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Número 1 NA CAPA
20 Girl Under You Esolhemos três homens e mostramos toda as mulheres que haviam debaixo deles
4 A VIDA COMO ELA É 8 DIAS DE LUTA, DIAS DE GLÓRIA 10 HETEROFOBIA 15 ADOÇÃO, ACOLHIMENTO, AMOR 17 (DES) CONSTRUÇÃO 20 GIRL UNDER YOU 33 DRAMA DE UM CORPO PERFEITO 35 SUJO FALANDO DO MAL LAVADO 36 DRAG YOURSELF 48 SURTO E DESLUMBRAMENTO EDIÇÃO GERAL: JOÃO MAGAGNIN E KEYDSON RENATO PROJETO GRÁFICO: JOÃO MAGAGNIN COLABORADORES: MATHWS AIRES, YÁSKARA FABÍ, JÔ FAGNER, RUY AUGSBURG, JUNIOR SOUZA, AIRTON BITTENCOURT, JOAB DANTAS & LÚCIO FÁBIO
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foto de mathws aires editorial “girl under you”
carta do editor
des construa O primeiro número de Fagô surge como um sopro de diversidade e pluralidade em um período cheio de conturbações no qual nosso país passa. Os direitos da comunidade LGBT passam por uma revolução, estamos conquistando e batalhando não por direitos superiores mas por direitos igualitários e reais. A edição primogênita nasceu com essa sede de mudança, de provocação, de cutucar a ferida do considerado “normal”, da dita moral, do dito tradicional. Contamos aqui com matérias, entrevistas, crônicas e editoriais, que permeiam a ideia de desconstrução de tudo isto. No editorial Girl Under You trazemos o fotógrafo Mathws Aires que exibe sua visão da garota que há dentro de cada um de nós. Na Sequência ampliamos o debate sobre adoção, direito, igualdade e estatísticas reais do que acontece no país em todos estas instâncias. Ainda neste número, colocamos em pauta outra faceta: maquiagem. Tabu, realidade, anormalidade? Sinta as cores das sombras e o brilho do batom e embarque nas fotos produzidas por Yáskara Fabí, que ilustram a faceta drag na sessão “Drag Yourself ”. Na Fagô você encontra um mix de regionalidade e mundo, uma ideia real de um revista representativa para o meio gay e queer. E nela, teremos o maior prazer de guiá-lo nesta excursão imagética, textual e de reflexão. Que você saboreie cada página produzida por nós e sinta-se representado sempre.
Beijos, João Magagnin e Keydson Renato 3
a vida como
ELA É entrevista por keydson renato
Nascida e criada no município de Morada Nova, interior do Ceará. Filha de agricultores analfabetos e pobres, Luma Nogueira de Andrade sempre se sentiu diferente dos demais meninos com quem conviveu. Toda sua infância foi marcada por agressões físicas e psicológicas por uma sociedade cegamente padronizada heteronormativa, onda a viam como “anomalia”. João Filho, como naquela época era conhecido, sempre transformava todas aquelas agressões em incentivo para o estudo, onde começou a se destacar. Em 2012 ficou nacionalmente conhecida por ser a primeira travesti a conquistar o maior título acadêmico, o doutorado. Luma abre as portas de seu passado revelando um pouco de sua trajetória de lutas e conquistas.
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foto: cedida
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Quando você percebeu que não se sentia bem como João Filho e decidiu assumir a Luma Andrade?
reconhecimento dos(as) educandos(as) e educadores(as), ganhando destaque estadual com trabalhos nas feiras estaduais de ciências.
Na verdade nunca fui João Filho, as pessoas que queriam que eu fosse. Tudo operou como uma imposição que inicia antes do nascimento com o nome, com as roupas, com os brinquedos, com o adestramento dos corpos e comportamento uma ditadura heterossexual. Não compreendia o que estava acontecendo, pois era uma criança, mas já sabia que algo em mim não estava agradando. Só quando adulta percebi o que estava acontecendo e teve momento de assujeitamento e de resistência.
A Luma surgiu depois de João sofrer muitas agressões. Você sentiu que, ao assumir o gênero travesti, as pessoas começaram a olhar para você com mais respeito?
Na infância, na escola, você já se sentia diferente dos outros meninos, mesmo sem entender o que estava acontecendo com você? Sofria agressões? Quais?
“Na verdade nunca fui João Filho, as pessoas que queriam que eu fosse.”
Desde criança, apresentei um comportamento singularmente feminino, negando-me a brincadeiras masculinas, pois não me identificava. Isso me rendeu algumas agressões físicas e psicológicas, na família, na escola e na rua. O acontecimento que mais marcou minha vida ocorreu quando eu cursava a 2ª série. Durante o recreio, quando brincava com as minhas colegas, fui agredida fisicamente a socos e pontapés por um colega de sala que enquanto me batia me mandava “ser homem”. Mesmo estando bem machucada, consegui me livrar do colega e me dirigi chorando para a sala, fiquei em minha carteira, de cabeça baixa, sendo consolada por algumas de minhas amigas. Ao perceber que a professora se aproximava uma das garotas lhe delatou o agressor no intuito de reprimir aquele colega. Mas ela não disse nada, não fez nada contra ele, apenas ficou diante de minha carteira, me olhou da cabeça aos pés e disse: “Bem feito! Quem manda você ser assim? Como você regia a todas essas agressões? Como você lidava com elas? Fazia algo para fugir ou evitar? Eu tinha um projeto que superava a dor física e psicológica que vivenciava diariamente, era estudar e aprender, objetivando conseguir um bom emprego para ajudar minha família. Passei a ensinar os conteúdos aos meus colegas. Assim, conquistei meu espaço na escola e o
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Pelo contrário, assumir ser travestir para sociedade conservadora implica assumir estereótipos extremamente negativos. Existe um processo de desqualificação e violência à segunda é justificada pela primeira. A ideia tradicional imposta é que somos uma aberração, anormais e perigo para sociedade. Assim, as portas se fecham e para sobreviver fora desta ordem/ norma, escapamos pelas frechas. O que foi mais difícil na convivência familiar? Teve resistência por parte dos seus pais? Como se deram os diálogos para entender o que se passava contigo naquele momento? Eu vivia duas vidas: uma para satisfazer minha família e a sociedade e outra para minha satisfação pessoal e a de meus amantes secretos. Meu pai vivia cobrando de minha mãe satisfações por eu ainda não ter namorada, mas minha mãe sempre respondia que o momento não era para namoro, mas para estudar, buscar um futuro melhor. Minha irmã foi a primeira a descobrir o esconderijo de minhas roupas femininas, assessórios, maquiagem e sapatos. Ela não se conteve e mostrou tudo para minha mãe. As duas travaram várias discussões sobre minha possível homossexualidade, por mais que tudo estivesse claro. Minha mãe fingia não saber e meu pai só reclamava com ela. A universidade é um ambiente diversificado. No seu ingresso a ela você se sentiu mais acolhida e mais respeitada ou continuou enfrentando preconceitos? E como você agia, já que tinha um amadurecimento de quem você era. Pensava que no Ensino Superior estaria livre da discriminação, mas logo no primeiro dia de aula descobri que estava enganada, pois mesmo indo com uma roupa completamente masculina alguns alunos veteranos ao me verem nos corredores da faculdade me chamavam de “viado”.
O que a universidade representou para você, durante todo esse processo de aceitação e mudança de gênero? A universidade é empoderamento, prova para a sociedade que somos capazes de ocupar qualquer espaço social, pois também somos capazes. Vivemos em constante relação de poder e busca por espaço. Apesar das conquistas e de ter provado que sou capaz...todos os dias em todos os momentos sou cobrada a provar minha capacidade...não posso errar. Não mudei de gênero...estou em transito dos gêneros. Quando você conseguiu mudar a sua documentação? Foi um processo difícil, por parte da burocracia? O juiz autorizou a mudança de nome no dia 8 de março de 2010. Não foi difícil entrei com uma advogada no ano anterior e como era muito conhecida isto ajudou muito Como você regia a todas essas agressões? Como você lidava com elas? Fazia algo para fugir ou evitar? Eu tinha um projeto que superava a dor física e psicológica que vivenciava diariamente, era estudar e aprender, objetivando conseguir um bom emprego para ajudar minha família. Passei a ensinar os conteúdos aos meus colegas. Assim, conquistei meu espaço na escola e o reconhecimento dos(as) educandos(as) e educadores(as), ganhando destaque estadual com trabalhos nas feiras estaduais de ciências. Você foi aprovada em dois concursos públicos, em primeiro lugar. Como você analisa e quais as principais repercussões dessa conquista? Sempre percebia o preconceito, mesmo não sendo direto. Em 1998, fui aprovada no concurso público para professora do município de Morada Nova, assim fui efetivada para o quadro do magistério. Quando pensei que estava tudo bem em minha vida profissional, a secretária de educação municipal resolve me transferir para lecionar no interior do município, bem distante de minha residência. Minha forma diferente de ser incomodava, e retirar-me da sede, mais especificamente da escola considerada modelo, poderia me induzir a solicitar exoneração. Compreendendo a intenção subjetiva da secretária, resolvi buscar a promotoria e, ao provar minha situação, encontrei apoio na justiça. Ao receber
o chamado da promotoria, a secretária resolveu manter minha lotação no local de origem, e foi mais uma batalha vencida nesta guerra. Você usou a sua experiência de vida para produzir sua tese de doutorado. Como você se posiciona sobre essa pesquisa, e quais as principais contribuições que você acredita que o trabalho pode apresentar ao campo social e acadêmico? Não apenas minha experiência que data de um período e de uma época, mas a de minhas interlocutoras que inclui a atualidade. Realizei um cruzamento destas histórias de vida no espaço escolar e denunciamos o processo de evasão involuntária que somos submetidas ainda hoje. Qual a sua avaliação e a importância dessa tese e quais as mudanças podem ser analisadas, a partir dele, para benefício seu e de outras travestis, transexuais e tantas outras categorias identitárias no campo do gênero e da sexualidade? O trabalho contribuiu e continua contribuindo para elaboração de políticas públicas e normativas para que travestis e transexuais sejam incluídas com suas singularidades no espaço escolar. No mesmo ano que defendi por exemplo o conselho estadual de educação do Ceará ( 2012) aprovou resolução para o nome social nas instituições de ensino do estado. E outras decisões nas escolas que são orientadas pela tese. Você tem algum projeto ou perspectiva na universidade ou na área ativista que pretende desempenhar nos próximos anos? Qual? Do que se trata? O que busca? Tenho um projeto de pesquisa em andamento sobre a diversidade sexual nas escolas do município de RedençãoCE com duas bolsistas de iniciação científica. E mais outro projeto para compreender a sociabilidade de lésbicas no referido município e um programa que fara um levantamento na região do maciço do Baturité sobre a Diversidade Sexual (ambos esperando aprovação para execução). Além das palestras, rodas de conversas em universidades e associações do Brasil. A minha presença em si em qualquer espaço demanda um novo olhar sobre as travestis e transexuais...não tem como separar professora, pesquisadora doutora, travesti....a multiplicidade se configura.
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DIAS DE
LUTA DIAS DE
GLORIA por keydson renato
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Os embates sobre a discursão de gênero surgem por volta dos anos 1960 quando alguns movimentos sociais começam a lutar pelos direitos igualitários de salários, igualdade racial e de gênero. Todos esses movimentos sofriam pela exclusão pelas quais passavam e a submissão pela sociedade dominante. Através das lutas dessas minorias, a também minoria homossexual passou a querer fazer com que suas vozes fossem ouvidas através de um grito comum: “Ei, nós também existimos!”. Em 1980 com o surgimento da epidemia da Aids, os homossexuais passaram a ser vistos e apontados como causadores da doença que foi nomeada do “câncer gay”. Essa ligação – homossexual/Aids – foi devido as “novas” forma de relacionamentos (sexuais) que os gays praticavam. Sem dúvida essa fusão de estilo de vida e doença foi um ponto negativo para os homossexuais nos auge das lutas. Em compensação foi onde se abriram algumas portas para o debate mais aprofundado sobre as diferenças de gêneros. A pesar de estarmos, de certa forma, bem mais confortáveis em discutir a sexualidade e a homossexualidade o preconceito/homofobia sempre foi e continuará sendo, por muitos anos, mais um muro que separa pessoas de pessoas. Que divide. De um lado gente que quer seguir suas vidas, suas escolhas e sua felicidade. Do outro, aqueles que não toleram a diferença, a pluralidade de gêneros, as escolhas e decisões que não condiz com o que somos designados a seguir, diante de uma sociedade ainda ditadora e opressora. A luta pela igualdade e respeito não tem sido, apesar de muitas conquistas, nada fácil. Diariamente um a voz é sufoca, uma face desfigurada e uma vida retirada. São
vozes, rostos e vidas que lutaram para que o grito seja ouvido, para que a igualdade seja alcançada. O Brasil é o país com maior número de crimes motivados pela homo/transfobia, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) - a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil, fundada em 1980. Em 2014 foram registradas 326 mortes de gays, travestis e lésbicas no país, contando com 9 suicídios. Esse número equivale a um assassinato a cada 27 horas. Em relação ao ano de 2013, onde foram contabilizados 313 mortes, houve um aumento de 4,1%. Em números mais detalhados veja gráfico: São números alarmantes, mas que infelizmente passam despercebidos pela grande mídia e principalmente pela sociedade. Essas mortes representam a consequência da intolerância à diversidade de gênero, o não respeito pelas diferenças e principalmente pela vida. Mostram também como são tratados a maioria daqueles que não estão de acordo com um padrão de comportamento social que é categorizado e ensinado desde o inicio da vida. Apesar de a sociedade estar longe tratar com igualdade aqueles que são vistos como anormais, e do número de casos de assassinatos os homossexuais, a população LGBT vem conquistando, pouco a pouco, seu espaço. Seja em conferências abertas para discutir temas relacionados à cultura gay, seja na conquista pela união estável de casais do mesmo sexo, seja pela adoção legal de crianças em orfanatos, ou pelo o direito do uso do nome social por parte daqueles que não se identificam ou não querem ser conhecidos ou chamados pelo nome de registro. São essas pequenas/grandes vitórias que fazem, a cada dia, que estes movimentos ganham mais força e vontade de lutar.
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HETEROFOBIA por jô fagner
Em 25 de maio de 2010, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ) apresentou à Comissão dos Direitos Humanos e Minorias (CMDH) o projeto de lei PL 7382/2010, que prevê a institucionalização de pena para a “discriminação contra heterossexuais”, com reclusão para condutas determinadas “heterofóbicas”, e ainda determina “políticas públicas antidiscriminatórias que atendem a essa possibilidade”. No ano seguinte, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o projeto de lei 294/2005, de autoria do vereador Carlos Apolinário (DEM/ SP), para instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual”, como forma de “conscientizar e estimular a população a resguardar a moral e os bons costumes”, e por outro lado para “se manifestar contra “excessos e privilégios” destinados à comunidade gay”. O projeto foi vetado pelo prefeito Gilberto Kassab, por inconstitucionalidade. O neologismo “heterofobia”, no entanto, já apareceu em discussões anteriores no Brasil desde 2009. Num artigo assinado pelo médico Paulo Bento Bandarra³, o deboche ao reconhecimento da homofobia se dá para sustentar o direito a ter “opinião diferente sobre a homossexualidade”, no sentido de reforçar um estado patológico, sugere um atentado à liberdade de “opinião”. Para o autor, a “aversão ao sexo oposto quando para relacionamento sexual, reprodutivo e convívio íntimo” seria considerado “heterofobia”. Remetendo aos episódios que falam sobre os tais “excessos de privilégios”, em 25 de maio de 2011, membros da bancada religiosa no congresso suspenderam a distribuição do batizado “Kit AntiHomofobia” elaborado pelo Ministério da Educação para distribuição gratuita nas escolas. O
material foi considerado por estes representantes como uma “tentativa de indução ao comportamento homossexual nas crianças”. Constituiu o “kit” um caderno livro com referências teóricas, conceitos e sugestões de atividades e oficinas para a atuação pedagógica sobre a temática da diversidade sexual nas escolas, além de um material audiovisual composto de três animações em vídeo. Tratava-se de um arsenal teórico e metodológico para construir políticas e culturas de respeito às orientações sexuais e identidades de gênero, afirmando o respeito à pluralidade e diversidade. No raciocínio de quem formula tais considerações sobre o “kit”, o simples contato visual com textos e vídeos sobre a homossexualidade transformaria por adesão ou modificação instantânea, como em mutantes, pessoas heterossexuais em gays, lésbicas, transexuais, enfim. Se assim fosse, não teríamos tantos episódios de improbidade, desvios e apropriações indevidas do dinheiro público em nome desses políticos, quando a todo o momento a mesma referência religiosa os diz para “não roubar”. Desobediência total. As pressões continuaram em 2015, quando os Planos Estaduais de Educação traçaram diretrizes para o ensino nos próximos dez anos e, entre as metas, o combate à discriminação racial, de orientação sexual ou à identidade de gênero. Os projetos se efetivam através do incentivo a programas de formação sobre gênero, diversidade e orientação sexual. De acordo com as bancadas religiosas, a adesão ao Plano expressa a imposição de “ideologias de gênero”, e poderia destruir os conceitos de homem e de mulher, além do modelo tradicional de família.
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O projeto também foi tratado como “doutrinação”, que é o mecanismo pelo qual agem as entidades religiosas ao persuadir fiéis à obediência de princípios, condutas e valores específicos. O que se pretende, na educação, é o oposto. Trata-se de estabelecer o contato histórico e social com as referências que permitem entender as relações de gênero e das orientações afetivas e sexuais. No fim das contas, nada de persuasão, mas de promoção de combate ao preconceito, às violências e à discriminação a partir do ensino. Em outro momento, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo⁵. A partir de 05 de maio de 2011, casais homoafetivos passaram a ter assegurados direitos patrimoniais que antes não lhes eram garantidos, tais como herança, pensão por morte ou separação de cônjuge e declaração compartilhada no Imposto de Renda. A mesma bancada conservadora não mediu esforços para tentar impedir a decisão, alegando que se tratava de uma agressão aos “princípios morais” e aos “bons costumes”, vulgo “ser heterossexual ‘monogâmico’ e cristão com o pagamento do dízimo em dia”. Tais ideias ainda foram apoiadas por declarações de pastores evangélicos como Silas Malafaia, Marco Feliciano e o militar da reserva Jair Bolsonaro. Voltemos a pensar em “–FOBIA”. Numa definição genérica e redutiva, aplicar o sufixo a uma palavra atribui expressão com significado de “aversão”. Exemplo: claustrofobia (aversão a lugares fechados ou confinados). A perspectiva pela qual se desenvolve a discussão acadêmica ultrapassa tais muros. A homofobia não se encerra no preconceito declarado, assumido. Engloba também os pequenos atos e falas que, homeopaticamente, constroem esse comportamento em sociedade. Sendo assim, frases como “meu filho não será gay, pois terá educação”, “nada contra gays, mas eles não devem se beijar
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em público” ou ainda “você é gay porque ainda não teve relações com o sexo oposto” são pequenas falas que reforçam e reproduzem o pensamento homofóbico. Do outro lado, a denominada “heterofobia” apropria-se de um problema histórico, político, social e cultural para legitimar o estabelecimento da ordem heterossexual. “Orgulho”, que nos movimentos sociais organizados por lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans* surge como afirmação política numa matriz de repressão, no exemplo do “orgulho hetero” trata-se mais de um gesto de deboche e escárnio dos movimentos organizados LGBT, e de reforço dos motores que limitam a vivência afetiva e sexual humana numa única direção heterossexual. O então “orgulho hetero”, nesse contexto, é um engenho para segregar, recusar, injuriar, inferiorizar pessoas não heterossexuais, e fixar ainda mais a vigilância sobre corpos, desejos e identidades para que não escapem dos projetos heteronormativos. As tecnologias reprodutivas, as instituições de educação, as políticas públicas e os direitos civis, todos caminham para reconhecer a importância das diversidades na efetivação da cidadania. Retrocessos não são permitidos. Quando qualquer instituição de poder reconhece outra forma de procriar, de amar e constituir família, de se educar e formar cidadãos fora do viés heterocêntrico, incluem a “heterofobia” como acusação direcionada à todo discurso que nega ou recusa a heterossexualidade como norma. Nunca se negou a existência de heterossexuais. Seus direitos e deveres nunca serão negados. Ninguém busca uma cura ou reversão da heterossexualidade. Desde sempre, e de forma mais intensa pelos próximos anos, ela coexistirá com tantas outras formas de vivência de afetos, desejos e expressões, todas aquelas que nos fazem sentir humanos. Natureza? Lei da vida? Não, são os fatos, as pessoas e suas relações com o mundo.
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adoção ACOLHIMENTO e amor por keydson renato foto: cedida
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Em números atualizados, existem no Brasil cerca de 6338 crianças e adolescentes que aguardam na fila de adoção a chegada de alguém disposto a cuidar e dar amor. Do outro lado da estória, existem 34443 famílias cadastradas para receber essas crianças. Esses números correspondem a uma criança para 5,5 famílias. Mas por que essa fila de espera não zera? Além de todo processo burocrático, talvez o maior e principal obstáculo para que a adoção aconteça, seja as exigências que partem dos casais. A grande maioria buscam crianças com menos de dois anos e de pele branca. Segundo dados do Conselho Nacional de Adoção (CNA) no número total de crianças aptas apenas 9,04% tem idade inferior a dois anos. Assim, mais de 90% estão na faixa etária de 3 a 17 anos. No Rio Grande do Norte, até o dia 30 de junho, quarenta crianças estavam na fila de espera por adoção. Cinco tem menos de um ano de idade e outros seis tem até quatro anos. A quantidade de crianças entre 8 e 12 anos é de 12 casos, enquanto o número de adolescentes entre 13 e 17 chega a 21 casos. Apesar de todos esses números e anos de espera, algumas estórias se sobressaem e merecem destaque. Talvez a vida de Fernanda Almeida, 13 anos, não tomou essas proporções de filas de adoção, mas com certeza está ligada as demais que ainda aguardam um lar. Francisco Bezerra e Chagas Santos estão juntos há quinze anos. Há treze ganharam o que eles dizem ser o maior e melhor presenta que eles poderiam querer e ganhar, uma filha. “Eu sempre quis constituir uma família. Sempre me inspirei e tinha minha família como exemplo. Então conheci Chagas, que tinha o mesmo pensamento que eu, os mesmos ideais. A Família.” conta Francisco. Como mais ou menos três anos de namoro, Chagas e Francisco não pensavam em adotar uma criança, eles ainda estavam se estruturando, se educando, se formando, “eu sempre achei muito difícil educar. Eu via a luta dos meus pais para educar a gente. Educar não era o meu forte. Eu ainda estava educando a mim mesmo.”
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Fernanda é filha biológica do irmão de Francisco Bezerra que faleceu após um ano do nascimento da filha. Após o acidente, Chagas e Francisco levaram a criança e mãe para morarem com eles, mas depois de algum tempo, a mãe biológica decide sair de casa, deixando Fernanda aos cuidados do até então tio e o namorado. Após três anos a mãe de Fernanda volta e decide cuidar da filha. “Após um tempo, a mulher do meu irmão, volta e nos pega de surpresa, pois vem com a intenção de levar a criança. Mas como assim? Nós a criamos, educamos, construímos laços, e agora você quer simplesmente leva-la?” relata Francisco. A partir desse momento, Chagas e Francisco decidem entrar na justiça para lutar na esperança de ganhar a guarda definitiva de Fernanda. Nessa época eles residiam na cidade de Serra do Mel – RN, e contam que recebiam constantes visitas de entidades responsáveis pelos direitos das crianças e adolescentes, além de acompanhamento psicológico e entrevistas. “Em 2008 nós conseguimos oficialmente a guarda da nossa filha.” conta Chagas. Apesar de viverem, na época, em uma cidade pequena, Chagas revela que eles conquistaram o respeito dos vizinhos, da escola, dos alunos. “Nunca fomos vistos como algum anormal, como uma não família, nós impomos e conquistamos a admiração.” relata Chagas. Atualmente Francisco, Chagas e Fernanda moram na cidade de Mossoró, e revelam que sentiram uma grande diferença, principalmente nos olhares sobre a sua família, “Pensávamos que vindo para Mossoró, como é uma cidade relativamente grande, as pessoas não nos olhariam, mas muitas já chegaram, fizeram perguntas que nunca tínhamos escutado de onde morávamos antes. Perguntam se Fernanda é nossa sobrinha. Nunca pode ser filha, e quando dizemos que é nossa filha, sempre surge uma cara de surpresa. Perguntam se ela não sente falta da mãe biológica.” conta Francisco. A família atual não se pode e não se deve ser baseada naquilo que vivíamos a séculos passados. Com a diversidade de relacionamentos, de gêneros proporciona que se abram um leque de definições sobre a conjuntura da família atual. O amor tem que ser, acima de tudo, a principal forma de educar e de cuidar.
em busca da
DES (CONSTRUÇÃO) por keydson renato
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Aluna do curso de Direito da Universidade Federal do Semi-Árido do Rio Grande do Norte, Ana Vitória de 19 anos, nasce no inicio de 2015. Por 18 anos, foi presa a um corpo e ligada a um nome que nunca a pertenceu. Durantes muitos anos, Pedro Guilherme, nome de registro, tentava entender que desejos e escolhas estavam tomando de conta de seu corpo. Em sua concepção, como um menino, teria que se interessar e brincar com coisas direcionadas a garotos, mas sempre se sentia atraído e encantado de uma forma muito forte a desejos e objetos de meninas. Sempre se maquiando, brincando com bonecas, usando saltos. Não entendia porque não podia se protar como sua irmã, entrar em banheiros femininos. Mas também nunca se preocupou em ser menino. Ela sempre quis ser mulher. Era sempre repreendida por sua família. Passou a frequentar a igreja evangélica, como forma de se proteger dos pensamentos e desejos que ela mesma não entendia. Filha de pais militares e tradicionais. Ana Vitória começou a se conflitar consigo mesma, entrou em depressão, pois não se sente acolhida e nem entendida por aqueles que ela mais ama.
O primeiro conflito familiar foi em 2014, quando decidiu sair da igreja e assumir a sua bissexualidade. Seus pais não aceitavam este tipo de comportamento. Mesmo assumindo esta posição, não tinha certeza do eu era, do que acontecia. Ainda desconhecia a transexualidade. A partir daí outros conflitos começam a surgir. Principalmente a rejeição do corpo. Ana Vitória sempre tinha obsessão em ser magra, quanto mais magra, mais feminina. Ela necessitava parecer cada vez mais mulher. E consequentemente, devido a rejeição como o corpo, sempre teve uma vida sexual desastrosa. Não tento o apoio que precisava dos pais, Ana procura nos poucos amigos gays, o entendimento daquilo que estava acontecendo com ela. Mas ao contrário, muitos a chamavam de louca e riam daquilo que ela estava passando. Apenas algumas amigas heteros, acolheram e abraçaram naquele momento. Só no final de 2014, Ana Vitória passa a entender e se afirmar transexual. Em 2015, ela ingressa na faculdade já como Ana Vitória, se apresentando e exigindo ser chamada e respeitada pela sua identidade. Foi uma fase de transformações, apesar de ainda não se vestir como mulher.
“Eu era um menino à força” 18
Uma das grandes dificuldades dentro das salas da universidade era quando professores e colegas insistiam em chama-la de Pedro Guilherme. A primeira vez que ela conseguiu usar o nome social foi em João Pessoa no Encontro Regional de Estudantes de Direito (ERED), quando no registo de inscrição estava: ANA VITÓRIA. Para ela uma verdadeira vitória. A partir daquele momento alunos, professores e a universidade começaram a entender e respeitar ela como ela é.
sentido e que ela se identificasse. O nome ANA VITÓRIA foi uma homenagem a sua mãe e sua irmã. As duas mulheres mais importantes e inspiradoras de sua vida. Apesar de toda a aceitação pessoal e exposição de sua identidade, Ana ainda sofre com a rejeição e da família. Sua mãe ainda não consegue entender e aceitar o que a nova identidade de sua filha. Ao colocar um brinco, ou pintar uma unha, as discursões veem a tona. O uso do cabelo também tem se tornado motivos para desentendimentos. Mas Ana segue se fortalecendo, se revestindo de sabedoria e lutando para fazer se aceita e respeitada. Ana Vitória continua trabalhando no processo de transformação. A partir de 2016 ela pretende iniciar o processo hormonal, para que possa se sentir 100% mulher.
“Eu nasci de novo em 2015”
Apesar de se apresentar como Ana Vitória, o uso oficial e o pedido de troca junto a Ufersa aconteceu após fim do período de greve que se encerrou em outubro deste ano. Mas antes que pudesse acontecer à troca de nomes, ela passou meses tentando encontrar um que fizesse
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o drama
do corpo perfeito
por João Magagnin
colagem: joão magagnin
Beleza tem limites? Nunca em minha breve vida tive a certeza disso, tanto que a cada vez que tinha achado o conceito ideal de beleza, de repente apareciam novas estrelas de cinema, novas celebridades e botavam tudo a escanteio. Lembra dos memoráveis tempos onde Angelina e Brad Pitt eram a personificação da beleza? Então, esta já atravessou desde então de Jamie Dornan à Hugh Jackmann, passando pelo mundo da música (dizem que o padrão do momento é tipo Ed Sheeran, tenho minhas dúvidas, mas ok, ele é charmoso). Hoje, em tempos de loucura virtual, deu pra perceber que o a tendência mudou, que está mais subversivo do que nunca. O que domina, no momento, de euforia e controle virtual da vida alheia é o Instagram. Já parou para pensar quantos perfis de gatos da web, gostosos do insta, marombados gay, existem no #instagay? Numa cultura onde o visual e superficial prevalecem, a ideia de se parecer com os ditos perfis caem num populismo sem fim, e quando caem a gente já sabe no que vai dar… xiiii, mierda! Vou te falar desse padrão: enquadra músculos perfeitos e um jeito extremamente macho de ser. Mas tem que ser macho mesmo, pelo menos na foto, daqueles que falam ‘bro, parceria, top, firmeza, #ficagrandeporra, #vaimonstro, #sexyguy’, não importa se na vida física você seja talvez mais pare-
cido comigo e compartilhe dos mesmos gostos (eu curto Lady Gaga e Vogue, tá bom pra você?), o que vale é parecer e não ser. ”E o que você tem a ver com isso? Eles vivem felizes assim”, é o que me dizem sempre que incito discussões acerca do drama do corpo perfeito. Você já parou pra pensar na quantidade de identidades negadas para serem aceitas por arquétipos visuais rasos? De quem é a culpa? Essa tal da culpa é coletiva. Todos nós cultuamos perfis masculinizados desde que o mundo é mundo, porque se parecer com uma garota é degradante, já dizia Madonna. Nos meus 20 e tantos anos pude ver diversos amigos e conhecidos recuarem sua identidade porque tinham que obrigatoriamente estar dentro do quadrado fundado por imagens repetitivas e discursos machistas. Eles eram efusivos, afeminados, dramáticos,viadíssimos. Eram. Sucumbiram a dietas explosivas, comportamentos sigilosos, textos que enaltecem ‘não curto afeminados-macho-só-no-sigilo-flw-brother’. E a sociedade como age? Age apoiando essa personificação do gay ideal. Ele não dá (oi?) pinta, ele não tem voz de fêmea, ele é ideal para casar, para ter filhos, para ser aceito. Mas no fundo ele não se esquece de quem é, ele apenas renega tristemente suas origens enquanto come um belo frango grelhado com ervas e batata doce.
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O SUJO
falando do mal lavado
por keydsonfoto:renato divulgação
Quando pensei em escrever esse pequeno texto, revivi alguns momentos da minha vida, logo no inicio, quando comecei a conviver e a aceitar o fato de ser gay. Ao contrário de muitos, não tive nenhuma dificuldade em me aceitar e muito menos de pensar como a sociedade iria me ver a partir dali. Mas, será mesmo?
A homossexualidade e os pensamentos que rodeiam essa palavra até que mudaram, mas encontrar pessoas que têm preconceito com gays é, infelizmente, comum. E quando esse preconceito acontece dentro da própria comunidade, a qual deveria se unir para lutar por igualdades? Póoorra! Fica bem mais difícil.
Uma das primeiras coisas que pensei logo quando comecei a “entender e aceitar” quem realmente era, foi que não deveria fazer com que minha família fosse vista por ter um filho “bicha”, então optei por fazer a linha discreto. Por dois motivos: na época eu era coroinha da paróquia da minha cidade, era visto pela sociedade e comunidade católica como um rapaz sério, exemplar e que comungava da família tradicional. Tinha inúmeros amigos gays afeminados, mas evitava ao máximo ser visto com eles em público, e quando acontecia me sentia muito desconfortável; a outra era que achava desnecessário o gay afeminado, pintosa, que tinha voz fina, que fazia carão. Comentava para mim mesmo e para outras pessoas com quem me relacionava que, para ser gay você não precisa ser mulher, achava a feminilidade no homossexual um abuso a aceitação. Não via meu pensamento como um preconceito, talvez pela pouca informação que tinha ou até mesmo pela repressão da sociedade para com a comunidade gay.
Você pode está se perguntando se isso existe ou até mesmo se é comum. Bom, acabei de relatar um exemplo. Eu era assim. Uma “bicha” preconceituosa. Onde os valores héteros e tradicionais prevaleciam, onde me aceitava e me escondia, onde me inseria e renegava ao mesmo tempo.
Mas, por que se esconder? Por que tentar disfarçar ou até mesmo rejeitar uma vida? Não trato o fato de eu ser gay como opção, ninguém deveria. Ninguém escolhe ser gay, ninguém escolhe ser agredido, ninguém escolhe ser marginalizado. A gente é e ponto.
Devido à repressão da sociedade heteronormatizada, alguns gays optaram por ditar estereótipos. Se você for um gay (homem) tem que ser másculo, e se for lésbica, tem que ser feminina. Esse pensamento egoísta e individualista vai em direção contrária daquilo que lutamos. Quantos gays são espancados e mortos pela intolerância. Quando gays ainda vivem em seus armários, solitários, devido ao medo de serem apenas eles mesmos. Quantas travestis são marginalizadas e rejeitadas. Quantos gays homofóbicos levantam a bandeira da heteronormatividade, mas vivem um mundo cor de rosa dentro de si. Devemos levantar a bandeira da igualdade, dos direitos iguais. Devemos olhar para o nosso lado e ver apenas humanos. Devemos levantar a bandeira do respeito mútuo e olhar para frente para pensarmos em começar a sermos uma verdadeira comunidade.
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DRAG YO se inspire, crie e ouse
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OURSELF fotos: yáskara fabí
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fotos: divulgação
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SURTO & deslumbramento O cinema alternativo brasileiro vem tentando, severamente, promover sua expansão ao meio de tantos blockbusters encabeçados por grandes produtoras. O desafio de se produzir cinema em zonas que fogem da obviedade, traz a tona novas visões sociais de problemas e situações nas quais boa parte dos espectadores não se sentiam representados. O coletivo “Surto e Deslumbramentos”, traz a tona toda uma faceta esquecida pelo cinema gay, a abordagem da bicha. O afeminado, o mutável, cheio de pluralidade. Uma abordagem especial da viadagem, e sim, tudo feito, composto e produzido no Nordeste, especificamente em Recife. A Fagô entrevistou Chico Lacerda, participante do coletivo, no qual atualmente é um dos grandes nomes que compõe o cinema lgbttt nacional, levando uma proposta de produzir longas e curtas cheios de sexualidade livre e de rompimento com padrões convencionais. Com o seu curta metragem “Virgindade”, Chico oferece uma visão real e divertida do tema que sempre ouriçou os pensamentos de todo e qualquer ser humano, garantindo em 2014 o kikito, prêmio da 43ª edição do Festival de Cinema de Gramado na categoria melhor montagem. Pra Fagô, Chico fala sobre as perspectivas do cinema gay, queer e muito mais.
1.Você elaborou uma tese sobre cinema gay no Brasil, quais as conclusões sobre a produção nacional? Temos um cinema gay? Quais nossos marcos e/ ou características nesse sentido? Generalizando um pouco, pois existem exceções, eu considero o Mix Brasil (surgido em 93) um marco que divide duas abordagens distintas do homoerotismo masculino no cinema brasileiro. Antes: personagens homossexuais pontuais em filmes sobre outras questões; a identidade da bicha bem proeminente (classes baixas, marginália, transgeneridade). Depois: filme lidando assumidamente com questões ligadas ao homoerotismo masculino; a identidade do gay bem proeminente (classes médias, branquitude, cisgeneridade) e uma rejeição pesada à figura da bicha. Então, acho que temos um cinema gay (assumi-
do, tratando abertamente das questões ligadas ao tema) a partir dos anos 90, mas com as particularidades citadas. Novamente: isso generalizando, há exceções. E sobre o debate acadêmico em torno do cinema queer? Você se enxerga parte desse debate? Sim. Na minha tese eu retomei a questão da representação, mas tentando transcender a influência das políticas de representação, ou seja, do julgamento das representações em termos “positivos” e “negativos”, em termos de seus benefícios ou malefícios às lutas emancipatórias LGBT (abordagem capitaneada por Antônio Moreno e seu “A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro”). Busquei,ao contrário, tratar de questões surgidas dos próprios filmes considerados em seus contextos históricos.
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Quais as maiores diferenças entre cinema gay e cinema queer? Não são conceitos estritos, mas rótulos utilizados em geral de forma pouco rigorosa e até intercambiável (assim como cinema LGBT) Queer significa, numa de suas possíveis traduções, estranho, além da estranheza, quais as questões estéticas que movem esse cinema? Como eu falei antes, “cinema queer” não é um conceito em si, mas um rótulo bem solto e próximo de cinema gay ou LGBT. Por outro lado, se falarmos em “new queer cinema”, aí sim estaremos descrevendo um movimento localizado temporalmente (viradas dos anos 80 pra 90) e com autores bem específicos (Haynes, contrário, tratar de questões surgidas dos próprios filmes considerados em seus contextos históricos. Araki, Kalin etc.), de acordo com B. Ruby Rich. Tem um outro autor, Nick Davis, que em “The Desiring-Image” propõe uma estética queer (não necessariamente ligada ao que se convenciona chamar “cinema queer”) que estaria a próxima a uma representação do desejo sexual em si, livre de identidades solidificadas e transcendendo inclusive a noção de identidades hegemônicas ou marginais. Enfim, não há um consenso a respeito. Na descrição audiovisual do canal Surto & Deslumbramento no Youtube vocês afirmam que aquele se trata de um coletivo que produz filmes sobre “bichas”? O que seria essa definição? É uma escolha política Como falei antes, os anos 90 popularizaram a
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identidade gay através de uma operação de higienização da bicha, identidade popular anteriormente. Foram apagados, assim, seus traços mais incômodos, como a ligação com a marginália, a promiscuidade, a transgeneridade, a afetação. Quando a gente se refere a filmes sobre “bichas”, a gente tá falando de abordagens que vão de encontro a essa higienização, que valorizam, ao contrário, muito disso que se considera incômodo. Não necessariamente por ser considerado incômodo, mas por se algo com que dialogamos entre a gente, algo com que nos relacionamos e que nos instiga. O que é ser bicha, hoje, no cinema brasileiro? Ser pintosa, espalhafatosa, livre sexualmente. Sinto que a bicha vem sendo resgatada por vários filmes como signo de liberdade, o oposto do gay regulado por um padrão heteronormativo. Acho que Madame Satã é um marco desse resgate. Como surgiu o coletivo Surto e Deslumbramento? Para onde ele caminha? Surgiu da obsessão compartilhada entre quatro amigues por Valesca Popozuda, Kate Bush, Leona Assassina Vingativa, por memes em geral, cultura pop, camp, trash. Da vontade de produzir algo a partir dessas obsessões. Acho que continua nesse mesmo caminho, agora com mais visibilidade. Como surgiu o coletivo Surto e Deslumbramento? Para onde ele caminha? Sigam o exemplo da deusa Leona (Vingativa): peguem uma câmera, façam e joguem no mundo.
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