Revista GEMInIS | ano 1 | n. 1 • jul./dez. 2010

Page 1

ISSN: 2179-1465


P o líti ca E d ito r i a l

E x pe d i e nte

GEMInIS é uma revista voltada à publicação de artigos, resenhas de obras e trabalhos sobre o contexto da convergência midiática e da produção audiovisual para múltiplas plataformas, realizados por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação e do Curso em Imagem e Som da UFSCAR, aberta aos interessados de outras instituições que queiram submeter seus trabalhos ao Conselho Editorial. Nesta linha editorial, são tratados e incentivados temas geminados às linhas de pesquisa do nosso Programa de Pós-Graduação; o fenômeno da convergência midiática e cultural; contribuições sobre a narrativa audiovisual e a cultura participativa, estudos sobre franquias, questões sobre a ficção seriada, web marketing e, principalmente, os novos formatos de narrativa transmidiática, a web e os novos espaços de circulação da produção audiovisual, assim como a produção cinematográfica, televisiva e de videogames. Dedica-se ainda, entre outros tantos assuntos, à mídia locativa, ao Alternate Reality Games e as mídias sociais, enquanto parte do ecossistema de comunicação audiovisual. A revista aceita contribuições em três categorias: artigos científicos, produção artística e resenha de obras. Cada edição contempla um dossiê especialmente preparado a partir de uma temática específica, além de um espaço para artigos de abordagens diversas.

Revista GEMInIS | ano 1 | n. 1 • jul./dez. 2010 Universidade Federal de São Carlos

Missão Divulgar artigos científicos e produção artística que busquem compreender, analítica e/ou teoricamente, o fenômeno próprio da convergência midiática como objeto de estudo. Histórico A revista GEMInIS foi criada em 2010, quando o Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Imagem & Som - PPGIS/ UFSCar, completava seu terceiro ano de criação. A revista online e semestral, tem como objetivo reunir trabalhos científicos e artísticos que tratem de fenômenos próprios da convergência midiática. Para tanto, a revista GEMInIS se constituiu em três seções: seção Temática, Temas Diversos e Resenhas, dedicada a obras de interesse das diferentes áreas que refletem sobre o processo de cultura da convergência. A revista recebe também originais em espanhol e inglês. Submissão Online GEMInIS recebe artigos, produções artísticas e resenhas que serão, após pré-avaliados pelos editores da revista, revistos e aprovados por Assessores ad hoc. As normas para publicação devem ser estritamente seguidas. Por ser um periódico semestral, apresentamos dois prazos limites de submissão (envio eletrônico: revistageminis.ufscar@gmail. com): 31 de março e 31 de agosto. Informação importante para os autores: a) Os autores possuem os respectivos direitos autorais (copyright), b) Os autores são os responsáveis pelo conteúdo dos artigos.

ISSN: 2179-1465 www.revistageminis.ufscar.br revista.geminisufscar@gmail.com Reitor Prof. Dr. Targino de Araújo Filho

Vice-Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas Profa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann Vice-diretor do Centro de Educação e Ciências Humanas Prof. Dr. José Eduardo Marques Baioni Coordenador da Pós-Graduação em Imagem e Som Prof. Dr. Samuel José Holanda de Paiva Editor Responsável João Carlos Massarolo Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Editora Executiva Maira Gregolin Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Editor Assistente Dario Mesquita Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Comitê Editorial: Alessandro Gamo Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Arthur Autran Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Antônio Amâncio Universidade Federal Fluminense – UFF Carlos A. Scolari Universidade Pompeu Fabra – Espanha Derek Johnson University of North Texas – Estados Unidos Daniel Bittencourt Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos Héctor Navarro Güere Universidade de Vic – Espanha Hermes Renato Hildebrand Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Maria Dora Mourão Universidade de São Paulo - USP Vicente Gosciola Universidade Anhembi Morumbi - UAM Equipe Editorial Glauco Madeira de Toledo Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Letícia Ferreira Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Náyady Karyze Oliveira Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Rogério Secomandi Mestriner Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Revisão Mariúcha Magrini Neri Diagramação e Implementação Eletrônica Dario Mesquita Identidade visual e Capa original Gilberto Pereira Divulgação Jônatas Kerr de Oliveira Universidade Federal de São Carlos - UFSCar


Sumário

Apresentação.................................................................................................................................................. 4

convergência midiática

Te m a : F i c c ç ã o A u d i ov i s u a l S e r i a d a Quest em world of Warcraft como estrutura narrativa seriada Jonatas Kerr de Oliveira • João Massarolo.................................................................... 6 A ficção seriada diante da Convergência Tecnológica e midiática Edvaldo Olécio de Souza......................................................................................................... 31 Web-séries no contexto dos Universos Narrativos Expandidos

ficção seriada televisiva brasileira

Thiago Altafini • Alessandro Gamo............................................................................... 43 Viver a vida no limar da Tela: a narrativa transmídia chega à Novela Maíra Valencise Gregolin....................................................................................................... 53 Telenovela brasileira: fascínio, projeção e identificação Kelly Scoralick............................................................................................................................. 68 Merchandising social e os códigos da imagem televisiva: a construção de significados na Telenovela Plábio Marcos Martins Desidério........................................................................................ 82 Identidade homoafetiva em telenovelas: percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk Guilherme Moreira Fernandes • Cristina Brandão.................................................. 99 Quando a História vira entretenimento Michelli Machado.................................................................................................................... 126 A Grande Família: sitcom e a representação das relações familiares e amorosas Vanessa Fernandes Queiroga Pita.................................................................................... 139 Um ensaio sobre a baianidade em Ó Paí, ó: do cinema para a televisão! Bárbara de Lira Bezerra......................................................................................................... 165 Cidade dos Homens: perspectiva narrativa e relações de amizade Inara de Amorim Rosas • Luiz Antonio Mousinho Magalhães....................... 177


ficção audiovisual seriada mundial

A presença atuoral de Michel Gondry em Flight of The Conchords Rogério Secomandi Mestriner............................................................................................ 198 Alegorias do Comportamento Pós-Atentados de 11 de Setembro de 2001, em Lost Glauco Madeira de Toledo................................................................................................... 209 Realidade Ambígua: imersão em The Lost Experience Dario Mesquita......................................................................................................................... 223 A Exarcebação do dilema “Forma versus Conteúdo”: Técnica, Ideologia e Etnicidade em 24 Horas Maurício Caleiro...................................................................................................................... 250 O novo homem e o hibridismo na série 24 Horas Silvio Luiz Titato...................................................................................................................... 267 Quem é Dexter Morgan? A questão da identidade e da ética presentes em uma série de televisão Rubens Francisco Torres....................................................................................................... 276 Os Efeitos sonoros no seriado House M.D. Paulo Gracino............................................................................................................................ 289 O Trailer, o Filme e a Serialidade no Modelo dos Blockbusters do Cinema Hollywoodiano Contemporâneo Márcio Carneiro dos Santos................................................................................................ 299

Te m a s D i v e r s o s A Obra Cinematográfica como Formadora de Sentidos: Uma Análise do filme Memórias de uma Gueixa Dangela Maria Perufo • Vanessa Cavalli................................................................... 317 Transcinema: A Multiplicação de Janelas e o Hipertexto como dispositivo da Interatividade Marília Xavier de Lima......................................................................................................... 339


A p r ese n t a ç ã o

E

stá no ar a primeira edição da revista GEMInIS, uma publicação do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som – PPGIS/UFSCar. Este primeiro número é dedicado a explorar uma temática extremamente atual e

central para os estudos sobre as mídias interativas, situada nos domínios conexos das linhas de trabalho do Grupo: ‘A Ficção Audiovisual Seriada’. Busca-se assim, adentrar na ‘toca do coelho’ das formas serializadas contemporâneas a partir das narrativas de longa duração, caracterizadas por suas múltiplas extensões, buscando compreender de que modo os processos de convergência midiática e cultural produzem o alargamento das fronteiras do universo das narrativas transmidiáticas. Essa matriz temática serve como objeto de referência para os artigos que apresentamos de professores e pesquisadores brasileiros. A primeira parte da revista é composta por artigos que tratam a forma serial contemporânea na perspectiva da convergência midiática e cultural, com estudos sobre a estrutura narrativa seriada do videogame e das web-séries. Na segunda parte, os autores fazem uma discussão sobre a ficção seriada televisiva brasileira para além do limiar da telinha, com ênfase na cul-

tura participativa, merchandising social, participação das audiências na construção do significado e as novas formas de representação que emergem das telenovelas, além de um estudo sobre as estratégias narrativas do Sitcom no Brasil. Na terceira parte, o eixo das discussões gira em torno da ficção seriada televisiva mundial, com ensaios sobre a relação entre cinema e televisão e a noção de autoria em Michel Gondry. A complexificação narrativa das séries televisivas contemporâneas de maior sucesso é abordada na perspectiva do gênero em 24 Hs, da ética de Dexter e dos efeitos sonoros no anti-dramático House M.D., enquanto Lost é visto tanto na sua dimensão lúdica quanto na perspectiva política, e o trailer é discutido a partir do modelo atual de serialização dos blockbusters hollywoodianos. Por fim, fechamos a primeira edição da revista com artigos que tratam de temas diversos, entre os quais: as múltiplas interfaces da narrativa digital e a busca por novos sentidos da obra cinematográfica. Agradeço ao árduo trabalho realizado pela Equipe de Editores, especialmente ao Dario Mesquita e a Maira Gregolin, pelos esforços geminados no sentido da consecução dos nossos objetivos. O agradecimento é extensivo também aos pareceristas e


colaboradores pela leitura atenta e minuciosa, ajudando-nos na seleção dos artigos a serem publicados. Portanto, está nas nuvens, a revista e o convite para o debate nas múltiplas plataformas da convergência midiática. João Massarolo – Editor Responsável


Quests em World Of Warcraft como estrutura narrativa seriada Jônatas Kerr

de

O liveira

Foi professor substituto do Depto. de Artes e Comunicação (DAC) da UFSCar. Mestre em Imagem e Som pelo PPGIS - UFSCar. Email: jonataskerr@yahoo.com.br.

João M assarolo Cineasta, professor universitário, Doutor em Cinema e Audiovisual pela USP. É professor associado do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, desde 1992 e, atualmente, coordena o Grupo de Estudos em Mídias Interativas em Imagem e Som. Email: massarolo@terra.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 6 - 30


Resumo Assumindo que as quests em World of Warcraft funcionam como uma estrutura narrativa dentro do jogo, busca-se verificar se esta estrutura apresenta características que possam caracterizá-la como uma narrativa seriada. Para tal, é feita uma análise das principais características da narrativa seriada televisiva, assim como da estrutura de quests, para verificar a viabilidade de tal aproximação. Sendo a estrutura narrativa de quests em MMORPGs uma estrutura narrativa seriada, abre-se um grande leque de possibilidades, tanto para as análises teóricas dos videogames, utilizando o ferramental adaptado, como para os game designers utilizarem este referencial para acrescer detalhes aos mundos ficcionais criados. Palavras - chave: Quests; Narrativa Seriada; Jogos Eletrônicos.

A bstract Assuming that the quests in WoW works as a narrative framework within the game, we try to verify that this structure has characteristics that might characterize itself as a serial narrative. For such, an analysis of the main features of the television serial narrative, as well as the structure of quests is made to verify the feasibility of such approach. As a serial narrative structure, the structure of quests in MMORPGs opens a wide range of possibilities, both for theoretical analysis of videogames, as for the game designers to improve the amount of details on the fictional worlds they create. Keywords: Quests; Serial Narrative; Video games.


8

1 Introdução

N

a última década, com o advento da internet e a popularização da internet banda larga, juntamente com a presença cada vez maior de computadores em todos os tipos de ambiente ao redor do mundo, surgiu um novo tipo de jogo, que

passou a permitir aos jogadores fazer parte de mundos simulados juntamente com mi-

lhões de outros jogadores: os MMORPGs. Este gênero de jogo é marcado principalmente pelas quantidades gigantescas de jogadores jogando simultaneamente em um ambiente compartilhado e persistente. Dentre os MMOs, o jogo World of Warcraft tem se destacado como o maior sucesso comercial do gênero, somando mais de 11 milhões de jogadores assinantes, e movimentando mais de 1 bilhão de dólares anuais, e todo esse sucesso se dá mesmo com a proibição da venda do jogo em países onde a distribuição não é oficial, e a compra é rejeitada1. Nos MMORPGs, o jogador paga uma mensalidade e se torna assinante de um serviço oferecido: a participação num universo online onde milhões de jogadores podem se conectar e criar seus próprios personagens, interagir uns com os outros e participar de diversas aventuras. A característica de ser um jogo assinado mensalmente é um dos fatores que contribuíram para o grande sucesso comercial do jogo. Esse modelo de negócio é típico de jogos que só funcionam online, em que o importante não é ter o jogo instalado no computador, mas utilizar o serviço online que a empresa proporciona: “World of Warcraft, como a maioria dos MMOs, é persistente e em tempo real. Isto significa que o mundo continua a existir quando um jogador deixa o jogo e esta é uma característica que é particular dos jogos online” (KRZYWINSKA, 2007, p. 19). Essa mudança na forma como produto é comercializado também implica numa mudança nas estruturas internas do jogo, e principalmente no que se refere às estruturas narrativas. O jogo que era vendido enquanto mercadoria precisava recompensar o jogador com algumas horas de prazer, entretanto, o jogo com assinatura mensal precisa 1 Essa informação não consta nas páginas de ajuda do sistema: é necessário o jogador entrar em contato informando o código do erro no momento da compra para receber a seguinte resposta por email: “Any credit card used must be from within the supported North American region (the U.S., Canada, Australia, New Zealand, Mexico, Argentina, Chile, Hong Kong, Macau, Singapore, Malaysia or Thailand). Any credit card with a billing address residing outside of this region will be rejected from our system, regardless of your current geographical location”.


manter o jogador entretido por meses e até mesmo anos, e para isso, a narrativa tem de assumir um formato que não possui um final fechado. A fim de construir histórias sem narrativa que fosse coerente com esta nova proposta. Assim como a narrativa seriada

estas limitações moldam a forma como a narrativa é pensada, construída e entregue aos jogadores: as informações narrativas são fragmentadas e o final é aberto. Por conta desta fragmentação da narrativa nos MMOs, pode-se dizer que a narrativa baseada em seja, “uma seqüência delimitada e internamente coerentes de situações e eventos, que podem ser encadeados com outras destas unidades narrativas, para formar estruturas narrativas maiores” (HERMAN, 2009, p.185). Se a narrativa apresentada nas quests dos MMORPGs apresenta características episódicas, então boa parte da teoria e ferramentas relativa às narrativas em série poderiam ser adaptadas para a análise da narrativa nestes jogos. Entretanto, para que se possa realizar este tipo de aproximação, faz-se necessário observar as principais decercam o assunto, para então analisar as principais características dos MMORPGs, para finalmente verificar a compatibilidade dos modelos narrativos apresentados.

J ônatas Kerr

finições de narrativa seriada, assim como compreender as principais discussões que

como estrutura narrativa seriada •

quests3 destes jogos apresenta uma estrutura episódica: cada quest seria um episódio, ou

World O f Warcraft

em si, a narrativa dos MMOs foi adaptada para atender às limitações do formato, e

em

televisiva é moldada conforme as limitações do formato2, que são externas à narrativa

Q uests

um final fechado, os produtores de MMORPGs precisaram encontrar uma estrutura

9

de

Se apresentando como uma forma narrativa de grande popularidade, a narrativa seriada pode ser encontrada desde a narrativa oral, passando pelos folhetins, histórias em quadrinhos, tiras cômicas de jornal, seriados de televisão, novelas televisivas até o rádio e outros. “Hoje em dia, a narrativa seriada é onipresente. Na verdade, ela pode até ser a forma narrativa dominante presente nas mídias de massa” (HAGEDORN, 1995, p. 39). A fim de observar a narrativa dos MMOs, enquanto estrutura seriada, serão utilizados estudos da narrativa de outras mídias como a teoria das narrativas seriadas televisivas. A narrativa seriada televisiva será utilizada como ponto de comparação, não por ser a única referência de narrativa seriada, mas pela existência de uma grande 2 A respeito da narrativa seriada televisiva, Robert C. Allen afirma: “A série, então, é uma forma de narrativa organizada em torno de lacunas institucionalmente impostas no texto. A natureza e extensão dessas lacunas são tão importantes para o processo de leitura como o ‘material’ textual que elas interrompem” (ALLEN, 1995, p.17). 3 Quest: com intuito de introduzir o termo e consequentemente de forma bastante superficial, as quests nos MMORPGs são tarefas que o jogador tem de cumprir para receber recompensas, sendo que como parte de cada quest existe um conteúdo narrativo que relaciona o a ação que o jogador tem de fazer com o universo ficcional do jogo.

O liveira - J oão M assarolo

2 A Estrutura Narrativa Seriada


quantidade de estudos acadêmicos analisando esta mídia específica, resultando em um vasto ferramental teórico e, portanto, maior complexidade e embasamento na análise particularidades, em muitos casos é necessário adaptar a análise de uma mídia à realidade de outra, e, portanto o ferramental teórico utilizado na pesquisa da narrativa seriada televisiva terá de ser adaptado para o contexto dos MMORPGs.

finalidade para a qual foi realizada tal definição: a fim de compreender o processo de criação e produção, Robert C. Allen (1995) define a serialização em função do processo de organização da narrativa4; a fim de analisar as relações de mercado, Roger Hagedorn (1995) define a narrativa seriada em função do discurso estabelecido entre a indústria e o público5; e da mesma forma, outros autores poderiam definir a serialidade em função das agendas de entrega do produto, ou ainda em função do processo de produção fragmentado que resulta num gerenciamento dos riscos de produção, dentre diversas outras perspectivas. Obviamente podemos afirmar que todas essas abordagens são relevantes para a definição da serialidade, e as diversas abordagens não devem ser encaradas como excludentes, mas pelo contrário: elas se complementam em uma visão mais rica do que é uma estrutura seriada. A fim de diferenciar os termos e por consequência seus diversos significados, muitos autores fazem uma distinção entre ordem serial aplicada a um conjunto de episódios e uma série de episódios enquanto conjunto de episódios. Por conta dessa diferença entre possíveis interpretações do termo “serial”, nos estudos das séries de televisão, alguns autores fazem uma distinção entre dois tipos de narrativas seriadas: “Esta distinção é baseada no nível de fechamento individual que cada episódio alcança: ‘Séries se referem àqueles shows cujos personagens e cenários são reciclados, mas a história se conclui em cada episódio individual. Em um folhetim, a história e o discurso não chegam a uma conclusão durante um episódio, e as tramas são retomadas após um dado hiato’ (Kozloff 1992: 91). A distinção entre séries, onde ‘o resultado de cada episódio não tem efeito nos seguintes, e faz pouca diferença na ordem em que eles são rodados’ (Thompson 2003: 59), e folhetins é longe de ser livre de ambigüidades, entretanto. [...] Também existem muitas formas ‘híbridas’, que são as narrativas serializadas que combinam características das séries e dos folhetins” (ALLRATH et al, 2005, p.5). 4 “A verdadeira serialização é a organização da narrativa e da narração em torno da suspensão forçada e regular tanto das atividades de exibição como de leitura” (ALLEN, 1995, p. 116). 5 “A narrativa seriada é definida através da prática de oferecer um texto narrativo para os consumidores em unidades isoladas, materialmente independentes e disponíveis em tempos diferentes, mas previsíveis” (HAGEDORN , 1995, pp. 28, 29)

1 - n. 1

e embora existam diversas definições de narrativa seriada, é necessário distinguir a

ano

A fim de analisar a narrativa seriada, faz-se necessário definir o seu conceito,

Revista GEMI n IS |

realizada. Entretanto, é preciso ressaltar que por conta de cada mídia apresentar suas

10


Se baseando nessa distinção entre séries e folhetins, poderia ser realizada uma análise de quanto o resultado da narrativa de uma quest pode influenciar a narrativa um conteúdo narrativo encadeado, ou por abrir novas possibilidades exploratórias, por

abordagem que diferencia essas narrativas como séries, folhetins e híbridos não é suficientemente adequada para a compreensão das quests, pois a extensão da influência de uma quest sobre outra só pode ser observada, dentro do sistema simulado e por conta ser bastante variados. Seguindo esta classificação, as quests na maioria das vezes se enquadrariam na categoria do híbrido, mas não se pode determinar o grau desta hibridização. A solução para este tipo de análise é sugerida por Allrath et al:

pendente de estes possuírem qualquer relação de causa e efeito de um sobre o outro. Sendo assim, podemos utilizar o termo série ou narrativa seriada como um sinônimo da narrativa episódica, independente de ser algo considerado como série para alguns autores, ou folhetim para outros, ou ainda híbridos. Como o grau de fechamento da narrativa de cada série pode ser variável, inclusive mudando a análise conforme determinado grupo de episódios analisados, a serialidade não será definida pelo grau de fechamento de cada episódio, mas principalmente pela entrega espaçada de uma narrativa que foi planejada (ou adaptada) para ser fragmentada em episódios. Em outras palavras, “episodicidade é o traço essencial que distingue a série (e o folhetim) do texto narrativo ‘clássico’ - ou seja, a narrativa realista de uma só unidade, incluindo o romance em forma de livro, o longa-metragem, a peça de rádio, e assim por diante” (HAGEDORN , 1995, p. 29).

O liveira - J oão M assarolo

dos para representar a narrativa que seja formada por um conjunto de episódios, inde-

de

Sendo assim, os termos “série”, assim como “narrativa seriada” serão utiliza-

J ônatas Kerr

“A visão tradicional de séries e folhetins como opostos binários deve ser substituída por uma conceitualização de séries e folhetins como extremos de um continuum: “A forma dominante de drama na TV de hoje é o híbrido entre série e folhetim, aspirando à forma das novelas” (Nelson 2000: 111). [...] Uma análise do nível de continuidade das narrativas serializadas da TV tem de levar em conta fatores como se as tramas do arco narrativo maior estão restritas a apenas alguns episódios ou se elas transcendem a temporada. [...] Devido à indefinição dos limites entre série e folhetim, usaremos o termo “série” como um termo guarda-chuva que abrange a série tradicional, folhetins, e todas as formas híbridas intermediárias” (ALLRATH et al, 2005, p.6).

como estrutura narrativa seriada •

da imprevisibilidade desses jogos e da subjetividade da análise, os resultados poderiam

World O f Warcraft

centar novos itens ou armas que abrem novas possibilidades de jogo. Entretanto, esta

em

acrescentar experiência, por melhorar os atributos do personagem ou ainda por acres-

Q uests

das quests posteriores (um episódio influenciando os subsequentes), seja por apresentar

11


2.1 As Características da Narrativa Seriada

Revista GEMI n IS |

A fim de verificar se os MMORPGs baseados em quests apresentam uma estrutura episódica para sua narrativa, e se existe compatibilidade deste modelo com o modelo narrativo seriado, faz-se necessário abordar as principais características de ambos e verificar a sobreposição desses modelos. A partir da observação de que a narrativa das séries televisivas é uma narrativa em andamento, Allrath et al apresentam uma lista de características que podem ser observadas e comparadas com as características da narrativa presente em World of Warcraft, por meio de quests:

12

ano

Abordando o primeiro ponto levantado pelos autores supracitados, uma característica bastante marcante das séries narrativas é a falta de fechamento definitivo. Entretanto, afirmar que as séries narrativas apresentam uma forma narrativa com final aberto, não significa que não existe nenhum nível de fechamento, pois se a narrativa é composta de episódios, que por definição são fechados em si, então o fechamento apenas ocorre em nível local e não na narrativa como um todo: “O que as séries episódicas e os folhetins, bem como os vários tipos híbridos de séries têm em comum (com a exceção óbvia da mini-série, que consiste em apenas alguns episódios e normalmente atinge o encerramento no último episódio), é que a maioria deles foi projetada para funcionar praticamente para sempre, desde que as avaliações indiquem um interesse contínuo por parte dos telespectadores. Assim, as séries são baseadas na suposição de que episódios individuais podem atingir certa quantidade de fechamento, mas não há um fechamento definitivo, o que evitaria a continuação da série (cf. Butler, 1994: 29). No final de um episódio, os telespectadores, conseqüentemente, podem esperar apenas o fechamento parcial” (ALLRATH et al, 2005, pp.22, 23).

Assim como a narrativa seriada televisiva é projetada para rodar pelo maior tempo possível, os MORPGs também apresentam a necessidade de um planejamento enquanto um sistema que mantenha o jogador a jogar por longos períodos de tempo. O mundo de World of Warcraft é projetado para funcionar ad infinitum, com quests sendo renovadas e acrescentadas constantemente, além de atualizações maiores que acrescentam novas funcionalidades a elementos narrativos. Esse sistema de jogo lida com as expectativas do jogador de uma forma diferente em relação aos jogos com final fechado, assim como acontece na narrativa seriada televisiva: “Estas se tratam de formas narrativas (...) que são baseadas na impos6 Gancho de suspense: no original, Cliff-hanger, que é um termo que “emprega-se para referir uma narrativa, na qual, ao terminar cada capítulo, tem início (ou surge a iminência de) um confronto, uma revelação ou qualquer outro acontecimento decisivo para o desenrolar da história, cujo desfecho apenas é dado a conhecer no episódio seguinte” (FURTADO, 2009).

1 - n. 1

“Uma diferença entre as séries de televisão e outras narrativas é o fato de que as série são por definição narrativas em curso. Isto leva a uma série de características formais, como a falta de fechamento definitivo, a ocorrência de ganchos de suspense6, e uma tendência de exposição mínima” (ALLRATH et al, 2005, p.4).


de

O liveira - J oão M assarolo

O gancho de suspense é muito comum na narrativa seriada televisiva por esta não apresentar um fechamento definitivo, entretanto, ele não é necessário para caracterizar uma narrativa seriada. O gancho apenas é utilizado na narrativa seriada televisiva como um recurso para manter a atenção do espectador durante os intervalos entre os fragmentos, para que estes espectadores não se esqueçam da narrativa e percam o interesse pelo programa durante a lacuna narrativa. Em casos em que estas lacunas narrativas são preenchidas por outras estruturas, como é o caso da narrativa em World of Warcraft, elas não representam um risco para a perda do público, pois ao contrário da narrativa seriada televisiva, em que as lacunas narrativas podem ser preenchidas por outros produtos concorrentes, nos MMORPGs, as lacunas narrativas são preenchidas por outras opções de interação dentro do próprio mundo simulado. Por o jogador possuir um papel ativo na resolução dos problemas, ele tem capacidade de organizar e priorizar os problemas de uma forma que mesmo que os ganchos de suspense sejam inseridos dentro do jogo, aguardando uma posição do jogador

J ônatas Kerr

“No final de uma temporada, muitas vezes os espectadores recebem um grau ainda menor de encerramento do que no final de um episódio regular. A fim de garantir que os espectadores vão assistir a próxima temporada, uma temporada freqüentemente termina com um “cliff-hanger”, deixando os telespectadores com todos os tipos de perguntas abertas” (ALLRATH et al, 2005, p.23).

como estrutura narrativa seriada •

Pode-se observar que ambas as mídias – a televisão e os jogos online por assinatura – evitam um fechamento definitivo pelo mesmo motivo: elas desejam manter o publico preso pelo maior tempo possível, pois disso depende o sustento e retorno financeiros. O que ocorre é apenas que cada mídia utiliza ferramentas diferentes para manter o seu público cativo, como é o caso dos ganchos de suspense dos seriados televisivos, conhecidos principalmente como Cliff-Hanger (ver nota de rodapé número 8).

World O f Warcraft

“É de interesse comercial do jogo baseado em assinantes que se mantenha os jogadores a jogar por longos períodos de tempo; pacotes de expansão que dão aos jogadores antigos coisas novas para fazer é parte dessa estratégia e, assim, prolongar a duração tanto da narrativa dada pelo jogo, e, potencialmente, a narrativa emergente do personagem do jogador” (KRZYWINSKA, 2007, p. 11).

em

Tanto a produção como a recepção fazem parte da definição do que é uma estrutura seriada, ou seja, ela está intimamente ligada à forma como o produto foi planejado para ser consumido, e a forma como ele efetivamente é consumido. Um jogo como World of Warcraft foi planejado para manter o jogador jogando por um longo período de tempo, e não existe interesse de que o jogador pare de jogar. Para manter o interesse desses jogadores por longos períodos de tempo, os desenvolvedores estão sempre atualizando o mundo narrativo:

13 Q uests

sibilidade de encerramento final. Ninguém senta para assistir um episódio de um desses programas com a expectativa de que este episódio possa ser o episódio em que todos os problemas individuais e da comunidade serão resolvidos e todos viverão felizes para sempre” (ALLEN, 1995, p.18).


14 Revista GEMI n IS | ano

1 - n. 1

para solucionar uma questão dramática, essa tensão pode ser dissolvida pela disputa de atenção do jogador em meio a diversos outros problemas. Como em World of Warcraft, o jogador pode assumir mais de vinte quests simultâneas, dificilmente a atenção do jogador vai estar voltada para uma única quest, de forma que o clímax emocional do jogo seja moldado pelo suspense da solução deste problema apresentado pela quest. Este tipo de abordagem para a construção do suspense não é tão recorrente nos MMORPGs e pode-se afirmar que atualmente o gancho de suspense na narrativa não representa o clímax emocional desses jogos e, portanto, não existe a obrigatoriedade dos ganchos de suspense para manter o jogador jogando, o que não significa que eles não possam ser utilizados. Além do gancho emocional por meio de elementos narrativos, outra forma de construir suspense e manter o jogador dentro do jogo é o sistema de recompensa das quests, em que uma promessa é feita – ao completar aquela quest, o jogador poderá escolher um item de uma lista e então receber uma pontuação que o auxiliará a subir de nível. Ao fazer isso, o sistema de jogo oferece possibilidades para o jogador, que pode criar mundos possíveis em sua imaginação a fim de verificar a melhor opção dentre as recompensas oferecidas, e então definir a sua escolha, e consequentemente a sua ação. Desta forma, o jogo consegue construir um suspense baseado na vontade que o jogador tem de receber uma recompensa específica. Neste sistema de recompensa, o jogo recompensa as ações do jogador de tempos em tempos. Sempre que o jogador completa uma quest, ele recebe uma recompensa dentro do mundo do jogo, recompensa que pode ser na forma de itens, equipamentos, armas, pontos, status, ou qualquer outra que permita ao jogador se sentir recompensado como uma frase de incentivo ou uma animação diferenciada. Vale ressaltar que, não apenas a recompensa dentro do sistema de jogo mantém o jogador jogando, mas também o próprio problema apresentado nas quests funciona como motivador, devido à forma como o cérebro humano funciona: “ao solucionar um problema, o jogador está desvendando a estrutura lógica do jogo e experimentando uma sensação de domíno” (MATEAS, 2003). O prazer provindo da solução de problemas é algo que está intimamente ligado ao sistema de recompensa do cérebro humano. Finalizando a lista que Allrath et al levantam a respeito das características que as séries apresentam em decorrência de serem narrativas em andamento, está a questão da exposição mínima. A exposição que ocorre nos seriados televisivos, na maioria das vezes, se aproxima do mínimo necessário para garantir o avanço da narrativa sem fazer o espectador perder o interesse. Isso se dá, pois o público da televisão muitas vezes está assistindo ao conteúdo do programa em um ambiente que não favorece a concentração: a família se reúne para assistir um programa e conversam enquanto assiste, o telefone pode tocar, existem diversos sons no ambiente, alguém pode estar fazendo alguma outra tarefa doméstica enquanto assiste ao programa, etc. Por conta de não existir uma garantia de que o ambiente em que o programa de televisão é exibido é um ambiente propício, costuma-se repetir as informações diversas vezes para garantir que o público consiga captar a informação necessária, ao menos em uma das vezes que ela for repetida. Além de a informação narrativa precisar ser repetida, a narrativa seriada televisiva também é moldada pela limitação de tempo: existe uma duração pré-estipulada para cada capítulo e a narrativa tem de se moldar a ela. Entretanto, essas características do seriado televisivo não devem ser consideradas como negativas, mas apenas como parte da estética desse meio, que é moldada pelas limitações do formato:


World O f Warcraft como estrutura narrativa seriada •

J ônatas Kerr de

O liveira - J oão M assarolo

7 “A mudança da estética das series de TV faz parte de um ‘deslocamento cultural’ mais amplo” (ALLRATH et al, 2005, p.4).

em

Entretanto, pode-se observar que esse tipo de restrição narrativa está muito mais associado às limitações do meio televisivo do que à narrativa seriada em si: por conta da natureza participativa dos vídeo games, em jogos como World of Warcraft o jogador tem de se tornar ativo em cada etapa para que o jogo prossiga. Como a participação do jogador é obrigatória, não é necessário minimizar a exposição narrativa a fim de garantir a compreensão da história. Além do ambiente, os jogos também se diferenciam por não estarem limitados a um slot de tempo e, portanto, não existem limitações da estrutura narrativa por conta do tempo. Se em algum momento a exposição é minimizada, esta se dá por outros motivos intrínsecos ao meio como a existência do sistema de recompensa dos MMOs baseados em leveling, que está mais atrelado ao gameplay do que à diegese do jogo. Portanto, essa questão da exposição mínima se dá principalmente por conta das características da estética do meio e não por conta de se tratar de uma narrativa seriada. Observando estes pontos que seriam característicos da narrativa seriada, podemos afirmar que uma narrativa seriada não é definida apenas pela presença de elementos estéticos como os ganchos entre episódios, por enigmas, ou ainda por limitações na exposição narrativa, uma vez que a estética da narrativa seriada acompanha tendências culturais7, mas sim pela forma como esses diversos elementos estéticos (e que podem ser distintos conforme a mídia) são utilizados, visando manter o público cativo em meio a uma estrutura episódica: “É exatamente a forma como o que Barthes chama de ‘instinto para a preservação da narrativa’ é mobilizado sobre as pausas textuais que nos permite esclarecer a diferença entre o texto clássico e o serial” (HAGEDORN, 1995, p. 28). No caso dos MMOs, outros elementos estéticos são organizados dentro desse sistema narrativo para manter os jogadores jogando, fazendo parte do “instinto de preservação” da narrativa nessa mídia, dentre eles o sistema de recompensas. Finalizando a análise da estrutura narrativa seriada, além do “instinto de preservação da narrativa”, podemos acrescentar a visão de David Herman (2009, p. 193), que define a narração seriada como “A narração através de múltiplos episódios. Os episódios individuais nas narrativas seriadas podem ser relativamente autônomos ou então completamente emaranhados na história maior do mundo narrativo que emerge de forma incremental, de um episódio para o outro”. Sendo assim, a narrativa seriada pode ser uma narrativa simplesmente episódica com seus episódios isolados, ou uma narrativa com uma história que se apresenta de forma incremental na sucessão de episódios, onde esta narrativa se organiza em torno das limitações do

15 Q uests

“A familiaridade com os personagens e com os padrões e conflitos básicos do enredo de uma série que os espectadores regulares inevitavelmente ganham e que é reforçada pela natureza formulaica da série não é em si algo prejudicial ao apelo do show. Certa quantidade de repetição pode até mesmo aumentar a popularidade do gênero da série de TV: ’ é fundamental perceber que muito do que tem sido criticado sobre a TV - sua repetição contínua e natureza formulaica - é na verdade uma parte intrínseca da sua estética distinta, que um grande número de telespectadores implicitamente compreende. (...) O fato de as séries normalmente se basearem tanto em personagens recorrentes como em situações recorrentes também garante que uma série possa conviver com a exposição mínima e, portanto, atender às demandas do slot de tempo limitado” (ALLRATH et al, 2005, p.24)


formato, gerando características estéticas que contribuam para o “instinto de preservação” da narrativa.

Em World of Warcraft, “o mundo faz histórias e as histórias fazem o mundo” (KRZYWINSKA, 2007, p. 19.)

considerados por alguns autores como incapazes do apresentar uma narrativa mais complexa e abrangente em toda a experiência de jogo, como por exemplo, faz Greg Costikyan (2007) ao afirmar que um MMO não pode contar uma história com um arco narrativo maior. Esse tipo de análise está restrito por uma visão limitada da narrativa como um todo, uma vez que o autor considera como uma narrativa que possui um arco narrativo maior apenas a narrativa clássica que possui um começo, meio e fim, ignorando completamente outros formatos narrativos. Isto se torna evidente em um segundo trecho do mesmo autor: “Eu argumentei que um MMO não pode contar uma história com um arco narrativo maior [...]. Mas isto deixa de ser verdade se o próprio jogo tiver um fim. [...] A questão é que você pode impor um verdadeiro arco de narrativa a um MMO - mas somente se o jogo, como todas as histórias, chegar a um fim” (COSTIKYAN, 2007).

Entretanto, nem todas as estruturas narrativas apresentam um fechamento global para as suas histórias, como por exemplo, a narrativa seriada televisiva, que é uma narrativa que está sempre em andamento, então nesse modelo narrativo não existe a necessidade de um fechamento global, como sugere Costykian, e mesmo assim pode-se claramente observar uma narrativa abrangente durante toda uma série de televisão. Esse tipo de análise limitada, apresentada por Greg Costikyan, pode ser confrontado com autores que optam por afirmar exatamente o contrário, como o faz Tanya Krzywinska, que afirma que em World of Warcraft existe uma narrativa longa: “Embora o contexto da história de muitos jogos seja fraco ou indistinto, a franquia Warcraft tem uma linha de história expansiva, de escala épica que tem se acumulado através de diversos jogos. Narrativas longas e espessas são comuns em jogos de RPG, enquanto em outros gêneros de jogo as histórias são simplesmente expositivas, com a ênfase mui8 Como, por exemplo, pode ser observado no artigo “Ludologists love stories, too: notes from a debate that never took place”, de Gonzalo Frasca; acessível em http://ludology.org/articles/Frasca_LevelUp2003.pdf.

1 - n. 1

tópico polêmico8, não é de se surpreender que o mesmo ocorra com os MMOs: eles são

ano

Se a discussão sobre a narrativa nos vídeo games como um todo se tornou um

Revista GEMI n IS |

3 As Narrativas e os MMOs

16


tudo, que o jogo é linear e nem que ele tem continuidade temporal completa” (KRZYWINSKA, 2007, p. 19). Portanto, em World of Warcraft, temos uma narrativa longa que abrange toda a experiência do jogador, e é entregue de forma fragmentada, difusa, intervalo de tempo possível (que é algo característico do modelo de negócio por assinatura mensal), toda a experiência de jogo é permeada por uma narrativa bastante longa, em andamento, que por sua vez, é fragmentada em pequenos pedaços com fechamentos e recompensas menores. Por meio dessa narrativa fragmentada que é entregue aos poucos ao jogador, os MMOs conseguem narrar uma história de proporções épicas em meio a um mundo primorosamente simulado. O fato de se fragmentar a narrativa longa permite ao jogador acompanhá-la em toda a sua extensão, sem precisar gastar centenas entrega da história de forma que a audiência seja encorajada a ter interesse” (NEWMAN, 2006, apud KRZYWINSKA 2007, p. 21). Esses fragmentos narrativos auxiliam no

dição do mundo com as funções oferecidas e habilidades do personagem do jogador” (KRZYWINSKA, 2007, p. 10). Sendo assim, o mundo de World of Warcraft se estrutura tanto pelas regras de simulação como pela narrativa. Como as regras de simulação estão inseridas em um contexto ficcional, é possível observar diversos tipos de narrativa nestes jogos: a narrativa pré-estruturada, a narrativa emergente e a narrativa que o jogador faz a partir da experiência subjetiva de jogo. A fim de abordar a narrativa nos MMORPGs, se faz necessário distinguir entre as histórias contadas sobre um jogo – um jogador narrando a sua experiência pessoal para outra pessoa, e as histórias contadas por meio do jogo - a informação narrativa que é transferida ao jogador durante uma partida. Embora uma partida de jogo possa ser narrada, essa narração não faz parte do jogo, mas é um evento distinto que não está necessariamente diretamente relacionado com a história contada pro meio de um jogo. A narrativa por meio do jogo é diferente da narrativa do jogador: “a narrativa [por meio do jogo] é vista como uma forma de compreensão dos eventos que o jogador causa, dispara

O liveira - J oão M assarolo

narrativas constroem o mundo e sua história. A narrativa global do jogo interliga a con-

de

estabelecimento do mundo épico em que se passa o jogo: “Um vasto conjunto de linhas

J ônatas Kerr

de horas contínuas, espaçando-as conforme a sua agenda– “os seriados ‘parcelam’ a

como estrutura narrativa seriada •

múltipla e, às vezes, sutil. Como esse é um jogo que busca prender o jogador pelo maior

World O f Warcraft

persistente e online: “o fato de o jogo ser entregue em tempo-real não significa, con-

em

Esta história apresenta características específicas inerentes ao sistema de jogo

17 Q uests

to mais em bater recordes de pontuação ou acumular habilidades. (...) No entanto uma grande história está disponível para os jogadores de World of Warcraft mesmo que na maioria das vezes ela seja entregue de forma fragmentada” (KRZYWINSKA, 2007, p. 8).


e encontra dentro do espaço em um videogame” (NITSCHE, 2008, p.7). Entretanto, esta abordagem da narrativa por meio dos vídeo games ainda abarca duas perspectivas: a desestruturada que emerge da interação do jogador com a mecânica de jogo. Esta narrativa que surge a partir das ações do jogador é conhecida como narrativa emergente: eventos complexos que emergem da interação do jogador com a mecânica de jogo den-

individuais de cada jogador, assim como as interações sociais emergentes, ou ainda a economia do jogo. Embora a narrativa emergente, presente nos jogos de MMORPG, assim como a narrativa criada pelos jogadores após a seção de jogo sejam tópicos muito ricos, eles fogem do escopo deste artigo, visto que estas formas narrativas ocorrem de forma participativa e com um grande fator social envolvido, requerendo uma abordagem diferenciada do assunto. Portanto, será discutido neste artigo apenas a narrativa que é estruturada pelo game designer e apresentada durante a experiência de jogo, seja por meio de cinemáticos e textos que interrompem o jogo, ou por meio de um gameplay estruturado como no caso das quests. Sendo as quests a principal ferramenta narrativa dos MMORPGs, a tarefa então se torna identificar diversas formas pelas quais as quests do jogo são utilizadas para contar estas histórias que se unem em uma longa experiência épica. 3.1 As Quest enquanto eposódios narrativos Dentre as ferramentas utilizadas pelos vídeo games para contar histórias, as quests em especial tem se destacado, principalmente em virtude de ser a principal ferramenta narrativa dentro do gênero de maior sucesso comercial da década, os MMORPGs. Por conta de as quests estarem relacionadas a tarefas específicas dentro do mundo de jogo, a narrativa presente é fragmentada e pode ser considerada como episódica. As quests dentro do jogo World of Warcraft podem surgir de diversas formas, tais como personagens controlados pelo computador, por objetos espalhados no espaço, itens do inventário, ou ainda pelo posicionamento geográfico. Entretanto, a forma mais comum de uma quest ser apresentada dentro do jogo é por meio dos NPCs, que no caso do WoW não apresentam muitas falas ou características de inteligência artificial, apresentando apenas o conteúdo das quests que eles possuem no momento ou respondendo ao jogador com respostas como “Você não vê que eu estou ocupado?”, caso ele não tenha nenhuma quest disponível ou alguma outra informação para dar. Os personagens que possuem quests para entregar aos jogadores são marcados com uma exclamação amarela sobre a cabeça, o que normalmente atrai os jogadores para que eles possam receber

1 - n. 1

relação de interação complexa e emaranhada, uma vez que pode abarcar tanto as ações

ano

tro de um contexto ficcional. A narrativa emergente pode ser observada como uma

Revista GEMI n IS |

narrativa pré-estabelecida e apresentada durante o jogo, e a narrativa relativamente

18


as quests (Figura 1).

19 Q uests

Figura 1 Personagens controlados por jogadores recebendo quests de um NPC.

em

World O f Warcraft

em que a tarefa demandada se encontra, dando motivação contextual ficcional para o jogador realizar as tarefas solicitadas (Figura 2). No nível de cada quest isolada, podemos observar as informações narrativas surgindo principalmente no momento em que o jogador recebe a quest, porém também se estendendo a toda ação subjacente até a completude da mesma. Embora os textos das quests sejam simples e curtos, eles apresentam a medida certa para contextualizar as ações sem tornar o jogo em algo monótono e história que justifica a tarefa, o objetivo de forma resumida e a recompensa que ele receberá caso realize a tarefa com sucesso (Figura 2). O texto das quests é atualizado com

atualizadas pode ser observado na diferença entre as Figuras 2 e 3, que representam a mesma quest (“Wolves Across the Border”) no dia 4 de janeiro de 2010 e no dia 10 de novembro de 2009, respectivamente. Se o jogador retornar ao NPC que entregou a quest a ele enquanto esta ainda não foi completada, então é exibida uma janela com um resumo do que é esperado que o jogador faça para este NPC (Figura 4). Esse tipo de resumo também pode ser acessado no botão “quest log”, que imediatamente traz uma janela (Figura 5) com um limite de até 25 quests, dando o resumo delas e o status até o dado momento. Em meio a uma narrativa fragmentada, é essencial que o jogador tenha esse tipo de recurso para recorrer nos casos de ter acumulado muitas quests e tenha se esquecido de detalhes de alguma delas.

O liveira - J oão M assarolo

novamente o jogo ao criar um novo personagem. Um exemplo de como as quests são

de

frequência, para permitir uma rejogabilidade para os jogadores que optarem por iniciar

J ônatas Kerr

excessivamente textual. Na janela de apresentação da quest o jogador já lê a pequena

como estrutura narrativa seriada •

Ao receber uma quest, o jogador se depara com um texto que explica o contexto


20 Revista GEMI n IS | ano

1 - n. 1

Figuras 2, 3 e 4 – A janela de uma quest em datas diferentes e a janela de resumo da quest. Figura 5 Quest log.

Durante a experiência de jogo em World of Warcraft, existem arcos de história longos, mas a maioria das quests possui linhas de história relativamente isoladas e autosuficientes. Um exemplo deste tipo de arco de história fechado ocorre na quest “Wolves Across the Border”, que se inicia quando o jogador conversa com Eagan Peltskinner, logo no início do jogo, caso seu personagem seja um humano. No primeiro contato, o NPC (que tem uma exclamação sobre sua cabeça) narra uma história sobre a necessidade de matar os lobos que estão na floresta (conforme mostram as Figuras 2 e 3, em novembro de 2009 pelo simples prazer de comer a carne deles, e em janeiro de 2010 por conta de uma doença contagiosa que eles estão espalhando). Se o jogador aceitar realizar esta quest, então a exclamação sobre a cabeça do NPC se torna em uma interrogação e então o jogador tem de enfrentar a quantidade de lobos que foi requisitada (Figura 6) e coletar o item específico relacionado à quest (Figura 7). Enquanto o jogador enfrenta


os desafios que lhe foram sugeridos, no HUD surgem mensagens informando o status da quest, e caso ele complete mais uma etapa de uma das quests ativas, essa etapa é então tem de retornar ao NPC e entregar o que lhe foi requisitado (embora nem todas

recompensa (Figura 9).

como estrutura narrativa seriada •

Figuras 6 e 7 – Enfrentando o lobo e coletando os itens após vencê-lo.

World O f Warcraft

ou ir a um ponto específico na geografia do jogo, por exemplo) para então receber a

em

as quests sigam esta regra, existindo quests em que o objetivo é se reportar a outro NPC

Q uests

informada na tela (Figura 8). Ao completar todos os objetivos de uma quest, o jogador

21

J ônatas Kerr de

O liveira - J oão M assarolo

Figuras 8 e 9 – Destaque das mensagens que informam o status das quests ativas e a janela do momento em que a quest é completada.

Quando observamos uma quest como a “Wolves Across the Border”, podemos afirmar que a narrativa contida nela é um episódio fechado em si: os conflitos dramáticos se resolvem ao solucionar a quest e as consequências da resolução destes conflitos dramáticos se resumem ao plano do gameplay. Afirmar que se trata de um episódio narrativo com arco dramático fechado não significa que a quest é desconexa das outras e do universo, pois existe um tema central que une a todas, entretanto este tipo de quest con-


tribui mais para a narrativa enquanto apresentação dos personagens, regiões e tarefas presentes no mundo ficcional do que enquanto arco dramático elaborado. Entretanto, mais complexas. 3.2 Quests enquanto episódios encadeados

trutura organizacional: as quests em World of Warcraft “são algumas vezes projetadas como episódios em uma cadeia maior de quests” (WALKER, 2008, p. 171), em outros momentos as histórias das quests não são apenas estruturadas em ordem serial, mas também paralelamente, numa estrutura onde o jogador pode receber diversas quests ao mesmo tempo e ir cumprindo-as paralelamente – em vários casos a solução de uma quest está geograficamente atada à outra, fazendo com que o jogador solucione mais de uma quest ao mesmo tempo. Essa estrutura de organização das quests pode revelar muito da forma como as quests constroem sentido narrativo, numa organização única das quests enquanto fragmentos narrativos interligados – episódios encadeados com uma narrativa progressiva. Esta progressão narrativa entre diversos episódios pode ser observada, por exemplo, na cadeia de quests que se inicia no começo do jogo caso o jogador entre com um personagem humano. Em World of Warcraft, ao iniciar um novo jogo com um novo personagem, o jogador assiste a um cinemático em tom épico onde ele conhece um pouco da história do mundo e de sua raça. Após o final do breve cinemático, o jogador fica cara a cara com Deputy Willem, uma espécie de xerife local. Deputy Willem tem sobre sua cabeça uma exclamação e ao interagir com ele, surge a janela da quest “A Threat Within” (Figura 10), que encaminha o jogador para o seu superior, Marshal McBride, que poderá atribuir tarefas ao jogador recém chegado. Ao conversar com Marshal McBride, este comenta da existência de “grupos corruptos e sem lei” que têm ameaçado os arredores do vilarejo (Figura 11), e assim, apenas por andar de um ponto até outro e conversar com uma pessoa, o jogador completa a primeira quest. Se o jogador retornar para conversar com Deputy Willem, então este tem disponível uma nova quest chamada “Brotherhood of Thieves” (Figura 12), que fala da existência de um grupo de bandidos que se autointitula “Defias Brotherhood” e envia o jogador para verificar o que estes bandidos estão querendo na região e também para trazer 8 (oito) bandanas que esses bandidos usam na cabeça para ser recompensado.

1 - n. 1

no nível de cada quest isolada, como episódios fechados em si, mas também numa es-

ano

Enquanto ferramentas narrativas, as quests devem ser observadas não apenas

Revista GEMI n IS |

no jogo também existem quests que se ligam a outras para formarem cadeias narrativas

22


23 Q uests em

World O f Warcraft

Para completar a tarefa designada por Deputy Willem, o jogador precisa então se deslocar até o ponto no mapa onde a gangue dos Defias foi avistada para então das (Figura 13). Ao retornar para Deputy Willem, este recompensa o jogador pelo seu feito e lhe oferece mais duas quests: “Milly Osworth” (Figura 14) e “Bounty on Garrick

“Bounty on Garrick Padfoot” oferece ao jogador a oportunidade de ganhar uma arma em troca da cabeça do líder da gangue dos Defias. Se o jogador for conversar com Milly Osworth, ele completa a quest de mesmo nome e descobre que Milly é uma comerciante de vinho que teve a sua plantação de uvas dominada pela Defias Brotherhood, que então oferece uma nova quest chamada “Milly’s Harvest” (Figura 16) para o jogador: ir buscar as uvas que já foram colhidas, mas que ficaram em baldes na plantação. Narrativamente, a quest “Milly’s Harvest” se encontra dentro de um conflito narrativo maior que a quest isolada, pois cria um pano de fundo que ilustra as ações do grupo de bandidos apresentado em uma quest anterior e assim justifica a morte do líder deles, Garrick Padfoot, em outra quest.

O liveira - J oão M assarolo

versar com a personagem homônima que se encontra “com algum problema” e a quest

de

Padfoot” (Figura 15). A quest “Milly Osworth” apenas encaminha o jogador para con-

J ônatas Kerr

lutar com os membros da gangue e conseguir as 8 bandanas que lhe foram requisita-

como estrutura narrativa seriada •

Figuras 10, 11 e 12 – As janelas das quests “A Threat Within” e “Brotherhood of Thieves”.


24 Revista GEMI n IS | ano

1 - n. 1

Figuras 13, 14 e 15 – O enfrentamento de um bandido da “Defias Brotherhood” e as janelas das quests “Milly Osworth” e “Bounty on Garrick Padfoot”.

Se o jogador for à plantação de uvas, então este tem de colher as uvas que estão nos baldes (Figura 17). Esta tarefa era cercada de perigo em novembro de 2009, pois os integrantes do bando atacavam o jogador que chegasse perto da plantação, entretanto, após uma atualização do sistema em dezembro de 2009 (Patch 3.3.0), os bandidos dessa região inicial do jogo pararam de atacar os jogadores, e só brigam com eles se forem atacados. Assim, para completar a quest “Milly’s Harvest”, basta se deslocar de onde Milly se encontra até a plantação, coletar as uvas e então retornar para receber a recompensa. Esta alteração do sistema tornou o jogo mais fácil para o jogador, porém tornou a narrativa mais enfadonha e inacreditável, uma vez que ao chegar à plantação o jogador encontra pessoas inofensivas, algo bem diferente da descrição de bandidos violentos que foi dada.

Figuras 16 e 17 - A janela da quest “Milly´s Harvest” e a coleta das uvas na plantação.


Na mesma região do mapa onde está a plantação, encontra-se o líder dos bandidos: Garrick Padfoot, que está escoltado por seu guarda-costas. Na versão do jogo de jogador se este chegasse perto do líder, entretanto, na versão atualizada, existe apenas

19) para então retornar ao vilarejo e completar as duas quests.

entregar a cabeça do vilão assassinado. Após receber palavras de gratidão por livrar o

agradece, dá uma recompensa ao jogador e oferece mais uma quest: “Grape Manifest” (Figura 20), que consiste de levar uma carta para um comerciante local avisando que finalmente as uvas chegaram. Ao entregar a carta para o comerciante este agradece pela ajuda e avisa que finalmente o vilarejo poderá ter vinho novamente (Figura 21). Figuras 20 e 21 O enfrentamento com Garrick Padfoot e a coleta da cabeça do vilão.

O liveira - J oão M assarolo

dentre as opções de armas disponíveis. Ao retornar para Milly com as suas uvas, esta

de

vilarejo da ameaça daquele bandido, o jogador pode então escolher uma recompensa

J ônatas Kerr

Ao retornar para o vilarejo, o jogador pode então contatar Deputy Willem e lhe

como estrutura narrativa seriada •

Figuras 18 e 19 - O enfrentamento com Garrick Padfoot e a coleta da cabeça do vilão.

World O f Warcraft

derrotar o líder dos bandidos (Figura 18), o jogador tem de coletar a cabeça deste (Figura

em

um guarda-costas e ele fica imóvel, não oferecendo qualquer desafio para o jogador. Ao

Q uests

novembro de 2009, Garrick Padfoot era cercado por mais dois bandidos que atacavam o

25


Por meio da análise desta cadeia de quests podemos observar como a narrativa pode se desenrolar por meio de vários episódios, onde o conteúdo de uma quest comanálise de cada quest isolada pode aparentar: ao receber a primeira quest da cadeia o jogador é informado de que o vilarejo está precisando de ajuda por conta da presença de “grupos sem lei” nas redondezas, informação que começa a ficar mais evidente quando

tornar, então o jogador é colocado em contato com uma das vítimas dos bandidos: Milly Oswort, que pede a sua ajuda. Então o jogador retorna ao covil dos bandidos, ajuda a vítima destes a solucionar o seu problema e finalmente mata o líder deles, trazendo paz ao vilarejo. A progressão narrativa desta cadeia de quests (Representada na Figura 22) é bastante clara: uma apresentação do povoado, a exposição do problema que aflige o povo, o envolvimento emocional com os afligidos pelo problema, e finalmente a batalha pela solução do problema, que traz a paz novamente àquele povoado.

Figura 22 - Progressão narrativa da cadeia de quests analisada.

Como observado por Krzywinska (2007, p. 22), as “cadeias de quests também podem ser consideradas em termos de segmentação episódica. Neste caso, elas muitas vezes entregam determinado conteúdo narrativo de forma incremental”. Embora possa se observar esta progressão dramática sendo apresentada por meio da cadeia de quests analisada, existe um problema com este tipo de narrativa em um mundo persistente online: não existe “continuidade temporal completa” (KRZYWINSKA, 2007, p. 19). Isso significa que o mundo se torna relativizado pela experiência do jogador e a continuidade temporal só ocorre por alguns segundos após uma determinada ação acontecer. Um exemplo disso pode ser observado quando o jogador acabou de matar Garrick Padfoot e outro jogador chega ao mesmo local em busca do mesmo enfrentamento. Este encontro da continuidade temporal de dois jogadores gera uma descontinuidade, pois para que o

1 - n. 1

ação deles, tarefa que acaba mostrando que se trata de um grupo de bandidos. Ao re-

ano

o jogador é enviado até o grupo que estava na fronteira do vilarejo para investigar a

Revista GEMI n IS |

pleta o de outra e constrói um mundo com uma narrativa muito mais densa do que a

26


segundo jogador possa confrontar Garrick Padfoot, este personagem surge exatamente no mesmo lugar, juntamente com seu guarda-costas, ambos sobre os seus próprios caneste tipo de mundo este mundo “os jogadores não podem afetar o mundo do jogo que

da simulação, e este tipo de evento dentro do mundo ficcional só pode ser explicado por meio da discussão das regras do sistema. Além dos motivos apontados, este tipo de incoerência também se dá, pois o jogo World of Warcraft não apresenta uma narrativa ordenada no eixo temporal, mas ao invés disso, uma narrativa espacial, onde fragmentos narrativos são dispersos na geografia do mundo e são exibidos ao jogador quando este os encontra por meio da navegação espacial. Se as quests são ferramentas intimamente ligadas ao uso do espaço investido de função dramática, elas seriam ferramentas que contam histórias espaciais, assim como Jenkins as descreve: Muitos críticos de jogos assumem que todas as histórias precisam ser classicamente construídas com cada elemento perfeitamente integrado na trajetória geral do enredo. [...] As histórias espaciais, por outro lado, muitas vezes não são percebidas como episódicas - isto é, cada episódio (ou parte de jogo) pode ser persuasivo por si próprio sem contribuir significativamente para o desenvolvimento do enredo e muitas vezes, os episódios podem ser reordenados sem impactar significativamente a experiência como um todo (JENKINS, 2002).

O liveira - J oão M assarolo

vezes, etc. Isso se dá principalmente por que os elementos narrativos seguem as regras

de

pensa que supostamente era única, ou então um mesmo personagem é morto diversas

J ônatas Kerr

realizar quests em grupo, todos os jogadores do grupo recebem uma cópia da recom-

como estrutura narrativa seriada •

Este tipo de incoerência permeia a experiência de jogo em World of Warcraft: ao

World O f Warcraft

Figura 23 A descontinuidade temporal de quando dois jogadores precisam fazer a mesma tarefa: Garrick Padfoot de pé sobre o cadáver de Garrick Padfoot.

em

não seja de uma forma superficial” (KRZYWINSKA, 2007, p. 10).

Q uests

dáveres (Figura 23), o que gera uma sensação de estranhamento. Segundo Krzywinska,

27


Sendo assim, o espaço investido de função dramática ocupa um papel muito grande na construção do jogo enquanto mundo épico, e embora muitas das quests de tada por Jenkins, onde cada episódio é fechado e funciona por si próprio sem contribuir significativamente para o desenvolvimento do roteiro, pode-se observar que as histórias contadas por meio das quests nem sempre se enquadram nesta descrição de

específica e precisam estar em determinada ordem para construir o suspense por meio das noções de adiamento e repetição apontadas por Walker (2008). Portanto, as quests de World of Warcraft possuem uma estrutura que mescla ambos os tipos de narrativa: cada fragmento pode construir sentido de forma isolada ou vários fragmentos podem atuar em conjunto para construir uma história mais elaborada. Por meio da disponibilização de ferramentas de exploração espacial, o jogador interage com o mundo e descobre os pontos geográficos que contém informação dramática, e mais do que isso: A narrativa longa predeterminada de World of Warcraft, é entregue de forma fragmentada e não linear, e muitos dos seus componentes têm de ser lidos na organização e no conteúdo do mundo. A narrativa longa dada não é planejada para ser facilmente assimilada, em vez disso, ela é projetada para ser reunida através de múltiplas atividades e leituras cuidadosas das quests e outros recursos textuais. (...) A narrativa longa em World of Warcraft é mais do que simplesmente a história de feitos heróicos, é multi-dimensional com cadeias muito complexas de causa e efeito que ressoam através do mundo em uma escala épica (KRZYWINSKA, 2007, p. 13).

Assim, por meio de uma estrutura elaborada de quests, World of Warcraft se estabelece como um universo narrativo extremamente rico, multifacetado, com espaço tanto para a improvisação e socialização dos jogadores, como para a fruição de longas narrativas épicas que se apresentam por meio de elaboradas cadeias de quests. Conclusão Observando as características das quests e cadeias de quests que foram analisadas, podemos afirmar que a narrativa de quests dentro de World of Warcraft apresenta características episódicas, em alguns casos com sequência de situações e eventos internamente coerentes, e em alguns casos, com seqüências como estas formando estruturas narrativas maiores, com seqüências de episódios que são projetadas para que histórias complexas possam se estruturar de forma incremental, a partir da sucessão de episódios narrativos. Essa narrativa episódica se organiza

1 - n. 1

os fragmentos narrativos não podem ser reordenados, pois eles possuem uma função

ano

episódios fechados, uma vez que em quests como as da cadeia analisada anteriormente,

Revista GEMI n IS |

World of Warcraft possam ser analisadas conforme esta perspectiva episódica apresen-

28


COSTIKYAN, G. Games, storytelling, and breaking the string. In: HARRIGAN, P.; WARDRIP-FRUIN, N. (Org.). Second person: Roleplaying and Story in Playable Media. Cambridge: MIT Press, 2007. Disponível em: <http://www.electronicbookreview.com/ thread/firstperson/storyish>. Acesso em 25 set. 2009. FURTADO, Filipe. Cliff-hanger. E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, 2009. Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl>. Acesso em 25 set. 2009. HAGEDORN, Roger. Doubtless to be continued: A brief history of serial narrative. In: ALLEN, Robert (Org.). To Be Continued… Soap operas around the world. London: Routledge, 1995. pp. 27-48.

O liveira - J oão M assarolo

Series. Hampshire and New York: Palgrave Macmillan, 2005. pp. 1-46p.

de

TV Series. In: ALLRATH, Gaby; GYMNICH, Marion. Narrative Strategies in Television

J ônatas Kerr

ALLRATH, G.; GYMNICH, M.;SURKAMP, C. Introduction: Towards a Narratology of

como estrutura narrativa seriada •

ALLEN, Robert (Org.). London: Routledge, 1995. pp. 1-26.

World O f Warcraft

ALLEN, Robert. Introduction. In: To Be Continued… Soap operas around the world.

em

Referências

29 Q uests

em torno das limitações do formato, tais como a necessidade de uma narrativa constantemente em curso, gerando características estéticas que contribuam para o “instinto de preservação” da narrativa no meio e mantenham o jogador sempre jogando. Como a estética deste meio é moldada pelas limitações do formato, e sendo o mundo de World of Warcraft um misto entre um sistema simulado, um ambiente social e uma narrativa épica, algumas das características estéticas do meio levam a incoerências narrativas, como observado anteriormente. A partir deste levantamento de características da narrativa seriada televisiva, e de algumas características do sistema narrativo de quests, pôde-se observar que a estrutura narrativa por meio de quests dos MMORPGs pode ser considerada como parte de uma estrutura narrativa seriada dentro do universo de World of Warcraft. Este tipo de conclusão vem de encontro à previsão Hagedorn de que “na chamada ‘era da informação’ (...) podemos esperar ver novos desenvolvimentos, não só no domínio dos meios de comunicação de massa, mas também no de narrativa seriada’” (HAGEDORN, 1995, p. 40). Se a narrativa apresentada nas quests dos MMORPGs apresenta características de uma narrativa seriada, então boa parte da teoria e ferramentas relativa às narrativas em série podem ser adaptadas para a análise da narrativa nestes jogos. Não servindo apenas como ferramental de análise teórica, este ferramental construído e lapidado pelos criadores das séries televisivas pode ser utilizado pelos game designers para enriquecer ainda mais o universo ficcional apresentado em jogos como World of Warcraft, que, muito mais do que jogos, são mundos ficcionais.


HERMAN, David. Basic Elements of Narrative. Wiley-Blackwell: Oxford, 2009.

30

JENKINS, Henry. Game Design as Narrative Architecture. In Pat Harrington and

Narrative in World of Warcraft and Buffy the Vampire Slayer. 2007. Disponível em:

Revista GEMI n IS |

<http://hdl.handle.net/2438/1058>. Acesso em 28 jan. 2010

ano

MATEAS, Michael. Interaction and Agency. 2003. Disponível em: <http://grandtextauto.

1 - n. 1

Noah Frup-Waldrop (Eds.) First Person. Cambridge: MIT Press, 2002. Disponível em: <http://web.mit.edu/cms/People/henry3/games&narrative.html>. Acesso em 18 set. 2009. KRZYWINSKA, Tanya. Arachne Challenges Minerva: The Spinning Out of Long

org/2003/08/06/interaction-and-agency/#comments>. Acesso em 28 jan. 2010 NITSCHE, Michael. Video Game Spaces. Image, Play, and Structure in 3D Worlds. Cambridge: MIT Press. 2008.


A

ficção seriada diante da Convergência Tecnológica e midiática E dvaldo O lécio

de

Souza

Formado em comunicação Social - Rádio e TV na UNESP e atualmente é discente regular do programa de pós-graduação em Televisão Digital: Informação e Conhecimento da UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – sob orientação da professora Doutora Maria Cristina Gobbi. E-mail: edmaistv@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 31 - 42


Resumo O presente artigo discutirá a dinâmica da produção e geração de conteúdos narrativos ficcionais diante das convergências das tecnologias digitais e da transição da TV analógica para a Televisão Digital. O grande desafio, portanto, será abordar conteúdos narrativos que atendam a essa nova plataforma de comunicação aliando, de forma eficiente, os recursos multimídias com interatividade, distribuição e qualidade, de forma que contribua para os estudos de novas linguagens narrativas. Neste sentido, sugere uma proposta de narrativas que acompanhe a evolução das novas plataformas tecnológicas elaborando linguagem e conteúdos estéticos híbridos que suplementem a participação do espectador e expressem a diversidade cultural do país. Palavras - chave: Conteúdos ficcionais; Teledramaturgia; Convergência; Comunicação; Tecnologia.

A bstract The present article will discuss the dynamic one of the production and generation of narrative contents ficcion before the convergences of the digital technologies and of the transition of the analogical TV for the Digital Television. The great challenge, so, will be to board narrative contents that pay attention to this new platform of communication when the resources multimedia are allying, in the efficient form, with interactivity, distribution and quality, in such a way that it contributes to the studies of new narrative languages. In this sense, it suggests a proposal of narratives that accompanies the evolution of the new technological platforms preparing language and aesthetic hybrid contents that supplement the participation of the viewer and express the cultural diversity of the country. Keywords: Contents of ficcion; soap operas; Convergence; Communication; Technology.


É

notável, no século XXI, a importante convergência entre as tecnologias de informação e o campo da comunicação midiática. Essa convergência se intensifica com a implantação da TV Digital no Brasil. Nesse sentido, ao incorporar a maior

qualidade da imagem e aplicativos que permitam o telespectador interagir com a pro-

gramação, essa convergência tende a modificar os padrões de produção audiovisual, principalmente no que tange a produção de conteúdos. Dentro desse atual processo, é importante ressaltar na produção da indústria da cultura e entretenimento o segmento de teledramaturgia que, apesar da constante mudança no gênero dos conteúdos apresentados na televisão, continua sendo o principal setor de produtos de exportação da televisão brasileira. A teledramaturgia é, geralmente, concebida em narrativas cuja apresentação é seriada, ou seja, é realizada em capítulos ou episódios que podem ter, a depender do tipo de narrativa, características e formas de desenvolvimentos bem diferenciados e específicos. Destaque para a produção de novelas, minisséries, séries, seriados e especiais exibidos nas diversas emissoras, nos mais diferentes horários. O Brasil possui uma relação muito próxima com a teledramaturgia, o que faz com que este setor influencie diretamente o dia a dia de cada telespectador de todas as faixas etárias, seja no consumo, no comportamento ou na cultura. Justamente por ter conteúdos audiovisuais visto por um público heterogêneo, a teledramaturgia se torna tão popular e representativa na sociedade brasileira. A presença desses conteúdos narrativos ficcionais nos mais diferentes formatos é fundamental na grade de programação de uma emissora e seu potencial movimenta indústrias milionárias, criadoras de infinitos bens culturais que circulam por diversos países. O setor concentra milhares de profissionais, entre pesquisadores, estudiosos, diretores, produtores, atores, iluminadores, maquiadores, figurinistas e técnicos; atingindo cerca de 145 milhões de brasileiros, muitos dos quais têm na TV a sua única fonte de informação, lazer e cultura. Essa indústria do entretenimento está diante de uma intensificação do fluxo in-


ternacional e nacional da ficção televisiva seriada, por meio de parcerias e incorporação de multinacionais. Nesse contexto, são aspectos merecedores desse estudo: a teledraa busca por novos formatos, o comportamento da teledramaturgia no ambiente digital, sua relação com as multiplataformas, o processo de catalisação em outras mídias e o fomento de estratégias de gestão de conteúdos.

“Lost” (ABC) - que simultaneamente lançou um jogo virtual e interativo - “CSI” (CBS), “Greek” (Universal Channel), “GossipGirls” (Warner Channel) e “FlashForward” (ABC) que possuem tramas complexas, onde há uma teia de personagens principais e secundários e a história não chega pronta para o telespectador. Alguns seriados, séries e programas nacionais também podem ser citados, são eles: Geral. Com (TV Globo), Tudo que é Sólido pode derreter (TV Cultura), Programa Eco Prático (TV Cultura), Um menino muito maluquinho (TV Brasil), Descolados (MTV). A tendência da teledramaturgia vai muito além da bela qualidade de imagem e som. Com a plataforma digital, as narrativas ficcionais se caracterizarão por uma estrutura não linear e multiforme e, de fato, poderão se tornar uma obra aberta, pois muitas destas obras contarão com a participação efetiva e decisiva de seu espectador através da interatividade, caracterizando o que chamamos de espectador interator ou interagente, em uma relação de coautoria. O espectador poderá obter capítulos anteriores, pausar sua novela no momento em que preferir e até mesmo saber mais informações sobre determinado personagem, que roupa está usando, de qual local, ou marca, enfim, o modelo de negócios se reconfigura. No cenário mundial, a teledramaturgia, segundo Mauro Alencar (2004), doutor em Teledramaturgia e membro da Asociación Latino americana de Investigadores de la Comunicación (Alaic), movimenta cerca de US$ 70 milhões por ano e alcança uma platéia de 2 bilhões de pessoas, em mais de 32 idiomas. Com a implantação da Televisão Digital no Brasil e da acentuada convergência das tecnologias digitais surge uma nova fase com transformações consideráveis na estrutura da teledramaturgia existente. O grande desafio, portanto, é o de abordar conteúdos narrativos que atendam a essa nova plataforma de comunicação aliando de forma eficiente os recursos multimídias com interatividade, distribuição e qualidade, contribuindo nos estudos de novas linguagens narrativas. Neste sentido, sugere-se uma proposta de narrativas que acompanhe a evolução das novas plataformas tecnológicas elaborando linguagem e conteúdos estéticos híbridos que suplementem a participação do espectador e expressem a diversidade cultural do país.

1 - n. 1

principais produções audiovisuais norte-americana como o filme “Avatar”, os seriados

ano

Como exemplo destes movimentos e tendências destacam os sucessos das

Revista GEMI n IS |

maturgia e a convergência midiática, a produção ficcional com seus formatos básicos,

34


Vale ressaltar que por se tratar de um assunto emergente no cenário nacional, o estudo de conteúdos narrativos ficcionais para Televisão Digital é muito recente, pouco

Desse modo, ciente da importância desta nova linguagem e partindo do pressuposto de que é extremamente importante a criação de modelos de conteúdo originais, refletiremos sobre as possibilidades que essas tecnologias da informação e as formas de expressão contemporâneas nos oferecem diante da produção de conteúdos narrativos Frente às expressivas potencialidades da plataforma de comunicação e através de políticas de inclusão e democratização social, qual será o paradigma na produção e geração de conteúdos narrativos na teledramaturgia brasileira? Como conciliar os novos serviços, tais como a comunicação de dados de alta velocidade, os jogos eletrônicos, rativas da teledramaturgia? Como tornar o espectador usuário desses novos serviços e interagir com o conteúdo? Como possibilitar a inserção de conteúdos educativos e

não são mais suficientes para sustentar essas transformações? A TV brasileira terá a possibilidade de criar novas fórmulas para a teledrama-

desses novos conteúdos estando a serviço de uma cidadania democrática? [...] uma coisa é certa: vivemos hoje uma destas épocas limítrofes na qual toda a antiga ordem dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, modos de conhecimentos e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmo, um novo estilo de humanidade é inventado. Nenhuma reflexão séria sobre o devir da cultura contemporânea pode ignorar a enorme incidência das mídias eletrônicas [...] (LEVY, 1993, p. 17).

Segundo Anna Maria Balogh (2002), os formatos ficcionais são herdeiros de um vasto caudal de formas narrativas e dramatúrgicas prévias: a narrativa oral, a literária, a radiofônica, a teatral, a pictórica, a fílmica e a mítica entre outras. Com o desenvolvimento tecnológico e a consolidação da televisão como meio de comunicação de massa, esses formatos ficcionais se evoluíram ganhando espaço e conseqüentemente mais atenção na linguagem e produção audiovisual. Os primeiros produtos ficcionais

S ouza

relação com o espectador? Enfim, como viabilizar e estruturar a produção e difusão

de

turgia que no mínimo reavaliem suas condições culturais, sociais e econômicas e sua

E dvaldo O lécio

para o desenvolvimento de novos gêneros e formatos? Estes gêneros se esgotaram ou

culturais neste setor? Como introduzir outros tipos de recursos interativos de interesse

e midiática

o Vídeo On Demand (VOD) e o T-commerce (television commerce) com as estruturas nar-

Convergência Tecnológica

para teledramaturgia.

ficção seriada diante da

estudos na área.

A

explorado e com fontes de referência ainda escassas, o que reforça a preocupação de

35


televisuais brasileiros foram os teleteatros e as telenovelas. Somente a partir da década de 60 é que surgiram os seriados, ainda que de forma discreta, ofuscados a princípio os primeiros seriados brasileiros tinham estrutura semelhante à dos seriados norte-americanos, desenvolvendo temáticas próprias do universo ideológico dos anos 50. Somente no final dos anos 70 é que o seriado se volta para a realidade brasileira e ganha

que, num mesmo horário, apresentam uma mesma estrutura ficcional e comunicativa com cenários e personagens diversos a cada episódio e das telenovelas e minisséries, que possuem uma mesma história apresentada em uma estrutura narrativa fragmentada, é considerado seriado a produção ficcional para a televisão que se organiza em episódios independentes, cada um deles portadores de unidade relativa. Cada unidade apresenta uma história diferente, preservando o espírito geral da temática. O seriado é estruturado em partes denominadas de episódios em vez de capítulos, não só para a diferenciação em relação aos demais programas de caráter seriado, como para fixar seu caráter independente que se situa entre a estrutura do unitário e do capítulo. Lorenzo Vilches (2003) define a serialização como um conjunto de seqüências sintagmáticas baseado na alternância desigual: cada novo episódio repete um conjunto de elementos já conhecidos e que fazem parte do repertório do receptor, ao mesmo tempo em que introduz algumas variantes ou até mesmo elementos novos. Para ele, a repetição não significa necessariamente redundância e sim o princípio organizativo de vários sistemas poéticos. Atualmente, nos seriados, há uma presença considerável de narrativas eletrônicas em meios digitais que se unem com as das mídias do cinema e da TV, na chamada convergência midiática. Essa convergência integra as tecnologias de telecomunicações e computação fornecendo ao telespectador informações e aplicações dos mais diferentes seriados em qualquer lugar, de qualquer rede de computadores e por qualquer canal de comunicação, através de uma interface homem/máquina, com qualidade adequada e de forma transparente. Essa convergência emprega, como principal recurso de comunicação, a hipermídia que unifica os conceitos de hipertexto e multimídia. A hipermídia possibilita a leitura não linear, ou seja, o produto não tem, necessariamente, um começo, um meio e um fim, pois se adapta às necessidades do seu usuário. Surgem aí, novos paradigmas quanto à estrutura, à linguagem e à produção dos seriados que, segundo Janet Murray (2003), não deve sofrer uma comparação direta com os já costumeiros produtos dos meios mais antigos.

1 - n. 1

Segundo Pallottini (1998), diferentemente dos programas chamados unitários,

ano

projeção nacional.

Revista GEMI n IS |

pelas adaptações literárias e a seguir pelo estrondoso sucesso das novelas. Em suma,

36


De maneira geral, essas narrativas exigem uma atitude diante do vídeo mais próxima daquela que se adota ao ler um livro: atenção à narrativa, esforço para reter

buídos pela web e em dvd’s com menus interativos. Alguns seriados nacionais também se inspiram neste modelo criado e preferido pelos americanos, mas adaptam o humor e as histórias à realidade brasileira. Os Normais, Aline, Norma e A Lei e o Crime são alguns exemplos. Os temas destes programas lugar ao cotidiano aproximando-se da realidade dos espectadores, o que provoca maior possibilidade de identificação com as personagens, os novos heróis. Atualmente, três redes nacionais produzem telenovelas: Rede Globo, Rede Record e SBT. Porém, a audiência dessas é cada vez menor, um reflexo da popularização - das mudanças de comportamento da população em geral e até de certa saturação do gênero.

uso de blogs, twitters, podcasts e outros formatos de mídias sociais digitais são indícios do aumento do uso de plataformas móveis, como os celulares e aparelhos do gênero.

Além da digitalização das tecnologias de informação e comunicação, a globalização da televisão apresenta uma nova realidade para a teledramaturgia. Nesse sentido, parcerias comerciais entre empresas de comunicação são inevitáveis visando lucro rápido e vendas internacionais. O acordo entre a Rede Record e o grupo Televisa para a produção de telenovelas e o da Rede Globo com produtoras independentes como a H2O para a produção de seriados, são exemplos desta nova realidade do setor. Todos esses movimentos migratórios das tecnologias digitais, da televisão e da internet refletem o moderno negócio da comunicação que está afetando o imaginário tecnológico, a linguagem e o mercado cultural, as condutas dos usuários, a nova maneira de viver, o espaço e o tempo que as imagens geram ao nosso redor e principalmente as formas narrativas. Tempo e espaço não têm o mesmo significado que aprendemos nas experiências comuns ou mesmo com os demais meios de comunicação. Com as novas tecnologias, observa-se um novo ritmo: o tempo se acelera e o espaço se comprime. Há uma fragmentação do espaço, encolhimento e desaparecimento

S ouza

ção mais sérios de sua longa história na televisão brasileira.

de

Diante desse contexto, a telenovela passa por um dos momentos de transição e renova-

E dvaldo O lécio

liar, afinal o aumento da importância dos meios digitais é irreversível. A explosão no

Na realidade, a audiência na TV brasileira passa por um momento muito pecu-

e midiática

de mídias que roubam a audiência da TV aberta - como a TV a cabo e a banda larga

Convergência Tecnológica

são absolutamente diversos das tradicionais novelas ou minisséries. O romance cede

ficção seriada diante da

têm textos, imagens, sons, vídeos e títulos em multimídia e seus conteúdos são distri-

A

seus detalhes e análise recorrente do que já foi mostrado. Além disso, esses seriados

37


do espaço público, a desintegração da comunidade urbana Enfim, o espaço se entrelaça com o tempo e se atualiza adquirindo um caráter de mobilidade, emancipando-se das

lerar a construção cênica e vem incorporando modificações em seu formato: os merchandisings comerciais e sociais se tornaram mais uma exigência do gênero e as tramas ficaram cada vez mais complexas e cheias de personagens, algumas novelas ultrapassando a marca dos 120 personagens. Os problemas e conflitos da história são solucionados num espaço de tempo cada vez menor, exigindo dos autores criatividade para manter no ar mais de 200 capítulos. O roteiro passa a ter um aumento substancial no número de cenas, diminuição de falas, resultando em cenas mais curtas, e o uso constante de cenas de ação em contrapartida as cenas de diálogo. Embora ainda exista o papel do protagonista, percebe-se que os outros papéis deixam de ser tão secundários e suas funções não giram exclusivamente em torno da saga do protagonista, descentralizando a trama. Observamos o mesmo fator na direção onde as cenas são feitas com um número maior de cortes, proporcionando uma aceleração visual ao produto. Já com relação ao espaço, a TV está redimensionando as fronteiras do mesmo com relação aos enquadramentos na tela. Com a melhora na qualidade da imagem e a possibilidade de alta definição, a televisão deixa de ter uma imagem chapada e, assim como o cinema, passa a ter profundidade de campo. Interagir com tais conteúdos narrativos não mais significará simplesmente decidir entre dois ou mais finais para uma história, o telespectador poderá ter papel ativo na programação que até então apenas assistia. Através do controle remoto, o telespectador irá interagir com a programação realizando o Tcommerce (television commerce), ou seja, o público terá a possibilidade de comercializar pelo controle remoto algo mostrado no programa ou novela aos quais está assistindo. [...] cada “máquina” tecnossocial acrescenta um espaço-tempo, uma cartografia especial, uma música singular a uma espécie de trama elástica e complicada em que as extensões se recobrem, se deformam e se conectam, em que as durações se opõem, interferem e se respondem.

1 - n. 1

Nesse raciocínio, os conteúdos de teledramaturgia seguem a tendência de ace-

ano

Em vez de átomos que ocupam espaço, esse mundo é composto por bits. Em vez de percorremos extensos corredores, no mundo digital tudo está a alguns cliques de distância. Em vez de ser do mesmo jeito para todo mundo, tudo pode ser reorganizado para cada pessoa a cada tarefa (WEINBERGER, 2006, p.6).

Revista GEMI n IS |

restrições naturais do corpo humano.

38


rentes a essa realidade tecnológica. Até os anos 90, produziu-se para a televisão. Agora, toda a produção multimídia é multiformato. Os seriados de televisão e a informação televisiva ou jornalística são emitidos pela internet e podem ser vistos na tela do comlogias da comunicação não se destinarão apenas a produzir informação ou conteúdos, mas, principalmente, a gerir as relações com usuários. Desse modo, abre-se espaço para novos serviços, tais como a comunicação de dados de alta velocidade, os jogos eletrônicos, o comércio virtual, o Vídeo On Demand (VOD) e até a consulta a e-mail e o envio canal” ou interromper a programação que está sendo assistida. Na mesma linha, as emissoras também poderão enviar dados adicionais so-

novela. Também será possível acrescentar uma pesquisa em que o telespectador eleja, por exemplo, seu personagem favorito de uma dramaturgia, com os resultados parciais

gramas de educação à distância até consulta a dados de imposto de renda. Com esse panorama, a tendência da teledramaturgia é de incorporar as tecnologias de comunicação digital e todas as suas possibilidades, incluindo interatividade, fragmentação da narrativa, simultaneidade de ações e descentralização da figura do autor, elementos que ampliam os limites da representação dramática tradicional e exploram um ambiente de comunicação ainda desconhecido, pleno de possibilidades de interação entre autores e receptores, se aproximando do experimentalismo e do discurso cinematográfico e de outras formas estéticas. Afinal, o aparelho de TV deixa de ser um terminal passivo e o espectador se torna usuário, aumentando sua possibilidade de interação com o conteúdo exibido. Enfim, o que assistiremos com a Televisão Digital possivelmente será a construção de uma verdadeira paisagem audiovisual, na qual os limites e fronteiras entre as diversas manifestações culturais estruturadas em torno da imagem em movimento aparecem dispostos de forma muito fluida e híbrida permitindo que se crie um novo

S ouza

pectadores/usuários aplicações que vão desde notícias, informações sobre saúde e pro-

de

sendo exibidos simultaneamente. Enfim, a transmissão digital permitirá levar aos es-

E dvaldo O lécio

biografias dos atores, perfil dos personagens e resumo dos últimos capítulos de uma

bre a programação que está sendo transmitida, como estatísticas e informações sobre

e midiática

de mensagens instantâneas por meio da tela de TV, sem que seja necessário “mudar de

Convergência Tecnológica

putador e do telefone celular. Porém, ainda segundo Vilches (2003), todas essas tecno-

ficção seriada diante da

De acordo com Vilches (2003) os conteúdos modernos não poderão ser indife-

39 A

A multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte (LEVY, 1998, p.23).


formato para a teledramaturgia: o hiperseriado. “É provável que o primeiro passo na direção de um novo formato ‘hiperseriado’ seja a estreita integração entre um arquivo 2003, p.237) Certamente, uma das principais características desse hiperseriado é procurar novas formas de tornar a experiência de assistir televisão ainda mais atraente e diverti-

Agora cada vez mais o meio é o conteúdo, a tecnologia e a linguagem. E é por tudo isso que o produtor de conteúdo audiovisual deverá pensar numa nova linguagem e não apenas em modos de produção com uma linguagem baseada na televisão convencional. Ele deve se aproximar ainda mais do telespectador fazendo com que este aprenda uma nova linguagem de uso dessa mídia. Portanto, devemos abordar novas estratégias de gestão centradas em posturas de mercado, onde os conteúdos digitais tornam-se uma questão central, incluindo a transição da Televisão analógica para a Televisão Digital e demandas como a televisão de alta definição, vídeo-on-demand, movies, canais temáticos, multicast ou a distribuição do mesmo conteúdo em diferentes canais, o conteúdo da Internet na televisão, vídeo segmentados em computadores pessoais, compras e jogos interativos, guias de programação. Porém, o grande desafio na criação e produção dos conteúdos é a agregação de valores, criação de modelos de negócio, respeito de direitos integrando oportunidades, dados dos programas de TV e compreender as receitas que estes poderão gerar levando em consideração quantas e quais espécies de “micro-nichos” de serviços são economicamente viáveis, compatíveis e aceitáveis para tal negócio. Para tal produção, deve se respeitar as características próprias de cada plataforma, as especificidades de cada sistema digital, sua legislação, suas questões éticas e moral e a própria relação de interação com o telespectador/usuário. Dessa forma, a produção de determinados tipos de conteúdos podem ser mais ou menos atraentes. Porém, com tantos suportes digitais sendo oferecidos, alguns questionamentos se tornam pertinentes: será que os produtores irão oferecer conteúdos para cada plataforma? Na ausência de uma massa crítica de conteúdo, os consumidores terão incentivo suficiente para comprar uma nova caixa digital ou será que vão ter de adquirir mais de um caixa para receber uma massa crítica de conteúdo atraente? Outra questão de análise se concentra na evolução dos sistemas digitais e na criação de novos modelos com características avançadas que substituem rapidamente os modelos antigos. Nesse

1 - n. 1

dades de expressão e relacionamento, enfim, criando novas linguagens.

ano

da aliando as novas tecnologias de interação e transmissão, ampliando-se as possibili-

Revista GEMI n IS |

digital, como um site da web e um programa transmitido pela televisão”. (MURRAY,

40


sentido, os conteúdos criados poderão ter curto prazo de validade ou serão compatíveis com sistemas mais recentes?

essas mídias que sejam complementares, sem que o consumidor que optar por não acompanhar todas as vertentes fique perdido no produto principal por meio de uma linha geracional que englobe toda a cadeia produtiva para que assim possa atingir o grau de exigência de seu telespectador hipermidiático. Ou seja, para se produzir conteúdos tes disponibilizados, no qual as pessoas acabam indo atrás do conteúdo que mais lhe interessam e que estão relacionados com o seu cotidiano e assim, elas deixam de atuar como meros espectadores e se transformam em colaboradores. Segundo Henry Jenkins (2008), deve se elaborar uma narrativa que se desenroe valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio atua naquilo que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser

produto funciona como um ponto de acesso à franquia como um todo. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do

dância acabaria com o interesse do fã e provocaria o fracasso da franquia. Sendo assim, oferecer novos níveis de revelação e experiência renova a franquia e sustenta a fidelidade do consumidor. A lógica econômica de uma indústria de entretenimento integrada horizontalmente – isto é, uma indústria onde uma única empresa pode ter raízes em vários diferentes setores midiáticos – dita o fluxo de conteúdos pelas mídias (JENKINS, 2008, p.135) Outra característica que se deve observar se refere ao consumo midiático dos novos nichos da cibercultura. Afinal, a TV e a ficção seriada estão migrando para os formatos digitais e os telespectadores têm expandido suas intervenções, seguindo o rastro das narrativas ficcionais através do ciberespaço (nos sites sobre telenovelas, nos blogs, nas listas de discussão, nas comunidades virtuais). Outro fato que se torna relevante é a incorporação das temáticas de cidadania, inclusão social e meio ambiente na produção de conteúdos para a TV Digital contemplando as múltiplas possibilidades da convergência midiática como uma estratégia de

S ouza

uma profundidade e intensidade de experiências, motivando mais consumo. A redun-

de

game, e vice-versa. A compreensão obtida por meio de diversos tipos de mídia sustenta

E dvaldo O lécio

games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Sendo assim cada

expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em

e midiática

la através de múltiplos suportes, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta

Convergência Tecnológica

voltados para essa nova realidade, é preciso explorar a gama de conteúdos convergen-

ficção seriada diante da

nhe a evolução das novas plataformas tecnológicas. É preciso elaborar ações em todas

A

Mediante tal contexto, deve se criar uma proposta de narrativas que acompa-

41


gestão e geração de produtos de qualidade, de baixo custo. Tal incorporação implica na possibilidade de promover a formação crítica do telespectador, cumprindo com os sustentável, de inclusão social, cultural, de educação digital e, por fim, da hospitalidade que a Televisão Digital brasileira se propõe.

BRITTOS, V.C. Televisão, concentração e concorrência no capitalismo contemporâneo. In: V.C. BRITTOS. (Org.). Comunicação na fase da multiplicidade da oferta. Porto Alegre: Nova Prova, 2006. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2006. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. LÉVY, Pierre. O Que é Virtual?. São Paulo: Ed. 34, 1998. MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: O Futuro da Narrativa no Ciberespaço. Tradução Elissa Khoury Daher e Marcelo Fernandez Cuzziol. Editora UNESP, ITAÚ Cultural, 2003. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Cia das Letras, 1998. VILCHES, Lorenzo. A migração digital. São Paulo, Edições Loyola, 2003. WEINBERGER, Davis. A nova desordem digital: os novos princípios que estão reinventando os negócios, a educação, a política, a ciência e a cultura. Rio de Janeiro: Campus, 2007.

1 - n. 1

BALOGH, Anna Maria. O discurso Ficcional na TV. São Paulo, EDUSP, 1993.

ano

Referências

Revista GEMI n IS |

papéis informativos, educativos, de socialização do conhecimento, de desenvolvimento

42


Web - séries no contexto dos U niversos N arrativos Expandidos Thiago A ltafini Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Ufscar, com a pesquisa intitulada Documentário de Arquivo - Filme de Compilação. Dedica-se a produção artística no campo da fotografia e do audiovisual. Pertencente ao corpo docente da Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de Piracicaba. E-mail: taltafini@gmail.com

A lessandro G amo Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (2006), professor adjunto do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: alessgamo@yahoo.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 43 - 52


Resumo Este artigo aborda o formato web-série por meio do conceito de narrativa transmídia, e contextualiza esse produto audiovisual no panorama da “cultura da convergência”. Como objeto de análise serão utilizadas as produções The Cell, da Fox Int ernational e Flying Kebab, produção nacional independente. Palavras - chave: web-série, cultura da convergência, narrativa transmídia.

A bstract This article discusses the format webserie through the concept of transmedia narrative, and contextualizes this audiovisual product in the landscape of “convergence culture.” As the object of analysis are used productions The Cell (Fox International) and Flying Kebab (independent production). Keywords: web-series, convergence culture, transmedia storytelling.


O mercado criado pela internet envolve a necessidade da criação de um mundo em que não somente os produtores oficiais produzem conteúdo, mas também os consumidores ativos podem vir a desdobrar os produtos que se desenvolvem nesse universo, de forma a explorar os limites que a obra produzida não ousou ou não quis explicitar. Certamente, a relação de envolvimento entre consumidor ativo e produtor será uma das interfaces mais importantes para a produção audiovisual e sua lucratividade para os próximos anos. (MASSAROLO; ALVARENGA, 2009,p.1)

A Cultura da Convergência

H

enry Jerkins, autor do livro Cultura da Convergência (2008), afirma que narrativa transmidiática é aquela que se desenvolve por meio de diferentes plataformas de mídia. Não se trata de narrar o mesmo em multiplataforma. Cada

conteúdo veiculado em diferentes mídias contribui de maneira distinta para o todo. Segundo o autor, A circulação de conteúdos – por meio de diferentes sistemas midiáticos, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras nacionais – depende fortemente da participação ativa dos consumidores. Meu argumento aqui será contra a idéia de que a convergência deve ser compreendida principalmente como um processo tecnológico que une múltiplas funções dentro dos mesmos aparelhos. Em vez disso, a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos. (JENKINS, 2008,p.27)

Em uma forma hipoteticamente ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o seu melhor. Um projeto pode ser introduzido através de um filme para cinemas, ser expandido por um seriado de TV, romance ou quadrinhos. Seu universo ainda pode ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões, etc. Cada acesso aos derivados do primeiro produto deve ser autônomo, para que não seja preciso necessariamente consumir um produto para aprovar ou compreender um


outro do mesmo “universo”. Cada produto determinado é um vetor de acesso ao “universo narrativo” do projeto.

Neste contexto de convergência, a outrora posição passiva do expectador dian-

cipando ativamente do processo de transmidialidade, atuando muitas vezes também como um produtor de conteúdos alternativos e gerando novas demandas. A redução dos custos relativos à tecnologia de produção audiovisual e as possibilidades franqueadas de veiculação via internet, são fatores determinantes neste processo. Surge um consumidor “especialista”, ou heavy user, pertencente a um grupo que assimila uma grande quantidade de informações e passa a decodificar e mesmo produzir conteúdos consumidos pelos light users, ou espectador ingênuo, mais facilmente influenciado pela mídia tradicional. Nesse sentido, Massarolo e Alvarenga (2009) afirmam que: O trabalho em conjunto permite acordos táticos, antecipações, análise de pistas sobre locações, previsões sobre o vencedor, além de testar novas hipóteses que possam conduzir à resolução do problema. Nesse processo, a figura do fã, que durante muito tempo permaneceu em segundo plano na indústria do entretenimento, torna-se um dos principais agentes da economia digital, mesmo que o seu talento ou a sua especialização não seja reconhecido pelo mercado tradicional ou pela Academia.(MASSAROLO; ALVARENGA, 2009,p.4)

Por outro lado, a ação desse novo tipo de consumidor especialista estimula a indústria do entretenimento a um processo de complexificação das estratégias narrativas. Esse processo de complexificação narrativa considera o nicho de mercado do consumidor especialista. Na narrativa contemporânea existem camadas de informação que podem ser assimiladas ou reconhecidas de formas diversas de acordo com o grau de conhecimento do consumidor em relação à diegese de determinado produto ou mesmo do nível cultural do consumidor. O conceito de diegese talvez seja insuficiente para compreender esse universo narrativo expandido para multiplataforma. Poderíamos aliás, classificar as produções narrativas seriadas num continuum que leva em consideração as diversas graduações do contrato de leitura entre texto e leitor de segundo nível ou leitor crítico (como sendo o oposto do leitor ingênuo). É evidente que até

1 - n. 1

Esse novo consumidor passa a atuar como um “porta-voz” do produto, parti-

ano

te do produto midiático passa por significativa transformação.

Revista GEMI n IS |

Cultura Participativa

46


Neste contexto de convergência digital, as empresas produtoras de conteúdo de produção e distribuição, variados produtos de uma mesma “franquia”. Um projeto audiovisual não se restringe mais somente à produção de um filme ou uma série de TV, mas é concebido visando uma veiculação multiplataforma: salas de cinema, celulares, notebook, televisão de sinal aberto e fechado, sistema home-vídeo, pay-per-view, parques temáticos, publicações, trilha sonora, videogames. O acesso irrestrito às ferramentas tecnológicas de produção audiovisual e à in-

verso crescente de possibilidades para o expectador, como uma obra pode se destacar? Jenkins cita o filósofo Umberto Eco em sua reflexão sobre o filme “Cult”, quando levanta algumas características que tornam uma obra audiovisual referência, ou sua capacidade de construção de uma rede de fãs: [...] “um universo completamente guarnecido, para que os fãs possam citar personagens e episódios como se fossem aspectos do sectário universo particular.” Segundo, o universo deve ser enciclopédico, contendo um rico conjunto de informações que possam ser estudadas, praticadas e dominadas por consumidores dedicados. O filme não precisa ser bem-feito, mas deve fornecer recursos que os consumidores possam utilizar na construção de suas próprias fantasias: “A fim de transformar uma obra num objeto cult, deve-se poder fragmentá-la, desarticulá-la, para que se possa lembrar apenas de partes dela, desconsiderando a relação original das partes com o todo”. (JENKINS, 2008,p.137)

Exemplos de produções bem sucedidas que tornaram-se “Cult” e que desenvolveram um conceito transmídia por meio de um universo narrativo expandido são as séries cinematográficas Matrix (EUA), de Andy Wachowski & Larry Wachowski, Star Wars (EUA), de George Lucas e Harry Potter (EUA/Inglaterra), baseada em livro de J. K.Rowling. No campo da televisão um exemplo significado é a série norte-americana

Thiago A ltafini - A lessandro G amo

divíduo ou grupo pode produzir conteúdo e buscar seu nicho de audiência. Neste uni-

ternet como vetor desse processo de convergência possibilita que, em tese, qualquer in-

U niversos N arrativos Expandidos

são obrigadas a pensar processos sinérgicos que possam aliar numa mesma estratégia

no contexto dos

Multicanalidade

47 Web - séries

o produto narrativo mais banal permite ao leitor constituir-se, por decisão autônoma, em leitor crítico, isto é, em leitor que decide avaliar as estratégias inovadoras, ainda que mínimas, ou registrar a ausência de inovação. Há porém obras seriais que estabelecem um pacto explícito com o leitor crítico e por assim dizer o desafiam a destacar as habilidades inovadoras do texto. (ECO, 1989,p.129)


Lost, produção da rede de TV ABC e idealizada por J.J. Abrams. Esta série é um fenômeno mundial em termos de inovação em seus desdobramentos transmidiáticos, tanto mobilização dos fãs. O planejamento de produção de um projeto audiovisual na contemporaneidade deve levar em consideração a possibilidade de criação de universos narrativos

considerar e estimular os desdobramentos que este projeto pode desencadear em termos de participação e mesmo produção de conteúdo por parte dos próprios fãs, seja em forma de fóruns de discussão sobre esses universos, seja através de fãs-filmes, blogs, websites, quadrinhos, layouts, etc. Web-séries O objetivo específico deste artigo é refletir, a partir do conceito de narrativa transmidiática, sobre projetos de ficção audiovisual seriada nos quais a proposta original é a veiculação via internet. São as chamadas web-séries. Web series renew narrative strategies that have been already consolidated for some time on television. But they incorporate online resources like active participation from the audience in the story’s progress and the ease which this interactive medium allows for the generation of virtual communities - something which is key to consolidate the series´ fictional universe. (ROMERO; CENTELLAS, 2002)

Trata-se de produções audiovisuais que já em suas concepções negligenciam os meios tradicionais de exibição e estimulam desdobramentos transmidiáticos. Hosted on entertainment sites or websites created ad hoc, web series extend the fictional universe through virtual on-line communities that constitute a significant meeting point for the series´ followers. These are spaces where the user stops being a consumer of contents and becomes an active subject interacting with other members of the community concerning the plot, which sometimes goes on building it one episode at a time. The registered user has access to all the inherent advantages of the virtual community: viewing new episodes, accessing exclusive content for members of the community and detailed biographies of the stars, the making of, trailers, participating in debate forums concerning the characters and the story’s development, access to exclusive chat zones, emails

1 - n. 1

narrativo em termos de complexidade deve extrapolar a própria obra, para permitir,

ano

expandidos produzidos e distribuídos em multiplataforma. A dimensão desse universo

Revista GEMI n IS |

aqueles provocados ou produzidos pela própria produção ou outros decorrentes da

48


profundamente quanto à sua origem: 1 - Produção Corporativa:

bilizada no Brasil em 07 de outubro de 2008 no website: http://season1.thecell.tv/ The Cell é o primeiro projeto de seriado ficcional específico para internet e mobile realizado pela Fox. A produtora da série é a empresa de origem holandesa Endemol. Sinopse: The Cell é a história de Spence, um jovem que está preso em uma cela suja, sem saber onde está nem quem o mantém ali. Spence encontra um celular na cela, por meio do qual ouve uma voz misteriosa. Quem é essa pessoa, onde Spence está? Ele

pés. Quando vai a Bogotá, capital da Colômbia, Spence se envolve no lucrativo e perigoso mundo das lutas ilegais de boxe. Bogotá dará a Spence tudo que ele mais quer na vida? Quem é a bela mulher que ele viu em sua primeira noite na cidade? E será que ele vai poder ajudar um amigo a parar de cometer os mesmos erros de sempre? O produto central de The Cell é a série ficcional onde a primeira temporada é dividida em 20 capítulos de 2 minutos cada. Nota-se aqui uma adequação da estrutura da série à atual fase da internet de limitação de transmissão de informação, o que pode ser considerado somente como um estágio do desenvolvimento da tecnologia. A narrativa é construída em dois “plots” simultâneos: o primeiro mostra o personagem Spencer na misteriosa cela e sua aventura para escapar. Paralelamente acompanha-se o processo de chegada de Spencer em Bogotá, a apresentação dos personagens e do universo da ação, e os fatos que conduzem o personagem para a situação de encarceramento. No final, as ações desses dois “plots” coincidem. A cenografia é praticamente toda virtual e em alguns momentos, bem precária. Os atores contracenam em fundo verde e toda a ambientação é inserida posteriormente por meio de cromakey. Além de uma questão de economia de recursos, é como se os produtores optassem também por uma “estética de fã” como uma estratégia de aproximação com um público já iniciado neste tipo de desdobramento contemporâneo.

Thiago A ltafini - A lessandro G amo

The Cell é também a história de Spence, um jovem que tem o mundo a seus

vai conseguir sair de lá? Ele está sozinho como imaginava?

U niversos N arrativos Expandidos

- The Cell - Produção da Fox Internacional. A primeira temporada foi disponi-

no contexto dos

Como objeto de análise, selecionei duas produções neste formato que diferem

49 Web - séries

and list serves... This way virtual communities are a key part of the strategy to achieve greater audience indexes for web series, but at the same time actively boosting loyalty to the site hosting it. (ROMERO; CENTELLAS, 2002)


A plataforma de veiculação deste conteúdo é um website específico dividido nas seguintes categorias: • Jogo: página que contém um game no estilo “point and click”, no qual o personagem Spence deve explorar o cenário e seguir instruções para conseguir sair da prisão. As fases são curtas seguindo o conceito dos capítulos da série;

tura destas informações determina uma compreensão mais aprofundada do universo narrativo. Como complemento destas informações e desdobramento transmídia, o usuário tem a possibilidade de acessar o perfil do personagem principal, Spence, na comunidade virtual de relacionamento Facebook, um processo de transposição entre os universos hiperdiegético e real/virtual. Curiosamente esse perfil no Facebook apresenta o personagem Spence como fã de um músico argentino real residente em Buenos Aires chamado Gustavo Adrián Cerati. Talvez seja uma forma que os produtores encontraram de disponibilizar uma informação estética real do suposto universo latino-americano da série; • Extras: página que disponibiliza wallpapers relacionados à série, fotos de cena, um making of em vídeo e um animatic produzido com o que parece ser um storyboard do primeiro capítulo. Observação: The Cell tem continuidade em uma segunda temporada. A exemplo de muitas séries televisivas, a segunda temporada é melhor elaborada, em termos narrativos e visuais. Apresenta novos personagens e está dividida em menos capítulos (10) com maior duração cada (de quatro a aproximadamente seis minutos). Essa segunda temporada estreou no Brasil em outubro de 2009. 2 – Produção Independente: - Flying Kebab – Produção independente nacional sob responsabilidade das produtora Eoqhá de São Paulo em co-produção com a produtora Colmeia, também de SP, por meio do website Enxame.tv, que também exibe a série -http://flyingkebab.com/pt/ Sinopse: Nando, o personagem principal, é um fotógrafo que passa um ano procurando por uma herança no Líbano. Como proposta transmídia dos produtores, a aventura do personagem Nando continua no seu Flickr e Twitter, onde os espectadores da série podem receber atualizações constantes. Segundo texto do repórter Bruno Gallo publicado no jornal O Estado de São

1 - n. 1

• Personagens: página com a “gênese” detalhada de cada personagem. A lei-

ano

• História: página com a sinopse do universo narrativo;

Revista GEMI n IS |

• Episódios: página em que estão disponíveis os capítulos da temporada;

50


Paulo no dia 17 de Agosto de 2009, o projeto de Flying Kebab surgiu quando um trio de amigos, formado por Matheus Siqueira (estudante de Jornalismo e diretor da série), Produção Editorial e produtor do projeto), resolveu aproveitar de forma criativa a expecidade de Beirut: “...e na bagagem levaram a vontade de produzir um trabalho autoral e que explorasse o potencial da internet para contar uma boa história.” Portanto, não houve nenhum planejamento de produção prévia e a série tem imponderabilidade. A narrativa de Flying Kebab, apesar de misteriosa, é muito simples e superficial. O roteiro original é de autoria de Daniel Prata. O maior destaque fica para a ágil edição, fotografia com ângulos de câmera e tratamento de cores inusitados, numa linguagem que se convencionou chamar de “jovem”. A trilha sonora é presente em demasia com predominância de músicas étnicas. Na maioria dos capítulos até o quinto e último na ocasião desta análise, o idioma predominante é o inglês.

tro”. A trama se amplia no Twitter (@nandoborges) e no Flickr (www.flickr.com/fernando_borges) pessoais de Fernando Borges, o Nando, protagonista da trama. Assim como ele, todos os demais personagens também usam seus nomes verdadeiros na série. No quinto capitulo há também menção na narrativa ao site de relacionamento Facebook. Por enquanto a série é composta por esses cinco capítulos. Os produtores ainda não sabem quantos capítulos a série vai render, mas deve terminar em fevereiro de 2010, quando a equipe retorna ao Brasil. Conclusão Se o paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias substituiriam as antigas, o emergente paradigma da convergência presume que novas e antigas mídias irão interagir de formas cada vez mais complexas. O paradigma da revolução digital alegava que os novos meios de comunicação digital mudariam tudo. Após o estouro da bolha pontocom, a tendência foi imaginar que as novas mídias não haviam mudado nada. Como muitas outras coisas no ambiente midiático atual, a verdade está no meio-termo. Cada vez mais, líderes da indústria midiática estão retornando à convergência como uma forma de encontrar sentido, num momento de confusas transformações. A convergência é, nesse sentido, um conceito antigo assumindo novos significados. (JENKINS, 2008,p.30-31)

Thiago A ltafini - A lessandro G amo

bab, gostam do projeto e, de forma voluntária, resolvem participar de um modo ou ou-

Segundo o diretor Matheus Siqueira, “muitas pessoas assistem ao Flying Ke-

U niversos N arrativos Expandidos

um forte apelo documental, incorporando personagens reais e rápidas situações de

no contexto dos

riência de passar alguns meses trabalhando numa emissora local de TV do Líbano, na

Web - séries

Fernando Borges (fotógrafo e protagonista da história) e Cléderson Perez (estudante de

51


A proposta deste artigo foi refletir, sob influência de conceitos como convergência digital, cultura participativa e narrativas expandidas / transmidiáticas, de forma porâneos, que utilizam não mais a TV como plataforma principal de lançamento e veiculação, mas sim a internet. O caráter antagônico dos projetos em relação as suas origens, onde um é produ-

so barateado às tecnologias de produção audiovisual e principalmente, de condições de igualdade que a plataforma internet permite em relação à distribuição e veiculação. Os dois projetos utilizam desdobramentos transmidiáticos como expansão da narrativa e como forma de possibilitar a interação com os espectadores. “a convergência representa uma mudança no modo como encaramos nossas relações com as mídias. Estamos realizando essa mudança primeiro por meio de nossas relações com a cultura popular, mas as habilidades que adquirimos nessa brincadeira têm implicações no modo como aprendemos, trabalhamos, participamos do processo político e nos conectamos com pessoas de outras partes do mundo.” (JENKINS, 2008, p.49)

Referências ECO, Umberto. A inovação no seriado. In: Sobre Espelhos e Outros Ensaios, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008. MASSAROLO, João Carlos; ALVARENGA, Marcus Vinícius Tavares de. A Indústria Audiovisual e Os Novos Arranjos da Economia Digital. PPGIS – Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – São Paulo, 2009. Disponível em: < http://sites.google.com/site/joaocarlosmassarolo/>. Acessado em 12 jul. 2010. ROMERO, Nuria Lloret; CENTELLAS, Fernando Canet. New stages, new narrative forms: The Web 2.0 and audiovisual language. Scientific Area of Library and Information Sciences, Department of Journalism and Audiovisual Communication, University Pompeu y Fabra, Barcelona, Espanha, 2002.

1 - n. 1

lizadores iniciantes, reflete o processo participativo da cultura digital por meio do aces-

ano

to de uma grande corporação e o outro é uma produção independente por parte de rea-

Revista GEMI n IS |

analítica e não comparativa, aspectos de dois projetos de seriado audiovisual contem-

52


Viver

a Vida no limiar da tela : a narrativa transmĂ­dia chega Ă novela M aĂ­ra Valencise G regolin Doutoranda do Departamento de Multimeios, Instituto de Artes/Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). E-mail: valencise@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 53 - 67


Resumo Este artigo propõe tomar como objeto de estudos um fenômeno que os estudiosos das relações entre mídias e sociedade denominam “narrativa transmidiática” por meio da análise do blog Sonhos de Luciana como extensão da trama da telenovela Viver a Vida. Nossa análise focaliza as estratégias utilizadas pela Rede Globo para incorporar ferramentas de produção e circulação de conteúdos na telenovela a fim de se reinventar enquanto gênero da contemporaneidade. Analisamos a narrativa transmídia como promotora de uma nova relação entre a telenovela e sua audiência, na medida em que constitui um novo espectador que passa a usuário produtor de conteúdos. Ao tomarmos o universo da telenovela Viver a Vida, procuramos refletir sobre o funcionamento e as configurações da narrativa transmídia, sob três pontos de vista: da narratividade (transformações da trama pela cooperatividade dos espectadores/ usuários); do envolvimento (constituição de comunidades de conhecimento e fanfictions) e do sócioeconômico (transformações na produção e circulação de conteúdos; instalação do ativismo social pela transmídia). Palavras - chave: Seriado televisivo; narrativa transmidiática; telenovela; usuário gerador de conteúdo.

A bstract This article is an attempt to take as object sudy a phenomenon that scholars of the relationship between media and society would call transmedia storytelling through analysis of Sonhos de Luciana blog as an extension of the plot of the Viver a Vida a pimetime soap opera from Rede Globo. Our analysis focuses on the strategies used by Rede Globo to incorporate tools of production and circulation of content in the soap in order to reinvent itself as a contemporary product. This article also tries to reflect about transmedia storytelling applying it to the soap opera and its relevance to the new spectator who becomes a user generated content (UGC). Keywords: Transmedia storytelling; soap opera; user generated content


1 Viver a Vida na tela (da Tv/ do computador)

O

conceito de “narrativa transmidiática” foi introduzido por Henry Jenkins (2008) a fim de nomear experiências narrativas que se expandem em vários meios e/ou plataformas (meios físicos de distribuição, como computador, lap-

top, celular, televisão, revistas, etc.). Esse fenômeno tem consequências de grande amplitude que se evidenciam em aspectos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos, etc. Protagonizada por Tais Araújo, que interpreta a modelo Helena, a telenovela Viver a Vida estreou na Rede Globo em 14 de setembro de 2009 e teve seu último ca-

pítulo exibido em 14 de maio de 2010. De autoria de Manoel Carlos, Viver a Vida foi veiculada sob direção de Jayme Monjardim e abordou a temática da superação, como a da personagem Luciana (Alinne Moraes), modelo iniciante que se torna paraplégica após um acidente de carro. Ela se torna, então, uma “cadeirante”, termo politicamente correto, insistentemente utilizado na novela, que se incorporou à fala cotidiana dos telespectadores. O blog Sonhos de Luciana foi anunciado pela primeira vez no episódio de 26 de janeiro, pela irmã de Luciana, a personagem Mia (interpretada por Paloma Bernardi), que a incentivou a contar suas experiências durante a recuperação do acidente, para que outras pessoas pudessem se inspirar naquela demonstração de superação. A vinda do consultor Jeff Gomez1 ao Brasil para oferecer workshop ministrado à equipe de produção da Rede Globo coincidiu com o início do blog Sonhos de Luciana. Gomez procurou mostrar as possibilidades oferecidas ao se contar histórias pelas múltiplas plataformas de mídia, ampliando o envolvimento dos fãs com a obra. Em 08 de fevereiro, o blog entrou no ar2 com mensagem de boas vindas à personagem, reproduzida na Figura 1 a seguir.

1 Jeff Gomez é especialista em narrativas transmidiáticas e foi responsável pelo desenvolvimento de projetos transmidiáticos de filmes como Avatar e Transformers. 2 Disponível em no link http://especial.viveravida.globo.com/sonhos-de-luciana/2010/02/08


56 Revista GEMI n IS |

Figura 1 Primeiro post do blog Sonhos de Luciana, escrito pela personagem Mia, sua irmã na telenovela.

ano

1 - n. 1

A partir dessa data, Luciana passa a escrever diariamente no blog, com informações sobre o seu dia a dia. O blog assume, assim, a função de uma mídia que vai se articular com o universo de Viver a Vida, adicionando informações à narrativa televisiva. Entre a tela da TV e a do blog trama-se a vida das personagens. Os fãs passam a viver essas vidas experimentando, pela primeira vez na história das telenovelas brasileiras, as narrativas transmidiáticas. 2 Transformações da narratividade pela cooperatividade dos espectadores / usuários Diferente de outros gêneros televisivos, a telenovela se caracteriza pela serialidade, por meio da qual é possível que a trama seja conduzida por semanas, meses e, em alguns casos, por anos. Em outros gêneros, os episódios individuais possuem uma estrutura com começo e final. Isso não ocorre com a telenovela, pois nela a continuidade é outra característica essencial. Em Viver a Vida, alguns eventos que ocorreriam nos capítulos seguintes da novela eram antecipados no blog. Isso ocorreu em diversas situações, como no post em que Luciana apresenta sua cadeira de rodas motorizada, dialogando com os leitores diretamente ao afirmar: “vejam que linda minha mais nova companheira!”. Outros eventos, no entanto, seriam veiculados exclusivamente no blog, como o pedido de casamento feito por Miguel a Luciana, reproduzido na Figura 2 a seguir.


57 Viver

Figura 2 Pedido de casamento de Miguel para Luciana.

a

Vida

buir com informações complementares de forma distinta e valiosa à trama principal. Idealmente, cada meio oferece contribuição singular para a coerência da narrativa. Assim, apenas a audiência que migrou para o blog pôde conhecer a maneira como Miguel pediu a mão de Luciana em casamento. O pedido de casamento, materializado na ima-

os elementos de uma obra ficcional são dispersos sistematicamente por meio de múltiplos canais de distribuição a fim de criar experiências de entretenimento unificadas e coordenadas. No blog, a personagem Luciana usa linguagem acessível e informal para contar suas dificuldades como cadeirante. A frequência com que recorria aos médicos, a descoberta de novos tratamentos, as sessões de fisioterapia, e até mesmo o uso do transporte coletivo, foram assuntos abordados insistentemente no blog. Essa linguagem cotidiana criou empatia e intimidade entre a personagem e os leitores do blog. Além disso, a possibilidade de fazer comentários sobre cada post entrelaçou os diálogos entre leitores e personagem. Com uma média de 170 comentários diários, os leitores utilizavam aquele espaço para incentivar a personagem, contar suas próprias experências ou sugerir novos rumos para a trama. Em alguns casos, Luciana fazia referências diretas aos comentários, fortalecendo a sensação de realismo, como se pode perceber no post abaixo (Figura 3).

M aíra Valencise G regolin

um efeito real no fictício. A narrativa transmidiática representa um processo no qual

gem de um bilhete que simulava um manuscrito, cria a verossimilhança e imprime

no limiar da tela : a narrativa transmídia chega à novela

Jenkins (2008) afirma que, na narrativa transmidiática, cada mídia deve contri-


Figura 3 – Post escrito por Luciana em resposta a comentário de fã.

58 Revista GEMI n IS | ano

1 - n. 1

Considerando Askwith (2003), o blog como extensão diegética da telenovela oferece ao usuário a experiência do contato direto com o universo narrativo de forma imersiva. Ele estabelece com a audiência aproximação e envolvimento e, por isso, é uma poderosa ferramenta de encorajamento, que leva os usuários a se sensibilizarem e a se identificarem com as personagens. A interconexão narrativa entre TV e blog produz como efeito a imbricação entre realidade e ficção. Na Figura 3, percebe-se que a leitora interpreta o universo da telenovela como real. A função do blog, no âmbito da narrativa transmidiática, é contribuir com a sensação de realidade à trama. Para a leitora, a Luciana do blog é a mesma da novela, que irá se casar com Miguel. No entanto, no mesmo post, a leitora mostra que é capaz de diferenciar essa “realidade da novela“ do mundo real, entendendo o propósito do blog (apresentar as dificuldades do mundo dos cadeirantes) e curiosamente ela utiliza a palavra “realidade”. Para José Marques de Melo (1988), “a telenovela traz uma combinação de dois elementos básicos, quais sejam, uma “ficção sem fantasia” “e uma “moral doméstica”. Há, dentro dela, uma sincronia e uma homogeneidade, aglutinando o real e o imaginário, que fazem da ficção uma espécie de reflexo do real, incorporando ao enredo fatos concretos e situações contemporâneas. Pode-se perceber essa dualidade no vídeo disponibilizado no TV UOL3, que questiona se as pessoas acham que Luciana deve voltar a andar. O vídeo teve, em um período de quatro dias, cerca de 65 mil acessos e 430 comentários de usuários. Com quatro minutos, o vídeo traz as opiniões divididas das pessoas. O que há de comum na fala dessas pessoas é o destaque para o fato de a novela ser uma ficção. O engenheiro Leandro disse ”eu acho que vai ficar muito fictício se ela voltar a andar”. Outra entrevistada, a professora Fátima, afirmou: “como em novela tudo acontece, acredito que pode sim”. Cassiano, assistente administrativo, 3 Disponibilizado em 11/05/2010 no link http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/multi/2010/05/11/04021C346 2D0912366.jhtm?povo-fala-luciana-de-viver-a-vida-deve-voltar-a-andar-04021C3462D0912366


disse, “eu acho que devia ser um pouco mais realista e se ela voltar a andar pode causar falsas esperanças pra quem realmente tem esse problema”.

aos usuários, dizendo que gostaria de manter o segredo. O blog não faz referência direta à novela americana e passou a fazer parte da trama quando o pai de Luke apareceu na telenovela acessando o blog e descobrindo o segredo do filho. Essa mistura entre real e ficção foi um ponto forte na trama de Manoel Carlos. O autor utilizou procedimentos inovadores para produzir essa interrelação. Por exemplo, a certa altura da trama, em parceria com uma ONG (Organização Não-Governamental) carioca, a atriz Alinne Moraes acompanhou um projeto social de inclusão de deficientes, registrando o evento em fotos e colhendo depoimentos. Isso ocorreu na vida real com pessoas reais. No mesmo dia, Luciana postou no blog informações e imagens fotográficas feitas no evento e obteve inúmeros posts de leitores solidários que acompanhavam a sua passagem pela ONG. Esse evento foi também veiculado em capítulo da nove-

superior da tela onde Luciana escreve seu perfil no blog, aparece a seguinte mensagem: “informamos que este blog é fictício, extensão da trama da novela Viver a Vida, da qual a personagem Luciana faz parte.” Estranho jogo entre iludir e conscientizar, enquanto na tela da TV a vida fictícia se impõe pelo recurso ao real, na tela do blog ocorre o inverso: é o real que se afirma pela ficção. Entre um e outro cria-se a sensação da envolvimento; perceptivamente, cria-se a possibilidade de transitar de um mundo a outro, atravessar seus limites e incorporar a vida de um no outro. Segundo Jeff Gomez em entrevista ao Narrative Design Exploratorium5, o universo construído precisa possuir passado e futuro (Viver a Vida traz o acidente no passado e a possível superação no futuro), precisa estar povoado com personagens envolventes (Luciana é paraplégica e envolve os usuários com seus dramas do dia a dia) e precisa possuir algo que nos faça querer fazer parte dele (o blog convida o usuário a participar). Sonhos de Luciana dialoga com as personagens e eventos veiculados pela televisão, compondo a extensão diegética da telenovela. Dias antes do capítulo final ser veiculado, Luciana postou no blog sua intenção de engravidar, esclarecendo que já havia consul4 A telenovela As The World Turns foi objeto de pesquisa feita em 2007 por Samuel Ford, pelo Programa Convergence Culture do Massachusetts Institute of Technology. 5 Disponível em http://narrativedesign.org/2009/09/creators-of-transmedia-stories-3-jeff-gomez/

M aíra Valencise G regolin

limites, confundindo-os explicitamente. É interessante notar, entretanto, que no canto

la. A proximidade com os dois mundos (real e ficcional), nesse caso, atravessou os seus

no limiar da tela : a narrativa transmídia chega à novela

em http://lukesnyder.blogspot.com). Em um post, Luke revelou sua homossexualidade

Vida

americana As The World Turns4, já escrevia confidências em seu blog em 2006 (disponível

a

extensão da narrativa ficcional em telenovela. O personagem Luke Snyder, da novela

Viver

Em termos mundiais, essa não foi a primeira experiência de uso do blog como

59


tado seu médico e que ele afirmara ser perfeitamente viável. Esse anúncio preparava o espectador para o capítulo final da trama, que foi ao ar em 14 de maio, após oito meses será meu destino nessa história? Para incentivar os telespectadores a acessarem o blog, durante a exibição da telenovela, as personagens faziam referências constantes a ele. Essa estratégia contribuiu para o processo de migração de audiência entre as platafor-

de Viver a Vida. Ao final da novela, no dia em que o último capítulo foi veiculado pela televisão, Luciana escreveu em seu blog um post com o título “É hora de dizer adeus!, despedindo-se dos usuários com a justificativa de ‘dar um tempo no blog para me dedicar integralmente à nova vida”. Uma questão a ser pensada é se o efeito de terminalidade da trama se dá da mesma maneira nas duas mídias (TV e blog). Na novela, os espectadores já estão preparados para essa terminalidade – há todo um ritual social já estabelecido que determina o final –, no último capítulo, e todos podem tocar suas vidas, felizes com o happy end. E no blog, será que se produz esse mesmo efeito? Não ficará um certo desapontamento nos usuários, provocado pela natureza do envolvimento que essa mídia produz? 3 O envolvimento e a constituição de comunidades de conhecimento Diferente de pensar a comunidade de espectadores como passivos telespectadores, é preciso investigar os diálogos estabelecidos a partir do advento das mídias digitais. Tal abordagem coloca as telenovelas como mídia central na construção de redes sociais de fãs. A produção coletiva de sentidos motiva a audiência a acompanhar os episódios e a se inserirem no grupo. As discussões que se estabelecem, facilitadas pela internet, propiciaram uma nova dinâmica entre os produtores e consumidores. Tal mudança impactou a própria forma como a telenovela é planejada. O envolvimento dos espectadores com personagens ficcionais se confunde com a história da telenovela brasileira, como em Bandeira Dois, autoria de Dias Gomes e veiculada em 1971 pela Rede Globo. A novela exibia o submundo do jogo do bicho e trazia o bicheiro Tucão (interpretado por Paulo Gracindo) como personagem principal. A censura política, ativa naquele período, exigiu a morte da personagem justificando que o bem deveria triunfar sobre o mal. Havia tamanho envolvimento da audiência com a personagem que a sua morte levou mais de três mil pessoas às gravações do velório6 6 Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=FkM9PVjuROg&feature=player_embedded

1 - n. 1

como a mídia central e o blog Sonhos de Luciana como mídia secundária do universo

ano

mas (da televisão para a internet). Assim, a telenovela diária passa a ser compreendida

Revista GEMI n IS |

de exibição. Além disso, no blog há um desabafo de Luciana em que ela pergunta: qual

60


como forma de homenagem e despedida. O jornal carioca Luta Democrática publicou à época uma manchete com a importância de um fato real com o título Morreu Tucão

Ou, ainda, enviando cartas às revistas especializadas em telenovelas. Atualmente, os espaços multimidiáticos tornaram-se potenciais palcos de debate. É de se esperar que os meios tradicionais de diálogo entre público e produção continuem a existir, mas estarão cada vez mais ameaçados pelas novas mídias; nesse mesmo sentido, a inserção de novos meios e novas formas dialogais tenderão a provocar mudanças nos meios tradicionais, impelindo-os a se adequarem às novidades trazidas pelas outras plataformas. Pode-se pensar no princípio da multiplicidade de David Thorburn (1976) como um gancho de expansão para as outras plataformas, no qual o público da telenovela já se encontra familiarizado com a temática ou com personagens complexos, e isso constitui a base para gerar curiosidade e instinto exploratório que direciona às expansões narrativas. Segundo esse investigador, na mídia tradicional a ênfase era investida na

na emergência de múltiplos autores (autor do blog, espectador, autor da novela, diretor, etc.) contando e recontando com o intuito de construir um rico e variado universo que oscila entre o ficcional e o real. Figura 4 – Site que compõe o universo construído de Viver a Vida.

M aíra Valencise G regolin

ria controlada. No entanto, na narrativa transmidiática, a ênfase está na multiplicidade,

continuidade e no controle, assegurando a consistência das histórias por meio da auto-

no limiar da tela : a narrativa transmídia chega à novela

os telespectadores se comunicavam por meio de cartas com as equipes de produção.

Vida

sonagens, mas principalmente pelas reações da audiência ao longo da trama. Antes,

a

Historicamente, as novelas eram conduzidas não apenas pelas ações dos per-

Viver

(FERNANDES, 1997).

61


Ao lançarmos mão da noção de construção de mundos apresentada por Derek Johnson (2009), investigamos o contexto em que o universo da trama foi veiculado. Em da novela, visualizado na Figura 4. Pelo site, além de acessar o blog Sonhos de Luciana, pode-se acompanhar os capítulos anteriores, obter informações sobre os personagens, acessar o diário de viagem do diretor e o blog da produção etc.

depoimentos exclusivamente durante a transmissão da novela. Segundo Zacariotti & Costa (2006), tal fato não era bem recebido pelos espectadores, pois eles se ressentiam de que essa fala “real” quebrava o envolvimento do receptor com a história ficcional. Em Viver a Vida, manteve-se a transmissão ao final de cada capítulo, com uma versão mais sintética do depoimento. No site, encontrava-se disponível uma “versão estendida”, com vídeo e fotos de cada depoimento, para atrair espectadores desejosos de mais informações sobre aquelas pessoas. Na veiculação pela televisão, os depoimentos se constituíam em uma espécie de “paratexto”, complementar à trama já que, em alguns momentos, coincidiam com as temáticas desenvolvidas nos capítulos. Essa relação foi exemplar no penúltimo capítulo, quando foi veiculado o depoimento de Flávia Cintra, uma cadeirante vítima de acidente automobilístico e mãe de gêmeos. O extra-diegético antecipou o diegético. No último capítulo da novela, a personagem Luciana consegue engravidar e se torna mãe de gêmeos. Se entendermos diegese como sendo a realidade do mundo ficcional, “o universo do significado, o ‘mundo possível’ que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história”. (REIS; LOPES, 1988, p. 27), podemos afirmar que os depoimentos ao final de cada capítulo tiveram a função de criar uma ponte entre ficção e realidade. Ao mesmo tempo, eles estabelecem um elo narrativo (entre ficção e realidade) entre a TV e a internet e o espaço do site “portal da superação” pode ser entendido como uma extensão extra-diegética do universo construído da novela. Isso porque se relaciona com a diegese, traz informações complementares àquelas veiculadas na televisão e contribui para a narrativa principal. Além disso, esse ambiente no site propiciava a participação e envolvimento do usuário, possibilitando que contassem suas histórias enviando depoimentos em vídeo ou texto e gerando conteúdo para o portal. Algumas histórias eram selecionadas e regravadas para serem exibidas. Recurso comumente utilizado por produtores para convidar os usuários a participarem e influenciarem a trama é a clássica enquete com respostas sim ou não. Apesar de não ser uma ferramenta inovadora, a enquete cumpriu sua função de estimular a participação da audiência em Viver a Vida. Na enquete em que se questiona se Luciana deveria ou não engravidar, cerca de 565 mil usuários opinaram, sendo que 97% res-

1 - n. 1

pessoais que relatam experiências concretas de vidas. Até então, as novelas traziam

ano

O site traz ainda um espaço chamado “portal da superação”, com depoimentos

Revista GEMI n IS |

Viver a Vida, as extensões fornecidas pela produção estão disponíveis em um site oficial

62


ponderam que sim. As enquetes sempre tiveram papel importante para se conhecer o usuário e podem contribuir com dados estatísticos para se verificar o grau de envolvi-

a

plataformas.

Viver

mento do espectador com a trama e o próprio processo de migração de audiência entre

63

Um efeito colateral derivado dessa inédita produção de conteúdos por meio da

Vida

interconexão de plataformas começa a se delinear: em paralelo ao blog oficial da perso-

no limiar da tela : a narrativa transmídia chega à novela

nagem Luciana, uma usuária criou um outro blog7, com o mesmo nome Sonhos de Luciana, contando sua versão da história da novela. No primeiro post do blog, reproduzido na Figura 5, a autora diz “antes de mais nada, quero agradecer minha irmã por ter me presenteado com esse espaço”. Na trama da novela, a irmã de Luciana, Mia, cria o blog para ela. Ainda, a usuária do blog convida os leitores a contribuírem com ideias para o próximo post. Figura 5 – Primeiro post do blog Sonhos de Luciana, criado por usuária.

M aíra Valencise G regolin

Pela sua incipiência, não se concretiza, ainda, uma experiência de fanfiction8, já que a autora do blog afirma não ter qualquer vinculação direta com a trama da novela e diz ter o objetivo de problematizar a confusão entre realidade e ficção. Apesar desse esforço em desvincular-se da trama oficial da novela, o blog da usuária pode ser pensado como integrante colateral do universo de Viver a Vida, constituindo-se como uma extensão não-canônica da trama, já que sua aceitação foi extraordinária e recebeu a mesma média de comentários (cerca de 160) que o blog da Rede Globo. Para Jenkins, a inteligência coletiva é o processo social de aquisição de conhe7 Disponível em http://www.blogsonhosdeluciana.com.br/ 8 A definição que consta no site wikipedia é: ficção criada por fãs que não faz parte do enredo oficial da história a que faz referência.


cimento. A exemplo do convite aos leitores para participarem do percurso da narrativa construída no blog (Figura 5), pode-se pensar que a comunidade de conhecimento oferece tinuação da história dos personagens (JENKINS, 2008, p. 57). A amplitude alcançada pelo blog não oficial deve levar-nos a pensar em transformações na forma como a audiência passa a se relacionar com as produtoras de conteúdos, já que o acesso a ferra-

certamente, transformações econômicas. 4 A configuração Transmidiática na Economia Digital O processo de produção e circulação das narrativas transmidiáticas requer alto grau de coordenação entre diferentes setores de mídias, envolvendo uma teia complexa de franchising e licenciamento de produtos (BECHMANN PETERSEN, 2006, p. 95). Empresas de mídia atuais estão horizontalmente integradas e são incentivadas a disseminarem suas franquias pelas mais variadas plataformas de mídia. A atual configuração da indústria de entretenimento faz da expansão transmidiática um imperativo econômico e provoca transformações nos processos de consumo e produção. Pesquisadores e produtores identificam assim novas oportunidades de negócios para o marketing de mídia na medida em que novas gerações de consumidores desenvolvem perfil para lidar com essa corrente de histórias e se tornam caçadores de informação partindo de múltiplas fontes (SCOLARI, 2009). Nessa economia digital, um produto ou serviço não é mais vendido a partir do marketing persuasivo. Agora os objetivos são mais ambiciosos: procura-se criar um universo simbólico envolvido pelo significado da marca (SCOLARI, 2008). Nesse contexto, o site de Viver a Vida traz o ambiente “da tv para você”: um espaço para compra de roupas e acessórios usados pelas personagens na novela, compondo assim a Globo Marcas. Jenkins (2008) acredita que os produtos associados são extensões que podem dar um grande senso de realismo à ficção. Dentre os produtos com nomes das personagens em destaque, é possível adquirir a Sandália Helena ou o Kit Pingentes Mia. Em Viver a Vida, outras formas de merchandising foram exploradas a partir da apropriação do cotidiano como maneira de difundir ideias dentro de um produto de mídia. Para Marcio Shiavo (2002), essa apropriação é o merchandising social, a inserção de questões sociais com mensagens nas tramas das telenovelas. Em Viver a Vida, o autor amplia o merchandinsing para o blog de Luciana. Ao trazer a personagem cadeirante,

1 - n. 1

de conteúdo tenha a mesma visibilidade que as grandes produtoras. Disso decorrem,

ano

mentas de produção e circulação via internet permite que o usuário doméstico gerador

Revista GEMI n IS |

espaços de afinidade e o aprendizado é construído coletivamente ao re-imaginar a con-

64


a novela defende problemáticas sociais envolvendo temas reais na ficção. Na novela, a

65

personagem supera problemas e sofrimentos e aprende a Viver a Vida. O diálogo possi-

A narrativa transmidiática fortalece esse circuito de merchandising social e, desse modo, amplia as possibilidades de implementação de mudanças sociais. Pode-se pensar no universo de Viver a Vida como um embrião de um tipo ideal de narrativa transmidiática: o ativismo transmídia9, pensado por alguns teóricos como a narrativa transmidiática com poder da mudança social. Para esses teóricos, a transmídia pode ser uma forma narrativa poderosa de se comunicar a favor da mudança social. Ativismo transmídia é assim uma forma de conectar pessoas envolvidas em uma causa, pela sua exposição a uma variedade de mídias pelos vários canais de distribuição – os quais abrem espaços para diálogo e oferecem ao usuário experiências de aprendizado sobre o tema – e então trabalhando com um segmento de público mais criativo e engajado para facilitar a criação de seus próprios conteúdos que irão explicar a causa e inspirar ações

A narrativa transmidiática oferece novas formas de consumo da novela diária. A experiência relatada neste texto posiciona a Rede Globo como pioneira na construção de narrativa transmidiática em telenovela brasileira. Para compreender esse movimento alguns pontos foram essenciais. É importante destacar a ousadia da emissora ao utilizar o blog como extensão diegética do universo da telenovela, extraindo personagem de alta complexidade e apelo social. Trata-se de um campo aberto à investigação, com poucos estudos sobre essas experiências recentes de produção e circulação de conteúdos. O workshop de Jeff Gomez à equipe da Rede Globo coincidiu com o início do blog Sonhos de Luciana. Gomez continuará a influenciar as produções audiovisuais nacionais com outros projetos transmidiáticos. Com a proliferação de plataformas transmídias, assistiremos num futuro próximo a um maior envolvimento do usuário gerador de conteúdo: a fusão entre experiências realizadas em casa, pelo computador, pelo celular, pela televisão e cinema, pelo impresso etc. Essas plataformas já fazem parte do 9 O termo foi cunhado por Lina Srivastava para indicar o potencial de transformador social da narrativa transmidiática. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Transmedia_storytelling

M aíra Valencise G regolin

5 Narrativa Transmidiática: a imensa tela dos sentidos

sucessivas. (SRIVASTAVA, 2009).

no limiar da tela : a narrativa transmídia chega à novela

de maneira clara (2002, p. 01).

Vida

nagens, que atuam como formadores de opinião, provendo informações úteis e práticas

a

Shiavo, com o merchandising social, pode-se interagir com as produções e suas perso-

Viver

bilita ao público estabelecer uma relação de cumplicidade com a telenovela. Segundo


cotidiano das pessoas e levarão a transformações em todos os sentidos do envolvimento que hoje experienciamos (DINEHART, 2006; BARDZELL et. al., 2007; BECHMANN Este trabalho pretende abrir caminhos para acompanhar futuras produções nacionais a fim de questionar como as produtoras estão adaptando os modelos de negócios propostos pelo universo transmidiático e como a telenovela passará a contar

de mídias como o cinema, televisão, impressos (revistas e jornal) e internet. Por outro lado, podemos pensar que as possibilidades transmidiáticas trazem novas perspectivas aos produtores independentes e aos usuários geradores de conteúdo. O ativismo transmídia é um projeto que merece mais investigação e pode ser pensado para uso junto a comunidades. Essas, entre outras interrogações, pode nos levar a pensar tais produtos transmidiáticos como importantes aliados em campos como o da educação. Seu potencial é imenso como ferramenta para a apropriação de conhecimentos ao possibilitar o trabalho com conteúdos específicos. Essa potencialidade deriva particularmente das propriedades essenciais dessas mídias: a imersão em múltiplas linguagens, a transdisciplinaridade, o agenciamento e as novas narratividades.

Referências ASKWITH, D., Television 2.0: Reconceptualizing – TV as an Engagement Medium. New York University, 2003. BARDZELL, S., WU, V., BARDZELL, J., & QUAGLIARA, N. Transmedial interactions and digital games. Proceedings of the International Conference on Advances in Computer Entertainment Technology, 2007. Disponível em: http://conference.icts.sbg. ac.at/www.ace2007.org/download/p307-bardzell.pdf. Acesso em: 01 out 2010. BECHMANN PETERSEN, A. Internet and cross media productions: Case studies in two major Danish media organizations. Australian Journal of Emerging Technologies and Society, 4(2), 94-107, 2006. DINEHART, S. Thesis Paper, USC CNTV IMD 2006. Disponível em: http://interactive. usc.edu/members/edinehart/archives/006541.html. Acesso em: 01 jan 2010. FERNANDES. I. Memória da Telenovela Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1997. FORD, S. As The World Turns in a Convergence Culture, Massachusetts Institute of

1 - n. 1

conglomerados de mídia, caso da Rede Globo, que detêm diferentes setores de produção

ano

histórias por meio de multiplataformas. O novo modelo pode ser um grande aliado aos

Revista GEMI n IS |

PETERSEN, 2006 ).

66


Technology, 2007.

67

GOMES, J., Creators of Transmedia Stories. Entrevista concedida ao site The Narrative Viver

transmedia-stories-3-jeff-gomez/. Acesso em: 01 fev 2010.

a

JOHNSON, D. Intelligent Design or Godless Universe? The Creative Challenges of World Building and Franchise Development. Franchising Media Worlds: Content Networks and The Collaborative Production of Culture, PhD Dissertation, University of Wisconsin-Madison, 2009. LONG, G. Transmedia Storytelling: Business, Aesthetics, and Production at the Jim Henson Company. Massachusetts Institute Of Technology, 2007. MELO, J. M. As telenovelas da Globo. São Paulo: Summus, 1988. REIS, C.; LOPES, A.C. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SCOLARI, C. (2008). Hipermediaciones. Elementos para una Teoría de la Comunicación Digital Interactiva. Barcelona: Gedisa.

3, 2009. SHIAVO, M. R. Merchandising Social: as Telenovelas e a Construção da Cidadania. In: Congresso em Ciência da Comunicação, XXV, 2002, Salvador (Bahia). Trabalho apresentado no NP14-Núcleo de Pesquisa Ficção Seriada. SRIVASTAVA, L. Transmedia Activism: Telling Your Story Across Media Platforms to Create Effective Social Change, 2009. Disponível em: http://www.mediarights.org/news/ Transmedia_Activism_Telling_Your_Story_Across_Media_Platforms_to_Create_Eff/. Acesso em: 20 abr 2010 THORBURN, D. Television Melodrama. In, Adler, Richard Adler, and Douglass Cater, editors. Television as a Cultural Force. New York: Praeger, 1976. VALENCISE-GREGOLIN, M. Mídia e Cultura: Machinima, objeto da contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2009. ZACARIOTI, M. & COSTA, V. Telenovela e Merchandising Social: ficção e realidade. UNIrevista. v. 1, n. 3, julho 2006.

M aíra Valencise G regolin

Branding in Contemporary Media Production. International Journal of Communication

SCOLARI, C. Transmedia Storytelling: Implicit Consumers, Narrative Worlds, and

no limiar da tela : a narrativa transmídia chega à novela

JENKINS, H. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

Vida

Design Exploratorium. Disponível em: http://narrativedesign.org/2009/09/creators-of-


Telenovela brasileira: fascínio, projeção e identificação Kelly S coralick Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Jornalista, pós-graduada em Mídia e Deficiência (Faculdade de Comunicação/UFJF). E-mail: kelly.scoralick@alterosa.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 68 - 81


Resumo As narrativas ficcionais seriadas televisivas, em especial, as telenovelas, provocam identificações e projeções no telespectador, através não somente da ficção, mas também dos sistemas de representação. Será por esse modo de identificação-projeção que a telenovela consegue envolver o telespectador? De que forma ela consegue exercer tanto fascínio? Neste trabalho, realizamos, assim, um breve estudo sobre o poder da narrativa das telenovelas e a identificação que provoca em um público fiel e cativo. Palavras - chave: Telenovela; projeção; identificação.

A bstract The fictional serial television, particularly soap operas, cause an identification and a projection at the viewer It happens not only in the fiction narratives but in the systems of representation also. Is the identification-projection method that engages the soap opera viewer? How can it create so much fascination? Therefore, we propose a brief study about the power of the narrative of soap operas and its identification on the captive and loyal audience. Keywords: Soap opera; projection; identification.


1 Introdução

O

s meios de comunicação social são atores fundamentais no processo de construção da identidade de uma sociedade. Afinal, pensar a sociedade é trazer à cena os meios de comunicação social, presença constante onde quer que a

vida aconteça. Entre eles, ganha destaque o poder exercido pela televisão. Ela que con-

tinua sendo um dos laços da modernidade, nos alcança nos diversos tempos e espaços. É capaz de penetrar na sociedade, principalmente através de sua programação variada, montada justamente para atender às expectativas do público, de forma a encantá-lo e cativá-lo. Não se pode negar que, entre os mass media, temos como grande fator de influência sobre a sociedade, a narrativa das telenovelas, que ajuda a construir certas identidades de gênero. Auxiliam no sentido de formar mentalidades, construir valores e narrar a realidade à sua maneira, interferindo de maneira crucial na construção das identidades. É a representação social das identidades na TV. É símbolo de identificação, tanto individual quanto coletivo. As pessoas sintetizam experiências públicas e privadas, expressam divergências e convergências de opinião sobre ação de personagens e desdobramentos de histórias. Provoca o envolvimento emocional do telespectador. Numa mistura de teleficção com realidade, o programa apresenta-nos personagens próximos do nosso cotidiano, o que facilita o processo de identificação e projeção. O homem comum se empolga com a figura do herói, tão bem representado na telenovela. Os contos de Cinderela, por exemplo, relevam os sonhos, fantasias e esperanças de muitas mulheres. E com esses elementos, entre outros, a telenovela vai atraindo cada vez mais a audiência. Será a força da narrativa, a síndrome de Scherazade, que provoca tanto fascínio no telespectador? Será somente a “fábrica de sonhos”, responsável por criar e manter o hábito de assistir às novelas? Por que na telenovela a pessoa se reafirma como sujeito? Projeta-se, identifica-se? Essa é a proposta do nosso estudo.


Para o pensador francês Edgar Morin (1981), o imaginário próprio da cultura de massa funciona por meio de mecanismos de identificação e projeção dos indivíduos, duto cultural, a telenovela vai destinar-se a um grande público comum, além de trazer características inerentes à sua cultura como versatilidade de gêneros e temas, criação de estereótipos (rotulagem) e personificação e mitificação de seus personagens – heróis e

tuações, valores, comportamentos etc. Jesús Martin-Barbero (1997), por sua vez, mostra-nos a importância do melodrama para a cultura latino-americana. Segundo Barbero, o melodrama é a matriz da nossa cultura. 2 A representação na televisão

Implicada na reprodução de representações, utilizando o recurso da imagem, a televisão possui uma penetração intensa na sociedade brasileira. Trata de um repertório comum, por meio do qual a grande maioria das pessoas se vê representada. A TV marca a passagem do “mundo dos invisíveis”, das pessoas comuns, normais, insignificantes, ao “mundo dos visíveis”, daqueles que realmente existem. E, de fato, o “outro lado do espelho” é o espaço do conhecimento, do reconhecimento social, da fama, da glória (MARCONDES FILHO, 2000, p.91).

Além disso, a televisão, assim como o cinema, se tornou um dos maiores meios formadores de opinião. Reconhecida como a forma mais popular de mídia, a TV está presente em mais de 98% das residências em nosso país, representando, além do rádio, a forma de informação a que a maior parte da população tem acesso. Nenhuma faixa etária, nenhuma classe de renda fica imune a ela. A maior parte destas pessoas faz dela sua principal - ou única - fonte de informação. Isso quer dizer que é a televisão - e quase só ela - que sugestiona a opinião, os valores e o comportamento da maioria esmagadora dos brasileiros (HOINEFF, 1996, p.34).

Embora conscientes de suas implicações, por vezes, negativa, nenhum lar de nosso tempo vive sem tê-la. E ainda hoje, num mundo caracterizado por um período de profundas rupturas sociais e culturais, a TV continua sendo um dos laços da modernidade.

1 - n. 1

do cotidiano, a partir da análise de novas questões, polemizando e discutindo novas si-

ano

heroínas. Além disso, a telenovela revela, em sua essência, um processo de construção

Revista GEMI n IS |

com os mitos e modelos advindos dos produtos da indústria cultural. Enquanto pro-

71


A TV consegue envolver o telespectador, combinando informação à imagem. A o seu fascínio. Segundo Ferrés (1996), a TV baseada na visão e, portanto, nas imagens, é dinâmica. Ela favorece as gratificações sensorial, visual e auditiva. A imagem é uma representação concreta da experiência. Porém, admite-se que parte do poder adquirido pela televisão junto ao grande público teve início, de certa forma, com a exibição de telenovelas pela Rede Globo. No Brasil, em especial, as novelas ganharam tanta importância que são consideradas uma “mania” nacional. É o programa de TV que mais se aproxima dos brasileiros. Pela enorme plateia que mobiliza, pela influência que exerce sobre a sociedade e pelo modo

nhece acima de suas enormes diferenças. A telenovela brasileira, acompanhada das minisséries, constitui, em seu conjunto, a mais importante produção ficcional do país e um dos programas de maior audiência da televisão. 3 Gênero de sucesso Em dezembro de 1951, pouco mais de um ano depois da televisão ser inaugurada, a TV Tupi de São Paulo colocou no ar a primeira telenovela: Sua vida me pertence, de Walter Foster. Mas, foi com a versão brasileira da radionovela O direito de nascer, do cubano Félix Caignet, exibido pela TV Tupi em 1964, o reconhecimento do fenômeno telenovela no Brasil. Porém, o marco do abrasileiramento do gênero foi com Beto Rockfeller (1968), exibida também na extinta Tupi. Foi, então, a ruptura com o estilo fantasioso, também conhecido como mexicano, que dominava na produção anterior - Sheik de Agadir, transmitida pela Rede Globo, em 1966 – propondo uma alternativa mais realista, com referências compartilhadas pelos brasileiros. Desde então, o “produto novela” não parou de crescer. Hoje é apresentado com um padrão estético já consolidado e com uma audiência cativa, o que o torna o programa da família brasileira, além de um hábito comum entre as pessoas.

Kelly S coralick

numa linguagem acessível, aceita, e, acima disso, desejada pelo público que se reco-

como reflete os valores, as aflições e as aspirações da gente brasileira, consolidando-os

brasileira : fascínio , projeção e identificação

mensagem visual é um grande atrativo das telas, é com imagem que a televisão amplia

72 Telenovela

A televisão é atualmente um dos principais laços sociais da sociedade individual de massa. (...) A televisão é a única atividade compartilhada por todas as classes sociais e por todas as faixas etárias, estabelecendo, assim, um laço entre todos os meios (WOLTON, 2004, p.135).


dos dramáticos, apresentado, aos poucos, como uma história parcelada. Aqui nos remetemos a uma espécie de suma da sabedoria ancestral: o desempenho de Scherazade como contadora de histórias, apresentada em As mil e uma noites, uma coletânea de contos da literatura árabe e retomada na obra de Roberta Manuela Barros de Andrade (2003a). Disposta a pôr fim na ira do sultão Schariar, que depois de traído pela esposa, passou a dar fim em cada uma das mulheres com as quais passava a noite, Scherazade se entrega ao Sultão. Sob o pretexto de desejar passar sua última noite com a irmã, solicita que pudesse esta também dormir no quarto nupcial, pois conforme combinara, uma hora antes do amanhecer, a irmã deveria acordar Scherazade e pedir-lhe que contasse uma de suas histórias. Assim se deu. Só que rompido o dia e para respeitar os hábitos do Sultão, ela suspende o final da história, e quando a irmã a considera maravilhosa, Scherazade afirma ser a continuação mais encantadora ainda e, se o Sultão lhe permitisse mais um dia de vida, ela a terminaria na noite seguinte. Deslumbrado com a narrativa, ele o concede. E desse modo os episódios vão se sucedendo por mil e uma noites (ANDRADE, 2003a, p.15).

Esse grande invento de Scherazade é uma estratégia narrativa que foi absorvida pelas telenovelas. Os pontos principais da estória são distribuídos de forma a manter a tensão dramática, por meio de sucessivos capítulos. O suspense mantém o desenrolar da estória, induzindo o telespectador a acompanhar, dia após dia, a telenovela, sentindo as paixões e sofrimento dos personagens. Aliás, são estes – paixões, emoções e afetos – que formam o enredo das telenovelas. Como não se lembrar das estórias de amores impossíveis, dos heróis e heroínas sofredores, vilões obstinados por sentimentos de vingança, entre outros, tão variados, em grande número e de grande sucesso que compõem a novelas brasileiras? A telenovela trouxe com ela características marcantes, com uma versatilidade de temas que fascinam os telespectadores e satisfazem, assim, ao gosto dos mais diversos públicos. Desde enredos tradicionais, clássicos, de suspense, aqueles conhecidos

1 - n. 1

desenvolvimento do enredo, comparado ao desenrolar de um novelo, segundo trança-

ano

A novela é marcada pela reconstituição, semana após semana, das tramas e o

73 Revista GEMI n IS |

O telespectador adquire o hábito de todo o dia, numa determinada hora, assistir ao mesmo programa. O horário da novela é uma instituição na TV brasileira e costuma determinar a hora do jantar e até de dormir. As classes populares têm o hábito de dormir “depois da novela das oito”, que continua a ser assim chamada, apesar de atualmente ir ao ar das 9h à 10h da noite. Também é comum as pessoas marcarem seus compromissos noturnos para “depois da novela” (LOPES, 2002, p. 07).


como “água com açúcar”, de humor escachado, chamados de “comédia pastelão”, até aqueles mais urbanos, realistas, centrados em abordar assuntos polêmicos da socieda-

A telenovela funciona como evasão do cotidiano, quando permite sonhar e vislumbrar novos universos, e como ponto de partida para refletir sobre temas pouco discutidos pela sociedade. Enfim, o contexto sócio-cultural dá forma à produção simbólica.

brasileira : fascínio , projeção e identificação

Pressinto que nossa percepção da sociedade brasileira, os modos de ver e compreender nossa realidade são mediados, para uma grande parcela da população, pela telenovela, que, com sua intensa penetração na paisagem urbana e rural brasileira, fornece um repertório comum por meio do qual pessoas de classes sociais, gerações, gênero e regiões diferentes se posicionam entre si e interpretam o mundo ao seu redor. Esse repertório adquire, assim, foros de veracidade e medeia a compreensão que temos de nós mesmos e da sociedade a que pertencemos (ANDRADE, 2003b, p.02).

Telenovela

de. Falam do cotidiano e problemas das pessoas às quais se dirigem.

74

A negociação/interação/troca funciona como componente que aproxima os telespectadores da realidade de nossa sociedade, de uma forma geral. A novela se tornou um veículo que capta e expressa a opinião pública sobre padrões de comportamento privado e público, produzindo uma espécie de fórum de debates no país. Ela propõe pontos de vista diferentes sobre problemas sociais e constitui uma discussão sobre uma variedade de princípios morais. Retrata temas polêmicos, peculiares ao espectador, que consegue se identificar com os personagens da obra e seus conflitos, justamente por descobrirem semelhanças da ficção com a vida real e vice-versa. Esta capacidade de exacerbar emoções decorre, em parte, do fato de que a telenovela é uma dramatização e representação da vida cotidiana, com todos os seus problemas, conflitos, resoluções e comportamentos. Essa noção de que se trata de uma narrativa que conta “como a vida é’, atua como um fator que minimiza a distância entre a personagem e o ator, criando a ilusão de que se trata de uma “história real” (ANDRADE, 2003a, p.58).

Essa aproximação com temas da vida real é bem acentuada no horário dedicado às novelas das 20 horas. Mais do que as demais, a novela exibida nesse horário pretende ser a representação da verdade. Ela ficcionaliza o real e realiza a ficção. Há

Kelly S coralick

4 O cotidiano na narrativa ficcional: identificação e projeção


uma mistura do mundo de fantasia, próprio da telenovela, com a vivência da realidade. Uma tendência capaz de transformar o verossímil em real. E personagens em pessoas. de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003), Páginas da Vida (2006) e a recente Viver a Vida (2010), é um dos autores de novela que bem sabe fazer isso. Em Páginas da Vida, por exemplo, foram montadas narrativas com situações

nhecimento e questionamento de identidades em meio a temas polêmicos, educativos e atuais. Já em Viver a Vida, a personagem Luciana, uma cadeirante interpretada por Aline Moraes, tentou retratar desde as mínimas vivências das pessoas com deficiência, em uma experiência que mistura ficção com realidade. Para nós, o ápice da dramatização do real ficou registrado em Mulheres Apaixonadas, na cena da “bala perdida”, no centro do Rio de Janeiro, que causou a morte da personagem Fernanda, interpretada pela atriz Vanessa Gerbelli. E em Páginas da Vida, o incêndio de um ônibus por ladrões, também no Rio de Janeiro, onde estavam a mãe Angélica (Cláudia Mauro) e a filha Gabi (Carolina Oliveira), ocorrendo a morte da mãe. Ambas, situações que realmente fizeram e fazem parte da vida real e foram levadas para dentro da tela(e)-ficção. Podemos citar ainda a identificação na novela entre personagens da ficção e figuras públicas reais, e entre tramas e os problemas reais. Aqui, os exemplos mais lembrados são a associação da novela Vale Tudo (1988) à eleição do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Tal identificação se estendeu ainda para uma minissérie, exibida três anos mais tarde - Anos Rebeldes – a qual influenciou no processo de impeachment desse mesmo presidente. Verifica-se que as questões que são transportadas do plano fictício para o real contribuem para aproximar ainda mais a população desse gênero televisivo. Justamente esses aspectos de “realidade” dentro da dramaturgia, como os citados acima, é, entre outros fatores, que provocam um processo de identificação ou projeção nos telespectadores para com os personagens – até mesmo para com os atores e atrizes que fazem a representação - e junto à obra, justamente pela verossimilhança com fatos do nosso cotidiano. Com o melodrama veiculado na telenovela, transportando o dia a dia das pessoas para dentro da tela, nos identificamos e nos projetamos.

1 - n. 1

Ao retratar diálogos e tipos comuns da sociedade estabelece-se aí uma relação de reco-

ano

corriqueiras do nosso dia a dia, que resumem a rotina comum de qualquer cidadão.

Revista GEMI n IS |

Manoel Carlos, idealizador de grandes sucessos, como Por Amor (1997), Laços

75


compaixão, em um movimento de simpatia com que se tenha por uma causa, ou de empatia, pela adoção voluntária de seu sistema de valores. Os processos de identificação e projeção se dão de forma que o indivíduo molde sua conduta, de forma a parecer com alguém que lhe sirva de modelo, de modo que espere ser aceito, com a sua “nova” identidade. O público deixa-se influenciar de alguma forma e passa a “querer ser como, torna-se idêntico a, e, muitas vezes, pretende-se ser reconhecido como tal” personagem.

características, alguma coisa acaba nos enredando e provocando a identificação, em especial, quando há um envolvimento emocional com a obra. Galãs, beldades femininas, vilões, pobres ou ricos, protagonistas ou antagonistas na trama, qualquer que seja o personagem, o processo de identificação tende a ocorrer. Retomando o enredo de Viver a vida, exibida na TV Globo e com grandes índices de audiência, quantas mulheres não sonharam em encontrar um grande amor, como o de Luciana (Aline Moraes) e Miguel (Mateus Solano), casal protagonista da novela? E quem não sofreu junto com Luciana e família diante das maldades feitas pela irmã Isabel (Adriana Birolli)? Ou ainda quem não se comoveu com a separação de Helena (Thaís Araújo), traída pelo marido cafajeste Marcos (José Mayer)? Aqui a projeção

Kelly S coralick

Dentre tantos personagens em uma só novela, com tão diversos contextos e

O processo de identificação ocorre quando o espectador assume o ponto de vista da pessoa ou da personagem, tomando-o para si como um reflexo de sua situação de vida. Já a projeção acontece quando o espectador projeta seus sentimentos sobre o sujeito ou personagem televisivo, amando aqueles que o outro ama, odiando da mesma forma que o outro odeia e assim por diante. Esses processos de identificação e de transferência referem-se a níveis muitas vezes inconscientes do espectador. Anteriormente, as projeções davam-se com deuses e heróis, com seus poderes sobre-humanos. Hoje, os heróis pertencem à indústria cultural, são as estrelas do cinema e das novelas, os ídolos do esporte e da música. Podemos projetar no ídolo da televisão não só nossos desejos, mas também, sobretudo, nossos medos, tristezas, incertezas e, principalmente, aquilo que não temos coragem de viver, ou não temos condições de fazer (ORMEZZANO, 2005, p.03).

brasileira : fascínio , projeção e identificação

Dessa forma, as identificações se dão naqueles aos quais admiramos ou temos

76 Telenovela

A identificação se dá através das características, tanto afetivas quanto físicas, presentes nas personagens que o público leva à sua própria vida. A projeção ocorre mediante aquelas ações menos possíveis de serem realizadas socialmente. Ao se projetarem, os indivíduos aliviam as tensões diante de uma história narrada pela indústria cultural (MORIN, 1981, p.78).


se efetuou quando mulheres brasileiras passaram a odiar, da mesma forma que a personagem, num primeiro momento, homens traidores e cafajestes e, num segundo mo(Giovanna Antonelli). Segundo Andrade (2003), “esta dose de sofrimentos e injustiças presentes nas telenovelas é um dos mais eficientes mecanismos para produzir o ‘engajamento emocional” (ANDRADE, 2003a, p.65).

com ela através de um processo de simpatia? As personagens é que representam a possibilidade de adesão afetiva e intelectual ao enredo ficcional, seja através de projeções, identificações ou transferências etc. As personagens vivem o enredo, são os seus valores e atitudes que trazem “veracidade” às narrativas. Não espanta, então, que a personagem seja o que há de mais vivo na telenovela e que de sua leitura dependa basicamente o sucesso da história (Id., Ibid., p.70).

Além do processo de identificação/projeção que ocorre através das personagens, há também um desejo forte de identificação com os ambientes apresentados na dramaturgia, entre outros. Objetos de decoração, roupas, jóias, corte e cores de cabelo, bebidas utilizadas, praticamente tudo relacionado às telenovelas não fica imune nesse processo. As gírias e maneirismos usados por certos personagens são incorporados rapidamente no dia-a-dia das pessoas comuns – a palavra “catigoria” (com i mesmo) da personagem Bebel, por exemplo; nomes das personagens viram moda; nomes das novelas viram nomes de lojas e produtos; e ainda nomes de personagens são usados como adjetivos para designar o caráter desviante de pessoas. A personagem Clara (Mariana Ximenes), de Passione, telenovela substituta de Viver a Vida, talvez seja hoje o nome mais cotado para ser usado neste último caso. Aqui vale ressaltar a importância das imagens na tela. A organização delas, seja pela seleção, enquadramento e montagem durante as gravações, influencia na representação e reconhecimento da uma dada realidade. A TV treina o olho do espectador. Assim, as imagens interferem no processo de identificação. As respostas produzidas pela decodificação de imagens são muito mais emotivas do que racionais e toda a linguagem televisiva é pensada para provocar isso. A câmera mostra os objetos com uma aproximação afetiva, verdadeira sedução, como que proporcionando ao espectador a possibilidade de tocá-los com os olhos. O discurso negativo que subjaz principalmente em relação à propaganda desaparece diante do tratamento mágico dado à imagem. Esse tratamento pode ser dado também às pessoas ou às personagens, um dos motivos prováveis que

1 - n. 1

(Camila Pitanga) na novela Paraíso Tropical (2007), da TV Globo, e não se identificou

ano

Relembrando, agora, personagens de sucesso, quem não se divertiu com Bebel

Revista GEMI n IS |

mento, mulheres que se envolvem com homens casados, no caso, a personagem Dora

77


leva a que as pessoas se identifiquem com alguém ou projetem em alguém sentimentos ou desejos (ORMEZZANO, 2005, p.03).

projeta-os como protótipos e, vendo-os aceitos e adotados, os transforma em estereóti-

5 Arquétipos, protótipos e estereótipos em telenovela Em todo o indivíduo sempre haverá arquétipos operantes. Constituem-se como uma verdade universal e imutável. Designam figuras primitivas exemplares. Fazem parte do nosso inconsciente coletivo. Como exemplo, podemos citar a imagem de Afrodite/Vênus como o arquétipo de mulher bonita; O Príncipe Encantado, como arquétipo do homem perfeito; e Cinde-

Podemos, assim, afirmar que a TV traz à imaginação arquétipos, uma vez que a sustentação da estória de uma telenovela é baseada no arquétipo do encontro do Príncipe Encantado com a Cinderela. Afinal, toda novela tem como tema principal um bom rapaz que tenta ser feliz ao lado de uma mulher, que está à procura do seu grande amor. O protótipo é, por definição, um exemplar. Serve de padrão estabelecido. Estão no nosso consciente coletivo e tendem à criatividade. As telenovelas introduzem alguns personagens polêmicos, como protótipos de alguma coisa. Quando não aceitos, por causarem uma dissonância sociocultural, ao se oporem à norma vigente, os personagens acabam por ser eliminados da trama. Como exemplo, citamos a representação de um casal de lésbicas na novela Torre de Babel (1998). Por não terem sido aceitas junto à sociedade, por provocarem uma discrepância perante à moral social, o autor Sílvio de Abreu decidiu pela morte das duas durante a explosão de um shopping, colocando fim ao protótipo de homossexualidade proposto. Por sua vez, quando aceitos, os protótipos banalizam-se em estereótipos. São fórmulas fixas, onde não se fertiliza a criatividade ou a inovação, dificultando outras formas de pensar ou observar a realidade. É referente a ideias ou convicções preconcebidas, julgamentos antecipados. É o pensamento por clichês, é a tipificação das coisas, se faz caricatural. Faz parte do nosso subconsciente. Tendem à imobilidade e à generalização e, portanto, pensar por estereótipos é resignar-se a não pensar. Não se pode falar de identificação e projeção sem abordar os estereótipos. São utilizados porque promovem uma identificação ou decodificação da mensagem mais

Kelly S coralick

a ame eternamente.

rela, como arquétipo da mulher à procura de seu príncipe encantado, uma pessoa que

brasileira : fascínio , projeção e identificação

pos”. Este último é o que mais opera nos processo de identificação e projeção.

Telenovela

De acordo com Ramos Trinta (2007), “a televisão traz à imaginação arquétipos,

78


rapidamente, sem qualquer tipo de reflexão sobre o que está sendo abordado.

-sucedidos. As personagens principais são mais ou menos fixadas em seus papéis e as secundárias tendem a ser estereotipadas, o que acaba gerando uma rejeição ou uma assimilação pelas avessas. Os estereótipos, pela frequência com que aparecem nas telenovelas, assemelham-se a uma idéia próxima da verdade, mas que pode ser apenas uma perspectiva deformada e grave. Se a informação não é cuidada, acaba reforçando estigmas e posturas preconceituosas, que podem significar, no mínimo, um empecilho à evolução e ao desenvolvimento social. Se a telenovela influi de forma decisiva na maneira como vemos nossa realidade social e, se a forma como nos é apresentada é estereotipada, então entendemos que nossa visão sobre a realidade fica comprometida. Daí a preocupação com os estereótipos apresentados na telenovela. Conclusão Alçada à posição de principal produto de uma indústria televisiva de grandes proporções, a novela passou a ser um dos mais importantes e amplos espaços de problematização do Brasil, das intimidades privadas às políticas públicas. Ela propõe pontos de vista diferentes sobre problemas sociais. O tratamento realístico conferem à telenovela alta credibilidade junto ao público. O fascínio e a repercussão pública das novelas estão relacionados também a essa ousadia na abordagem dos dramas comuns de todo dia. A maioria dos brasileiros recebe a realidade como ela é apresentada na novela, considerando as personagens e as intrigas como fazendo parte da ordem social brasileira, mas, ao mesmo tempo, utiliza as personagens para discutir suas vidas, dando um sentido à narrativa ainda maior que ela já tem. Ela põe em cena lugares comuns da condição humana. O telespectador se relaciona com a telenovela, com as suas personagens, seu meio, as situações que apresentam, o desenvolvimento das intrigas e suas resoluções. O fato das personagens também passarem pelos mesmos problemas do telespectador – vivem desejos, experimentam

1 - n. 1

por sua vez, considerados como a classe subalterna, são caricatos, quase nunca bem-

ano

Alguns personagens são “belos, ricos, bacanas, doutores e madames”. Outros,

Revista GEMI n IS |

Os estereótipos mais significativos são os que se referem aos papéis sexuais, raciais, profissionais e sociais, o que pode provocar sérios problemas nas populações apresentadas de forma estereotipada, como os negros ou homossexuais, por exemplo. (Id., Ibid., p.04).

79


frustrações, já que o gênero imita a vida real - é o que consideramos como a grande atração da telenovela. cesso de identificação/projeção com uma ou várias personagens, analisamos que essa Existe um conflito psicológico. O público ama ao mesmo tempo que odeia as personagens. Os vilões, por exemplo, amamos odiar. Já os mocinhos e mocinhas, queremos sempre que a estória deles termine em final feliz. Entretanto, em vários trechos da trama, consideramos o mocinho e a mocinha como personagens enfadonhos e tendemos a gostar um pouco mais do vilão, ainda que rejeitemos suas atitudes. Os telespectadores realizam seus afetos, posicionam-se uns em relação aos outros, distribuindo sua simpatia ou sua antipatia sobre as personagens. É um processo no qual ocorrem julgamentos, contradições, ambivalências, mas que todos acabam no molde de identificação/projeção com as personagens.

com o gênero. Toda uma vida social se investe dentro das figuras da ficção. A telenovela leva o público a fabricar sentidos e fabricar um lugar social para ele. Funciona como eficaz instância de socialização do mundo atual.

Referências ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fascínio de Scherazade. Os usos sociais da telenovela. São Paulo: Annablume, 2003a. _______. A multiplicidade de leituras e de leitores na telenovela brasileira. Trabalho apresentado no Núcleo de Ficção Seriada, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 2 a 6 de setembro de 2003b. FERRÉS, J. Televisão e educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio de Janeiro: Ed. Comunicação Alternativa: Relume Dumará, 1996. LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Narrativas Televisivas e Identidade Nacional: O Caso da Telenovela Brasileira. Trabalho apresentado no Núcleo de Ficção Seriada, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 4 e 5 de setembro de 2002.

Kelly S coralick

reflexão no telespectador sobre si mesmo, o que se revela no seu engajamento e fascínio

Essa mistura de significações instantâneas acaba por desenhar e provocar uma

brasileira : fascínio , projeção e identificação

participação se efetua com intensa carga emocional.

Telenovela

Como essa participação do telespectador se dá frequentemente sob um pro-

80


MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Moderna, 1988. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. MORIN, E. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo - 1, Neurose. 5 ed. Rio ORMEZZANO, Graciela, POTRICH, Cilene Maria, FRIDERICH, Bibiana, CORDEIRO, Lílian. Cultura e estereótipos veiculados pela televisão. Trabalho apresentado grupo de trabalho de Audiovisual, VIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul, Passo Fundo/RS, 2005 RAMOS TRINTA, Aluízio. Identidades, identificação e projeção. Texto de conclusão de curso na disciplina ‘Televisão e Identidade cultural’ do Mestrado em Comunicação e Sociedade, FACOM/UFJF. Julho/2007. WOLTON, Dominique. Pensar a comunicação. Brasília: Universidade de Brasília, 2004.

brasileira : fascínio , projeção e identificação

de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

Telenovela

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.

81

Kelly S coralick


Merchandising

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na Telenovela Plábio M arcos M artins D esidério Professor da UFT (Universidade Federal do Tocantins), mestre em sociologia e doutorando em comunicação pela UNB. E-mail: plabio@mail.uft.edu.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 82 - 98


Resumo O objetivo deste artigo é analisar como a imagem televisiva desempenha um papel importante na construção do merchandising social nas telenovelas contemporâneas. Com isso, será utilizada a perspectiva de Martine Joly, fundamentada em Roland Barthes, as discussões proposta pro John Fisk, cujo estudioso ressalta a televisão como um discurso e a abordagem de Stuart Hall sobre codificação e decodificação. Perceber como o merchandising social está presente na imagem televisiva e essa constituída por códigos contribui para aproximar a prática do merchandising social e o público. Palavras - chave: merchandising social; códigos; televisão.

A bstract The aim of this paper is to analyze how the television image plays an important role in shaping contemporary social merchandising in soap operas. With this use will Martine Joly perspective, based on Roland Barthes, the discussions proposed for John Fiske, whose scholar highlights the television as a discourse and approach of Stuart Hall’s encoding and decoding. Understanding how the social merchandising is present in television picture consists of codes and this helps bring the practice of social merchandising and the public. Keywords: social merchandising, codes, televison.


84

1 A imagem televisiva e a construção dos significados

A

análise da imagem sempre suscita várias questões teóricas e metodológicas. É importante destacar que na área da comunicação o processo da análise da imagem procura interpretar os significados presentes na imagem, realizando

um trabalho de “decifração” dos mesmos. Vários trabalhos ressaltam que, ao analisar imagens, é necessária uma metodologia que implicam objetivos e, portanto, um projeto para alcançar a melhor maneira de decifrar tais códigos. A compreensão dos signos presentes na imagem remete para vários elementos para a realização da análise, para que essa mesma compreensão consiga estabelecer critérios de percepção e interpretação. Quando nos referimos à imagem procuramos situá-la como representação que pode ser fixa e/ou em movimento e que possa conter uma sonoridade com sincronicidade. Essa concepção de imagem torna-se importante para distinguí-la, por exemplo, das imagens internas, próprias dos processos mentais e dos sonhos, estudadas pela psicologia. Portanto, nessa perspectiva, a concepção de imagem, principalmente em movimento, é a que possui uma exterioridade e, assim, uma materialidade, com uma dimensão técnica e com signos. A televisão pode ser analisada como um suporte em que as imagens em movimento juntamente com a dimensão sonora, estão presentes e estabelecem vários signos e significados. Essa perspectiva, na verdade, se fundamenta na abordagem de vários autores e um deles é a de Joly (2008). Retoma-se aqui os estudos de Roland Barthes sobre a análise interpretativa dos significados em imagens e tem-se como ponto de partida imagens publicitárias, mas as estendendo aos vários tipos e inclusive para a televisão, que é a temática deste trabalho. Tem-se como dimensão principal nos estudos de comunicação a imagem em movimento e serializada presente na televisão e em gêneros como a telenovela. Outros estudiosos como Fiske (1990), também procuram ressaltar como é importante analisar a produção da imagem dentro de vários elementos culturais, ideológicos e técnicos. É importante considerar alguns elementos quando se empreende análise da


imagem e é necessário vencer algumas resistências e reticências, como por exemplo, perceber que uma imagem é obra de uma autoria, mas que também existe um processo dos significados é muito relevante para compreender esses elementos (JOLY, 2008, p. 45). Um/uma autor/autora de telenovela, juntamente como o diretor e sua equipe, ao palmente, fazem isso com expectativas sociais oriundas de um determinado contexto cultural, implicando uma cadeia de significados. Quais seriam as mensagens contidas numa imagem? Retomando a perspectiva aberta por Joly (2008) apoiada, em Barthes, observa-se basicamente três categorias principais: as mensagens linguísticas, icônicas e plásticas. A mensagem linguística presente na escrita ou mesmo no som contém diversos significados, elaborando signos que variam de acordo com a imagem. O tipo de grafia, o tamanho das letras e a posição em que ela é usada. Da mesma maneira, a sonoridade, o tipo de som e o timbre de voz, pois áudio contido numa cena produz diversos tipos de significados que irão propiciar material para uma análise do domínio da comunicação audiovisual. A mensagem plástica contida numa imagem implica as cores, as formas e os elementos visíveis. Numa imagem de televisão, cujo ritmo é maior, os elementos plásticos aparecerem de forma mais dinâmica e por isso o método da descrição e da associação terá que ser realizado de forma mais constante. Outra mensagem é a icônica, que são os signos reconhecidos socialmente numa imagem, através de objetos ou até mesmo de algum texto ou sonoridade. Uma outra categoria importante presente nos estudo de Joly (2008) é o processo de associação mental que pode ser percebido no processo de

É essa categoria de associação mental que conjuntamente com a presença e ausência suscita no investigador uma postura em observar como os signos estão localizados, situados e ausentes numa imagem. O investigador deve perceber como os signos se relacionam, pela sua presença ou mesmo ausência, através da associação que se estabelece entre esses elementos. Numa análise de imagem em movimento esse processo iniciado com a descrição que é a parte fundamental do projeto, deve atentar para perceber os signos no ritmo de serialização e por isso a associação é uma categoria importante para análise. Não somente a associação, mas a observação da permanência/ ausência dos signos nas cenas, principalmente na dinamicidade e nas várias tramas que possui, por exemplo, uma telenovela. A interpretação desses signos é relevante para compreender a própria intenção global da imagem.

Plábio M arcos M artins D esidério

é alterado, modificado.

permutação, quando os signos são identificados ou não e também quando o significado

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

montarem e editarem uma cena, constroem coletivamente uma imagem, mas, princi-

M erchandising

coletivo na construção da imagem, não apenas individual e, por isso, a interpretação

85


Ao processo de associação mental tem que ser acrescido um outro elemento, a identificação do destino da mensagem, ou seja, o destinatário que uma imagem possui. lingüística, ou mesmo denotativa (empregada no espaço jornalístico e científico) irão influenciar na mensagem visual e na própria análise que se pode fazer dela. Essa observação é muito importante para análise de programas televisivos, cuja “ditadura” da

procurando estabelecer a todo momento o contato com a audiência. A telenovela no Brasil é um gênero que principalmente nas últimas décadas está mudando suas características de autoria e direção para adequar-se ao público, e isso afeta no ritmo das tramas e, também, das cenas. Uma das análises a serem realizada é como as tramas são modificadas, com isso a história da novela e seus significados são alterados de acordo com a dinâmica da audiência. Outro elemento importante, presente nas observações de Joly (2008), é a imagem como intercessão e também sua categoria de permuta. Como intercessão, a imagem serve como elemento de comunicação entre diversas dimensões e também como elemento de conhecimento. Essa categoria da imagem de ser uma mediadora e alterar significado através da permuta, torna-se uma constante com maior intensidade na televisão tanto como uso, para construção de significados e manipulação de signos, como para uma análise desses significados. A telenovela com seu ritmo diário e seriado procura em vários momentos produzir interseção, isto é, acrescentar significados, associando sentidos, produzindo outros e estabelecendo principalmente uma relação com o público. A permuta, a troca de significados, ocorre quando se substitui um significado pelo outro numa imagem. Um exemplo perceptível nas telenovelas e que pode ser usado como ilustração é a utilização do merchandising social nas tramas. O merchandising social pode ser apresentado como uma ação pedagógica que acentua temas sociais, procurando dar grande relevância a questões do cotidiano, de saúde pública e até mesmo de comportamentos morais. Todos esses essas temas são caracterizados através de signos que remetem a significados e que estão inseridos numa narrativa ficcional. O processo de intercessão é comumente utilizado, pois procura associar os significados, seja da narrativa ficcional, seja do próprio merchandising social Analisar esse processo é pertinente, pois são vários os significados imbricados na trama. Vários significados podem sem percebidos na narrativa ficcional, como aqueles que procuram representar a realidade adequando a ficção ao público. O merchandising social é uma prática que possui vários destes signi-

1 - n. 1

nas imagens televisivas é observar também como as mensagens visuais são elaboradas

ano

audiência é uma presença constante nesse suporte comunicativo. Interpretar os signos

Revista GEMI n IS |

Os diversos tipos de conteúdo de uma mensagem, seja ela mais subjetiva, ou meta-

86


ficados, pois contém elementos ficcionais e também a presença de pessoas e relatos não ficcionais sobre os temas propostos no próprio merchandising social. tercessões, pois ao estabelecer uma relação de comunicação, ou melhor, uma tentativa de educação (entertainment-education). As pessoas se utilizam da imagem para acessar plo dado pela inserção do merchandising social na telenovela. A outra categoria da permuta consiste em alterar significados presentes nos signos visíveis na imagem. Uma imagem com determinados signos remete para significados, porém ela pode produzir (alterar) outra significação e em uma análise pode-se perceber essa intenção. Numa obra de arte a verificação da permuta (mudança) de significados é possível de ser observada (JOLY, 2008), como também pode-se perceber em imagens televisivas. Realiza-se na telenovela uma permuta ao mudar significados de uma pretensa imagem da realidade que procura veicular? Isso ocorre em campanhas publicitárias que inclusive estão colocadas entre os programas e no interior dos mesmos (merchandising). Um exemplo é o telejornalismo que também apresenta vários momentos de permuta de significados nas suas imagens, com a característica pertinente do ritmo seriado que também esse gênero possui, bem como a telenovela e como ela realiza essas alterações de significados quando a imagem está sendo “trabalhada” na narrativa ficcional. Pode-se novamente recorrer aos exemplos das inserções do merchandising social na narrativa ficcional da telenovela para procurar compreender esse processo. O movimento que muitos autores fazem em inserirem em suas tramas essas ações que procuram sensibilizar o púbico, aproximando-a cada vez mais do cotidiano, com a própria

pelas icônicas. Na mesma narrativa podem existem elementos ficcionais e não ficcionais procurando interagir com uma realidade cotidiana para alcançar vários objetivos, sejam eles institucionais (da empresa que os promove), sócio-culturais e até mesmo econômicos, vários significados estão sendo alterados cotidianamente. É necessário observar também que mesmo nesse processo de análise da imagem é importante considerar outros elementos que estão imbricados na interpretação dos significados. Considera-se que um “evento comunicativo” é produzindo a partir da produção e circulação de textos discursivos possuidores de sentidos, porém articulados num processo prático, ou melhor, de produção (HALL, 2008, p. 367). A proposta da análise das imagens como ressaltamos anteriormente deve se relacionar com uma preocupação em observar as estruturas de produção de um discurso televisivo, pois

Plábio M arcos M artins D esidério

partir das imagens, seja pelas mensagens lingüísticas, seja pelas plásticas ou até mesmo

ficção pretendida pelo autor acaba produzindo “trocas” constantes de significados a

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

outros significados que também foram associados por essas mesmas imagens, no exem-

M erchandising

As imagens televisivas, nesse caso a telenovela, procuram produzir várias in-

87


essa produção opera em dois momentos, um momento é a concretização dos significados numa codificação e o outro é a compreensão de uma decodificação que se realiza As codificações presentes e construídas na linguagem televisiva são da dimensão de uma “ordem simbólica” que está presente nos textos televisivos e é produzida e reconhecida pelo público e até mesmo de forma “naturalizada”. Os códigos, portanto,

los e que possuem correspondência nessa própria realidade, os códigos presentes na televisão são incorporados em vários momentos de forma “naturalizada”. Os signos passam a ter um papel importante de mediadores culturais, pois ao realizar o trabalhado analítico de conotação de uma imagem, proposto por Barthes, este ressalta que os significantes de um signo possuem relação com a cultura, com o contexto histórico, produzindo um mapa da realidade social1. A produção televisiva opera por meio de códigos que são organizados em sentidos dominantes e preferenciais, pois neles existem toda uma ordem social (institucional) com significados, práticas e crenças. Por isso para compreender a própria ordem social é necessário verificar esses códigos e como eles estão dispostos no sentido de dominância, mas sempre procurando um significado preferencial através de escolhas, regras e reforço2. O processo comunicativo, portanto, opera num processo de troca entre a codificação e decodificação, isto é, é necessária uma reciprocidade entre a construção de códigos e o momento da decodificação dos mesmos. É necessária, ainda, uma articulação entre a codificação e decodificação, pois podem ocorrer várias combinações entre esses dois momentos. Essas articulações, como aponta Hall (2008), reforçam a concepção da correspondência entre codificação e decodificação, o que nem sempre é idêntico e necessário. A telenovela, por exemplo, no Brasil procurou nas últimas décadas se aproximar cada vez mais da realidade nacional, procurando construir códigos dentro de um sistema significativo com códigos dominantes e códigos preferenciais. Os primeiros referem-se principalmente aos elementos ideológicos e culturais presentes nos textos (imagens e sons) do gênero. Os segundos referem-se às práticas, as crenças, os signos que através dos textos procuram estabelecer uma relação de significação junto à sociedade. Exemplo disso são hábitos de consumo e modelos de comportamento que também estão inseridos em relações de poder e relacionados aos códigos dominantes. A dinâmica que a telenovela possui e sua relação com o publico, no qual o 1 HALL, op. cit., p. 373- 374. 2 HALL, op. cit., 375.

1 - n. 1

relacionados com a decodificação. Analisando como os signos na verdade são símbo-

ano

remetem para vários elementos da representação da realidade e que conjuntamente

Revista GEMI n IS |

posteriormente (HALL, 2008).

88


processo de decodificação é exigido constantemente, remete para o que Hall (2008) observa sobre articulação entre codificar e decodificar. Esses códigos construídos e sua articulação. Talvez isso esclareça o porquê de algumas telenovelas conseguirem um maior nível de audiência em detrimento a outras. Como todo o texto comunicativo poslenovela ao procurar construir a correspondência entre a codificação e a decodificação está a todo momento buscando “combinar” esses dois momentos. Quanto mais próxima da realidade cotidiana, mais familiar o texto televisivo estabelece correspondência junto ao público e, portanto, a narrativa ficcional. Essa correspondência e combinações facilitariam o processo de decodificação? Para isso são necessárias várias observações. A inserção do merchandising social na narrativa ficcional pode ser compreendida como um código dominante, pois está numa ordem social institucionalizada, movida por vários objetivos ideológicos, econômicos e políticos. O que os produtores televisivos esperam desse texto, ou melhor, quando inserem os temas sociais para desenvolverem ações educativas com vistas a sensibilizar o público é construir uma articulação com o processo de decodificação por parte desse mesmo público. É verdade que o merchandising social procura também estabelecer “leituras preferenciais” para o público, pois busca “hegemonizar” uma audiência a partir dos critérios estabelecidos pelos produtores dos textos televisivos. Porém, esse mesmo texto pode ser “lido” de várias formas, isto é, decodificado de várias maneiras e é por isso que a correspondência entre codificar e decodificar não é “naturalizada”. A apropriação por parte do público dos elementos discutidos no merchandising

cientes” e “esquematicamente organizados” podem realizar leituras de oposição, mas, na maioria das vezes, fazem posições negociadas. Se observarmos como a telenovela está presente na história da televisão brasileira nas últimas décadas e na própria construção de uma possível modernidade urbana, capitalista que parte dos grandes centros e se expande para o resto do país, há uma negociação constante por parte do público que hibridiza essa modernidade com as tradições. O merchandising social pode ser compreendido como parte desse processo, pois como Joly (2007) observa, a imagem possui a função de intercessão, isto é, estabelecer a comunicação a partir de significados entre os indivíduos e o mundo e é por isso que a posição de negociação torna-se um fator mais perceptível, mas isso não significa que a posição dominante possa existir. A relação entre a telenovela e a audiência, ou como

Plábio M arcos M artins D esidério

ções: a dominante, a de oposição e a negociada. Quando os indivíduos estão “autocons-

social irá depender, dessa forma, de vários fatores. Para Hall (2008) existem três posi-

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

sui significados, mesmo aquele que pretende ser uma representação da realidade, a te-

M erchandising

mensagem terão uma correspondência com a audiência, se conseguir estabelecer essa

89


os códigos são decodificados dentro da “versão” hegemônica-dominante e a negociada, ou mesmo de oposição, possui muitas variáveis que devem ser situadas em contextos mesmo cultural brasileira evidencia que possa existir em alguns momentos uma posição codificada/decodificada dominante, bem como negociada e em alguns momentos, de oposição.

discurso hegemônico conseguiu atingir grande parte da população brasileira, sendo que seus produtores, principalmente as emissoras (no caso do Brasil a maior delas, e também a que mais produz telenovelas, a Rede Globo), podem ser considerados veiculadores de códigos hegemônicos. Esses códigos hegemônicos, principalmente construídos e articulados com a decodificação são estabelecidos e/ou atribuídos à ideia de Brasil moderno, aos grandes centros urbanos, principalmente do eixo (Rio-São Paulo, mais precisamente das elites e de uma emergente classe média), à sociedade de consumo, a partir da década de 70. A telenovela contribui através desses códigos hegemônicos e com uma ideologia dominante de um Brasil que se modernizava para a consolidação de uma sociedade aberta para o consumo capitalista, na qual os indivíduos estavam inseridos nesse processo de decodificação, pois o “telespectador opera dentro do código dominante” (HALL, 2008, 377). Porém, a versão negociada é de suma importância para compreender a relação entre telenovela e seu público. Hall (2008, p. 378) observa que os “códigos negociados operam em lógicas específicas ou localizadas” e desse modo o processo de decodificação também opera nesse processo. Os indivíduos, ao decodificarem vão negociando os códigos que, muitas vezes (ou na maior parte), são dominantes-hegemônicos, e assim estabelecendo também suas leituras e significados. Um exemplo disso é a própria audiência, que mesmo possuindo várias nuances de compreensão, pode ser compreendida pela negociação atribuída no processo de decodificação negociada. O ritmo serializado e dinâmico que a telenovela possui, impondo um movimento rápido na produção do gênero, não determina somente uma operação decodificante hegemônica. Existem espaços de negociação entre o consumo dos códigos, mesmo nesse sistema que parece ser hegemônico. Existem posições contrárias, alternativas, oposicionais na produção de códigos hegemônicos e suas leituras preferenciais? Isso pode existir no espaço da telenovela? Retomando o exemplo da posição negociada, quando foi citada a questão da audiência, pode-se também utilizar esse elemento para ilustrar quando a decodificação está

1 - n. 1

ciada é muito tênue no caso da telenovela. A ideologia da telenovela, que é, portanto um

ano

A linha que separa as duas principais posições, quais sejam dominante e nego-

Revista GEMI n IS |

históricos e sociais. A importância que a telenovela possui na produção televisual e até

90


“operando com o que chamamos de código de oposição”3. Algumas telenovelas obtiveram fracassos de audiência na história da teledramaturgia e pode-se aqui elencar dois rava retratar o comportamento das elites brasileiras e que colocou em discussão certos comportamentos morais. Um dos comportamentos morais abordados e que se iniciou um aposta com um amigo que iria conseguir ter relações sexuais com uma noiva, antes mesmo do seu próprio noivo. O autor procurou em vários momentos apresentar a visão das elites brasileiras sobre questões morais e éticas, como por exemplo, honestidade e como percebem os indivíduos das classes menos privilegiadas. Porém, em uma dessas discussões o público a ignorou e a audiência “despencou”, e isso é especialmente notório pelo fato de que a telenovela estava sendo veiculada pela maior produtora do gênero, a Rede Globo. O público não estava preparado para essas discussões, mesmo em pleno início da década de 90, o que obrigou o autor e o staff da emissora a alterarem em alguns pontos a trama. Outro exemplo seria que nessa mesma década, a emissora hegemônica, a Rede Globo sente sua hegemonia ameaçada – pelo menos em nível de audiência – por outra emissora (Rede Manchete) que veicula uma telenovela O Pantanal (1990), esta sob autoria de Benedito Rui Barbosa, que se colocou a explorar paisagens bucólicas, extravagantes e a narrar uma saga de uma família no interior do Brasil, na região do pantanal sul-mato-grossense. Essa novela conseguiu níveis altos de audiência evidenciando como o público pode decodificar uma posição alternativa frente um a produtor hegemônico, bem como seus códigos também hegemônicos. Importante observar que também é

e até mesmo vice-versa. Essa perspectiva, compreendida por Hall (2008), procura ampliar a proposta da análise semiótica presente em Joly (2008), pois mesmo analisando os signos e seus significados presentes na imagem e percebendo a imagem como elemento de intercessão e permuta, é necessário compreender como esses significados são apropriados pelo público, ou melhor, quais os significados que o público atribui às mensagens codificadas das imagens. Como foi abordado anteriormente, o merchandising social está inserido nessa dinâmica, pois ao participar da construção dos códigos na narrativa teleficcional, ele também é apropriado de forma codificada como qualquer texto televisivo. Como o merchandising social é impulsionado por vários motivos, seja pelos pró3 HALL, op. cit., p. 379.

Plábio M arcos M artins D esidério

dada situação quando estão sendo negociados podem já serem tidos como alternativos

muito tênue a linha entre a posição negociada e a contestatória, pois os códigos em uma

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

na trama, foi quando um médico bem sucedido Felipe Barreto (Antonio Fagundes) faz

M erchandising

exemplos: a novela O Dono do Mundo, escrita por Gilberto Braga, em 1991, que procu-

91


prios produtores televisivos com interesses econômico-estratégicos para aumentar a audiência, ou até mesmo compartilhando um discurso ideológico/político de mobiliabsorvendo. O merchandising social passa a ser percebido como um das formas de mobilização para procurar conscientizar o público sobre vários temas propostos (pela emissora) e inserido na narrativa ficcional. A problemática a ser compreendida é como os

ção. Como os signos plásticos e icônicos são visualmente percebidos, faz-se necessário compreender como eles estão posicionados no próprio texto televisivo, no caso o gênero telenovela, para, então, se identificar e analisar os significados e a decodificação por parte do público. Imbricada a isso a mensagem lingüística, seja escrita ou sonora, para acrescentar na construção desses códigos. 1.1 Os códigos da televisão e a prática do merchandising social Para compreender melhor como a televisão opera na construção desses códigos e como se produz até mesmo uma “cultura televisiva,” recorremos à perspectiva aberta por Fiske (1990). Como para o estudioso a televisão é uma produtora de significados e prazeres, pois a própria cultura que “circula” na sociedade é constituída de significados e prazeres, a televisão, portanto, produz e reproduz esses elementos (FISKE, 1990, p. 01). Um elemento importante e destacado por ele é a necessidade de situar a televisão, mesmo nessa perspectiva dos “estudos culturais”, devido à preocupação com os significados e sua contextualização, como também um produto da economia capitalista. A televisão, como produtora de significados e espaço de circulação dos mesmos, torna-se uma agente cultural que agrega à construção de vários códigos e esses, segundo FISKE (1990, p.04), são um sistema de convenções e regras compartilhadas, produzindo uma relação entre produtores, textos e audiências. Os códigos também na televisão são apropriados na medida em que na própria sociedade eles possuem significados já codificados e decodificados. Esses códigos na verdade já existem num sentido social, mesmo em um programa que procura aproximar da realidade ele está codificado. Para compreender a proposta de Fiske (1990) vamos ressaltar o esquema que ele propõe para analisar os códigos da televisão e seus níveis. O primeiro nível seria o da “realidade”, pois está mais próximo de uma realidade objetiva, comportando os códigos técnicos, que podem ser exemplificados nos gestos, na maquiagem, nas roupas, nas expressões, nos sons, na aparência, fala e ex-

1 - n. 1

lingüísticas, plásticas e icônicas estão situadas no processo de codificação e decodifica-

ano

códigos construídos e presentes nas imagens e, principalmente, suas mensagens, sejam

Revista GEMI n IS |

zação social, que principalmente a partir da década de 80, a televisão no Brasil está

92


pressões. No segundo nível a representação que engloba a câmera, iluminação, edição, música, som, que transmite códigos convencionais da representação, que forma, por que é organizado dentro da coerência e aceitável socialmente pelos códigos ideológicos, como individualismo, patriarcalismo, raça, classe, capitalismo etc.4 códigos da televisão, percebendo os significados, bem como os códigos ideológicos e convencionais que são mais complexos de serem percebidos e analisados. Compreender os significados sociais presentes na televisão, esse “senso comum social,” é uma tarefa importante, principalmente quando os elementos ideológicos estão imbricados com as representações e a dimensão técnica. Analisar a telenovela e como seus códigos são constituídos a partir desse senso comum, e como, por exemplo, o merchandising social pode ser compreendido nessa proposta esquemática de perceber os códigos da televisão. Vamos concentrar em alguns elementos propostos por Fiske (1990). O trabalho que a câmera realiza é um dos momentos em que os códigos da televisão podem ser percebidos, como, por exemplo, o uso do close-up, quando da sua aproximação, quanto do seu distanciamento. Vejamos nesse sentido a partir da novela O Clone, o recurso do close-up numa cena em que a personagem Maysa (Daniela Escobar) discutia com sua mãe Maysa (Débora Falabela) sobre o envolvimento da última com a dependência química. A utilização desse recurso é constante na cena e visa expor as emoções e explorar vários significados, que estão atrelados à desestrutura familiar e falta de afinidades entre mãe e filha. Outro exemplo nessa própria telenovela –que explora o tema de dependência química como uma ação de merchandising social – é o

Em outra cena, ainda em O Clone na qual o close-up, já funciona como distanciamento, seria quando da prisão de Mel (Débora Falabela), Nando (Tiago Fragoso) e Regininha (Viviane Victorete) e suas mães vão à delegacia à procura de libertá-los. Os símbolos presentes nas personagens que caracterizam as mães dos jovens dependentes, tais como o vestuário, os gestos e a linguagem - recursos freqüentemente usados pela autora - retratam a diferenciação social. Nessa cena emblemática, ao colocar as mães das personagens sentadas juntas na delegacia, a câmera se distancia, mas enquadra esses personagens para que a autora (Glória Perez) componha um quadro que revele o envolvimento de diferentes níveis sociais na dependência química, submetendo num mesmo espaço diferença social e contravenção. Percebemos ali, claramente, os símbolos 4 FISKE, op. cit., p. 05.

Plábio M arcos M artins D esidério

caracterização emotiva que realmente envolva o espectador na cena.

close-up nos personagens envolvidos com drogas, nesse caso o objetivo é expor uma

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

A partir desse esquema, na perspectiva do autor, é possível compreender os

M erchandising

exemplo, a narrativa, o conflito, ação, diálogos, papéis. O terceiro nível é o da ideologia,

93


de uma família de elite, de classe média e de periferia. Através desses recursos simbólicos, a autora nos mostra que as drogas estão presentes nos diversos estratos sociais. constituição das cenas, mesmo que a imagem na televisão seja em movimento e sincronizada com o som, a música desempenha uma função importante para o desenrolar da narrativa ficcional, nesse caso da telenovela. Isso é relevante, pois o comportamento

imagem, na sua temporalidade, como efeito de memória entre os espectadores, principalmente a música, pois esta interfere na temporalização da imagem e sua apropriação pelo público, como está presente na perspectiva de Chion (1998). A fragmentação do vídeo e a dispersão do público estabelecem uma importância do som para dinâmica da narrativa ficcional, pois dependendo de um efeito há um sentido e construção de significados. Sobre a estruturação dos personagens e de seus papéis numa narrativa ficcional é necessário perceber quais os códigos ideológicos que estão presentes, principalmente porque mesmo sendo pessoas reais, estão na intertextualidade da própria mídia6. È importante que esses códigos sejam percebidos ao se analisar a telenovela, e no caso, do merchandising social quais são as motivações para a escolha do personagem, os códigos sociais presentes nessa escolha e também nos papéis que eles representam. Um exemplo disso foi o que ocorre com a novela Laços de Família (1999), quando o autor Manoel Carlos inseriu como merchandising social, uma “discussão” sobre a doação de órgãos. Os personagens envolvidos nessa ação pedagógica eram, principalmente, duas mulheres, Vera Fischer, (papel da mãe) que doa a medula óssea para a filha, Carolina Dieckman (papel da filha): ambas bonitas, de classe média, inteligentes e a última casada com o “galã” da novela. Elas não mereceriam o sofrimento de um câncer? A cena marcante é quando a personagem com leucemia, Camila (Carolina Dieckman), tem sua cabeça raspada, o close-up, a focalizando, a emoção envolvendo o espaço, a música temporalizando com a imagem: uma jovem não poderia ter esse “castigo”. Outro elemento importante são os códigos ideológicos que estão presentes nos códigos televisuais e podem ser percebidos no processo de codificação e decodificação. Numa telenovela, esses códigos ideológicos também devem ser analisados na construção das narrativas e na distribuição dos papéis. As relações de gênero, classe, raça, por exemplo, são verificáveis e podem ser compreendidos nessas estruturas narrativas e nas construções de sentido. É importante que esses códigos sejam analisados, prin5 MACHADO, Arlindo. Arte do vídeo. 2ed. São Paulo: Brasiliense 1990, p. 51. 6 FISKE, John. Culture Television. London: Routledge, 1990, p. 08-09.

1 - n. 1

do vídeo que a compõe5. O som, portanto, possui uma influência na constituição da

ano

de assistir televisão é mais disperso do que no cinema, devido à própria estruturação

Revista GEMI n IS |

Um elemento importante a ser destacado é como a música está presente na

94


cipalmente numa sociedade como a brasileira, que possui uma grande desigualdade social, uma tradição de patriarcalismo e formas de preconceito e discriminação, e a Porém, o que interessa destacar é como a inserção do merchandising social, está carregada de códigos ideológicos, a partir dessa perspectiva aberta por Fiske (2008)7. a problematização sobre a dependência química, poderemos analisar alguns códigos presentes nessa ação. Uma questão pertinente que a autora da novela aborda é a influência da família na dependência química, seja enquanto sua desestruturação, seja também, no auxílio ao tratamento. Vários elementos podem ser observados, e um deles diz respeito a: que tipo de família a novela apresenta? A autora se preocupa em apresentar como sendo a família ideal, a família nuclear, e quando essa se desestrutura ela se torna uma das motivadoras da dependência química. Outros tipos de família não são significativas na novela. Outros códigos também são relevantes como a personagem da classe menos privilegiada economicamente que possui a família mais desestruturada, pois é monoparental (só tem a mãe), e a única que tem o final trágico, pois acaba morrendo. Essa personagem, Regininha (Viviane Victorete), envolve-se com os outros personagens também dependentes e que são de classes mais privilegiadas como Mel (Débora Falabela) de uma família muito rica e Nando (Tiago Fragoso) da classe média e sempre se mostrou vislumbrada com os bens de consumo dos seus “companheiros de vício”. É a partir dela que os outros personagens Mel e Nando começam a conhecer o espaço da marginalidade. Existe um código ideológico de que os indivíduos de classes pobres

zação social em torno de um tema, seja de saúde pública, ou mesmo de um comportamento moral, necessita de personagens que estejam vinculados ao mundo da realidade, ou melhor, que possuam uma maior verossimilhança possível. Porém, nesse processo vários códigos ideológicos estão inseridos, como tentamos compreender no exemplo descrito acima. A utilização de determinados signos, como se refere Joly (2007), quais sejam, os plásticos, icônicos e lingüísticos, para caracterização das cenas contribui para a construção de uma imagem sobre essa ação pedagógica que tem como objetivo sensibilizar o público. Retomando à proposta da novela O Clone de tratar da dependência química, percebe-se como as cores das roupas dos personagens envolvidos com as drogas eram mais escuras, bem como a linguagem utilizada por eles é alterada para carac7 FISKE, op. cit., p. 11-13.

Plábio M arcos M artins D esidério

O merchandising social ao propor ação pedagógica para uma possível mobili-

estão mais aptos à marginalidade?

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

Se retomarmos, por exemplo, à novela O Clone e ao seu principal merchandising social,

M erchandising

situação do negro nesse sentido é pecular.

95


terizar esse ambiente de dependência: a fala, os gestos e signos icônicos como a própria família. Essa mudança de visual que Fiske ressalta sobre a utilização de recursos de 8

cos. Os dependentes químicos tinham um rosto com características sempre “sombrias”, aproximando-os de um visual que pode ser chamado de dark ou quase gótico. O visual dos dependentes apresentados na novela foi alvo inclusive de polêmica, muitos critica-

A produção do programa e a construção de textos sobre o merchandising social, isto é, os significados atribuídos ao programa, possuem dimensões diferentes, mas que estão relacionadas. Para compreender essa relação e principalmente como os significados são construídos a partir da percepção dos programas, é necessário segundo Fiske (1990, p. 14), compreender a construção dos discursos, pois esses possuem relações de poder e estão além da linguagem verbal. Os discursos são produzidos e circulam na televisão a partir de determinações socialmente estabelecidas, e possuem significação e aceitação pelos produtores e receptores. O discurso, tem como um dos objetivos, produzir consenso social, pois os significados também são consensuais. Os programas televisivos suscitam vários tipos de experiências e com isso múltiplos significados podem ser atribuídos à leitura desses programas, principalmente porque esses próprios programas são intertextuais na própria televisão. Se compreendermos o merchandising social como um texto televisivo em que vários discursos estão aí presentes no mesmo, podemos analisar quais os principais significados que os “leitores” fazem desse texto e as relações que estabelece com as experiências desses leitores. O merchandising social procura na verdade a partir das relações com os códigos ideológicos e hegemônicos da sociedade estabelecer também relações com o público. Sensibilizar o mesmo para discussão de algum tema requer que haja essa relação de significação entre o público e o texto televisivo, principalmente se os mesmos códigos estão sendo compartilhados. Os discursos que circulam na telenovela e, portanto, nos temas abordados pelo merchandising social, devem também circular pela estrutura social. Esses discursos compatíveis com os códigos dominantes da sociedade são mais “aceitos” pelo público, mas existem discrepâncias e resistências quando não estabelece essa significação entre o texto televisivo e o público. Para compreender melhor como existe essa relação entre o texto do merchandising social e os processos de significação e até mesmo as possíveis discrepâncias e resistências, é necessário que haja estudo sobre as audiências, ou melhor, a recepção dos 8 FISKE, op. cit., 1990, p. 10.

1 - n. 1

está entre os principais críticos.

ano

ram afirmando que remetiam inclusive numa estética do drogado. O cartunista Ziraldo

Revista GEMI n IS |

maquiagem (o efeito make-up), por exemplo, para evidenciar certos códigos ideológi-

96


temas propostos e inseridos nas narrativas ficcionais. Existe, portanto, vários códigos a serem analisados, pois o alcance que esse texto possui na sociedade depende de vários relações de significação com os códigos sociais. Como Fiske (1990)9 ressalta, a sociedade é constituída a partir de um processo na televisão também influenciam na construção dos códigos, principalmente para o estabelecimento dos códigos de uma cultura hegemônica. As relações de poder que se configuram na disputa desses capitais provocam relações diferenciadas de significação com o texto televisivo. O capital cultural pode ser estendido em competência cultural e o público o utiliza para decodificar os significados do discurso televisivo. No caso da telenovela, esse capital cultural é usado pelos produtores, bem como pelo próprio público para estabelecer os códigos hegemônicos ou até mesmo resistências. Como a distribuição do capital cultural é desigual, a apropriação dos significados do texto televisivo e, portanto, da narrativa ficcional torna-se um espaço para relações de poder entre os produtores e o público, porém essa relação também possui momentos de negociação e a construção decodificada das mensagens televisivas. A imagem, assim é constituída de signos passíveis de serem analisados, mas a partir de uma ordem simbólica perpassada por conflitos e mudanças sociais. A telenovela brasileira comporta essas contradições, pois elementos da cultura dominante estão presentes nos seus códigos, mas também quando possibilita produção de códigos bem próximos ao popular, ou melhor, ao cotidiano, ao familiar. Os signos e os significados apropriados da telenovela possuem uma relação “significativa” com o

RO 2008). O merchandising social procura utilizar dessa proximidade para sensibilizar o público com as temáticas que ele propõe, e com isso cumprir seus vários objetivos, seja de aumento da audiência, ou mesmo para “materializar” valores ideológicos como o de mobilização social. O merchandising social procura provocar uma interação entre o que é produzido, como códigos da imagem e o que será decodificado. Quando numa telenovela se procura abordar determinado tema, se utiliza de signos presentes nas imagens e em palavras. As imagens e o sentido pretendido pelas mesmas, podem ser compreendidos também através das palavras e do próprio som (JOLY, 2008). Um tema que abordou a dependência química procurou colocar em interação várias imagens da dependência 9 FISKE, op. cit., p.18-20.

Plábio M arcos M artins D esidério

por essa proximidade familiar entre narrativa ficcional e realidade (MARTIN-BARBE-

cotidiano da realidade latino-americana. A própria imagem codificada é decodificada

social e os códigos da imagem televisiva : a construção de significados na telenovela

de disputa por capitais, sejam econômicos, culturais ou políticos. E esses circulando

M erchandising

fatores, sejam da própria cultura televisiva e sua relação com o público, ou mesmo as

97


química, dos familiares, dos elementos sociais envolvidos como as periferias onde as drogas são comercializadas e também pessoas não ficcionais tiveram experiência com no diálogo dos personagens e até mesmo dessas pessoas que não participavam primeiramente da ficção, mas que foram incluídas na narrativa para fornecer depoimentos acerca de suas experiências com as drogas.

disciplina, principalmente para estarmos cientes sobre a heterogeneidade que as mensagens da imagem proporcionam e a importância de considerar como o público estabelece o processo de interpretação de significados dessas mensagens.

Referências BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1996. CHION, Michel. Audiovision: Introduccion a un analisis conjunto de la imagen y el sonido(la). Barcelona: Paidós, 1998. DESIDÉRIO, Plábio Marcos Martins. Telenovela e comportamento social: a questão das drogas em O Clone. 2004. 137f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2004. FISKE, John. Culture Television. London: Routledge, 1990. p. 1 a 37. HALL, Stuart. Diáspora: identidades e mediações culturais. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. HAMBURGER, Esther. O Brasil Antenado: a sociedade da novela. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2005. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. 12 ed. Campinas: Papirus, 2008. MACHADO, Arlindo. Arte do vídeo. 2ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. MARTINS-BARBERO, Jesus. Dos Meios a Mediações. Rio de Janeiro: UFRJ Editora, 2008. ORTIZ, Renato. Telenovela: história e produção. Renato Ortiz; Silva Helena Simões Borelli; José Maria Ortiz Ramos. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense,1991. ROSE, Diana. Análise de imagem em movimento. In: BAUER, Martin W; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

1 - n. 1

rios desdobramentos e, portanto, constituir como aponta Joly (2008) um exercício de

ano

Para analisar as imagens presentes na televisão necessita-se perceber seus vá-

Revista GEMI n IS |

a dependência. Mas buscou-se também interagir com mensagens implícitas e explícitas

98


Identidade

homoafetiva em telenovelas: percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk Guilherme Moreira Fernandes Mestrando em Comunicação pelo Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduado em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação da UFJF. Bolsista da Pró-reitoria da Pós-Graduação (PROPG) da UFJF. E-mail: gui_facom@hotmail.com

Cristina B randão Professora adjunta da Facom/UFJF e do PPGCOM da UFJF. Mestre e Doutora em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO). E-mail: cristinabrandao49@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 99 - 125


Resumo Partimos dos pressupostos teóricos da Folkcomunicação na perceptiva dos Estudos Culturais para analisar os diferentes modos de receber a mensagem midiática por parte de grupos massivos e de audiências específicas, em questões relativas à identidade homoafetiva projetada pelas telenovelas. Com base numa pesquisa de opinião sobre a homossexualidade e num grupo focal, procuramos entender de que modo a representação da homoafetividade na televisão influencia a formação das identidades e dos valores destes grupos. Nessas pesquisas, aponta-se que há uma dicotomia na recepção: enquanto o grupo de cultura contra-hegemônica (folk) formado pelos homossexuais enfatiza a não afetividade entre os casais das diversas tramas da Rede Globo, o grupo massivo, apesar de aprovar os personagens na trama, majoritariamente se coloca contra formas explícitas de afeto, como o beijo entre personagens do mesmo sexo. Palavras - chave: Telenovela; Identidade; Homoafetividade.

A bstract We assume the perceptual theorists Folkcommunication cultural studies to examine the different ways to receive the media message by massive groups and target audiences on issues of identity homoafetivas designed by soap operas. based on a survey of opinion on homosexuality and a focus group, we try to understand how the representation of homoafetivas on television influences the formation of identities and values of these groups. in these surveys, indicates that there is a dichotomy at the reception: while the group of counter-hegemonic culture (folk) formed by homosexuals does not emphasize the affection between couples of different plots of the globo network, the group mass, while approving the characters in the plot, mainly arises from explicit forms of affection, like the kiss between the characters of the same sex. Keywords: Soap Operas; Identity; Homoafetivas.


Introdução

A

realidade contemporânea é, cada vez mais, marcada pela presença cotidiana dos meios de comunicação de massa na vida social. Fenômenos de variados campos – políticos, econômicos, culturais – são impactados, em alguma

medida, pelas variáveis relativas aos processos de mediação efetivados pelos veículos de comunicação. Neste sentido, perscrutar qual é a efetiva extensão desses impactos constitui-se numa questão crucial para a compreensão da contemporaneidade. Todas as disputas sociais passam, hoje, pela batalha por corações e mentes que se processa no espaço midiático. Não seria diferente para as questões relacionadas aos grupos minoritários: a luta por representações não estereotipadas desses grupos nos meios de comunicação de massa e o desenvolvimento de outros espaços comunicativos alternativos são processos cruciais para estes segmentos sociais. Tendo o presente trabalho foco nos sentidos socialmente atribuídos à homo-

afetividade1, é importante, antes, delinear os pressupostos teóricos com os quais aqui se trabalha: a suposição de que os meios de comunicação ocupam papel de destaque na formação de valores não implica admitir que eles sejam os únicos agentes a fazê-la tampouco que os receptores sejam passivos nos processos de apreensão das mensagens midiáticas. Logo, sem abdicar do pressuposto de relevância dos meios, não se adota neste trabalho o pressuposto de que os valores sociais que circulam pela mídia massiva sejam as únicas fontes possíveis para a construção de sentidos sobre a homoafetividade ou qualquer outro tema. Neste rumo, consequentemente, valoriza-se a percepção de que grupos minoritários não somente têm a capacidade de resistir aos discursos hegemônicos no ato da recepção, mas são ativos produtores de suas próprias culturas – o que implica o desenvolvimento de alternativas de comunicação (seja pela estratégia da cultura e da comunicação popular, seja na luta por espaço na mídia massiva). Diante disso, talvez seja necessário recuperar e colocar em diálogo com essas perspectivas teóricas já cita1.Afetividade entre pessoas de mesmo sexo.


das uma contribuição eminentemente brasileira, mas, muitas vezes, negligenciada ou subaproveitada: a Folkcomunicação, desenvolvida pelo pernambucano Luiz Beltrão.

Em 1967, em sua tese de doutorado, Beltrão (2001, p. 79) definiu a Teoria da

ta ou indiretamente ao folclore”, e defendeu que a importância da Teoria era expor “a necessidade imprescindível de estarmos atentos a essa forma esquisita do intercâmbio de informações e ideias entre os dois brasis, no interesse da afirmação e do desenvolvimento nacional”. Beltrão partiu dos pressupostos de Edison Carneiro (1965) e sua dinâmica do folclore. Carneiro (1965) apontava que o folclore não seria estático, como previam os folcloristas tradicionais, e sim um processo dinâmico que “o povo atualiza, reinterpreta e readapta constantemente os seus modos de sentir, pensar e agir em relação aos fatos da sociedade e aos dados culturais do tempo” (p. 02), peculiares às camadas populares. Carneiro (1965) afirmava que o folclore era uma reinvenção social e que ele se projetava no futuro com expressões da sede de justiça: “o folclore, com efeito, se nutre dos desejos de bem-estar econômico, social e político do povo e, por isso mesmo, constitui uma reivindicação social” (p. 22). Assim, o povo, costumeiramente, não tem nos veículos ortodoxos de comunicação meios de expressar suas opiniões e ideais – o que leva à utilização de veículos não tradicionais. Nesse ínterim, aparece a figura do líder de opinião, como personagem quase sempre do mesmo nível social e de franco convívio com seus pares, tendo sobre eles uma vantagem: tem mais acesso aos meios de comunicação do que seus liderados. Treze anos mais tarde, Beltrão continua sua investigação acerca da Folkcomunicação e lança o livro “Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados”. Nesse volume, o pesquisador confronta o sistema de comunicação social com o sistema da Folkcomunicação. Para ele o sistema de comunicação social é “o conjunto de procedimentos, modalidades e meios de intercâmbio de informações, ideias, experiências e sentimentos adotado pelas elites eruditas” (BELTRÃO, 1980, p. 20). Tal sistema vertical de comunicação exige do receptor duas características fundamentais: primeiro o nível intelectual, responsável por decodificar as informações veiculadas; segundo a capacitação econômica para a posse dos mass media. Beltrão percebe que o usuário do sistema da Folkcomunicação é um indivíduo

1 - n. 1

de opinião, ideias e atitudes da massa, por intermédio de agentes e meios ligados dire-

ano

Folkcomunicação como “o processo de intercâmbio de informações e manifestações

Revista GEMI n IS |

1 Aportes da Folkcomunicação

102


frequentemente marginalizado, ou seja, vive à margem de duas culturas: a hegemônica e aquela específica de seu grupo. Deste modo, sofre influência de ambas, constituindoe de duas sociedades que nunca se interpenetram e fundiram totalmente” (BELTRÃO, De acordo com Beltrão, os usuários do sistema da Folkcomunicação podem ser divididos em três grandes grupos: rurais marginalizados; urbanos marginalizados e os culturalmente marginalizados. Na Folkcomunicação, cada ambiente gera seu próprio vocabulário e sua própria sintaxe. Conforme Beltrão (1980, p. 40), cada agente-comunicador emprega um determinado canal, que, de acordo com suas especificidades, vai dar conta de transmitir as mensagens que se quer passar. Os grupos culturalmente marginalizados podem ser urbanos ou rurais e constituem-se de indivíduos marginalizados por contestação à cultura e à organização social estabelecida, em razão de adotarem práticas sociais contrapostas aos ideais generalizados (ou, pelo menos, majoritários) na comunidade. Beltrão estabelece uma subdivisão nesse grupo, agrupando-os em: messiânico, político-ativista e erótico-pornográfico. Os indivíduos pertencentes a esse grupo aspiram a “uma vida livre de sofrimentos, angústias, injustiças e opressões e/ou de pleno gozo das riquezas e prazeres que a civilização proporciona a uma minoria privilegiada” (BELTRÃO, 1980, p. 104). Numa visão que obviamente está contaminada pela própria leitura hegemônica que o autor critica, Beltrão afirma que o grupo erótico-pornográfico, objeto de análise desse trabalho, constitui-se por:

víduos desse grupo pudessem se expressar. A década de 1960 foi especialmente marcada pelos movimentos feministas e pelo chamado ‘Poder Jovem’, que juntos foram importantes para politizar questões relativas ao gênero e à sexualidade, fazendo destas temáticas bandeiras centrais numa década marcada pela contestação política, Não se deve esquecer de que, enquanto os discursos da comunicação social são dirigidos ao mundo, os da Folkcomunicação se destinam a um mundo em que palavras, signos gráficos, gestos e atitudes mantêm relações como conduta das classes integradas, marginalizadas da sociedade, que vivem esmagadas pela tendência massificadora

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

A revolução sexual vivenciada no século XX foi fundamental para que os indi-

Todos os que não aceitam a moral e os costumes que a comunidade adota como sadios, propondo-se a reformá-los em nome de uma liberdade que não conhece limites à satisfação dos desejos sexuais e das práticas hedônicas consideradas perniciosas pela ética social em vigor (BELTRÃO, 1980, p. 104).

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

1980, p. 39).

I dentidade

-se em um híbrido cultural. O marginal “é um indivíduo à margem de duas culturas

103


da cultura dominante disseminada sistematicamente pelos aparelhos convencionais da reprodução ideológica (escola/ família/ Estado/ Igreja) e reforçada pelos veículos da inNessa visão, Roberto Benjamin (2000) apresenta a nova abrangência da Folkcomunicação, que, de acordo com professor podem seguir seis linhas, a saber: 1) a comunicação (intergrupal e grupal) ocorrente na cultura folk; 2) a mediação dos canais folk para

traços da cultura de massa absorvidos pela cultura folk; 5) a apropriação de elementos da cultura folk pela cultura de massa e pela cultura erudita; 6) a recepção na cultura folk de elementos de sua própria cultura reprocessados pela cultura de massa. Para esse trabalho, chama-se a atenção o sexto ponto defendido por Benjamin e caracterizado por ser a linha que apresenta menos pesquisas no campo da Folkcomunicação. Ao explicá-lo, Benjamin narra um estudo realizado em 1995 na cidade de Tracunhaém (PE). Foi verificado que graças à novela Coração alado (1980) houve uma mudança no artesanato local. Na ficção existiam personagens oriundos dessa localidade que comercializavam produtos de artesanato, porém as peças não eram típicas daquela região. Com o turismo, existiu uma procura por aquelas peças e prontamente os artesãos passaram a confeccioná-las. O que merece atenção nesse ponto de pesquisa é que os portadores de uma cultura folk decodificam e recebem informações advindas de sua própria cultura pela mídia massiva de forma distinta daquela não portadora dessa cultura.

Quando Beltrão desenvolveu seus estudos sobre a Folkcomunicação (1980,

2001), o pesquisador ancorou sua teoria na perspectiva funcionalista. Para ele, o emissor transpunha sua mensagem para os líderes de opinião que, por sua vez, retransmitia para seus influenciados, a chamada audiência folk. Atualmente, verificamos uma aproximação da Folkcomunicação com os Estudos Culturais. Entre as diversas pesquisas, apontamos a de Osvaldo Trigueiro (2008).

Seguindo a ótica dos estudos culturais latino-americanos, Trigueiro (2008)

apresenta o conceito de ativista midiático. Segundo o autor, esses ativistas seriam os intermediários cognitivos entre os produtores de cultura e os consumidores Suas pesquisas se concentram em comunidades rurbanas (neologismo criado por Gilberto Freyre para as cidades urbanas com características rurais) no sertão da Paraíba. O estudioso aponta que a presença cada vez maior da televisão torna os estudos sobre audiência 2 Produção de bens simbólicos disseminados em escala industrial.

1 - n. 1

de massa e o uso dos canais massivos por portadores da cultura folk; 4) a presença de

ano

a recepção da comunicação de massa; 3) A apropriação de tecnologias da comunicação

Revista GEMI n IS |

dústria cultural2.

104


ainda mais complexos na sociedade midiatizada,

vista midiático, é mais provável que ele reinterprete a informação para transmitir a seus influenciados. O professor também aponta que não existe espaço vazio na comunicação. Os constituintes da audiência são ativos, mesmo que todos não atuem com a mesma intensidade. Porém, existe ainda um tipo especialmente mobilizado, que é o indivíduo ativista (2008, p. 47). O ativo exerce uma ação, participa de atividade e está sempre em movimento; o ativista é um militante que organiza e planeja a participação de outros nos movimentos. É alguém que se posiciona contra ou a favor de determinada situação. Assim, O ativista midiático age motivado pelos seus interesses e do grupo ao qual pertence na formatação das práticas simbólicas e materiais das culturas tradicionais e modernas. É um narrador da cotidianidade, guardião da memória e da identidade local, reconhecido como porta-voz do seu grupo social e transita entre as práticas tradicionais e modernas, apropria-se das novas tecnologias de comunicação para fazer circular as narrativas populares nas redes globais (TRIGUEIRO, 2008, p. 48).

tos dos intermediários concebidos por Beltrão (chofer de caminhão, caixeiro viajante, ambulantes, ciganos etc.) já não têm tanta importância para o sistema Folkcomunicação, visto que os moradores de pequenas cidades e distantes municípios brasileiros têm acesso à televisão, ao telefone fixo, ao rádio, à Internet, entre outros veículos de informação. Outras pesquisas desenvolvidas nesse eixo temático versam os “novos

movimentos sociais”, sobretudo nos aspectos identitários e de hibridismo cultural. A telenovela foi objeto de estudo na perspectiva comunicacional por Benjamin (2000), Trigueiro (2008) e Fernandes (2009).

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

No ambiente globalizado que vivemos, de acordo com Trigueiro (2008), mui-

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

Como mostra Trigueiro (2008), quando a decodificação é realizada por um ati-

I dentidade

[...] onde cada sujeito representa uma identidade sociocultural, que interage com outros diferentes grupos, mas com as mesmas aproximações socioculturais que reinventam os seus produtos de uso, ao invés de serem meros consumidores passivos das mensagens midiáticas. São as interações midiatizadas, nos vários níveis, dos sujeitos da audiência televisiva que geram os ativismos midiáticos, os avanços, as transformações e/ou renovações das culturas populares, quando incorporam os produtos midiáticos nas suas práticas cotidianas, ou se apropriam deles. (TRIGUEIRO, 2008, p. 21)

105


2 A telenovela e a questão da identidade homoafetiva

constitui um elemento crucial para estudar e entender a identidade brasileira contemporânea. A telenovela dita moda, influencia costumes, incita à reflexão social sobre os temas por ela abordados. Muitos podem não admitir, mas sabem o que acontece na

A telenovela é um formato teledramatúrgico que se consolidou, no Brasil, em 1964, com O direito de nascer, do cubano Félix Caignet, sucesso também na década anterior como radionovela. A trama foi ao ar pela TV Tupi, dando início ao hábito popular existente até hoje de assistir a telenovelas diariamente no prime time. Ismael Fernandes (1997, p. 65) aponta que “a segunda metade dos anos 60 assistiu ao maior torvelinho de emoções que a nossa televisão tem para contar. Tupi, Excelsior, Record e Globo entraram no páreo para valer”. A telenovela é definida ficção diária aberta, pois podem ocorrer mudanças nas tramas de acordo com a “vontade” do público ou da administração da emissora. A telenovela, segundo Thomas Tufte (1996), é um mediador cultural. É ela a responsável por discutir a vida cotidiana. As múltiplas, dinâmicas e ambivalentes articulações de culturas resultantes das telenovelas, para Tufte, podem ser divididas em dois tipos de discursos: o pessoal e o de classe. No discurso pessoal, cabem uma associação e uma identificação emocional com a família e com a comunidade, principalmente no campo amoroso. Já Anamaria Fadul (2000) diz que a família representada na telinha se aproxima do que ocorre no real. O discurso dramático, segundo a autora, não atinge grandes audiências se o público não se identificar com algum personagem. A semelhança com o real tende a provocar reflexões íntimas, o que faz com que o espectador se ligue no desfecho da história. Para Cristina Brandão (2007), o discurso contemporâneo da telenovela brasileira permite que a audiência “enxergue uma sociedade nada romântica, com suas mazelas refletidas na telenovela (...) o que um público, afeito a discursos politicamente corretos tenta esconder, está ali, diante dos seus olhos, em horário nobre” ( BRANDÃO, 2007, p.174). Na visão de Aluizio Trinta (2007), a televisão se propõe a compor contextos envolvendo indivíduos, grupos e comunidades que elaboram, propõem, celebram, negociam e defendem suas identidades, por meio de seu autoconceito e de sua autocompreensão. Trinta (2007) ainda sustenta que sistemas de representação estão ligados à

1 - n. 1

na formação da agenda pública.

ano

telinha, assim exemplificando o papel central da mídia (sobretudo da teledramaturgia)

Revista GEMI n IS |

Certamente, a telenovela é o gênero dramático mais consumido no Brasil e

106


formação identitária, uma vez que “uma identidade é construída quando dado sistema de representação proporciona forte identificação por parte dos que o reconhecem, aceimento de repartição de saberes, experiências e habilidades. sobre elas (veiculadas também na mídia). Constroem-se sentidos públicos para o que significa ser, por exemplo, homossexual – sentidos historicamente dados que se alteram ao longo do tempo e do espaço. Mais do que um fenômeno natural, a homossexualidade – ou, na expressão preferida pelos segmentos que defendem os direitos destes grupos, a homoafetividade – constitui um debate cultural. Pierre Bourdieu (2007) aponta que a luta simbólica é princípio de divisão da sociedade. A luta gera poder em que a classe dominante estabelece aos seus dominados. O poder advém de um maior capital acumulado, seja econômico, seja cultural, seja social ou simbólico. A relação produtor/receptor no âmbito da telenovela pode ser vista como processos sociais de apropriação de bens materiais e simbólicos que contribuem para a estruturação das características coletivas das pessoas. Assim, de acordo com Bourdieu, a realidade é reproduzida pelas práticas sociais e pelos estilos de vida do indivíduo. As ações e escolhas são determinadas pelo habitus (princípio unificar e gerador das práticas sociais), porém nem sempre com consentimento percebido. O teórico francês percebe que os que detêm menor capital não conseguem avaliar o que consome por meio da mídia, por exemplo. Sabemos que a televisão, de modo geral, não é bem vista por Bourdieu. Não queremos reforçar essa problematização se a TV é ou não um produto cultural legítimo. Nosso objetivo é mostrar as trocas simbólicas existentes entre a telenovela e seus

valer de forma hegemônica nos seus produtos. Desta forma, muitos subsídios culturais que a teleficção fornece ao público estão acocorados nos padrões da classe dominante. Queremos saber, mesmo assim, como é realizado o processo de projeção/identificação do receptor com as personagens televisivas. Manuel Castells (2008) vê a identidade como “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou, ainda, como um conjunto de atributos culturais interrelacionados, o(s) qual (is) prevalece (m) sobre outras fontes de significação” (p.22). Ele propõe três formas de se construir uma identidade: legitimada (introduzidas por instituições dominantes, a exemplo do nacionalismo); resistência (criada por atores que se encontram em posição desvalorizada pela lógica da dominação) e projeto

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

to hegemônico, que não permite que o discurso de uma minoria social possa se fazer

telespectadores, reforçando o habitus. Também observaremos a telenovela como produ-

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

Portanto, para cada identidade existente, há representações sociais dominantes

I dentidade

tam e adotam” (TRINTA, 2007, p. 153). De fato, a televisão pode funcionar como instru-

107


(quando atores sociais utilizam-se de um material cultural para construir uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade). resultando em projetos ou mesmo tornarem-se dominantes. Especificamente sobre o movimento de lésbicas e gays, Castells afirma que “não são simples movimentos em defesa do direito humano básico de escolher a quem e como amar. São também expres-

socialmente faz com que a interação entre o individuo portador da identidade homossexual e a sociedade sofra conflitos: “o conflito vem da noção de que sua própria identidade consiste nas relações do ‘eu’ com o ‘outro’. Assim como o indivíduo percebe-se em desacordo com seus padrões sociais, a sociedade lhe reserva a rejeição e esta passa também a fazer parte da identidade do sujeito.”(p.31) 3 Metodologia Conforme salienta Castelo Branco (2006a, p.113), a Folkcomunicação pode abarcar pesquisas qualitativas e quantitativas, além de diversas técnicas de coletas de dados, como questionários e entrevistas, de acordo com as especificidades do objeto e dos objetivos de estudo. Portanto, existe uma amplitude não só de assuntos, mas também de métodos, que podem ser abordados. Castelo Branco (2006b, p.122) ainda afirma que a Folkcomunicação não tem uma metodologia própria, o que a distingue das demais pesquisas é a especificidade do objeto e o aporte teórico lançado por Beltrão. Assim, com base nos pressupostos dos Estudos da Recepção, utilizamos no presente artigo duas técnicas de pesquisa com a intenção de dar conta das hipóteses folkcomunicacional aplicadas a um segmento historicamente marginalizado – o dos homossexuais. A primeira foi uma pesquisa de opinião, feita com um grupo generalista, selecionado, aleatoriamente, para dar conta de qual imagem este universo tinha da homoafetividade. A técnica da pesquisa de opinião baseia-se na aplicação de questionários3 quantitativos para o público em geral, audiência massiva, com o objetivo de diagnosticar como é percebida a identidade homoafetiva em telenovelas, analisando fatores como religião, religiosidade, grau de escolaridade, profissão, sexo, sexualidade, faixa etária, renda familiar e bairro em que habita. Foram aplicados 152 questionários, nos dias 19, 3 Pela quantidade de questionários aplicados, a pesquisa não objetivou constituir uma amostra estatisticamente representativa de toda a população, mas sim ofertar indícios de valores socialmente arraigados entre o público em geral.

1 - n. 1

Teresa Sell (2006) comenta que o fato de a identidade gay não ser bem aceita

ano

sões poderosas de identidade sexual e, portanto, de liberação sexual” (p. 256).

Revista GEMI n IS |

O autor sugere que identidades que começam como resistência podem acabar

108


20 e 21 de maio, no período das 11 às 14 horas, no calçadão da Rua Halfeld, em Juiz de Fora-MG, local de passagem de muitos juiz-foranos de diversos segmentos sociais. homossexuais, que teve como objetivo perceber os aspectos valorativos e normativos dente do Movimento Gay de Minas (MGM), Marco Trajano, que convidasse doze pessoas, portadoras da identidade homossexual, para participar da pesquisa. Das doze pessoas convidadas, sete compareceram à reunião, que aconteceu no dia 5 de junho, às 19 horas. Foi exibido um DVD com cenas de algumas novelas4 e, depois, prosseguimos a reunião com um debate de aproximadamente uma hora e meia. 4 A representação das personagens homossexuais nas telenovelas: de A Próxima

Vítima (1995) a A Favorita (2008) 5 A próxima vítima, exibida em 1995, novela de Sílvio de Abreu mostrou que além de problemas por sua condição gay, o casal foi alvo de expressões de racismo. O par romântico Sandrinho (André Gonçalves) e Jefferson (Lui Mendes) pretendia ser plenamente aceito por suas respectivas famílias. A trama mostrou embates entre Sandro e sua mãe Ana (Suzana Viera), que dizia poder até aceitar a sexualidade do filho, mas não queria que ninguém dela soubesse. Jefferson também enfrentou problemas similares com sua família. Fátima (Zezé Motta) e seu irmão Sidney (Norton Nascimento) não entendiam o porquê da homossexualidade de Jefferson. Fátima sempre desconfiou da amizade entre Sandro e Jefferson, tendo indagado o filho sobre tal relação. A personagem de Zezé Motta também perguntou a Ana o que ela pensava dos dois. Ambos con-

no Rio de Janeiro, motivado pela polêmica envolvendo sua personagem. Torre de Babel (1998), também de Sílvio de Abreu, não foi tão bem recebida como a anterior. Vários assuntos desagradavam à audiência, entre eles, a relação íntima de Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Silvia Pfeifer). Era um casal de empresárias, donas de uma loja em um shopping. Foram retratadas em uma abordagem bastante direta, sem 4 A saber: A próxima vítima (1995), Torre de Babel (1998), Mulheres apaixonadas (2003), Senhora do destino (2004), América (2005), Páginas da vida (2006), Paraíso tropical (2007) e A favorita (2008). 5. Nesse item, optamos por descrever as telenovelas postas em discussão pelo grupo focal. Gostaríamos de ressaltar que as seguintes telenovelas das 21 horas – Explode coração (Glória Perez/1995), A indomada (Aguinaldo Silva/1997), Por amor (Manoel Carlos/1997), Suave veneno (Aguinaldo Silva/1999), Celebridade (Gilberto Braga/2003), Belíssima (Sílvio de Abreu/2006), Duas caras (Aguinaldo Silva/2008) e Viver a vida (Manoel Carlos/2009) – também apresentaram personagens homossexuais. A atual Passione (Sílvio de Abreu/2010) também está abordando a temática.

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

a morar juntos. Recordamos do triste episódio do espancamento do ator por skinheads,

tam então que são gays, escandalizando suas famílias. No fim da novela, eles começam

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

que são referências de um grupo em particular. Para realizá-lo, foi pedido para presi-

I dentidade

Já a outra técnica utilizada, agora de caráter qualitativo, foi o grupo focal com

109


subterfúgios ou artifícios, despertando intensas reações no público; disto resultou um desfecho trágico, com a morte de ambas na explosão do shopping center. Outros persoAntony), também foram “limados” da telenovela, com a mesma justificativa: chocavam demais os telespectadores. As principais justificativas para a rejeição do público estão no fato de o casal de

personagem Rafaela realmente iria morrer em uma explosão do shopping; Leila, porém, refaria sua vida amorosa com a personagem Marta, interpretada pela veterana Glória Menezes. Impacto certo junto ao público habitual das telenovelas. De 1998, com a explosão do shopping center de Torre de Babel, a 2003, com Mulheres apaixonadas, de Manoel Carlos, o discurso da telenovela, no que tange à relação homossexual pouco se modificou. Mas, a partir de 2003, o assunto vem à tona com força e seriedade. Na telenovela Mulheres apaixonadas (2003), Clara (Alinne Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli), duas estudantes, tinham um relacionamento que foi sendo gradativamente desenvolvido no decorrer da trama. As personagens enfrentam a incompreensão de seus pais; assim, por exemplo, a mãe de Clara quer afastá-la de Rafaela, proibindo-a de sair com ‘aquela outra’, Clara lhe responde: “Aquela outra tem nome. É Rafaela. E ela é minha namorada!”6. O preconceito na escola foi mostrado pela homofóbica personagem Paulinha (Ana Roberta Gualda), que usava expressões irônicas para retratar Clara e Rafaela. Em uma das cenas, a diretora do colégio, Helena (Christiane Torloni), chama as três a sua sala e lhes dá uma lição de moral, dizendo que todos têm o direito de ser felizes e que a Paulinha deveria preocupar-se mais com sua vida. Só assim poderia viver bem. Um dos plots, na reta final da novela, foi o baile de formatura. A festa foi ao ar nos dois últimos capítulos da trama. Estava previsto uma encenação de Romeu e Julieta, de Shakespeare. Clara seria Julieta e Rodrigo (Leonardo Miggiorin) seria Romeu. Rafaela ajudava Clara nos ensaios da peça; logo, conhecia todas as falas de Romeu. Dias antes da apresentação, Rodrigo quebra o pé e é impedido de contracenar com Clara. Para que a peça pudesse ser encenada, ele convida Rafaela para fazer a personagem Romeu. Houve, então, um beijo trocado por Clara e Rafaela, ou melhor, Romeu e Julieta, um homem e uma mulher. Luiz Eduardo Peret (2005) se ocupa da trama Mulheres apaixonadas sob a ótica da análise de conteúdo e de recepção. O pesquisador percebe que a trama, envolvendo 6 Trechos das falas das personagens na telenovela Mulheres apaixonadas.

1 - n. 1

tava-se de mulheres “maduras” e atrizes bem conhecidas pelo público. Pela sinopse, a

ano

lésbicas ter sido apresentado, logo no início da trama, como união estável; afinal, tra-

Revista GEMI n IS |

nagens, como o violento Agenor (Juca de Oliveira) e o drogado Guilherme (Marcello

110


Clara e Rafaela, representa 1% do que foi narrado na história de Manoel Carlos. Entretanto, admite que isso não interferiu no desenrolar da narrativa, já que a história delas Lustosa), que sempre implicou com seu comportamento ‘estranho’, culpando Rafaela Para que as duas pudessem morar juntas, era necessário que Clara chegasse à maioridade, como a novela mostrou. Margareth fez de tudo para a filha não sair de casa, mas foi em vão. Destacamos ainda a personagem Eugênio (Sylvio Meanda) secretário particular da poderosa Estela (Lavínia Vlasak), um sujeito bastante efeminado e sempre disposto a aconselhá-la na sua fatigante busca amorosa pelo padre Pedro (Nicola Siri). Senhora do destino (2004), de Aguinaldo Silva, foi outra novela em que personagens lésbicas tiveram grande destaque. Jenifer (Bárbara Borges) passa por todo o processo da construção de uma identidade homossexual. No início da trama, ela percebe que não gosta de rapazes, mas se ofende quando alguém a chama de lésbica. Ela conhece a médica Eleonora (Mylla Cristie), que tem sua sexualidade bem definida. No início, Jenifer procura se afastar da amiga, justamente por sua inclinação homossexual; depois, apaixona-se por ela. Elas não têm maiores problemas em assumir seu lesbianismo para os familiares. No meio da trama, passam a morar juntas, e cenas de afeto começam a ser mais explícitas. Não houve beijo, mas o autor conseguiu mostrar cenas de intimidade, no chuveiro e na cama, dando a entender ter havido relação sexual. Lenise Borges (2007), ao analisar as personagens lésbicas nas telenovelas da Rede Globo, aponta:

encontra uma criança negra em uma lata de lixo e, junto a Jenifer, abre um processo de adoção. Pelo fato de o direito à homoparentalidade ter sido exposto somente ao fim da novela, não foi acionado o mecanismo da agenda setting, isto é, a instauração de um debate público como decorrência de um ou mais temas controversos apresentados pela mídia. Pouco se falou disso e muitos sequer lembraram de que o tema foi abordado no

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

Como afirma Borges (2007), no final da trama de Aguinaldo Silva, Eleonora

Senhora do destino se destaca pela ousadia, pois foi a primeira novela a mostrar cenas íntimas. De um total de 160 cenas protagonizadas pelo casal no período entre agosto de 2004 e março de 2005, os meses de outubro e novembro foram definitivos para o desenrolar do romance. Também foram esses dois meses que apresentaram os maiores índices de Ibope da telenovela. Pode-se afirmar que, no caso de Senhora do destino, a novela contribuiu ao inovar, não só com a inclusão do casal lésbico, mas também ao introduzir o tema da adoção, colocando essa temática da esfera dos direitos civis como um direito dos homossexuais à homoparentalidade (BORGES, 2007, p. 376).

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

pela ‘contaminação’. Clara depende financeiramente da família; Rafaela mora sozinha.

I dentidade

teve início, meio e fim. Clara não aguentava mais a pressão da mãe Margareth (Laura

111


final da novela. Essa mesma telenovela também pôs em cena um casal homossexual masculino, retratando-o, porém, de modo humorístico. Tratava-se do carnavalesco Ubiinteira como “amigos”, tendo o romance sido revelado nos últimos capítulos. Sílvia Gomide (2006) foi buscar no Orkut um debate, no âmbito dos estudos recepção, sobre o relacionamento entre Jenifer e Eleonora. Gomide narra que muitos

grupo analisado pela pesquisadora não se sentiu atraído pela adoção da criança pelo casal. De fato nenhum personagem LGBTTT em qualquer dramaturgia vai representar a totalidade dos anseios de um grupo. Como Bauman (2005) afirma, a identidade contemporânea é múltipla e instável; assim, jamais alguma personagem vai dar conta de todos nossos anseios. De qualquer modo, como defende Trinta (2007), há identificação e projeção por parte dos espectadores com relação a personagens de telenovela. Para nossa surpresa, Gomide (2006) conclui: A novela Senhora do destino representou personagens homossexuais de maneira discriminatória. Ainda assim, apesar de estar longe de ser uma representação pura e simples de um relacionamento amoroso humano, a forma como foi mostrado um romance lésbico nessa ficção seriada brasileira representava uma inovação na representação social de lésbicas no Brasil. O casal foi retratado dentro da perspectiva do amor romântico associado aos casais heterossexuais e teve um ‘final feliz’, nos moldes usuais da narrativa ficcional audiovisual (GOMIDE, 2006, p. 194).

Gomide (2006) justifica essa “maneira discriminatória” com o fato de a homossexualidade ter sido mostrada de forma indesejável, mas inevitável. A pesquisadora também aponta que o amor monogâmico é um pré-requisito de felicidade para lésbicas e gays. Concordamos em parte, porque existem pessoas que, independentemente de sua orientação sexual, preferem viver de “caso” em “caso” do que estabelecer uma união estável. Mas a união estável também é uma realidade no mundo LGBTTT; logo a trama não está discriminando quem não adota essa forma de amor, mas sim mostra que ela também existe. A telenovela seguinte exibida no horário nobre teve a assinatura de Glória Perez: América (2005). E, mais uma vez, a trama homossexual foi bem apresentada. Júnior (Bruno Gagliasso) é filho da viúva Neuta (Eliane Giardini), ambos vivem na pequena cidade de Boiadeiros que tem o rodeio como um dos principais atrativos. Neuta não gosta de peões, pois acha que cada dia eles estão em um lugar e jamais levariam um

1 - n. 1

zes pela continuidade das personagens, já outras a definiram como estereotipadas. O

ano

faziam comparações com outras tramas, principalmente Torre de Babel e estavam feli-

Revista GEMI n IS |

racy (Luiz Henrique Nogueira) e de Turcão (Marco Villela). Os dois passaram a novela

112


namoro a sério. A viúva educa seu filho nos mais rígidos padrões. Boa parte da cidade de Boiadeiros a teme. Júnior começa a perceber que não tem o comportamento que sua senhos de moda e não vê graça em rodeios. Junto a ele e sua mãe, vivem as afilhadas, um peão de rodeio; para sua madrinha não a expulsar de casa, ela forja um romance com Júnior, que já teme que sua mãe possa desconfiar de sua sexualidade. Neuta fica feliz com o suposto namoro e mais ainda com possibilidade de ser avó. A personagem de Sílvia Buarque foge com o peão, mas deixa o filho para Neuta e Júnior cuidarem, só reaparecendo no final da trama. Nesse período, Júnior vai descobrindo sua sexualidade. Quase no fim da novela, aparece o peão Zeca (Erom Cordeiro) e eles se apaixonam. Nesse momento, Júnior está namorando Kerry (Marisol Ribeiro), mas já sabe que é gay. No final da narrativa, Kerry vai até o quarto de Júnior e o obriga a confessar que ele gosta de homens e é apaixonado por Zeca. Neuta está próxima à porta e ouve a conversa. A princípio, a personagem de Eliane Giardini não aceita o que acaba de saber; mais tarde defenderá a homossexualidade do filho. Esta telenovela pode igualmente ser considerada um marco, visto que estava explícita a afetividade homoerótica. Em cenas de trocas de olhares, suspiros e mãos dadas, houve várias insinuações de beijos, mas quando os personagens se dispunham a isto, alguém mais aparecia em cena. Estava previsto um beijo7 do casal no último capítulo. Os atores chegaram a gravar a cena, o ibope chegou a quase 70 pontos, mas a emissora não permitiu que fosse ao ar. Júnior tem um final feliz, fica com Zeca e se torna um grande estilista. Sem que ninguém soubesse, Maria Elis entrega desenhos de Júnior a uma grande produtora de modas, que o convida para trabalhar com ela em

início da trama é apresentado o casal Marcelo (Thiago Picchi), um músico, e o médico Rubinho (Fernando Eiras). Uma união estável é apresentada de cara, da mesma forma como aconteceu com o casal de Torre de Babel. Não houve aqui rejeição pelo público. Isso se explica pela falta total de diálogos e de cenas de afetividade. O máximo que o casal fazia era sentar-se junto à mesa. Como aconteceu com boa parte das personagens dessa novela, o casal ficou esquecido pelo autor. No último capítulo o tema da homoparentalidade ressurgiria. O par romântico havia resolvido adotar o filho da emprega7 Na época, foi comentado que esse seria o primeiro beijo gay da TV aberta brasileira. Porém, em 1990, na Rede Manchete, foi exibido um beijo entre dois homens na série Mãe de santo, de Paulo César Coutinho. Na trama os personagens Rafael (Daniel Barcellos) e Lúcio (Thiago Justino) viviam dois jovens universitários que se conheceram na Bahia. Beijos homoafetivos já foram exibidos na MTV em programas como o Fica comigo, de Fernanda Lima, e o Beija sapo, de Daniella Cicarelli.

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

Manoel Carlos voltaria ao horário nobre com Páginas da vida (2006). Logo no

diversas cidades do mundo, como Londres, Paris, Roma e Milão.

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

as “marias-breteiras”, entre elas Maria Elis (Sílvia Buarque). Maria Elis fica grávida de

I dentidade

mãe deseja: não gosta de música sertaneja, a qual prefere à clássica. Gosta de fazer de-

113


da. No final de seus capítulos, houve depoimentos reais de homossexuais que sofreram para ser aceitos como tais . 8

raíso tropical (2007), que também apresentava um casal já estabelecido e bem resolvido. Os galãs Rodrigo (Carlos Casagrande) e Tiago (Sérgio Abreu) trabalham em um hotel e moram juntos. Vivem um romance estável, sem nenhuma espécie de conflitos. Dor-

vou procurar saber se essa festa foi até tão tarde assim!”. Outros personagens gays foram mostrados nessa narrativa, mas não tiveram ênfase. Por fim, A favorita, de João Emanuel Carneiro (2008), apresentou Stela (Paula Burlamaqui), casada durante doze anos com uma mulher com quem teve um filho. Stela se apaixona por sua amiga e confidente Catarina (Lilia Cabral), vindo sua proximidade do fato de trabalharem em um restaurante de propriedade de Stela em Triunfo. O ex-marido de Catarina, Leonardo (Jackson Antunes), descobre que Stela é lésbica e começa a persegui-la, fazendo uma campanha para que ninguém mais frequente o restaurante. Encarrega-se também de pichações no entorno do estabelecimento comercial. O inescrupuloso machista Léo tenta agarrar e estuprar Stela. No último capítulo, Catarina termina seu noivado com o verdureiro Vanderlei (Alexandre Nero) e vai viajar para Buenos Aires com Stela, deixando em aberto se elas serão “apenas boas amigas”, como se diz em conhecido clichê. A novela também apresentou Orlandinho (Iran Malfitano), um personagem que não sabe bem qual é a sua opção sexual e acredita ser gay quando se apaixona por Bruninho, o Halley (Cauã Reymond), que se fingia de ‘entendido’ no início da trama. Orlandinho descobre que Bruninho é Halley e que ele não é homossexual, mas continua nutrindo uma paixão pelo rapaz. Para que sua avó Geralda (Suely Franco) não desconfiasse da sua homossexualidade, ele engata um romance de aparências com sua amiga e confidente Maria do Céu (Deborah Secco), que já estava grávida de Halley e precisava ‘garantir’ o futuro do filho. O que o público, de certa forma, não esperava é que ele iria apaixonar-se por ela, deixando de ser homossexual. Nesse ponto a telenovela apresenta de forma indireta a ‘cura’ de homossexuais, o que é proibido pelo código de posturas do Conselho Federal de Psicologia.

8 Esse mesmo recurso foi realizado em Viver a vida (2009). Também já foi exibido depoimento de homossexuais.

1 - n. 1

festa, chega em sua casa tarde e acorda o companheiro. Tiago reclama: “Olha que eu

ano

mem na mesma cama; mas não se vê troca de afetos. Em uma cena Rodrigo vai a uma

Revista GEMI n IS |

A mesma estratégia de Manoel Carlos foi utilizada por Gilberto Braga em Pa-

114


5 A recepção da representação da homossexualidade em telenovelas: públicos distintos, decodificações distintas

demonstrar a opinião dos entrevistados sobre o afeto entre homossexuais retratado na mídia, consideramos o beijo em telenovela uma evidência ímpar. Por isso, perguntamos se eles eram a favor ou contra a exibição de um beijo entre duas mulheres ou entre dois homens. No que tange ao gênero, a aceitação do beijo entre mulheres foi maior entre as mulheres (42,2 %) do que entre os homens (37,1 %), embora a maior parte, de ambos os sexos, fossem contra a exibição. O quadro9 não varia muito em relação à exibição do beijo entre dois homens: são a favor 29% dos homens e 41% das mulheres. Vê-se que a única diferença significativa é em relação ao sexo masculino, pois os homens aceitam melhor o beijo entre duas mulheres do que o beijo entre dois homens. Já no que se refere à religiosidade, percebe-se que ela está diretamente influenciada na aceitação, uma vez que entre os não religiosos 63,6% são a favor do beijo e, entre religiosos, esse número cai para 31,2%. Ao fazer uma análise por religião em específico, envolvendo a aceitação dos personagens homossexuais na televisão, percebe-se que existe uma resistência maior entre os evangélicos: apenas 57,1% deles aceitam os personagens gays, contra 75,7% de católicos não praticantes, 78% de católicos praticantes e 81,8% dos espíritas. No cruzamento das respostas com a variável escolaridade, verifica-se que o porcentual mais baixo em relação à aprovação do beijo está naqueles que possuem o ensino fundamental incompleto, 7,7%. Já o índice de rejeição menor, encontra-se nos

proporcional. Quando menor a faixa etária, maior é a aprovação do beijo entre duas mulheres. Os dados mostram que na faixa etária de até 20 anos, 48,4% são a favor; já aqueles que têm de 21 a 25 o valor chega a 56,3%, ou seja, mais da metade é favor da veiculação do beijo, o que mostra que os tempos podem estar mudando. À medida que a idade vai subindo, a aceitação diminui: dos que têm entre 26 a 35 anos, 33,3% são a favor do beijo; já dos que têm de 36 a 55 os números abaixam para 31,8% e, finalmente, dos que estão acima dos 56, o índice é de apenas 16,6%. A pesquisa também buscou verificar se as pessoas já se identificaram com algum personagem de telenovela. Para a nossa surpresa, somente 27% dos entrevistados 9 Como não há grande diferença entre a aceitação do beijo entre lésbicas e gays por parte da audiência massiva, usaremos só um desse fator nas análises a seguir, de forma alternada.

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

O quesito de faixa etária, por sua vez, mostrou praticamente ser diretamente

que estão cursando o ensino superior, 25%.

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

40,8% pesquisados eram do sexo masculino e 59,2% eram do feminino. Como forma de

I dentidade

Dos 152 questionários aplicados no calçadão da Rua Halfeld, em Juiz de Fora,

115


declaram que sim, 71,7% disseram que nunca se identificaram e 1,3% não soube ou não quis responder à pergunta. Porém, quando questionamos se a telenovela tem o poder que sim (sendo que 66,7% deles ganham até cinco salários mínimos). Outro dado surpreendente é que 76,3% dos entrevistados acham que a constante exibição de personagens gays em telenovelas pode diminuir o preconceito para com o grupo LGBTTT.

televisivos permitem entender o processo comunicativo não a partir das mensagens, mas a partir da interação. Assim, os gêneros são formas reconhecidas socialmente: “Colocar a atenção nos gêneros implica reconhecer que o receptor orienta sua interação com o programa e com o meio de comunicação de acordo com as expectativas geradas pelo próprio reconhecimento do gênero”. Portanto, supõe-se que públicos portadores de determinados repertórios culturais específicos tendem a reagir ao discurso midiático de modo também específico. Para verificar se um grupo portador da identidade homoafetiva reagiria de modo bastante diferente dos resultados já apresentados sobre as opiniões de um público generalista, procedemos à segunda etapa da pesquisa: a verificação de como um grupo folk – no caso, homossexuais – , decodificava a sua representação nas telenovelas. O grupo focal10, realizado no dia 5 de junho de 2009, contou com sete presentes. Destes, quatro se declararam gays e três se afirmaram como lésbicas. Deste público, três não veem telenovela, dois as assistem todos os dias, um três vezes por semana e outro uma vez por semana. Das atuais novelas, a preferida é a global Caminho das índias. Foi perguntado também qual foi a telenovela que representou o mais próximo possível da realidade gay. Três pessoas afirmaram que foi Paraíso tropical (Gilberto Braga/2007), uma escolheu América (Glória Perez/2005), outra Senhora do destino (Aguinaldo Silva/2004) e, por fim, outra escolheu Mulheres apaixonadas (Manoel Carlos/2003); um marcou a opção nenhuma. Tal como sustenta Itania Gomes (2004), o significado de uma mensagem (televisiva) muda de acordo com o código com que o receptor interpreta e que esse código é determinado pela situação socioantropológica do receptor, pelo quadro de referência cultural geral no qual a situação comunicativa se insere. Pelo fato de o grupo focal ser composto pela identidade marginal – sob a perspectiva teórica de Beltrão (1980) –, vê-se que a análise aqui empreendida não tem como objetivo ser uma análise massiva, e sim específica deste grupo. 10 Os membros do grupo focal foram identificados com uma numeração.

1 - n. 1

discurso televisivo é diferenciado. De acordo com Itania Gomes (2007 p. 213), os gêneros

ano

Na prática, essas dissonâncias apontam como o processo de decodificação do

Revista GEMI n IS |

de influenciar o comportamento das pessoas, os dados se modificaram: 78,9% apontam

116


Assim, é do seguinte modo que um dos componentes do grupo estudado analisa a constante exibição de personagens homossexuais em telenovelas:

se pega a explosão do shopping em Torre de Babel, de 1998, e a juras de amor e afetos trocados em Mulheres apaixonadas, de 2003. Num intervalo de cinco anos, a temática foi recebida com menos preconceito, conforme apresenta um dos membros do grupo focal:

alidade era um problema em todas as emissoras até que Sandrinho e Jefferson foram aceitos pelas famílias. O autor afirma que “a morte de Leila e Rafaela em Torre de Babel foi muito útil para que se reavaliasse o preconceito contra o assunto”. Apesar da evolução no tema retratado nas telenovelas, a questão da afetividade incomoda um dos

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

Silvio de Abreu (BERBARDO; LOPES, 2009, p. 210) afirma que a homossexu-

Tem uma mudança na perspectiva das novelas que apontam para isso. Se você pegar as primeiras novelas como “A próxima vítima” até “Torre de Babel”, a homossexualidade ela é um problema de fundo individual, “eu me sinto mal, eu não resolvi isso ainda”, a situação do personagem não é bem definida. Em Torre de Babel ela escapole disso. Nas telenovelas hoje não existe um conflito, a homossexualidade ela é vivenciada. Então você tem um casal em “Paraíso Tropical” que ele vive uma situação de casal. Não tem aquele conflito “eu vou contar pro pai, eu vou contar pra mãe” eles têm uma relação de amigos.. eu acho que é a evolução da relação homossexual na nossa cultura. Se você pegar a década de 80 ela ainda é uma discussão problemática, já na década de 90 ela já não é mais tão problemática. E uma outra coisa que eu acho interessante que a telenovela retrata é um pouco essa ideia que embora exista a promiscuidade, ela passa. Na verdade o que esta sendo reforçado é um casal monogâmico, nos modelos da heterossexualidade. (Participante número 3, 24 anos)

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

A mudança de perspectiva também foi analisa a partir do momento em que

I dentidade

As análises que eu faço, que eu tenho percebido nos últimos tempos, é que essa questão da temática homossexual tem se tornado mais presente. Se antes a gente tinha esse tema de tempos em tempos, de umas novelas pra cá, praticamente em todas elas a gente aparece. Eu acho que tem uma evolução na discussão do tema, quando você pega “A Próxima Vítima”, que você tinha dois tabus, primeiro era a questão do casal homossexual e, segundo, de um casal interracial. A estratégia foi fazer com que o público aceitasse aquele casal e só no final da novela a questão a afetividade vem a público. Na “Torre de Babel”, houve uma rejeição muito grande. As pessoas tendem a considerar as relações homossexuais como relações promiscuas e desprovidas daquilo que seria legal. Então, a “Torre de Babel”, elas (as lésbicas) são literalmente explodidas. Elas eram mulheres ricas, bem sucedidas, que possuíam umas situação legal e isso aos olhos dos conservadores não pode ser, porque se você é gay a relação tem que ser complicada. (Participante número 4, 49 anos)

117


presentes, que afirma:

sexual, especialmente quando comparamos ao atrevimento das cenas de alcova entre homem e mulher. Essas circunstâncias redutoras geraram protestos dos grupos de ativismo homossexual”. O beijo como manifestação de afeto é que o público portador da identidade homoafetiva almeja. Porém, como foi visto na pesquisa de opinião, boa parte da população repudia esta cena nas telenovelas. No grupo focal, foi detectado que o beijo, que para uns seria um avanço, para outros não muda nada. Houve, no grupo, grande variedade de posições sobre isso: Eu acho que é um avanço. O conservador tem como mote que as relações homossexuais são promíscuas e se elas são promiscuas elas não podem ter afeto. Você pode ser gay, mas faça o que você tem que fazer dentro do seu quarto. A homossexualidade ela pode ser exercida desde que não exista a afetividade, você não pode ser feliz. A Igreja não é contra o homossexual, ela é contra o exercício da homossexualidade. Nesse sentido, eu acho o beijo uma questão mais política. Eu quando eu abro a parada de Juiz de Fora todos os anos, eu dou um beijo no meu companheiro. Esse beijo é político, sinal que temos afeto sim, temos amor sim! Como qualquer casal e pessoa que se relaciona. Quando nós estivermos habituadas a ver pessoas do mesmo sexo se beijando, em novela, cinema, e tal, isso vai passar a ser uma coisa cotidiana e as pessoas vão se habituar a isso. É aquela coisa, antigamente mulher não usava calça cumprida e hoje ninguém nota que mulher está usando calça cumprida. O beijo vem nesse caminho também. A medida que o Zezinho criança, passa na rua e vê homem com homem se beijando, mulher com mulher se beijando, homem com mulher se beijando, ele passa a entender aquilo como algo cotidiano. Nesse sentido (o beijo em telenovela) é de fundamental importância. (Participante número 4, 49 anos)

1 - n. 1

telenovelas padecem de um recato espantoso, em se tratando de cenas de amor homos-

ano

A respeito de declarações desde tipo, Trevisan (2002 p. 306) aponta que “as

Revista GEMI n IS |

Mas eu acho que os últimos casais eles tendem a negação da afetividade. Quando você pega aquele casal de “Paraíso Tropical”, eles parecem dois amigos que estão juntos e que por acaso dormem na mesma cama. Eles não têm manifestação de afeto, não agem em nenhum momento como namorado. Eu acho que tem um pouco desta história... a história do Bruno Gagliasso (Júnior de “América”), qual foi o grande mote do personagem, o beijo. O beijo é a maior manifestação de afeto que o ser humano tem, em relação ao outro, Quando eu amo, eu beijo, seja beijo na testa, no rosto, onde for, é uma manifestação de afeto. Eu acho que hoje tem o seguinte, você pode viver a homossexualidade, mas não tem manifestação de afeto e o beijo é proibido. (Participante número 4, 49 anos)

118


O beijo homoafetivo é visto por alguns participantes do grupo focal como produto de alta carga simbólica, caso veiculado, seria dado a uma parte do público a ideia de que existe amor entre os homossexuais e que esse grupo não caracteriza somente pelas práticas sexuais. A respeito dessa situação, podemos utilizar as palavras de Bourdieu (2007, p. 12) de que “o sistema de valores implícitos ou explícitos, ou as ‘virtudes’, como probidade, minúcia, rigor moral e propensão para a indignação moral”, assim grupos que não fazem parte do sistema dominante sempre vão ter dificuldades de se expressar e mostrar seus valores. Ainda segundo Bourdieu; A forma das relações que as diferentes categorias de produtores de bens simbólicos mantêm com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis em um dado estudo do campo cultural, e, ademais, com sua própria obra, depende diretamente da posição que ocupam no interior do sistema de produção e circulação de bens simbólicos e, ao mesmo tempo, da posição que ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus de consagração, tal posição implicando numa definição objetiva de sua prática e dos produtos dela derivados. (BOURDIEU, 2007, p. 154)

Trevisan (2002 p. 370) afirma que “a formação de uma identidade guei estaria reinstaurando a função normatizadora de médicos e psiquiatras, por colocar a sexua-

Eu não acredito em uma identidade homossexual. Não que ela não exista, eu não acredito nela fechada. Eu acho que existe várias identidades homossexuais, e acho que tem que existir mesmo. O que eu entendo por identidade é que ela é um processo misto, tanto individual como coletivo. Ae ela vai crescer e tem diálogo com outras categorias, como identidade de gênero. A identidade homossexual ela é construída em relação à identidade de gênero. A gente acaba vivendo no mundo do enquadre. E quando a gente é enquadrado é enquadrado como se a questão biológica fosse uma construção equivalente. Ser homem no Brasil é ser heterossexual, é uma identidade de gênero. Uma vez que você não se identifica com a heterossexualidade tem um novo enquadre, o da homossexualidade. Toda identidade ela é construída com a diferença. (Participante número 5, 40 anos)

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

argumentam:

lidade dentro de definições e categorias estritas”. Sobre isso, alguns dos pesquisados

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

Hétero... Mas se o beijo é banalizado, pq ele não é permitido para nós? (Participante número 4)

119 I dentidade

Já na minha opinião não muda nada. Ao contrário do que o número 4 falou, ele tem muito romantismo, eu acho até bonitinho. Mas o beijo é algo banalizado. Pessoal vai para a micareta e beijar 15, 20... (Participante número 7, 37 anos)


Já Fry e MacRae (1983) têm outra explicação para a união de todos os homossexuais numa mesma categoria. Os autores afirmam que:

acharam válida sua permanência no ar ao suscitar o debate. Verificou-se que a idade de cada um dos entrevistados foi o determinante para suas reflexões: Depende da fase. São várias as que eu passei e cada uma retratava um pouco, a questão da família, da autoaceitação, em primeiro lugar, depois a aceitação da família, da sociedade e aonde eu me enquadrava nela. Eu passei um pouco por todas elas. A telenovela contribuiu para a minha identidade lésbica, no momento da alta-aceitação. (Participante número 1, 27anos) Para mim foi a telenovela Mulheres Apaixonadas. Eu acho que pela faixa etária. A mesma idade que eu tinha elas estavam retratando na telenovela. Tinha um reconhecimento de escola e tal. Não passei pelos mesmos conflitos delas, mas ajudou muito na própria aceitação. No período também da adolescência, eu pude ver como uma coisa normal, por causa da novela. E o carisma também que as pessoas pegaram pelas duas personagens. (Participante número 2, 22 anos) Eu me identifiquei com o casal de América. Foi na parte de aceitação. Assim, meu primeiro momento com a homossexualidade, eu achei que era algo de tesão mesmo, acontecer e pronto. Com o passar de alguns anos, apesar de não ter tanta experiência prática com frequência sexual, mas eu vi que eu passava a gostar da pessoa, do outro. E teve um terceiro momento mais difícil, que foi como eu poderia adaptar meus princípios e meus valores ao tipo de vida gay. Foi muito confuso, por isso me identifiquei muito com o personagem da telenovela América. (Participante número 3, 24 anos)

Nessa perspectiva, a formação de identidades relaciona-se também à situação social e à inserção cultural do indivíduo. Logo, existe, atualmente, uma “movimentação de identidades”, na visão de Trinta, sendo que atores sociais podem assumir identidades variadas, instáveis e multipolares. Mauro Sousa (2006) aponta que os media são vistos enquanto espaço aglutinador na fragmentação social, espaço de centralização

1 - n. 1

gens gays das novelas. Mesmos aqueles que não se identificaram com os personagens

ano

Outro ponto que gerou discussão no grupo foi a identificação com os persona-

Revista GEMI n IS |

Acima de tudo, o grande fator de união dos homossexuais de ambos os sexos é a posição marginalizada e desviante que lhes é reservada na sociedade. Além da discriminação a que estão sujeitos, existem outros problemas comuns aos dois grupos [gays e lésbicas], como, por exemplo, a falta de modelos tradicionalmente estabelecidos que norteiam as relações homossexuais. (FRY; MACRAE, 1983, p. 112).

120


nos processos de exclusão das pessoas. Na televisão, a identidade se confunde com a busca de um comum, com mediações entre o vivido isolado, fragmentado e diferente, e Silvia Gomide (2007 p. 407), ao analisar a identidade lésbica, afirma que ao renciam a comunicação dessa informação estigmatizada para o restante da sociedade. “As lésbicas tendem a ser habitantes de dois mundos, o heterossexual e o gay. E, para conseguir viver, trabalhar e amar, precisam satisfazer exigências e de ambos”. A pesquisadora ainda completa que “a subcultura lésbica construiu resistência à heterossexualidade dominante, parcialmente através de estilo e apresentação pessoal, uma vez que a reconstrução de códigos culturais é central para grupos marginalizados”.

Os integrantes do grupo focal acreditam que a homossexualidade femini-

na, na mídia, é melhor aceita que a masculina: O que eu tenho percebido em telenovelas é que a homossexualidade feminina tem sido muito mais bem aceita que a masculina. Não só nas novelas, mas socialmente também. As pessoas toleram muito mais as mulheres do que os homens. Nas cenas da novela Senhora do Destino ficava claro, desde o início, a relação das duas meninas. E ninguém se opunha. Teve uma cena que passou essa semana (a novela estava sendo reprisada em Vale a pena ver de novo) que o pai de uma deles falou “aqui nessa casa, até mulher gosta de mulher”. Dá pra ver que essa questão é muito mais aceita. (Participante número 7)

Aguinaldo Silva (BERNARDO; LOPES, 2009, p. 38) acredita que o rela-

cionamento de Jennifer e Leonora teve força e profundidade que não se vê em outros relacionamentos homossexuais da TV. O autor afirma que a novela mostrou duas pes-

cena, por exemplo, que mostrava as duas meninas acordando nuas na cama. Meu Deus! Isso é muito mais forte do ponto de vista de um relacionamento homossexual do que mostrar beijo na boca”. É perceptível que, na tradição da teledramaturgia brasileira, os personagens gays podem fazer papeis cômicos, de personagens bonzinhos, mas não podem fazer cenas de afetividades. A afetividade entre o casal homossexual é questionada. Assim, a primeira medida que deveria ser tomada nas telenovelas, na opinião do grupo focal, são cenas que envolvem o amor de iguais, deixar de forma explícita cenas de afetividade. Outra questão é a desproporção de casais homossexuais e heterossexuais nas tramas. Sempre é apresentado um único casal gay no meio do mundo hétero. Por fim,

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

savam ficar se beijando o tempo inteiro para mostrar que se amavam. “Eu escrevi uma

soas que se amavam e enfrentavam problemas por causa disso, por isso elas não preci-

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

assumi-la as mulheres se aproximam da subcultura lésbica e, ao mesmo tempo, ge-

I dentidade

a necessidade de seu oposto mediante a inclusão.

121


depois da exibição de cenas de carinho e afeto e do tal beijo, um casal homoafetivo como protagonistas da trama seria um verdadeiro sonho.

As pesquisas realizadas para a produção deste trabalho permitiram constatar a

comunicação como possibilidade de maior fortalecimento das identidades de grupos marginalizados quanto mais eles conquistarem voz. Mas ainda há muito em que se avançar. A pesquisa com o público geral indica, por exemplo, que a exibição de um beijo homoafetivo é problemática, visto que das 152 pessoas entrevistadas apenas 55 foram a favor, o que corresponde a 36,1%. Há preconceito explícito sobre a homossexualidade: quando incitados a listar palavras que associam aos homossexuais, apenas 25,7% se remetiam a expressões de cunho positivo, de não marginalização do gay enquanto cidadão. O paradoxo é que esse mesmo público é a favor dos personagens gays da trama: 73% acreditam que eles devem permanecer no ar e 76,3% pensam que a constante aparição de gays na teledramaturgia pode diminuir o preconceito com o grupo. Já quando comparamos estes dados com os do grupo focal constituído por homossexuais, vemos que a telenovela ainda está muito longe de atender aos anseios do grupo LGBTTT. Todos os participantes afirmaram que querem cenas de afeto explícito, mostrando que há amor nas relações entre pessoas do mesmo sexo. Se os mass media mostrarem os gays como pessoas comuns, que têm uma relação amorosa similar aos casais heterossexuais, poder-se-ia pensar que mudaria a visão de que os homossexuais são promíscuos e mantêm relações unicamente para satisfazer os anseios sexuais. Há evidências de que as telenovelas estão avançando nesse assunto. O gay está deixando de ser apenas um marginal (no sentido beltraniano). Cenas das novelas Mulheres apaixonadas, Senhora do destino e América mostraram a afetividade gay de maneira menos preconceituosa. Apesar de os membros do grupo focal acharem que ela foi apenas induzida, podemos ver que, pelas imagens exibidas. juras de amor entre personagens ganharam legitimidade – algo antes restrito às relações heterossexuais. Gilberto Braga é certamente o autor que mais trabalhou com a temática homossexual; Sílvio de Abreu e Glória Perez, porém, foram os que tentaram a este respeito quebrar paradigmas, mas sofreram impedimentos do público e da emissora. Manoel Carlos e Aguinaldo Silva, apesar das ótimas abordagens em Mulheres apaixonadas e Se-

1 - n. 1

– reforçando a percepção de Beltrão e de seus seguidores, que atestam a importância da

ano

diferença de recepção existente entre a cultura hegemônica e a audiência folk analisada

Revista GEMI n IS |

Conclusão

122


nhora do destino, respectivamente, não obtiveram maior êxito nas tramas seguintes. Continuam a existir graves lacunas. Observa-se, por exemplo, que temas como no último capítulo da trama, não havendo espaço para o debate. Foi assim em Senhora do ter um tratamento mais ‘sério’, de modo a mostrar que casais de mesmo sexo também são capazes de educar e cuidar de uma criança. É claro que se comparamos telenovelas à produção cinematográfica e a seriados norte-americanos, como Queer as Folk e The L Word, chegamos à conclusão de que ainda temos muito a evoluir. Afinal a Rede Globo, que detém maior audiência e é a maior responsável por efeitos agenda setting, ainda não mostrou um beijo homoafetivo de verdade. Cenas homoeróticas não são, até aqui, sequer cogitadas pela emissora. Polêmicas à parte, é fato que a telenovela sozinha não é capaz de mudar o mundo. Mas pode abrir espaço para o debate. Ao focar personagens bem estruturados e não estereotipados, podem contribuir para que haja uma mudança de pensamento acerca da homoafetividade por parte de quem hoje a rejeita – e pode também contribuir para que a representação dessa identidade seja, cada vez menos, estigmatizada como marginal.

Referências BRANDÃO, Cristina. A radicalização de Beto Rockfeller: o discurso contemporâneo da telenovela. In: SILVEIRA JR., Potiguara; COUTINHO, Iluska. Comunicação: tecnologia e identidade. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p.165-182.

Cortez, 1980. ______. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de ideias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. BENJAMIN, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: UFPB, 2000. BERNARDO, André; LOPES, Cíntia. A seguir, cenas do próximo capítulo. São Paulo: Panda Books, 2009. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. BORGES, Lenise. Lesbianidade na TV: visibilidade e “apagamento” em telenovelas brasileiras. In: GROSSI, Miriam et. al. (Org.). Conjugalidade, parentalidades e

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão

BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo:

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

destino e em Páginas da vida. Justamente por se tratar de um tema tão polêmico deveria

I dentidade

a homoparentalidade (adoção de crianças por casais homossexuais) só são mostrados

123


identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p.363-384.

124

CARNEIRO, Edison. Dinâmica do folclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

CASTELO BRANCO, S. Folkcomunicação: metodologias possíveis. In: SCHMIDT. Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos. São Paulo: Ductor,

Antônio (org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2006b. p. 110-124. FADUL, Anamaria. Telenovela e família no Brasil. In: Comunicação & Sociedade. Ano 22. no 34. São Bernardo do Campo, SP: Umesp, 2000. p.13-39. FERNANDES, Guilherme M. A percepção da identidade homoafetiva em telenovelas: as recepções massiva e da audiência folk em perspectivas comparadas. In: INTERCOM 2009. Anais... Curitiba: Universidade Positivo, 2009. CD-ROM. FERNANDES, Ismael. Memória da telenovela brasileira. São Paulo: Brasiliense,1997. FRY, Peter; MACRAE, E. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. GOMES, Itania. Efeito e recepção. Rio de Janeiro: E-papers, 2004. ______. A noção do gênero televisivo como estratégia de interação. In: FERREIRA, G.; MARTINO, L. Teorias da comunicação. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 194-216. GOMIDE, Silvia. Formação da identidade lésbica: do silêncio ao querer. In: GROSSI, Miriam et. al. (Org.). Conjugalidade, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p.405-422. ______. Representação das identidades lésbicas na telenovela Senhora do Destino. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Comunicação) – Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2006. PERET, Luiz Eduardo. Do armário à tela global: a representação social da homossexualidade na telenovela brasileira. Dissertação de Mestrado (Programa de PósGraduação em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, 2005. SELL, Teresa Adada. Identidade homossexual e normas sociais. Florianópolis: Editora UFSC, 2006. SOUSA, Mauro. Práticas de recepção mediática como práticas de pertencimento

1 - n. 1

______. Metodologia folkcomunicacional: teoria e prática. In: DUARTE, Jorge; BARROS,

ano

2006a. p. 101-115.

Revista GEMI n IS |

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2008.


público. In: ______ (Org.). Recepção mediática e espaço público: novos olhares. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 215-242.

TRIGUEIRO, Osvaldo. Folkcomunicação e ativismo midiático. João Pessoa: UFPB, TRINTA, Aluizio R. Identidade, identificação e projeção: telenovela e papéis sociais, no Brasil. In: SILVEIRA JR., Potiguara; COUTINHO, Iluska. Comunicação: tecnologia e identidade. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p.151-164. TUFTE, T. La televisión como mediador cultural: el caso de las telenovelas brasileñas. In: MARQUES DE MELO, José (Org.). Identidades culturais latino-americanas: em tempo de globalização. São Bernardo Campo, SP: Umesp: 1996. p. 55-63.

homoafetiva em telenovelas : percepção distinta entre a audiência massiva e a audiência folk

2008.

I dentidade

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002.

125

G uilherme M oreira Fernandes - Cristina B randão


Quando

a H istória vira entretenimento Michelli M achado Jornalista, mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Doutoranda no Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. E-mail: michelli_machado@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 126 - 138


Resumo O texto busca fazer algumas considerações sobre as releituras midiáticas da história, propostas por minisséries de época apresentadas pela Rede Globo. A partir de uma observação desses fenômenos midiáticos, buscaremos refletir sobre a relação entre mídia, entretenimento e midiatização da narrativa histórica nas minisséries. Autores como Lopes serão essenciais para entendermos os mecanismos das séries de ficção, enquanto Martín-Barbero nos ajudará a pensar as amarras identitárias que existem entre esses programas de entretenimento e a história do país, trazidas à tona para discussão na sociedade contemporânea por meio das minisséries. Palavras - chave: Entretenimento; Minisséries Históricas; Midiatização.

A bstract The text wants to show us some considerations about the re-readings of the media, proposed by miniseries of epoch showed by “Rede Globo”. Based in an observation of these media phenomenon, we want to reflect about the relation between media, entertainment and mediatization of the historic narration in the miniseries. Authors such as Lopes will be essential to understand the mechanism of the fiction series, while Martín-Barbero will help us to think about the connections between the entertainment show and the history of the country, brought to be discussed in the contemporary society through the miniseries. Keywords: Entertainment; Historic Miniseries; Mediatization.


128

1 Introdução

O

s processos comunicacionais estão cada vez mais presentes na produção e no consumo dos produtos de entretenimento oferecidos pela mídia. São estilos e tendências culturais que passam a ser configurados a partir da indústria do

entretenimento e estão envolvidos na produção e na circulação de produtos midiáticos por meio de suas manifestações audiovisuais. Um exemplo disso é a midiatização da narrativa histórica feita a partir de minisséries de época produzidas pela Rede Globo. A temática que impulsiona a reflexão proposta neste artigo, parte do proje-

to de pesquisa ao qual me vinculo, que pretende estudar a midiatização da narrativa histórica em minisséries históricas1 exibidas pela Rede Globo. O eixo que norteia esta pesquisa está ligado à forma com que a narrativa histórica é recriada pela produção das minisséries baseadas em fatos e personalidades históricas e como a midiatização desses acontecimentos se manifesta e circula na sociedade. O ponto de partida está na intenção de entender que pontos de vista a midiatização da narrativa histórica nas minisséries da Rede Globo, reproduz. Para tanto, é interessante pensar, como ocorre a relação entre mídia e entretenimento, história e ficção, uma vez que esses elos são partes constitutivas das obras. O objetivo dessa pesquisa é analisar a midiatização da narrativa histórica nas minisséries, sob três eixos de observação: como a história vê e mostra a história; como a literatura vê e mostra a história e como a televisão vê e mostra a história. Sendo o último eixo o que norteia este estudo. O contexto no qual a pesquisa se insere é a televisão. Uma vez que é a televisão que produz minisséries históricas baseadas em acontecimentos e personalidades reais fazendo uma transposição da narrativa histórica para a narrativa literária e uma adap1 Neste projeto tentaremos classificar as obras de ficção de época, dividindo-as em Minisséries Históricas e Romances de Épocas. Embora todas possam ser consideradas minisséries de época, nas Minisséries Históricas o foco da narrativa é em um período importante da história nacional ou seu tema central gira em torno de uma figura histórica, que de fato existiu. Nos Romances de Época os textos costumam ser mais literários que históricos, e ainda que se constitua num ambiente realista, o foco não está no ambiente, mas no romance narrado pela obra, nas personagens ficcionais da trama.


tação da narrativa escrita para narrativa televisiva. A televisão é o meio de comunicação que vai visibilizar, veicular e midiatizar a narrativa histórica. dos Infernos, Abolição e República3. Serão observadas as regularidades nas minisséries

essas personagens históricas vão pouco a pouco sendo conhecidas e ressignificadas através da circulação das séries na sociedade contemporânea.

históricos, no presente, a partir de uma visão contemporânea dos acontecimentos. Com uma linguagem atual, somos levados pelas obras até as causas, uma vez que já conhecemos as consequências dos fatos ali narrados. O diferencial das minisséries históricas é o estilo de suas narrativas, que buscam não só informar, mas principalmente entreter, dando ao telespectador a possibilidade de “reviver” de forma ficcional fatos históricos, com uma narrativa interessante e envolvente, em que cada capítulo pode se tornar uma nova aventura. Diante desse prisma, a reconstrução de uma realidade histórica pode fascinar aos telespectadores, uma vez que possibilita a sensação de se ter vivido outra vida, num outro tempo. Por meio do trabalho de cenografia e figurino, é possível conhecer lugares e períodos que, antes, poderiam ser apenas imaginados.

2 Optamos por essas três minisséries para delimitação do objeto de pesquisa. A escolha das obras se deu porque os fatos narrados nas três minisséries são absolutamente representativos para a construção do país. Desde a vinda da família real para o Brasil até a Independência, a Abolição e a República. Além do mais, as obras nos permitem a uma organização dos fatos por meio da trajetória histórica, com a construção de uma linha de tempo histórico. As diferentes formas de abordar a história, indo da sátira e do humor a uma forma mais didática e pedagógica também foram elementos observados na escolha, pois permitirá uma análise comparativa entre as séries. Por fim, um gosto pessoal da autora pelo período narrado nas minisséries foi levado em consideração na hora de escolher as obras. 3 O Quinto dos Infernos foi ao ar de 08 de janeiro a 29 de março de 2002 e recontou a história da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, passando pela coroação de D. João VI, o dia do Fico e a Independência do Brasil, até a morte de D. Pedro I. De forma satírica, em 48 capítulos a obra recontou a história do país quase 200 anos depois. Abolição foi ao ar de 20 a 25 de novembro de 1988, como comemoração ao centenário da abolição no Brasil. A minissérie teve apenas 04 capítulos em que recontou o fim da escravidão no país e a assinatura da Lei Áurea. A obra teve uma abordagem mais didática e contou com historiador em sua equipe de produção. República foi ao ar de 14 a 17 de novembro de 1989, assim como Abolição, foi exibida em comemoração ao centenário da Proclamação da República no Brasil. Em 04 capítulos falou sobre o fim da monarquia no Brasil e o início da república, com seu primeiro governante Deodoro da Fonseca. A obra teve o mesmo tipo de abordagem da anterior e a mesma equipe de produção. As duas minisséries fizeram parte do mesmo projeto.

M ichelli M achado

Se olharmos as obras de ficção histórica, veremos que são narrativas de fatos

2 Alguns dados sobre as minisséries históricas

vira entretenimento

históricas por meio de um programa de entretenimento. É a partir da midiatização que

H istória

folhetins, humanizando personagens, difundindo a vida e a obra de personalidades

a

históricas que constroem suas tramas mesclando ficção e fatos históricos, biografias e

Q uando

O objeto2 que servirá de referência para a pesquisa são as minisséries O Quinto

129


Nos últimos anos, foram muitas as minisséries4 que trataram de temas históricos, e tem crescido, atualmente, o número de produções televisivas desse gênero, o midiatização das narrativas históricas iniciou em 1982, com Lampião e Maria Bonita5. Coincidentemente, esta não foi só a primeira obra histórica, mas também a primeira neste formato (minissérie), lançada pela Rede Globo. Desde então, pelo menos 23 obras

histórica, que de algum modo é/foi representativa para o país. É possível perceber, a partir de uma observação nos registros de programas de ficção, que desde 1982 até hoje, poucos foram os anos em que nenhuma minissérie histórica foi veiculada pela emissora. E é por meio da visibilidade que o tema tem na mídia, que a midiatização da narrativa histórica instiga nossa curiosidade. As releituras midiáticas de acontecimentos históricos colocam a história como base para as tramas das minisséries, em que fatos e personalidades históricas são representados nessas obras, a partir da visão contemporânea dos autores. Essas formas de construções das narrativas ficcionais históricas estão ligadas à tradição da Literatura e das práticas narrativas, buscando um modo de fazer isso que aproxime do telespectador, criando uma interlocução. A representação midiática de acontecimentos históricos, em minisséries, é feita por meio de determinados recursos narrativos, que geram uma realidade ficcional que interfere no entendimento dos acontecimentos e das personalidades históricas relacionadas a esses fatos. A ficcionalização da história e de algumas personalidades faz com que elas sejam ressignificadas, pela sociedade. A partir do momento em que as personagens históricas passam a “frequentar” nossas casas, diariamente, por meio das minisséries, elas deixam de ser só nomes e passam a ser pessoas. Ao mesmo tempo, conflitos ficcionais e históricos passam a ser debatidos, o que de certa forma possibilita uma releitura dos acontecimentos históricos, já que tais temas perdem seu “peso” histórico ao tornarem-se ficção e entretenimento. As minisséries de cunho histórico nos mobilizam a pensar a História. Durante a apresentação das séries de ficção, um interesse pelo assunto é despertado nos telespectadores, pela narrativa televisiva, diferente da maioria dos livros e das aulas de História. Esse jeito de contar histórias e, em especial, a história nacional precisa ser observado. 4 Até o mês de fevereiro do ano de 2010 foram 96 minisséries exibidas pela televisão brasileira. Dessas, 71 foram veiculadas pela Rede Globo, 15 pela Rede Manchete, 06 pela Rede Record e 04 pela Rede Bandeirantes. 5 FIUZA, Sílvia Regina de Almeida. (Coord) Dicionário da TV Globo. V1: Programas de dramaturgia e entretenimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003; REIMÃO, Sandra. Livros e Televisão: correlações. São Paulo: Cotia, 2004.

1 - n. 1

se dá a partir de um acontecimento importante da História ou de uma personalidade

ano

exibidas pela emissora podem ser consideradas históricas, pois seu desenvolvimento

Revista GEMI n IS |

que justifica o interesse desse trabalho por esse tipo de programa de entretenimento. A

130


Afinal, tem despertado curiosidade por política e fatos importantes, na construção do Brasil. É essa maneira diversificada de narrar, que torna os acontecimentos cotidianos pluridisciplinar, de comunicar, entreter, informar e fazer pensar sobre a História.

Q uando

interessantes. Ou seja, a midiatização da narrativa histórica, dá à mídia uma função

131

a

Os fenômenos contemporâneos estudados pela mídia mostram, sob alguns aspectos, o processo de passagem de uma sociedade dos meios para uma sociedade mi-

que a sociedade dos meios começa a estudar a relevância e o funcionamento dos meios de comunicação, através dos avanços tecnológicos, que o processo de midiatização da sociedade se inicia. Na sociedade midiatizada, existe um outro mundo, paralelo ao real, um mundo virtual, onde a realidade é a própria mídia. Muniz Sodré (2001) chama esse outro mundo de novo “bios midiático”, de “espelho”, em que a mídia se transforma, provocando uma perda momentânea de identidade, uma alucinação lúcida. Para o autor o “espelho” midiático não é uma simples cópia, reprodução ou reflexo, uma vez que, implica em uma nova forma de vida, com um novo espaço e um novo modo de interpelação coletiva dos indivíduos. A partir de uma realidade virtual, há a produção de um outro mundo, que parece dar vida ao espelho. Podemos tentar pensar essa afirmação aplicada às releituras da História propostas pelas minisséries. Para essas narrativas televisivas, o “espelho” são as representações dos fatos e das personalidades históricas na sociedade contemporânea. Ou seja, por meio da ficcionalização há uma “perda” de elementos históricos, a partir da construção de uma nova versão dos fatos em obras ficcionais de entretenimento. Diante disso, a midiatização da narrativa histórica, que faz uso dos recursos audiovisuais gera uma realidade ficcional que parece verdadeira, essa realidade é criada por meio da verossimilhança. As minisséries históricas são construídas ficcionalizando a História nacional e de algumas personagens importantes para o país. Esse movimento faz com que personalidades estudadas nos livros de História deixem de ser vistas como heróis ou vilões e passem a ser percebidas por meio da condição de seres humanos, em sua complexidade, com sentimentos, traumas e conflitos. A partir do uso

M ichelli M achado

a partir do momento que esses fenômenos passam a ser estudados. É no instante em

diatizada. Essa transformação se dá, entre outras formas, por meio do campo científico,

vira entretenimento

entretenimento

H istória

3 A narrativa histórica midiatizada, ou como a História pode virar


de recursos ficcionais e de entretenimento, o histórico passa a ser percebido sob outro prisma, de maneira que desperte o interesse dos telespectadores. tra a criação de uma realidade a partir de imagens que ampliam as possibilidades de escrita e de uma outra visão do que já foi visto. Há dois momentos de releitura, a do autor das minisséries e a do telespectador, que cria novos sentidos para os fatos. Nes-

produtores, mas produzidos por seus discursos, é importante pensar como por meio da midiatização os meios se expandem para formar a sociedade atual. No século XIX, romances tradicionais eram transformados em folhetins, buscando a relação com o entretenimento e uma maior proximidade com o leitor. Essa é a primeira transformação de uma narrativa literária para uma narrativa cotidiana, semelhante ao que ocorre hoje com as minisséries históricas, em que fatos históricos são transcritos de forma literária e estes são transformados em narrativa televisiva. Jesús Martín-Barbero (2003) ao trabalhar com identidades, mediações e culturas, nos fala sobre os “pedaços” que formam uma nação. A história de um país é um desses “pedaços”, ainda mais se retratada por meio de um dispositivo de mediação entre histórico e contemporâneo, como são as séries de ficção televisivas. O cotidiano vivido pelas personagens, nas obras de ficção, retrata as especificidades de um sujeito, de uma comunidade, de uma cultura, de uma época, mostrando a partir do texto televisivo como se constituiu a história do país. No entanto, embora se conte um fato passado, as releituras usam de linguagem e técnicas contemporâneas e de entretenimento, o que aproxima o público da história que está sendo recontada. Quando falamos de obras seriadas televisivas, reproduzidas por meios audiovisuais, as alterações não devem ser entendidas como uma perda, mas uma forma diferenciada de perceber o mundo. Nesse sentido, as minisséries, que misturam história e ficção, passado e presente, são programas de entretenimento e produtos de mediação. Mediação é o termo dialético, que, segundo Martín-Barbero (2003), pode ser utilizado para o estabelecimento de relações entre a análise formal de uma obra de arte e uma visão mais alternativa e popular sobre ela. Pela mediação são estabelecidas as identidades simbólicas como um processo em que cada nível desdobra-se no seguinte, perdendo, assim, sua autonomia constitutiva e funcionando como expressão de seus homólogos. É uma operação compreendida como um processo de transcodificação: como a invenção de um conjunto de termos ou a escolha estratégica de um código ou linguagem específica. A análise das mediações

1 - n. 1

distancia, e que algumas coisas não previstas tomam sentidos não imaginados pelos

ano

se momento de transição em que vivemos, em que a mídia une e separa, aproxima e

Revista GEMI n IS |

Essa nova forma de contar a História, por meio das narrativas televisivas, mos-

132


tem por objetivo demonstrar o que não é evidente nas aparências das coisas, mas que se encontra em sua realidade subjacente. comunicativo de entretenimento popular. Essa afirmação da autora pode ser estendida

Seguindo essa linha de pensamento, Lopes (2009) diz que a telenovela é uma história sobre a família exibida para a família. Nesse sentido, as minisséries históricas são a história de fatos e personalidades importante para o país, exibidas para o país,

ver a realidade e a própria história, em que não há uma verdade absoluta, mas versões de um fato, sob o ponto de vista de diferentes narradores. As obras de ficção exibidas pela televisão circulam na mídia por meio de revistas, internet, etc. e esse circular midiático ocorre paralelo à circulação em rodas de amigos e familiares, quando as narrativas televisivas transbordam a televisão e invadem a realidade e o cotidiano das pessoas. Sodré (2006), fala que a economia digital tem tido enorme impacto sobre o mundo do trabalho e sobre a cultura, já que o fenômeno midiático traz novas variáveis que transformam a vida das pessoas, em que o virtual, o espaço simulativo, interage expandindo a dimensão do tecnocultural. Para o autor, é nesse instante que surge o que ele chama de novo “bios midiático”, que segundo Sodré cria uma prótese midiática, que se torna um potencial de transformação da realidade vivida, uma forma condicionante de experiência da vida das pessoas. Trata-se da afetação das formas da vida tradicional e uma prevalência da forma sobre o conteúdo, ou poderíamos dizer, do entretenimento sobre a informação. A mídia, enquanto sintaxe de um novo modo de organização social e agendamento universalista, implica uma qualificação especial da vida, logo, uma ordem sub-reptícia de exigências no que diz respeito a valores, a partir de uma intersubjetividade simulada e paralela. (SODRÉ, 2006, p.29).

Para o pesquisador, o meio televisivo permanece como fulcro da mídia tradicional, enquanto o virtual redimensiona a relação espaço-temporal clássica criando uma tendência de virtualização das relações humanas. Nesse momento, segundo o autor,

M ichelli M achado

das nas minisséries para romancear os fatos, a ficção acaba sendo uma outra forma de

anos após terem sido vividas por esse mesmo país. As obras históricas são ficcionaliza-

vira entretenimento

turando arcaico e moderno, temas da vida pública e privada.

H istória

pensarmos, como sugere a pesquisadora, que essas obras são a narrativa da nação, mis-

a

também para outras obras de ficção televisiva, como as minisséries, principalmente se

Q uando

Segundo Maria Immacolata Vassalo Lopes (2009), a telenovela é um recurso

133


imagens deixam de ser reflexos e tornam-se espelho midiático, configurando-se assim em uma “outra” forma de vida. Essa outra forma de vida que Sodré (2006) menciona contemporânea, como o pesquisador afirma, a televisão, continua sendo o grande meio de comunicação que retrata essa realidade midiática. As minisséries históricas, por assim dizer, reproduzem uma “outra” versão dos acontecimentos, uma versão que seja

O espaço da cultura tem sido um local dos processos de modernização e a televisão tem se mostrado um meio estratégico para a realização desses processos. Segundo Lopes (2002), a partir da recepção das telenovelas podemos observar como funcionam as lógicas comerciais de produção e as lógicas culturais de consumo dos processos midiáticos. O estudo das minisséries históricas contribui no sentido de entender as lógicas de produção midiática, ainda que não se faça um estudo de recepção, quando observamos como circula e circulou os materiais referentes às obras, podemos observar outro viés de um mesmo processo. José Luiz Braga (2006) nos diz que desde as primeiras interações midiatizadas a sociedade age e produz, não só com os meios de comunicação ao atribuir processos a estes meios, mas sobre os seus produtos, atribuindo um sentido social a eles. Outro prisma que envolve mídia e entretenimento e está diretamente vinculado ao objeto de estudo aqui apresentado é o humor, já que uma das obras estudadas faz a midiatização da narrativa histórica de forma satírica6. Ao tentar entender como o humor está vinculado ao entretenimento e de que forma é trabalhado nas minisséries históricas, é possível perceber, até que ponto se faz um humor “pastelão” e quais momentos trazem um humor refinado e inteligente, que possibilita uma compreensão diferenciada da história nacional. Sigmund Freud (1938) acredita que o humor faz parte das histórias, como se ao tornar um acontecimento algo mais “leve” este fosse mais fácil de ser absorvido pelas pessoas, para provar suas ideias sobre os chistes, faz a seguinte afirmação: Um novo chiste age quase como um acontecimento de interesse universal: passa de uma a outra pessoa como se fora uma notícia da vitória mais recente. Mesmo homens eminentes que acreditam valer a pena contar a história de suas origens, das cidades e países que visitaram, das pessoas importantes com quem conviveram, não 6 O Quinto dos Infernos.

1 - n. 1

4 Alguns apontamentos sobre humor, ficção televisiva e entretenimento

ano

compatível a essa nova forma de vida.

Revista GEMI n IS |

está ligada às transformações que os processos midiáticos têm promovido na sociedade

134


se envergonham de inserir em suas autobiografias o relato de algum chiste que acaso ouviram. (FREUD, 1938, p. 10).

135

foram, seduzem os telespectadores, que passam a acompanhar as tramas, buscando se entreter e se informar sobre história. Segundo Freud, as técnicas dos chistes apontam para os mesmos processos psíquicos da formação dos sonhos, “Sendo tão abrangente, dificilmente será um puro acaso tal concordância entre os métodos da elaboração do

suas histórias, buscando entreter e cativar seus telespectadores. As séries de ficção, segundo Armand e Michele Mattelart (1989), precisam ser consideradas como a interface das estratégias de valorização do capital nas indústrias culturais e da memória coletiva em suas formas de narrativa. Os autores citam a frase do diretor Marcel Blurval que diz: “A série é caso para contador de histórias.” (MATTELART, 1989, p. 178), para instigar o debate sobre as séries de ficção. As releituras midiáticas da história produzidas pela televisão por meio das minisséries têm uma narrativa diferente da histórica, uma forma de narrar sem preocupação excessiva com datas e nomes, um relato mais “solto”, contanto histórias, ao mesmo tempo em que buscam entreter e cativar o telespectador. Nesse horizonte desenha-se um outro paradigma, segundo Mattelart (1989): o do reconhecimento do sujeito e da pertinência de uma teoria por parte das percepções deste indivíduo. A subjetividade de interpretação de cada um entende a comunicação como um processo dialógico em que a verdade, que não será mais única, nasce da subjetividade. Dentro dessa noção de subjetividade, os autores fazem a seguinte afirmação: “Contra o herói da teoria, contra o herói da produção, contra o herói da história, lança-se o status do homem sem qualidade” (MATTELART, 1989, p. 201). As minisséries constroem em suas representações da história personagens mais envoltos em sua subjetividade que, normalmente, os apresentados pelos livros históricos. Já não são mais heróis, mas homens sem qualidades, como fala Mattelart. Em O Quinto dos Infernos, D. Pedro I é representado, como um anti-herói, no entanto, paradoxalmente, suas características negativas não desfazem a simpatia da personagem, que pode ser entendida como encantadora em seus valores éticos e na representação de seu amor pelo Brasil.

M ichelli M achado

As obras de ficção televisiva, frequentemente, utilizam de humor para contar

chiste e aqueles da elaboração do sonho.” (FREUD, 1938, p. 57).

vira entretenimento

da época, costumam ser mais atraentes que os livros didáticos sobre o assunto, e dessa

H istória

pessoa. Por isso as minisséries televisivas que midiatizam a história e uma determina-

a

entretenimento e a ficção são mais facilmente absorvidos e transmitidos de pessoa para

Q uando

Partindo dessa afirmação de Freud, podemos dizer que assim como o humor, o


A forma com que entendemos as personagens, representadas pelas releituras televisivas, pode estar ligada a fatores internos ou externos, pessoais ou sociais, uma dor. A visão que temos da história, do passado e da memória nacional, a partir de uma obra contemporânea de entretenimento, produzida pela televisão, faz com que, segundo Eric Hobsbawn (1998), nos reconheçamos membros de uma comunidade humana,

vante inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade contemporânea. Em Como se escreve a história, Paul Veyne (1998), nos diz que a história é anedótica, pois interessa porque narra, assim como o romance, sem ter, no entanto, o compromisso de ser cativante. Mesmo assim, é inegável que uma história que consegue ser cativante, que consegue entreter, é muito mais abrangente, tem o poder de se espalhar, para além dos livros, ou no nosso caso, para além das telas das televisões, circulando na sociedade. A história biográfica e anedótica é a menos explicativa, mas a mais rica do ponto de vista da informação, já que considera os indivíduos nas suas particularidades e detalha, para cada um deles, as nuances do caráter, a sinuosidade de seus motivos, as etapas de sua deliberação. (VEYNE, 1998, p. 26).

A afirmação de Veyne dá força à ideia de que a midiatização da narrativa histórica em minisséries de época faz sucesso porque vai além da história, busca uma narrativa biográfica, romanceada, que seduz os telespectadores, pois passa da condição de documento histórico para tornar-se um programa de entretenimento. Dentro dessa visão, as minisséries são obras que apresentam personagens históricas de forma mais realista, apresentando seu caráter e os motivos de suas decisões. Partindo para uma visão do que está atrás das câmeras nos programas de entretenimento, Jacques Aumont (2002) nos ajuda a desvendar um pouco dos bastidores que formam a construção de uma obra cinematográfica. Muitas das afirmações feitas pelo autor, também se enquadram à televisão e as minisséries. Segundo Aumont (2002), a impressão de analogia com o espaço real produzida pela imagem fílmica é tão grande que nos faz esquecer que além do quadro que se vê não há mais imagem. Como uma janela quando revela um fragmento do mundo imaginário. O campo é visível, o fora do campo não é (bastidores, personagens, cenários). A soma do campo mais fora do campo é que forma o espaço fílmico. As fronteiras da narratividade, assim como as da representatividade muitas vezes, são difíceis de traçar, há uma confusão

1 - n. 1

portanto, conforme Hobsbawn, uma dimensão da consciência humana, um compro-

ano

situando-nos em relação ao nosso passado, ainda que seja para rejeitá-lo. O passado é,

Revista GEMI n IS |

vez que essa visão demonstra o poder de modificação da realidade feita pelo observa-

136


entre espaço fílmico e real. Nas minisséries esse conflito é mais forte, devido ao convívio diário entre o telespectador e a obra.

Q uando

5 Comentários finais

137

a

Rede Globo, por exemplo, tem como logomarca “esse olho”, e por meio dele as pessoas veem o que o olho (câmera) vê e quer mostrar. Por isso, Adriano Rodrigues (2000) fala que a percepção que temos do mundo hoje está diretamente ligada aos dispositivos de

dividual e coletiva. Cada vez mais os meios de comunicação que promovem o entretenimento, como a televisão, ocupam-se de contar a história por meio da midiatização de suas narrativas, aproveitando o lugar estratégico que ocupam nas dinâmicas culturais e nos processos midiáticos. O rádio foi o primeiro veículo a contar a história para o povo, depois veio o cinema, que contou histórias por meio de som e imagens. Mais tarde chegou a televisão, uma forma de contar história com som e imagem como o cinema, mas com a intimidade do rádio, pois entrou na casa das pessoas. Os gêneros de ficção televisiva muitas vezes ao contar suas histórias misturam o real ao ficcional propondo uma outra forma de realidade. Em razão disso, as narrativas televisivas - com suas imagens, sons, movimentos - interferem diretamente nos imaginários. Ao trabalhar com narrativas, a televisão usa fragmentos de verdade, recortes e colagens, tornando quase imperceptível a fronteira entre ficção e realidade ou passado e presente. A visibilidade da história na mídia, a partir da midiatização da narrativa histórica em obras de ficção e entretenimento, instiga nossa curiosidade. As releituras midiáticas de acontecimentos históricos colocam a História como base para as tramas das minisséries. Fatos e personalidades históricas são representados nessas obras, a partir da visão contemporânea dos autores. Na construção das obras de ficção televisiva, existe uma apropriação de textos literários e históricos, ao mesmo tempo em que há uma ruptura com o texto original, no processo de produção das minisséries. Essa releitura da história, suscitada pela mídia, possibilita uma certa mistura entre ficção e realidade, falando sobre fatos históricos para o mundo contemporâneo, através de um meio de comunicação, que ainda encanta os receptores, como a televisão.

M ichelli M achado

mais aos ritmos de funcionamento das instituições que formam nossa experiência in-

midiatização que marcam o ritmo da nossa vida cotidiana, sobrepondo-se cada vez

vira entretenimento

televisão tem um regime próprio, um olho que vê e que nos mostra o que a gente vê. A

H istória

A midiatização tem na visibilidade um dos seus grandes valores simbólicos. A


Referências

138

AUMONT, Jacques. A estética do filme. 2 ed. Papiros: São Paulo, 2002.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. V. VIII. Tradução de

Revista GEMI n IS |

James Strachey. New York: Random House, 1938.

ano

HOBSBAWM, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

1 - n. 1

BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia. Dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006.

LOPES, Maria Immacolata Vassalo de; et.al. Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficionalidade. São Paulo: Summus, 2002. LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Aula Inaugural. São Leopoldo: Unisinos, 2009. MARTÍN-BARBERO. Dos meios as mediações. 2 ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. MATTELART, Armand; MATTELART, Michele. O carnaval das imagens. Ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1989. RODRIGUES, Adriano Duarte. Experiência, modernidade e campo dos media. In: SANTANA, R. N. Monteiro (Org.). Reflexões sobre o mundo contemporâneo. Teresina: Revan, 2000. SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, Denis. Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. SODRÉ, Muniz. A antropológica do espelho. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4 ed. Brasília: UNB, 1998.


A G rande Família: sitcom e a representação das relações familiares e amorosas Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita Graduada em Comunicação Social, possui habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba, onde foi bolsista PIBIC/ CNPq/UFPB durante dois anos, e mestranda do programa de Pós-Graduação em Letras, área Literatura e Cultura, pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente, é bolsista da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e integrante, há quatro anos, do grupo de pesquisa Ficção Audiovisual e Produção de Sentido, coordenado pelo professor Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães. O grupo tem o intuito de promover discussões sobre obras de ficção audiovisual, buscando uma articulação entre as teorias da narrativa, da comunicação e do cinema em interface com outras disciplinas das ciências humanas, procurando compreender os textos audiovisuais em correlação com o seu contexto social. E-mail: vanessaqueiroga@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 139 - 164


Resumo O presente artigo tem o intuito de interpretar e analisar o seriado da Rede Globo A grande família, com o objetivo de investigar o formato da teleficção estudada, comédia de situações ou comédia de costumes, e observar quais os olhares que a série constrói sobre as relações familiares e amorosas na sociedade contemporânea, por meio da representação ficcional. Trata-se de um estudo com interesse estético e comunicacional, que se dá pela análise do discurso ficcional, e ambiciona promover e ampliar o entendimento de aspectos de um importante momento da teleficção brasileira contemporânea, configurado em A grande família. Palavras - chave: sitcom; teleficção; relações familiares e amorosas.

A bstract The present article aims to interpret and analyze the Rede Globo TV series A grande família, with the purpose of investigating the format of the TV series studied, situation comedy or costumes comedy, and observe what are the views that the series build upon the familial and loving relations in the contemporary society through the fictional representation. The paper intent is to develop a study with aesthetic and communicational interest, and aspired to promote and expand the understanding of aspects upon an important moment of the Brazilian telefictional production, configured in A grande família. Keywords: sitcom; telefictional; familial and loving relations.


1 A Grande Família: aspectos gerais do artigo O presente artigo realiza um processo de análise discursiva do programa de teleficção da Rede Globo, o seriado A grande família, no seu remake exibido desde 2001, enfocando o estudo da sitcom e abordando a questão da representação das relações familiares e amorosas. O seriado retrata de forma cômica os problemas cotidianos de uma típica família de classe média baixa brasileira, constituindo-se como a série mais longa da emissora, com dez temporadas contínuas até hoje. A grande família faz parte do âmbito da televisão que, por meio da ficção, realiza um comentário sobre a realidade nacional. Ao longo de cada episódio são discutidas questões sociais como a falta de dinheiro, desemprego e problemas familiares, todas com um viés humorístico. O seriado é um exemplo de sitcom, uma abreviatura do termo Situation Comedy, ou comédia de situações. A sitcom de “forma satírica, (...) diz a verdade sobre questões sociais, políticas e familiares de uma determinada cultura” (FURQUIM, 1999, p.5). Em cada episódio desse tipo de comédia de situações são apresentadas histórias com começo, meio e fim, ou seja, os episódios são independentes e podem ser vistos fora da cronologia de produção, porém se enquadram na unidade geral da série e nas características das suas personagens. Por se tratar de uma comédia de situações, nos foi possível investigar a presença do elemento cômico no seriado, por suas características e o formato de uma sitcom, e por meio também do estudo de correlação das categorias enredo e personagem; visto que, nas comédias de costumes, o enredo possui um formato específico, e as personagens são fixas e até mesmo caricatas. Em última instância, foi nosso objetivo também, ao estudar o discurso teleficcional do seriado, definir quais olhares ele constrói sobre as relações familiares e amorosas na sociedade contemporânea que ele representa. Por fim, procuramos contribuir para a discussão da ficção televisiva, em especial a da produção contemporânea brasileira, configurada em A grande família, buscando interpretar os sentidos produzidos pelo seriado a partir do social reelaborado ficcionalmente.


1.1 Um breve histórico

Rede Globo. A sua primeira versão foi exibida de 1972 a 1975, e baseava-se inicialmente na série norte-americana All in the family, em português, Tudo em Família, porém, incorporando dados da cultura brasileira. A estréia aconteceu em 26 de outubro de 1972 e o

assumiu a direção geral do programa e chamou Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa para adequar a série à realidade brasileira. A partir disso, o seriado atingiu bons níveis de audiência: a família foi morar num conjunto habitacional do subúrbio paulista e ganhou características nacionais. A família era composta por Lineu (Jorge Dória), um veterinário, chefe da casa, que cuidava das necessidades financeiras da família; Nenê (Eloísa Mafalda), a dona da casa e mãe protetora; Bebel (primeiro Djenane Machado, depois Maria Cristina Nunes), única filha do casal; Agostinho (Paulo Araújo), marido de Bebel, garçom de motel e que vivia em apuros financeiros; Júnior (Osmar Prado), um dos filhos do casal, era estudante de medicina com um posicionamento político de esquerda; Tuco (Luiz Armando Queiroz), o outro filho, que era um hippie “desligado”; e por fim, Seu Floriano (Brandão Filho), pai de Nenê, era aposentado e dormia na sala da casa. O cotidiano da família era repleto de situações que abordavam as questões sociais como o desemprego e a falta de dinheiro; o programa também fazia crítica à situação política do país, época da ditadura militar, porém sem retirar o tratamento cômico da série. Mesmo com o tom de humor e leveza presentes nas cenas, A grande família teve problemas com a censura na abordagem dos assuntos políticos, principalmente com as falas do personagem Júnior, que eram quase sempre proibidas. Sandra Pelegrini afirma que “Vianinha, sempre que tinha oportunidade, ressaltava que a comicidade tornava a crítica muito mais perspicaz e a televisão despontava como espaço de reconhecimento das relações humanas e da reiteração de determinados valores” (PELEGRINI, 2001, p.252). A autora complementa ainda, ao se referir ao seriado A grande família, que: O tom da comicidade projetado por Vianinha para as personagens televisivas partia de ambientações projetadas no cenário urbano, reforçadas por sonoridades que acabavam compondo uma atmosfera traspassada por diferentes níveis de humor que incluíam trapaças e caçoadas, brincadeiras e hostilidades. Nesses programas eram comuns as referências ficcionais habituais aos telespectadores e a apresentação de histórias com evidente similaridade ao exercício

1 - n. 1

Freire, foi transmitido ao vivo e em preto e branco. Em 1973, Paulo Afonso Grisolli

ano

primeiro episódio, dirigido por Milton Gonçalves e escrito por Max Nunes e Marcos

Revista GEMI n IS |

A grande família foi a comédia de costumes pioneira da emissora de televisão

142


diário das vivências – aspecto que o colocava em sintonia com a produção industrializada (PELEGRINI, 2001, p. 253).

ar, tendo sido exibido seu último episódio em 27 de março. A morte de Oduvaldo Vianna naquele ano abalou a equipe do seriado e, mesmo depois que Paulo Pontes assumiu de Natal com A grande família, escrito por Marcílio Moraes e dirigido por Paulo Afonso Grisolli. Com exceção de Agostinho, que foi interpretado por Nuno Leal Maia, as personagens e o elenco permaneceram os mesmos desde o último episódio, exibido em 1975. Desde 2001, a Rede Globo exibe uma reinterpretação de A grande família da década de 70, na qual as personagens e histórias foram atualizadas para a realidade contemporânea. O primeiro episódio foi ao ar no dia 29 de março de 2001 e, desde então, a cada ano a série estreia uma temporada nova. O núcleo é de Guel Arraes e a equipe que já faz parte do seriado é extensa, envolvendo Cláudio Paiva, Maurício Farias, Marcelo Gonçalves, Daniela Braga, dentre outros diretores e roteiristas. Com base em seu enredo, a família foi transferida de um conjunto habitacional paulista para o subúrbio carioca, mas as questões abordadas na série seguiram a mesma lógica de antes, com temas como a falta de dinheiro, as dificuldades profissionais, as relações entre familiares, e agora também as relações da família com amigos ou vizinhos. mente pelas mesmas personagens; a mãe e dona de casa, Nenê (Marieta Severo); o pai, veterinário de formação e funcionário público da vigilância sanitária, Lineu (Marco Nanini); o avô, aposentado e que dorme no sofá da casa, Seu Flor (Rogério Cardoso); a filha, Bebel (Guta Stresser); o filho, desleixado e que quer ser famoso, Tuco (Lúcio Mauro Filho); e o genro que vive em confusões financeiras, Agostinho (Pedro Cardoso). As críticas políticas presentes na primeira versão do seriado não tiveram continuidade nessa nova versão, desse modo o personagem do outro filho, Júnior, o estudante de esquerda, não foi reproduzido. No primeiro ano do remake do seriado, as histórias eram baseadas em textos originais de Oduvaldo Vianna Filho, porém, a partir de 2002, os episódios passaram a ser inéditos, e assim algumas personagens sofreram mudanças ao longo das temporadas. Agostinho conseguiu um emprego fixo e tornou-se motorista de táxi; a morte do ator Rogério Cardoso retirou a personagem Seu Flor do elenco da série; Bebel resolveu trabalhar fora de casa; por um tempo Lineu abandonou o funcionalismo público e decidiu exercer a sua profissão de veterinário, retornando depois ao funcionalismo público; Bebel e Agostinho alugaram a casa ao lado e deixaram de morar com Lineu e Nenê; e a

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

Nessa reinterpretação contemporânea do seriado, a família é composta basica-

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

o cargo, a série não teve continuidade. A Rede Globo produziu, em 1987, um especial

A G rande Família :

Em 1975, pouco tempo depois de começar a ser exibida em cores, a série saiu do

143


família aumentou com a chegada de Floriano, o filho de Bebel e Agostinho. Não apenas as personagens sofreram mudanças como também os conflitos dos mentaram os problemas amorosos entre Agostinho e Bebel até que eles se separaram por vários episódios. As cobranças de Lineu para que Tuco tome um rumo na vida ficaram mais evidentes, a convivência entre Agostinho e Lineu se tornou insuportável por

A maior parte das histórias que envolvem A grande família advém das personalidades distintas dos integrantes e dos chamados “agregados da família Silva”, pois uma das características do remake da série é a participação especial de personagens de fora do núcleo familiar nos episódios, participação esta que pode ser única ou até se tornar permanente. Com dez temporadas contínuas, surgiu a necessidade de um acréscimo no elenco para renovar as histórias vividas pela família. Assim, personagens foram se integrando ao elenco fixo do programa: temos Beiçola (Marcos Oliveira), o dono da pastelaria e advogado oficial do bairro; Mendonça (Tônico Pereira), o mulherengo chefe de Lineu; Paulão da regulagem (Evandro Mesquita), um mecânico trambiqueiro e conquistador; Gina (Natália Lage), a noiva de Tuco, dentre outros. Para finalizar, as mudanças nas vidas das personagens e a entrada de novos integrantes e amigos no clã Silva ocasionaram várias mudanças no decorrer das temporadas. Isso fez com que o seriado evoluísse e conquistasse um lugar e um horário na casa dos brasileiros, por isso permanece por tanto tempo em exibição. 2 Entendendo o formato 2.1 Teleficção: o seriado Por meio da criação de um universo, da transformação da realidade e da apreensão do mundo é que a televisão transmite durante um bom tempo de sua programação a chamada teleficção, ou seja, a ficção produzida e exibida na TV. Podemos assinalar que um programa de teleficção: é a história, mais ou menos longa, mais ou menos fracionada, inventada por um ou mais autores, representada por atores, que se transmite com linguagem e recursos de TV, para contar uma fábula, um enredo, como em outros tempos se fazia só com o teatro e depois se passou a fazer também em cinema (PALLOTTINI, 1998, p. 23, 24).

1 - n. 1

mais profunda as relações entre os integrantes da casa, porém sem perder o humor.

ano

um tempo na família, dentre outras histórias. O seriado passou a abordar de maneira

Revista GEMI n IS |

roteiros do seriado adquiriram uma nova roupagem com o passar das temporadas. Au-

144


Desse modo, podemos classificar os programas de ficção televisiva por tipo de trama e subtrama, pela maneira de criar, apresentar e desenvolver as personagens, pelo pria na televisão. Assim, de acordo com Renata Pallottini (1998), temos os programas unitários e os não-unitários. O unitário trata-se “de uma ficção para TV, levada ao ar de uma só vez, com uma história com começo, meio e fim, que esgota sua posição na unidade e nele se encerra” (PALLOTTINI, 1998, p.25). Quanto aos não-unitários, como o próprio nome diz, a autora assinala que são os programas com uma maior duração e que se classificam em: minissérie, seriado e telenovela. A grande família se classifica como um seriado, “é uma produção ficcional para TV, estruturada em episódios independentes que têm, cada um em si, uma unidade relativa” (PALLOTTINI, 1998, p.30). Para Cristina Costa, a “cultura televisiva integra as práticas comunicativas de outras mídias, especialmente o rádio, às características empáticas da cultura proletária – espontaneidade, repetitividade, humor, previsibilidade e muita ficcionalidade” (COSTA, 2002, p.70). De acordo com Pallottini, a ficção televisiva também se utilizou da experiência de outras mídias e artes, como o teatro, o cinema e o rádio, “sem esquecer uma das mais ricas e permanentes fontes de matéria ficcional, a narrativa pura” (PALLOTTINI, 1998, p. 24). pelas personagens, pelo espaço, porém principalmente pelo enredo, “por um propósito do autor, por um objetivo autoral, uma visão de mundo que ele pretende transmitir” (PALLOTTINI, 1998, p.30). É esse objetivo único que, realmente, unifica o seriado. Seus episódios serão, portanto, uma consequência desse objetivo básico, dessa cosmovisão, e terão como característica a relativa unidade de cada episódio e a unidade total de todo o seriado, dada por um sentido de convergência (PALLOTTINI, 1998, p.32).

Assim, como o primeiro episódio precisa ter sido elaborado de forma coesa e bem definida, proporcionando a não necessidade de existir uma cronologia rígida quanto à exibição dos programas; cada emissão terá começo, meio e fim; personagens fixas e enredos contidos numa unidade maior que rege todo o seriado, o chamado sentido de convergência. Segundo Arlindo Machado (2005), a produção seriada da televisão nos permite pensar em uma “estética da repetição” que:

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

Por isso, a unidade geral de um seriado pode ser dada pelo tema, pela época,

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

duração de aproximadamente uma hora, programa que basta em si mesmo, que conta

A G rande Família :

tratamento de material, ou seja, pelas suas características formais, sua linguagem pró-

145


No caso de A grande família, temos uma “estética da repetição” fundada na me-

146 Revista GEMI n IS |

acontece numa variedade quase infinita de possibilidades, mas para efeitos de um estudo mais genérico, vamos agrupar as tendências predominantes em três grandes categorias: aquelas fundadas nas variações em torno de um eixo temático, aquelas baseadas na metamorfose dos elementos narrativos e aquelas estruturadas na forma de um entrelaçamento de situações diversas (MACHADO, 2005, p. 90).

tamorfose dos elementos narrativos. Nessa categoria, temos “uma situação ficcional

ano

mais afinada com uma estrutura seriada do que com um padrão narrativo clássico, no

1 - n. 1

sentido aristotélico do termo” (MACHADO, 2005, p. 92). Ou seja, não “há um enredo linear, uma trama a ser seguida, um objeto final a ser perseguido, (...) mas há um mecanismo interno de mutação que modifica o estatuto dos personagens de um episódio a outro” (MACHADO, 2005. p. 93). Assim, no seriado analisado, a cada episódio temos uma situação ficcional diferente, porém as características das personagens permanecem as mesmas, as condições nas quais estas são colocadas é que se modificam a cada novo enredo. A grande família segue todas essas definições do formato de um seriado descritas anteriormente, possui personagens bem definidas; não foge à cosmovisão da série estabelecida desde o começo; conta uma história completa em cada episódio; a cronologia se perde, pois um episódio escrito antes pode ser exibido depois; a série é baseada na metamorfose dos elementos narrativos; e, além disso tudo, possui um tom humorístico, se caracterizando por ser uma comédia de situações, uma sitcom. 2.2 Sitcom De acordo com a classificação dos programas televisivos de José Carlos Aronchi de Souza (2004), A grande família se enquadra na categoria entretenimento, gênero sitcom; uma abreviatura do termo situation comedy, ou comédia de situações, comédia de costumes. A “sitcom é o gênero mais enraizado na cultura americana – um tipo de humor que utiliza a teledramaturgia para apresentar em situações cômicas os costumes dos cidadãos comuns” (SOUZA, 2004, p.135). O autor complementa ainda que os “programas do gênero sitcom são os dois braços do corpo formado pelo humorismo: em um, carrega o humor; no outro, a teledramaturgia” (SOUZA, 2004, p.135). Outra característica das sitcoms é a família; é necessário que o(s) personagem(ens) esteja(m), de alguma forma, envolvido(s) com uma família a qual poderá ser composta por seus pais, irmãos e/ou avós e tios, como podem também ser compostas por seus colegas de trabalho ou melhores amigos (FURQUIM, 1999, p.13).


No caso da sitcom em estudo, a família é o centro, assim as dificuldades financeiras, os problemas conjugais e de relacionamento entre as personagens são vividos diano de uma família típica de uma sociedade, trazem drama, humor, aventura, ficção e todas as demais abordagens imagináveis, mas acabam, também, assumindo a obrigação de fazer rir”. pode ser enquadrada, quanto ao tipo: doméstica, que são as situações que envolvem pai, mãe e filhos; e quanto ao estilo podem ser dois tipos: comédia sentimental, são as sitcoms domésticas que enfocam os relacionamentos da família entre si e com a sociedade; e comédia social, são as sitcoms voltadas à valorização do ser humano com relação a suas obrigações e posição perante os problemas da sociedade (FURQUIM, 1999). As sitcoms não visam, basicamente, fazer o público rir. São mais uma forma do escritor passar a um grande público suas idéias e opiniões sobre a sociedade em que está inserido. A graça, o riso fácil, são conseqüências de um texto bem escrito e personagens bem elaborados dentro de um contexto bem apresentado (FURQUIM, 1999, p.5).

A sitcom possui esse formato de personagens fixas envolvidas em situações cômicas devido à sua origem, e dentre as suas várias raízes podemos citar o “vaudeville produzidas para o cinema durante os anos 40, os programas humorísticos e os shows de variedades” (FURQUIM, 1999, p.16). O rádio foi o primeiro veículo a transmitir as chamadas comédias de situação e muitas delas foram transportadas para a televisão nos Estados Unidos já na década de 50 (FURQUIM, 1999). As primeiras sitcoms produzidas entre 1947 e 1951 eram cópias fiéis daquelas apresentadas no rádio. Algumas alcançaram um relativo sucesso, outras, passaram despercebidas. O maior problema estava na adaptação de clássicos radiofônicos, ou seja, aquelas séries cujos protagonistas e cenas o público já estava acostumado a imaginar. De repente, se viam frente a frente com os personagens e muitos não se encaixavam na imagem que cada um havia formado em sua cabeça. Outro problema, o maior de todos, estava na adaptação de séries cômicas relacionadas a diferenças raciais e culturais. No rádio, deva [sic] certo, mas na televisão, não (FURQUIM, 1999, p.17).

Na década de 60, foram produzidas sitcoms sobre a família ideal, o estilo de vida americano e o mundo da ficção científica, porém, nos anos 70, esse quadrou mudou. Com a geração hippie, a guerra do Vietnã e os altos índices de criminalidade, surgiram

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

(o teatro mambembe ou de rebolado), as tiras em quadrinhos de jornal, as comédias

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

A autora classifica as sitcoms segundo tipos básicos e estilos. A grande família

A G rande Família :

pelos integrantes familiares. Segundo Furquim (1999, p.5), “sitcoms, retratando o coti-

147


sitcoms retratando questões sociais, políticas e familiares, dentre elas, podemos citar All in the family (Tudo em Família), seriado televisivo que influenciou A grande família

ao discutir assuntos como virgindade, racismo, desigualdades sociais, na década de 80 “ocorreu a inevitável freada. Era como se o público já estivesse cansado de ver a verdade ser exposta ‘nua e crua’. Assim, sitcoms passaram a mesclar as questões da família ideal com a abordagem dos temas tabus” (FURQUIM, 1999, p.27). Por meio dessa evolução de temas e também das transformações técnicas, as sitcoms chegaram aos anos 90 com dois formatos, o tradicional que retrata a família; e o de grupo de jovens que pode ser dentro de questões familiares, profissionais ou das relações com os amigos (FURQUIM, 1999). “As sitcoms, gênero de humor de sucesso também nos Estados Unidos, fazem parte do repertório das produções brasileiras. A grande família, da Rede Globo, é um exemplo de remake que voltou ao ar devido ao sucesso há mais de trintas anos” (SOUZA, 2004, p.113). Segundo Fernanda Furquim, a sitcom “chegou ao Brasil junto com a televisão, mas apenas com a TV por assinatura tornou-se popular” (FURQUIM, 1999, p.8). A grande família surgiu em 1972, trazendo justamente as relações amorosas entre Lineu e Nenê, e, Bebel e Agostinho; a tematização de aspectos que envolvem a sociedade e a cultura nacional. No dia a dia da família, questões como desemprego, conflitos conjugais e falta de dinheiro, eram abordadas. O seriado também fazia críticas à situação política no Brasil, na época da ditadura militar, principalmente por meio das ações e falas da personagem do filho Júnior, estudante de esquerda, presente apenas na primeira versão do seriado. A tematização de questões da atualidade manifesta-se fortemente na televisão brasileira desde a década de 1970, quando autores e diretores declamaram abertamente a intenção de fazer da ficção televisual um comentário à realidade brasileira, fosse a realidade contemporânea, tratada principalmente pelas telenovelas originais, fosse a realidade histórica, abordadas principalmente em adaptações (GUIMARÃES, 2003, p.103).

1 - n. 1

Após a radical mudança nos temas das sitcoms com a quebra de vários tabus

ano

Tudo em Família, que, embora mostrasse um casal de meia-idade no qual o marido era autoritário e a esposa submissa, introduzia um casal jovem com base em uma relação mais igualitária, um respeitando a opinião do outro e discutindo seus problemas abertamente. A série era um retrato da mudança dos tempos: o casal de idade representando o comportamento do passado e, o jovem, o do presente (FURQUIM, 1999, p.49).

Revista GEMI n IS |

(FURQUIM, 1999).

148


Em cada episódio de uma sitcom temos as características básicas de um seriado de televisão; histórias com começo, meio e fim; situações que não fogem ao enredo da Assim, podemos classificar A grande família como uma comédia de situações por ser um programa de teledramaturgia com a função de entreter; ter no seu enredo situações criativas e bem escritas, com exibição semanal independente e fora de uma média baixa brasileira de forma humorística, porém sem deixar de fazer uma crítica à sociedade e ao sistema capitalista. 3 O elemento cômico: enredo e personagens 3.1 Comédia Um quadro geral sobre a comédia nos serve como base para os estudos posteriores sobre especificamente o tipo de enredo presente em A grande família e as suas personagens. A comédia é um dos quatro subgrupos em que se divide o gênero dramático. De acordo com Saraiva e Cannito (2004), o drama se caracteriza por possuir personagens em conflito, cenas se desenvolvendo através dos diálogos e narrador oculto sob os fatos; além dessas características, os autores definem a comédia como:

De acordo com Henri Bergson (1980), o riso acontece por meio da insensibilidade e de um espírito tranquilo, a emoção e a piedade impedem a sua proliferação. A insociabilidade das personagens e o automatismo dos seus gestos complementam essa caracterização, “o cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito” (BERGSON, 1980, p.13). Lígia Militz da Costa (1992) apresenta uma leitura/reescritura da obra de Aristóteles, retomando conceitos do autor de forma didática. A autora assinala que “a comédia é a imitação da ação de homens inferiores, o autor [Aristóteles] acrescenta-lhe, como elemento novo, a relação do cômico com o feio” (COSTA, 1992, p.16). É o caso da

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

o desenvolvimento de uma situação dramática, com unidade, que chega a um reequilíbrio conciliado (um final feliz, uma festa de reconciliação). Mas mesmo separando, para fins analíticos, a comédia do riso (o desenvolvimento e a “festa” final podem provocar apenas sorrisos de participação), isso não quer dizer que toda história com final feliz será uma comédia. Se não houver uma situação dramática e progressão unitária, teremos ou um melodrama ou uma farsa (estruturas de enredo mais episódico) [...] (SARAIVA; CANNITO, 2004, p.93).

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

cronologia rígida; e abordar os problemas do cotidiano de uma típica família de classe

A G rande Família :

série; e a cada episódio, uma mensagem final explícita ou não.

149


máscara cômica que possui feições feias e contorcidas, porém se constitui um defeito

150

sem dor, nem piedade, por isso gera o riso. o espectador a julga, entretanto, uma personagem cômica ao se sentir ridicularizada, irá procurar mudar as suas atitudes, nem que seja apenas exteriormente (BERGSON, 1980). Assim, podemos afirmar que a “comédia diferencia-se da tragédia por não ‘bater

(SARAIVA; CANNITO, 2004, p.94). Segundo Frye, os obstáculos impostos ao desejo do herói provocam a ação na comédia e a superação o seu desenlace, o “final cômico é em geral manobrado com uma reviravolta no enredo” (FRYE, 1973, p.170). “Entende-se por desenlace um evento ou um conjunto concentrado de eventos que, no termo de uma ação narrativa, resolve tensões acumuladas ao longo dessa ação e institui uma situação de relativa estabilidade que em princípio encerra a história” (REIS; LOPES, 1988, p. 200). O desenlace desempenha nas comédias um papel crucial: é a partir dele que a história se encerra e atinge o viés de harmonia final característico do tipo de enredo cômico. 3.2 Enredo Em narratologia, segundo Gérard Genette, no que se refere ao tempo, existe a distinção entre história (diegese): o que se conta; e entre o enredo (discurso): como se conta (REIS; LOPES, 1988). Assim, o autor assinala que a “narrativa é uma seqüência duas vezes temporal [...]: há o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do significante)” (GENETTE, 1980, p.31). Portanto, existem dois planos no ato da narração que podemos distinguir: o que se narra e a maneira como se narra, corresponderiam respectivamente a história/enredo, diegese/discurso, ou ficção/ narração; optamos analisar o seriado A grande família por meio do conceito mais amplo, o enredo. Segundo Samira Nahid de Mesquita (1987), o enredo é estruturado pela causalidade e pela lógica do tempo, ou seja, os fatos estão ligados pela relação de causa e efeito seguindo uma cronologia. O enredo gira em torno do núcleo dramático, definido pela autora como “núcleo conflitivo, gerador das ações das personagens, em torno do qual podem-se criar outros conflitos, confronto de forças antagônicas, ação gerando ação, em sentido contrário” (MESQUITA, 1987, p. 28). De acordo com as características propostas por Mesquita (1987), ao tratar do

1 - n. 1

tar ‘driblar’ essas contradições, estabelecendo pactos que permitem à vida prosseguir”

ano

de frente’, ‘buscar as contradições irreconciliáveis’ da época, mas, ao contrário, por ten-

Revista GEMI n IS |

Uma personagem de uma tragédia nunca mudará os seus atos por saber como


conceito de enredo, podemos classificar A grande família como um programa que tem

151

uma organização tradicional, respeitando a cronologia dos fatos (começo, meio e fim), de conteúdo ou conflitos. Pelo contrário, a série, a cada temporada se renova e traz situações mais criativas e agradáveis ao público em geral, abordando temas recorrentes e presentes na vida dos brasileiros, como problemas econômicos, escândalos políticos, A grande família é o exemplo de uma teleficção com um enredo de qualidade. Vanessa Ottolini (2008) afirma que o seriado prova que: É possível fazer um produto televisivo, como uma série, por exemplo, e utilizar construções textuais e simbólicas de maneira inteligente, não apelativa de forma que o telespectador brasileiro sinta-se inserido naquela determinada engrenagem, não na forma de consumo explícito, mas sim, poder enxergar-se naquela determinada família cotidiana (OTTOLINI, 2008, p.134).

Mesquita (1987) afirma que, segundo o romancista inglês Henry James, o enredo de uma narrativa tradicional (podemos citar como exemplo A grande família) possui cinco fases: apresentação, complicação, desenvolvimento, clímax e desenlace. Então, toda narrativa tradicional começa com uma situação inicial, “é a apresentação de personagens em seu contexto sócio-cultural, familiar ou em suas características físicas e morais” acontecimento, ocorre a sucessão dos fatos, surgindo assim a complicação, o desenvolvimento e o clímax do enredo. De acordo com Frye (1973), e a classificação proposta por Henry James, conforme exposta por Mesquita (1987) em seu livro, podemos afirmar que na comédia, a complicação provoca os obstáculos impostos ao herói; com o desenvolvimento, surge a tentativa de superar os obstáculos gerando a ação narrativa; e, após o chamado, quase fim trágico, o clímax; vem a superação, o desenlace cômico, reviravolta na história em que acontece o tão desejado, pelas audiências nas comédias, final feliz. Segundo Saraiva e Cannito (2004), nas comédias, após o desenlace, vem o estágio da conciliação, ou seja, nesse tipo de enredo, a história precisa terminar no chamado final feliz, como afirmou Frye (1973), para passar a ideia de solução dos conflitos. “Os pactos, ainda que necessários, são sempre provisórios, finitos. Uma comédia tem de acabar na festa da conciliação, porque, se ela durar até o dia seguinte, a impressão de ‘solução’ se desfaz” (SARAIVA e CANNITO, 2004, p. 94). Diante disso, podemos destacar um final recorrente em A grande família, que

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

(MESQUITA, 1987, p.23). A partir disso, a autora assinala que, pela motivação de algum

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

polêmicas sociais, e também os entretenimentos que estão na moda.

A G rande Família :

o princípio da causalidade e à verossimilhança; isso não quer dizer um enredo pobre


se constitui quase sempre na presença de todos os integrantes do clã Silva, reunidos geralmente na casa, em uma situação em que todos falam ao mesmo tempo, passando a Como as sitcoms giram em torno das personagens e das situações vividas por elas, em A grande família os conflitos dos episódios surgem do embate entre os integrantes familiares. Para que o enredo fique centralizado nos conflitos vividos pelas figuras

3.3 Os integrantes da família Silva

A grande família era composta de sete personagens fixos em sua primeira versão na década de setenta. O remake realizado desde 2001 do seriado não reproduziu o personagem do filho Junior, estudante de esquerda, que possuía uma função crítica diante da situação política do Brasil na época. A nova versão da série optou por criar amigos e vizinhos da família que, aos poucos e, ao longo das temporadas, foram introduzidos cada vez mais nas histórias e alguns até se tornaram permanentes no programa. Mesmo com essas entradas e saídas de personagens, os seis componentes da família, mantidos desde a década de setenta, possuem as mesmas personalidades de antes, constituem perfis caricatos da sociedade brasileira, adaptados, é claro, cada um a sua época. Considerando que o “personagem é aquilo que o dramaturgo criou no papel, mais os cenários que o circundam, as roupas que veste, o penteado criado para ele, as luzes que o iluminam, as cores pelas quais se optou [ou seja] todos os signos a serem lidos e decifrados pelo espectador” (PALLOTTINI, 1998, p.145); tentaremos agora decifrar as características das principais personagens da família Silva. Lembrando que uma das diferenças entre as personagens na comédia e na tragédia, é que a primeira lida com tipos gerais, enquanto a segunda possui indivíduos que não são confundidos com outros, podendo-se esboçar uma classificação geral das personagens de A grande família, segundo as suas representações na sociedade brasileira. Essa classificação é baseada na tipologia proposta por Vanessa Ottolini (2008), no qual a autora enquadrou alguns integrantes da família Silva em perfis da sociedade brasileira. Assim, temos Lineu (Marco Nanini), o “Caxias”; Nenê (Marieta Severo), a dona de casa; Agostinho (Pedro Cardoso), o “malandro”; Bebel (Guta Stresser), a filha mimada; Tuco (Lúcio Mauro Filho), o “marginal”; e Seu Flor (Rogério Cardoso), o avô aposentado.

1 - n. 1

sentação caricata das suas personagens em tipos gerais (FURQUIM, 1999).

ano

dramáticas da sitcom, não existe apenas a limitação dos cenários, mas também a repre-

Revista GEMI n IS |

imagem de início de uma nova confusão, mas que na verdade, é o final feliz do seriado.

152


biente da rua. O autor afirma que é na rua que devem viver “os malandros, os meliantes, os pilantras e os marginais em geral – ainda que esses mesmos personagens em casa possam ser seres humanos decentes e até mesmo bons pais de família. Do mesmo modo, a rua é local de individualização, de luta e de malandragem” (MATTA, 1997, p. 55). É por meio dessa distinção que podemos caracterizar o personagem Agostinho. O “malandro é um ser deslocado das regras formais da estrutura social, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás, definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e altamente individualizado, seja pelo modo de andar, falar ou vestir-se” (MATTA, 1981, p. 204). Ottolini complementa que Agostinho:

Do lado contrário de Agostinho, temos Lineu, representando o caxias, disposto sempre a julgar ou criticar as atitudes dos outros integrantes da família, principalmente a malandragem do seu genro. Lineu, funcionário público da vigilância sanitária, é o chefe da casa, o “certinho”, quem cumpre e respeita as leis, quem sustenta a família e a quem, em situação de sufoco, todos vão pedir ajuda. Por isso, o “oposto da figura do malandro é o ator que realiza os rituais da ordem, o verdadeiro caxias. Seu perfil faz-se por formas e fixas [sic] de conduta e suas formas são sempre baseadas no estilo linear, uniforme” (OTTOLINI, 2008, p. 133). Roberto DaMatta assinala que o nome caxias é “derivado do venerável patrono do Exército, o Duque de Caxias, [e a expressão] já procura demonstrar o domínio uniformizado e re-

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

Assume perfeitamente o estereótipo do malandro brasileiro, o não regrado, aquele indivíduo que faz de tudo para fugir das normas sociais como o trabalho, compromissos financeiros e principalmente de um estado de caráter linear, haja vista que dependendo da situação na qual ele se encontre, o que vale é fazer um lado sorrir e o outro chorar. Podese observar que a fisionomia do indivíduo que vive na malandragem vai do riso ao choro de forma rápida da mesma forma que o tom de voz também muda, dependendo do interesse em questão. Os coloridos e as mais variadas formas geométricas que o personagem apresenta, contribuem para fidelizar ainda mais a imagem da não cordialidade estilística (OTTOLLINI, 2008, p.133).

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

Roberto DaMatta (1997) faz a distinção entre o ambiente da casa versus o am-

153 A G rande Família :

Utilizando a característica do conceito de família e cotidianidade trabalhado na série, faz se [sic] necessário discutir a engrenagem pela qual essa família se socializa e se relaciona com o mundo externo, aceitando componentes sociais como a dicotomia casa x rua que traz consigo os principais conceitos de relacionamento propiciando a identificação desses personagens com as figuras sociais estereotipadas como a dona de casa, o malandro, o caxias, o vagabundo, entre outros (OTTOLINI, 2008, p. 132).


gular do qual saiu para ganhar popularidade numa sociedade também fascinada pela ordem e hierarquia” (MATTA, 1981, p. 204). encontra à margem delas, diferentemente do bandido que é um fora da lei. O filho Tuco foi considerado um marginal pela posição que ele ocupava na sociedade, não trabalhava; não estudava, pois não conseguia passar no vestibular; tem um filho, Nelsinho, com

Tuco, com quase trinta anos, era um fardo para o pai que o sustentava e não via perspectiva alguma no futuro do filho. Nas últimas temporadas do seriado, ele começou a fazer uns trabalhos em festas como DJ e a ganhar o seu próprio dinheiro, além de ter começado a estudar sério, conseguindo passar no vestibular; isso mostra uma evolução no seu caráter, que passa a assumir responsabilidades, assim surge a necessidade de uma nova classificação para essa personagem. Completando o time masculino de A grande família, temos o Seu Flor, Floriano, pai de Nenê, interpretado por Rogério Cardoso, um aposentado que dormia no sofá da sala. Após a morte do ator em 2003, a equipe do seriado optou por não substituí-lo e a personagem saiu da trama. Seu Flor representava a experiência e, ao mesmo tempo, a jovialidade de quem queria ainda aproveitar a vida. Uma das características marcantes de Seu Flor era a sua implicância com Agostinho, mas que, na verdade, era uma forma de expressar o carinho e a preocupação que ele sentia. Na equipe feminina temos Irene, mais conhecida como Dona Nenê, e Maria Isabel, a Bebel. Dona Nenê representa a mãe/ dona de casa dedicada, competente e responsável pela vida interna da família. A personalidade e a maneira como se veste evidencia a exemplar dona de casa de uma família de classe média baixa brasileira, porém o diferencial do seriado é que, mesmo representando uma mulher que se dedica apenas aos afazeres domésticos, Dona Nenê ocupa posição de destaque nas decisões da família. Ela não representa uma mera dona de casa amargurada, ela defende o seu posto e o assume todos os dias com orgulho e carinho de quem gosta da posição que ocupa na sua família e na sociedade . Maria Isabel, conhecida como Bebel, é a filha de Lineu e Nenê, casada com o malandro Agostinho. Bebel sempre se vestiu de maneira espevitada, com blusas curtas e calças apertadas, mesmo na época da gravidez. Ottolini classifica Bebel como “a bonequinha mimada da família, vive em apuros com o seu querido marido Agostinho que sempre coloca o casal em grandes loucuras” (OTTOLINI, 2008, p. 134). Bebel mora ao lado da casa dos pais com o seu marido e o filho Floriano, nome em homenagem ao avô, Seu Flor.

1 - n. 1

jogando sinuca na pastelaria perto de casa.

ano

uma ex namorada Viviane (Leandra Leal); e passava os dias em festas, dormindo ou

Revista GEMI n IS |

Se o malandro dribla as leis e o caxias as cumpre rigorosamente, o marginal se

154


4 Família e amor

155

Para Elisabeth Roudinesco, a palavra família “recobre diferentes realidades. Num sentido amplo, a família sempre foi definida como um conjunto de pessoas licendendo uns aos outros” (ROUDINESCO, 2003, p.18). A instituição familiar evoluiu ao longo dos séculos até atingir o formato com o qual nos deparamos nos dias atuais, principalmente no ocidente; de relações incestuosas, a poligamia, ao patriarcalismo, a contratos de casamento, passamos a ter uniões livres da antiga sacralidade, monogâmicas, com flexibilidade das relações dentro de casa e com igualdade entre homens e mulheres que juntos assumiram o papel de sustentar as suas famílias. No livro Feminino e Masculino (2002), Rose Marie Muraro e Leonardo Boff afirmam ter existido antigamente, na pré-história, um equilíbrio entre homens e mulheres com a natureza. “Naquela fase, homens e mulheres viviam integradamente. As relações eram igualitárias e a mulher, considerada mais próxima dos deuses porque dela dependia a reprodução da espécie” (MURARO; BOFF, 2002, p.13). A mulher era respeitada e assumia uma posição de destaque naquela sociedade, onde viveu harmoniosamente com os homens por cerca de um milhão e meio de anos. “Nas sociedades da caça vem a se tornar hegemônico no período histórico – há oito mil anos -, quando destina a si o domínio público e à mulher, o privado” (MURARO; BOFF, 2002, p. 13). Assim, as relações entre homem e mulher, homem e natureza passam a ser de dominação, deixando o estágio antigo de equilíbrio e harmonia. Essa transformação influenciou diretamente a forma como as pessoas estabeleciam as suas famílias. O modelo familiar patriarcal perpetuou-se, por vários séculos, e pode-se dizer que ainda existe em menor escala; sendo trazido pelos portugueses para o Brasil, na época da colonização. Elisabeth Roudinesco (2003) distingue três grandes períodos na evolução da família. O primeiro a autora denomina como a família tradicional, aquela que:

serve acima de tudo para assegurar a transmissão de um patrimônio. Os casamentos são então arranjados entre os pais sem que a vida sexual e afetiva dos futuros esposos, em geral unidos em idade precoce, seja levada em conta. (...) a célula familiar repousa em uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal (ROUDINESCO, 2003, p.19).

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

iniciam-se as relações de força, e o masculino, que passa a ser o gênero predominante,

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

gadas entre si pelo casamento e a filiação, ou ainda pela sucessão dos indivíduos des-

A G rande Família :

4.1 Relações familiares


A família que pode ser denominada moderna acontece no segundo período, existente entre o final do século XVIII e meados do século XX. “Fundada no amor romédio do casamento” (ROUDINESCO, 2003, p.19). O último período foi chamado pela autora de família “contemporânea” ou “pós-moderna”, instituída a partir dos anos 60, quando as pessoas passam a buscar a união por intimidade emocional e com realização

tornam mais flexíveis e alguns cuidam apenas do lar, os papéis se invertem; os homossexuais, os chamados excluídos da sociedade, exigem o direito de constituírem também as suas famílias, eles lutam pelo direito ao casamento e à adoção de crianças; cada vez mais, são comuns as uniões sem casamento; enfim, a família adquire, nesse terceiro período, um caráter totalmente diferente dos antigos. “No início do século XXI, as mulheres são praticamente 50% da força de trabalho mundial, ou seja, para cada homem que trabalha, uma mulher também trabalha” (MURARO; BOFF, 2002, p.13). Essa realidade influencia diretamente a maneira pela qual se organizam as famílias atualmente, gerando assim consequências como a diminuição do número de filhos por casal, e fazendo com que o casamento seja “tardio, reflexivo, festivo ou útil, e frequentemente precedido de um período de união livre, de concubinato ou de experiências múltiplas de vida comum ou solitária” (ROUDINESCO, 2003, p. 197). A contemporaneidade também trouxe o modelo familiar fragmentado pelo divórcio. Como a mulher adquiriu independência e hoje é capaz de se sustentar sem depender do marido, o medo e a vergonha impostos pela separação ficaram de lado. O “casamento, em constante declínio, tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual cônjuges – que às vezes escolhem não ser pais – se protegem dos eventuais atos perniciosos de suas respectivas famílias ou desordens do mundo exterior” (ROUDINESCO, 2003, p.197). Apesar do declínio do casamento, como assinalou Elisabeth Roudinesco, as pessoas ainda procuram se unir e construir uma vida a dois. A autora afirma que a família “é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições” (ROUDINESCO, 2003, p.198); e autora complementa ainda que, diante de tantas transformações e evoluções, a “família do futuro deve ser mais uma vez reinventada” (ROUDINESCO, 2003, p.199).

1 - n. 1

A mulher já trabalha fora de casa, pode decidir não ter filhos; os homens se

ano

sexual.

Revista GEMI n IS |

mântico, ela sanciona a reciprocidade dos sentimentos e os desejos carnais por inter-

156


4.2 Relações amorosas

ções com o passar dos séculos, promovendo uma evolução no namoro, no casamento, na independência das mulheres, na criação dos filhos e até mesmo no prazer, antes condenado, e hoje tido como um direito. Na “época das sociedades mais remotas de que temos notícia, as ligações

amorosas socialmente aceitas entre homens e mulheres eram norteadas por princípios econômicos e sociais bastante objetivos” (NUNES, 2006, p.22). Ou seja, às relações entre homens e mulheres no começo eram, inicialmente, realizadas por uma questão de sobrevivência, e não de intimidade emocional.

A historiadora Mary Del Priore (2006), no livro História do amor no Brasil,

afirma que, no princípio, o casamento não era um encontro amoroso entre homens e mulheres, e que só era considerado como legítimo se servisse somente à prole, à família. “Santo Agostinho, no século V, resumia o casamento à procriação e ao cuidado com os filhos. O prazer puro e simples era ‘concupiscência da carne’, esterilidade que submetia a razão aos sentidos” (DEL PRIORE, 2006, p.74). Assim, a autora complementa que o casamento era um contrato civil e apenas se tornou um sacramento na Europa, em meados do século XII, porém sempre foi considerado uma instituição básica realizada, em sua origem, a partir de acordos familiares

A colonização do Brasil consistiu em uma regulamentação da vida, cren-

ças e costumes aqui existentes na época, por meio da catequese e da organização espiritual dos colonos. O amor côrtes, associado aos ideais da cavalaria, difundido pelos trovadores no fim do século XI, no qual o amante era “estritamente moralizador e incrivelmente regrado” (DEL PRIORE, 2006, p. 70), além de ser fiel a sua dama, influenciou apenas as teorias literárias do amor no Ocidente, na prática não foi trazido pelos portugueses à sua colônia.

A mulher era obrigada a ser uma esposa exemplar, obediente e submissa;

se restringia a cuidar da casa, lavar roupa, cozinhar, cuidar dos filhos e servir ao chefe da família para o ato da procriação. Leonardo Boff (2002) afirma que provavelmente “a vontade de dominar a natureza levou o homem a dominar a mulher, identificada com a natureza pelo fato de estar mais próxima aos processos naturais de gestação e do cuidado com a vida” (BOFF, 2002, p.54). No século XIX, o quadro das relações amorosas não tinha se alterado tanto, o casamento por interesse tornou-se um comércio sério que continuava a ser “arranjado”

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

para a transmissão de patrimônio.

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

A G rande Família :

A maneira como as relações amorosas se apresenta sofreu inúmeras modifica-

157


pelas famílias, situação que mais ocorria entre as elites. As mulheres permaneciam em casa, iam somente à igreja, e os homens podiam sair para beber e divertir-se com sua futura esposa antes do casamento, porém poderiam acontecer trocas de olhares e cochichos durante a celebração de uma missa.

De acordo com Del Priore (2006), a revolução técnico-científica durante o

século XX modificou a maneira de ser das relações amorosas. A expansão do capitalismo trouxe energia, petróleo, desenvolvimento da metalurgia, novas medidas de higiene e de prevenção de doenças, ou seja, influenciou diretamente o dia a dia das pessoas. Com a urbanização de algumas capitais, novos espaços de lazer foram criados, onde homens e mulheres passaram a se cruzar e a estabelecer uma maior relação.

No início desse século, o casamento ainda “era mais o lugar do respeito

do que do prazer” (DEL PRIORE, 2006, p.255). A burguesia valorizava a virgindade, e condenava a traição pela mulher, o que era totalmente possível ao homem, pois ele possuía o livre exercício da sua sexualidade. A mulher precisava estar bela e agradável para o marido, “mantendo-se sempre próximas ao ideal de amizade amorosa. O importante era fortalecer as relações, afastando o risco do temido e vergonhoso divórcio” (DEL PRIORE, 2006, p. 254).

Após a Segunda Guerra Mundial, moças e rapazes passaram a ficar mais

próximos uns dos outros, devido a festas, clubes noturnos, cinemas, universidades, atividades esportivas, festivais de músicas, dentre outras opções de lazer que foram surgindo na época. Com a desvinculação do ato sexual à procriação, a sua prática tornou-se mais frequente entre os jovens antes do casamento, diga-se de passagem, de forma lenta (DEL PRIORE, 2006). Na década de 1960, o movimento feminista liderou manifestações em prol dos direitos das mulheres, direitos estes civis e trabalhistas, contra o estupro e a violência doméstica. As mulheres lutavam contra a discriminação social e a submissão feminina no lar, além de defenderem o uso da pílula anticoncepcional, como uma forma de controlar a reprodução, não servindo apenas como “uma máquina de fazer filhos”. Apesar de todo esse avanço das mulheres na sociedade, na década de 1970, ainda existiam

1 - n. 1

ano

Tempo de desejos contidos, de desejos frustrados, o século XIX abriuse com um suspiro romântico e fechou-se com o higienismo frio de confessores e médicos. Século hipócrita que reprimiu o sexo, mas foi por ele obcecado. Vigiava a nudez, mas olhava pelos buracos da fechadura. Impunha regras ao casal, mas liberava os bordéis (DEL PRIORE, 2006, p. 220).

Revista GEMI n IS |

as prostitutas. Não existia o namoro antes da união e dificilmente o noivo falaria com

158


famílias extremamente conservadoras, e nas quais as esposas/mães/filhas pertenciam somente ao lar. aumenta o número de esposas que trabalham fora de casa; os jovens se casam mais tarde, geralmente após cursarem a universidade e conseguirem um emprego estável; aumenta o controle da natalidade, surgem novos métodos contraceptivos; com isso, dade antes do casamento, o direito ao prazer se estende às mulheres também; muitos casais passam a morar juntos sem ter a união civil; ou seja, ocorre uma evolução da liberdade e da autonomia das relações amorosas, em que homens e mulheres ocupam papéis igualitários e se unem numa vida a dois para compartilhar expectativas, projetos pessoais, intimidade amorosa e desejo sexual. No âmbito das relações amorosas vivenciamos no “lugar do ideal de ‘amor eterno e insubstituível’ (...) começam a surgir, a cada dia com mais força, novos modelos familiares e de relacionamento na vida social: casais casados e descasados, famílias adotivas, uniões liberais, uniões homossexuais, entre outros” (NUNES, 2006, p.77). Hoje, para Lauane Baroncelli Nunes (2006), as experiências amorosas se dividem em querer estar perto, em cultivar um relacionamento com o outro, estabelecendo assim um compromisso sério com um parceiro; ou em permanecer solteiro, em possuir apenas vínculos passageiros, noites avulsas de sexo, conservando a autonomia e a liberdaDel Priore assinala “que o amor não é ideal, que ele traz consigo a dependência, a rejeição, a servidão, o sacrifício e a transfiguração” (DEL PRIORE, 2006, p. 321); por isso, Bauman (2004, p.37) afirma que um indivíduo “quanto menos investir no relacionamento, menos inseguro vai se sentir quanto for exposto às flutuações de suas emoções futuras”. Apesar desse lado pessimista em relação ao amor e aos compromissos sérios, homens e mulheres não deixam de se unir a cada dia e formar as suas famílias, garantindo a transmissão de patrimônio e a procriação da nossa espécie, mas também, e acima de tudo, amando e sendo amados, com direito ao desejo, ao prazer, a escolha do seu parceiro e a liberdade de começar de novo. 4.3 Relações familiares e amorosas em A Grande Família Com essa retrospectiva introdutória sobre as relações familiares e amorosas, que são complementares, agora podemos aplicá-las sobre o seriado em questão. Os casamentos de Lineu e Nenê, e de Agostinho e Bebel estão contidos no modelo contempo-

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

de amorosa.

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

ocorre uma diminuição no número de filhos; homens e mulheres avançam na intimi-

A G rande Família :

Nos anos 80 e, principalmente, 90, o papel da mulher se consolida ainda mais;

159


râneo de família instituído a partir dos anos 60, de acordo com a classificação proposta e já comentada de Elisabeth Roudinesco (2003). delo contemporâneo de família, tanto que podemos citar fatos que demonstram a liberdade, autonomia e uma lógica mais igualitária nos relacionamentos em vários episódios do seriado: Nenê casou grávida de Bebel, Tuco sempre teve permissão para manter

A autonomia da relação amorosa começa a partir do momento que duas pessoas se unem por livre escolha para construir e partilhar sentimentos, intimidades e projetos pessoais. Dessa maneira, Bebel e Agostinho também se casam, em 2001. No primeiro momento, ela não trabalhava fora de casa, só ajudava Nenê com as tarefas domésticas. A partir de 2003, Bebel iniciou o seu processo de amadurecimento e decidiu trabalhar fora de casa, para angustia do seu marido que sempre foi extremamente ciumento. Com isso, as atitudes repressoras e machistas de Agostinho causaram diversas confusões no casamento até que, na temporada de 2005, Bebel pede o divórcio, porém, tempos depois, eles reatam o casamento. Hoje, o papel adquirido pela mulher na sociedade como capaz de se sustentar sem depender do marido afastou o receio e a vergonha trazidos pela separação. O modelo familiar contemporâneo contém a forma fragmentada de família pelo divórcio (ROUDINESCO, 2003). Bebel sempre representou a mulher moderna que passou a trabalhar fora de casa, que possui voz e desejos sexuais dentro do relacionamento, e que impõe a igualdade com o marido nas decisões; em que, muitas vezes, por mais que o malandro Agostinho achasse que estava no comando, na realidade, quem mandava era Bebel. A evolução do papel exercido pela mulher influenciou diretamente a organização das famílias, pois elas adquiriram liberdade para, não apenas cuidar da casa e criar os filhos, como também, ter sucesso na carreira profissional. As relações familiares do seriado estão centralizadas na casa, as discussões são levadas para a sala, onde todos os integrantes estão presentes e assim acabam compartilhando os problemas e tecendo comentários. Lia Zanotta Machado afirma que o valor da família gira em torno do “valor metafórico da ‘casa’ e que chega a constituir um princípio ordenador quase cosmológico: o ‘mundo da casa’ que é percebido como distinto, muitas vezes oposto ao ‘mundo da rua’, mundo da universalidade de direitos, mas também da impessoalidade” (MACHADO, 2001, p. 15/16). Assim, DaMatta complementa que “todos que habitam uma casa brasileira se relacionam entre si por meio de laços de sangue, idade, sexo e vínculos de hospitalidade

1 - n. 1

existe o tabu do sexo ou da virgindade, e esse é um sinal da contemporaneidade.

ano

relações sexuais com namoradas em casa, Bebel também não casou virgem, ou seja, não

Revista GEMI n IS |

O primeiro casal se uniu na primavera de 1975 e se enquadra no nascente mo-

160


e simpatia que permitem fazer da casa uma metáfora da própria sociedade brasileira” (MATTA, 1997, p. 53). Dessa forma, podemos afirmar que o seriado representa a família sociedade brasileira. Vanessa Ottolini ainda complementa que “quando um programa semanal de cunho familiar e cômico como ‘A Grande Família’ é ambientado no subúrbio, na verfamiliar e íntimo da sua memória afetiva e social” (OTTOLINI, 2008, p. 127/128). Então, o seriado, ao abordar a própria família brasileira contemporânea, reflete e se aproxima do dia a dia dos telespectadores que também se identificam com a realidade ficcionalmente representada. Considerações finais Neste artigo, por meio da análise do discurso ficcional, identificamos o formato de uma sitcom e a representação das relações familiares e amorosas no seriado da Rede Globo A grande família. A série se constitui como o programa brasileiro de ficção televisiva com o maior tempo em exibição contínua, por isso, ao escolher esse seriado como objeto de estudo, procuramos destacar o entendimento de um importante momento da teleficção nacional, configurado em A grande família. O trabalho empreendeu um estudo uma investigação dos sentidos produzidos pelo seriado. Classificamos A grande família como um programa de teledramaturgia que, quanto ao gênero, pode ser definido como uma sitcom, uma comédia de situações ou comédia de costumes. Assim, pudemos identificar as principais características comuns a um seriado televisivo: cosmovisão estabelecida desde o início do programa; personagens bem definidas; história completa em cada episódio com começo, meio e fim; e uma cronologia flexível quanto à exibição dos episódios. Durante a pesquisa para esse artigo, o elemento cômico foi o fio condutor; como o seriado estudado é uma sitcom, encontramos a comédia presente nas situações, nos diálogos e na caracterização das personagens. O desenlace foi identificado como o ponto crucial desse tipo de enredo, uma vez que é a partir dele que a história se desenrola e chega ao clima de solução, o chamado final feliz nas comédias. No que concerne à Narratologia, observamos uma organização de enredo linear, com respeito à cronologia dos fatos, ao princípio da causalidade e à verossimilhança. Observamos também a categoria personagem, tendo em vista que uma das característi-

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

com interesse estético e comunicacional que, com apoio nas teorias abordadas, realizou

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

dade essa ideia do ‘local’ permite que o espectador compare esse cotidiano com algo

A G rande Família :

dos subúrbios e que gira em torno do valor metafórico da casa, simulando uma face da

161


cas marcantes de A grande família é possuir figuras dramáticas bem definidas e representando tipos gerais da nossa sociedade. -moderno, em que encontramos relações familiares e amorosas com liberdade e autonomia nos relacionamentos. A grande família, ao realizar comentários sobre a realidade nacional, trazendo à tona questões atuais, promove uma identificação do telespectador

gira em torno do valor metafórico da casa, simulando, assim, uma face da sociedade brasileira. Por fim, defendemos que o seriado A grande família, a cada temporada, imprime a sua marca na produção teleficcional do país e conquista cada vez mais o seu horário na casa dos brasileiros.

Referências BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Tradução Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992 (Série Princípios; 217). COSTA, Maria Cristina Castilho. Ficção, comunicação e mídias. Coord. Benjamim Abdala Junior, Isabel Maria M. Alexandre. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2002 (Série Ponto Futuro; 12). DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. 2ª ed., São Paulo: Contexto, 2006. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. FURQUIM, Fernanda. Sitcom: definição e história. Porto Alegre: FCF Editora, 1999. GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Tradução Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, 1980. GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: observações sobre a adaptação de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia Pellegrini; et al. Literatura, cinema e

1 - n. 1

fatos do cotidiano ao representar ficcionalmente uma família de classe média baixa que

ano

com a ficção representada. O seriado proporciona ao seu público uma aproximação de

Revista GEMI n IS |

Classificamos o seriado dentro do modelo de família contemporâneo ou pós-

162


televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. p. 91-114.

163

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 4ª ed., São Paulo: Editora Senac São MACHADO, Lia Zanotta. Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 5, n. 8, p.11-26, 2001. MATTA, Roberto. da. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ºed., Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ______. Carnavais, malandros e heróis: uma sociologia do dilema brasileiro. 3ªed., Rio de Janeiro: Zahar, 1981. MESQUITA, Samira. Nahid. de. O enredo. 2ª ed., São Paulo: Ática, 1987 (Séries Princípios). MURARO, Rose Marie; BOFF, Leonardo. Feminino e masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. 3ª ed., Rio de Janeiro: Sextante, 2002. NUNES, Lauane Baroncelli. O ciúme nas relações amorosas contemporâneas. 2006. 146f. Dissertação. (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <http:// www.psicologia.ufrj.br/pos_eicos/pos_eicos/arq_anexos/arqteses/lauanenunes.pdf>. OTTOLINI, Vanessa. A Grande Família: o estudo dos figurinos e estereótipos de um cotidiano universal da sociedade brasileira. Projetos Experimentais.com, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2 (1), p.118-136, 1º semestre de 2008. Disponível em: <http://e-publicacoes.com/ index.php/PROJETOSEXPERIMENTAIS/article/viewFile/82/71>. Acesso em: 19 de mar. de 2009. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Moderna, 1998. PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. A teledramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho: da tragédia ao humor – a utopia da politização do cotidiano. Revista Diálogos, Maringá, v. 5, n. 1, p.251-254, 2001. Disponível em: <http://www.dialogos.uem.br/viewissue. php?id=5>. Acesso em: 16 dez. 2008. REIS, Carlos; LOPES, Ana. Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988 (Série Fundamentos). ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Vanessa Fernandes Q ueiroga Pita

Acesso em: 6 de Maio de 2009.

sitcom e a representação das relações familiares e amorosas •

Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v5n8/02.pdf >. Acesso em: 8 out. 2008.

A G rande Família :

Paulo, 2005.


SARAIVA, Leandro; CANNITO, Newton. Manual de Roteiro, ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV. São Paulo: Conrad Editora, 2004. Summus, 2004.

Revista GEMI n IS |

SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo:

164

ano

1 - n. 1


Um Ensaio sobre a B aianidade em Ó Paí , ó:

do cinema para a televisão! B árbara

de

Lira B ezerra

Mestranda em Comunicação, como bolsista da CAPES, na UAM - Universidade Anhembi Morumbi. Tese (em andamento): A Representação do Baiano no filme Ó PAÍ, Ó. E-mail: barbaradelira@hotmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 165 - 176


Resumo Este trabalho visa comentar aspectos da baianidade e as críticas sociais abordadas por meio dos personagens, considerando as características da serialidade encontradas entre o filme e a série exibida na televisão, Ó Paí, ó. O estudo das formas seriadas aponta a série televisiva como uma continuidade do que foi mostrado nas salas de cinema. Com ares de comédia e situações dramáticas, os personagens de um cortiço no Pelourinho (BA), cujas vidas se entrelaçam encontram, na serialidade, o espaço e o tempo para expor o modus vivendi baiano, assim como os indicadores de violência, prostituição, turismo sexual, racismo e malandragem que constituem o habitat dos personagens. Palavras - chave: serialidade; baianidade; estereótipos; crítica social.

A bstract This paper aims to discuss aspects of baianidade and social criticism addressed by the characters, considering the characteristics of seriality found between the film and the series shown on television, Ó Paí, ó. The study of serial forms indicates the television series as a continuity of what was shown in theaters. With an air of comedy and drama, the characters of a tenement in Pelourinho (BA), whose lives are intertwined, in serial form, space and time to expose the modus vivendi of Bahia, and the indicators of violence, prostitution, sex tourism, racism and cunning that constitute the habitat of characters. Keywords: seriality; baianidade; stereotypes; social cristicism.


O

filme Ó Paí, ó, dirigido por Monique Gardenberg1, cujo roteiro foi baseado em uma peça de Márcio Meirelles2, retrata um dia de carnaval na visão dos moradores de um cortiço no Pelourinho (BA), bairro do centro histórico de Sal-

vador. Características, como sensualidade, malemolência e deboche corroboram com a tipificação dos personagens, assim como os indicadores de violência, prostituição, turismo sexual e racismo. Estereótipos culturais, sexuais e religiosos estão presentes no longa, não apenas como uma abordagem do modus vivendi baiano, mas como uma tentativa de levantar uma crítica social por meio da reforma do centro histórico de Salvador (BA), e da expulsão de seus moradores. A primeira versão dessa história, encenada pelo Bando de Teatro Olodum, pos-

suía um discurso mais ácido e satírico, que resultava em tom de protesto. Entretanto, no cinema, os estereótipos não conseguiram reproduzir o discurso do bando. Em entrevista concedida ao jornal A Tarde On Line (2007, s/p)3, a diretora comenta sobre sua experiência em transformar uma peça em filme: Foi difícil. Eu tive medo, tentei fazer isso duas vezes antes e desisti porque “Ó Paí, ó” é uma peça muito verborrágica. Acho que o cinema é mais pleno justamente quando ele não usa nem a palavra para se comunicar. Com o som e a imagem, você diz tudo. Eu comecei a esboçar um caminho quando eu escrevi a primeira cena do filme, que é quando a Emanuelle Araújo chega na oficina para pedir para ser pintada. Na verdade, eu tinha me perguntado como eu poderia explicar algo que no primeiro instante a pessoa entendesse o que é “Ó Paí, ó”. Isso pra Bahia é muito fácil, mas para o resto do país não é. Até hoje, as pessoas falam errado aqui, mesmo depois de assistir ao filme. Então eu queria uma cena que explicasse de cara isso. Eu achei divertida essa idéia porque imediatamente já estabelecia duas coisas: o tom da brincadeira, da safadeza que o filme ia ter, além da sensualidade do homem e da mulher negra. E traz também a música, outro elemento que eu queira que fosse forte. Ver a entrevista completa no: http://www.atarde.com.br/ cultura/noticia.jsf?id=740786 1 Cineasta, diretora teatral e produtora cultural, dirigiu os longas Jenipapo (1995) e Benjamim (2004). 2 Diretor teatral, cenógrafo e figurinista. Criou, em 1990, o Bando de Teatro Olodum, grupo teatral baiano formado somente por atores negros, com o qual lançou o espetáculo Ó Paí, ó, cujo texto e projeto de encenação deram origem ao filme do mesmo nome. Atualmente, é secretário de Cultura da Bahia. 3 Entrevista disponível na íntegra no: http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=740786.


Se considerarmos que Ó Paí, ó teve início nos palcos, migrou para o cinema e, posteriormente, para a televisão, encontraremos diferenças de linguagem, formato manteremos o foco, não na migração do teatro para o cinema e, sim, do cinema para a televisão. No que se refere a aspectos técnicos, a abordagem diferenciada entre filme e

ó. A programação para a televisão necessita ser recorrente, circular, reiterando idéias e sensações a cada plano, assim como a necessidade do intervalo comercial, corresponde à demanda de financiamento da TV comercial, além de ter um papel organizativo (para absorver a dispersão), e permitir o aproveitamento dos ganchos que estimulam o interesse da audiência. No filme, os moradores de um cortiço vivem conflitos a partir do momento em que Joana, beata e dona do cortiço, decidir cortar a água dos inquilinos em pleno carnaval. A narrativa vai se desenhando em meio à folia baiana, enquanto são mostrados os vários personagens que compõem a cultura do lugar. Quase tudo que é mostrado no filme é retomado na série. Alguns ganchos deixados pelo filme são desdobrados na televisão, pois o formato do seriado permite um aprofundamento de cada personagem e a possibilidade de explorar o contexto social de cada um. Coincidência ou não, assim como o filme, a série também tem seu início na mesma localização espacial, o Pelourinho. No filme, a primeira cena mostra o personagem Manu se dirigindo ao atelier de Roque. No primeiro capítulo da série, Roque faz o caminho inverso indo em direção ao Bar de Neuzão. Acredita-se ser esse o primeiro elo com o filme, não no sentido de adaptação e, sim, de continuidade. Na transição do filme para a série, ocorre mudança de personagens. O ator Wagner Moura, por estar atuando no teatro na época das gravações, tem seu personagem chamado Boca, substituído por Queixão, interpretado por Matheus Nachtergaele, que entra em cena logo no primeiro capítulo. A personagem de Emanuele Araújo (Manu), par romântico de Lázaro Ramos no filme, também é substituída por Dandara, interpretada por Aline Nepomuceno, que surgirá a partir do segundo capítulo. Além disso, Psilene (Dira Paes) encerra sua participação no filme, enquanto os filhos da beata Joana, assassinados em pleno carnaval na última cena, retornam à trama. A série é estruturada em seis capítulos4, com duração média de 30 minutos cada, tendo sido exibida pela Rede Globo no período de outubro a dezembro de 2008. 4 Considerar-se a aqui apenas a primeira temporada, visto que a segunda temporada ainda está sendo gravada.

1 - n. 1

dade, a linguagem e a relação com tempo, conduziram um tipo de abordagem em Ó Paí,

ano

série, fica mais evidente. No cinema, a forma linear, progressiva, os efeitos de continui-

Revista GEMI n IS |

e conteúdo devido às particularidades que cada forma de arte possui. Neste trabalho,

168


Em cada capítulo há um prólogo, seguido da abertura oficial da série, em que o tema a ser abordado conseguia situar o espectador. Levando em conta os tipos de narrativa

169

considerados por Arlindo Machado (2005), poderíamos classificar os episódios da série

Um

como seriados, pois cada emissão é uma história autônoma e completa com início, meio

ensaio sobre a baianidade em

e fim, em que um não se recorda dos outros, nem interfere nos posteriores. Os capítulos são nomeados de acordo com a temática, Mercado Branco, Mãe e Quenga, Negócio Torto, Fiéis e Fanáticos, Brega e Virada do Avesso, e nos conduz ao que Omar Calabrese (apud MACHADO, 2005) chamaria de “estética da recepção”, baseada na dinâmica que brota da relação entre os elementos invariantes e variáveis. Os eixo temático, a exemplo do marido infiel Reginaldo, que passará por algumas mudanapós se apaixonar pela quenga (prostituta) e dançarina, Dandara. Ainda de acordo com Calabrese, as três principais categorias da estética da repetição assimilam-se umas às outras no decorrer de uma série: variações (o interesse da série está justamente em promover sutis variações em torno do eixo temático aparentemente estático); metamorfose (contínua redefinição; há um mecanismo interno de

da história); e entrelaçamento (enorme número de situações paralelas ou divergentes, ge-

fragmentação e embaralhamento da narrativa, em busca de modelos de organização que sejam não apenas mais complexos, mas também menos previsíveis e mais abertos ao papel ordenador do acaso. No episódio Mercado Branco, a temática gira em torno do mercado informal e do racismo. No primeiro diálogo do episódio, Roque encontra Neuzão no bar, reclamando das contas que não consegue pagar, do empréstimo em aberto com uma financeira e das contas penduradas deixadas pelos clientes. Há ainda o personagem Queixão, que surge vendendo bebidas em um isopor em frente ao bar e, por não pagar impostos, tem o preço mais baixo. Nesse momento, Roque explica que como Queixão é a única pessoa que está lucrando com esse mercado, na verdade ele seria branco e não negro. Daí, o gancho para a música Mercado Branco, composta por Roque, na série, mas de autoria do cantor gospel, Lázaro.

Lira B ezerra

integrados). Assim, a serialização na televisão permite a possibilidade de processos de

de

rando, como resultado, uma complexa trama de acontecimentos não necessariamente

B árbara

que o espectador reconsidere permanentemente o seu conhecimento e a sua apreciação

mutação, que modifica o estatuto dos personagens de um episódio a outro, exigindo

do cinema para a televisão !

ças após o nascimento do filho ou do artista Roque, que irá rever seus “pré-conceitos”,

Ó Paí , ó:

personagens, apesar do perfil bem definido, passam por sutis variações em torno do


“Quando eu vim lá da África, Fui vendido no mercado branco, Simplesmente uma carga, Negociada no mercado branco, Eh brother, eh brother, eh brother Por que tudo é assim? Se um cara sai da linha, Dizem: entra numa lista negra, Se o negrão é bom sujeito, Dizem: é preto com a alma branca, Se um cara é camelô, Então é do mercado negro, Eh brother, eh brother, eh brother Tudo permanece assim...”

170 Revista GEMI n IS | ano

1 - n. 1

Ver o episódio Mercado Branco, da primeira temporada da série Ó Paí, ó.

O taxista Reginaldo (Érico Brás) vai intermediar a produção do CD de Roque por meio de Queixão, que oferece o estúdio de seu primo Arlindo Wallace (Gilberto Lima) para a gravação do CD. Porém, logo após a gravação em estúdio, o CD já é sucesso de vendas nos camelôs da cidade antes mesmo de ser lançado. E por trás da pirataria, mais uma vez: Queixão. Vale lembrar que, a letra da música faz referência ao mercado informal e ao racismo, tema abordado no filme durante a célebre discussão entre os personagens de Lázaro Ramos (Roque) e Wagner Moura (Boca). Figura 01 Roque e Boca discutem sobre racismo

Fonte: http://midocarmo. blogspot.com/2007/04/pai-muitocarnaval-pra-muito-pouco.html

Nos rumos acalorados da discussão existe uma forte referência ao preconceito, indispensável à história por simbolizá-la. Enquanto Boca afirma que Roque, por ser negro, não teve oportunidade na vida, o cantor responde à provocação, mencionando que o negro tem olhos, boca e mãos, que come das mesmas comidas, que sofre das mesmas doenças e que sangram e morrem quando levam tiro dos brancos. O diálogo cita a vio-


lência e a luta pela igualdade inerente à história dos negros. No segundo episódio é mostrado um paralelo entre a vida de duas mulheres:

171

Maria, a esposa do taxista Reginaldo, que está grávida, e Dandara, a dançarina e prosti-

Um

tuta, que despertará a paixão de Roque. Em meio à trama, a crítica social é feita através

ensaio sobre a baianidade em

das cenas em que é mostrado o descaso e a dificuldade em conseguir atendimento no sistema de saúde pública. Vale lembrar que, devido à falta de leitos e médicos nos hospitais públicos, Maria (Valdinéia Soriano) é obrigada a ter seu filho em casa, e quem faz o parto é a mesma personagem que, no filme, realizava abortos em garotas de programa. Em doses menores, a referência ao racismo continua como, por exemplo, no momento rico, elegante e “chapa branca”. cas diferenciadas demonstradas por cada um dos personagens, que têm seu momento de protagonizar na trama. Segundo Cássio Starling (2006), ao reduzir a superioridade de um personagem, herói protagonista em torno do qual as pequenas histórias semanas existiam sob a forma de satélites, o que os roteiristas conseguiram foi expandir o efeito realista, que é praticamente a linguagem dominante no universo da ficção de

protagonista de uma história particular. Isso se chama Ensemble Show.

ciantes coagidos, desapropriações impostas pela prefeitura e a continuação de problemas sociais relacionados à segregação racial, prostituição e tráfico de drogas. No filme, esse tema foi abordado meramente como pano de fundo. Entretanto, a série resgata o tema no episódio Negócio Torto, e trata de situar o espectador logo nos minutos iniciais. Imagens áreas mostram alguns dos principais pontos turísticos de Salvador: a Baía de Todos os Santos, o Forte São Marcelo, o Elevador Lacerda e o Centro Histórico. A voz de Roque assume a narrativa (diegese), explicando que a recuperação do centro histórico, reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade, passará por um processo de revitalização que começará pelo Pelourinho. Após uma tomada de imagens que mostram o Pelourinho e a área demarcada, didaticamente, para que o espectador entenda esse processo, a cena mostra que a voz de Roque vem da leitura da matéria de jornal que aborda o assunto. Ao tocar nesse assunto, o episódio mostra a busca dos empresários pelos casarões antigos para transformá-los em empreendimentos comerciais, a imposição de um

Lira B ezerra

do centro histórico de Salvador, que culminou com a expulsão de moradores, comer-

de

Uma temática, que ainda desperta polêmica entre os baianos, é a revitalização

B árbara

personagens, permitindo aos criadores esboçar cada personagem do grupo como um

TV. O enfoque deixa de estar sobre o personagem principal e passa para o conjunto de

do cinema para a televisão !

À medida que a série evolui, percebemos que os episódios apresentam temáti-

Ó Paí , ó:

em que Queixão apresenta uma proposta a Dandara, cujo programa é com um cliente


auxílio de realocação para pressionar a desocupação dos imóveis. Ou ainda a preocupação dos moradores que não têm para onde ir, a ilusão do comerciante local e da baiana os moradores do cortiço se sensibilizam com a história de Negócio Torto (Cristóvão da Silva), que veio do interior para tentar a vida na cidade e acabou como mendigo, apesar de Seu Gerônimo (Stênio Garcia) concordar que o desabrigado deve sair do local para

Nesse episódio, o marido de Joana (que desde o filme havia sido abandonada por ele, porém insistia em acreditar que não) reaparece na história após a beata descobrir que um documento havia sido assinado por ele, autorizando a venda do casarão. Entretanto, isso é utilizado como um gancho para outro episódio, pois nesse apenas fica evidenciado seu retorno à cidade quando é descoberto que ele tem outra mulher e filhos. Retomando a situação do mendigo Negócio Torto, encontramos a crítica social sobre os excluídos e a violência sofrida pela sociedade, durante o show de Roque, em que canta Tributo a Martin Luther King (Luciana Mello): Sim sou negro de cor Meu irmão de minha cor O que te peço é luta sim, luta mais Que a luta está no fim Cada negro que for Mais um negro virá Para lutar com sangue ou não Com uma canção também se luta irmão Ouvir minha voz Lutar por nós Luta negra demais, luta negra demais É lutar pela paz, é lutar pela paz Luta negra demais Para sermos iguais Para sermos iguais Ver o episódio Negócio Torto, da primeira temporada da série Ó Paí, ó

Mais uma vez, a diegese é utilizada como recurso para a transposição de outro momento da narrativa. A música acompanha a cena em que o mendigo aparece levando uma surra de um policial à paisana. No filme também encontramos referências à violência contra os excluídos, como na cena em que os filhos de Joana aparecem mortos após serem assassinados por um policial contratado por um comerciante local.

1 - n. 1

a região.

ano

preservar a imagem do bairro, e garantir seu faturamento com os turistas que visitam

Revista GEMI n IS |

alegórica de que essas melhorias trariam mais turistas para o Pelourinho. Além disso,

172


Outro tema que desperta a associação a clichês e preconceitos refere-se à religião e ao sincretismo. A religiosidade baiana é caracterizada por uma variedade de

173

religiões, seitas, igrejas, templos, terreiros, crenças separadas ou totalmente misturadas.

Um

No filme, Ó Paí, ó aborda essa temática com clichês que nos remetem à malandragem

ensaio sobre a baianidade em

dos pais e mães de santo que se apropriam do discurso do candomblé para ganhar dinheiro com consultas desonestas. Ao mesmo tempo, o filme aponta o crescimento da crença evangélica em contraposição ao misticismo afrodescendente personificado através da beata Joana. No episódio Fiéis e Fanáticos, Maria descobre, por meio de Mãe Raimunda (Cássia Valle), que o orixá de Michelângelo é Exu, e devido ao preconceito em vermelho e preto, ela decide vesti-lo com essas cores no batizado. estende para outro tema com o qual todo baiano se identifica: a rivalidade entre os torcedores dos times de futebol Bahia e Vitória. Ao saber do sonho de Maria e de sua intenção em batizá-lo nas cores do Vitória, Reginaldo, torcedor fanático do Bahia, se desespera, pois prometeu ao avô que seu filho seria torcedor do Bahia e, portanto, não pode vestir as cores do Vitória, que são justamente o vermelho e o preto. A disputa

seu time, o Vitória. Até para as promessas os torcedores apelam em busca de vencer a

campeonato invade o batizado de Michelângelo, em plena igreja católica, com a presença de evangélicos e mãe de santo. Vale ressaltar que a religião evangélica também aparece no episódio através de cenas que exibem o culto, a crença e o preconceito em relação ao candomblé. Esse sentimento contra os orixás fica evidenciado quando Joana pede ao Pastor para abençoar as contas5 e é criticada por todos os fiéis. Por outro lado, a fé é colocada na berlinda quando o próprio Pastor se rende aos quitutes da tradicional baiana de acarajé (e seus quitutes de Exu), ao invés de escolher o que é vendido pela evangélica Joana. Dessa forma, a baianidade segue a narrativa sendo tratada com o escracho e o humor presente tanto nas situações quanto nos diálogos, destacando o vocabulário, o sotaque e o estilo nonsense de ser do baiano. Porém, ao contrário do filme, o formato do seriado permite a abordagem de temas polêmicos que contradizem a imagem de “Terra da Felicidade” que as campanhas promocionais anunciam. Os preconceitos e 5 Colares coloridos em que cada um representa um orixá e é comumente usado pelas baianas em seus trajes e tabuleiros de acarajé.

Lira B ezerra

mesmo o padre consegue manter sua imparcialidade e a discussão sobre a final do

de

final do campeonato. O sentimento de torcedor fanático é tão forte no baiano que nem

B árbara

para ser madrinha da criança, aposta que seu afilhado será um torcedor fervoroso do

entre os torcedores é mostrada também através da relação com Neuzão que, convidada

do cinema para a televisão !

Esse excelente gancho para a abordagem do sincretismo religioso, também se

Ó Paí , ó:

ligado a ele, prefere consagrá-lo a Ogum. Entretanto, após sonhar com seu filho envolto


os problemas sociais e econômicos denunciam que o baiano não é apenas um povo preguiçoso, alienado e que vive em função das festas populares, mostrando uma realiNo episódio Brega, é mostrada a criatividade e o improviso do baiano em lidar com os problemas, ao mesmo tempo em que se apropria do clichê do malandro que recorre ao jeitinho brasileiro para conduzir as situações. Como o cortiço está sem

do casarão em que vivem para simular o funcionamento de um brega (prostíbulo) nos moldes procurados pela produtora Hipólita (Virgínia Cavendsh), que procura por um casarão colonial com janelas abertas e movimentos na calçada, para produzir um documentário sobre bregas para um veículo estrangeiro. Considerando que, desde o início da série, Reginaldo é apresentado como “malandro do bem”, no episódio Brega é mostrado o consentimento dos outros personagens em levar adiante o seu plano de simular um brega, inclusive com a participação do “malandro do mal”, Queixão. Segundo Carrol, as cenas, as situações e os acontecimentos que aparecem mais cedo na ordem de exposição de uma história estão relacionados com cenas, situações e acontecimentos posteriores, assim como as perguntas estão relacionadas com as respostas. A narração erotética está no “coração” da narração popular e gera uma série de perguntas que serão respondidas pelo enredo. Veremos moradores que a princípio se opõem ao disfarce de prostitutas, concordando, e o policial que surge para pôr fim à confusão criada pelos moradores do cortiço, mas que se rende à vaidade de participar de uma filmagem. No último episódio dessa primeira temporada, Virada do Avesso, é possível ver que o bom gancho deve ser relativo aos protagonistas, ou pelo menos aos personagens secundários que tenham razoável importância. Como afirma Renata Pallottini, a finalidade do gancho é sempre criar expectativa. Dandara, que havia aparecido no segundo episódio, retorna como a namorada de Roque que, acreditando ter sido convidado por uma produtora para fazer uma turnê de três meses, propõe um relacionamento aberto, e deixando para a morena o apartamento em que moravam juntos. Eles terminam juntos no final, contrariando as perspectivas iniciais de que um relacionamento entre eles não pudesse se consolidar. Retomando Carroll (1999), seu conceito de pergunta também nos permite explicar uma das mais comuns reações do público às narrativas populares: expectativa. O público espera respostas às perguntas que a narrativa coloca acerca de seu mundo ficcional. Nesse caso, temos, enfim, a personificação do marido de Joana em resposta à

1 - n. 1

Os moradores, sem dinheiro, apelam para o taxista Reginaldo, que propõe a utilização

ano

luz, Joana avisa que serão cobrados R$ 250 por família para o conserto do disjuntor.

Revista GEMI n IS |

dade que se opõe ao imaginário de baianidade.

174


expectativa e ao suspense, gerando desde o filme e resgatado no episódio Negócio Torto. Esse suspense das narrativas de ficção é gerado como um acompanhamento emocional

175

de uma pergunta narrativa suscitada por cenas e acontecimentos anteriores de uma

Um

história. Mário volta para a casa de Joana como se o tempo não houvesse passado e se

ensaio sobre a baianidade em

revela um marido rude, egoísta e opressor, que além de maltratar e expulsar os moradores do cortiço, também costuma extorquir o dinheiro da esposa. Paralelo ao inferno em que se transformou a vida de Joana, aparece Queixão, convertido à religião evangélica para salvá-la do marido. Ele não só expulsa Mário, como recupera o dinheiro de Joana e deixa no ar a impressão de que eles formariam um Uma situação engraçada e inusitada se apresenta por meio da inversão de pamais eficiente em se tornar a provedora do lar. Enquanto Reginaldo cuida da casa e de Michelângelo, Maria consegue dinheiro para promover banho quente e consertar a geladeira. O espectador surpreendido pela reviravolta talvez nos conduza a chamada quebra de expectativa mencionada por Humberco Eco (1999). Outra situação inesperada é o casamento entre Neuzão e o travesti Yolanda,

cônjuge não é empregado e, por isso, as despesas seriam menores. Quando o casal

personagens cria uma torcida a favor, o preconceito contra a adoção pelos homossexuais inviabiliza essa ação e o desejo de que eles consigam uma criança. De acordo com Humberto Eco, devemos questionar-nos se, por acaso, onde não encontramos inovação no seriado, isso não depende, mais do que das estruturas, do nosso horizonte de expectativas e a estrutura da nossa sensibilidade. E, assim como no ensemble show, o enfoque vai circulando entre todos os personagens, considerando as possibilidades na qual cada episódio possa aprofundar um fio narrativo, deixá-lo em suspense, retomá-lo semanas ou meses adiante ou mesmo abandoná-lo. O filme funciona como uma cartografia cômica e dramática, mapeando os lugares, seus usos e significados: o espaço público das ruas e largos do Pelourinho, o cais apontando para fora do país; os bairros de classe média e os sonhos frustrados de ascensão social; o “mundo cartão-postal” do guia turístico, dos gringos, do prazer, da música, do carnaval; a espetacularização de tradições afro-baianas, como a capoeira, a

Lira B ezerra

no espectador gera sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo que a empatia dos

de

decide morar junto e adotar uma criança, o suspense é gerado e a expectativa criada

B árbara

contras da contratação de Yolanda para trabalhar no bar, eles resolvem se casar, já que

com direito a chuva de arroz e uma produção impecável. Após analisados os prós e

do cinema para a televisão !

péis na casa de Reginaldo e Maria. Esta decide assumir o controle do táxi e se mostra

Ó Paí , ó:

casal. Seria esse um gancho para a segunda temporada?


baiana estilizada de porta de loja; os embates entre seguidores do candomblé e evangélicos, perante o distanciamento do catolicismo, a série apresenta novas possibilidades. seu processo de construção, como a negritude a cor (negra), a música (o toque do tambor), a estética (a exuberância corpórea, as cores das roupas, dos balangandãs, etc) e o gingado. Entretanto, essa construção imagética, aliada à Bahia, como terra da felicida-

é realidade ou apenas uma invenção imagética da baianidade. Em seu depoimento, nos extras do DVD da série, a atriz Cássia Vale, que interpreta a mãe de santo, destaca a importância do seriado em enriquecer o conhecimento do país sob a Bahia que está por trás de Jorge Amado, convidando o espectador a entender a contemporaneidade que pulsa nas ruas de Salvador. No depoimento de Lázaro Ramos, todos os diretores são referenciados e têm sua importância reconhecida no conjunto da obra. Sob a direção geral de Monique Gardenberg, juntamente com Carolina Jabor, Mauro Lima, Monique Gardenberg, Olívia Guimarães e redação final de Guel Arraes, e Jorge Furtado, o seriado consegue resgatar o viés da crítica social que o aproxima da proposta inicial do Bando Olodum, na ocasião, sob a direção de Márcio Meirelles. Ao contrário do filme, o roteiro da série contempla o humor e o jeito alegre de ser do baiano, sem deixar de apresentar todas as idiossincrasias inerentes à baianidade.

Referências A TARDE ON LINE. Diretora rebate críticas ao “sotaque” Ó Paí Ó, 29 mar.2007. Disponível em: <http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=740786>. Acesso em 13 jun. 2010. CARROLL, Noel. A Filosofia do Horror. São Paulo: Editora Papirus, 1999. ECO, Humberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Editora Senac, 2005. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Editora Moderna, 1998. STARLING, Cássio. Em tempo real: Lost, 24 Horas, Sex and the City e o impacto das novas séries de TV. São Paulo: Alameda, 2006.

1 - n. 1

giosa se configura de tal forma que já não se consegue enxergar a distinção entre o que

ano

de, festa, verão o ano todo, praia, carnaval, axé music, tolerância racial, cultural e reli-

Revista GEMI n IS |

A composição da baianidade recebe grande influência da tradição africana no

176


Cidade

dos H omens: perspectiva narrativa e relações de amizade Inara

de

A morim Rosas

Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Integrante do grupo de pesquisa Ficção e produção de sentido. E-mail: inararosas@gmail.com

Luiz A ntonio Mousinho M agalhães Doutor em Letras pela UNICAMP, atual professor Adjunto IV da Universidade Federal da Paraíba e é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPQ, desenvolvendo pesquisa sobre cinema brasileiro contemporâneo, junto à área de Comunicação. E-mail: lmousinho@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 177 - 197


Resumo Este trabalho tem como objetivo empreender uma análise do discurso ficcional do seriado Cidade dos homens, com atenção para a questão da perspectiva narrativa (focalização), da categoria personagem e das relações entre texto e contexto. O estudo da focalização no seriado nos possibilita conhecer a qualidade do olhar dos dois garotos protagonistas frente às tentações do narcotráfico, em meio as relações comunitárias das quais participam, em relação ao mundo exterior , à comunidade e ante as relações de amizade que os liga desde a infância,o que veremos observando as relações entre o curtametragem Palace II e alguns episódios de Cidade dos homens. Palavras - chave: Foco narrativo; Cidade dos homens; relações de amizade.

A bstract We assume the perceptual theorists Folkcommunication cultural studies to examine the different ways this article aims to undertake an analysis fictional discourse of the series Cidade dos Homens, with emphasis on the narrative perspective (focus), on the character class and the relationship between text and context. The focusing study on the show allows us to know the point of view of the of the two protagonist boys through the temptations of drug trafficking, community relations in which they are related and the “outside world”- the city of Rio de Janeiro, and the friendly that has bound them since childhood, which we get by observing the relationships between the short film Palace II, and from episodes of Cidade dos Homens. Keywords: Narrative focus; Cidade dos Homens, Friendship.


1 Introdução

N

o fim do século XIX, surgiu o Cinema, como um novo recurso de expressão. A princípio, a câmera parada servia apenas para realizar registros cotidianos, como A chegada do trem à estação ou Saída dos operários das Fábricas Lumiè-

re, dos irmãos Lumière (1895). E, assim, permaneceu por um longo tempo com diversos realizadores, um cinema meramente descritivo e informativo. Depois dessa fase em que chegaram a crer que o cinema era uma invenção sem futuro, frase dita pelos próprios irmãos Lumière, Georges Mèliès realiza os primeiros filmes de ficção: Viagem à lua e A conquista do pólo (1902). Com David Griffith, temos o

início de uma linguagem cinematográfica, utilizando o close, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Griffith também buscou inspiração nos modelos narrativos dos romances de Charles Dickens. Não é nada estranho que a narrativa literária tenha inspirado quem, reconhecidamente, fundamentou a linguagem cinematográfica. São muitos os pontos semióticos em comum entre as duas modalidades discursivas. Hoje ninguém mais tem dúvidas sobre isto: o cinema é uma arte narrativa. Pelo menos o cinema se consagrou ao longo de décadas como a arte do século. Há, claro, as alternativas históricas do documentarismo e do cinema poético, mas estes são casos particulares, marginais e excepcionais que só fazem confirmar a regra narrativa, até porque nem sequer estas modalidades de expressão cinematográfica estão, na maior parte das vezes, isentas de narratividade (BRITO,1997, p.193).

O cinema é uma arte jovem e, portanto, sua evolução foi naturalmente resultado de influências de outras artes já consagradas, como a literatura, a música, o teatro e a pintura. (BAZIN, 1985). Por estas artes serem tão velhas quanto história, inicialmente, ante os outros meios de massa, o cinema era criticado, tanto do ponto de vista estético, quanto do lado social, vista como uma arte menor. Atualmente, o cinema é visto como uma arte consagrada e ampla, que mistura várias manifestações artísticas, e uma das mais bem sucedidas, tendo cárater de indústria. E o seu meio de expressão, o audiovisual, acabou gerando outras mídias, como a televisão.


180 Revista GEMI n IS |

Outra curiosidade é que o meio antigo tende a se transformar em arte, enquanto o meio novo passa a sofrer todos os ataques dos intelectuais (vulgar, alienante, etc.) [...] Mas eis que surge a televisão. Em poucos anos, as massas que lotavam as salas de cinema e os auditórios das rádios se transformaram em massas de telespectadores (ou seja, todos nós, afinal de contas). Foi o quanto bastou para o cinema começar a virar arte. E tudo aquilo que era tabu passou a ser marca de qualidade artística (PIGNATARI, 1984, p.9-10).

ano

a “rainha” dos meios de comunicação de massa, sendo vista apenas como um meio alienante e sem nenhum valor estético. Porém, a televisão conseguiu criar uma gráfica e uma estética televisual bastante ágil, como também conseguiu criar a fala brasileira, êxito que não foi obtido nem pelo teatro, nem pelo cinema. A televisão é um veículo de veículos, é um grande rio com grandes afluentes. Só que é um rio reversível: recebe e devolve influências. Quanto à imagem, deságuam na tv: o desenho, a pintura, a fotografia, o cinema. A palavra escrita é um rio subterrâneo, mas poderoso: a literatura está por baixo de toda a narrativa, a imprensa sob todos os noticiosos e todos os documentários e reportagens. A palavra falada é um lençol d’água, está por toda parte: presenças do teatro e do rádio, que também influem nos espetáculos musicais e humorísticos. Mas a linguagem marcante, de base, é a do cinema: composição e montagem de imagens. A diferença está em que a TV é um cinema caudaloso e ininterrupto que, ritmado pelos comerciais, se distribui por milhões de receptores, numa linguagem que combina todas as linguagens, numa produção seriada e industrializada da informação e do entretenimento (PIGNATARI, 1984, p.14).

No Brasil, são vários os programas televisivos que conseguiram desafiar padrões estéticos e de linguagem, abordando temáticas fortes, “até com contribuições para a discussão de problemas emergentes do país”, (PALLOTTINI, 1998). Portanto, faz-se necessário um estudo referente à forma como essa mídia anda se comunicando.

As relações intertextuais entre cinema, literatura e ficção televisiva são

recorrentes na história de produção da ficção audiovisual. Uma reflexão acerca da interpretação de textos fílmicos específicos, tratando de sua intertextualidade, e trazendo essa análise às narrativas brasileiras, poderia contribuir para aprofundar as discussões sobre a produção audiovisual brasileira, bem como discutir aspectos da cultura contemporânea em nosso país.

O estudo realizado tratou da análise da narrativa audiovisual do seriado

1 - n. 1

Acabou acontecendo o mesmo com a televisão, quando ela se consagrou como


da Rede Globo Cidade dos Homens, pela sua repercussão (o seriado teve quatro temporadas e artistas renomados assinando roteiro e direção como Fernando Meireles, Jorge

de Fernando Meireles, no final do ano 2000. Foi nesse episódio especial que surgiram os em 2002, com direção de Fernando Meireles e Kátia Lund. Cidade dos Homens mostrou-se claramente diferente de Cidade de Deus. Como declarou o próprio Meireles, “Cidade de Deus é um drama com toques de comédia sobre traficantes do Rio; a comunidade aparece apenas como pano de fundo. Cidade dos Homens é uma comédia, com um toque de drama sobre uma comunidade do Rio de Janeiro; os traficantes aparecem apenas como pano de fundo”. O seriado parece propor um novo olhar sobre a favela, mostrando crianças vivendo numa situação-limite, tentando escapar do crime e ao mesmo tempo tentando conviver com ele, como declarou um dos diretores, Jorge Furtado, durante as filmagens

do temas universais, relativos às comunidades carentes do Rio de Janeiro, tais como a

de

violência urbana, dificuldades financeiras, a cultura da favela como meio de expressão, a sobrevivência dentro do morro, a problemática do poder estabelecido pelo tráfico de drogas, sempre numa tentativa de quebrar estereótipos. Outro aspecto importante é que ele é um programa que destoa dos demais programas de televisão, com uma nova linguagem. É um programa para ser veiculado na televisão, mas com linguagem, dramaturgia e imagem, cinematográficas. Por ser para televisão, o programa é ágil, muita informação, ritmo acelerado, mas sem ser muito complexo. Rápido e simples, de fácil absorção. “Produto da comunhão entre o cinema e a televisão”, como declarou um dos realizadores. Esses fatos são importantes, dado o interesse que o seriado provocou pós-filme. O seriado foi visto por 40 milhões de pessoas, o filme por cerca de 2 milhões. O seriado conseguiu se comunicar com o grande público. Em 2007, foi realizado o filme Cidade dos Homens, com direção de Paulo Morelli, um dos diretores do seriado. O filme, que mistura cenas inéditas com cenas de toda trajetória dos protagonistas, Laranjinha e Acerola, serviu para afirmar o projeto em torno de Cidade dos Homens e Cidade de Deus como uma realização maior: bem sucedida em 1 DVD Cidade dos Homens, 2003.

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

relativos à adolescência, como a amizade e a vida familiar, o seriado vai além, revelan-

I nara

do seriado1. Além de mostrar dilemas próprios dos protagonistas, Laranjinha e Acerola,

perspectiva narrativa e relações de amizade •

personagens Laranjinha e Acerola. Posteriormente, foi realizado o filme Cidade de Deus,

H omens:

cariocas. Iniciou-se com o Palace II, um episódio para a série Brava Gente, com direção

dos

Cidade dos Homens surgiu de alguns projetos envolvendo a temática das favelas

Cidade

Furtado, Guel Arraes, Regina Casé, Cesar Charlone, Cao Hamburguer, etc.).

181


termos estéticos e de comunicação com o grande público. Dentro dessa perspectiva, procuraremos empreender, em nível inicial, um aspectos estéticos, relacionando-os à série social. A partir dessa relação entre texto e contexto, esperamos contribuir para uma maior compreensão das narrativas brasileiras contemporâneas como também revelar contextos da realidade social do Brasil urbano.

ranjinha e Acerola viveriam uma série de dilemas, tanto relativos à sua idade, questões próprias da adolescência, quanto referentes à comunidade carente do Rio de Janeiro em que vivem, surgiu após a exibição do especial de fim de ano do programa Brava gente, em 2000, o curta-metragem intitulado Palace II, baseado na obra Cidade de Deus, de Paulo Lins. No Palace II, já são abordados alguns dos temas recorrentes no seriado, como a problemática do poder instituído pelo tráfico de drogas, dificuldades financeiras, as leis do morro, a cultura das favelas, etc. Pelo formato curta-metragem, o especial serviu de base até para a linguagem do seriado, com o formato de episódios televisivos. E como estamos tratando a intertextualidade – em que um meio de expressão absorve e transforma outro, nada melhor do que relacionar esses formatos2. Além disso, é no Palace II que surgem os personagens Laranjinha e Acerola, ainda em processo de construção; mas que em Cidade dos Homens passam por uma série de mudanças, na amizade, na vida familiar e dentro da comunidade. Tanto no seriado quanto no curta-metragem, os protagonistas vivem num limite entre o transgredir e o não transgredir, entre se envolver ou não com o tráfico, e para isso procuram várias formas de sobrevivência. O que acontece com o Palace II, é que a linha entre o transgredir é mais tênue, eles ultrapassam o limite da malandragem chegando a trapacear e a roubar, o que não acontece em Cidade dos homens.

2 Curta-metragem: filme de até 30 minutos, podendo ter função estética, comercial, educacional, etc. Seriado: é uma produção ficcional para TV, estruturada em episódios independentes que têm cada um sem si, uma unidade relativa. (PALLOTINNI, 1998)

1 - n. 1

A ideia de se produzir o seriado Cidade dos homens, em que os protagonistas La-

ano

2 Do Palace II ao seriado

Revista GEMI n IS |

processo de análise e interpretação do discurso ficcional, dando especial atenção aos

182


3 Cidade dos Homens: um novo olhar sobre a favela

O episódio Buraco quente é o último da segunda temporada, e que mostra,

a episódios anteriores. Já viveram muitas experiências juntos, inclusive relacionadas ao vai se modificando: eles já começam a pensar em trabalho, estão descobrindo o sexo; estão num caminho de consolidação ainda maior da amizade, ao passo de que estão para viver muitas etapas importantes da vida, juntos.

No episódio referido, as relações entre o texto e o contexto se mostram

bastante evidentes, evoluindo na trama uma em função da outra. Nele, o pano de fundo do seriado, o tráfico de drogas na favela, aparece com um foco principal, servindo como uma espécie de prova de fogo para os personagens, à forma como eles estão caracterizados dentro do seu universo ficcional (como moradores que não se envolvem com o crime). Na história, Espeto, primo de Laranjinha, enfrenta a decisão de sair do tráfico

do discurso. O episódio consolida a visão ampla do seriado para com a favela, esclarecendo as possibilidades de vida do lugar e reforçando as lições de amizade, solidariedade e cidadania. A narrativa tem início com uma caracterização inicial do espaço, crianças correndo pelos becos da favela, indo brincar; Laranjinha e Acerola soltando pipa. O traficante Espeto chega, e as crianças agitadas, cantam em coro “O Espeto é do mau, quero ver dar um real”. Essa é a primeira forma de caracterização do personagem: traficante, “do mau”, tem poder (distribui dinheiros as crianças) e status. Ao mesmo tempo, ele trata bem as crianças, pelo senso de ligação, integração e identificação que ele possui com os membros da comunidade. Mesmo sendo o líder, Espeto faz parte da comunidade. A cena seguinte mostra os demais traficantes chegando, e as crianças se afastando. Espeto, é nesse momento, primeiramente, o traficante, não apenas integrante da comunidade. Faz parte de uma hierarquia, em que ele é o gerente do tráfico, um cargo alto, porém subordinado ao dono das “bocas” do morro. Um ponto a ser ressaltado com relação ao tráfico é que, mesmo com leis severas, existe uma certa relação cordial entre eles no dia a dia. Por meio de seus dialógos, sempre fazem votos positivos e de fé. A narrativa está sendo conduzida de forma onisciente, em terceira pessoa. O

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

forma de sobrevivência que não o tráfico), quanto sua mudança enquanto personagem

de

peto, dentro da comunidade (ele agora, como os protagonistas, tem que procurar outra

I nara

e, desse modo, as consequências disso. É mostrada tanto a evolução do personagem Es-

perspectiva narrativa e relações de amizade •

envolvimento com tráfico. A temática dos episódios, devido à idade dos personagens,

H omens:

claramente, um amadurecimento dos protagonistas, Laranjinha e Acerola, com relação

dos

Cidade

3.1 Buraco quente

183


narrador se utiliza da cena para momentos de diálogo e ação. Porém, o narrador coloca a história sob o ponto de vista de Laranjinha e Acerola . A câmera continua subjetiva. 3

desenrolando. Conforme os eventos transcorrem com o traficante, o narrador combina a sua voz narrativa com a das personagens, fazendo com que eles emitam opinião acerca de Espeto, o protagonista do episódio em si.

cadeira, e o foco narrativo se desloca também para Laranjinha e Acerola. É quando notamos a presença testemunhal dos protagonistas do seriado, e vemos que a opinião deles, para o desenvolvimento da narrativa é fundamental. Na narrativa que estamos tratando, além dessa discreta presença do narrador, que dá a impressão que a história se conta a si própria, o último também se aloja na mente de algum personagem, que faz o papel refletor de suas ideias; o que ocorre, conforme Laranjinha e Acerola vão mostrando a opinião deles. A personagem Poderosa, tida no imaginário dos meninos do morro como a mulher inalcancável, a mais desejada da favela, se aproxima de Espeto e o convida para ir a algum lugar mais tranquilo, para “relaxarem”. A cena provoca em Laranjinha, a questão do status do traficante. E começa o primeiro diálogo divergente entre ele e Acerola. O primeiro fala de como é bom ter poder, para ter a mulher que quiser, o último lembra que Espeto é do “movimento”, e eles já têm uma boa experiência para saber o que isso significa. Laranjinha diz “é do movimento, mas é meu primo”, reforçando a ideia de que ele é um ser da comunidade. Numa narrativa audiovisual, temos tanto a história contada de forma direta no curso, quanto a história que é mostrada de outra forma, muitas vezes, de forma implícita. Enquanto os meninos discutem, a cena é cortada para o close de um celular, que, rapidamente, corta para a Poderosa e Espeto num quarto, que corta para a polícia subindo o morro. Uma montagem paralela, que é utilizada como um recurso narrativo para dar um suspense maior a cena (BRITO, 1997). Sabemos que alguém denunciou Espeto, primeiro pela ligação do celular, e segundo, porque os policiais estão indo para a casa em que ele está. Laranjinha ouve os tiros de alerta dos traficantes, interrompe a conversa, e corre para avisar Espeto. Espeto sai correndo da casa, levando a mochila. Inicia-se uma sequência dele correndo nos becos do morro, com a polícia atrás. Ouve-se uma música de ação ao 3 O foco narrativo está ligado à forma como narrador conduz a história. Nesse caso, o narrador é onisciente, mas narra sob o ponto de vista dos protagonistas Laranjinha e Acerola, eles que conduzem o olhar que o espectador tem sobre a obra.

1 - n. 1

tando pipa, em segundo plano, apenas observando. Espeto se aproxima para uma brin-

ano

Após o acerto de atividades com os traficantes, os meninos se encontram, sol-

Revista GEMI n IS |

Porém, eles funcionam como testemunhas, a todo tempo observam a ação, que vai se

184


fundo. A sequência se ameniza por um instante, quando Laranjinha, para despistar a polícia, quando esta invade a casa em que Espeto estava, simula estar na cama com Po-

ação, potencializando o sentimento de apreeensão que o traficante está sentindo. Esse tiros entre Espeto e os policiais, o primeiro leva um tiro na perna. A forma como a cena é mostrada também ressalta bastante o fato do traficante ter sido baleado, com um close na câmera, na bala e a bala entrando na sua perna. Ele se vê sem saída, corre bastante até só haver uma mata rebaixada. Se atira no meio dela com muito medo, caindo de um lado e a mochila com o dinheiro que ele estava, cai em outro. Rola no meio do mato até se esconder atrás de um tronco, onde tira a camisa para estancar o sangue. Essa cena se intercala com cenas da polícia indecisa quanto a entrar no mato. E a música alta “medo, medo dá medo do medo medo que dá”4, reforçando o clima tenso.

“dessa merda de vida”. A câmera nervosa, muda o tom da cor, mais sombrio e escuro. A música que é executada, “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor, mesmo heterodiegética5 (as que vinham aparecendo até então também o eram), contribui para o “efeito conjunto que o filme provoca como um todo”, (BRITO, 1997, p.211). As relações de aliança e confronto de um personagem são motivadas pelas funções que o personagem exerce na narrativa, (ABDALA JUNIOR, 1995). Espeto mostrase dentro do discurso como um personagem complexo, ou personagem redondo6: A personagem redonda, pela sua caracterização complexa, deve figurar entre as personagens centrais da narrativa. Ela é imprevisível e suas predicações vêm aos poucos. Por apresentar complexidade psicológica, a personagem redonda pede focalizações internas, seja dela própria ou de outras personagens que a observam (ABDALA JUNIOR, 1995, p.42).

4. Trata-se da música Medo, de Beto Villares. 5. Uma música incidental, que não faz parte da diegese, (GENETTE, 1995). 6. Personagem que apresenta várias qualidades ou tendências, (BRAIT, 1985).

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

medo e desespero, Espeto pede ajuda a São Jorge. Num monólogo, orando, promete sair

de

Nessas misturas de sensações físicas e psicológicas, suando muito, com misto de

I nara

O som destina-se a facilitar o entendimento da narrativa, a aumentar a capacidade de expressão do filme e a criar uma determinada atmosfera. Ele completa e reforça a imagem. Obtêm-se resultados freqüentemente bem diferentes através das diversas combinações das duas linguagens, o som e a imagem: combinações complementares, redundantes, contraditórias (contraste) ou em contraponto (BETTON, 1987, p.38).

perspectiva narrativa e relações de amizade •

efeito, provocado pela música, é reforçado também nas próximas cenas. Na troca de

H omens:

A sequência de Espeto correndo da polícia prossegue, com a mesma música de

dos

interior acerca da sua sexualidade; Poderosa é a primeira mulher que ele vê nua.

Cidade

derosa. O foco muda um instante para o protagonista “original”, e temos um monólogo

185


Enquanto isso, Laranjinha e Acerola brincam de bola com os amigos. Acerola chuta, sem querer, a bola para o meio dos matos, e vai buscá-la. Espeto o vê e grita por casa de Zuleide, com a ajuda de Laranjinha e Acerola. Espeto comunica a Laranjinha que, se sair dessa bem, vai abandonar o tráfico. Laranjinha discorda: “largar a vida boa?”. Acerola, também presente, retruca “isso é vida boa, com um tiro na perna?”.

O diálogo entre os dois diverge novamente. Laranjinha diz que Espeto demorou quatro anos para ser gerente, e não deveria sair justo nessa hora; ele tem roupas de marcas, as mulheres que ele quiser, etc. Acerola lembra do tiro na perna, e diz que não adianta ter tudo o que ele tem se estiver morto, e que ele só pode viver em cima do morro mesmo, porque se descer, a polícia prende ele. Laranjinha responde que ele não teria motivos pra descer, porque tem no morro, tudo o que precisa: mulheres, respeito. “É considerado no morro”. Segundo a antropóloga Zaluar (2006), esse isolamento, “que também aprisiona pelo lado de dentro, fechando as pontes, os laços, os contatos com o mundo de fora”, é um dos elementos que mais alimenta a violência. Para Acerola, as pessoas é que têm medo de Espeto, mas que era o traficante quem na realidade, tinha mais medo: segundo Zuleide ele mal conseguia dormir a noite. Ainda em Zaluar, “mesmo aqueles meninos que produzem tanto medo quando se encontram nas ruas em situações de roubo, são humanos e, além do mais, sofrem, sentem falta de amor, acima de tudo respeitam suas mães, têm medo e sabem que vão morrer”, (ZALUAR, 2006). O foco muda para os traficantes, que discutem a interferência da polícia nas operações que eles estão realizando. Desconfiam que existe algum traidor no grupo, que avisou a polícia onde Espeto estava no dia em que levou um tiro. Entram em divergência, e Madrugadão, o chefe, manda chamar Espeto, dizendo, “eu quero o Espeto e a mochila agora senão alguém vai cair”. Sozinho, Espeto começa a ter devaneios. Num sonho, imagens sobrepostas da conversa entre Laranjinha e Acerola, imagens rápidas dele fugindo da polícia, e a música “Jorge da Capadócia”, que é usada novamente. A música participa do contexto da trama, e mais do que efeito emocional, funciona como suporte narrativo, explicando o que Espeto estava sentido. ”Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ para que meus inimigos tenham pés, não me alcancem/ para que meus inimigos tenham mãos, não me peguem não me toquem/ para que meus inimigos tenham olhos, e não me vejam/ e nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal/armas de fogo, meu corpo não alcançará/facas, lanças se quebrem, sem o meu corpo tocar/ cor-

1 - n. 1

porta do quarto, com Espeto prestando atenção.

ano

Enquanto Zuleide cuida do ferimento de Espeto, os meninos continuam a discussão na

Revista GEMI n IS |

ele, pedindo para Acerola chamar Zuleide (namorada de Espeto). Ele é levado para a

186


das, correntes se arrebentem, sem o meu corpo amarrar”. Tudo o que Espeto procurava, ultimamente, era proteção.

ideia e fala com Laranjinha, perguntando se ele não quer ver o primo vivo. A ideia Espeto poderia ajudar cobrando as pessoas, pela moral e respeito que tem. Pedreira conversa a respeito (com Espeto). O pai de Espeto, antes de morrer, teria pedido a ele para olhar pelo filho; que responde: “morreu pra mim é passado”. No tráfico, eles são acostumados a lidar com a morte, ainda mais de forma corriqueira, pois sempre tem alguém morrendo. Conversam da vida dura, e Espeto diz que é muito difícil sair do movimento, comunicar sua decisão ao grupo. O tio conta uma história de quando foi preso, que deveria ter escutado mais a sua mãe, a avó de Espeto. E relembra a Espeto que ele tem várias pessoas querendo ajudá-lo, como Zuleide.

tem que ir para uma fila, passar a noite, para conseguir inscrever Espeto no concurso. Ela vai para a fila e Acerola promete levar Espeto de qualquer jeito. Espeto vai indo encontrar Madrugadão e Zuleide vê, ela fica decepcionada com ele, por já estar voltando ao tráfico, e diz que ele pode perdê-la. A cena volta-se para o tráfico, e temos a confirmação da antecipação narrativa no início do episódio. Sabemos que realmente um dos traficantes está negociando com a polícia, Lord Boladão, um dos traficantes que, sutilmente, mostra sua antipatia por Espeto. Este pede a Laranjinha para tentar encontrar a mochila, e se não encontrar, morre. Segundo a psicanalista Maria Rita Khel, “a droga é a hiperrealidade cotidiana, aliada ao medo e ao poder dos fuzis: quem vacilar, sabe que vai morrer. O que equivale a uma condenação sumária, impossível viver sem, vez ou outra, vacilar”, (KHEL, 2006). No caminho, Espeto se vê exatamente assim, já morrendo. Ele sabe que nesses casos,

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

Estável, com carteira assinada e plano de saúde. Zuleide descobre, por meio dela, que

de

A irmã de Acerola sugere um concurso de emprego público na prefeitura.

I nara

Quando há relações de comprometimento com o outro, de solidariedade que a amizade emana, forças podem ser mobilizadas coletivamente no enfrentamento de condições de aviltamento. (...) Através dos seus laços de amizade, os sujeitos das classes populares demonstram a experimentação política de formas de organização e luta no cotidiano mobilizados pela força de solidariedade, que resiste às condições opressivas (GOMES, SILVA JÚNIOR, 2005, p.172).

perspectiva narrativa e relações de amizade •

consiste no tio de Espeto e Laranjinha, Pedreira, que instala antenas na comunidade.

H omens:

Dessa forma ele estaria ajudando Zuleide e Espeto ao mesmo tempo. Acerola tem uma

dos

fico, para arranjar um emprego para Espeto, para que realmente ele deixe o movimento.

Cidade

Zuleide pede ajuda a Acerola, ciente do que ele pensa a respeito da vida no trá-

187


alguém tem que morrer. Chega junto ao bando, e pede a Madrugadão para sair. O último se irrita, e diz “pista”, ir assaltar no asfalto, como forma de conseguir o dinheiro que deveria entregar. Espeto, com a perna ainda machucada, desce do morro, e assalta alguns carros. Nesse momento, Espeto tem que esquecer o medo e pensar no medo dos outros. Ele está ferido

que assalta, e que fica apavorada. Há um corte de cenas várias vezes, entre Laranjinha, tentando encontrar na mata o dinheiro perdido, o que consegue, e Espeto, tentando conseguir o dinheiro com os assaltos. Na volta, encontra Zuleide, que está a caminho da fila. Ela explica que está indo atrás de emprego para ele, e quando revela que é a vaga é de gari, ele fica indignado, e os dois brigam. Ela diz que ele vai morrer se continuar no tráfico, e vai arranjar outro. Monólogos interiores dos personagens acabam revelando o que eles sentem realmente. Zuleide fica com medo de ter sido muito severa com Espeto, porque realmente gosta dele, e ele acaba relevando o quanto gosta dela também. Têm-se, posteriormente, uma cena bastante tensa dos traficantes. Espeto entrega todas as jóias e o dinheiro que conseguiu. Lord Boladão se intromete e diz que aquilo é pouco. Num segundo plano, ao mesmo tempo, Laranjinha tenta entregar a mochila a Espeto, mas um dos traficantes fica com ela, sendo bastante intolerante. A mochila é a prova da inocência do primo de Laranjinha, que, provavelmente, vai ser executado como culpado, já que os traficantes o impediram de passar para entregar a mochila ao chefe. Essa cena contribui para o clima de suspense que o narrador pretende criar. Espeto e Lord (o traidor, que só nós sabemos – pelo menos achamos, que só nós sabemos, até então), discutem. Madrugadão interrompe diz que eles vão resolver essa situação agora, e os manda descer para outro lugar; todos vão. Laranjinha e Acerola, que estão observando a cena de longe, ficam apreensivos; Acerola quer ir embora, mas Laranjinha quer ver tudo, e os dois ficam. Madrugadão, com uma arma, fala: “o comédia vai cair agora”. Nesse momento, o efeito que o narrador quis provocar no narratário é o medo por Espeto. Todos nós achamos que é ele quem vai “cair”. Todas as cenas que antecedem, têm como objetivo aumentar o suspense, até o seu ponto máximo, que consiste na paralipse contida na última cena. Madrugadão, ao falar apenas “o comédia”, acaba limitando as informações. Até que o primeiro aponta a arma para Lord Boladão, que fica chocado. Os traficantes também haviam descoberto, mas nós não sabíamos, não nos foi mostrado. O narrador direcionou o foco para aumentar o suspense.

1 - n. 1

tancia de tentar uma outra vida. Ele consegue transferir seu desespero para uma moça

ano

e desesperado, porque vai ter que assaltar, e se vê de novo numa situação que o dis-

Revista GEMI n IS |

que resolve isso depois. Cobra o dinheiro de Espeto, que não tem. O manda ir para a

188


Lord tenta se safar, perguntando do dinheiro que Espeto deve, quando o traficante que recebeu a mochila, a mostra a todos. Mandam Espeto matar Lord, já que o

plosão. Quando isso ocorre, a personagem pode se desestruturar. No caso do nosso personagem, essa desestrutura foi a mudança em sua vida, a decisão de sair do tráfico. Benjamin Abdala Junior ainda reforça essa mudança, quando diz que a construção do personagem, também é feita de forma comparativa com outros personagens. Espeto não tem coragem de matar Lord, se retira do ambiente, e um dos traficantes mata o tra-

peto, que nunca “vacilou”: “Vai na fé de Deus, irmãozão”. A música “Jorge da Capadócia” é tocada mais uma vez, como uma forma de abençoar aquela decisão. Apesar de toda a dureza do tráfico, de ser difícil para todos saírem, Madrugadão entende Espeto. Laranjinha e Acerola encontram Espeto, e vão todos juntos para a fila onde Zuleide está. Lá, ele abraça Zuleide, ambos emocionados, contando que saiu da vida do tráfico de verdade. Tudo parece tranquilo. Mas, Espeto não consegue o emprego, ele não possui todos os documentos, e não sabe ler. Ainda contesta que, para varrer as ruas, não é necessário saber ler. A história poderia ter terminado de forma bastante triste, devido a essa pequena injustiça e falta de oportunidade, cotidiano no nosso país. Mas não. O seriado acaba nos deixando com um ar de esperança. Espeto e Zuleide tomam café da manhã num boteco e saem abraçados, caminhando. Espeto era agora um sobrevivente, tal como Laranjinha e Acerola, e teria que encontrar alguma maneira de sobreviver, e alguma hora, encontraria. Entra Laranjinha e Acerola soltando pipa, como no começo da narrativa, e a voz over de Laranjinha: “Nunca mais vi o Espeto, deve ter ido para outro morro com a Zuleide”. Finaliza com o foco nos protagonistas, mostrando a vida deles, normalmente.

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

Mesmo com raiva, e se sentido abandonado, o grupo deseja o melhor para Es-

de

outros atributos (Abdala Junior, 1995, p.42,50).

I nara

ficante traidor, com naturalidade. Aquilo não era mais natural para Espeto, ele possui

perspectiva narrativa e relações de amizade •

tensões interiores entre os valores individuais e sociais podem chegar à beira da ex-

H omens:

Na reflexão acerca do personagem de Espeto, um personagem complexo, as

dos

Se essa personagem tiver, em sua construção, a predominância de atributos sociais, seu comportamento no espaço social será altamente previsível e interiormente ela não terá conflitos maiores. Se esses atributos sociais que se projetam na sua interioridade estiverem em conflito com valores psicológicos próprios, essa personagem entrará em tensão interior, e seus pensamentos e ações serão imprevisíveis. (ABDALA JUNIOR, 1995, p. 49).

Cidade

mesmo, o dedo-duro, o caluniou. Espeto não tem coragem, e grita que está fora.

189


3.2 Pais e Filhos e outros filhos

favela que estamos acostumados a ver na televisão, sob o olhar de dois garotos protagonistas. Através do cotidiano deles, vamos acompanhando também o cotidiano da favela e suas diversas faces: o olhar dos garotos para com o tráfico de drogas, sexualidade, e

ao passo de que estavam para se tornar adultos, com cada vez mais obrigações e responsabilidades. É quando percebemos que as semelhanças e diferenças entre o Rio de Janeiro “com esgoto e asfalto”, e o Rio de Janeiro “sem esgoto e de terra”, como também uma semelhança que se expande a outras cidades e outros adolescentes. Nossos protagonistas sempre tiveram que se virar sozinhos, são “filhos do mundo”, porém sempre puderam contar com o apoio um do outro, e com a ajuda de outros dentro da comunidade. No episódio Uólace e João Victor7, temos a primeira aproximação do morro, com a classe média. É quando vemos, de fato, a universalidade dos temas tratados no seriado, as semelhanças citadas anteriormente. Tanto Uólace (o Laranjinha), quanto João Victor enfrentam os mesmos dilemas na adolescência, da crise existencial, do ciúme por ver o amigo se dando bem, a frustração quanto o futuro incerto – o que assume conotações e matizes diversas conforme a classe social -, mas têm aspectos em comum ressaltados no olhar construído pelo seriado. Há uma identificação entre os personagens, ambos querem o tênis da moda e não podem ter, ambos tem problemas com o pai (Laranjinha ou Uólace não conhece o dele e o de João Victor sempre foi um pai ausente). O encontro do morro com a classe média é mostrado também de forma positiva, através de Os ordinários, da segunda temporada, em que integrantes de classes sociais distintas quebram preconceitos um com o outro, e formando esse grupo, os ordinários, se unem numa causa maior e têm uma bonita e divertida amizade de verão. No episódio Sábado, da segunda temporada tem-se um painel social da favela por meio de uma das suas principais manifestações culturais, o baile funk. Adolescência na comunidade: a sexualidade, a gravidez na adolescência, o adultério. As leis do morro, que controlam a ordem também se fazem presentes, etc. Ilustramos alguns episódios apenas para reforçar algumas das situações já retratadas pelo seriado, tanto vivenciadas pelos protagonistas, como observadas por eles. A partir da terceira temporada, a vida deles vai mudar, conforme eles vão cres7. Último episódio da primeira temporada.

1 - n. 1

tatamos as angústias de dois garotos, o desenvolvimento deles, e a expectativa de vida

ano

conceitos como amizade, cidadania, solidariedade, solidão. E através de tudo isso, cons-

Revista GEMI n IS |

Como foi proposto no começo deste estudo, o seriado expande o conceito de

190


cendo e adquirindo mais obrigações e responsabilidades, a amizade vai tomar um rumo diferente. Eles passam a precisar um do outro muito mais do que no dia a dia para re-

ambos foram criados sem pai; apesar disso ser um trauma maior para Laranjinha, que por ter se envolvido com “mulher de bandido”, servindo para o amadurecimento dele. Também são mostrados temas, como as dificuldades de se ter e de se criar um filho, a superlotação da creche da comunidade,. A namorada de Acerola, Cristiane, engravida, e ele fica num dilema de assumir ou não a responsabilidade pela paternidade. Pensam num aborto, mas não têm dinheiro. Encontram-se na situação de pais adolescentes e sem condições financeiras; na maioria dessas situações, o pai não assume o filho. Desabafando com Laranjinha, ele pensa em “dar um tempo” com Cristiane, dizendo que é muito novo para ser pai. O amigo discorda de Acerola, mas na verdade ele queria demonstrar apoio à situação

ranjinha pergunta para ele se o filho dele vai ficar sem pai, igual aos dois protagonistas,

de

que cresceram sem pai. Ele ainda reforça dizendo que gostaria de ter um pai que ensinasse as coisas, o levasse para a escola, etc. Laranjinha sente muito a falta de um pai. “Seu filho vai crescer sem pai que nem a gente? Se virando sozinho, fazendo besteira!”, diz. Acerola acaba chegando à conclusão que de os pais sempre fogem da responsabilidade e sentiu o peso dele mesmo ser o pai, e decide assumir o seu filho, mesmo sem saber direito o que isso tudo significa. O episódio termina com a inserção do discurso informativo, trazendo dados reais da situação das jovens que engravidam. O episódio Pais e filhos, última da terceira temporada, seria a divisão, o marco diferencial na vida dos garotos, que a partir do momento terão novos desafios, amadurecendo enquanto personagens. O narrador, como em vários outros episódios, é onisciente neutro8. Porém, o ponto de vista do narrador pode estar mais próximo ou mais distante dos pontos de vista de suas personagens. E como se observa, a focalização na narração não é fixo, oscila constantemente.

8. Divisão de narradores segundo a Tipologia de Friedman, que classifica oito tipos de situações narrativas. (GENETTE,1985)

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

modo de mostrar cuidado com o amigo, desejando que ele resolva seus problemas. La-

I nara

em que ele estava passando. Segundo Claudia Rezende (2002), as críticas são mais um

perspectiva narrativa e relações de amizade •

acha que o pai é a falta da família. Laranjinha passa uma temporada fora do morro

H omens:

tagonistas, que desde sempre se conhecem. Os dois compartilham as mesmas dores,

dos

O episódio Foi sem querer pode ser considerado uma ode à amizade dos pro-

Cidade

solver problemas, o sentimento de amizade e presença do outro passa a ser maior.

191


3.2.1 Cristiane

ninguém, e que ela não serve para nada. Ela, adolescente, grávida, sem emprego, se vê completamente desamparada. Acerola, ao consolá-la, diz que vai arranjar quantos empregos forem precisos. Encontra apoio na avó de Acerola, que na sua experiência, quando Cristiane já

mal que dure para sempre”. Uma cooperativa está organizando uma festa de debutantes coletiva e, entre elas, está Cristiane. Na organização, Cristiane se vê ainda pior, não aguenta ficar parada, não tem coragem de ir para a escola por causa da barriga. E sente muito sua briga com o pai, completando que não terá pai para dançar a valsa. As mulheres da cooperativa dizem que ela tem muita sorte em Acerola ter assumido o filho, e de ter pessoas como a avó dele. E sempre é a mãe quem cuida de tudo. Que quem devia dançar a valsa era a mãe, não o pai. “Ano que vem eu vou inventar a valsa da mãe”, diz a avó de Acerola. Cristiane, que não tem mãe, tem agora que se imaginar como uma mãe e ter todas as responsabilidades que não tiveram com ela, assim como Acerola. 3.2.2 Acerola Acerola compromete-se em assumir o filho, e passa a ter várias obrigações daí por diante. Começa a arranjar emprego, junto com Laranjinha. Nesse momento, a narrativa entra em um clima mais descontraído, apesar de toda a tensão dos acontecimentos. Há uma ironia com os classificados, com os eufemismos, que, às vezes, são sutilmente discriminatórios. “Boa aparência, o cara tem que ser branquinho”, diz Laranjinha. Trabalhar no ramo de informática, segundo os classificados, é carregar caixas com computadores, clínica veterinária oferece grande oportunidade de emprego, é passear com cachorros. Eles vão para o balcão de oportunidades de emprego, para um emprego com carteira assinada. Vão trabalhar numa lanchonete. Na lanchonete, também ocorre uma cena leve e descontraída a respeito de não ter pai. Acerola, empolgado com o emprego, ao ver um pai e um filho saindo do lugar, diz “incrível esse negócio de ser pai, né?”, Laranjinha responde “prefiro ser filho”. Logo depois, eles começam a brincar de quem chegasse à lanchonete seria o pai deles,

1 - n. 1

tem 15 anos, acha que tudo é pra sempre. Não há bem que nunca se acabe como não há

ano

não vê mais expectativas, diz: “Você diz isso porque só tem 15 anos, quando a gente

Revista GEMI n IS |

O pai de Cristiane a expulsa de casa, alegando que não vai cuidar do filho de

192


e se divertem bastante. Vemos aí, que nas relações de amizade, além do sentimento e da cooperação, a

Acerola”, o último fica um pouco balançado, mas já está mais ciente e seguro do que além das responsabilidades, existe “todo um sentimento”, e segura seu filho com um misto de emoção e medo. 3.2.3 Lar anjinha

O episódio inicia com Laranjinha tentando fazer a letra de um rap, com o tema da mãe e do pai; se vê numa questão inicial: “O que rima com mãe?”, que significa tanto na letra literal do rap, quanto o mesmo tentando buscar o significado da mãe na sua vida. Quando vai ao balcão de oportunidades de emprego com Acerola, ao preen-

de pensar dos narradores, das personagens narradoras e dos personagens que vivenciam uma cena (ABDALA JUNIOR, 1995). Tanto Laranjinha quanto Acerola não têm pai, e ambos preencheram os mesmos documentos. Quando o narrador destaca a cena anterior, apenas com Laranjinha, é uma forma de caracterização do personagem, sabemos, devido a outros episódios, que o personagem em destaque enfrenta menos fortemente a ausência do pai. Ele resolve, depois de ter visto os classificados, colocar um anúncio procurando o seu pai, e ao longo da história fica esperando um telefonema que não acontece, confirmando o destaque feito anteriormente. Outro destaque é o rap que Laranjinha vai fazendo, e que vai sendo executado durante a narrativa, como heterodiegética; a música apenas não é executada junto com a diegese, porém faz parte da diegese, funcionando como um monólogo interior de Laranjinha. A letra do rap cantada exerce a mesma função que a voz em over. Através do over, nós conhecemos o que o personagem está pensando, o que ocorre com a música, quando ele diz “morar no gueto não é fácil não, rap é som de preto, minha solução”, “meu pai que ainda não me ligou” e “não tive paciência para aguentar o patrão”, quando ele pede demissão da lanchonete, por não aguentar a grosseria dos clientes quando

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

Na narrativa, os fatos são selecionados e interpretados de acordo com o modo

de

terá apenas “três pontinhos”, fica desolado.

I nara

cher os documentos, com o nome do pai, e percebendo que no lugar do nome do pai,

perspectiva narrativa e relações de amizade •

isso significa. Quando o filho dele nasce, ele se dá conta de que é algo muito maior, que

H omens:

Laranjinha deixa o emprego na lanchonete, e diz “tá vendo como é bom ser pai,

dos

mais leve, mais amena. Afinal, eles já compartilham de todas as experiências.

Cidade

relação de sociabilidade também é importante, abstraindo o cotidiano, de uma forma

193


ele fazia entregas. Quando sai do emprego, Laranjinha se vê sozinho, sem expectativas, sem o ninguém sabia que eles existiam, que eles não eram ninguém. Numa situação em que ele tinha que demonstrar segurança e maturidade, Acerola repete para o amigo a mesma fala que a avó dele falou para Cristiane, quando ela se via sem expectativas, o fato

ções de amizade, o entrevistado assinala que “com os amigos, tudo é muito franco, muito claro, muito aberto. Amizade é isso, estar com o outro para o que der e vier, falando as verdades sempre, mostrando caminhos, discutindo, trocando ideias, informações”. Segundo a própria Rezende (2002), essa franqueza ajudava a criar confiança e respeito e aí você consegue apoio. Acerola tenta estimular em Laranjinha o que ele tem de melhor, o que faz de melhor, que é o rap. Afirma o quanto ele é bom com fatos que eles vivenciaram, e o incentiva a participar de um concurso de rap que vai haver, com etapas em vários morros. Laranjinha se anima um pouco e ainda pensa que indo a vários morros poderia encontrar o seu pai. Acerola o estimula ainda a fazer um rap ali na hora para ele ir pensando em coisas melhores, mas a ausência do pai o influencia muito: “Quero encontrar o meu pai que ainda não me ligou/será que ele o jornal comprou (...) /Não tenho esperanças de o meu pai rever /por isso às vezes fico na maior deprê”. Acerola, decidido a acabar com aquela “deprê” de uma vez, no papel de amigo, brinca dizendo que como vai ser pai agora, poderia ser o pai de Laranjinha. Que teria agora uma boca a mais para alimentar, mas que se ele quisesse, seria o novo pai de Laranjinha. “Fica assim não, teu pai tá aqui”. Laranjinha acaba ganhando o concurso de rap. E vários rappers famosos que estavam presentes começam a dizer que são o pai de Laranjinha, o que deixa ele muito satisfeito. Ele conseguiu expressar o que sentia através da música e ficou aliviado. A última parte do seu rap diz que não se fica sozinho quem tem amigos e que mãe não tinha rima, reconhecendo a incomparabilidade da mãe na sua vida. 3.2.4 Ser pai e ser filho Acerola recebe pagamento e todos vão fazer compras. Ele, Cristiane, a irmã dela, uma amiga e Laranjinha, que vai comprar roupas para o concurso de rap.

1 - n. 1

Num dos depoimentos colhidos por Cláudia Rezende, em estudo sobre as rela-

ano

dele ter apenas 15 anos e achar que tudo é para sempre.

Revista GEMI n IS |

telefonema do pai, se desespera, começa a chorar bastante, dizendo para Acerola que

194


A sequência começa bem descontraída, até Cristiane passar mal, como uma espécie de lembrança que de as coisas estavam diferentes.

era nem estar solteira, mas “sem aquela barriga”, demonstrando ainda insegurança e tiane tem, Laranjinha diz que ele é agora um homem sério, trabalhador e dedicado. Ele confirma, dizendo que está adorando ser pai. As meninas, a irmã e a amiga de Cristiane logo desmentem, dizendo que ele está morrendo de medo, e que certamente preferia a vida antes. Laranjinha reforça “se fosse bom ser pai, não ia ter um monte de pai abandonando os filhos não”, e diz que gostaria de ser apenas filho. Cristiane, por sua recente experiência com o pai fala “Pra quê? Nenhum pai gosta do filho de verdade não”, a amiga dela a leva a refletir quando responde “O que você queria que teu pai fizesse? Te desse os parabéns por tá te vendo grávida aos 14 anos?”, o que faz Cristiane refletir. Laranjinha diz que é melhor ter um pai que briga do que um indiferente. A

Todos, de acordo com a sua experiência, detêm de uma opinião, de um discurso que os caracterizam como criaturas da realidade e como personagens. No final do episódio, tem-se a festa de debutantes, momento em que todos estão felizes. Acerola fica trabalhando na lanchonete, e Cristiane apreensiva quanto a sua ida. De última hora Acerola chega, porém ocorre um desencontro, Cristiane tem que amamentar o filho, ela fica desesperada, pois juntou dinheiro três anos para poder estar na festa e não queria perder o momento da valsa. A valsa começa e Acerola fica no meio da pista de dança, sozinho, em meio a um monte de casais. De repente, Cristiane chega, com o filho no colo, e dançam os três. Uma valsa de pai, mãe e filho. E o casal percebe agora a importância dessa união, que não é porque eles não

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

Não podemos nos esquecer de que a personagem é um ser fictício que se refere à realidade. Ou melhor, um ser fictício que se refere aos múltiplos discursos existentes sobre essa realidade (o discurso da sociologia, da filosofia, da psicologia, etc.). Ao construir uma personagem, o escritor incorpora esses discursos, pelos quais ele “vê” a realidade, associando-os ou transformando-os na interação com os modelos da tradição literária. Além disso, essa personagem é construída por palavras, com um sistema de predicação (ABDALA JUNIOR, 1995, p.46).

de

virou mendiga, falou que gostaria da mãe de qualquer jeito.

I nara

amiga de Cristiane confirma, ela que não tem pai nem mãe, e que dizem que a mãe

perspectiva narrativa e relações de amizade •

imaturidade em relação à sua nova situação. Acerola chega e vai logo ver o que Cris-

H omens:

estar solteira, livre, que assim pode ficar com quem quiser. Disse que o principal não

dos

bom ter marido nessas horas, para poder apoiar quando precisa. Ela diz que é melhor

Cidade

Enquanto Cristiane está se recuperando, Laranjinha diz para ela o quanto é

195


tiveram isso, que o filho dele vai ter que ser igual, e vêem o quão importante é dar ao próprio filho, aquilo que eles nem sabem como é. Mas, além de filhos, eles eram agora

4 Palace II, Cidade de Deus e Cidade dos Homens: perspectivas Através do processo analítico, pudemos perceber que as três realizações, Palace

mecanismos de representação ficcional. Dentro de perspectivas distintas, mostraram um Brasil que está muito perto, mas ao mesmo tempo muito longe. Nenhum dos três produtos propõe propõem solução, explicam nada, abrem apenas uma janela, construindo percepções efetivas sobre dados do real. Em depoimento, o ator Douglas Silva, o Acerola, em Palace II e Cidade dos homens e o Dadinho em Cidade de Deus indicou alguns dados centrais na concepção dos personagens que interpretou: - Cidade de Deus: “Dadinho era revoltado, não devia ter família, daí foi tudo acumulando em raiva e a pessoa só pensa em ser bandido”. - Cidade dos Homens: “Acerola não tem dinheiro, mas sabe se virar, cabeça erguida, não dá chance ao tráfico”. Podemos afirmar que esses são os “personagens mais fortes da favela”. Um, mostra o lado do tráfico, aquele que, por diversos fatores, entre eles, falta de perspectivas, questão do respeito dentro do morro, etc. entra no tráfico, vira bandido. O outro, o caso do personagem de Cidade dos Homens, mostra que as pessoas na favela têm uma vida difícil, mas resistem às tentações de uma vida aparentemente mais fácil e preferem uma luta diária pela sobrevivência. A opção de Cidade dos homens em mostrar uma não transgressão dos protagonistas, é para dar ênfase à vida comunitária existente. As relações de amizade e familiares, aspectos culturais, questões cotidianas, etc. E a favela pode ser uma lição para a sociedade oficial de solidariedade e partilha comunitária. Os problemas que existem na comunidade, todos já sabiam. O que está sendo mostrado é a riqueza existente nesse universo. Em Palace II, Laranjinha e Acerola chegam a roubar e a trapacear, mesmo sendo pelo instinto de sobrevivência. Laranjinha entrega quentinha normalmente para os

1 - n. 1

social tematizado, as favelas cariocas do século XXI, em olhares obtidos através dos

ano

II, Cidade de Deus e Cidade os homens, se mostraram reveladoras de aspectos do contexto

Revista GEMI n IS |

pais. E se isso é importante, eles precisam descobrir.

196


bandidos, como se não fosse nada demais, enquanto que no seriado, eles nunca cogitaram essa possibilidade. No episódio Vacilo é um só, de Cidade dos homens, Laranjinha se

entre eles. No seriado, isso é notável desde o primeiro episódio, e como se tratam de expandiu o conceito de favela, de comunidade, de vida dentro desse ambiente.

Referências ABDALA JUNIOR, Benjamin. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Editora Scipione, 1995. BAZIN, André. O cinema – ensaios. Editora Brasiliense, 1985. BETTON, Gérard. Estética do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

perspectiva narrativa e relações de amizade •

quatro temporadas, a amizade vai evoluindo, e isso é bastante claro. Cidade dos homens

H omens:

Outro aspecto não muito definido no curta-metragem é a relação de amizade

dos

o “movimento”, por causa da namorada, mas opta finalmente por não se envolver.

Cidade

envolve com uma menina que se mete com o tráfico, ele até inicia alguma relação com

197

I nara

GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1995.

de

GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem cinematográfica. In: CANDIDO, Antonio. A personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1981. KHEL, Maria Rita. As asas quebradas. Mais! – suplemento da Folha de São Paulo. São Paulo, domingo, 26 de março de 2006. LEITE, Ligia Chiappini Morais. O foco narrativo. 4 ed. São Paulo: Ática, 1989. (Série Princípios; 4). GOMES, Lívia Godinho Nery; SILVA JÚNIOR, Nelson da. Semânticas da Amizade e suas implicações políticas – Familiarismo e alteridade nas classes populares. São Paulo, 2005. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998. PIGNATARI, Décio. Signagem da Televisão. São Paulo: Brasiliense, 1984. REZENDE, Cláudia Barcellos. Os significados da amizade: duas visões de pessoa e sociedade. Rio de Janeiro: FGV, 2002. ZALUAR, Alba. “Ensaio sobre a cegueira”. Mais! – suplemento da Folha de São Paulo. São Paulo, domingo, 26 de março de 2006.

A morim Rosas - Luiz A ntonio M ousinho M agalhães

BRITO, João Batista de. Imagens amadas. São Paulo: Ateliê editorial, 1997.


A presença autoral de Michel Gondry em Flight of the Conchords Rogério S ecomandi M estriner Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da UFSCar (Campus São Carlos) iniciado em 2009, E-mail: roger.mestriner@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 198 - 208


Resumo Este artigo pretende realizar uma análise do episódio Unnatural Love, o quinto episódio da segunda temporada de Flight of the Conchords, produzida pela HBO. Este episódio, dirigido por Michel Gondry, é um dos raros episódios dirigido por alguém de fora do principal núcleo criativo do programa Tal análise pretende ser confrontada à ideia de autoria em um seriado televisivo, examinando a contribuição de Gondry ao episódio e ao seriado como um todo. Palavras - chave: Michel Gondry; Flight of the Conchords; seriado televisivo.

A bstract This article intends to analyse the episode named Unnatural Love, the fifth episode from the second season of Flight of the Conchords, produced by HBO. This episode, which was directed by Michel Gondry, is one of the rare episodes directed by someone outside the show’s main creative core. This given analysis intends to be confronted to the idea of authorship in a tv series, examining Gondry’s contribution to the episode and the series as a whole. Keywords: Michel Gondry; Flight of the Conchords; TV series.


200

1 Apresentando o seriado

F

light of the Conchords é um seriado estadunidense sobre uma dupla de canto-

res neozelandeses, Bret e Jemaine, que busca uma carreira de sucesso em Nova York. Apesar do esforço constante de seu agente Murray, um homem extrema-

mente burocrático que leva em paralelo um emprego na embaixada neozelandesa, a dupla não consegue sair do ostracismo e muito frequentemente apela para subempregos humilhantes - como seguradores de placas e prostituição - para se manterem na cidade grande. Os números musicais aparecem em todos os episódios; são paródias e homenagens a músicas bastante conhecidas que servem tanto para externalizar os sentimentos da dupla, dois indivíduos com personalidade introspectiva , e também para mover a narrativa adiante. Os atores Jemaine Clement e Bret McKenzie, que interpretam versões ficciona-

lizadas de si mesmos no seriado, se conheceram na universidade e formaram uma dupla musical especializada em paródias e músicas bem-humoradas. Ganharam notoriedade ao realizar um programa humorístico na Rádio BBC de Londres, por meio do qual receberam o convite da HBO para adaptarem o programa para o formato televisivo. Várias músicas e situações antes apresentadas nesse programa de rádio foram levadas à televisão e a mesma estrutura episódica foi mantida. Os episódios são, em grande maioria, fechados, e apenas nos cinco primeiros da primeira temporada houve ganchos menores a serem resolvidos futuramente. Entretanto, a maior parte consiste de episódios fechados que se resolvem em si mesmos. Não há evolução dos arcos dramáticos dos personagens, que estão constantemente batalhando pelo reconhecimento musical e pela sobrevivência na metrópole. Apenas no último episódio do seriado há a resolução final dos conflitos: a dupla é deportada de volta à Nova Zelândia depois que a situação ilegal é denunciada por meio de um musical autobiográfico, e passam a ser pastores de ovelhas. Como essa estrutura episódica permite que espectadores casuais possam embarcar no seriado com poucos problemas de continuidade, o humor da série apoia-se


na recorrência de temas e situações, como o constante embate de culturas, no caso do seriado, entre a cultura americana e a neozelandesa. Outras questões também são ex-

bém há a aparição recorrente de personagens coadjuvantes cômicos como a insistente perseguidora Mel, única fã do grupo que os persegue com a ajuda do marido, e Murray, o burocrático e pouco eficiente agente musical que se dedica à dupla em detrimento do O núcleo da equipe criativa deste seriado é constituído por Jemaine Clement e Bret McKenzie; que além de interpretarem a si mesmos no seriado, atuam nas funções

logam diretamente com os seus trabalhos nos videoclipes, assim como a vida amorosa

2 Análise do episódio Unnatural Love

Conchords

atrapalhada da dupla se aproxima do universo do diretor.

of the

de Michel Gondry como diretor não é uma escolha inusitada; os números musicais dia-

Flight

como roteirista e produtor, além ser o diretor da maior parte dos episódios. A presença

em

de roteiristas, produtores e compositores musicais; e James Bobin, que também atua

M ichel Gondry

seu trabalho na embaixada neozelandesa.

presença autoral de

dupla com as mulheres, o apelo a subempregos quando em necessidade extrema. Tam-

A

ploradas como uma rixa bairrista entre Nova Zelândia e a Austrália, a falta de sorte da

201

mostra o preconceito bairrista de Bret e Murray quando Jemaine começa a sair com uma australiana. Determinada noite, Murray leva Bret e Jemaine a uma boate contra a vontade deles, para que conheçam a disco music. Uma vez lá dentro, acompanhados pelo colega Dave, eles reclamam que há muitos homens no local e que devem se espalhar para terem mais chances com as mulheres. Eles então começam a cantar a música Too Many Dicks On The Dancefloor, reclamando do excessivo número de homens no local. Em um momento delirante, Bret tem sua cabeça colocada em um alto falante, o globo de espelhos toma forma fálica e todos os homens começam a dançar em fila, liderados por Randy Jones, integrante do Village People, em uma participação especial. Ao final da música, Jemaine consegue atrair uma mulher e acorda ao lado dela. O quarto da garota é todo coberto por fotos e bandeiras australianas, para espanto de Jemaine, que tenta sair do apartamento sem chamar atenção e liga para Bret em busca de ajuda. Ele não consegue sair despercebido e acaba tendo que encarar a conquista da noite anterior. Ela se apresenta como Keitha, e apesar de pedir para que Jemaine fique mais, ele vai embora e segue direto para um médico se examinar, tendo Bret como companhia. Eles tentam descobrir se a garota passou alguma doença para ele, se tentou roubá-lo e se, de alguma forma, tirou sarro de Jemaine pela sua nacionalidade.

Rogério S ecomandi M estriner

O episódio dirigido por Michel Gondry é o quinto da segunda temporada, e


Em seguida, numa reunião do grupo com o agente musical Murray, Bret traz o assunto de volta à tona e Jemaine quase é expulso da dupla pela sua escapada amorosa. cobrir os antepassados da garota para saber quão australiana ela é. Apesar de Keitha ser totalmente australiana, isso não impede que eles tenham uma recaída e comecem a se ver com mais frequência.

a cantar Carol Brown do lado de fora do apartamento dela, uma canção sobre todas as ex-namoradas de Jemaine e a forma como elas terminaram com ele. Ele revisita seus relacionamentos prévios na esperança que sua relação com a namorada australiana seja mais duradoura. São projetadas na fachada branca do apartamento cenas de suas ex-namoradas e, em determinados momentos, um coral de ex-namoradas de Jemaine, que canta suas deficiências enquanto amante. Usando chroma-key, Jemaine e Bret são sobrepostos sobre a fachada do apartamento sem que a projeção corra sobre eles, que empunham um console de edição linear de VHS com cabo de guitarra. Assim, eles parecem controlar tanto os acordes da música quanto à fluidez das imagens projetadas, e Bret, quando em cena, distorce a imagem de Jemaine. Jemaine e Keitha decidem então fugir para Nova Jersey e se casar. Escondem-se, momentaneamente, na loja de penhores de Dave, que tenta entregar o paradeiro deles para Murray e Bret, sem sucesso. Combinam então de se encontrarem em determinado local após arrumarem a bagagem. Jemaine espera Keitha por horas, mas ela não aparece. Desiludido, ele volta para casa e descobre que todos os seus pertences foram roubados por Keitha e suas amigas, e Bret está colado na porta de entrada com fita adesiva. Jemaine fica desconsolado e pede um abraço para Bret, que reclama por não poder participar já que está imobilizado. Primeiramente, a influência de Michel Gondry não se faz sentir na estrutura geral do episódio, que não destoa do aspecto geral do seriado como um todo. Porém, as personagens em si são muito similares aos personagens que Gondry explora em sua carreira cinematográfica, e os momentos musicais permitem um diálogo direto com a experiência dele como diretor de videoclipes. Os personagens Jemaine e Bret, são dois indivíduos bastante reservados quanto às suas intimidades, que remetem a outros dois personagens ilustres da filmografia de Gondry: Joel Barish, interpretado por Jim Carrey em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, e Stéphane Miroux, interpretado por Gael Garcia Bernal em Sonhando Acordado. Em comum, todos os personagens têm vidas amorosas problemáticas e dificulda-

1 - n. 1

ção desse casal e, após discutirem porque Keitha está atraída por Jemaine, ele se põe

ano

Tanto os amigos de Jemaine quanto as amigas de Keitha se opõem a forma-

Revista GEMI n IS |

Jemaine volta ao apartamento de Keitha para reaver sua carteira esquecida e tenta des-

202


des em expor seus sentimentos, porém, seus conflitos internos são expostos de forma bastante imaginativa e diversificada no meio audiovisual; exposições essas que servem

Joel Barish é um rapaz que revira suas memórias em busca de um lugar seguro para guardar a última lembrança de Clementine, sua ex-namorada, num esforço arrependido por ter apelado a uma empresa que apagasse as memórias de seu último vista, e Gondry explora a riqueza do personagem ao expor seus sentimentos conflituosos de forma bastante criativa em diversas cenas de Brilho Eterno de Uma Mente Sem

o que demonstra sua incapacidade de confrontar cicatrizes psicológicas mais profuninúmeros desenhos feitos por Joel, desenhos estes que revelam seus sentimentos e demonstram de forma subjetiva a visão que ele tem sobre a namorada, Clementine.

Conchords

das do que aparentam. O universo interno do personagem também se exterioriza em

of the

po, poético, ainda que personificado como adulto, não consegue subjugar uma criança,

Flight

uma nova chance de enfrentar um valentão. Num momento cômico e, ao mesmo tem-

em

Lembranças, como o momento em que, revisitando uma memória de criança, ele tem

M ichel Gondry

relacionamento. Seu semblante sisudo e maneirismos reservados enganam a primeira

presença autoral de

cotidianos em cenários surreais e fantásticos.

A

aos propósitos do diretor de demonstrar sua criatividade para resolver sentimentos

203

reservado, dotado de uma riqueza interior que só transparece em seus sonhos, retratados na estética artesanal típica de Michel Gondry, com nuvens e espuma de algodão, papel celofane usado como água e animações feitas em stop-motion com objetos feitos de papelão. Também em Flight of The Conchords, esta exteriorização de sentimentos se dá nos números musicais ao decorrer de todo o seriado, e esses momentos musicais então são aproveitados por Gondry para expor tanto os personagens quanto sua bagagem profissional como diretor de videoclipes. A primeira música do episódio, Too Many Dicks on the Dancefloor, é apresentada de forma simplista, ainda que divertida, se comparada com os trabalhos anteriores do diretor. A música tem uma batida techno, bastante dançante, e a edição segue o ritmo agitado que se espera de um videoclipe dance, com cortes rápidos de planos e muitos homens dançando. Too Many Dicks on The Dancefloor versa sobre a grande quantidade de homens presentes no local e reclama da proximidade muito grande deles. Para se dar bem com as garotas, eles precisam abrir espaço e se afastar dos outros homens. Bret McKenzie tem sua cara colocada em um alto-falante pulsante conforme canta o refrão da música, e todos cantam voltados diretamente para a câmera. Apenas homens estão presentes em cena, e em certo momento eles se alinham em uma fila de

Rogério S ecomandi M estriner

De forma similar, no filme Sonhando Acordado, Stéphane é um rapaz também


conga liderada por Randy Jones, um dos integrantes do grupo Village People, importante grupo musical dos anos 70, que tinha inicialmente como público-alvo o núcleo gay. A mens no local, e reforça um subtexto homoerótico que permeia o seriado todo devido à amizade e ao companheirismo da dupla formada por Jemaine e Bret. Esse aspecto homoerótico aparece no quarto episódio da primeira temporada, chamado Yoko, no qual

tante o ciúme que os amigos sentem um do outro quando conseguem arrumar uma parceira, o que os leva constantemente a sabotarem a relação um do outro. Perto do final da canção, Jemaine, Bret e Dave têm seus genitais cobertos por um mini globo espelhado, iluminado por um foco de luz direto e logo o globo espelhado da boate toma a forma estilizada de um pênis e testículos. Jemaine então desliza até a única mulher da boate, que não tinha aparecido até esse momento, e começam a dançar juntos até o fim da música. Já a segunda canção do episódio, chamada Carol Brown, é abordada com maior requinte por Gondry, apesar de trabalhar um conceito técnico que ele já havia apresentado anteriormente no videoclipe Dead Leaves and the Dirty Ground, que dirigiu para The White Stripes, em 2002. Era sua segunda parceria com The White Stripes, dupla formada por Jack White e sua esposa Meg White, e o diretor utiliza apenas projeção para mostrar em flashback como um bando de baderneiros destrói a casa de Jack White e, consequentemente, seu relacionamento com Meg. Tal abordagem técnica faz com que o ambiente pareça contar o que aconteceu no local para Jack, durante sua ausência. Depois que Jack sai de casa, um bando de baderneiros invade o local e destrói tudo. No fim do videoclipe, Meg faz suas malas e também vai embora. Momentos carinhosos entre o casal antes da destruição também são relatados nas paredes. As imagens projetadas sobre o cenário e o personagem principal dão a ideia de sua passividade diante do fluxo das lembranças. Com esse recurso, Gondry mostra a enxurrada emocional que nos toma quando voltamos a um lugar onde algo importante aconteceu. No entanto, não é essa exatamente a ponte temática que acontece quando Gondry usa o mesmo recurso de projeção sobre uma fachada residencial para a música Carol Brown. Jemaine não tem nenhuma conexão direta com o ambiente sobre o qual são projetados os flashbacks de seus fins de relacionamento e o coral de ex-namoradas, exceto pelo fato dessa fachada ser a residência de sua namorada atual. Acrescentando ao distanciamento temático, o uso de chroma-key faz com que a projeção não caia sobre

1 - n. 1

Nesse mesmo episódio, e em vários outros incluindo o episódio aqui analisado, é cons-

ano

Bret se oferece a uma transa a três com o amigo de sua namorada, a fim de agradá-la.

Revista GEMI n IS |

participação de Randy Jones, portanto, ilustra de forma irônica a abundância de ho-

204


a dupla, destacando-os ainda mais do ambiente, ao contrário de que acontecia em Dead Leaves and the Dirty Ground, no qual Jack White era coberto pela projeção assim como

Outra abordagem interessante que Gondry emprega na apresentação de Carol Brown é a utilização explícita de um console de edição linear adaptado a um cabo de guitarra. A dupla usa esse aparelho como uma guitarra normal, e Jemaine também permite ter controle sobre os momentos de sua vida. Mais uma vez, conforme já apresentado em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, as memórias são apresentadas

ao universo da narrativa cyberpunk, reinterpretando as convenções desse subgênero da punk, tal referência fica limitada apenas ao universo do diretor e suas obras anteriores. O mesmo aparato console/guitarra é utilizado por Bret em seus momentos em cena

Conchords

ficção científica. Mas como o seriado em si não aborda questões do subgênero cyber-

of the

em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ao vincular esse trato com as memórias

Flight

gicamente ultrapassado. A mesma brincadeira temática, portanto, que Gondry realiza

em

como elemento palpável, cujo controle pode ser obtido por meio de um objeto tecnolo-

M ichel Gondry

utiliza o console para rebobinar e/ou acelerar as projeções ao fundo, um aparato que

presença autoral de

um espectador casual de seu passado pouco lisonjeiro com as mulheres.

A

todo o ambiente, sobrecarregando-se com as lembranças. Em Carol Brown, Jemaine é

205

durante os anos de 1980, como no videoclipe de Bwana, de Rita Lee, o que evidencia a preferência de Michel Gondry por efeitos low-tech e simples, em contraposição à onda de efeitos especiais ultramodernos e complexos que tomam conta do audiovisual industrial hegemônico. 3 A autoria em Flight of the Conchords A questão da autoria nos seriados televisivos tem sido bastante levantada entre estudiosos do ramo audiovisual. Diversos estudos ressaltam as peculiaridades da produção de um seriado, como fazem Gaby Allrath, Marion Gymnich e Carola Surkamp (2005) no texto introdutório Towards a Narratology of TV Series, no qual deixam claro que um seriado televisivo demanda o esforço de uma equipe criativa grande, o que dificulta o apontamento do verdadeiro autor de tal produto audiovisual: The question of authorship clearly distinguishes serialized TV narratives from narratives in the print media. While the latter are typically written by one author, TV series are generally written by several scriptwriters, co-authoring an episode or taking turns at writing episodes. Scriptwriters, moreover, share the creative responsibility with editors, sound directors, directors of photography, director(s), creator(s) and producer(s) […] The creator and the producer are the most

Rogério S ecomandi M estriner

para distorcer a imagem de Jemaine à moda das distorções eletrônicas muito usadas


seja uma afirmação um tanto reducionista, uma vez que o status da equipe de um programa será sempre diferente um do outro. Nos anos de 1960, Rod Sterling era reconhecido como o escritor do memorável The Twilight Zone, como destaca Lester H. Hunt: “[...] Rod Serling’s The Twilight Zone. It was very much a writer’s show. In his on-screen introduction to each episode, Serling always named the author of the episode, if it was someone other than himself, and always named the author of the original story if it was an adaptation” (HUNT, 2009, p. 5). Em outro texto, Joss Whedon é reconhecido como o autor de Buffy, The Vampire Slayer, tomando para si o papel de escritor e produtor executivo (DAVIES, 2005, p. 1). Em todo caso, o diretor de um episódio não tem a mesma importância que produtores e escritores em seriados televisivos, ao contrário do que acontece no cinema. A “Política dos Autores” foi bastante defendida por críticos e cineastas da nouvelle vague, como François Truffaut e Eric Rohmer, que reconheciam os diretores como os verdadeiros autores de um filme, sendo que o cargo do diretor estivesse diretamente envolvido em todas as áreas da produção a fim de dar uma unidade ao produto final, e não apenas um indivíduo contratado por determinado estúdio a fim de gerar um trabalho encomendado. Esse reconhecimento da figura do diretor não se estende à produção televisiva, uma vez que um seriado tem peculiaridades em sua produção geral que o diferencia de um filme. Enquanto na produção de um filme o diretor é essa figura que gerencia todas as áreas técnicas da produção com o objetivo de chegar a um trabalho final que imprima sua visão e sua mensagem pessoal. Já a produção de um episódio de seriado televisivo é apenas parte de um universo maior que será construído por meio de sua ligação com os outros episódios. Portanto, enquanto um filme encontra fim em si mesmo, um episódio televisivo só serve aos propósitos do criador original do seriado e à mensagem final que transparece pelo conjunto de episódios.

1 - n. 1

conhecidos como os responsáveis por manter o formato geral do programa, ainda que

ano

As autoras concordam que o criador do seriado e o produtor executivo são re-

206 Revista GEMI n IS |

influential figures among the various ‘authors’ of a series. As [Chris] Gregory […] points out, they are the ones ‘responsible for guiding and maintaining its overall “shape”’. […] As far as the average viewer is concerned, TV series even tend to be received as largely anonymous. Only the most dedicated fans of a particular show are likely to know who an episode was written or directed by and to draw any conclusions as to the episode’s content and/or structure from this information. […] In contrast to the scriptwriters, the creator or executive producer, who usually also writes at least some of the episodes himself/herself, may be known to a relatively large segment of the viewers. (ALLRATH; GYMNICH; SURKAMP, 2005, p. 6-7).


Michel Gondry chega ao episódio devidamente reconhecido como diretor de207

cinema e videoclipes, e sua participação enquanto diretor lança nova luz aos conceitos

e a obra anterior de cineasta são muito semelhantes e dialogam forte e intimamente. Dessa forma, a contribuição da direção de Michel Gondry a um seriado comandado principalmente pela dupla de atores principais; que também atuam como roteisua aura enquanto reconhecido diretor de cinema e videoclipes. Ao utilizar técnicas e visuais já consagrados por ele, Gondry faz com que sua assinatura, enquanto diretor e

suas obras prévias. Poucas são as vezes que as canções do seriado ganham tratamento

Conchords

técnico tão atencioso como esse apresentado à canção Carol Brown.

of the

na obra do diretor a esse programa e estabelecendo mais claramente um diálogo com as

Flight

de Gondry somando aos temas retratados no seriado, trazendo um público interessado

em

realizador, se sobressaia à voz dos produtores de Flight of The Conchords. É o star system

M ichel Gondry

ristas, produtores e músicos compositores; é justamente a sua bagagem profissional e

presença autoral de

da obra de Gondry, tanto que os laços temáticos detectados entre Flight of the Conchords

A

citados anteriormente. O público alvo do seriado é, indiscutivelmente, o mesmo público

ALLRATH, Gaby; GYMNICH, Marion; SURKAMP, Carola. Introduction: Towards a Narratology of TV Series. In: ALLRATH, Gaby; GYMNICH, Marion (Org.). Narrative Strategies in Television Series. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005. Disponível em: <http://www.palgraveconnect.com/pc/doifinder/10.1057/9780230501003>. Acesso em: 25 out. 2009. AMARAL, Adriana. Visões perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Sulina, 2006. DAVIES, Máire Messenger. Television: a creative industry? Who are the TV storytellers? MIT Papers, 2005. Disponível em: <http://web.mit.edu/comm-forum/mit4/papers/ davies.pdf>. Acesso em: 04 set. 2009. HUNT, Lester H. And Now, Rod Serling, Creator of The Twilight Zone: The Author as Auteur. Disponível em: < http://media.wiley.com/product_data/ excerpt/43/14051490/1405149043.pdf> Acesso em: 17 set. 2009. REZENDE, Marcelo. Ciência do sonho: a imaginação sem fim do diretor Michel Gondry. São Paulo: Alameda, 2005.

Rogério S ecomandi M estriner

Referências


Filmografia

208

BRILHO eterno de uma mente sem lembranças (Eternal sunshine of the spotless mind)

Revista GEMI n IS |

Direção: Michel Gondry. Produção: Anthony Bregman, Steve Golin. EUA: Anonymous Content, 2004. DVD (108 min). FLIGHT of the conchords (seriado). Episódio A NEW cup. Direção: James Bobin.

Gondry. Produção: Jemaine Clement, Bret McKenzie. EUA: HBO, 2009. (25 min). FLIGHT of the conchords (seriado). Episódio YOKO. Direção: Troy Miller. Produção: Jemaine Clement, Bret McKenzie, James Bobin. EUA: HBO, 2007. (25 min). SONHANDO acordado (La science des rêves) Direção: Michel Gondry. Produção: Georges Bermann. França, Reino Unido, Itália: Gaumont International, 2006. (105 min).

1 - n. 1

FLIGHT of the conchords (seriado). Episódio UNNATURAL Love. Direção: Michel

ano

Produção: Jemaine Clement, Bret McKenzie, James Bobin. EUA: HBO, 2009. (25 min).


A legorias do comportamento Pós-Atentados de 11 de Setembro de 2001, em Lost G lauco M adeira

de

Toledo

Professor Bolsista Didático do curso de Radialismo da UNESP, mestrando em Imagem e Som pela UFSCar, graduado também em Imagem e Som pela mesma (2000), onde lecionou como Professor Substituto da área de Edição e Montagem em 2003 e 2004. Professor de Comunicação Social (Jornalismo e Publicidade e Propaganda) do IMESB-VC e de Comunicação Digital da UNIP. Membro ativo do Grupo de Pesquisa EPA (Experimentação em Produção Audiovisual) da FAACUNESP e do GEMInIS (Grupo de Estudos Sobre Mídias Interativas em Imagem e Som), vinculado ao PPGIS-UFSCar. Diretor e Roteirista da produtora MZO Interativa e do projeto educacional transmídia Acessa Física. E-mail: glaucot@yahoo.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 209 - 222


Resumo Este texto pretende mostrar que o seriado Lost começa com um storyline que envolve uma alegoria das reações das pessoas aos atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA, por meio das reações dos personagens aos resultados do acidente na ilha. Para este trabalho, foram estudados os quatro primeiros episódios da primeira temporada da série, incluindo o episódio piloto como dois episódios distintos, seguidos por Tabula Rasa e Walkabout. Palavras - chave: Lost; Alegorias do Comportamento; 11 de Setembro de 2001.

A bstract This text shows that the Lost series begins with a storyline involving an allegory of people’s reactions to the attacks of September 11, 2001, in the U.S., through the characters’ reactions to the results of the accident on the island. For this paper, the first four episodes of the first season of the series were studied, taking the pilot as two distinct episodes, followed by the episodes Tabula Rasa and Walkabout. Keywords: Lost; Behavior Allegory; September 11, 2001.


Introdução

O

recorte escolhido para este trabalho foi o início da primeira temporada do seriado, momento em que a obra apresenta suas intenções ao público e suas alegorias. Xavier lembra que pode-se entender a alegoria, como “um tipo de

enunciação na qual alguém diz algo, mas quer dizer algo diferente [...] um significado oculto ou disfarçado, além do conteúdo aparente,” (2005, p. 345). Por volta da metade da primeira temporada de Lost, há uma modificação na maneira como os personagens são tratados e nas tramas e alegorias criadas até aquele momento. Parte disso decorre do fato de a série ter sido inicialmente proposta para um determinado número de episódios, e ter recebido posterior autorização para expandir-

-se para mais temporadas. Dessa forma, parece que as alegorias vão sendo alteradas no decorrer da série, talvez em resposta à realidade política dos EUA. No entanto, este estudo tenta mostrar que há embasamento para a hipótese de que Lost foi inicialmente concebido, em parte, como alegoria dos atentados às torres gêmeas, em NY, em 11 de setembro de 2001. Discurso em Lost a televisão surgiu como objeto de estudo em termos sociológicos, realizando um importante papel na transmissão de ideologias, definindo identidades, e influenciando comportamentos (Jason Mittell, 2006).

Produtos culturais são frutos de seu tempo, trazem entremeados discursos políticos e sociais do seu contexto histórico. Xavier (2005, p. 350) destaca que “a alegoria, em suas formas mais tradicionais, faz parte da produção rotineira da cultura de massa, particularmente dentro da tradição dos gêneros populares – os filmes de terror, a ficção científica, o melodrama, o faroeste, o filme noir, a comédia musical”. Assim, Além da Imaginação, na década de 1950, falava, por meio de alegorias e metáforas, sobre a Guerra Fria, fosse refletindo o discurso corrente ou discordando dele (CAPUZZO, 1990). Jor-


nada nas Estrelas ilustrava, na década seguinte, o medo dos desdobramentos militares dos conflitos Império Klingon – Federação (ou russos – norte-americanos, em época de Vietnã. Nos 80s, faziam pouco dos Borg e de sua consciência coletiva “comunista” em Jornada nas Estrelas: a nova geração. Nos anos 90, a série Arquivo X lidava com a ausência de definição do “inimigo”: com a ideia de que “a verdade está lá fora”, mas os militares

(LAVERY; HAGUE; CARTWRIGHT, 1996). Em 2001, os atentados ocorridos em 11 de setembro “inauguraram” outro discurso e outro inimigo. A guerra contra o terror gerou respostas em diversos filmes e seriados. 24 horas, por exemplo, retrata um dia na vida de um contra-terrorista. Lost estreou em 22 de setembro de 2004, 11 dias depois do terceiro an iversário dos atentados; um momento menos marcado, menos óbvio, mas, que permitiu refletir, no seriado, reações dos diversos grupos presentes nos EUA (representados no voo 815, que cai na ilha de Lost). A estreia foi muito interessante do ponto de vista comercial: Lost atingiu 18 milhões de espectadores nos Estados Unidos, 6 milhões na Inglaterra e se tornou um sucesso mundial. No Brasil, liderou o horário em todas as faixas etárias no canal pago AXN em 2005 (MARON, 2006, s/p)1.

O imenso sucesso inicial da série traz um indicativo de que houve identificação do público com os personagens (14 protagonistas, cada um bem diferente do outro, dividindo o tempo de tela e a “liderança” dos episódios). Todavia, o sucesso levou à ampliação de tempo de contrato entre os produtores e os exibidores, e algumas alegorias foram deixadas de lado, em função de uma trama mais extensa e menos fechada. A adesão, assumida às temáticas de ficção científica e ao sobrenatural, diminuem o impacto de certas cenas que se destacavam como alegorias por beirarem o absurdo, o que Xavier destaca como indício da intenção do uso de alegorias, em que [...] a superfície do texto fornece respostas pouco satisfatórias às perguntas do leitor ou permanece propositadamente enigmática, levando, assim, a um tipo de reconhecimento da opacidade da linguagem e exigindo a busca pelo significado oculto (2005, p. 350).

1 Cf.: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=369ASP011

1 - n. 1

nas (ou povos vindos de outros lugares) podem estar fazendo experimentos secretos,

ano

não a querem conhecida e pretendem impedir sua descoberta; enquanto isso, alieníge-

Revista GEMI n IS |

corrida espacial). Na década de 1970, séries como M.A.S.H. debochavam da Guerra do

212


Sobre os atentados

213

população a estes, o presente trabalho lida com informações de diversas fontes a respeipor comparação, que há uma relação deliberada. As fontes de dados mais significativas foram as páginas da CNN2 e The New York Times3.

de

11

Ao argumentar a favor da grandeza de Lost, vou considerar quatro normas estéticas para que o programa atinja sucesso - a unidade de propósito, fanatismo forense, complexidade narrativa e estética de surpresa, (Jason Mittell, 2006).

Pós-Atentados

Os episódios e suas analogias

do comportamento

to do que teria se passado naquele período. A proposta aqui é tão somente demonstrar,

A legorias

Para efeitos de comparação alegórica de Lost com os atentados e as reações da

de

não está no topo de qualidade do audiovisual contemporâneo, está próximo a ele. Além

seus muitos protagonistas, consegue gerar identificação em várias frentes distintas, o que reforça a adesão de públicos diversos às tramas.

de aparição nos episódios - conotam um tom um tanto áspero no que tange o comportamento de alguns personagens (preconceitos, omissão deliberada de informações, etc.), que, supostamente, alegorizam comportamentos da sociedade norte-americana, através do recurso da alegoria de estereótipo, em que “um grupo social encontra sua ‘ilustração’”, (XAVIER, 2005, p. 349). E de identificação porque, já que tais comportamentos estão sendo refletidos na televisão, o público pode sentir-se representado adequadamente no seriado. Disso, decorreria um problema: o tom ácido, somado ao tema já desconfortável, os atentados, poderia decretar uma desaprovação por parte da audiência ou mesmo um cancelamento prévio da série. Mascarar essas alegorias com um 2 Cf.: http://archives.cnn.com/2001/US/09/11/chronology.attack/ 3 Cf.: http://topics.nytimes.com/top/reference/timestopics/subjects/s/sept_11_2001/index.html

Toledo

cação. De crítica social, porque as alegorias a serem enumeradas abaixo - em sua ordem

de

O tema deste trabalho aproxima-se das questões de crítica social e de identifi-

G lauco M adeira

na identificação que os espectadores sentem com relação aos personagens. Lost, com

cidos via web. Mas, boa parte da atração que um seriado exerce sobre seu público está

Lost

veis transmidiáticas, ao ponto de dissecação dos episódios e elementos diversos forne-

em

original), em relação às discussões sobre o seriado televisivo e também em suas variá-

2001,

natismo forense” (em tradução livre do termo utilizado por Mittel, “forensic fandom” no

de

do notável sucesso comercial da série já desde o episódio piloto, há o despertar do “fa-

S etembro

Muitos teóricos de televisão e outras mídias da atualidade sugerem que Lost, se


cenário bastante fantasioso (sobrenatural e de ficção científica) parece ter garantido a identificação do público com os personagens estereotípicos da realidade pós-atentados

Referências alegóricas no episódio Piloto - parte 01

Há diversos feridos e mortos. Jack começa a retirar os soterrados e pede ajuda. Um dos personagens que atende prontamente é Locke. Não se sabe de imediato o que Locke representa, mas, aos poucos, é construída para ele uma imagem condizente com a de um veterano, um militar da reserva ou um entusiasta bélico. Em seguida, outras pessoas que continuam no local estão sob ameaça de desabamento das próprias peças do avião, embaixo das quais estavam “abrigados” (Figuras 1 e 2)4. São retirados de lá. Boone está tentando ajudar, mas não sabe o que fazer. É substituído pelo médico e parte para outro esforço inútil. Figura 1 - Sobreviventes tentam abrigar-se embaixo de peça do avião

Figura 2 - Risco de desabamento

Os sobreviventes esperam por um resgate, um salvamento decisivo e definitivo, que nunca virá, assim como aconteceu nas torres. Partes do avião explodem. Diversos escombros e peças que caem do céu por causa das explosões ameaçam a vida de quem está por perto. Há um cão farejador no local. Sayid faz parte do grupo de sobreviventes do desastre e acaba sofrendo preconceito e discriminação por ser iraquiano. Rose, uma senhora cujo marido está desaparecido, insiste que ele não morreu e recusa-se a perder as esperanças. Um pouco distante dali, Jack diz a Kate que ela não pode se deixar desesperar. Seu discurso relata 4. Todas as imagens deste trabalho foram capturadas digitalmente dos respectivos episódios e editadas em seu tamanho, mas não em conteúdo.

1 - n. 1

dente. Ao chegar ao local, ele vê que o caos e os escombros tomam conta de toda a área.

ano

O episódio inicia-se com o despertar do médico, Jack, distante do local do aci-

Revista GEMI n IS |

sem ferir os sentimentos dos enlutados.

214


sua própria reação contra o medo: “- e o terror, ele era tão... insano... tão real. E eu sabia que tinha que lidar com ele”, (Piloto, parte 01, 14 min). A escolha de termos de Jack é durante o governo Bush. começa a fazer as unhas, fingindo que nada aconteceu e que o desastre não a afeta. Todas essas reações têm espelhamento nas reações de pessoas comuns a desastres.

Pós-Atentados

Figura 3 - Shannon pinta as unhas dos pés na noite do desastre

do comportamento

Charlie começa a falar em destino. Shannon, uma jovem fútil e despreocupada,

A legorias

simbólica, no sentido claro de não se deixar dominar pelo terror, fraseologia comum

215

de

11 de

S etembro de

2001, em

Entre os sobreviventes está um policial. O único representante da autoridade

Lost

rar-se. Lamuria-se em seus momentos finais, incomodando a todos, que chegam a dizer

que prefeririam que ele morresse logo e parasse de reclamar. Uma provável alusão ao orgulho e autoridade, feridos das autoridades americanas. Os sobreviventes veem fumaça do outro lado da ilha, provavelmente por causa

Os rumores e indícios de que há um “monstro” à solta sobressaltam o grupo. Locke, como alegoria militar, é o primeiro a reagir. Todos olham para o desconhecido sem saber do que se trata. O paralelo entre esse “monstro”, sem forma e sem rosto - mas do qual se podem ver os resultados destrutivos - e as células terroristas parece bastante razoável. Em uma cena distante dali, vemos que o piloto do avião é morto pelo “monstro”. O avião tinha por destino o aeroporto de Los Angeles, assim como em um dos voos, que colidiram com as torres, cujo piloto teria sido dominado pelos terroristas.

Toledo

relação à outra.

de

do outro pedaço do avião, remetendo aos relatos dos sobreviventes de uma torre em

G lauco M adeira

dos EUA está mortalmente ferido devido ao desastre, não dá sinais de que irá recupe-


Referências alegóricas no episódio Piloto - parte 02

216

wyer, um texano qualquer que, enfurecidamente, clama por justiça e acusa Sayid, sem prova nenhuma, de ter sido o responsável pelo desastre. Mais tarde, Sayid conversa com Hurley, um americano pacato que simpatiza com Sayid, mas que, quando descobre que

oferece para obter outro cão e o garoto o faz entender que entes queridos são insubstituíveis. Locke prepara-se para jogar um jogo de tabuleiro, o que atrai Walt. Locke arregimenta o jovem para o jogo, que diz ser o mais antigo do mundo. Como tutor na atividade, ele começa explicando ao garoto: “Dois jogadores. Dois lados. Um é claro... o outro é sombrio”. Essa dicotomia pode parecer inocente quando se mostra as peças claras e escuras do gamão, mas o “dark side” tem outras conotações, e Locke parece interessado em dizer ao garoto que ele deve escolher um dos dois. O fato de Walt ter perdido um ente querido (na alegoria, o cão, que está vivo), que mais tarde será encontrado pelo próprio Locke, reforça a empatia dos dois. Figura 4 - Locke explica a Walt sobre o jogo.

Referências encontradas no episódio Tabula Rasa (centrado na personagem Kate) Um grupo descobre informações que podem indicar que há outras pessoas mortas na ilha (pelo terrorismo?), e que pode não haver salvação. Eles resolvem não compartilhar essa informação, porque “relatar o que ouvimos sem entender só vai causar pânico. Se contarmos o que sabemos acabaremos com as esperanças deles. E espe-

1 - n. 1

Walt é um garoto que, aparentemente, perdeu seu cão no acidente. O pai se

ano

ele é iraquiano e lutou na guerra do Golfo contra os EUA, sente-se confuso e dividido.

Revista GEMI n IS |

Há uma briga entre Sayid, o soldado iraquiano da Guarda Republicana, e Sa-


rança é uma coisa muito perigosa de se perder”, dizia, durante o episódio, o personagem Sayid.

qualquer custo, como Sawyer, e os que pretendem o bem da maioria. Entre Walt e Locke vai se fortalecendo uma relação de recrutamento. Michael

John Locke)

paralisado. O que quer que fosse que impedia sua liberdade de movimentos e ação antes do acidente, com o desastre, parou de impedi-lo. Invocando novamente a alegoria de Locke como militar, entusiasta bélico ou veterano, o que se obtém é claro. A tragédia lhe deu aval para ter novamente liberdade de ação.

Toledo

frimento e os pedidos de socorro e, repentinamente, (para seu espanto) não está mais

de

Em flashback, Locke desperta logo depois do desastre, abre os olhos, vê o so-

G lauco M adeira

Referências encontradas no episódio Walkabout (centrado no personagem

mágoas para trás e parar de viver no passado, contrapondo-se às ideias de vingança.

Lost

O otimismo reflete a necessidade de seguir em frente depois da tragédia, de deixar as

em

gunda chance: “três dias atrás, nós todos morremos. Nós todos deveríamos recomeçar”.

2001,

Longe dali, Jack argumenta que todos os que estão vivos receberam uma se-

de

à suposta conformidade dos que não pretendem ver seus filhos morrerem na guerra.

S etembro

áreas pobres e áreas de risco nos Estados Unidos. O poder da mudança é contraposto

de

se machucar e que parece confiante e seguro. A relação é similar a dos recrutados em

11

comparado a Locke, que empreende caçadas, que não fica tentando impedir o garoto de

de

se assusta com essa possibilidade, mas fica parecendo incapaz frente ao filho, quando

Pós-Atentados

Estabelece-se entre eles uma separação clara entre os que querem sobreviver a

do comportamento

“-Meu chapa, você tem que acordar e cair na real aqui. O resgate não virá. Só está perdendo o seu tempo (...). Não está enxergando as coisas direito. Ainda está na civilização. -É? E você, onde está? -Eu? Estou na selva.”

A legorias

Jack, que tenta salvar a todos, ouve de Sawyer, o americano belicoso:

217


218 Revista GEMI n IS |

Figura 5 - Locke percebe, após desastre, que não está paralisado

ano

1 - n. 1

Todos estão tão aterrorizados, que uma ameaça, relativamente, esperada (para a situação), como um javali, parece monstruosa. Quem identifica a ameaça é Locke. Como no mundo real, os crimes e outras ameaças não param de acontecer, mas não são todos eles atos terroristas e atentados. Todavia, não é qualquer pessoa que tem treinamento e condições para discernir no calor do momento a respeito disso. O muçulmano iraquiano preocupa-se com as almas dos mortos no desastre, enquanto o consenso geral entre americanos é dar a todos o fim e o funeral mais práticos. Sayid questiona a ideia de cremar todos os mortos na fuselagem do avião, o que seria muito lógico. Sua preocupação é com as diferentes crenças de cada passageiro. Para os muçulmanos, a cremação não é aceitável. Locke mostra seu arsenal (autorizado, aliás, como ele mesmo diz) e começa a recrutar para missões de sobrevivência. Em flashback, fora da ilha, vemos dias em que ele estava paralisado, e apenas exercitava seus dotes estratégicos na teoria, em jogos. Nessa cena, ele é chamado de coronel, embora jocosamente. Este trecho reforça a alegoria de Locke como militar, mas mantém uma distância entre a alegoria e a realidade. Em Lost, ele não é realmente militar; todavia, comporta-se como um. Estava paralisado antes do desastre e só guerreava em simulações, mas assim que a oportunidade se fez presente, ele já estava de posse de seu arsenal, pronto para entrar em ação. Os sobreviventes decidem criar um memorial para aqueles que não sobreviveram. Alguns ainda se negam ao luto, por ainda crerem que seus entes queridos estejam vivos. Em uma de suas missões, Locke empreende uma caçada mal sucedida e a vê-se que qualquer pequena derrota ameaça paralisá-lo novamente. Talvez a opinião pública, perante o insucesso de operações militares, fosse a única coisa que realmente pudesse


paralisá-las novamente. Distante do local do acidente, a colocação de uma antena que talvez pudesse Seria o ‘Terror’, atrapalhando as telecomunicações iraquianas? Em dado momento, Saa tais detalhes. O anseio de Locke por um confronto o leva a ficar face a face com o monstro. Ele parece encantado com o que vê, talvez fascinado. Não há combate. Por falta de coraLogo depois do funeral das vítimas do desastre, Jack vê seu finado pai, olhando para ele, à distância. Uma interpretação possível para isso, aqui considerado como alegoria, é de que, em espírito, ou nas lembranças dos sobreviventes, aqueles que mor-

Pós-Atentados

gem, talvez? Ou algum acordo ou estratégia militar?

do comportamento

wyer havia chamado Sayid de “Al Jazeera”, o que mostra que o seriado Lost estava atento

A legorias

permitir que Sayid fizesse contato com o resto da civilização, é impedida pelo monstro.

219

de

11

reram não deixariam de se fazer presentes.

de

S etembro

Figura 6 - Jack percebe a imagem de seu pai

de

2001, em

Lost •

de rodas, como a demonstrar que foi o desastre que o livrou dela. Figura 8 - A cadeira de rodas de Locke, agora abandonada em frente ao memorial

Toledo

cena final desse episódio é o olhar dele para a pira funerária, e ao lado dela, sua cadeira

de

De volta ao contato com os sobreviventes, Locke diz que não viu o monstro. A

G lauco M adeira

Figura 7 - Christian, pai de Jack, já falecido


Conclusão

te terrorismo e contra-terrorismo, desmoronamento de edifícios, e ameaças à autoridade nacional, os elementos pinçados dos quatro episódios iniciais permitem que se debata a pertinência dessa hipótese de alegoria do desastre de 11 de setembro de 2001,

alegórico estereotipado se comporta (o médico/salvador, o militar/entusiasta bélico, o caipira/preconceituoso, o iraquiano/muçulmano não terrorista, a criança/inexperiente) e o número alto de protagonistas, 14 no início, permite que o espectador crie identificação com as reações mais próximas das suas próprias. Uma espécie de Cauda Longa (ANDERSON, 2006) dos personagens de nicho. Ao invés de apostar em um ou alguns poucos protagonistas, dos quais a grande maioria do público poderia aprovar, Lost aposta em diversos estilos de personagens, dos mais aos menos prováveis, e permite que o público se identifique e decida elegê-lo protagonista por conta própria, de maneira similar à teoria de mercado enunciada por Anderson (2006). É comum que os espectadores de Lost tenham um ou dois personagens preferidos, com perfis muito variados. Parte das discussões que a série gera partem desse ponto, de como cada protagonista se comportou perante uma ameaça, uma angústia, enfim, de qual seria a conduta correta para o público. Inclusive, porque não há nenhum personagem “perfeito”, embora haja alguns mais e outros menos “desajustados” socialmente. O que há são diversos comportamentos representados em tela, com os quais se pode concordar ou discordar. Comercialmente, um personagem do qual se discorda tende a durar pouco. Shannon e Boone foram eliminados relativamente rápido do seriado. Comportamentos mais apoiados, como os de Jack ou Sawyer, permanecem até a sexta temporada. Do ponto de vista da crítica social, durante a primeira temporada não houve um antagonista declarado, um personagem malvado ou perverso. Todos brigaram e discutiram entre si muito mais do que se preocuparam efetivamente com o “monstro do terrorismo”, a distante ameaça que ninguém conhece realmente a não ser o personagem que alegoriza o militar, e que matou o piloto do avião que caiu na ilha. Se houve outras intervenções por parte de personagens distantes dos protagonistas, como aconteceu fora dos quatro episódios do escopo desse trabalho, foi para o bem dos próprios protagonistas, como quando a grávida Claire foi raptada. Se ela não fosse capturada,

1 - n. 1

As reações dos sobreviventes ao desastre, a maneira como cada personagem

ano

nos EUA.

Revista GEMI n IS |

Embora Lost não tenha uma roupagem propícia para discutir abertamen-

220


talvez ela e seu filho Aaron tivessem morrido antes do parto. Finalmente, como alegoria, Lost propõe um recomeço, como quando em Tabula pois todos ali ganharam uma segunda chance. E, como Locke passa a poder andar noWalt, e protegê-lo, após anos sem poder sequer ver o filho. Patterson diz que Lost nos mostra que, “quando os personagens encaram suas faltas cometidas no passado, fazendo as perguntas existenciais cruciais, se envolvendo encontrar a ‘redenção’” (PATTERSON, 2008, p.205). O discurso na ilha (e, em algum grau, da ilha) é de permitir-se uma vida nova, não marcada pela conduta e pelos preconceitos anteriores, mas de se deixar viver sem

de

S etembro

deixem ficar sozinhos, ilhados, perdidos.

11

sagem alegórica para os americanos sobreviventes de 11 de setembro, para que não se

de

mágoa e resolver seus problemas sentimentais o quanto antes, uma espécie de men-

Pós-Atentados

no esforço para a fé, e encontrando alguma experiência reveladora na ilha, eles podem

do comportamento

vamente, Claire não precisa dar seu filho para adoção e Michael precisa ficar junto de

A legorias

Rasa, Jack diz que todos eles morreram naquele acidente, e que não importa o passado,

221

de

2001,

Referências

em

Lost

2006.

CAPUZZO, Heitor. O Cinema Além da Imaginação. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1990.

And The Cultural Moment. Murfreesboro: Middle Tennessee State University, 1996. MARON, Alexandre. Já viu a cara deles? Observatório da Imprensa, 21 fev. 2006. Disponível

em:

<http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=36

9ASP011>. Acesso em 24 jan. 2010. MITTELL, Jason. Narrative Complexity in Contemporary American Television. The Velvet light trap, n. 58, Fall. Austin: University of Texas Press, 2006. PATTERSON, Brett Chandler. Mariposas e Homens. Caminhos e Redenção na Ilha da Segunda Chance. In: KAYE, Sharon M. LOST e a Filosofia. São Paulo: Madras, 2008. SEPT. 11, 2001. The New York Times. Disponível em: <http://topics.nytimes.com/top/ reference/timestopics/subjects/s/sept_11_2001/index.html>. Acesso em 24 jan. 2010.

Toledo

LAVERY, David; HAGUE, Angela; CARTWRIGHT, Marla. Generation X: The X-Files

de

COSTA, Wagner Veneziani. Lost e a Filosofia. São Paulo: Madras, 2008.

G lauco M adeira

ANDERSON, Chris. A Teoria da Cauda Longa. São Paulo: Campus (Grupo Elsevier),


SEPTEMBER 11: Chronology of terror. CNN, 12 set. 2001. Disponível em: <http:// archives.cnn.com/2001/US/09/11/chronology.attack/>. Acesso em 24 jan. 2010. do Cinema (Vol. I). São Paulo: Senac, 2004.

Arquivo X (The X Files, EUA/CAN, 1993-2002), de Chris Carter. Jornada nas Estrelas (Startrek EUA, 1966-1969) – Gene Roddenberry. Jornada nas Estrelas: a nova geração (Startrek: the Next Generation EUA, 1987-1994) – Gene Roddenberry. LOST (EUA, 2004-2010) – J.J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof. MASH (MASH, EUA, 1972-1983), 20th Century Fox Television.

1 - n. 1

Além da Imaginação (Twilight Zone, EUA, 1959 - 1964), de Rod Serling.

ano

Referências Audiovisuais

Revista GEMI n IS |

XAVIER, Ismail. A Alegoria Histórica. In: RAMOS, Fernão (org). Teoria Contemporânea

222


Realidade A mbígua: imersão em The Lost Experience D ario M esquita Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Imagem e Som da UFSCar. Membro do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som. Bolsista FAPESP. E-mail: dario.mirg@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 223 - 249


Resumo O estudo discurrerá sobre como o Alternate Reality Game (ARG) foi utilizado como uma extensão imersiva do universo de Lost através da campanha The Lost Experience (LTE). Assim, faremos um levantamento sobre alguns aspectos pertinentes do seriado. Então será realizado um estudo sobre a estrutura dos ARGs, partindo de seus principais preceitos que buscam mimetizar um mundo ficcional acoplado ao mundo real utilizando os meios de comunicação. Por seguinte analisaremos o LTE, que surgiu assumidamente como uma campanha com objetivos publicitários, com o propósito de enriquecer a experiência narrativa do público de Lost. Palavras - chave: Imersão; Jogos; Narrativa Seriada.

A bstract The study will talk about how the Alternate Reality Game (ARG) was used as an immersive extension of the world of Lost through the campaign The Lost Experience (LTE). So we do a survey of some relevant aspects of the show. Then we will study the structure of the ARGs, staring from its main precepts that seek to mimic a fictional world engaged in the real world using the media. Next we will analyze LTE, which emerged openly as a campaign for advertising purposes, and for the purpose to enrich the narrative experience of the public of Lost. Keywords: Immersion; Games; Serial narrative.


Introdução

O

trabalho a seguir irá tratar sobre como o Alternate Reality Game (ARG) foi empregado no seriado televisivo Lost como uma extensão narrativa e imersiva por meio da campanha The Lost Experience (LTE), em 2006. Utilizando-se dos

mais diversos recursos tecnológicos, por cinco meses, durante o período de 23 de maio a 26 de setembro, os fãs do seriado conviveram e interagiram com uma trama de misté-

rio ligada ao mundo ficcional do seriado televisivo, funcionando com um complemento narrativo entre as segunda e terceira temporadas. Assim, faremos um levantamento geral sobre alguns aspectos da série, e como tais elementos se estabelecem metaforicamente a um jogo, tornando-os pertinentes no emprego de um jogo de realidade alternada em seu universo. Desde sua estrutura narrativa complexa, envolta de quebra-cabeças aonde o público vem procurar uma lógica para o entendimento dos acontecimentos narrados, como num jogo de mistério, mas sem uma participação figurada dos jogadores. Até sua estrutura transmidiática, em que o seriado televisivo aparece como o núcleo de um universo narrativo que transita entre outras mídias como livros, games e internet. Surgindo dessa arquitetura, o ARG como um meio de imersão participativa em Lost. Logo em seguida será realizado um estudo sobre a estrutura dos Alternate Reality Games, assim como usa contextualização tecnológica e social. Partindo de seus preceitos estabelecidos, a fim de mimetizar de um mundo ficcional acoplado ao mundo real pela interface cotidiana dos meios de comunicação, que narra uma história fragmentada como um quebra-cabeça. Há diversas formas para essa construção lúdica, ela pode ocorrer na internet, por telefone, pela televisão, ou ser vivenciada num espaço público. Para dar conta dessa complexidade, este não é um jogo para um sujeito apenas, mas para toda uma comunidade colaborativa em busca de uma resolução da trama interativa. Por seguinte analisaremos os principais pontos em torno de The Lost Experience, que surgiu, assumidamente, como uma campanha com objetivos publicitários e com o


propósito de enriquecer a experiência narrativa do público com Lost. O jogo é oficialmente dividido em cinco atos transcorridos nos cinco meses de sua execução, porém, pegue o panorama geral de acontecimentos e suas implicações sobre o processo imersivo. Um detalhamento dos acontecimentos cronológicos de LTE estará no Anexo, como complemento do artigo.

lho sobre uso do ARG como uma ferramenta imersiva e participativa para a narrativa. 1 Realidade em jogo Pode ser dito que uma história pode funcionar como metáfora de um jogo, pensando, por exemplo, nos quebra-cabeças, mistérios existentes em algumas narrativas em que o público busca desvendar antes do desfecho da trama. Uma metáfora de um desafio lúdico para o espectador, pois este nunca entraria em interação direta com o universo narrado, como numa criação procedimental do conteúdo narrativo a exemplo dos vídeo games. Até um determinado ponto, essa ideia se estabelece especialmente se pensarmos narrativas mais tradicionais como filmes e livros. Nelas, tal recurso funciona mais como um elemento que tenciona um processo imersivo espectatorial, baseado nas expectativas futuras sobre a ação narrativa, no desejo humano de por ordem aos mistérios da realidade ficcional, elemento que apreendem a atenção do público. Pode-se afirmar que esse mesmo recurso metafórico é um dos principais elementos condutores de uma ficção seriada televisa tão complexa como Lost. Criada por J. J. Abrams e Damon Lindelof, a série começou a ser exibida em 2004 pela rede norte-americana ABC, e teve sua última temporada lançada em 2010, contabilizandos seis temporadas e 121 episódios no total. Em linhas gerais, na trama acompanhamos a vida dos sobreviventes do vôo 815 da Ocenanic Airlines numa misteriosa ilha. Ambiente que acaba não apenas por se tornar o cenário principal da trama, mas também uma personagem com seus mistérios que vão desde o âmbito tecnológico, com suas estações de pesquisas científicas da Iniciativa Dharma1; até a esfera mística, quando a ilha é encarada como um lugar com poderes ocultos, capazes de cura pessoas e promover acontecimentos inexplicáveis como viagens no tempo e fortes distúrbios eletromagnéticos. 1 D.H.A.R.M.A. - Department of Heuristics And Research on Material Applications (Departamento de Heurística e Pesquisas em Aplicações Materiais).

1 - n. 1

apontadas novas questões, retornando a outras levantadas durante o percurso do traba-

ano

Ao final serão feitas considerações finais a respeito do objeto de estudo. Serão

Revista GEMI n IS |

a pesquisa não se deterá nessa sistematização de eventos, partindo de um estudo que

226


Não há um protagonista principal que possa ser apontado entre os mais de quinze personagens regulares que compõem o elenco da série. Nem mesmo pode ser científica ao sobrenatural, perpassando a todo instante o mistério como a principal âncora que segura toda a trama. Num jogo em que as regras narrativas são remexidas expressamente pelos produtores, seja pela miscigenação de gêneros ou pela forma de público num trabalho cognitivo para montar o extenso quebra-cabeça que envolve as vidas dos personagens na ilha. narrativo, onde a cada etapa, novas peças são montadas e outras adicionadas. Em que novos cenários se tornam exploráveis: primeiro temos o litoral da ilha, depois a escotilha, então a aldeia dos Outros, e assim por diante. De tal modo, novas regras sur-

os flash sideaways da sexta e última temporada, que explora realidades alternativas para os personagens da série. Claro que tudo aqui descrito é um resumo breve que elenca algumas características de Lost, num intento de assim exemplificar como o seriado televisivo pode ser visto por um prisma onde a narrativa absorve a metáfora de um jogo. E tal visão pode se estender além dos domínios televisivos da série. Afinal, ela é apenas o núcleo de toda uma arquitetura midiática composta por blogs, videogame, livros, sites e vídeos de internet que trabalham em sinergia para sustentação de um universo alcance do público. Ou seja, Lost é um produto transmidiático, pois ele ocorre por meio de uma convergência midiática em que a narrativa é construída por diversas plataformas midiáticas, sem que elas sejam adaptações de histórias de uma mídia para a outra. Henry Jenkins (2007, s/p) explica: Transmedia storylleing representa um processo onde elementos integrantes de uma ficção se dispersam de forma sistêmica através de múltiplos canais de entrega com o propósito de criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada. Idealmente, cada mídia faz sua própria contribuição original para o desdobramento da história. Então, por exemplo, na franquia de Matrix, pedaços chaves de informação são transmitidos através de três filmes live action, uma série de curtas de animação, duas coleções de histórias em quadrinhos, e vários vídeogames. Não há uma única fonte ou texto onde alguém pode ter todas as informações necessárias para compreender o universo de Matrix. (JENKINS, 2007, s/p)

D ario M esquita

quarta, o entrecruzamento das manipulações temporais na quinta temporada, e enfim

gem: primeiro tínhamos os flashbacks até a terceira temporada, depois os fashforwards na

The Lost Experience

Ironicamente, cada temporada pode ser vista como uma fase do grande game

imersão em

manipulação do tempo (flashbacks, flashsforwards, etc.), a fim de manter o mistério e seu

Realidade A mbígua :

indicado qual o gênero matriz da série, que flutua do drama ao suspense, da ficção

227


Assim, a narrativa ganha um sentindo de espacialidade, com cada mídia sendo uma nova paisagem no universo de Lost. Nesse ambiente existem espaços um tanto como o livro Bad Twin tratando sobre os bastidores da Fundação Hanson. Enquanto isso, há outras mídias com ligações diretas com a série, como os mobisódios de Lost Missing Pieces, episódios complementares para celular que mostram situações não exi-

onde existem níveis de profundidade. O seriado televisivo Lost seria uma primeira camada, sucedida de outras diversas, que, à medida que o espectador avança sobre elas, mais é exigido de seu engajamento cognitivo para apreensão dos elementos em torno do universo da série. Esse maior engajamento através da exploração das diversas camadas narrativas acaba por configurar um processo nivelado de imersão narrativa, que não tem necessariamente um alcance a todo público, mas para àqueles que exploram a arquitetura do seriado. Assim, com uma experiência mais extensa e imersiva oferecida pela transmídia, uma parcela do público comum vai deixando sua posição habitual de espectador para se tornar o que Dinehart (apud SCOLARI, 2009) chama de viewer/user/player (VUP). Para essa nova platéia, não basta apenas presenciar a transmídia para entendê-la, mas participar dela cognitivamente para sua construção, afinal, ela não é um ambiente elaborado para a mera visualização, mas para a exploração e conexão de pontos nodais dentro de sua estrutura fragmentada/expandida. Tais características implicam numa estratégia para incentivar o agenciamento2 por parte do público, num modo de buscar pelo prazer da exploração e da solução cognitiva de sua estrutura narrativa a centelha de um processo de imersão ficcional. Envolvendo a atenção do espectador por um longo período, algo essencial quando se tratam de narrativas seriadas, que demandam uma ligação afetiva do público com o universo por um longo período, não apenas por sua arquitetura midiática, mas também pelas qualidades da sua trama e coerência. Meio as possibilidades de formatos disponíveis para exploração da transmídia, há uma que detém todas as características da série levantadas acima, pois nela são encontradas as potencialidades da narrativa casadas numa roupagem de jogo lúdico, em que a realidade ficcional se transmuta com o cotidiano do espectador para torná-lo parte do universo fantasioso: o ARG, ou Alternate Reality Game. Por meio de recursos das tecnologias digitais e móveis que narram uma histó2 Referente à agência, a “capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas” (MURRAY, 2003, p. 127).

1 - n. 1

A transmídia também pode ser visualizada como um conjunto de camadas,

ano

bidas na televisão, amarrando algumas pontas soltas.

Revista GEMI n IS |

distanciados do núcleo principal da trama, mas que dialogam com o todo da estrutura,

228


ria fragmentada por mensagens cifradas, aquilo que antes amarrava o mistério apenas como uma metáfora do jogo dentro do seriado, agora é trans-posto pelo ARG. Uma inintricado jogo narrativo interligado ao universo de Lost. Os ARGs surgiram no seriado em 2006, com o The Lost Experience, a fim de preencher o hiato existente entre a segunda e a terceira temporadas, para assim manter as mos episódios inéditos. Ao todo, a série apresentou mais três ARGs além do primeiro: FIND815 (2007), Dharma Iniciative Recruiting Project (2008) e Lost University (2009). sido o pioneiro, tendo destaque na grande mídia e junto ao público em geral, mas também por ser o mais bem resolvido narrativamente e logisticamente como ARG dentro da mitologia de Lost. Por ele conseguimos detalhes não esclarecidos na própria série

terativo para o universo de Lost, e um importante complemento narrativo explorável. Qualidades que não foram tão bem implicadas nas experiências seguintes, a exemplo de Lost University de 2009, que criou pela internet uma universidade fictícia oferecendo cursos relacionados ao seriado, tais como “FIS 101: Física Introdutória sobre Viagem Temporal” e “HIST 101: Escrita Antiga na Parede”. É por tais qualidades que Lost Experience é elencado neste trabalho uma ferramenta que não apenas embaralha a complexa realidade ficcional da série com a nossa, mas que também transforma por meios diversos uma parcela desse universo num jogo narrativo com fortes qualidades imersivas. Estendendo isso a um intricado equilíbrio de ambiguidades produzidas a fim de sustentar a crença na mimesis construída. Assim, é necessário ter um melhor entendimento sobre a natureza dos ARGs, sua estrutura e implicações por trás da tênue relação entre os fantoches (público) e os Puppetmasters3 (produtores), entre ficção e realidade. Compreensão na qual servirá de base para uma análise de Lost Experience, localizando-o dentro das engrenagens do transmídia da série como um novo meio lúdico social imersivo. 2 Ambiguidade Lúdica: This is Not a Game Não é novidade a forma como os meios de comunicação digitais transformaram o modo de produção, difusão e consumo dos produtos midiáticos. Como comenta 3 Termos utilizados pelas próprias comunidades de fãs de ARGs para definir os jogadores (fantoches) e os produtores do jogo (Puppetmasters – mestres dos fantoches) (MCGONIGAL, 2006).

D ario M esquita

O ARG não apenas serviu como marketing, mas também como um meio in-

sobre a Hanson Foundation, organização que fundou e financiou a Dharma Iniciative.

The Lost Experience

Mas de todos, The Lost Experience é o caso mais relevante, não apenas por ter

imersão em

expectativas do público (e patrocinadores) quanto ao universo do seriado até os próxi-

Realidade A mbígua :

terface que intermédia um formato lúdico no qual o publico se sujeita a desvendar um

229


Jenkins (2008, p. 43-44), enquanto que de um lado existem os conglomerados de entretenimento dominando o mercado, do outro “as novas tecnologias reduziram os custos de veis aos consumidores arquivar e comentar conteúdos, apropriar-se deles e colocá-los em circulação em novas e poderosas formas”. O que encontramos agora não se limita apenas a produtos midiáticos fechados

construção ficcional deve vir a instigar e realimentar o imaginário pop. Tomar o espectador a revisitar sua experiência ficcional atrás de novos significados e retrabalhá-la conjuntamente pela socialidade4 em rede. Seja pelo trabalho cognitivo da inteligência coletiva, ou pelo anarquismo estético da remixagem. Por trás desse fenômeno, a tecnologia digital e móvel, que também pode ser entendida como a computação pervasiva5, encontra-se mais difundida e estabelecida na sociedade contemporânea, atuando de forma integrada ao cotidiano no modo descentralizado de produção e compartilhamento em massa de conhecimento. Uma grande demanda de informação em meio a um cenário social intricado, multifacetado e descrente nos valores estabelecidos (família, igreja, escola, etc.). Uma sociedade contemporânea que foge das polaridades modernas para trilhar o caminho do meio, das formas híbridas em rede e complexas. Este é um cenário transpassado por diversos estímulos e ambiguidades, os quais exigem um maior número de decisões. E quanto “[...] maior é o número de considerações a serem levadas em conta ao se tomar essas decisões e quanto mais mal definidas e aparentemente controversas as contingências, mais complexo é o ambiente” (SCHOOLER apud JOHNSON, 2005, p. 118). Segundo Johnson (2005), a chave para o complexo entendimento desses problemas que demandam novas decisões a cada momento não estaria mais nas escolas, nem na sabedoria familiar. A solução estaria nas próprias mídias (narrativas audiovisuais seriadas, jogos, internet, etc.), pois, “todas essas forças, juntas, criam um ambiente propício a otimizar aptidões em resolução de problemas” (JOHNSON, 2005, p. 119). É nesse contexto que o ARG desponta como um novo formato midiático que 4 “A socialidade é, para M. Maffesoli, um conjunto de práticas quotidianas que escapam ao controle social (hedonismo, tribalismo, presenteísmo) e que constituem o substrato de toda vida em sociedade, não só da sociedade contemporânea, mas de toda forma social. [...] A sociealidade é, assim, a multiplicidade de experiências coletivas baseadas, não na homogeneização ou na institucionalização e racionalização da vida, mas no ambiente imaginário, passional, erótico e violento do dia a dia, do quotidiano dos homens sem qualidade (Musil)” (LEMOS, 2002, p. 88). 5 “[...]remete á idéia de ‘encaixar’ o computador no dia a dia do homem de modo que eles se tornem ‘invisíveis’” (ANDRADE, 2008, p.4).

1 - n. 1

to hipermidiático a serviço de um público participativo. Nesse ambiente interligado, a

ano

ou estritamente lineares, mas também um grande sistema interligado de entretenimen-

Revista GEMI n IS |

produção e distribuição, expandiram o raio de ação dos canais de distribuição disponí-

230


guarda em si as questões levantadas acima. Tecnicamente, um Alternate Reality Game é um jogo coletivo que tem como suporte diversas plataformas digitais do dia a dia dos que os participantes têm que trabalhar em comunidade para desvendarem as engrenagens de um enigma narrativo fragmentado, para então se ter a compreensão completa da trama. uma extensão do próprio mundo cotidiano, interligadas num processo interativo entre os participantes e os desafios levados pelos meios de comunicação. Tornando assim, com as redes de comunicação e o cotidiano de seus jogadores (MCGONIGAL, 2003). Estando on-line ou off-line, os participantes estão ativos para solução dos enigmas por semanas ou meses, utilizando-se de todas as ferramentas e conhecimentos

171) a respeito da criação de um jogo de realidade alternada: Crie um mundo autônomo na web, digamos, com mil páginas, e então conte ali uma história, avançando o enredo com atualizações semanais, ocultando cada nova parte da narrativa de tal modo que seja necessário um trabalho de equipe inteligente para descobri-la. Crie um vasto conjunto de recursos [...] e distribua-os através de uma rede (não rastreável) de websites, telefonemas, sistemas de faz, vazamentos, releases, anúncios falsos em jornais, e por aí fora, ad infinitum (STEWART apud JENKINS, 2008, p. 170-171).

Sendo mais objetivo, Ivan Askwith (et al., 2007, p.2) elenca as seguintes características comuns a quaisquer ARGs: - Histórias interativas que se desdobram através de plataformas midiáticas e espaços da vida real; - Oferecem uma experiência narrativa dispersa e interativa; - Os participantes precisam reconstruir elementos da narrativa fragmentada; - Recusam se reconhecerem como jogos; - Requerem que os participantes resolvam desafios difíceis ou puzzles para progredirem; - Encorajem ou exigem a formação de comunidades colaborativas de jogadores.

Assim, a partir desses preceitos cria-se um novo formato lúdico que foge de muitas das definições clássicas dos estudos de jogos. Em primeiro temos a imagem

D ario M esquita

nicacionais. Como comenta o puppetmaster Sean Stewart (apud JENKINS, 2008, p. 170-

possíveis. Afinal, o jogo convive e dialoga com sua realidade através das portas comu-

The Lost Experience

todo o processo lúdico numa situação imersiva baseada no uso conciso da narrativa

imersão em

Os jogos de realidade alternada tratam de histórias que se estabelecem tal como

Realidade A mbígua :

jogadores (GPS, telefonia móvel, internet, etc.) e espaços físicos reais. Uma atividade em

231


oculta de um mestre do jogo na figura dos Puppetmasters, uma equipe de produtores que trabalha com os desafios do jogo. Diferentemente de outros mestres, como os do que organiza e dá certa liberdade de decisões, mas alguém que fica por trás das cortinas puxando as cordas. Sobre essa particularidade dos ARGs, Jane McGonigal comenta:

ARG: obedeça aos puppetmasters ou esteja fora do jogo. Ao contrário de outras formas lúdicas em que as regras são preestabelecidas e conhecidas entre os jogadores, aqui elas podem ser alteradas a vontade pelos produtores. Elas variavelmente dependem da forma como os participantes do ARG respondem ao andamento dos enigmas, mas o poder final de decisão sobre as regras sempre decai sobre os puppetmasters. Porém, apesar de todo poder estar fora do alcance dos jogadores, eles nunca podem ser subestimados pelos produtores. Afinal, o que existe é uma corrida contra o tempo dos puppetmasters em sempre estarem à frente de seus fantoches, pois é essa a dinâmica de disputa que mantém o desafio interessante para ambas as partes. Pois, a intenção de um ARG não é apontar um vencedor entre os participantes, mas proporcionar o prazer da recompensa em solucionar os quebra cabeças de forma colaborativa. Por um ângulo, os produtores também são jogadores, e isso fica claro quando resgatamos o depoimento de Elan Lee (MCGONIGAL, 2003), que participou na elaboração dos quebra cabeças para o ARG The Beast, realizado em 2001 para promover o filme A.I. – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg. Nele, a produtora relata durante uma palestra sobre a eficácia da comunidade de jogadores (os Cloudmakers) em solucionar os desafios: O que aprendemos rapidamente foi que os Cloudmakers eram muito mais espertos que nós, e que realmente pegaram nos nossos pés... Aqui, eu irei mostrar isso. [Ele exibe o slide intitulado ‘Beast Beat 1’, um cronograma de puzzles.] Agora, há uma cor chave para os puzzles: difícil, fácil, não tão difícil, etc. [Aponta para as diferentes cores]. Estes eram os puzzles que levariam um dia, estes tomariam uma semana, e estes puzzles provavelmente nunca seriam solucionados até

1 - n. 1

Essa estrutura hierárquica de comando acaba por criar a regra máxima no

ano

Esta cortina, claro, é metafórica – um tipo de norma social, um acordo em que os dois lados irão manter uma distancia funcional um do outro durante todo o jogo ao vivo. Os designers concordam em não interferir com o jogo como uma figura ostensiva de autoridade uma vez que eles tenham entregado as instruções para as missões ao vivo. E por sua vez, os jogadores concordam em não revelar os designers secretos, ou contatá-los diretamente para qualquer conselho ou discussão fora do jogo, isto é, um meta-consenso sobre o gameplay. (MCGONIGAL, p. 4-5).

Revista GEMI n IS |

RPG, o Puppetmaster não é alguém presente que interage diretamente com os jogadores,

232


O caso de The Beast com os Cloudmakers em é um exemplo clássico sobre o poder que um ARG tem sobre os jogadores. Tudo começou sem avisos através de um Quando a referência era pesquisada na internet, ela levava a uma rede de sites ambiensentimentais da inteligência artificial. Sobre esse pano de fundo, havia o envolvimento de Jeanine Salla na morte de Evan Chan, um mistério que demandou quatro meses de dedicação dos 7.480 membros do Cloudmakers. Uma das estratégias por parte da equipe do ARG e do filme, foi não vender The

sequer tinha um nome oficial e sua existência não era confirmada pela produção do filme. A certa altura do jogo, embutido meio a um trailer de A.I. transmitido na televisão norte americana, surgiu o principal bordão dos ARGs: This is Not a Game. Sobre a frase, McGonigal comenta: Esta mensagem se tornou desde então o mantra para ambos os jogadores e desenvolvedores do entretenimento imersivo. Para o “TING”, um jogo agora significa negar explicitamente e ocultar obscuramente sua natureza como jogo, uma tarefa que tem se tornado cada vez mais difícil conforme surgem jogadores imersivos mais esclarecidos sobre as técnicas TING. (MCGONIGAL, 2003, p. 4).

The Beast não negou sua natureza ficcional – explícita por se passar no futuro, mas se recusou como um game - um artifício de entretenimento com regras e objetivos predefinidos, com um espaço próprio de acontecimentos. A quarta parede que intercala o processo imersivo já é o próprio cotidiano. Não há uma tela com gráficos 3D e sons realísticos. Os estímulos sensoriais são os mais naturais possíveis, sendo o psicológico dos jogadores a lacuna a ser preenchida para envolvê-los de tal forma a incorporarem o mundo ficcional. McGonigal (2003, p. 5) cita o seguinte depoimento da jogadora Andrea Phillips ao final de The Beast para mostrar como a imersão do ARG pôde afetar seus participantes:

D ario M esquita

de do público sobre as pistas deixadas em comerciais e websites. Por dois meses o jogo

Beast como campanha publicitária. Ele foi surgindo naturalmente a partir da curiosida-

The Lost Experience

tados em 2.142 que tratavam a respeito dos problemas técnicos, sociais, filosóficos e

imersão em

trailer do filme em que aparece o anúncio “Jeanine Salla - Sentient Machine Therapist”.

233 Realidade A mbígua :

nós darmos as respostas. Então, nós elaboramos um a programação de três meses em torno disso. E finalmente nós lançamos [Pausa]. Os Cloudmakers resolveram todos esses puzzles no primeiro dia. (MCGONIGAL, 2003, p. 2).


O envolvimento do grupo com a estrutura do ARG foi tanto que, segundo

fórum online convocando os membros a solucionarem os mistérios em torno do atentado terrorista. Os Cloudmakers passaram a discutir sobre como reconhecer padrões para uma solução colaborativa em identificar e localizar os terroristas responsáveis. Isto prosseguiu até as discussões levarem eles próprios a se questionarem sobre quais seriam os limites entre a vida real e o jogo. Até onde as habilidades do grupo poderiam ultrapassar a barreira do entretenimento para angariar uma função social. McGonigal (2003, p. 1) transcreve a seguinte declaração de um dos moderadores da comunidade a respeito do debate: “Os Cloudmakers eram um ‘detetive coletivo’ para um *jogo*. Lembrem disso”, avisou o moderador. “Era roteirizado. Haviam pistas escondidas que foram avaliadas por nós. Era *narrativo* [...] Cloudmakers solucionaram um história. Isto é a vida real”. Como é claro pelas declarações, uma das grandes atributos existentes nos jogos de realidade alternada é seu forte poder imersivo, o que é consequência do grande envolvimento cognitivo e emotivo dos jogadores com as qualidades do desafio empregado. Para melhor visualizarmos como o processo de imersão acontece nos ARGs, podemos recorrer aos estudos de Dominic Arsenault (2005) e seu modelo SSF, que classifica a imersão consequente da experiência nos videogames em três tipos: sensorial, sistêmica e ficcional6. Apesar de detalhes técnicos existentes na diferença das plataformas aplicadas, já que o modelo foi inicialmente pensado para jogos digitais e não um formato tão complexo como os de realidade alternada, a categorização é útil ao tratar de forma sistemática dos elementos imersivos dos ARGs, dando um entendimento coordenado dos meios empregados. E não se deve encarar que esses são fatores isolados e interdependentes, pois eles dialogam um com o outro para darem equilíbrio e forma completa ao processo de imersão. Explicando, a imersão sensorial tem seu foco nos estímulos sensoriais propor6 Tal categorização é uma releitura crítica de Arsenault (2005) do modelo SCI (Sensory, Challenge-based, and Imaginative), elaborado por Laura Ermi e Frans Mäyrä (2005), por discordar de certos pontos de argumentação e termos utilizados pelas autoras, em especial referente a imersão imaginativa.

1 - n. 1

rido do ataque as torres gêmeas em 11 de setembro, por exemplo, surgiram tópicos no

ano

McGonigal (2003), o olhar de jogador deles passou a contaminar seu cotidiano. No ocor-

234 Revista GEMI n IS |

Você encontra-se ao final do jogo como se estivesse acordando de um longo sono. Seu casamento ou relacionamento pode estar aos farrapos. Seu trabalho pode estar à beira do vazio, ou desapareceu completamente [...] nós estamos aqui ainda, cada um de nós animados por borrar as linhas entre a ficção e a realidade. O jogo promete se tornar não apenas entretenimento, mas nossas vidas. (MCGONIGAL, 2003, p. 5).


cionados pela experiência do jogo. É encarada como a camada mais superficial e exposta do processo de imersão. De certa forma, é onde se localiza a quarta parede que divide Nos ARGs, essa dimensão imersiva não surge como uma interface artificial e padronizada como nos vídeo games, ela aparece de forma mais orgânica e pessoal ao jogador, através da computação pervasiva e de personagens encarnados por atores. imediatos aos participantes. Na imersão sistêmica, o domínio sobre o sistema de regras do jogo é o ponto como o Tetris, com sua narrativa ausente e gráficos minimalistas, em que o trabalho cognitivo sobre o arranjo das peças cadentes é a porta de entrada para a imersão. Em jogos de realidade alternada, esse controle sobre as regras acontece de forma mais com-

principais forças que movem a imersão em cada enigma desvendado. Assim, a busca pelo controle das normas que regem os desafios para se descobrir novos detalhes da trama é a principal chave da imersão sistêmica nos ARGs. Além de que, a aceitação das regras impostas é o primeiro passo para ingresso no jogo e suspensão da descrença sobre o mundo elaborado. E por fim, a imersão ficcional, que foca o envolvimento através da história, com seus personagens e enigmas. É em função da narrativa que os outros elementos imersivos do ARG se articulam. Este é o fio condutor do processo de imersão, por onde ele toma forma no imaginário dos jogadores. Num mundo fantasioso conciso, constituído por uma realidade dúbia que flutua entre o real e o ficcional, expressa por sua interface, regras e histórias que buscam se integrar com o cotidiano. Quando esses fatores são devidamente combinados, a ambiguidade lúdica e imersiva implicadas nos ARGs é tão forte que, segundo McGonigal (2003), se chega num limite onde os participantes podem ver um jogo onde não há, ou em que o próprio jogo se torna integrante ativo no dia a dia dos jogadores, como visto no caso dos Cloudmakers. Como comenta Jenkins (2008), novos formatos de lúdicos como os jogos de realidade alternada são um meio de se exercitar a habilidade de trabalhar de forma colaborativa, de organização espontânea sem uma hierarquia de comando explícita. Seja em grupos pequenos ou em comunidades mais elaborados como os Cloudmakers. “[...] neste momento, alguns grupos de usuários pioneiros estão testando o terreno e delineando

D ario M esquita

Aqui, o prazer proporcionado pelo agenciamento (MURRAY, 2003) é uma das

plexa, o que exige uma atividade colaborativa para a superação desses obstáculos.

The Lost Experience

principal para o envolvimento do jogador. Isto é bem explícito em vídeo games simples

imersão em

Dessa forma, os estímulos sensoriais são adequados para se tornarem transparentes/

Realidade A mbígua :

e interliga fantasia e realidade, o limiar entre esses espaços de acontecimentos.

235


direções que muitos de nós tenderemos a seguir” (JENKINS, 2008, p. 313). Então, os ARGs não são apenas uma nova ferramenta narrativa ou publicitáonde milhares de sujeitos se encontram por comunidades online, articulando-se para quebrar enigmas, imersos psicologicamente num universo narrativo. É com tais conhecimentos sobre os jogos de realidade alternada que agora ire-

grande jogo imersivo. 3 The Lost Experience: This is Not a Fiction Ao contrário do que aconteceu com The Beast, The Lost Experience (TLE) teve um início pré-agendado e cronograma narrativo estabelecido em cinco atos por seus realizadores. O anúncio oficial ocorreu em abril de 2006, deixando bem claro ao público suas intenções com o empreendimento. A primeira era que o ARG funcionaria como uma campanha promocional da série, preenchendo o vácuo de cinco meses entre as segunda e terceira temporadas. A segunda pretensão seria a de oferecer aos fãs da série uma nova camada narrativa, num formato que fosse imersivo e se aprofundasse questões nunca levadas ao programa televisivo. Por último, os produtores tinham intenções de usar o jogo como um espaço publicitário criativo. Não seria apenas uma vitrine de marcas, mas uma forma elaborada de integrá-las organicamente ao universo de Lost. De cara, TLE fugia de uns dos preceitos básicos fundados pelos os ARGs, o de não se pronunciar publicamente como um jogo (game gameness) ou falar abertamente sobre sua natureza. Isso, por outro lado, pode ser visto como uma estratégia em não apenas fisgar o público já experiente nesse formato lúdico, mas também o televisivo, não habituado ao jogo de realidade alternada. Roteirizado pelos escritores Javier Grillo-Marxuach e Jordan Rosenberg, sobre a supervisão dos co-produtores executivos Damon Lindelof e Carlton Cuse, The Lost Experience teve seu ponto de partida no dia 03 de maio de 2006, com um comercial televisivo da Hanson Foundation (HF) que, ao final, convidava os telespectadores a entraram em contado por telefone com a empresa para saberem mais a respeito de seus projetos. Quando o telespectador discava o número fornecido, em certo momento a chamada era interceptada por um hacker autodenominado como Persephone, que fornecia uma senha que daria acesso a documentos confidencias da HF contendo provas sobre suas atividades criminosas.

1 - n. 1

assim perceber como esse formato midiático transformou a narrativa da série em um

ano

mos explorar o mundo criado em The Lost Experience para o universo da série. Para

Revista GEMI n IS |

ria, mas uma mídia imersiva e colaborativa. Um verdadeiro laboratório lúdico e social,

236


Simultaneamente ao comercial, foi lançado na internet o site da fundação (www. thehansofoundation.org) com informações básicas sobre pesquisas e espaço para inscrição na página eletrônica, daria acesso a áreas restritas do site, com pistas sobre atividades obscuras da HF. Durante todo mês de maio, a ABC passou a indicar outros sites durante as exiaos patrocinadores de LTE, que estariam ligados à HF de alguma forma. Quando bem exploradas, essas páginas eletrônicas forneciam mais senhas para o acesso de novas Monster.com e Verizon. A integração dessas marcas dentro da narrativa foi o momento mais delicado no ARG. Dessas experiências, a com a Sprite foi a que teve o resultado mais criticado

relacionado com a Hanso Foundation. Ao contrário da Jeep, que foi apresentada como uma empresa que manteve contrato de venda de veículos com a HF. Ou a Monster.com que serviu como plataforma online de procura de empregos para a fundação, apresentando carreiras incomuns como Diretor Administrativo de Raiva ou Terapeuta de Arte. Esses e outros detalhes que instigavam o público sobre a natureza das atividades da empresa e como isso poderia implicar no universo de Lost. Aqui, os fatores ficcionais e sistêmicos do jogo entram num delicado equilíbrio para sustentação da imersão. Pois, a inserção da propaganda precisa de uma solução convincente da narrativa aliada aos enigmas, para que a marca seja incorporada no tecido ficcional sem interferir na experiência do jogo, afinal, “os quebra-cabeças são mais satisfatórios quando as ações possuem uma correspondência com o drama, quando elas servem para aumentar nossa crença na solidez e na consistência do mundo ilusório” (MURRAY, 2003, p. 138). O resultado foi que a participação da Sprite serviu como um ponto negativo para a própria marca, enquanto que a Jeep teve um saldo positivo na sua participação. Como comenta Askwith (et al., 2007) sobre o uso da propaganda nos ARGs: “Não se foque na mensagem da marca dos patrocinadores, concentre-se sobre o que eles estão trazendo a história. Lembre que marcas podem promover imersão ao levar a sua campanha mais aspectos do mundo real.” (ASKWITH et al., 2007, p. 23). Não basta apenas empregar os enigmas aleatoriamente, é preciso justificá-los narrativamente, por em sintonia fatores imersivos sistêmicos e ficcionais.

D ario M esquita

quebra cabeça com imagens que apenas remetiam a cenas da série. Sem um gancho

pelo público. Afinal, a marca não se incorporava a trama, sendo tratada apenas em um

The Lost Experience

pistas sobre as conspirações da Fundação. As marcas veiculadas foram: Sprite, Jeep,

imersão em

bições de Lost. Esses eram endereços eletrônicos que conduziam a websites relacionados

Realidade A mbígua :

de e-mail no newsletter da instituição. A senha passada por Persephone, quando usada

237


Askwith (et al, 2007, p. 17) transcreve a seguinte declaração negativa de um fã em relação ao uso publicitário da Sprite em TLE:

deles foi Dj Dan, com seu podcast contra a HF, que seguiria até o final do jogo. Há também Rachel Blake, a verdadeira identidade de Persephone, que mantinha um blog sobre suas viagens pela Europa como fachada para um website de uso restrito com pistas para vídeos sobre as ações da Hanso Foundation. Outro personagem interessante foi o escritor Gary Troup com seu livro Bad Twin. Além de ter seu livro publicado de verdade, ele ainda esteve presente no primeiro episódio da série, logo após o acidente na ilha, até ser morto pela turbina do avião. Bad Twin é um romance de espionagem que trás ataques diretos a HF. Seu lançamento foi acompanhado pelo surgimento da página pessoal de Gary Troup, mais uma campanha publicitária com entrevistas em vídeo realizadas anos antes de sua morte. Nessas entrevistas, além de tratarem sobre usa obra, o escritor também fala sobre a manobra da Hanson Foundation em ocultar a Equação Valenzetti, que calcularia quando o fim da raça humana aconteceria. Em resposta as acusações, a HF veio a público se defender por nota oficial publicada em jornais norte-americanos e difundida pela televisão através de seu porta-voz Hugh McIntyre, que em entrevista ao programa Jimmy Kimmel da ABC, aproveitando para também criticar os produtores de Lost por se apropriarem indevidamente do nome da HF numa história fantasiosa. É perceptível nas descrições dos fatos acima, um uso elaborado de recursos ficcionais e sensoriais dos meios de comunicação para a elaboração de um contexto próprio do jogo, em que sua espacialidade vai além dos limites de Lost. Temos personagens que aparentam agir de forma autônoma, indiferentes a natureza fantasiosa de suas motivações e seus universos de origem. Eles são extensões físicas que se manifestam tal como pessoas comuns em seus devidos papéis: a hacker

1 - n. 1

sonagens importantes para a trama que vieram a trazer mais veracidade ao jogo. Um

ano

Apesar de certas falhas, há outras qualidades que LTE obteve com outros per-

Revista GEMI n IS |

Nós estamos investigando o desaparecimento de um dos mais poderosos líderes corporativos do mundo (dentre outras coisas), e não podemos ter personagens nos referenciando para coisas como propagandas da Sprite. Seria como atender um telefonema do próprio Alvar Hanson que prossegue atuando dentro de seu personagem durante a ligação, até que quando termina a ligação ele diz: “Não esqueça de assistir a Lost na ABC enquanto saboreia um copo gelado de Sprite!” Isto não é ATUAÇÃO DE PERSONAGEM, isto não é imersivo. Isto toma aquele sentimento épico. (ASKWITH et al, 2007, p. 17).

238


age e se comunica pela internet, o outro personagem que se utiliza de seu podcast para interagir com os jogadores, ambos utilizando-se de ferramentas comunicativas inforgrande mídia; já o escritor cria um site e concede entrevistas para divulgar seu livro; todos condizentes com suas atuações dentro da trama. Cria-se dessa forma consistência verídica para o ARG. a esses sujeitos, e os recursos sensoriais dariam forma e proximidade deles com o público, dando o toque de ambigüidade para a trama. Já que o ARG começou assumidauniverso de Lost em sintonia com o nosso. A ponto de personagens virem a público assumindo-se como verídicos. Não era mais uma questão de usar os meios de comunicação para interagir com os participantes, mas o fato de mimetizar uma realidade que

a realidade dos jogadores, para assim a extensão narrativa ocultar a quarta parede que antes dividia naturalmente a série televisiva de seu público. Essa ambigüidade acaba por transitar no limiar de certos preceitos narrativos sobre como manter o envolvimento do público com sua trama, como comenta Murray (2003, p.103): Para sustentar tão poderoso transe imersivo, [...] temos de fazer algo inerentemente paradoxal: precisamos manter o mundo virtual “real” fazendo com que ele permaneça “fora dali”. Precisamos mantê-lo em perfeito equilíbrio no limiar do encantamento, sem deixar que ele desmorone [...] (Murray (2003, p.103).

Um dos momentos mais explícitos dessa delicada ambigüidade ocorreu durante o painel de Lost no San Diego ComicCon, em 22 de julho, quando Rachel Blake tomou o microfone para atacar diretamente os produtores-executivos e elenco do seriado presentes por estarem trabalhando junto com a Hanson Foundation. Seguranças tiveram que retirá-la do auditório enquanto convoca os fãs presentes a expor as atividades ilícitas da organização. Nada mais patente que a própria presença física, ou mais forte que a atuação frente seus próprios criadores. Rachel Blake rompeu a quarta parede midiática do mundo de Lost. A mera presença dessa personagem estreita qualquer fronteira entre fantasia e realidade para os presentes naquele plateia. Enquanto muitos jogos tentam criar seus próprios estímulos para isolar o jogador do mundo real a fim de conceber uma experiência imersiva, um ARG como o TLE,

D ario M esquita

A complexidade existente no seriado teria que ter um diálogo contextual com

fosse orgânica e autônoma o suficiente para se passar como real.

The Lost Experience

mente como um grande game promocional, seu forte se centraria no uso criativo do

imersão em

Assim, a narrativa dá conta de justificar os meios utilizados para fundar vida

Realidade A mbígua :

mais para serem mais próximos do público; já a fundação faz o uso de notas oficiais na

239


utiliza-se da realidade isso. O que muitos consideram como prejudicial à imersão, tal como Oliver Grau (2007), aqui é o grande ponto de virada para o envolvimento para o Durante o ocorrido na ComicCon foi revelado o endereço hansoexposed.com, e com ele um novo quebra-cabeça com hieróglifos espalhados pela internet e em lugares físicos. Cada hieróglifo encontrado em websites, revistas ou espaços físicos, servia para

rações esclarecedoras sobre o universo de Lost. Durante a apresentação ele fala sobre a importância da Iniciativa Dharma na Ilha e seus objetivos de salvar o mundo alterando alguns fatores da equação Valenzetti (4 8 15 16 23 42). Logo após essa introdução surge no vídeo o segundo em comando na HF, Dr. Thomas Mittlewerk, falando para uma plateia de cientistas sobre o fim da Dharma e fazendo críticas aos resultados inexpressivos da iniciativa. O que faz com que a Fundação tome atitudes extremas em criar um vírus letal capaz de exterminar 30% da população global, e assim alterar alguma das variantes da equação. A gravação termina abruptamente quando Rachel Blake é descoberta filmando a reunião. Nesse instante o jogo enfim cumpre uma de suas principais contribuições com o universo de Lost. Com a explicação em torno do mistério da famosa seqüência de números apresentadas no seriado e sobre as intenções da Iniciativa Dharma na ilha, o ARG oferece uma grande recompensa aos jogadores por esclarecer algumas das questões chave da série. Os participantes não têm apenas que se sentirem no universo de Lost, por estarem dialogando com ele pelo jogo, mas também se sentirem recompensados em pequenas doses no decorrer da experiência lúdica. Levados a visualizarem as consequências de seus atos como agentes desse mundo fantasioso, algo que fica aparente nos últimos momentos de TLE. Posterior a essas revelações do vídeo, surgem à venda nos Estados Unidos e Inglaterra as barras de chocolate Apollo, um produto presente no próprio seriado e produzido pela Apollo Candy Company, que o fornecia às empresas de Alvar Hanson. Na embalagem do chocolate vinha impresso o endereço WhereIsAlvar.com, onde Rachel Blake informava aos jogadores que 78 das 1064 barras distribuídas vinham com uma embalagem dourada especial (golden oracle), e quem as encontrasse deveria mandar sua foto com ela para ser posta no website. As imagens enviadas seriam usadas para montar um mosaico formando a palavra UNITE. Quando todos os códigos contidos nos chocolates fossem postos na página eletrônica, significaria que a luta contra a HF já teria obtido atenção suficiente do mundo, e que assim Blake faria a última revelação.

1 - n. 1

orientação apresentado pelo próprio fundador da Fundação, Alvar Hanson, com decla-

ano

juntar as peças de uma gravação realizada no Sri Lanka, iniciada com um vídeo de

Revista GEMI n IS |

receptor dos estímulos.

240


Aqui se destaca o modo de resolução do desafio proposto, que serve como uma vitrine para os próprios participantes do ARG. Uma estratégia em mostrar para o púPorém, aqui se apresenta claramente um empecilho a experiência de uma parcela dos jogadores. Um problema puxado principalmente por questões geográficas, já que a ação não teve um alcance global, não atingindo de forma proporcional o público fora dos momentos. Nesse momento a imersão coletiva é cortada por uma falha no alcance de suas regras a todos os participantes. cia, referente especialmente ao período de exibição do seriado em diferentes épocas nos mais diversos países. Qualquer um fora dos Estados Unidos tinha um acompanhamento diferenciado de quem assistia diretamente a ABC, que trazia em sua programação

não é solução perfeita, pois não há um devido alcance a todos os jogadores globais. Eis um dos grandes empecilhos de um ARG derivado de uma narrativa seriada de grande alcance geográfico como Lost: sua progressão em sincronia com a série, de forma igual para todo seu publico internacional. Apesar de tudo, em 24 de setembro de 2006 acontece o último ato de The Lost Experience. Depois de todas das barras douradas serem encontradas, Blake reaparece durante uma ligação ao vivo para o programa de Dj Dan. No momento ela informa que esteve escondida por 12 dias após a incidente da gravação de Sri Lanka, e que finalmente encontrou Alvar Hanson, mantido em cativeiro pelo Dr. Mittlewerk. Hanson acaba por se revelar seu pai e se compromete a ajudá-la a denunciar publicamente as ações ilegais de seu inimigo. Mais adiante no mesmo programa, ocorre uma ligação anônima informando que autoridades do governo foram mortas numa armadilha durante ação para prender o Dr. Mittlewerk em um edifício. Num último pronunciamento gravado antes de explodir o prédio com as autoridades, o pesquisador fala que não permitirá que seus estudos sejam comprometidos. No dia seguinte ao incidente, Alvar Hanson posta no website da Fundação uma carta aberta pedindo desculpas pelos fatos desastrosos que envolveram sua organização, e se compromete a continuar seu trabalho em prol de um mundo melhor para o homem. Em meio ao texto, um link em “humanidade” leva a um pequeno vídeo onde Dr. Mittlewerk promete seguir com suas intenções a qualquer custo.

D ario M esquita

televisivas estrangeiras que retransmitiam o seriado, ou pela internet. Mas ainda assim

as pistas para o jogo. Essa diferença era amenizada através de acordos entre as redes

The Lost Experience

Mesmo isso já traz outro problema fora do jogo que interfere na sua experiên-

imersão em

Estados Unidos e da Inglaterra, que ficou oficialmente fora do jogo nos seus últimos

Realidade A mbígua :

blico o poder da ação colaborativo em TLE sob o comando de uma das personagens.

241


Isso claramente se mostrava como um gancho para uma futura continuação de Lost Experience. Mas tal continuidade nunca ocorreu, nem os personagens apresentados produto auto-contido que faz parte do universo do seriado, mas não chega a ter uma influência direta sobre o núcleo televisivo da transmídia, no máximo dialoga com ele. De certa forma, tal característica acaba contribuindo para um processo de imer-

em outras mídias fora dele, o que poderia exacerbar sem sucesso a complexidade dos desafios, que deveriam atingir tanto os fãs do seriado e de jogos de realidade alternada, assim como o grande público, já que LTE era também uma campanha promocional de Lost. Considerações finais Muitos dos fãs de Lost devem ver o seriado como um enorme tabuleiro de peças dispersas. Claro que tudo caminha numa perspectiva metafórica, por restar ao público acompanhar a trama por seus televisores e então formular teorias que poderiam esclarecer muitas das pontas soltas que envolvem os personagens e a Ilha. Mas o seriado é apenas o núcleo de todo um universo interconectado por um ecossistema de mídias que expandem sua narrativa. Um produto transmidiático onde em alguma aresta de sua arquitetura ficcional conceitos narrativos se chocam os lúdicos, dobrando a metáfora por trás dos enigmas num elaborado jogo imersivo que se utiliza das mídias digitais para se difundir meio ao cotidiano dos jogadores. Os Alternate Reality Games de Lost seriam essa linha fronteiriça entre o público e a ficção, localizado na borda mais extrema da transmídia, permitindo um fluxo contextual entre realidade e fantasia. Não é um jogo que busca seu vencedor, mas uma ação colaborativa para quebrar enigmas. Realizado por meio de uma realidade que já tem estímulos sensoriais reais adicionados de uma construção ficcional e um sistema de regras, oculto por trás de uma cortina consensual que divide os jogadores dos mentores do ARG. Como principal exemplo desse recurso midiático no seriado, temos a primeira iniciativa com The Lost Experiencie (TLE), que não veio apenas como um recurso promocional usado entre as segunda e terceira temporadas, mas também para trazer novos detalhes interligados ao universo de Lost. Numa construção que brinca com a realidade, e que por entre seus quebra-cabeças para dá acesso a mais camadas da trama. Claro

1 - n. 1

tes puderam se ater melhor aos acontecimentos do ARG, sem dispersar sua atenção

ano

são do jogo mais contido num mundo já conturbado de Lost. Nesse caso, os participan-

Revista GEMI n IS |

durante a aventura foram retomados ao universo do seriado. O que torna o ARG em um

242


que nem tudo é tão estável nessa mímesis, como o próprio caso de TLE pode provar com sua experiência em servir como um espaço publicitário criativo, esbarrando em ARG que deve se adequar ao mundo, mas a realidade também deve estar em equilíbrio com a ficção. Dentre essas questões também podemos esbarrar naquela que trata qual seria o pagandas e reportagens distribuídas como verídicas. Ou num outro ponto, o de como o ARG pode ter um alcance global, tendo consciência que a série é exibida em diversos abrangência necessária para o público – como aconteceu com a campanha do chocolate Apollo. Entretanto, ficou evidente no decorrer do presente trabalho como os jogos de

que um ARG se gerir dentro de uma obra televisa sustentada por enigmas e regada pela complexidade, qualidades que solicitam um público participativo na junção dessas peças sobre um amplo tabuleiro modular, em que diversas mídias corroboram para sua construção.

D ario M esquita

cipa deles, como para o universo ficcional o qual está ligado. E nada mais conveniente

realidade alternada podem transformar a experiência narrativa tanto para quem parti-

The Lost Experience

países em períodos díspares e que nem todas as ações em espaços públicos podem ter a

imersão em

limite dessa ambigüidade. Até que ponto a fantasia pode passar despercebida por pro-

Realidade A mbígua :

críticas de fãs por quebrar o processo imersivo. Ficando a questão que não é apenas o

243


Anexo

244

May 3 The game begins with www.thehansofoundation.org (thf.org) website being

Revista GEMI n IS |

updated and the airing of a fictional television ad. Visitors attempting to sign up for the

ano

e-mail newsletter receive a transmission from Persephone instead.

1 - n. 1

The Lost Experience Timeline (ASKWITH et al., 2007, p. 25-30) ACT 1: Persephone, The Hanso Foundation & Bad Twin

May 4 Parts 1, 2, and 3 of the Gary Troup interview are released on the Barnes & Noble, Borders and Amazon.com websites respectively. May 5 A press release is issued by Hugh McIntyre, a fictional employee of the Hanso Foundation (HF). The release includes a hidden link to persephone.thehansofoundation. org where the second clue was found. May 7 The message on persephone.thehansofoundation.org is updated. May 8 A message from Persephone appears in the executive biography of Alvar Hanso, CEO and founder of the HF, revealing that Hanso has not been seen in public since 2002. May 9 The HF places a newspaper advert in real world newspapers: “Don’t Believe Bad Twin.” A hidden link on thf.org and a new television ad both direct viewers to Sprite’s sponsored site, www.sublymonal.com, where visitors can find a code. Entering the code at thf.org unlocks a message where Persephone questions the falsified education credentials of HF Director Dr. Thomas Mittlewerk. The message also includes concealed information about Gary Troup, the author of Bad Twin. May 10 Persephone’s Sublymonal clue is changed; the Gary Troup message is no longer available. A note from Bad Twin’s publisher is placed on hyperionbooks.com and Gary Troup’s website, rebutting the HF’s attacks on the content of Bad Twin. May 12 A new press release is issued on thf.org about Bad Twin, linking to the May 10 newspaper ad. A “hidden letter” from Hugh McIntyre to Robert Miller, real-life President of Hyperion Books, demands that Hyperion cease selling Bad Twin. Hugh McIntyre and Persephone both begin responding to selected player e-mails, briefly. May 16 A link found in the source code of thf.org to www.djdan.am leads users to the first DJ Dan podcast, which claims that Hanso is in cryogenic freeze. persephone. thehansofoundation.org is updated with a new numerical code, which is decoded to the message “stand by”. Part 4 of the Gary Troup interview is posted on Amazon.com. May 17 Hugh McIntyre’s picture is removed from the Executive Bio page on thf. org. A password entry field for press releases also appears on the same page. One


of the active project pages directs viewers to a link to Jeep’s sponsored page, www. letyourcompassguideyou.com. Parts 5 and 6 of the Gary Troup interview are found at May 18 persephone.thehansofoundation.org is changed to a new number set. May 19 Flashing letters are superimposed on Peter Thompson’s Executive Bio, providing visitors with another password to unlock secret content. the audio feed is occasionally replaced by a female voiceover which described events from the second season of Lost. during Lost’s US season finale. Hugh McIntyre of the HF appears as a guest on ABC’s Jimmy Kimmel Live talk show, answering questions about the HF, and insisting that the writers of Lost have included fictitious details about the group in the show’s mythology.

unlocks DJ Dan’s second podcast, which talks about the development of “electromagnetic super weapons.” May 30 Additional information is posted on thf.org about several HF projects, including the Mathematical Forecasting Initiative. June 1 Clicking on the 108 degree mark at letyourcompassguideyou.com unlocks the third DJ Dan podcast. Persephone hacks thf.org to include news of the HF’s participation in illegal organ harvesting. June 6 An advertisement is aired during Boston Legal directing viewers to the Verizonsponsored RetrieversofTruth.com. Entering the password “Steinbeck” into a field provided for joining a newsletter changes the information provided on the site and unlocks a forum. June 8 DJ Dan’s fourth podcast is discovered on Monster.com, and claims that the HF is involved in genetic engineering experiments. June 12 Players who complete a memory game learn that “DHARMA” is an acronym standing for “Department of Heuristics And Research on Material Applications.” June 13 DJ Dan’s fifth podcast is discovered in a thread on the RetrieversOfTruth.com forum, and discusses HF work in nanotechnology and mind control experiments. June 16 DJ Dan’s sixth podcast is discovered on Sublymonal.com, and discusses HF memory experiments run on autistic savants. June 17 In a video posted on monster.com, a woman named Rachel Blake explains that she intends to uncover the true purpose of the HF.

D ario M esquita

com remove most of the game-related content. Entering “108” on the Sublymonal site

May 25 Half-page ad for Bad Twin runs in USA Today. Minor updates to Sublymonal.

The Lost Experience

May 24 An advertisement for the Monster.com-sponsored hansocareers.com airs

imersão em

May 23 During live coverage in the UK of Channel 4’s Big Brother 7, on its E4 channel,

Realidade A mbígua :

Powells.com and GaryTroup.net.

245


June 19 A link to Rachel Blake’s blog (www.rachelblake.com) is hidden in the source code of thf.org. The most recent post is dated 9/14/2006. Foundation has been hacked by malicious infiltrators seeking to blemish the good work of many dedicated researchers. Until a legal investigation is completed, the site will no longer be accessible to the public. Namaste.”

HF’s Hugh McIntyre of adultery. ACT 2: The Adventures of Rachel Blake June 22 persephone.thehansofoundation.org updates with a film of an upsidedown woman displayed on a constant loop with strange music and garbled voice over narration. When the voice is played backwards, it provides a series of numbers. Visitors browsing the “trash” folder on letyourcompassguideyou.com within the trash folder find a transcript of discussion between Persephone and “William”, an employee at DaimlerChrysler. Persephone insists that Jeeps provided by Chrysler are being used for nefarious purposes. To prove the claim, she provides a zipped archive of files (missing_ organs). The evidence in this archive convinces William to continue contact. June 26 DJ Dan’s eighth podcast talks about Rachel Blake, and theorizes that she is the same person as Persephone. June 30 Rachel Blake reveals she is the hacker “Persephone” on her blog. During DJ Dan’s ninth podcast, Rachel calls in and identifies herself as Persephone. July 5 Rachel’s blog discusses Dr. Mittelwerk’s visit to a medical clinic. She directs readers to the site of a web-based show called thisisaknife on the UK’s channel4.com. Here, if you watch the July 5th episode, a brief message from Rachel appears during a break, encouraging viewers to “Navigate to the Truth” at www.channel4.com/lost flashes on the screen. A hidden link on the main navigation bar at this URL opens an audio file. DJ Dan’s tenth podcast provides information that seems to shed light on a character mentioned on Lost named Karen DeGroot. July 10 DJ Dan’s eleventh podcast begins asking listeners to call in if they have leads on Alvar Hanso’s current whereabouts. July 12 An advertisement airs during a US Lost rerun features Dr. Mittlewerk, who asks viewers to “discuss [the HF’s] achievements and continued progress.” No URL is provided during the commercial, though a credit onscreen reads “Presented by ABC Corp.”

1 - n. 1

the HF’s involvement in life extension research. A new post on Rachel’s blog accuses the

ano

June 21 DJ Dan’s seventh podcast is discovered on Jeep’s sponsored site, and talks about

Revista GEMI n IS |

June 20 thf.org is shut down, with a new message explaining that, “The Hanso

246


July 14 Rachel’s blog is updated with a picture of a path, a username, and a password. The name and password unlock a hidden video on Sublymonal.com. and a password. The name and password unlock a hidden video which shows what happened immediately after the previous entry. July 21 Rachel’s blog reveals that she has fled to Sri Lanka, claiming that the situation resort to desperate measures, which will become clear in the coming days.

July 22 At ComicCon in San Diego, Rachel Blake interrupts the Lost panel discussion to accuse Lost EPs Carlton Cuse and Damon Lindelof about the HF. When the producers insist that the HF is fictional, Blake claims that she of their existence and directs the

com. From July 24 through September 8, a total of 70 codes, or “glyphs,” are discovered on numerous websites and in physical locations around the world. Each clip corresponds to a fragment from a larger video clip that Blake recorded. thf.org is updated with the 7-10 advertisement featuring Mittlewerk. Aug 7 A series of photos depicting a note, torn into several pieces, is uploaded to a the Flickr account of “lehcarekalb” (an anagram for Rachel Blake). Aug 11 DJ Dan hosts a 2-hour live webcast of his show, with call-ins from actual viewers (unlike the podcasts, which feature staged callers). Sept 8 The final glyph was uncovered, allowing visitors to hansoexposed.com to assemble Blake’s complete video clip, which was quickly posted to YouTube. Sept 9-14 During the period between September 9 and September 14, various hidden codes and images were released on the blogs of Speaker, Lost Ninja, The Other Girl, and Rachel Blake. ACT 4: WhereIsAlvar.com & Apollo Candy Bars Aug 8 ApolloCandy.com launches, purporting to be the promotional site for the “private purveyor of chocolates for Alvar Hanso and his many companies.” The site appears to be a cross-promotion with Jeep. Aug 24 Starting on August 24, 1142 free “Apollo Chocolate Bars” were handed out in New York City, at special live events across the USA, and at Forbidden Planet stores in the UK. 78 of these bars are marked as “golden oracle” bars, with golden wrappers

D ario M esquita

July 24 Rachel’s blog posts with a picture of a glyph and a code to enter at hansoexposed.

crowd to hansoexposed.com. She is then escorted out of the auditorium.

The Lost Experience

ACT 3: HansoExposed.com & The Glyph Hunt

imersão em

is too dangerous for her and people who possess the evidence. She states that she must

Realidade A mbígua :

July 18 Rachel’s blog is updated with a blurry picture of a man’s head, a username,

247


inside. Players who receive the special bars are instructed to send photos of themselves, holding the bar, to be posted on whereisalvar.com. On the site, Blake explained that Sept 18 Blake sent an email to everyone registered at whereisalvar.com instructing them to check out the site, where the 78 submitted photos were arranged to form the word UNITE. The site then instructed visitors to listen to DJ Dan’s next live podcast. DJ

ACT 5: Comeuppance Sept 24 DJ Dan hosts a final live podcast at 8 PM PST, ending the game. The twohour broadcast concluded with an interview with Rachel Blake. Following this, Rachel directed the listeners to abc.com, where a final Rachel Blake video was shown. This video contained the Sri Lanka from the glyph hunt, followed by Rachel Blake’s encounter with a gray-haired Alvar Hanso. Sept 26 thf.org was updated with a letter from Alvar Hanso stating he would try to pick up the pieces of the Foundation and salvage its reputation. Clicking on the word “humanity” in the third paragraph reveals a hidden video transmission from Mittelwerk, who declares that he will continue his work.

1 - n. 1

for the final podcast.

ano

Dan’s site instructs visitors to visit whereisalvar.com for a hint about his “special guest”

Revista GEMI n IS |

when “enough of the world is watching,” further instructions will be given.

248


Referências

249

games e ficção seriada. Trabalho apresentado no Colóquio internacional Televisão e Realidade. Salvador: UFBA, 2008. Acesso: 19 nov. 2009. Disponível em: <http://www. tverealidade.facom.ufba.br/coloquio%20textos/Luiz%20Adolfo.pdf>. America 2005 Conference Proceedings, 2005, p. 50-52. Convergence Culture Consortium White Paper, 2007. Acesso em: 5 jan. 2010. Disponível em: <http://www.ivanaskwith.com/writing/IvanAskwith_TheLostExperience.pdf> JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

storytelling_101.html>. JOHNSON, Steven. Surpreendente: a televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002 MCGONIGAL, Jane. This Is Not a Game: Immersive Aesthetics and Collective Play. Fine Art Forum 17, no. 8, 2003. Acesso em: 28 dez. 2009. Disponível em: <http://www. seanstewart.org/beast/mcgonigal/notagame/paper.pdf> ______. The Puppet Master Problem: Design for Real-World, Mission-Based Gaming. In: Harrigan, Pat; Wardrip-Fruin, Noah (Orgs.). Second Person: Role-Playing and Story in Games and Playable Media. Cambridge: MIT Press, 2006. Acesso em: 28 dez. 2009. Disponível

em:

<http://www.avantgame.com/McGonigal_THE-PUPPET-MASTER-

PROBLEM_MITpress.pdf>. MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: UNESP, 2003. SCOLARI, Carlos Alberto. Transmedia Storytelling: Implicit Consumers, Narrative Worlds, and Branding in Contemporary Media Production. International Journal of Communication 3, 2009. 586-606 pp. Acessado em: 17 nov. 2009. Disponível em: <http:// ijoc.org/ojs/index.php/ijoc/article/viewFile/477/336>.

D ario M esquita

em: 17 nov. 2009. Disponível em: <http://www.henryjenkins.org/2007/ 03/transmedia_

______. Transmedia Storytelling 101. Confessions of a Aca/Fan, 21 mar. 2007. Acesso

The Lost Experience

ASKWITH, Ivan et al. Deconstructing The Lost Experience: In-Depth Analysis of an ARG.

imersão em

ARSENAULT, Dominic. Dark Waters: Spotlight on Immersion. In: Game On North

Realidade A mbígua :

ANDRADE, Luiz Adolfo de. Realidades Alternadas ou revelações de Lost sobre


A exacerbação do dilema “forma versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em 24 H oras M aurício Caleiro Cineasta e jornalista, é doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e bolsista do CNPq. É mestre em Film Studies pela University of Iowa (EUA). E-mail: mauricio_m_caleiro@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 250 - 266


Resumo Este artigo analisa os principais fatores que fazem da série 24 Horas um exemplo extremo da problematização do dilema “forma versus conteúdo”, por conta da contraposição que promovem entre sua alta qualidade técnica de produção e a difusão de uma ideologia em que estão presentes tanto os preconceitos de origem étnica quanto o apregoamento da violação sistemática dos direitos humanos no contexto da “guerra ao terror”. Presta-se particular atenção, respectivamente, às condicionantes históricas nas quais se dá tal quadro, aos efeitos da política de escolha de elenco e à questão da tortura. Palavras - chave: 24 Horas; Representação; Ideologia.

A bstract This article aims to analyze the main factors which make the TV series 24 push to the limits the dilemma “form versus content”, at the expenses of the contraposition between its high quality values and the difusion of an ideologic trope characterized by ethnical prejudices and by the sistematic violation of human rights, in the context of the “war on terror”. It is paid particular attention, respectively, to the historical context in which the has been was presented, to the effects of the politics of casting employed by the its producers, and to the polemic question of torture. Keywords: 24; Characterization; Ideology.


252

1 Introdução

À

primeira vista, a grande novidade trazida pela série de TV 24 Horas, lançada os Estados Unidos pela Fox em 2001, seria a narrativa desenvolvida “em tempo real”, através da qual o tempo diegético - aquele passado no interior

da trama - equivaleria ao tempo tal como vivenciado no universo habitado pelos espectadores que assistem à série. Seu próprio título, com sua alusão ao número de horas do dia – que também seria o número de episódios da temporada, já que esta acompanha um dia na vida do agente federal Jack Bauer (Kiefer Sutherland) – enfatiza a “novidade”. Entretanto, à medida em que as temporadas foram se sucedendo, tornava-se evidente que a narrativa em “tempo real” não era o único de uma série que explorava, com um nível superlativo de qualidade técnica, um tema na ordem do dia - o terrorismo internacional, questão onipresente desde o 11 de Setembro e internacionalizada após os ataques posteriores a Madri e Londres. Parece, portanto, compreensível por que os relativamente poucos textos que se dedicam a analisar 24 Horas tenham dedicado tamanha atenção aos aspectos formais da série. Mas, de forma um tanto surpreendente, não é o alegado “tempo real” da narrativa – que só perfaz uma hora se acrescido dos comerciais, já que cada episódio tem em torno de 43 minutos - o aspecto mais debatido pelos autores, mas a divisão múltipla da tela (o split-screen), que chega a oferecer o acompanhamento de até cinco ações ao mesmo tempo. Trata-se, paradoxalmente, de um artifício que pertence à infância do cinema – presente, entre outros, no seminal Life of an American fireman (Edwin S. Potter, 1903) -, e que em sua encarnação digital já havia sido usado de um modo relativamente similar ao de 24 Horas, em filmes como Corra, Lola, Corra (Lola Rennt, Tom Tykwer, Alemanha, 1998) e, com senso estético apurado, O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, Peter Greenaway, Reino Unido, 1996). Para se ter uma ideia do quanto o artifício fascinou os críticos da série, no primeiro livro inteiramente a ela dedicado, organizado por Steven Peacock – Reading 24: TV Against the Clock (I.B. Tauris, 2007) – cinco dos seus dezesseis artigos


debatem especialmente o split-screen. Mas, por ora, o que gostaríamos de reter de tal leitura é o reconhecimento expressivo que os aspectos técnicos da série recebem.

direção de arte, edição de som e fotografia - os estilos visuais videográficos classificados por John Caldwell como características distintivas da qualidade na TV (CALDWELL, 1995). Entretanto, ao contrário da maioria dos exemplos citados pelo autor, a to narrativo (nesse aspecto – a combinação de estilo visual refinado e roteiros altamente predecessores). Ao contrário: a premiada equipe de roteiristas levou a um novo patamar o grau de complexidade das múltiplas tramas paralelas, dos elementos-surpresa e, acima de tudo, dos vertiginosos twists narrativos que transformaram a série em um exemplo de excelência na elaboração de roteiros, tornando-se caso de estudo recorrente em cursos e oficinas sobre o tema. Entretanto, se em termos de qualidade técnica, 24 Horas é uma referência quase unânime, o mesmo não pode ser dito a respeito das questões ideológicas suscitadas pela série ao longo de suas oito temporadas. Trata-se provavelmente do produto televisivo que explorou de forma mais intensa os limites da tematização do terrorismo em uma série de ficção. A encenação, em “tempo real”, de um dia de cão na vida de termos técnicos e comerciais e uma série ficcional com implicações politico-ideológicas altamente problemáticas, que levaram ao limite o dilema forma versus conteúdo.

vel (ainda que os dilatando ao máximo), seria ingênuo desconsiderar o papel de formação e difusão ideológico desempenhado pela série no decorrer de quase uma década marcada - nos Estados Unidos, notadamente - por um intenso debate acerca das fronteiras entre o combate ao terrorismo e a preservação dos direitos civis. No interior de tal dinâmica, a série se equilibra de forma precária entre as pressões por correção política e as historicamente politicamente incorretas convenções do filme de ação enquanto gênero. Promover uma investigação acerca de para qual lado da balança pende esse precário equilíbrio é o objetivo das duas seções deste artigo, que serão apresentadas a seguir. Casting e Políticas de Representação investiga, como o título sugere, o papel que a escolha de elenco (que no âmbito desta pesquisa inclui, por definição metodológica, o exame da caracterização dos respectivos personagens) na formação de estratégias dis-

M aurício Caleiro

seus produtores para manter o “discurso” da série nos limites do politicamente aceitá-

A despeito de seu alto nível de produção e dos auto-proclamados esforços de

24 H oras

um agente antiterrorismo tornou-se, a um tempo, um projeto muito bem-sucedido em

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

elaborados – Twin Peaks e Arquivo X talvez devam ser considerados seus mais notórios

“forma

série não alcança tal topos visual às expensas do sacrifício de seu pleno desenvolvimen-

exacerbação do dilema

tempo e em virtualmente, todos as categorias técnicas - destacadamente na montagem,

A

Com efeito, 24 Horas é talvez o programa televisivo que melhor encarnou, a seu

253


cursivas e de tipificação dos personagens da série, a partir de uma análise que prioriza o exame das construções axiológicas perpetradas pela narrativa em relação à questão As implicações ideológicas relacionadas ao modo como 24 Horas concebe a política institucional no que diz respeito às relações internacionais, sobretudo, e o debate acerca do tema que mais críticas amealhou à série – o modo como retrata a tortura – são

1 - n. 1

da política.

ano

os temas abordados na terceira e última seção deste artigo, Ideologia, tortura e o não-lugar

Revista GEMI n IS |

da etnicidade.

254

2 Casting e políticas de representação Séries de TV estão entre os primeiros produtos audiovisuais de ficção a tematizar o de 11 de Setembro. Três semanas após o ataque, quando o estado de choque da população norte-americana mal se dissipara, o tema já era diretamente tratado em um episódio de Nova Iorque contra o Crime (NYPD Blue). 24 Horas não é, portanto, a primeira série a lidar com a nova configuração ideológica que se seguiu aos ataques da Al Qaeda (embora um episódio-piloto - no qual um avião era explodido em pleno ar – tivesse sido produzido dias antes dos ataques de 11 de setembro, mas não veiculado por razões óbvias, só vindo a ser exibido meses depois). É importante estabelecer com precisão tais datas para dar uma ideia, por um lado, das pressões aos quais os produtores da série estiveram sujeitos e, por outro lado e mais importante, ao enorme papel formativo e pedagógico que 24 Horas estava potencialmente em vias de exercer na contrução de visões públicas de como enfrentar o terrorismo. Pois, como afirma o autor de um dos ensaios sobre o programa televisivo, Ninguém precisa ter as habilidades de um agente contraterrorista para perceber alguma conexão entre o enorme sucesso de 24 Horas no Reino Unido e nos EUA e a preocupação pós-11 de Setembro em ambos os países com terrorismo e com a assim chamada ‘guerra ao terror (WOOLF, 2007, p. 73).

A série foi ao ar nos Estados Unidos em 6 de novembro de 2001, portanto menos de dois meses depois dos ataques. No entanto, todos os episódios da primeira temporada haviam sido escritos e gravados antes disso – ou seja, a profunda afinidade entre a temática da série e o estado de tensão da sociedade norte-americana tal como por ela descrito e os eventos terroristas reais que deflagraram um estado de histeria coletiva no país não foi, a princípio, proposital. Muito possivelmente se tratava de um imaginário intermitente no inconsciente coletivo do país – como uma análise à moda da desen-


volvida por Kracauer em relação ao cinema alemão (1988, originalmente publicada em 1947) possivelmente revelaria na profusão de filmes catástrofes, com direito a Nova

seria explorada à exaustão nas demais temporadas da série. Em um texto escrito em 1990, e que ganhou possibilidades outras, mais graves de leitura após o 11 de Setembro, Mary Ann Doane, repercutindo nominalmente Barinstantâneo,

24 Horas leva ao paroxismo tal premissa, na seara ficcional: não apenas a catástrofe (ou como evitá-las) é seu tema essencial, como a conexão entre um evento traumático real e o universo ficcional da série está, em uma medida certamente superlativa, mas que não é possível precisar, na raiz de seu sucesso e permanência no imaginário público. No entanto, o conteúdo ideológico de 24 Horas foi considerado por muitos um dora do preconceito étnico e da violação dos direitos civis em nome do combate ao terrorismo. Isso foi demonstrado pelo significante número de resenhas críticas e pelos

era um dos vilões. As políticas de escolha de elenco (a partir de agora referida como casting), por refletirem a um tempo os preconceitos étnico-raciais e os esforços por dissimulá-los através de pesos e contrapesos, são um dos mais ricos veios a ser explorados em uma análise detida 24 Horas, particularmente a partir de uma perspectiva comparativa – a qual Bluford Addams sugere como o melhor método analítico para lidar com questões de raça e etnia (ADAMS, 2002). 2.1 Etnicidade e o modelo narrativo tripolar Nas seis primeiras temporadas de 24 Horas, há três polos narrativos principais, cada um com seus padrões configurativos (nas duas últimas temporadas, em que a lo-

M aurício Caleiro

notadamente na sexta temporada -, em que um adolescente americano de origem árabe

muitos protestos de grupos organizados da sociedade norte-americana contra a série –

24 H oras

veículo para difusão massiva de uma forma perniciosa de conservadorismo, instiga-

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

A televisão não lida com o peso morto do passado, mas com o trauma potencial e a explosividade do presente. E o drama último do instantâneo – catástrofe – constitui o verdadeiro limite de seu discurso (DOANE, 2001, p. 269).

“forma

thes (e implicitamente Bazin), insiste que em decorrência de sua lógica de celebração do

exacerbação do dilema

oficialmente, de uma coincidência, a nova zeitgeist que teve lugar no bojo dos ataques

A

Iorque destruída, que antecederam o evento real. Por outro lado, não obstante tratar-se,

255


cação da série se muda para Washington e depois para ova Iorque, isso aparentemente se altera; mas na verdade, não muito): o polo principal é a CTU (Counter-Terrorist Unit, protocolos profissionais, comunicação interpessoal burocrática e eventual ação repressiva, incluindo, de forma não oficial mas frequente, tortura. É também o lugar em que, dentro do ideário neopositivista que caracteriza boa parte das séries de ação contempo-

uma pitada de mordacidade, Paul Delaney, “Espectadores de televisão sabem agora que os malvados não são capturados pelo ‘tira’ em perseguição, mas por bases de dados, gravações telefônicas e câmeras de vigilância” (2007, p. 93). A Casa Branca (ou o Air Force One ou a casa de campo presidencial) compõe o segundo polo, com seu mix de figuras públicas e conspiradores privados - além das intrigas familiares de praxe, as quais tornaram a quarta temporada um tanto arrastada. O terceiro e mais variado polo é aquele habitado pelos terroristas, em sua maioria não nativos, mestiços ou o que os norte-americanos chamam de “pessoas com sotaque” [accented people]. Nele predominam tipos sujos, brutos, com algo de animalesco e repulsivo. Há russos, chineses, bálticos e uns poucos “latinos” (a série não costuma identificar exatamente de que país, ou cria um país fictício), mas a maioria vem, ou parece vir, do Oriente Médio. A oposição entre bárbaros sujos e anacrônicos versus yuppies limpinhos e high tech que tal polo promove não deixa, no mais das vezes, de trazer implícito em suas entranhas o que o filósofo Paulo Arantes, dialogando com Fukuyama e com Fanon, vê como uma fratura bipolar herdada pela contemporaneidade: Em seus próprios termos, em 11 de setembro de 2001 poderíamos dizer que o planeta testemunhou uma ‘interação coletiva’ de intensidade apocalíptica entre as duas zonas em que o discurso do fim da História dividira o mundo, a zona de luz pós-história e a zona de sombra dos povos ainda históricos – outra estratificação na base da assimetria do sofrimento vivida pelos novos damnés de le terre, igualmente invisíveis ao olhar colonial (ARANTES, 2007, p. 63).

Deve-se ressalvar que eventualmente incorporam-se a tal polo personagens tipicamente norte-americanos que – alguns como vilões, alguns involuntariamente – acabam por mesclar-se aos terroristas estrangeiros. A seguir, analisaremos com mais detalhe seu papel na trama, bem como algumas das implicações da contraposição do polo dos vilões ao protagonista da série, em relação ao qual faz-se necessário, antes, tecer algumas considerações .

1 - n. 1

panaceia, agora destinada ao combate ao terrorismo. Graças à CTU, como aponta com

ano

râneas a 24 Horas – notadamente a franquia CSI - a tecnologia é exaltada como a nova

Revista GEMI n IS |

ou Unidade Anti-Terrorismo), a qual supostamente deveria ser caracterizada por seus

256


2.2 Mocinho e bandidos, ambos maus

Sutherland tem um desempenho superlativo ao encarná-lo ao longo das temporadas. Seu trabalho de voz é particularmente notável, cobrindo um vasto campo de manifestações aurais. É verdade que, como colocado por vários críticos, ele, sendo torturado humor satirizou, muitas vezes basta seu grito para o vilão da vez contar tudo. Mas ele o inimigo prestes a ser tocaiado não pode vê-lo; apresenta uma voz insegura e hesitante no início de cada temporada a qual lamenta a morte de amigos, e fatigada à exaustão no momento imediatamente anterior à ação decisiva final; por fim, acima de tudo, ele se comunica pelo telefone celular de uma forma nunca antes vista na tela! Ademais, Sutherland parece ter achado o ponto exato para dotar o personagem de uma fragilidade sentimental e de um pendor sacrificial que, em última análise, é o que “justifica” toda a violência que ele emprega. O resultado, embora tecnicamente admirável, é a criação de um vigador extremamente conservador, um tipo de Rambo high-tech que reencarna o herói branco, onipotente, fálico, que o feminismo e o multiculturalismo acreditavam ter relegado ao passado. 2.2.1 Economia libidinal e identificação espectatorial

mo militante, à virtual ausência destes) da combinação entre o construcionismo social em voga na academia norte-americana desde os anos 70 (graças, segundo ela, em grande parte ao próprio establishment feminista) e, nesta, da promoção em bloco e sistemática da recusa em adotar, por um longo período, como objetos de estudo, os produtos da cultura popular de massas, abrindo parcialmente mão de uma interação crítica de alto nível com alto potencial de intervenção política. Tal quadro levou a polemista a preconizar que: Seguramente, o estilo intelectual do século XXI terá de ser completamente diferente. A cultura popular não pode ser esvaziada [de atenção crítico-acadêmica]. As políticas globais sofrerão refrações através das telecomunicações, o novo discurso universal […] Um esquerdismo elitista é uma contradição em termos (PAGLIA, 1994, p. 511).

M aurício Caleiro

a dupla crítica de Camille Paglia aos efeitos práticos (ou, do ponto de vista do feminis-

Essa deplorável constatação acaba, por vias tortas e paradoxais, por corroborar

24 H oras

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

também murmura súplicas aos que ama; sussurra, em um tom mais diligente, quando

“forma

ou, com mais frequência, torturando, grita muito, e, como mais de um programa de

exacerbação do dilema

Bauer. Embora largamente subestimado ou negligenciado pelos críticos da série, Kiefer

A

Acima e além de tais polos, entre os quais transita, paira o protagonista Jack

257


Porém, o papel simbólico do protagonista de 24 Horas transcende os efeitos retrógrados relacionados à questão de gêneros e à etnicidade para inserir-se em uma submetido o espectador de 24 Horas, a qual orbita em torno do duplo binômio ansiedade-medo (do próximo ataque terrorista) e satisfação sadomasoquista do ego (na forma de punição extra-jurídica do transgressor). Praticamente não há, na série – com certeza

de natureza sexual ou não. Nesse sentido, ela se insere plenamente numa contemporaneidade na qual, como aponta Vladimir Safatle, passamos “de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada” (SAFATLE, 2008, p. 133, grifos do autor). Embora 24 Horas emule, assim, em sua simbologia narrativa, uma economia do desejo pós-moderna, que Zygmunt Bauman, em sua mordaz dicotomia entre o turista e o vagabundo, resumiu numa boutade - “O efeito de ‘tirar a espera do desejo’ é tirar o desejo da espera” (BAUMAN, 1999, p. 87) -, há um preponderante elemento anacrônico a perturbar tal constatação, justamente na figura de seu protagonista, Jack Bauer. Se como aponta Lorenzo Vilches, “O sujeito da era tecnológica (e da globalização) não é autonômo, e suas ações, sejam elas econômicas ou lúdicas, respondem a alguma estrutura mais profunda” (VILCHES, 2010, p. 193), o herói de 24 Horas, a despeito de sua intensa interação com artefatos tecnológicos do presente – como já dito, o telefone celular acima de todos – é, essencialmente, um sujeito do passado, a velha figura do justiceiro solitário, de ética própria e acima das leis vigentes – as quais despreza -, disposto a arriscar sua pele em nome da prevalência da ordem e do que entende por bem comum. Colabora, sobremaneira, para o anacronismo de tal caracterização – e para o tipo de identificação espectatorial que provoca - o fato de ser Bauer um personagem desprovido de auto-ironia, em um momento histórico marcado pela “ironização absoluta dos modos de vida” (SAFATLE, 2008, p. 134), Pois, em uma sociedade da insatisfação administrada, os sujeitos não são mais chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e certa ética da convicção, fato impossível em uma situação de crise de legitimidade como a nossa. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas (Id., Ibid, p. 134, grifos do autor).

O dado paradoxal, no entanto, é que é precisamente essa dicotomia entre uma

1 - n. 1

público infantil - momentos de compensação gozosa na forma de prazer não punitivo,

ano

uma das mais desassexualizadas da história do formato, entre as não destinadas ao

Revista GEMI n IS |

dinâmica ainda mais ampla e socialmente abrangente: a da economia libidinal à qual é

258


economia libidinal pós-moderna consoante ao admirável mundo novo da tecnologia e um personagem preso a valores em desuso que alimenta muito do fascínio que a série

capaz de salvar o mundo, que, se só sobrevivia no imaginário - pois na prática já fora há muito substituído pelos clones de Homer Simpsons -, os ataques terroristas em solo norte-americano acabariam por relegar definitivamente ao passado.

mais importante, alcance simbólico bem mais restritos. A discriminação étnica opera em dois níveis em 24 Horas. De forma sucinta, pode-se dizer que ela é latente na CTU – dada a profusão de traidores e de vilões que ali vicejam, combinada a eventos como a transformação do melhor amigo de Jack, Tony Almeida (Carlos Bernard), que se torna vilão na oitava temporada -, mas é explícita em relação à maioria dos outros personagens não americanos ou descendentes diretos de imigrantes, não obstante as estratégias de pesos e contrapesos (há sempre um ou dois deles “bonzinhos”) levada a cabo pelo casting. Tal política deveria supostamente funcionar como um argumento defensivo caracterização dos vilões – homens asquerosos, com gestual brutal e, mais importante, um forte sotaque (a exceção é Salazar, o vilão “intelectualizado” protagonizado pelo

mente atraentes, com um suave (e às vezes charmoso) sotaque. Apesar de, na maior parte do tempo, o idioma falado pelos dois grupos ser o mesmo – ingles, é claro –, é, como sugerido no parágrafo anterior, sobretudo através de um componente da linguagem falada – o sotaque – que as dinâmicas representacionais da série se revelam como baseadas em preconceitos e em relações de poder. Parece perfeitamente normal, no âmbito ficcional, caracterizar vilões como repulsivos e os bonzinhos de um modo atraente, mas quando tal diferenciação é determinada por uma categoria cultural sócio-excludente como linguagem, tal caracterização extrapola as lógicas internas da ficção e passa a fornecer uma visão discriminatória de relações transculturais. Pois, como Ella Shohat e Robert Stam sustentam,

M aurício Caleiro

“quase-americanos”, que trabalham na CTU, elegantemente vestidos, polidos, sexual-

galã português Joaquim de Almeida na terceira temporada) – e os descentes bonzinhos,

24 H oras

contra acusações de preconceito étnico. Entretanto, são notáveis as diferenças entre a

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

Em comparação com Jack Bauer, seus inimigos têm capacidades, recursos e,

“forma

2.2.2 Etnicidade e a armadilha eurocêntrica

exacerbação do dilema

possível de um mito, o do vingador norte-americano individualista e auto-suficiente,

A

desperta. Bauer, primeiro herói televisivo pós-11 de Setembro, encarna o retorno im-

259


Os roteiristas da série não se mostraram alheiros à armadilha eurocentrista. A solução que adotaram para driblá-la, também recebida com protesto por grupos or-

terrorista. Estes incluem um presidente, um grande executivo (pai de Jack Bauer na trama, encarnado de forma brilhante por James Cromwell) e, numa clara menção à privatização do setor bélico norte-americano, um “general de exército particular” (papel encarnado com garra pelo veterano John Voight). Entretanto, ao contrário da quase totalidade dos terroristas estrangeiros, tais personagens são educados, elegantes, fazendo uso de padrões formais de comunicação. Eles constituem, talvez, a mais insidiosa, mas não obstante irônica contradição de 24 Horas: o fato que um canal, a Fox, co-irmã da Fox News, berço do jornalismo neocon, e pertencente a um megaconglomerado midiático - a News Corporation – veicula uma série na qual habitantes privilegiados do universo corporativo são sacrificados como bodes expiatórios para ajudar a encobrir uma visão marcada por preconceitos mal disfarçados. 3 Ideologia, tortura e o não-lugar da política Laurie Ouellette, em seu livro sobre TV pública, chama a atenção para o papel pedagógico desempenhado pela televisão na formação de mentalidades no que concerne à concepção de temas politico-sociais (OUELLETTE, 2002). Tal crítica afilia-se a mais abrangente e incomparavelmente mais elaborada filosofia política concebida pelo pensador pós-marxista Louis Althusser, notadamente em relação ao seu conceito de Aparelhos Ideológicos do Estado e, de forma particular, no interior de tal categoria, ao processo desenvolvido pelo que ele chama de “Interpelação” (ALTHUSSER, 1971). No contexto da mídia, tal conceito pode ser entendido como a persuasiva e “naturalizada” ação ideológica por ela exercida ação na formação subjetiva do indivíduo. É precisamente tal aspecto de 24 Horas, potencializado por sua inserção no contexto histórico contemporâneo, que já foi apontado anteriormente, e que será examinado neste tópico, prestando particular atenção a dois temas: como política internacional enquanto prática institucional é descrita na série e como ela trata a questão da tortura. Em um momento da história da televisão no qual as series top de linha como

1 - n. 1

os grandes vilões, financiando, manipulando e lucrando em decorrência da ameaça

ano

ganizados, foi o emprego, em quatro temporadas, de personagens americanos como

260 Revista GEMI n IS |

Embora linguagens enquanto entidades abstratas não existam sem hierarquia de valores, linguagens tais como vividas operam no interior de hierarquias de poder. Inscritas nas dinâmicas internas ao jogo de poder, a linguagem se torna presa de hierarquias culturais típicas do eurocentrismo (SHOHAT; STAM, 1994, p. 191).


24 Horas, que ostenta o mais alto custo por capítulo dentre todas as series que a Fox já produziu, são planejadas mirando também no mercado internacional. Com isso, audi-

mais frequência, deixa de encenar) a dinâmica das relações políticas internacionais. Seria, é claro, não realista esperar que uma série de TV da adrenalina tão alta como a protagonizada por Jack Bauer fosse abordar as relações entre política internacional, vida pelos roteiristas segue a regra das séries de ação: ações terroristas são tipificadas deixando de incluir, se não de maneira extremamente superficial, o papel das políticas internacionais e doméstica para evitar a formação e a ação de grupos terroristas. 3.1 Retrato maniqueísta da política internacional Entretanto, como já mencionado, 24 Horas contempla, como um de seus principais polos narrativos, as dependências ocupadas pelo presidente dos Estados Unidos. E, naturalmente, a política é, ao lado de urgências familiares e tramas conspiracionais, tópico recorrente em tal ambiente. Os embaixadores e representantes de países estrangeiros que lá aparecem - com a única e parcial exceção do presidente russo e de sua ções com as quais os terroristas têm alguma espécie de conexão, o que automaticamente põe tais atores políticos sob suspeita, se não sob ataque, como o promovido na sexta

Estados Unidos. Ora, essa estrutura, que se repetiu temporada após temporada, significa a invalidação avant la lettre, na série, de qualquer ato politico conduzido por representantes de qualquer país, com exceção dos Estados Unidos. A caracterização dos políticos estrangeiros é talvez o quesito em que o preconceito aparece de forma mais evidente e com parcos contrapesos em 24 Horas, resultando particularmente problemático em uma série que, conforme apontado, visa também o mercado internacional, e com o agravante de intensificar, para o público norte-americano uma mensagem de descrédito em relação aos estrangeiros e de descrédito com a política institucional, fornecendo, ainda, o salvo-conduto para sua substituição pela tortura (e, simbolicamente, o belicismo). Torna o cenário ainda pior constatar que tal representação se deu, na maior parte do tempo, em um momento histórico no qual os Estados Unidos estavam envol-

M aurício Caleiro

que tantos protestos provocou nas comunidades de imigrantes da região que vivem nos

temporada pelo presidente Wayne Palmer contra um embaixador do Oriente Médio,

24 H oras

esposa na sexta temporada (mas não na sexta) – são quase sempre representantes de na-

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

exclusivamente como atos criminosos, deixando de lado qualquer implicação política –

“forma

diplomacia e terrorismo de um modo condizente e elaborado. A visão da questão pro-

exacerbação do dilema

lões da série, resulta altamente problemático o modo pelo qual 24 Horas encena (ou, com

A

ências nacionais que incluem cidadãos pertencentes às mesmas etnias de alguns dos vi-

261


vidos em uma guerra (esteve durante todo o tempo de existência da série, primeiro no Iraque e depois também no Afeganistão) amplamente desaprovada pela opinião públiem desrespeitar a ONU e a comunidade internacional em relação aos (des)motivos para a invasão do Iraque. O comportamento dos presidentes fictícios de 24 Horas, cuja autoridade é sublinhada pelas mesuras do cerimonial e pelo emprego litúrgico do “Mr. Pre-

3.2 O elogio da tortura Não obstante a questão do preconceito e do papel subalterno da política na série, o mais polêmico assunto tratado em 24 Horas é a tortura – prática disseminada na série, praticada por terroristas, mas, sobretudo, por agentes governamentais dos EUA, Jack Bauer destacadamente. Trata-se do tema favorito dos críticos da série, entre eles jornalistas respeitados como Adam Green e um crítico cultural da estatura de Slavoj Žižek. Green detalha como a tortura opera no interior da série: Ao menos meia dúzia de personagens procederam a interrogações em condições que se encaixam a definições convencionais de tortura. Os métodos retratados variam e incluem injeção química, choque elétrico e a velha quebra de ossos (GREEN, 2005, s/p).

Anne-Marie Cusak e Erik Sandberg, em um artigo que traz a informação que a Anistia Internacional considera a tortura em 24 Horas “didática”, fazem um grande esforço para apresentar uma visão equilibrada do tema. Trata-se de uma tarefa difícil: Que 24 Horas insiste em causar dor com tamanha permissividade é perturbador à luz do fato que, na temporada passada [a quarta], os torturadores infligiram várias vezes dano extremo às pessoas erradas. A possibilidade de se torturar um inocente é vagamente uma preocupação da série. Por outro lado, 24 Horas também descreve tortura como uma ferramenta útil à medida em que os torturadores consigam escolher a vítima correta (CUSAK; SANDBERG, 2005, p. 35).

A despeito de ter sido publicado pela tradicional revista de esquerda Progressive, editada desde 1909, o subtexto do artigo das autoras deixa claro que o problema delas é com os eventuais inocentes, não com o método em si. É precisamente a resposta à pervasividade de tal visão que despertou as preocupações mais agudas em relação à série:

1 - n. 1

de embutir, latente, o desejo de reafirmação da supremacia imperial norte-americana.

ano

sidente” como tratamento verbal, como que corrobora tal arrogância, a qual dá mostras

Revista GEMI n IS |

ca, e que foi originada precisamente pela insistência da presidência de George W. Bush

262


um momento histórico no qual o respeito por uma legislação de direitos humanos promulgada a custa de muito sangue – do Terror na frança pós-revolucionária à barbárie

vezes, altamente gráfica), como é usual no cinema japonês desde os anos 60 e tal como popularizada por Quentin Tarantino e seus pupilos há pouco mais de uma década. A tortura, na série, com maior ou menor detalhamento gráfico, foi tratada desde a primeira temporada essencialmente como uma prática normativa e institucional - portanto, “naturalizada” - de interrogatório. É precisamente através do paralelismo entre a violência do terrorismo e aquela praticada pelos heróis da série que Slovaj Žižek, com o usual brilhantismo e mordacidade e valendo-se de referências históricas, aprofunda, em um artigo sobre 24 Horas escrito para o jornal ingles The Guardian, as implicações éticas da questão:

indiretamente por insinuar – embora não desenvolva o tema – um temor que a este autor sempre pareceu latente entre as hostes progressistas em relação à série da Fox: que, resguardadas as diferenças de contexto e de época, tal referência se estendesse ao campo da manipulação de massas, servindo à corporação midiática mais identificada

M aurício Caleiro

Ao aproximar analiticamente 24 Horas e métodos nazistas, Žižek acaba

24 H oras

O problema para aqueles no poder é como arrumar pessoas para fazer o trabalho sujo sem transformá-las em monstros. Esse era o dilema de Heinrich Himmler. Quando confrontado com a tarefa de matar os judeus da Europa, o chefe da SS adotou a atitude de ‘alguém tem de fazer o trabalho sujo’. Havia um problema ético mais agudo para Himmler: como se certificar de que os carrascos, ao praticarem esses atos terríveis, permaneceriam homanos e dignos. Sua resposta foi a mensagem de Krishna para Ajuna no Bhagavad-Gita (Himmler sempre tinha em seu bolso uma edição encadernada em couro): aja com distância interior; não se envolva completamente. Nisso também reside a mentira de 24 Horas: que não somente seria possível reter a dignidade perpetuando atos de terror, mas que se uma pessoas honesta desempenha tal ato como uma tarefa grave, isso a confere uma grandeza trágica e ética. O paralelo entre o comportamento dos agentes [do governo] e o dos terroristas serve a essa mentira (ŽIŽEK, 2006, s/p).

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

ção da tortura em 24 Horas não se restringe à natureza gráfica do tema (embora seja, às

“forma

nazista – encontra-se intermitentemente ameaça. É importante frisar que a representa-

exacerbação do dilema

A resposta, infelizmente, parece ser afirmativa. E é particularmente séria em

263 A

Teria 24 Horas incorrido em escorregadia queda ao retratar atos de tortura como normais e portanto justificáveis? Estaria seu público, e o público de modo geral, também retrabahando as regras da Guerra a um ponto onde a resposta mais eficaz ao terrorismo é incorrer em terror? (GREEN, 2005, s/p).


com a plataforma bélica da nova velha direita norte-americana como modelo para um empreendimento em larga escala, no campo ficional, de uma estratégia de brainwashing jornalístico – e exercendo influência transformadora na concorrência, como aconteceu na área midiática. É certo que tal temor talvez incorra na supervalorização do poder de uma série de ficção e no menosprezo ao poder da alegada (e discutível) pluralidade da

atualmente cerrado questionamento público e governamental, enquanto, após oito temporadas, é anunciado o fim de 24 Horas. 4 Conclusão O programa televisivo objeto de estudo deste artigo deve, se os executivos da Fox não voltarem atrás, chegar ao fim este ano. Suas duas últimas temporadas, contemporâneas da ascensão de Barack Obama, pareciam trazer, latente, a impressão de um atroz anacronismo: se afinidade entre universo ficcional da série e a zeitgeist pós-11 de Setembro era um dos segredos de seu sucesso, tal elo, justificadamente ou não, parece ir deixando de existir à medida em que um novo imaginário – tornado auspicioso pelas implicações da ascensão de um negro à Casa Branca, em um país de entranhado racismo - se impõe sobre o inconsciente coletivo atemorizado da era Bush. Premido, por um lado, pela compulsão tipicamente contemporânea, propiciada pela economia libidinal de 24 Horas, por um desejo que se esgota em si mesmo, sendo por outro reposto já no imediato pós-breve recompensa egóica; e, por outro, pela indigesta salada ideológica by Fox, antifeminista, antimulticultural, pró-tortura e, portanto, sintomática de decadência imperial, o espectador de 24 Horas – esse vidiota a la Peter Sellers entre os quais o autor deste artigo se inclui – encerra um paradoxo: possuir eventual consciência acerca das temerárias implicações ideológicas da série não é o bastante para desejar dela se abster. Debate-se, assim entre o lamento pelo corte no fornecimento do seu narcótico televisivo e o júbilo pelo fim do bombardeamento de mensagens que vão contra direitos que a humanidade tanto lutou para inscrever na letra da lei.

1 - n. 1

te está longe de se confirmar, pelo contrário, é o jornalismo neocon FOX quem enfrenta

ano

mídia norte-americana. De qualquer forma, trata-se, de uma perspectiva que felizmen-

Revista GEMI n IS |

coletivo semelhante à que tem empregado, inicialmente com enorme sucesso, no campo

264


265

ADAMS, Bluford. Reading the Re-Revival: Competing Approaches in U.S. Ethnic

A

Studies. American Literary History, Oxford, v. 15, n. 2, p. 395-408, 2002. ALTHUSSER, Louis. Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes towards an Investigation). In: ______. Lenin, philosophy and other essays. New York: Monthly Review Press, 1971.

Zahar Editor, 1999. CHION, Michel. The voice in cinema. New York: Columbia University Press, 1999. CUSAK, Anne-Marie; SANDBERG, Erik. Watching Torture in Prime-Time. Progressive, Madison, n. 8, v. 69, p. 34-36, ago. 2005. CALDWELL, John. Televisuality: Style crisis and authority in American television. New Brunswick: Rutgers University Press, 1995. DOANE, Mary Ann. Information, Crisis, Catastrophe. In: LANDY, Marcia (ed.). The historical film: History and memory in media. New Brunswick: Rutgers University Press, 2001. p. 261-85. New York Times, 22 mai. 2005.

Cultural and Interlanguage Communication, Boston, vol. 1-2, n. 24, p. 121-44, 2005. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. 3a. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. OUELLETTE, Laurie. Viewers like you? How public TV failed the people. New York: Columbia University Press, 2002. PAGLIA, Camille. Vampes & vadias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Unthinking eurocentrism: Multiculturalism and the media. London e New York: Routledge, 1994. VILCHES, Lorenzo. É possível uma estética das tecnologias de comunicação? In:

M aurício Caleiro

Nothing New: Live Silence in TV Reporting of 09/11. Multilingua – Journal of Cross-

JAWORSKI, Adam; FITZGERALD, Richard; CONSTANTINOU, Odysseas. Busy Saying

24 H oras

GREEN, Adam. Normalizing torture, one rollicking hour at a time. New York, The

versus conteúdo”: técnica , ideologia e etnicidade em

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge

“forma

ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.

exacerbação do dilema

Referências


MORAES, Dênis de (org.). Mutações do Visível: da comunicação de massa à comunicação em rede. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010.

266

ŽIŽEK, Slavoj. The Depraved Heroes of 24 are the Himmlers of Hollywood. Londres,

Revista GEMI n IS |

The Guardian, 2006.

ano

WOOLF, Paul. So what are you saying An oil consortium’s behind the nuke? 24, Programme Sponsorship, SUVs, and the War on Terror. In: PEACOCK, Steven. Reading 24: TV against the clock. London e New York: I. B. Taurus, 2007.

1 - n. 1


O

novo homem e o hibridismo na série 24 H oras S ilvio Luiz Titato Graduação: Letras - Faculdades de Educação São Luís da cidade de Jaboticabal (SP) no período de 2000 a 2002. Pós-graduação (lato Sensu): Metodologia em ensino-aprendizagem em língua portuguesa – Faculdades de Educação São Luís no ano de 2003. Aluno especial na disciplina “O seriado Televisivo” – Ufscar no segundo semestre de 2009. E-mail: sltitato@hotmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 267 - 275


Resumo Esse trabalho tem por objetivo mostrar a transformação da sociedade e da postura da mulher e do homem, e como a televisão, no caso, a série 24 Horas, aponta essa transformação de forma implícita que desvendarei através de uma análise e comparações. Exemplo disso é como Jack Bauer, apesar de homem alfa, acaba, por muitas vezes sendo pressionado pelas situações a demonstrar suas emoções, lembrando o melodrama, uma fusão do melodrama com o suspense e a ação. A televisão, através deste hibridismo, nos mostra que a sociedade está em transformação e o homem e a mulher atuais assumem posturas cada vez mais semelhantes. Palavras - chave: gênero; televisão; narrativa seriada.

A bstract This work aims to show the transformation of society and the position of woman and man, and as television, in the case, the series “24, points out that transformation implicitly that demonstrate through an analysis and comparisons. An example is like Jack Bauer, although alpha male, just, for often being pressured by the situation to show his emotions, remembering the melodrama, a fusion of melodrama with suspense and action. Television, through this hybridism, shows that society is changing and man and woman now assume postures more similar. Keywords: gender; television; serial narrative.


Transformação social e as novas posturas do homem e da mulher

A

sociedade está em transformação contínua, ainda mais em tempos em que a tecnologia e a informação estão em grande evidência. A sociedade mudou, os valores mudaram. Há um novo conceito de homem e mulher inseridos neste

novo século. A mulher outrora “do lar” passa, desde meados do século passado, a se posicionar não somente nos assuntos domésticos e sim financeiros: mulheres entram definitivamente no mercado de trabalho e almejam cargos antes voltados ao universo masculino. Enfim, conseguiram sua liberdade social, profissional, sexual, etc. É óbvio que homens e mulheres são diferentes biológica e psicologicamente, e o que sugerimos aqui é uma postura semelhante na vida social, profissional e familiar que ambos estão assumindo atualmente. Para se ter uma ideia, segundo uma pesquisa do IBGE (1980/1990), publicada pela Revista Veja, em 1970 a taxa de mulheres inseridas no mercado de trabalho era de 20,90% e em 1990 era 35,50% (OLIVEIRA, 1997, p. 77). Com o homem ocorreu o inverso: o homem alfa passa a ser produto raro, pois com essa nova mulher, eles têm de passar por transformações para se adaptarem a um novo lar, uma nova forma de relacionar-se e ter a mulher de igual para igual tanto no ambiente familiar quanto no profissional. O homem alfa: durão, exalando testosterona, voltado exclusivamente ao mundo profissional passa a ser quase massacrado pela nova postura da mulher que agora se assemelha a ele. A mesma pesquisa do IBGE, citada anteriormente, informa que em 1970 a taxa de homens empregados era de 79,10% e em 1990 era de 64,50%, ou seja, o homem está perdendo espaço para o sexo oposto. O novo homem terá de lidar com os desafios não somente racionais. A nova mulher, a sociedade, o mercado de trabalho exigem um homem não somente racional, mas sim que deixe fluir seu lado criativo, emotivo; homens e mulheres passam a ter posturas semelhantes. Não somente porque a sociedade mudou, mas também porque agora há mulheres no mundo dos negócios e essa adaptação é fundamental para en-


frentar essas novas concorrentes. O novo homem é fundamental nos assuntos domésticos, na educação dos fifeminino. Eis o homem beta. No final de 1991, uma agência paulista, a Talent, entrevistou homens e mulheres para verificar suas novas posturas na sociedade. Essa enquete, publicada pelo Jornal

Essa mesma pesquisa aponta que, quando entrevistados, 43% dos homens afirmam que estão mais sensíveis e não se envergonham de chorar, e mais da metade deles (52%) garante que dividem as tarefas domésticas com suas esposas. Com a transformação social, os meios de comunicação também tiveram que se adaptar a essa nova realidade e refletir essa “metamorfose”. A televisão reflete a mutação de gênero e insere elementos que irão explicá-la. É nesse sentido que mostraremos, a seguir, uma análise da série 24 Horas. A série 24 Horas A série norte-americana Twenty Four, traduzida como 24 Horas, é uma série de ação, porém utiliza o drama como braço direito. A série criada por Joel Surnow e Robert Cochran foi produzida pela Imagine Television, produtora criada por Brian Grazer e Ron Howard em associação com a 20th Century Fox. A direção fica por conta de Join Cassar e também faz parte da equipe Howard Gordon que já foi um dos produtores e roteiristas da série Arquivo X. 24 Horas tornou-se rapidamente um sucesso de crítica e público nos Estados Unidos, mesmo sendo lançada pouco tempo depois dos atentados terroristas de 11 de setembro, numa fase que o país sofria com a tragédia ocorrida. Também tornou-se um grande êxito mundial, sendo exibida em mais de cinquenta países da Europa e América Latina, incluindo o Brasil, e passando também pela Ásia e Oceania. Cada temporada da série mostra os eventos num período de 24 horas na vida do agente federal americano Jack Bauer, que é a personagem principal da série representada pelo ator Kiefer Sutherland. O excesso de trabalho e responsabilidade em manter a segurança de seu país com a pressão vivida nessas 24 horas, mostra a solidão desse personagem, que quando só deixa transparecer esse sentimento. A estrutura da série é uma corrida contra o tempo em que Jack Bauer terá poucas horas para solucionar problemas que envolvem o país e até mesmo sua família.

1 - n. 1

mento do homem mudou.

ano

da Tarde, dizia que a maioria dos homens e mulheres (68%) afirmou que o comporta-

Revista GEMI n IS |

lhos de forma participativa, nos assuntos que outrora faziam parte apenas do mundo

270


Cada episódio dura em média 42 minutos e durante a exibição pela Fox, nos Estados Unidos, mesmo nos intervalos comerciais, o cronômetro continua sendo marcado,

às 8h termina o episódio e o cronômetro para. Inicia-se o próximo episodio às 8h. O cronômetro aparece também durante episódios, aumentando a pressão para a solução dos problemas de cada temporada, como se fosse um aviso: o tempo está passando... A primeira temporada da série 24 Horas começou a ser exibida nos Estados Unidos pela Fox em novembro de 2001 e o tema principal foi um possível atentado contra um candidato à presidência dos Estados Unidos: David Palmer, um candidato uma pequena observação, comparando a história desta personagem, com a história do

ricano. Então, Jack Bauer é convocado para impedir um atentado contra o novo presidente e é envolvido num drama pessoal: sua filha Kim Bauer é sequestrada por pessoas ligadas ao atentado. Vários

modelos

de

masculinidade

são

apresentados

na

série,

mas a posição de Bauer é a que mostra maior mobilidade, destacando os custos emocionais de tal movimento. O hibridismo em 24 Horas Apesar de ter o suspense e ação fascinantes, a série 24 Horas trabalha o drama que lembra as telenovelas (melodrama). Podemos assim dizer: Ação e suspense: gênero masculino. Drama: gênero feminino. O melodrama é a forma preferida da televisão. A série utiliza este veículo para além do melodrama que é voltado para o público feminino, e insere elementos voltados também para o público masculino como a ação e o suspense. Levando isso em consideração, podemos dizer que essa inserção de vários elementos é um jogo de marketing, que utiliza a mistura de gêneros para atrair telespectadores de ambos os sexos. A essa mistura de gênero damos o nome de hibridismo, pois numa série de ação e suspense o melodrama aparece como um importante aliado para tornar ainda mais complexa uma trama. A série não é simplesmente melodramática, sua estrutura tem a forma de se-

S ilvio Luiz Titato

suas raízes, ideais e popularidade. David Palmer, na série, será o novo presidente ame-

atual presidente americano Barack Obama e toda especulação em volta dele por causa

24 H oras

afro-americano com grandes chances de êxito nas eleições presidenciais. Podemos fazer

novo homem e o hibridismo na série

o episódio. Por exemplo, o episódio inicia-se às 7h, o cronômetro inicia a sua contagem,

O

como se neste espaço de tempo, algo estivesse ocorrendo. Fechando uma hora, fecha-se

271


riados de telenovelas, além da aparência masculina, há a implantação de drama puro. Apesar de utilizar o melodrama, 24 Horas tem o recurso da qualidade das séries de Os recursos altamente tecnológicos como a utilização de sofisticados computadores, telefones celulares (algo do universo masculino), condensam-se ao drama do rapto que Jack Bauer e sua família vivem na primeira temporada, misturando-se a ele-

terminar sua missão, vai falar com Kim, sua filha. Depois da conversa, Bauer entra em seu carro e começa a chorar, em seguida atende a um chamado em seu celular, disfarça as lágrimas e é convocado a uma nova missão. Na série, apesar de sofisticados, os recursos tecnológicos são tratados com um elevado grau de ambivalência e incerteza, criando assim uma interpretação de que a tecnologia representa as emoções pessoais da personagem principal Jack Bauer. Isso pode ser percebido, por exemplo, numa situação em que quando estamos nervosos, ansiosos, não conseguimos raciocinar corretamente e os celulares não funcionam, há pane. Na série, várias janelas são apresentadas sugerindo múltiplas tramas. Há alusão, nesse caso, à internet e aos jogos eletrônicos e o horário apresentado faz-nos pensar na possibilidade de documentário (algo real), envolvendo o real e a ficção e também pelo fato de a história ocorrer baseada na hora, em tempo real. 24 Horas apresenta o masculino na era global em que terá de lidar com o drama que é tipicamente feminino, demonstrando, assim, diferentes padrões de masculinidade e virilidade. A exploração da vida pessoal de Jack Bauer, a personagem principal da série, faz com que comparemos aos realities shows em que as vidas das pessoas são expostas. Nesse sentido, o nosso herói não é apenas apresentado em sua vida profissional de agente federal, mas também de uma forma dramática, envolvendo sua família. O nosso “Rambo” não será apenas o super-homem, mas terá que saber lidar com suas particularidades, suas emoções, seu lado afetivo: uma nova visão de homem. Também na terceira temporada, Chloe, uma funcionária da Cia. e que trabalha com Bauer, encontra na mesa dele vestígios de que Jack é usuário de drogas, possivelmente heroína. Kim, a filha, também trabalha na mesma equipe, e quando Chloe descobre o envolvimento dele com as drogas, a filha de Bauer adentra a sala dele e a vê. Chloe, por sua vez, conta a filha de Bauer a suspeita de que o pai dela seja usuário drogas e Kim fica chocada com a notícia.

1 - n. 1

da terceira temporada Jack terá de defender o país de uma ameaça biológica e, após

ano

mentos universo feminino, como, por exemplo, ter de lidar com as emoções. No final

Revista GEMI n IS |

televisão com efeitos especiais, qualidade na imagem; um produto “cult”.

272


Após a descoberta do envolvimento do pai com as drogas, Kim fica abalada, Michelle, outra funcionária da equipe de Jack vai falar com ela e a orienta a deixar o

Kim: eu estou qualificada para o trabalho. Michelle: suas qualificações não é a questão. Suas emoções sim. Kim: eu posso controlar minhas emoções... Na série, a ação é predominante, toda temporada ocorre num curto prazo de 24 horas. Jack é o grande herói da série, porém, toda vez que se defronta com sua realidade pessoal, inclusive porque a filha trabalha com ele, há uma quebra na ação. A série é insetrando a fraqueza humana e toda pressão vivida para se manter forte, resistente. Mas

Uma dade pelo

análise

examina menos

sobre

uma

parcialmente,

as

grande causada

representações

crise por

cultural novas

de na

condições

masculinimasculinidade, de

trabalho.

Ele escreve que “o discurso da crise da masculinidade, registrada como problema de gênero que foram, de maneira mais sutil, as contradições sociais que pressionam a função ideológica do ‘novo homem americano domesticado’. A masculinidade era percebida em crise. Podemos assim dizer que a série explora o machão moderno, o homem feminino, ou seja, o heterossexual apresentado de uma forma mais branda, familiar, emotiva. Esse homem contemporâneo teve de deixar o mar, viver novas oportunidades, uma nova visão da sociedade em movimento em que as mulheres não são mais as mesmas, agora inseridas no mercado de trabalho, se comparam a eles tanto no aspecto profissional, quanto sexual. Nesse sentido, afirma Oliveira (1997) que: O homem feminino era uma espécie de náufrago chegando a uma ilha deserta e tentando se adaptar às condições de vida do lugar. Ele não escolheu estar ali. Não preparou seu espírito para mudar de vida. Não esqueceu as facilidades e o conforto do lugar onde morava. Mas como vinha questionando a validade de viver para o trabalho, estressado, viu no naufrágio uma oportunidade de experimentar a novidade. O machão viajava no mesmo navio prestes a afundar. Ele era – em muitos casos ainda é – o náufrago que resistiu até o último minuto às ordens de se jogar no mar. Se recusava a entregar aos peixes sua preciosa bagagem. E quase morreu afogado tentando nadar e, ao mesmo tempo, segurar a sacola que insistiu em levar com o telefone celular, os cartões de crédito e os dólares.

S ilvio Luiz Titato

lar de Jack e suas emoções, caracterizando o que chamamos de hibridismo de gênero.

sempre que ele está só, o drama aparece, lembrando as telenovelas: um mundo particu-

24 H oras

rida em drama puro, ainda mais com a descoberta dele ser usuário de drogas, demons-

novo homem e o hibridismo na série

e a seguir, transcrevemos um trecho da fala de ambas representando esta característica:

O

trabalho por causa de sua vulnerabilidade pelo ocorrido. O drama aparece nesta cena,

273


mem com sexto sentido em que deixa aflorar seu lado sentimental, antes visto apenas em personagens femininas, ainda mais em um produto masculino: a ação. O novo homem terá que se adaptar com a pressão do capitalismo, do trabalho e da nova sociedade em que as mulheres não são mais as mesmas de cinquenta anos atrás. Bauer não é necessariamente hipermasculino e nem podemos classificá-lo como metrossexual urbano, nem bonito é. Ou seja, podemos pensar que era um homem comum inserido num mundo moderno e que terá de enfrentar as mutações sociais. Bauer é um homem durão que sentirá na pele a necessidade de emocionar-se, enfrentar a dura realidade de sequestro em sua família, a defesa da pátria, e assim, trabalhar seu lado emocional. Este aspecto, antes pertencia quase que exclusivamente ao mundo feminino. É um teste contínuo e Bauer terá de se encaixar nesse novo mundo em que os homens são mais maleáveis, emotivos. Entretanto, no trabalho, Jack jamais demonstra sua emoção; esse lado afetivo só aparece quando essa personagem se encontra sozinha ou com sua família. A humanidade de Bauer é confirmada pela sua ansiedade no decorrer das cenas de ação. Eis o homem moderno: humano, frágil, mas que terá de ser firme e racional. 24 Horas trata da transformação da masculinidade heterossexual. Não é alusão ao homossexualismo, mas sim de uma nova visão do homem heterossexual. Há um slogan em um DVD da série 24 Horas que diz que “ Você precisa de um homem que não conhece limites”. Portanto, podemos interpretar esta frase com o sentido de que precisamos de um homem complexo: racional, humano, ou seja, ilimitado. A sociedade transformou-se, a televisão acompanhou essa metamorfose e elabora personagens que refletem essas alterações sociais. Jack Bauer é o homem comum moderno que tende a enfrentar desafios para superar a vida contemporânea. Não salientamos aqui a questão da violência envolvida na série, por exemplo, o sequestro e atentado, e sim a questão comportamental da personagem Jack Bauer. Bauer é um “machão” comum e os fatos ocorridos com ele tem a finalidade de que essa personagem faça uma reflexão de que sua postura tem de ser modificada,

1 - n. 1

num mundo em que os homens terão de pensar, agir, sentir; é quase um modelo de ho-

ano

Bauer é o modelo de homem que terá de lidar com as transformações sociais

274 Revista GEMI n IS |

De uma hora para outra, os homens perderam espaço no mercado de trabalho. Não podiam mais afirmar sua virilidade e diferenciar-se da mulher pelo poder, pelo dinheiro ou pelo status. Não tinham mais um mundo só seu, a contrapartida ao mistério da fertilidade feminina. As mulheres não queriam apenas uma oportunidade de acesso ao clube do Bolinha. Elas queriam modificar os estatutos do clube. (OLIVEIRA, 1997, p. 67).


reanalisada. É impossível agir somente com a razão quando está em jogo nossa família, nosso porto seguro, nossa segurança e nação.

formações acontecendo na sociedade. Podemos, além de 24 Horas, observar qualquer filme de ação ou suspense contemporâneo em que as mulheres são agentes federais, detetives, aventureiras, assaltantes, etc., personagens anteriormente representadas por homens. Não há necessariamente um personagem típico feminino ou masculino. As modificações ocorridas no mundo contemporâneo em que a tecnologia e a informação mostram-se em constante movimento, o gênero humano acompanha esse dos anos, misturando valores, posturas, etc. Quanto mais híbrida é uma sociedade,

Referências MCPHERESON, Tara. Technosoap: 24, Masculinity and Hybrid Form. In: PEACOCK, Steven. Reading 24: TV Against the Clock. I.B. Taurus: New York, 2007. OLIVEIRA, Malu. Homem e mulher a caminho do século XXI. São Paulo: Ática, 1997. Revista Veja.

S ilvio Luiz Titato

dos toda a metamorfose ocorrida entre homens e mulheres.

mais complexa tornam-se as representações televisivas para transpor em seus conteú-

24 H oras

processo de transformação de sua criatura, e da mesma forma, altera-se com o passar

novo homem e o hibridismo na série

do na série 24 Horas demonstra uma nova visão de mundo em que há inúmeras trans-

O

A televisão, enfim, é um espelho da sociedade. O hibridismo de gênero ocorri-

275


Quem é D exter Morgan? A questão da identidade e ética presentes em uma série de televisão Rubens Francisco Torres Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); administrador e bibliotecário. Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som. E-mail: rubens83@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 275 - 288

da


Resumo Dexter é um seriado americano que mostra a vida de um serial killer que mata outros assassinos. Nessa série estão presentes muitos temas filosóficos importantes, como a busca pela identidade pessoal, o valor da ética, e quais as implicações que uma atitude pode ou não ter, de acordo com a maneira que escolhemos resolvê-la. O artigo procura destacar como esses temas estão presentes no seriado, e como são determinantes para a evolução das personagens na trama. Palavras - chave: seriado televisivo; filosofia; identidade pessoal; ética.

A bstract Dexter is an American television show that chronicles the life of a serial killer who kills other killers. In this series are present many important philosophical issues, such as the search for personal identity, the value of ethics, and what implications an attitude may or may not, according to the way we choose to solve it. The article seeks to highlight how these themes are present in the show, and how they are crucial to the evolution of characters in the plot. Keywords: TV series, philosophy, personal identity and ethics.


278

1 Introdução

O

s seriados americanos evoluíram consideravelmente nas últimas décadas, tanto em aspectos técnicos, quanto em conteúdo e assuntos abordados. Eles conseguem promover debates e discussões importantes sobre temas que,

muitas vezes, as pessoas se recusam a comentar. Além disso, os seriados procuram abordar assuntos complexos da vida humana de forma leve, na forma de entreteni-

mento, mas, em sua essência, muitos conceitos filosóficos e psicológicos da personalidade humana estão diluídos, estimulando a reflexão, e o questionamento por parte dos telespectadores. Esse é o caso de Dexter, seriado produzido pela rede de TV americana Showtime, durante o período de junho de 2006 a dezembro de 2009, e que levou ao ar quatro temporadas de 12 episódios cada. Dexter é uma adaptação do livro Darkly Dreaming Dexter, de Jeff Lindsay, e mostra o dia a dia de um serial killer que mata outros psicopatas assassinos, uma espécie de herói vingador, e que tenta manter uma vida comum para encobrir seus crimes. É uma série que possui características seriais, formato novelesco, em que cada episódio é uma sequência natural do anterior e cada temporada possui um grande arco narrativo que a sustenta, bem como um arco que liga cada temporada. Além disso, existem pequenos arcos que se desenvolvem e completam tanto em um episódio quanto em vários. O sucesso desse seriado cresce a cada nova temporada. Ressalta-se que sua audiência foi uma das maiores do canal Showtime em 2009, e também foi muito elogiada pela crítica, recebendo indicações a prêmios como o Globo de Ouro, na qual saiu vitoriosa nas categorias de Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante. Como um seriado em que a personagem principal é um assassino cruel e violento pode fazer sucesso e despertar tanto interesse? Esse é um exemplo de como as séries americanas possuem uma estrutura muito forte e trabalham, na verdade, com temas universais que fazem parte da vida de todos. A forma como a vida de Dexter é mostrada, por meio de sua narração, o uso de flashbacks, e sua sinceridade com o pú-


blico, permite estabelecer uma ligação e identificação entre eles. Suas angústias, medos e preocupações são muito semelhantes, embora, em menor escala, ao que sentem os

punição, e isso gera um olhar mais complacente por parte do público em relação ao comportamento do protagonista.

A série inicia nos apresentando as principais características da vida dupla do personagem principal, Dexter Morgan, um analista forense, especialista em “sangue”, que trabalha para o departamento de homicídios da cidade de Miami. O personagem possui como segredo o fato de ser um serial killer que mata outros psicopatas como ele, principalmente os que escapam da lei ou que a polícia não consegue prender. Dexter só consegue manter essa vida dupla, porque foi treinado desde pequeno por seu pai adotivo, Harry Morgan, um policial indignado com a justiça, que permite que criminosos perigosos escapem ilesos de punição. Percebendo que seu filho possuía características de um psicopata, ele desenvolveu um código de ação e proteção ao filho, e o treinou para que ele aprendesse a controlar seus instintos assassinos e os direcionasse para exterminar assassinos violentos foragidos da polícia e da lei. Harry morre quando inicia a ação do seriado, mas ele acompanha o filho como uma espécie de consciência, durante os episódios das quatro temporadas da série. Assim, Dexter procura

irmã policial, Debra Morgan, filha de seus pais adotivos. Também tenta manter um relacionamento amoroso com Rita Bennet, uma mulher que foi abusada no passado por seu antigo marido, e que possui um casal de filhos pequenos. Dexter se desdobra nesses dois universos: em um ele é um bom moço, educado e ético, enquanto no outro, é um frio e calculista assassino que não sente o menor remorso em retalhar suas vítimas e jogá-las envoltas em sacos plásticos no oceano. A única pessoa que desconfia de seu comportamento é um policial companheiro de trabalho, o Sargento James Doakes. Em sua primeira temporada, o departamento de homicídios de Miami envolve-se na investigação de um crime serial, em que as vítimas são prostitutas que foram encontradas retalhadas em pedaços e sem sangue. Inicialmente, Dexter não se envolve diretamente nessa investigação, justamente por não haver sangue nas cenas dos crimes,

Rubens Francisco Torres

manter vínculos sociais com as outras pessoas que trabalham com ele, incluindo sua

manter uma vida social de disfarce, trabalhando no departamento policial, e tentando

questão da identidade e da ética presentes em uma série de televisão

2 Resumo das temporadas

D exter M organ? – A

nido. A cada dia são inúmeros os casos de criminosos que acabam livres de qualquer

é

compreendendo o objetivo de Dexter de tentar punir realmente quem merece ser pu-

Q uem

telespectadores em diversas situações da vida cotidiana. Além disso, o público acaba

279


mas ele se sente atraído pelo método inovador do criminoso. Mas, logo, Dexter percebe que o assassino o conhece muito bem, e esse começa a deixar pistas, mostrando que os isso, o criminoso, apelidado de Ice Truker Killer (ITK), começa a revelar fatos da vida pessoal de Dexter, que até ele mesmo desconhecia. Cada cena de crime em que ITK deixa uma vítima é um local relacionado com algum fato da vida de Dexter. Surge aí um

polícia acredita ter encontrado o verdadeiro ITK e descobre pistas muito fortes que um homem chamado Neil Perry seja o verdadeiro criminoso. Porém, Dexter ainda permanece em dúvida e acredita que o verdadeiro ITK seria alguém muito mais inteligente e astuto. Nesse momento, muitas memórias do passado começam a voltar na mente de Dexter, e toda segurança que ele consegue manter, fica abalada, ao descobrir que seu pai biológico havia morrido há pouco, diferentemente do que Harry havia contado a ele e sua irmã. Como toda sua vida foi formada sob os ensinamentos de Harry, descobrir que ele não foi tão sincero é um choque e tanto para ele e para a irmã. No final da temporada, Dexter é chamado a investigar um crime que lhe traz terríveis recordações de sua infância, e que o faz rememorar que sua mãe foi assassinada na sua frente, e os assassinos o deixaram ao lado do corpo dela, sob seu sangue. Finalmente, a verdadeira identidade de ITK é revelada e fica comprovado que ele realmente esteve muito próximo de todos. Dexter descobre que o assassino é na realidade seu irmão, e que também assistiu ao assassinato da mãe, quando pequenos. ITK tenta convencer Dexter a abandonar o código de Harry e que ele o deveria acompanhar e ser livre para liberar sua fúria assassina. Dexter se sente confuso inicialmente, já que não esperava encontrar alguém tão próximo e que compreendesse seu lado obscuro, porém ainda acredita no Código de Harry, e não aceita a proposta do irmão, terminando por assassiná-lo. Ao final, ele acredita ter feito a melhor escolha, e se sente um verdadeiro herói de Miami, sonhando em um dia ter seu talento reconhecido e aceito por todos. A segunda temporada tem início com Dexter se deparando com dificuldades ao voltar a sua antiga rotina. Depois de conhecer seu irmão, e de outros fatos que aconteceram, ele encontra dificuldades em voltar a matar, apesar do desejo ainda existir. Além disso, o novo caso de assassinato serial a ser investigado pelo departamento de homicídios é iniciado quando a polícia encontra os sacos plásticos com pedaços de vítimas que o Dexter havia lançado ao mar. Esse serial killer é chamado de Açougueiro de Harbor Bay, mas o que ninguém da polícia desconfia é que o responsável por essas mortes é Dexter, o que aumenta ainda mais sua crise pessoal, pois isso demonstra que

1 - n. 1

revelar seus segredos, por isso é preciso eliminá-lo. Após a metade da temporada, a

ano

grande enigma que Dexter procura desvendar, pois ele teme que esse criminoso possa

Revista GEMI n IS |

crimes que ele comete, na verdade, são uma mensagem cifrada para Dexter. Mais que

280


ele feriu uma regra do Código do Harry, e que isso pode lhe custar a liberdade. Além disso, Dexter passa por uma crise pessoal com sua namorada, que acredita que ele seja

que se torna sua madrinha de recuperação. Lila é uma mulher que diz poder ajudá-lo a se entender, pois ela acredita que os dois possuem muito em comum. Eles acabam se envolvendo amorosamente, pois ela se torna uma mulher que o entende e o motiva a Dexter. Isso acaba aumentando ainda mais a crise emocional do personagem, deixando-o suscetível a erros em seus assassinatos, e na tentativa de encobrir as pistas de seus crimes anteriores para que seus amigos da polícia não o descubram. Enquanto isso, em seu trabalho, Doakes está cada vez mais desconfiado de Dexter, e acaba se prejudicando, ao tentar confrontá-lo. Apesar dos pedidos de Laguerta para que ele se afaste de Dexter, Doakes continua a investigá-lo e acaba descobrindo que Dexter é o verdadeiro Açougueiro de Miami. Dexter o prende em uma cabana afastada, e o mantém preso, enquanto decide o que deve fazer, e tenta confundir, ao máximo, os agentes de seu departamento que estão cada vez mais próximos da verdade. Ele também tenta se afastar de Lila, pois percebe que ela pode ser pior do que ele imaginava, podendo prejudicá-lo. Com relação à Doakes, surge um grande dilema, pois se ele o libertar sua verdade sombria será revelada, porém se o matar, ele estará ferindo o Código, que diz que ele não pode matar pessoas inocentes. Lila acaba descobrindo os segredos de Dexter, e com a esperança de que ele a aceite novamente, ela acaba matando Doakes, livrando-o desse

panheira, como ela deseja. Lila então o leva até uma armadilha, tentando matar ele e os filhos de Rita, porém eles acabam sendo salvos pela polícia. Lila foge para outro país, mas Dexter a encontra, e a mata. Na terceira temporada, tudo corre bem, enquanto Dexter planeja o assassinato de um traficante de drogas, mas, no momento do assassinato, ele acaba matando o homem errado, o irmão de Miguel Prado, um promotor muito importante e influente em Miami. Com isso, as angústias e dúvidas de Dexter só aumentam. Ele já sabe que o pai adotivo não era quem ele pensava ser, o código mostra não ter todas as respostas para ele se manter livre, e suas ações podem gerar falhas que podem fugir de seu controle a qualquer momento. Seu envolvimento com Rita está cada vez maior, porém, imaginar que sua vida dupla pode um dia prejudicar, não apenas sua própria vida, mas também

Rubens Francisco Torres

ao descobrir que Lila possui uma mente psicótica como a dele, e não a aceita como com-

crime, incriminando o próprio Doakes como o serial killer procurado. Dexter se assusta

questão da identidade e da ética presentes em uma série de televisão

voltar a praticar seus assassinatos, apesar dela não conhecer ainda o “lado negro” de

D exter M organ? – A

participar de encontros em um grupo de tratamento. Nesse grupo, ele conhece Lila,

é

rio para tentar encobrir sua vida dupla e não despertar dúvidas na namorada, e aceita

Q uem

um usuário de drogas. Ele passa, então, a assumir essa mentira de que é um ex usuá-

281


a dela e de seus filhos, bem como a de sua irmã e amigos da polícia, é algo que o abala, e o faz questionar seus atos. Dexter promete a Miguel Prado encontrar Freebo, que como também faz o departamento de homicídios. Miguel começa a admirar Dexter e se aproxima muito de sua vida, tentando tornar seu amigo. Eles começam a sair juntos, principalmente com suas famílias, o que aumenta ainda mais sua relação com Rita.

exposto. Dexter acaba encontrando Freebo e o mata, mas Miguel descobre, e fica feliz pelo que Dexter fez. Miguel tenta convencê-lo de que o entende e que fará de tudo para protegê-lo, e acaba revelando que também possui um lado sombrio escondido. Dexter aceita essa amizade e acredita que seria ótimo poder dividir o fardo de sua vida dupla com alguém, e ensina o Código a Miguel. Harry tenta alertar Dexter, porém ele só descobre que fez a coisa errada, quando percebe que Miguel matou uma mulher inocente por interesse pessoal. Surge um verdadeiro duelo entre os dois, pois cada um sabe que deve se livrar do outro para continuarem livres, e cada um planeja uma forma de ação. Dexter acaba por assassiná-lo e, ao final da temporada, se casa com Rita, que está grávida de um filho dele. A quarta temporada mostra que a vida de Dexter já não é mais tão simples como antes. Seu relacionamento com Rita não é mais apenas uma fachada, ele agora faz parte de uma família e deve assumir as responsabilidades de pai. Com isso, as consequencias de sua vida dupla podem ser catastróficas, principalmente na vida de todos próximos a ele. Harry está, a todo momento, o alertando sobre isso, e o quanto ele deve tomar cuidado com suas ações para não fugir do código, como antes. Harry, como consciência de Dexter, afirma que todos os erros do passado surgiram, porque ele não foi prudente em relação ao código, e que agora, com uma família, as coisas podem se tornar imprevisíveis para ele. Sua nova vida o está prejudicando e tirando sua concentração; ele dorme mal, se atrapalha no emprego e acaba cometendo falhas graves em seu trabalho, mas, mesmo assim, ele continua matando os criminosos que acredita que devam ser exterminados. Em meio a todo esse tumulto pessoal, Frank Lundy, o antigo investigador do FBI, que foi responsável pela investigação do caso do Açougueiro de Miami volta, e pede a ajuda de Dexter para tentar localizar o que ele considera o maior serial killer de sua carreira. Esse assassino serial é chamado por Lundy de Trinity Killer, pois, há 30 anos, ele mata três pessoas, sempre da mesma forma, e sempre em cidades diferentes, e com um espaço de tempo considerável. Dessa vez ele está atacando em Miami e Dexter passa a se interessar em encontrar esse assassino para poder se livrar dele. Lundy acaba

1 - n. 1

cia, diz que deve se afastar de qualquer relação com Miguel, pois isso pode deixá-lo

ano

Porém, Dexter fica em dúvida se deve ou não ter um amigo. Harry, em sua consciên-

Revista GEMI n IS |

ele acredita ser o assassino do irmão, e inicia uma investigação para localizá-lo, assim

282


morto e Debra, que também foi baleada, mas sobreviveu, assume a responsabilidade de continuar as investigações de Lundy. Dexter acaba conhecendo Trinity e cria uma nova

matar logo, quer aprender com ele como conseguir ser assim também, sem ser descoberto e, principalmente, como viver em paz com seus pensamentos. Com o tempo Dexter percebe que Trinity não é um bom pai e marido como aparenta, ele na verdade mantém com a sua própria família. Assim, resolve que Trinity deve ser eliminado logo, mas isso não é uma tarefa fácil, principalmente, porque ele precisa manter as aparências no seu emprego e em sua casa. Em determinado momento, Dexter tem a oportunidade perfeita de matar Trinity, no momento em que esse tenta se suicidar, porém, ele o salva, pois não consegue realizar uma morte sem passar por todo o seu ritual. Trinity passa a confiar mais em Dexter, e faz diversas revelações sobre sua vida, porém Dexter fica cada vez mais incomodado em como ele trata sua família, e acaba descobrindo que, na verdade, o seu ciclo de mortes não é de três pessoas, mas sim de quatro. Ele sempre inicia um ciclo de mortes, sequestrando e matando uma criança, que depois ele enterra no concreto das construções civis, que são edificadas para sua comunidade. Isso irrita ainda mais Dexter, que quer, de todo modo, assassiná-lo, para terminar esse ciclo de mortes. No final da temporada, Trinity acaba descobrindo a verdadeira identidade de Dexter Morgan, e ele, após várias tentativas, consegue finalmente encurralar o inimigo, e o matar. O que ele não esperava é que Trinity deixou um presente horrível para Dexter, a morte de uma

A busca pela identidade pessoal de Dexter é algo presente nas quatro temporadas do seriado. Dexter busca se entender, primeiramente para poder aplicar o código da forma mais perfeita possível para que seu lado oculto não seja descoberto, e para poder continuar a agir como um justiceiro. Durante o princípio da primeira temporada, ele tem certeza de quem é realmente, pois se reconhece como um serial killer. E tem consciência de que isso é algo que ele nunca poderá modificar. Seu pai adotivo sempre lhe foi sincero a respeito disso. Dexter cresceu e se tornou um homem, tendo consciência de que era um psicopata com desejo de matar e destruir outras vidas, sendo impossível controlar esse instinto, e de ser incapaz de ter sentimentos e afetos por outras pessoas,

Rubens Francisco Torres

3 A questão da identidade pessoal

pessoa muito especial para ele, o que vai modificar todos os rumos da série no futuro.

questão da identidade e da ética presentes em uma série de televisão

a família dominada e submissa pelo medo, algo que Dexter não aceitaria nunca fazer

D exter M organ? – A

to, íntegro e um ótimo pai, algo que Dexter também deseja ser, por isso ele resolve não o

é

um pai de família admirado por todos de sua comunidade. Este aparenta ser um hones-

Q uem

identidade para se aproximar do criminoso. Ele se surpreende ao descobrir que Trinity é

283


o que o impossibilitaria de viver em sociedade. O pai adotivo de Dexter, então, criou o filho, tentando moldar sua personalidacopatas criminosos. Redirecionando seu desejo assassino, o filho poderia ser, não um vilão, mas um justiceiro que limparia a cidade de quem realmente fosse perigoso para a sociedade. Nascia aí o Código do Harry, que consiste em várias regras para que Dexter

fia que alguma pessoa seja um assassino cruel, até o assassinato e descarte do corpo. Também define como Dexter deve se comportar no dia a dia para não ser descoberto. Ele deve simular sentimentos para que as outras pessoas nunca desconfiem dele, e assim consiga viver e transitar livremente em sociedade. A base da convivência social de Dexter é moldar a forma como as outras pessoas o enxergam. Basicamente, ele trabalha o que o filósofo Sartre chamou de Reconhecimento: “[...] Reconheço que sou como o outro me vê [...]”, (SARTRE, 1997, p. 290). Ele molda sua personalidade, de forma que ela se torne aceitável para o Outro. Nunca revela verdades de sua vida, a não ser que seja a única forma do outro o aceitar. Assim, ele revela coisas de sua vida pessoal para Rita, como ter presenciado o assassinato da mãe, num momento em que sua relação com ela está abalada por conta de suas mentiras na tentativa de encobrir seu lado oculto. Também aceita criar novas personalidades se isso for necessário para manter seu disfarce ou conquistar seus objetivos, como quando assume para Rita que é um ex viciado em drogas, mesmo sem nunca ter usado, e também quando se apresenta como uma outra pessoa, para se infiltrar na vida de Trinity. Porém, Dexter acaba esbarrando em pessoas que não são manipuláveis facilmente, como Doakes, que não aceita a imagem que Dexter tenta aparentar para ele, e desconfia, constantemente, de seus atos e ações. Para situações assim, Dexter procura se envolver o mínimo possível, e quando se sente ameaçado, manipula pessoas que possuem poder sobre quem o intimida, para livrar o seu caminho. Mas, Dexter começa a questionar todas as suas certezas, à medida que se depara com situações limites. Se ele começou o seriado confiante de saber quem é de verdade, ele termina completamente em dúvida. Ele mesmo diz ao irmão, no último episódio da temporada, que já não sabe mais quem ele é de verdade. Um dos grandes motivos dessa dúvida de não se entender, é que ele começa a sentir algo pelas pessoas que o cercam. Apesar de nunca deixar de manipular e usar seus amigos e a namorada, de acordo com seus interesses pessoais, ele acaba se sentindo responsável por eles de modo que soa mais terrível o mal que ele pode causar na

1 - n. 1

O código define como Dexter deve agir, desde o princípio, quando ele descon-

ano

consiga matar sem ser descoberto, e que define quem ele pode ou não matar.

Revista GEMI n IS |

de para algo que ele considerava certo, e o treinou para ser um caçador de outros psi-

284


vida delas do que o quê pode acontecer consigo mesmo caso, a verdade seja revelada.

285

Mas, tudo isso nasce do próprio Código do Harry. Um psicopata não obedece a

(também inconsciente e responsável por reprimir os desejos incontroláveis do Id, para que o sujeito esteja de acordo com o que a sociedade e cultura esperam dele) e o Ego (unidade consciente e que lida com a luta entre o Id e o Superego, obedecendo ao que é espera o Superego). Assim, para a psicanálise, uma mente psicótica possui problemas na formação do seu Superego, o que submete o Ego a todos os desejos do Id. O código, personificado na série pelo espírito de Harry, que aparece nos momentos introspectivos de Dexter, acaba se tornando o substituto do Superego da personagem, pois seu pai percebeu que, se o menino crescesse sem algo que freasse seus instintos, ele acabaria se destruindo. Porém, isso vai contra o que se entende de uma mente psicótica. Seria impossível que ele aceitasse piamente ao código e às regras do Harry, por ser um psicopata. A descoberta de que ele não nasceu assim, mas se tornou, após ter vivenciado o brutal assassinato da mãe, é uma das respostas que encontramos na série para entender a sua personalidade. Filósofos, como Sartre e Merleau-Ponty dizem que somos “seres em situação” e que, por isso, vivemos situações que não escolhemos (não escolhemos nossa família, nossa classe social, entre outras características), “mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida” (CHAUI,

vidas. Dexter escolheu seguir as ordens de Harry por questão de sobrevivência e por respeitá-lo, e isso o tornou um psicopata diferente dos outros. Seus questionamentos continuarão sempre presentes, pois ele não consegue entender o que sente de verdade por pessoas, como Rita e Debra. Ele acredita ser uma pessoa que não possui sentimento algum por outras pessoas, porém, há algo nessas pessoas próximas, que o faz as proteger mais do que tudo. Isso se torna uma fraqueza na sua conduta, e que os antagonistas de cada temporada utilizam para tentar convencer Dexter a aceitar seu lado obscuro. Em cada temporada, há um antagonista que representa pessoas importantes na formação de uma pessoa. Um irmão, uma esposa, um amigo e um pai que são como ele e que o entendem. A proposta que eles fazem ao Dexter, cada um da sua maneira, é que ele descarte esse Superego falso, criado por um pai postiço, e aceite sua condi-

Rubens Francisco Torres

que vivenciaram, mas cada um teve a própria liberdade de escolher o que fazer de suas

2001, p. 61). Dexter e seu irmão não escolheram o destino que tiveram e as situações

questão da identidade e da ética presentes em uma série de televisão

conhecido como princípio da realidade, que busca agradar o Id, sem transgredir ao que

D exter M organ? – A

mada pelos impulsos e instintos orgânicos que buscam o prazer do sujeito), Superego

é

a vida psíquica em três níveis, conhecidos como Id (unidade inconsciente, que é for-

Q uem

nada, a não ser seus próprios desejos. De acordo com Chauí (2001), a psicanálise define


ção de serial killer. Dexter fica tentado, mas há algo nele que o impede de aceitar esses contratos. Entender o que é esse “algo” é o que Dexter e a série procuram descobrir. É personalidade de Dexter, pois, para ele, é difícil escolher um lado definitivo; ele nem ao menos consegue saber o que é certo e o que é errado em tudo o que vivencia.

tentativa de conter a violência entre as pessoas, e harmonizar a vida em sociedade. O código que Dexter segue parte do princípio de que os fins justificam os meios, porém, isso é contrário à ética, pois para ela, os meios só são justificáveis se estiverem de acordo com os fins da própria ação, sendo éticos também (CHAUI, 2001). Matar alguém, porque ele é um assassino, e por que a justiça não o pune, não é aceito pela ética, pois um crime não anula o outro, mesmo havendo argumentos que se supõe sustentá-lo. O código nasce do desapontamento de Harry com o sistema e com a justiça. Ele passa a desacreditar na eficiência de um sistema justamente, porque a justiça passa a libertar criminosos que Harry prendia, e que voltavam a praticar seus crimes. Harry passa a ter um pensamento aproximado ao que filósofos contemporâneos antirracionalistas, como Nietzche, possuem. Ele passa a acreditar que, ser submisso a certas leis, não diminuem a violência, pelo contrário, só a faz aumentar. Ele passa a perceber no filho as características de alguém com força suficiente para enfrentar essas leis e as desrespeitá-las, de modo que promova uma qualidade de vida melhor para todos. Mas, Harry sabe que não é tão simples, por isso é tão rígido na formulação e imposição de seu código ao filho, tornando-se alguém que o domina da mesma forma que a justiça domina a todos. Assim, são os antagonistas que apresentam a Dexter formas de vida realmente mais próximas do pensamento antirracionalista, em que ele pode aceitar a sua liberdade e eliminar o medo, e tudo que possa o enfraquecer, embora elas sejam elaboradas de forma doentia e sem reflexão sobre os efeitos que podem vir a gerar. Dexter inicia a série acreditando ser uma espécie de herói que pode salvar a todos, mas termina a quarta temporada, questionando seus atos, suas ações, e percebendo que não possui controle nenhum nos desdobramentos que suas atitudes podem tomar no futuro. Ele começa forte, mas acaba se reconhecendo fraco e impotente. Além disso, a série estimula a reflexão sobre condutas éticas em diversos momentos em arcos narrativos menores, envolvendo outras personagens. Por exemplo, no

1 - n. 1

As ações de Dexter são contrárias a ações éticas. A ética nasceu justamente na

ano

4 Ética e violência

Revista GEMI n IS |

como se houvesse uma eterna luta entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, na

286


final da primeira temporada, a Tenente Laguerta perde sua posição de chefia da divisão de homicídios para outra mulher. Inicialmente ela se sente revoltada, e acredita ser uma

pessoal em um relacionamento amoroso, acredita que Laguerta é sua amiga e procura sua ajuda sempre que necessário. Esse relacionamento conturbado acaba atrapalhando o trabalho da nova chefe, que não consegue mais se concentrar nas investigações momento, descobrimos que Laguerta foi a responsável por toda essa crise da outra, sendo capaz até de ter um caso com o namorado dela. Laguerta toma uma decisão completamente antiética, que para ela é justificada por considerar injusta a decisão de seu superior em demiti-la. Ela se sente mal por ter feito isso, e fica incomodada com a desaprovação de alguns colegas de trabalho, mas não volta atrás em sua decisão e continua como chefe. Essa é uma das principais reflexões que a série procura despertar no seu público, se vale a pena ser ético, seguir as normas e leis estabelecidas, ou se não, os fins, em certas ocasiões, se podem ou não justificar os meios. Se o correto é ser ético, como lidar com as injustiças que existem? E se o melhor é infringir as normas, como lidar com as responsabilidades que surgem, e com os desdobramentos que as nossas atitudes podem tomar? 5 Conclusão

questão da identidade e da ética presentes em uma série de televisão

em andamento, e acaba perdendo o cargo, que volta para as mãos de Laguerta. Nesse

D exter M organ? – A

mesmo parece se tornar amiga da nova chefe, e esta, que começa a viver uma crise

é

temporada, tudo leva a crer que ela vai se acostumando com a perda do poder, e até

Q uem

vingança pessoal de seu superior que a destituiu de seu cargo. Ao longo da segunda

287

reflexões sobre assuntos importantes para quem assiste. Por trás de uma trama e ações entre personagens, grandes pensamentos filosóficos podem ser trabalhados sem ser algo desinteressante ao telespectador, que, mesmo que desconheça esses pensamentos, consegue absorver ideias e formular reflexões importantes, e que podem o ajudar a se entender e a entender o mundo a sua volta. Dexter terminou a última temporada ainda com mais dúvidas, principalmente sobre quem ele é e como deve agir de agora em diante, após todos os acontecimentos vividos. Ainda haverá pelo menos mais uma temporada confirmada pelo canal Showtime, o que permitirá desenvolver ainda mais o grande arco da série, sobre se ele conseguirá manter sua vida dupla por mais tempo sem punição, e como ele lidará com seus novos desafios ainda mais dolorosos, a partir do que aconteceu no último episódio exibido.

Rubens Francisco Torres

Este artigo procurou mostrar que um seriado televisivo pode ser uma fonte de


Referências

288

CHAUI, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ática, 2001.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 6. ed. Petrópolis:

Revista GEMI n IS |

Vozes, 1997.

ano

PEDROSO, Edson; et al. Infoséries, 2009. Disponível em: <http://www.infoseries.com. br/category/dexter-guia-de-episodios>. Acesso em: 22 jan 2010.

1 - n. 1


Os

efeitos sonoros no seriado H ouse M.D Paulo G racino Jornalista profissional graduado pela Universidade Estadual de Londrina, em julho de 1985. Editorfechador do Jornal Regional, da EPTV Central. Roteirista Profissional (DRT 11383/45/43PR). Fez cursos de roteiro cinematográfico, com o cineasta Walter Lima Jr, na Fundação Cultural de Curitiba; roteiro para cinema e televisão, na Oficina de Cinema de Campinas e documentário cinematográfico, no Instituto de Artes da Unicamp, com o documentarista Renato Tapajós. Aluno especial de mestrado em Imagem e Som, na UFSCar. E-mail: paulo_gracino@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 289 - 298


Resumo Os efeitos sonoros são amplamente utilizados no seriado House M.D. para dar a ilusão de realidade às animações digitais que mostram o que acontece no interior do corpo humano durante uma crise, doença ou ainda como alguns medicamentos agem e (re)agem. O som diegético interno também é amplamente empregado para acrescentar dramaticidade aos efeitos visuais de imagens alteradas que expressam alucinações ou confusões sensoriais dos pacientes. Palavras - chave: Efeito sonoro; som diegético; som não-diegético; audiovisual; seriado televisivo; seriado House.

A bstract The sound effects are widely used on the televisison serie House M.D. to give the illusion of reality to digital animations that show what happens inside the human body during a crisis, illness or how drugs act and react. The internal diegetic sound is also widely used to add drama to the visual effects of images that express hallucinations or altered sensory confusion of patients. Keywords: Sound effect, diegetic sound, non-diegetic sound, audiovisual, television series, television series House M.D.


Sobre o seriado

O

seriado House M.D., exibido no Brasil pelo canal por assinatura Universal Channel e na TV aberta pela Rede Record, se tornou um dos maiores sucessos da primeira década deste século em diversos países. O seriado chamou a

atenção por vários motivos: a personalidade controversa e rabugenta de Gregory House, o personagem principal que vive repetindo a frase “Todo o mundo mente”; os casos de pacientes com doenças raras ou de difícil diagnóstico; e também os recursos visuais feitos com animação digital e acompanhados de efeitos sonoros, que recriam o interior do corpo humano para mostrar como os medicamentos agem e como as doenças reagem às medicações. House M.D. se passa no Hospital Escola Princeton-Plainsboro, nos Estados Uni-

dos. O protagonista, que em nada se assemelha a um herói de seriado, é o chefe do departamento de Medicina Diagnóstica. Tem uma equipe de jovens médicos especialistas que o ajudam a resolver diagnósticos raros, formada por um neurologista, Dr. Eric Foreman, uma imunologista, Dra. Allison Cameron e o especialista em tratamentos intensivos, Dr. Robert Chase. House tem um relacionamento complicado com a diretora do Hospital, Dra. Lisa Cuddy, que tolera as desobediências cometidas por ele devido à reputação e à competência dele. Seu um único amigo é o oncologista Dr. James Wilson, que demonstra extrema paciência para cultivar a amizade turbulenta. Por causa de um problema no músculo da perna direita, causado por uma trombose e posterior necrose, House precisa usar uma bengala e, para aliviar a dor, toma freneticamente o medicamento VicodIn, (paracetamol e hidrocodona) um opiáceo que o torna um dependente químico. O foco principal deste artigo é a utilização de efeitos sonoros, como ruídos e música que aumentam a percepção e a emoção do telespectador.


1 O som no audiovisual

tecnologia, segundo Aumont (1995). Enquanto uns apontavam que seria o renascimento e a consolidação do cinema, outros criticavam que seria a decadência dessa arte, e por isso, defendiam a não-coincidência do som com a imagem, caso contrário, seria

sual, mas outros entendem que ele pode ser um importante instrumento estético e linguístico. A utilização não redundante do som foi defendida no manifesto Declaração sobre o futuro do cinema sonoro (O Discurso Cinematográfico, Ismail Xavier). “O cinema sonoro significa imagem e som como elementos integrantes de mesmo nível e não imagem acrescida de um acessório”. Outro papel do som é dar a impressão de continuidade na edição ou montagem, pois a união de duas imagens, mesmo em espaços diferentes, acaba passando despercebida pelo espectador, desde que haja sincronicidade. O som pode induzir a maneira do telespectador interpretar uma imagem, como observaram Bordwell e Thompson (1985). Já Schafer, em O ouvido pensante (SCHAFER, 1991, p.44), descreve durante uma aula a alunos de música como o som pode despertar diferentes respostas emocionais nos ouvintes: agudo e forte sugere irritação, tensão. Grave e suave, calma, paixão. Pode ser intencionalmente alto, suave ou mais lento do que sons normais do filme, sugerindo mudanças no estado mental de uma personagem. Com a tecnologia dolby 5.1, reprodução de áudio em diferentes canais, o som consegue dar mais realismo durante uma transição entre as imagens ou cenas. Incrementou-se assim a erupção do espaço sonoro na narrativa. Esse recurso pode nos sugerir não apenas a distância, mas também a direção de onde vem a fonte sonora. O espectador pode receber o som de alto-falantes da direita, da esquerda, ou pela frente ou por trás. Isso acontece tanto na sala de cinema quanto em DVD, quando a faixa de áudio é reproduzida por home theater. Schafer criou o termo paisagem sonora (soundscape, a partir do termo landscape, que significa paisagem, em inglês), para designar o som de vento, farfalhar de folhas, chuva, trovões, ondas do mar se quebrando na praia, água correndo no rio, animais, sons da cidade ou de uma fábrica, passos e paisagens sonoras, como sons de carros, máquinas, ônibus, cascos de cavalos no asfalto. São sons que o espectador identifica mesmo se a fonte estiver fora do enquadramento.

1 - n. 1

A maioria dos cineastas utiliza o som como um simples acompanhamento vi-

ano

apenas uma imitação do teatro.

Revista GEMI n IS |

Quando surgiu o cinema falado, as opiniões se dividiram a respeito dessa nova

292


2 Os efeitos sonoros

a audibilidade de sons com significado. Mas, se um ruído é usado intencionalmente, ele ganha significância na narrativa sonora, como observou Xavier (2001), ao dizer que a “manipulação do ruído ambiente confere mais espessura e corporeidade à imagem, aumentando o poder de ilusão” (XAVIER, 2001, p.27). identificar a origem do som, pois faz parte da representação. Este é chamada de som diegético, que dá verossimilhança à imagem, pois representa o objeto de forma supos-

realidade. Mas, com o tempo, ganharam outra função, além da redundância do que vemos na imagem: muitas vezes, acrescenta ou faz um contraponto. Um bom exemplo pode ser visto em O Poderoso Chefão, filme clássico de Francis Ford Coppola, estreado em 1972. Numa cena no interior de uma igreja, onde ocorre uma cerimônia de batizado, sons de metralhadoras são acrescentados à cena; um som ao mesmo tempo não-diegético (já que não está inserida no ambiente dos personagens em cena), e diegético (pois faz parte da ação que acontece paralelamente). Na narrativa audiovisual, os efeitos sonoros podem ter funções significantes distintas: Função ambiental: o efeito sonoro pode somar à informação mostrada na imagem, e algumas vezes, quando o som começa durante o fade ou mesmo nos segundos finais da imagem anterior, antecipa o que iremos ver, como o som do canto dos pássaros para ressaltar o fim da noite e anunciar o amanhecer; ou o som de tráfego, buzina, antes da imagem mostrar que a ação foi para a rua. Função narrativa: é quando o efeito sonoro traz uma informação importante à história, como bips dos aparelhos de monitoramento no hospital: a alteração, ou o ritmo mais acelerado ou mais lento, indicando alteração nos batimentos cardíacos; o latido de um cão, alertando a chegada de alguém ou a aproximação do criminoso ou de um intruso; ou trovões, anunciando a chegada ou a aproximação de uma tempestade, quando ela é desejada ou ao contrário, simboliza perigo, ou vem carregado de terror, como na cena em que o menino conta os segundos que separam o relâmpago do estrondo do raio, em Poltergeist (1982), de Tobe Hooper. Quando o som é percebido claramente pelo telespectador e pelos personagens,

Paulo G racino

Inicialmente, o som teve a função de se unir a imagens, dando a impressão de

tamente realista. São paisagens sonoras ou sons naturais.

H ouse M.D

Outro nível dos efeitos sonoros, diferente do ruído, ocorre quando podemos

efeitos sonoros no seriado

fere (SCHAFER, 1991, p.68, 69), é um som que tendemos a ignorar, porque atrapalha

Os

Na definição de Schafer, ruído é o som indesejável, qualquer som que inter-

293


é chamado de diegético. Quando somente o espectador tem a capacidade de ouvir, é chamado de som não-diegético. nora do espaço da narrativa, não é percebido pelos personagens. No entanto, tem um papel significativo na cena, como: voz de narração, música de fundo ou efeitos sonoros. Som Diegético: A fonte do som diegético pode estar dentro ou fora do en-

ambiente, são também representados por passos, buzinas, vento, chuva, etc. David Bordwell e Kristin Thompson, na publicação Film Art: An Introduction (1979) criaram divisões para os sons diegético e não-diegético: som externo para o som diegético, quando todos os personagens são capazes de ouvir, e o som interno, como vozes e sons mentais, percebidos somente por um personagem. O som diegético divide-se em externo ou interno. Diegético externo é quando a origem do som está presente na cena e é percebido pelos personagens. O diegético interno é subjetivo, a fonte é a mente da personagem. Um uso frequente do som diegético é quando o roteirista quer mostrar o pensamento de um personagem, geralmente quando há outros personagens na mesma cena que não podem compartilhar o que se passa na mente de quem está pensando. 3 Sons diegéticos em House M.D. No episódio 1, na abertura, enquanto vemos a professora Rebecca Adler caminhando, ouvimos ruídos dos saltos dos seus sapatos enquanto ela corre apressada para chegar ao trabalho. Quando ela está fazendo exames na sala de ressonância magnética, ouvimos ruídos dos disparos feitos pelo equipamento. Também é muito comum esse tipo de som diegético revelando melhoras e pioras dos pacientes, como bips dos equipamentos de monitoramento ou campainhas para chamar equipe de apoio. Em Medicina Esportiva1, a animação ganha dramaticidade com o efeito sonoro do osso do braço se quebrando. Percebemos o ruído um pouco mais alto do que ocorre na realidade, provocando desconforto no telespectador. Também são representações de som diegético, as músicas ouvidas frequentemente pelo personagem principal, como em Me Deixe Morrer2, ou quando o médico toca piano ou guitarra. 1 Episódio 12, 1ª temporada de House M.D. 2 Episódio 9, 1ª temporada de House M.D.

1 - n. 1

personagens. Além dos produzidos pela voz, como diálogos e gritos, e ruídos e sons do

ano

quadramento. É aquele que faz parte da “realidade” da história, que é percebido pelos

Revista GEMI n IS |

Som não-diegético: Como esse tipo de som não é originário de uma fonte so-

294


É este tipo de som que ouvimos em Veneno3. Inicia-se com imagens de um jogo de lacrosse, esporte parecido com o hóquei. Além dos gritos e ruídos típicos do esporte,

295

um efeito sonoro parecido com um eco, provoca uma distorção da audição, como a sen-

Os

tida pelo personagem. Alguns takes da cena foram gravados em ângulo oblíquo, para

efeitos sonoros no seriado

mostrar o ponto de vista do personagem, antecipando que algo errado vai acontecer. Imagens em slowmotion mostram o que o personagem vê no início de uma crise e causam estranheza no telespectador. Em seguida, alternam imagens duplas (obtidas com câmera subjetiva que mostram o ponto de vista do jogador) e normais (ponto de vista

4 Sons não diegéticos em House M.D.

H ouse M.D

dos outros jogadores), indicando que o personagem está prestes a desmaiar.

gerados para aumentar a carga dramática: ruído do corte sendo feito pelo bisturi, que não é percebido pela audição humana, mas provoca na cena a dramaticidade desejada. Em seguida, ruído do sangue saindo pelo corte, bem como sons mais intensos do que o normal, de instrumentos sendo inseridos no paciente. No final da abertura do episódio piloto, ouvimos um ruído como se fosse o de um apito suave, que vai aumentando até ela desmaiar. Na cena 3, ouvimos uma música que cria um clima de tensão. À medida que a câmera avança pela narina da paciente, iniciando uma viagem pelo interior do corpo dela, ouve-se som, ainda ininteligível, momento em que as imagens passam a mostrar estruturas microscópicas. O ruído assemelha-se ao do fluxo do sangue ao percorrer as veias, e a imagem mostra uma espécie de batalha interna no corpo da paciente. No episódio Veneno4, a câmera se aproxima dos olhos do jogador e, assim que passa da barreira externa para a interna, atravessando a córnea, um efeito sonoro marca a mudança de plano exterior para o interior do corpo. É nesse momento que tem início a animação digital, e um efeito sonoro nos revela o que somente o paciente ouve. Pouco depois, a animação mostra como ocorre um curto-circuito nos neurônios, e ouvimos efeitos sonoros que sugerem um choque. Em Paternidade5, animação digital ilustra o que o vírus do sarampo faz, e os efeitos sonoros sugerem velocidade. Outro som interessante criado para este episódio, é o de uma agulha de uma seringa, quando esta rompe a retina do paciente. Outro exemplo ocorre em O Princípio de Occam6, episódio em que acompanha3 Episódio 8, 1ª temporada de House M.D. 4 Já citado. 5 Já citado. 6 Episódio 5, 1ª temporada.

Paulo G racino

Na sala de cirurgia, sons diegéticos e não-diegéticos são, propositalmente, exa-


mos a imagem se aproximando da seringa; entramos na seringa com a câmera, seguimos o fluxo do medicamento que está sendo injetado, a epinefrina. Um efeito sonoro auxilia o movimento das imagens, das substâncias aplicadas e a reação dos órgãos da paciente quando ela recebe o anti-histamínico. Nesse mesmo episódio, à animação são acrescentados efeitos sonoros metáli-

o som ser sintetizado, soa como autêntico. Um recurso visual bastante usado em House M.D. é a alteração intencional das imagens, que sempre vêm acompanhadas de sons distorcidos. Essa manipulação sonora e visual geralmente é utilizada para simular as alucinações dos personagens (JAHN, M. (2002: F.2.5)7. Isso ocorre em O Exemplo8. Na primeira parte do seriado, imagens ligeiramente desfocadas, e ângulos inclinados, um pouco de visão dupla, som ligeiramente distorcido. Esse tipo de som ou vozes mentais percebidos somente pelo personagem central da cena, foi definido em 1994 por Michel Chion9, como Som Interno Subjetivo. Um bom exemplo é o episódio House versus Deus10. No interior de uma igreja, um adolescente tido como milagreiro, estende a palma da mão em direção à cabeça de uma fiel, com o intuito de curá-la. Mas, nesse instante, um efeito sonoro agudo, irritante, começa a ganhar intensidade, e segundos depois, vemos o adolescente se contorcer de dor. 5 A música no seriado Um recurso muito usado no cinema é o leitmotiv: é a repetição, em diferentes momentos, de um mesmo tema sonoro para ressaltar a presença de um personagem ou de um momento dramático. Isso ocorre, por exemplo, em Tubarão (1975), de Steven Spielberg. Ao se ouvir a música, o espectador já se prepara para a presença do animal A música tem papel importante na narrativa de alguns episódios, sendo um forte elemento dramático. House gosta de tocar piano e guitarra (são execuções reais, feitas pelo ator Hugh Laurie). Frequentemente, o personagem cita grandes músicos e instrumentistas ou versos de alguma canção. No episódio piloto, cita trechos da canção dos Rolling Stones durante uma conversa com a diretora do hospital, Dra. Lisa Cuddy. Ela exige que seu médico mais brilhante cumpra parte do contrato de trabalho, atuan-

7 apud Allrath et alui. P. 21 8 Episódio 17, 1ª temporada. 9 In Audio-Vision: Sound on Screen 10 Já citado.

1 - n. 1

uma máquina, sugerindo o som de células do rim se abrindo e se fechando. Apesar de

ano

cos, sintetizados, como se simulasse algo se fechando, lembrando um mecanismo de

Revista GEMI n IS |

marca o momento da passagem da agulha para o interior do corpo da paciente. O som

296


do parte do período na clínica. Ele diz: “como disse o filósofo Jagger11: ‘You can’t always get what you want’ (‘Você não pode sempre ter o que quer’). Mais tarde, em outra cena,

297

Cuddy cita outro verso da mesma canção para justificar a atitude dela: ‘Pouco depois,

Os

o filósofo Jagger diz ‘If you try sometimes, you get what you need’ (‘Mas se você tentar, às

efeitos sonoros no seriado

vezes você consegue o que você precisa’)””. As músicas e canções refletem o gosto artístico do personagem Gregory House, em especial gêneros, como blues e rock. As músicas estão geralmente contextualizadas com o tema do episódio, ou com o drama vivido por House ou outro personagem. Episódio 2: Rickie Lee Jones, On Saturday Afternoons In 1963 Episódio 3: Three Dog Night, One Is The Loneliest Number

Episódio 11: Windy Wagner, You Don’t Have to Worry, e Joe Cocker, Feelin ‘Alright Episódio 12: Windy Wagner, I Never Saw it Coming Episódio 15: Daniel Moynahan “Crazy World” Episódio 17: Earlimart, It’s Okay to Think About Ending Episódio 18: Grant Lee Buffalo, Happiness Episódio 20: Dave Matthews, Some Devil Episódio 22: Windy Wagner, I Call It Love, Blind Willie McTell, Delia, e The Rolling Stones, You Can’t Always Get What You Want.

Referências ALLRATH ET ALUI, Gaby; GYMNICH , Marion; SURKAMP, Carola. Towards a Narratology of TV Series. In: ALLRATH, Gaby. Narrative strategies in television series. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005. Disponível em: <http://www.abmt. unibas.ch/~hagen/SS2007/Material/2798AllrathTVSeriesNarratology.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2010. ALMEIDA, Milton José de. Imagens e Sons: a nova cultura oral. São Paulo, Cortez, 1994. AUMONT, Jacques (org). A estética do filme (trad. Marina Appenzeller). Campinas: Papirus, 1995.

11 Mick Jagger, vocalista e letrista da banda inglesa The Rolling Stones.

Paulo G racino

Episódio 10: Mutaytor, On Fire Like This

Episódio 9: Louis Armstrong, What A Wonderful World

H ouse M.D

Na primeira temporada, encontramos as seguintes músicas e canções:


BARBOSA, Álvaro. O Som em Ficção Cinematográfica: Análise de pressupostos na criação de componentes sonoras para obras Cinematográficas/Videográficas de Disponível em <http://www.abarbosa.org/docs/som_para_fi ccao.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2010. BORDWELL, D.; THOMPSON, Kristin. Film Art: An Introduction. New York, McGraw-

Perspectiva, 1992. CHION, Michel. Audio-vision: sound on screen. New York: Columbia University Press, 1994. DOANE, Mary Ann. A voz do cinema: a articulação de corpo e espaço. In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema. São Paulo: GRAAL, 1983. MANZANO, Luiz Adelmo Fernandes. Som e imagem no cinema: a experiência alemã de Fritz Lang. São Paulo: Perspectiva, 2007. MITELLL, Jason. Genre and Television. From Cop Shows to Cartoons in American Culture. New York: Routledge, 2004. SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal aplicações na hipermídia. 3 ed. São Paulo: Iluminuras/Fapesp , 2005. SCHAFER, Raymond Murray. O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991. SILVA, Marcia Regina Carvalho da. De olhos e ouvidos bem abertos: uma classificação dos sons do cinema. In: XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 05 a 09 de setembro de 2005, Rio de Janeiro, Anais... Disponível em: <http://revcom.portcom. intercom.org.br/index.php/NAU> Acesso em 12 jun. 2010. XAVIER, Ismail. (org.). A Experiência do Cinema. 1 ed. Rio de Janeiro, 1983.

1 - n. 1

BURCH, Noël. Sobre a utilização estrutural do som. In: Práxis do Cinema. São Paulo:

ano

Hill, 1985.

Revista GEMI n IS |

Ficção. Escola das Artes – Som e Imagem, 2000/01, Universidade Católica Portuguesa.

298


O

trailer, o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo M árcio Carneiro

dos

S antos

Mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi – SP, professor assistente do curso de Comunicação Social da UFMA na área de Jornalismo em Redes Digitais. E-mail: slz38545@terra.com.br

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 299 - 316


Resumo A relação entre trailer e filme, dentro do atual modelo de produção e comercialização da indústria do cinema americano, perpassa o simples binômio “peça de divulgação x produto divulgado”, para criar uma nova lógica de intertextualidades a partir da reconfiguração da narrativa original, em diversos paratextos fílmicos que se adéquam aos muitos canais de comunicação utilizados nas campanhas de lançamento dos grandes filmes hollywoodianos. Nesse cenário, que começa a se consolidar a partir das três últimas décadas do século XX, uma lógica de serialidade é estabelecida entre os diversos elementos produzidos com essa finalidade, que inclui as vezes também, nos casos de grande sucesso de bilheteria, as próprias sequencias dos filmes originais e que, no conjunto, se utilizam de vários recursos característicos das séries ficcionais, tais como a construção do suspense e o uso de ganchos, agora não apenas para garantir a manutenção do interesse do espectador a espera do próximo episódio, mas sim para fazê-lo acompanhar todo o desenvolvimento do produto filme, desde os seus primeiros momentos de produção até sua comercialização em mercados secundários, como o de games, licenciamento, parques temáticos e outros. Palavras - chave: Trailer; Serialidade; Narrativa.

A bstract The relation between trailer and film create a logic of texts from the reconfiguring of the original narrative in filmic texts that are appropriate to many of the communication channels that are used in those big Hollywood launching campaigns. In this scenario, a new form of seriality is established using resources common to fictional series, such as the construction of suspense not only to guarantee the interest of the spectator on the wait of the next episode, but to make him follow the development of the movie product, from its early production moments, up to its commercialization in secondary markets. Keywords: Trailer; Serie; Narrative.


1 Contextualizando o trailer 1.1 Histórico

S

egundo Lisa Kernan a definição clássica do trailer é “[...] um breve texto fílmico, que apresenta imagens de um filme específico, comprovando sua qualidade, e criado para exibição nos cinemas, para promover o lançamento desse filme.”1

(KERNAN, 2004, p.1). Kernan faz mais duas observações interessantes: [...] mesmo sendo uma forma de publicidade, eles são também uma forma única de exibição da narrativa fílmica, onde o discurso promocional e o prazer narrativo estão conjugados [...]. Trailers são paratextos2 fílmicos especialmente interessantes para estudo numa era em que as narrativas promocional e visual são cada vez mais difíceis de separar em todos os meios de massa. (KERNAN, 2004, p.1)3

Apesar de obter um espaço cada vez maior nas grandes campanhas da indústria cinematográfica, a história do trailer remonta ao início do século XX. O termo trailer, segundo alguns autores, vem de “tail”, que quer dizer “cauda” em inglês e, mais especificamente no cinema, a ponta de filme não utilizada no fim do rolo da película cinematográfica. Trailer em inglês também significa “seguir”, “ir atrás”. No caso do cinema, era essa a posição dos primeiros trailers no rolo do filme, ou seja, seguindo a sequência, ao final da projeção principal. Um dos registros mais antigos de sua utilização é descrito por Lou Harris, que em 1960 era chefe da divisão de Trailers da Paramont. Segundo ele, em Rye Beach, New 1 I am defining a movie trailer as a brief film text that usually displays images from a specific feature film while asserting its excellence, and that is created for the purpose of projecting in theaters to promote a film’s theatrical release. (Texto original traduzido pelo autor) 2 O termo “paratexto” é usado por Gérard Genette para definir elementos textuais que emergem de um texto específico sem fazer diretamente parte dele, tais como críticas, publicidade e material de divulgação prévia sobre esse texto. No caso que discutimos aqui se trata de um texto fílmico,do filme. 3 While trailers are a form of advertising, they are also a unique form of narrative film exhibition, wherein promotional discourse and narrative pleasure are conjoined […].Trailers are film paratexts that are especially important to study in a era when promotion and visual narrative have become increasingly difficult do disentangle in all kinds of popular media[…]” (Texto original traduzido pelo autor)


York, em 1912, um exibidor mostrou um episódio da série “The Adventures of Kathlyn” no qual no fim a atriz principal é atirada na cova de um leão. Na sequência foi exibichapter!4”. De uma forma bem diferente da atual e realmente na posição sugerida por seu nome, isto é, no final dos filmes que eram apresentados, os trailers normalmente eram

para exibição começaram a ser usados. No caso das séries eram usados trechos do episódio seguinte, uma prática que depois chegou até as novelas de televisão. O trailer na realidade começou a ser usado para resolver dois problemas dos exibidores. O primeiro, manter a frequência dos espectadores nas salas de cinema já que com o anúncio de novas atrações o público era informado dos lançamentos e motivado a retornar. O segundo, inserir intervalos entre as exibições dos filmes que, antes do trailer, eram contínuas, possibilitando às pessoas ficar indefinidamente dentro das salas, ocupando lugares por muito tempo e pagando apenas um ingresso. Posteriormente quando os créditos finais dos filmes foram crescendo e incluindo muito mais informações que apenas “The end”, a posição dos trailers no final do rolo ficou prejudicada porque era preciso esperar muito para ver as próximas atrações. A partir daí a exibição do trailer foi antecipada, sendo exibida antes da atração principal, prática que se mantém até hoje. Ao longo dos anos as grandes empresas da indústria cinematográfica foram montando suas próprias estruturas internas de produção de material promocional, como fez a Warner Bros em 28 e a MGM em 34. Hoje grande parte da produção de trailers está a cargo de empresas especializadas, também conhecidas em Hollywood como trailer houses, que foram se constituindo a partir da experiência de ex-funcionários dos estúdios que trabalhavam nas estruturas internas de montagem. Na década de 1970 a indústria do cinema descobriu a televisão como um importante veículo para divulgação de seus produtos. Os trailers deixam então de ser exclusivamente produzidos para as salas de exibição e ganham formatos principalmente com tempos definidos para inserção nos espaços comercias das emissoras de TV. Na década de 1980 a estética da MTV – Music Television - acaba influenciando também a edição dos trailers que se tornam mais ágeis e dinâmicos. O progressivo aumento dos recursos de produção e edição vai pouco a pouco modificando a aparência 4 Escapará ela do buraco do leão? Veja no emocionante capítulo da semana que vem. (Tradução do autor)

1 - n. 1

teriormente pedaços de filmes com trechos das atrações que estavam já programadas

ano

constituídos de avisos só com textos sobre outras produções em exibição no local. Pos-

Revista GEMI n IS |

do um texto com os dizeres “Does she escape the lion’s pit? See nest week’s thrilling

302


final dos trailers em direção ao produto que hoje vemos em vários lugares. Nos anos 1990 a inserção do computador e das novas ilhas de edição não linear com pedaços (takes) bem menores, às vezes até com duração abaixo de 1 segundo. É o início de um novo patamar da experiência visual. No século XXI a internet abre-se como novo meio de divulgação dos produtos da indústria cinematográfica. Milhares de sites são criados pelos estúdios, por terceiros que exploram a cadeia comercial envolvida no lançamento de novos filmes, bem como por fãs dos diversos gêneros, personagens e histórias. Figura 1 Exemplo de site de trailers na internet.Trailers de Cinema

Fonte: www. trailersdecinema.com

Estudos como o de Vinzenz Hediger, de 1999, demonstram que, apesar dos altos custos atuais, o trailer é um bom negócio. Em média, segundo ele, os trailers con-

Kernan (2004, p.33), em seu livro Coming Attractions – Reading American Movie Trailers, divide a trajetória do trailer hollywoodiano em quatro fases:

c) a terceira - que ela chama de era de transição, de 1950 a 1975; d) a quarta - que ela chama de era contemporânea, de 1975 aos dias atuais. Essa divisão nos ajuda a recortar melhor o objetivo do presente estudo na área do trailer hollywoodiano contemporâneo e na sua inserção em uma nova forma de serialidade, isto é àquele que se refere a filmes da indústria americana do cinema pós -75, um período que alguns autores chamam de Nova Hollywood e que Mascarello(2006) caracteriza,

S antos

b) a segunda - que ela chama de era clássica, de 1927 a 1950;

dos

a) a primeira - uma espécie de pré-história do trailer, de 1912 a 1927;

M árcio Carneiro

por pelo menos cerca de 20% de sua audiência.

somem em torno de 4,5% dos orçamentos dos filmes, mas são responsáveis diretamente

o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

tornam-se prática comum nas trailer houses, possibilitando a montagem de sequências

303


Esse objetivo de integração é conhecido pelo termo “high concept” que tam-

“Embalos de Sábado à Noite”, ambos de 77. De novo usamos o texto de Mascarello(2006) para definir o filme blockbuster ou traduzindo para o português, “arrasa quarteirão”. Filmes que em sua maioria tem custo de produção alto (normalmente por conta de cachês e efeitos especiais), custos de lançamento também elevados e às vezes próximos ou superiores aos custos de produção (em razão do número elevado de cópias e da publicidade massiva) e rápida “queima” do filme no circuito primário de exibição, não importando o quão positivo seja o boca-a-boca, já que eventuais prejuízos de bilheteria, através da lógica do high concept, poderão ser compensados nos mercados secundários de exibição, bem como através dos produtos conexos. (MASCARELLO, 2006, p.349)

O que Mascarello chama de mercados secundários são em síntese o mercado da exibição nas redes de televisão, nas locadoras e o mercado de licenciamento de produtos baseados em personagens ou filmes para a indústria dos games, dos parques temáticos, de brinquedos e de qualquer outro segmento que tenha interesse em associar sua marca à de um filme de sucesso. A indústria usa o termo “franquias“ para grandes sucessos que se desmembraram em tantos outros produtos que já não podem ser mais vistos apenas como um filme, mas sim verdadeiros negócios independentes que continuam gerando receitas por vários anos após o lançamento do filme que lhes deu origem. “Parque dos Dinossauros”, “Homem Aranha” e “Batman” estão nessa categoria. É justamente a forma de conceber as possibilidades sinérgicas da produção cinematográfica (ou seja, não existe mais um produto a ser comercializado e sim uma série de receitas diferentes a partir do filme original) dessa indústria que vai levar o trailer a transformar-se em um dos elementos mais importantes na estratégia do blockbuster high concept, disputando a atenção cada vez mais cobiçada do espectador e ao mesmo tempo construindo uma relação de serialidade até então inédita que vai estabelecer ligações entre os elementos desse mix de produtos, sempre se direcionando

1 - n. 1

marcado pelo lançamento dos blockbusters “Tubarão” de 75 e “Guerra nas Estrelas” e

ano

bém é utilizado para se referir ao modelo de negócios iniciado em filmes desse período,

304 Revista GEMI n IS |

pelo abandono progressivo da pujança narrativa típica do filme hollywoodiano até meados de 1960, e também por assumir a posição de carro chefe absoluto de uma indústria fortemente integrada, daí em diante, à cadeia maior de produção e do consumo midiáticos (cinema, TV, vídeo, jogos eletrônicos, parques temáticos, brinquedos etc). (MASCARELLO, 2006, p.57)


ao espectador, desde os primeiros releases na imprensa especializada sobre o início da produção de um novo filme, até os lançamentos dos produtos derivados como um

2 O trailer, a narrativa como retórica e a construção de um novo tipo de suspense 2.1 Dispositio Em seu dicionário da Teoria Crítica, David Macey define a retórica como “a arte da comunicação persuasiva e da eloquência.” (MACEY, 2000, p.329) Nos dias de hoje a palavra retórica está muito ligada à ideia de convencimento, de persuasão, independentemente de questões éticas ou morais e muito direcionada a objetivos e a como alcançá-los. Nem sempre foi assim. A retórica foi desenvolvida como uma disciplina, uma matéria a ser estudada na Atenas de 400 anos antes de Cristo. Nessa sociedade, saber falar em público e comunicar-se com perfeição era essencial para os que desejassem uma vida pública, bem como para todos que quisessem participar das decisões e avaliar os argumentos dos outros, como cidadãos gregos. Em Roma, a função da disciplina da retórica era semelhante. Assim estudar a retórica na antiguidade era um caminho para organizar e planejar o que se gostaria de comunicar, fazendo isso de forma eficiente. Na retórica clássica aprendia-se que o espectador ou ouvinte poderia ser abordado tanto pela razão, quanto pela emoção. Aristóteles na sua obra Arte da Retórica e

a) inventio – a descoberta de argumentos válidos e consistentes; b) dispositio – a ordem em que eram apresentados;

e) pronuntiatio – a entrega do conjunto de argumentos, a execução do discurso. A retórica clássica devotou grande atenção ao elecutio, a arte do orador, mas para esse estudo interessa-nos mais a ideia de dispositio, ou seja, o planejamento da ordem em que se vai apresentar os argumentos ou fatos do discurso. No trailer, o trabalho de convencimento do espectador está intimamente ligado à forma de como os elementos da narrativa são dispostos. E a primeira coisa que qual-

S antos

d) memória – a recuperação de fatos;

dos

c) elecutio – sua forma de expressão;

M árcio Carneiro

estudos dividiam a composição de uma fala ou discurso em cinco etapas:

o romano Quintiliano com De Institutione Oratoria – A Educação do Orador - em seus

o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

game baseado na mesma narrativa.

305


quer um pode observar, vendo o trailer e depois o filme, é que a ordem dos elementos é frequentemente alterada. consistência espaço-temporal que a história do filme vai buscar. Em seu lugar, entra a ordem que pinçará do corpo do filme os elementos que o estúdio, produtor do mesmo, imagina que terão mais importância ou forte apelo sobre o público espectador.

que vão direcionar o espectador ou com indicações de prêmios recebidos pelo filme ou ainda com o nome de atores ou diretores famosos. O que for avaliado com potencial de atração será utilizado. Há ainda exemplos mais claros de alteração da ordem “natural” das coisas. Diálogos que não existem no filme serão apresentados, um olhar distante poderá ser transformado num olhar de grande apreensão, um gesto sem importância poderá ser transformado em algo que parece essencial. No trailer de Batman - O Cavaleiro das Trevas a cena em que o Coringa aplaude debochadamente os policiais que o prenderam foi editada de forma que, após cada aplauso, entra o take de uma das explosões do filme que foi planejada pelo Coringa. O espectador pode imaginar que ao aplaudir o Coringa desencadeia uma sequência de explosões, quando na verdade a cena das palmas e as explosões, na trama, não estão diretamente conectadas. Ao conjunto o som será adicionado também com bastante ênfase. Há vozes que parecem ser perfeitas para a gravação das locuções de um trailer. Quem já assistiu muitos poderá identificá-las, inclusive no nosso cinema nacional. Trechos de falas dos personagens também podem ser inseridos em off cobertos com imagens do filme que as vezes estão bem distantes do momento em que essas falas foram feitas. A música de fundo também criará a atmosfera que se deseja. Apreensão, tensão, ação, alegria, comicidade. A edição do trailer nos dias de hoje representa o trabalho que a retórica clássica estudava nos tempos dos gregos e romanos. A elaborada ordem de apresentação dos elementos constrói a estrutura sobre a qual o trailer se reconstrói a partir da narrativa original do filme. Tudo previamente analisado e testado de forma eficiente. Dispositio. A presença de atores, diretores e produtores com grande nível de conhecimento do público também será utilizada pelo trailer como elemento de atração. A citação direta dos nomes ou a utilização de expressões como “dos mesmos produtores de...”, é comum. O sistema dos grandes estúdios de cinema da América, que baseou seu crescimento em função da exploração da imagem de atores e atrizes com grande presença na mídia de forma geral, utiliza justamente esse mecanismo para abrir uma nova frente de

1 - n. 1

to visual. A esses elementos outros serão acrescentados. Grandes legendas com textos

ano

Atores conhecidos, cenas interessantes ou fortes, imagens com grande impac-

Revista GEMI n IS |

Na reconfiguração da narrativa feita pelo trailer sai de cena a coerência e a

306


identificação com o espectador. É justamente o conhecimento prévio do espectador sobre esse ou aquele diretor trabalho e os anteriores. Voltando à retórica, vê-se que o alinhamento dos elementos citados, unidos a outros aspectos, ou seja, seu dispositio, faz toda a diferença na missão que o trailer tem que cumprir. A retórica de Aristóteles usa o conceito de “enthymeme” como uma figura de linguagem em que o orador usa elementos previamente conhecidos do ouvinte de forma que facilite o convencimento e dê veracidade ao seu discurso. O trailer vai pelo mesmo caminho e baseia sua eficiência num conjunto de encontros anteriores entre espectador, gênero, atores, diretores e tipos de histórias, numa espécie de metasserialidade, com um ordenamento um nível acima da narrativa principal. Enquanto o dispositio do filme é governado pela narrativa e pela coerência interna que se quer dar a ela, é importante observar que o dispositio do trailer é governado por fatores que vão além da narrativa, tendo, portanto, outros objetivos a serem alcançados, o que mais uma vez explica a reclamação comum de que os trailers enganam o espectador. Um fenômeno que está intimamente ligado ao modelo high concept, já discutido na parte anterior, sobre a produção de trailers é que os filmes de grande orçamento, e até mesmo os que não podem ser considerados blockbusters, hoje não tem apenas um trailer e sim um conjunto de peças que tem o mesmo objetivo de promover o filme. Apesar do objetivo comum, esses trailers acabam se diferenciando em razão da escolha das imagens editadas, do período em que serão veiculados e do veículo utiliza-

trailers ou avant-trailers, que chamaremos aqui apenas de teasers e os regular trailers ou simplesmente trailers.

çamento do filme, que às vezes nem tem ainda uma data definida. Há casos de teasers que foram divulgados na internet até um ano antes do lançamento do filme, como Matrix Reloaded, Homem de Ferro e Batman – O Cavaleiro das Trevas. Num teaser há poucas referências à história que será contada e seu objetivo principal é iniciar um trabalho de aumento do nível de conhecimento do público a respeito daquele filme específico. Já o trailer tem duração maior e normalmente é a peça que inicia a contagem

S antos

durações mais comuns. Ele normalmente começa a ser veiculado meses antes do lan-

dos

Um teaser normalmente tem tempo abaixo de 60 segundos sendo 15 a 30 as

M árcio Carneiro

Em relação ao período de veiculação temos uma divisão básica entre os teaser

do (cinema, TV, internet).

o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

ou ator que permitirá uma expectativa de continuidade ou série positiva entre o novo

307


regressiva para o lançamento do filme já com data definida. Um trailer segundo a Motion Picture American Association (MPAA) deve ter chegar a três minutos. No Brasil as médias são semelhantes. Outro fator que gera variações do trailer é o veículo para o qual se destina. Enquanto os tempos das peças para cinema podem ter duração maior, as que vão para TV

Na internet os trailers são veiculados pelo processo de streaming em que o usuário acessa o servidor de mídia onde está o arquivo e começa a ver quase que imediatamente o vídeo, como no YOU TUBE, por exemplo. Outras variações acabam se consolidando então em opções para baixa, média e alta velocidade em SD (standard definition) ou ainda alta definição, HD (high definition) e recentemente também com opção para equipamentos reprodutores de vídeo portáteis como o ipod da Apple e seus clones, bem como vários modelos de celulares e smartphones. Toda essa diversidade é complementada também pela própria edição que é feita no trailer. Como o estúdio às vezes tem o objetivo de destacar vários aspectos da produção poderá optar por uma versão com a edição mais focada nas melhores cenas de ação, outra nos artistas e outra na história em si que será mais detalhada a partir de legendas explicativas e partes das falas dos personagens. Se antes já deixamos claro que o trailer não pode ser considerado simplesmente uma versão reduzida do filme que representa, mas sim uma versão reconfigurada dessa narrativa, por meio de uma forma de construção própria; é óbvio também que as relações entre o trailer e o filme são inegáveis, a começar pelos atores e o próprio título comum. A partir da constatação dessa multiplicidade de peças relativas ao mesmo filme e a lógica do modelo high concept já explicada, poderíamos pensar então na ideia de serialidade que parece existir nesses casos, funcionando como um elo comum entre esses vários elementos. Ao pensarmos então nessas duas unidades – o trailer e o filme – e suas relações entre elementos comuns e não comuns é possível também pensar nas propostas de categorização da serialidade descritas por Umberto Eco (1989) em seu artigo “A Inovação no Seriado” quando descreve sua tentativa de analisar o que chama de “tipologia da repetição”. Eco (1989) propõe algumas categorias para a serialidade. São elas: a) A retomada – uma repetição de um tema de sucesso. Filmes como Batman e

1 - n. 1

dos comerciais de televisão que devem ser múltiplos de 15.

ano

normalmente têm duração de 15 ou 30 segundos para se adaptarem ao tamanho padrão

Revista GEMI n IS |

até dois minutos e trinta segundos de duração podendo, apenas em casos excepcionais,

308


Homem Aranha e suas continuações podem servir aqui de exemplo. b) O decalque – segundo Eco “consiste em reformular, normalmente sem inforcito e declarado como tal é o “remake” c) A série – a série propriamente dita tem sua repetição fundada basicamente na estrutura narrativa: Temos uma situação fixa e certo número de personagens principais da mesma forma fixos, em torno dos quais giram personagens secundários que mudam, exatamente para dar a impressão de que a história seguinte é diferente da história anterior. (ECO, 1989, p. 123)

d) A saga – é definida como uma sucessão de eventos, aparentemente sempre novos, que se ligam , ao contrário da série, ao processo histórico de um personagem, ou melhor, a uma genealogia de personagens. e) O dialogismo textual – é a categoria em que a repetição se dá de forma mais sutil a partir de referências que um texto pode fazer a outro. No filme Os Caçadores da Arca Perdida, de Steven Spilberg, o personagem principal Indiana Jones tem que enfrentar um gigante que o ameaça com uma espada. Depois de vários malabarismos do opositor com sua arma, Indiana saca um revolver e dá um tiro no gigante, resolvendo rapidamente o combate antes mesmo dele acontecer. Em Indiana Jones e o Templo da Perdição, o herói encontra dois inimigos e quando aparentemente vai resolver a situação do mesmo jeito, descobre que está sem o revolver, tendo que achar outra solução. A cena do segundo filme faz claramente uma referência à do primeiro, numa repetição que requer do

um autor, diretor ou personagem e gerar intertextualidades entre o cinema e a TV. No segundo filme do Hulk estrelado por Edward Norton há uma cena em

que inclusive foi exibida no Brasil. No novo filme alguém diz para o vigia “you are the man”, traduzido na versão em português como “você é o cara“, numa clara homenagem ao antigo ator. O trailer se apropria de várias dessas possibilidades para conseguir seu objetivo final que é convencer o espectador a ver o filme que ele representa. A ideia do dialogismo intertextual também será mais discutida a frente para re-

S antos

culturista que interpretava o personagem do Hulk na série de TV dos anos 80,

dos

que aparece um vigia de um prédio interpretado pelo ator Lou Ferrigno, fisi-

M árcio Carneiro

e compreender a citação. O dialogismo pode ser uma homenagem declarada a

espectador o conhecimento prévio do filme anterior para que possa apreciar

o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

mar ao consumidor, uma história de sucesso”. Uma espécie de decalque explí-

309


forçar nosso entendimento de que o trailer trabalha com as expectativas e experiências anteriores do espectador, que acaba completando as lacunas que o trailer vai deixando do filme. Um outro elemento narrativo que poderíamos utilizar, na tentativa de compreensão do papel do trailer numa relação de serialidade, seria a figura do flashforward

Ao contrário, podem ser encontrados elementos da narrativa que tendem a evocar por antecipação um acontecimento futuro da diegese. É certamente o caso do flashforward, mas também de qualquer tipo de anúncio ou indício que permita que o espectador se adiante ao desenvolvimento da narrativa para imaginar um desenvolvimento diegético futuro. (AUMONT, 2005, p.61)

Fazer o espectador “imaginar um desenvolvimento diegético futuro“ é bem o papel do trailer. Indo ainda mais em direção às formas seriadas propriamente ditas, a figura do prólogo, aquela espécie de resumo que é feito no início dos episódios das séries, também parece lembrar o trailer. Se no prólogo é construída uma edição com imagens que já foram mostradas anteriormente, no trailer a edição se baseia em imagens que, em tese, serão vistas no filme. Tal semelhança nos permite propor aqui, considerando a premissa da serialidade, a ideia do trailer ser uma espécie de “prólogo invertido” em que a construção do suspense e o uso de ganchos é um recurso comum. Flashforward ou prólogo invertido são possibilidades abertas para a discussão sobre a serialidade no trailer, entretanto, objetivamente poderíamos imaginar três situações possíveis entre as relações do trailer com o filme que ele representa.

Figura 2 – Relação trailer e filme

a) pensar trailer e filme como elementos isolados em que não há relação de serialidade; b) pensar trailer e filme como partes de um mesmo conjunto; c) pensar trailer e filme como elementos isolados mas onde existe uma inter-relação.

1 - n. 1

narrativa, descreve assim:

ano

que Jacques Aumont(2005) em seu livro a Estética do Filme, falando sobre a ordem

Revista GEMI n IS |

sobre a história, mesmo quando esse dialogismo de fato não se confirma na versão final

310


Apenas a primeira situação, que nos parece a mais improvável, excluiria a ideia da serialidade. quisa, ou seja, que essas considerações são feitas em relação ao trailer hollywoodiano contemporâneo, isto é, produzido pela indústria americana do cinema pós-75 (até pela impossibilidade de estender essas considerações a cenários mais amplos); podemos propor uma relação entre a serialidade e a integração ao modelo do blockbuster high concept característico do período estudado. Gráfico 1 – Relação da Serialidade x Integração com o modelo high concept.

o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

Indo mais além e aproveitando para relembrar os recortes definidos nessa pes-

311

Por meio do gráfico fica claro que quanto mais próximo do modelo do block-

põem o “ produto ” dessa indústria.

S antos

mais será visível a relação da serialidade entre o trailer e os outros elementos que com-

dos

buster high concept está a produção, maior será o seu orçamento e consequentemente

M árcio Carneiro

Fonte: autor


Anexo

variedade de opções de trailers e teasers que são gerados em função de apenas um filme para as mais variadas situações e formatos. Todo o material relacionado a seguir tem como fonte o site www.comingsoon.

Teaser: QuickTime, High Definition QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res iPod Video, Zipped PSP Video, Zipped

Trailer (1.16.07): QuickTime, High Definition QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

1 - n. 1

300 Fonte: site www.comingsoon.net a partir do link: http://www.comingsoon.net/films. php?id=12330 Release Date: March 9, 2007 (conventional theaters & IMAX) Studio: Warner Bros. Pictures Director: Zack Snyder Screenwriter: Zack Snyder, Kurt Johnstad, Michael Gordon Starring: Gerard Butler, Lena Headey, David Wenham, Dominic West, Vincent Regan, Rodrigo Santoro Genre: Action, Drama MPAA Rating: R (for graphic battle sequences throughout, some sexuality and nudity) Official Website: 300themovie.com Review: 8/10 rating | 7/10 rating DVD Review: 8/10 rating DVD: Blu-ray Disc | HD DVD | Two-Disc Special Edition | Widescreen | Full Screen | DVD (Limited Collector’s Edition) Movie Poster: One-Sheet | Poster 1 | Poster 2 | Poster 3 Production Stills: View here Plot Summary: Based on the epic graphic novel by Frank Miller, “300” is a ferocious retelling of the ancient Battle of Thermopylae in which King Leonidas (Gerard Butler) and 300 Spartans fought to the death against Xerxes and his massive Persian army. Facing insurmountable odds, their valor and sacrifice inspire all of Greece to unite against their Persian enemy, drawing a line in the sand for democracy. The film brings Miller’s (Sin City) acclaimed graphic novel to life by combining live action with virtual backgrounds that capture his distinct vision of this ancient historic tale

ano

net a partir do link: http://www.comingsoon.net/films.php?id=12330

Revista GEMI n IS |

Na lista abaixo vemos um exemplo prático, no caso a partir do filme “300“, da

312


R-Rated Trailer (3.8.07): Flash Player

International Trailer (12.27.06): QuickTime, High Definition (1080p) QuickTime, High Definition (720p) QuickTime, High Definition (480p) QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Video Journal 4: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res Video Journal 5: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Video Journal 3: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res

Video Journal 8: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res

S antos

Video Journal 7: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

dos

Video Journal 2: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

M árcio Carneiro

Video Journal 6: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Video Journal 1: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

313 o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

International Teaser: QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res


TV Spot 2 (1.23.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Video Journal 10 (1.19.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

TV Spot 3 (1.23.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Video Journal 11 (2.6.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

TV Spot 4 (1.23.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Video Journal 12 (2.27.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

TV Spot 5 (1.23.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

TV Spot 1 (1.23.07): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res

9 Clips (2.19.07): Flash Player, Various Clip - “Easy Choice” (2.21.07): Various

1 - n. 1

Video Journal 9 (12.12.06): QuickTime, Super Hi-Res QuickTime, Hi-Res QuickTime, Med-Res QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

314

ano

QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res

Revista GEMI n IS |

QuickTime, Lo-Res Windows Media Player, Super Hi-Res Windows Media Player, Hi-Res Windows Media Player, Med-Res Windows Media Player, Lo-Res


Behind-the-Scenes Clip (3.1.07): AOL Player, Various

Exclusive Lena Headey Interview (3.6.07) Flash Player

A partir desse extenso exemplo é possível verificar como apenas um filme pode gerar uma numerosa série de trailers ou elementos dessa nova espécie de série narrativa.

o trailer , o filme e a serialidade no modelo dos blockbusters do cinema hollywoodiano contemporâneo

Extended Clip (3.3.07): Flash Player

315

M árcio Carneiro dos

S antos


Referências

316

Campinas: Papirus, 2005.

. Dicionário teórico e crítico de cinema. 3. ed. Tradução de Eloísa Araújo

Ribeiro.São Paulo: Papirus, 2007.

BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: University of Wisconsin Press, 1985.

. O cinema clássico hollywoodino: normas e princípios narrativos. In: RAMOS,

Fernão Pessoa (Org.). Teoria contemporânea do cinema. v. 2. São Paulo: Senac, 2005. ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. HEDIGER, V. The Narative Turn in Film Advertising: on the physiognomy of contemporary trailers. Apresentado em: You Can Have It:Kinorituale,Vienna, 1999. KERNAN, L.

Coming

Attractions –

reading

american

movie trailers. Austin, Texas: University of Texas Press, 2004. MACEY, D. Dictionary of Critical Theory. Londres: Penguin Books, 2000. MASCARELLO, F. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: MASCARELLO, F. (Org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006. MASCARELLO, F. (Org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006. ROSÁRIO, Nísia Martins do. Formatos e gêneros em corpos eletrônicos. In: DUARTE,Elizabeth Bastos; CASTRO, Maria L. Dias de (Org.). Comunicação audiovisual: gênero e formatos. Porto Alegre: Sulina, 2007. SANTOS, Cláudia Melissa Neves. Trailer : Cinema e publicidade no mesmo rolo. Um estudo sobre o trailer e o movie marketing, ilustrado pela campanha de lançamento do filme Cidade de Deus. Dissertação de mestrado do Instituto de Artes e Comunicação Social. UFF, 2004.

1 - n. 1

Blackwell Publishing, 1999.

ano

BERRY FLINT, Sarah. In: MILLER, Toby; STAN, Robert. Film theory. Malden:

Revista GEMI n IS |

AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. Tradução de Marianna Appenzeller.


A O bra Cinematográfica como Formadora de S entidos: uma análise do filme Memórias de uma Gueixa D angela M aria Perufo Graduada em Publicidade e Propaganda pela FAG, Especialista em Gestão e Planejamento de Eventos pela Unipar. E-mail: dangelaperufo@gmail.com

Vanessa Cavalli Professora da Universidade Anhanguera, Mestre em Ciências da Linguagem pela UNISUL.

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 317 - 338


Resumo O estudo tem como objetivo verificar o papel da Direção de Arte como formadora de sentidos em imagens e sons, dentro do conjunto da produção cinematográfica, analisando dois aspectos: figurino e fotografia, no filme Memórias de uma Gueixa, dirigido por Rob Marshall. Inicia-se o texto tratando de referenciais teóricos que fundamentam a pesquisa, conceituando tópicos como nova linguagem oral, cultura, adaptação de literatura para vídeo, linguagem verbal e não verbal. O artigo também trata de definições dos dois aspectos de direção de arte estudados e características da cultura das gueixas. Em seguida, faz-se a análise de quatro momentos intensos da vida da protagonista. Palavras - chave: Cinema; literatura; linguagem;

A bstract The research has as objective to verify the Direction of Art role as images and sounds sense maker inside the cinematographic set, by the analysis of two aspects: Costumes and Photography, in the movie Memoirs of a Geisha, directed by Rob Marshall. The text begins by dealing with theoretical referential that support the research, by conceptualizing topics as new oral language, culture, literature adaption for video, verbal and non-verbal language. It also deals with the definitions of two aspects of direction of art studied and the characteristics of geisha culture. After that, it analyses four strong moments of the protagonist’s life. Keywords: Cinema; culture; language;


1 Introdução

E

ste estudo tem como objetivo verificar o papel da prática em direção de arte, como formadora de sentidos em imagens e sons, dentro do conjunto de uma produção cinematográfica, procurando investigar os instrumentos estéticos uti-

lizados por essa linguagem na transmissão da mensagem ao espectador. Como objetivo específico, procura-se identificar os aspectos estéticos na cons-

trução do sentido fílmico, analisando dois aspectos da direção de arte: o figurino e a fotografia no filme Memórias de uma Gueixa, dirigido por Rob Marshall, em 2005. Como método de pesquisa adotou-se uma revisão bibliográfica, abordando alguns conceitos de direção de arte, que contribuem para a produção de uma obra cinematográfica. Utilizou-se ainda alguns conceitos das teorias da imagem, com base, sobretudo, na obra de Santaella e Nöth (2001), Imagem: cognição, semiótica, mídia, bem como a cultura misteriosa das gueixas1, auxiliada pelo autor Arthur Golden (2006), no livro Memórias de uma Gueixa. Além das duas obras já citadas, são utilizados autores como Herbert Marcuse (2001), Theodor W. Adorno (1985), entre outras obras que tratam de assuntos como imagem, produção, cinema e culturas orientais. Através do referencial citado pretende-se identificar aspectos nas cenas em que se verifica o papel da direção de arte enquanto formadora de sentidos no esclarecimento da mensagem transmitida em obras cinematográficas. 2 Conceituando a nova oralidade – tradução de linguagens Parte-se da hipótese de que a construção de sentidos por meio de imagens e sons requer a utilização de conceitos estéticos, tais como direção de arte e montagem, a fim de transmitir a mensagem da obra. Nesse momento, abordam-se os principais conceitos que norteiam a construção de sentidos através da comunicação social e, mais 1 Último estágio depois da fase de Maiko (aprendiz) bastante popular e bem sucedida, pode escolher entre viver em seu próprio apartamento ou continuar na okiya até se aposentar.


especificamente, a linguagem cinematográfica. Portanto, faz-se necessário o esclareci-

sua tradução de uma linguagem para outra, por exemplo: da obra literária para a obra

Revista GEMI n IS |

cinematográfica. Assim, cultura, imagem e formação de sentidos, amarram o referen-

ano

cial teórico a fim de contextualizar o objeto de estudo deste trabalho.

1 - n. 1

mento das duas grandes divisões do que se entende por linguagem: a linguagem verbal

320

e a linguagem não verbal. A partir da introdução de tais conceitos, são levantadas questões sobre cultura e as suas formas de tradução em diferentes épocas e espaços da história, bem como de

Basicamente, linguagem é uma ferramenta humana para materializar o pensamento, o sentimento, a maneira de ver e entender o mundo, servindo para viver em sociedade, fazendo com que se consiga comunicar e entender o mundo sensível, que envolve o ser humano. [...] nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos. Que somos também leitores e/ produtores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... enfim, também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes, objetos, gráficos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro de tato, olhar, sentir e do apalpar [...] (SANTAELLA, 2004, p. 12).

A imagem constitui uma linguagem, uma ferramenta humana a fim de materializar os signos mentais, o que Peirce chama de interpretantes, e Lúcia Santaella (2004) usa como fundamento em sua obra: Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, certa maneira, determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. O interpretante imediato consiste naquilo que o signo está apto a produzir numa mente interpretadora qualquer (SANTAELLA, 2004, p. 103).

Ou seja, o interpretante, pensamento que, portanto, interpreta o signo, cria-se a partir do signo e da imagem concreta do objeto, porém o mesmo passa a ser signo novamente, quando gera uma nova imagem. Vê-se uma xícara, ela é o objeto concreto, então se desenha esta imagem, o desenho é o signo e, a interpretação criada na mente, é o signo mental ou interpretante. Com esses conceitos também trabalha a linguagem cinematográfica que sempre estará produzindo novas imagens, signos e interpretantes. As obras cinematográ-


ficas são produções imagéticas que remetem a algum fato da vida e isso acaba por influenciar as próprias atitudes. Para Santaella e Nöth (1998, p.18):

Em outras palavras, o homem expressa materialmente o que está em sua menos remotos anos das cavernas os indivíduos já sentiram a necessidade da comunicação, muito cedo já associava figuras aos seus elementos reais, na tentativa de exprimir vi-

de

sões de mundo.

Formadora

e isso acorreu em forma de pinturas, representações de seu dia a dia, ou seja, desde

como

te. O ser humano vive de imagens, percebe-se isso quando se analisa a história, desde

A O bra Cinematográfica

Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produzem do mesmo modo não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p.18).

321

fessora traz cartazes com figuras e, logo abaixo destas, existem palavras. Esta relação mental, e assim, constituem-se formas de comunicação para garantir a sobrevivência, envolvendo-se em uma teia infinita de linguagens imagéticas.

que se utilize de palavras, constituindo objeto de investigação científica no ramo da linguística. A linguagem não verbal provém de gestos, imagens, olhares, expressões e silêncio. O silêncio pode expressar certas condições emocionais, assim como as roupas, são capazes de simbolizar as pessoas. A relação do filme com a linguagem não é uma relação funcional ou uma relação parecida com, mas e linguagem/oralidade unem-se num universo em que pessoas e histórias compõem um mundo significativo (ALMEIDA, 2004 p.11).

No cinema a linguagem não verbal pode ser apresentada nas distintas formas

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

cer separadas ou fundidas. A linguagem verbal trata de toda e qualquer comunicação

de como na Televisão e no Cinema. No caso do cinema, estas linguagens podem apare-

G ueixa

se possa obter uma oralidade comunicativa, ambas se misturam, originando a oralida-

de uma

A linguagem foi dividida em dois grupos, verbal e não verbal, porém para que

M emórias

[...] quando dizemos linguagem, queremos nos referir a uma gama incrivelmente intrincada de formas sócias de comunicação e de significações que inclui a linguagem articulada, mas absorve também, inclusive, a linguagem dos surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da culinária e tantos outros (SANTELLA, 2004, p.11-12).

uma análise do filme

imagem-texto condiciona, simbolicamente, os objetos da realidade a uma representação

S entidos:

Pode-se utilizar um exemplo mais simples: logo que se ingressa na escola, a pro-


de iluminação, figurino, movimentos de câmera e enquadramentos. Portanto, esta lin-

buem para a criação da imagem e transmissão da mensagem. A iluminação é um fa-

Revista GEMI n IS |

tor decisivo para a criação de expressividade imagética, tem a responsabilidade pelo

ano

brilho e cor da obra. Além de produzir uma cena convincente ao receptor, a direção

1 - n. 1

guagem envolve-se em uma maior complexidade de definição, pois trata de toda e qual-

322

quer imagem e, muitas vezes, dispensa a linguagem verbal sem prejudicar o entendimento da mensagem. Para constituir essa linguagem fílmica, necessita-se de elementos que contri-

de fotografia precisa localizar temporalmente o telespectador, transmitir o sentimento da cena, utilizando-se de seus recursos, sem esquecer que o principal objetivo está na transmissão da mensagem ao receptor. A partir da experiência literária, o leitor tem a liberdade de criar o seu “filme mental”, dirigir e produzir o cenário, a cor, o figurino. Isso não ocorre no cinema, em que estas imagens já foram montadas e chegam prontas ao receptor, que, muitas vezes, tem um olhar distinto, pois pode estar inserido em uma cultura diferente, por isso é natural a diferença entre imagens criadas, quando se lê, e as imagens que uma adaptação, da mesma obra para o vídeo. Em Psicologia da Arte, Fontes (1999, p. 103) relata que “podemos simplesmente dizer que, se sabemos como o estudioso interpreta a fábula, podemos mais facilmente fazer idéia da sua concepção geral de arte”, isto complementa a teoria proposta anteriormente de que o indivíduo interpreta o roteiro conforme a cultura que está inserido. Em sua obra Milton José de Almeida compara: As palavras nas línguas alfabéticas são sempre representantes abstratos daquilo a que se referem, pessoas, coisas, idéias. Já a imagem-som é uma reprodução real daquilo que reproduz, independente de ser um telejornal ou filme de seres fantásticos (ALMEIDA, 2004, p.19).

A linguagem verbal, sem a presença de imagem, traz a abertura de interpretação ao receptor. Já a imagem cinematográfica consegue representar a realidade, justamente pela ilusão de movimento. A imagem pode ser um conceito, figura, definição criada, sobre um objeto, um elemento, uma pessoa. Essa imagem, idealizada está relacionada com o histórico cultural que o criador está inserido. A linguagem escrita é uma junção de caracteres para formar a palavra que represente o objeto, mas deixa livre para imaginar o objeto, por exemplo, ao mostrar a palavra carro para duas pessoas, cada uma poderá imaginar um carro diferente. Mas, se junto com a palavra tivesse a figura de um carro, o objeto já estaria “imaginado” não sendo necessário o receptor fazer isso.


2.1 O que se entende por cultura

323

Para falar de cultura pode-se buscar infinitas definições, para Marcuse:

A O bra Cinematográfica

crenças, religiões, folclore, rituais, e cada povo possui uma cultura diferente. Cada ci-

toricamente, podem vir até da miscigenação de várias culturas que formam outra, sua te, assim como a linguagem. Um exemplo de miscigenação cultural pode ser a cultura brasileira, pois procedendo a uma análise percebe-se a diversidade cultural que possui, isso se deve ao fato de que o Brasil foi colonizado por diversos povos de distintas culCultura vem do latim colere que significa cultivar o solo, cuidar, porém, é uma de símbolos característicos de cada povo, o modo de vestir-se, falar, agir, as várias forPara contrapor duas culturas bem distintas e distantes geograficamente, utili-

tura reservada, vestem-se de maneira um pouco mais comportada, deixam a encargo das cores fortes e brilhantes o diferencial no estilo de moda. Apesar de terem aderido a roupas ocidentais, seus princípios estéticos para a moda e para a beleza ainda aparecem fortes. Enquanto as orientais se protegem do sol com protetores e sombrinhas, roupas sem tantos decotes, as ocidentais buscam o sol para bronzear a pele. Outra característica que deve ser levada em consideração é o fato de que na cultura oriental a sensualidade está embaixo dos tecidos, pois Golden (2006) já chegou a dizer: “os homens querem o que não podem ver”. Desse modo, as japonesas conservam forte esta característica, deixando os decotes e pernas de fora para as ocidentais, que, em geral, gostam de abusar desse estilo da moda tropical, vinda de uma cultura em que as mulheres têm per-

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

relação às mulheres orientais. As figuras femininas orientais possuem ainda uma cul-

za-se um exemplo que fala da moda e da forma de vestir-se das mulheres ocidentais em

G ueixa

mas comportamentais de uma civilização, são simbologias que formam a cultura.

de uma

palavra com várias definições, em diferentes especificidades. A cultura é um conjunto

M emórias

turas, e fez com que seus costumes formassem esta diversidade cultural que apresenta.

uma análise do filme

característica é a mobilidade. Por ser simbólica, a cultura se transforma constantemen-

S entidos:

dizer que exista uma receita ou método para criar culturas, elas são construídas his-

de

vilização compõe sua cultura de acordo com os membros que a formam. Não se pode

Formadora

A cultura provém da história de uma civilização. É um conjunto de costumes,

como

[...] cultura é o todo da vida social, na medida em que tanto os planos de reprodução ideal, quanto também da reprodução material forma uma unidade historicamente distinguível e apreensível. [...] conceito de cultura em que o mundo espiritual é retirado de todo social e essa via a cultura é levada a um (falso) coletivo e a uma (falsa) universalidade (2001, p. 16).


sonalidade libertadora; o verão é bastante quente e o carnaval é a festa mais famosa e

cordar que se tratam de linguagens diferentes, em que uma se utiliza de palavras para

Revista GEMI n IS |

contar a história, e outra retrata a mesma história, através de imagens em movimento,

ano

cores, sons e palavras.

1 - n. 1

esperada todos os anos.

324

Este estudo tem o intuito de analisar uma obra cinematográfica que foi adaptada da literatura, uma adequação, e que, por muitas vezes, acaba sendo alvo de críticas, relatando que a sétima arte não é fiel à obra literária. Porém, torna-se necessário con-

Em linguagens, como literatura, pintura e escultura, cada receptor pode estabelecer o seu próprio tempo de leitura. O que não ocorre no cinema, em que o ritmo de leitura é estabelecido antecipadamente, ou seja, se uma obra cinematográfica possui 15 minutos todos os que a assistirem o farão em 15 minutos. Além dessas diferenças citadas, o cinema hoje, é uma forma de entretenimento, um local para encontros, para o qual as pessoas se arrumam e deslocam-se até as salas com “telonas” para assistir uma história, junto com outros espectadores. O cinema desde o princípio de qualquer obra é um trabalho coletivo, diferente da literatura, que quase sempre é expressão de um indivíduo. Para desenvolver uma obra fílmica, é necessária uma grande equipe, e cada um colocará um pouco de sua personalidade, cultura, história, enfim, a linguagem cinematográfica possui variadas idéias dentro de uma mesma obra, mas quando finalizadas precisam estar ligadas para que a mensagem possa ser transmitida. Por isso é normal que, ao ver um filme, do qual já se tenha lido a história literária, encontrem-se diferenças de interpretação, pois a solitária leitura de um romance permite ao leitor imaginar, interpretar, criar suas imagens, por meio de sua trajetória histórica cultural, ou do momento em que vive. Já o cinema coloca essa história, desenhada, interpretada, por outra pessoa, ou por outras pessoas. A sociedade é movida por imagens e as imagens movidas pela sociedade, ou seja, a revolução da imagem transformou a maneira de pensar, introduzindo imagens em movimentos e sons, cria-se assim a nova oralidade. Essa inclusão de imagens, movimentos, cores, luz, é a chamada nova oralidade na sociedade moderna, estruturada pela imagem em movimento, encontrada no cinema e na TV, leva a um desenvolvimento cultural, aprimorado a esta linguagem audiovisual que cada vez mais faz parte do cotidiano das pessoas.


3 A arte oriental das gueixas

da pesquisa será utilizado o filme, que trata dessa misteriosa doutrina japonesa, que ainda hoje acende dúvidas. A profissão misteriosa, que surgiu no século XVIII, provoca curiosidade por ser uma cultura bastante restrita em seu país de origem. Todo o regulamento é mantido

dentais confundem a profissão de gueixas, associando-a a prostituição de luxo, fruto de toda a restrição cultural que envolve a profissão.

Japão, após a Segunda Guerra Mundial. Naquela época de miséria, muitas mulheres se vindos do outro lado do Pacífico. É esse trecho da história do Japão, e os anos que os precederam, que são mostrados em Memórias de uma gueixa. As profissionais do sexo existiam e não eram as gueixas, chamadas de Yujo, homem, para isso sabiam fazer com que os homens chegassem ao clímax rapidamente senhoras da técnica, por conhecerem todas as ervas e plantas com teores afrodisíacos. sexo com as Yujo para recreação e diversão.

nismo que o Japão possuiu; seu mundo, envolto por sonhos, romance, luxo e exclusividade é o que mais fascina o sexo masculino, remetendo-os à imagem de “mulher perfeita, bonita, delicada, inteligente, atenciosa e vaidosa”. Essas artistas eram as poucas mulheres que conseguiam independência financeira em uma cultura extremamente patriarcal, conquistando uma liberdade que não é concedida ao papel das esposas. A gueixa, portanto, representava a mulher moderna japonesa, extrovertidas e sensuais, ao invés de recatadas e reprimidas. Por possuírem tais características, tornaram-se motivo de curiosidade entre japoneses e também entre ocidentais, pois desfrutam o glamour e o prestígio, proporcionado por quimonos caríssimos, banquetes e companhia dos homens mais poderosos do Japão e do mundo.

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

que vivem da arte”. As gueixas foram os primeiros elementos mais próximos do femi-

O prefixo guei significa arte, e a palavra gueixa foi criada para designar “aquelas

G ueixa

Para os japoneses dos séculos XVII e XVIII, sexo com a esposa era para procriação, e

de uma

e sabiam fingir de forma convincente um orgasmo. Carregavam orgulhosas, o título de

M emórias

ou “mulheres de prazer”. Entre seus conhecimentos estavam os de como agradar um

uma análise do filme

autodenominavam gueixas ao vestir um quimono e vender seus corpos pelos dólares

S entidos:

tas, se espalhou com mais força no Ocidente, depois da ocupação norte-americana do

de

Essa percepção errônea, que mistura a figura das gueixas com a das prostitu-

Formadora

acesso ao seu universo. Porém, esse é um dos motivos pelos quais muitas leituras oci-

como

para que somente quem saiba como tratar uma gueixa e respeite suas condutas, tenha

A O bra Cinematográfica

Agora falar-se à da história cultural das gueixas, já que para realizar a análise

325


Por outro lado, a vida de uma gueixa não é somente luxo e ostentação, não

por suas famílias, na tentativa de reduzir o número de bocas para alimentar. Geral-

Revista GEMI n IS |

mente, chegavam entre os 13 e 15 anos, se tivessem as características requisitadas para

ano

tornar-se gueixa, que eram, basicamente, beleza, saúde e inteligência; eram encaminha-

1 - n. 1

basta possuir dotes artísticos e beleza, são necessários anos de treino nas artes da dan-

326

ça, do canto e da música para deixar de ser uma Maiko2 (aprendiz) e se tornar uma profissional. Até a Segunda Guerra Mundial, muitas meninas eram vendidas para as Okiyas3

das para as aulas, se suas características não estivessem dentro do perfil exigido, eram mandadas para os prostíbulos. Devido à ocidentalização do Japão, cada vez menos meninas são atraídas pela atividade, hoje as poucas jovens que ingressam numa Okiya, o fazem por livre vontade, algumas atraídas por uma visão romantizada da profissão, que idealizam um cotidiano de paixões e glamour, totalmente diferente do dia a dia das mulheres japonesas, e outras procuram esta doutrina pelo amor às artes do país. Com isso, podemos ver a decadência da população destas profissionais, comparando que, em 1920, havia oitenta mil gueixas no país, e que hoje, não chegam a oitocentas. Estima-se que haja apenas cem delas em Tóquio, e não mais de trezentas em Kyoto, a capital imperial, demonstrando a falta de interesse das jovens pela profissão, com base em reportagem da Revista Istoé, de 2006. 3.1 Figurino, fotografia e beleza oriental feminina A roupa das gueixas é uma cobertura, por que na cultura japonesa, a sexualidade está relacionada ao misterioso; a sensualidade está em provocar a curiosidade para o que se encontra após as camadas de tecido que cobrem seus corpos. A nuca, por exemplo, é símbolo de sensualidade para os orientais e, por esse motivo, fica a mostra caracterizada por um desenho com diferentes grafias para momentos específicos, conforme a Figura 1.

2 Quando a aprendiz é aceita por uma gueixa para ser sua “irmã mais nova”. Ela agora passa a ser apresentada nas festas como uma própria Maiko e recebe um novo nome. 3 Casa onde moram as gueixas.


Figura 1 Desenho da nuca

327 A O bra Cinematográfica como

Formadora

Fonte: http://madeinjapan.uol.com.br/2006/02/09/gueixas-2/3/

de

mour e fama. Eram as artistas que ditavam a moda, pois eram consideradas topmodels, nesa. Isso só mudou a partir do processo de modernização japonesa, em decorrência da influência do Ocidente. O Japão sempre teve a capacidade de assimilar processos externos e acrescentar a eles características japonesas. Isso evitou que perdesse caraccom as gueixas, que, por quase uma década, entre os anos 20 e 30, tentaram manter sua tentaram misturar esses costumes, mas, com essa atitude, receberam muitas críticas de Na fase histórica em que vivem as personagens, os quimonos eram compostos

tritos de várias formas e agora são pessoas mais abertas, porque a roupa mostra suas diferentes naturezas”, segundo Youki Kudoh (atriz que representa Punkin no filme Memórias de uma Gueixa), a respeito da moda oriental dos anos 20, 30 e 40, da dificuldade em se movimentar vestindo um quimono, comparando com a forma de vestir-se atual no Japão. Cada figurino do filme tem traços da personalidade da personagem: - Hatsumomo: dona de personalidade geniosa, gosta de quebrar regras e vestir-se com atitude diferencial, elaborou um figurino com a presença de cores fortes e contrastantes, como azul, vermelho e laranja. Seus penteados também são distintos, por possuir mechas do cabelo, soltas, o que geralmente não acontece com outras guei-

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

maravilhosos aos olhos ocidentais. “Então, entendo porque os japoneses eram tão res-

por 12 peças, das quais, algumas roupas íntimas, poderiam ser consideradas quimonos

G ueixa

que não pareciam mais gueixas.

de uma

posição como líderes da moda, quando os vestuários ocidentais penetraram no Japão

M emórias

terísticas e tradições de sua própria cultura. Em relação à moda, o mesmo aconteceu

uma análise do filme

celebridades, artistas de cinema da época, representando a vanguarda da moda japo-

S entidos:

Nos anos em que a história transcorre, as gueixas estavam em seu auge de gla-


xas, mas, tratando-se dessa maneira específica, ninguém pode segurá-la, observado na

Revista GEMI n IS |

Figura 2.

328

ano

1 - n. 1

Figura 2 - Figurino de Hatsumomo Fonte: Cenas do filme e extras do DVD “Memórias de uma gueixa” > galeria de fotos> ilustrações de vestimentas.

- Mameha: postura elegante, delicada, serena e inteligente, apresenta roupas em tons claros e cinzas, como lilás, verde, azul claro e chocolate, apresentado na Figura 3. Figura 3 Figurino Mameha

Fonte: Cenas do filme e extras do DVD “Memórias de uma gueixa” > galeria de fotos> ilustrações de vestimentas.

- Mamãe e Titia: são gueixas aposentadas que cuidam de seu próprio Okiya, com personalidades semelhantes. Assim, seus figurinos seguem em paralelo, com quimonos em tons escuros, como preto, roxo e cinza escuro. Enquanto que seus Obi possuem cores claras e nobres, como dourado, prato e cinza, conforme Figura 4.


Figura 4 - Figurino Mamãe e Titia

329 A O bra Cinematográfica como

repletas de detalhes e bordados, em flores com fios dourados ou prateados, retratando pode ser observado nas Figuras 5. Figura 5 - Figurino de Sayuri

uma análise do filme

sua suavidade, reforçada também por seus exóticos olhos azuis acinzentados, como

S entidos:

e meiguice, com isso, seu figurino traz cores, como rosa, azul, amarelo e branco, sempre

de

A protagonista Sayuri tem como características, a delicadeza, sentimentalismo

Formadora

Fonte: Cenas do filme “Memórias de uma gueixa”.

M emórias de uma

G ueixa •

Em Memórias de Uma Gueixa, a fotografia começou a ser pensada quando a planta do set estava sedo planejada. “Falamos muito sobre as cores e texturas do filme durante a pré-produção. Rob ama essa idéia de um mundo com aquela marca de nicotina,” segundo Patrick M. Sullivan (diretor de arte de Memórias de uma Gueixa, conforme anexo inserido ao final deste artigo). A obra traz cores vibrantes, porém harmoniosas, com efeito de iluminação

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

Fonte: Cenas do filme e extras do DVD “Memórias de uma gueixa” > galeria de fotos> ilustrações de vestimentas.


dourada e vermelhos em festas e eventos. Em cenas que ocorrem dentro do Okiya, tem-

anos em treinamento, além de serem obrigadas a abrir mão de suas famílias e todo e

Revista GEMI n IS |

qualquer sentimento amoroso por outra pessoa.

ano

-se uma iluminação escura, onde algumas vezes, só percebemos sobras das persona-

330

gens, com isso representa-se o mistério que envolve a cultura dessas mulheres. Já foi citado, anteriormente, que a vida dessas artistas não se resume a luxo e fama. Para chegar a ser uma gueixa profissional, as jovens Maykos necessitam passar

uma gueixa não é livre para amar ou para ir atrás de seu próprio destino. Deve manter seus sentimentos sob rígido controle, sabendo que (uma gueixa) não pode permitir que um homem faça aflorar uma paixão. “Gueixas não têm desejos. Gueixas não têm sentimentos. A gueixa é uma artista de um mundo flutuante. Ela dança. Ela canta. Ela entretém. O resto é escuridão. O resto é segredo”, com base em trecho retirado da narrativa do filme, no momento em Sayuri encontra-se sentada em um momento de reflexão, e cuja fotografia, nessa cena, é refletida por escuridão e, a única luz existente, entra por uma janela. 3.2 Construindo o Hanamachi Trazer a atmosfera de Memórias de uma Gueixa para a tela foi um grande desafio, pois era preciso levar os espectadores para o interior de um mundo desconhecido, e que parece estar desaparecendo. Após se dar conta dos obstáculos de filmar dentro de um hanamachi4 real, demonstrando que a modernidade invadiu o Japão, encontra-se um local apropriado para a produção com todas as características da época em que se passa a história. Como isso seria impossível, os cineastas decidiram construir seu próprio distrito de gueixas. Para a construção do set na planície da Califórnia, foram importadas madeiras específicas da arquitetura dos anos 20, 30 e 40, como cedro e casca de madeiras nobres. Em 14 semanas, um campo de pastagem foi transformado em cinco blocos de prédios, ruas de pedras e becos. Construir o set de filmagem e torná-lo funcional, móvel e versátil era indispensável. “Marcamos ele todo no chão com estacas e fios para que pudéssemos caminhar por ele, então interpretamos as cenas para que pudéssemos projetar a construção em torno da ação”, segundo depoimento de Myhre (desenho de produção do filme, conforme anexo). Cada prédio devia ter características próprias, o Okiya reflete a imagem de 4 Bairro de Gueixas dentro de uma cidade, onde localiza-se os Okiyas, Casas de Chá e Escolas.

1 - n. 1

Quando a protagonista Sayuri entra nesse mundo misterioso, ela aprende que,


uma prisão e por isso seus muros são altos e portas reforçadas, além de retratar o sentimento de solidão e mistério que envolve a vida dentro da casa. As casas de chá precisaMameha foi criada uma locação própria, que precisava interagir com sua personalidade controlada e serena, além do espaço, onde ela treinaria Sayuri. O Hamanachi precisou ser modificado várias vezes. Para que isso fosse facilitado criaram quatro árvores para cada estação, as quais eram movidas por guindastes e

tecido que cobria toda a cidade cenográfica, assim trouxeram dias nublados e com neve para a tela. Quando a guerra é retratada, o set foi coberto de poeira o que interage com

filme, influenciam na transmissão da mensagem, e de que forma podem contribuir na construção dos sentidos fílmicos. ta, dois momentos de desprendimento, desmotivação e tristeza, e também vivencia dois O primeiro desprendimento ocorre quando Chyo-san, a protagonista, com com a cena de quando a pequena é afastada de sua casa na ilha de pescadores, junta-

a conversa com Tanaka-san. As duas que estavam espiando, porém não entendiam o que conversavam, seguram as mãos, em um gesto de união e medo, certas de que algo errado estava para acontecer. Escuridão, planos fechados e movimentos de câmera tremidos conduzem esta cena, criando sensação de pânico, para retratar o desespero da separação sentido pelas personagens. Momento sombrio em que Tanaka-san pousa de vilão, vestido em tons escuros e escondendo o resto com um chapéu. A mãe adoentada na cama, mal abre os olhos e provavelmente não percebe o que acontece em sua casa quando suas pequenas filhas são colocadas em uma carroça, em noite chuvosa a água se mistura as lágrimas e a expressão desespero e dúvida no semblante de Chyo e Satsu. Na segunda cena a escuridão e os movimentos de câmera tremidos se mantêm,

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

do pela idade. A análise começa a partir do memento que o pai das meninas termina

mente com sua irmã mais velha, deixando para traz sua mãe doente e o pai já debilita-

G ueixa

nove anos, é separada de sua família. Esse período divide-se em duas cenas, iniciando

de uma

momentos de realização e alegria.

M emórias

Têm-se quatro pontos definidos, como momentos fortes na vida da protagonis-

uma análise do filme

Neste momento, analisa-se como a direção de arte: Fotografia e Figurino, do

S entidos:

4 A direção de arte construindo sentidos em “Memórias de uma Gueixa”

de

os veículos sujos do exército americano.

Formadora

muitas flores e sol forte. Em seqüências de inverno, criaram uma grande cobertura com

como

modificavam com grande convicção a estação. Para cenas de primavera, árvores com

A O bra Cinematográfica

vam de ambientes acolhedores e propícios para festas e apresentações das artistas. Para

331


as imagens não estão bem definidas ocultando o mundo misterioso e desconhecido Essa sensação esta retratada por Golden narrando:

que a mais nova ficará ali, mas Satsu é rejeitada. Então Chyo-san é deixada no Okiya Nitta, uma das casas do Hanamachi, em Kyoto, enquanto Satsu (sua irmã) é levada para o Bairro dos Prazeres da mesma cidade, onde não há arte, e sim a prostituição. Olhei para Satsu e ela para mim. Talvez tenha sido a primeira vez que compreendemos inteiramente os sentimentos uma da outra. Mas durou só um momento, pois em seguida meus olhos transbordaram de lágrimas e eu mal podia enxergar. (GOLDEN, 2006, p. 41).

A direção de arte juntamente com os movimentos de câmera foram mantidos nas duas cenas analisadas. Neste momento de rompimento e desespero, a agonia esta retratada na ação tremula da câmera, que em alguns momentos corre subjetivamente lembrando alguém perdido, em seguida passa pelo rosto eufórico das personagens, perdidas em meio à escuridão. Quimonos simples de camponesas em cores tristes e sombrias, como o cinza, demonstram que o universo em estão entrando é muito diferente das raízes culturais em Yoroido6. “Eu certamente não nasci para ser gueixa. Como tantas coisas na minha estranha vida, eu fui levada até lá pela corrente”, narra a protagonista do filme. A cena que separa as duas irmãs termina com a grade da porta sendo fechada bruscamente pela senhora do Okiya em que Chyo passará boa parte de sua vida, parecendo um sinal de que o mundo entre as duas irmãs está rompido, pois agora farão parte de universos diferentes, uma estudará para entreter com gestos, danças e músicas, enquanto a outra terá seu corpo como principal objeto de entretenimento. A protagonista relata no filme: No tempo há uma poesia chamada “Perda” entranhada na pedra. Ela consiste de três palavras que foram reveladas pelo poeta. Ninguém pode ler “A Perda”. Só senti-la. Meu Pai e minha Mãe partiram dessa vida. De minha irmã eu nunca mais soube. Eu 5.Meio de transporte de tração humana, em que uma pessoa puxa uma carroça de duas rodas onde podem se acomodar uma ou duas pessoas. 6 Ilha de pescadores onde nasceu Chyo.

1 - n. 1

Então, as meninas são apresentadas para uma senhora, que as analisa decide

ano

Finalmente o riquixá5 entrou numa alameda de casas de madeira. Do modo como estavam unidas, pareciam ter só uma fachada contínua – o que mais uma vez me deu a terrível sensação de estar perdida. (GOLDEN, 2006, p. 40).

Revista GEMI n IS |

para onde irmãs são conduzidas, um lugarejo que parece um labirinto, escuro e estreito.

332


desonrara o Okiya e mamãe tinha outros planos para mim. Eu pagaria a minha dívida. Ano após ano. Não como gueixa. Como sua escrava. duas cenas: uma mostrando o encontro com o bondoso Presidente que será a razão de viver da pequena Chyo daí por diante. E a outra quando Chyo-san passa a chamar-se Sayuri-san e tem sua primeira apresentação como Maiko, no Festival da Primavera, o principal festival de artes para as gueixas.

obrigações, senta-se na ponte para observar a água, elemento forte de sua personalidade, quando para sua surpresa um homem bem vestido, ao qual ouviu alguém cha-

percebendo seu braço enfaixado pergunta: “você caiu?”, a menina com toda sua timidez falando: “Não se acanhe! Todos nós temos o direito de tropeçar”. Em seguida pergunta seu nome, mas Chyo continua tímida sem conseguir dizer uma palavra. Então ele insiste: “Não tenha medo de olhar para mim”. Neste momento os olhos iluminados da pequeChyo olha para a cobertura vermelha do doce gelado e compara com os lábios das lábios e afirma: “agora eu também sou uma gueixa”. Com o sorriso sincero e apaixonante o generosa concedendo-os a ela. Então Chyo afirma que ele também esta sendo generoso.

vez que cair, não fique triste”. Os olhos da menina acompanham o homem até que desapareça entre as pessoas. A iluminação nítida e colorida da cena, com árvores floridas, mostra que pela primeira vez após a separação ela saíra da escuridão encontrando um propósito para a vida. Na seqüência uma narrativa da personagem confirma o que a direção de arte esta transmitindo: “Naquele momento eu passei de uma menina com vida vazia, para alguém com um propósito. Percebi que ser gueixa poderia ser um degrau para outra coisa: um lugar no mundo”. Determinada, a pequena oferece suas moedas no templo, “Eu pedi para chegar a ser gueixa, e de alguma forma voltar a vê-lo”. No festival da Primavera, sua primeira apresentação como Maiko e o desejo

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

pequena junto com seu lenço. Em seguida fala: “Agora me prometa uma coisa: da próxima

Com simplicidade o homem sorri e pega o troco com o sorveteiro entregando para a

G ueixa

homem concorda e a interroga sobre seus espantosos olhos, afirmando que sua mãe foi

de uma

mulheres que acompanham o homem. Em um gesto inocente passa a cobertura em seu

M emórias

na se erguem, e o homem a convida para tomar um sorvete. Enquanto toma o sorvete

uma análise do filme

baixa os olhos tentando esconder o rosto, e então o homem bondoso tenta lhe animar

S entidos:

tristeza que afoga os espantosos olhos azuis. “Está um dia tão bonito para tanta tristeza”,

de

mar de Presidente, interrompe o trajeto até o teatro, interrogando-a sobre a profunda

Formadora

gueixa são interrompidos e ela passa a ser a escrava da casa. Em um de seus dias de

como

Após uma tentativa frustrada em fugir o Okiya com a irmã, seus estudos para

A O bra Cinematográfica

O segundo momento analisado é de esperança e alegria, também dividido em

333


começa a dar sinais de realização. O palco escuro e uma contra luz que ilumina as cos-

afinal está próxima de seu objetivo e seu grande amor na platéia a observa, dando-lhe

Revista GEMI n IS |

maior motivo para que sua apresentação transcorra esplendida e para que continue

ano

o percurso buscando seu objetivo. Nessa cena o figurino é diferente dos padrões das

1 - n. 1

tas de Sayuri deixando-a escura frontalmente, dando a impressão de que a esperança

334

encontrada na cena analisada anteriormente é a luz que a impulsiona em seu propósito. Parte do palco está escuro, até que a luz encontra seu rosto. Sayuri apresenta uma dança triste e teatral, contrastando com uma explosão de alegria que toma seus sentimentos,

gueixas, tamancos altos como os usados por cortesãs muitos anos antes, cabelos soltos, trazem sentido juntamente com um foco de luz no centro do palco, que dá efeito azulado à cena, o que geralmente representaria um sonho, com isso cria-se sua apresentação, como a realização de um sonho. Enquanto isso a platéia está com luz em efeito penumbra, não sendo possível observar a expressão de admiração dos que a assistem. Sua primeira desilusão, terceiro momento analisado, é quando pensa ter perdido seu Presidente e decide largar tudo, pois nada mais teria sentido, já que sua luta para alcançar a fama como gueixa foi movida o tempo todo por este sentimento proibido em sua profissão. Com a interferência de Punkin (gueixa que foi sua grande amiga, porém quando Sayuri foi adotada, como herdeira do Okiya Nitta, tornaram-se inimiga, já que Punkin queria este posto), Sayuri desonra sua carreira diante de seu grande amor, por armação de sua grande amiga, isso traz outra vez uma textura cinzenta para a tela. Para retratar este momento escolhe-se a cena em que a grande gueixa se dirige ao limite entre uma montanha e um precipício. Parada olhando para o mar com o rosto livre de maquiagem e um figurino cinza, mesma cor que usava quando vivia na escuridão de ser a escrava Chyo-san, vê o horizonte sem fim e sem objetivos. Tirando do peito o lenço que o Presidente lhe entregou quando era pequena e que a acompanhou durante sua trajetória, acaricia como uma despedida, atirando este ao vento, assim deixa-se mais uma mensagem de rompimento ou separação. Um movimento de câmera abre para plano geral reduzindo a grande gueixa, a um nada, deixando mais real a redução sentimental em que ela se encontra. “O coração morre lentamente, perdendo as esperanças como folhas. Até que um dia, nada resta. Nenhuma esperança. Não resta nada. Ela se pinta para esconder o rosto, seus lábios são águas profundas”, diz Sayuri em narração após a cena. O quarto momento se passa após a guerra, quando Sayuri-san sai de casa pronta para encontrar-se com o Nobu (homem por quem tem grande admiração, porém sente repulsa sentimental), mas quando chega ao local quem a encontra é o Presidente, ou seja, ela encontra novamente a razão para ser gueixa.


Encontram-se em um jardim, repleto de flores, onde Sayuri fica sabendo de toda a verdade, sobre a misteriosa atitude de Mameha (sua professora) em adotá-la e -se de costas tentando uma fuga de olhares, porém ele repete uma frase que lhe disse no dia que se encontraram na ponte, ”Não tenha medo de olhar para mim, Chyo”. Neste momento Sayuri declara-se: “Não Percebe? Todos os passos que dei desde que era aquela criança na ponte foram para me aproximar de você”.

rações do filme: “Mamãe sempre dizia que minha irmã Satsu, era como madeira tão enraizada á terra como a cerejeira. Mas que eu era como a água. A água abre caminho, mesmo através da

fosse alterado e mesmo quando ela pensou estar longe da felicidade a mobilidade da ta vez o objetivo veio encontrá-la. Abaixo, a narração que encerra o filme:

dos e bordado em fios brilhosos, Sayuri acaba de alcançar seu propósito, ou ainda, os céus atenderam seu pedido, ela é uma gueixa e o destino trouxe seu amor. 5 Considerações finais O objetivo do estudo de identificar os aspectos estéticos na construção do sentido fílmico, e para isso analisou-se dois aspectos da Direção de Arte: o Figurino e a Fotografia, no filme Memórias de uma Gueixa. Para fundamentação teórica foram utilizados conceitos de Lucia Santaella quanto à formação de sentidos através de signos, ícones e a mensagem do interpretante em relação ao que vê. Com a pesquisa realizada analisou-

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

para um novo objetivo. Com um quimono dourado, pintado com flores, objetos colori-

encontro dos dois no dia em que tomaram sorvete, momento que a luz abre seus olhos

G ueixa

a película, a cena em que o romance se finda tem claridade parecida com o primeiro

de uma

Em um cenário colorido e com iluminação que parece trazer o sentimento para

M emórias

Não podemos pedir ao sol “mais sol”, ou a chuva “menos chuva”, para os homens, gueixas são apenas meias esposas somos as esposas da noite. Mesmo assim conhecer a bondade depois de tanta maldade. Ver uma menininha, mais corajosa do que ela imaginava, suas preces atendidas. Isso não é o que chamamos de felicidades? Afinal essas não são memórias de uma imperatriz nem de uma rainha...Estas são memórias de um outro tipo.

uma análise do filme

água atravessou os obstáculos trazendo o amor até onde ela estava, mostrando que des-

S entidos:

O elemento que acompanhou a menina, não deixou que o curso de sua vida

de

rocha. E diante de algum obstáculo ela encontra outro rumo”.

Formadora

ta o excesso de água na personalidade da protagonista mencionada três vezes em nar-

como

A imagem dos dois no jardim refletida no lago, após o tão esperado beijo, retra-

A O bra Cinematográfica

protege-la, tudo não passou de um pedido do Presidente. Envergonhada Sayuri vira-

335


-se as cenas do filme que conseguem de maneira fragmentada formar sentidos e contar

das cenas pode-se perceber claramente os altos e baixos na trajetória da personagem. Mantêm-se uma unidade de cores entre cenas de desespero e tristeza e cenas de esperança e alegria. Sabe-se que o cinema é uma arte audiovisual que se vale de todas as outras. As cores e texturas de um filme precisam atuar na transmissão da mensagem, pois tonalidades são fortes transmissoras de sentidos. Um ambiente escuro é interpretado distintamente de um ambiente iluminado. Em Memórias de uma Gueixa a separação de cenas escuras e claras consegue dividir momentos de sentimentos distintos. Nas cenas em que se remete ao sentimento de medo, desilusão, solidão e tristeza, encontra-se a escuridão, enquanto os figurinos, principalmente da protagonista, apresentam-se em cores tristes, predominando cinza, marrom e preto. Quando o sentido a ser passado deve ser o contrário do primeiro, encontra-se uma tela iluminada, assim como figurinos coloridos em texturas como rosa, dourado, lilás, vermelho, verde, entre outras cores que em concordância possam contribuir na construção sentido de alegria, realização e superação. A linguagem não-verbal provém de gestos, imagens, olhares e expressões, desta forma, percebe-se um universo de significados na constituição da narrativa da história, onde foi considerada a construção dos aspectos psicológicos das personagens a fim de harmonizar as cores em figurinos e ambientes, instituindo sentidos distintos na imagem transmitida por cada personagem em cena. O sentimento ou qualidade de impressão é um quase-signo porque já funciona como um primeiro, vago e impreciso predicado das coisas que a nós se apresentam, A ação ou experiência também pode funcionar como signo porque se apresenta como resposta ou marca que deixamos no mundo, aquilo que nossa ação nele inculca (SANTELLA, 2004, p.54).

Na análise desta obra tem-se a percepção do papel fundamental que a direção

1 - n. 1

Esta teoria relatada foi visivelmente retratada no filme estudado. Com a divisão

ano

O vestuário não é jamais um elemento artístico isolado. Deve-se considerá-lo em relação a um certo estilo de direção, cujo efeito pode aumentar ou diminuir. Ele se descara dos diferentes cenários para pôr em evidência gestos e atitudes dos personagens, conforme sua postura e expressão. Por harmina ou por contraste, deixará sua marca no grupamento dos atores e no conjunto de um plano. Enfim, sob esta ou aquela iluminação, poderá ser modelado. (MARTIN, 2003, p. 60-61).

Revista GEMI n IS |

a história através das cores e texturas da película.

336


de arte desempenhou como formadora de sentidos bem como na transmissão de sentidos, para ambientar cada momento através de distintas cores e texturas que informam analisada em que a protagonista e sua irmã são separadas dos pais, onde os aspectos de figurino e fotografia contribuem para formar um ambiente sombrio e ao mesmo tempo eufórico, com uma iluminação quase ausente, texturas em tons escuros e os movimentos de câmera parecem atuar juntamente com o elenco. Ao tratar deste tema

tecimentos e os comportamentos, mas também os sentimentos e as idéias”. A transmissão de sentidos através da direção de fotografia, com suas cores e

vincentes em suas as campanhas, utilizam-se deste recurso para enfatizar a mensagem. sentimentos e mensagens que as imagens tem, mexendo com o emocional e inconsciente do receptor. Com tudo, observa-se uma grande contribuição das duas partes de direção de evidente a influência das imagens, cores e iluminação na transmissão de sentidos. As

G ueixa

Referências

de uma

cores de uma cena, as vezes, pode comunicar mais que as próprias palavras.

M emórias

arte em analise, na construção do sentido fílmico. Durante o estudo ficou ainda mais

uma análise do filme

Essas mudanças no mercado podem estar relacionadas ao grande poder que transmitir

S entidos:

algumas marcas em suas produções publicitárias, que, a fim de agregar elementos con-

de

texturas, tem mostrado grande crescimento, tendo em vista os altos investimentos de

Formadora

tempo sutil e complexa, capaz de transcrever com agilidade e precisão não só os acon-

como

Martin (2003, p. 238) argumenta que “O cinema dispõe de uma linguagem ao mesmo

A O bra Cinematográfica

ao receptor o sentimento em cada cena retratada. Como percebe-se na primeira cena

337

Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zabar, 1985. ALMEIDA, Milton José de. Imagens e Sons, A nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 2004. FONTES, Martins. Psicologia da Arte. São Paulo: Marins Fontes, 1999. 1ª Ed. GOLDEN, Arthur. Memórias de Uma Gueixa. São Paulo: Imago, 2006. MARCUSE, Herbert. Cultura e Psicanálise. Tradução, Wolfgang Leo Maar, Robespierre de Oliveira e Isabel Loureiro. São Paulo: Paz e Terra, 2001. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução, Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003.

D angela M aria Perufo - Vanessa Cavalli

ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antonio de


REVISTA MADE IN JAPAN. Um universo desvendado. fev.. 2006 Disponível em: REVISTA ISTOÉ. O misterioso mundo. ed. 1900 Mar. 2006. Disponível em: <http:// www.istoe.com.br/reportagens/18004_O+MISTERIOSO+MUNDO?pathImagens=&pat h=&actualArea=internalPage>. Acesso em 30 abr. 2006.

Paulo: Iluminuras, 2001. 3ª ed.

1 - n. 1

SANTAELLA, Lúcia; NÖRTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São

ano

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Revista GEMI n IS |

<http://madeinjapan.uol.com.br/2006/02/09/gueixas-2/>Acesso em 30 abr. 2010.

338


Transcinema:

a multiplicação de janelas e o hipertexto como dispositivo da interatividade M arília Xavier

de

Lima

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação da UFJF, na linha Estética, Redes e Tecnocultura. E-mail: marylxavier@hotmail.com

Revista GEMI n IS

ano

1 - n . 1 | p. 339 - 350


Resumo Este trabalho procura compreender a interatividade proporcionada na multiplicação e sobreposição de janelas na tela à luz do Transcinema, relacionando tais intertelas à lógica do hipertexto. Desta forma, pesquisou-se a interatividade sem o manuseio das interfaces pelo espectador, uma vez que ela advém da própria tela. Para tal, foram discutidos dois filmes: Timecode, de Mike Figgis (2000), e O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway (1996). Na análise verificou-se a tendência das novas tecnologias em convocar a participação do espectador na obra. Palavras - chave: Comunicação; Cinema; Interatividade.

A bstract This paper seeks to understand the interactivity of the multiplication and overlapping windows on the screen based on the Transcinema, relating to the logic of such multiple screens hypertext. Thus, interactivity is searched without handling of interfaces by the viewer, since it stems from the screen itself. To this end, two films were discussed: Timecode by Mike Figgis, 2000, and The Pillow Book, Peter Greenaway, 1996. In the analysis there was a tendency for new technologies to convene viewer participation in the work of art. Keywords: Communication; Cinema; Interactivity.


1 Introdução

A

tualmente, discute-se, em demasia, a interatividade presente nas obras audiovisuais contemporâneas, muitas destas consideradas neobarrocas1 por sua

estética da saturação da imagem e do excesso de informações. Por outro

lado, vê-se a ascensão de trabalhos midiáticos que buscam inserir o espectador nas narrativas por meio da escolha de caminhos dos personagens, como o Kinomautomat2. Tais filmes funcionam na lógica de ramificações da narrativa, cabendo ao espectador optar por cenas pré-ordenadas. No entanto, este tipo de interatividade não vai além da atuação do espectador por motricidade, isto é, por pergunta e resposta. Por isso, esta pesquisa procura pensar a montagem cinematográfica de obras entendidas como interativas, a partir da perspectiva da multiplicidade de janelas e do conceito de hipertexto, e não em termos de ramificações da narrativa. Por meio de considerações feitas a este respeito por teóricos como Katia Maciel (2006), Janet Murray (2003), André Parente (1993), Lev Manovich (2001), entre outros, foi exposto de que maneira a montagem pode inserir o espectador na narrativa. Para tal, foram explicitados os filmes O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, 1996) e o Timecode (2000), de Mike Figgis. Desta forma, este artigo tenta compreender como o cinema interativo atua na construção de significados pelo espectador, visto como participador na obra. Esta pesquisa não vai se debruçar sobre a narrativa interativa propriamente dita, mas sim, diante da forma como ela vai ser feita, ou seja, os dispositivos de narração imagéticos, como a montagem e a decupagem. Não importa tanto aqui analisar se a história depende da participação do espectador, ou melhor, se este atua ou interfere na narrativa; foi pesquisado como os dispositivos cinematográficos permitem que o espectador participe da construção dos significados, dando-lhe um papel de sujeito do enunciado, a favor da minimização do direcionamento da decupagem e da montagem. Para tal, verificou-se como a multiplicação de imagens de contextos distintos na tela 1 Tendência da arte contemporânea em recusar o ponto de vista absoluto e unitário, a favor da pluridimensionalidade, da instabilidade e da mutabilidade. 2 Primeira narrativa cinematográfica interativa.


ocasiona o deslocamento do espectador diante da obra para ir além dela. Com isso, foi investigada a atual lógica das novas tecnologias em promover a interatividade por meio

2 Transcinema

DerBeek (Feedback número 1: a Movie Mural). Por meio de narrativas múltiplas em telas distintas, os filmes dessa década pretendiam uma nova construção do enredo pelo sujeito, de tal maneira que as obras potencializaram as experiências dos espectadores, como explica Peter Weibel no texto “Teoria narrada: projeção múltipla e narração múltipla (passado e futuro)”: Pela primeira vez, a resposta subjetiva ao mundo não era forçada em um estilo construído, falsamente objetivo, mas apresentada formalmente na mesma maneira difusa e fragmentária em que foi experimentada. Na era das revoltas sociais, drogas de expansão da consciência e visões cósmicas, os ambientes de projeções múltiplas tornaram-se um importante fator na busca por uma nova tecnologia de produção de imagens capaz de articular uma nova percepção do mundo. (WEIBEL, 2005, p.336)

Weibel compara o cinema expandido realizado na década de 1960 com as produções de videoarte na década de 1990. Segundo ele, “ao buscar o desenvolvimento de uma linguagem específica baseada no vídeo, a arte de vídeo na década de 1990 concentra-se deliberadamente na expansão de tecnologias de imagem e da consciência social da década de 1960” (2005, p. 340). A geração de 1990 explorou, como no cinema expandido, novas tecnologias para as projeções e narrativas múltiplas. Percebe-se, então, segundo Victa de Carvalho (2006), que a partir de 1960 houve um empenho em evidenciar o dispositivo na arte, recaindo sobre a experiência do espectador, no qual é chamado a participar da obra, de tal maneira que a própria obra torna a ser a experiência. Verifica-se isso nos trabalhos de videoarte dos multiartistas Hélio Oiticica e Gary Hill. Tais narrativas interferem na construção dos significados no espectador, uma vez que as imagens são apresentadas ao mesmo tempo, diferente do que ocorre com a montagem nos filmes clássicos. Nesse sentido, percebe-se que o audiovisual caminha em direção a novas perspectivas de experimentação da obra pelo espectador, seja por meio do cinema expan-

1 - n. 1

tação e à projeção da imagem, como, por exemplo, Gregory Markoupolo e Stan Van-

ano

Cineastas, na década de 1960, expandiram o cinema no que tange à represen-

Revista GEMI n IS |

das interfaces.

342


dido, ou por meio da videoinstalação. Ou seja, novas experimentações do cinema contemporâneo potencializados pelas novas tecnologias, como coloca a pesquisadora Katia

Tal como acontece no Transcinema. Neste, o espectador vai através da

obra; ele sai da sua passividade para participar daquilo que lhe é apresentado. O sujeito transita, navega pela obra, ele não mais passa por ela. Hélio Oiticica, criador, junto com Neville de Almeida, do “quasi-cinema”3, deu o nome de participador a esse espectador. Se não houvesse a participação espectorial em suas obras, estas não se consolidariam. O participador na obra interativa é: [...] parte constitutiva da experiência proposta, não mais um espectador que assiste àquilo que passa, mas um sujeito interativo que escolhe e navega o filme em sua composição hipertextual, em suas dimensões multitemporais e descentradas, ao conectar uma rede de fragmentos de imagens e sons e ao multiplicar os sentidos narrativos (MACIEL, 2003, p. 2)

a multiplicação de janelas e o hipertexto como dispositivo da interatividade

Enquanto a pintura se transforma com a invenção da fotografia, libertando-se dos realismos e da lógica da perspectiva, o cinema contemporâneo, imerso nas novas tecnologias da imagem experimenta o espaço fora da moldura e dos limites lineares da narrativa. Projetores se multiplicam e se movimentam, ao mesmo tempo que as histórias se bifurcam, como estruturas abertas à participação do espectador, para a qual a projeção passa a funcionar como uma interface ativa (MACIEL, 2009, p. 15).

Transcinema :

Maciel:

343

O “quasi-cinema” de Hélio Oiticica e Neville Almeida propunha uma contrapartida ao cinema clássica, como nos projetos Cosmococas. Tais obras eram anti-narrati-

meio de slides, em quatro paredes ao som de sua música. No contemporâneo, podemos apresentar exemplos de obras interativas que utilizam as novas mídias4 na distribuição ou realização. Como o filme Jinxed!, de Christopher Hales (1993). Nesse filme, o espectador cria acontecimentos na rotina do personagem ao clicar nos objetos presentes nas cenas. Com isso, a narrativa é construída a partir da intervenção do espectador, assim, multinarrativas podem ser criadas. Dessa maneira, a experiência fílmica é distinta em cada sujeito, ou seja, a forma da 3 Quasi vem do latim do mesmo modo que, ou como 4 Segundo Lev Manovich (2001), “as novas mídias são objetos culturais que usam a tecnologia computacional digital para distribuição e exposição”. Como, por exemplo, o CD-ROM, DVD, sites e ets. Cf. http://www.upv.es/ laboluz/revista/pages/numero5/rev-5/manovich.htm

Lima

que o espectador deita em uma rede e observa imagens de Jimi Hendrix projetadas, por

de

vas e realizadas fora das salas convencionais de cinema. Como o Cosmococa CC5, em

M arília Xavier


recepção é individualizada. Em Londres, a artista britânica Sam Taylor-Wood realizou a instalação interatiem estado de angústia que, em diferentes momentos, falam frases soltas. O espectador tem a impressão de que os personagens projetados conversam entre si, o que ocorre por meio da sua observação. O sujeito é quem concretiza o diálogo entre os personagens.

porâneo, pois, como já foi apresentado aqui, artistas do passado já realizaram obras que incitaram a participação do espectador. Lev Manovich (2001) diz que as novas mídias potencializaram aquilo que as vanguardas (como as de 1920) buscavam. Ele coloca, ainda, que o cinema, atualmente, se apropriou das novas tecnologias, tornando sua linguagem híbrida, assim, como o computador lança-se dos componentes da linguagem cinematográfica, como sua representatividade em imagem. A imagem síntese corresponde ao ideal da interatividade uma vez que o espectador a experimenta como sensação. “A imagem síntese opera uma destruição do aqui e agora, arruinando o suporte de qualquer experiência estética (Lyotard). O sentimento estético é, não apenas imediato, ou seja, sem conceito e finalidade, mas pura sensação, puro afeto, que acolhemos quando somo passíveis,” (PARENTE, 1993, p. 25). Embora o espectador não tenha a função de escolher os acontecimentos da história, por meio de algum tipo de interface, esta não existe sem sua participação. O que se quer compreender aqui é se mecanismos de múltiplas janelas interferem na construção fílmica por parte do espectador em filmes no qual a tela é a própria interface de interatividade. Sabe-se que isso acontece em instalações interativas do tipo Cosmococas de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida, em que o espectador/participador imerge de forma sensório-motora no ambiente interativo; ocorre também em outras obras dentro do Transcinema. Veremos em seguida como a interatividade acontece quando a multiplicação das janelas é a própria interface. O cinema interativo das origens como o Kinoautomat e seus derivados, ou ainda, as simulações, jogos on line, ou programas que incitam a participação do público por meio do voto, não promovem de fato a interatividade, uma vez que as escolhas do espectador são limitadas a imagens pré-elaboradas pelo diretor. Nesse tipo de filme apenas eram apresentadas duas possibilidades de escolha aos espectadores.

1 - n. 1

do esta possível pelas novas tecnologias. No entanto, não é uma tendência do contem-

ano

Nesse âmbito, percebe-se o caminho das artes em direção à interatividade, sen-

Revista GEMI n IS |

va, em 2001, Pent up. Nessa obra, vemos cinco telas projetadas com imagens de pessoas

344


nas por meio da escolha de um caminho a ser percorrido pelos personagens, ou seja, não se trata de decidir por eles. O participante deve interferir e fazer parte da obra, ser ele também o ator, o montador, o diretor. Assim, a obra torna-se um processo, não um filme com imagens indexadas do passado, a obra interativa como presença, situação: “Trata-se de uma experiência que se dá na interação sempre parcial do observador, ou seja, a obra perde sua materialidade e torna-se o próprio processo,” (CARVALHO, 2006, p 143). 3 A interatividade por meio da multiplicidade de janelas: Timecode Fica claro, então, que a interatividade não depende tanto das interfaces, como mouse, luvas, stick, e outros mecanismos de imersão, mas sim da estrutura enunciativa da obra. Ou seja, elementos de decupagem, montagem, projeções arquitetônicas são

As interfaces são o começo da participação do espectador. Como coloca o teórico Derrick de Kerckhove: “Mas os que sabem onde computadores querem ir, compreen-

(1993, p. 62). Ou seja, importa nesta pesquisa, menos a análise da narrativa interativa do que sua composição estética e imagética. Pois, como narrativa interativa, no que tange à história, entende-se: A narrativa interactiva quer-se segmentada (implicando diversos momentos de narração) permitindo assim alterações na sequência temporal dos factos narrados. A segmentação da narrativa irá permitir a navegação pelos seus diversos elementos, por parte do leitor. Essa mesma segmentação das partes autoriza, igualmente, uma certa reordenação da história e permite realizar escolhas. Consequentemente, e porque

Lima

neurais. Ora, as redes neurais não estão a tal ponto associadas à informação digital,”

de

dem que a geração seguinte de computadores dependerá em alguma medida das redes

M arília Xavier

resultado da ação do observador sobre a imagem,” (COUCHOT, 1993, p.46).

determinantes no grau de interatividade do espectador. “[...] a imagem interativa é o

a multiplicação de janelas e o hipertexto como dispositivo da interatividade

Nesse sentindo, a interatividade no cinema acontece em outro âmbito e não ape-

345 Transcinema :

Hoje em dia, já se fala em cinema interativo, mas se essa interatividade for apenas do tipo que se tem no videogame, ela é muito pobre, de motricidade, do tipo estímulo/resposta. Num sistema de realidade virtual do tipo simulador de vôo, em que um piloto de avião treina seus reflexos, ele vai estar fazendo uma reação do tipo sensório-motora; tudo que ele pensa ou sente só vai ter algum significado na relação com aquelas imagens, se traduzir-se em motricidade, ou seja, em termos de resposta. Se o cinema do futuro for apenas a possibilidade de uma interatividade como essa, não levará a nada, será apenas o cinema do passado aperfeiçoado pelas tecnologias (PARENTE, 1999, p. 8).


Com isso, percebe-se que, por meio da imagem de síntese, o espectador não

1 - n. 1

pré-ordenadas.

ano

apenas escolhe os caminhos, como altera os resultados, ele não se limita a seguir opções

346 Revista GEMI n IS |

há escolhas para fazerem-se a narrativa deve prever ramificações em momentos determinados da história. Essas mesmas ramificações, ou bifurcações implicam um momento de suspensão da narrativa. Momento esse, que é dado ao leitor ou espectador, para poder fazer suas escolhas (CAIRES, 2007, p.73).

O usuário [da imagem de síntese] de fato opera uma série de escolhas que, em sucessão, geram um produto novo e dão então origem a uma situação não totalmente pré-codificada: os percursos são préordenados, os resultados, ao contrário, dependem de operações que vão sendo pouco a pouco realizadas pelo usuário e conservam então uma ampla margem de imprevisibilidade. Verifica-se, em suma, uma espécie de processo em devir (BETTETINI, 1993, p. 70).

De certa maneira, pode-se identificar tal interatividade no Timecode (2000), do diretor estadunidense, Mike Figgis. O filme foi realizado em tempo real, sem corte e sem montagem. Foram 90 minutos de filmagem sem parar, com improvisações dos atores e encontros inusitados. Quatro câmeras digitais de vídeo sincronizado foram usadas para filmar os personagens principais. A tela é dividida em quatro; cada quadro apresenta um personagem, contudo, ele não permanece sempre no mesmo quadro, pois as histórias se entrecruzam. Nossa atenção é voltada para a janela que apresenta o motivo, pois, enquanto algo fundamental acontece em um quadro, outro exibe apenas um personagem fumando um cigarro. Pode-se comparar a atuação espectorial do filme a de um canal televisivo. Se cansarmos de uma das janelas, podemos passar a seguir outra, e, assim, segue todo o filme; é como se trocássemos de canal nos intervalos comerciais. Além disso, diferentes pontos de vista são explorados no filme, como na cena em que dois personagens se cruzam, implicando em dois enquadramentos diferentes. Timecode é um “docu-drama”, um filme de vigilância que registra 90 minutos da vida de seis personagens. Essa multiplicação de janela exibidas simultaneamente torna a montagem espacial em detrimento ao tempo. Ou seja, o regresso às janelas, recortes ou justaposição da estética da videoarte de 1960 e 1970 (DUBOIS, 2004). Como afirma Paulo Viveiros: É um regresso à estética do “quadro” que abole o fora de campo e espacializa o tempo distribuindo-o pela superfície do ecrã, por intervenção do cluster visual da imagem dividida, em partes iguais, ou em diferentes dimensões. A montagem espacial pode ser vista como


Isto é, não mais a montagem tradicional do cinema em planos seguidos por 1972), no qual direciona a construção fílmica no espectador, ou seja, a montagem usada, na maioria das vezes, para impor os significados da narrativa (efeito Kulechov). Timecode assemelha-se ao trabalho de Lars von Trier, durante o Reveillon de 2000, por meio da parceria de seis canais televisivos dinamarqueses. O diretor do movimento do Dogma 95 filmou dramas improvisados nas ruas de Copenhaque, que foram exibidos nos canais de modo simultâneo, contudo, de maneira distinta, ou seja, com diferentes planos e enquadramentos. 4 Interatividade por meio do hipertexto: O Livro de Cabeceira Pode-se verificar no filme O Livro de Cabeceira (The pillow book - 1996), vários elementos que configuram a interatividade por meio da sobreposição de janelas, as quais funcionam como intertextos. As personagens principais da narrativa existem na trama de forma virtual, uma vez que suas relações acontecem mediante as imagens intertextuais do livro de cabeceira. São histórias paralelas unidas pelo intertexto.

her lover - 1989), filme este já discutido extensamente por Wilton Garcia. O que vai nos interessar aqui é a justaposição de telas que funcionam como

através das cores semelhantes e contrastantes. Será relevante nesta parte da pesquisa a utilização de intertelas como hipertextos, isto é, links que proporcionam caminhos, interferindo na construção de novas interpretações. A partir de Pierre Lévy, compreende-se o hipertexto como uma rede rizomática de significações que modelam e interferem no universo dos sentidos do espectador. Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou 5 Ver A interatividade, virtualidade e imersividade: a participação na obra de arte contemporânea dissertação de Venise Paschoal de Melo, 2008.

Lima

sobreposição de janelas em O livro de cabeceira acontece de distintas maneiras5, como

de

“nós” de significações, originando diferentes interpretações no espectador. Ou seja, a

M arília Xavier

como em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (The cook, the thief, his wife and

Essa intertextualidade presente no filme é recorrente na obra de Greenaway,

a multiplicação de janelas e o hipertexto como dispositivo da interatividade

outros, gerando, assim, os significados, como a “montagem-rei” de Eisenstein (Metz,

347 Transcinema :

uma estética das múltiplas janelas das imagens informáticas. A lógica da substituição, característica do cinema, dá lugar à lógica da adição e da co-existência, nada é desaproveitado nem apagado (VIVEIROS, 2007, p. 46).


Com isso, verifica-se que determinadas intertelas objetivam detalhar a cena

do corpo para a montagem do livro. Percebe-se, nesta cena, planos e detalhes da produção do livro, como o corte e a colagem das páginas. Dessa forma, compreende-se a intenção de Greenaway em proporcionar ao espectador a construção de diferentes interpretações, ficando ao cargo desse leitor e, a partir de sua bagagem cultural, a edificação dos sentidos. Ou seja, o cineasta privilegia a sobreposição de telas a favor do não direcionamento do olhar espectorial, em contraposição à montagem linear tradicional do cinema. Pode associar essa composição da imagem fílmica greenawayana à tradição pós-moderna do hipertexto, que celebra a não hierarquia do autor, admitindo a pluralidade dos significados, e assim, confluindo na liberdade de interpretação do espectador/ leitor (MURRAY, 2003). Em outras palavras, a multiplicação de janelas rompe com a linearidade da montagem cinematográfica, neste caso não depende do diretor apontar os significados da narrativa, esta advêm da imersão do espectador nas variáveis apontadas pelo cineasta, ou seja, das múltiplas intertelas. Como se o espectador fosse o navegador e mapeasse a narrativa através do olhar. Isso fica claro na passagem a respeito da organização do quadro imagético no contemporâneo enunciado pelo pesquisador Nelson Brissac Peixoto: Superação do universo retiniano. A imagem não é mais constituída em função de um ponto de observação – a perspectiva retiniana. Mas como um quadro que se apresenta segundo vários pontos de vista (distâncias, dimensões) diferentes e simultâneos. Em vez de cineolho, o cego visionário, a imagem como algo a ser montado, articulado (PEIXOTO, 1993, p. 250).

Nesse âmbito, tanto em O livro de cabeceira como no Timecode, a interface que promove o diálogo entre o ser humano e a máquina – a interatividade – pode ser a sobreposição das telas, ou melhor, a própria tela, tal como as obras do Transcinema. Com isso, segundo a pesquisadora de dispositivos audiovisuais, Victa de Carvalho (2006), a

1 - n. 1

o que atualiza o sentido da imagem. Como na cena em que a pele com grafias é retirada

ano

exibida, isto é, trata-se do mesmo motivo, mas transmitido a partir de planos diferentes,

348 Revista GEMI n IS |

partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular (LÉVY, 2004, p. 33).


imagem conduz a experiência do espectador, ela torna-se imagem-experiência6, convocando a presença sensório-motora do público, lembrando que esta interatividade não virtual.

Com isso, percebe-se a relação entre a multiplicação de janelas no filme Timecode e a sobreposição de intertelas em O livro de cabeceira, e o Transcinema, na medida em que a interatividade incide no cerne da própria tela. A interatividade ocorre uma vez que cada espectador-participador realiza sua própria lógica de associação, remetente às imagens encadeadas pela montagem simultânea. Ou seja, a interatividade, sem o uso de interfaces outras além da própria tela, isto é, a tela como interface para a interatividade. Para esse tipo de produção, ter sua recepção efetiva requer um espectador capaz de compreender os novos parâmetros de leitura, habituado aos novos fluxos da informação, à recente lógica do espaço politópico (imagens e sons advindos de diferentes contextos configurados no mesmo quadro) e à simultaneidade das imagens. Nesse sentido, o espectador-participador adquire a função de narrador da obra, ao invés da narração linear em que sua participação é mínima. Isso vai ao encontro das atuais tendências proporcionadas pelas novas tecnologias em promover o público a sujeito do enunciado da narrativa, como acontece nas realidades virtuais, nos games, nas

CARVALHO, Victa de. O dispositivo imersivo e a Imagem-experiência. Eco-pós, Rio de Janeiro, v.9, n.1, jul. 2006. p. 141-154. COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação. In: PARENTE, André. Imagemmáquina. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 37-48 DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo e Godard. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 6 “Chamamos aqui de imagem-experiência a experiência que se dá através do próprio dispositivo, mas que não está nem no dispositivo, nem na imagem, nem no observador e sim nessa interrelação. A imagem- experiência corresponde a essa possibilidade de produção e de interferência” (CARVALHO, 2006, p. 145).

Lima

CAIRES, Carlos. Da narrativa fílmica interactiva Carrossel e Transparências: dois projectos experimentais. In: PENAFRIA, Manuela; MARTINS, Índia Mara (Org.). Estéticas do digital: cinema e tecnologia. Lisboa: LabCom, 2007. p. 33-48

de

BETTETINI, Gianfranco. Semiótica, computação, gráfica e textualidade. In: PARENTE, André. Imagem-máquina. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 65-71

M arília Xavier

6 Referências

obras imersivas, no Neurocinema, nas propostas de TV interativa, entre outros.

a multiplicação de janelas e o hipertexto como dispositivo da interatividade

5 Considerações finais

Transcinema :

depende necessariamente do manejo das interfaces, como o mouse e luvas de realidade

349


GREENAWAY, Peter. Toward a re-invention of cinema - Cinema Militans Lecture. 28 set. 2003. Disponível em <http://petergreenaway.org.uk/essay3.htm>. Acesso em 28 abr. 2010.

LEÃO, Lúcia (org). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Editora Senac, 2005.

______. Transcinemas: Um, nenhum e cem mil. 2003. Disponível em: <http://www.pos.eco. ufrj.br/docentes/publicacoes%5Ckmaciel1.pdf> Acesso em: 26 abr. 2010. MANOVICH, Lev [s.d.]. ¿Qué es el cine digital?. Disponível em: <http://www.upv.es/ laboluz/revista/pages/numero5/rev-5/manovich.htm> Acesso em: 26 abr. 2010. _______. The language of new media. Cambridge: The MIT Press, 2001. MELO, Venise Paschoal de. Interatividade, Virtualidade e imersividade: participação na obra de arte contemporânea. Campo Grande, 2008. Dissertação. Departamento de Letras, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural/ Unesp, 2003. METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972. PARENTE, André. Os paradoxos da imagem-máquina. In:_________ (Org.). Imagemmáquina. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. p. 7-35. ______. Cinema e Tecnologia digital. Lumina, Juiz de Fora, v. 2, n. 1, p. 1-17, jun. 1999. PEIXOTO, Nelson Brissac. Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura. In: PARENTE, André. Imagem-máquina. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 237-252. VIVEIROS, Paulo. Espaços densos: configurações do cinema digital. In: PENAFRIA, Manuela; MARTINS, Índia Mara (Org.). Estéticas do digital: cinema e tecnologia. Lisboa: LabCom, 2007. p. 33-48.

1 - n. 1

______ (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.

ano

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. São Paulo: 34, 2004. p. 21-74 MACIEL, Kátia. Transcinemas e a estética da interrupção. In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda (Org.). Limiares da Imagem. Rio de Janeiro: MAUAD, 2006.

Revista GEMI n IS |

KERCKHOVE, Derrick de. O senso comum, antigo e novo. In: PARENTE, André. Imagemmáquina. Rio de Janeiro: 34, 1993. p. 56-65

350


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.