigualdade tem níveis, que

tão

bem

planejada

como

recorrentemente podemos imaginar.

talvez possamos definir comparando os meios de um e outro lado – entre grupos

sociais,

determinada

pela

Parte

posse dos meios de coação e pela

II

Características

das

organizações armadas

legitimidade da representação de classes e frações de classes, acaba

Inserir a esquerda armada no campo

determinando o resultado de um

político,

processo de combate. Com mais ou

compreender os motivos de sua

menos coesão, nascida de tal ou qual

ascensão

processo, a esquerda armada era

reconstruir

fraquíssima

inimigo

características, que apontem para a

número um, a ditadura, e mais fraca

forma e para o significado destas

ainda quando comparada ao inimigo

organizações

sistêmico, o capitalismo. A base

Assim,

social de apoio era cada vez mais

apresentaremos a esquerda armada

estreita e a posse de recursos de

sob o prisma de autores sem parti pris

guerra

menor;

que destacaram: i) a sua composição

grande era a confiança de que uma

social; ii) as teorias revolucionárias

vanguarda bem organizada poderia

que serviram como norteadoras das

transformar os rumos da sociedade.

organizações; iii) a moral estruturante

era

frente

ao

infinitamente

28

com

e

nesta

o

objetivo

declínio, algumas

no

requer de

campo parte

de

do

suas

político. artigo


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

do

militante

organização

e e;

estruturada iv)

a

pela

derrota da luta armada tem relação

violência

com

a

representação

das

bases

revolucionária. Essas características

sociais. Para ele, a derrota não foi de

foram

uma ou outra organização, mas sim

destacadas

por

serem

recorrentes na literatura sobre o

“de

um

projeto

político

de

tema.

representação” (2010, p. 241); sem apoio das bases sociais, as ações

2.1 Composição social da esquerda

armadas

armada

estavam

condenadas

ao

próprio fim. Ou seja, as classes e

A composição social da esquerda diz

frações de classes que formavam a

respeito

estas

esquerda

armada

organizações têm com as bases da

daquelas

cujos

sociedade. Ou seja, quais classes e

defendidos

frações de classes deram origem à

leitura,

luta armada, e quais classes e frações

considerável entre representantes e

de classes essas se dispuseram a

representados

representar. Nesse sentido, Marcelo

esquerda.

à

relação

que

Ridenti (2010), com base nos dados

Os

do Projeto Brasil Nunca Mais – que

de

cometida

pelo

direitos Estado

esquerda

(2010,

p.163-238).

social

dessa

parte

referidas

estas.

nossa

havia

uma

no

dados

Na

distância

campo

da

analisados

por

armada,

mesmo

organizações.

apresentamos

da

assim

duas

Abaixo

tabelas,

que

sintetizam um pouco a origem social

esquerda. Ridenti, ainda sobre o

da esquerda, e mais especificamente

prisma derrota/vitória, afirma que a

das facções armadas. Os militantes 29

por

origem social dos militantes das

Esse

estudo é importante no campo da projeção

eram

sugerem valiosas informações sobre a

analisou as bases sociais da esquerda armada

interesses

não representa todo o universo da

humanos Militar

distintas

Ridenti formam uma amostra que

pretende esclarecer e divulgar a violação

eram


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

listados na tabela compunham as

na guerra popular chinesa ou em

seguintes

“ALA”,

qualquer experiência que preconizou

“COLINA”,

formas de lutas – contabilizamos

“ALN”,

organizações: “AP”,

“CORRENTE”, “FALN”,

“DI-DF”,

“FLNe”,

de

dezoito

organizações

que

11”,

seguramente optaram pela via das

“MAR”, “MEL, “MNR”, “MOLIPO”,

armas: (“ALA”, “ALN”, “COLINA”,

“MR-21”, “MR-26”, “MR-8”, “MRM”,

“FALN”, “FLNe”, “MAR”, “MNR”,

“PCdoB”, “PCB”, “PCBR”, “PCR”,

“MOLIPO”,

“POC”, “POLOP”, “PORT”, “PRT”,

“PCdoB”, “PCBR”, “POC”, “PRT”,

“RAN”, “REDE”, “VAR”, “VPR”,

“RAN”, “REDE”, “VAR”, “VPR”).

“Vários

Dessas

grupos”

“G.

“DVP”,

(Ridenti,

2010,

“MR-26”,

organizações

“MR-8”,

participavam

p.277). Quando analisados um a um,

indivíduos que Ridenti categorizou

notamos que nem todos os grupos

como pertencentes a “camadas de

eram adeptos – preconizavam e/ou

base”, “camadas em transição” e

agiam – da luta armada. Dos que

“camadas médias intelectualizadas”,

optaram por esse tipo de tática – seja

descritas nas seguintes tabelas.

com referência no foquismo cubano, Tabela 2. Composição Social da Esquerda – todas as citadas Camadas médias intelectualizadas: Camadas em transição: Camadas de Base: Lavradores, empresários, estudantes, oficiais Autônomos, empregados, militares de baixa patente e militares, professores, profissionais funcionários públicos, militantes, trabalhadores manuais urbanos liberais ou com formação superior e técnicos médios e outros. religiosos. Total de militantes com ocupação conhecida

704 (19,0%)

1.085 (29,4%)

1.908 (51,6%)

Total

3.698 (100%)

(Fonte: adaptado de Ridenti, 2010, p.277.)

Tabela 3. Composição Social da Esquerda – facções seguramente armadas

30


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Camadas médias intelectualizadas: Camadas em transição: Camadas de Base: Lavradores, empresários, estudantes, oficiais Autônomos, empregados, militares de baixa patente e militares, professores, profissionais funcionários públicos, militantes, trabalhadores manuais urbanos liberais ou com formação superior e técnicos médios e outros. religiosos. Total de militantes com ocupação conhecida

273 (14,7%)

498 (26,8%)

1.089 (58,5%)

Total

1.860 (100%)

(Fonte: adaptado de Ridenti, 2010, p.277.)

As tabelas demonstram que no

especializados e pela pequena e

seio da esquerda armada, as camadas

média burguesia, proprietários dos

médias

eram

meios de produção e frações mais

Quando

privilegiadas das classes-que-vivem-

comparamos os dados das duas

de-trabalho. Ou seja, a representação

tabelas

a

de classe que era projetada pelas

esquerda armada do conjunto da

teses das esquerdas armadas não

esquerda, percebemos que dos 1.908

revelava suas próprias formações. As

militantes

camadas

frações da classe trabalhadora que

1.089

estavam em processo de ascensão ou

pertenciam a grupos armados. Ou

em ascensão social, aos moldes do

seja, o trabalho de Ridenti nos

capitalismo, lutavam motivadas pelos

mostra que a esquerda armada era

problemas

mais elitizada que o restante das

frações mais exploradas da classe

esquerdas,

trabalhadora. De fato, havia um

intelectualizadas

predominantes.

e

médias

quando

destacamos

oriundos

das

intelectualizadas,

a

grupos

origem

social

armados

dos

estava,

privilegiadas

trabalhadora

e

da da

vividos

pelas

problema de representação social.

preeminentemente, entre as frações mais

sociais

2.2

classe

Esquerda

armada

e

teorias

revolucionárias

pequena

burguesia, visto que as “camadas

A esquerda armada brasileira surge

médias

de

formadas

intelectualizadas” por

são

trabalhadores

teóricas 31

um

declínio e

das

práticas

concepções advindas

da


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

estratégia

democrática-nacional,

revoluções

como

a

chinesa,

a

defendida pelo PCB, como já vimos.

argelina, a cubana. Ridenti (2010),

Para as facções armadas, acreditar

com base num artigo de Marco

que há uma etapa revolucionário-

Aurélio

burguesa

características que diferenciavam a

socialismo

entre –

capitalismo no

e

sentido

de

para

uma

revolução

proletária – pesou na derrota de 1964, como indicam diversos autores, como Ridenti (2010), Gorender (1987) entre outros. Armar-se indicava uma mudança de tática e, portanto, de concepções

de

como

se

fazer

Estas subdivisões propostas por

revolução, já que a via pacífica e

Garcia,

democrática mostrou-se falha, na

revolução

China,

etc.

socialista

era

Fazer a

a

pilares

ação

da

ditadura.

o capitalismo, a luta de classes no Brasil e a ação no campo político variaram

alguns militantes passam a defender inspirados

entre

as

organizações

armadas, no entanto Ridenti defende

em

que 32

se

precedentes formas de compreender

esquerda frente ao golpe de 1964,

métodos,

teórico-metodológicos

armada. O grau de superação das

Baseados no completo imobilismo da

novos

conjuntura

constituiu e desenvolveu a esquerda

ainda que o motivo último tenha sido aprofundamento

da

a

eficazes para demonstrar sob quais

política fundamental desses grupos,

o

como

social apontada por Ridenti, são

apresentava-se como vitoriosa em na

bem

indissociabilidade

mesma medida que a via armada

Cuba,

as

em três grandes coordenadas as divergências entre os vários grupos em que se fragmentava a esquerda brasileira na década de 1960: uma referente ao caráter da revolução brasileira; outra, às formas de luta para chegar ao poder; uma terceira, ao tipo de organização necessária à revolução. As divergências em torno desses três grandes temas no interior das esquerdas tinham como paralelo indissociável as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira (RIDENTI, 2010, p.32).

amadurecimento do capitalismo, e isso

desdobra

esquerda brasileira. Separou-se

desenvolver as bases para o total

por

Garcia,

“muitas

organizações

que


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

pegaram em armas mantiveram com

reproduzia muitas das suas ações. O

poucas

quadro

alterações”

o

democrático-nacional

esquema

sintetiza

as

do

subdivisões de Garcia, usada por

PCB (Ridenti, 2010, p.33). Isso quer

Ridenti, e por nós consideradas

dizer

importantes para compreender a luta

que

superação

mesmo teórica

etapista

abaixo

havendo das

uma

estratégias

armada.

pecebistas, a esquerda armada ainda Quadro 1: Subdivisões no interior da esquerda socialista/comunista Tipo de organização Caráter da Revolução Formas de luta para necessária à Brasileira chegar ao poder revolução Via pacífica Democrática Nacional Insurreições de massas Guerra popular prolongada - guerrilha rural como Socialista catalisadora Foquismo

Partido de Vanguarda Pequenos grupos militarizados Exército popular, base campo

(Elaborado pela autora, com base em Ridenti (2010) p.32-56.)

A

estratégia

as

democrática-

partido

modelo do partido de vanguarda. O

Brasil.

Brasil

como

estava

plenamente

desenvolvido, e a burguesia nacional

a

assumia

estratégia socialista era combinada

posição

cooperação

com as insurreições de massas, com 33

vanguarda

defendiam que o capitalismo no

imperialismo, e com isso amadurecer no

de

socialista, pois estas organizações

revolucionário

com o objetivo de libertar a nação do

capitalismo

de

estratégia das facções armadas era a

que a burguesia brasileira deveria

o

guerra

pequenos grupos militarizados. A

PCB era o melhor exemplo, defendia

bloco

de

de organização, poderia ser tanto um

pacífica e democrática e com o

um

formas

guerrilhas e, em relação ao modelo

nacional era combinada com a via

compor

várias

e

de

colaboração,

aliança

com

o


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

imperialismo, o que as tornavam

sobre formas de lutas e análises

aliadas, e jamais inimigas de classes.

conjunturais, havia certos parâmetros

No

geral,

ainda

que

compartilhados pelas facções desse

as

campo político. Esses parâmetros

estratégias, as formas de luta e o tipo

advinham da moral que circunscrevia

de organização fossem temas que

o conjunto das grandes experiências

despertavam calorosos debates entre

da esquerda no campo da luta de

as esquerdas, que divergiam e se

classes. Back nos lembra que

fragmentavam motivadas por essas

desde Engels, Gramsci, e Lukács a Mao Tse Tung, Che Guevara e Fidel Castro, são elencados ascetismo, solidez teórica e política, autosacrifício, iniciativa, disciplina, generosidade, modéstia, engajamento, espírito de camaradagem, disponibilidade, simplicidade, altruísmo, “despojamento heroico cotidiano” (palavras de Fidel), discrição, submissão aos interesses coletivos (BACK, 2001, p.4).

questões, ainda assim as facções armadas parecida,

agiam e

isso

de

forma

acontecia

muito pelas

condições materiais sob as quais elas se encontravam, a clandestinidade, a repressão, e pela similitude de suas bases sociais e seu consequente

Os militantes eram indivíduos

problema de representação. que, 2.3 Moral revolucionária

verdade

com

características

reais

e dos

quais

que mais

na anti-

políticos envolvidos das revoluções épicas. Nesse sentido, ainda que as

as

esquerdas estivessem fragmentadas, a

mesmos.

moral revolucionária que agia como

Ainda que entre as esquerdas fossem

uma herança no plano da cultura

recorrentes as divergências teóricas 34

muito

cunho

parâmetros descritos por agentes

organizações forjavam a identidade militantes,

de

projeto

construíam a si mesmos com base em

o

objetivo de entender como essas

seus

era

um

ditatorial, portanto democrático –

revolucionárias, a ALN (Brasil) e o (Argentina),

de

socialista/comunista

comparativo entre duas organizações

de

nome

revolucionário

Lilian Back (2001) fez um estudo

PRT-ERP

em


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

política,

e

que

culminava

na

seja, Back vê a moral dos grupos

construção de um novo homem, era

armados como voltada ao combate, à

um fator de coesão. E esse era um

sobrevivência da luta política, e Reis

traço comum entre a diversidade das

Filho vê essa mesma moral como

facções armadas. Vemos no estudo

desagregadora da esquerda.

de Back (2001) ecos do que Reis

Daniel Aarão Reis Filho (1990)

Filho escrevera em 1990. Essa moral

também elenca características que

forjada pela esquerda armada foi um

eram prezadas pelos comunistas, os

dos elementos que pesaram para sua

quais definiam suas organizações

própria derrota, pois a imobilizava e

como

seccionava. Back nos informa que o imobilismo

era

rechaçado

medida

composição

social

representação, anteriormente.

na

e

na

como Destacamos

organizações

Estados

Maiores,

se a

importância maior que o processo real da luta de classes no Brasil. Segundo o autor, essa lógica acabou

vimos

debilitando

das

a

ação

política

dos

comunistas, e os conduziram às

conclusões de Back o que importa

sucessivas derrotas. Em suma, a

para este trabalho, ou seja, havia uma

moral revolucionária dá coesão à

predisposição dos militantes – guiada

organização, e na mesma medida

pela moral revolucionária, forjada

limita suas ações, pois o conjunto de

pela inteligência coletiva das facções

valores e concepções gera impasses

– à violência, à transposição da ação

para a ação interna e externa – com

em relação à teorização e por isso

aliados e não aliados.

“um rechaço ao intelectualismo e ao imobilismo” (BACK, 2001, p.15). Ou 35

as

manutenção dos princípios tinha

ser e o vir a ser dos militantes. Essa aparece

que

afirmavam

nos revela uma contradição entre o

também

Maiores

revolucionários”. Para Reis Filho, à

pelas

facções armadas (2001, p.15), e isso

contradição

“Estados


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

2.4

Violência

revolucionária

e

esses fatos. Conforme vimos no

memória social

início, Moraes (1989) defende que sim, que a luta armada teve como

O uso da violência é característica básica

da

esquerda

base

armada.

oprimidos

violência

representante é

uma

dos

militares

ficaram sem espaço de atuação”

(RIDENTI, 2010, p.63), soma-se a isso o fato de que a esquerda que

golpe teria gerado entre a esquerda

lutava antes do golpe não era mais a

uma violência retardada. Essa tese

mesma daquela que se constituiu

torna, em alguma medida, nebulosa a

depois

história da esquerda que, muito antes

esquerda, como seus limites em

isso

relação ao uso da violência, oculta

defendemos que o motivador para a

outros, que dependem da percepção

esquerda rever suas táticas – e

da continuidade da composição das

preferir às armas em detrimento das

facções

ações de massa – foi o golpe militar,

Portanto,

bem como o aprofundamento da militar

em

1968,

esquerda

mas

duvidamos

armada

tenha

que

a

extrema

esquerda.

constituição

e

o

devem ser observados num prisma

a

1

João Quartim de Moraes nos lembra de que grande parte dos militantes da esquerda armada estavam, em 1964, envolvidos com movimentos de massas, sobretudo o estudantil.

sido

constituída apenas em resposta a 36

da

fortalecimento da esquerda armada

que

marcou o ápice da opção pela via armada,

mais

ainda que revele vários aspectos da

revolucionárias, como é o caso das

repressão

golpe,

seja, a tese da violência retardada,

já vinha esboçando táticas armadas

Sobre

do

especificamente depois do AI-51. Ou

do AI-5 e mesmo do golpe em 1964,

Camponesas.

a

último recurso para aqueles que

à

representantes dos opressores. O

Ligas

e

“a resistência armada teria sido o

dos

resposta

golpe

(fatores internos). Ridenti coloca que

clássica, afirmando que a violência da –

o

legitimação do Estado Autoritário

Gorender apresenta uma abordagem

esquerda

motivadora


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

que extrapola o período da ditadura

incorporado pela esquerda brasileira,

militar.

marcada, como toda a sociedade na época, por concepções e práticas

Nascimento (2004) fez uma

autoritárias” (ROLLEMBERG, 2007,

análise das produções acadêmicas de

p.

1980 e 1990 – dentre elas a de

frente

o regime militar. Para o autor, essas

tese

revolucionário’ ‘causas

da

e

do na

derrota’,

do

cometidos que,

Trabalhadores,

Partido

dos

dizer,

“no

quer

nova

facções em

armadas violência,

que

a

democracia

fosse

suprimida, e sua prática criticada, na mesma medida que a democracia voltasse a reger. Contudo, o que hoje se sabe,

qualquer forma de práxis sustentada

se pensa e se divulga sobre a

na

experiência

de

crítica

essa

a

guerra

pela

pelas

envoltas

medida

origem a uma concepção da luta norteada

que

se a violência fosse crescendo à

começo de 80, em particular, deu

política

Disso

foram destruídas – por ela. É como

estavam

ligadas ao novo projeto político, no

sociedade.

construíram-se e destruíram-se – ou

seja, Nascimento defende que as

materializado

à

negação tem por base os erros

política dos anos 80” (2004, p. 48). Ou

gênero

postura

política. Compreendemos que essa

projeto

demandas políticas da conjuntura

desse

nova

uma

da negação da violência como tática

das

revolucionário, a fim de atender as

produções

antigos

esquerda pós-80 formou-se a partir

‘suicídio busca

dos

compreendemos

produções “insistiram como premissa na

exigindo

guerrilheiros

Gorender – sobre a esquerda durante

básica

291),

guerrilhas”

(p.49).

armada

da

esquerda

Soma-se a isso o fato de que na

durante a ditadura militar gira em

segunda metade dos anos 1980 “a

torno, sobretudo, da anistia e dos

democracia foi aparecendo e se

direitos

impondo

perspectiva da memória. Sobre isso,

como

valor

a

ser 37

humanos,

envoltos

na


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Vitor Amorim de Ângelo fez um

atualmente abrange a história da luta

estudo

de

armada. Para Ângelo, a luta armada

compreender os reflexos da relação

não chegou a ameaçar a ditadura,

entre esquerda armada e ditadura

como a memória social da esquerda

militar na memória social. Para este

sustenta, no entanto, a construção

autor, a violência vivenciada pela

dos

esquerda era envolta na assertiva de

memória cumpre uma função de

que

verdade,

capital simbólico (ANGELO, 2012,

facilitou a vitória do regime – e não

p.23) no seio da atual esquerda. Essa

sua derrota – ao lhe fornecer o

conclusão do autor é instigante, pois

argumento de que precisava para

demonstra que a experiência armada

ampliar a repressão” (2012, p.1). Ou

se estendeu no percurso da práxis da

seja,

esquerda brasileira.

com

“a

a

o

objetivo

guerrilha,

violência

na

do

oprimido

intensificou a violência do opressor

guerra,

teve

facilidade

que

envolvem

essa

2.5 Procedimentos metodológicos da

que, muito mais provido de recursos de

mitos

literatura

em

desmantelar o projeto revolucionário

Esse conjunto de informações sobre

de esquerda.

a esquerda armada resulta de várias pesquisas históricas e sociais, com

Nesse contexto, a memória

procedimentos metodológicos bem

social da luta armada está imersa em mitos,

que

relativamente militar.

Os

ocultam

a

diferentes. O quadro 2 resume a

derrota

fácil

à

repressão

ideais

de

revolução

forma como a literatura histórica e social aborda a esquerda armada brasileira. Nele verificamos que o uso

socialista das organizações armadas

dos métodos analíticos das ciências

deram espaço, na memória social,

sociais

para a lógica democrática, o que

minoritário.

E,

como

utilizamos referências clássicas da

explica de certa forma o foco na anistia e nos direitos humanos que 38

é


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

década de 1980, observa-se forte ênfase na lógica da derrota. Quadro

2:

principais

estudos

sobre

esquerda armada brasileira

(Elaborado pela autora, dados coletados

Autor (a) e grande área

Problema

Hipóteses

Procedimentos metodológicos

Algumas Conclusões

Mobilização e studantil Qual a relação e ntre Separa "eventos" de desencadeou-­‐se por motivos movimentos de massas A condição política fundamental "processos"; confronta e ventos internos, confirma-­‐se a J.Q. de Moraes, e o desencadeamento para a l uta armada foi a ditadura históricos com a possibilidade hipótese. O e ncontro e ntre Ciências Sociais da l uta armada no militar, e a pré-­‐condição foi a CF-­‐67 do contrário, e stabelece mobilizações de massa e l uta Brasil e m 1968? relações causais, compara. armada fez surgir a certeza de que a e stratégia e ra outra. M.S. Ridenti Ciências Sociais

Qual as raízes sociais e Remonta a órbita política da A revolução brasileira frustou e não As organizações clandestina o significado da l uta esquerda e suas composições amadureceu, o acerto de contas é marginalizaram-­‐se e perderam dos grupos de sociais. Utiliza dados do BNM, fundamental para que os e rros não representação; o i nimigo esquerda, sobretudo entrevistas e depoimentos. Uso se repitam. principal tornou-­‐se a ditadura. os armados? da e statística.

Manter os princípios e ra O autor mostra-­‐se fundamental para a e squerda, bem intensamente e nvolvido com o A derrota das e squerdas Como e xplicar a como a criação da vanguarda; os objeto, l ogo faz uma análise ocorreu pois a natureza das D.A. Reis Filho derrota dos comunistas motivos para as reviravoltas na histórica, clínica e e xplicativa da organizações e ra formada por História brasileiros? esquerda e ram i nternos; fragmentação, dos i mpasses e características que debilitavam predominavam os i ntelectuais, das atitudes dos comunistas as ações dos comunistas. sobretudo na cúpula. frente ao AI-­‐5 A e squerda e rrou e m não ter se preparado para o combate armado; e ste representou J. Gorender uma violência retardada a História 1964; o milagre e conômico foi importante para o declínio da esquerda. A e squerda armada justificou a O aprofundamento da ditadura repressão, pois e ra vista como Qual a relação e ntre Identificou e lementos com o AI-­‐5 deve ser e xplicado pela inimigo i nterno; sua ditadura militar e constitutivos da memória; V.A. de Angelo luta armada, formada por fragmentação facilitou a esquerda armada e reconstruiu o contexto histórico História organizações que depois passam a repressão; a l uta armada não qual o reflexo disso na no qual se e struturou e ssa serem vistas como combatentes ameaçou a ditadura, e passou memória social? memória. pela democracia. a ser vista como a l uta pela democracia. Esclarecer fatos políticos da relação entre e squerda e ditadura militar.

L. Back História

Comparar a moral revolucionária preconizada pelo PRT-­‐ ERP e pela ALN e compará-­‐las com os militantes reais.

O autor mostra-­‐se A e squerda armada brasileira intensamente e nvolvido com o copiava os modelos objeto, l ogo faz uma análise revolucionários de outros paises, histórica e clínica, a partir de no e ntanto sua constituição pesquisa documental, ocorreu como resposta ao golpe observação, participação e militar, a violência retardada. análise l iterária.

O novo homem e ra o i ndivíduo moral dessas organizações de esquerda.

Pesquisa e x-­‐post-­‐facto, com variáveis i ndependentes não-­‐ manipuláveis. Análise comparativa.

A moral forjada por ambas as organizações divergiam do imobilismo e i ntelectualismo, e convergiam a ação e a violência. Moral de e para o combate.

D.M. Nascimento História

O diagnóstico é composto por Vai do micro ( guerrilha do Qual o diagnóstico As causas da derrota guiam a críticas as ações e concepções da Araguaia) para o macro produzido e m 1980/90 crítica a e xperiência armada; é esquerda armada, e e stá (grerrilhas no Brasil). Pesquisa sobre a e squerda preciso e studar e sta subordinado ao projeto político do bibliográfica com e studo de armada? dissociada da defesa do PT. PT. casos.

A.F. Ramos História

Os i ntelectuais não A acusação de vícios pequeno-­‐ conseguem agir de acordo com Analisar depoimentos e Como foi modificado o burgueses e ra tendência e ntre os interesses de uma classe que apontar diferenças e ntre os papel do i ntelectual militantes de e squerda; a l uta não é de origem; por i sso a documentos dos partidos e os revolucionário? armada fez o i ntelectual ser identidade de classe se depoimentos dos combatentes. substituído pelo combatente. constitui numa fragilidade da esquerda.

39

D. Rollemberg História

Como parte da esquerda e voluiu no exílio a respeito da sua participação política?

Os valores democráticos foram, numa dinâmica histórica, sendo impostos a e squerda.

Análise de e xemplares da A "Debate" foi renovada no revista "Debate", comparação exílio, e mesmo negando ser das matérias contidas na revista plural constituiu-­‐se assim. com suas ações políticas.


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

de toda a bibliografia).

a

forma

Considerações finais

construção da memória social da esquerda

Grande parte da produção acadêmica

perceber

advém de pesquisas históricas, além

literatura

uma

mudança

sobre

luta

armada

no

Brasil, no campo da História ou das

projeto

suas

campo

Ou seja, existe uma tendência de a

rompem com a política das armas

logo,

do

não tenham parti pris” (2004, p.29).

processo de crítica e autocrítica,

democrático,

estrutura

frequente que pesquisadores do tema

ex-militantes, que no decorrer de um

um

No

geracional, sendo cada vez mais

alguns

estudos feitos na década de 1980 por

construir

a

“processa-se

militantes das organizações armadas.

para

brasileira.

a

político. Carlos Fico coloca que

disso, muitas são realizadas por ex-

analisa

armada

processou

fornecem dados importantes para

Brasil durante a Ditadura Militar

(2004)

se

entanto, as pesquisas históricas nos

que contempla a luta armada no

Nascimento

como

Ciências Sociais, superar as análises

teses

guiadas pela lógica da derrota.

expressam algo parecido com um Os autores que utilizamos para

acerto de contas com o período da

compor este estudo foram mapeados

luta armada.

a partir das categorias: tipo de Depois dessa fase da literatura,

pesquisa,

comprometida, segundo o autor, com

procedimentos

o projeto do PT, as pesquisas sobre

experiência

da

metodológicos

e

quadro 2, exibido anteriormente. A

totalidade

respeito

histórica, limitando a conexão dela

conclusão

com organizações políticas atuais.

disso, gira

reconhecimento

Isso não ocorre com o trabalho de

nossa

primeira

em

torno

de

que

do mais

variáveis devem ser mobilizadas para

Back (2001), por exemplo, que estuda

compreender os ecos das facções 40

hipótese,

conclusões, como demonstrado no

as facções armadas tendem a destacar essa

problema,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

armadas na política da esquerda

vitórias

atual. A análise guiada pela derrota

marxistas que se basearam na luta

encerra o assunto. Outra conclusão

armada, em Cuba, China, etc.; o

revelada pelo estudo e presente no

amadurecimento

quadro 2 é o uso estatístico aplicado

vanguarda combinado com a certeza

ao

da necessidade de um partido que

objeto,

muito

carente

na

de

espírito

de

guie

números revelam pouco sobre a

principalmente, a violação de direitos

realidade social, no entanto, torna-se

de natureza democrática. De modo

fundamental a quantificação quando

geral, o conjunto da literatura nos

se pretende demonstrar e remontar

permitiu gerar essas questões, em

um universo de relações sociais.

acordo e em desacordo com nossas

Podemos afirmar que os estudos

referências bibliográficas.

armada

brasileira

do

pouco

experiência

no

o

peso

campo

detalhados da forma de organização

dessa

hierárquica,

político

das

teses

revolucionárias, dos traçados táticos, das histórias dos militantes, entre

Também concordamos que os que

e,

a esquerda armada nos fornece dados

brasileiro da atualidade.

motivos

trabalhadora;

O conjunto da literatura sobre

período

ditatorial-militar, não revelam – ou revelam

classe

do

organizações

literatura. Temos certeza de que os

feitos até então sobre a esquerda

a

algumas

consagraram

outros aspectos. Isso representa que

a

o estudo deste objeto está localizado

militarização das facções foram: a

num terreno fértil da história. Além

impossibilidade de agir nas ruas e em

disso,

espaços

jornalísticas e memorialísticas sobre

públicos,

mobilizando

são

que

matérias

o

revolucionários preconizados pelas

pesquisas nesse campo. Os autores

organizações precedentes, como o

que estiveram envolvidos com as

PCB e a internacional comunista; as

organizações armadas tendem a vê-

o

as

massas; a descrença nos métodos

41

tema,

inúmeras

potencializa

as


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

las sob o prisma dos erros e acertos,

da

forma

e aqueles que não tiveram parti pris

relacionada ao projeto democrático,

tendem a explorar novos aspectos,

tenha sido uma resposta a este

como a memória, o intelectual e o

processo.

guerrilheiro, e a moral, por exemplo.

Dessa

A ascensão e o declínio da esquerda

foram

entender

Back

forma, a

coloca,

poderíamos

esquerda

armada

a

brasileira como uma fase radicalizada

muitos fatores, e neste trabalho

da esquerda, a partir de um processo

concluímos

ditatorial extremamente repressivo,

que

relacionados

como

os

motivos

da

ascensão são aqueles listados como

inspirada

de uma necessária militarização, e a

revolucionários

derrota está ligada à composição

desencadeavam em todo o mundo.

social e à conjuntura em que a

Seu declínio tem menos relação com

esquerda armada atuava. Ou seja, a

os

vanguarda

concepção

revolucionária

era

nos

possíveis

grandes

processos

que

erros

das

de

se

ação

e

organizações,

e

formada por indivíduos das frações

também com as condições em que

mais

estas estavam inseridas, além do

abastadas

da

classe

trabalhadora, e até mesmo de frações

problema

da burguesia. Isso gera o que Ridenti

projeção das bases sociais. Mesmo

chamou

assim,

de

problema

de

representação. Este problema, junto

da esquerda, fez murchar as bases de apoio das organizações armadas, que isolaram-se,

impossibilitadas de participarem da órbita política. Pensamos que a memória social da esquerda armada, 42

representação

e

todos os grupos de esquerda, armados ou não, embora gestados em lutas sociais, tornavam-se cada vez mais exteriores e distantes dos trabalhadores, pretendendo imporlhes as políticas mais diversas, de fora e de cima para baixo, alheios à sua realidade social. Nenhum grupo tinha condições de converter-se numa efetiva representação de classe, todos tendiam a arvorar-se em agentessubstitutos da ação política da classe trabalhadora, entrando numa

à intensa repressão e criminalização

gradualmente

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

atual

dinâmica que não os levariam a lugar algum (RIDENTI, 2010, p.252).

matérias jornalísticas e documentos

todo o conjunto da esquerda a novas

das

concepções de luta, portanto a luta momento

seria

do campo específico, bem como

acreditamos que a luta armada levou

um

isso,

de estudos científicos do período e

Ridenti ao final dessa passagem,

foi

Para

importante considerar todo o leque

Ao contrário do que afirma

armada

esquerda.

de

transformação em todo o campo da

organizações.

também

a

científico

de

divisão

Foi

notável

no

investigação:

campo quem

estuda a esquerda armada é guiado

esquerda.

por vontades políticas individuais e organizacionais, ou quem estuda a

Em suma, este trabalho nos alguns

esquerda armada está comprometido

processos que envolveram e foram

em esmiuçar um campo social com

envolvidos pelas ações políticas de

objetividade? De qualquer forma, nos

agentes da luta armada, guiados pelas

deparamos com um universo a ser

teses

explorado pelas Ciências Sociais,

possibilitou

compreender

marxianas

revolucionárias.

e

marxistas

Notamos

mais especificamente pela Sociologia

a

Política e pela Ciência Política.

necessidade de estudar os efeitos da experiência

da

luta

armada

na

composição – doxas e habitus – da

Referências ANGELO, V.A. Ditadura Militar, esquerda armada e memória social no Brasil. XI BRASA Congress. University of Illinois at Urbana-Champaign. 06-08 September 2012. BACK, L. Moral Revolucionário e construção do “novo homem” na esquerda armada revolucionária. Uma comparação entre a ALN-Brasil e o PRT-ERPArgentina. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2001. 43


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

FICO, C. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, nº 47, p.29-60, 2004. GIL, A.C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. 5ª impressão. São Paulo: Atlas, 2012. GORENDER, J. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. Série Temas, vol. 3. São Paulo: Ática, 1987. MORAES, J.Q. A mobilização democrática e o desencadeamento da luta armada no Brasil em 1968: notas historiográficas e observações críticas. Revista Tempo Social; USP, vol. 1, São Paulo: 1989, pp. 135–158. NASCIMENTO, D.M. Revisão Crítica da tese do “suicídio revolucionário”. Revista de História Regional 9 (1): 45-78, Verão 2004. RAMOS, A.F. A luta contra a ditadura militar e o papel dos intelectuais de esquerda. Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 3. Ano III nº 1. 2006. REIS FILHO, D.A. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990. RIDENTI, M.S. O fantasma da revolução brasileira. 2ª ed. Revisada e ampliada – São Paulo: Unesp, 2010. ROLLEMBERG, D. Debate no exílio: em busca da renovação. In: História do Marxismo no Brasil. Vol. 6. Organizadores: Marcelo Ridenti e Daniel A.R. Filho – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

44


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

A Noção de Poder sob as Perspectivas de Hannah Arendt, Michel Foucault e Pierre Bourdieu e as Possibilidades para a Pesquisa Histórica The Notion of Power under the Perspectives of Hannah Arendt, Michel Foucault and Pierre Bourdieu and the Possibilities for Historical Research Bolívar Kieling Júnior 1 Resumo Hannah Arendt, Michel Foucault e Pierre Bourdieu foram autores seminais nas discussões das humanidades do século XX, destacando em seus escritos diferentes e profícuas abordagens sobre a noção de poder. Este artigo visa apontar algumas possibilidades de como as abordagens propostas pelos autores sobre o conceito podem instrumentalizar o historiador em temáticas variadas.

Palavras chave: Poder, Poder simbólico, Pesquisa histórica, Teoria Social, Historiografia.

Abstract Hannah Arendt, Michel Foucault and Pierre Bourdieu were seminal authors in the discussions of the humanities during the twentieth century, highlighting in their writings various and fruitful approaches to the notion of power. This article aims to point out some possibilities on how the approaches proposed by the authors to this concept can equip historians in the study of various themes.

Keywords: Power, Symbolic power, Historical research, Social Theory, Historiographys. 1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

45


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

trajetória incipiente aos eventos mais

Pensadores prestigiados, um conceito genérico e as possibilidades teórico-analíticas para a historiografia Este

artigo

possibilidades

visa de

marcantes dos períodos próximos à Segunda Guerra Mundial. A autora atingiu seu ápice profissional nos

apontar

apropriação

Estados

na

teórico-analíticas sobre a noção de elaboradas

fixou

Contemporânea

ao

nazismo

três

alemão, ao fascismo italiano e ao

ciências

stalinismo na União Soviética, seus

humanas do século XX: Hannah

principais trabalhos datam de fins da

Arendt, Michel Foucault e Pierre

década de 1950 até a de 1970, fatos

Bourdieu.

que, aliados à sua experiência de

importantes

por

onde

residência a partir de 1941.

pesquisa histórica das perspectivas

poder

Unidos,

autores

Arendt,

das

alemã

de

vítima do nazismo alemão, colocam-

origem

na

judaica, realizou seus estudos na Filosofia,

mas

em

vivência

momento

cientista

declarava-se

política,

por

relacionados à política. Seus focos

totalitarismo

e

a a

crítica

ao

defesa

da

de

propícios

de seus objetivos principais, o que

e dirigir suas discussões a assuntos

eram

especialmente

e

explicação da natureza do poder um

como

temática central a natureza do poder

principais

temporal

de poder. De fato, a autora tem na

como

ter

espaço

para a análise dos regimes totalitários

posterior, já estabelecida no meio intelectual,

num

justifica

sua

condição

de

auto-atribuição “teórica

à

política”.

Orientanda de Martin Heidegger e

democracia direta.

influenciada

por

percebemos

nas

Carl suas

Jaspers, obras

características típicas dos trabalhos carreira

de filósofos alemães: atenção ao

acadêmica coincidiu com a ascensão

curso de mudanças do significado

do

dos conceitos centrais abordados em

O

início

nazismo,

de

sua

entremeando

sua 46


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

seu trabalho em um amplo espaço

caracterizadas

histórico e retorno da analítica às

exterior e ascensão relativamente

discussões

rápida

filosóficas

greco-romano,

do

gerando

mundo extensas

por

nos

altos

intelectualidade

revisões de caráter semântico. De

acadêmica

acordo com Lafer (1979) as premissas

década de 1970.

destes dois filósofos foram fulcrais

A

para a formação das proposições

sobre

destacando-se

o

relações de

de

poder

estruturas

e

sociais

através de sistemas educacionais,

elemento basilar da política é o ponto

sobre o meio acadêmico, a mídia

de partida da noção de poder a partir

televisiva, entre outras.

da qual a autora efetua sua analítica.

Na abordagem destas variadas

e

temáticas

Foucault, pode se afirmar, sob um

emergem

as

principais

contribuições intelectuais do autor,

olhar genérico, que ambos tiveram

onde se destacam as teorizações

similares, 47

as

reprodução

vivência humana em sociedade como

acadêmicas

sociólogo

século XXI, destacam-se abordagens

posteriormente, esta perspectiva da

trajetórias

um

estendeu até os primeiros anos do

(LAFER,

Bourdieu

Bourdieu

decorrer de sua carreira, que se

mas

1979: 21-23). Como será demonstrado

a

de

temáticas trabalhadas pelo autor no

considerar que, politicamente, não

Quanto

da

de 1950 e início de 1960. Dentre as

chegou a uma filosofia política, “por

plural”

partir

cabila, na Argélia, em fins da década

considerava um dos poucos que

no

como

burocracia

trabalho de pesquisa com o povo

pensada” e de Jaspers, a quem

coexistimos

trajetória

antropológico,

um objeto de erudição e uma coisa

singular,

a

da

carreira realizado pesquisas de cunho

“Hannah aprendeu a distinguir entre

no

da

no

clássico, tendo no início de sua

Segundo o autor, com Heidegger,

existimos

e

círculos

francesa

demonstra-o

analíticas empreendidas pela autora.

vivências


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

sobre o caráter simbólico do poder,

uma badalação quase positivista de

como um exercício “mágico” de

suas teorizações. O autor refutou tal

domínio e controle de uns sobre

quadro,

outros, e dos diferentes tipos de

intransigência

capital (recursos) através dos quais os

empírico dos modelos explicativos,

indivíduos

como será apontado posteriormente.

e

grupos

sociais

estabelecem sua posição e agem dentro

de

(conjunto

determinado de

A

campo

relações

Embora

ressalto

empírico

sociológica,

na

da

medida

diversas.

encontrados

na

obra

por

sobre a aplicabilidade do conceito de

que

habitus elaborado por Bourdieu e outras

teóricos de

Pollak,

Wacquant pelo seu foco em estudos

realidade da qual era abstraída. postulados

Michael

estudos ligados à história oral; Löic

considerava indissociáveis a teoria e a

Os

das

exemplo, é bastante referenciado nos

a

analítica em

influência

que ganharam destaque em áreas

insistência do autor em defender o caráter

caráter

também de alunos e orientandos seus

estes

tornardo-se amplamente aceitos no acadêmico,

ampla

o

apenas através de seus escritos, mas

constructos teórico-analíticos tenham

meio

salutar

com

propostas de Bourdieu se fez não

sociais

balizadas por regras estabelecidas e respeitadas).

defendendo

temáticas

variadas,

antropologia

do

marginalidade

urbana;

como

corpo

e

Cristophe

Pierre

Charle, historiador com temáticas

Bourdieu emergem com força no

diversificadas, aborda com maior

meio acadêmico a partir da década de

destaque setores sociais vinculados à

1970, influenciando pesquisas no

intelectualidade e à noção de campo

campo da Sociologia, Antropologia e

do autor 1.

História. Cabe destacar como o autor

abstraiu estes modelos teóricos de

Pollak, destacam-­‐se as relacionadas aos fenômenos sociais mnemônicos e identitários correlatos, como nas obras Memória e

1 Em relação às principais pesquisas de Michael

realidades diversificadas, o que gerou 48


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Antes de analisar o emprego

Michel Foucault apresentava-

das premissas de Bourdieu relativas à

se

noção de poder para a pesquisa

originalidade de suas abordagens

histórica, se faz importante destacar

dentro dos diferentes assuntos que

como a construção de suas propostas

analisou lhe conferiu respaldo em

teóricas foi pautada pela busca de

áreas diversas, como as ciências

uma interpretação sincrética entre o

jurídicas, médicas e humanas em

subjetivo e as estruturas, procurando

geral.

estabelecer de que forma os agentes

através

e

abordaram

as

estruturas

correlacionam-se.

como

filósofo,

Cabe da

porém

destacar qual o

a

seus

poder

a

maneira trabalhos

(coercitivo,

Partindo desta perspectiva, percebe-

normativo etc.) como algo exercido

se com maior clareza a função dos

de forma difusa na sociedade, em

conceitos de capital, campo e o de

instâncias e instituições variadas,

habitus 2

especialmente, postulados

deslocando o foco hegemônico deste

teóricos

basilares

exercício do poder nas instituições

importantes entendermos

do

autor

também as

definições

e

estatais.

para das

Este aspecto emerge como

formas de exercício do poder.

uma

central

do

pensamento do autor, na medida em

identidade (1992) e Memória, esquecimento, silêncio: a produção social de identidades frente a situações limite (1989); de Wacquant, Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe (2000) e Condenados da Cidade: estudos sobre marginalidade avançada (2008); de Christophe Charle, História das Universidades (1996). 2 Os capitais seriam recursos diversificados próprios aos agentes, que desempenham papéis de valoração destes dentro de determinados espaços. O habitus, sistemas duráveis e transponíveis de esquemas de percepção, apreciação e ação resultante da instituição do social no corpo, uma história social incorporada nos indivíduos. O campo é um espaço de relações entre agentes, com diferentes postos para serem ocupados de acordo com tipos de capital que apresentam.

que o próprio Foucault define sua analítica

do

“genealogia”.

poder

como

Segundo

uma

Roberto

Machado, estas análises genealógicas do poder, “produzem um importante deslocamento com relação à ciência e à filosofia política, que privilegiam em suas investigações sobre o poder a questão do Estado. Estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas

49

característica


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Desta

precisas e minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária e a constituição do dispositivo de sexualidade, Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo próprio material de pesquisa, viu delinear-se claramente uma não sinonímia entre Estado e poder” (MACHADO, 1988: 188).

Não

menos

importante,

suas teorizações e/ou análises. De fato, as discussões que propuseram sobre o tema foram basilares em suas

a

obras, tornando impossível pensar suas contribuições intelectuais sem considerar

a relação entre “o poder e a verdade”

a

empreenderam

- tornou-o basilar para autores cujas às

evidencia

de poder, um elemento chave para

a forma do saber institucionalizado –

dirigiam-se

se

como os três autores têm no conceito

análise pormenorizada do poder sob

críticas

forma,

discussão a

que

respeito

das

variadas formas de exercício do

mega-

poder. E justamente por partirem de

narrativas europeias e àquilo que

perspectivas diferentes e visarem

alguns denominavam como “racismo

objetos

epistemológico” ocidental. Em fins

seus

do século XX, autores apoiados

diversificados

pressupostos

de

análise,

abrangem

um

grande leque das relações de poder

nestas premissas passaram a ser

observáveis em variados contextos,

corriqueiramente encampados sob o

aplicáveis em relações sociais a níveis

rótulo de pós-coloniais3.

micro, meso ou macro.

3 Edward Said foi um dos autores seminais

Ainda em vida, em meio às

dentro das abordagens pós-­‐coloniais. Homi Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Gayatri Spivak foram autores indianos destacados nesta perspectiva. Paul Gilroy e Stuart Hall são também figuras proeminentes deste movimento oriundas do Caribe. Na América Latina, próximos a esta perspectiva, podemos citar os “descoloniais” Anibal Quijano e Walter Mignolo. A importância de Foucault para estes autores reside em sua crítica ao saber institucionalizado e a seus intrínsecos efeitos de poder, o que gera análises direcionadas, que subalternizam determinados objetos e formas de saber não europeias.

suas

carreiras

acadêmicas,

os

postulados dos três autores atingiram grande

importância

humanas,

nas

tornando-se

ciências

pauta

de

discussões epistemológicas em áreas diferentes às de suas origens. Entre estas áreas, a História emerge com destaque. Tendo em vista o objetivo 50


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

deste

artigo

a

análise

da

determinados modelo teóricos nas

contribuição das proposições destes

ciências humanas no decorrer do

pensadores em relação à noção de

tempo.

poder em estudos históricos – se faz

Em fins do século XIX, a

necessário discorrer sobre alguns

busca

temas tangentes, a fim de situar a

em

científicos

discussão dentro da historiografia

estabelecer

padrões

razoavelmente

rígidos

visava oferecer métodos e objetivos

apropriadamente e realizar esta tarefa

específicos a cada disciplina, a fim de

de forma resoluta e satisfatória.

provar

sua

cientificidade.

Neste

ínterim, a História foi marcada pela A historiografia e as ferramentas teóricas de áreas afins

primazia às fontes escritas e pela

Na medida em que este artigo visa

por parte do historiador. Ainda nesse

estabelecer as possíveis contribuições

período

de autores de áreas variadas das

atualidade, o materialismo histórico,

ciências

humanas

pesquisa

ancorado nos pressupostos marxistas,

histórica,

é

abordar,

emerge

à

necessário

limitada margem de interpretação

e

estendendo-se

com

até

bastante

a

força,

mesmo que sucintamente, como a

inaugurando grandes contribuições

História

teóricas da sociologia à história.

enquanto

ciência

institucionalizada tem se relacionado

A partir da década de 1940,

com as áreas afins no plano teórico. Analisando

tal

algumas gerações de historiadores

relação

ligados à revista acadêmica francesa

temporalmente, é perceptível sua permeabilidade

a

teórico-analíticas

Annales, tendo como figura seminal

perspectivas de

Marc Bloch, ofereceu pressupostos

outras

analíticos

disciplinas, sendo que a força destas influências

pode

comparada

com

ser o

historiográfico,

facilmente

destaque

e

do

metiê

tornaram-se

referenciais basilares da área. De

de 51

próprios


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

acordo

com

Peter

Burke,

o

possibilitam ao historiador escapar

renovação

de modelos teóricos rígidos, que não

movimento

de

historiográfica

promovida

pelos

cumprem

com

suas

intelectuais ligados à revista pode ser

explicativas

compreendido como algo próximo a

determinados objetos de pesquisa

uma “escola”. Burke identifica três

(problema típico de interpretações

aspectos centrais nesta renovação:

“marxistas vulgares”5).

“a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma históriaproblema(...) a história de todas as atividades humanas e não apenas a história política (...) a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística, a antropologia e tantas outras.” (BURKE, 1990: 12).

Junto

à

proposição

em

funções

relação

a

Este aprisionamento teórico demonstra suas limitações na medida em que determinadas teorias são utilizadas para abordar fenômenos e realidades sociais distintas das quais

de

foram elaboradas, relegando a um

historiadores vinculados à revista

segundo

Annales,

do

importantes, superdimensionando a

século XX em diante, passou a

relevância de outras e buscando

ocorrer uma gradual intensificação,

interpretações pré-definidas a fim de

de forma cada vez mais explicita4, da

forçar a adaptação do objeto a uma

apropriação de premissas de autores

teoria

da

recorrente com o uso de teorizações

da

segunda

filosofia,

especialmente

da

metade

antropologia

e

sociologia

na

defesa

das

fornecido

que

4 Por explícita, entenda-­‐se declarada, positivada, como um fenômeno valorizado no meio acadêmico, ao contrário de influências indiretas, não declaradas, sub-­‐reptícias.

52

se

tornou

proeminente neomarxista britânico, ao designar interpretações materialista-­‐históricas pouco aprofundadas, que operam de forma mecanicista concepções como luta de classes, primazia das relações econômicas e modelo base-­‐superestrutura no estudo de seus objetos. Embora considere-­‐as importantes por haverem abrigado “grandes quantidades de explosivo intelectual”, cometiam o erro fatal de partirem de respostas pré-­‐determinadas para uma pesquisa que as confirmassem. (HOBSBAWN, 1998: 162-­‐ 163)

propostas

subsídios

Isto

5 Termo cunhado por Eric Hobsbawn,

interdisciplinares. Estas teorizações têm

exótica.

características

produção historiográfica, pautadas pela

plano


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

próprias

às

mega-narrativas

relevantes às ciências humanas em

teleológicas.

geral e à historiografia, não menos. Foucault, por exemplo, faz a defesa

As propostas interdisciplinares

de

têm ampliado o espectro de teorias

fenômenos sociais. Na medida em que aborda realidades sociais sob um

agentes

e

consideradas

desqualificadas

discurso

espectro temporal, a historiografia

deste

ensaio, Bourdieu e Foucault. Uma série de trabalhos de cunho histórico desta

Pierre Bourdieu no que tange às

aos

ao exercício do poder simbólico.

correção

Através

penal,

ao

perceber

a

objetos

de

as

estudo,

tecnologias

pelo das

discurso genealogias,

científico. buscava

6 Em relação a conhecimento, o autor refere-­‐se

ao saber institucionalizado, ao discurso científico dotado de poder normativo. Memórias locais faz alusão a saberes desqualificados de cientificidade, mascarados dentro de conjuntos sistemáticos do discurso cientifico dotado de poder, próprios de agentes sociais desconsiderados pelo discurso cientifico.

Estes dois autores apresentam importantes, 53

de

educacionais, entre outros.

empíricas

seus

balizado

internação hospitalar e psiquiátrica,

propostas

termo

políticas envoltas ao saber médico

cujos objetos de pesquisa sejam de

proposta

especificamente

tornou-se

referência obrigatória em trabalhos

instituições

o

resistência no meio historiográfico

noções de campo, habitus e capital e

Foucault,

com

O autor explica a importância

passaram a utilizar as teorizações de

a

dominante.

“o acoplamento do conhecimento com 6 as memórias locais , que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais.” (FOUCAULT, 2011:171)

Neste âmbito, destaco a relevância de

Quanto

pelo

genealogia, que seria

explicativa dos objetos abordados.

centrais

científico

detalhado

buscando potencializar a capacidade

autores

circunstâncias

Foucault referia-se a este estudo mais

tem sido pautada por estas propostas,

dos

históricos

pormenorizados, atentos à atuação de

disponíveis para a explicação dos

dois

estudos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

escapar da “tirania dos discursos

propostas

englobantes com suas hierarquias e

determinadas.

com os privilégios da vanguarda

Bourdieu

teórica” (FOUCAULT, 2011: 171), que

efetuam

a

simplificação

conjuntos

Foucault

de

relação

sentido

elementos outrora desconsiderados,

vivência social. Estes eram os saberes dominados, verdadeiros “blocos de saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento de erudição.” (FOUCAULT, 2011: 170).

do

se

pensados

em

e à atenção às lacunas do discurso

7 Nesta obra, organizada sob a forma de uma

entrevista, Bourdieu é questionado sobre a noção de campo. O entrevistador questiona como em realidades diferentes o autor abstraiu este conceito de forma altamente técnica. Em sua resposta, Bourdieu insiste em apontar o caráter empírico de sua teorização, defendendo sua intransigência em não elaborar um sistema de “teorias de médio alcance”, noção própria a teóricos da sociologia norte-­‐americana.

considerado “científico”, evitando a determinadas

temáticas, esquemas explicativos préde 54

apenas

apropriados às realidades abordadas

de poder próprios a um discurso

carregados

pesquisa.

à construção de modelos teóricos

intelectual em estar atento aos efeitos

e

de

A defesa de ambos em relação

Desta forma, Foucault chama

configurados

objeto

“os conceitos não tem outras definições além das de tipo sistêmico, e estão destinadas a ser postas a trabalho de maneira sistemática. As mencionadas noções de habitus, campo e capital podem ser definidas, entretanto, apenas dentro do sistema teórico que as constituem, não de forma isolada.” (BOURDIEU & 7 WACQUANT, 2005: 148)

explicação de importantes espaços de

de

ao

relação à realidade abordada:

mas não menos importantes para a

preponderância

essa

explicativos de uma teoria fazem

minúcia permite a análise destes

importância

a

o autor defende como os conceitos

pesquisa histórica elaborada com

a

relação

de

Instado a explicar a noção de campo,

como irrelevantes. Para o autor, a

para

aproxima-se

intrínseco das teorias e conceitos em

solapando

determinados conteúdos históricos

atenção

em

pré-

proposição ao defender o caráter

explicativos

sistematizados,

interpretativas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

científico vigente são apontamentos

o esforço para a sobrevivência8, são

interessantíssimos

considerados de menor importância.

historiografia. propostas

A

na

para

a

aplicação

destas

pesquisa

Um

histórica

terceiro

adquire

elemento,

importância

a

fulcral,

ação, real

qualifica-na, forçando uma atenção

definidor do que seria a condição

maior ao objeto de pesquisa e

humana. Consiste no ato de vivência

indubitavelmente, elaboração

de

permitindo

a

das pessoas entre si enquanto seres

interpretações

e

plurais,

diferenciados.

Esta

ferramentas teórico-analíticas mais

pluralidade e a ação engendrada para

acuradas, conectadas ao objeto.

estabelecer a convivência seria uma condição

os indivíduos, como determinantes de sua condição de seres humanos. Como aponta a autora,

qual Hannah Arendt pautou sua

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. (ARENDT, 1983: 15)

analítica pode ser encontrada de em

um

de

seus

trabalhos mais notáveis, A condição humana, de 1958. Neste trabalho, a autora visa dirimir os elementos condicionantes

da

Considero este postulado um

existência

elemento

humana, elencando três principais, encampados

sobre

a

noção

política,

relações de poder estabelecidas entre

A noção de poder através da

nítida

da

atribuindo ampla importância para as

Hannah Arendt e a analítica da natureza do poder: possibilidades historiográficas

forma

geradora

revelador

sobre

teorização da autora. É uma premissa

vita

basilar, construída em uma discussão

activa. Dois destes elementos, ligados

às necessidades orgânicas humanas e

8 Em A condição humana (1983: 31), Arendt

argumenta que se realizássemos apenas estas atividades laborais voltadas à subsistência, desnecessárias da presença de outros,

55

a


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

que visa atingir estruturas profundas

oferece

das relações humanas, com o claro

interpretativas de variados eventos

objetivo de esmiuçar no plano mais

históricos. No seu trabalho Sobre a

básico, a natureza do poder. Tal

Revolução, de 1963, a autora propõe

percepção do alto caráter político da

perspectivas interessantes sobre três

experiência

ser

grandes processos revolucionários: a

transposta para a pesquisa histórica,

Revolução Americana, a Revolução

oferecendo

Francesa

humana

a

pode

possibilidade

de

novas

e

a

possibilidades

Revolução

Russa.

perspectivas analíticas originais. As

Arendt trabalha de forma particular a

abordagens da historiografia sobre

importância

das

motivações

questões políticas, geralmente, são

econômicas

no

processo

pautadas pela análise de um conjunto

revolucionário, apontando que as

de

revoluções são conseqüência e não

instituições,

estabelecidas,

corpos

palco

de

e

regras relações

causa

da

queda

da

autoridade

altamente condicionadas, focando a

política. Esta perde o poder na

estrutura do Estado. Pensar a política

medida

sob esta perspectiva tão basilar na

legitimidade,

historiografia nos remete a uma

respeitada por aqueles que acredita

análise

representar.

espectro

diferenciada das

de

relações

todo

o

humanas,

em

que não

cessa sendo

Segundo

sua mais

ela,

nos

lugares em que a revolução ocorreu

atingindo os espaços tidos como

entremeada

próprios da produção econômica e

econômicos de uma ampla camada

das manifestações culturais.

da

interesses

empobrecida,

o

processo revolucionário fracassou na

Hannah Arendt nos fornece

sua proposta democrática, casos da

um exemplo de como sua proposta

Revolução Francesa e Russa.

teórica sobre as relações de poder

Para a autora, a explicação

seríamos meros animal laborans, e não humanos.

para o fato de que o único processo 56

população

aos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

revolucionário exitoso em instalar

evidente este enfoque econômico

instituições políticas que oferecessem

pela

uma

“libertar

experiência

democrática

busca

de

o

Robespierre

povo

da

em

pobreza

e

duradoura ter sido a Revolução

promover a sua felicidade” e no caso

Americana se deve ao fato dos

russo,

colonos

socialismo

serem

prósperos,

economicamente

formando

um

amplo

em

Lênin russo

simplificação

considerar por

meio

“eletricidade

o da

mais

estrato social médio. Sendo assim,

sovietes”. Numa crítica recorrente a

justifica que apenas uma sociedade

Marx, a autora aponta como o autor

de

relações

tratou a questão social em termos

pela

políticos em sua juventude, porém, já

iguais

pode

políticas

atingir

caracterizadas

democracia direta. Por

na sua maturidade intelectual, passou

partilharem

característica

central

de

uma

em

suas

a considerar a abundância e não a liberdade, o objetivo da revolução. (ARENDT, 1988:50-51)

sociedades - a miséria e a penúria, mescladas na luta contra a tirania e opressão,

Arendt

Embora considere a Revolução

processos

Americana como uma experiência

similares decorrentes nas revoluções

que

Francesa e Russa. O Terror francês e

políticas genuinamente democráticas,

os expurgos soviéticos, fenômenos

assemelhadas

característicos

ateniense 9 , a autora não considera

balizaram

dois

eventos,

à

relações

democracia

que este quadro tenha se mantido até

novos governos, ocorreram sob a

o momento presente. Postula que a

justificativa e

estabelecimento

permitido

dos

falácias

o

dos

tenha

de foram

desmascarar

as

noção de liberdade pública - a

marcantes

no

9 A democracia direta ateniense é para a autora

repentino processo de cerceamento

algo próximo a um modelo ideal de participação política, onde todos os cidadãos, na condição de iguais, têm a oportunidade de participar dos negócios públicos. Façam-­‐se as

de propostas democráticas em ambas realidades. No caso francês, fica 57


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

participação nos negócios públicos

condição humana. Sua interpretação

ancorada nas experiências cotidianas

destes

de discussão e debate sobre a coisa

originalidade, gerando perspectivas e

pública - deu espaço para a garantia

discussões que a historiografia não

de

havia ainda efetuado.

liberdade

civil,

ou

seja,

a

estabilização de direitos e leis que dão

ampla

margem

para

Desta

a

chegada

dos

imigrantes

pela

elemento troca

ascensão

de

considera

pauta as

política.

relações

estadunidenses como

para

apropriadas

de

na

na

historiografia:

preocupação com as definições dos

esta

conceitos

Não

claro

políticas

explicativos

afastamento

interpretativas

contemporâneas

exemplo

destaco

como premissas tangíveis para serem

econômica,

fundamental

forma,

pela

elementos principais, que sinalizo

dos

séculos XIX e XX aos EUA, com sua busca

destaca-se

teorização de Hannah Arendt três

prosperidade econômica. A autora vê na

eventos

abordados,

de

propostas

teleológicas

e

valorização da analítica das relações

prática

de

democrática.

poder,

centrais

Acredito que o exemplo posto

para

consideradas a

como

explicação

dos

fenômenos sociais.

acima, envolvendo o livro Sobre a

revolução, elucida como a abordagem

O poder simbólico de Pierre Bourdieu e sua aplicabilidade na pesquisa histórica

da autora sobre a natureza do poder pode

ser

aplicado

à

pesquisa

Pensar a noção de poder de acordo

histórica. Vejo na sua interpretação a

com as premissas de Bourdieu é levar

primazia das relações políticas para a

em

análise dos fenômenos sociais, algo

seu

caráter

simbólico. Na analítica do poder, o

postulado em sua obra anterior, A

autor propõe-se a analisá-lo não sob

devidas ressalvas ao período histórico e à condição de sociedade escravista.

suas formas mais explícitas, físicas, 58

consideração


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

mas nas situações em que ele é

constitui-se enquanto um exercício

amplamente reconhecido e ignorado,

simbólico de poder.

portanto “mágico”. Para Bourdieu,

Bourdieu considera que este

“é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (BOURDIEU, 2012: 10).

exercício do poder simbólico é uma forma “irreconhecível, transfigurada e legitimada de outras formas de poder” (BOURDIEU, 2012: 15), e para abordá-lo de forma adequada, para

Esta forma de poder abordada

são

percepção de relações de poder em

espaços

de

vivência

todos

um

espaço

capital simbólico. Desta forma, o

então

exercício de poder por parte de uma classe dominante assume o caráter

linguagem. O ato de nomear, de

mágico,

inculcar determinada perspectiva das

e

ignorado,

produzindo efeitos reais sem exigir

social e é considerado por Bourdieu,

gasto de energia.

um intenso exercício de poder. Na

“(E)nfrentamentos de visões e de pressões da luta propriamente política encerram uma pretensão à autoridade simbólica enquanto poder socialmente reconhecido de impor uma visão do mundo social, ou seja, das divisões do mundo social.” (BOURDIEU, 1982: 82)

medida em que a linguagem é compartilhada socialmente e esta desconsiderada

enquanto manifestação de poder,

59

reconhecido

transformado em poder simbólico,

coisas, possui um caráter altamente

é

enquanto

tipos de capital dos agentes em

desconsiderado para análise, o da

nomeação

apenas

guiam a transmutação dos diferentes

humana.

até

pautadas

deve-se analisar os processos que

os

Podemos exemplificar esta amplitude citando

perspectivas

relações de força ou de comunicação,

uma ampla gama de relações sociais, praticamente

das

limitadoras onde as relações sociais

e teorizada pelo autor permite a

atingindo

além


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Neste sentido, percebemos a

grande clamor em diferentes estratos

importância em analisar a teorização

sociais

do autor que resulta na constituição

observáveis ao pesquisador na lida

dos conceitos supracitados de capital,

com diversos tipos de fontes. O

habitus e campo. São especialmente

exercício do poder na sua dimensão

configurados para operarem análises

simbólica, por sua vez, exige grande

relacionais das dinâmicas sociais, a

quantidade de fontes, que forneçam

partir das quais podemos investigar

indícios sobre a ação de dominadores

as manifestações do exercício do

e dominados. Tais informações só

poder simbólico.

podem ser encontradas na análise

uma quantidade maciça de dados

altamente operacional para todas as humanas,

História.

Entretanto,

inclusive exige

para que estes sistemas consigam ser

a

razoavelmente analisados, a fim de

um

possibilitar

aprofundamento maior na pesquisa

que

podem

interpretações

e

abstrações teóricas qualificadas.

das fontes e atenção mais apurada a detalhes

facilmente

poder e os sujeitados, o que exige

teórico-analítica

ciências

tornam

as relações entre os que exercem o

sobre o poder simbólico torna-se ferramenta

se

dos sistemas simbólicos que mediam

Desta forma, tal perspectiva

uma

e

passar

Cabe

destacar

que

tais

despercebidos10 . As formas clássicas

conceitos

de exercício de poder abordadas pela

operacionalizações são talhados para

historiografia

pela

uma analítica sincrônica, própria ao

reação dos dominados, estratégias de

metiê da Sociologia, onde um grande

resistência, fuga e retaliação, geram

conjunto de dados está disponível

para análise do pesquisador. Tal

caracterizam-se

10 De acordo com Bourdieu, o poder simbólico

situação

tem um caráter “quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for

é

suas

respectivas

impossível

na

reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (BOURDIEU, 2012: 14).

60

e


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

interpretação de inúmeros processos

coletiva ou individual, dentro de um

históricos, devido à indisponibilidade

modelo teórico adequado.

de fontes. Outros, onde o conjunto de

fontes

é

limitado,

exigem

As possibilidades de apropriação pela historiografia das perspectivas de Michel Foucault sobre o exercício do poder.

originalidade na sua leitura por parte do historiador e a procura de indícios sob formas peculiares.

De

De fato, utilizar as teorizações

além

de

um

prestigiados para esta análise.

amplo

Um dado relevante sobre o

porém,

estudo do poder levado a cabo pelo

interdependentes. Mas sem dúvida,

autor diz respeito à sua pretensão de

permite ao historiador interpretações

propor uma analítica do poder em

de

bastante

detrimento de uma teoria sobre o

diversificado das relações sociais que

poder. O autor evita esta dimensão

permearam os grupos e agentes

teórica

focados em seus estudos, atingindo

argumentando

aspectos

descrever o poder como algo que

um

abrangentes,

propôs

convívios sociais até então pouco

conhecimento de seus pressupostos teóricos

Foucault

e

das relações de força em espaços e

fontes

razoável e investigação intensa sobre estas,

Arendt

de poder, que permitiram o estudo

como uma tarefa complexa. Exige de

a

perspectivas originais sobre a noção

em pesquisas históricas apresenta-se

disponibilidade

similar

Bourdieu,

de Bourdieu sobre o poder simbólico

uma

forma

espectro

pouco

abordados

na

de

seus

estudos

que

exigiriam

historiografia, e possibilitando ampla

emerge

capacidade explicativa das dinâmicas

específicos, sendo necessário deduzi-

sociais, enquadrando as múltiplas

los e reconstruir sua emergência.

possibilidades

Para o autor, um constructo de

da

ação

humana,

num

tempo

e

espaço

caráter teórico do poder direciona 61


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

para

uma

proposta

interpretativa

objeto

descontextualizada, a-histórica, algo que

considera

inadequado.

Por

Os

sucintamente

de análise que dê espaço para uma

(DREYFUS

&

de

objetos

poder

RABINOW,

temas

os

quais

sobre

poder foram diversos. Examinarei

postula que basta formular uma rede

relações

uma

Foucault analisou esta incidência do

um conjunto de relações abertas,

das

para

abstração teórica.

considerar as relações de poder como

analítica

inadequado

três

que

conjuntos

considero

de

como

especialmente propícios para analisar

1995:

as possibilidades de apropriação para

202).

a pesquisa histórica e apontarei como Estes

postulados

estão

em

relação

ao

terceiro,

esta

alinhados à perspectiva do autor de

apropriação já tem ocorrido: um

analisar

conjunto analítico formado pelas

o

poder

enquanto

a

“operação de tecnologias políticas

formações

através do corpo social” (DREYFUS

concentrado na relação entre o saber

& RABINOW, 1995: 203). O autor

institucionalizado, a verdade e o poder;

visa descolar o estudo do exercício

e um terceiro sobre as tecnologias

do poder enquanto uma potência dos

políticas exercidas na emergência de

sujeitos

novas de estruturas de dominação.

ou

específicas, deste

de

focando

exercício,

instituições nas

cuja

práticas

lógica

O

se

estudo

das

outro

formações

discursivas proposto por Foucault

encontra nas estratégias formuladas a

fornece

fim de contemplar um conjunto de

para

objetivos por parte dos atores sociais.

perspectivas análise

de

interessantes fenômenos

importantes nas dinâmicas sociais,

Entretanto, não vê estabilidade, ou

tendo como foco o estabelecimento

uma espécie de equilíbrio sistêmico

de discursos sobre determinados

inerente a este conjunto de práticas,

fatos e realidades sociais. Para

considerando o poder como este 62

discursivas;

o


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

autor, não existe uma verdade a ser

dados às coisas e ao mundo é um

revelada sobre os fatos, apenas um

objeto

sentido

implícito

analisado

construído

11

socialmente

. A atribuição deste

de

estudo na

qualifica

que,

pesquisa

se

for

histórica,

enormemente

a

sentido implica uma disputa pela sua

interpretação do historiador sobre

legitimação, visando sua aceitação

um determinado período. Permite

entre os diferentes atores e grupos

desvelar as percepções dos agentes

sociais. Esta disputa procura apoio

concernentes a seu período, evitando

em suportes institucionais, sendo os

desta

espaços

anacronismos

científicos,

os

mais

proeminentes e respeitados porta-

verdadeiro”.

das

o

ao

saber

análise, percebemos a apropriação do autor

como o mais qualificado.

de

Nietzsche,

várias no

premissas

questionamento

de a

do

postulados centrais do pensamento

discurso dominante, das disputas

próprio da modernidade: suas noções

travadas

de

para

determinados

poder

discursivas,

institucionalizado e à verdade. Nesta

disputas sobre os quais ele se posta

de

formações

entremeado

em que isto mascara o palco de

efeitos

interpretação

pesquisado por Foucault: o poder

atravessa”

(FOUCAULT, 1971: 20), na medida

Os

na

de

encontramos outro importante objeto

“não pode reconhecer a vontade de que

ocorrência

Não muito distante da análise

Segundo

Foucault, o discurso “verdadeiro”

verdade

a

histórica.

vozes do que é entendido como o “discurso

forma,

legitimação sentidos

de

implícitos

totalidade,

cientificidade,

seu

caráter teleológico e a crença de que

o mundo é explicável. Conforme

menção a praticamente todo o espectro de inteligibilidade que as sociedades, seus grupos e atores aplicam ao mundo, fazendo com que existam sob várias dimensões, com diversificados alcances sociais.

abordado anteriormente, este viés da

11 Cabe ressaltar que os discursos fazem

análise

Foucault

tornou-se

referencial para as abordagens pós63

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

coloniais, pautadas pela crítica à

século

epistemologia

recebido

europeia,

atingindo

especialmente as ciências humanas.

abordagens

têm

atenção

na

“Se o estado é hoje o que é , é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade. (FOUCAULT, 2011:292)

nos

estudos históricos. Porém, não será abordado de forma aprofundada esta influência do autor. O debate sobre o assunto é vasto, e exigiria amplas considerações para ser tratado de minimamente

tem

da governamentalidade.

décadas, abrindo margem para novas

forma

maior

que

para Foucault dentro do fenômeno

também

interpretativas

aquele

novas tecnologias políticas insere-se

atingido a historiografia nas últimas

perspectivas

historiografia. A emergência destas

As discussões suscitadas por estas

XIX

A influência das propostas do

qualificada.

autor nos estudos históricos que

Apontei-o brevemente na medida em que sofreu influência da analítica do autor sobre o poder e é relevante

envolvem

instituições

educativo,

prisional,

de

caráter

hospitalar

e

psiquiátrico, ou do exercício de

para os estudos históricos.12

determinados Considero o terceiro conjunto

amparados

em

profissionais formas

de

saber os

de objetos que designei para análise

institucionalizados,

como

– as tecnologias de poder aplicadas

médicos,

significativas,

em instituições caracterizadas pela

ocorrendo há algumas décadas. As

individualização

do

relações de poder concernentes a

poder (ou biopolítica), emergentes no

estes espaços foram pauta de longa e

detalhada pesquisa do autor, nas

exigiria a análise dos estudos corriqueiramente encampados sob o rótulo de pós-­‐coloniais, ou descoloniais, no caso de alguns autores latino-­‐

quais se evidenciaram seus principais

do

exercício

12 Uma discussão qualificada a este respeito

têm

sido

americanos. Alguns estão supracitados (página

64


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

pressupostos

analíticos

sobre

o

corpos se fazia necessária, como

poder. Nestas pesquisas, Foucault

prisões, hospitais, etc. Sua principal

aponta como as mudanças sociais,

característica arquitetônica concernia

econômicas e políticas que marcam a

na possibilidade de todos os internos

instalação da sociedade burguesa na

serem vigiados por uma torre central,

Europa pautam um maior enfoque

demonstrando

aos indivíduos. As relações de poder,

arquitetura, as novas relações de

difusas em variadas instâncias na

poder

sociedade, são atingidas por esta

sociedades modernas.

mudança, e ocorre uma gradual reconfiguração

das

que

por

meio

perpassavam

da

as

Variadas pesquisas históricas

tecnologias

relacionadas a estas instituições e ao

políticas, visando atingir todos os

saber médico têm se apropriado da

indivíduos. Estas novas formas de

analítica de Foucault sobre o poder,

poder, entretanto, não podem ser

demonstrando-se bastante profícuas.

consideradas como apenas de caráter

Entretanto, exigem amplo acervo

coercitivo, mas sim, administrativo e

documental e análise esmiuçada das

normativo, na medida em que visam

fontes,

obter maior controle e conhecimento

a

fim

de

não

permitir

interpretações simplistas. O próprio

do comportamento das pessoas.

autor

aponta

que

construiu

sua

Como exemplo ideal desta

analítica do poder através de um

nova tecnologia política, Foucault faz

exame minucioso de fontes, em

menção ao Panopticum de Bentham.

longas

Trata-se de um projeto arquitetônico

(FOUCAULT, 2011:167-168), visando

do século XVIII que foi copiado,

uma

mesmo

variadas

históricas dentro da perspectiva das

reformulações, a instituições onde

genealogias, anteriormente referidas.

que

sob

esta nova tecnologia de controle dos 3, nota 2).

65

pesquisas

abordagem

documentais

de

situações


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Outro

ser

determinados conteúdos históricos a

considerado ao se pensar em utilizar

partir desta perspectiva, propiciando

os pressupostos analíticos sobre o

abordagens inovadoras a respeito de

poder de Foucault diz respeito às

três grandes revoluções dos últimos

suas propostas de análise do poder

séculos.

incrustados nos discursos científicos

postulados permite ao historiador

e saberes institucionalizados. Todos

descolar-se

estes âmbitos são correlatos para o

demasiadamente

autor e exigem análise. Utilizar parte

presentes em muitas interpretações

de suas proposições e desconsiderar

históricas.

outras

aspecto

requer

a

atenção,

amplo

fim

de

evitar

atenção

de

aos

seus

perspectivas materialistas,

A aplicabilidade das premissas

embasamento e explicação a respeito, a

A

de

interpretações

Bourdieu

sobre

o

poder

à

pesquisa histórica é notória, sendo

históricas voláteis.

recorrente

Conclusão

algumas

décadas.

Entretanto, bastante exigente quanto

Considero que algumas perspectivas

à quantidade de fontes a serem

importantes para o uso da noção de

pesquisadas, à busca por detalhes e

poder para o estudo histórico foram

peculiaridades nos indícios e ao

abordadas neste artigo, que chamam

conhecimento

atenção

simbólicos

para

um

conjunto

de

dos

pertinentes

sistemas ao

objeto

possíveis usos teóricos e analíticos e

histórico.

cuidados que o historiador deve estar

conhecimento intrincado dos outros

ciente no seu trabalho.

principais postulados teóricos do autor,

A análise das premissas de

profunda

simbólico.

e

inerentemente política das relações sociais

e

uma

revisão

de 66

interdependentes

também

de

sua

teorização sobre o exercício do poder

Arendt sobre o poder remeteu a uma perspectiva

Demanda


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

A apropriação da analítica de

históricos específicos para adequação

Foucault sobre o poder para a

a modelos teóricos teleológicos.

historiografia demonstra vigor há algumas

décadas,

Sucintamente

especialmente

acima, as premissas dos três autores

perceptível quando relacionadas a

sobre a noção de poder são não

espaços focados pelo autor, como as instituições

apenas

hospitalares,

caráter

histórico

à

pesquisa

importantes ferramentas analíticas e

Na medida em que estes estudos um

aplicáveis

histórica, mas também inovadoras e

psiquiátricas, prisionais e educativas.

tiveram

abordadas

teóricas para a interpretação dos

processos

mesmo visando deslindar em uma

históricos.

Ao

mesmo

tempo em que exigem mais atenção

análise das relações de poder – o

sobre as fontes e esforço na pesquisa,

autor também apontou a importância

permitem

da pesquisa histórica pormenorizada,

capacidade

atenta a detalhes e particularidades,

maior de

profundidade explicação

e dos

processos históricos. Sem dúvida,

distanciada de interpretações pré-

enriquecem e qualificam o trabalho

deterministas ou da ênfase a objetos

do historiador.

Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1983. ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 16ª edição . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. __________________. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1982. BOURDIEU, Pierre y WACQUANT, Löic. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução francesa da historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

67


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

DREYFUS, Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica; (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1971. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2011. HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.

68


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Sociologia e história em duas análises da Revolução Francesa* Sociology and History in Two Analyzes of the French Revolution Mario Luis Grangeia 1 Resumo O artigo analisa como a sociologia histórica renovou a abordagem das relações entre a história e a teoria, ou seja, entre eventos singulares e padrões gerais. A partir de um exame crítico de duas leituras transdisciplinares da Revolução Francesa, sustenta-se que essa linhagem sociológica, subexplorada pelos historiadores contemporâneos, contribui para uma articulação fértil de dois enfoques complementares. Após uma síntese do debate sobre os enlaces entre a sociologia e a história, são comparados e discutidos conceitos, teorias e métodos de Skocpol (1985) e Mann (1993). O diagnóstico sobre a circularidade entre o foco generalizante da sociologia e o da história no singular é matizado numa comparação com a análise de Hobsbawm (1977) sobre a revolução que inquietou os primeiros sociólogos e é o marco historiográfico da transição da Idade Moderna à Contemporânea.

Palavras chave: Sociologia histórica, Francesa, Theda Skocpol, Michael Mann.

Transdisciplinaridade,

Revolução

Abstract The article analyzes how historical sociology renewed the approach to the relationship between history and theory, or between singular events and general patterns. From a critical examination of two transdisciplinary readings of the French Revolution, this paper argues that this sociological lineage, underexploited by contemporary historians, contributes to a fertile articulation of two complementary approaches. After a brief discussion on the bonds between sociology and history, I compare and debate the concepts, theories and methods of Skocpol (1985) and Mann (1993). The diagnosis of the circularity between the generalizing focus of sociology and history’s focus on the singular is nuanced by a comparison to Hobsbawm’s analysis (1977) of the revolution that disquieted the first sociologists and is the historiographical milestone of the transition from Modern to Contemporary Age.

* Uma versão anterior deste trabalho foi escrita para o curso de Sociologia histórica, oferecido no PPHIS/UFRJ (2012/2) por Marcos Bretas e Vitor Izecksohn. Agradeço sugestões da professora Elisa P. Reis sobre aquela versão e dos dois pareceristas da revista Enfoques. 1 Doutorando em Sociologia (UFRJ) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED/UFRJ) desde 2008; e-mail: mario.grangeia@gmail.com.

69


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Keywords: Historical sociology, Transdisciplinarity, French Revolution, Theda Skocpol, Michael Mann. 1. Introdução Este

estudo

A terceira seção revisa em como

a

paralelo as leituras da Revolução

renovou

a

Francesa em Skocpol (1985) e Mann

abordagem das relações entre a

(1993), evidenciando traços comuns e

história e a teoria, ou entre eventos

singulares em abordagens do mesmo

singulares e padrões gerais. Para

processo.

tanto, discutem-se duas análises da

análises

Revolução

enfocarem eventos históricos não

sociologia

examina

histórica

Francesa,

fato

que

Essa realça

justaposição a

estratégia

de de

inquietou os primeiros sociólogos e é

visando

o marco historiográfico da transição

generalizações, mas formular teorias

da Idade Moderna à Contemporânea.

a partir de fenômenos singulares

O estudo comparativo dos conceitos,

que, nessas obras, foram submetidos

teorias e métodos de Skocpol (1985) e

a comparações – num caso, com as

Mann (1993) pretende lançar luz

revoluções chinesa e russa; no outro,

sobre possibilidades abertas por essa

com a revolução industrial e a

convergência transdisciplinar.

americana.

A questões

próxima sobre

seção

ou

explicar

A quarta seção articula os debates anteriores, refletindo sobre

harmônica, ora tensa, da história com

como Skocpol e Mann apreendem a

a

preocupações

sociologia e a história. A comparação

intelectuais sobre como ir além dos

ressalta semelhanças cuja origem é a

limites simbólicos dessas disciplinas

afiliação

são mapeadas a partir de obras de

histórica,

sociólogos e historiadores.

oriundas dos temas, perspectivas

As

relação,

ilustrar

ora

sociologia.

a

discute

de

ambos

bem

à

sociologia

como

distinções

teóricas e ênfases metodológicas – 70


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

como o uso da comparação para

2. Sociologia,

elaborar teoria (ambos) ou para, ao

Hobsbawm

suas

Ao definir os conceitos que julgava

contraste com o exame da Revolução em

e

articulações

mesmo tempo, qualificá-la (Mann). O

Francesa

história

fundamentais à sociologia, Weber

(1977)

(1991) opôs as pretensões das análises

matiza ainda mais tal diagnóstico

sociológica e histórica de modo

sobre a circularidade entre o foco

sintético: a sociologia considera que

generalizante da sociologia e o foco

há regularidades na ação social, logo

da história no singular.

cria conceitos de tipos e busca regras

A conclusão retoma questões

gerais dos acontecimentos, enquanto

suscitadas pelos enlaces entre a

a história analisa ações, formações e

sociologia e a história, contribuindo

personalidades

para

culturalmente

se

pensar

a

individuais importantes.

Um

transdisciplinaridade. Ao conciliar

denominador comum nelas, segundo

enfoques aqui identificados como

Weber, é o anseio de prestar um

“centrípeto” e “centrífugo” (de fora

serviço à imputação causal histórica

para dentro e vice-versa), a sociologia

dos

histórica é um exemplo de conjunto

relevantes.

cujo valor supera a soma de suas

fenômenos

culturalmente

Tais diferenciais poderão ser

partes. Em outras palavras, ela se

reconhecidos nas obras focalizadas

destaca pela capacidade de aliar a

na próxima seção.

teoria e os eventos com um equilíbrio que a sociologia e a história, por si

Muitos

autores

frisaram

as

mesmas, seriam insuficientes para

sobreposições entre a ciência social e

atingir.

a história, mas poucos foram tão contundentes quanto Giddens (1984), para quem as distinções entre elas, se houver, 71

são

meras

divisões

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

trabalho, pois não há cismas lógicos

conseguiriam criar uma grande teoria

ou metodológicos.

trans-histórica historiador,

Embora a sociologia histórica

os

1

.

Segundo

sociólogos

esse devem

lidar com o passado apenas quando o

tenha privilegiado macroprocessos,

fato estudado requerer; nesse caso,

como a gênese dos Estados nacionais

deveriam trocar fontes secundárias

ou a industrialização, ela se aplicaria

pelas originais, a exemplo do que

à microhistória. Abrams (1982), para

fazem os historiadores2.

quem a explicação sociológica é sempre histórica, indicou esse uso

Em que pesem críticas como

lembrando que a história, como

as

interação entre estrutura e ação, não

histórica avançou muito com obras

se

apoiadas

apenas

em

sociedades

e

de

Goldthorpe,

basicamente

a

sociologia

em

fontes

civilizações, mas em prisões, fábricas,

secundárias, usadas com fartura não

famílias ou firmas. “O que se advoga

só por sociólogos – como os autores

quando

discutidos mais adiante –, mas entre

falamos

da

sociologia

histórica como o elemento central da

historiadores

sociologia como um todo é muito

(1977:16), segundo o qual “fora de

mais do que um pedido por mais

uma área razoavelmente estreita, eles

‘pano de fundo histórico’” (Idem:8).

[historiadores] precisam contar em

Para Abrams, o principal é tomar o

grande parte com o trabalho de

passado não só como o ventre do

outros historiadores”.

presente, mas como a única matéria-

Na ótica de Goldthorpe (1991), história

e

a

empreendimentos distintos

que

os

sociologia

são

intelectuais

tão

sociólogos

não 72

Hobsbawm

Goldthorpe frisou o caráter histórico da sociologia, não a vislumbrando sem a história. Ele tomou a natureza da evidência como a distinção crucial entre elas: a história privilegia “relíquias” (relics) do passado, enquanto sociólogos “têm o considerável privilégio de poderem gerar evidência no presente” (Idem: 225). 2 Outra sugestão para a sociologia histórica partiu de Kiser e Hechter (1998), que defenderam que a teoria da escolha racional 1

prima para a construção do presente.

a

como


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

contexto

de

presente.

3. Duas leituras sobre a Revolução

uma

(...)

experiência Mas

muito

frequentemente o resto da análise é

Francesa

bastante

a-histórica”

(Idem:8).

A revisão das análises da Revolução

Skocpol e Mann, como se verá, fazem

Francesa por Skocpol (1985) e Mann

justamente

(1993) visa identificar contribuições

sociologia e história de tal modo que

da sociologia histórica às disciplinas

deixam em primeiro plano o fundo

que nela confluem: a sociologia e a

histórico, não com mera pretensão

história. Logo, desloca-se o foco da

ilustrativa ou de explicação adicional,

íntegra dessas obras a um de seus

mas de elaborar teorias conciliando

temas compartilhados – as causas e

generalização e singularidade.

efeitos da mobilização deflagrada em

3.1.

1789 – a fim de realçar traços comuns

obras

são

Abrams

(1982):

(1911) e Rússia (1917) fazendo uma análise histórica comparativa para

a

“elaborar, testar e apurar hipóteses

separação de um capítulo ou uma

explicativas

parte para fixar o pano de fundo

do

livro.

“Tais

que

fornecem

Estados-nações”

de

(Idem:49).

Esse

método foi usado por autores como

o

Tocqueville, Marc Bloch e Barrington

Moore,

fosse usada por ela para vários temas, não restritos às abordagens microssociológicas.

73

causais

integram macroestruturas como os

capítulos

tipicamente dão conta de eventos ‘significativos’

e

acontecimentos ou estruturas que

histórico do que será discutido no corpo

social

revoluções na França (1789), China

maioria dos livros de sociologia por

revolução

Theda Skocpol (1985) pesquisou as

contraexemplos de uma prática da

criticada

primeira

entrelaçam

Em “Estados e revoluções sociais”,

teorias, sintetizados na seção 4. duas

oposto:

segundo Skocpol

e singulares nos conceitos, métodos e

As

A

o

que,

segundo

Skocpol,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

atentaram às causas dos processos,

administrativa e coerciva não atrelada

ao

contrário

dos

historiadores

naturais, que buscaram descrever

a

forças

e

interesses

socioeconômicos).

seus ciclos característicos como se

Rompendo com as visões de

eles tivessem sequências típicas.

então

Uma intenção alcançada por

sobre

revoluções,

Skocpol

usou o conceito de “revolução social”

Skocpol foi superar a defasagem

para

entre a teoria e a história que notava

daquelas crises político-sociais entre

nos

os franceses, chineses e russos. “As

estudos

marxistas

acadêmicas

da

e

teorias

sociologia

da

definir

os

revoluções

desdobramentos

sociais

são

revolução à época. Sem negar a

transformações rápidas e radicais das

influência recebida da concepção

estruturas de classe e de Estado de

marxista de relações de classes e das

uma sociedade; e são acompanhadas

ideias

e em parte levadas a cabo por

dos

político

teóricos

sobre

mobilizações, conceber

os

do

requisitos

Skocpol

três

conflito

inovou

princípios

das

revoltas

ao

das

(Idem:16).

classes

A

inferiores”

peculiaridade

das

teóricos

revoluções sociais, frente às políticas

alternativos aos estudos correntes de

como a inglesa, é que as mudanças

revoluções:

estrutural

centrais nas estruturas política e

(ênfase nos padrões de relações entre

social são simultâneas e se reforçam

grupos e sociedades, em oposição à

mutuamente. As lutas de classe são

visão

fundamentais nesses casos.

perspectiva

voluntarista);

referência

sistemática ao contexto internacional

Graças

e à história mundial (as teorias prevalecentes contextos

privilegiavam

os

intranacionais);

e

uma

de

análise

fim do Antigo Regime e os processos revolucionários na França, China e Rússia

organização 74

método

comparativa, Skocpol concluiu que o

autonomia potencial do Estado (visto como

ao

tiveram

causas

e

efeitos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

comuns, apesar das singularidades.

ela pôde atestar a insuficiência de

Como ela ressaltou, esses Estados,

explicações correntes da Revolução

que

e

Francesa – a ascensão da burguesia e

politicamente ambiciosos antes das

o aparecimento de um Iluminismo

revoluções,

tornar

crítico da autoridade tradicional e

e

arbitrária – e da síntese entre elas. A

com

ênfase no dilema fiscal (finanças

maior potencial de grande potência

agravadas por derrotas em guerras e

na

Essa

tentativas de cobrar mais impostos)

transformação teve uma conjuntura

evidencia a atenção de Skocpol às

semelhante, segundo a socióloga:

pressões militares estrangeiras e às

eram

agrários,

vieram

centralizados,

a

se

burocráticos

incorporadores

arena

fortes

de

massas,

internacional.

condições estruturais. Já ao detalhar

Nas três Revoluções, as crises aceleradas a partir do exterior combinaram-se com as condições e tendências estruturais internas e produziram a seguinte conjuntura: (1) a incapacitação dos aparelhos de Estado dos Antigos Regimes; (2) o alastramento das revoltas das classes mais baixas, mais decisivamente de camponeses; e (3) tentativas por parte dos líderes políticos mobilizadores de massas para consolidar o poder do Estado revolucionário. (SKOCPOL, 1985:54)

A

autora

interdependência

frisou de

a crise política, ela apontou os interesses

as

tensões

múltiplos

setores

envolvidos, como oficiais do exército, aristocratas e – na contramão de outros estudos – camponeses, cujas insurreições foram vistas à parte. Ao lado

da

desorganização

administrativa/militar, as insurreições

a

camponesas constituíram, segundo

estruturas

Skocpol,

socioeconômicas e político-militares, atribuindo

dos

os

fatores

conjunturais

decisivos para as três crises sociais-

naquelas

revolucionárias.

sociedades às relações de classe e àquelas entre cada classe e o Estado.

Sem

capacidade

repressiva

Ao aprofundar o exame do Estado,

organizada, o Estado francês, tal

economia, classe dominante, dilema

como o chinês e o russo, gerou

fiscal e crise política revolucionária,

condições 75

favoráveis

às

revoltas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

generalizadas e irreversíveis contra os

poderia ter se limitado às reformas

donos

constitucionais.

de

terras.

dominante

Com

afundada

a

classe

numa

crise

A passagem do Antigo ao Novo

política sob a pressão internacional em

meio

à

campesinato anseios

modernização,

Regime

o

concretizou

antigos

insurrecionais,

dando

importância

internacionais

permanência

do

campo,

a

e

na

de

situação

uma

predominantemente

do

sociedade

agrária

e

da

adesão à competição internacional. A

Skocpol notou que, se não fosse a no

marcada,

Estado – e continuidades, como a

campesinato indicada por Lefebvre,

revolta

foi

de classe, na economia, nas relações

outras mudanças políticas e sociais. a

França

portanto, por rupturas – nas relações

margem à crise responsável por

Citando

na

tabela

Revolução

1

a

seguir

sintetiza

as

mudanças principais para Skocpol:

Tab. 1. Antigo e Novo Regime na França (Skocpol) Antigo Regime Relações de classes

Novo Regime

Classe dominante bem influente na monarquia. Camponeses vs. senhores, que cobram direitos.

Economia agrária-comercial sem Economia grandes unidades. Indústria não mecanizada. Domínio por grupos de pequenos proprietários.

Domínio da propriedade privada e economia de mercado. Capitalismo facilitado, favorecendo grandes donos de terra.

Cenário Pressões moderadas (sucessivas internacio derrotas em guerras devido à competição com a Inglaterra). nal

França engaja-se na disputa militar continental como potência potentemente hegemônica.

Situação Monarquia absolutista do Estado semiburocrática.

Estado profissional-burocrático não controlado por partidos; promove estabilidade interna e 76

Direitos e privilégios senhoriais abolidos sem redistribuição da propriedade da terra.


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

expansão militar. Fonte: adaptado de Skocpol (1985:169-173).

estudiosos da Revolução Francesa –

Ao expor as consequências das

mostra-se muito fértil. Tal mirada

revoluções sociais, Skocpol citou

original serve ao debate da tese

que, ao contrário da Rússia e da

corrente

China, o Estado francês não foi

homens que dominaram a França

Revolução Francesa culminou na um

Estado

depois

de

nacionais

e

com

com

a

capitalistas,

mercados

o

seu

desabrochamento” Segundo

a

militar,

o

pelo que

Revolução

naqueles

o

ainda não mecanizada – inibiu o avanço dos investimentos industriais. A

três

economia

predominantemente

continuou agrária

e

os

camponeses continuaram a trabalhar destaque

conferido

a terra praticamente sem qualquer

por

mudança.

Skocpol à análise da estrutura e do funcionamento geralmente

do

Estado

negligenciados

pelos 77

retardou

terra – em detrimento da indústria

as

países. O

essencialmente

comércio, em profissões liberais e na

recrutamento

porém, a presença popular nos temas aumentou

mas

ou

A concentração da burguesia no

atividades políticas. No longo prazo,

estatais

industriais

desenvolvimento econômico francês.

mobilização

neutralizou

eram

acrescentou que, em certa medida, a

pleno

popular foi, após 1793, suprimida ou arregimentada

não

de bens de raiz” (Idem:191). Ela

(Idem:176).

Skocpol,

Revolução

burocratas, soldados e possuidores

propriedade

privada capitalista, tendo mesmo assegurado

da

empresários

burocratas profissionais que coexistia simbioticamente

“revolução

constatações como a de que “os

foi rotulada como “burguesa”. “A

de

uma

burguesa”, à qual a autora contrapôs

dirigido por um partido e a revolução

instauração

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

A percepção da Revolução

mais liberal não vingou devido à

Francesa como “burguesa” também

capacidade política limitada da classe

foi posta em xeque em termos

dominante (divisão interna sobre a

políticos, pois não foi a burguesia

escolha

capitalista nem seus representantes

representativas e entre as autoridades

que lideraram a luta. Atenta à

locais)

inserção francesa em guerras na

camponesas

Europa de 1792 a 1814, Skocpol

terra,

notou que elas foram mais decisivas

política na classe dominante). Nesse

do que interesses de classe para a

contexto, deputados mais militantes

criação

as

votaram o fim de direitos senhoriais,

exigências para gerir conflitos e suas

das elites do Terceiro Estado e do

repercussões políticas internas. Um

alto clero em 4 de agosto. O rei, ao

exemplo

não cooperar, reforçou as tendências

do

Estado,

foi

legislações,

a

dadas

substituição

tributos

e

de

alfândegas

Em

vez

de

massas

efeito

das

(atacando

ampliaram

revoltas

donos

a

de

polarização

republicanas

e

liberais não construíram um governo

“burguesa”,

parlamentar apto a unir a classe dominante contra ameaças políticas

tomar a revolução como “burocrática, de

ao

instituições

democráticas – e as elites mais

Skocpol considerou mais adequado

arregimentadora

e

radicais

regionais por variantes nacionais.

das

burocráticas e populares.

e

reforçadora do Estado” (Idem:196).

Em 1792, a guerra contra a

Afinal, suas consequências políticas

Áustria fechou a fase liberal e

não foram as preferidas pelos grupos

desencadeou

a

economicamente

governamental

e

dominantes,

que

centralização a

mobilização

almejavam algo próximo ao sistema

popular que culminaram no Terror

parlamentar inglês 1 .

Montanhês (1793-94) e na ditadura

Esse modelo

1 Tal

mas não do modo que desejam, bem como a ênfase de Weber nas consequências não

percepção ilustra a difundida ideia de Marx de que os homens fazem sua história,

78


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

napoleônica. O evento foi lido por tantos

como

um

acidente

Entre as mudanças no Estado

que

e

na

sociedade

pós-revolução,

desviou a revolução, mas Skocpol o

Skocpol frisou a criação do Exército

julgou

nacional com corpo profissional de

“um

elemento

fulcral

e

constitutivo justamente como seria

oficiais,

de esperar do conhecimento da

administrativo,

natureza

funcionalismo e a unificação do

e

Regime”

dilemas

do

(Idem:202).

Antigo

Logo,

a

o

aumento

do

aparato

com

um

erário, orçamento e controle de

revolução teria sido causa – e não só

receitas

antecedente

envolvimento estatal na sociedade,

belicista

que

de

um

visou

sistema

dominar

a

despesas,

e

o

maior

com funções novas como a educação

Europa.

secundária e universitária. Embora

A

análise

respondeu

a

de

presente

Skocpol

controvérsias

para

o

fim

da

quanto

ditadura

e

na

os

Estados-Partidos

comunistas da China e da Rússia.

revolução até 1794. Segundo ela, a de

sociedade

tão tentacular e dinâmico sobre elas

montanhesa e a radicalização da

combinação

na

economia, o Estado francês não foi

entre

historiadores, como em relação às razões

e

Com

contradições

autônomo

um e

Estado

uma

mais

economia

de

econômicas e políticas não é uma

mercado, Skocpol notou que os

explicação

donos

suficiente

como

de

riquezas aos

se

sustentam alguns historiadores – a

dedicar

não ser que se considere a inserção

econômicos, como alternativa aos

delas no contexto sociopolítico dos

cargos públicos e à apropriação de

fins do século XVIII.

mais-valias. Outro feito da revolução,

além de condições favoráveis ao

intencionais inerentes a processos históricos.

mais

poderiam

interesses

desenvolvimento capitalista, foi o modelo sociopolítico que distinguiu 79


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

a França de outras nações capitalistas

complexas

industriais:

os

saíram de seu controle” (MANN,

“resquícios medievais” do regime

1993:4).2 O avanço do capitalismo e

senhorial

privilégios

da revolução militar gerou alterações

particularistas, em prol do Estado,

ideológicas e políticas com lógicas

campesinato e donos de riquezas.

parcialmente autônomas: o maior

eliminaram-se

e

os

Estado moderno.

jogo

Mann notou que as classes e

Michael Mann analisou a Revolução

estados-nação não revolucionaram a

Francesa no segundo volume de “As

estratificação

fontes do poder social” (1993), no

a

propôs.

capitalismo e o industrialismo se

século XVIII, a matriz militar já

moldaram a formas mais antigas; e as

cedera seu coprotagonismo à política

relações de poder vão além da

quando os Bourbon decaíram. A

mudanças

nas

quatro

economia (modos de produção e

as

classes), incluindo relações de poder

envolveu fontes

político,

de

rivais

adiante

em

formas 80

militar,

geopolítico

e

ideológico. A teoria da mudança

poder, “levando classes, nações e seus

e

ideias: a tradição importa, isto é, o

militar prevaleceram no Ocidente do

industrial,

sociólogos

Lipset e Mayer, que frisaram duas

e política. Se os poderes econômico e

e

os

citou Barrington Moore, Rokkan,

poder: ideológica, econômica, militar

americana

Entre

historiadores com essa visão, ele

das sociedades tem quatro fontes de

como

poder

período do que a tradição teórica

retomando a tese de que a estrutura

Francesa,

o

gênero – foi menos transformado no

revolução

industrial e a I Guerra Mundial,

Revolução

social:

distributivo – exceto pela questão de

qual discutiu a ascensão de classes e entre

frequentemente

nível de instrução e o advento do

3.2 Mann: quatro fontes de poder em

estados-nação,

que


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

social de Mann se filia àqueles

de classe”, de Cobban e Goldstone,

autores.

que viu a liderança não burguesa

No

lugar

de

revolucionária como uma fratura de

teorias

um antigo regime em declínio; e a

dicotômicas com um fator-chave de análise

(a

exemplo),

luta

de

Mann

classes,

por

propunha

seu

“escola ideológica”, de Furet, Hunt e Sewell, que considerou a revolução como dirigida por ideias, formas

modelo IEMP – sigla para os poderes ideológico,

econômico,

militar

culturais e classes mais mobilizadas

e

simbolicamente

político –, que se mostrou muito

do

que

materialmente.

profícuo aplicado às revoluções do século XVIII. O poder ideológico,

Ao retratar tais vertentes, Mann

por exemplo, foi crucial na ascensão

expôs concordâncias – como à ênfase

das classes burguesas e nações, ao

de Furet e Hunt na orientação da

influir nas paixões, criando, nos

revolução mais por princípios do que

termos

por pragmatismo – e discordâncias –

de

Benedict

Anderson,

“comunidades imaginadas”.

como ao modelo “uma-classe” de Skocpol

A Revolução Francesa foi uma

questão

para

indicar

pequena

três

fiscal-militar”,

se

de

teria

burguesia

ao

frisar

perguntar

se

os

princípios

partiram da experiência dos atores de

Skocpol e Behrens, que ligou a

poder

revolução à disputa com a Inglaterra

ou

de

uma

criação

de

ideólogos alheia à vivência prática.

– raiz da crise fiscal – e à luta de

Tal questão o levou a focalizar as

classes gerada por ela; “revisionismo

infraestruturas

permitindo

2 Todos os trechos citados de Mann (1993) foram traduzidos livremente pelo autor deste artigo.

acessar

ideológicas, o

significado

causal do poder ideológico. Os erros 81

que

corretamente o campesinato. Daí ele

correntes que relativizaram tal noção: “revisionismo

Goldstone,

ignorado amplamente a burguesia e a

revolução de classe? Mann partiu dessa

e


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

dos agentes seriam essenciais às

ideológico

revoluções,

desenvolvem

letramento, que cresceu rápido e sob

perdem

menor controle de autoridade, até o

quando

que

os

se

regimes

os

poderes de se concentrarem sobre

Iluminismo,

seus interesses.

condenação

o

entre

houve

oficiais

e

outros

níveis,

e entre ricos e plebeus. Igualmente conjuntura

atento

internacional,

à Mann

frisou a relevância da crise fiscal gerada pela Guerra dos Sete Anos (1757-63) contra a Inglaterra. Os

problema

ministros teriam admitido que os camponeses

eram

perigosamente

levados à quase subsistência e que a

surtos

oposição a ações reformistas partia

revolucionários. Ele assinalou, em

de proprietários privilegiados que

consonância com Skocpol, que o

controlavam parlamentos e tribunais.

militarismo geopolítico francês gerou

Em meio a interesses das elites e

dificuldades fiscais, mas discordou

partidos, o rei hesitava ainda como

dela por tomar a França como um

um

Estado em desenvolvimento tardio

protetor

dos

direitos

de

propriedade. Diante disso, o autor

ou ímpar. A contribuição do poder 82

feudalismo,

classe entre “nascimento” e “mérito”

todos os outros países europeus, e não

a

motivando um conflito quase de

econômico era mais grave em quase

neles

do

como

cresceu o profissionalismo e a lacuna

origem da revolução foi rejeitada por quem

ideias

o

razão. Quanto ao poder militar,

A precedência da economia na

para

com

desde

superstição e metafísica e a fé na

A Revolução Francesa foi um evento histórico-mundial singular. Foi a primeira, e virtualmente a única, revolução burguesa bem-sucedida. Seus atores de poder estavam “inconscientes”, ao contrário de atores de poder posteriores em qualquer país. Eles não sabiam no começo que estavam numa revolução. Portanto, fizeram o que imprevisivelmente poderia se mostrar como sinistros erros de cálculo – do rei e das ordens privilegiadas especialmente. Seus erros de cálculo contribuíram para a exaustão da política prática e para o recurso a princípios ideológicos da revolução. (MANN, 1993:170).

Mann,

incluiu


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

viu a postura real como uma causa

Para

necessária da revolução.

contextualizando advogados

a

notou grande proporção inicial de

princípios, trajetória

iluministas

funcionários da coroa e advogados

de

independentes – com isso, afastou a

como

visão de um pioneirismo burguês.

pensavam como revolucionários, mas idealistas

da

das assembleias entre 1789 e 1794 e

Robespierre, que no começo não

como

hipótese

pesquisou a ocupação dos membros

Mann diagnosticou o aumento da por

a

liderança dos burgueses, o autor

Em paralelo à crise fiscal,

resistência

testar

desejando

A

uma

elevação

morais,

dos

ausente

princípios

em

tantas

“república da virtude”. Um canal

revoluções,

remontava

a

acessível para as queixas eram os

Iluminismo

que

religião,

“cahiers de doléance” (cadernos de

ciência,

reclamações),

por

bolcheviques, os princípios morais

representantes locais de cada estado,

vinham da teoria “científica” da luta

que não pareciam maus ao regime.

de

Os cahiers da nobreza e do terceiro

acreditavam

estado atacavam a arbitrariedade real

virtude”, mas alguns só porque fosse

e partilhavam, em grande parte,

útil crer nela. “Eles preferiam mérito

pleitos pela convocação dos Estados

e

Gerais

uma

universalismo sobre particularismo,

constituição escrita, liberdade de

laissez-faire sobre mercantilismo e

imprensa

monopólio[,]

e

tributária. democracia

feitos

às

e

vezes

igualdade

“Não ou

havia

por

da

carga

sinal

revolução,

e

de

unia

filosofia

classes).

e

Os

(nos

“república

sobre

(...)

artes

revolucionários

na

trabalho

um

o

da

privilégio,

acreditavam

na

propriedade privada absoluta a ser

sua

defendida

contra

privilegiados

e

linguagem era mais de advogados do

pares sem propriedade” (Idem:194).

antigo regime do que de filósofos”

Uma

(Idem:184).

revolucionários na França foi seu 83

singularidade

dos

líderes


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

temor ao Judiciário maior do que às

núcleo ativista ganhou consciência

ruas.

de classe e citou Barrington Moore, para quem “o campesinato foi o

Mann fez menções sucintas a

árbitro da Revolução, mas não sua

eventos como a convocação dos Estados

Gerais,

com

a

principal força propulsora” (MOORE

disputa

apud

quanto à reunião em separado ou

ressaltou

conjunta dos estados, e o 4 de agosto, com a votação quase unânime pelo fim de direitos feudais e privilégios.

da ação, uma propriedade emergente

rural.

Nessa

fase,

a

a

elite

ideológica,

a

A Revolução Francesa, que se

da política revolucionária.

tornara uma luta de classes pautada no fim do privilégio e em direitos de

julgou

propriedade

essencial a interação entre cinco

Judiciário;

absolutos,

logo

se

converteu num conflito nacional. No

atores de poder: o antigo regime,

início, a elite ideológica, oriunda

a

amplamente

burguesia substancial; a pequena

substantiva,

burguesia, com seu núcleo sans-

da

burguesia

compartilhava

a

administração e o exército com um

culotte; o campesinato; e a elite

rei desacreditado. Para pressioná-lo,

ideológica, líder inicial da revolução.

precisou apelar à violência popular,

Em relação aos camponeses, por

apoiada por instituições pequeno-

exemplo, ele comentou que seu

burguesas que uniram a imprensa 84

urbano

e

movimentos

da “nação”.

como consequência não intencional

no

os

princípio legitimador do “povo” ou

O princípio tornou-se, ainda que

núcleo

entre

“conexão

pequena burguesia – com o novo

emocionais entre os atores de poder.

com

da

Mann

burguesia substancial e, mais atrás, a

de princípios poderiam criar laços

Mann

motor

capitalista”

urbanos

quase acidentalmente que os slogans

1790,

o

1993:199).

Revolução concentrou-se nos atores

Segundo ele, os líderes descobriram

Após

MANN,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

inflamável

com

unidades

medida que a guerra adicionou a

semidisciplinadas da guarda nacional

intervenção econômica do governo”

e a plebe. Em 10 de agosto de 1792,

(MANN, 1993:206).

uma insurreição popular levou à

A guerra, que sobreviveu ao

queda do rei e à transformação numa

Terror

república. A mobilização e seus efeitos

foram

citados

com

marcada

por

da

a

então a um estado-nação mais forte e centralizado e que ganhou um tom

difícil de encontrar num historiador. etapa

alterou

legitimação revolucionária, vinculada

uma

míngua de informações que seria

Nessa

termidoriano,

autoritário sob Napoleão. Sua gestão

revolução,

centralizada reforçou o liberalismo

disputas

contra

burguês mais diretamente do que na

austríacos,

mesmo

Grã-Bretanha. Se no modelo anglo-

muitos moderados viram a guerra

saxão o Estado era centro e território

como

princípio

de uma sociedade civil e nação

iluminista. Ao contrário do que

capitalistas, o modelo continental de

esperava o líder girondino Brissot, a

Estado

guerra moveu a liderança esquerdista

explicitamente

e aproximou do Estado a guarda

ligeiramente mais despótico, fixando

nacional pequeno burguesa e os

e

comitês. Com esse novo ator coletivo,

capitalistas. Para Mann, a França

emergiu uma luta entre esquerda e

deixara de ser um agregado de

direita, girondistas e montanheses, e

corporações

facções de jacobinos. Segundo Mann,

autoritárias, reunido pela monarquia

era

mas

e igreja, e se tornara uma sociedade

entrelaçada e focada em outra grande

civil capitalista mais dependente de

questão:

um estado-nação do que a Grã-

prussianos

e

ativadora

uma

luta

quão

do

de

classes,

centralizado

ou

regionalizado seria o Estado. “A

85

reforçando

Bretanha.

França foi ainda mais centralizada à

era

mais

centralizado,

nacionalista

normas

particularistas

e

mais

e


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Enfim, Mann caracterizou a

apreenderam

Revolução Francesa como o principal

tabela

fosse – e a única revolução burguesa

desenvolvimento

deveu

ao

conjunto

das

ênfase no método comparado. A alusão

partia

de

uma

história

teoria

comparação

em

ilustrando

a

teoria;

teoria; e visando a elaboração teórica,

para

em

Skocpol

(1985).

comparação

histórica

em

A

Mann

(1993) teria servido aos dois últimos

Skocpol e Mann

desses propósitos.3

Na vasta literatura sobre a Revolução

Tilly (1984) propõe outra tipologia de comparações, de grandes estruturas e longos processos: individualizantes; universalizantes; buscando variações; e abrangentes. Ele classifica a comparação histórica de Skocpol (1985) como universalizante (indica propriedades comuns entre todas as instâncias de um fenômeno). O autor deste artigo classificaria Mann (1993) assim, dada a proposição do modelo IEMP. 3

Francesa, a justaposição das análises de Skocpol e Mann evidencia certas interseções e seus traços singulares. À luz das visões sobre a revolução, esta seção discute como tais autores

Tab. 2. Traços comuns e singulares em Skocpol e Mann 86

estudos

restringindo o alcance explicativo da

como história

da

comparativa

sociológicos:

fatos entre 1760 e 1914.

e

foco

Sommers (1980) para os três usos da

resultante de uma sólida análise de

4. Sociologia

ao

apropria-se da tipologia de Skocpol e

classes sociais e da nação. Essa resposta

de

duração; o interesse pela política; e a

possível na França, Mann concluiu se

concepções

procura pela causalidade de longa

uma revolução burguesa só fora

isso

resume

histórica segundo Reis (1998): a

saída,

fracassaram. Ao se perguntar como

que

2

dos traços distintivos da sociologia

outras foram apoiadas pelos exércitos sua

a

Skocpol (1985) e Mann (1993) a partir

com sucesso por mérito próprio –

com

e

Para introduzir esse debate, a

marxista – embora inicialmente não

e,

sociologia

história.

exemplo de luta de classes no sentido

franceses

a


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Skocpol, 1985

Mann, 1993

Análise de fenômenos macro-históricos Busca da causalidade de longa duração

Grandes revoluções sociais

Origens do poder (1760-1914)

Maior interesse pela dimensão política da vida social Interesse pela política

Perspectiva estrutural e ênfase na escala internacional e autonomia estatal

Poder político soma-se ao econômico, militar e ideológico (modelo IEMP)

Comparação a serviço da análise e elaboração teórica Ênfase no método comparado

Para elaborar teoria sobre as causas das revoluções francesa, chinesa e russa

a generalização, a explicação teórica,

As semelhanças entre Skocpol

para melhor iluminar o histórico, o

e Mann, como mostra a tabela,

singular” (Idem:21). Os estudos da

referem-se mais à opção comum de

Revolução Francesa ilustram bem tal

privilegiar a história, enquanto as

ideia.

distinções vinculam-se aos objetos da pesquisa,

métodos

orientações

A circularidade entre a teoria

teóricas, como a influência de teorias

generalizante e os eventos singulares

marxistas e do conflito (Skocpol) e

que

das

resenhadas

próprias

e

Serve à criação e qualificação de teoria do 1º volume

concepções

(Mann).

se

verifica

nas

distingue-as

análises de

uma

Ambos ilustram uma percepção de

leitura da Revolução Francesa como

Reis

a de Hobsbawm (1977). Sem a

(1998)

sobre

a

vertente

sociológica deles: “No marco da

intenção

sociologia histórica, a relação entre o

historiador inglês dedicou o primeiro

particular e o genérico tem para o

volume de sua trilogia sobre o “longo

analista uma dupla função: não se

século XIX” ao exame do que então

trata

chamou

apenas

de

estudar

casos

singulares para generalizar; busca-se

propor

“dupla

teoria,

revolução”:

o

a

francesa de 1789 e a industrial 87

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

inglesa. A revolução que eclodiu até

se depreenda dessa imagem que

1848 foi, segundo ele, “a maior

Hobsbawm

transformação da história humana

articulação da Revolução Francesa a

desde os tempos remotos quando o

eventos em outros países, mas só que

homem inventou a agricultura e a

seu foco foi o que havia de singular

metalurgia, a escrita, a cidade e o

na segunda “revolução gêmea”, como

Estado” (Idem:17). Seu propósito foi

em

reconstituir

a

trajetória

“revoluções

gêmeas”

sem

daquelas extrair

sua evolução e seus resultados – tais elementos, por sinal, nomeiam as partes do livro. A comparação entre as análises de Mann

e

Hobsbawm

esclarece mais sobre a articulação entre teoria e história feita pelos dois sociólogos.

Enquanto

Hobsbawm

Outro

narrou os eventos com um olhar

trecho

desse

historiador, de um trabalho sobre

predominantemente centrípeto (de

revolução, foi citado por Skocpol

fora para dentro), fornecendo uma

(1985)

descrição densa da revolução e seus

como

alerta

relevante

da

sobrevalorização de indivíduos: “a

agentes, Skocpol e Mann conciliaram

evidente importância que os atores

tal abordagem com uma perspectiva

possam

centrífuga (de dentro para fora),

ter

no

drama

(...)

não

significa que eles sejam também

propiciando uma teorização sobre os

dramaturgo, produtor e cenógrafo.

eventos à luz da análise comparativa

(...) as teorias que dão demasiada

com outros contextos nacionais. Não 88

a

Ao contrário das revoluções do fim do século XVIII, as do período pósnapoleônico foram intencionais ou mesmo planejadas. Pois o mais formidável legado da própria Revolução Francesa foi o conjunto de modelos e padrões de sublevação política que ela estabeleceu para uso geral dos rebeldes de todas as partes do mundo. (...) os modelos políticos criados pela Revolução de 1789 serviram para dar ao descontentamento um objetivo específico, para transformar a intranquilidade em revolução, e acima de tudo para unir toda a Europa em um único movimento – ou, talvez fosse melhor dizer, corrente – de subversão. (HOBSBAWM, 1977:130).

generalizações, mas apenas retratar

Skocpol,

negligenciou


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

ênfase aos elementos subjetivos ou

do sentido inverso, geralmente mais

voluntaristas na revolução devem ser

estudado. Considerou, de modo um

tomadas

tanto

com

precaução”

apud

(HOBSBAWM

controverso,

porém,

que

SKOCPOL,

Skocpol não atingiu o desejo de

1985:30-31). O autor ilustra essa

corrigir a “centralidade da sociedade”

precaução em “A era das revoluções”,

das teorias pluralistas e marxistas

ignorado por Skopol e referido sem

com a perspectiva de “centralidade

maior relevo por Mann (1993) em

do Estado”. Outras discordâncias, já

dois trechos. O melhor exemplo da

referidas neste texto, foram geradas

cautela dos dois sociólogos quanto

pelo modelo “uma-classe” da autora

aos elementos voluntaristas são suas

– para Mann, ela frisou corretamente

menções pontuais a Napoleão. A

o campesinato, mas ignorou muito a

exposição sucinta de sua trajetória

burguesia, a pequena burguesia e as

por Skocpol visou apenas ilustrar as

disputas intraelites e partidárias – e

mudanças no Exército – logo, no

pela caracterização da França de 1789

Estado – francês. Mann, por sua vez,

como

responsabilizou-o

desenvolvimento tardio ou ímpar.

“institucionalizar enquanto

por o

castrou

Estado-nação a

um

Estado

em

Divergências à parte, essas

cidadania

análises

política” (Idem:238).

da

evidenciam

Skocpol e Mann se apoiaram

Revolução

Francesa

possibilidades

aos

estudos da história proporcionadas

fontes

pela sua articulação com a sociologia,

de

como saudaram Giddens (1984) e

Hobsbawm. Aliás, Mann citou ideias

Abrams (1982) e contestaram autores

expressas mais de uma década antes

como Goldthorpe (1991). Em meio às

por Skocpol. Ele julgou acertada sua

opções teóricas e metodológicas na

opção

sociologia

decisivamente secundárias,

de

sobre a

analisar

exemplo

o

efeito

da

geopolítica na luta de classes, em vez

há,

naturalmente, as que para alguns 89

histórica,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

parecerão mais promissoras, como se

como estudos valiosos por abrirem

vê no balanço de Skocpol sobre esse

veredas férteis a essa disciplina.

campo disciplinar: Na avaliação final, sociólogos que orientam suas problemáticas historicamente, como Marc Bloch e Barrington Moore, podem nos dizer mais sobre estruturas sociais e mudança social do que sociólogos históricos que retrabalham, ou que argumentam com, paradigmas teóricos excessivamente genéricos. Esta é minha percepção de uma das lições mais importantes que podem ser aprendidas pela comparação dos feitos dos pesquisadores. (SKOCPOL, 2004:26).

5. Conclusão Ao

uma

sua análise. Em vez de apoio, eles fizeram da história a alavanca para suas teorias sobre as revoluções sociais e as origens do poder. A

disciplina

diferença entre um uso e o outro é significativa e este trabalho buscou

propor teoria geral e tem uma gama

esclarecê-la de modo ora explícito –

de teorias especiais, mas também direções

especializadas

dos

de apoio para a contextualização de

diversificada que se esforça para

alcança

maioria

tomaram a história como mero ponto

da sociologia histórica, Subrt (2012) a como

da

sociólogos, Skocpol e Mann não

Num recente panorama crítico

identificou

contrário

como no contraste com Hobsbawm

e

(1977) ou na revisão de Mann sobre

elabora pesquisas empíricas. “Isso

as três linhagens de estudos que

sugere que a sociologia e história não

relativizaram a visão da Revolução

se separaram completamente e, pelo

Francesa como luta de classes –, ora

contrário, que o volume do diálogo

implícito,

recém-iniciado entre os dois ramos

como

ao

justapor

as

narrativas históricas e as respectivas

se desenvolverá e intensificará ainda

teorias sobre o Estado. Ao oscilar

mais” (SUBRT, 2012:414, trad. livre).

entre a narrativa e a teoria, os autores

Após mais de duas décadas, as obras

teriam fluído em movimentos que se

de Skocpol e Mann podem ser lidas

propôs chamar de “centrípetos” e “centrífugos” – de fora para dentro, e 90


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

vice-versa –, com um alcance para a

à alegada importância da ideologia

compreensão do evento que apenas

para os desdobramentos após 1789.

um

desses

enfoques

seria

Com análises que interpelaram

insuficiente de alcançar.

duradouras

Os dois estudos de sociologia

controvérsias

historiadores,

Skocpol

e

entre Mann

histórica comentados contestaram,

exemplificaram múltiplos méritos de

com

fontes

se aliar a sociologia com a história,

explicações

tornando concreta a circularidade

correntes para a ruína dos Bourbons,

entre as teorias e os eventos referida

como

da

por alguns autores. A julgar pela

burguesia e os efeitos colaterais do

contribuição da sociologia histórica

Iluminismo, avesso às práticas da

para

autoridade central. Daí o oportuno

convergem, são muito promissoras as

questionamento a quem toma, sem

tentativas de se pôr em prática a

maiores ponderações, a Revolução

propalada transdisciplinaridade, no

Francesa

e

ensino e na pesquisa. Assim como

“capitalista”, o que costuma refletir

este trabalho demonstrou em relação

desatenções como ao papel decisivo

à confluência entre a generalização e

dos camponeses. Skocpol especificou

a

as

base

em

secundárias,

a

muitas

algumas

simples

como

transições

ascensão

“burguesa”

disciplinas

singularidade,

as

que

nela

perspectivas

tornam

esses

abertas pelo encontro entre ciências

ela

Mann

humanas são mais amplas do que se

articularam as mudanças nas classes

poderia pensar inicialmente. Basta

com aquelas do Estado. Em outro

examinar o quanto a Revolução

exemplo de bom aproveitamento da

Francesa

pesquisa

sociologia,

compreendida por meio daquelas

ainda que menos abrangente, Mann

duas abordagens para se certificar da

partiu de dados sobre o perfil dos

pertinência de se transpor os limites

líderes da Revolução para dar corpo

consolidados por cada disciplina.

rótulos

válidos

que

as

e

histórica

na

e

91

pode

ser

mais

bem


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Referências ABRAMS, Philip. Historical Sociology. Ithaca: Cornell University Press, 1982. GIDDENS, Anthony. The Constitution of Society: Outline of the Theory of Structuration. Cambridge: Polity Press, 1984. GOLDTHORPE, John H. The Uses of History in Sociology: Reflections on Some Recent Tendencies. The British Journal of Sociology. v. 42, 1991. p. 211-230. HOBSBAWN, Eric. A era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. KISER, Edgar; HECHTER, Michael. The Debate on Historical Sociology: Rational Choice Theory and Its Critics. American Journal of Sociology, v. 104, n. 3, 1998. p. 785-814. MANN, Michael. The sources of social power, vol. I: the rise of classes and nationstates. 1760-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. REIS, Elisa Pereira. Generalização e singularidade nas ciências humanas. Processos e escolhas: estudos de sociologia política. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. p. 13-25. SKOCPOL, Theda. Estados e revoluções sociais: análise comparativa da França, Rússia e China. Lisboa: Editorial Presença, 1985. _____. A imaginação histórica da sociologia. Estudos de sociologia. Araraquara, v. 16, 2004. p. 7-29. _____; SOMERS, Margareth. The Uses of Comparative Macro-History in Macrosocial Inquiry. Comparative Studies in Society and History, 22, 2, 1980. p. 174197. SUBRT, Jiri. History and Sociology: What is Historical Sociology? In ERASGA, Dennis (ed.) Sociological Landscape: Theories, Realities and Trends. Rijeka: InTech, 2012. p. 403-416. TILLY, Charles. Big structures, large processes, huge comparisons. New York: Russell Sage Foundation, 1984. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB, 1991.

92


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Entre antropologia e história: fragmentos do debate racial na França do pós-guerra Between Anthropology and History: fragments of the racial debate in postwar France Júlia Vilaça Goyatá 1 Resumo O esforço deste artigo é o de capturar algumas das relações entre antropologia e história na passagem do século XIX para o XX e fundamentalmente na metade deste. Argumenta-se que por volta dos anos 1950 um debate específico iluminou de modo surpreendente a noção de História, que havia sido deixada de lado pela teoria antropológica no momento de sua consolidação como ciência da alteridade e da diversidade cultural em oposição ao evolucionismo. Através dos trabalhos paralelos de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e Michel Leiris (1901-1990), ao mesmo tempo similares em propósito e distintos em forma e conteúdo, vê-se como através de sua articulação negativa com a noção de raça, a História passa a ganhar novos sentidos. Os autores exploram ainda as relações entre tempo, cultura e política.

Palavras chave: Antropologia, História, Raça, Leiris, Lévi-Strauss.

Abstract This paper's effort is to grasp some of the relationships between anthropology and history in the period spanning from the end of the 19th century until the mid-20th century. We put forward the idea that during the 1950s a specific debate shed a surprising light over the notion of History, which had been cast aside by anthropological theory in the moment of its consolidation as a science of alterity and cultural diversity, in opposition to evolutionism. Through the works of Claude LéviStrauss (1908-2009) and Michel Leiris (1901-1990) - similar in their goals but distinct in their form and content - we see that through their negative articulation of the notion of race, History gained new meanings. These authors also explore the relationship between time, culture and politics.

Keywords: Anthropology, 1

History,

Leiris,

Lévi-Strauss.

Doutoranda em Antropologia Social – Universidade de São Paulo

e história a partir do debate racial

Introdução

presente na teoria antropológica, de

O presente texto pretende lançar luz

modo geral, e na francesa, em

sobre as relações entre antropologia 93

Race,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

especial na metade do século XX,

esses trabalhos sejam significativos

mais precisamente no pós-Segunda

do

Guerra Mundial. Supõe-se que há

mencionamos:há

nesse momento uma espécie de

renovado

inflexão por parte da antropologia,

história, já que, para desconstruir o

que, se antes se construíra em

racismo, se tornava imprescindível

oposição à disciplina histórica, passa

conceber múltiplas noções de tempo,

agora não só a reivindicá-la enquanto

fazendo, ao mesmo tempo, uma

disciplina auxiliar, como também a

crítica

usar

reivindicação

frequentemente

“história”

como

o

um

termo

consideração

Lévi-Strauss

afastamento

(1908-2009) e “Race et civilisation” de

com

modernidade

e

unívoca

a

sua de

primeiro a da

leva

em

tentativa

de

disciplina

sobre os problemas raciais e a realização de uma campanha educativa sobre esse assunto” (MAUREL, 2007: 116). Além disso, nesse mesmo ano, Leiris e Lévi-Strauss participariam das reuniões que preparariam a “Déclaration sur la race” de 14 de dezembro de 1949, também parte do mesmo programa (idem). 2 Vale ressaltar que Lévi-Strauss e Leiris, apesar de contemporâneos, são antropólogos raramente postos lado a lado. Uma hipótese para isso refere-se às distintas trajetórias profissionais de ambos: Lévi-Strauss inserido no meio acadêmico e Leiris voltado para o trabalho em instituições, tanto museológicas quanto voltadas para políticas públicas. Para uma exceção à regra, ver: PEIXOTO, 2006.

UNESCO

(Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura) em 1952, com o objetivo de embasar uma postura antirracista através de estudos científicos1. Acredita-se que 1

A referida coleção seria parte do amplo programa da UNESCO de combate ao racismo intitulado “A questão das raças” (1949). Fazia parte da agenda “uma resolução que previa a coleta de material científico

94

discussão

La question raciale devant lãs cience pela

interesse

que se dá basicamente na primeira

publicados na coleção de brochuras

editadas

um

que

antropológica em relação à história,

Michel Leiris (1901-1990), ambos

moderne

da

percurso:

dois textos: o célebre “Race ET Claude

pela

virada

O trabalho segue, pois, o seguinte

tomaremos como caso paradigmático

de

de

historicidade2.

conceito

operatório. Para fazermos tal reflexão

histoire”

ponto


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

metade do século XX e em diversas tradições (inglesa, francesa e norte-

Quando a história não faz parte do

americana), para depois refletir sobre sua

posterior

que somos

aproximação.

Tomaremos o trabalho de A. R.

A

Radcliffe-Brown

(1881-1955)

como

constitui de forma inaugural na

representativo

desse

primeiro

segunda metade do século XIX,

teoria

antropológica,

momento. No segundo momento,

tornou-se

pretende-se

“evolucionismo”.

lançar

luz

sobre

a

conhecida

que

pelo

se

termo

Representada

aproximação da antropologia com

principalmente pelos trabalhos do

relação à história, pensada em duas

inglês Edward Tylor (1832-1917) e do

dimensões

norte-americano

articuladas:

uma

Lewis

Morgan

tentava

entender

disciplinar, e para isso refletiremos

(1818-1871),

sobre um texto de Lévi-Strauss em

como

que tenta enlaçar os saberes, e uma

“primitivas”, aquelas com as quais os

conceitual: aqui veremos de maneira

países europeus vinham entrando em

mais detida o debate francês - através

contato a partir da expansão colonial,

de Lévi-Strauss e Leiris - tentando

se

mostrar como se deram as reflexões

“civilizadas”, sociedades das quais

sobre a diferença cultural em torno

advinham os próprios antropólogos.

de

Para tal, concebeu-se que haveria

regimes

temporalidade.

discrepantes Interessa

de

entender

uma

também em que sentido os termos

opõem)

nessa

relacionavam

única

com

linha

as

ditas

então

evolutiva

de

e da temporalidade”, ministrada no segundo semestre de 2014 pelos professores doutores Lilia Schwarcz e João Felipe Gonçalves no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Para mais detalhes sobre as leituras feitas e os debates travados no curso, ver SCHWARCZ (2005). Agradeço aos professores os comentários fundamentais feitos à primeira versão deste texto.

discussão

específica3. 3

Este artigo foi estimulado pelas discussões feitas na disciplina “Antropologia do tempo

95

sociedades

“raça” e “história” se relacionam (ou se

as

ela


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

progressão para toda a humanidade,

ruptura com os problemas colocados

sendo que as sociedades “primitivas”

pela história. Ao que tudo indica, a

seriam

estágios

antropologia passara por uma espécie

anteriores e menos desenvolvidos das

de trauma após o uso do conceito

sociedades ocidentais. Ainda que

feito pelos evolucionistas; uso este

coabitando

que justificou o projeto colonial e

consideradas

num

histórico,

mesmo

as

tempo

primeiras

colocou

de

um

população mundial em condição de

momento já vivido pelas segundas:

inferioridade intelectual e política

elas eram a prova viva da infância de

diante das sociedades consideradas

uma

havia

“avançadas”. Como comenta Lilia

progredido; estavam, então, paradas

Schwarcz em artigo dedicado às

no tempo. Para os antropólogos

relações

dessa corrente, a diferença entre as

história:

representariam

rastros

humanidade

que

sociedades era redutível, assim, a um

linha vetorial de desenvolvimento histórico, o que pressupunha um destino e um sentido de progresso único para todas elas. Pode-se dizer que é em função um

evolucionista,

combate que

à

teoria

teve

grande

grande

entre

parcela

antropologia

da

e

foi por conta do modelo conjectural dessa escola [evolucionista] que antropólogos culturalistas norteamericanos, de um lado, e funcionalistas ingleses, de outro, buscaram distanciar-se da diacronia e se opor à história. Condenava-se o evolucionismo não só porque sua reconstituição histórica não era verificável, mas também porque a história dessas sociedades parecia diminuta, perante o “presente etnográfico” (2005:121).

problema de localização em uma

de

uma

Para entender melhor o lugar de

destaque

desse

“presente

impacto no meio intelectual e na

etnográfico”

arena pública de sua época (e segue

consideração da história por parte

tendo ainda nos dias de hoje), que a

dos

teoria

funcionalistas,

antropológica

da

primeira

metade do século XX buscou uma

antropólogos

oposição

culturalistas

olhemos

mais

à

e de

perto para a argumentação de um 96

em


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

deles,

considerado

o

pai

da

fato, dar mais privilégio ao primeiro aspecto (1997: 12)4.

antropologia inglesa: A.R. RadcliffeBrown. Na introdução da célebre

É o conceito de estrutura social

coletânea de textos Structure and function

in

a

primitive

que ganha maior destaque em seu

society,

trabalho e, fundamentalmente, se

publicada tardiamente em 1952, o autor

irá

destacar

o

lugar

vincula

da

específicas

escreveu entre os anos 1920 e 1940. os

diversos

deixa

teórica

que

prioritariamente

clara

a

do

sociologia”, da qual a antropologia é

da

parte,

tempo.

social

Embora

social

da

de

continuidade

nos

arranjos

das

pessoas umas em relação às outras”

sua formulação teórica e dissesse

(idem: 10). Contudo, lançar o foco de

estar interessado tanto no estudo da

luz mais intenso para o problema da

“continuidade nas formas da vida

continuidade não significa dizer que

social”, quanto na compreensão dos mudança

natureza

depende

continuidade

processo social como sendo a base de

de

a

estrutural, que é uma espécie de

concebesse a tríade estrutura, função e

“processos

“é

continuidade. Continuidade na vida

sociedades permanece, apesar da do

continuam

problemas teóricos fundamentais da

estática social, isto é, aquilo que nas

passagem

estas

ela. Em suas palavras: “um dos

trata-se

estudo

e

possíveis mudanças instauradas por

plataforma

constrói:

de

persistentes através da história e das

temas

presentes em seu trabalho, RadcliffeBrown

sentido

em função de necessidades sociais

presente ao apresentar os textos que

abordar

um

permanência: a estrutura é ordenada

antropologia enquanto ciência do

Ao

a

Radcliffe-Brown não concebia, em

dessas

nenhum aspecto, a mudança no seio

formas”, Radcliffe-Brown parece, de

das

sociedades

ditas

primitivas.

4

Esta e as próximas traduções contidas no texto são de minha autoria.

97


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Muito pelo contrário, em oposição

há como fazer história de maneira

aos

advogará,

rigorosa, pois não temos acesso aos

contemporâneo

materiais necessários, que não a

evolucionistas,

assim

como

Franz

Boas

seu

ele

(1858-1942),

pela

façamos

de

maneira

conjectural

diversidade cultural e histórica, não

como fizeram os evolucionistas; o

redutível a um único destino: a

melhor, desse modo, seria que os

civilização ocidental

5

. O que o

problemas históricos não entrassem

antropólogo inglês não fará é incluir

na

o estudo do devir histórico dessas

caberia

sociedades primitivas na agenda de

então, definido pelo que os seus

trabalho da antropologia.

olhos alcançam, pela realidade que se

problema

impossibilidade de lidarmos com a

ausência

história dessas populações devido à

estaria,

de de

ordem materiais

prática,

a

suficientes

sobre o passado das populações

escritos

primitivas, Radcliffe-Brown concebe

deixados por elas. A mensagem que

que a história estaria fora do escopo

ele parece passar é a de que, se não

da

antropologia,

pois

ela

transcenderia o objeto de estudo da

5

Apesar de também buscar um lugar próprio para a antropologia em oposição a outras disciplinas, o trabalho de Boas parece ser mais afim aos problemas colocados pela história que o de Radcliffe-Brown, até por isso tomamos o trabalho do último como paradigmático de uma espécie de reação antropológica à história. Como comenta Lévi-Strauss, a preocupação em inventariar a maior quantidade de costumes possíveis fez com que Boas descobrisse aspectos surpreendentes do passado de algumas sociedades e de sua relação com outras tantas (LÉVI-STRAUSS, 2008:19). Para mais detalhes ver: BOAS, 1966.

disciplina: essa realidade observável e palpável a que ele dá o nome de “processo da vida social” e que só podemos compreender através do estudo de sua estrutura e funções correspondentes BROWN, 1997:4). 98

antropólogos

que

presente etnográfico. A partir de um

Brown chama a atenção para a

documentos

aos

O

etnografia; daí a importância do

comenta Schwarcz (2005), Radcliffe-

de

antropológica.

pode observar (e tocar) através da

Nesse sentido, como também

ausência

pauta

(RADCLIFFE-


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

história] é de orientação e não de objetivo”

Quando a história nos auxilia a ser o

e

que

são

indissociáveis”(idem: 67). O texto de

que somos

Lévi-Strauss

citado

Data de 1961 um texto de E.E. Evans

Pritchard

o

Pritchard

Histoire

(1902-1973)

“ambas

intitulado

é et

por

quase

Ethnologie,

Evans-

homônimo publicado

Anthropology and History em que o

pouco mais de uma década antes, em

antropólogo inglês atenta para as

1949. Nesse momento, o etnólogo

necessidades

restabelecimento

francês, que acabara de publicar o

dos laços entre a sua disciplina e a

célebre Les Structures élémentaires de

história, mostrando as consequências

La parenté (1949), fora chamado de

perniciosas

formalista por muitos de seus pares,

de

de

seu

afastamento,

ocasionado

principalmente

influência

de

que o acusavam de ter deixado de

pela

lado

Radcliffe-Brown,

em

sua

teoria

estrutural

“extremadamente hostil” à história,

elementos históricos. O historiador e

como bem vimos acima (1990:44).

filósofo Claude Lefort (1924-2010), de

Depois de enumerar dez tópicos

quem voltaremos a tratar em seguida,

referentes

do

era um desses críticos e questionava

divórcio entre as disciplinas - dentre

o lugar da experiência na teoria lévi-

as quais estão listadas a dificuldade

straussiana, fundada sob modelos

dos

com

matemáticos 6 . Embora a crítica de

fontes documentais e a falta de

Lefort seja pertinente, a história não

atenção dada por eles ao problema

parece ter tido um papel assim tão

da

Evans-Pritchard

tímido na teoria de Lévi-Strauss,

conclui o texto dizendo que concorda

principalmente a partir dos anos

com Claude Lévi-Strauss quando

1950, quando escreve os textos que

este afirma que “a diferença entre as

vão consolidar sua teoria estrutural.

duas

às

consequências

antropólogos

memória

-,

disciplinas

em

lidar

[antropologia

e 99


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Não apenas no texto em questão, em

de como, a partir da segunda metade

que ele se dedica precisamente a

do século XX, a história volta à cena

pensar as relações entre história e

antropológica. Lévi-Strauss constrói

etnologia, mas também em pelo

o texto de modo a ressaltar a

menos

importância do trabalho conjunto

mais

antropólogo

três parece

momentos, se

o

debruçar

entre

etnólogos

e

historiadores,

cuidadosamente sobre a história,

considerando

que

mostrando sua importância para a

profissionais

traz

teoria que está desenvolvendo 7 . De

distintas para a compreensão do

acordo

“a

fenômeno humano que lhe interessa:

etnologia não pode (...) permanecer

a maneira como os símbolos são

indiferente aos processos históricos e

construídos e trocados entre distintas

às expressões mais conscientes dos

sociedades8. Após ressaltar o esforço

fenômenos sociais” (2008:37).

de Boas na direção de compreender

com

Lévi-Strauss:

citado

por

contribuições

crítica à antropologia inglesa, mais

Evans-

diretamente à Bronislaw Malinowski

Pritchard, pois ele parece fornecer,

assim como o do inglês, um exemplo

8

Não entraremos aqui nas questões que abarcam o nascimento da antropologia francesa e nas relações profundas de LéviStrauss com a obra de Émile Durkheim (1858-1917) e Marcel Mauss (1872-1950). Basta dizer que diferentemente da antropologia inglesa, como vimos com Radcliffe-Brown, a antropologia francesa foi fundada a partir da compreensão do que Durkheim chamava de representações coletivas, isto é, a maneira como ideias são organizadas socialmente. Para Durkheim, a sociedade se constituiria pela dimensão simbólica, pela ideia que teria de si mesma, mais que pela junção concreta de indivíduos que partilham um espaço/tempo. Para ver mais: DURKHEIM, 1968.

6

Ver: LEFORT, 1979b. Sobre a crítica de Lefort a Lévi-Strauss ver: POUILLON, 1973. 7 Os momentos a que referimo-nos se expressam pelos seguintes trabalhos: o texto que abordaremos a seguir, “Race et Histoire”, publicado em 1952; o último capítulo de La pensée sauvage (1962), “Histoire et dialectique”, em que discute com o filósofo Jean Paul Sartre e, por fim, um segundo texto também intitulado “Histoire et ethnologie” escrito em ocasião da conferência Marc Bloch na Sorbonne e publicado em 1983. Para mais detalhes sobre a importância da história no trabalho de Lévi-Strauss, ver: GOLDMAN, 1999.

100

dos

sociedades diversas e fazer uma

perto o texto de Lévi-Strauss, não acaso

um

melhor o sentido da historicidade em

Diante disso, vejamos mais de

por

cada


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

(1884-1942), por deixar a história de

através

lado, o autor chega ao ponto alto do

combinações fonéticas binárias que

trabalho,

possibilitam a comunicação entre os

que

diferenciação

consiste

entre

na

uma

ideias

de

conjunto simbólico, seria constituída

Ciências

para Lévi-Strauss da mesma maneira

irmãs e complementares, a primeira

que a linguagem, e o papel do

seria responsável por se dedicar aos

antropólogo seria atingir, então, o

“fenômenos

vida

nível em que são processadas essas

se

combinações, realizadas por todos os

voltaria para a dimensão inconsciente

homens em todas as sociedades.

da

Assim, é como se o historiador, que

consciente

e

social”

das

inconsciente.

conscientes

enquanto

mesma

a

da

segunda

(LÉVI-STRAUSS,

2008:38).

tem

Apanágio estruturalista

da de

visíveis

a

linguística,

dessas

combinações

de

língua (langue). Segundo o autor:

mais

Assim, tanto em etnologia como em linguística, não é a comparação que funda a generalização, e sim o contrário. Se, como cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um conteúdo, e se essas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados (como mostra tão claramente o estudo da função simbólica tal como expressa na linguagem), é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e outros costumes, contanto, evidentemente, que se

precisamente do estudo da fonética9. Para essa ciência, a linguagem é estruturada de maneira inconsciente 9

Lévi-Strauss dialoga principalmente com os trabalhos dos linguistas Roman Jakobson (1896-1982) e Ferdinand de Saussure (18571913). Segundo o próprio etnólogo, sobre Jakobson: “percebi que o que ele dizia sobre a linguagem correspondia ao que eu vislumbrava de modo confuso a respeito dos sistemas de parentesco, das regras do casamento e, de modo mais geral, da vida em sociedade” (LÉVI-STRAUSS & ERIBON, 2005: 143).

101

dimensão

como objeto e, o etnólogo, a própria

inspiração do autor em conceitos da

à

símbolos possíveis, tomasse a fala

noção de inconsciente se refere à

advindos

apenas

enquanto

consciente, isto é, aos resultados

teoria

Lévi-Strauss,

acesso

cultura,

de

e

através

A

variedade

história

etnologia

homens.

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015 avance suficientemente (2008:35).

Para

o

avanço

na

da

Depois de breve incursão sobre

análise

alguns dos dilemas disciplinares que

análise

estrutural, Lévi-Strauss afirma ser fundamental que os antropólogos tenham, portanto, a ajuda da história, pois não é possível atingir a estrutura

progressiva

reaproximação

antropologia

e

pensar

outra

uma

história,

e

a

entre iremos

dimensão

da

maiúsculo, como grande narrativa

símbolos sem levar em conta a

disciplinar feita de uma posição

diacronia. Apesar de ser inegável o

específica, o saber ocidental, e mais

lugar de preeminência da dimensão a

afastamento

refletir menos na História com H

possível fazer análise sincrônica dos

sobre

o

relação entre os saberes. Trata-se de

sem tomar o evento, como não é

inconsciente

envolveram

no uso da história como um conceito

consciente,

operatório pela antropologia, que

como determinante explicativa da

permite pensar distintos regimes de

vida social, não parece exagerado

temporalidade social10.

afirmar que a tentativa de LéviStrauss parece ser a de renovar os

Aproximaremo-nos da história

laços de amizade com a história, tão

como questão conceitual para a

desgastados

antropologia

antropologia através de um debate

(principalmente inglesa) precedente.

preciso feito na França dos anos

Embora o lugar cedido à história seja

1950: o debate racial. Sem entrarmos

de bastidor com relação à etnologia,

pela

10

A distinção entre “história como processo” e “história como narrativa” está extremamente bem desenvolvida no trabalho do antropólogo haitiano Michel-Rouph Trouillot (1995). Segundo o autor, não há como escapar da ambiguidade da história, mas é possível identificar seus aspectos complementares: trata-se de uma diferença entre os sentidos ontológico e epistemológico do termo, que envolvem uma ideia de verdade sobre o passado, por um lado, e de construção fictícia sobre ele, por outro.

ela não deixava de ter um lugar fundamental e indispensável.

Quando a história é uma questão para nós

102


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

nos meandros institucionais que a

pelos ideólogos dos regimes fascistas,

envolvem, podemos dizer que a

que recuperaram principalmente o

coleção de brochuras La question

teórico Arthur de Gobineau (1816-

raciale

moderne

1882) para embasar suas formulações

publicada pela UNESCO em 1952, da

sobre a superioridade ariana. O que a

qual faziam parte os trabalhos de

antropologia,

Lévi-Strauss e Leiris – os quais

outras ciências convocadas para o

falaremos –, é significativa desse

debate, tinha a dizer sobre essa

debate e se torna uma fonte exemplar

questão? Como ela se posicionava?11A

de observação. Tratava-se de um

hipótese que tecemos aqui é a de

empreendimento

era

que, para se contrapor à noção de

de

raça, a produção antropológica se

devant

preciso

las

cience

urgente:

combater

a

noção

perante

as

diversas

superioridade

racial

amplamente

vale do conceito de história, como

propagada

pelos

sistemas

uma espécie de arma de combate ao

nazifascistas que ganharam espaço na

etnocentrismo e à xenofobia. Se, logo

Europa e culminaram na Segunda

após

Guerra Mundial, recém terminada.

evolucionista vimos uma isenção por

De fato, o fantasma do discurso

parte da teoria etnológica em tratar a

evolucionista,

a

história, veremos agora uma nova

antropologia do século XIX, voltava a

postura: a história é trazida ao centro

angariarsolo

da

que

assombrara

político

sob

novas

roupagens. Diante

formulação

mesa

de

da

trabalho

teoria

dos

antropólogos. desse

“retorno

do

recalcado”, se é que podemos chamá-

11

As publicações foram escritas a partir de diferentes aproximações ao tema racial, “científica, educativa e psicológica, etnológica, religiosa, demográfica e histórica”, sendo a antropologia uma das várias ciências convocadas a participar (MAUREL, 2007: 119). Para mais detalhes das obras publicadas na coleção ver: MAUREL, 2007.

lo assim, cientistas de várias áreas foram chamados pela UNESCO para contribuir de modo a desconstruir a ideia de raça tal como difundida 103

a


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Leiris e Lévi-Strauss

desconstruir a ideia de raça no

estabelecido hoje em dia que as diferenças físicas hereditárias não intervém de maneira considerável como causa das diferenças de cultura observáveis entre os diversos povos; será, então, muito mais a história desses povos (sendo, para cada um deles, a soma de suas experiências sucessivas, vividas em uma certa cadeia) que deve ser, no momento, levada em consideração (1969a:57).

sentido de uma transposição simples

Aqui, o autor explicitamente

de um conceito biológico para um

coloca em campos opostos as noções

conceito

Os

de raça e história, afirmando ainda

antropólogos dirão, basicamente, que

que é para a história de outros povos

tanto não é possível determinar

que devemos voltar nossos olhares se

características de personalidade e

quisermos

cultura através de um critério racial

sobre a diferença entre eles e nós.

único quanto muito pensar raças

Contudo, não se sabe muito bem o

humanas de maneira isolada, já que

que Leiris quer dizer precisamente

toda história social é uma história de

quando

misturas e influências mútuas entre

conceitos incongruentes. Em outro

povos de origens diferentes. Se o

momento do texto, ele voltará à

conceito de raça funcionaria como

questão ressaltando que “é então

sinal diacrítico na biologia, no plano

mais pela consideração do que foi a

da antropologia ele parecia não trazer

história de diferentes povos que por

muitos ganhos explicativos e deveria

sua

ser, no mínimo, complexificado.

explica-se sua diversidade cultural”

Os textos de Lévi-Strauss e Leiris, Race et Histoire e Race et civilisation, têm como base a mesma espécie de argumentação.

Trata-se

psicológico/cultural.

de

raça

Leiris

afirma

em

Race

sugere

63,

que

compreensão

esses

geográfica

grifos

do

são

que

autor).

Novamente, o autor eleva a história à

et

condição

civilisation:

de

explicação

da

diversidade cultural, querendo dizer

Uma tal ideia não resiste ao exame dos fatos e podemos ter por algo

com isso que não se pode julgar uma 104

uma

consideração

(idem:

Nessa direção, sobre a ideia de

ter


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

cultura como superior ou inferior a

pelo termo. A história aparece como

depender

no

uma espécie de substituta fácil para o

globo. Seu discurso certamente está

cargo ocupado antes pela causalidade

combatendo

determinismo

biofísica. Leiris, em tom relativista,

geográfico - isto é, a ideia de que o

conclui que não há como julgar

desenvolvimento de um grupo social

inferioridade

depende de condições climáticas,

culturais, pois, em última instância,

morfológicas e geográficas favoráveis

somos

- que, bem como o determinismo

diferença;

biológico,

das

diferentes, temos um passado que

teorias racistas. Se, num primeiro

difere entre si e, por isso, somos

momento, a oposição a que está a

todos capazes de proezas técnicas e

cargo da noção de história se dá em

intelectuais. O nosso olhar sobre os

relação

biológicas,

outros está, então, sempre informado

agora, são as condições físicas que se

por nossa própria cultura, que é

interpõem de maneira insuficiente

resultado de nossa história.

de

sua

localização

o

embasou

às

condições

muitas

para a explicação da diversidade

e

todos

superioridade

iguais

em

construímos

nossa

histórias

Apesar de seguir a mesma toada

humana.

do texto de Leiris, inventariando as

Contudo,

nos

contribuições de diferentes culturas

perguntar: que história é essa, tão

para a humanidade e invertendo a

mencionada por Leiris, capaz de se

posição de superioridade ocidental

opor a tantas outras explicações

construída pelo pensamento racista,

referentes à variedade cultural? Se é

Race et Histoire de Lévi-Strauss,

verdade que o autor aponta a história

parece adicionar certa complexidade

ao longo de todo o seu texto para se

ao

contrapor

diferentemente de Leiris, o autor

à

devemos

constituição

cultural

debate.

através da raça, é também verdade

dialoga

que ele não esmiúça o que entende

introduzindo 105

com

Isso

o

problema uma

porque,

racial questão


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

fundamental: a de pensarmos em

vez em Race et Histoire 12 . Sujeita a

diferentes maneiras de construir a

todo tipo de mal-entendido, como

história. Não que a questão do tempo

comenta

não seja abordada por Leiris, mas, de

(1983), essa distinção visava naquele

fato, em seu texto não vemos uma

momento a advogar pelo fato de que

reflexão tão detida sobre o que

muitas são as maneiras dos homens

significa a própria ideia de história,

de lidar com o próprio tempo e, mais

quando em Lévi-Strauss essa é uma

que isso, de narrá-lo. Essa distinção é

questão que já se mostra importante

também dinâmica, na medida em que

desde o título do trabalho. O que o

enxergar o movimento do tempo

autor nos mostra é que só se pode

depende do lugar de onde se olha

falar em avanço e atraso social, tal

para

como fizeram os evolucionistas e

Segundo o autor trata-se, em última

repetiram os ideólogos nazifascistas,

instância,

se se concebe um único sentido para

perspectivas:

a história. É nessa chave que ele

progresso: será que há apenas uma direção

para

avançar

no

tempo? A tão conhecida distinção entre progressivas

sociedades cumulativas,

e

estacionárias,

ou

Lévi-Strauss

historicidade

de

uma

do

outro.

diferença

de

que

12

Os termos “sociedades frias” e “sociedades quentes” foram introduzidos por LéviStrauss em 1961 nas entrevistas concedidas à Radio Francesa para Georges Charbonnier (GOLDMAN, 1999). 13 Para ver mais desdobramentos sobre a distinção de Lévi-Strauss consultar: GOLDMAN, 1999 e SCHWARCZ, 2005.

depois seria popularizada também pelos termos sociedades quentes e sociedades frias, é feita pela primeira

106

próprio

A historicidade ou, mais precisamente, a factualidade, de uma cultura ou de um processo cultural é assim função, não das suas propriedades intrínsecas, mas da situação em que nos encontramos em relação à ela, do número e da diversidade dos nossos interesses nela apostados. A oposição entre culturas progressivas e culturas inertes parece assim resultar, primeiro, de uma diferença de localização (1973: 34, grifos do autor)13.

reflete também sobre a ideia de

única

a

o


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Assim, fica claro que, com o adjetivo

temporalidade;

“estacionária”,

não

historiador, não estamos falando de

queria dizer que existiam sociedades

uma só “essência”, mas de “soluções

sem

diferentes” para o mesmo problema,

Lévi-Strauss

história

imobilizadas

ou

no

sociedades

tempo.

Como

(LEFORT,1979a:54-56).

seu segundo texto intitulado Histoire Ethnologie

(1983):

“todas

Assim,

as

diferentes

sociedades são históricas da mesma

questão:

maneira, mas algumas o admitem francamente

enquanto

outras

alguns

mesma

Lefort

parece

assinalar

“primitivas”.

Ele

ocidentais

ou

quer,

14

distintas

Como

diria

nem

as

sociedades

nem

as

sociedades

possuem

múltiplas

A sugestão de Leach refere-se, na verdade, à ideia de que existem duas maneiras de lidar com o tempo em todas as sociedades, maneiras estas que são “derivações de duas experiências básicas”: a experiência de que “certos fenômenos da natureza se repetem” e a experiência de que “as mudanças da vida são irreversíveis” (LEACH, 1974: 193). Segundo o autor, vivemos essas duas formas de temporalidade e é “nossa visão moderna e sofisticada” que “tende a jogar ênfase no segundo destes aspectos do tempo” (idem). Leach chama a atenção, assim como Lévi-Strauss e Lefort, para a existência de variabilidade da percepção de tempo na experiência social, em contraposição à uma única versão oficial de historicidade dada por uma determinada sociedade.

pelo

contrário, destacar a diferença na relação dos grupos sociais com a 107

é

usá-los de maneira a sugerir ausência

não

sociedade.

sociedades

um de seus polos, Lefort não parece

sociedades

que

cíclico e repetitivo14. É certo que as

em Race et Histoire, a imobilidade de

das

em

“primitivas” têm apenas o tempo

dos termos também invocarem, como

parte

de

concebermos

pensam,

de “sociedades estagnantes”. Apesar

por

o

aqui

ocidentais são tão lineares como se

a

distinguindo “sociedades históricas”

historicidade

primeiro,

momento,

mesma preocupação do antropólogo,

de

estão

pontos

Edmund Leach (1910-1989) em outro

aspectos

como vimos anteriormente, nesse ponto

dois

formas de lidar com o tempo em uma

(1983:1218). Apesar de discordar de em

são

que

possível

o

recusam ou preferem o ignorar”

Lévi-Strauss

o

no caso, o da passagem do tempo

comenta de forma bastante clara em

et

segundo


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

temporalidades, contudo - e isso diz

ocidentais frequentemente não se

respeito ao segundo ponto -, elas

veem dessa maneira, isto é, não

elegem uma das formas possíveis

ressaltam

para refletirem sobre si mesmas, isto

existência. É ocidental a narrativa

é,

formas

que salienta os saltos técnicos como

História. Assim, a narrativa que uma

significativos da passagem do tempo

sociedade faz de si mesma com

e dá a ela o nome de História, o que

relação ao tempo corresponde a

não quer dizer que outras sociedades

apenas uma de suas possibilidades de

não tenham dado tais saltos.

tornam

uma

dessas

experimentá-lo.

esse

Nesse

Diante disso, não parece tão

que

aspecto

sentido,

sua

acreditamos

Lévi-Strauss

concordaria

estranha a afirmativa de Lévi-Strauss

também

feita em outro ponto do texto em

desenvolvido

questão,

as

Reinhart Koselleck (2006), quando

sociedades podem ser, e são, em

este afirma que a História como

última instância, cumulativas. De

conceito

acordo com ele “a diferença não é,

fórmula indissociável da experiência

pois, entre história cumulativa e não

moderna, é somente a partir dela que

cumulativa;

é

se pode conceber uma história “em si

cumulativa, com diferenças de graus”

e para si”. O problema estaria, então,

(1973:53). Se todos os agrupamentos

na imputação do conceito para outras

humanos contribuíram e contribuem

realidades,

para o que ele chama de um

deformação: a visão de que, diante da

progresso

marcha

que

diz

toda

da

que

todas

história

humanidade,

esse

com

de

o

argumento

pelo

historiador

independente

o

que

ocidental

é

causaria

de

uma

uma

progresso,

progresso, contudo, não tem uma

outras sociedades estariam atrasadas.

única direção, mas múltiplas. Apesar

Como

de

e

francês, ver a historicidade do outro

não

requer um deslocamento do ponto

poderem

progressivas,

ser as

cumulativas sociedades

108

comenta

o

antropólogo


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

de vista daquele que olha, pois se de

dinâmica constante de assimilação e

um

diferenciação,

determinado

lugar

uma

esse

sociedade parece estacionária, “isso

interminável

não quer dizer que, sob outro ponto

diferença ressaltado por ele em todo

de vista, ela não seja sede de

o texto.

importantes transformações” (1973:

O

54).

entre

movimento identidade

importante

para

e

Lévi-

Strauss é, assim, menos os pólos da distinção que faz em Race et Histoire

Assim, apesar de falar em pontos de vista pela qual passa a

(sociedades

historicidade alheia, acreditamos que

cumulativas) e mais a distinção em si,

Lévi-Strauss segue tendo sobre essa

enquanto

questão

menos

importante

parece

relativista (e culturalista) que a de

substância

bipartida

Leiris: se o segundo concebe que

história/cultura pela qual se pode

existem tantas histórias quanto há

compreender

culturas, o primeiro parece dar mais

Novamente, é o próprio Lévi-Strauss

ênfase às distintas maneiras de narrar

quem

a história, apostando na unidade do

distinguir

processo

da

apenas, com um objetivo heurístico,

colaboração entre as alteridades de

dois estados que, para parafrasear

que fala o tempo todo Lévi-Strauss.

Rousseau

uma

existiram, não existirão jamais e que

“civilização mundial”, para a qual

é, portanto, necessário ter deles

todas as culturas deixam um legado e

noções precisas’” (1983: 1218). Assim,

a única forma de tentar compreender

se é verdade que Leiris e Lévi-

essa

podemos

Strauss tinham um mesmo objetivo

chamar também de humanidade)

com suas publicações paralelas, o de

passa por estarmos atentos à sua

desconstrução

para

uma

postura

social:

ele,

totalidade

afinal,

no

(a

é

limite,

que

109

estacionárias

que,

para

a

salienta:

categorias

do

Leiris, ser

o essa

nomeada

alteridade.

“eu

‘não

e

não

queria

reais,

existem,

racismo,

mas

não

as


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

maneiras pelas quais erigem seus

colonizadora

argumentos

nítidas

(1969b:88). Em Race e civilisation, a

diferenças de fundo filosófico: se o

história ganha também esse sentido

primeiro flerta com a fenomenologia,

de combate à exploração colonial,

o segundo tende ao humanismo

apesar de não entrar muito a fundo

racionalista15.

em seus sentidos, Leiris a toma como

deixam

ver

Leiris

um

sentido

ocidental com relação às sociedades colonizadas se dá não apenas por um

reivindicação política. Ao descrever o

problema

papel do antropólogo diante das

cultural,

populações coloniais com as quais

devant

relativo mas

à

diferença

também

por

um

problema relativo às relações de

toma contato, em outro texto da L’ethnographe

pertencem”

É ele quem diz que a incompreensão

mais

concreto, é instrumento direto de

época,

que

motor de transformação da realidade.

Não por acaso, a história tem para

a

poder

le

em

jogo

entre

essas

sociedades, há aqui um nexo de

colonialisme (1950), esse ponto fica

sujeição e exploração da qual não se

claro: é com a colonização que Leiris

pode fugir.

estabelece interlocução e é contra ela sua luta. Ele dirá que antropólogos

Embora Race et histoire tenha

são para os povos colonizados com as

sido fundamental como plataforma

quais

“advogados

de combate ao colonialismo após ser

a

escrito, e isso muito em função da

naturais

têm

contato perante

nação

prestigiosa

15

Como já ressaltado na nota 7, é conhecida a querela entre Lévi-Strauss e Sartre, de quem, não por acaso, Leiris fora colaborador na revista Les temps modèrnes entre os anos 1940 e 1970. Também se sabe do envolvimento conjunto de Leiris e Sartre com o movimento da negritude, plataforma artístico-política liderada por artistas negros de origem africana e caribenha residentes em Paris. Para mais detalhes ver: FRIOUXSALGAS, 2009.

de

Lévi-

Strauss, no corpo do texto o autor não chega a mencionar diretamente o tema16. Como dito, apesar de ambos 16

Race et Histoire foi a obra mais popular da então coleção da UNESCO que citamos. Alfred Métraux, que estava a cargo do departamento de relações raciais da

110

reputação


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

os textos terem um caráter político-

tom de manifesto político. Nesse

institucional, afinal, faziam parte da

sentido vê-se, em seu trabalho, mais

plataforma de ação de um organismo

uma das facetas de sentido que a

internacional, o trabalho de Leiris

história ganha quando trazida como

certamente deixa mais explícito seu

conceito antropológico: ela é também

um recurso eficaz à exigência política

instituição, teria dado atenção especial à ela, observando em correspondência interna que: “A publicação desse novo título constitui um evento importante, não somente do ponto de vista do acervo da nossa coleção A questão racial, mas também do interesse que o nome de Lévi-Strauss tem em meio ao publico” (MÉTRAUX apud MAUREL, 2007: 119).

vinculada à descolonização e matéria potente de crítica à modernidade ocidental.

Referências BOAS, Franz. Race, language and culture. New York: The Free Press, 1966. DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse: Le système totémique en Australie. Paris: Presses Universitaires de France, 1968. EVANS-PRITCHARD, E. E. “Antropologia e Historia”. In: EVANSPRITCHARD, E. E. Ensayos de antropologia social. Madrid: Siglo XXI, 1990. FRIOUX-SALGAS, S. “Présence Africaine: un tribute, un movement, un réseau”, GRADHIVA, n. 10, 2009, pp. 5-21. GOLDMAN, Márcio. “Lévi-Strauss e os sentidos da história”, Revista de Antropologia, vol. 42, n.1-2, São Paulo, 1999, pp. 223-238. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006. LEACH, Edmund. “Dois ensaios sobre a representação simbólica do tempo”. In: LEACH, Edmund. Repensando a antropologia. São Paulo: Perspectiva, 1974. LEIRIS, Michel. “Race et civilization”. In: LEIRIS, Michel, Cinqétudes d´ethnologie. Paris: Danoel/Gonthier, 1969a. _____________. “L’ethnographedevant le colonialism”. In: LEIRIS, Michel, Cinqétudes d´ethnologie. Paris: Danoel/Gonthier, 1969b. LEFORT, Claude. “Sociedades ‘sem história’ e historicidade”. In: LEFORT, Claude. As formas da história. São Paulo: Brasiliense, 1979a. _______________. “A troca e a luta dos homens”. In: LEFORT, Claude. As formas da história. São Paulo: Brasiliense, 1979b. LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962. 111


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

_____________________. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença, 1973. _____________________.“Histoireetethnologie”, Annales - Économies, Sociétés, Civilisations, 38e année, N. 6, 1983. pp. 1217-1231. _____________________& ERIBON, Didier. De perto e de longe. São Paulo: Cosac&Naify, 2005. _____________________. “História e etnologia”. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac&Naify, 2008. MAUREL, Chloé. “La question des races. Le programe de L’Unesco”, GRADHIVA, 5 (2007), pp.114-131. PEIXOTO, Fernanda. “O nativo e o narrativo: os trópicos de Lévi-Strauss ea África de Michel Leiris”. In: CAVIGNAC, J., GROSSI, M. & MOTTA, A.(org). Antropologia Francesa no século XX. Recife: Editora Massangana, 2006. POUILLON, Jean. “A obra de Claude Lévi-Strauss”. In: LÉVI-STAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença, 1973. RADCLIFFE-BROWN, A.R. “Introduction”. In: RADCLIFFE-BROWN, A.R, Structure and function in a primitive society. New York: TheFreePress, 1997. SCHWARCZ, Lilia. “Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história”, Novos estudos, São Paulo, Cebrap, número 72, julho de 2005. pp. 119-136. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the past. Power and production of history. Boston: BeaconPress, 1995.

112


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Estudos sobre morbidade e mortalidade populacional no Brasil do século XIX: limites e possibilidades Studies on Population Morbidity and Mortality in Nineteenth-Century Brazil: Limits and possibilities Daniel Oliveira 1 Resumo A análise da mortalidade e morbidade, sob perspectiva da história social, é empregada na historiografia como recurso para examinar questões específicas em torno das condições sociais de vida e morte de diversos grupos populacionais. Estas condições consideram diversos fatores: socioeconômicos, culturais, políticos, morais, entre outros, que permearam a vida dos indivíduos e grupos. Com este panorama, analisaremos como a historiografia nacional recente, fazendo uso do arcabouço teórico e metodológico ligado à história social e demografia, está trabalhando o tema para o contexto brasileiro do século XIX. Destacaremos as principais contribuições suscitadas pelos autores nas suas pesquisas, seus avanços e, de forma preliminar, procuraremos esboçar oportunidades de progressões para o exame da problemática.

Palavras chave: mortalidade; história social; século XIX; historiografia; Brasil.

Abstract The analysis of mortality and morbidity in the perspective of social history is employed in historiography as a resource to examine specific questions about the social conditions of life and death in various population groups. These conditions consider several factors: socio-economic, cultural, political, moral, among others, that influenced the lives of individuals and groups. With this background, we are going to analyze how recent national historiography, making use of the theoretical and methodological framework linked to social and demographic history, is approaching this subject in the Brazilian context of the nineteenth-century. We highlight the main contributions raised by the authors in their research, their advancements and, in a preliminary way, we outline opportunities to advance further in the study of this issue. Keywords: mortality; social history; XIX century; historiography; Brazil.

1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul -­‐ UFRGS.

113


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

como,

Introdução A

análise

da

mortalidade,

perspectiva

da

história

sobre

os

temas

explorados.

sob

social,

teorias

é

No

Brasil,

analisando

empregada na historiografia como

principalmente

recurso

questões

escravizados, mas não se limitando a

específicas em torno das condições

este grupo populacional2, os estudos

sociais de vida e morte de diversos

sobre mortalidade desenvolveram-se

grupos

Estas

de forma acentuada a partir da

diversos

para

condições

examinar

populacionais. consideram

história: ensaios de teologia e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 2 Destaca-­‐se que são vários os estudos que trataram sobre mortalidade no século XIX, alguns detendo-­‐se especialmente sobre ela, outros utilizando-­‐a pontualmente, como um recurso dentre outros, para análise de determinado problema. Assim como, apesar de predominarem, entre os estudos de maior vulto, os escravos como indivíduos, outros grupos sociais também foram investigados, e ainda, grupos por faixa etária, tal como as inúmeras pesquisas que se ocuparam da mortalidade infantil. Também deve-­‐se mencionar os estudos que se detiveram mais em causas de morte do que em grupos sociais. Alguns exemplos (no artigo de Marcílio podem ser identificados diversos estudos que, mesmo não se detendo sobre a mortalidade, a exploraram de forma pontual): BARRETO, Maria Renilda Nery. Entre brancos e mestiços: o quotidiano do Hospital São Cristóvão na Bahia oitocentista. In: MONTEIRO, Yara Nogueira (org.). História da saúde: olhares e veredas. Instituto de Saúde, 2010. BASSANEZI, Maria Silvia Beozzo. Imigração e mortalidade na terra da Garoa. São Paulo, final do século XIX e primeiras décadas do século XX. XIX. Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, São Pedro/SP. 2014. MARCILIO, Maria. Luiza. A demografia histórica brasileira nesse final de milênio. REBEP -­‐ Revista Brasileira de Estudos de População. V. 14, n. 1/2 (1997). SANTOS, Cândido dos. Nota sobre a mortalidade infantil nos séculos XVIII e XIX. Humanidades, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 2, Abril de 1982, p. 47-­‐[75].

fatores socioeconômicos, culturais, políticos, morais, entre outros, que permearam a vida dos indivíduos e contextos.

As

pesquisas

sobre

mortalidade inserem-se no campo historiográfico

conhecido

como

história da saúde e das doenças1 que, ao

longo

das

últimas

décadas,

consolida-se dentro da historiografia nacional, construindo métodos de análise específicos sobre fontes, bem

1 No entanto, nem todos os trabalhos deste campo inserem-­‐se nas perspectivas teóricas da história social. Muitos estudos são conduzidos sob análises pós-­‐estruturalistas, mais precisamente, inspiradas nos estudos de Michel Foucault. Conforme Hebe Castro, o pós-­‐ estruturalismo significaria: “um rompimento radical tanto com a presunção da existência de estruturas sociais quanto com a ênfase no vivido e na experiência, que classicamente definiam o campo da história social”. CASTRO, Hebe. História Social. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da

114

indivíduos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

década de 1970 de forma interligada

Em relação às fontes utilizadas

à história social e à demografia. Esta

para o exame da mortalidade no

última,

métodos

decorrer do século XIX no Brasil,

seriais, quantitativos e estatísticos, foi

destacam-se os registros paroquiais

considerada por muitos historiadores

produzidos pela Igreja Católica e,

sociais pós-década de 1970 3 como

também,

uma ciência dura, que pouco poderia

realizados pelas Santas Casas de

auxiliar na apreensão da complexa

Misericórdias do Brasil. As Santas

realidade

ou

Casas, em muitas grandes cidades do

suas

país, eram as administradoras dos

relações. Em outras palavras, tal

cemitérios municipais, estabelecidos

abordagem

não

a partir das reformas cemiteriais da

dariam conta da face humana que

metade do século XIX 5 . Destaca-se

constitui tais relações, tão cara para a

que, no caso de Porto Alegre, a Santa

grupos

permeada

social

por

dos

agentes

populacionais

história

e

seus

4

social

em

métodos

.

Atualmente,

Casa

os

de

registros

de

Misericórdia

e

óbitos

o

seu

pesquisadores ligados às abordagens

cemitério, para além de concentrar

recentes da história social e ao seu

todos

aparato teórico e metodológico, ao

ocorridos na cidade a partir de 1850,

trabalharem a mortalidade, voltaram

também reproduziria em seus livros

a fazer uso de técnicas e conceitos

de

criados

realizados pelas paróquias da cidade.

pela

oportunizando

o

demografia, refinamento

enterramentos

óbitos,

de

Com

análises e a criação de novas teorias e

reflexão

metodologias acerca dos problemas

suscitadas

estudados.

todos

este

parte por

desenvolvimento

os

5 REIS,

legais

registros

panorama, de

pesquisa que

esta

inquietações

explora

3 PRADO JR, Caio. História quantitativa e método da historiografia. São Paulo, Debate e Crítica (6), jul. 1975. 4 CASTRO, Hebe. Op. cit. p. 49-­‐50.

em as

João José. A morte e uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 357 p.

115

os


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

condições

de

da

Objetiva-se assim, por meio de

população de Porto Alegre e a

revisão de literatura recente7 sobre o

estrutura social daquela cidade, no

tema, analisar como estas questões

último quarto do século XIX, tendo

podem

como base documental principal,

historiografia nacional e como se

registros de óbitos6. As inquietações

relacionam ao arcabouço teórico e

advindas do uso desta fonte e da

metodológico ligado à história social

pesquisa empreendida se formulam a

e

partir de alguns questionamentos: até

principais contribuições suscitadas

que ponto a análise da mortalidade

pelos autores e suas pesquisas, seus

pode nos dizer algo sobre as reais

avanços e, ainda, mesmo que de

condições de morte e vida dos

forma

indivíduos analisados e suas relações

oportunidades de progressões para o

com o todo social em que estão

exame da problemática.

incluídos?

E

mortalidade

ainda,

sobre

o

entendidas

conceito,

tendo

como

como ponto

os

limites

e

também

considerando

as

esboçar

suscintamente

sobre

a

história social, a demografia e os estudos de mortalidade; a segunda,

as

abarcando estudos atuais e pioneiros do campo, procura observar como os

a

pontos

metodologia a ser aplicada?

de

reflexão

trazidos

são

Escolhidos pela afinidade de diálogo que estabelecem com as questões propostas por este artigo. 8 A demografia, nesta concepção, é observada como interligada à história social (não ciências separadas), como será identificado na exploração sobre a relação entre a história social e mortalidade. 7

Livros de Óbitos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (SCMPA). Centro Histórico-­‐Cultural Santa Casa (CHC) de Porto Alegre. 6

116

destacando

interface que se estabelece entre a

possibilidades oferecidas por estas fontes,

,

preliminar,

discorre

de

seu contexto histórico de construção? são

8

na

divide em três partes: a primeira,

um

partida os seus registros, dentro do

Quais

demografia

observadas

Com este horizonte, o texto se

conhecimento das causas de morte e doenças,

ser


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

tratados;

a

terceira,

analisa

as

factual e política historicista alemã,

principais contribuições e indagações

centrada

observadas

acontecimentos 11 , propondo: “uma

buscando

nos o

estudos

tratados,

aprofundamento

do

nos

grandes

história problema, viabilizada pela

exame da mortalidade.

abertura da disciplina às temáticas e métodos

das

demais

Ciências

Humanas, num constante processo História

social,

demografia

de

e

uma

definição

de

objetos

aperfeiçoamento metodológico”

estudos sobre mortalidade Buscar

alargamento

sobre

e 12

.

Dentre estas ciências, destacam-se a

o

Sociologia e a Antropologia13.

significado de história social não é

Além disso, a história social

tarefa fácil, sendo difícil identificar pontualmente a sua origem como

evocava

forma de se analisar e escrever a

passado, sendo mais analítica do que

história9. Sua gênese estaria ligada ao

narrativa e mais temática do que

movimento dos Annales10, formando-

cronológica

se em contraposição à historiografia

interdisciplinaridade,

principais

9 De acordo com o objetivo proposto, a gênese

14

face

.

humana

Marcada as

do

pela suas

características

constituidoras seriam estabelecidas

da história social será realizada de forma resumida. Para informações pormenorizadas sobre o surgimento da história social, seu desenvolvimento e relacionamento com os Annales, consultar as obras de alguns dos autores aqui debatidos: BURKE, Peter. O surgimento da história Social. São Paulo: UNESP, 2002. CASTRO, Hebe. Op. cit. HOBSBAWM, Eric. J. Da história social à história da sociedade. In. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 10 Fundado por Marc Bloch e Lucien Febvre (1929). No entanto, pode-­‐se considerar que tal postura historiográfica teria surgido anteriormente, na década de 1890, identificada em estudo realizado pelo historiador norte-­‐ americano Frederik Jackson Turner. Ver: BURKE, Peter. Op. Cit. p. 29.

pela criação de novos problemas de pesquisa,

métodos

e

novas

11 CASANOVA,

Julían. La historia social y los historiadores. Barcelona: Crítica, 1997. p. 39. 12 CASTRO, Hebe. Op. cit. p. 45. 13 Fernand Braudel, um dos principais historiadores dos Annales, chegaria a propor a união entre a História e Sociologia. Entre os sociólogos que influenciaram profundamente a história social, destacam-­‐se: Max Weber, Émile Durkheim e François Simiand. Na Antropologia, destacam-­‐se Clifford Gertz e Claude Lévi-­‐ Strauss. Sobre as origens destas relações, consultar: CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 20-­‐24.

117

uma


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

abordagens, tendo como cerne de

como campo específico de estudos,

análise o homem em sociedade,

observada e tomada como uma nova

independentemente de sua posição15.

postura historiográfica, passando a se

No entanto, em seu início, esta

tornar

proposta desenvolvia-se priorizando

historiadores18. Até então, conforme

os

Hobsbawm: “Nem o tema em si nem

fenômenos

coletivos

sobre

o

hegemônica

indivíduo, privilegiando a análise das

a

estruturas

conheceram

sociais,

sob

olhar

discussão

entre

os

de

seus

problemas

um

desenvolvimento

socioeconômico 16 . No que toca à

efetivo”19. Estes anos também foram

demografia e à história quantitativa,

marcados pelo ápice das abordagens

anos

estruturalistas, assim como pelo uso

iniciais por meio de registros de

vasto da quantificação, observando

nascimentos, matrimônios e mortes,

que a utilização deste método estaria

Casanova indica que historiadores

ligada à euforia ocasionada pelos

dos Annales ligados aquela ciência e

primeiros avanços da informática e às

método

importantes

facilidades que esta nova ciência

estudo

da

oportunizava para a pesquisa de

sociedade e do fato social como

dados quantitativos, principalmente,

objetos de pesquisa17.

demográficos e econômicos20.

empreendidas

naqueles

forneceriam

contribuições

para

o

Seria somente a partir de 1950, principalmente historiadores

por marxistas

meio

Entre os anos de 1960 e 70

de

ocorreria

a

sofisticação

destes

métodos e o aumento do número de

britânicos,

que a história social se estabeleceria

pesquisas

14 CASTRO, Hebe. Op. cit. p. 39.

17 CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 96.

15 Idem.

18 Momento

caráter.

Neste

em que a historiografia marxista liberou-­‐se de enfoques limitados que haviam orientado a história política e ideológica do movimento operário. CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 96. 19 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p. 85. 20 CASTRO, Hebe. Op. cit. p.47-­‐48.

Seria a partir da economia que se esclareceria a estrutura da sociedade e suas mudanças, e ainda, se dariam as relações entre os grupos sociais. A economia estabelecia-­‐se como o fundamento central da sociedade. HOBSBAWM, Eric. J. Op. Cit. 16

118

deste


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

momento,

entre

os

historiadores

naqueles anos, criar-se-ia um campo

cresce o interesse por documentos

específico

seriais, em meio a eles, os registros

como “demografia histórica” 22 , que

de óbitos. O enfoque predominante

incentivou

nestas

o

poucos

a

populacional.

pesquisas

socioeconômico,

ainda

era

enfatizando

análise sobre as estruturas sociais,

a

sobre

que

mortalidade

de

que

“os

definitivamente não se conformavam

. No

a

historiografia

ficar

confinados

a

modelos

preestabelecidos”24, a própria ênfase

brasileira seria marcada por muitas

dos estudos dentro da história social

destas concepções e características e,

Demografia histórica: campo de estudos iniciado no Brasil por Maria Luiza Marcílio em 1968, com a pesquisa intitulada La ville de São Paulo. Peuplement et population. 1750-­‐1850. Marcílio, que estudou por muitos anos na França, foi profundamente influenciada por demógrafos franceses. No Brasil, foi lançada com o nome A cidade de São Paulo, povoamento e população: 1750-­‐1850. MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo, povoamento e população: 1750-­‐1850. São Paulo, Pioneira, 1974. Entre outros pesquisadores importantes do campo, naquele período, encontra-­‐se Iraci del Nero da Costa. 23 Os campos privilegiados pela demografia histórica naquele período foram a “nupcialidade, família, concubinato e infância” e “estruturas e dinâmicas populacionais da população livre e escrava”, dedicando pouco espaço para a análise da morbidade e mortalidade das populações analisadas. MARCILIO, Maria. Luiza. A demografia histórica brasileira nesse final de milênio. REBEP -­‐ Revista Brasileira de Estudos de População. V. 14, n. ½, 1997. 24 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 50. 22

21 Trata-­‐se de concepções sobre a relação ente

indivíduo, grupos de indivíduos, cultura, política, economia, mentalidade e a conformação da sociedade. Existe uma extensa discussão sobre esta relação, oportunizada pela história social, ao longo de sua existência. Atualmente, pode-­‐se entender estrutura, dentro da história social, como conceito: “a palavra estrutura designa simultaneamente um conjunto, as partes de um conjunto e as relações dessas partes entre si”. Deste modo, “são construídas pelos homens e, como tal, surgem, transformam e, quando perdem sua diferenciação, desembocam em outras, como acontece com todos os modos de organização que emergem nas sociedades humanas, decorrentes de suas práticas, decisões etc.”. Neste sentido, as estruturas são produtos de relações sociais, humanas. PETERSEN, Silvia e LOVATO, Bárbara. Ciência moderna e conhecimento histórico. In: Introdução ao estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: Edição das autoras/Gráfica das UFRGS, 2013. P. 249-­‐250.

119

,

ainda

comportamentos e realidades sociais

indivíduo encontrar-se-ia ainda um

período,

23

consciência

para o enfoque da ação humana. O

mesmo

estudos,

intitulado

com a crise dos estruturalismos e a

de longa duração, sem muito espaço

21

estudos,

A partir da década de 1970,

utilizando-se de um tempo histórico

tanto preso às estruturas

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

se modificou. Momento este em que

enfatizados pela historiografia social28

os historiadores sociais, criando ou

e, mais que isso, indivíduo, espaço,

utilizando

tempo e estrutura passariam a ser

conceitos,

hipóteses,

técnicas

algumas

emprestados

de

e

vezes

29

.

ciências,

Outra marca das pesquisas recentes

passaram a direcionar os seus olhares

da história social seria a redução da

– na análise de novos ou antigos

escala de abordagem nas análises30. É

problemas

neste cenário que a história social se

-

movimentos

outras

problematizados nas pesquisas

para e

as

estruturas,

processos

que

desenvolve na atualidade e que o estatística

caráter

população25, também privilegiando a

demografia passa a ser repensado,

ação humana, seu comportamento e

assim como o uso das suas fontes -

experiência

26

,

em

conjunturas

da

dureza

envolvem a sociedade, economia e

da

para o que aqui nos interessa, os

específicas: "Esta postura leva o

registros

historiador a privilegiar durações

trabalhadas de forma conceitual, em

curtas, em relação às abordagens

conjunto

econômicas, demográficas ou das

qualitativas.

mentalidades,

sem

que

estas

as

abordagens socioculturais sobre os enfoques socioeconômicos até então 25 CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 38. 26 E de acordo com Burke, esta seria uma das

pretensões de Braudel ao propor a união entre história e sociologia. BURKE, Peter. Op. Cit. p. 31. 27 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 49.

120

de

-

ao

outras

serem

fontes

Para uma análise conceitual sobre estas dimensões, ver: PETERSEN, Silvia e LOVATO, Bárbara. Op. Cit. p. 230-­‐265. 30 Abordagem denominada como micro-­‐ história. A micro-­‐história foi oportunizada por um grupo de historiadores italianos, entre eles, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Objetiva a reconstituição de trajetórias individuais, observando e analisando o comportamento humano em seu meio social, cultural, econômico etc. específico. Trata-­‐se de uma redução de escala de abordagem sobre determinado problema, representando “um ponto de partida para um movimento mais amplo em direção à generalização”. CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 53. Ver também: LEVI, Giovanni. Sobre a micro-­‐história. In BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. 133-­‐161. 29

de referência”27. assim,

óbitos

28 Ibidem. p. 50.

deixassem de compor-lhes um campo

Cresceriam,

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

cabe

Finalizando esta explanação,

Karasch - A Vida dos Escravos no Rio

trazer

de

história

o

social

entendimento tomado

por

de esta

Janeiro

produzidas

(1808-1850) na

34

década

,

ambas

de

1970,

reflexão. Tal como indicado por

conformam-se como os principais

Julían Casanova, diferentemente de

referenciais teóricos e metodológicos

uma

sobre

especialidade

acadêmica

ou

historiográfica, a história social se

mortalidade

Iraci

análise que deveria estar presente em

do

del

Nero

da

Costa,

conhecido por seus trabalhos ligados

qualquer forma de problematizar o

à

passado31, tendo em vista que o seu

demografia

histórica,

sob

abordagem metodológica estatístico-

objeto, o ser humano em sociedade,

descritiva,

dado a sua complexidade, não pode

analisou

as

principais

causas de morte entre os segmentos

ser analisado de forma isolada sob

populacionais

qualquer aspecto32.

de

Vila

Rica:

os

escravos, forros e livres. Procurou determinar

possíveis

estariam relacionadas à mortalidade

sobre mortalidade no século XIX

daquelas populações. Costa indicou

As pesquisas de Iraci Del Nero da

que

Costa - Vila Rica: mortalidade e

epidêmicas

33

as

condicionantes socioeconômicas que

O passado e o presente nos estudos

a

ocorrência e

de

mortalidade

doenças estaria

associada à decadência econômica de

e de Mary

Vila Rica35. Outros aspectos em torno

31 CASANOVA, Julían. Op. Cit. p. 47-­‐8.

das populações estudadas (culturais,

32 Ibidem. p. 40-­‐1. E neste ponto inclui-­‐se para

a análise, também como resultado do desenvolvimento da história social, os conceitos de sujeito, estrutura, tempo e espaço. 33 COSTA, Iraci del Nero da. Vila Rica: mortalidade e morbidade (1799-1801). In: BUESCU, M. & PELÁES, C. M. (coord.). A moderna história econômica. Rio de Janeiro, APEC, 1976. p. 115-127.

políticos etc.) e análises conceituais 34

Resultado de pesquisa de doutorado finalizada em 1972. KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Cia das Letras, 2000.

121

Brasil

século XIX.

constitui como uma dimensão de

morbidade (1799-1801)

no


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

sobre

as

informações

fonte

ainda, aos diversos grupos sociais,

utilizada, incluindo as doenças e

econômicos, étnicos etc. existentes

causas

em

de

morte,

da

não

foram

consideradas pelo autor. Observa-se,

histórica

naquele

período

Mary

realizados no

e

outros

empreendeu

escravos urbanos no Rio de Janeiro.

das estruturas socioeconômicas.

este

Karasch

esferas do cotidiano de vida dos

abordagem direcionada para o exame

enfoque,

e

minucioso estudo sobre diferentes

Brasil,

Independentemente

localidade

contexto.

assim como em outros estudos da demografia

determinada

Nesta deste

pesquisa,

realizou

análise

específica sobre a mortalidade dos

estudos

escravos,

preocupando-se

em

realizados por Costa36 são de extrema

resgatar aspectos que indicassem as

relevância por fornecerem noções

possibilidades sociais e econômicas

metodológicas de trabalho sobre os

em vida – tomadas como condições

dados

por

de vida - daquela população. Utilizou

demonstrar a importância de que as

como fonte registros de óbitos da

informações contidas nos registros

Santa Casa de Misericórdia do Rio de

sobre

Janeiro,

de

óbitos

e,

ainda,

determinado

populacional,

grupo

devem

ser

analisando

de

forma

interligada doenças, causas de morte,

consideradas em relação aos demais

etnicidade,

dados

estudada

liberdade e trabalho dos indivíduos.

populacional,

Identificou que as atividades de

demográfico,

trabalho desenvolvidas, os alimentos,

coeficientes de mortalidade etc), e

o local de moradia, os castigos

impostos

COSTA, Iraci del Nero. Vila Rica: população (1719-1826). Ensaios Econômicos, 1. São Paulo, IPE-USP, 1979. ______. Populações mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos

outros

da

(nascimentos, crescimento

população total

35 COSTA, Iraci del Nero da. Op. cit. p. 125. 36

pelos fatores,

condição

senhores, impactavam

de

entre de

mineiros no alvorecer do século XIX. São Paulo, IPE-USP, 1981. 335 p.

122

idade,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

maneira decisiva sobre a mortalidade

sobre

da população escrava urbana do Rio

pesquisados37. Observa-se assim, uma

de Janeiro.

estreita relação de diálogo entre a

Tornou-se campo

não

referência somente

da

e

doenças.

temas

história

social

e

as

suas

abordagens, que se desenvolviam e se modificavam naquelas décadas.

metodologias de classificação das morte

e

o arcabouço teórico e metodológico

pela

mas também pela elaboração de

de

problema

pesquisa empreendida por Karasch e

no

profundidade analítica sobre o tema,

causas

o

A

Certamente, oportunizou

perpassa

estatístico-

condicionantes socioeconômicas que

descritiva das causas de morte. Os

envolviam as doenças dos escravos.

dados são explorados sob diversas

No entanto, nota-se que a análise

esferas: social, cultural e econômica,

empregada pela autora sobre os

procurando trazer não somente a

dados de mortalidade também foi

visão da medicina ou dos senhores

fortemente

conduzida

de escravos do período, mas também,

abordagem

estatístico-descritiva,

a da população escrava.

comum nos estudos relacionados à

análise

das

pela

demografia histórica, quanto tratam

Tal como a autora descreve no

do tema38. Ligado a esta abordagem,

prefácio da edição brasileira de 2000,

observa-se que não foram realizadas

a primeira versão da pesquisa (1972)

problematizações sobre as descrições

não trazia toda a complexidade acima

das doenças e causas de morte

resumida. A construção da “versão

encontradas na fonte e os seus reais

completa” da pesquisa, se daria

imersa aos debates intelectuais das

37 KARASCH, Mary. Op. cit. p. II. 38 A

autora realizou a análise sobre diversas tabelas que expunham os dados trabalhados sob forma quantificada.

décadas de 1960, 70 e 80, marcada definitivamente por olhar cultural 123

além

olhar

pesquisa é marcada por interesse que a

ir

tal


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

significados dentro daquele contexto

Staudt

específico39.

sociedade escravista porto alegrense

Estudos

recentes

aprofundando

de saúde e morte dos escravos,

a

aprimorando

e

de

das

trabalho,

41

, tendo como

fonte

os

registros

paroquiais de óbitos42 . os

senhores

No

exigindo dos escravos mais do que

cativos

decorrer

interrogou-se

podem, cometem homicídio”: vida e

fragilidades

nos

do

sobre encontradas

texto diversas naquela

fonte, sendo a mais importante, de

oitocentos através dos registros de óbito

acordo com o objetivo aqui proposto,

(Porto Alegre/RS) 40 , Paulo Roberto

a incerteza quanto aos diagnósticos

das causas de morte mencionados na

39 A pesquisadora Diana Maul de Carvalho, ao debruçar-­‐se sobre a obra de Karasch em anos recentes, realizaria algumas críticas neste sentido, mais detidamente, sobre a vinculação entre tuberculose, escravos e a cidade do Rio de Janeiro. Ver: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; SANTA, Marcos Roma. O método comparativo em história das doenças. In: NASCIMENTO, D. R.; CARVALHO, D. M.; MARQUES, R. (orgs.). Uma história brasileira das doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 23. 40 MOREIRA, Paulo Roberto S. “Portanto, os senhores exigindo dos escravos mais do que podem, cometem homicídio”: vida e morte de indivíduos cativos nos oitocentos através dos

fonte, por tantas vezes descritos de registros de óbito (Porto Alegre/RS). Espaço Plural, nº 22, 2010. 41 Em Karasch ao realizar abordagem para além dos aspectos socioeconômicos. Em ambos por empregar o uso da metodologia estatístico-­‐ descritiva ao examinar os dados de óbitos. Além disso, por utilizar os métodos de sistematização das doenças e causas de morte por grupos, tal como realizado pelos dois autores.

124

vida

principal

registros de óbitos.

indivíduos

condições

Karasch e Costa

oportunizando novo olhar para os

de

reflexo

espaço e tempo. Inspirou-se em

não tratadas por Karasch e Costa,

morte

como

que envolvia os indivíduos naquele

fragilidades antes não percebidas ou

“Portanto,

visualizando-as

considerando a conjuntura específica

metodologias e teorias, detectando

Em

a

sob olhar que privilegia as condições

problematização das doenças e suas concepções,

investigou

da primeira metade do século XIX

vêm

aprofundando a exploração sobre o tema,

Moreira


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

forma sucinta, não padronizada ou genérica

43

.

Aprofundando

pelo autor sobre a fonte utilizada

esta

que, sistematicamente, seguirá para a

questão, observa-se outro problema,

maior

que direciona a atenção para o

realmente significavam as doenças e

discurso médico do período que, de

causas de morte identificadas nos

acordo com Moreira: “[...] misturava,

documentos analisados. Tal crítica é

sem constrangimento algum, ciência e

estabelecida sob olhar que privilegia

crítica

a agência dos indivíduos imersos em

comportamental,

moral

e

religião. Evidentemente que tais ideias eram

compartilhadas

contemporâneos,

caso

por contrário

problematização

do

que

seu complexo contexto social.

seus

Em linha de pesquisa muito

os

semelhante, Kaori Kodama et al.45, a

médicos seriam ridicularizados como

partir

delirantes (o que em muitos casos

de

análise

sociodemográfico

ocorreu)” 44.

do dos

perfil óbitos

conduzida por meio dos registros da

É essencial olhar com cuidado

Santa Casa de Misericórdia do Rio de

para este fator no sentido de que este

Janeiro,

discurso poderia se tornar aspecto

grande epidemia de cólera ocorrida

fundamental para a atribuição da

no

causa de morte no registro do óbito.

remontando aspectos característicos

Verifica-se intensa crítica realizada

do universo de vida dos escravos

urbanos, em período posterior ao

Assentamentos de óbitos dos escravos falecidos da Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, 1820 e 1858. 43 Também são apontadas como fragilidades: a heterogeneidade das anotações, pois, conforme o autor, “parecem estar sob o absoluto capricho dos párocos”; na idade, o problema se daria por ser definida mais pela aparência do indivíduo, as vezes indicando-­‐o como muito mais velho (aparência fragilizada pelas condições de vida) do que realmente era; a problemática que envolve a identificação pela cor e, ainda, confundida com a origem dos indivíduos. Ibidem. 42

de

Janeiro

na

primeira

(1855-1856),

final do tráfico negreiro. A análise, conduzida

pela

abordagem

estatístico-descritiva, também atenta 44

Ibid. p. 87. KODAMA, Kaori; PIMENTA, Tania Salgado; BASTOS, Francisco Inácio; BELLIDO, Jaime Gregorio. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma 45

125

Rio

deter-se-ão


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

para a parte conceitual que envolve

parte

da

realidade

vivida

pelos

os óbitos.

escravos e pobres do período: as condições de trabalho, a exposição ao

Os autores aprofundaram o

clima quente e úmido, as habitações

debate sobre o discurso médico no

em

que toca às concepções e ocorrência

locais

insalubres

e

de

alta

concentração humana, alimentação

de determinadas doenças, indicadas

de má qualidade e diversas outras

como “doenças de negros”. Tratando

privações. Porém, tal realidade não

especificamente do cólera, também

se resumia a estas situações. De

fazendo uso de relatórios e teses

acordo com aquele olhar médico, a

médicas, destacaram o imbricamento

falta de higiene voltava-se mais para

entre epidemia, condições de vida e

uma questão de escolha daquela

preceitos morais médicos do período.

população do que pela falta das

De acordo com estes documentos, a

condições materiais, envolvendo uma

maior parte dos acometidos pelas

série de “costumes viciosos”, tais

doenças eram “os pretos, os homens

como “excessos e abusos” praticados

de cor”. Como razão para justificar o

de forma constante, que estariam

fato, os médicos destacavam as duras

vinculados ao modo de viver dos

condições de trabalho as quais os

negros47.

“pretos” estavam submetidos, em conjunto do “desprezo” desta parte

Em

sentido

semelhante

da população para com os preceitos

destacam-se os trabalhos de Alisson

básicos de higiene46.

Eugênio

Muitas

das

causas

especificadas

pelos

médicos

e André Nogueira

49

.

47

Ibidem. p. 63. Cabe indicar que todo este discurso estaria focado em prolongar a vida dos escravos, mas não em denunciar o sistema escravista em si. 48 EUGÊNIO, Alisson. As doenças de escravos como problema médico em Minas Gerais no final do Século das Luzes. Varia História, Belo Horizonte, n.23, jul/ 2000. p.154-163. 49 NOGUEIRA, André. Universos coloniais e 'enfermidades dos negros' pelos cirurgiões régios

analisados exemplificavam, de fato, análise preliminar. In: História, Ciência, Saúde – Manguinhos. v. 19, supl. dez. 2012. 46 Ibidem. p. 62.

126

48


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Ambos os autores têm por objetivo analisar

como

último

fator,

destacam-se as relações estabelecidas

negros” eram concebidas e nomeadas

pelo discurso médico com as doenças

no

Jean

venéreas, moralidade e depreciação

intitulado

dos negros, entrando em jogo, para

Observações sobre as enfermidades dos

além da cor da pele, diferenças

negros, suas causas, seus tratamentos, e

anatômicas, que se demonstrariam

os meios de as prevenir.

como

Barthelemy

do

Dazille

“doenças

este

dos

trabalho

as

Sobre

médico 50

,

fatores

de

predisposição

àquelas doenças. Sob este ponto de

Nogueira indica que, conforme

vista,

a obra de Dazille, seriam três os

organismos

brancos

fatores que afetavam a saúde dos

de

funcionariam

negros de

e

modo

diferenciado e, de acordo com as

negros: 1: características naturais do

suas distinções, estariam mais ou

ambiente, um tanto especificadas,

menos propensos a determinados

considerando também os humores e

vícios ou doenças.

miasmas 51 ; 2: condições de vida e trabalho, pensando na atuação do

O aprofundamento da análise

escravo e doenças explicadas pela

levou Nogueira, a partir das ideias de

condição de cativo52; 3: traços inatos

Charles Rosemberg54, a refletir sobre

de seus corpos e personalidade,

o conceito de doença e a sua

sendo três as características inatas:

complexidade para a história, o que é

libertinagem, preguiça, alcoolismo53.

de vital importância para a discussão

em pauta:

Dazille e Vieira de Carvalho. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 19, p. 179-196, 2012. 50 DAZILLE, Jean Barthelemy. Observações sobre as enfermidades dos negros, suas causas, seus tratamentos, e os meios de as prevenir. Trad. Antônio José Vieira de Carvalho. Lisboa: Tipografia Arco do Cego, 1801. s/p. 51 Estabelecendo vínculo direto entre ambiente e doença. NOGUEIRA, André. Op. cit. p. 9. 52 Ibid. p. 10. 53 Ibidem.

Contudo, como historiadores, somos desafiados a pensar nas doenças e suas possibilidades de explicação e tratamento não de forma dada e/ou naturalizada, mas como construção

54

ROSEMBERG, Charles. Framing disese: Illness, society and history. In: Explanning epidemics and others studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 305;

127


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

de

plural de uma época determinada e, por isso, possuidora de especificidades e meios de ação que lhes são próprios e legítimos e, por conseguinte, socialmente aceitos no âmbito das crenças e das práticas dos indivíduos circunscritos num dado contexto55.

Observa-se, pesquisas

a

trazidas,

partir

das

que

esta

forma

intercruzada

com

a

mortalidade e doenças dos escravos, utilizando-se de registros de óbitos paroquiais, inventários post-mortem e

relatos

médicos,

procurando

compreender as doenças que faziam parte da vida nas senzalas e como a

concepção social, cultural, política,

morte e as doenças eram vividas e

moral e histórica sobre doença,

experimentadas pelos escravos.

analisada como problema e conceito, ligando-a a determinado contexto

A autora objetivou quebrar

específico, aos seus agentes e à

com concepções estereotipadas sobre

conformação das estruturas sociais

o tráfico atlântico de escravos, que

das quais faz parte, dialoga de

em

maneira muito afinada com as ideias

período, se constituía como principal

e preocupações dos estudos ligados à

propagador de doenças e epidemias.

história social produzidos nas últimas

Visto dessa forma, o tráfico de

décadas.

escravos:

De

outra

maneira,

doenças: notas para o estudo das dimensões da diáspora africana no 56

analisou a escravidão no

Brasil, entre os anos de 1820 e 1831, 55

NOGUEIRA, André. Op. cit. p. 5. BARBOSA, Keith. Escravidão, mortalidade e doenças: notas para o estudo das dimensões da diáspora africana no Brasil. XIX Encontro Regional de História, poder, violência e exclusão. ANPUH/ SP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. 56

128

visões

médicas

do

“como agente da migração de doenças e patologias” desqualifica a experiência africana e escravas na diáspora tanto como agentes de circulação de idéias, saberes, cosmologias e expectativas diante das doenças, mortes e práticas terapêuticas decorrentes. Pensamos que a ideia do tráfico atlântico como propagador de doenças e epidemias, incidindo sobre padrões da mortalidade escrava deve ser matizado, considerando outras variáveis das sociabilidades e das ideologias migratórias, assim como os seus desdobramentos. Não resta dúvida que o impacto migratório forçado trouxe consequências conjunturais e demográficas, porém, é

Keith

Barbosa em Escravidão, mortalidade e

Brasil

algumas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

cidade59. Tal questionamento fez com

fundamental dar relevo aos aspectos ambientais, as condições sanitárias, os regimes de trabalho, as dietas alimentares, os vestuários, entre outros, para explicar as dinâmicas de morbidade e mortalidade numa sociedade escravista57.

que Barbosa utilizasse o método comparativo 60 , detendo-se sobre a dimensão espacial.

Desse modo, a autora enfocou

Assim,

examinou

a

o contexto e diversas esferas da vida

mortalidade entre duas freguesias

da população escrava, evitando na

distintas do Rio de Janeiro, uma

pesquisa historiográfica a reprodução

situada em zona rural (Jacarepaguá) e

do pensamento estigmatizado de que

outra

a ocorrência de doenças e epidemias

(Candelária). Verificou que os dois

no Brasil seria resultado da origem

espaços,

africana dos escravos 58 . Destaca-se,

sanitárias, possuíam similitudes, tal

ideia esta que muito comum na

como a maior incidência de doenças

literatura médica do século XIX.

infecto-parasitárias: varíola

Sob outro ponto de vista,

realizadas

por

bexigas,

diferenças

tuberculose, assim

como

diferentemente

da

In: Encontro de Regional de História, 12, 2006. Rio de Janeiro. Anais. 59 BARBOSA, Keith. Op. cit. p. 3. 60 Conforme Nascimento e Santa: “trata-se, na verdade, de se pensar a comparação não como uma estratégia a favor da máxima generalização teórica ou, pelo contrário, da afirmação do caráter exclusivamente individual do fenômeno histórico, e sim de se trabalhar simultânea e criticamente com o geral e o particular, com os modelos e suas variantes concretas, de modo a se apreender a dinâmica de um determinado modelo histórico”. NASCIMENTO, Dilene; SANTA, Marcos Roma. Op. cit. p. 20. Ver também: NADALIN, Sérgio Odilon. A demografia numa perspectiva histórica. Belo Horizonte, 1994. Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Unicamp. Disponível em http://www.abep.org.br. Acesso em 01 set. 2011.

cidades em relação às zonas rurais, o que se daria, principalmente, pela dos

escravos ao ambiente mórbido da 57 Idem. p. 3. 58 Visão

que também foi duramente criticada por Carvalho. CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas?

129

das

cidade

escrava seria maior nas grandes

adaptação

e

da

conclusão de Karasch em relação ao

afirmativa de que a mortalidade

de

apesar

Contudo,

Mary

Karasch, especificamente, sobre a

dificuldade

centro

também identificado por Karasch.

Barbosa interrogou-se sobre algumas conclusões

no


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

efeito do estado sanitário da cidade

homens em sociedade, permeado por

que impactaria drasticamente sobre a

aspectos

mortalidade,

ambientais.

além

constatou

deste

que

aspecto,

para

eram

socioeconômicos

e

as

condições sociais de vida, trabalho e moradia,

aliadas

às

doenças,

as

Reflexões em torno deste panorama

variáveis responsáveis pela alta taxa

O primeiro ponto de atenção,

de mortalidade entre os escravos. As condições

sanitárias

da

tal como proposto pelos Annales,

cidade

refere-se à importância de identificar

constituir-se-iam como mais um fator

as

associado a outros tantos para o

fragilidades

sobre as fontes e problematizar as

comparativa adotada pela autora não

suas informações, tomando assim o

foi utilizada para analisar as doenças

cuidado, tão preciso na História, de

(e ambiente) dos escravos em relação

não

aos demais grupos sociais existentes.

se

tomar

como

É necessário entender a fonte como

ainda será explorada posteriormente,

o

nota-se que a autora, ao retomar e

presente

reformular

dentro

de

intermédio e do

entre

as

suas

seu

passado

contexto

construção.

das concepções teóricas da história

62

como

horizonte

produzido

como

um

conceito,

historicamente

pelos

61

BARBOSA, Keith. Op. cit. p. 7.

130

Partindo

de desta

Inspirando-se em Georges Duby, ao tratar sobre a relação historiador e fonte: “No le basta tampoco ir más allá del contenido de tales textos, y examinar su aspecto formal, com la finalidade de [...] intentar alcanzar la verdadera relación con el mundo de aquellos que compusieron y utilizaron dichos textos”. DUBY, Georges. La historia social como sínteses. In: CARDOSO, Ciro. F. e BRIGNOLI, Héctor. Perspectivas de la

a

problematização e o entendimento de doença

e

informações

vertente demográfica, situa-se dentro

tendo

verdades

indubitáveis, os dados observados 62 .

Realizada esta ressalva que

social,

dos

cada vez mais, aprofundar a crítica

principal61. Entretanto, a perspectiva

problemas

limitações

registros de óbitos, sendo preciso,

aumento da mortalidade, mas não o

antigos

e


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

advertência que vale para a quase

segundo, por tratarem de ponto

totalidade

que

fundamental para pensar sobre como

constam nos registros de óbitos,

médicos, funcionários do Estado ou

verifica-se de extrema importância a

de outras instituições (tal como as

retomada

Santas Casas) e, até mesmo, párocos,

de

do

informações

entendimento

de

doença (ou causa de morte) como um

definiam

conceito

diagnóstico da doença ou causa de

e

o

ferramenta

para

sociedade

ou

seu

uso

como

compreender grupo

de

o

morte para indivíduos membros de

social

grupos populacionais estigmatizados. Pode-se,

análises

registravam

a

investigado. As

e/ou

ainda,

inverter

o

Moreira,

olhar e realizar outra interrogação: a

Kodama et al., Eugênio e Nogueira

partir da consciência de que dada

sobre o efeito moral do discurso

enfermidade

médico em relação às concepções das

maneira estigmatizada, quem seriam

doenças

os indivíduos diagnosticados com tal

possibilitam

importantes

avanços

vislumbrar sobre

questão.

Primeiramente,

agregarem

maior

era

concebida

de

esta

doença? Esta pergunta traz à tona

por

outras questões, aqui pensadas de

conhecimento

maneira

hipotética:

será

que

sobre as doenças do período, o que é

determinado indivíduo chegou ao

fundamental para qualquer análise

óbito,

histórico-social

determinada

sobre

causas

de

de

fato,

pela

doença

ação

da

descrita

na

morte, doenças e condições de vida,

fonte? Ou seria uma concepção

considerando a complexidade que

moral

envolvia os saberes da medicina, no

diagnóstico, de acordo com o corpo,

decorrer do século XIX

63

. Em

teria

influenciado

o

a fisionomia e posição social do

indivíduo?

historiografia contemporânea. Mexico, SEPSetentas, 1976. p. 95. 63 Dentre esta complexidade, ressalta-­‐se as diferentes teorias sobre as causas e ações das

Isso,

sem

falar

dos

doenças, o racismo científico que as permeavam, a luta entre curadores e médicos,

131

que


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

possíveis

erros

involuntários

de

na atualidade. Mas como ultrapassar

diagnóstico ocasionados por falta de

estas barreiras?

conhecimento por parte do médico

Paulo

ou responsável pelos registros. Mas

avançar

como ultrapassar estas barreiras?

em

apontados.

Quiçá seja impossível buscar

Moreira um Ao

concepções

morais

consegue

dos

sentidos

destacar do

as

discurso

mas,

médico (tais como sobre os vícios tão

considerando o papel do historiador

comuns entre os pobres e escravos) e as

de buscar a realidade que existe

incertezas em relação ao diagnóstico

intrínseca ao objeto de estudo, tal

contido

intuito deve ser, ao menos, tentado.

solução o “cruzamento de fontes”65, o

Dar-se conta das inconsistências das

que realiza de forma exímia e efetiva,

informações da fonte64 é de extrema

ao menos, como solução para a

importância e se constitui como o

verificação

primeiro passo na busca de avanços.

generalistas.

Do contrário, corre-se o risco de

observar o registro de óbito do

pesquisas

escravo “pardo Atanásio”, descrito

respostas

precisas,

atuais

diagnósticos indicar,

repetirem

inconsistentes

descrever

e

na

fonte,

propõe

de Por

como

diagnósticos exemplo,

ao

ao

como “por ferimentos”, em julho de

contabilizar

1877, investigou jornais e processos

determinadas doenças a indivíduos

crimes

específicos, reproduzindo, de certa

encontrando

forma, involuntariamente, discursos

Atanásio em jornal e processo crime,

ou até mesmo equívocos (como erros

onde se verificou que o escravo foi

de diagnósticos) do tempo estudado,

assassinado, por dois italianos66.

mesmo

período,

informações

sobre

Como se observa, trata-se de

entre outras questões. 64 Para além dos diagnósticos, pode-­‐se estender a questão para as informações em relação à determinação da cor dos indivíduos e outras constantes na fonte.

trabalho de pesquisa árduo, mas que

65 MOREIRA, Paulo Roberto S. Op. cit. p. 87.

132

do


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

oferece bons resultados para alguns

intrínsecos à fonte, tais como a

dos questionamentos aqui realizados.

descontinuidade

Verifica-se, assim, contribuições de

registro, as mudanças nos métodos

extrema importância possibilitadas

de

por pesquisas ligadas à história social

imprecisas69; e ainda, o problema de

e seu desenvolvimento como prática

diagnóstico atribuído mais por causas

historiográfica,

por

morais do que nosológicas. Sendo

meio da redução de escala de análise,

assim, como é possível chegar a um

do

quadro próximo da realidade?

uso

de

rompendo

identificadas

múltiplas com

fontes,

polarizações

os

estas, por sua vez, não afastadas da

processos

relacionados

estrutura social da qual faz parte e

e à

informações

que também à conforma67.

documentos,

informações

trâmites

legais

conformação

das

trazidas

nos

as

instituições

um

envolvidas e quem as registrava.

problema: como descobrir o real

Visa-se assim, entender o processo

diagnóstico para casos de morte em

de confecção da fonte, verificar como

que não houve envolvimento com as

as

esferas policial e judicial, tal como as

identificar

mortes não violentas ou que não

responsáveis legais pela criação dos

ganharam espaço em jornais, que

dados. Ou seja, não se trata somente

compõem mais de 99% dos óbitos

de entender e descrever a fonte

registrados

68

considera-se:

persiste

e

do

ser dado no sentido de pensar sobre

pela ação e experiência humana,

entanto,

diagnósticos

forma

Talvez o passo seguinte deva

quantitativas e qualitativas e da busca

No

da

obtidas,

eram

os

68 Conforme pesquisa que está sendo realizada

problemas

pelo autor, ao tomar como referência mais de 30.000 registros de óbitos. 69 Problemas também apontados por Dina Czeresnia: COSTA, Dina Czeresnia. Comentários sobre a tendência secular da tuberculose. Cad. Saúde Pública, Dez., vol.4, no.4, 1988. p.398-­‐ 406.

66 Ibidem.

67 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 54.

133

quem

eram

? Nesta interrogação, os

informações


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

internamente,

mas

também

de

também envolvem micro contextos -,

capturar o contexto, os motivos da

ainda são raros os estudos existentes.

sua produção, os atores e instituições envolvidos,

realizando

a

O objetivo deste esforço, que

crítica

possibilita compreender a fonte e as

completa da fonte 70 . Seguindo os caminhos

traçados

pela

suas

história

ser

considerados

(como

nas

ponto de vista ambicioso (e que conta com o elemento sorte), procurar

abordagens

resgatar quem eram os indivíduos

Rankianas 71 ). Tal procedimento não

envolvidos

se demonstra como novidade no

72

das

envolviam

instituições

que

com

trâmites

os

médico

dos

responsável

pelo

laudo,

estudando aspectos em torno da sua

se

formação

e

concepções

sobre

doenças e sociedade, seja possível

burocráticos sobre a morte - que

obter pistas em relação às ideias que

70

Inspirando-se em Georges Duby, ao tratar sobre a relação historiador e fonte: “No le basta tampoco ir más allá del contenido de tales textos, y examinar su aspecto formal, com la finalidade de [...] intentar alcanzar la verdadera relación con el mundo de aquellos que compusieron y utilizaron dichos textos”. DUBY, Georges. La historia social como sínteses. In: CARDOSO, Ciro. F. e BRIGNOLI, Héctor. Perspectivas de la historiografia contemporânea. Mexico, SEPSetentas, 1976. p. 95. 71 CASTRO, Hebe. Op. Cit. Ibidem. p. 45. 72 Neste ponto, observa-­‐se como exemplo, o quanto os processos crimes se tornaram mais valiosos aos historiadores a partir do conhecimento dos detalhes da fonte e da sua construção.

permearam

a

determinado

diagnóstico.

confecção

de

Trata-se

assim de resgatar a atuação humana que conformou e fez parte daquele cenário. Logo, conforme sugerido e realizado

por

pesquisadores,

Moreira a

e

utilização

outros e

o

cruzamento de diversas fontes são procedimentos esta busca. 134

conformação

possível identificação individual do

,

porém, para os registros de óbitos e o papel

na

registros. Desse modo, a partir da

mundo historiográfico e não se limita aos documentos aqui tratados

forma

para, num segundo momento, sob

como

portadores, isoladamente, da verdade histórica

de

qualitativa, pode ser o primeiro passo

social, as fontes, os documentos, não podem

informações

fundamentais

para


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Como último ponto de análise,

quando uma epidemia ocorre por

retoma-se a questão trazida por

doença não endêmica de dado local73.

Barbosa que se refere ao uso do

Porém,

método comparativo nos estudos

para

demográficas, das

que

mortalidade do Brasil no século XIX

etc.

enfocaram os escravos ou somente

análise ao mesmo tempo geral e

73

Em pesquisa realizada por este autor, investigou-se que taxas de mortalidade poderiam ser consideradas dentro de um padrão específico para Porto Alegre, no século XIX. Para isso, foi necessário recorrer ao método comparativo, seja entre diferentes períodos no espaço estudado ou em relação a outras cidades do período. OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). 2012. 293f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [2012]. p. 192. 74 É importante salientar que, ainda que poucos, existem estudos que realizaram a análise conjunta e comparativa da mortalidade de diversos grupos sociais, sendo alguns deles: KODAMA, Kaori. Africanos no Rio de Janeiro na Epidemia de Cólera, 1855-­‐1856. In 6º Encontro Escravidão e Liberdade. Florianópolis, 2013. Kodama, Kaori; Pimenta, Tânia Salgado; Bastos, Francisco I.; Bellido, Jaime G. “Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-­‐1856): uma análise preliminar”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.19, supl., dez. 2012. FALCI, M. B. K. A mortalidade por causa e grupos sociais no Rio de Janeiro. Revista do Mestrado em História da Uss, Vassoura, 1998.

específica, de tal maneira que se permite verificar padrões normais e anormais da mortalidade, ocorrências de epidemias, doenças endêmicas etc. tudo isto, dependendo do quanto dados

são

principalmente, realizadas

das

pelo

conseguinte,

aprofundados

a

e,

perguntas

pesquisador. comparação

Por é

importante tanto sob o ponto de vista espacial, conforme trazido, quando temporal, por exemplo, para observar

135

mais

exceções74, muitos dos estudos sobre

Esta forma de investigação possibilita

os

o

analisados. Conforme verificado, com

mortalidade, crescimento ou queda populacional

elemento,

o indivíduo, ou melhor, os indivíduos

fenômenos sociais como natalidade,

contingente

outro

importante, dentro da história social:

visam

compreender a dinâmica que envolve

do

da

temporal, é necessário voltar o olhar

tal método é largamente utilizado em

principalmente

além

importância das esferas espacial e

sobre mortalidade. Cabe alertar que

pesquisas

para


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

um ou outro grupo social. Não se

atingem determinada população ou

trata

grupo

aqui

discussão

de de

retomar

a

reivindicar

velha estudos

[...] a comparação pode contribuir tanto para o rompimento com a abstração empobrecedora da pesquisa dos fenômenos históricos quanto para a descrição puramente monográfica que, por privilegiar o único, o individual, corre muitas vezes o risco de se reduzir à condição de um simples relato de fatos [...] Por atentar para as peculiaridades estruturais, sem menosprezar a pesquisa dos fatos históricos, o método comparativo parece prestar-se especialmente bem ao objetivo da ciência histórica hoje: explicar e interpretar as trajetórias das sociedades humanas75.

se indicar para a necessidade de buscar um caminho dinâmico que viabilize resgatar, mais do que já realizaram os estudos existentes, a que

sentido,

comparativo:

outro. Aliás, talvez o contrário: quer-

social

Neste

destacam-se os benefícios do método

voltados para um grupo social ou

complexidade

social.

liga

doenças, morte e a posição social, econômica, jurídica e cultural dos indivíduos. Deve-se considerar que, em

E estas considerações podem

uma determinada sociedade, há uma

ser trazidas para os estudos sobre

multiplicidade social, onde cada um

mortalidade.

dos grupos que a compõe coexiste

pesquisador defina o seu objeto, os

em relação aos demais, isso, sem

seus

considerar as diversidades internas

manter a visão do todo em que estão

de

É

indivíduos,

inevitável

porém,

que

o

deve-se

específico.

Esta

incluídos e, ainda, procurar resgatar

estabelecida

pela

o que pode ser considerado como

coexistência, se dá no plano das

específico ou não para determinado

diferenças

grupo, inclusive, quando se trata da

um

grupo

multiplicidade,

existentes

entre

os

mortalidade.

diversos grupos que compõe uma dada sociedade. Mesmo que esta afirmativa possa parecer um tanto

básica, deve ser considerada ao se analisar

fenômenos

sociais

NASCIMENTO, Dilene Raimundo; SANTA, Marcos Roma. Op. cit. p. 23. 75

que 136


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

importância do resgate das análises

Conclusão Sintetizando

as

demográficas

questões

propostos,

principal

fim

da

resgata-se história

o

nas

social

quanto

comportamento

ao

últimas

décadas

após

o

e de abordagem micro), de forma aliada às teorias, abordagens e aos

específicos e

aparato

crescimento de pesquisas qualitativas

descrito por Hebe Castro: “formular históricos

seu

suas preocupações 77 (tão esquecidas

quando do seu surgimento, assim

problemas

do

metodológico (e também teórico) e

problematizadas de acordo com os objetivos

e

métodos recentes, utilizados pelos

às

pesquisadores

relações entre os diversos grupos

ligados

à

história

social, que quebraram a ultrapassada

sociais”76. Trata-se de um esforço no

dualidade entre as análises, expressas

sentido de compreender de modo

pelas bipolarização das abordagens

aprofundado os múltiplos aspectos

quantitativa e qualitativa.

que constituem as especificidades do mundo social e dos seus diversos

Assim observado, há de se

grupos populacionais, sobre as suas

referenciar artigo de Caio Prado

condições

trabalho,

Júnior que examinou esta dualidade,

doenças e causas de morte, sejam nas

seus significados e suas relações

cidades, zonas rurais, em diferentes

como métodos historiográficos, já na

tempos históricos, não de forma

década de 1970:

de

vida

e

É que não há nenhuma história “quantitativa” em oposição a outra dita

isolada, mas como parte de um conjunto social complexo.

77 Neste

sentido, é elucidativo verificar que a pesquisa empreendida por Costa, ainda na década de 1970, apesar de possuir várias limitações dentro dos aspectos aqui tratados e de priorizar somente aspectos socioeconômicos (isso sem desconsiderar o caráter pioneiro da obra), teve a preocupação de relacionar os principais grupos sociais que faziam parte da sociedade de Vila Rica na análise dos óbitos. COSTA, Iraci del Nero. Op. Cit. Ver, também: MARCÍLIO, Maria Luiza. Op. Cit.

Neste ínterim, a partir da observação

das

abordagens

empreendidas

autores

analisados,

pesquisas

e pelos

destaca-se

a

76 CASTRO, Hebe. Op. Cit. p. 48.

137


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

conduzir pesquisas por meio de uma

por contraste (como tinha que ser por uma questão de simetria linguística), “qualitativa”. Isso porque tanto a quantificação e a qualificação, imbricadas uma na outra, são apenas procedimentos conceptuais ou operações mentais do indivíduo pensante que é o homem78.

abordagem teórica e metodológica em detrimento de outras. Espera-se, pontos

Diante da trajetória da história

sobre os limites que cercam os

sem problematizá-las: é necessário

estudos sobre mortalidade e doenças

como

no Brasil do século XIX, bem como,

conceitos que estão ligados de forma

prosseguir para novas possibilidades

íntima com os agentes históricos,

de apreensão da realidade passada,

suas ações, experiências e contextos

compreendo a sociedade brasileira e

específicos: tem-se, assim, a história problema,

tal

seus agentes, as suas relações, dentro

como

das suas complexidades de espaço,

almejada, ainda no início do século XX,

por

Febvre.

Marc

Bloch

Neste

e

tempo e estruturas próprias, ou seja,

Lucien

inseridas

sentido,

nos

seus

específicos de produção.

consequentemente, torna-se também impensável analisar documentos e 78 PRADO JR, Caio. Op. cit. p. 10.

138

pela

cem anos de existência, avançar

óbitos, como verdades indubitáveis,

um

suscitadas

pela história social nos seus quase

como as contidas nos registros de

como

diversas

teorias e metodologias oportunizadas

tomar informações de fontes, tais

entendê-las

as

campo, de forma articulada com as

historiográfico não é mais permitido

e

e

os

pioneira e nova historiografia do

no atual cenário do conhecimento

analisá-las

levantados

contribuições

social aqui observada, verifica-se que

considerando

contextos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Referências BARBOSA, Keith. Escravidão, mortalidade e doenças: notas para o estudo das dimensões da diáspora africana no Brasil. XIX Encontro Regional de História, poder, violência e exclusão. ANPUH/ SP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. BARRETO, Maria Renilda Nery. Entre brancos e mestiços: o quotidiano do Hospital São Cristóvão na Bahia oitocentista. In: MONTEIRO, Yara Nogueira (org.). História da saúde: olhares e veredas. Instituto de Saúde, 2010. BASSANEZI, Maria Silvia Beozzo. Imigração e mortalidade na terra da Garoa. São Paulo, final do século XIX e primeiras décadas do século XX. XIX. Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, São Pedro/SP. 2014. BURKE, Peter. O surgimento da história Social. São Paulo: UNESP, 2002. CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: Encontro de Regional de História, 12, 2006. Rio de Janeiro. Anais. Disponível em: [http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Diana%20Maul%20 de%20Carvalho.pdf]. Acesso em: 20 fev. 2011 CASANOVA, Julían. La historia social y los historiadores. Barcelona: Crítica, 1997. CASTRO, Hebe. História Social. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teologia e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. COSTA, Dina Czeresnia. Comentários sobre a tendência secular da tuberculose. Cad. Saúde Pública, Dez., vol.4, no.4, 1988. p.398-406. COSTA, Iraci del Nero da. Vila Rica: mortalidade e morbidade (1799-1801). In: BUESCU, M. & PELÁES, C. M. (coord.). A moderna história econômica. Rio de Janeiro, APEC, 1976. ______. Vila Rica: população (1719-1826). Ensaios Econômicos, 1. São Paulo, IPEUSP, 1979. ______. Populações mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos mineiros no alvorecer do século XIX. São Paulo, IPE-USP, 1981. DAZILLE, Jean Barthelemy. Observações sobre as enfermidades dos negros, suas causas, seus tratamentos, e os meios de as prevenir.Trad. Antônio José Vieira de Carvalho. Lisboa: Tipografia Arco do Cego, 1801. s/p. DUBY, Georges. La historia social como sínteses. In: CARDOSO, Ciro. F. e BRIGNOLI, Héctor. Perspectivas de la historiografia contemporânea. Mexico, SEPSetentas, 1976 EUGÊNIO, Alisson. As doenças de escravos como problema médico em Minas Gerais no final do Século das Luzes. VariaHistória, Belo Horizonte, n.23, jul/ 2000. FALCI, M. B. K. A mortalidade por causa e grupos sociais no Rio de Janeiro. Revista do Mestrado em História da Uss, Vassouras, 1998. 139


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

HOBSBAWM, Eric. J. Da história social à história da sociedade. In Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. KODAMA, Kaori; PIMENTA, Tania Salgado; BASTOS, Francisco Inácio; BELLIDO, Jaime Gregorio. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise preliminar. In: História, Ciência, Saúde – Manguinhos. v. 19, supl. dez. 2012. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. MARCÍLIO. Maria Luiza. Demografia histórica: Orientações técnicas e metodológicas. 1. ed. São Paulo: Pioneira, 1977. ______. A cidade de São Paulo, povoamento e população: 1750-1850. São Paulo, Pioneira, 1974. ______. A demografia histórica brasileira nesse final de milênio. REBEP - Revista Brasileira de Estudos de População. V. 14, n. ½, 1997. MOREIRA, Paulo Roberto S. “Portanto, os senhores exigindo dos escravos mais do que podem, cometem homicídio”: vida e morte de indivíduos cativos nos oitocentos através dos registros de óbito (Porto Alegre/RS). Espaço Plural, nº 22, 2010. NADALIN, Sérgio Odilon. A demografia numa perspectiva histórica. Belo Horizonte, 1994. Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Unicamp. Disponível em http://www.abep.org.br. Acesso em 01 set. 2011. NASCIMENTO, Dilene Raimundo; SANTA, Marcos Roma. O método comparativo em história das doenças. In: NASCIMENTO, D. R.; CARVALHO, D. M.; MARQUES, R. (orgs.). Uma história brasileira das doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. NOGUEIRA, André. Universos coloniais e 'enfermidades dos negros' pelos cirurgiões régios Dazille e Vieira de Carvalho. História, Ciências, SaúdeManguinhos (Impresso), v. 19, p. 179-196, 2012. OLIVEIRA, Daniel. Morte e vida feminina: mulheres pobres, condições de saúde e medicina da mulher na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1880-1900). 2012. 293f. Dissertação (Mestrado em História) – IFCH, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [2012]. ______. Registros de mortes, traços de vidas: livros de óbitos e o Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre como fonte para a história social no final do século XIX. V Encontro Estadual de História e Saúde. ANPUH/RS. Santa Maria, 21 e 22 de nov. 2013. PETERSEN, Silvia e LOVATO, Bárbara. Ciência moderna e conhecimento histórico. In: Introdução ao estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: Edição das autoras/Gráfica das UFRGS, 2013. PORTO, Ângela (org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. CD-ROM, Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, 2007.

140


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

PRADO JR, Caio. História quantitativa e método da historiografia. São Paulo, Debate e Crítica (6), jul. 1975. REIS, João José. A morte e uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 357 p. REIS, Thiago de Souza. Morte e escravidão: padrões de morte da população escrava de Vassouras, 1865-1888. 2009. 137 f. Dissertação (Mestrado em História). Centro de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro [2009]. ROSEMBERG, Charles. Framing disese: Illness, society and history. In: Explanning epidemics and others studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. SANTOS, Cândido dos. Nota sobre a mortalidade infantil nos séculos XVIII e XIX. Humanidades. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 2, Abril de 1982, p. 47-[75]. VIANA, Iamara da Silva. Morte escrava e relações de poder em Vassouras (18401880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos. 2009. 167 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo UERJ, [2009].

141


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Richard: una etnografía de la migración interna, ilegalidad y la violencia urbana en la ciudad de Quito-Ecuador Richard: Uma Etnografia da Migração Interna, Ilegalidade e Violência Urbana na Cidade de Quito, Equador

Richard: Ethnography of Internal Migration, Illegality and Violence in the City of Quito, Ecuador. William Alvarez 1 Resumen En este artículo analizo el relato de vida de Richard, un joven afrodescendiente que migró a la ciudad de Quito, Ecuador, escapando de la violencia y pobreza que vivía en la provincia de Esmeraldas. También describo las circunstancia que forjaron su migración haciendo un resumen de su trayectoria personal, económica y urbana, enfatizando principalmente las múltiples estrategias de supervivencia que tuvo él que afrontar hasta conseguir una mediana estabilidad económica. El principal objetivo de este artículo es describir la trayectoria y cotidianidad del sufrimiento, subalternidad y violencia estructural encarnada en un joven afrodescendiente migrante. Palabras clave: Estrategia de Supervivencia, Violencia, Ilegalidad, Informalidad.

Resumo Nesse artigo analiso o relato de vida de Richard, um jovem afrodescendente que migrou para a cidade de Quito, Equador, escapando da violência e pobreza que vivia na província de Esmeraldas. Também descrevo as circunstâncias que forjaram sua migração, fazendo um resumo de sua trajetória pessoal, econômica e urbana, enfatizando principalmente as múltiplas estratégias de sobrevivência enfrentadas por ele para conseguir uma razoável estabilidade econômica. O principal objetivo desse artigo é descrever a trajetória e cotidiano de sofrimento, subalternidade e violência estrutural encarnada em um jovem afrodescendente migrante.

1

Graduado en sociología por la Universidad del Atlántico (Colombia), Maestría en Antropología por FLACSO-Quito (Ecuador), Doctorante en Sociología por la Universidad Federal de São Carlos (UFSCAR)/ São Paulo (Brasil). Williamlogia@gmail.com

142


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Palavras-chave: Informalidade.

Estratégia

de

sobrevivência,

Violência,

Ilegalidade,

Abstract In this article I analyze the life story of Richard, a young afro descendant who migrated to the city of Quito, Ecuador, to escape from the violence and poverty experienced in the province of Esmeraldas. I also describe the circumstances that led to his migration, summarizing his personal, economic and urban trajectory, and emphasizing the multiple survival strategies that he had to face to achieve reasonable economic stability. The main objective of this article is to describe the trajectory and daily life of suffering, subordination and structural violence embodied in a young afro descendant migrant. Palavras-chave: Survival strategy, Violence, Illegality, Informality. observación participante. Durante un

Introducción El

artículo

que

presento

año seguí de cerca la vida de

a

microtraficantes

continuación, es el resultado de un

ellos la violencia de las calles, el

realicé para obtener mi título de en

antropología

1

.

consumidores

callejizados de droga, viviendo con

trabajo mucho más extenso que

maestría

y

racismo,

La

sus

estrategias

de

supervivencia, la criminalidad y el

investigación se realizó en Quito,

consumo compulsivo de pasta base

Ecuador, en un barrio ubicado en el

de cocaína2.

centro histórico de la ciudad. El método que usé para recopilar datos

El

barrio

donde

hice

la

fue la descripción etnográfica y la

investigación se llama El Paraíso,

1 De

forma resumida, la hipótesis principal de mi tesis, era el de explicar; cómo un proceso de violencia estructural (Galtung, 1969) y segregación étnico/racial condicionado por una administración de población (Guerrero, 2010) blanca/mestiza durante el siglo XIX y mediados del XX, produciría en las minorías étnicas, especialmente afroecuatorianos, una tendencia fuerte hacia oficios y estrategias de supervivencia por medio de prácticas económicas informales e ilegales.

2 Es

una droga de bajo costo similar al crack elaborada con residuos de cocaína y procesada con ácido sulfúrico y queroseno. En ocasiones suele mezclarse con cloroformo, éter o carbonato de potasio, entre otras cosas. Es el residuo o la basura restante del proceso de elaboración de cocaína. En Colombia se le conoce con el nombre de bazuco, en Ecuador como polvo, y en la Argentina como paco. Para Este trabajo he optado por denominar esta droga como pasta base/polvo.

143


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

pero de paraíso tiene muy poco, de

abrió para mí las puertas del mundo

hecho, he puesto este nombre para

ilícito, criminal y violento de las

no dar pistas a las autoridades de la

calles de El Paraíso. Su ayuda

ubicación de los interlocutores 3 que

también me brindó la seguridad que

hacen parte de este texto. Además, el

necesitaba para deambular las calles

nombre del barrio no lo he inventado

del

yo, lo extraje del titular de un

relacionarme con microtraficantes 6 ,

periódico

conocer

local

que

decía

lo

barrio

tarde

de

cerca

en

sus

la

noche,

prácticas

siguiente: El (nombre original del

ilegales, y especialmente, conocer las

barrio), es el paraíso de la droga. Y

lógicas de distribución y venta de

sobre esta fama; los consumidores,

drogas al interior de El Paraíso.

usuarios y compradores de pasta

Además

base/polvo de toda clase social que

él,

conocí

a

muchos otros jóvenes inmigrantes de

conocí durante mi estadía en Quito,

la Costa pacífica ecuatoriana. Su

no tienen ninguna duda.

estilo

de

vida,

solidaridad

y

Cuando me mudé al barrio en

afrodescendientes y migrantes (en su mayoría colombianos y peruanos). 6 Sobre este aspecto, las relaciones sociales no fluyen de la misma forma a pesar de contar con gran aceptación dentro de un grupo determinado. Metodológicamente tuve que transformar la forma en que interactuaba cuando conocía algún microtraficante (brujo), con ellos debía sostener un lenguaje moderado y sin pretensiones, por lo tanto el hacer de observador pasivo producía un efecto contrario a sabiendas que al observador también se le observa. Como ellos son sujetos que han vivido experiencias límites con la ley (encarcelamientos, persecuciones, seguimientos, amenazas, enemigos, el crimen, ilegalidades e informalidad), tienen un “olfato callejero” y una psicología aguda para desenmascarar a cualquiera que tenga intenciones que estén por fuera de su cultura y códigos de honor.

el mes de julio 2012, en la segunda noche conocí a Richard 4 , un joven afroecuatoriano5 quien se convertiría (casualmente) en el interlocutor clave de toda mi investigación, fue él quien 3 Uso

esta categoría para evitar el clásico término colonialista, informante. 4 Para una mejor comprensión de este personaje, véase el capítulo I de la tesis de: Alvarez, William (2014). “Sobreviviendo con la pipa” Drogas, violencia y conflictos Interétnicos en el Barrio El Paraíso. Quito: FLACSO-Ecuador. Aún sin publicar 5 El barrio está compuesto étnicamente por: blanco/mestizos, indígenas,

144

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

recibimiento

caluroso

fueron

En la siguiente etnografía se

acciones que llamaron mi atención

podrán observar algunos de los

desde un principio. Al descubrir día

rasgos ocultos de su migración a la

a día sus historias de vida, la forma

ciudad.

en que llegaron a la ciudad y sus

relato

variadas estrategias económicas de

conseguido

subsistencia, esto me visibilizó el otro

claves de su condición social, los

lado del estigma, el miedo y la

cuales ayudan a entender de forma

inseguridad

descriptiva

que

afroesmeraldeños

7

proyectan

los

Haciendo de

vida

seguimiento de

Richard

reconstruir

las

al he

aspectos

diferencias

en la sociedad

estructurales que existen entre la

quiteña. Con el consentimiento de

Costa y la Sierra ecuatoriana, y entre

Richard8, líder carismático del grupo

lo afrodescendiente y blanco/mestizo.

y uno de los más antiguos migrantes

No solo se trata de hacer una

afroesmeraldeño en el barrio, se me

radiografía de sus estrategias de

permitió una entrada solidaria a su

supervivencia en la ciudad, sino de ir

mundo de la vida9.

más allá en el entendimiento de la

desigualdad estructural y como ésta

7 A

lo largo de todo el texto se emplearán las categorías: afroecuatoriano, afroesmeraldeño y afrodescendiente, para nombrar lo que en la literatura brasilera se conoce como: negro o preto. Hay que resaltar, además, que las categorías de identificación o autoidentificación étnicas varían en casa país. En el caso de mi investigación, el termino afroesmeraldeño lo empleo para diferenciar al negro de la Costa pacífica, del negro Andino. 8 Hasta el momento de escribir este capítulo, Richard lleva viviendo 14 años en la ciudad de Quito. 9 Para lograr ganarme su confianza; el tiempo, mi lenguaje, la sinceridad y la cercanía identitaria, fueron clave para cerrar los abismos culturales y las sospechas psicosociales sobre mí. En varias oportunidades les invité a mi casa y ellos a las suyas, pasamos muchas noches

genera las causas de un tipo de violencia simbólica y estructural que atañe mayormente a un grupo étnico y territorial que a otros en el escenario de la cotidianidad en la ciudad de Quito.

departiendo en un bar y restaurante del barrio en la cual se consolidaron muchos negocios ilegales, se produjeron conflictos o se pensaron crímenes y robos.

145


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Escapando de la muerte, de uma islã pacífica al frio de la ciudad

comida que le dejaban de ganancia

Desde el primer día que conocí a

Pero la venta neta podría llegar a

Richard no me han dejado de

cien, ciento veinte o ciento treinta

asombrar sus múltiples formas de

unidades, dependiendo del día.

de veinticinco a treinta dólares libres.

ganarse la vida en todos los aspectos

Las

ventas

que

pudiera

de la economía, pasando de lo

conseguir en el barrio le daban lo

legal/formal a lo ilegal/informal, un

suficiente para sobrevivir, pero no le

constante

las

satisfacían comparándose con otros

márgenes de polos opuestos, pero a

tiempos en que vender en la calle no

su vez imperantes dentro del sistema

estaba tan restringido como lo está

productivo o, en el sentido de esta

en este momento:

ir

y

venir

entre

tesis, estrategias de supervivencia.

puesto de comida sobre una esquina

Antes de vender en el barrio vendía en otros lugares, la calle Amazonas fue mi primera plaza, me iba bien, un viernes me hacía 150 o 200 una sola noche, pero de ahí me sacaron, mucho control, luego me vine acá cerca en La Marín, te digo que esto ya hace varios años, ahí me iba muy bien, me tocaba duro, pero al día malo malo, vendía 130, y 180 todos los días, excelente plaza, pero los municipales empezaron a joder y a sacar a los vendedores (Richard entrevista, 2012).

concurrida del barrio para ofrecer su

Esta serie de desplazamientos a

producto a un precio de un dólar o

los que se ha enfrentado Richard

dólar y medio de forma rápida y fácil

tiene como propósito la erradicación

de llevar. Por medio de ese puesto de

del uso del espacio público de las

comida se ganaba la vida y sostenía

ventas ambulantes del centro de

un hogar constituido por su mujer

Quito

(Rebeca) y su hijo de 4 años. En

restricciones no se observan los

promedio,

Durante

mi

estadía

en

el

barrio, la venta informal de comidas era el principal ingreso económico de Richard. Todas las noches, desde las cinco de la tarde hasta pasadas las nueve de la noche, disponía de un

diariamente

vendía

,

10 Considerado

pero

detrás

de

estas

patrimonio de la humanidad por la Unesco desde 1978.

cincuenta o sesenta unidades de 146

10


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

motivos

o

estos

labores económicas de toda clase,

vendedores al usar ese espacio, ni sus

formales e informales, dependiendo

historias ni procedencias, ni siquiera

de la oferta real de trabajo que

la

estos

emergía en las temporadas de pesca,

desplazamientos, ni mucho menos

agricultura o el turismo. La venta de

las resistencias que esto genera en

artesanías y la gastronomía eran sus

los vendedores informales. En el

principales

caso de Richard, la venta informal de

subsistencia, y estas se aprenden

comida ha sido una estrategia de

según Richard de dos formas; 1) por

supervivencia de las tantas que ha

medio del ocio y la creatividad que

tenido para ganarse la vida.

emerge de un ambiente limitado

violencia

necesidades

generada

de

por

de

materialmente como lo es la isla, y 2)

Cuando Richard vivía en Isla

principalmente,

Bonita (Esmeraldas11), se dedicaba a

por

la

monetarización de su vida cotidiana.

Estas labores (por un lado la

11 Ecuador

está compuesto por 25 provincias con sus respectivas capitales. Provincia se puede entender como categoría territorial que para su comprensión, es homologa la categoría de Estados en Brasil. La provincia de Esmeraldas se ubica en la región Costa y está poblada en su mayoría por población afrodescendientes, pero su condición estructural, económica y social, en relación con la región central donde se ubica la mayor parte de la población blanco/mestiza está por debajo del índice nacional, como se dice a continuación: “Si bien la incidencia de la pobreza en el país es de 38.3% en el 2005-2006, existen grupos sociales que son más pobres. El análisis de la pobreza según grupo étnico permite detectar dos grupos que presentan una incidencia de pobreza mayor que la observada a nivel nacional. Estos dos grupos son: los indígenas y los afroecuatorianos. Dentro de la población indígena 7 de cada diez se encuentran por debajo de la línea de pobreza, lo que representa casi el doble de los niveles presentados a nivel nacional. En la

producción de artesanías y por el otro la agricultura y la pesca) han sido prácticas culturales adquiridas y heredadas

culturalmente

por

Richard, quien las ha capitalizado, empleado

y

trasladado

a

su

cotidianidad en los espacios urbanos donde se ha radicado. Su principal fuerte económico inició con la venta población afroecuatoriana aproximadamente 5 de cada 10 son considerados pobres. Este análisis revelaría que la pobreza se concentra mayoritariamente en los grupos étnicos mencionados” (SIISE- STMCDS, 2006: 1415)

147

alternativas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

al por mayor de camarones a grandes

la

banda

de

extorsionistas

era

hoteles en Atacames12 (Esmeraldas):

hacerse con el dinero que Richard guardaba en su casa, pero como él no

Arranqué vendiendo camarón en pequeñas cantidades a comerciantes del pueblo, yo no pescaba, le compraba a un conocido que me vendía barato y como intermediario vendía más caro, por ejemplo, de un quintal (50 kilos), sacaba 15-20 dólares, ahí estaba el negocio, luego me hice de un contacto en un hotel y empecé a venderle 10, 20, 30 quintales, hasta más, y como la venta era buena, le daba un porcentaje a mi amigo para que me diera el mejor producto, entonces comencé a venderle a los hoteles resort y ganaba buen dinero (Richard entrevista, 2012).

accedía, le cortaron lentamente un extremo

de

oreja,

Richard

lo

describirá como sigue:

la

Yo no iba dejar que me quitaran mi dinero, bravié con todos dos, me dieron con el mango de la pistola, pero aun así resistía hasta que me tumbaron y amarraron las manos. Como yo no quería decir nada me amenazaron con cortarme la oreja, pero no comía de esa presión, entonces me pusieron sobre una mesa y uno de esos manes cogió un cuchillo y me preguntó por última vez dónde estaba el dinero, me volví a resistir y fue ahí donde empezó con el cuchillo a torturarme, ya no aguantaba, entonces les entregué el dinero (Richard entrevista, 2012).

intimidación y la extorsión que se

Después de este suceso Richard

vivían en Esmeraldas. La envidia y la

quedó ofendido y, como la justicia en

sospecha

Richard

Esmeraldas, según sus palabras, «no

alrededor de su mejoría económica

sirve para nada», tomó la venganza en

trajeron consigo una persecución

sus propias manos. Luego de indagar

secreta por parte de una banda de

en las cercanías del pueblo sobre los

extorsionistas.

dos

extorsionistas, dio con uno de ellos y

hombres se presentaron a su casa

lo asesinó, pero el otro se escapó.

fuertemente

quienes

Richard no pudo recuperar los 15 mil

agredieron a Richard y a su pareja, a

dólares que le robaron, y estos

ella le amarraron mientras Richard se

ajustes

resistía y le golpeaban. El objetivo de

migrar a la ciudad de Quito.

Sin embargo, esta bonanza económica estuvo opacada por el aumento de la violencia cotidiana (Scheper-Hughes

que

1997),

produjo

Una

noche

armados,

12 Nombre

de una ciudad turística.

148

de

cuentas

le

obligaron


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Sin mucho dinero con qué

serranos. Lo que he observado en los

contar, Richard se dirigió donde un

afroesmeraldeños me indica que su

hermano,

sus

exposición en la calle tiende a ser

primeros meses en la ciudad, pero al

pasajera; el hurto y la delincuencia

cabo de un tiempo decidió vivir

componen formas útiles de ganarse

aparte por evitar las diferencias

la vida mientras encuentran otras

suscitadas con su cuñada. De modo

formas dentro de la economía formal

que este fue el principio de un

e informal en donde proyectarse,

periplo vital, económico, espacial y

pero cruzar la línea de una actividad

social, de sus nuevas estrategias de

considerada ilegal hacia una legal, no

supervivencia en la ciudad, y un

siempre suele ser un acto voluntario.

con

quien

vivió

trasegar por las márgenes flexibles de la estructura normativa hegemónica. Siendo

un

«Dámelo todo, chucha tu madre»

joven

afrodescendiente sin empleo, sin

Desde una perspectiva comparativa,

dinero y sin casa, acudió a la calle, es

las

decir, al delito y al robo como su

étnico/raciales en la Región Andina,

principal fuente de ingresos. Pero

en especial en Colombia y Ecuador,

este volcamiento estaba en cierta

países

medida

características

restringido

por

una

condiciones

con

de

ciudades

clase

que

históricas

y

tienen

comunes,

economía moral. La posición de los

como la explotación de la mano de

jóvenes afroesmeraldeños sobre la

obra indígena y la esclavitud. Pero en

calle

que

cada ciudad las condiciones socio-

difiere del habitus13 de los habitantes

étnicas varían dependiendo de las

tiene

una

perspectiva

experiencias pasadas y funciona en cada momento como matriz estructurante de las percepciones, las apreciaciones y las acciones de los agentes cara a una coyuntura o acontecimiento y que él contribuye a producir” (Bourdieu, 1972: 178).

Bourdieu define esta categoría de la siguiente manera: “El habitus se define como un sistema de disposiciones durables y transferibles -estructuras estructuradas predispuestas a funcionar como estructuras estructurantes- que integran todas las 13

149


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

condiciones

materiales

subsistencia,

esto

determina

de

segunda

la

objetivas.

instancia,

por

razones

desigualdad étnica y la segregación

El Paraíso es el lugar de

racial que se presentan comúnmente

procedencia de muchos jóvenes que

en las ciudades latinoamericanas.

salen a robar en barrios del norte de la ciudad, pero conocer de cerca su

Mientras que en Cartagena (Colombia)

la

mayoría

es

población

en

trato y personalidad dejaron por

su

fuera los estereotipos negativos que

afrodescendiente,

sobre ellos se tiene. En el trato

socialmente la discriminación y el estigma

sobre

peligrosidad

la

de

delincuencia su

imagen

cotidiano los jóvenes, entre esos

y

Richard y Guacho, interactúan de

son

acuerdo con la convivencia básica de

menores que las que pude percibir

los barrios, respeto a los mayores, a

en Quito desde mi llegada, y es muy común

escuchar

en

las

las mujeres, a la apropiación de las

calles

zonas de juego (canchas, parques),

céntricas y residenciales un discurso

cumplimiento de los contratos de

temeroso sobre lo afrodescendiente.

renta, etc. Sin embargo, bajo esa construcción estratégica del habitar

En zonas reconocidas de la ciudad como el barrio La Mariscal

barrial,

(La Zona) es frecuente observar

construye:

robos de toda clase, pero lo más

familiar, por un lado, y un habitus

común es que estos robos sean

público disidente, por otro. La vida

hechos

de Richard describe muy bien este

por

jóvenes

doble un

fachada

habitus

se

privado

habitus polivalente.

afrodescendientes. Lo mismo pasa

Cuando llegué a Quito lo primero que conseguí fue un trabajo en una papelería que era conocida de mi hermano, la dueña al rato de conocernos resultó ser familia lejana. Yo no estaba familiarizado con nada ahí, pero hacía de todo, hasta lo que no sabía: prender computadoras, sacar

con las detenciones o requisas que hace la Policía en la calle cuando se sospecha, en una primera medida por el color de la piel, y, en una 150

una


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

luz). Algunos, como el primo de

copias, barría, atendía clientes. La dueña me cogió mucho aprecio y me ayudó económicamente, pero yo ya estaba aburrido ahí, eso no era lo que me gustaba y, como tenía problemas en la casa, renuncié (Richard entrevista, 2012).

Richard y la Belleza, ganaron algo de dinero jugando en la B de la Liga Deportiva Universitaria de Quito. Pero las exigencias nutritivas de este

A Richard le costó seguir

deporte estaban por encima de las

subordinado, de modo que desistió

capacidades

de ese empleo. Al cabo de unos días

carbohidratos

Richard había dejado la casa de su

cubrían lo necesario para durar hasta

también migrantes, entre ellos su

fin de mes.

primo Genaro y la Belleza14.

Estas dos circunstancias les

jóvenes

empujaron

afroesmeraldeños migrantes armaron

a

abandonar

la

liga

profesional, pues no contaban con

una red de apoyo y un lugar de

recursos mínimos vitales ni detenían

residencia. Entre todos 15 se dividían

las condiciones materiales que les

los gastos de alimentación (que en el

dieran estabilidad, por lo tanto, en el

peor de los casos se basaban en

caso de ambos, el único ideal futuro

migas de pan y agua de panela), renta

estable,

y gastos de servicios públicos (agua,

el

proyecto

profesional,

de

vida

acabaría

desvaneciéndose ante circunstancias

14 Ellos

llegaron a Quito por dos motivos: la ‘Belleza’ huyendo a la cárcel que le esperaba por intento de asesinato y porte ilegal de armas, y Genaro, por líos de faldas y ajuste de cuentas con bandas criminales. 15 Un número variable pues la casa estaba abierta al recibimiento de jóvenes provenientes de Esmeraldas sin casa. Al mismo tiempo se iban rotando las plazas por

urbanas no previstas dentro de su estructura

cultural

y

social.

La

ausencia de estructuras políticas y las concurridas salidas del lugar por razones laborales o provisionales.

151

para

demoraban en llegar y tampoco

con otros jóvenes afroesmeraldeños,

otros

necesarias

de

diarias del cuerpo. Los pagos se

cuarto en el barrio que compartía

con

mínimas

reponerse y rendir las exigencias

hermano y se había mudado a un

Junto

reales


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

sociales en sus lugares de origen

cumplir las exigencias mínimas de

(Esmeraldas) equiparables a las que

contratación laboral, pues, en su

se

caso, no haber terminado la escuela

viven

en

Quito

económica/laboral

en

materia

disminuyen

las

restringe aún más sus posibilidades

posibilidades de inclusión a labores o

de

sistemas productivos cualificados de

porque esta ausencia incide en el

muchos jóvenes afrodescendientes,

desconocimiento del funcionamiento

incluso de otras regiones del país que

del sistema burocrático, aspecto que

no tengan instrumentos estructurales

limita

similares a las exigencias urbanas

instituciones legales/formales, como

capitales.

nos dirá:

El anterior argumento devela

cultural

cuando

se

estructuras

territorializado

enfrenta (campos)

con

otras

sociales

o

escenarios sociourbanos que cuentan con

ciertas

ventajas

su

al

sistema

interacción

formal,

con

las

Acá es que joden con tanta vaina que pide el Municipio, en mi tierra usted quiere montar un negocio, va y pide el permiso y se lo dan sin tanto papel, pero acá te piden que lo uno y lo otro. Quiero montar un negocio de comida y te piden chimenea de tantos metros, tener instrumentos de calidad y todos los permisos sanitarios y un poco de impuestos, y uno que llega sin plata, ¡dígame! ¿Cómo puedes ser legal sí hasta para pedir un crédito te piden un respaldo? En cambio allá en el pueblo usted monta un negocio ahí mismo en la casa sin tanta vaina y te ganas la vida (Richard entrevista, 2012).

la disparidad simbólica y objetiva del capital

inclusión

histórico-

estructurales sobre otras. Por lo tanto, esto ha incidido parcialmente en que Richard fuera empujado con mayor fuerza16 al sector económico

Sin embargo, la falta de esa

informal e ilegal, al no conseguir

titulación no ha sido una limitante en

su quehacer cotidiano, se maneja con

Muy diferente a lo que sucede en el mundo económico de muchos grupos indígenas en Ecuador. Estructuras sociales de producción consolidadas en la economía urbana; venta de alimento, artesanías y comercio principalmente. Opciones legitimadas y consolidadas en parte por los 16

lo básico: lectura, escritura, lógica matemática, contaduría. Y tanto es su conocimiento sobre leyes penales y lasos de parentesco y la cercanía histórica

152


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

derechos ciudadanos que sorprende

negativa

escuchar sus conversaciones cuando

éticamente permisible a su condición

él o alguno de sus conocidos ha sido

estructural, que no necesariamente

señalado

asocia delito con despilfarro y gastos

por

algún

abuso

de

autoridad, captura o acusación. La

incidencia

se

de

convirtieran

estos

básicas.

en

La

un

acción

criminal de forma individual o de modo colectivo es una consecuencia casi

imperante

ante

instrumentos

práctica

viable

Una vez yo estaba en la mala mala, Rebeca estaba a punto de parir y yo sin plata. Una tardé salí a caminar la Amazonas y vi salir de un banco a un japonés, lo seguí un rato y llegando a un parque le cogí por la espalda y le quité el maletín, cuando llegué a la casa me encontré con 1 600 dólares, con esa plata compré las cosas del bebé y pagué el parto, adelanté arriendos, me surtí de comida, pagué deudas, incluso invité a beber y comer a los amigos (Richard entrevista, 2012).

escenario ideal para resolver sus necesidades

una

banales. Así comenta Richard:

aspectos lleva a que las calles de Quito

en

tantos

burocráticos Esquinas, masculinidade recursividade

legales/formales. En una ocasión, en la ‘esquina del sabor’, los jóvenes

y

hacían memoria de los asaltos, la

El Paraíso es el centro de salida y

‘Belleza’

modo

llegada de muchos de los jóvenes

natural: «¿Es que tú no robas,

afrodescendientes que migran de la

parce?»,

Costa. Cuando están instalados, los

frunció

me

preguntó

de

al escuchar mi negativa el

ceño,

incrédulo.

puntos de encuentro dentro del

La

naturaleza de su expresión y la

barrio,

comodidad con la que narraba sus

reconocidos por la red de parentesco

experiencias violentas, naturalizan un

tienden a significar espacios urbanos

habitus

economía

en los cuales se concentran la

política de la vida transforma las

información sobre trabajos, cruces,

acciones delictivas de una visión ética

sucesos familiares, relatos de vida,

memorias y el ocio; en el caso del

que

desde

su

campo-ciudad.

153

es

decir,

los

lugares


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015 18

barrio, este lugar de encuentro es

Marcos

una esquina17.

constante.

A mi llegada al barrio la

,

ese

número

era

la

En calle, y en especial en

‘esquina del sabor’ fungió como un

dicha

lugar

mi

hombres, lo que claramente me

socialización con los jóvenes del

indicaba la ausencia de mujeres en la

entorno, pero a lo largo de mi estadía

esfera pública. La única excepción

fui comprendiendo que no se trataba

fue la compañera de Richard, a

solo de un lugar de encuentro

quien, durante los seis meses que

común,

esa

duró mi trabajo de campo, fue a la

esquina Richard ponía su puesto de

única que observé hacer parte de las

comidas, sino, por el contrario, se

socializaciones esquineras.

preponderante

porque

para

además

en

esquina,

constituía como un lugar clave para

se

reunían

solo

La calle después de

el desarrollo de la economía ilícita

horas laborales estaba restringida a

callejera.

los

Durante el día y la noche me

hombres,

presente

y

la

única

asimilaba

mujer estos

encontraba con alguno de los jóvenes

comportamientos, es decir, de modo

afroesmeraldeños que constituían el

performativo actuaba dentro y fuera

grupo común del barrio y la esquina;

del grupo y fuera de forma masculina

eran entre 8 a 15 personas, número

en los momentos en que fuera

que se mantuvo a lo largo de mi

necesario, por ejemplo, para hacer

trabajo

respetar el territorio de invasores de

de

campo

y

sólo

con

excepción de uno de ellos, a quien

18 La

captura de este joven estuvo plagada de múltiples interpretaciones por parte de su grupo de amigos. El principal y más comentado argumento relaciona su captura con líos de faldas, es decir, celos por parte de un policía que salía con la que, según relataron personajes de confianza del barrio,

apresaron por tráfico de drogas (pasta base) en el mercado de San 17 En adelante este espacio urbano tendrá el nombre de: esquina del sabor.

154


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

otros

barrios,

persecuciones

donde el azar del día y la noche

policiacas, y como forma de ganarse

ofrece muchas sorpresas, de las

la vida en la calle por medio de la

cuales la más significativa son los

intimidación19.

negocios u oportunidades de hacer

Al

en

segundo

día

dinero o conseguirlo de forma fácil.

de

De modo que la sociabilidad que

llegada a El Paraíso conocí a Richard

manifiestan los afroesmeraldeños en

por casualidad, aquella noche me

la mencionada esquina tiene otros

acerqué a comer a su puesto de

propósitos que están por fuera de lo

comida y le pregunté lo siguiente: «

que a simple vista parece ocio.

¿Es peligroso salir de noche por el barrio?».

Luego

él

respondió

En

dos

ocasiones

pude

sonriendo: «Nada de eso, compita,

corroborar lo anterior y ganarme algo

acá la gente es bien… usted nomás

de dinero solo por hacer presencia

hágase conocer y ya» (Entrevista,

en la esquina del sabor y ayudar a

2012). Y eso fue exactamente lo que

Richard a negociar una bicicleta

fui construyendo noche a noche

robada a cambio de un paquete con

cenando en su puesto de comida, y

ocho o diez sobrecitos de pasta

conversando con él y todo el que

base/polvo que le había dado a

llegara en ese momento.

guardar Guacho 20 . En esa ocasión

Para Richard la esquina es el vínculo

de

congéneres

encuentro y

un

lugar

con

estuvo buscando, pues le impusieron orden de captura. 20 Guacho hace parte de los tres interlocutores principales que da corpus al resto de la investigación. Él es conocido entre los demás afroesmeraldeños como el único que continúa regularmente vendiendo drogas, y aunque tenga un horario y lugar de venta determinado para ejercer su labor, suele andar con algunas papeletas de pasta base/polvo cuando se encuentra a la noche con sus amigos en el barrio. Sin embargo, como él estuvo en la cárcel 4 años, sufre de paranoia y le dan ataques de nervios cuando la policía transita las calles de El Paraíso.

sus

práctico

era una mujer mayor con preferencias erótico-sexuales hacía jóvenes menores. 19 Durante el último mes de residencia en el barrio, desde finales de noviembre, se encontraba prófuga por el asesinato con arma de fuego de una mujer a la entrada del barrio. En varias ocasiones la Policía le

155


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

nos estábamos resguardando de la

a darle un dólar, el chico aceptó y se

lluvia, cuando un joven se acercó a

marchó.

Pasados

decirnos que acababa de robarse una

apareció

un

bicicleta en el sur de la ciudad y la

bicicleta y Richard la vendió en

estaba ofreciendo por treinta dólares.

cuarenta dólares, de los cuales cinco

«Esa bicicleta se ve buena, pero estás

fueron para mí, que no pensaba en

pidiendo mucho. Vea, ñaño, yo lo

recibir nada a cambio.

que tengo es polvo, te cambio estas 10 papeletas por la bici, ¿te sirve?» (Richard entrevista, 2012), le propuso Richard, pero este joven insistió en que le encimaran algunos dólares, pues no tenía con qué hacerse las pistolas (cigarrillo, fósforos). Para que se terminara el negocio yo accedí

156

diez

comprador

minutos para

la


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Autor: William Álvarez, La ‘esquina del sabor’.

varios billetes de veinte dólares. La

Cualquier cosa puede pasar en las esquinas, desde robos, venta de

mayoría

cilindros de gas, tanques de basura,

afroesmeraldeños

armas,

futbolistas

pasta

base

/polvo,

hasta

de

y

los

presentes

eran

migrantes,

exfutbolistas.

Todos

ofertas de trabajos para pintar casas,

discutían por el porcentaje que les

plomería, mudanza, incluso arreglos

correspondía, el cual fue repartido en

ilegales

futbol

partes equitativas (de haber llegado

profesional que aseguren triunfos o

cinco minutos antes hubiera recibido

produzcan derrotas. Una noche, de

algún dinero).

de

partidos

del

regreso al barrio, me encontré con

Lo

un gran alboroto en la esquina: se

había

sucedido

previamente se relacionaba con el

había formado un círculo alrededor

mundo de las apuestas ilegales. Un

de Richard, quien tenía en la mano 157

que


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

par de colombianos (según relató

quien tenía el contacto del arquero

Richard) emparentados con la mafia

del Emelec había perdido su celular

del narcotráfico en Ecuador1 llegaron

días antes, con lo que el cruce no se

al barrio porque sabían que algunos

logró.

de los muchachos que residían en la

Los anteriores relatos fueron

zona tenían contacto con jugadores de

primera

nacional.

La

división

del

propuesta

tan solo dos sucesos de los muchos y

futbol de

frecuentes

los

la

redes de parentesco, la economía

un gol ante el Corinthians (de Brasil)

ilegal e informal, y la identidad

en los octavos de final de la copa

regional en un solo lugar expone en

Libertadores de América (2012). Al

el espacio público variables como lo

arquero le ofrecerían 80 mil dólares y

masculino, lo étnico, el regionalismo,

por el favor darían 20 mil dólares, los

la

cuales se dividirían entre cuatro ‘Belleza’

en

genera la esquina para organizar las

(Ecuador) para que se dejara anotar

la

viven

barrio popular. Pero el poder que

arquero del Club Sport Emelec

Richard,

se

cotidianidad de la esquina de un

colombianos consistía en comprar al

(Guacho,

que

territorialidad

aspectos

y

que

y

la

autoridad:

explicaré

a

continuación.

Genaro). Para cerrar el trato dieron 100 dólares de adelanto a Richard el

Para

el

caso

de

la

dividió con los otros. Sin embargo,

masculinidad

jóvenes le dan al espacio describe su

1 Este

tipo de apuestas develan la presencia invisible de una red de lavados de activos que emplean al fútbol como un instrumento que permite blanquear fuertes sumas de dinero. Según los relatos de varios jóvenes del barrio que en un inicio llegaron a Quito a emplearse en las ligas menores de equipos profesionales con la expectativa de llegar a la primera división, las apuestas fraudulentas y los acuerdos ilegales para beneficiar o perjudicar resultados deportivos al parecer suelen ser frecuentes.

uso

que

estos

hegemonía, pero sin que esto omita el habitar de la mujer, el cual se produce de otra forma. Sin embargo, su uso en la mayoría de los casos se limita a circularlo de un punto a otro sin mucha pretensión de habitar la 158

el


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

calle y hacer de este un lugar

de

estratégico,

masculina.

demás

como

jóvenes

Richard lo

y

hacen.

los Esta

observar

en

la

Muchos

performance visitan

con

frecuencia a sus amigos en la cárcel

manifestación de masculinidad se

para

puede entender en dos vías: la

hermandad, pero otros como Richard

primera como un performance, y la

manifiesta sus emociones de otra

segunda

forma sin que esto lo deslegitime

como

una

construcción

mantener

los

lazos

de

masculina estratégica de resistencia y

ante los otros.

supervivencia que se refuerza por las

saber que algún pana lo metieron

duras

preso, a mí eso me entristece, por ese

condiciones

territoriales

y

históricas,

ecológicas

que

«Es duro visitar o

se

motivo me cuido de no caer preso, ni

agudizan en la cotidianidad agreste

tampoco ir a visitar alguien ahí

que les representa sus prácticas

dentro» (Richard entrevista, 2012).

laborales callejeras.

En cuanto a lo étnico, la

«No verse como un gil ni que

presencia

afrodescendiente

en

el

te vean las pelotas» es una de las

barrio se ve representada con su

frases comunes entre los hombres

habitar en la esquina, pero esta

del barrio cuando ven vulnerado su

afrodescendencia

honor y respeto frente a los demás, lo

entender de forma pluriterritorial,

que tampoco significa que ese tipo

porque

de

únicamente

masculinidad

niegue

los

no

quiero

se a

hacerla

circunscribe

jóvenes

de

la

y

provincias de Esmeraldas, también

afectivos, aspectos que he logrado

incluye jóvenes de Manabí y Guayas,

observar,

cuando

esto es importante de resaltar porque

alguno de sus amigos ha sido puesto

aunque exista una raíz identitaria en

en prisión. Cuando se presentan esos

común, las diferencias regionales son

casos se despliegan emotividades que

tan fuertes que tensionan los lazos

en otras circunstancias son difíciles

identitarios

acompañamientos

por

emotivos

ejemplo,

159

y

fracturan

las


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

socializaciones interculturales. Pero

el mencionado espacio un lugar

dado

social

que

la

provenientes

de

mayoría

son

Esmeraldas,

que

le

ha

sido

negado

el

históricamente mediante el discurso

criterio de selección del grupo de

racial y las prácticas excluyentes

amigos de Richard da preferencias al

devenidas de este tipo de conciencia

‘negro’ esmeraldeño. Por lo tanto, la

étnico/racial

superposición del regionalismo local

espacialmente.

es habitual a sabiendas del rechazo

Para

cultural que generan cierto tipo de

blanco/mestiza

participación

donde

afrodescendiente

jóvenes

lugar en el barrio ha sido un proceso

la

de luchas sistemáticas contra otros

es

actores ya territorializados como las

mínima. Y

los

afroesmeraldeños el hacerse de un

habitus dentro de un espacio racial de mayoría

estructurada

pandillas, que reflejan a su vez luchas cuando

las

diferencias

de reconocimiento ante la sociedad

culturales traen consigo una carga

en general. Los Latin Kings 2 o los

racial histórica, este tipo de violencia

Inmortales, según los relatos de

estructural

Richard,

tuvieron

una

encontradas, es decir, negaciones

presencia

en

barrio

hacia lo otro que conllevan a la

comienzos y mediados de la primera

producción

y

década del siglo XXI. Luego nuevos

subculturas, como lo he notado en la

actores como grupos juveniles o

apropiación que del espacio barrial

subculturas

asumen muchos de estos jóvenes. El

plantearon un nuevo escenario de

territorio, entonces, por parte de los

conflicto

afroesmeraldeños en El Paraíso está

produce

de

reacciones

microterritorios

juveniles

para

(hiphoperos)

territorial

que

se

Para una mayor información sobre los Latin Kings, véanse los trabajos de Mauro Cerbino: Pandillas juveniles, conflicto y cultura en la calle (2004) y Jóvenes en la calle, cultura y conflicto (2006). 2

legitimado tanto por el uso que ellos hacen del espacio callejero, como por la propia necesidad de encontrar en 160

el

fuerte


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

enfrentaban con jóvenes de otros

«Con la lengua se puede todo».

barrios con similares apropiaciones

Por lo tanto, la palabra se

subculturales. En medio de estos conflictos

y

sumado

a

la

convierte en una herramienta clave

fama

de supervivencia. El énfasis que

histórica de barrio bravo que carga consigo

El

afroesmeraldeños

Paraíso,

los

tuvieron

que

muchos de ellos hacen del lenguaje3 y con ello al habla, pero un habla que a medida pasa el tiempo se va

entrar en este campo de luchas uno a

educando,

uno, y luego en grupo para hacer

configurar

respetar su lugar en el barrio sin

estratégico

comprometerse con ningún bando.

domando, un y

logra

capital

cultural

discursivo

callejero

frente al que puedan tener otros grupos étnicos. Richard nos dirá:

«Con la lengua se puede todo»

Estos pelaos de ahora les hace falta verbo, a mi cuñado que es todo sano lo coge la Policía y teniendo todas las de ganar se deja llevar preso, mientras que el otro que cogieron con él robando salió rapidito, y… ¿sabe por qué? Le faltó lengua al pelao. Todo tiene salida, nada más soltar la lengua y más cuando te tienen cogido. A un primo de Rebeca le cogieron sin salvoconducto y con orden de captura. Ese man cuando estuvo dentro de la patrulla negoció con la policía su salida; esa misma noche me tocó prestarle 400 gambas para que saliera, además de dejar el arma (Richard entrevista, 2012).

El Con frecuencia en los relatos de otros jóvenes, además de los de Richard,

he

encontrado

muchas

experiencias violentas con la Policía. Pero en este tipo de violencia hay una profusa distinción. A diferencia de la violencia sobre jóvenes serranos y consumidores callejizados de pasta base/polvo, los afroesmeraldeños se

3 Ferdinand

de Saussure es quien suscita esta dicotomía estableciendo que existe una diferencia real entre “la realización concreta de una expresión lingüística o un conjunto de ellas” (habla) y el “sistema o estructura que genera las expresiones de dichas expresiones” (lengua). Para mayor información véase su Curso de lingüística general (1991).

han ganado un respeto considerable de la Policía, en buena medida por el hecho de hacerse respetar de sus abusos mediante el discurso y el enfrentamiento

físico,

o,

como

argumenta Richard: 161


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Para Richard, los policías no

mano con ganas de darle a ese hijueputa (Richard entrevista, 2012).

representan una autoridad por el

El

hecho de que carguen un arma o

particular

representen la ley. En una ocasión la

alrededores de la estación céntrica de transporte de La Marín por hacer uso indebido del espacio público con su venta informal: Una vez en La Marín me sacó la policía casi que a patadas, me tocó guardar las cosas rápido porque se estaban llevando todo lo que estuviera en la calle invadiendo; al que se pusiera bravo le echaban gas pimienta. Conmigo se prendió un agente a echarme como animal y yo me le paré convidándolo a pelear como hombre, pero como estaba con mi hijo me apresuré a dejarlo en la entrada del barrio porque estaban tirado gases lacrimógenos (Richard entrevista, 2012).

de

trataran con violencia sin importar repetidas

ocasiones

que

él

reclamó ser tratato con dignidad, es decir: con respeto. En esa ocasión

La ‘arrechera’ del momento

estuvo a punto de clavarle su hacha

llevó a Richard a sacar el machete

de defensa personal a un policía que

que cargaba en su carrito de comida

le seguía.

y responder con violencia los ataques

Los manes estaban tan alzados que ¿sabes qué hicieron? Uno se vino atrás mío para ver dónde vivía, apenas vi a mi hijo en la puerta le pedí que me sacara el hacha rápido porque se la quería enterrar a ese agente si me volvía a decir algo, pero él otro [policía] se dio cuenta y le silbó para que se devolviera, tenía el hacha en la

del policía: A mí esa injusticia y atropello me arrechan, ya cuando vi que mi hijo estaba arriba saqué el machete y me les enfrenté a los manes. Al que me quería ver cara de gil le clavé el machete entre el cuello y el hombro.

162

varias

cuando le intentaron desalojar de los

Richard contra la policía era que lo

las

en

es

ocasión lo hizo en defensa propia,

Estos manes yo no sé qué se creen, vinieron cinco motorizados (10 agentes) para obligarme a salir de acá. Hermano, yo estoy tranquilo vendiendo, no hace falta tanta violencia para decirme que no puedo tener mi negocio aquí, pero llegan alzados, hablando de mala manera como si yo fuera un delincuente. Dos motos me cerraron, querían quitarme el carrito, yo entonces me les alcé y les pedí que me respetaran, que ya me iba retirar porque vivía en la misma calle (Richard entrevista, 2012).

reclamo

que

Richard

cuerpo con la Policía. En otra

comidas en la esquina del barrio:

principal

dado

de

oportunidades ha peleado cuerpo a

Policía le prohibió tener su puesto de

El

caso


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

del barrio, porque estando fuera

Apenas vi que él sacaba su arma agarré a correr esquivando los disparos. Llegué a la tienda de un amigo donde guardé el machete y me hice una calle más arriba donde los panas, y como muchos ya habían visto el atropello de estos manes, los sacamos a punta de piedra (Richard entrevista, 2012).

corre peligro. Como las anteriores hay otra serie de historias que reflejan la relación conflictiva que se produce

En las ocasiones en que los

entre

la

Policía

y

los

jóvenes

policías me detuvieron en el barrio

afrodescendientes,

mientras

calles

blanco/mestizos en El Paraíso. Pero

acompañado de Richard y otros

en especial se ejerce mayor presión

jóvenes, ellos nunca lo hicieron con

sobre

la intención de llevarnos presos ni

afrodescendientes

tampoco

forma

drogas. Esta presión obliga a muchos

violenta, la policía es consciente que

de estos jóvenes a aprender otra serie

en el barrio no pueden sobrepasarse

de estrategias menos violentas o

en el uso de su fuerza legítima

impulsivas para resistir las redadas

porque

policiacas.

merodeaba

lo

sus

hicieron

de

inmediatamente

agredidos.

Pero

serán

cuando

estas

«La

que

él

no

valioso, pero, en definitiva, no es un recurso último para escapar de los

tenga

encuentros indeseados con la ley. De

enemistades con la policía, todo lo contrario;

le

conocen

bien,

modo que la lengua, es decir, la

le

estrategia discursiva, puede salvar de

observan, tiene cuentas pendientes

aprietos

con ellos y Richard lo sabe, esto

pero

también

empeorar situaciones.

explica su afán de no moverse lejos 163

de

emplean se convierte en un recurso

todo». Pero esa distancia y respeto no decir

usurarios

que los jóvenes fuera de la ley la

lengua,

muchachos, con la lengua se puede

quiere

y

jóvenes

lengua en el sentido estratégico en

primero en dar la cara, para luego diciendo:

hombres

o

Hacer un buen uso de la

detenciones sucedían Richard era el

regresar

los

serranos

puede


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

La mayoría de los jóvenes a

también es riesgoso, desgastante»

quienes entrevisté, que mezclan lo

(Richard entrevista, 2012). Dentro de

ilegal/informal con lo legal/formal o

la esfera de actividades que ha

solo están en el campo (en sentido

realizado Richard para sobrevivir, la

bourdiano

lo

venta de drogas no ha sido aislada,

ilegal/informal, saben de antemano

pero tampoco ha sido una actividad

qué decir, qué hacer y bajo qué leyes

de

ampararse cuando son retenidos por

esporádicos y coyunturales.

del

término)

de

la Policía. Además, están al tanto de

desesperado y molesto él me expuso

bien que la discriminación y el práctica

sucesos

espacio público en el barrio, en tono

los afrodescendientes saben muy

una

sino

hizo el operativo de control sobre el

al consumo de drogas, y en el caso de

son

preferencia,

La misma noche que la policía

las nuevas leyes referentes al robo o

racismo

su

lo siguiente:

ilegal

Hey, pana, la verdad me gustaría ahorrar un buen dinero para dejar a mi familia montada y luego amarrarme una bomba al cuerpo para acabar con todos esos hijueputas. Ya nos los soporto, hermano, voy a tener que volver a vender drogas, llenarlos toditos de polvo, pues ya no puedo, tengo deudas pendientes, ahora mi hijo va al colegio y ya necesita de los útiles… Yo esperaba pararme esta semana con la venta, pues, como tú sabes, por ayudar a mi cuñado me quedé sin dinero (Richard entrevista, 2012).

penalizada, sobre todo cuando es ejercida por la Policía.

Informalidad e Ilegalidad: subsistiendo con lo que sea Muchos de los jóvenes migrantes afroesmeraldeños habían tenido o continuaban teniendo algún tipo de

Richard

relación con el tráfico ilícito de pasta

tenía

contactos

base/polvo. Para Richard fue una

suficientes para comprar cualquier

entrada

importante

tipo

durante

un

de

dinero

y

cantidad

de

droga;

sin

él,

embargo, y luego que se le pasara la

«vender polvo es un buen negocio,

rabia por el incidente, argumentó

socio,

que volver a vender polvo ya no era

deja

tiempo.

mucho

Según

dinero,

pero 164


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

una opción. En el caso de Richard, el

bolsos originales o de imitación a

factor que más influyó para dejar la

pedido. Sin embargo, los trabajos

calle tuvo relación con el nacimiento

que realizan no ofrecen estabilidad,

de su hijo. Con mucha insistencia en

dependen en un gran porcentaje de

varias conversaciones que tuvimos, él

condiciones

hacía un fuerte énfasis en que su hijo

externas. La construcción tiene sus

era la razón de su vida y el principal

bajas y es inconstante, al igual que la

pretexto para volverse legal, desde el

subcontratación

día en que nació. Entre los jóvenes

circunstancias obligan a buscar otras

que

formas de ganarse la vida cuando los

conocí

existía

una

gran

diferencia entre quienes eran padres

trabajos

y quienes no lo eran. El habitus

sobrevivir.

delictivo de los últimos tendía a medir

menos

el

riesgo

en

motivación

para

textil.

formales

no

Estas

dan

para

Por lo tanto, la dependencia

las

que

actividades ilegales, incluso tenían mayor

socioeconómicas

se

forja

en

los

lasos

de

parentesco y las socializaciones al

hacerlo;

interior del barrio, sirven de puente

mientras los primeros evitaban en lo

para conseguir trabajos en sectores

posible volver a la delincuencia y

como

alentaban a sus congéneres moverse

la

construcción

manufactura

de la economía ilícita a la legal.

condiciones

(muchas

o

la

veces

en

a

los

adversar

Para el primo de Richard y la

amparados por la ley), empleos que

‘Belleza’, vender drogas también ha

suelen convertirse en alternativas

sido una opción, mas no una práctica

laborales

hegemónica de subsistencia. Todos

además de salvavidas económicos.

desempeñan actividades dentro del

a

corto

plazo,

Durante mi último mes de

mercado laboral legal/formal. Genaro

incursión

es maestro de construcción y la

en

el

barrio,

Richard

pasaba más tiempo en la esquina

‘Belleza’ confecciona en una empresa 165

viables


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

esperando cualquier oportunidad de

comida,

hacer algún cruce que vendiendo

responderá: «Ya me salí de ese

comida. Los últimos altercados con

negocio, socio, me tiene aburrido esa

la Policía y un daño que provocó el

hostigadera, quiero hacer otras cosas,

choque4 del automóvil de un vecino

en esto no me desgasto tanto aunque

contra su puesto de comida lo

tenga que ir lejos y cumplir un

desalentaron y lo desmotivaron de

horario» (Richard entrevista, 2012).

seguir en ese rebusque. Después de

En su nuevo trabajo le estaban

este incidente Richard no volvió a

pagando entre 120 y 150 dólares por

vender

esquina.

semana. Sin embargo, Richard no

persecución

consiguió encontrar estabilidad en la

policial y aprovechando la ayuda de

construcción de un solo golpe, de

sus amigos, consiguió un empleo

hecho, tuvo problemas desde un

temporal

principio porque no le pagaban a

comida

en

por

tanta

Aburrido

como

la

obrero

en

una

construcción. Para Richard

ya

tiempo diciembre había

de dejado

y

los

esta

decisión

trabajos

él

eran

temporales, lo cual le afectaba, ya

2012

que tenía deudas atrasadas.

por

completo la venta ambulante de

Pero este tipo de limitantes no

le

Para Richard este accidente fue un pretexto, con ello evitó trabajar una semana esperando le pagaran 120 dólares que según él cubrían los costos sobre los daños del puesto de comida, además, sumado la mercancía perdida. Pero el puesto de comida no sufrió mayor daño, él sobredimensionó el accidente y por esos días sin trabajar perdió más dinero de lo que recibiría en una jornada de trabajo. Las ganancias diarias pueden variar entre 40-80 dólares según el día de la semana y del tiempo que dedique a la venta. Haciendo una estimación media, es posible que Richard, durante el tiempo no laborado por el pretexto del accidente, dejó 4

impedían

rebuscarse

de

otra

manera dentro de esa estructura laboral irregular. De tal forma que hacía lo que fuera por percibir mayores ingresos, incluso vendiendo pasta base/polvo a algunos obreros colegas o teléfonos celulares de segunda mano que compraba barato de percibir durante esos días: 150 -200 dólares.

166

sobre


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

a ladrones en el barrio, y hasta la

días de trabajo, esto le fuerza a

posibilidad de robar el taller de

buscarse

herramientas de la construcción.

supervivencia6.

Muchas

estrategias

de

actividades

En el caso de Richard vender

económicas ilegales emergían en ese

comida informalmente en la calle o

espacio formalizado. Richard siempre

ser

busca la manera de sacar provecho,

representan

ingeniarse cualquier forma de ganar

peligro de las acciones ilegales y de la

dinero sin que esto lo involucre o

carga moral que conlleva situarse en

perjudique directamente. Como dice

dicho espacio como única estrategia

él: «Ñaño, las cosas hay que hacerlas

económica

con cabeza, uno ya no es ningún

embargo, este tipo de sucesos que

pelao

pueden ser frecuentes o esporádicos

para

otras

otras

arriesgarse

perder»

(Richard entrevista, 2012).

presentase

de

ajenas

subsistencia.

al

Sin

que los remarca negativamente y los criminaliza.

dólares extra haciendo cualquier tipo se

actividades

ellos se crea, se mediatiza, se habla, y

tampoco le impedía ganarse algunos

que

construcción

ahonda en el estereotipo que sobre

espacio barrial, tener un empleo legal

cruce

de

en los migrantes afroesmeraldeños

De regreso a casa, en el

de

obrero

Reflexiones finales

al

momento5. Richard es consciente de

En la etnografía presentada

la inestabilidad del trabajo en la

anteriormente podemos observar un

construcción, y aunque puede llegar

Richard, durante ese período de incertidumbre, concretó varios trabajos esporádicos pintando casas. Incluso surgió la posibilidad de irse a trabajar a una petrolera al Oriente, la cual le pagaría 600 dólares mensuales por trabajar 20 días y descansar 10. Sin embargo, esto no se pudo dar porque Richard tenía problemas serios con su cédula, aspecto que le impedía ser contratado directamente en empresas públicas. 6

a ganar de 400 a 500 dólares en 20 5 La

urgencia de conseguir dinero para pagar la renta mensual (90 dólares) y tener para los gastos de su hijo, obligó a Rebeca (su pareja) a dejar la escuela nocturna para conseguir un empleo mientras Richard encontraba una fuente estable de ingresos.

167


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

relato de vida que describe uno de

me remito a la categoría violencia

los tantos motivos que da pie para la

estructural, la cual describe una:

migración. Para el caso de Richard como

el

de

otros

muchos

Opresión político-económica crónica y desigualdad social enraizada históricamente, que incluye desde acuerdos comerciales de explotación económica internacional, hasta condiciones de trabajo abusivas y altas tasas de mortalidad infantil. (Citado en Bourgois, 2005: 14).

que

hicieron parte de esta investigación, la violencia física en su sentido más crudo

se

ha

convertido

en

el

Por lo tanto, este relato de

principal motivo para desplazarse mejor

vida es una muestra de cómo la

bienestar fuera de la precariedad de

violencia estructural da forma a otros

sus

Sin

de tipos de violencia que refuerzan la

embargo, este tipo de precariedad,

desigualdad, la miseria, pero sobre

sufrimiento, estrategias ilegales e

todo los estereotipos étnico/raciales

informales de sobrevivencia, tenemos

sobre este clase de población joven

que analizarlo también por encima,

que llega a las ciudades capitales

es decir, ¿por qué estas prácticas y

como lo es Quito, pero que puede ser

acciones se producen con mayor

cualquier otra ciudad en América

frecuencia en un determinado grupo

latina y encuentra en lo ilegal e

étnico? Para entender este proceso

informal una posibilidad de ascenso

hacia

otros

lugares

territorios

de

con

origen.

168


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

social. Y si bien no todos los jóvenes

ejercida

afrodescendientes migrantes realizan

producida en la cotidianidad de las

estas

de

diferencias e indiferencias de los

aquellos a quienes conocí en mi

residuos racistas y raciales que aún

residencia de campo en el barrio El

perduran

Paraíso,

urbanas del Ecuador del siglo XXI.

prácticas,

todos

la

mayoría

concuerdan

que

históricamente

en

las

y

otra

sociabilidades

sufren de una doble violencia, una Autor: William Alvarez, (El callejón, casa de un brujo)

Referências Alvarez, W. Fumando pasta base de cocaina en la Zona: ansiedad, adicción y violencia. Áskesis V 3- N1, p. 72-84, 2014. Bourdieu, P. Esquisse d’une théorie de la pratique, precedido de Trois études d’ethnologie kabyle. París: Seuil, 1972. Bourgois, P. Mas allá de una pornografía de la violencia. Lecciones desde el Salvador. En C. F. (Eds.), Jóvenes sin tregua Culturas y políticas de la violencia (pág. 237). Barcelona: Anthropos, 2005. Cerbino, M. Pandillas juveniles, conflicto y cultura en la calle. Quito: El Conejo, Abya Yala, 2004. Cerbino, M. Jóvenes en la calle, cultura y conflicto. Quito: Anthropos, 2006. Galtung, J. Violence, Peace, and Peace Research. Journal of Peace Research 6, 167191, 1969. Guerrero, A. Administracion de poblaciones, ventriloquia y transescritura: Analisis historico: Estudios teóricos. Lima: IEP: FLACSO sede Ecuador, 2010. Saussure, F. d. Curso de liguística general. Bilbao: Akal, 1991. Scheper-Hughes, N. La muerte sin llanto: violencia y vida cotidiana en Brasil. Madrid: Ariel, 1997. Unidad de Análisis e Información de la Secretaría Técnica del Ministerio de Coordinación de Desarrollo SocialSIISE- STMCDS. (2006). www.scribd.com. Recuperado el martes de Mayo de 2013, de www.scribd.com: 169


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

http://es.scribd.com/doc/77050424/Mapa-de-Pobreza-y-Desigualdad-en-ElEcuador

170


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

Entre dominação e consciência: Um olhar sobre a literatura em Antonio Candido Between domination and consciousness: a regard through literature on Antonio Candido’s writings Alice de Oliveira Ewbank 1 Resumo Neste trabalho procura-se explorar o diálogo crítico de Antonio Candido, através da crítica literária, com o período da ditadura militar no Brasil por meio de um jogo de contrários que caracteriza dois de seus ensaios produzidos neste momento. Assim, lidando com os termos “dominação” e “consciência”, que são tencionados a partir da sua oposição nos ensaios “Literatura e subdesenvolvimento” (1970) e “Literatura de dois gumes” (1966), parece possível perceber um diálogo implícito do texto com o contexto. Os ensaios de crítica literária são então tomados como objetos de análise sociológica, e o que resulta da pesquisa é a percepção sobre um movimento crítico que é próprio do autor – o de trabalhar com a oposição para melhor explicitar o tema – e que não se limita ao viés literário. Em outras palavras, e como já se disse uma vez acerca de outro ensaio seu, tratando de literatura Antonio Candido acaba por dar com a realidade do país.

Palavras chave: Antonio Candido, Literatura e sociedade, Crítica literária, Pensamento social brasileiro.

Abstract This article aims to explore Antonio Candido’s dialogue through literary criticism with the military dictatorship in Brazil (1964-1985) by means of a pair of opposite ideas that guides two of his essays written during this period. So being, through the notions of “domination” and “consciousness” which are tensioned based on the contradiction they produce, it is possible to stablish a relation between text and context at his essays “Literatura e subdesenvolvimento” (“Literature and underdevelopment”) (1970) and “Literatura de dois gumes” (“Literature and the rise of brazilian self-identity“) (1966). His writings on literary criticism become the object of sociological analysis from which it is possible to perceive that interest in opposing things represents a critical movement that cannot be reduced to the literary field only. As it has been said once about another of his works, by handling literature Antonio Candido ends up to reflect on brazilian reality.

1

Doutoranda pelo PPGSA/UFRJ.

171


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

Keywords: Antonio Candido, Literature and society, Literary criticism, Brazilian social thinking. realidade

Tomando como objetos de análise

significados pelo confronto com o

dois gumes” (Candido, 2011a), este

seu contrário. O diálogo entre os

trabalho parte de dois conceitos que meio

termos e entre os textos talvez não

da

rendesse não fosse a interlocução

oposição – recurso, aliás, frequente

implícita

na crítica do autor1. Assim, através do

contexto

de

Brasil. Portanto, começo fazendo

dois ensaios, procuro perceber como “sentimento

o

primeiros anos da ditadura militar no

que regem o encaminhamento destes

certo

com

surgimento destes dois ensaios, nos

par “consciência” e “dominação”,

um

busca

na medida em que tencionam seus

(Candido, 2011b) e “Literatura de

por

se

relação podem provocar esses limites

“Literatura e subdesenvolvimento”

dialogar

que

compreender. Quando postas em

dois ensaios de Antonio Candido,

parecem

do

uma volta no tempo.

dos

contrários”, para usar um termo do próprio

autor

(Candido,

2011a),

1. Sobre o contexto

opera na sua escrita produzindo

Os anos 1960, período no qual os

leituras que não costumam se fechar

textos de Antonio Candido passam a

em compreensões rígidas. Ou seja, focando dominação

nos

termos,

alcança

nem

o

incorporar com maior evidência a

a

América

controle

nitidez

olhar crítico do autor. Além da

a

instauração de diversas ditaduras

militares

1 Desenvolvo

melhor este tema na minha dissertação de mestrado, cujo segundo capítulo é aproveitado em boa parte neste trabalho.

pelo

continente

latino-

americano – no Brasil e na Bolívia em 172

um

que confirmam a pertinência do

impõe, nem a consciência ilumina com

revelam

conjunto de fatos e problemáticas

completo sobre aquilo ao qual se

necessariamente

Latina,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

1964, na Argentina em 1966, no Chile

desenvolvimentismo, como a Cepal

e no Uruguai em 1973 (Sader, 2006) –

(1948), que teria um papel central na

, o que em si já representava um

articulação

dos

elemento de aproximação entre esses

continente,

o

países,

Brasileiro

nessa

periféricos

década

os

países

experimentaram

a

de

intelectuais IBESP

Estudos

do

(Instituto Sociais

e

Políticos – surgido em 1952) e o ISEB

exaustão o incômodo da consciência

(Instituto

do

Em

Políticos – criado em 1954), que

realidade, já vinha da década de 1950

concentrariam esforços em uma nova

a

guinada dos estudos sociológicos e

subdesenvolvimento.

preocupação

com

o

atraso

Superior

econômicos

neste momento começara a deixar de

conformaria esse quadro a atuação da

ser

UNESCO

como

algo

em

no

Brasil.

Estudos

irremediável da América Latina, que

percebido

no

de

Também

financiamento

de

suspenso, possivelmente corrigível

estudos e instituições de pesquisa no

pela pretensão de superar 50 anos de

Brasil, como foi, por exemplo, a

atraso (e muitos mais) em 5, para

criação da CLAPCS (Centro Latino

lembrar

Americano de Pesquisas em Ciências

o

slogan

de

Juscelino

Kubitschek, e se transformara em

Sociais)

problema urgente a ser resolvido. O

agências,

momento era de repensar a condição

Unidos a LASA (Latin American

de dependência destes países – nos

Studies Association), em 1966, que

planos social, econômico, político e

reuniria

cultural – e tentar consertar aquilo

americanos exilados em função do

que atravancava o desenvolvimento

interesse pelo continente, que agora

das forças do continente latino-

se colocava como uma necessidade, e

americano. Se orientariam por este

a

objetivo alguns programas surgidos

Latinoamericana

no contexto de explosão do nacional173

em

1957.

surgiria

Além nos

intelectuais

FLACSO

destas Estados

latino-

(Facultad de

Ciencias


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

Sociales), criada em 1958 no Chile2.

1962 a primeira cadeira de Literatura

No conjunto fica claro o interesse em

Comparada em uma universidade

impulsionar

brasileira

o

desenvolvimento

4

.

Recém

ingressado

destes países, como demonstra a

institucionalmente no universo de

criação dessas agências ocupadas

estudos de literatura, com a outorga

com

e

do magistério nessa área na também

propostas para a superação do nosso

recém criada Faculdade de Filosofia

subdesenvolvimento.

de Assis, Antonio Candido teria um

o

fomento

Também

de

nesta

estudos

época

papel

se

fundamental

desenvolvimento

percebe o esforço intelectual de

da

no área

de

Literatura no país e na América

construção de uma área de estudos

Latina.

de literatura comparada na América Latina, somando às pesquisas no

Pulando

uma

década,

e

campo econômico e sociológico o

passando para o ano de 1973, é

impulso para uma visão integrada do

preciso

continente através das dificuldades

“Milagre Econômico” propagandeado

partilhadas

3

lembrar

o

período

do

. No Brasil, Antonio

pela ditadura militar ao longo dos

Candido teve papel fundamental na

anos de 1968 a 1973, quando a

articulação da produção de estudos

economia brasileira experimentaria

literários

um crescimento vertiginoso, com

desenvolvidos

no

continente, inclusive fundando em

redução

inflação, em oposição ao período

2 Lucia

Lippi Oliveira (2005) desenvolve num artigo justamente o contexto de surgimento dessas instituições no momento de voga do nacional-desenvolvimentismo, chamando a atenção para a produção sociológica em torno das questões então postas, e do diálogo do Brasil com os Estados Unidos e a América Latina. 3 Sobre o surgimento dos estudos de Literatura Comparada na América Latina e no Brasil, ver Nitrini (1997).

da

taxa

de

inflacionário dos anos 1962 a 1967. 4

Além do livro de Sandra Nitrini mencionado acima, ver, a propósito da criação da cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo, Nitrini (1994), Ramassote (2006). Sobre os estudos comparados realizados no

174

significativa


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

Ao contrário do que então era

artigo, entre outras questões, aparece

difundido na imagem de um Brasil

a falta de empenho dos intelectuais

pujante e promissor, que confirmaria

brasileiros na construção de uma

o

e

área comum de estudos literários na

burocratas desde a década de 1950

América Latina. É de se notar que,

em busca de um certo ideal de

no mesmo ano, Ángel Rama dera um

modernidade,

o

curso na Universidade de São Paulo

subdesenvolvimento ganharia novos

a convite de seu amigo Antonio

contornos. Curiosamente o ano de

Candido, e que antes mesmo do texto

1973 reúne alguns dos fios soltos que

ser

se busca entrelaçar neste diálogo

congresso, sairia em primeira mão

entre literatura e sociedade.

em língua portuguesa na revista

empenho

dos

Neste Ontário,

debate

ano

no

congresso

se

sobre

realizou

Canadá,

o

da

Internacional Comparada.

o

intelectuais

em

Antonio

sétimo

crítico

o

participaram

uruguaio,

autonómico:

5 O

las

literaturas nacionales a la literatura latinoamericana” (Rama, 2008). Neste Brasil antes da institucionalização da área, ver Candido (2004).

175

seus

ensaio

“Literatura

e

artigo de Ángel Rama foi publicado no número 3 da revista. Cf. Nitrini, 1997. 6 “Literatura e subdesenvolvimento” (Candido, 2011b) foi publicado pela primeira vez em tradução francesa na revista Cahiers d'Histoire Mondiale, da UNESCO, em 1970, e logo em seguida foi publicado em espanhol no livro coletivo a que se destinava, América Latina en su literatura, também editado com a colaboração da UNESCO. Em português sairia pela primeira vez no número 1 da revista Argumento, em 1973, até passar a integrar, em 1987, o livro de Antonio Candido, A educação pela noite (Idem, 2011e).

(Candido,

de

os

1978), e o segundo com o texto “Un processo

entre

não convergisse com o interesse

o

“Le roman latino-américain et les brésiliens”

Candido

subdesenvolvimento” 6 , que embora

primeiro com a apresentação do texto

novateurs

do

publicado, em seu número de estreia,

Antonio Candido e Ángel Rama, renomado

anais

organizadores. A mesma revista havia

Literatura

Dele

nos

Argumento, em 1974 5 , que tinha

Associação

de

publicado


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

desenvolvimentista

que

marcou

do caráter predatório da economia

majoritariamente

a

produção

capitalista na desigualdade entre o

intelectual nessa época, não deixava

Primeiro e o Terceiro Mundo, o que

de dialogar com a temática. Para

estava em jogo era perceber sem

puxar mais um fio deste ano de 1973

ingenuidade a condição do nosso

dando caldo para a correlação entre

atraso.

literatura e sociedade, também no primeiro

número

da

Antes

Argumento

especificamente

foram publicados os artigos de Celso Furtado,

“O

desenvolvimento

mito e

o

futuro

dois gumes”, de 1966, apareceu pela primeira vez na leitura feita por Celso

um

Lafer,

crise

inglesa,

na

and the rise of brasilian self-identity”

de

na

importância?” 7 . Cada texto, a seu

Luso-Brazilian

Review,

de

Wisconsin, em 1968 8 . Pouco tempo

modo, expressava o quadro mais cru

depois foi publicado em português

do subdesenvolvimento do país. Seja

no Suplemento Literário de Minas

tratando da taxa de analfabetismo,

seja pela constatação de um consumo

Gomes, 1973; Cardoso, 1973; Bernardet, 1973. 8 Considerando-se o momento em que primeiro surgiu “Literatura de dois gumes”, dois anos antes da sua primeira publicação, ao longo deste capítulo a data utilizada como referência ao contexto do artigo, salvo indicação contrária, será a do seu aparecimento, portanto, o ano de 1966.

aflitivo da cultura de massas norteamericana, ou ainda pela denúncia 7 Os

artigos referidos constam na bibliografia respectivamente como: Furtado, 1973;

176

tradução

publicado com o título de “Literature

como Paulo Emílio, tinha o título “Uma

em

Universidade de Cornell, tendo sido

Bernardet, que, tratando de cinema

de

ensaio

enfoco neste artigo. “Literatura de

caminho possível?”, e de Jean-Claude

expressivo

o

ensaio de Antonio Candido que

subdesenvolvimento”, de Fernando “Chile:

sobre

mais

cabe adentrar o percurso do outro

do

Salles Gomes, “Cinema: trajetória no

Cardoso,

tratar

“Literatura e subdesenvolvimento”,

do

terceiro mundo”, de Paulo Emílio

Henrique

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

Gerais, em 1969, até passar a integrar

Outro aspecto digno de nota

o livro de 1987, A educação pela

diz

noite, que reúne ensaios de Antonio

português dos dois artigos, já que

Candido

De

ambos saíram em português pela

antemão, nota-se que ambos os

primeira vez também em periódicos –

ensaios estrearam em publicações

“Literatura de dois gumes” saiu no

estrangeiras,

Suplemento

(Candido,

2011e).

conferindo

uma

respeito

à

publicação

Literário

de

em

Minas

circulação mundial aos textos que é

Gerais com o nome de “Literatura e

garantida, sobretudo, pela condição

consciência nacional” 9 . Embora o

transnacional dos dois periódicos e

Suplemento

do livro, mas também pela própria

pelo governo do estado de Minas

temática que trabalham. O periódico

Gerais, o que neste período de cerco

norte-americano traz no nome a

político indicava muitas restrições,

relação fundamental de vínculo entre

mantinha

o Brasil e Portugal, a colônia e a

contrário ao regime militar 10 . Entre

metrópole; o livro publicado no

tantos autores consagrados e tantos

México com auxílio da UNESCO,

outros

pelo o que o título mesmo indica,

naquelas páginas, Libério Neves e

aborda o contexto continental no

Bueno de Rivera, surgiam, nos anos

qual o Brasil se insere ao mesmo

a América Latina – objetos do artigo de Antonio Candido – em âmbito

receptáculos

alguma dos

forma

artigos

os

também

dinamizam a chave comparativa com a qual Antonio Candido lida. 177

subvencionado

posicionamento

como

foram,

se lê através do site organizado pela Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais, que digitalizou todos os artigos publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, que ainda hoje é veiculado. Cf. Novaes & Marques, 2013; Dantas, 2002. 10 Fundado em 1966, o Suplemento em pouco tempo atingiu um número significativo de publicações, tornando-se uma das revistas literárias de maior circulação na época, dentro e fora de Minas Gerais. Entre os seus colaboradores estavam Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes, a fina flor da literatura brasileira.

revista da UNESCO integra o Brasil e

De

um

estreantes,

9 Conforme

tempo em que se diferencia; e a

mundial.

fosse


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

sinistros da ditadura militar, poemas

“O

e artigos de oposição e crítica, o que

Antonio

levaria, em 1969, à demissão do

importância

idealizador e editor do Suplemento,

escritores,

Murilo Rubião, seguida por três

pontos, mas reunidos em defesa da

nomeações

garantia das liberdades intelectuais

efêmeras

no

mesmo

ano11.

dos

Candido da

escritores”, lembra

reunião

divergentes

em

a dos

vários

contra a censura do Estado Novo, o Para

Antonio

Candido

que

e

São

ditadura de Getúlio Vargas durante o Estado

Novo

teria

repercussão

e

no

Congresso

dos

O em

Congresso, consequência

da

que da

movimentação

política promovida pela recém-criada

política e de expressão, censura da violência

Paulo.

aconteceu

representado

semelhante restrição às liberdades

imprensa,

resultou

Escritores, realizado em 1945, em

muitos intelectuais da sua geração, a

Associação Brasileira de Escritores

repressão,

(ABDE), tinha o propósito claro de

como as que repunha a ditadura

congregar intelectuais como força de

militar de 1964. Como declarou

oposição à ditadura, e culminou no

Antonio Candido em um artigo

manifesto político lido pelo escritor

publicado durante a ditadura de

gaúcho, Dionélio Machado, no qual

1964, mas que, perspicazmente, fala

se exigia a legalidade democrática

de um movimento de oposição à

como garantia da total liberdade de

ditadura de 1937, lembrar de “certos

pensamento. Apesar de, segundo

momentos do passado pode [sic]

Antonio Candido, o Congresso ter

servir de pretexto ou estímulo para

acontecido em um momento em que

refletir sobre o presente” (Candido,

a ditadura já se desmanchava, e,

2007a: 99) 12 . Neste artigo, intitulado

ditadura” na revista Opinião, em 1975. Foi posteriormente publicado no que é considerado, provavelmente com razão, o livro mais político de Antonio Candido: Teresina, etc. (Candido, 2007b).

Sobre o Suplemento Literário de Minas Gerais, Cf. Novaes & Marques, 2013. 12 O artigo “O Congresso dos Escritores” surgiu com o nome de “Os escritores e a 11

178

Congresso


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

portanto, não ter repercutido tão

Retomando o enfoque comparativo

negativamente para os já frágeis

entre os dois artigos de Antonio

órgãos

sido

Candido, “Literatura de dois gumes”

importantíssimo pelo que significou.

(Candido, 2011a) e “Literatura e

Não apenas pelo que representou

subdesenvolvimento”

para o grupo dos escritores nas

2011b), depois das várias publicações

discussões

questões

em meios diversos, foram reunidos,

relativas à profissão, que teria sido o

em 1987, no livro A educação pela

objetivo inicial do Congresso, mas,

noite.

sobretudo, pela mobilização política

panoramas

de

tratados

do

governo,

acerca

oposição

teria

das

que

promoveu.

Não

(Candido,

sendo pouco

em

cada

exatamente

minuciosos ensaio,

os

como

Mobilização ampla contra as forças

escreve o autor, são textos marcantes

reacionárias, contra a restrição das

e esclarecedores sobre a literatura

liberdades,

governos

brasileira a partir do seu ponto de

autoritários e fascistas que vingavam

vista. Apesar do interesse que teriam

na Europa e tinham o apoio, meio

despertado

camuflado, do governo brasileiro. A

reunidos, quando das suas primeiras

referência,

este

publicações, o livro que os colocava

momento do passado, não passa

lado a lado não teria tido grande

despercebida

repercussão:

contra

neste

a

os

artigo,

quem

o

a

no

presente do texto, no ano de 1975.

escritos

agora

Não sei explicar a diferença de recepção: talvez os estudos já tivessem cumprido o seu papel de impacto e intervenção provocativa no momento cultural. Entretanto, reunidos em livro, compõem um conjunto impressionante pela variedade e complexidade das questões abordadas. Por contraste com o título – e de acordo com ele – são ensaios iluminadores, que projetam uma compreensão nova sobre assuntos tão diversos como ficção e autobiografia, literatura e subdesenvolvimento, origens da teoria do romance ou nova

Como queriam os escritores em 1945, e insistiam os intelectuais “trinta anos depois” (Ibidem: 103).

2. Textos da noite

179

os


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

pela noite” para o contexto de

narrativa brasileira. (Lafetá, 1992: 205206)

Neste

último

surgimento

aspecto

contra

algumas das observações que faz

a

escuridão de

da

dois

ditadura,

gumes”

e

provocavam a reação contrária à

de particular interesse. Por isso as

tencionada

aproveito aqui, com o perdão da

pela

disciplina

de

controle, ambos se voltando, em seus

sequência de citações. O título do

temas

livro é devido a João Cabral de Melo

e

proposições,

para

o

amanhecer da consciência através de

Neto, o poeta pernambucano, cuja

uma prosa profundamente crítica.

obra A educação pela pedra exprimiria

Além da vocação esclarecedora num

conotações de peso, dureza e solidez que decorrem da metáfora da ‘pedra’, [..] [enquanto] Antonio Candido escolhe a imagem romântica da ‘noite’, com as conotações opostas de imponderável, de fluido e de dissoluto. […] no seu sentido mais comum, ilustrado e iluminista, a educação é o espancamento das trevas, o afastamento da noite.” (Lafetá, 1992: 210, grifo meu)

período obscuro, conformam um par que acentua ainda mais a tensão explicitada por Lafetá, e cujas ideias ainda hoje são ágeis em interpelar aqueles que se aventuram a pensar o Brasil. Um par de contrários poderse-ia dizer, ainda que não menos

O fecundo na apreciação que

ligados

faz Lafetá sobre a obra de Antonio

pelas

suas

diferenças.

Enquanto “Literatura de dois gumes”

combinação

versa

contraditória entre a “noite”, que é

sobre

instrumento

escuridão e, portanto, falta de visão e

imposição

vazio de saber, e a “educação”, que é

a de

de

literatura

como

dominação,

ideias

de

estrangeiras,

“Literatura e subdesenvolvimento”

movimento de esclarecimento, de

trata da aquisição de consciência

abertura do olhar e expansão do

nacional com relação à condição

conhecimento. Trazendo a “educação 180

artigos,

“Literatura e subdesenvolvimento”

ensaios e ao volume que os reúne são

na

a

“Literatura

João Lafetá com relação aos dois

está

dois

metáfora se torna cortante. Indo

ressaltado acerca do título do livro,

Candido

dos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

dependente e marginal do Brasil. Em

consequências que ao mesmo tempo

duas

como

reforçam e dificultam as tentativas de

como

compreensão

palavras,

dominação

literatura

e

literatura

do

nacional.

consciência. Nada mais próximo de

Observados em relação à Formação,

uma “educação pela noite”.

operam

Relembrando

então

dilatam a tese numa comparação com a América Latina, aliás, com toda a

qual se falou no início deste texto, dizer

que

o

América, ainda que por vezes ela

ensaio

apareça de forma difusa. E o segundo

“Literatura de dois gumes” forma ao lado

de

“Literatura

movimento diz respeito aos períodos

e

abordados, que dando continuidade

subdesenvolvimento” um par (de

à

contrários) que dá continuidade a

da

literatura

aprofundam

mas,

elementos

empresa portuguesa de colonização, justamente na fase precedente ao

de

surgimento da “literatura comum”, e,

anteriormente

portanto, quando teria sido plantada

trabalhados, avançam para além dos

a semente do que viria a ser mais

limites estabelecidos. Em ambos,

tarde a literatura brasileira. Vai mais

Antonio Candido trabalha com a questão

do

duplo

referente

fundo no passado da formação da

da

nossa literatura, para mais uma vez

cultura brasileira e latino-americana, cuja

origem

europeia

manifestações

mais

acarretaria

uma

das

demonstrar

suas

a

origem

americanas pôde, ao contrário do

de 181

como

estrangeira das literaturas latino-

determinantes série

estão

no momento de estabelecimento da

problemas

partindo

Formação,

recua um pouco no tempo e se detém

presentes na célebre história da literatura,

da

primeiro ensaio, Antonio Candido

brasileira

(Candido, 2012). Cada qual a seu tempo,

temática

orientados para direções opostas. No

certas questões centrais contidas na Formação

movimentos

significativos. O primeiro, é que

o

“sentimento dos contrários” sobre o

pode-se

dois


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

que previra a empresa, resultar em

de maneira comparada. Para usar os

processos originais. Em “Literatura e

seus termos, eles são “amostras de

subdesenvolvimento”

crítica

a

direção,

esquemática”

(Candido,

como se disse, é contrária, e o que se

2011d: 10) que, ao retomar estas

lê é um avanço no tempo da questão

questões,

comparativa

preocupação

que

move

a

sua

explicitam norteadora

uma da

concepção de literatura brasileira (e

crítica,

latino-americana).

ensaio

possibilidades de desdobramento da

Antonio Candido retoma em outro

problemática em diferentes textos e

plano

contextos.

o

Neste

problema

da

“dupla

fidelidade” dos nossos escritores,

Insisto

revendo na consciência nacional as implicações

correspondentes

publicação

ao

contexto

reelaboração da cultura importada

apurando

brasileira em finais do século XIX

e

a

literatura

presentes

na

sociedade. Quanto ao que dizem

daquela

esses

ensaios

detalhado,

latino-

no

pode-se

plano dizer

mais de

“Literatura de dois gumes” que é

americana, aliás, americana, sempre

provavelmente o artigo que melhor 182

temas

percepção sobre o andamento da

ensaios

necessidade de se pensar a literatura brasileira

à

qualidade peculiar da literatura e a

previamente

escopo

indispensável

numa composição elaborada e sutil a

conjunto com a Formação, porque

o

é

para o momento presente, fundindo

pós II Guerra Mundial. Pensados em

ampliam

ensaios

anteriores, eles orientam as questões

no século XX, chegando a autores do

dois

dois

Formação e em outros textos seus

para a literatura sua contemporânea

estes

destes

da

trazem. E isto para perceber como,

encerrada na Formação da literatura

esboçadas,

momento

compreensão das questões que eles

em algo novo, estendendo a temática

questões

no

as

porque me parece que a chave do

influxo de cultura europeia e à

aprimoram

prolongando

sua


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

retoma, nos termos da Formação da

dialética

literatura brasileira, a centralidade da

brasileira: da literatura portuguesa

comparação

que fora para cá transplantada até a

na

compreensão

do

central

consolidação

do

a

brasileira, o que guia esta passagem é

literatura

o desejo ambíguo de possuir uma

brasileira, adensando a análise crítica

literatura própria, brasileira, mas que

sobre a questão com acentos mais

seja tão boa como as europeias; o

agudos em determinados pontos. Se

desejo, no fundo, de possuir uma

no livro o propósito é o de escrever

literatura, e, por conseguinte, uma

uma história da literatura no desejo

nação independente da influência

dos brasileiros em possuírem uma,

metropolitana. O desejo de se livrar

apresentando

e

da influência colonial se sustentaria

atores, e os seus traços, dentro de

até certo ponto, porque seria dela

uma continuidade entre os seus dois

que se nutriria o modelo de literatura

períodos

artigo

que se quer construir. Neste sentido,

Antonio Candido dá maior ênfase ao

a dialética do local e do universal dá

aspecto

pouco destaque ao efeito castrador

origem

pressuposto

europeia

os

sobre

da

seus

formativos,

político

autores

neste

da

literatura.

Ressalta um traço que pouco aparece na

Formação,

cultura

europeia

literatura

sobre

a

a

pluralidade ainda não unificada do

centralidade da comparação entre o

que viria a ser o Brasil, porque

Brasil e a Europa por meio do

interessava analisar o processo de

aspecto impositivo e colonizador que

surgimento

teve a literatura oficial nos primeiros

brasileira,

anos da ocupação portuguesa. No

cultural que contivesse em si uma

livro

unidade

de

1959,

indicando

da

uma

literatura

Brasil a partir da sua literatura. Parte mesmo

de

da

o

traço

político

de de

alheia

uma uma

à

literatura

manifestação

sua

origem

acompanha todo o encaminhamento

portuguesa. De modo que o caráter

narrativo,

pulsante de uma nova literatura

posto

que

figura

na 183


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

garantida

pela

continuidade

da

origem estrangeira através do papel

dinâmica

do

sistema

literário

que ela teve como instrumento de

importava mais que os possíveis voos

imposição

da

compelindo

imaginação

reprimidos

pela

imposição da cultura estrangeira. Era preciso

diferenciar

cultura a

europeia,

variedade

das

manifestações culturais indígenas ao

literatura

desaparecimento ou a uma existência

brasileira da literatura portuguesa,

frágil e controlada13. Quer dizer, não

ainda

deixa lugar à dúvida quanto ao berço

que

a

a

da

explicitação

desta

diferença se fundasse na combinação

das

supostamente

colônias

contraditória

do

literaturas

surgidas

nas

ex-

latino-americanas,

elemento europeu com o brasileiro.

sublinhando,

No ensaio de 1966, escrito num

violenta do processo. Em segundo

contexto muito diferente daquele da

lugar, a contradição apontada pelo

Formação, a preocupação, apesar de

autor dentro deste mecanismo de

partir

dominação,

dos

mesmos

pressupostos,

ainda,

que

a

faria

natureza

com

que

avança o posicionamento sobre a

surgisse de dentro dele um espírito

mesma dialética.

reivindicatório

busca daquilo que seria próprio da

acordo com o caráter impositivo que

terra,

ela pode exercer sobre uma cultura,

elas

possuem de uma combinação tensa entre o referente europeu e as características

nacionais.

Em

primeiro lugar, o acento na literatura como

dominação

explicita

a

sua 184

o

estímulo

13 No domínio da literatura, embora, em geral, as culturas nativas latino-americanas não tivessem uma produção que pudesse ser aproveitada em combinações particulares com a cultura trazida com a Conquista, Antonio Candido nota, a propósito da possibilidade não lograda de desenvolvimento de uma literatura original na Bolívia, como o caráter impositivo da colonização impediu que até mesmo estas raras produções sobrevivessem depois do estabelecimento dos europeus na América (Candido, 2011b).

literatura brasileira e das literaturas que

condicionaria

torna mais nítida a ambiguidade da

no

independência

que, em consequência, levaria à

Ao atualizar a função da literatura de

latino-americanas

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

nacional.

Apesar

do

aspecto

esteticamente (como procura de originalidade). (Candido, 2002a: 99)

impositivo da literatura europeia que

Literaturas como estas, profundamente ‘comprometidas’ (no sentido amplo de construção de uma cultura), devem ser encaradas no seu movimento dialético, essencialmente integrador, para poder-se avaliar a sua função histórica nas diferentes etapas. (Ibidem: 102)

aqui teria se instaurado, ela não impediria

que

manifestações

surgissem

contrárias

interesses

dos

fecundando

o

aos

colonizadores, início

de

uma

literatura nacional e de um país independente da metrópole através

3. Dominação e consciência

do despertar da consciência nacional. Assim, ficaria posta a dualidade que

Pensando sobre a dominação e a

qualificaria os processos formativos

contradição que ela gera a contrapelo

das literaturas (e das nações) na

do seu propósito castrador, ganha

América Latina, fundadas sob a sua

outra luz o contexto de surgimento

condição dupla de local e universal.

do artigo. Da mesma forma que no

Como

texto

explica

Antônio

Candido

sobre

o

Congresso

dos

numa fala sobre temas da Formação

escritores (Candido, 2007a), Antonio

da literatura brasileira:

Candido remete a um passado para

Para estudar a literatura na América Latina há dois ângulos que podem gerar dois tipos de teorias e metodologias. Ambos são válidos e não devem ser considerados mutuamente exclusivos; e sim correspondentes a dois ‘momentos’ dialéticos do processo global: a) a literatura como prolongamento das literaturas metropolitanas - e; b) como ruptura em relação a elas. As nossas literaturas são ‘prolongamento’ porque se ligam organicamente às do Ocidente, transplantadas para aqui já constituídas (singularidade que deve ser levada em conta). (...) Ao mesmo tempo, as nossas literaturas são ‘ruptura’, tanto politicamente (como consciência de separação), quanto

interpelar o presente através dele. Pensando sobre o sentido da análise da literatura enquanto dominação, sobretudo geraria,

talvez

paradoxo dialogasse

que com

ela o

caráter constritivo da ditadura militar naquele ano de 1966. A preocupação em caracterizar como essencialmente dominadora a literatura que para cá fora transplantada no século XVI, 185

no


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

revela uma afinidade maior com o

seria vestida e pintada de grandezas

momento da publicação do artigo

imaginárias.

justamente

redigido nos moldes da literatura

pela

correspondência

Tudo

claro,

europeia

portuguesa

transplantada, o que não impediria,

caracterizara

pela

culturas instalados para instituir à

imposição

força os valores e as tradições que

servisse de “fermento crítico capaz de

traziam de Portugal e da Espanha,

manifestar

também naquele momento as forças

colonização” (Candido, 2011a: 207).

militares

como

O contraste, por sua vez, estimularia

movimento de dominação sobre a

o interesse pelas coisas do país. O

democracia estabelecida.

apogeu desta tendência, que teria como

A cultura, expressa no artigo

estaria apontando neste momento para um traço negativo na sociedade,

liberdade

e

no

componente

elemento oposto,

o

que

pela

desejo

diferenciação busca

de

da um

brasileiro.

A

aspiração

a

Europa

o

seu

sentido

formação da consciência nacional. Como diz Antonio Candido em outro

iria

ensaio

de

dentro

dos

tom

desenvolverem

compensatória na qual a realidade 186

político

sistemas

conservadores

promover na literatura uma escrita

metrópole

o

orientador, conjuga na literatura a

Antonio

aos da metrópole estimulariam um nacional,

de

com

seu

cada vez mais contrários dos colonos

no

crescente

ao

da

contrastiva, que tem na comparação

Candido faz notar como os interesses

mergulho

predominante levaria

a

culturais

desarmonias

marca

nacional,

da

dignidade humana. Por outro lado, vendo

que

antepassado – e de um passado –

um traço oposto aos valores da da

padrões

as

Indianismo,

principalmente a partir da literatura,

democracia,

dos

Autor,

fora

como

impunham

o

determinação de subjugar os povos e

se

insiste

para

é

temática. Se o início da empresa se

que

isto,

é

“mesmo

fechados possível

tendências

e se

contra”


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

(Candido, 2002c: 377). Quer dizer,

idealizada da terra, oriunda da visão

aproximando o contexto tratado no

idílica que fora difundida sobre a

ensaio com o do aparecimento do

América

texto, o argumento parecia adequado

primeiros europeus. Esta visão do

aos dois: apesar da imposição de

paraíso acabaria desenvolvendo uma

interesses opressivos e opressores, o

crença na autonomia e na grandeza

controle sobre a sociedade e as suas

da pátria, e durante longo tempo

manifestações

culturais

conviveria

impediria

nela

que

não

desde

a

com

chegada

o

dos

sentimento

surgissem

ambíguo de afirmação da riqueza da

movimentos contrários aos interesses

terra e o desejo de alcançar o

dominantes. No caso de “Literatura

patamar europeu de “civilização”.

de dois gumes”, a alegação estaria

Existira,

comprovada historicamente através

entusiasmo

do paradoxo que teria se dado dentro

percepção “amena do atraso”, que se

da literatura colonial. Passando do

faria notar no sentimento de estar

texto para o contexto, ela poderia

aquém do modelo almejado. Com o

servir como uma provocação ao

fim

autoritarismo imposto pelo regime

consciência sobre o país se tornaria

militar, como quem dissesse que

mais realista, e reconhecendo sem

todo aquele controle não impediria a

idealismos o seu lugar dependente,

formação de tendências contrárias à

perceberia a sua condição de país

disciplina que se queria assegurar.

subdesenvolvido.

Em

“Literatura

força

nitidez

distintos dessa consciência. Um se

do

Guerra

que

do

“Literatura

percepção 187

II

uma

Mundial

Neste

ensaio

a

a

em

Formação

da

literatura brasileira, e com maior

do seu país. Haveria dois momentos

uma

propagado,

no

incorpora a América Latina com mais

sobre a consciência dos atores acerca

por

da

camuflada

comparação entre Brasil e Europa

e

subdesenvolvimento” o foco recai

exprimiria

portanto,

que de

aparece dois

em

gumes”,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

decalcando

na

diversidade

da

momentos como complementares na

literatura e na consciência dos países

percepção sobre o país – tanto o

latino-americanos (entre os quais o

Brasil

Brasil se inclui) uma uniformidade

americanos –, reconhecendo que a

que os reuniria no mesmo lugar de

euforia primeira e o desencanto

atraso e subdesenvolvimento diante

posterior revelam o amadurecimento

dos europeus. Como se vê, a visada

da consciência nacional.

se insere no momento em que o debate

sobre

o

percurso

literaturas, americanos

toma a Mário Vieira de Mello os

conjunto

termos da análise que desenvolve

se moldar tivesse em vista o referente

futuro

do qual, no entanto, pretendia se

“país

supera

separar. A celebração eufórica do

a

“país

anterior visão turva sobre a realidade

do

crítica

identifica

estes

fundaria

na

celebração e terno apego, favorecida pelo Romantismo, com apoio na

dois

hipérbole e na transformação do 188

se

literatura teria se feito “linguagem de

nosso

subdesenvolvimento. O pressuposto da

novo”

supervalorização da natureza, que em

do país, decalcando em tinta forte o cenário

experiência

grandeza de um “país novo”, que ao

riquezas da terra dava a ilusão

que

uma

no

teriam fomentado a aspiração da

e otimista, quando a exaltação das

subdesenvolvido”,

evidenciariam

pela Europa até as últimas migalhas,

nacional: a de “país novo”, entusiasta

de

latino-

suas riquezas naturais, consumidas

destas duas fases da consciência

a

países

celebratório diante da opulência das

geral, costurando o ensaio em torno

e

os

autonomia. Iludidos com o tom

terreno da literatura e da cultura em

promissor;

latino-

semelhante de afirmação da sua

sobre o Brasil e a América Latina no

um

países

processos de formação das suas

solo comum. Antonio Candido então

de

os

Tendo passado por fases variadas nos

de

superação da dependência é tido em

acalentadora

como


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

exotismo

em

estado

alma”,

Candido, simbolicamente nomeado

conduzindo a uma literatura “que

“Perversão da Aukflarüng” 14 . Nele o

compensava o atraso material” no

autor

enaltecimento da riqueza natural

estrutural que condena a maior parte

(Candido,

se

dos brasileiros a um acesso restrito à

acreditaria que a exuberância da

cultura, quando não à sua dissolução

América trazia em si a semente da

numa

cultura

grandeza

vezes

reprodutora

2011b:

de

170).

futura

da

Pois

nação.

O

parte

do

o

analfabetismo

massificada de

muitas

valores

e

entusiasmo percebido nos nossos

imagens alheias ao Brasil – tema,

escritores atenta para um elemento

aliás, caro ao debate dos anos 1960.

fundamental,

Analisando o ideal ilustrado das

contraditório, pensamento

e na

totalmente formação

otimista.

deste

Sendo

nossas elites, observa como elas

os

teriam realizado uma perversão do

escritores desta fase membros da elite,

partilhavam

da

padrão que valorizavam.

ideologia

A história dos ideais ilustrados na América Latina tem às vezes um sabor quase trágico de perversão dos intuitos ostensivos, porque acabaram funcionando como fatores de exclusão, não de incorporação, de sujeição, não de liberdade. Este fato nem sempre chegou ao nível da consciência clara, tanto nos grupos dominantes quanto nos dominados; tornou-se uma espécie de perplexidade, como se os objetivos ideais fossem ficando sempre para mais adiante. (Candido, 2002d: 321)

ilustrada segundo a qual a educação e o saber trariam a redenção de todos os males do país, possibilitando, assim, o alcance do modelo desejado de civilização. Mas esta educação, como se sabe, ficou restrita às classes dominantes até o início do século XX, de maneira que o ideal de difusão realizado

das

luzes

porque

incorporavam

a

nunca as

ele

seria

elites o

Relembrando

povo.

“Literatura

não

de

argumento dois

gumes”,

de a

14 Este

artigo apareceu em 1985 no Jornal do Brasil com o título “E o povo continua excluído”, depois de ter sido apresentado na forma de uma fala no II Encuentro de Intelectuales por la Soberanía de los Pueblos

O

argumento aparece também afiado em um artigo posterior de Antonio 189

o


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

literatura, a língua e o conhecimento

Candido delata a impostura dos

teriam prevalecido na América como

governos

instrumentos de dominação, sendo

ampliação da alfabetização no Brasil,

impostos pelo colonizador com a

os quais, multiplicando o número de

finalidade

controle

instituições de ensino, não teriam

social. A voga dos ideais ilustrados

investido na qualidade do mesmo.

não transformaria o quadro, de modo

Contra o risco de ver naqueles anos

que os valores de uma educação que

autoritários o retrato de um “país

conduzisse ao progresso teriam sido

novo”, sem miséria, sem violência e

mantidos sob o interesse das classes

com

dominantes,

Antonio

expressa

que,

do

contrariamente

militares

ótimos

na

índices

Candido

suposta

econômicos, denuncia

a

àquilo que apregoavam, manteriam o

sobrevivência da dependência mais

saber e as luzes como forma de

espúria através da consciência crítica

dominação. A visão de um “país

do subdesenvolvimento.

novo” não contestaria a estrutura

Na estrutura da sociedade, avaliada através da distribuição da riqueza, observa-se a mesma polarização iníqua que ocorre no domínio da cultura intelectual: o máximo de concentração dos bens ou do saber convive funcionalmente com o máximo de miséria e ignorância, como se esta proporção fosse a própria razão de ser da nação brasileira. Não se pode dizer que isto seja fruto de um propósito deliberado; mas é como se houvesse um projeto implícito, decorrente da própria natureza da sociedade vigente. O resultado é que talvez não haja no mundo um afunilamento tão violento, uma coexistência tão chocante dos extremos. (Candido, 2002d: 326)

desigual da sociedade, e as luzes tão estimadas

não

escuridão

da

desmanchariam noite

na

a

qual

permaneceria a maior parte do povo. O ponto não deixa de ser atual principalmente no que diz respeito à falta de investimento numa educação de qualidade que atinja de fato todos os setores da sociedade brasileira. Como

quem

quer

fazer

ver

as

O convívio em ritmo contínuo

verdadeiras intenções por trás de

desta “dança macabra dos extremos”

projetos bem intencionados, Antonio

amplia outra vez a percepção sobre a

de Nuestra América, ocorrido em Havana no

mesmo ano (Candido, 2002d).

190


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

realidade brasileira para o continente

predomínio de analfabetos; em boa

latino-americano. Não que, para o

parte dos países latino-americanos, a

autor, a solução para superar o atraso

diversidade de idiomas; o número

estivesse no mesmo ideal ilustrado

pequeno

dos intelectuais do século XIX, que

publicações;

o

viam no saber o remédio para todos

reduzido;

a

os

males

15

.

Pelo

contrário,

ao

de

e

escritores

editoras,

livrarias,

público

leitor

dificuldade

em

dos

manterem-se

concentrar seu argumento na atrofia

unicamente como artistas. Dizendo

do

latino-

de outro modo, os elementos que

seus

garantiriam a vida do sistema literário,

sistema

americano,

educacional em

todos

os

suportes de difusão do saber – com a

com

exceção de Cuba, que teria esse

contexto eles seriam tão frágeis que

grande mérito –, Antonio Candido

antes

atenta para uma das formas do

desenvolvimento

subdesenvolvimento que a América

público

Latina ainda não teria cuidado em

analfabeto, o que eliminaria uma

transformar.

parcela imensa da quantidade de

Em

“Literatura

subdesenvolvimento”,

neste

desestimulariam

seria

da em

o

literatura. sua

O

maioria

rádio e a televisão, sobretudo esta última, que corrói a expectativa do aumento no consumo de literatura

os condicionantes da estrutura do

erudita, mantendo-os “numa etapa

o

folclórica

de

comunicação

oral”,

diluindo-se na cultura de massas

A propósito de um suposto ideal iluminista em Antonio Candido, Paulo Arantes evidencia o equívoco retomando as sugestões provocativas de Alfredo Bosi. Cf. Arantes, 2004. 15

mais paralisante (Candido, 2011b: 174). Imperaria uma desigualdade 191

que

atraídos nestes novos tempos pelo

existência da literatura”, lembrando

Seriam:

de

que sabem ler minimamente, seriam

Antonio

seriam as “condições materiais de

literário.

diferença

leitores possíveis. Além do mais, os

e

Candido chama a atenção para o que

sistema

a


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

perpetuada por uma elite que se

literatura como consciência. Daí o

fecha em si e se ausenta de promover

estímulo

mudanças

da

desmascarar a realidade camuflada e

sociedade,

tomar como tarefa a abordagem

enquanto proliferaria uma cultura

sincera da sua terra, sem encanto

massificada, moldada, quando não

pitoresco ou tom patriótico. Seria na

diretamente produzida, pelos valores

literatura

dos países desenvolvidos, acabando

subdesenvolvimento

por

nos

superaria o sentimento ilusório sobre

públicos valores estranhos aos dos

o país, dando meia volta na promessa

países subdesenvolvidos.

do “país novo” para penetrar sem

no

democratização

inculcar

Apesar

do

sentido da

negativamente

quadro

transformação

ocorrido

certa forma pela categoria de país subdesenvolvido,

árduo

das

literaturas

miséria

real

homens

assolar

a

população,

privando-a do acesso ao mínimo de

latino-

recursos para manter uma existência

americanas entrevista mais acima.

digna – na economia, na cultura, no

Daí a ênfase de Antonio Candido na 192

os

Antonio Candido, sempre que a

mistificação, respondendo em parte à

autonomia

que

violência do atraso. No entender de

realidade do “homem rústico” sem

da

Brasil

experimentariam com mais força a

diante do interior para abordar a

acerca

no

Latina, pois seria no interior mais

abandonar o tom de curiosidade

posta

tanto

como nos demais países da América

teria

expressado esta transformação ao

pergunta

primeiro

regionais estaria condicionado de

na

realista sobre o nosso atraso. A ficção brasileira

do

do atraso. O interesse pelos temas

literatura, acentuando a visão mais

regionalista

consciência

Candido viveria os efeitos mais duros

uma

determinante

a

em

interior, que na visão de Antonio

de 1930 e o momento do pós-guerra, teria

que

escritores

rodeios na vida áspera do homem do

preocupante,

Antonio Candido relembra a década

quando

dos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

lazer –, persistirão as formas literárias

o caso de Borges. Atuando como

que expressam a discrepância dos

variedade cultural de um mesmo

extremos. Como diz noutro texto, o

fundo de valores e tradições – uma

regionalismo

certa

uma integração menos desigual, pois o que “era imitação vai cada vez mais virando

às literaturas latino-americanas se

para os que veem de fora o interior,

contrapõe ao retrato nada favorável

ou ser alvo da crítica daqueles que

do subdesenvolvimento da América

ainda hoje enxergam na consciência

Latina. Talvez porque o andamento

do atraso uma desfeita ao país,

do social e do literário, por mais que

Antonio Candido integra a América

entrelaçados,

Latina através da consciência da

transformação

empenhadas

sinal

significaria

operada

em

um

outro.

191). A superação da dependência no literário

ritmos

da necessidade de transformação do

de

amadurecimento na escrita (2011b:

plano

a

serviria como estímulo à consciência

quanto as nossas”, o dedo na ferida seria

obedeça

diferentes. Ou, talvez, porque a

afinidade intelectual entre os países.

atraso

recíproca”

tênue otimismo do autor em relação

poder redundar em atrativo pitoresco

do

assimilação

(Ibidem: 187). Ao final, parece que o

atraso na literatura, que a despeito de

“tão

o

desenvolvimento caminharia para a

Por meio da experiência do

literaturas

ibérica”–,

aprofundamento da reflexão sobre o

existiu, existe e existirá, enquanto houver condições como a do subdesenvolvimento, que forçam o escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura urbana. (Candido, 2002b: 86-87)

Em

“opção

Então, uma coisa se desdobra

uma

em outra fazendo ver como os

interação menos desigual no nível

significados não são tão estáveis

transnacional, a ponto de certos

como se poderia supor. A isto se

autores e obras periféricas influírem

soma outro componente importante

nas literaturas de centro, como seria

na visão do autor, podendo-se dizer 193


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

em parte, que o operar por meio dos

obra somente os seus elementos

contrários

pela

formais, ou somente aquilo que a

abordagem da literatura como algo

confirma como produto ligado ao

além

estética.

meio, é exatamente este balanceio

Respeitando a autonomia da obra,

entre a crítica e a sociologia, que

não se furta a lidar com o cenário

procura tirar das duas o melhor

histórico e social no qual ela se

proveito, e que deriva numa visão

insere e do qual, em parte, resulta,

mais abrangente da obra. E entre

tirando proveito da relação entre

outras marcas desse entrecruzamento

literatura e sociedade no rendimento

da sociologia com a crítica literária,

das suas considerações. Ficasse o

um dos lugares onde ele se faz

autor somente dentro das margens

melhor ver é no privilégio da relação

formais do texto, possivelmente as

entre literatura e sociedade no seu

suas análises não teriam o alcance e a

exercício crítico. O interessante é

riqueza

perceber como na visão do autor o

se

da

condição

que

perderia

enriquece

as

na

sua

consagra,

pois

visão

parte

enfoque

predominante

em

constitutiva da obra. Por outro lado,

determinado elemento não exclui a

se sobrepusesse ao estudo estético as

necessidade de se atentar para os

determinações sociais, limitaria o

demais, de modo que a crítica mais

texto

condicionamento

completa da obra literária ou da

externo, fazendo mais sociologia da

literatura deva encará-las no que elas

literatura do que crítica literária.

têm de conjunto. Diante de certos

Como se sabe, a crítica literária de

elementos

Antonio Candido não enveredou por

integrativa da crítica poderia então

nenhum dos dois caminhos. Uma das

exigir

suas especificidades, que não deixa

contrários, que ao estabelecer como

de ser uma opção aos modelos

dinâmica rentável o jogo de opostos,

restritivos daqueles que veem na

desdobrasse

ao

seu

194

díspares,

aquela

a

metodologia

a

partir

força

dos

dele


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

considerações fecundas. Seria o caso, outra

vez,

das

adaptações

e

deformações que teria sofrido a literatura quando incorporada a um contexto

estranho,

quando

não

oposto, àquele do qual era oriunda16. 16 A respeito dessa questão, o argumento de Antonio Candido também pode ser apreendido em “Os primeiros baudelairianos” (Candido, 2011c).

195


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

Referências ARANTES, Paulo. “A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização”. In._______. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, pp. 60-77, 2004. BERNARDET, Jean-Claude. “Uma crise de importância?”. Argumento: revista mensal de cultura, n.1, pp. 107-110, out. 1973. CANDIDO, Antonio. “Le roman latino-américain et les novateurs brésiliens”. In. Proceedings of the seventh congress of the Icla. Stuttgart, Kunst und Wisen - Erich Bieber, edited by Milan Dimiç, pp.289-291, 1978. _______. “Variações sobre temas da Formação” [1967/1980/1985/1987/1997]. In. _______. Textos de intervenção, org. Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002a. _______. “A literatura e a formação do homem” [1972]. In. _______. Textos de intervenção, org. Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002b. _______. “O tempo do contra” [1978]. In. _______. Textos de intervenção, org. Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002c. _______. “Perversão da Aufklärung”. [1985]. In. _______. Textos de intervenção, org. Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002d. _______. “Literatura comparada” [1988]. In. _______. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. _______. “O Congresso dos Escritores” [1975]. In. _______. Teresina, etc.. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007a. _______. Teresina, etc. [1980]. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007b. _______. “Literatura de dois gumes” [1966]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011a. _______. “Literatura e subdesenvolvimento” [1970]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011b. _______. “Os primeiros baudelairianos” [1973]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011c. _______. “Explicação” [1986]. In. _______. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,2011d. _______. A educação pela noite [1987]. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011e. _______. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880) [1959]. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. CARDOSO, Fernando Henrique. “Chile: um caminho possível?”. Argumento: revista mensal de cultura, n.1, pp. 95-103, out. 1973. COTA, Debora. “Argumento: cultura, crítica e literatura de resistência”. In. Boletim de Pesquisa NELIC, v. 4, n. 5, 2001. DANTAS, Vinicius. Bibliografia de Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002.

196


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2016

FURTADO, Celso. “O mito do desenvolvimento e o futuro do terceiro mundo”. Argumento: revista mensal de cultura, n.1, pp. 46-53, out. 1973. GOMES, Paulo E. S. “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”. Argumento: revista mensal de cultura, n.1, pp. 55-67, out. 1973. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: no tempo da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 2001. LAFETÁ, João Luiz. “A dimensão da noite”. In. D'INCAO, Maria Angela; SCARABÔTOLO, Eloísa Faria (Orgs.). Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Cia das Letras, 1992. NITRINI, Sandra. “Teoria literária e literatura comparada”. Estudos avançados, v. 8, n. 22, pp. 473-480, 1994. _______. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: Edusp, 1997. NOVAES, Mariana & MARQUES, Fabrício. “A hora e a vez do Suplemento Literário de Minas Gerais”. Artigo apresentado no 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. OLIVEIRA, Lucia Lippi. “Diálogos intermitentes: relações entre Brasil e América Latina”. Sociologias, ano 7, nº 14, p. 110-129, jul-dez 2005. RAMA, Ángel. “Um processo autonômico. Das literaturas nacionais à literatura latino-americana” [1973]. In. _______. Literatura, cultura e sociedade na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2008. RAMASSOTE, Rodrigo M. A formação dos desconfiados: Antonio Candido e a crítica literária acadêmica (1961-1978). Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2006. SADER, Emir (Org.). “Ditaduras militares”. In. Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, pp.412-413, 2006.

197


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Apontamentos sobre as relações de sociabilidade e metafóricas da brincadeira de cavalo-marinho Notes on the sociability and metaphorical relationships of the “Seahorse Game”. Raquel Teixeira Dias 1 Resumo Este artigo resulta de pesquisa antropológica colocada em diálogo com a micro-história. O universo estudado é a brincadeira e os brincadores do cavalo-marinho de Aliança, Zona da Mata Pernambucana. Minha análise baseia-se em documentação histórica de 1871 e em trabalho de campo. Na primeira parte analiso inquérito policial com negros escravizados, dos engenhos de cana de açúcar da região, acusados de utilizar os brinquedos de cavalo-marinho e maracatu com fins de confabular insurreições contra seus senhores. Na segunda parte problematizo recursos da brincadeira como ironias, comicidade e metáforas com base em pesquisa etnográfica com o brinquedo de Cavalomarinho Mestre Batista. Busco examinar as relações de sociabilidade dos brincadores e metafóricas do brinquedo. Também procuro ressaltar as históricas (e simbólicas) relações assimétricas estabelecidas na região, por meio da brincadeira de cavalo-marinho.

Palavras chave: cavalo-marinho; sociabilidade, simbolismo.

brincadeira,

trabalhadores

da

cana,

Abstract This article results from anthropological research in dialogue with micro-history. The universe researched is the “Seahorse game” ritual and its players in Aliança, Pernambuco. My analysis is based on historical documentation of 1871 and in fieldwork. In the first part I analyze the documentation on slaves in the sugarcane plantations of the region, accused of using the Seahorse and maracatu rituals for insurrection purposes. In the second part, I problematize the resources used in the Seahorse ritual, such as irony, humor and metaphors, based on ethnographic research with one of the members of the ritual, Mestre Batista. I examine the sociability relationships of the “players” and the metaphorical relationships of the “toy”. I also discuss the historical (and symbolic) asymmetrical relationships established in the region, through this ritual.

Keywords: Seahorse, Game, Sugarcane workers, Sociability, Symbolism. 1 Doutoranda em Antropologia Cultural no Programa de Pós-­‐graduação em Sociologia e Antropologia

da Universidade Federal do Rio de Janeiro

198


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

por

Introdução

artigo

resulta

de

pano

pesquisa

micro-história.

estudado é a brincadores

3

O

brincadeira

Zona

Pernambucana. documentação

evidencio

as

Na primeira parte do texto exploro

Mata

fonte

histórica

fundo

e os

da

Com

de

de diversão, cosmologia e política.

do cavalo-marinho de

Aliança,

da

prática cotidiana que envolve planos

universo 2

desenrolar

interações sociais do brinquedo como

antropológica posta em diálogo com a

do

brincadeira de cavalo-marinho. Como

“Corto, cana, amarro cana, deixo tudo amarradinho”1

Este

meio

e

documentação

descoberta

em

pela historiadora Beatriz Brussantin

em

(2010;

2011)

5

.

Trata-se

de

um

trabalho de campo 4 , minha análise

inquérito policial de 1871 no qual

busca conectar dados de ordem,

foram

temporalidade

negros

e

contextos

interrogados

dezenas

escravizados

alguns

particulares num interesse incomum:

agricultores

o exame das relações de sociabilidade

utilizar os brinquedos

dos brincadores e metafóricas do

marinho e maracatu com fins de

brinquedo.

as

confabular insurreições. Na segunda

relações

parte do texto, examino recursos da

assimétricas estabelecidas na região,

brincadeira como ironias, comicidade

e metáforas, contidas em suas loas

históricas

Procuro (e

ressaltar

simbólicas)

1

Trecho de toada de cavalo-marinho. Neste texto utilizo o itálico para identificar as categorias nativas. 2 Brincadeira é uma categoria local que diz respeito a uma série de manifestações tradicionais como cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, caboclinhos, ciranda, coco de roda entre outros. Outros termos para brincadeira são brinquedo, samba, sambada. 3 Brincador é uma categoria local que se refere ao participante de um brinquedo.

acusados

de

de cavalo-

(estrofes poéticas recitadas), toadas (versos poéticos cantados) figuras 6 e 4

Os dados etnográficos advêm da minha pesquisa de mestrado (Teixeira, 2013) realizada entre os anos de 2011 e 2012. 5 SSP Nazaré 247 vol652 APEJE/Recife. 6 Figuras são os tipos da brincadeira como Mateus e Bastião (“escravos” dos antigos engenhos), Catirina (mulher que cozinhava para

199

livres,

e

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

passagens

7

, baseada em pesquisa

trabalha mais o Pisa-pilão, ele pisa o milho e ela peneira. O Soldado tem, o Vaqueiro tem, o Ambrósio tem, Matuto da goma tem, o Mané Romão que é o bebo tem, o Cavalo tem, o Boi tem, Mestre Domingo tem, o Véio tem, Perna de pau tem, Babau tem, Ema tem, Margarida tem. [...] O Verdureiro que vende verduras, o Bicheiro que passa jogo, o Seu Fumeiro que vende fumo, isso é tudo do cavalo-marinho. Tem o Nego quitanda, tem o Doutor, tem o Mané da batata que vem com a Burra, tem a Caipora, o Mané pequenino, Mané chorão, muita coisa. [...]Cavalomarinho é uma coisa que brinca uma noite todinha e ninguém compreende tudo o que tem dentro dele. Tem muita história, tem poesia nele!8

etnográfica realizada nos anos de 2011 e 2012. Não sugiro nenhuma relação de causa e efeito entre tais períodos, nem tampouco ambiciono fazer

uma análise historiográfica.

Meu

objetivo

é

esmiuçar

os

encadeamentos históricos e sociais, para

investigar

certas

narrativas,

representações e subversões que se dão no brinquedo do cavalo-marinho. O brinquedo de cavalo-marinho mobiliza

um

amplo

Para a discussão que realizo

espectro

neste

artigo,

relacionado à vida cotidiana, ao

históricos

trabalho,

relações

as

relações

sociais

e

e

sobre

os

simbólicos

assimétricas

planos de

da

das

região,

cosmológicas. Ele é também repleto

colocarei

de comicidade, poesia e safadeza

figuras e passagens da brincadeira que

(Acselrad, 2002), coisas como “a

se conectam ao universo da cana, às

vadiação, o namoro, a cachaça, o

relações

fumo,

sociabilidade dos brincadores.

a

farra,

e

a

alegria

são

em

de

evidência

trabalho

algumas

e

de

elementos recorrentes” (p. 31). Cavalo-marinho tem muita coisa, muita figura, tem o Fiscal, o Varrerua, o Padre que é da igreja, tem a Morte que é do infinito né, e que ninguém sabe onde ela vive. Tem a tal da Véia sem vergonha, é uma véia que gosta de samba. Tem Lica que

Idealmente um brinquedo de cavalo-marinho pode estender-se por até 8 horas, 85 figuras e 63 passagens. As figuras do cavalo-marinho, que

possuem indumentárias, máscaras e

os negros em suas tentativas de fugas); o Bode (feitor) e o Capitão (senhor de engenho. 7 Categoria local que identifica as partes do enredo (histórias) do brinquedo.

200


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

artefatos próprios, são colocadas9 por

sociais e cosmológicas. Muitas das

dois ou três figureiros 10 . O cavalo-

figuras também estão ligadas a certa

marinho acontece numa roda na qual

memória

se circunscreve a audiência

11

da

escravatura

como

(ou

Mateus, Bastião e Catirina (“escravos”),

assistência) do brinquedo. Os músicos

o Capitão (“senhor de engenho”) ou o

pandeirista,

e

Bode (“capitão do mato”). A fala

) permanecem sentados

abaixo de um mestre de cavalo-

num banco, na frente do qual

marinho, ilustra bem este universo.

(rabequista, mineirista

12

bagista

acontece a brincadeira. As passagens se desenrolam por meio de dezenas de

diálogos,

loas

e

toadas.

O cavalo-marinho tem a curiosidade de fazer esse manual com esse povo e mostrar o que existia. [...] o capitão do campo, ele era do tempo que na escravatura tinha aqueles negros carrasco, o cavalo-marinho botou ele como carrasco também pra infernizar o Mateus. O Mateus é que nem um trabalhador escravo. O cavalomarinho representa coisa que a escravatura tinha, o cavalo-marinho vai e coloca aquela figura que existiu aquilo, não foi do tempo da gente, mas o cavalo-marinho coloca. 14

Os

brincadores também realizam diversos trupés

e

ligeiros)

pisadas e

(passos rítmicos

danças

13

durante

a

brincadeira. As figuras e passagens do cavalomarinho

mobilizam

diversas

Cada

circunstâncias relacionadas à vida

figura

parece

estar

cotidiana, ao trabalho, as relações

fundamentada em uma série de

elementos próprios. Ela possui suas

8 Entrevista concedida por Mariano Teles, mestre do Cavalo-­‐marinho Mestre Batista, janeiro 2012. 9 Colocar ou botar uma figura é a maneira como os brincadores se remetem a quem “incorpora” um determinado tipo como Mateus, Bastião, Capitão, Bode, Empata-Samba, A véia, O Véio etc. 10 Como são chamados os brincadores que colocam as figuras do cavalo-marinho. 11 Como é chamado o público que assiste a brincadeira. 12 Em geral, os instrumentos mais utilizados no brinquedo são: rabeca, pandeiro, bage de taboca (ou reco-­‐reco) e mineiro (ou ganzá).

toadas,

pisadas,

trupés,

mungandas 15 e danças. Idealmente, cada figura possui roupas, máscaras e acessórios específicos. Assim a figura 13 Como o mergulhão, o coco e a dança de São

Gonçalo. 14 Entrevista concedida por Mariano Teles, julho de 2012. 15 Categoria local ligada à comicidade das figuras, às suas “trapalhadas” e “bestalhadas” no brinquedo.

201

loas,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

tem seu nome, aparência, fisionomia,

Os dados etnográficos advêm

comportamento e história. Por fim, a

de minha pesquisa realizada junto ao

corporalidade das figuras no decorrer

Cavalo-marinho Mestre Batista e o

de uma brincadeira parece estar

Maracatu Estrela de Ouro, ambos

ligada

criados por Severino Lourenço da

à

postura

de

um

trabalhador/brincador na própria lida

Silva,

diária com a cana. O trecho a seguir

Batista, falecido em 1991. Seu avô foi

este

o dono de um maracatu criado em

potencial simbolismo do corpo no

1882 com nome de Nação Cambinda

brinquedo do cavalo-marinho.

Nova,

algumas

pistas

sobre

que

assumido

O eixo corporal do Mateus, e da maioria das figuras, é com os joelhos flexionados, a base bem firme no chão e o tronco curvado para frente. A movimentação da cintura para cima é menor. Os trupés todos são localizados na parte de baixo do corpo, com uma movimentação ligeira dos pés e joelhos e passos rítmicos complexos, que sempre acompanham e marcam também os pulsos fortes da música, que é em tempo ternário, com acento nos dois primeiros. Vale observar que esse eixo surge do cotidiano dos brincantes, que em sua maioria trabalham no corte da cana, situação esta que molda seus corpos e se reflete nas suas expressões criativas. Essa organização do corpo, durante a brincadeira, acaba propiciando uma notável agilidade nos pés e pernas, uma vez que a base, bem presente, proporciona imensa estabilidade. O centro do corpo, no abdômen, concentra toda a energia e faz com que a parte de baixo e a parte de cima fiquem bem independentes, dando aos brincantes uma grande flexibilidade e disponibilidade física. (Lewinson, 2007:26)

por

como

Mestre

posteriormente seu

tio

foi

materno.

Mestre Batista fundou o seu cavalomarinho no ano de 1956 e o Maracatu Estrela de Ouro em 1966. Mestre Batista nasceu na década de 30 no povoado de Santa Luzia pertencente ao Engenho Fortaleza, Zona rural de Aliança. Aos dez anos começou a trabalhar nos canaviais onde, ao longo da vida, exerceu diversos tipos de atividades. Na década de 60, após a morte de seu sogro, foi morar e administrar o Sítio Chã de Camará. Batista “comandava” os trabalhos do sítio como a lida com a cana, com a lavoura e a produção de esteiras de

202

conhecido


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

cangalhas 16 que eram vendidas para

brinquedo, após a morte de Batista.

as Usinas de cana. Entre as décadas

Segundo Mariano,

de 60 até 80, havia muitas famílias

trabalhadores da cana e brincadores.

“Batista contava que o pastorio, candango e cavalo-marinho vem de uma época só, diz que foi na época que chegou cana-de-açúcar aqui em Pernambuco, na época da senzala de engenho, os negros quem faziam essas brincadeiras”. [...] A época desses senhores de engenhos não era igual aos donos de engenhos de hoje, era um pouco ignorante, desmantelavam o samba, botavam pra correr, acabava a brincadeira19.

Foi neste ambiente que Batista tocou

Os

que trabalhavam e viviam em casas dentro do sítio, eram mais de cem moradores (Silva, 2008). O lugar assemelhava-se às vilas de engenho da

região,

reunindo

muitos

o cavalo-marinho e o maracatu que ganharam legitimidade e prestígio .

brincadeiras em suas terras. Para tanto,

brincadeiras de cavalo-marinho que

morou

brincar

a

Marinho

Mestre

no

que

onde

permaneceu

comum nos

ocorrer

muitas

terreiros

dos

Se brincava nos terreiros, as pessoas convidavam nos fins de semana, ficava o povo do cavalo-marinho, as vendas, porque se levava coisas [comidas e bebidas] para vender, vendia tapioca, bolo essas coisas, se botava jogo de azar, baralho, se apurava dinheiro para pagar o povo. Mas, o dinheiro era uma besteira, dinheiro pouco. Hoje em dia ninguém brinca mais no terreiro, porque o povo não pode pagar, quem

por

muitos anos. Tornou-se o mestre18 do

16 Utilizadas para o transporte da cana feita no lombo dos burros. 17 O Ponto de Cultura Estrela e Ouro foi criado em 2004 com base em dois brinquedos de cavalomarinho e maracatu. Posteriormente o ponto reuniu outras expressões como o Coco Popular de Aliança e a Ciranda Rosas de Ouro. 18 O mestre do cavalo-marinho tem um amplo domínio do repertório simbólico do brinquedo.

Ele comanda os brincadores e desempenha múltiplas funções. 19 Entrevista concedida por Mariano Teles, abril de 2012.

203

constantes

engenhos.

pouco

depois foi morar no Sítio Chã de Camará,

era

brincadeiras

Cavalo-

Batista,

preciso

seus patrões. Apesar disso, dizem

desde

criança. No final da década de 60 começou

era

negociações entre os trabalhadores e

ocorriam nos diversos engenhos nos e

que

resistentes quanto a realização de

Mariano Teles acompanhava as

trabalhou

contam

muitos donos de engenhos eram

17

quais

brincadores


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

prefeituras

pode pagar é a prefeitura que recebe dinheiro das cobranças de rua20.

Mariano

conta

também

quando um brinquedo

e

governo

estadual,

regidos por certo calendário oficial

que

de festas.

queria se do

Em resumo, o cavalo-marinho

ser

tem sua gênese ligada aos negros

“apadrinhado pela autoridade”, ou

escravizados dos engenhos da zona

seja, fazia-se necessário “pegar ofício

da

com o delegado” de certa localidade.

décadas,

o

Assim, os brincadores tinham que

“dentro

das

estar sempre negociando a realização

demonstra a documentação que será

de um brinquedo, seja com o dono

analisada na primeira parte deste

dos

artigo. Segundo o testemunho dos

apresentar

fora

engenho,

do

era

engenhos,

território preciso

seja

com

as

se

Por outro lado, neste tempo as aconteciam

regularidade

do

que

com

maior

brinquedo

Por

sobreviveu

senzalas”,

como

perpetuou

no

período

das

2012. 21 Os moradores de engenho, trabalhadores que viviam nas terras do proprietário, recebiam como concessão uma casa, acesso a um pedaço de terra para cultivar bens de subsistência e criar alguns animais, além da remuneração pelo trabalho com a cana. O processo de aniquilamento da morada, iniciado na década de 50, não provocou uma ruptura no trabalho com a cana. Pois, os trabalhadores foram viver em vilas, mas permaneceram vendendo sua força de trabalho para os proprietários. Contudo, essa mudança alterou as relações sociais de vínculo entre os proprietários e seus trabalhadores. Na medida em que o morador foi expropriado de determinadas condições de produção e garantias de existência que antes lhe eram asseguradas como casa, terra para plantio, água e lenha. Assim a submissão do trabalhador rural ao proprietário permaneceu por meio de outros mecanismos que dizem respeito ao trabalho e a forma com que é explorado (Sigaud,1979).

atualmente,

que vivem em diversas localidades da Zona da Mata, demanda certo custo e necessidade de organização. Antes, era com a renda obtida com jogatinas paralelas organizadas, e com a venda de comidas e bebidas, que se pagava o trato com determinado brinquedo. Atualmente, a brincadeira é bem dependente de contratos com as Entrevista concedida por Mariano Teles, janeiro

204

Pernambuco.

moradas 21 (Sigaud, 1979), ocorrendo

quando o transporte dos brincadores

20

de

brincadores, o cavalo-marinho também

autoridades policiais.

sambadas

mata


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

dentro das terras dos engenhos.

inspetor

Atualmente,

das

ofício24 ao subdelegado do distrito de

dezenas de brinquedos e centenas de

Nazareth. Este ofício denunciava que

brincadores é da zona da mata, a

negros

maioria ainda trabalha em atividades

avaliados em mais de cem, tinham se

ligadas à cana de açúcar. O brinquedo

reunido para atacar a casa de seu tio,

ainda ocorre nos terreiros dos sítios,

com fins de roubar, matar e gritar a

nas cidades da região e na capital

liberdade. Segundo o relato, tal

Recife.

os

tentativa não teria se efetivado, pois

num

os “escravos” estariam desprevenidos

datas

de armamentos. Prontamente foi

por

emitido o seguinte comunicado do

a

Nos

maior

últimos

brinquedos

estão

calendário

de

comemorativas,

parte

anos,

inseridos festas

e

organizado

políticas públicas de cultura. A

pisada

da

Senzala:

Em março de 1871 um sobrinho do

Secca

23

de

Alagoa

, que exercia o cargo de

22 Trecho de toada de cavalo-­‐marinho. 23 No ano de 1871 os atuais territórios de Aliança (sede do município), e os distritos de Macujê (antiga Lapa), de Tupaóca (antiga Nossa Senhora do Ó), de Upatiniga (antiga Alagoa Secca), “pertenciam” a Nazaré da Mata (Nazareth). Destaco que Aliança é o município do Cavalo-­‐Marinho Mestre

de

um

engenhos,

Alagoa

Secca,

Batista, com o qual realizei minha pesquisa etnográfica. 24 SSP Nazaré 247 vol652 APEJE/Recife. 205

diversos

enviou

Ilustríssimo Senhor, constando-me que entre os engenhos Alagoa Secca e Urubu há um pequeno arraial e ali nos dias santificados há reuniões de vadios, folgazões e com uma porção de escravos de diferentes pontos, onde se tem tratado de negócios perniciosos, correndo o boato que no último maracatu de sábado para o domingo passado reunirem-se mais de quinhentos escravos de diferentes engenhos, Vicência e diferentes lugares. Estando, portanto, na devida apreciação disto tenho concluído que o fato é verdadeiro, porém um pouco exagerado. [...] e inclusive a canalha que a pretexto de cavallos-marinhos e outros brinquedos desta ordem ali se reúnem para fins sinistros. Hoje prestei auxílio ao Senhor de engenho

“É pra matar, levanta o pau. É pra matar, levanta o pau”22

Engenho

polícia,

dirigido ao Delegado de Nazareth.

cavalo-

1871.

do

de

subdelegado

marinho, maracatu e liberdade em

senhor

de


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

descreve o trecho a seguir, todos

Alagoa Secca para capturar dois escravos seus que dizem serem influentes neste negócio correndo a averiguação do dito Senhor de engenho, cujo resultado ainda ignoro e com tudo isso seja no próximo distrito desta cidade cumpre que Vossa Senhoria de as ordens convenientes devendo cientificar-lhe que estou bem informado que de sábado próximo vindouro há oito dias há reunião magna naquele ponto. Será, pois, conveniente que na noite do indicado dia esteja a polícia em atitude em todos os pontos da comarca para conhecer da verdade capturando quantos escravos transitarem sem motivo justificado. Presumo ter informado com a precisa clareza quanto é mister para o governo de Vossa Senhoria. Assim vos guardo por dilatados anos. 25

seguiram em direção ao engenho Alagoa Secca para fazer um cerco nas senzalas, de modo a prender os “escravos” “indicados de estarem no conluio

[...] A esta subdelegacia se apresentaram os proprietários dos engenhos Alagoa Secca, Cipoal, Camaleão e Veludo deste distrito, acompanhados por Antônio Tavares de Araújo e Luiz de Andrade de Albuquerque Maranhão senhores dos engenhos Taquara e Gotiubinha dizendo-me que suspeitavam com fundamento que as fábricas se achavam insubordinadas e que em vias atrasados em lugares determinados já se havia reunido com os fins sinistros de assassinarem aos senhores e roubarem para em seguida darem o grito de liberdade. Não devendo desprezar semelhantes informações partidas de proprietários abastados e credores de todo o conceito, na conformidade das ordens de Vossa Senhoria, resolvi auxiliá-los dirigindolhes com as forças que de momento pude reunir acompanhado pelo alferes comandante do destacamento Severino Vieira da Paz e praças do mesmo destacamento, segui acompanhado dos proprietários em direção ao engenho Alagoa Secca para fazer junção com a força que de ordem de Vossa Senhoria ali devia achar-se pelas duas horas da madrugada.

levou em consideração tais “boatos 26

e

deu

“parte

do

quilombo27”. Fez então marchar um inspetor, acompanhado de 50 praças de polícia da guarda nacional, que se juntaram ao subdelegado de Nazareth e

aos

engenhos

proprietários da

de

região.

alguns

Conforme

25

Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley, emitido pelo Subdelegado Feliciano José de Mello. Subdelegacia de Polícia do3º Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife. 26 17 de março de 1871. Ofício do subdelegado de polícia Feliciano José de Mello de Alagoa Secca dirigido ao delegado de Nazareth, João Calvacante Maurício Wanderley . SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. 27 Idem.

28 14 de março de 1871. Ofício do delegado de polícia João Calvacante Maurício Wanderley dirigido ao chefe de polícia de Narareth Luiz Antonio Fernandes Pinheiro. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. 206

premeditada

insurreição”.28

O subdelegado de Alagoa Secca

aterradores”

da


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Durante o inquérito, cada preso

Chegando ali há uma hora da noite esperei até que chegasse a força e com efeito pelas duas horas da madrugada chegaram 50 praças e um inspetor de quarteirão mandados pelo subdelegado capitão Feliciano José de Mello e reunindo-a com a força que levei parti para o engenho Alagoa Secca com seu proprietário, procedi o cerco nas senzalas e prendi aos escravos por ele indicados dos comprometidos, e depois de os por em segurança, segui para os engenhos Cipoal e Camaleão onde procedi iguais varejos, prendendo a 30 escravos nos três engenhos e os fiz recolher a cadeia, e já os sigo interrogando para ver se consigo obter a verdade e o resultado do que colher participarei a Vossa Senhoria, devo ainda dizer a Vossa Senhoria que fiz igualmente recolher a dois indivíduos de nome Joaquim Guabiru e José Pedro Leitão por dizerem que nas casas destes que os escravos faziam suas reuniões. 29

Nesta

30

ocorrido no engenho de

Alagoa Secca, por quem tinha sido convidado e se tinha escutado (e a que se destinava) os gritos de vivas neste samba. O preso também era coagido a identificar os homens libertos que teriam frequentado o samba. Outra pergunta frequente tratava

da

existência

de

algum

convite para matar seus senhores e senhoras ou para roubar as vilas e os engenhos.

Identifiquei

ainda

as

seguintes interrogações recorrentes dirigidas aos negros escravizados: se

diversos

tinham ouvido dizer que a Rainha

engenhos, além dos homens livres

iria para o Recife dar a liberdade a

que se identificam como agricultores.

todos os “escravos”, e portanto se

Todos

eles estariam confabulando uma ida

escravizados

foram

foram

samba

presos

negros

ocasião

foi questionado se tinha assistido ao

de

interrogados

pela

delegacia e subdelegacia de Nazareth

ao

na presença, inclusive, do promotor

convidados por alguém para assistir à

público.

missa

29 9 de março de 1871. Ofício do subdelegado de polícia José Pinto de Souza Neves dirigido ao delegado de Nazareth, João Calvacante Maurício Wanderley. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.

30 É comum que a palavra, samba, se refira a brincadeira de cavalo-­‐marinho e/ou maracatu. Também pode ser utilizada como sinônimo de festa, farra, ou um estilo de improviso utilizado pelos mestres no Maracatu Rural, ou no próprio cavalo-­‐marinho. 207

Recife;

da

e

se

Conceição

tinham

na

sido

Capela


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Louvação de Alagoa Secca, onde, de

Pedro (que também foi preso e

acordo com o boato, haveria a leitura

interrogado).

de um “papel da liberdade dos

Alguns

escravos”, que estaria em poder do

dos

interrogados

confirmaram a presença de libertos

capelão desta igreja31.

neste samba, que contou com a

Dos que confessaram a ida ao

participação dos negros (mais de

samba, quatro declararam que o

duzentos,

convite foi feito pelo escravo Rufino

procedentes de diversos engenhos

(do engenho Alagoa Seca). Muitos

como Alagoa Secca, Bonito, Coricó,

negros

Sipual,

escravizados

apontaram

dizem

Camaleão,

os

relatos)

Terra

Preta,

Rufino como sendo também o “chefe

Caricé, Pau D’Alho, Rosário, Talau,

do samba”. Outros afirmaram não

Marotos e Veludo.

terem tido convite de ninguém e que

Vários negros disseram que o

teriam ido por simples curiosidade. Seis

“escravos”

declararam

samba

que

sido

motivado

pelo

batizado de Daniel, filho de Rufino.

souberam do samba por estarem em

Assim, ao contrário do que sugeriam

um Saravá na casa do agricultor José

as autoridades os gritos de vivas, não

31 Em sua tese, Beatriz Brusantin (2011b) lembra que a Lei do Ventre Livre, foi promulgada em setembro daquele ano (1871). Deste modo, seria provável que no mês de março (época do interrogatório) já houvesse rumores sobre alguma modificação legislativa em prol dos “escravos”. Além disso, desde o fim da Guerra do Paraguai em 1870, haviam sido retomadas as discussões sobre a emancipação dos “escravos”, e tal fato pode ter reverberado nas conversas das casas grandes e senzalas, contribuindo para a ideia de que a libertação dos “escravos” estava próxima.

eram “gritos de liberdade” ou por acreditarem “já estarem forros, mas sim gritos de homenagem ao batizado da criança, filho do chefe do samba. Todos negaram que as reuniões dos negros eram um conluio para roubar e matar seus senhores e senhoras. Também disseram nada saber sobre a ocasião da leitura do

208

teria


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

papel da liberdade pelo capelão na

O “escravo” José Loiola (do

Capela Louvação de Alagoa Secca.

engenho Alagoa Secca) disse que ouviu Rufino dizer que a Rainha

Contudo, alguns confirmaram a

vinha para o Recife dar a liberdade a

existência de rumores referentes à

todos os “escravos”. O “escravo”

libertação da escravidão. O “escravo”

Juvenal

Luis (do engenho Sipual) disse que

os

engenho de Limeira) havia dito há

Vicente,

feitor

do

brevemente

seriam

Rufino havia dito que estava em busca dos “direitos” para libertar os

relatou que este Francisco havia o

negros

(do engenho Caricé) relatou que

negros

escravizado, do mesmo engenho,

convidado

Camaleões)

alforriados. O “escravo” Alexandre

mais de dois meses que não existiam “escravos”.

engenho

respondeu que Rufino havia dito que

um “escravo” de nome Francisco (do

mais

(do

negros escravizados. Falou também

engenho

que João Mandeiga (do engenho

Sipual para ir à Nazareth buscar a

Papicú) havia dito que os negros

liberdade. O “escravo” José Luis (do

estavam todos forros, e só era preciso

engenho Bonito), relatou que os

esperar a chegada da Rainha.

negros falavam muito ao respeito da liberdade que estava por vir. Disse

Disponibilizarei a seguir um

que seu próprio senhor lhe havia dito

trecho do interrogatório do “escravo”

que a liberdade estava para chegar,

Rufino, de Alagoa Secca, apontado

mas enquanto ela não vinha, era para

como chefe do samba, e indicado

se trabalhar com gosto. O “escravo”

como alguém envolvido em boatos

Luis (do engenho Rosário), apontou

sobre a liberdade.

que

um

Constâncio

“escravo” (do

de

engenho

nome

[...] Perguntado se tinha assistido a um samba que se dera em terras do engenho Alagoa Secca no dia cinco do corrente e se tinha sido chamado por alguém? Respondeu que fez o samba por ter batizado um filho pela festa de natal. [...] Perguntado mais se no dia do samba ele respondente não se havia

Bonito)

andava fazendo convites para que os “escravos” seguissem pelos engenhos a exigir a liberdade. 209


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

dos senhores”, os “escravos foram

combinado para sair a outros ou quais dias a roubarem e assassinarem o seu senhor e depois sair para outros lugares com o fim de matar os senhores dos outros escravos e gritarem a sua liberdade? Respondeu negativamente. Perguntado mais em que lugar haviam feito o samba já referido? Respondeu que entre a casa de Joaquim Guabirú e uma mulher de nome Vivencia que moram fora do engenho do seu senhor mais a pequena distância. Perguntado mais porque não fez o samba na senzala? Respondeu que não fez com receio de que o seu senhor brigasse. Perguntado mais se no samba ouviu vivas? Respondeu que apenas houveram dois vivas um a ele respondente e outro a Daniel e que não é exato ter se dado viva a liberdade e que não é exato ter Antônio de Castro, escravinho de seu senhor dado viva a este sendo esse viva referido para ele respondente [...].32

Desse

modo,

castigados

palmateadas

e

açoites, e depois foram entregues a seus senhores"

33

. Em seguida, o

delegado ordenou a "formação" de piquetes em diferentes lugares de Nazareth com a ordem de capturar os “escravos” que transitassem depois das nove horas da noite, sem uma autorização

por

escrito

de

seus

senhores. Segundo as autoridades, isso funcionaria como uma "medida preventiva"34 para evitar as rebeliões. [...] tendo procedido os interrogatórios chegou ao conhecimento de que com efeito havia este plano e eles aliciavam outras fábricas [escravos de engenhos] para mais tarde darem o grito de liberdade e assassinarem os senhores. Isso ainda foi confirmado pela fábrica dos engenhos Bonito e Ribeiro Grande. Concluído os interrogatórios foram a requerimento dos respectivos senhores, castigados (com moderação) aqueles que se verificou serem coniventes e depois entregues aos donos. E não tem constado nada mais a ver a respeito. Tendo no entretanto

Rufino

confirmou a versão dada pelos outros negros, já que afirmou ter realizado o samba por conta da comemoração do batizado de seu filho Daniel, o que também justificaria os gritos de vivas. Além disso, negou qualquer ligação

33 3 de abril de 1871. Ofício do delegado de polícia João Calvacante Maurício Wanderley dirigido a Luiz Antônio Fernandes Pinheiro, chefe de polícia de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.

com as possíveis mobilizações por busca da liberdade. Após a conclusão dos interrogatórios, “a requerimento 32 10 de março de 1871. Interrogatório feito ao escravo Rufino. Delegacia de Polícia de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.

34 17 de março de 1871. Ofício do subdelegado de polícia de Alagoa Secca, Feliciano José de Mello, dirigido a delegado João Calvacante Maurício Wanderley, delegado de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.

210

com


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

A

oficiado a todos os subdelegados para conservarem os inspetores com piquetes e alerta e bem assim avisei aos senhores de engenhos que se acautelassem35.

“escravos”,

apontamentos.

a

lembra

da

região

nesta

sobre

o

plano

de

insurreição, o interrogado disse que no samba só havia “pessoas a cantar,

sociabilidade entre os trabalhadores cana

questionado

afirmar que nada ouviu a respeito da

certos

planos conectados às relações de

da

dos

divertimento dos brinquedos. Pois, ao

outros

Evidencio

quando

um

samba e atos de insurreição, nos

nos ofícios e interrogatórios nos também

de

sobre as possíveis ligações entre o

A análise das pistas contidas

conduzem

resposta

beber aguardente e dançar”36.

época

(escravizados e livres). Tais planos

O aspecto político possibilitado

dizem respeito às interações sociais

pelas

no domínio de práticas cotidianas de

brinquedos é a dimensão que fica em

diversão, devoção e política.

relevo na análise da documentação.

interações

no

espaço

dos

Fica claro que ocorriam frequentes

Verificamos que era cotidiana a

conversas sobre o tema da escravidão

interação social entre os negros

e sobre os possíveis planos de ação

escravizados de diferentes engenhos

em favor da libertação.

e os agricultores livres da região. Tais encontros ocorriam nas brincadeiras

Também ficamos sabendo que

de cavalo-marinho e de maracatu que

as brincadeiras costumavam ocorrer

podiam

nos dias santificados, o que nos

localizados

ocorrer dentro

em ou

espaços fora

das

remete ao plano da devoção. Por

senzalas.

outro

35 14 de março de 1871. Ofício do delegado de polícia João Calvacante Maurício Wanderley dirigido a Luiz Antônio Fernandes Pinheiro, chefe de polícia de Nazareth. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife.

encontros

verificamos entre

os

que

os

negros

36 Interrogatório feito ao escravo Antônio (Engenho Camaleões). 10 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. 211

lado,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

escravizados

e

agricultores

livres

agricultores livres da cana. Esta

podiam ocorrer de outras formas,

sociabilidade envolvia momentos de

visto que alguns dos interrogados

diversão, conversas e luta política em

relataram terem ficado sabendo da

busca da liberdade e até ligações com

realização do samba, por estarem na

práticas devocionais.

casa de um homem livre em um

Penso que as relações de

saravá ocorrido naquele mesmo dia.

sociabilidade

Lembro que saravá é um nome

“escravos” e homens livres diziam

genérico

como

respeito também ao fato de serem

Batuque, Linha Cruzada e Umbanda.

sujeitos submetidos a uma série de

Além

dos

explorações sociais. Era a potencial

brinquedos e as práticas religiosas de

insurgência de revolta o que tornava

muitos dos brincadores possuem até

as reuniões de tais sujeitos algo

hoje forte ligação com a Umbanda,

potencialmente perigoso para seus

Jurema e Xangô (D'Amato, 2006;

donos e patrões. O medo de uma

Feitosa, 2011; Garrabé, 2010; Silva,

insurreição (pelo grito de liberdade!)

2005; Silva, 2008). Portanto, acho

era

uma hipótese plausível que o saravá

engenho

acionaram

os

poderes

ocorrido no dia do samba, reunindo

policiais

locais.

Os

quais

“escravos” e homens livres, fosse

providenciaram averiguações, prisões

uma denominação deste universo

e interrogatórios, que resultaram

religioso.

numa série de castigos (palmateadas

dado

disso,

a

a

religiões

cosmologia

de

marinho e maracatu se configuravam um

lugar

de

transito

os

os

senhores

de

piquetes

a

fim

de

capturar

“escravos” que transitassem, depois

da

das nove da noite, sem autorização

complexa sociabilidade (Strathern,

dos senhores. Algo que certamente

2006) estabelecida entre os nestros escravizados, mas também com os 212

que

entre

e açoites). Além do estabelecimento

Enfim, os brinquedos de cavalo-

como

tanto,

dadas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

dificultaria

a

realização

das

próprios. Nota-se que o referido

brincadeiras dentro dos engenhos.

documento registra termos como cavalo-marinho, brinquedos, samba e

“Cavalo-marinho é muito velho, tem

folgazões. As categorias de brinquedo

pra lá de 400 anos”37

e

brincadeira

possuem

diversos

Alguns autores defendem a tese de

aspectos simbólicos relacionados ao

que brincadeira do cavalo-marinho é

cotidiano,

uma derivação do bumba-meu-boi

cosmologias dos brincadores. Samba e

(Grillo 2011; Souza 2010). Segundo

sambada são até hoje termos usados

esta versão, o cavalo-marinho se

por eles para se referenciarem à

diferenciou

do

bumba-meu-boi

ao

trabalho

brincadeira/brinquedo

e

de

e

às

cavalo-

passou a ter denominação própria na

marinho e maracatu. Muitas vezes é o

década de 1960. Souza (2006) indica

nome dado a “uma espécie” de

que foi a partir de 1980 que os

ensaio destes brinquedos, onde os

pesquisadores começaram a utilizar o

brincadores brincam à paisana, sem

termo cavalo-marinho. Em oposição a

indumentárias. As saídas do maracatu

esta perspectiva, a documentação de

para o carnaval, também costumam

1871 aqui explorada, assim como os

ser

testemunhos dos brincadores, atestam

também utilizados como sinônimos

que ao menos desde o século XIX o

de brincadeira, festa, farra e de um

brinquedo, sob esta denominação, já

estilo de improviso do maracatu.

ocorria nas senzalas dos engenhos da

Com

Zona da Mata Pernambucana. O quê

folgazão

que, já nesta época, concepções e

estavam

deste repletas

universo de

base

sambada.

no

era

(pelas

relacionado a vadios

social

São

inquérito,

autoridades) 38

. Encontrei

significados

37 Entrevista concedida por Mariano Teles,

abril de 2012. 38 Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do Subdelegado.

213

de

podemos apreender que o termo

me interessa neste ponto é ressaltar

categorias

chamadas


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

outros documentos da delegacia de

noção de divertimento permanece

Recife (entre os anos 1868, 1870 e

como uma das concepções básicas

187439) que tratavam de regular (dar

que

visto de autorização ou mudar lugar

brinquedos

de

realização)

os

brinquedos

de

envolve

os

são

brinquedos. tidos

entretenimento,

um

como

Os um

divertimento

maracatu. Tais documentos também

para quem o faz e para quem os

mencionavam os termos brinquedo e

assiste,

folguedo. Dizia que este brinquedo era

Mariano Teles.

um divertimento que deveria ter sido

estava sendo tolerado na capital. Em tais documentos a noção de folguedo era também entendida como o ato de

aproximada

à

de

opostas. “Fazer o povo gostar e se entre

os

divertir”,

meus

como

os

brincadores

costumam dizer, tem a ver com “fazer

interlocutores, a pessoa que brinca o

direito”. Para tanto, é necessário

cavalo-marinho pode ser chamada de

certa disciplina e seriedade para com

brincador, sambador ou folgazão. A

o brinquedo. Além disso, a disciplina

tem a ver também com o fato da

Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol. 652 APEJE/Recife. “Constando-me que entre os engenhos Alagoa Secca e Urubu há um pequeno arraial e ali nos dias santificados há reuniões de vadios, folgazões e com uma porção de escravos de diferentes pontos, onde se tem tratado de negócios perniciosos” 39 Delegacia de polícia da capital, 22 de janeiro de 1870; Delegacia de polícia do primeiro distrito termo da cidade de Recife 25 de outubro de 1874; Delegacia de polícia do primeiro distrito da capital, 14 de setembro de 1868. SSP 420 e SSP 425.

função de cada um no brinquedo, uma ideia próxima à de obrigação, de compromisso com o seu papel dentro da

brincadeira,

para

com

seus

companheiros e perante a audiência.

214

fala

brincar e de seriedade não são

de

vadiação. Atualmente,

a

Vale ressaltar que a ideia de

folgar, se divertir, e a ideia de era

explica

A brincadeira pra mim é um tipo de diversão, a gente brinca ela assim fora do contexto da luta diária, que a gente temos de lutar para ganhar o pão. Para mim ela é uma diversão fora, tipo uma fantasia no final de semana, [...] e isso aí para alegrar, para o povo sorrir, e se sentir honrado pelo o que faz40.

tomado das terras africanas e que

folgazão

como


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

No inquérito de 1871, muitos

O “enredo estrutural” do cavalo-

negros escravizados disseram que o

marinho se desenvolve a partir de um

samba tinha um chefe que teria

baile que a figura do Capitão (“senhor

organizado e convidado muitas das

de engenho”), planeja oferecer aos

pessoas

Santos

envolvidas.

Hoje,

estas

funções

do

mestre

de

do

Oriente.

Ele

“contrata” então Mateus e Bastião

poderiam ser consideradas algumas das

Reis

um

(“escravos”)

para

cuidar

do

seu

brinquedo. O mais comum é que o

“terreiro”. Depois do marguio 43 , os

mestre

do

brincadores se retiram. O Capitão 44

brinquedo, ou seja, ele quem possui,

permanece no terreiro junto ao

guarda, conserva e renova todas as

banco. Inicia-se então, gradamente,

máscaras, as roupas, e os artefatos

as entradas e saídas das figuras na

que um brinquedo possui. O mestre

roda

comanda a brincadeira, e está sempre

“mandadas embora” pela entoação

atento ao “bom cumprimento” das

das toadas.

seja

também

o

dono

funções de cada um dos brincadores,

que

são

“chamadas”

ou

Mateus é a primeira figura que

dos figureiros e do banco41. Por fim, o

entra no terreiro, chega arrastando-

mestre é um grande conhecedor de

se no chão, assim como seu pareia

todo o repertório narrativo, musical e

(parceiro), o Bastião que é chamado

poético que envolve o brinquedo.

em seguida. Apesar de Mateus ter

Sobre ironia, comicidade e metáfora

uma função um pouco mais ativa na

no brinquedo de cavalo- marinho

brincadeira, as duas figuras possuem

“Senhor de engenho tá no inferno, labrador tá nas profunda” 42

43 Espécie de aquecimento da brincadeira onde o público também participa ativamente. Com os pés ou com as mãos, os brincadores indicam ou puxam um parceiro de um lado oposto do círculo para o dentro da roda, onde são improvisados diversos tipos de trupés, pisadas e rasteiras. 44 A figura do Capitão, em geral, é

40 Entrevista concedica por Mariano Teles, abril

de 2012. 41 Categoria local que identifica o grupo de músicos e instrumentos do brinquedo. 42 Trecho de toada de cavalo-­‐marinho.

colocada pelo próprio mestre do brinquedo. 215


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Ambos

negros escravizados de Mateus e

permanecem do início ao fim do

Bastião, assim como o matulão, que é

samba. Os dois possuem uma bexiga

uma trouxa improvisada. Segundo o

de vaca ou de boi utilizada como

mestre Mariano Teles, o matulão seria

instrumento sonoro e marcação de

a bagagem de um “escravo” que, ao

ritmo45 ao batê-la em suas pernas. A

fugir, carrega amarrado à sua cintura

bexiga também serve para “surrar”

os poucos bens materiais que possui.

várias

semelhanças.

ou defender-se de outras figuras.

O Capitão negocia com Mateus

Mateus e Bastião possuem vestimentas

para “tomar conta e dar conta”46 do

e acessórios parecidos, como roupas

terreiro

com estampas marcantes, chapéu em

terreiro. A partir daí desdobram-se

Durante as danças, trupés, diálogos e

outras

as diversas estripulias que os dois

colocadas

protagonizam, as batidas das bexigas, e

os

baile.

passam identificar como donos do

matulão feito de folha de bananeira.

caretas

o

pareia. Contudo, Mateus e Bastião

laminados coloridos e brilhantes, e o

cômicas

ocorrerá

Bastião é chamado para ajudar seu

forma de cone coberto com papéis

as

onde

tantas 47

passagens.

dezenas

de

acompanhadas de trupés,

gritos

48

São figuras, danças,

loas e toadas. A parte musical é

estridentes são fortes marcas. Enfim,

executada pelo banco do brinquedo.

os gestos, as expressões e os diálogos dos dois são repletos de comicidade.

Quando Bastião é chamado a

Os rostos melados de preto com

roda, seu pareia Mateus se mostra

carvão são símbolos da condição de

46 Fala típica nos diálogos entre o Capitão e Mateus. 47 Colocar ou botar uma figura é a maneira como os brincadores se remetem a quem “incorpora” um determinado tipo como Mateus, Bastião, Capitão, Bode, Empata-­‐Samba, A véia, O Véio etc. 48 Passos rítmicos e ligeiros.

45 Em todas as evoluções e trupés dos pareias a “bateção” de bexiga é um importante elemento que os acompanham. Luiz Carneiro, quem coloca o Bastião, explica que além de sincronizadas, as bexigas precisam estar em ritmo com as toadas do banco, especialmente, “no instrumento do pandeiro e do mineiro, ali a gente faz o som da bexiga. Porquê se a gente for no ritmo das bages não acompanha”.

216


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

muito

animado,

se

ser contraditório o enredo, no qual

cumprimentam sentados no chão,

dois “escravo” travam uma tentativa

encangados, ou seja, entrecruzam as

de negociação de dinheiro com seu

pernas um no colo do outro e se

patrão

abraçam ao mesmo tempo. Todo o

serviço. Contudo, simbolicamente,

desenrolar, seus gestos e expressões

há de se levar em conta que na

são

dois

região, desde o tempo da escravidão,

realizam uma série de diálogos com o

passando pelo período da morada, ou

Capitão, especialmente, no que diz

quando os trabalhadores foram para

respeito à empeleitada, ou seja, ao

a rua, eles continuaram a trabalhar

trato da quantia de dinheiro para a

com

execução do serviço que estão sendo

senhores de engenho”. Os antigos

contratados. Destaco que a maioria

donos

das figuras que chegam no terreiro

passaram a ser patrões, mantendo-se

tem improvisações semelhantes em

senhores e donos da terra. A relação

relação à empeleitada, que se baseiam

entre os trabalhadores e os patrões,

em

independente

muito

uma

e

engraçados.

confusa

valores,

os

dois

Os

negociação

tentando

de

O

apesar das figuras negociarem os

e

não

negros

da

os

“mesmos

escravizados,

época,

sempre

etnomusicólogo

John

o cavalo-marinho na década de 199049,

paga

sustenta o seguinte:

nenhuma delas.

[…] a encenação evoca em seus participantes uma imagem ideal das relações patrão-empregado no cenário da plantação de cana tradicional. E ao evocar, critica não apenas o

É interessante também pensar nas inúmeras relações envolvidas

49 Um dos principais interlocutores da sua pesquisa foi Mestre Batista.

entre as figuras de Mateus e Bastião. Em um primeiro momento parece 217

dos

para

Murphy, que realizou pesquisa sobre

preços dos seus serviços, o Capitão enrola

cana

determinado

acerca de seus deveres e direitos.

ser pago. É significativo relatar que

as

a

realizar

envolveu tentativas de negociação

enganar-se

mutuamente acerca do montante a

sempre

para


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

“escravos”, Mateus e Bastião. Acredito

comportamento dos patrões – a base para a visão estabelecida sobre o bumba-meu-boi e o cavalo-marinho como crítica social – mas também o dos empregados que deixam de cumprir suas responsabilidades. (Murphy, 2008:13)

Para

Murphy

(2008)

que a multivocalidade simbólica da brincadeira é o que proporciona o trânsito entre elementos distintos e contraditórios no discurso.

a

brincadeira deve ser compreendida

Em

passagem

uma

da

como uma “janela para a visão moral

brincadeira, o Capitão chama à roda a

dos seus participantes, imprensados

figura do Soldado da Gurita para

entre

paternalismo

prender Mateus e Bastião. O soldado

tradicional e sua substituição pela

traja calça comprida, paletó, uma

economia da indústria local moderna

máscara de couro de bode, um boné

da cana-de-açúcar” (p.132). Enfim,

de militar e carrega uma espada. Do

seu principal seu argumento é que,

alto de sua autoridade, o militar tenta

apesar de envolverem críticas às

prender os “escravos” presepeiros, os

relações de poder hierárquicas da

“amarram” no chão e os bolinam

brincadeira também as

com sua espada. Mateus e Bastião

a

região, a

morte

do

reforçam.

Concordo

que

brinquedo,

em

passagens,

certas

o

enfrentam e rechaçam o soltado com suas bexigadas.

celebra as figuras simbólicas “de

50Sou

um Soldado da Gurita Soldado véio dispensado Boto um apito na boca Chamo pelo delegado Se Capitão dá licença Eu do nesses nêgo amarrado (Oliveira, 2006: 398).

autoridades” como a do senhor de engenho, do padre, do capataz ou de alguma autoridade policial. Por outro lado, também há diversas situações

Apesar

de desconstrução deste status e de

muitos

momentos

soldado

de

persegue

dois

negros

escravizados e os violentam com sua

perseguições, “açoites” e lutas entre

50 Exemplo de loa do soldado.

tais figuras “de autoridade” e as dos 218

situação

possivelmente dramática, onde um

deboche direcionado a elas. Ademais há

da


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

espada, e do momento ser uma

partes de um mesmo conjunto de

espécie de luta e enfrentamento, esta

práticas coerentes entre si. Ou seja,

é

da

os atos simbólicos presentes na

o

subordinação são vinculados ao seu

soldado enfia sua espada nas partes

processo de exploração material. Do

íntimas de um dos negros é comum

mesmo modo, a resistência velada às

se escutar gritos como: “Ai, Seu

ideias de dominação, não é separável

soldado!

das

uma

parte

brincadeira.

muito

Às

Ai!

vezes,

Ai!

cômica quando

Pára!

Entrou!

lutas

concretas

contra

a

Entrou! Aiii, gostei!” Neste ínterim

exploração. São como duas frentes,

então, conforme o soldado molesta

uma mais ligada ao campo da prática

Bastião, Mateus o esmurra com sua

outra ao discurso. Na dialética entre

bexiga, e vice-versa. A confusão

essas

resulta por fim na expulsão do

acertado conceber o discurso oculto

soldado do samba, e da opressão que

como uma condição da resistência

ele representa. Este é um dos muitos

prática, do que como um substituto

momentos do brinquedo no qual a

dela.

“imagem” de violência e opressão é

Partindo

combinada com a ideia de “sarcasmo

entre

A análise de James Scott (2007) os

de

da

seria

mais

dialética

de

os

subordinados

e

os

dominantes, Scott (2007) determina o

resistência

que chama de discurso público e

cotidiana, o discurso oculto, ou ainda

discurso oculto. O primeiro diz

sobre

e

respeito à conduta do subordinado

polissêmicos presentes na cultura

na presença do dominador, enquanto

popular é profícua para se pensar tais

o segundo configuraria o que se

relações na brincadeira. Scott (2007)

passa fora de sua observação direta.

afirma

resistência

O discurso oculto, que nos interessa

material quanto a simbólica são

aqui, estaria assim constituído por

os

tipos

frentes,

ocultamento e vigilância das relações

e safadeza”.

sobre

duas

elementos

que

tanto

ambíguos

a

219


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

manifestações linguísticas, gestuais e

som que provoca a batida de uma

práticas,

ou

bexiga produzem um efeito de uma

no

grande surra, no entanto, a força com

discurso público. As técnicas do

que realmente uma bexiga acomete a

ocultamento citadas por Scott são

vítima é irrelevante, o que torna seu

elementos como o anonimato, o

feito algo bem engraçado. Por outro

eufemismo, e o que ele chama de

lado, as inúmeras risadas que tais

“refunfuño”.

situações

que

contradizem

confirmam

o

que

aparece

dos negros escravizados51. A risada e o cômico são também por vezes “utilizados” na brincadeira a título de efeito maquiador. Coisas que, tomadas a sério, poderiam causar

algum

tipo

de

chega

a

constrangimento, ao serem tratadas

completamente,

o

em tom de chacota, ou mesmo

dos

seguidas por uma careta, se tornam

que

eufemismo

também

insubordinações e enfrentamentos

Compreendido como alusão ao

manifestar-se

são

uma maneira de “desconstruir” as

Una analogía sodolingüística adecuada de mecanismo es la transformación, gracias al eufemismo, de lo que sería una blasfemia en una mera insinuación de blasfemia, que evita las sanciones aplicables a la blasfemia explícita. Eufemizarión es un término adecuado para describir lo que le sucede a un discurso oculto enunciado por un sujeto que quiere, en una situación de poder, evitar las posibles sanciones contra la declaración directa [...] (Scott, 2007:184).

insulto,

provocam,

nunca

parece

ser

um

recursos simbólicos utilizados na

engraçadas

brincadeira. Como, por exemplo, o

seguinte toada da figura Mané do

uso que Mateus e Bastião fazem da

motor.

bexiga

do

boi.

As

bexigas

banais.

Como

na

Senhor de Engenho Vai pro inferno E labrador vai pras produnfas E o cambiteiro vai atrás Com os cambito nas cacunda Fogo meu, Fogo! (Oliveira, 2006: 502)

são

utilizadas constantemente como arma (além de instrumento de percussão)

pelos “escravos” Mateus e Bastião

51

É relevante sublinhar que as bexigas nunca são usadas contra o Capitão (o dono das terras) durante a brincadeira. Contudo, isso não significa que os “escravos” não façam outros tipos de “presepadas” com o Capitão a brincadeira.

contra as autoridades na brincadeira. O expressivo movimento e o forte 220

e


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Os Bodes (ou Capitães de campo)

abraçados, e fazem uma série de

são como Capitães do mato, como diz

trupés.

Mariano, eram quem “perseguiam

intercalados pela declamação de loas

negros fugidos dos engenhos”.

das figuras e por diversas danças. Ao

de

Campo,

no

episódios

são

final, os Bodes também são expulsos a

“Tem dois que a gente chama o Capitão

Esses

bexigadas.

cavalo-

marinho apelidado de Bode, é que

Segundo Scott (2007) outro

quando os negros fugiam ou do

recurso

trabalho ou da senzala, o senhor

subordinados, seria o “refunfuño”,

deles mandava ir buscar, porque às

algo próximo ao que chamamos de

vezes, estava escondido lá por outra

murmuro,

fazenda, procurando ocupação”.52

velada. Já que ao mesmo tempo em

entre as figuras dos Bodes e Mateus e Bastião. Sou capitão de campo Bom e reconhecido Sou bom para o senhor de engenho E sou ruim pra o nego fugido [...] (Murphy, 2008:245)

Na passagem dos Bodes, eles negros,

Seria

gritando e os ameaçando com suas

queixa

incorreto

afirmar

que

brincadores do cavalo-marinho são

espadas. Contudo, por diversas vezes,

anônimos. Porém é verdade que a

os capitães do mato dançam juntos e

utilização de máscaras, pinturas no

rosto, roupas e todos os acessórios

52

Entrevista concedida por Mariano, dezembro 2011.

que caracterizam o brinquedo acabam 221

uma

El refunfuño debe considerarse como un ejemplo de un tipo muy general de disidencia apenas velada, y un ejemplo particularmente útil para los grupos subordinados. Se trata de un tipo de actos cuya intención es transmitir una idea, precisa pero negable, de ridículo, descontento o animosidad. Casi cualquier recurso de comunicación puede servir para transmitir dicho mensaje: un gemido, un suspiro, un quejido. una risa contenida, un silencio oportuno, un guiiío o una mirada fija. (Scott, 2007:186)

demonstra o tenso tipo de relação

os

seja,

grupos

possibilita uma fácil negação.

em sua pesquisa um verso que

perseguem

ou

pelos

que comunica um descontentamento,

Murphy (2008) disponibilizou

realmente

utilizado


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

brincadores

brincadores, ou até mesmo com a

enquanto figuras específicas. Assim

audiência. O objetivo é ter sempre

durante as horas da brincadeira os

uma resposta rápida para um confuso

brincadores efetivamente são Mateus,

e acelerado jogo duplo de palavras.

por

configurar

os

Bastião, Capitão etc. As falas da maioria das figuras

Conclusão

são ditas por detrás das máscaras, algo

que

o

Considerando que é a prática da

entendimento do que é dito. Os

dominação o que cria o discurso

diversos termos de um vocabulário

oculto, quanto mais severa for a

típico entre os brincadores também

dominação, maior a complexidade

comprometem a compreensão dos

simbólica

que

destes

Scott (2007) nos lembra ainda que

significados. As figuras costumam

dentre os espaços sociais em se

dialogar uma de frente para outra, e

desenvolvem o discurso oculto, os

não voltados para a audiência (como

mais autônomos e menos vigiados,

no teatro), o que se torna mais um

são os mais privilegiados. Para isso

elemento de dificuldade para se

deveriam

ter

entender os diálogos e loas

primeira

é

não

dificulta

bastante

compartilham

do

brinquedo. Outro linguístico

tipo da

de

recurso

brincadeira

no

duas que

discurso.

condições, sejam

lugares

apartados,

onde

o

vigilância

e

repressão

a

a

controle,

a dos

dominadores não os alcancem. E, a

que

segunda, que estes ambientes sociais

dificulta o entendimento do que se

estejam integrados por confidentes

diz por conta de seu duplo sentido

próximos

são as púia ou pulha, como são

que

compartilhem

experiências similares de dominação.

chamadas as palavras ou frases cheias

Diante

de malícias que são trocadas entre os

desta

ideia,

recorro

a

documentação de 1871 analisada na 222

elaborada


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

primeira parte do artigo. Lembro que

explorei

uma

os

utilizados pelas figuras do brinquedo e

interrogados, negros escravizados e

nas passagens da brincadeira, que se

agricultores livres, visava descobrir se

encontram-se

havia ocorrido, durante o samba,

relacionadas à história de trabalho e

gritos de “Viva a liberdade”. Percebo

sociabilidade

pergunta

feita

a

todos

que o poder opressor queria dar conta até das palavras e do discurso dos

“trabalhadores

subordinados”

em sua vida cotidiana e durante suas brincadeiras. Apesar da distância temporal e contextual, chamei atenção para a ligação

entre

dominação,

as as

relações

de

quais

os

brincadores/trabalhadores de cana da região, sempre estiveram sujeitos, e ao

simbolismo

complexo

e

contraditório presente no cavalomarinho. Para tanto é que evidenciei, elementos ambíguos presentes na linguagem

verbal

e

corporal

no

brinquedo, que por sua polissemia são capazes, por vezes, de reforçar ou desconstruir

(metaforicamente)

as

históricas relações assimétricas entre os trabalhadores de cana e os “donos de terra e poder” na região. Enfim, 223

alguns

dos

recursos

intrinsicamente

dos

brincadores


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Referências ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou beleza da safadeza: uma abordagem antropológica da estética do Cavalo Marinho. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2002. BRUSANTIN, Beatriz de Miranda. Viva a liberdade! As festas e as resistências dos trabalhadores rurais da zona da mata de Pernambuco (Brasil). Disponível em http://lanic.utexas.edu. Acessado em 29 de novembro de 2011a. ________. Capitães e Mateus: relações sociais e as culturas festivas e de luta dos trabalhadores dos engenhos da mata norte de Pernambuco (comarca de Nazareth – 1870-1888). Tese de doutorado em História Social, UNICAMP – Campinas – SP, 2011b. D'AMATO, Andréa. 2006. “A Boneca Sagrada dos Maracatus”. Revista Raiz. Edição n°06, páginas. FEITOSA, José Roberto & TELLES, Maria Otília. 2011. “Maracatus rurais do Recife: entre religiosidade urbano-popular e a espetacularização cultural”. Anais dos Simpósios da ABHR, Vol.12. Disponível em: <http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/issue/view/6/showToc>. Acesso em: 1.nov.2015 GARRABÉ, Laure. 2010. Les ryhmes d’une culture populaire: les politiques du sensible dans le maracatu-de-baque-solto, Pernambuco, Brasil. Thèse de Doctorat . Esthétique Sciences et Technologies des Arts Études Théâtrales – Ethnoscénologie – Université Paris VIII – Vicennes Saint – Denis. GRILLO, Maria Ângela de Faria. “Cavalo-marinho: um folguedo pernambucano”. Revista Esboços. Florianópolis, dez. 2011, v. 18, n. 26, p. 138-152. LEWINSOHN, Ana Caldas. “Imprevisto na Rua: A figura do Mateus na Brincadeira do Cavalo Marinho” in: BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho (org.). V Colóquio Internacional de Etnocenologia. Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas. Salvador: Fast Design, 2007, p. 21-29. MURPHY, John Patrick. Cavalo-marinho Pernambucano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. OLIVEIRA, Érico José Souza de. A Roda do mundo gira: um olhar etnocenologico sobre a brincadeira do cavalo marinho estrela de ouro (Condado – Pernambuco). Tese doutorado Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, 2006. SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la Resistência: Discursos ocultos. México: Editora Era, 2007. SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-deaçucar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979. SILVA, Severino Vicente. “Festa de Caboclo”. Recife: Associação Reviva, 2005 . 224


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

__________. “Maracatu Estrela de Ouro de Aliança: a saga de uma tradição”. Recife: Editora Reviva, 2008. SOUZA, Rosely Tavares de. “O Cavalo Marinho de Condado: a beleza da brincadeira e as representações das mulheres e das crianças (1960 – 1990)”. Anais do XIV Encontro Regional da Associação Nacional de História (ANPUH- RIO) – Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, UNIRIO - 19 a 23 de julho de 2010. Disponível em: <http:// http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276653335_ARQUIVO_ Roselyartigo.pdf>. Acesso em: 3.nov.2015 STRATHERN, Marilyn. O Gênero da Dádiva. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2006. TEIXEIRA, Raquel Dias. A poética do cavalo-marinho: brincadeira-ritual na Zona da Mata de Pernambuco. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2013.

225


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Profissionalização e fragmentação temática: trajetória de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil Professionalization and thematic fragmentation: retracing Social Sciences institutionalization in Brazil. Leonardo Puglia 1 Resumo Desde o fim da ditadura, as Ciências Sociais brasileiras vêm passando por um acelerado processo de expansão da produção e fortalecimento institucional que alterou o papel social do profissional da área. Fenômeno que remonta às origens da institucionalização do campo no país, mas acabou acompanhando os desvios da história. Tentativas de interpretação da trajetória das Ciências Sociais brasileiras tornam-se válidas portanto, se quisermos debater soluções para os impasses gerados pelo atual quadro, marcado por tendências de profissionalização, burocratização e fragmentação temática.

Palavras chave: Ciências Americanização; Intelectuais.

sociais;

Sociologia;

Institucionalização;

Abstract Since the end of the military dictatorship, Brazilian Social Sciences have experienced a period of intense institutionalization and increase of production that has changed the social role of the field´s professionals. This process started at the beginning of the institutionalization of this area of knowledge in Brazil and has followed the country´s history. To propose solutions and understand the current scenario (bureaucracy, professionalization and fragmentation), we must take into account the Brazilian Social Sciences’ path.

Keywords: Social Sciences; Sociology; Institutionalization; Americanization; Intellectuals.

1 Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio De Janeiro

(PUC-­‐RJ).

226


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

minimalista,

Introdução

sociedade civil.

Ciências Sociais brasileiras passaram por acelerado processo de expansão produção

e

de

interesses e, portanto, mais afim à

A partir do fim da ditadura militar, as

da

legitimadora

Nesse

fortalecimento

contexto

profissionalização

e

de

fragmentação

institucional, tendo o número de

científica, a Sociologia se mantém

programas de pós-graduação na área

como instrumento de reforma social,

praticamente dobrado entre 1989 e

mas sua ação se torna cada vez mais

2012

(PERLATTO,

período

2014:136).

O

cirúrgica e os objetos sociais se

assistiu

à

mostram cada vez mais precisos. Tal

também

especialização crescente das agendas

fenômeno

de

retomada e o aprofundamento, após

estudo

e

proliferação

à

consequente

de

nichos

de

nos

revistas

e

lado

de

historicamente contribuiu

outros

1930,

transformar

o

tempo

do

década

de

criadas

a

Trata-se

de

tendência

Sociais, “na medida em que se aproxima

da

Sociologia

como

instrumento de reforma social, tal

que

como nas primeiras três décadas de

exclusivamente através da mediação

sua

da ciência (WERNECK VIANNA,

institucionalização

em

universidades como a de Chicago”

1997:230). Intervenção de caráter 227

foram

sua

como “americanização” das Ciências

“mandato

quase

na

à

identificada por Werneck Vianna

cientistas sociais, o acesso à vida se

quando

Paulo.

a

público”. Para as novas gerações de

pública

seguintes

Livre de Sociologia e Política de São

identidade do profissional da área. Foi-se

a

Universidade de São Paulo e a Escola

fatores

determinados,

para

anos

institucionalização,

congressos

seriam expressões desse fenômeno ao

verdade,

processo que encontra suas origens

O crescimento de grupos de

que,

na

anos de idas e vindas, de um

investigação.

pesquisa,

seria,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

(1997:230). Uma chave interpretativa

(...) com existência universitária antes de encontrarem expressão na vida social, com seus praticantes isolados dos seres subalternos e dos seus problemas, inclusive pela situação repressiva às liberdades imposta pelo Estado Novo. (WERNECK VIANNA, 1997:195)

que, sem desconsiderar o peso da contribuição

de

outras

escolas

sociológicas

na

formação

dos

quadros nacionais, como a francesa e

Destituída

a inglesa, ajuda a compreender a direção

que

a

trajetória

do

poder

pela

Revolução de Vargas, a oligarquia

de

institucionalização da disciplina no

paulista

buscava

Brasil acabou tomando ao longo das

através da racionalidade científica,

décadas.

mas

não

a

autorreforma

conseguiu,

ao

final,

instrumentalizar a academia como pretendido. Os pioneiros lograram se

Institucionalização “por cima” Apesar

da

manter independentes tanto da elite local quanto do Estado Novo, ao se

expressão

“americanização” acima citada, esta

isolarem

não se refere à forma como a

acadêmica com fronteiras delimitadas

profissionalização foi introduzida em

pelo rigor científico.

nosso país. Enquanto nos Estados

A

Unidos as Ciências Sociais nascem

apropriação

sociais

dos

pela

dos

movimentos

universidade

como

reforma”,

“academização no

Brasil,

institucionalização

surge

projeto

de

intelectual

uma

tendência

de

objetos

de

estudo

surgem,

cientistas sociais de carreira, que precisavam

da

amarras

a

libertar-se políticas

institucionalização

como

quanto

elite

da

pensamento

conservadora,

tanto de

“por

própria social

das uma

cima”,

tradição

do

brasileiro,

marcada desde o momento inicial da 228

comunidade

portanto, do esforço dos primeiros

denominado por H. Turner e S. P. Turner

uma

profissionalização e a fragmentação

da sociedade civil, em um processo de

em


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

construção do Estado Nacional pela

denominar intelectuais de Estado

intervenção

mesmo aqueles que não pertenciam

direta

das

elites

intelectuais na vida pública.

diretamente aos quadros de governo. De

A partir do marco da fundação da

USP,

o

pensamento

classificado

interpretativo

como

pela

principais

classificação

motivos

seria

a

paradigma

USP,

a

linguagem

de

Alberto Torres seria científica apenas

na

na aparência. Não passaria de recurso

perspectiva da jovem academia. Um dos

o

pensadores como Oliveira Vianna e

esforço

pré-científico,

com

epistemológico introduzido no país

social

produzido até então no Brasil passa a ser

acordo

retórico

desta

para

justificar

a

ação

civilizadora do agente estatal sobre

constante

uma sociedade arcaica e amorfa.

proximidade entre a elite intelectual e o Estado, que encontra nos debates

Na

visão

uspiana,

a

entre Tavares Bastos e Visconde do

predominância do ensaio enquanto

Uruguai em torno do modelo de

suporte

estilístico

centralização a ser adotado pelo

comum

entre

Império, um exemplo de afastamento

americanas

do padrão científico, caracterizado

virtude, mas como expressão de falta

idealmente

de rigor metodológico (MARTINS,

pela

independência

política e pelo rigor metodológico.

Ciências

desta

sociedade civil, mas pela primazia do

depositavam-se

nele

as

esperanças

não

como

Sociais

tradição

passava

pela

superação

de

erudição

uma posição firme para plantar a

que

semente

da

profissionalização

científica que germinaria com maior

modernizadoras. Por isso é possível 229

latino-

intervencionista. Era preciso marcar

Estado enquanto agente pedagógico Era

nações surge

necessariamente

buscava a reforma não a partir da

modelador.

fenômeno

2013:25). A institucionalização das

De maneira geral, esta tradição

e


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

intensidade

a

partir

da

híbrido. Nada de fórmulas prontas. O

redemocratização nos anos 1980. O

contexto

político

tempo de transplantação de regras exógenas ficara para trás. Agora era o

nada

momento

favorável já dava indícios do quão

contradições

tortuoso seria este processo histórico.

as

liberdades

preciso

ainda

civis,

incorporar

a

uma

mera

diversas

elite

legitimação

estratégia

ideológica,

realidade

das

latino-

posições

principalmente

no

de

comando,

Ministério

da

Educação.

de um

Se a essência do ensaio, como

desdobramento natural, já que o

afirma Lukács, reside na recusa ao

novo papel do Estado enquanto

direito

agente

indutor

mas

da

diante

“Novo” e “modernistas” ocupavam

era

intelectual. Não se tratava, contudo, de

inovar

americana. Afinal, o Estado era

À ditadura de Vargas não bastava sufocar

de

absoluto

transformação

(MARTINS, 2013:67), seria natural

e

administrador

que

os

pioneiros

das suas consequências, era uma

institucionalização

constante

abertamente

Oliveira

método

da

econômico-social

no

do

pensamento

Vianna,

por

social.

exemplo,

à

se

da

opusessem

tradição

do

pensamento social brasileiro, já que

desempenhou papel central através

o

do Ministério do Trabalho.

conquistado através justamente do

Com

sua

plasticidade

missão

de

decisões de Estado, os intelectuais da USP puderam se dedicar à produção

o

de um pensamento tão rigoroso do

moderno em um território vasto e

ponto de vista teórico quanto o de 230

seria

político e do peso das complexas

intelectuais-

construir

acadêmico. Distantes do emaranhado

estadistas, comprometidos com a hercúlea

ciência

foi possível graças ao isolamento

continuava sendo a forma natural de destes

de

rigor metodológico. E essa posição só

e

abertura para a imaginação, o ensaio

expressão

status


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

qualquer campo do conhecimento

papel

legitimado.

primazia

liderança

Fernandes,

mas

de

estímulo à ordem competitiva através de

Florestan

estudo.

Gradativamente,

poucas

a

de

uma

palavras:

a

modernização

partiria da cidadania.

primeiros anos são deixadas de lado favor

moleculares

moral, sem esquecer dos direitos. Em

etnografia e as análises locais dos

em

transformações

provocadas pela reforma intelectual e

principalmente

através do alargamento dos objetos de

civil.

principal estratégia passa a ser o

da

sociologia paulista, principalmente a

sociedade

a

ganham contornos dramáticos), a

empíricos, pois o rigor continuou

sob

a

perde

crise do segundo Governo Vargas

através do afrouxamento dos critérios

fundamental

para

que

modelo interventor populista (que na

foi acontecendo aos poucos. Não

marca

Estado,

Diante dos sinais de esgotamento do

A aproximação com a tradição

sendo

do

Despida

de

seu

caráter

abordagem

revolucionário, a obra de Marx vai

macroestrutural que revalorizasse a

desempenhar papel relevante nesse

historiografia.

processo – principalmente com a criação do Grupo do Capital na USP, sob liderança de Fernando Henrique

Estado e Sociedade Civil

Cardoso – ao disponibilizar duas

Retoma-se, então, o “transformismo”

ferramentas teóricas importantes: o

da classe dirigente brasileira e seus

método dialético e a chave de classe.

métodos de “absorção de elementos

Serão

ativos”

aliados

investigação dos entraves à expansão

(GRAMSCI,

da ordem competitiva burguesa, que

2011:63) como foco principal das

deveria ser levada ao máximo, pois

investigações sociológicas, com uma

acreditava-se que encontraríamos ao

diferença fundamental quanto ao

final

quanto

tanto

de

inimigos

grupos

231

ambas

do

utilizadas

processo,

na

agentes


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

subalternos

transformados

em

“Sociologia enlatada”, clamava por

cidadãos, indivíduos autônomos e

uma Sociologia “em mangas de

conscientes de seus direitos.

camisa”, que utilizasse a ciência

O

processo

“americanização” avançar

puxado

continuava por

como ferramenta para a intervenção

de

São

social

a

pesquisa

-

estímulo

permaneceram

se

Brasil,

incapaz

de

superar

e social.

“sob

Por

autoridades educacionais do governo

Fernandes

expressava

federal”

discordância

em

VIANNA,

1997:214). neste

contexto

que

resistência o

da

Estado

tradição como

publicado

que

ISEB, instituição desvinculada da Guerreiro aos

Ramos

esforços

se

paulistas,

social”.

Contra

em

1962

na

Revista

eclipsando pontos de convergência

essa

relevantes entre os dois autores. 232

às

O tom da polêmica acabaria

criticando sua alienação em “detalhes vida

relação

Alguns cientistas sociais pensam que devem cultivar um padrão de ensino simplificado e estimular somente investigações sobre a situação histórico-social global, como se nos competisse acumular explicações comparáveis às que o conhecimento do senso comum produziu na Europa. (Apud MATOS, 1996:149).

Superior de Estudos Brasileiros -

da

sua

Brasileira de Ciências Sociais:

agente

tecido social. Através do Instituto

opunha

Florestan

artigo A Sociologia Como Afirmação,

primordial das transformações do

academia,

turno,

clara e direta, como nesse trecho do

a

Capital Federal se tornou o núcleo

colocava

seu

proposições de Guerreiro de forma

Foi

de

os

impasses à modernização econômica

à

permanente jurisdição política das

(WERNECK

daria

se mostrara historicamente fraca no

Janeiro, onde os cientistas sociais nem

não

o

espontaneamente e a sociedade civil

vindas principalmente do Rio de

carreira,

Afinal,

desenvolvimento

Paulo,

apesar das forças na direção contrária

sem

direta.


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Segundo Braulio de Matos, foram

sociedade civil, depositária de tantas

ambos

que

esperanças, com o intuito de remover

assumiram posturas independentes

impiedosamente qualquer obstáculo

em

à implantação do capitalismo. A

“homens

relação

radicais

às

esquerdas

hegemônicas do país”, “dedicaram à

surpresa

negritude trabalhos importantes e

cariocas não era menor, pois a

investidos de interesse militante” e

economia passara a se modernizar

“foram

por

em ritmo frenético, pois vivíamos o

autores como Mannheim e Weber”

período do milagre do crescimento

(1996:

de dois dígitos, mas não através de

muito

influenciados

163).

dos

cientistas

sociais

uma coalizão nacional-popular que democratizasse

Ditadura Militar

Ao

Alinhado aos Estados Unidos,

disputas em torno dos pontos que

potência

separavam ISEB e USP não teriam

atropeladas

desdobramentos

históricos.

hegemônica

grande

conduzia o processo sem deixar

pelos

espaço para as camadas populares.

Pois

Na verdade, o achatamento salarial e

mais surpreendente que o golpe

a supressão das liberdades foram, ao

militar desferido sem resistência da

lado

esquerda aparentemente forte, foi o

do

investimento

conglomerados

que veio a seguir.

principais a

e

fiadora do golpe, o Estado brasileiro

um vencedor. Ambas instituições

Atônita,

sociedade.

contrário.

De uma maneira ou de outra, as

seriam

a

dos

multinacionais,

bases

do

as

crescimento

econômico projetado pelo ministro

intelectualidade

paulista assistia à tão desejada ordem

da fazenda Delfim Netto.

competitiva ser expandida por cima,

justamente

através da ação brutal de um Estado

regime

que desorganizava deliberadamente a

sobretudo através da expansão do 233

na

economia

buscava

E era que

o

legitimação,


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

consumo

da

classe

média,

sua

contrapunham, como formavam um

principal base de sustentação. O

sistema simbiótico “em que seus

desdobramento

respectivos

natural

seria

o

interesses

estavam

aprofundamento, mesmo no contexto

entrelaçados”

de modernização, de um quadro de

1999:108). Residiam aí os limites que

desigualdade

levaram o populismo à queda em

social

que

se

mostrava obsceno. O

1964, e a ideia da aliança de classes

milagre

pelo progresso da nação passou a

econômico

receber

contrariava, portanto, as previsões estagnacionistas,

desnudando

então

nas

Ciências

duras

principalmente

a

Weffort,

fragilidade da oposição hegemônica até

(LAHUERTA,

que

sindicalismo

Sociais

críticas,

de

Francisco

clamava livre

da

por

um

tutela

do

Estado.

brasileiras, entre atraso e moderno. Aos poucos, os brutais homens de

O contexto histórico também

farda mostravam aos intelectuais que

levou as Ciências Sociais à retomada

não havia vínculo consubstancial

da

entre

ensaísmo, agora com foco principal

modernização

e

democratização. Ao

abandonar

a

entre

tradição

Japão,

modernização

e

nações das

de

quais

capitalismo Inglaterra

e

exemplos. Foi nesse período, durante

estagnação na América Latina (1968) -,

os anos 1970, que o pensamento de

o pensamento social brasileiro foi

Antonio Gramsci ganhou força no

percebendo que os setores arcaicos e não

de

Estados Unidos seriam os principais

Furtado no livro Subdesenvolvimento e

apenas

casos

maduro,

destaque para a inflexão de Celso

Brasil

se

e

desempenhou

papel

importante não apenas fornecendo 234

velho

retardatária, como Alemanha, Itália e

do CEPAL foram fundamentais, com

não

do

na sociologia histórica comparada

dualista - e nesse processo os estudos

modernos

grande-angular


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

ferramentas para a compreensão do

Vencido

nosso

sobrevivência, os cientistas sociais,

processo

de

“revolução

o

desafio

inicial

passiva”, como também ao estimular,

mesmo

a partir da esquerda, a valorização da

desenvolvendo

sociedade civil que ganhava força no

pensamento e, quando a conjuntara

contexto de resistência à ditadura.

tornou-se mais favorável, mostraram-

Mesmo

as

brasileiras

Ciências

Sociais

conseguem

dar

continuidade

ao

gradual

seu

não

de

transição

mas

pelo

tentavam com

pulso

transformações

de

parte

pela

própria autoritária,

por

baixo

e

de

maneira molecular os fundamentos da ordem.

foram

marginalidade,

a

militares

desestabilizam

na

aniquilados, mas deixados em um quadro

conduzir

iniciada

modernização

esfera econômica e não ideológica. intelectuais

segura”

Os

grande

regime, diferentemente do Estado

Os

seu

natureza societal, estimuladas em

à sua tradição. A legitimação do

essencialmente

e

regime.

firme,

preciso enfrentar concorrência oficial

dava-se

atualizando

no processo de abertura “lenta,

desenvolvimento histórico. Não era

Novo,

e

continuaram

se aptos a assumir papel estratégico

enfraquecidas,

identificadas como “comunismo” e “subversão”,

isolados,

da

A

onde

oposição

assumindo

a

configuração

lograram resistir à censura, ao exílio,

heterogênea

às demissões e à falta de recursos,

previsível (diante do caráter militar

mantendo-se fiéis “às suas tradições

do regime) de uma ampla aliança

críticas” e a “certos ‘estilos’ de

civil. Contexto em que a crítica ao

pensar”

Estado populista toma cada vez mais

(LAHUERTA,

1999:88).

e

fortalecia-se,

até

certo

ponto

a forma de uma crítica ao próprio Estado,

Redemocratização

todas

as

esperanças na sociedade civil, como 235

depositando


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

se o seu fortalecimento por si só, em

Progresso da Ciência - SBPC, que

nome

atraiu em 1973 o apoio da Ordem dos

dos

interesses,

levasse

automaticamente à democracia.

Advogados do Brasil - OAB e de setores

Cientistas sociais participarão ativamente

desse

setores,

da

Igreja

Católica.

processo,

aproximando-se cada vez mais de outros

progressistas

O CEBRAP, criado em 1969,

principalmente

pouco depois do AI-5, como espaço

através de revistas de opinião, como

para dar continuidade à tradição de

Civilização Brasileira e Argumento, por

pesquisa social a qual se filiavam,

onde passaram intelectuais do porte

fora

de Barbosa Lima Sobrinho, Erico

sufocado (muitos dos fundadores

Veríssimo e Celso Furtado.

haviam

Diante

das

que

acadêmico

expulsos

papel

principalmente

de no

da

USP),

protagonista processo

de

aproximação com a classe política.

com uma situação contraditória. Ao tempo

ambiente

sido

assume

transformações

sociais, o Governo Geisel se depara

mesmo

do

investe

Após o período inicial de

maciçamente no ensino superior e

distanciamento cético, os cientistas

em pesquisa, assiste a setores da

sociais sob liderança de Fernando

academia

Henrique

privilegiados,

como

as

Cardoso,

aproximam-se

ciências exatas, formarem aliança

finalmente do MDB, e o CEBRAP

contra o regime com seus primos

aceita o convite de Ulisses Guimarães

pobres e subversivos das Ciências

para elaborar o programa do único

Sociais.

partido de oposição para as eleições

Sendo

o

ápice

desse

processo a ação conjunta entre o

de

Centro

e

surpreendendo

a

resultado é um documento de caráter

o

progressista,

Brasileiro

Planejamento Sociedade

-

de

Análise

CEBRAP

Brasileira

para

e

236

1974,

na

qual o

“com

acabam

regime.

ênfase

O

nos


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

sindicatos,

na

necessidade

de

participou ativamente da fundação

renda,

nos

do PT, exemplo do envolvimento

movimentos sociais”. (LAHUERTA,

cada vez maior destes intelectuais na

1999:208)

vida pública durante o processo de

distribuição

de

redemocratização.

A partir daí a aproximação entre intelectuais e a classe política só vai se intensificar. Passam a

Intervenção na vida pública através

participar ativamente das grandes

da universidade

questões públicas e, com o fim do

O fluxo, contudo, reverter-se-ia após

bipartidarismo em 1979, envolvem-se

a queda da ditadura, já que o

diretamente na fundação de novos

processo

partidos. Com destaque especial para

Estudos

de

origens de sua institucionalização, não encontraria mais obstáculos no

por Francisco Weffort, na criação do

campo político. O que tivemos a

Partido dos Trabalhadores em 1979:

partir de então foi o aprofundamento

um ator político que se pretendia

da

inovador por recusar a tradição

sindicalismo

livre

sociais da

e

no

tutela

do

na vida pública. Intervenção que se dá a partir de objetos cada vez mais precisos

Os tempos eram outros. Até

institucionalização

VIANNA,

Entre 1989 e 2012, a produção

e

sociológica brasileira, em suas mais

defensor do isolamento científico,

variadas expressões, deu um grande 237

(WERNECK

1997).

mesmo Florestan Fernandes, grande da

científica,

campo preferencial de intervenção

Estado.

pioneiro

profissionalização

tornando a própria universidade o

populista, fundamentando suas bases movimentos

Werneck

Ciências Sociais, iniciado ainda nas

Cultura

Contemporânea - CEDEC, liderado

nos

por

Vianna como “americanização” das

o papel desempenhado pelo Centro de

descrito


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

salto quantitativo. Livros, artigos,

que tornou obrigatório o ensino da

trabalhos

Sociologia nas escolas do ensino

apresentados

em

congressos, dissertações de mestrado

médio (PERLATTO, 2014:137).

e teses de doutorado multiplicaramse

acompanhando

o

ritmo

O movimento, contudo, não

do

ficou restrito às fronteiras nacionais,

acelerado processo de crescimento,

à

descentralização e interiorização dos programas

de

graduação

graduação,

cujo

e

pós-

número

medida

que

os

profissionais

brasileiros

ampliaram

participação

em

sua

associações

internacionais como a International

praticamente dobrou (PERLATTO,

Sociological Association - ISA e a

2014:136).

Associação

Latino-Americana

de

O mesmo período assistiu ao

Sociologia - ALAS. Sem deixar de

fortalecimento institucional do setor.

mencionar a importância do aumento

A Sociedade Brasileira de Sociologia

significativo da oferta de estágios de

- SBS, por exemplo, vem realizando

pós-doutorado e “bolsas sanduíche”,

com sucesso desde 1987 congressos

principalmente

nacionais

bienais

instituições

cidades,

com

docentes

em

diferentes

participação

e

discentes

de em

ditadura,

atividades. Também foram fundadas federações e sindicatos, alguns dos

Sociólogos

o de

Sindicado São

as

fomento

Ciências

Sociais

brasileiras,

reconstituídas

disciplina

institucionalizada

departamentos

dos

como nos

universitários,

retomam a trajetória iniciada na USP

Paulo,

dos anos 1940, mas com algumas

desempenharam papel decisivo na

diferenças

mobilização que culminou na sanção

fundamentais.

Primeiramente em relação à natureza

em 2008, da Lei Federal N° 11.684, 238

de

Após o intermezzo sombrio da

e grupos de trabalho, entre outras

como

públicas

de

como Capes, CNPq e Fapesp.

conferências, mesas redondas, cursos

quais,

através


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

da própria ciência, que, além de estar

para

fragmentada

detectado

em

um

número

o

fenômeno nos

também

Estados

crescente de especializações, “não

(D´Antonio,

tem mais sua expressão regulada por

encontrada na baixa seletividade de

construções

paradigmáticas”,

seus exames vestibulares, forma que

segundo afirma Werneck Vianna.

os departamentos encontraram para

Sem falar na transformação do papel

viabilizar sua reprodução, mesmo

social dos intelectuais, pois estes

diante da natureza autoritária do

“não mais se veem nem são mais

capitalismo. Tendo em vista que os

vistos como personagens centrais da

seus

vida pública”. A ideia manneimiana

mobilizados pelo mercado ou pela

de intelligentzia, antes hegemônica,

administração pública, mesmo diante

torna-se anacrônica entre nós.

dos “problemas sociais derivados da

reclamar

anos

1990,

e

a

pode

pouco

que

sua

ser

são

poderiam

intervenção”

(WERNECK VIANNA, 1997:227). Destituído

do

mandato

público dos fundadores, o jovem

E essa democratização, já no dos

-

profissionais

modernização

É sob esse registro novo de uma Sociologia dos Intelectuais que se pode compreender a situação atual das Ciências Sociais como de transição de um modelo que podemos chamar de aristocrático para um modelo democrático (WERNECK VIANNA, 1997:229).

início

1992)

Unidos

cientista social encontra acesso à vida

também

pública

através

da

mediação

de

encontrava expressão no perfil dos

objetos de especialização elaborados

estudantes da área, mais plural do

no

que o das profissões tradicionais.

enquanto laboratórios, centros de

Cerca de um quinto declarava-se

pesquisa

negro ou pardo, enquanto quase

universitários ganham, cada vez mais,

metade era formada por filhos de

o

pais que sequer possuíam o 2° grau

intelectuais

orientados

de ensino. Uma possível explicação

‘mudança

social

239

rigor

do

contorno

método

e

científico;

departamento

de

“agências para

de a

provocada”


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

(WERNECK VIANNA, 1997:228). Um

As preocupações de Werneck

movimento duplo e contraditório,

Vianna estão ligadas não somente aos

pois ao mesmo tempo em que os

possíveis

agentes de transformação ganham

processo de “americanização” das

caráter coletivo, a forma de ação dos

Ciências

mesmos se torna cada vez mais

problematizado

minimalista, colada às demandas de

Revolução

objetos sociais específicos (a mulher,

Americanismo no Brasil (1997) -, mas

o negro, os sem-terra, os movimentos

também a uma tendência global de

sociais, etc.).

burocratização da vida acadêmica,

Werneck

Vianna

a

um

processo

objetos”

colocados

por

em

A

Iberismo

e

ele

Passiva:

-

rigidez e produtivismo quantitativo encontram

de

sua

expressão

mais

evidente na Plataforma Lattes.

“perversão corporativa em torno de pequenos

brasileiras

próprias políticas de Estado, cuja

tendência de fragmentação temática origem

Sociais

do

que no Brasil é estimulada pelas

chama

atenção para o risco de que essa

desdobramentos

a

Todavia,

não

seria

correto

serviço da carreira do especialista,

classificar os problemas do cenário

que passa a ser “um fim burocrático

atual como desvio inesperado da

da vida universitária”, deixando-se de

trajetória

lado a ciência e sua finalidade social.

institucionalização

Como resultado, poderíamos ter uma

distorções

comunidade científica

processo não fosse conduzido com

da

com

a

área.

Tais

aconteceriam

se

o

cuidado, já alertavam os pioneiros.

(...) cada vez mais focada em extrair recursos das políticas públicas para a sua autorreprodução, encerrada em si mesma e destituindo as Ciências Sociais da sua relevância, não apenas social, mas também científica, em virtude de condenar o processo de conhecimento à particularização e a fragmentação. (VIANNA, 1997:231)

Florestan Fernandes, por exemplo, declarou em suas pesquisas sobre o “Brasil Moderno”, de 1976, que a escolha dos temas de investigação em países subdesenvolvidos não poderia 240

iniciada


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

se dar a partir de uma operação

Ciências Sociais com cautela. Até

intelectual totalmente livre, pois

como

forma

sejam

manipuladas

de

adaptação

Guerreiro

Ramos,

contemporâneo.

intransigente

em

como

uma

sempre à

do

às

mundo

do

processo

origem a distorções, deve ser levado em consideração, sobretudo diante

duas obras que ajuda a iluminar a um

disciplina

delineado nas páginas anteriores dê

Mais um ponto de diálogo entre as

de

da

aprofundamento

conserva

cultural” (Apud BARIANI, 2007:153).

complexidade

maneira

Todavia, o risco de que o

“consumida

verdadeira

de

sinal de maturidade institucional e

transformações

enlatada”,

as

pluralidade temática não deixa de ser

as posições de seu grande rival,

“sociologia

que

reducionista. É certo que a atual

Declaração que converge com

crítica

evitar

preocupações de Werneck Vianna

O que importa não é ‘conhecer qualquer coisa’; mas, aquilo que, nos processos de desenvolvimento em curso, possui real significação para a renovação do horizonte cultural e a solução racional dos dilemas nacionais. (FERNANDES, 1976:325).

sua

de

da posição periférica que as ciências

debate

humanas continuam ocupando não

intelectual que, com o passar dos

apenas

anos, acabou tendo sua verdadeira

no

campo

científico

brasileiro, mas também mundial,

riqueza encoberta por tendências

especialmente no que diz respeito ao

polemistas de caráter muitas vezes

financiamento à pesquisa.

anedótico.

A demanda

Considerações finais

situação

é

complexa

investigações

que

e vão

muito além do escopo desse artigo,

Diante dos perigos de simplificações

mas, no âmbito da ação imediata,

desse tipo, é importante analisar a

métodos de seleção mais rigorosos e

configuração atual do campo das

reformulações dos programas dos 241


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

cursos surgem como formas possíveis de atenuar tendências de excessiva burocratização

e

fragmentação

temática, principalmente através do aprofundamento clássicos,

do

incluindo

ensino o

dos

chamado

“pensamento social brasileiro”. Seria uma estratégia no sentido de atacar as tendências fragmentárias já na raiz, dotando o jovem cientista de um arcabouço teórico sólido capaz de ampliar seu leque de ferramentas e de alargar seu campo de visão. Tais

iniciativas,

contudo,

mostrar-se-ão pouco efetivas se não dialogarem

com

as

políticas

de

educação e pesquisa do governo federal. Por isso é fundamental que os cientistas sociais se mobilizem, unindo forças a outros setores da comunidade científica, não somente para

pressionar

reversão

de

no

sentido

tendências

da de

burocratização nocivas, mas também para atuar em parceria com o poder público na busca por respostas aos desafios

da

educação

no

país.

242


Enfoques Vol. 14 (n.2) Dez-­‐2015

Referências BARIANI , Edison. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes x Guerreiro Ramos. Cronos (Natal. Impresso), v. 7, p. 151-160, 2007. D´ANTONIO, William. Recruiting Sociologists in a Time of Changing Opportunities, in T. Halliday e M. Janowitz (org.), Sociology and its Publics. Chicago: University of Chicago Press, 1992. FERNANDES, Florestan. A Sociologia Como Afirmação. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. II, n. 1, p. 3-39, mar. 1962 FERNANDES, Florestan. A Sociologia numa Era de Revolução Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. LAHUERTA, Milton. Intelectuais e Transição: entre a Política e a profissão. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH, 1999. MARTINS, Maro Lara. Interesse e Virtude: a Sociologia Modernista dos Anos 1930. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: IESP/UERJ, 2013 MATOS, B. T. P. Diálogo de surdos: academia e política na trajetória de Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. Caderno Linhas Críticas, Brasília, n. 3 e 4, p. 149- 171, jul. 1996 PERLATTO, Fernando. Sociologia pública. Imaginação Sociológica Brasileira e Problemas Públicos. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: IESP/UERJ, 2014. VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997.

243


VOL XX.X JUN 2016

Enfoques -­‐ Revista Eletrônica dos Estudantes do PPGSA/IFCS/UFRJ Programa de Pós-­‐Graduação em Sociologia e Antropologia Largo de São Francisco, nº 1 -­‐ Sala 420 -­‐ Rio de Janeiro -­‐ RJ -­‐ 20051-­‐070 http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/ojs/index.php/enfoques


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.