FRAUDE
Editorial
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É, aconteceu. Mais especificamente no dia 7 de setembro de 2012. Fomos pegos em flagrante, algemados e trancafiados sem direito a fiança, porém nada mais justo. Foram nove anos fazendo e acontecendo e nenhuma descoberta, nenhuma suspeita. Passaríamos despercebidos outra vez? Não seríamos notados? Então foi aí que aconteceu. Não adianta reclamar. Estamos todos fichados. Atenção, atuais e ex-petianos: descobriram nossa Fraude! Segundo o prêmio Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação (Expocom), somos a melhor revista impressa laboratorial do país. E, como de costume, não escondemos nada. Somos réus confessos: fraudamos mesmo! Calma lá! Se você é nosso leitor de primeira viagem não precisa se assustar: temos boa índole. E para os leitores assíduos, já deu para perceber a primeira diferença desta edição logo nas primeiras páginas, certo? Novos repórteres e novo tutor. Além disso, esta edição conta com reportagens que trazem discussões mais sociais e políticas, sem deixar de lado, claro, suas características culturais. Convidamos você para debater junto com a Fraude #10 temas como Feminismo, as Feiras Livres de Salvador, o destino das obras artísticas provenientes do Subúrbio e o verdadeiro sentido de Performance Artística. Por falar em debater, decidimos colocar a boca no trombone e abrir espaço para um texto opinativo sobre as políticas LGBTT. E, como toda Fraude que se preze, fraudamos dados acerca das condições vividas diariamente nos ônibus soteropolitanos em um divertido infográfico (mas, preste atenção, nem tudo é fraude nesta Fraude). E claro que não podíamos deixar de falar da nossa querida mascote e suas peripécias na Fraude #10, principalmente pelo que ela aprontou dessa vez. A Macaquicha enfiou na cabeça que queria ser a prefeita de Salvador e montou a campanha política “se é para votar em fraude, que seja na verdadeira Fraude”. Então, caro leitor, sinta-se no direito de cobrar quaisquer promessas que envolvam a nossa Fraude à Macaquicha, porque, segundo ela, mais verdadeira do que essa Fraude, só outra.
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Corpo inquieto Esclarecendo conceitos que envolvem a arte performática. Do ateliê ao mercado Descubra o destino das obras de arte vindas do subúrbio. Santos da Bahia Edgar Santos: fomentador da cultura de vanguarda na Bahia.
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Só não vai quem já morreu! Fragmentos do álbum de família do carnaval de Salvador.
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Onde nascem as cidades História e identidade de Salvador se misturam em suas feiras livres.
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Cartas na mesa A taróloga, arte-terapeuta e perfurmista Tânia Nardes revela o outro lado do jogo de cartas: um caminho percorrido pela consciência de cada um.
Amana Dultra/Labfoto © 2012
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um guia para a fraude
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De salto ou de chuteira É preciso abdicar da feminilidade para ser feminista? Selo Fraude de Qualidade Selo Fraude de Qualidade escolhe a melhor loja de CDs de Salvador. Linha, tesoura agulha na mão e uma ideia na cabeça Além dos palcos, conheça o trabalho do figurinista Rino Carvalho.
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O que você sabe sobre buzú em Salvador? Conheça a pesquisa da Fraude sobre o transporte público de Salvador.
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Qual a parada? De quadrinho em quadrinho, compreendendo que a luta do movimento LGBTT é de todos nós. E ainda: ícones no fim de cada matéria indicando conteúdos extras que estão disponíveis no site www.revistafraude.com Legenda: Vídeos
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quem faz a fraude Tutor Petcom: Fabio Sadao Nakagawa Editora-geral: Paula Morais Editora de Fotografia: Amana Dultra Editor Multimídia: Daniel Silveira Editor do site da Fraude: Daniel de Farias Diretor de Arte: Wesley Miranda Diagramação: Gustavo Mões, Hury Ahmadi e Wesley Miranda Assessoria de Comunicação: Camila Hita, Daniel
Silveira, Paula Morais e Yne Manuella Cardoso Produção do Lançamento: Carolina Leal, Daniel de Farias, Lara Perl e Renata Farias. Repórteres: Amana Dultra, Camila Hita de Aguiar, Carolina Leal, Daniel de Farias, Daniel Silveira, Gustavo Mões, Hury Ahmadi, Lara Perl, Paula Morais, Renata Farias, Wesley Miranda e Yne Manuella Cardoso Foto de Capa: Amana Dultra/Labfoto Editorial: Wendell Wagner/Labfoto
agradecimentos À gráfica Santa Bárbara pelo apoio na impressão da revista. À direção da Faculdade de Comunicação da UFBA pelo auxílio nas despesas da Fraude e do seu lançamento. Ao Trapiche Barnabé por conceder o espaço para a foto do editorial e à W&A Uniformes pelo empréstimo das roupas. À banda Quarto e Sala e à Gabriela Gomes pela paciência com a música de divulgação para a assessoria do evento e ao estúdio Attitude por ter ajudado na gravação. À Carla Galrão por ter dado assistência com maquiagem, figurino e audiovisual ao grupo Petcom. Ao professor Rodrigo Rossoni pelos conselhos fotográficos e ao Labfoto pela parceria com os monitores que fizeram as imagens da nossa revista. Ao Pelourinho Cultural, Centro de Culturas Populares Identitárias e Secretaria de Cultura por cederem a Praça Archanjo e toda a infraestrutura necessária à realização do nosso evento.
A revista Fraude é uma publicação do Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Comunicação (Petcom) da Universidade Federal da Bahia. O Pet é um programa mantido pela Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação, e foi por meio de um auxílio dado pela direção da Faculdade de Comunicação que foi paga a impressão da revista. As opiniões expressas neste veículo são de inteira responsabilidade dos seus autores. Ano 9, número 10, novembro de 2012 Salvador - Bahia. Tiragem: 1000 exemplares. End.: Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina, Salvador, Bahia - Brasil. Tel.: 3283-6186 www.petcom.ufba.br | petcom@ufba.br www.revistafraude.com
Corpo Inquieto inquieto Inquieto A performance como forma de questionamento do sujeito texto Paula Morais e Wesley Miranda fotos Leonardo Pastor/Labfoto ilustração Wesley Miranda Objetos espalhados sobre uma mesa causavam curiosidade para quem os via: pote de mel, tinta, navalha e até mesmo um revólver. Esses foram os elementos da apresentação de Marina Abramovic, em 1972. A artista sérvia ficou em silêncio durante seis horas ao lado de uma mesa com 72 objetos diferentes, que podiam ser utilizados pelos transeuntes segundo a intenção de cada um. Ao fim da apresentação, Marina estava com as roupas rasgadas e o revólver havia sido apontado para seu rosto. Chamadas de performance, apresentações como as de Marina fazem com que o corpo seja o sujeito principal de uma obra artística. Muitas vezes confundida com a ideia de espetáculo, a performance não é o termo mais apropriado para definir representações que proporcionam entretenimento, como um concerto ou um show. Ela surgiu
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como movimento de contra-cultura por volta dos anos 1960, nos Estados Unidos, inspirada no dadaísmo e futurismo, manifestações da década de 1920 que buscavam romper com a noção de arte relacionada à academia tradicional. A performance surge com a intenção de desmitificar a arte e se torna um lugar político de resistência aos museus e galerias, levando a arte para locais não convencionais como as ruas -, por meio do corpo. Além disso, ela consegue unir e criar relações entre as diferentes linguagens presentes no campo artístico (dança, teatro, artes plásticas, artes visuais etc), por isso definir suas próprias características acaba sendo uma tarefa difícil. Segundo Lilih Curi, performer e mestre em Artes Cênicas, a arte performática nasce como um espaço
de questionamento. “A performance veio para ser risco, arma cultural e política. Surgiu para dizer o que não era dito diretamente e questionar o que está ali, de maneira urgente”, explica.
O que te inquieta? Com a performance, o artista passa a ter liberdade de produzir o seu próprio discurso e não encená-lo como um personagem, partindo da autobiografia e não de um roteiro pré-estabelecido por terceiros. “Normalmente, as pessoas preferem ser dirigidas e buscam testes para interpretação, ficam subservientes a decisões de
A performance A história de qualquer um, de Alessandra Flores, surgiu de histórias de transeuntes da Praça da Piedade
superiores. Partindo da produção, direção e atuação, sendo essa, em terceiro plano. Na performance, acontecem processos horizontais de criação, sem hierarquia. Nela, é possível aproveitar a riqueza de cada experiência vivida pelo performer e transformá-la em um trabalho artístico que seja importante para todo o coletivo”, comenta Lilih Curi. Esse caráter autobiográfico serve de essência para definir quais são as inquietações pessoais do artista enquanto indivíduo. “A inquietação do artista é parte primordial da performance. É uma ação, uma vontade de interferir, de querer dizer alguma coisa do seu tempo, da sua forma”, comenta Liz Novais, performer e estudante da Escola de Teatro da Ufba. Além de refletirem experiências pessoais vividas pelos artistas, as inquietações têm também um viés político e social, que possibilita a identificação por parte de outros
“ Na performance, acontecem processos horizontais de criação, sem hierarquia ” Lilih Curi
indivíduos sem necessariamente tratar de problemas politizados - como a fome, por exemplo. “É impossível achar que aquela performance é uma questão que diz respeito a uma só pessoa, que pensou, criou, refletiu e quer mostrála. Não é uma apresentação de teatro, é uma ação vivenciada por todos os indivíduos de uma sociedade, no mesmo tempo. Não é uma maluquice criada por uma pessoa, é uma visão de algo que todos vivem e veem”, explica Liz. “O indivíduo nunca é somente ele: ele é ele, mas também é parte do meio em que vive”, completa. As inquietações também podem ser feitas em conjunto, preservando a pluralidade para a construção da poética de cada performer. Para Rose Boaretto, integrante do Coletivo Osso, grupo soteropolitano de performers criado em 2009, as inquietações estão vinculadas aos espaços urbanos, mas não à sua materialidade. “Nossas inquietações estão ligadas ao que dá vida, dinâmica e condições de encontro aos espaços urbanos, percebendo suas características distintas e suas imprevisibilidades, que são entendidas como elementos constitutivos de cada performance”, esclarece.
O ensaio é a performance Quando as luzes iluminam o palco e a plateia não desgruda os olhos do artista, é o instante em que o espetáculo deve acontecer. No espetáculo, os longos ensaios promovem a beleza das exibições e os improvisos são o trunfo para reparar qualquer erro, enquanto na performance, o ensaio já é considerado o próprio ato de realizar as apresentações. Segundo Heyder Moura, performer e estudante da Escola de Teatro da Ufba, somente um roteiro é necessário para as suas apresentações, servindo somente como um guia. “Eu não gosto de ensaios, apenas faço um roteiro e deixo que a experiência do ato me leve a caminhos e descobertas. A performance é a experiência do acontecimento e as interferências na apresentação acontecem a todo o tempo”, comenta. Promover as exibições mais de
“ O indivíduo nunca é somente ele: ele é ele, mas também é parte do meio em que vive ” Liz Novais FRAUDE
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Os integrantes do Coletivo Osso se unem única e exclusivamente pela vontade mútua de performar e dizer algo para a sociedade
uma vez pode acontecer tanto na performance, quanto no espetáculo. No entanto, para o performer, as relações entre as suas emoções, o tempo e o espaço podem trazer novos significados, ainda que seja a mesma apresentação. Em sua dissertação de mestrado, Luciana Paludo, professora de dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, afirma que no momento em que um novo lugar, ou uma situação nova se apresenta ao corpo, todo o esquema corporal entra em um estado de redimensionamento, se moldando às novas condições propostas.
Corpo a corpo Em algumas apresentações performáticas, a participação dos transeuntes é necessária, ainda que não seja de forma direta, podendo acontecer, por exemplo, somente com o olhar da dúvida. Já em outros casos, a interferência se dá por meio do contato físico, ocasionando relações de choque. “A performance é mais um lugar de risco do que de preparação. Significa sair da zona de conforto, romper com todas as categorias artísticas, fazer um bojo delas e gritar: ‘isso é performance, eu
Isaura Tupiniquim vivencia a contexto de agitação cotidiana que influencia a performance
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não estou preso!’”, exclama Isaura Tupiniquim, performer e mestranda da Escola de Dança da Ufba. Para Isaura, toda a agitação cotidiana proporcionada pelas apresentações performáticas deve estar relacionada com o contexto histórico-social que determinada cultura está inserida. “Não vivemos a ditadura, atualmente, vivemos outro processo, não menos cruel, mas que aborda outras questões. A arte da performance se relaciona principalmente com os contextos históricos e problematiza as questões na esfera da produção de discurso do artista”, afirma. Toda reação é fruto das ações realizadas pelas apresentações performáticas e cada performer deve estar ciente das consequências que sua obra pode ter para a sociedade. “Há performances que causam mais empatia, já outras, um certo distanciamento. Precisamos estar atentos a todo tempo. O trabalho é realizado ali com essa multiplicidade”, comenta Rose. Dessa forma, algumas apresentações podem ser censuradas por serem vistas como confrontantes aos valores morais da sociedade. “Há um incômodo muito mais aparente
“ A performance é a experiência do acontecimento e as interferências na apresentação acontecem a todo o tempo ” Heyder Moura quando os homens ficam pelados em apresentações performáticas e isso é por conta de uma sociedade machista. Existe também o estranhamento quando é a mulher que está nua, mas o olhar do censor para o homem é mais forte. É muito mais fácil admitir uma mulher pelada”, critica Heyder, lembrando de um dos seus trabalhos. Ainda assim, ele considera que a censura não deixa de ser uma resposta da ação promovida pelo ato performático que faz brotar outras questões relacionadas ao corpo, como a liberdade de expressão. “Eu acho que se, de alguma forma, não existisse o olhar do censor, o sentido político de algumas performances não teria tanto significado”, comenta. As interferências dos transeuntes, dadas em qualquer proporção, porém, significam principalmente o rompimento com a barreira entre o artista e o público. Afinal, embora o olhar crítico seja direcionado ao corpo que expõe, o corpo que observa é tão performista quanto e também não está a salvo das modificações que as apresentações performáticas causam ao redor.
“ A performance é mais um lugar de risco, do que de preparação. Significa sair da zona de conforto ” Isaura Tupiniquim
Heyder Moura realizou uma performance correndo pelas ruas com sinos no pescoço e vê o nu masculino com um tabu a ser quebrado
Afinal, qual a diferença? A arte de performance surgiu do happening, termo criado em 1959 pelo artista Allan Kaprow para designar “eventos teatrais espontâneos e sem trama”. Apesar dos dois movimentos terem o propósito de retirar a arte do seu lugar institucional e democratizá-la, o happening prevê a participação do espectador na cena proposta pelo artista, diferentemente da performance, em que geralmente não há a participação direta dos transeuntes. O happening tem um caráter de improvisação muito forte, enquanto a arte performática segue um roteiro pré-estabelecido pelo performer, um guia que vai definir todos as etapas da apresentação. Por serem feitas, normalmente, nas ruas, no meio da multidão, é comum que as apresentações performáticas também sejam confundidas com as intervenções urbanas. No entanto, a intervenção tem o propósito de recriar paisagens, seja com a colagem de cartazes e adesivos ou com a apresentação de instalações artísticas, objetos montados em um espaço que criam uma relação com o espectador. Já para a performance, o que interessa é causar uma reação no público, levantar questões pessoais do indivíduo, através de apresentações que podem envolver as mais diversas linguagens artísticas.
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Do ateliê ao mercado O destino da arte invisível produzida nas periferias de Salvador texto Carolina Leal e Lara Perl fotos Tayse Argôlo/Labfoto Em um lugar como o Subúrbio Ferroviário de Salvador, ainda marcado por cicatrizes de marginalização, é possível ouvir, tocar, ver arte e beleza por todos os cantos. As histórias daquela gente diversa configuram a região como berço cultural. No entanto, o esquecimento ainda grita em cada esquina. Um olhar atento às ruas estreitas que cruzam a Avenida Suburbana pode encontrar quadros, esculturas, obras de arte sem assinatura, sem dono e sem visibilidade, muitas vezes no lixo. Da mesma forma, nos centros de artesanato, como o Mercado Modelo, Pelourinho e lojas turísticas, encontram-se obras parecidas, que vêm do Subúrbio, mas continuam no anonimato. Segundo Leonel Mattos, artista plástico e presidente do Sindicato dos Artistas Plásticos e Visuais do Estado da Bahia (Sinapev-BA), a realidade é que diversos artistas estão à procura de lugares para expor a sua obra. “Às vezes, me pergunto
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quem valoriza quem, se é o lugar que valoriza a obra de arte ou se a obra valoriza o lugar. Acho que o lugar ainda está valorizando o artista, ele sempre está à espera de um espaço para que seja valorizado”, comenta. Quando se trata de artistas do Subúrbio, isso é ainda mais grave. Para José Eduardo Ferreira Santos, morador de Novos Alagados e pesquisador autônomo da beleza suburbana, o problema é estrutural, da cidade. “Criou-se, em torno da periferia, um cinturão que a separa da cidade dita formal, poucos são os espaços que acolhem os artistas vindos do Subúrbio”, afirma. A verdade é que, por detrás desse cinturão, existem ateliês escondidos e artistas prontos para serem descobertos.
Vida de artista, obra de artesão O conceito de artesanato vem da noção de arte como fazer ou simples
ofício. O artesão possui a técnica e a usa de uma forma utilitária, geralmente com a intenção de vender para obter sustento. Já o artista, com o seu conhecimento e a sua técnica, encara a produção artística como forma de expressão, sendo a apreciação da obra o maior objetivo, o que pode vir a fazer com que ela seja vendida, exposta ou mesmo guardada. Para Ray Bahia, artista plástico de Periperi, arte é criação. “Uma coisa que não vem de mim não é arte, embora eu esteja usando uma técnica: quando uma pessoa me pede pra fazer uma baiana ou um orixá, por exemplo, é um trabalho artesanal”, afirma o mestre Ray, como é conhecido no bairro. As máscaras de ferro, com os traços negros de sua gente, são cinzeladas e repuxadas através de uma técnica desenvolvida por ele, e a fila de espera é composta por um público diverso, que inclui vizinhos, turistas e outros artistas plásticos. A originalidade da obra de Ray
Bahia é um exemplo da presença de um artista autêntico e reconhecido nas ruas de Periperi. Entretanto, por algum motivo, a arte vinda do Subúrbio é confundida com artesanato. “Vejo muitos trabalhos daqui sendo vendidos em pontos turísticos, mas nas galerias e espaços artísticos isso ainda é muito pouco. Os critérios são nome, fama e prêmios, a obra em si não fala muito”, explica Ray, que vende grande parte das suas obras no Instituto Mauá. O Instituto o considera como artesão e trabalha a partir da conservação do artesanato popular, no intuito de dar continuidade e transmitir a técnica. No caso de Ray, sua técnica é única, já que foi desenvolvida por ele próprio, e seu maior receio é que ela se perca com o tempo. Lúcia Helena Ramos, curadora
“ Às vezes, eu me pergunto quem valoriza quem, se é o lugar que valoriza a obra de arte ou se a obra valoriza o lugar “ Leonel Mattos
Entre arte e artesanato, as obras do artistas se encontram no Mercado Modelo
do Museu de Artes Afro Brasil, em Recife, considera que é um desafio trazer para um museu uma arte que é, equivocadamente, conhecida como artesanato. “Nosso grande desafio é que não existe espaço para arte contemporânea africana, ela sempre está associada ao artesanato e ao candomblé. É um trabalho de discutir a temática, fazer com que as pessoas queiram saber e conhecer”, explica. O acervo do museu é a coleção do antropólogo Rolando Toro, que viajou e coletou máscaras africanas em diversos lugares do mundo. Uma das maiores cole-
ções do acervo é a obra de Otávio Bahia, artista de Fazenda Coutos, conhecido pelas suas máscaras de madeira. O mais curioso é a sua obra estar em Recife, e não em Salvador.
O trajeto de uma obra No Mercado Modelo, o nome Otávio Bahia é um dos poucos conhecidos pelos comerciantes. Segundo Antônio Carlos Santos, vendedor há mais de 50 anos, a maior parte dos artistas não assinam, e os que assinam não são conhecidos. No entanto, quem já visitou o Mercado
A descoberta de um bairro-museu: a arte do Subúrbio Ferroviário
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O processo criativo de Ray Bahia e as suas máscaras de ferro
Modelo mais de uma vez deve concordar que a cada visita tudo parece mais e mais igual. Agora, o que está vendendo são bolsas, colares, confecções. Se for o que vende, é o que todos vendem. De fato, fica difícil encontrar peças originais e únicas no meio das baianinhas de janela. Ivo Guerreiro trabalha no mercado desde criança e explica que isso se deve ao fato de todos os comerciantes comprarem mercadorias na mão dos mesmos fornecedores. “A gente compra tudo aqui mesmo, mas poucos artistas vêm vender suas peças.
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Outras pessoas que trazem, são atravessadores, que ganham com isso. A gente sabe que na fonte é muito mais barato, mas compramos aqui porque o que chega é o que vende. Por isso as mercadorias são quase as mesmas em todas as lojas”, admite Guerreiro. A ação destes “atravessadores”, que compram as obras na mão dos artistas e revendem para as lojas de artesanato, faz com que os preços aumentem e, no final do processo, estas obras estejam etiquetadas e distantes dos seus criadores, inseridas em um contexto mercado-
lógico e encaradas como produto. Os artistas que percebem essa lógica tentam compensar, modificando os preços quando sabem que as peças serão revendidas. Nilton Lobo, mais conhecido como Índio, faz talha de madeira no bairro de Escada e tem consciência de que suas peças são vendidas por preços muito mais altos em outros lugares. “Algumas pessoas vêm aqui como compradores normais, só depois eu fico sabendo que revenderam e ganharam nas minhas costas. Esse banco, por exemplo, eu vendo por mil reais, e as pessoas vendem lá fora por R$ 3 mil, R$ 4 mil. Eu ia me dar bem em outros lugares, mas não tenho condições financeiras de sair daqui”, conta ele, relembrando o caso de um francês que comprou peças na sua mão e depois mandou um encarte de loja com obras parecidas, a preços dez vezes mais altos. O ateliê, a loja e o local onde Indio expõe sua obra é a rua de Escada; o depósito é a sua própria casa. Conhecendo esse contexto, Ray Bahia já determina o preço para vender ao comerciante. “Eu vendo para ele por um preço quatro vezes mais caro. Por exemplo, se você vem aqui e quer um peixe de um metro eu te vendo por R$ 200,00. Para ele, eu vendo por R$ 800,00. Eu sei que vai colocar qualquer preço e, mesmo assim, vai revender rapidinho. Já vendi peças por R$ 200,00 e vi no mercado por R$ 2 mil”, afirma. Ele destaca que só vende para uma ou duas lojas, para não criar concorrência e desvalorizar suas peças.
Viver de arte? Saindo da periferia e voltando para o centro, um bom passeio por galerias de arte e museus de Salvador, pode instigar o questionamento sobre o modo pelo qual se dá o processo de seleção dos artistas e das obras de arte que compõem o calendário destes espaços. “A seleção é feita por meio de edital, já que este é o mecanismo que abrange a maior quantidade de artistas competindo de igual para igual”, explica Wilson Santos, assessor de comunicação da
Perinho, em frente a uma das páginas de seu livro espalhado pelas paredes de Platarforma
Caixa Cultural de Salvador. Os editais nacionais, nos quais artistas do país inteiro mandam projetos para serem avaliados por uma curadoria, têm sido adotados não só pelo Estado, mas também pela maior parte das galerias e centros culturais. Se as condições de trabalho dos artistas invisíveis não são adequadas, o que dizer então da preparação destes para inscrever e concorrer num edital com outros tantos artistas que possuem produtores e que já são consagrados pelo próprio mercado artístico? A instabilidade na profissão do artista faz com que cada um busque uma alternativa. Kátia Regina, artista de pintura em tela, decidiu deixar a arte de lado e investir no artesanato, mas, para ela, o artista só consegue sobreviver de arte se tiver uma visão comercial. “O artista deve ter o lado romântico apenas durante o processo de criação, depois ele precisa ser comercial para não depender de outras pessoas. Quando eu quis vender os meus quadros, não precisei de um merchand ou de alguém que batesse em minha porta: coloquei-os debaixo do braço e fui vender. É preciso que os artistas saiam de suas cascas, mesmo porque você
não pode mudar nada ao seu redor se você não mudar primeiro”, defende. O fato de espaços culturais e galerias não se abrirem para artistas iniciantes, que não têm currículo, exposições e prêmios, influencia muitos deles a deixarem a arte de lado ou procurem outra forma de sustento. Perinho Santana, poeta e artista plástico de Plataforma, é aposentado e pinta os muros do bairro, numerando-os como páginas de um livro, além de contar as histórias da comunidade através de suas pinturas. “A minha obra não tem um aspecto mercadológico. Uma vez, eu fui fazer uma intervenção artística na biblioteca de Escada e não queria ser pago porque o pagamento interfere na minha produção. Minha arte vai andando, eu dou os quadros. Para mim, é mais importante que ela ocupe outros espaços, como a casa das pessoas, as ruas, os muros”, comenta Perinho. E quando se trata de espaços alternativos, Leonel Mattos é um dos seus maiores defensores. “Os artistas devem procurar ter um ateliê à beira de rua, em um lugar que o público passe e veja, porque as galerias realmente são fechadas, elas não abrem. Além disso, o artista se esconde
atrás delas, não conhece seus clientes e quando parte para a independência tem que refazer tudo, buscar novamente o público que gosta do seu trabalho. Eu já fiz exposição em Feira de São Joaquim, atualmente estou no shopping. A arte dá o seu recado em qualquer lugar”, conclui.
Resgate da memória Entrar em contato com cada artista é mergulhar em um universo único, completamente diferente um do outro. Hugo José da Silva, o Carioca, morador de rua dos arcos do Bonfim, fala sobre a sua missão na Terra, através dos seus quadros oníricos,
“ O artista deve ter o lado romântico apenas durante o processo de criação, depois ele precisa ser comercial para não depender de outras pessoas “ Kátia Gomes FRAUDE
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O guardião do Acervo da Laje, Professor José Eduardo
linhas sinuosas da velocidade da luz, tudo feito com palito de churrasco, tábuas de madeira a tinta preta, doadas por simpatizantes que já conhecem a figura. Seu carrinho de coleta de garrafas plásticas para reciclagem tem os quadros com o “brasão da sua empresa”, a assinatura que vem na sua camisa e em todas as obras. O seu acervo fixo é um quadro único, que guarda para sua proteção e tudo tem explicações que só ele entende.
“ Criou-se em torno da periferia um cinturão que a separa da cidade dita formal. Poucos são os espaços que acolhem os artistas vindos do Subúrbio ” Jose Eduardo F. Santos
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As confusas palavras de Carioca, as histórias de Ray, os questionamentos de Perinho sobre a mente humana, a força de Índio, os detalhes de Kátia estão nas suas obras carregados de uma realidade simbólica que os cerca e guardam a memória de povos e comunidades historicamente esquecidos. Entretanto, eles próprios estão vulneráveis: chuvas, alagamentos, assaltos, incêndios são muito frequentes na região. Inúmeras obras de arte que não são conservadas como tais, por diversos fatores, principalmente sociais. José Eduardo Ferreira Santos, como pesquisador que se debruça por todas essas questões, destaca que a memória é um dos pontos mais delicados da invisibilidade, termo que utiliza para denominar o problema do esquecimento da beleza e da arte suburbana. “O artista nasce para durar, para ser apreciado e visível a partir da sua obra. Encontrá-la em uma barraca que será desapropriada, que passou pelas maiores intempéries e a tela resistir a tudo isso evidencia
a permanência da obra de arte como um símbolo que vai contra a falta da memória”, explica, ao lembrar das diversas vezes que, enquanto andava pelas ruas do Subúrbio, encontrou obras em condições adversas. O olhar atento do professor deu origem a sua pesquisa, que foi além dos livros e da universidade e se transformou em um museu vivo, fundado em 2010, com o objetivo de dar visibilidade a esses artistas de forma concreta, a partir da aquisição das suas obras. “A arte suburbana tem um valor considerável para quem a aprecia, mas, para que isso ocorra, é necessário que ela seja vista, analisada e divulgada. O Acervo da Laje é, ele próprio, uma “obra aberta”, em constante renovação, pois as obras não cessam de chegar e se juntar às já existentes”, comemora, fazendo um convite a todos que ainda não tiveram contato com o acervo. O único museu de arte do Subúrbio é a marca de uma realidade difícil, mas também da convergência de mãos, não tão artesãs, para mudar essa realidade.
Arquivo Centro de Memória da Bahia - Fundação Pedro Calmon
Santos da
Bahia
O Reitor da vanguarda Baiana texto Camila Hita de Aguiar
Terminada a Segunda Guerra Mundial, o mundo pedia grandes transformações. O Brasil, recém saído da Ditadura Vargas, vivia a República Liberal. Experimentava-se um forte crescimento urbano-industrial, responsável por um enriquecimento sociocultural das regiões envolvidas (Centro-Sul, eixo RJ-SP). A Bahia estava à margem desse processo até despontarem lideranças como Edgar Rego Santos. Soteropolitano, nascido em oito de janeiro de 1894, costumava ir a pé para a escola quando morava com a família no Pelourinho e, desde cedo, passou a conhecer a cidade durante suas caminhadas. Tinha intenção de matricular-se na Faculdade de Direito. Frente à violência política do coronelismo, percebeu que
a força estava valendo mais do que a própria lei. Preparou-se então para ingressar na Faculdade de Medicina. Formado em clínica cirúrgica em 1917, morou um tempo em São Paulo, onde já exercia a profissão com certo reconhecimento. Ao regressar para a Bahia e casar-se com Carmem Figueira, abriu um consultório e começou a lecionar na Faculdade de Medicina. Em uma viagem com a esposa para Europa conheceu grandes centros culturais, especialmente os de Berlim e Paris, retornando a Salvador com novas perspectivas. Edgar Santos já era um professor catedrático, Diretor Clínico do Sanatório Espanhol, quando, em 1936, foi eleito Diretor da Faculdade de Medicina. O desejo de um hospital gerido pelos próprios professores e mantido
pelo Governo Federal tornou-se possível, ainda que tardiamente. Edgar idealizou o hospital mais equipado e moderno da cidade. O projeto interrompido pelo Golpe do Estado Novo recebia o apoio de Juracy Magalhães, então governador. Diante da nova postura de Vargas, a renúncia tornou-se inevitável, ato seguido por Edgar, que vinha exercendo um cargo na Secretaria de Saúde do Estado. A construção do Hospital das Clínicas, hoje com o nome de Hospital Universitário Professor Edgar Santos, se concretizou em 1948, contando com o suporte dos primeiros egressos da Escola de Enfermagem. “Foi uma década de inovação para toda saúde hospitalar do Nordeste”, afirma Roberto Santos, médico, professor, filho e biógrafo de Edgard.
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O primeiro presidente a ser eleito com a redemocratização foi o general Eurico Gaspar Dutra. Ele nomeia para Ministro da Educação e Saúde o professor Ernesto de Souza Campos, que havia compartilhado com Edgar algumas experiências profissionais e aspirava implantar duas universidades no Nordeste brasileiro: a Universidade da Bahia e a Universidade de Recife. Confiante nas competências de Edgar Santos, o Ministro lhe concedeu um papel fundamental na criação da Universidade da Bahia, que logo se tornaria federal. Edgar Santos foi seu primeiro reitor, de 1946 até 1961, o equivalente a cinco mandatos. No caso das faculdades federais, eles eram nomeados pelo Presidente da República. Com um orçamento federal consolidado, o corpo docente obteve uma melhoria salarial e das suas condições de trabalho. Na época, o modelo de criação de universidades era a aglutinação de cursos profissionalizantes. Juntaram-se então as Faculdades de Medicina, Direito, Economia, Belas Artes e a Escola Politécnica, em sua maioria, outrora particulares. O Reitor acolheu intelectuais refugiados do pós-guerra, comprometidos com ideais de vanguarda e experimentação para que interagissem com a Universidade. Criou as primeiras Escolas de Música e Teatro de nível superior do Brasil, assim como a de Dança, que deixou sob a supervisão da polonesa Yanka Rudza, especializada em dança moderna. Apostava em projetos culturais, a exemplo dos Seminários Livres de Música. Os estudantes, dentre eles Caetano, Gil e Tom Zé, tiveram a oportunidade de aprender com compositores de vanguarda como Stockhausen, John Cage, Walter Smetak e participar do Grupo Música Viva, ministrado pelo alemão Hans-Joachim Koellreutter. Também integravam este plano cultural Lina Bo Bardi, arquiteta italiana, que coordenou o Museu de Arte Moderna da Bahia e foi responsável por boa parte
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Arquivo Centro de Memória da Bahia - Fundação Pedro Calmon
De Magnífico Reitor a “Reitor Magnífico”
Edgar e o governador Antônio Balbino
da recuperação do centro histórico; e o filósofo português Agostinho da Silva, responsável inicialmente pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao). A Universidade contou com a colaboração indireta de outros expoentes: o artista plástico Carybé, o fotógrafo e etnógrafo Pierre Verger. “Edgar Santos colocou a Bahia no eixo do movimento modernista brasileiro”, relata Juarez Paraíso, artista plástico e professor emérito. A Escola de Teatro, coordenada pelo pernambucano Martim Gonçalves formou atores como Othon Bastos, Geraldo Del Rey e Sonia dos Humildes. Salvador desfrutava uma singular ambientação cultural, de forma a compor cineclubes de críticos como Walter da Silveira, o Ateliê de Mario Cravo, ou abrigar reuniões em teatros e livrarias, movimenta-
“ Edgar Santos colocou a Bahia no eixo do movimento modernista brasileiro ” Juarez Paraíso dos por estudantes revolucionários como Glauber Rocha. O antropólogo Antônio Risério conta em seu livro “avant-garde na bahia” que não havia apartheid entre o campus (cultura universitária) e o cotidiano (cultura boêmia). Cidade e Universidade se complementavam. Edgar Santos fez da Universidade um núcleo da agitação cultural. “Se Anísio [Teixeira]
agiu na infância dos baianos, Edgar agiu na pós-adolescência”, afirma o poeta Capinam. “Sabia receber e conduzir uma reunião, assim como o Conselho Universitário”, comenta a educadora Leda Jesuíno, a respeito de Edgar. Ele direcionava suas habilidades em administração pública em prol da conquista de verbas para a Universidade. Criou a Escola de Geologia, o Instituto de Física e as parcerias com a Petrobrás. A Escola de Teatro era bancada pela Fundação Rockfeller. “Ele importava da França o material de artes plásticas para a Escola de Belas Artes”, recorda Juarez Paraíso. O primeiro plano universitário do Brasil de assistência ao estudante foi implantado na Ufba e consistia na Casa do Universitário e no Restaurante Universitário. Foram inaugurados laboratórios estruturados para pesquisas, entre os quais trabalhava o geógrafo Milton Santos. “A Universidade era recém-inaugurada e Edgar teve uma liberdade que os reitores de hoje não têm”, comenta a professora Dora Leal Rosa, atual reitora. No início da gestão de Edgar, a Ufba contava com 1500 estudantes e hoje são 32 mil apenas na graduação.
de influência francesa”, conforme declara Roberto Santos. “Não se percebia as consequências da reforma e havia forte resistência ao que ele estava fazendo”, afirma Capinam. Protestos conservadores insurgiam carregando cartazes que diziam “abaixo as bichas do reitor!”. Edgar Santos era perseguido por ataques da imprensa e por uma esquerda conservadora. Mesmo assim, haveria cumprido seu sexto mandato, com a maioria dos votos, se o presidente Jânio Quadros não resolvesse de última hora nomear o segundo candidato da lista. Convidado para ser presidente do Conselho Federal de Educação, exerceu a função por curto período, pois veio a falecer em 1962, após ter sido submetido a uma cirurgia. Edgar Rego Santos tinha uma visão política da cultura, muito acima da finalidade econômica. Suas contribuições seguem vivas, embora
tenha falecido há 50 anos. “É muito difícil para um jovem de hoje perceber o que acontecia nessa cidade, na época do Dr. Edgar Santos”, explica Mario Cravo. Não à toa, foi na terra de todos os santos que movimentos como o Cinema Novo e a Tropicália brotaram. Se houve uma universidade vanguardista, ela foi de certa forma para poucos. O atual desafio é democratizar o acesso sem romper o curso iniciado.
‘‘ Não se percebia as consequências da reforma e havia forte resistência ao que ele estava fazendo ” Capinam
Diversidade de cores e o golpe monocromático dos canhões A atuação de Edgar Santos não estava restrita aos afazeres do campus. Segundo Dora Leal, “fazia parte de um macro de política educacional”. Já como uma influência consolidada, ele apoiou a criação da Universidade Estadual de Feira de Santana. Nas palavras do artista plástico Mario Cravo, Edgar era “acessível, desses que anda com você, chega perto para conversar e pega no seu ombro”. Em última instância foi um gestor cultural. Entre suas realizações, destaca-se a restauração do Convento de Santa Teresa, onde instalou o Museu de Arte Sacra, um dos mais renomados da América Latina. “Ele era um leitor que não se contentava com os livros de cirurgia e constantemente lia livros de cultura geral, sobretudo
Em frente ao TCA, tanques da 6ª Região Militar apoiavam a passeata contra Edgar/ Arquivo Lina Bo Bardi
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Só não vai quem já morreu! Conversas e fotografias: guardiões da memória carnavalesca da cidade texto Amana Dultra e Daniel de Farias As cordas separam o bloco da pipoca, o trio elétrico atravessa a avenida em um corredor de camarotes, o circuito principal da festa é o Farol da Barra - Gordinhas de Ondina. Nem sempre foi assim, mas como conhecer as histórias que os livros da escola não nos contam? Ouvindo os mais velhos. Foi assim que reconstruímos trechos da história do carnaval de Salvador, descobrindo o que acontecia “naqueles tempos”. Para começo de conversa, uma
foto, registro de uma fração de algum dia quente no carnaval da Bahia, despertou a memória afetiva de cada um dos personagens carnavalescos escolhidos. Assim como encontrar um álbum de fotografias em uma gaveta de nossa casa, estes fragmentos compõem a história da cidade, completando as páginas – comumente preenchidas com turismo e estrelas do axé – através de recordações pessoais e íntimas. Cada fotografia é um punhado
de lembranças de vidas entrelaçadas ao carnaval. A ressignificação, característica da festa em todos os lugares do mundo em que ela acontece, faz com que, de tempos em tempos, o modelo seja transformado – às vezes por interesses privados, outras governistas e, ainda, de forma espontânea. Cada um dos guardiões dessas memórias carnavalescas nos guia entre estes diferentes ciclos, nos levando como uma multidão na praça do poeta.
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“Somos crioulo doido e somos bem legal, temos cabelo duro e somos black power”. A população da cidade, curiosa, perguntava: “Que Bloco é esse?” A resposta era imediata: “É o mundo negro, que viemos cantar pra você!”. O som surgido na Rua do Curuzu, localizada no bairro da Liberdade, ecoou no carnaval de 1975. Foi assim que surgiu o primeiro bloco afro a desfilar na Folia de Momo de Salvador, o Ilê Aiyê. Antes disso, o carnavalesco Osvalrízio Espirito Santo e outros tantos negros desejavam participar da festa em blocos, como o Internacionais e o Corujas, mas eram proibidos. Apenas o branco podia usar fantasia. Negro dentro dos blocos era para tocar ou carregar alegoria, trabalho dos chamados beduínos. Essa realidade fez parte de toda a infância e pré-adolescência de Osvalrízio, que com 15 anos pulou carnaval pela primeira vez. Do surgimento do Ilê Aiyê em diante, entretanto, as suas recorda-
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ções do carnaval convergem com as lembranças do bloco. As saídas no Curuzu, o ijexá, que dá o ritmo à dança dos orixás e a exaltação da beleza dos países, nações e culturas africanas, são características que marcam a memória dos carnavais de Osvalrízio. Ele participou da fundação e até hoje, enquanto diretor do bloco, tem uma dedicação diária ao Ilê. Mesmo sendo acusada de racista inúmeras vezes, a coordenação do Ilê Aiyê preserva uma de suas principais características, que é ser uma entidade em que somente negros participam. O objetivo, porém, nunca foi discriminar, mas evidenciar o racismo que existe até hoje, além da falsa democracia racial. Apesar de já ter fundado outros blocos, como o Comanches, que até hoje leva para a avenida a temática indígena, é no amarelo, vermelho e preto do Curuzu que Osvalrízio mais se referencia.
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O Mundo Negro
Um pierrot nato foram suas principais características. Foi no carnaval de 1986, marcado pelo sucesso da música Fricote, de Luiz Caldas, que Waltinho Queiroz percebeu que a festa estava sendo reconfigurada. Na música, o foco passa a ser o teclado, não mais a guitarra baiana; o Campo Grande já não dá mais conta e as pessoas começam a descer para a Barra; o comércio e o turismo se tornam as principais motivações dos agentes carnavalescos; e o espaço público é cercado por cordas e camarotes. Esse momento coincide com o fim do Jacú, que existiu por 22 anos.
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Ainda estudantes secundaristas, em 1964, Waltinho e seus amigos “botaram um bloco na rua”, o Jacú. No primeiro ano, os instrumentos utilizados no desfile se resumiram a dois tarois, uma caixa de guerra e dois surdos, fornecidos por um padre do colégio onde estudavam. Posteriormente, se tornou um dos maiores blocos de rua do carnaval, com dezenas de músicos desfilando no caminhão, agregando milhares de pessoas na avenida. A espontaneidade, o romantismo, a mortalha azul turquesa, símbolo de um “estado de espírito”, e a ausência de cordas, que permitia que todos participassem, sempre
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Terceira geração de foliões. Essa é a posição que Waltinho, poeta, cantor e compositor baiano, ocupa na árvore genealógica carnavalesca da família Queiroz. Do carnaval de máscaras, fantasias, “levado pela mão da mãe”, até a vibração das ruas e a decepção com o formato que a festa assumiu no fim dos anos 1980, com a consolidação da indústria do axé-music, foram mais de quarenta anos. Essa paixão influenciou sua carreira artística, a fundação de dois blocos e a organização de inúmeros bailes carnavalescos, ou seja, um envolvimento pleno com a Folia de Momo.
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Bandas de rua, brincadeiras e pessoas fantasiadas interagindo. Apesar de ser bem diferente da estrutura comercial atual, é dessa forma que o carnaval sempre esteve presente no imaginário de Débora Didonê, ou @didoneante*. Nascida em Santo Ângelo, pequeno município do Rio Grande do Sul, onde não existe carnaval, ela desembarcou para morar na cidade da maior Folia de Momo
do mundo no início de 2011. Não chegou a tempo da festa, mas, no ano seguinte, brincou de forma engajada na Pipoca Indignada, primeiro bloco a desfilar no circuito Dodô, popularmente conhecido como Barra/Ondina, que alterou o formato tradicional de abertura. Disputando o espaço com grandes trio-elétricos e camarotes, estavam participantes e simpatizantes do
O cavaleiro e a saga do trio elétrico 1945, I Batucada Carnavalesca de Periperi. As pessoas saem à rua para festejar o final da Grande Guerra. Orlando Campos menino aproveita e também pega sua panela para fazer seu batuque. No final dessa noite, ele e os amigos fundaram a primeira Batucada Carnavalesca do bairro. Sua mãe já dizia: “antes de nascer, já era carnavalesco, pulava carnaval ainda na minha barriga”. Enquanto conversávamos, Orlando Campos ancião contou suas histórias de carnaval, ano a ano, com o cuidado dos que já foram entrevistados mais vezes do que se pode contar nas mãos. Quem conhece um pouquinho Seu Orlando – ou o carnaval – sabe que a vida dele se mistura à história do trio elétrico. Dos seus quase 80 anos de vida, 65 são de trio. Presenciou a primeira vez em que um bloco, Os Internacionais, trocou sua bandinha de fanfarra por um trio e, desde então, acompanhou as bandas e os blocos se tornarem a atração principal do carnaval.
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A programação repetitiva de hoje, o que ele chama de “domínio das atrações”, o incomoda. Para Seu Orlando, com tantos bons compositores, a música precisa de mais espaço para o novo. Idos de 1950, Água de Meninos. “Quanto é o penico?”, pergunta o homem. A feirante, talvez de lenço azul amarrado na cabeça, cuida de suas galinhas e do feijão de corda, enquanto passa-lhe o troco. Em fevereiro, o penico comprado por Seu Orlando na feira da Cidade Baixa faz parte do primeiro banheiro de um trio elétrico. Com um orgulho sem vaidade, como só aqueles que já têm os cabelos brancos sabem ter, o mesmo homem mostra as fotos que recortou dos jornais e que guarda por todos esses anos. O trio elétrico e Dodô são os que mais aparecem em suas contações. Dodô e a pioneira do trio elétrico, a fubica, que foram empurrados por Seu Orlando folião no meio do povo,
na primeira vez em que tocaram na rua, quando o motor pifou. Dodô que profetizou, quando o conheceu, que Orlando teria um trio. Dodô de quem ele comprou sua primeira carroceria de trio, em 1960. Trio Tapajós, de seu Orlando, que homenageou Dodô em seu funeral, tocando Ave Maria. Dodô que esteve na Caetanave, e suas 1250 lampadazinhas projetadas por seu Orlando, quando Caetano cantou, como ninguém nunca o fizera antes, em cima de um trio elétrico: –“Venha, veja, seja, deixa, beija o que Deus quiser!” Dodô, Orlando Campos e o trio elétrico: chuva, suor e cerveja.
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#circuitodesocupa
movimento Desocupa Salvador, que direta ou indiretamente versa sobre formas de apropriação do espaço público, inclusive no carnaval. Como os demais participantes, @ didoneante não estava ali para repetir modelos, mas para confrontar, de forma espontânea, a atuação dos políticos da cidade, que legitimam a estrutura atual da festa, centrada na privatização dos espaços públicos. Para isso, vale desde faixas e gritos de protesto até fantasias e nariz de palhaço. @didoneante não quer ser apenas uma formiguinha em meio à multidão ao redor dos trio-elétricos.
de @didoneante, que agrega todas as manifestações espontâneas e é movido não pela combatividade, mas pela alegria e diversidade.
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Pelo contrário, acredita que o carnaval é o espaço de expor as individualidades por meio da cratividade, sem abrir mão de uma posição em defesa do espaço verdadeiramente público, coletivo. O carnaval de @didoneante é poético, não tem espaço para blocos com cordas, nem para diferença entre quem paga e quem não paga para participar. Para ela, até os músicos devem ficar na mesma altura dos foliões para que exista uma igualdade de posição, favorecendo a interação entre eles. Essa é a tônica que move o ideal de carnaval lúdico e acolhedor
*@didoneante é o perfil no Twitter da jornalista Débora Didonê
O romantismo carnavalesco do Clube Fantoches da Euterpe olhos e a se paquerar. “Para brincar o carnaval dos clubes, era preciso ser associado. Na rua éramos todo mundo”, conta ele. Lembra, ainda, da surpresa que teve ao entrar no clube, pois não conhecia as festas particulares. “Era preciso estar bem vestido: homens de terno branco, muitas mulheres usando fantasias luxuosas. Todos muito alinhados. Era também o tempo em que os rapazes aproveitavam para ver os joelhos das moças”, brinca. Diferente dos outros clubes, o Euterpe não era muito elitizado, os associados, em sua maioria, eram comerciantes e profissionais liberais. Para Cardoso, era o clube do povo. Na programação, os gritos de carnaval para o aquecimento da festa, a lavagem da sede feita pelas
baianas, o concurso das rainhas, o baile das crianças ao sábado, a apresentação de Britinho e sua orquestra para os casais dançarem coladinhos. No último dia, os associados saíam do clube tocando com a fanfarra até a Secretaria de Segurança Pública, para encerrar o carnaval, às 4h da manhã. Foi a “nega veia” – como chama a sua companheira – que levou Djalminha ao clube. O amor que ele cultiva por ela e pelo Euterpe permanece até hoje, sem previsão para chegar à quarta-feira de cinzas.
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Carros alegóricos sem Sapucaí: assim eram os carnavais de Salvador nas primeiras décadas do século passado. Belas moças desfilavam em suas quase carruagens pela rua Chile, quando Djalma Cardoso brincou na folia de fevereiro. Nessa época, auge dos clubes carnavalescos, a festa saía das ruas e entrava nas sedes do Fantoches da Euterpe, do Iate Clube, do Clube Português e da Associação Atlética Banco do Brasil. Entre colombinas, pierrots e piratas-da-perna-de-pau, Djalminha, como prefere ser chamado, conheceu sua parceira de vida e de carnaval, Marli Silva, com quem foi casado por 50 anos, até seu falecimento. Já quase completando as mesmas bodas de ouro, todas as manhãs de quarta e de sábado ele joga baralho com outros parceiros, associados do clube Euterpe, do qual é tesoureiro. Depois de se entreolharem em frente à confeitaria da rua Chile, fantasiados de índios, Marli e Djalma brincaram na rua como amigos. Foi quando entraram na associação que começaram a se procurar com os
Onde nascem as cidades Muito mais que um comércio, as feiras livres de Salvador ajudam a contar a história da cidade e de seu povo texto Daniel de Farias e Yne Manuella Cardoso fotos Amana Dultra/Labfoto
Ser feirante é negócio de família. Em São Joaquim, Teleket ensina a seu sobrinho o que sabe
Antes do nascer do sol, as feiras livres já estão montadas. Em Amaralina, no Comércio e até no Japão, ou melhor, na Liberdade, suas barracas e o vai-e-vem dos feirantes e clientes que por elas transitam ajudam a compor o cenário de alguns pontos de Salvador. De pequeno, médio ou grande porte, fixas ou temporárias, são espaços centrais não só de comércio, mas também de interação, preservação e afirmação cultural. O seu funcionamento envolve feirantes, clientes – mais conhecidos como
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fregueses –, seguranças, carregadores, caminhoneiros, guardadores de automóveis, fornecedores e pequenos produtores, responsáveis pelo abastecimento de mercadorias. As feiras livres são manifestações da produção de um local. São espaços de trocas materiais e imateriais, que formam a cultura de uma cidade, bairro e/ou de uma população. Nesses lugares, informações, tradições e histórias são socializadas, influenciando o imaginário de todos aqueles que transitam pelos seus becos
apertados, entre bancadas, objetos domésticos, cheiros, frutas, pessoas e sons. As feiras livres também são pontos de encontro, onde o comércio e o cotidiano se fundem, dando origem a amizades, desafetos e até casamentos, mas, principalmente, solidificando valores culturais.
As feiras livres e a urbanização Por reunirem essas características, elas se configuraram como elemen-
tos essenciais para o processo de urbanização das cidades modernas, iniciado no final da Idade Média. Foram nesses espaços que a até então isolada população, estabelecida nas grandes propriedades rurais, passou a trocar o excedente de sua produção agrícola e também a estreitar relações pessoais e reafirmar sua cultura. Essa mudança de comportamento social e econômico foi determinante para o ressurgimento dos núcleos urbanos, que cresceram e se estruturaram ao redor das feiras livres. Ao serem trazidas ao Brasil pelos europeus, foram incorporadas ao cotidiano da colônia, passando a ser um dos principais espaços de convivência da população, característica que mantêm até hoje. “As feiras livres conservam as diversas formas de sociabilidade. São pontos de encontros onde se discute diversos assuntos, como política, família, futebol, religião e muitos outros”, afirma Elizabeth Gandara, diretora de Preservação do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). Historicamente, a relevância desses espaços no contexto urbano de Salvador é ainda mais significativa. As feiras livres, no período colonial, eram os principais locais de abastecimento da cidade, por meio das relações mercantis estabelecidas com o Recôncavo Baiano. Enquanto a produção das grandes propriedades monocultoras era escoada para a Europa, os pequenos produtores agrícolas comercializavam suas mercadorias nesses lugares. Na segunda metade do século XX, com o surgimento de novas formas de comércio, as feiras livres perderam representatividade comercial em Salvador. A venda de produtos alimentícios e de vestuários passou a ser concentrada em shoppings centers e supermercados. “Até a década de 1960, as feiras livres eram os principais espaços que abasteciam as famílias. Com o crescimento dessas empresas, muitas pessoas deixaram
de vir às feiras”, conta o vendedor Augusto Ferreira, feirante da Sete Portas há 32 anos. Além disso, a criação dos Centros de Abastecimento de Salvador (Ceasas) influenciou gradativamente na diminuição do público das feiras livres. Esse processo causou um enfraquecimento do consumo de mercadorias produzidas na Bahia, que passaram a ser cada vez menos presentes nas casas da população soteropolitana.
Comércio passional Mesmo com a diminuição do número de frequentadores, as feiras ainda atraem milhares de pessoas diariamente. Seja para fazer compras, tomar uma cervejinha ou comer um tira gosto, um dos principais fatores que leva as pessoas a esses lugares é o vínculo com os vendedores. “As pessoas vêm se distrair, porque há uma ligação entre o feirante e o freguês. Essa amizade, confiança, faz com que as pessoas venham às feiras”, esclarece Augusto. A feira livre é, ao mesmo tempo, comercial e afetiva. Essa estreita e dupla relação origina um dos elementos que mais caracteriza esses espaços: a pechincha. A possibilidade de negociar o preço da mercadoria diretamente com o vendedor
é, para alguns fregueses, uma das maiores vantagens de fazer compras nas feiras livres. “Só o fato de poder pechinchar já é um grande motivo para ir à feira”, afirma a professora aposentada Ana Lúcia Lima, de 52 anos. Se para os consumidores a negociação dos preços é vantajosa, para os feirantes é um dos recursos utilizados para minimizar a fuga de clientes para os grandes supermercados. “Nas feiras, o preço pode ser conversado. É dez reais, faz oito, faz cinco e no mercado não tem isso”, relata Daniel Santana, que trabalha há 24 anos em São Joaquim vendendo peças para eletrodomésticos. No entanto, nem a pechincha e as relações pessoais que ali se formam têm conseguido frear a queda no número de frequentadores das feiras
“ As feiras livres também são pontos de encontro, onde o comércio e o cotidiano se fundem, dando origem a amizades, desafetos e até casamentos ”
Há 32 anos na Sete Portas, Seu Augusto vê o esvaziamento das feiras causado pelos shoppings FRAUDE
São Joaquim é referência para os pais e mães de santo para comprar materiais para os terreiros, como o aguidá
livres. Alguns vendedores afirmam que é difícil concorrer com as possibilidades de pagamento oferecidas pelos supermercados, como cheque, cartão de débito e principalmente o cartão de crédito, que é apontado como o principal causador dessa migração da clientela. “Depois que o cartão de crédito apareceu, o comércio das feiras caiu. As pessoas preferem comprar um tomate no cartão do que uma sacola de tomate aqui em dinheiro”, afirma Jorlanda Santos, vendedora de frutas e legumes da
feira do Japão, na Liberdade. Para Denes Silva, chefe de feiras da Secretaria Municipal de Serviços Públicos e Prevenção à Violência (Sesp), outros fatores, como a higiene precária e o mau armazenamento das mercadorias pelos vendedores, também têm contribuído para o esvaziamento desses ambientes. Já para os feirantes, é a Sesp, responsável oficial pelo ordenamento e fiscalização das feiras, que não tem atuado de maneira correta nesses espaços. “A prefeitura não nos dá aten-
Dona Jô, feirante de verduras e legumes, no dia a dia da Feira do Japão
ção, estamos nas mãos de Deus”, relata Daniel. A pequena quantidade de funcionários da Prefeitura para garantir a fiscalização e, portanto, a higiene dos ambientes e produtos comercializados nas feiras livres tem prejudicado o acompanhamento desses espaços. “Por conta do pequeno efetivo, apenas as feiras de São Joaquim, do Japão e os mercados municipais estão sendo monitorados”, afirma Denis. Entretanto, ele acrescenta que os vendedores também são diretamente responsáveis pelo enfraquecimento do comércio nas feiras livres por não organizarem o ambiente. “Eles não pensam que aquele equipamento é o comércio, o meio de vida e que ele precisa de cuidado para ser mais aceito”, comenta.
Fixas ou Móveis Na capital baiana, apesar das mais conhecidas serem fixas, como São Joaquim e Sete Portas, a maioria das feiras são móveis. Montadas e desmontadas em dias específicos da semana, os vendedores desses espaços trabalham na segunda-feira em um
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bairro da cidade, na terça-feira em outro e assim por diante. Essa característica acarreta dificuldades de organização física e logística, já que durante um determinado dia o trânsito do local é modificado e o número de pessoas circulando aumenta. Além disso, dificulta a preservação do vínculo entre freguês e feirante, um valor cultural importante das feiras livres. A inconstância dos produtos vendidos semanalmente nas feiras móveis também contribui com a ausência de uma relação mais íntima entre os vendedores e clientes. Segundo a professora Naia Alban, Diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia e autora do projeto de revitalização da feira de São Joaquim, “a feira móvel não tem um caráter de troca cultural, os produtos variam de acordo com o mês, diferente de São Joaquim, onde, por exemplo, as baianas de acarajé sempre abastecem seus tabuleiros”.
deba), no bairro do Comércio, onde um grupo de pessoas vendia mercadorias oriundas do Recôncavo Baiano. Nesse período, grande parte do comércio varejista da cidade, sobretudo o de produtos alimentícios, era regulado pela feira. No início da década de 1960, quando o espaço não comportava mais todos que trabalhavam e circulavam diariamente, a feira foi transferida
privilegiada que ocupamos hoje, perto do Porto. Nós fomos, durante muito tempo, ameaçados de perder o nosso espaço. De certa forma, a reforma que está sendo realizada pelo Governo do Estado nos dá a garantia de permanecer nesse local”, afirma Marcílio. Para Naia Alban, muito mais do que um local de comércio e conservação de traços culturais, a feira de
A maior e mais resistente Maior comércio de artefatos de religiões de matriz africana, 7 mil feirantes e 34 mil metros quadrados de área. Essa é São Joaquim, a maior feira livre da Bahia, que possui um legado histórico-cultural transmitido de geração em geração até os dias de hoje. Surgida na década de 1930, a feira do Sete, que precedeu a de São Joaquim, começou a funcionar no balcão sete da Companhia das Docas do Estado da Bahia (Co-
“ Muito mais do que um local de comércio e conservação de traços culturais, a Feira de São Joaquim é um espaço político de Salvador ”
Cresce cada vez mais o número de mercadinhos dentro das feiras
para a Enseada de Água de Meninos. Quatro anos depois, um incêndio devastou inteiramente a feira, conhecida na época como feira de Água de Meninos. “No mesmo ano, já havia ocorrido duas tentativas de incêndio intencionais”, conta Marcílio Costa, presidente do Sindicato dos Vendedores Ambulantes e Feirantes de Salvador. Depois desse incidente, os feirantes foram deslocados para a enseada de São Joaquim, também do Comércio. Esse espaço, localizado ao lado do Terminal do Ferry Boat e do Porto de Salvador e até então inutilizado, acabou se tornando posteriormente a causa de disputas políticas e atrasos nos projetos de reforma da feira. “O que perturba os feirantes de São Joaquim é o desejo da área
“ O que perturba São Joaquim é a área privilegiada que ela ocupa hoje, perto do Porto ” São Joaquim é um espaço político
de Salvador. “Ela funciona nos altos e baixos da política. Todo projeto demorava muito, não conseguia ser executado em um período de mandato”, afirma. Além do longo período de duração, a quantidade de projetos voltados para a feira acabou dificultando a realização de melhorias no local. “Eram mais de mil no período em que cataloguei informações para
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Os feirantes da Sete Portas brincam com Manoel da Silva: “Esse homem não morre, não, moça!”. A descontração é o clima das feiras
a atual reforma”, esclarece Naia. riedade de produtos primários e arA reforma em questão são as obras tesanais, que caracterizou por muito de revitalização iniciadas em 2010 tempo as feiras livres, ainda existe, em toda a feira. Financiada com recur- mas vem, aos poucos, dividindo essos dos governos Federal e Estadual, ela foi dividida em sete fases para que o comércio não fosse interrompido. A cada uma das etapas, um grupo de feirantes é transferido temporariamente para dois balcões, localizados ao lado da feira, onde passam a vender suas mercadorias até que sua área comercial de origem seja reformada. Alguns vendedores criticam a divisão por alegar que as mudanças afetam suas vendas. “Foi dividido, então o comércio cai mais. As casas de candomblé e umbanda, que são o forte da feira, foram separadas da gente”, relata o feirante Daniel Santana.
Os santos da feira De folhas e imagens até o aguidá, objeto de barro utilizado na confecção de oferendas, é em São Joaquim que são encontrados todos os materiais utilizados nos rituais das religiões de matriz africana. Estima-se que as mães e pais de santo de 80% dos terreiros da capital baiana compram suas mercadorias na maior feira da cidade. A va-
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paço com produtos industrializados
de baixa qualidade não só na Feira de São Joaquim. “Em algumas feiras, ainda encontramos os produtos de antes, mas não com aquela força, aquela pujança que tinha antigamente. Agora você vai ver o balde, o sapato, as roupas, tudo de baixa qualidade. A feira vai caminhando para uma perda de sentido, do seu sentido inicial”, afirma Naia. Dessa forma, a feira se apresenta
como um retrato tanto da situação econômica, quanto das mudanças ocorridas na sociedade. Se antes os trabalhadores levavam apenas produções caseiras para serem vendidas nas feiras, hoje também comercializam CD’s piratas, eletroeletrônicos e objetos plásticos, os chamados subprodutos industriais. Como não alcançam o nível de qualidade requerido nas lojas, essas mercadorias vão ser vendidas nas feiras, onde conquistam a clientela com preços mais baixos. Ao longo da história, as feiras se reconfiguraram, mas nunca perde-
ram o seu papel de preservação da cultura local. Entretanto, será que agora, com os supermercados consolidados e a consequente diminuição do público frequentador das feiras livres, aliada à chegada dos subprodutos, elas conseguirão preservar suas principais características? Essa questão só será respondida com o tempo, mas o que certamente irá se manter é a importância que esses lugares alcançaram na formação dos valores culturais de Salvador e na identificação dos feirantes com os seus ambientes de trabalho. Para eles, as feiras livres são lugares onde se trocam cultura e afeto, em meio aos mais diferentes tipos de mercadorias. “Todos os meus sonhos foram realizados dentro da feira”, resume dona Maria Alice Silva, feirante de São Joaquim há 35 anos.
“ Todos os meus sonhos foram realizados dentro da feira ” Maria Alice Silva
texto Hury Ahmadi e Lara Perl fotos Amana Dultra/Labfoto
Cartas na mesa
Uma conversa sobre tarot, misticismo e psicologia No canto da sala, em uma mesa bem baixinha, encontravam-se as cartas de tarot empilhadas. Ali estava o tema da nossa entrevista, mas o mundo de imagens cuidadosamente escolhidas e dispostas na sala por Tânia Nardes nos desviou um pouco a atenção. Logo nos vimos sentadas entre bateias, mandalas, pedras diversas, fragrâncias, pinturas e muitas cores. Estávamos acomodadas em almofadas, com uma luz suave, rodeadas por baús de sonhos, caixas que Tânia decorara com esmero, utilizando miudezas que remetem às fases importantes da sua vida. A menina Tânia cresceu sem saber que tinha sete graus de miopia, na cidade de Ituaçu, Chapada Diamantina. A partir dos cheiros aguçados, das lendas da região, do interesse pelas pedras da terra, ela pôde compor a sua visão de mundo e mapear as imagens de sua vida. Como economista mineral, dirigiu o Museu Geológico da Bahia durante 30 anos, mas o lado simbólico, místico e precioso das pedras começou a atrair a sua atenção. Daí surgiu a arte-terapeuta que nos recebeu. Mergulhou no universo do psicólogo Carl Gustav Jung, que lhe permitiu uma maior compreensão do comportamento humano e dos próprios sonhos de menina. Jung e a Cabala trouxeram o tarot, atiçando uma curiosidade por desvendar a sabedoria espiritual com a intenção de trazer clareza, compreensão e liberdade.
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Na sua visão, o que é tarot e O Coringa dos baralhos tra- fantasia. E isso mostra tendências da qual a sua origem? dicionais equivale ao Louco própria personalidade. É um processo de autoconhecimento, autoeducado tarot? O tarot é um mapeamento de imagens do psicológico. Seu baralho é composto por 22 Arcanos Maiores, considerados os principais trunfos, seguidos pelas Cartas da Corte, que representam as figuras da Realeza, e pelos Arcanos Menores. O tarot sempre existiu, já que é um reflexo da necessidade humana de buscar a compreensão. O que eu utilizo, por exemplo, é uma atualização do tarot original, criado no final do século XIX, por um inglês chamado Crowley. Ele entra em várias ordens, como a Aurora Dourada, para descobrir o simbolismo e depois rompe para atualizar as imagens do tarot, utilizando símbolos da mitologia e da escola egípcia, já com uma visão psicológica. Ele paga caro porque enlouquece com isso, mas deixa uma herança magnífica. Eu jogo esse tarot na Árvore da Vida, que é um mapa da Cabala, no qual cada ponto é uma estação da consciência a ser percorrida pela carta do Louco, representando o indivíduo.
Jung relaciona as cartas do tarot ao inconsciente coletivo e pessoal. Como se dá esse diálogo? O simbólico é construído exatamente pelo inconsciente coletivo, através dos arquétipos. Jung definiu como arquétipo as imagens universais do ser humano, temas que estão sempre presentes nos sonhos, histórias e fantasias. Esses arquétipos estão representados nos Arcanos Maiores do Tarot, enquanto os Arcanos Menores estão associados às historias pessoais, ao singular de cada um. As Cartas da Corte são a condução dos Arcanos Maiores até o indivíduo, através dos elementos que representam intuição, sentimento, pensamento e sensação. Então a viagem pelo tarot é esse Louco se vestindo de natureza psíquica em cada estação, ou seja, ele é, na realidade, a representação do próprio inconsciente com a potencialidade criativa.
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Exatamente, essa é a origem dele. O Louco é aquele que cabe em qualquer lugar, que tem todas as faces e percorre todo o caminho do mundo espiritual até o material.
ção. O olhar mais profundo vai levar ao arquétipo, no qual eu vou apenas perfumar com a minha noção e ele vai revelar as fontes geradoras de energia. É quando você deixa a mágica de lado e acredita em magia.
E de que forma esse lado es- E qual seria a diferença entre piritual se faz presente na mágica e magia? realidade dos jovens? Eu vejo a presença, a ausência e a necessidade desse espiritual de várias formas. A arte como forma de vida, por exemplo, é uma delas, que a geração de jovens hoje assume muito mais do que a minha geração assumiu no passado. A necessidade da droga também é uma busca pelas imagens e, atualmente, isso está muito mais aberto. As próprias festas rave, em que as pessoas ficam só no som, no bardo, um transe, da consciência para a inconsciência, como o Louco do tarot. A procura por uma religiosidade com rituais de passagem, como União do Vegetal e Daime, é outro exemplo. Tudo isso é a falta do simbólico desenvolvido e, ao mesmo tempo, a busca pelo contato. O simbólico hoje é importante exatamente para contrabalançar com a razão exagerada que nos cerca. A falta do sagrado na vida das pessoas está levando ao adoecimento. O pânico como excesso de razão mostra muito isso. É preciso quebrar o medo da fantasia. Nós precisamos voltar a ver a fantasia como o perfume da vida, não como o medo da doença.
A crença de que o tarot é um oráculo que revela o futuro é muito forte na nossa sociedade. Na sua concepção, isso é um mito? O mito de que o tarot revela o futuro também vem pelo distanciamento desse simbólico. No entanto, de alguma forma, o tarot é também adivinhação, por ser o maior catálogo de imagens que permite que a psique humana possa chegar ao sagrado, à
Mágica é o que a mente racional acredita que pode ser feito, como um truque. Magia é diferente, é quando você se permite sonhar, devanear, aceita que nem tudo está sob o seu controle. A mágica é o adestramento que uma mente pode estar fazendo para penetrar no lúdico, uma necessidade de racionalizar. Nós estamos tendo muita mágica e pouca magia. Mas quando, na conexão com o outro, seja a carta, seja a imagem, você percebe que não tem tanto controle assim, aquilo que era esperado como mágica vem como uma magia.
Um dos maiores atrativos do tarot é a “coincidência”, o instante decisivo no qual o indivíduo encontra a carta. Existe uma explicação para isso? Nós racionalizamos a vida o tempo todo, achamos que somos responsáveis por tudo, como se sua razão controlasse o amanhã. Costumamos nos cobrar muito e quando as coisas não acontecem como planejamos é uma insatisfação inteira, terrível, parece que há um esgotamento de energia. Porém, toda razão não é capaz de trazer o inusitado que a emoção traz. Tem um instante, quando o indivíduo se abre para o mistério, que é quando ele permite que a razão se cale, para
“ O tarot é essa possibilidade de entrar em contato com a nossa energia ”
escutar o sagrado que está tão distante. Naquele momento, é como se ele se sentasse para escutar um conto de fadas. Em um esconderijo, não fala para ninguém, tem vergonha, se pergunta como pode acreditar no que a carta disse, acha que é uma ilusão. Esse místico que cria nas pessoas um gosto estranho pelo mistério. Cada um é o despertador de tudo e essa abertura para o inusitado é fundamental. É como um sonho que você pode lembrar, ou não. Essa ligação do todo e do uno Jung chamou de Sincronicidade, quando o incons-
ciente está sincrônico com o mundo.
O que o tarot pode acrescentar à vida das pessoas que o consultam? As imagens podem ser trazidas para o cotidiano de uma forma lúdica, pelas lendas e histórias de cada um, pela criatividade, de uma forma geral. O tarot é essa possibilidade de entrar em contato com nossa energia. Quando você reflete sobre as vontades, intuições e inquietações, muitas vezes percebe a presença de uma
força instintiva que pode não seguir uma lógica. A partir da reflexão que o tarot nos consente, é possível fazer um mapeamento dessas energias, permitindo-se entrar em uma camada preciosa que traz um novo olhar para o simbólico, que precisa ser resgatado. O tarot no mundo de hoje é considerado um mistério por falar tão alto a ponto de deixar as pessoas fascinadas pelas cartas. Isso acontece por ele ser um espelhamento do psicológico trazido à tona a partir de um mapeamento de imagens que traz um sentido para a vida.
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De Salto ou de
Chuteira
A diversidade de estilos e comportamentos presente no movimento feminista texto Gustavo Mões e Renata Farias fotos Natália Reis/Labfoto Ilustração Wesley Miranda e Thamires Tavares
Como uma mulher deve se portar para ser aceita? A ideia do ser feminino como um sexo frágil, que necessita do suporte de um homem, ainda é muito forte. O uso de elementos como maquiagem, salto, roupas decotadas, brincos e cabelos compridos é essencial na formação desse estereótipo de feminilidade que foi construído em um meio essencialmente patriarcal e machista. Inseridas nessa cultura sexista, as mulheres sentiram a necessidade de lutar por direitos iguais entre os sexos. Nesse processo, foi necessário que, no início, elas se assemelhassem aos homens tanto fisicamente quanto no comportamento, na tentativa de serem respeitadas como deveriam. Uma importante feminista francesa do século XX, Simone de Beauvoir, orgulhava-se quando seu pai afirmava que ela apresentava uma forma de pensar como homem. Esse fato era motivo de orgulho porque, na sua
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época, as mulheres eram completamente desvalorizadas. Mostrar um padrão mais masculino era praticamente um sinal de evolução na sua personalidade. Por que uma mulher precisa se parecer com um homem para exercer seus direitos? O movimento feminista luta para que as mulheres sejam respeitadas como cidadãs, como pessoas e, principalmente, como mulheres, independente de como se vestem ou do seu comportamento. “As primeiras feministas eram intituladas de lésbicas, mal-amadas, feias, que não conseguiram arranjar casamento, aquelas mulheres que ficaram para titia”, explica Daniela Nascimento, mestranda em Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo pela Ufba. Porém, parte dessa ideia de feministas que se comportam a partir de um padrão considerado masculino ainda está presente no imaginário coletivo.
História, violência e slutwalk o mundo. Eu já fui a uma atividade o direito da mulher de decidir sobre O feminismo surge na Inglaterra, durante as últimas décadas do século XIX, com o objetivo de lutar pelos direitos das mulheres, a começar pelo voto. A primeira onda do movimento espalhou-se pela Europa e chegou aos Estados Unidos. No Brasil, a realidade não foi diferente, já que as primeiras mulheres lutavam pelo direito ao voto, na década de 1970, porém em um ambiente muito mais hostil, o regime militar. A partir dos anos 1980, ocorreu o aparecimento de grupos e coletivos que buscavam soluções em temas mais específicos, como direitos do trabalho, violência, racismo, sexualidade e saúde, todos eles voltados para a mulher. Hoje, o movimento é dividido em diversas correntes, entre elas, os feminismos radical, negro, lésbico e socialista. Cada vertente possui sua luta específica, mas todas têm um objetivo maior, que é a defesa dos direitos das mulheres. “Existe um momento em que é necessário que os grupos se fechem para se fortalecer mesmo e, a partir disso, enfrentar
em que a maioria das pessoas eram negras, e deveríamos falar sobre as relações com as pessoas brancas. Eu percebia que havia resistência para falar. A mesma atividade rolou depois só entre as negras, e eu imagino que deve ter sido bem mais tranquilo, mais à vontade”, conta Kátia Milena, mais conhecida como Sista Kátia, autodeclarada radical, ao explicar a relação entre as correntes feministas. “Eu acho extremamente necessário, mas que não fique só nos momentos fechados”, completa. Entre os assuntos mais debatidos e combatidos por todas as vertentes do feminismo, a violência doméstica ocupa uma posição de grande importância. “Sou feminista porque meu pai batia na minha mãe. Eu não aguentava mais aquela situação que vivia na minha casa. Meus 12 irmãos nunca falaram nada”, conta Sandra Muñoz, atual organizadora da Marcha das Vadias em Salvador, que se envolveu com o feminismo aos 15 anos, através da Rede Feminista de Saúde. A Marcha das Vadias começou no Canadá com o nome de Slutwalk e tem como principal luta
seu próprio corpo. Apesar de estar inserida no feminismo, algumas correntes do movimento são contra a Marcha. O motivo maior dessa rejeição é o uso do termo “vadias”, sátira do modo pelo qual mulheres que não se encaixam em um padrão de “resguardadas” são chamadas.
Somos vadias? Há grupos que acreditam que a associação ao termo apenas deturpa a imagem que vem sendo desconstruída durante décadas de conquistas. O movimento negro, por exemplo, contesta a ideia da Marcha das Vadias. Por ser um movimento exportado, acredita-se que não condiz com a realidade da mulher negra no Brasil, já que a exploração sofrida por esta foi diferenciada. “Nós, negras, sempre fomos consideradas vadias. Observando a história, desde o Período Colonial, você vai ver que já estávamos no cenário público. Até mesmo a capoeira, praticada mais por homens, era considerada vadiagem, um crime”, afirma Carla Akotirene, integrante do feminismo negro e mes-
Sandra Muñoz é uma sendo duas e não precisou deixar a paixão pelo futebol para ser mulher e feminina
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tranda em Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo. A Marcha impõe um retrocesso e a expressão “vadia” deve ser contestada, não incorporada. Afirmar-se vadia vai além de uma luta social e se torna uma expressão que o movimento busca contestar. Em meio à mobilização de indivíduos por direitos igualitários, chama atenção perceber mulheres que se dizem machistas e contra o feminismo. Há um pensamento, presente em parte da sociedade, de que o machismo é o contrário do feminismo, o que não é verdade. A falta de conhecimento acaba criando um preconceito que pode afastar pessoas do movimento. Para que não houvesse mais esse tipo de confusão, foi criado um neologismo que corresponde ao oposto do machismo, o femismo. Mulheres femistas não querem direitos iguais aos dos homens, querem, na verdade, ser superior a eles. Torna-se extremamente complicado encontrar mulheres que se afirmem femistas, já que esse foi um termo criado pelas feministas para denominar aquelas que se afastam da real luta do movimento, dizendo-se superiores aos homens. Por outro lado, até mesmo feministas reconhecem que a maioria das mulheres tem atitudes machistas inconscientemente, influenciadas pelo meio em que vivem. “Muitas vezes, você precisa ter um discurso machista pra conseguir algumas coisas. Quando você conhece um homem que ganha menos que você, por exemplo, um cara que está construindo uma vida econômica, pode pensar: se a gente for casar, eu vou manter muito mais a casa do que ele. Será que isso é legal? E não venha me dizer que não rola, porque isso, infelizmente, ainda acontece”, lamenta Daniela. O feminismo luta também para que a mulher se sinta bem consigo mesma e não se renda às pressões da sociedade e da mídia. O consumismo exacerbado impõe um padrão de corpo, vestuário e comportamento que as mulheres não são obrigadas a seguir. Apesar disso, a feminilidade composta por salto, maquiagem e
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Com seu grafite, Sista Kátia espalha pela cidade seus ideais de liberdade para as mulheres
outros elementos do gênero não impede a mulher de ser feminista. Os padrões impostos por uma sociedade patriarcal ainda são muito fortes. Não se trata apenas de depilar as axilas e usar batom, afinal, “o corpo também é uma forma de se manifestar, mas a posição política é muito mais válida que um batom”, diz Daniela.
Rejeitando e criando estereótipos Por outro lado, ao negar o que é visto pela sociedade como um padrão de mulher com todos os acessórios que reafirmam o gênero feminino, o feminismo acaba criando uma imagem modelo para a mulher feminista: aquela que não segue os padrões estéticos e se nega a exercer funções definidas como de mulher. Nesse sentido, negar um estereótipo é impor outro. Um paradoxo que afasta mulheres do movimento.
Afastamento que poderia ser evitado pela difusão de pensamentos como o de Sista Kátia. Para ela, não há nenhum problema em meninas que seguem padrões femininos lutarem pelos ideais feministas desde que entendam um pouco sobre o assunto. “Ela tem que tomar o controle da própria vida. Não é um pai, namorado ou a sociedade que vai dizer o que ela tem que fazer ou vestir”, exclama. É difícil afirmar se uma mulher é feminina ou não, considerando que feminilidade é um conjunto de modos de agir e pensar esperado do gênero feminino que caracterizam a figura social e culturalmente, ou seja, a depender da sociedade e cultura locais, o conceito do que é “ser mulher” varia muito. Na cultura ocidental, criou-se uma imagem da mulher maquiada, com cabelos compridos, vestido e salto, enquanto na cultura árabe, por exemplo, a mulher deve
menina à renúncia da masculinidade, os conceitos de feminilidade mudaram. Ideais femininos, como a maternidade, foram modificados através de conquistas sociais e culturais. Não existe um conceito de feminilidade, mas feminilidades. “A feminilidade se diferencia no mundo e varia com a maneira que é observada. Se você tem um estilo de vida, política, espiritualidade, isso vai interferir na maneira como você se vê como mulher”, diz Daniela. Na cultura ocidental, é muito profunda a associação entre a figura da mulher e a beleza, algo que foi afirmado ao longo da história. Cosméti-
estar completamente coberta, revelando apenas os olhos. Portanto, não é possível definir a ausência ou presença de feminilidade nas feministas a partir de um olhar. A feminilidade está na forma como cada uma se sente e se vê como mulher. “As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”. A frase de Nelson Rodrigues ainda ecoa na sociedade de hoje, mas deve ser desconstruída. No movimento feminista, não existe, nem deve existir uma imposição. Cada mulher tem a liberdade de se vestir e se comportar da forma que se sente confortável consigo mesma. A partir disso, é possível perceber a grande diversidade presente dentro do movimento que dá à mulher o poder de voz e de luta para conquistar o que deve ser dela por direito. Entender feminilidade fora de um contexto não faz tanto sentido. Desde que Freud afirmou que o reconhecimento da diferença sexual leva a
cos, cirurgias plásticas, um corpo em boa forma são investimentos na imagem para a afirmação dessa feminilidade. “Eu achava que o meu marido só se interessaria por mim se eu estivesse vestida como aquelas menininhas. Acabei me rendendo à minissaia. No fim, ele gostava de mim de chuteira ou minissaia”, conta Sandra. Os valores se desconstroem, as sociedades mudam. O ideal feminista de igualdade deve sempre prevalecer. “Tudo bem se a menina usar maquiagem, o que não pode é ela apanhar do marido”, afirma Sista Kátia.
Feminista não é mulher mal-amada: para Daniela Nascimento o importante é a atitude política
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Selo Fraude de Qualidade texto Carolina Leal e Daniel de Farias foto Yuri Rosat/Labfoto Neste ano, a revista Fraude traz mais uma edição do Selo Fraude de Qualidade, que elege a melhor loja especializada em venda de CDs em Salvador. Em tempos em que a música disponível para download domina grande parte do mercado fonográfico, discutir esses espaços de comércio é voltar-se a um mercado quase esquecido. Nos últimos 50 anos, a indústria fonográfica passou por um processo de reconfiguração, que culminou na consolidação de uma nova forma de distribuição, através do meio digital. Ao mesmo tempo, as lojas especializadas em discos perderam público e muitas deixaram de existir. Em Salvador, esse percurso ocorre de forma parecida, visto que são poucas as lojas que ainda se mantêm em funcionamento. Fazendo o trajeto do Rio Vermelho ao Pelourinho, passando pelos Barris, é possível visitar a maior parte das lojas de CDs da cidade. Foi esse caminho que a Fraude percorreu para eleger, por meio de critérios, como variedade, método de catalogação, disponibilidade de produtos produzidos na Bahia, preço, atendimento e acervo de raridades, a melhor loja especializada na venda de discos de Salvador.
Aurisom Situada na Praça da Sé, espaço central do histórico bairro do Pelourinho, seu acervo conta com uma boa variedade de discos, que vai do sertanejo de Leandro e Leonardo ao rock clássico do Pink Floyd. Seria uma forte concorrente ao Selo Fraude de Qualidade, se não fosse pelo péssimo atendimento que oferece aos seus clientes e o preço elevado dos discos que são vendidos no local - em torno de R$40,00 para discos que normalmente encontramos por R$20,00 ou R$30,00. Não se espante se ficar 20 minutos esperando para ser atendido. Local: Praça da Sé, 22 - Centro, Salvador, Bahia Nota: 5
Bahia Online
Visivelmente voltada para os turistas que frequentam o Centro Histórico de Salvador, a Bahia Online possui um espaço aconchegante, com uma decoração que pode atrair aqueles que estão passando pela sua entrada. Com um acervo composto essencialmente por Samba de Roda, Baião e Ijexá, é possível encontrar discos raros da música regional nordestina, principalmente a baiana. Além disso, a simpatia e a atenção da vendedora garantem um bom bate-papo sobre os gêneros locais, que compõem ainda a música ambiente da loja. Entretanto, a pequena variedade de CDs e a localização são características pouco atrativas da Bahia Online. Local: Rua João de Deus, 22 – Pelourinho, Salvador, Bahia Nota: 7
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Planet Music Pérola Negra As principais características positivas da Pérola Negra são seu acervo de música popular brasileira, o bom atendimento dos seus proprietários e as raridades, discos que já saíram do catálogo das gravadoras. É possível encontrar pérolas de Sergio Sampaio, Banda Black Rio e Zé Ramalho, além de clássicos da música independente baiana, como Baiana System e Lucas Santtana. A loja deixa a desejar apenas na variedade de CDs internacionais e de música pop, que estão localizados em uma pequena estante. Então, se você estiver à procura de discos raros da MPB, vale a pena passar na Pérola Negra e garimpar durante algumas horas. Local: Rua General Labatut, 137 - Barris, Salvador, Bahia Nota: 8,5
Logo na entrada, é possível ouvir algum novo sucesso do axé music ou da world music. Apesar de ter um público-alvo formado basicamente por turistas, a Planet Music consegue surpreender aqueles que adentram com paciência ao espaço da loja. O baixo preço dos CDs, aliado à variedade de discos, é um atrativo para os clientes, assim como o atendimento e a catalogação, que facilitam a busca pelo produto desejado. Porém, dificilmente você encontrará álbuns raros, muito menos da chamada música independente baiana. Local: Praça da Sé, 3 - Centro, Salvador, Bahia Nota: 8
Midialouca
A Midialouca possui duas lojas, uma localizada no bairro boêmio de Salvador, o Rio Vermelho, e outra no Pelourinho. Surgida há apenas sete anos, no período de crise da indústria fonográfica, a loja consegue se manter até hoje por meio do seu público fiel, conquistado pela excelente variedade de discos presentes em seu acervo, tanto de gêneros brasileiros quanto internacionais. A venda de raridades do jazz, MPB, samba e rock, também é uma característica positiva da loja, que conta com atendentes simpáticos e solícitos. O preço não é dos mais atrativos, mas, procurando bem, é possível encontrar produtos mais acessíveis. O Selo Fraude de Qualidade aprova e recomenda. Local: Rua Fonte do Boi, 10 - Rio Vermelho, Salvador, BA Nota: 9,5 Carimbada com o Selo Fraude, a Midialouca traz variedade, raridades e um simpático atendimento
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Linha, tesoura, agulha na mão e uma ideia na cabeça O figurinista Rino Carvalho conta como é a profissão por trás das cortinas do teatro texto Daniel Silveira e Paula Morais
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Amana Dultra/Labfoto © 2012
Há de nascer quem aprecie boas histórias e nunca tenha se identificado com alguma personagem do cinema, da televisão ou do teatro. Mocinho ou vilão, para se transformar em protagonista no imaginário do espectador, o ator precisa literalmente vestir a personagem. De todos os tamanhos, cores e texturas, o figurino é capaz de comunicar ao público símbolos e significados da figura dramática, bem como o seu perfil psicológico. Imaginar Dorothy, do musical O Mágico de Oz, trajando roupas de tons escuros e sombrios é quase impossível, quando, na verdade, conhecida por usar um vestido azul sereno, a personagem delicada serve de inspiração para muitos sonhadores.
O primeiro ato Inspiração e criatividade estavam presentes nas brincadeiras de infância de Rino Carvalho. Se hoje o figurinista, diretor, ator e cenógrafo perde as contas de quantos figurinos já criou, quando criança costumava inventar bonecos feitos com mato e pedaços de pau. Com pouco mais de 20 anos de carreira, o paulista está há 18 anos na capital baiana e desde 2007 se dedica à direção artística do Teatro Gamboa Nova, situado no bairro dos Aflitos. Foi aos oito anos de idade que Rino experimentou pela primeira vez a chance de se apresentar em público e interpretar uma personagem. Depois de memorizar um texto que
falava sobre um palhaço, o futuro figurinista estava pronto para declamá-lo, usando roupas e maquiagens coloridas produzidas por ele. Admirador de desafios, Rino aceitou de prontidão o convite de um amigo para montar um espetáculo em um festival de teatro. “Eu dirijo!”, exclamou, mesmo sem certeza do que estava por vir. Surgia então o espetáculo “Tão pouco importa que venha a resposta: é satisfatório o silêncio como recurso e significado do som”. O irônico é que, apesar do enorme título, o espetáculo, inspirado em René Magritte, não tinha diálogos. “Era uma história sobre repressão e liberdade. Foi um trabalho muito doido e abstrato”, conta Rino. No entanto, foi com o espetácu-
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lo “Esperando Godot - Detalhe” (2000), montagem adaptada da peça de Samuel Becket, que Rino levou aos palcos seu primeiro trabalho profissional como diretor e figurinista. Desde então, outros trabalhos como “Pé de Guerra” (2000), “Mameluco” (2004), “Murmúrios” (2005), “Mentiroso” (2005), “O Sapato do Meu Tio” (2005), “O Olhar Inventa o Mundo” (2008), “Luz Negra” (2010) e “As Rimas de Catarina” (2011) fizeram parte da sua carreira de figurinista.
O Palhaço longe do picadeiro A estética dos trabalhos de Rino é marcada tanto pela sobreposição dos figurinos quanto pelas características do realismo fantástico, que podem ser a mistura da fantasia com a realidade, previsões das personagens como se fizessem parte dos sentidos humanos, elementos mágicos presentes na história e a distorção do tempo. Para o figurinista, o destaque das suas obras está na relação da personagem com o tempo e espaço. “Eu penso o figurino como uma tentativa de deslocar a personagem do seu contexto histórico, de desconstruir algo que é prévio. Acredito que o pa-
lhaço é um exemplo dessa situação”, comenta. Os traços estéticos do clown já estiveram presentes em algumas de suas obras (embora seja traduzido por “palhaço”, as duas palavras têm origem diferente. O palhaço normalmente se relaciona com as feiras e praças, enquanto o clown alude à ideia de palco e circo). Em “Esperando Godot”, Rino troca os trajes maltrapilhos dos dois amigos moribundos pela estética clownesca. No entanto, apesar do deslocamento da personagem criado pelas roupas e de elementos do realismo fantástico, o contexto continua o mesmo: o retrato da solidão e a incomunicabilidade dos homens europeus após a Segunda Guerra Mundial. “Eu gosto de vestir uma pessoa em um tempo que a plateia não consegue identificar. Uma situação já existente não deixa de ser real porque é mostrada por meio de outro movimento estético. Se falarmos sobre o amor e colocarmos um casal sem cor, sem nada, por exemplo, ainda assim as pessoas vão se interessar e perguntar quem eles são”, explica Rino. Para o espetáculo infantil “As Rimas de Catarina”, o figurinista recorreu à sobreposição das peças de
roupas. A proposta era transformar uma personagem em homem e mulher, constantemente, e em pouco tempo. “A ideia era fazer uma mudança rápida, por isso optei pela sobreposição. Eu simplesmente fiz um vestido por cima da roupa que o ator vestia para interpretar a personagem masculina. A manga do casaco dele servia também para o vestido e a calça curta para o calçolão da personagem feminina”, explica Rino. Além disso, o uso do preto e branco serviu para fugir do convencional. “Quando soube que o cenário da peça iria ser em preto e branco, pensei logo em fazer o figurino com as mesmas cores. Normalmente, o infantil é colorido, as crianças são coloridas, pensei em fazer algo diferente”, comenta.
“ Eu penso o figurino como uma tentativa de deslocar a personagem do seu contexto histórico, de desconstruir algo que é prévio ”
Amana Dultra/Labfoto © 2012
Rino não gosta de ser fotografado e em sua casa já não teve sequer espelhos. “Acho que é uma vaidade intelectual”, afirmou
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Segundo Rino, suas criações são inspiradas em fotografias ou em filmes a que assiste. No entanto, o conceito das roupas surge normalmente após conversas com o diretor e os atores do espetáculo. O figurinista ainda ressalta a importância de acompanhar os ensaios para que as roupas tenham o caimento adequado aos movimentos dos atores. “Se a atriz precisar levantar a perna, é preciso pensar na calcinha. Tudo tem que ser pensado, desde o esmalte ao grampo”, explica. Embora seja muito requisitado para elaborar figurinos em espetáculos de Salvador e mesmo fora da capital, bem como ter sido indicado para premiações, suas ideias já foram contestadas. Foi o que aconteceu com “O Sapato do Meu Tio”,
Por trás das cortinas Não é só de tecido que surge um Leonardo Pastor/Labfoto © 2012
“ O figurino não tem papel subversivo, ele é a imagem do espetáculo ”
premiada peça que conta a história de um palhaço e de seu sobrinho aprendiz, cujos atores não aprovaram as roupas na primeira vez que viram. “Eu acredito que a primeira pessoa que deve aprovar o figurino é o ator que irá vestir. Se ele não gosta, é um desafio que eu não consegui alcançar”, comenta Rino. Rino prefere desenhar a maior parte das peças que os atores usarão nos espetáculos. Entretanto, há trabalhos em que o figurinista utiliza roupas já prontas e, nesses casos, é necessária a combinação de cores e estilos baseando-se no conceito da obra. Nos trabalhos em que o orçamento é reduzido, Rino usa a imaginação para criar figurinos originais a partir de seus desenhos. Em “O Mentiroso”, peça inspirada na Comedia dell’Arte, ele fez o que chama de desconstrução, a partir dos retalhos de tecidos como abadás, calças jeans, toalhas de mesa ou de banho, doados pelo diretor e atores, criou as roupas utilizadas no espetáculo.
O figurino da Rimas de Catarina foi desenhado por Rino todo em preto e branco. Abaixo, os croquis feitos por ele
figurino. Rino Carvalho estava certo disso quando pensou nas roupas para “Murmúrios”, espetáculo inspirado em “Pedro Páramo”, único romance do escritor mexicano Juan Rulfo. Para realizar os desenhos, o figurinista utilizou cimento, cola e areia a fim de que as peças tivessem aparência bruta, de pedra, assim como o cenário. No entanto, a imaginação e o trabalho de um figurinista nem sempre são levados em conta. Segundo Rino Carvalho, falta reconhecimento da profissão. “É uma situação bastante delicada, porque não temos um piso salarial específico em cada trabalho. Quando o figurinista ganha um cachê para criar uma peça, ainda que depois ela venha a ser usada em outro espetáculo, ele não irá receber renumeração. Eu, por exemplo, já fiz manutenção de figurino sem receber”, desabafa. Mesmo sem uma remuneração fixa, Rino conta que, algumas vezes, aceitou o trabalho por acreditar no conceito da proposta. “A ideia era muito boa, então eu pensei que se, ao menos, tivesse o dinheiro para comprar o material, pagar a costureira e a produção, seria meio caminho andado. Caso não tivesse, procuraríamos uma solução”, conta. Embora, algumas vezes, o próprio olhar da plateia passe despercebido acerca do papel que o figurino ocupa no espetáculo, segundo Rino, a importância das vestimentas equivale à extensão da criação do ator. “O papel do figurino é fazer com que a personagem fique ainda mais incrível do que o ator tenha construído”, comenta. Ainda que o figurino deva estar de acordo com o que a montagem esteja propondo, algumas vezes ele rouba a cena. “O figurino não tem papel subversivo, ele é a imagem do espetáculo!”, exclama Rino.
“ Eu gosto de vestir uma pessoa em um tempo que a plateia não consegue identificar ” FRAUDE
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O que você sabe sobre buzú em Salvador? Dados fraudados de quem vive o dia-a-dia do buzão texto Amana Dultra e Wesley Miranda ilustrações Wesley Miranda
Atualmente, 72% da população de Salvador depende de ônibus para seu deslocamento. A pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República (SEDU/PR), em 2002, demonstra que 27,5% dos usuários de ônibus são das classes D e E, 38,5% são da classe C, 27,5% são da classe B e 6,5% são da classe A. Porcentagens e mais porcentagens. Até que ponto as pesquisas já feitas em Salvador retratam realmente o dia-a-dia de quem faz uso do transporte público na cidade? A população descobre, por meio da vivência, todos os problemas que envolvem o principal meio de transporte soteropolitano: o buzão. Com o objetivo de substituir os bondes que estavam em crise, os ônibus aparecem em cena pela primeira vez em 1961 e foram regularizados no serviço de transporte coletivo em 1971, fato que desencadeou uma série de estudos e programas para o transporte da cidade. Dez anos de-
pois, foi construída a primeira estação de ônibus da cidade, a Estação da Lapa. Para estabelecer uma tarifa única para o serviço de ônibus, foi criada a Secretaria de Transportes Urbanos (STU). Em 1996, teve início o processo de bilhetagem eletrônica por meio do Smart Card, utilizado inicialmente por estudantes com direito à meia passagem escolar e pelas categorias beneficiadas com a gratuidade no sistema de transporte por ônibus. Para preencher algumas lacunas sobre a questão da mobilidade e do ônibus em Salvador, foi utilizado o relatório da STU sobre a atual situação do transporte coletivo. No entanto, apenas números sobre quilômetros e quantidade de passageiros desumanizam a discussão. Por este motivo, com base na experiência e observação diária, fraudamos dados sobre as situações que passamos cotidianamente nos ônibus de Salvador.
18 2485 38,1 EMPRESAS
VEÍCULOS
MILHÕES DE PASSAGEIROS POR MÊS
17,6
MILHÕES DE QUILÔMETROS POR MÊS
15330 40
PASSAGEIROS POR ÔNIBUS POR MÊS
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= Satisfatório
= Insatisfatório
LOTAÇÃO DE VEÍCULOS
AMBULANTES:
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Qual a Parada? A minoria LGBTT anseia por direitos e o problema não é só nosso texto Daniel Silveira quadrinhos Tomás Mascarenhas “A Bahia é linda!” e é o estado brasileiro onde mais se mata por homofobia. Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), até junho deste ano, 15 mortes já tinham sido registradas no estado. Em 2011, foram 266 assassinatos em todo o país e esse número tende a ser maior porque muitos casos não são sequer notificados. Ignorando esses dados, no ano passado, uma importante chance de garantir punição para crimes dessa natureza foi perdida com o adiamento das discussões sobre o PLC 122, Projeto de Lei Complementar, que garantia punições aos crimes de homofobia. Diante de todas as adversidades, a eleição de uma mulher para presidente deu esperanças para as questões políticas de minorias do país.
“ É disso que a comunidade LGBTT precisa: organização política e representações que apoiem a causa do movimento ” A presidente Dilma Roussef teve a chance de começar uma campanha contra o ódio aos homossexuais com o “Kit Contra Homofobia”. Ele incluía, entre outros materiais, cartilha e vídeos informativos, com o objetivo de promover o respeito à diversidade sexual em escolas públicas do país. Entretanto, foi vetado quando o deputado Anthony Garotinho, líder
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da bancada cristã na câmara, ameaçou levar à frente um processo contra o então Ministro Chefe da Casa Civil, Antônio Palocci, caso o kit fosse aprovado. O ministro do PT vinha sofrendo acusação de corrupção por suspeita de enriquecimento ilícito. Seu patrimônio teria aumentado 20 vezes nos quatro anos em que foi deputado federal. Além dessas perdas, a comunidade LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) se vê alvo de outras tentativas de cercear seus direitos civis. Deputados como Zequinha Marinho (PSC-PA) e João Campos (PSDB-GO) tentam aprovar leis que impeçam homossexuais de adotar crianças, ou que permitam psicólogos do país tratar homossexualidade como se fosse uma doença e precisasse ou houvesse cura. No entanto, gays têm se organizado pelo país inteiro, nos diversos grupos de defesa por seus direitos ou nas ruas, em Marchas Contra Homofobia ou Paradas do Orgulho LGBTT. Organizar-se é a forma mais eficaz para consolidar políticas de interesse para determinados grupos, como aconteceu no caso do movimento negro, quando a luta garantiu, em 1997, que racismo fosse caracterizado crime. É disso que a comunidade LGBTT precisa: organização política e representações que apoiem a causa do movimento. Um dos maiores representantes para causas LGBTTs é o deputado Jean Wyllys, que tem se mostrado voz ativa no congresso na defesa de interesses do movimento, inclusive encabeçando nacionalmente uma campanha pelo casamento civil igualitário, já per-
mitido em alguns países, como a Argentina, Portugal, Bélgica e Holanda.
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Todos os dias, seres humanos são violentados de todas as formas: física, psicologicamente, em suas dignidades ”
Contudo, essa luta não tem de ser apenas da comunidade gay. Ela é contra a opressão histórica gerada pelo machismo, sexismo e misoginia, quando toda identidade de gênero precisa se encaixar em modelos que foram impostos culturalmente como aceitáveis. Sendo assim, a causa se estende para toda a sociedade. Todos os dias, seres humanos são violentados de todas as formas: física, psicologicamente, em suas dignidades e é contra a violação desse direito fundamental, a liberdade, que a luta deve ser encampada. Contra um modelo de sociedade machista ultrapassado, milhares de homens e mulheres amam seus iguais e declaram sua paixão para quem quiser ouvir. Vão às ruas em busca de visibilidade e lutam por seus direitos enquanto cidadãos. Unidos, e em voz alta, exigem que todo indivíduo, gay ou não, seja livre e tenha sua liberdade respeitada, por uma sociedade onde o amor ouse dizer seu nome.
FRAUDE
FRAUDE